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Introdução

T
IGURA E OBRA DE C. G. JUNG estão há mais de dez anos
/{ �1�vamente no centro do interesse público. Na Alemanha,
-

-
autores populares como Franz Alt e Eugen Drewermann
recorrem à autoridade de Jung, enquanto que nos Estados
Unidos a obra deste há muito constitui os fundamentos teóricos
do movimento New Age*. Ninguém ousaria vaticinar este ines­
perado sucesso, quando nos tardios anos sessenta a obra de

* New Age - Nova Era, a de Aquário acabará com a Era de Peixes


cansada de guerras, ideológico-religiosas, físicas, tecnológicas entre os
homens que assim passarão a duvidar do que designam progresso. Nos finais
do século XIX, os astrólogos anteviram a mudança de paradigma a acon·t�cer
em meados do século XX, sendo Alice Bailey responsável nos meios teosofis­
tas pela propagação do termo NEW AGE, englobando a primazia do espírito -
energia cósmica, reduto do Ser Absoluto, Essência criadora de toda a matéria;
na Nova Era, a de Aquário -celebrizada na comédia musical Hair, em finais
dos anos sessenta -seriam os valores morais e espirituais, o espírito e o amor
os que passariam a reger as relações entre os homens. O recrudescer da psi­
cologia humanista fez então despoletar o interesse pelas obras de C. G. Jung
e W. Reich, por exemplo. Igualmente, pelos autores românticos alemães,
Novalis em destaque. H. Hesse, com as suas obras Siddhartha (Lisboa: Dijel) e
M. BRUMLIK (1993). C.G. Jung, Zur Einführung
Lobo das Estepes (Lisboa: Difel) foi dos escritores alemães cujo impacte na Beat
(C.G. Jung, Uma Introdução - Tradução de Fernando Generation (USA) foi marcante, por precisamente nelas se fazer a pedagogia
Ribeiro. Planeta Editora, 2007). do regresso à sabedoria, ao aprender a aprender sem que importasse o conhecer
pelo conhecer. Nos tempos que correm, as tendências Yoga, Zen, biológicas, no
vestir, no comer, no viver, na opção pelas filosofias e medicinas orientais são
seguramente manifestação desta mesma Nova Era de Aquário. [N. do T.]
14 JUNG, A CONSCIÊNCIA DO NOSSO EU JUNG NO CENTRO DO MUNDO 15

Sigmund Freud ocupou o centro de uma revolução cultural na penho religioso, nada podia e pretendia dizer. Quando no final
Alemanha. Pelo contrário, Jung, a respeito do qual correu o deste desenvolvimento surgiu uma «psicologia transpessoal»,
boato de ter sido anti-semita, de ter atraiçoado Freud e de ter prometendo integrar religião, ciências naturais e a auto-realiza­
simpatizado com os nacional-socialistas, surgiu enquanto ideó­ ção individual, estava apenas a articular aquilo que o aluno de
logo conservador entre outros como Martin Heidegger, Carl Freud, e mais tarde seu adversário Carl Gustav Jung, havia já
Schmitt ou Ernst Jünger. Com o enfraquecimento do impulso esboçado, aprofundado e experimentado ia para cinquenta anos.
revolução-cultural, com uma crescente crítica da ciência e com Para além do mais, a teoria do inconsciente de Jung foi sobre­
a criação de um meio favorável à auto-realização (G. Schulze) tudo muito mais que a expressão de uma revolta contra Freud
enquanto grupo social de grandes dimensões na sequência de e respectiva obra. Poderá parecê-lo do ponto de vista interno
classe e estrato social, cresceu o interesse por teorias que ele­ da escola freudiana - na realidade aconteceu o contrário.
varam à condição de modo de vida a situação excepcional que C. G. Jung foi o renovador conservador de uma grande tra­
é o tratamento psicoterapêutica. A obra de Sigmund Freud que, dição. Na sua obra, a tradição ocidental e sobretudo romântica
apesar do conservadorismo dos seus conteúdos, esconde um do inconsciente completam-se e aperfeiçoam-se. Na obra de
núcleo revolucionário, não poderia assumir esta missão depois Sigmund Freud, interligam-se, pelo contrário, o espírito revo­
do fim do movimento estudantil. Onde tal fosse apesar de tudo lucionário das ciências naturais modernas e a franqueza sem
tentado, tinha de terminar em ironia- como nos filmes de Woody contemplações de uma individualidade despojada de todo o
Allen. A via larga da chamada psicologia humanista, que pre­ seu consolo metafísico. Jung surge assim como o rebelde contra
tendeu desempenhar este papel com os seus grupos de encon­ Freud e na verdade como representante de uma restauração
tro (encounter group), jogos-de-relação, anseios por crescimento científica enquanto Freud, o mentor conservadoramente activo
pessoal e experiências de êxtase, ficou porém indiferente a três da escola, desempenha o papel de um revolucionário, defensor
importantes interrogações do espírito da época. aguerrido dos seus progressos. Não é só a simpatia temporária de
Os novos e constantes encadeamentos de ideias não podiam Jung pelo nacional-socialismo, mas sobretudo também esta dupla
saciar a fome de histórias e imagens que se traduziu nomea­ limitação que torna difícil o debate entre freudianos e junguianos.
damente no sucesso de O Senhor dos Anéis de Tolkien e Morno A presente exposição orienta-se pelas seguintes ideias fun­
de Michael End. damentais: independentemente dos passos em falso dados por
Para além disso todo o palavreado relativo a «compreensão», Jung no campo pessoal, político e humano, importa apresentar
«aceitação», «confiança» e «amor» com origem nos conceitos de o programa de uma teoria romântica do inconsciente, verificando
psicoterapia-pela-fala de Carl Rogers não pôde apaziguar a a respectiva resistência científica. Como, todavia, uma teoria
procura, já em movimento, de um sentido para além do esta­ romântica do inconsciente tem boas razões para colocar a indi­
belecido. No final, restavam apenas as histórias com a própria vidualidade criativa singular no centro das suas atenções, esta
família ou os conflitos com os colegas de trabalho. Por último, teoria do inconsciente vê a sua legitimidade ligada à vida do seu
a psicologia humanista não podia negar as suas origens prove­ autor.
nientes da psicologia experimental académica, persistindo cui­ Assim, o capítulo «A Teoria do Inconsciente», foca numa
dadosamente dentro dos limites da sua disciplina. Face à crise perspectiva histórica do desenvolvimento aquilo que se pode
ecológica, a um novo olhar sobre as ciências naturais, ao desem- designar por teoria romântica do inconsciente com as respecti-
/6 JUNG, A CONSCIÊNCIA DO NOSSO EU

vas raízes quer na Antiguidade tardia quer na mística medie­ A Teoria Romântica do Inconsciente
val e aquilo que foi articulado com o romantismo alemão do
século XIX.
De seguida são apresentados os traços fundamentais de
uma biografia de C. G. Jung à luz do modo como se desenvol­
veu a sua teoria ao longo da sua vida. Entretanto, a sua relação
com Freud, o seu anti-semitismo e a sua relação com o nacional­
-socialismo ocuparão o centro das atenções não segundo uma
óptica sensacionalista, mas por daí resultarem esclarecimentos

<'(Ç)
acerca de questões particulares relativas à teoria romântica do
inconsciente.
De modo sistemático surgem, e dentro do respectivo contexto, RETRATO SOMBRIO DO MUNDO feito por Schopenhauer

conceitos capitais desta teoria como arquétipo, anima, sincroni­ suscitou a minha inteira aprovação. O mesmo não acon­

cidade, sendo aplicados a um exemplo actual de cultura popular. tecendo porém com a sua solução do problema. Tinha a

Posteriormente debate-se a questão relativa à possibilidade certeza que com o seu termo "vontade" queria de facto dar a

de saber se da teoria do inconsciente comentada brota uma entender Deus, o criador, descrevendo-O como "cego". Uma vez

forma específica de técnica terapêutica, ou seja, quais as conse­ que com base na experiência, sabia não existir qualquer blas­

quências clínicas, no sentido estrito, extraídas da teoria de Jung. fémia capaz de ofender a Deus, podendo, pelo contrário, ser

Para além disso, a obra de Jung tomou-se um catalisador de inves­ Este a exigi-la até; não só para reter o lado iluminado e positivo

tigações de largo espectro sobre as ciências da cultura. Evocam-se do homem, como também o lado obscuro e contrário a Deus,

sumariamente as fronteiras e possibilidades respectivas. O debate a concepção de Schopenhauer não gerou em mim qualquer

crítico e científico sobre tão eminente obra terá de incluir recriminação. Tomei-a como um juízo justificado pelos factos.

questões sobre a sociologia do conhecimento e história da ciên­ As suas ideias desiludiram-me, ainda para mais, pois, segundo

cia dirigidas à respectiva génese e aos conteúdos ideológicos estas, o intelecto deveria confrontar apenas a vontade cega com

respectivos, tendo finalmente de se interrogar quanto à natu­ a sua própria imagem, a fim de provocar a respectiva reconver­

reza da pretensão científica de veracidade de uma tal teoria. são. Como poderia a vontade ver de todo esta imagem se era

Por fim, e de forma orientada para a ciência e respectiva cega? E por que razão deveria, admitindo que pudesse vê-la,

teoria, leva-se finalmente a cabo a tentativa de mostrar que a ser incitada a reconverter-se assim, uma vez que a imagem lhe

obra de C. G. Jung, mutatis mutandis, contém uma teoria pro­ apresentaria exactamente o que a vontade quereria ver? E o

fícua dos fundamentos biológicos e universais da cultura, de que seria o intelecto? Função da alma humana, jamais espelho,

recursos ainda por explorar e esgotar, podendo assim lançar antes um pequeníssimo espelho de dimensões infinitesimais,

pontes entre áreas emergentes tão diversas como a sociobiolo­ empunhado por uma criança contra o sol, esperando que este

gia, a antropologia estrutural e a hermenêutica das ciências da ficasse encadeado.»1

cultura. Assim refere Jung em 1958, com oitenta e três anos de


idade, as vivências resultantes das leituras que o marcaram aos
/ g' JUNG, A CONSCIÊNCIA DO NOSSO EU
JUNG NO CENTRO DO MUNDO /9

dezasseis anos. O aluno de liceu estudou Kant, as obras do médico como mola propulsora da obra de Fichte (1762-1814), aluno de
romântico Carl Gustav Carus (1789-1869), a obra de Nietzsche, Kant, que, superando este, acreditava poder demonstrar a
a Philosophie des Unbewussten, A Filosofia do Inconsciente, de liberdade e capacidade de ajuizar. O ónus de tal demonstração
Eduard von Harhnann (1842-1906) e -last but not the Ieast- a obra consistiu na equiparação inintencional, porém inevitável, entre
do filósofo da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897). No mundo a liberdade do homem construída como absoluto e um abso­
culto de Basileia, os debates em tomo da obra de Nietzsche luto constituinte de toda a liberdade, o acto de pensamento,
I

professor aí residente, e as opiniões do patrício de Basileia e acrescido de qualidades divinas.


teórico de direito matriarca! J. J. Bachofen (1815-1887) marca­ Na teoria racionalista de Fichte acerca da liberdade abso­
ram o clima intelectual da viragem do século. O pensamento luta, o acto de pensamento finito do homem coincide com a
daqueles anos foi marcado pelo debate entre a fé positivista no subjectividade infinita de Deus. Esta figura do pensamento
progresso e o cepticismo do historicismo cuja valorização de respeitante à unidade entre o finito e o infinito, o humano e o
épocas históricas passadas face ao presente traduziu a sensação divino, o necessário e o fortuito apresenta o núcleo sistemático
de perda da modernidade. No seio do cepticismo face ao de todas as teorias românticas da subjectividade.
progresso misturaram-se dúvidas face aos esforços conscientes Quando G. W. F. Hegel ( 1770-1831), na sua Phiinomenologie
e deliberados inerentes ao espírito do homem. Os limites e des Geistes, Fenomenologia do Espírito, trata de reproduzir a trans­

�otencialidades da capacidade de conhecimento do homem já formação da substância divina em sujeito, vertida num decurso
tmham stdo _ tema da filosofia da Aufkliirung, Iluminismo de acontecimentos do mundo racionalmente explicado, trans­
alemão, nomeadamente de Kant. Na obra de todos os autores, fere estas ideias do campo da moral para as ciências da história,
nos quais Jung se apoia aquando das suas primeiras leituras, emergentes em inícios do século XIX.
de Kant (1724-1804) a Schopenhauer (1788-1860), reside sempre Quando por fim, Schelling (1775-1854), contemporâneo de
a questão central relativa às potencialidades e limites do sujeito Hegel e Fichte, postula na sua Identitiitsphilosophie, Filosofia da
moderno. Identidade, a unidade entre a natureza cognoscente e a natureza

Depois de na obra de Descartes com a sua, tantas vezes in­ conhecida estabelecendo ambas como algo absoluto, isto é, como
compreendida, formulação «cogito ergo sum» se ter destacado algo divino, está a jogar com o carácter de transferibilidade da
a ideia da subjectividade modema como centro de toda a exis­ ideia fundamental dos românticos para o campo das ciências
tência, seja a do pensar seja a do agir, o comentário desta ideia naturais modernas então em consolidação. Schelling, ao escla­
passou a ser de todo interessante para a filosofia contemporânea. recer a natureza da liberdade humana e assim a possibilidade
Apenas quando Kant, logo na Kritik der reinen Vernunft, Crítica para fazer mal pelo facto de atribuir ao seu opositor divino,
da Razíio Pura, pensa um eu «que tem de poder acompanhar todos à natureza, um fundo obscuro, uma in-transparência, está a
as minhas ideias, a fim de demonstrar que o homem não pode completar a teoria romântica da subjectividade.
conhecer quer Deus quer a liberdade humana, quer mesmo a A ideia de identidade entre sujeito e objecto, entre absoluto
imortalidade da alma, está a colocar o eu-cognoscente no e acaso, entre finito e infinito, postulada por Fichte enquanto
centro, indicando-lhe igualmente as suas limitações. doutrina da liberdade ponderada e absoluta do sujeito moral,
A irrenunciável liberdade moral do agir no homem, pos­ encontra o seu complemento e realização cabal na teoria da uni­
tulada por Kant, todavia não comprovável, manteve-se também dade entre subjectividade pensante e natureza de Schelling, na
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qual a subjectividade se apercebe da respectiva divindade, mas


Na sua obra intitulada Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse,
também da sua opacidade.
Uma Dificuldade da Psicanálise, publicada em 1917, Freud apre­
senta a sua teoria da psicanálise como a terceira grande ofensa
«Ü homem jamais detém em si a condicionante, mesmo que
ao amor próprio do homem logo a seguir a Copérnico e a
persista no mal; ela é algo que lhe foi apenas empres­
Darwin, como que identific ando esta teoria à afirmaç ão,
tado, sendo independente de si, por isso a sua personali­
«segundo a qual o eu não é senhor em sua casa».
dade e essência do eu (Selbstheit) jamais podem elevar-se a
E prossegue:
um actus perfeito. Esta a tristeza anexa a toda a existência
finita; e ainda que em Deus haja pelo menos a respectiva
((Pouquíssimas pessoas se deveriam ter dado conta do
condicionante independente, também nele próprio haverá
facto de o admitir a existência de processos inconscientes
uma fonte da tristeza que jamais acederá à realidade,
em plena alma significaria o mesmo que um passo de tre­
servindo antes apenas à alegria eterna da superação. Daí
mendas consequências para a ciência e para a existência.
o véu da melancolia estendido sobre a natureza inteira,
Todavia , apresse mo-nos a acresce ntar não ter sido a
a profunda e inabalável melancolia de toda a existência.»2
psicanálise a dar este passo em primeiro lugar. Devem
mencionar-se filósofos ilustres como precursores; sobre­
Esta ideia, redigida em 1809, antecipa em grande medida
tudo o grande pensad or Schope nhauer cuja vontade
aquilo que A. Schopenhauer, em cuja obra Jung se apoiou, arti­
inconsciente deve ser equiparada às pulsões da alma em
culou cinco anos mais tarde em Die Welt als Wille und Vorstellung,
psicanálise. O mesmo filósofo, de resto, foi quem chamou
O Mundo como Vontade e Representação, e aquilo que se ficou a
a atenção do homem, através de palavras de inesquecível
saber somente trinta anos mais tarde, aquando do fracasso da
impacte, para o significado constantemente subestimado
revolução burguesa na Alemanha. Enquanto racionalista radi­ dos seus anseios sexuais. A psicanálise teve apenas uma
cal, Schopenhauer despojou o fundo obscuro da natureza, a con­
vantagem, confirmar de modo não abstracto ambos os
dição prévia e limitação de todo o conhecimento, a «vontade de
princípios atentatórios do narcisismo, o relativo ao si?�i­
existir>>, de todas as características divinas. Schopenhauer vê .
ficado psíquico da sexualidade e o relativo à a-conscien­
nesta «vontade de existir» um ultraje metafísico a ser controlado
cia da vida da alma, demonstrando, com base em acervo
com base numa capacidade de conhecimento auto-sublimadora,
de dados, qual o que se reporta pessoalmente a cada indi­
por sua vez inicialmente apenas instrumento desta vontade.
víduo, compelindo-o a tomar uma posição sobre estes
Schopenhauer e respectiva obra estão na base da psico­
proble mas. Mas exacta mente por isso dirige para si
logia de profundidade moderna. Mais tarde, com a discussão
mesma a rejeição e resistências que discretamente se
da sua obra, as vias há muito conjuntas da psicologia de pro­
desviam do grande nome do filósofo.»3
fundidade romântica e racionalista haveriam de se afastar.
Aquilo que em Schopenhauer parece soar ainda unido ou A psicanálise é, se se quiser, uma verificação empírica da
.
ambivalente, surgirá sistematicamente separado nos seus teoria especulativa da vontade inconsciente e respectl� a
alunos e seguidores, Freud e Jung, acabando num drama das res­ articulação com a sexualidade. De acordo com as própnas
pectivas vidas. palavras de Jung, este, desde cedo colocou em dúvida a resposta
JUNG NO CENTRO DO MUNDO 23
22 JUNG, A CONSCIÊNCIA DO NOSSO EU

ciente e inconsciente, as teorias românticas vêem neste


de Schopenhauer à questão da superabilidade da vontade cega
facto uma transição gradual.
em si mesma por um intelecto, servo todavia desta vontade.
- Onde, nas teorias racionalistas, uma subjectividade, digna
Na verdade, o projecto de uma psicanálise, enquanto via de escla­
de seu nome, assenta numa auto-transparência cons­
recimento, está associado à resolução desta questão. A dife­
ciente levada aliás apenas �ão longe quanto possível, as
rença entre teoria racionalista e romântica do inconsciente e
teorias românticas baseiam-se numa unidade entre
z: sp�ctiva diferença entre Freud e Jung ilustram as respostas pos- .
corpo-alma-espírito, cujos componentes podem, na
s1Ve1s a esta questão. Schopenhauer tem de assegurar uma
verdade, surgir temporariamente separados, podendo
autonomia relativa do conhecimento perante a vontade, a fim de
embora em princípio ser conduzidos por uma lei da
poder preservar com razoabilidade a viabilidade da sua pró­
evolução.
pria filosofia e da correspondente ética da superação da von­
- Onde, as teorias racionalistas acabam por ver no in­
tade através da ascese.
consciente sobretudo uma ameaça e um poder inibidor
Esta relativa autonomia será desenvolvida por Freud,
da autonomia, as teorias românticas presumem existir
o discípulo racionalista de Schopenhauer, através de uma teoria
nele aquele fundo de motivação que permite e conduz
psicológica dos processos primários e secundários do cons­
ao agir consciente.
ciente e do inconsciente, através de u�a teoria da linguagem
- Por último, as teorias românticas vêem no inconsciente
como acto simbólico de ensaio e através de uma psicologia do
um potencial de expressão enriquecedor, enquanto as
d esenvolvimento do eu como instância próxima do sujeito
_ teorias racionalistas exploram sobretudo as suas mani­
situada entre normas sociais e base pulsional. Por outro lado,
festações enquanto textos adulterados (todavia também
Jung, à luz da tradição das teorias românticas do inconsciente,
elas conhecem por exemplo uma «regressão ao serviço
coloca, em posição central, a processualidade de um sujeito
do eu»).
uno em si próprio ao encontro gradual de si próprio.
Onde, em Freud, a capacidade de ajuizar e conhecer, ins­
Estas perspectivas contraditórias constituem uma conse­
titucionalizadas na cultura do homem, são dirigidas por assim
quência oriunda da filosofia de Kant que com a sua doutrina­
dizer a partir do exterior contra as próprias deformações e
-dos-dois-mundos estabeleceu uma distinção rígida entre as
constelações pulsionais respectivamente subjacentes, as teorias
«coisas em si mesmas», exigência da razão, e os «fenómenos»,
românticas do inconsciente obedecem ao processo de desen­
aos quais apenas o conhecimento científico-tem acesso.
volvimento de um sujeito que vai tomando consciência de si
Segundo uma perspectiva científica, a alma humana e
próprio. Este processo segue uma via previamente traçada e
respectiva função não se distingue em nada dos objectos das
com sentido, em direcção a uma cada vez maior consciencia­
ciências naturais - existe no tempo e no espaço, estando sub­
lização e individualidade. A concepção teleológica das teorias
metida à lei da causalidade ao longo das suas modificações.
românticas e a interpretação segundo a causalidade das teorias
Por outro lado, a capacidade de ajuizar moralmente e de agir
racionalistas resultam numa série de modos de ver diferentes.
livremente, furta-se, qual necessário pressuposto da moral
incontestavelmente aceite, a qualquer classificação da ciência,
- Onde, nas teorias racionalistas da psicologia de pro­
revelando-se igualmente como uma «coisa em si própria».
fundidade, prevalece uma separação clara entre cons-
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Schopenhauer, segundo ele próprio, um kantiano fiel, inter­ Uma teoria romântica do inconsciente encara obrigatoria­
preta por fim a «coisa em si>� como a vontade cega de viver, mente como divino o sujeito absoluto subjacente ao ser indi­
vendo-a sobretudo manifestar-se sob a forma de sexualidade: vidual. Schelling, logo em 1809, postulou isto mesmo com toda
a clareza:
<<Aquilo que geralmente se manifesta na consciência indi­
vidual como pulsão sexual, sem se dirigir a um determi­ <<A sucessão das coisas a partir de Deus é uma auto-reve­
nado indivíduo do sexo oposto, tal é em-si-mesmo, e para, lação de Deus. Deus, porém, pode apenas revelar-se
além da aparência, a vontade de viver, pura e simples­ naquilo que lhe é semelhante, nas criaturas livres que
mente. Porém, aquilo que surge na consciência como ágem autonomamente, para cujo ser só existe uma causa:
pulsão sexual dirigida a um determinado indivíduo, isso Deus e que porém são tal como Deus é. Ele fala e elas
é, em si-mesmo, a vontade, a vontade de viver exactamente aparecem. Se todas as criaturas do universo fossem também
enquanto determinado indivíduo. Nesta situação, a pul­ apenas ideias do espírito divino, então teriam de, por isso
são sexual, embora necessidade subjectiva em si mesma, mesmo, estar vivas. Consequentemente, as ideias têm ori­
sabe envergar muito bem a máscara de um deslumbra­ gem na alma; porém a ideia criada é um poder autónomo,
mento objectivo e iludir assim a consciência: uma vez em actividade continuada em função de si própria no
que a natureza precisa deste estratagema para aceder aos seio da alma humana, de tal modo em progressão que
seus objectivos.»4 domina a sua própria mãe, subjugando-se-lhe igual-
mente.»5
Também esta perspectiva postula um sujeito absoluto, que
se comporta em função de objectivos, e, nomeadamente, a von­ Em Schelling está assim antecipada a crítica, dirigida por
tade de existir; persiste por isso kantiana por ver todos os r
Jung à concepção de Schopenhauer sobre a auto-superação da
modos de comportamento dos seres humanos como sendo vontade humana. Individualidade e subjectividade revelam-se
originados pelas definições dos objectivos deste sujeito abso­ afinal não como epifenó menos, mas como caracter ísticas
luto. Quer o amor entre pessoas quer o interesse de cada homem fundamentais do sujeito divino; características que explicam
individual em ser um indivíduo inconfundível são por assim sobretudo por que razão os homens se podem entender a si
dizer consequências veladas, epifenómenos, da vontade de existir. próprios como livres e capazes de acometer contra si próprios
As teorias românticas do inconsciente vêem a individuali­ e pecar.
dade de modo diverso, não como um epifenómeno, mas como Schelling e Schopenhauer adiantaram diversos sentidos
o desenvolvimento superior do sujeito imanente. Porém, esta para uma psicologia científica de profundidade no âmbito da
perspectiva modifica também os pressupostos sistemáticos: psiquiatria, a aparecer em época de ciências naturais positi­
aquilo que finalmente se pode transformar na forma de indi­ vistas. Em todo o caso, tiveram de ser encontrados correlatas
vidualidade, na forma de indivíduos conscientes de si pró­ empíricos para cada hipótese metafísica subjacente: para aquilo
prios, pode não apenas ter sido a vontade cega, mas também que se designa aqui por «vontade de existir» e ali «Deus»,
ter, desde o princípio, possuído características individuais, tiveram de ser apresentadas correspondências observáveis no
subjectivas. compo rtamen to do ser human o. O próprio Schope nhauer
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JUNG NO CENTRO DO MUNDO 27

preparou o caminho para esta «cientifização» através da sua romântica fundamental haveria também de marcar posterior­
equiparação parcial entre «vontade de existir» e «sexualidade» mente a obra de Freud, embora no começo tivesse trilhado uma
enquanto a tradição romântica se deparava com a dificuldade via estritamente materialista, isto é, neurológica. A diferença
em encontrar para «Deus» um correlato correspondente em entre modelos racionalista e romântico da psicologia de pro­
termos de ciências humanas. fundidade redundou na questão para onde é possível remeter
O caminho para a construção deste correlato remete para os símbolos de loucura e doença passíveis de interpretação:
a convicção romântica fundamental de unidade entre espírito para um substrato sexual vital reprimido pela sociedade ou
e natureza e para a questão relativa à sua correlação. A estética para uma consciência divina impedida de se desenvolver
foi então tida como disciplina-ponte entre as ciências naturais devido às suas contradições internas. No centro das atenções
do romantismo e a filosofia, pois a arte com as suas formas de científicas apareceram diversas formas simbólicas, caso se
expressão e símbolos adequados ao assunto era tida como tratasse da investigação sobre a vontade de existir reprimida
campo, no qual espírito e natureza se encontravam. O lugar de (afinal, da sexualidade) ou da consciência divina enclausurada
tal mediação pertence deveras a ambos os campos: o indivíduo em si própria. O modelo simbólico preferido da variante raciona­
artista, o génio, enquanto homem mortal, de carne e osso, per­ lista da psicologia de profundidade é o linguístico, mais exacta­
tence a uma natureza que se manifesta em e através do génio, mente o texto escrito, mesmo onde, como em Traumdeutung,
presente em símbolos inteligíveis ao homem. A proximidade A Interpretação dos Sonhos, de Freud, se trata sobretudo de
constantemente sublinhada entre génio e loucura, a pretensão imagens - enquanto que a psicologia romântica de profundi­
de génio em estar perto dos abismos de uma natureza conde­ dade se orienta pela imagem. A causa desta diferença de pers­
nada - como Odo Marquard mostrou convictamente - conduziu pectiva deveria residir por um lado na revelação de Deus
a uma proximidade sistemática e disciplinar entre estética e através da natureza e respectivos fenómenos, favorecida pelo
terapêutica, entre teoria da arte e medicina. O médico român­ romantismo tardio. Por outro lado, a psicologia de profundi­
tico J. G. Carus pôde escrever logo em 1846: dade racionalista, crítica do poder, orientou-se segundo o para­
digma da censura, modelando consequentemente o pano de
«0 nosso espírito consciente não pode dar origem a um
fundo da motivação do homem enquanto texto cujas deforma­
inconsciente, gera e dá à luz apenas pensamentos, eles
ções, provocadas por uma disposição descontínua de símbolos,
próprios existindo também novamente apenas em função
são encaminhadas para os respectivos significados iniciais.
de algo consciente: esse algo a-consciente pode ser somente
Assim ficam finalmente frente a frente uma hermenêutica da
gerado pelo inconsciente, e assim também a ideia de
imagem e uma hermenêutica do texto. Esta dicotomia permite
doença, em si mesma inconsciente, pode brotar unica­
perguntar se cada imagem, acessível apenas sob forma lin­
mente do inconsciente da nossa natureza.>>7
guística ao tratamento terapêutico, não poderá ser por um lado
compreendida apenas no âmbito da hermenêutica do texto.
A estética e a medicina do romantismo ficaram associadas
Ao responder à pergunta se pode ou não existir uma her­
pelo interesse comum relativo aos anseios inconscientes por
menêutica somente da imagem, estará a abrir-se uma diver­
uma natureza em princípio inteligível e à possibilidade da
gência maior entre as psicologias de profundidade racionalista
interpretação respectiva por meio de símbolos. Esta convicção
e romântica.
JUNG NO CENTRO DO MUNDO 29
2K JUNG, A CONSCIÊNCIA DO NOSSO EU

tigação - a totalidade da pessoa, as respectivas funções bioló­


Imagem ou texto escrito, Deus ou sexualidade, desenvol­
gicas, as facetas espirituais e os aspectos numinosos - se tor­
vimento organísmico ou modo fragmentado de originar - os
naram simultaneamente os pressupostos essenciais da sua
temas motivo de dissensão entre Jung e Freud têm a sua ori­
própria investigação. Enquanto teoria da individualidade,
gem nas diferentes reacções à doutrina de Kant sobre a cons­
a psicologia analítica não deixa igualmente de ser sempre a
ciência livre do homem enquanto necessidade incontornável e
teoria de um indivíduo, nomeadamente daquele que investiga.
impossível de comprovar empiricamente. Na teoria romântica
.
Está submetida, mais do que qualquer outra ciência, aos pres­
da subjectividade de Fichte e Schelling e na metafísica racio-
supostos pessoais do observador9• Mais, é possível entender o
nalista de Schopenhauer estão dispostos os trilhos teóricos a
desenvolvimento do acto-de-pensamento científico como pro­
serem mais tarde seguidos por Jung e Freud. Enquanto Jung
cesso quer de amadurecimento quer de desenvolvimento do
permaneceu fiel ao programa romântico, Freud ousou, apoiado
investigador, ao mesmo tempo que, por sua vez, este processo
em Kant e Schopenhauer, modificar ele próprio a ideia de psi­
de amadurecimento e de desenvolvimento comporta sempre
cologia de profundidade, projectando-a como uma ciência dos
consequências para o progresso da teoria. Todavia, se os pres­
indivíduos em vez de continuar a urdi-la- tal como a tradição
supostos pessoais do teórico desempenharem um papel mais
romântica fez- como doutrina da individualidade. A fim de
determinante na psicologia de profundidade. do que em outras
manter-se firme contra a nova interpretação racionalista
ciências, então é de esperar que o curriculum do teórico exprima
freudiana e manter-se igualmente fiel às intuições mais pro­
em certa medida a ideia da própria obra.
fundas de Freud, C. G. Jung considerou como seu verdadeiro
mérito:

«Olhando retrospectivamente posso afirmar ser o único


que levou adequadamente por diante os dois problemas
que mais interessaram Freud: o relativo às reminiscências
arcaicas e o relativo à sexualidade. É um erro muito divul­
gado não ter eu visto o valor da sexualidade. Pelo con­
trário, esta desempenha um papel enorme na minha
psicologia, nomeadamente enquanto expressão essencial
- ainda que não a única- da totalidade psíquica. Todavia
foi minha preocupação capital, investigar e explicar para
além do seu significado pessoal e da sua função biológica,
o seu lado espiritual e o seu sentido numinoso; exprimi afi­
nal aquilo em que Freud estava interessado, mas que não
podia compreender .. »a
.

Jung está de tal modo vinculado ao núcleo romântico da


sua psicologia de profundidade que os seus objectos de inves-

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