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Luiz Alberto Faria Ribeiro

Deus é para todos?

Travestis, inclusão social e religião


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social do Departamento de Serviço Social do
Centro de Ciências Sociais da PUC – Rio.

Orientador: Prof. Luís Corrêa Lima

Rio de Janeiro
Junho de 2009
Luiz Alberto Faria Ribeiro

Deus é para todos?

Travestis, inclusão social e religião

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA

Graduação em Serviço Social do Departamento de


Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da PUC –
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.

Prof. Luís Corrêa Lima


Orientador
Departamento de Serviço Social PUC - Rio

Profª. Ilda Lopes Rodrigues da Silva


Departamento de Serviço Social PUC - Rio

Profª. Luciana Patricia Zucco


Escola de Serviço Social – UFRJ

Prof. Nizar Messari


Vice-Decano de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 08 de junho de 2009


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.

Luiz Alberto Faria Ribeiro

Psicólogo formado pela PUC-Rio (Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 1996.
Especialista em Psicologia Clínica na CCE/PUC-Rio
em 2002. Especialista em Atendimento a Criança e
Adolescente Vítima de Violência Doméstica na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA

CCE/PUC-Rio em 2005.

Ficha Catalográfica

Deus é para todos? : travestis, religião e inclusão


social / Luiz Alberto Faria Ribeiro ; orientador: Luís
Corrêa Lima. – 2009.

159 f. : il. (color.) ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Serviço Social)–


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2009.

Inclui bibliografia

1. Serviço social – Teses. 2. Travesti. 3.


Inclusão social. 4. Religião. I. Lima, Luís Corrêa. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Serviço Social. III. Título.

CDD: 361
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Para minha mãe e meu pai.


Agradecimentos

A Deus.

Aos meus pais e meu sobrinho.

Ao meu orientador, professor Luís Corrêa Lima, pelo acolhimento.


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Á CAPES e PUC-Rio, pelos auxílios concedidos.

Aos colegas do Mestrado Alan Loyola, Edilma Soares e Lianzy Santos, pelo apoio
e idéias para esta Dissertação.

Às professoras da banca examinadora, pela aceitação em participar.

Às travestis que gentilmente concederam as entrevistas para esta dissertação.


Resumo

Ribeiro, Luiz Alberto Faria Ribeiro. Lima, Luís Corrêa (orientador).


Deus é para todos? Travestis, Inclusão Social e Religião. Rio
de Janeiro, 2009. 159 p. Dissertação de Mestrado. Departamento
de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

O presente estudo tem como objetivo pesquisar a relação entre


travestis moradores do Rio de Janeiro e as religiões cristãs, umbanda,
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candomblé, budista, espírita e wicca. Para isto, foram entrevistadas


travestis de diversas idades. Esta pesquisa também procura confirmar
quais formas de violência e exclusão são vítimas; além de quais locais e
redes sociais estão inseridas, além da ‘pista’, pois nesta também sofrem
violência física e, em alguns casos, encontram a morte. Este estudo tenta
averiguar se o espaço religioso pode ser uma possibilidade em que haja a
inclusão das travestis, podendo possibilitar um aumento em sua auto-
estima.

Palavras-chave

Travesti; inclusão social; religião.


Abstract

Ribeiro, Luiz Alberto Faria. Lima, Luís Corrêa. (Advisor). Is God for
everyone? Transvesties, social inclusion and religion. Rio de
Janeiro, 2008. 159 p. MSc. Dissertation. Departamento de Serviço
Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The aim of the present study is to research the relationship between


the transvestites living in Rio de Janeiro and christian, umbanda,
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candomble, buddhist, spiritualist and wicca religions. In order to achieve


this, transvestites from several ages were interviewed. This research also
aims to find out the kinds of violence and exclusion they are victims of;
discover the places and social networks they belong to, aside from the
scope of ‘the streets’, where they also suffer physical violence and, in
some cases, meet death. This study tries to find out if religion can be a
place in which there is inclusion for the transvestites, making it possible to
improve their self-esteem.

Keywords

Transvesties; religion; social inclusion.


Sumário

1. Introdução 12
2. Mas quem são as travestis? 16
2.1. Silicone 17
2.2. Breve histórico de suas vidas 19
2.3. Histórico sobre exclusão e violência contra homossexuais 20
2.4. Movimento homossexual brasileiro 24
2.5. Ações positivas em prol do público LGBT 26
1.5.1. Brasil sem homofobia 26
1.5.2. Conferência Nacional para GLBT 27
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2.6. Sexualidade: binarismo e desconstrução 28

2.7. Gênero 30
2.8. Teoria queer 31
2.9. Bibliografia pesquisada 33
2.9.1. Na bibliográfica 33
2.9.2. Na documental 35
2.9.3. Trabalhos acadêmicos recentes 37
2.9.4. Filmografia 38
2.9.4.1. Documentários brasileiros 38
2.9.4.2. Assim me diz a Bíblia (For the Bible tells me so) 39
3. Violência, exclusão e inclusão 41
3.1. Violência 41
3.1.1. Violência doméstica 41
3.1.2. Bullying 44
3.2. Estigma 45
3.3. Exclusão 50
3.4. Pânico moral 55
3.5. Redes sociais e de solidariedade 57
3.6. Guetos e territórios 64
3.6.1. Guetos LGBT 64
3.6.2. Na ‘pista’ 66
3.6.3. Humanização e simpatizantes 70
4. Religião 72
4.1. Posicionamentos das religiões sobre a homossexualidade 75
4.1.1. Religiões cristãs tradicionais 75
4.1.1.1. Religião católica 75
4.1.1.2. Religiões reformadas 79
4.1.2. Candomblé e umbanda 81

4.1.3. Doutrina espírita 83


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4.1.4. Budismo 91

4.1.5. Wicca 91

4.1.6. Religiões cristãs inclusivas 92

4.2. Novas releituras 93

5. A pesquisa 99

5.1. Travestis 104

5.1.1. Quadro I: dados sobre as travestis 104

5.1.2. Questionário 107

5.1.3. Análise dos dados 110

5.1.4. Igrejas inclusivas 120

5.2. Líderes religiosos 121

5.2.1. Quadro II: dados sobre os líderes religiosos 121

5.2.2. Questionário 123

5.2.3. Análise dos dados 125

5.3. Leigos 127


5.3.1. Quadro III: dados sobre os leigos 127

5.3.2. Questionário 128

5.3.3. Análise dos dados 130

6. Considerações finais 134

7. Referências bibliográficas 142

Anexo I – Identificação dos leigos (as) entrevistados (as) 153

Anexo II – Roteiro das entrevistas das travestis 157

Anexo III – Termo de consentimento livre e esclarecido 159


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1. Introdução

Esta dissertação tem como objetivo um estudo sobre a relação entre travestis
moradoras do Rio de Janeiro e a religião.

Sou psicólogo clínico. Por causa de constantes situações de violência intra-


familiar encontradas na fala de pacientes durante sessões no consultório, achei
necessário me aprofundar no tema. Iniciei o curso de Atendimento á criança e
adolescentes vítimas de violência doméstica na PUC/RJ (2004). Lá, estudei sobre
as quatro violências domésticas exercidas principalmente sobre crianças,
adolescentes e mulheres. Notei, no entanto, que nada se falava no tangente a
violência contra homossexuais, muito menos contra travestis. Como lia em vários
jornais a respeito da violência exercida sobre esta população, interessei-me em
pesquisar mais sobre o assunto. Eu e uma amiga do curso, que é assistente social,
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decidimos escrever o TCC (Trabalho de Conclusão de curso) com o tema da


violência sofrida por travestis no Rio de Janeiro.

Descobrimos pouco material. Havia alguns poucos livros sobre travestis,


apenas etnografias que discorriam principalmente sobre montagem1, prostituição e
a violência que permeava o mundo trans.

No final do curso, durante correção do TCC, foi comentado pela Prof. Ilda
Lopes Rodrigues da Silva (responsável pelo curso de Atendimento á criança e
adolescente vítimas de Violência Doméstica) que pouco havia na PUC matéria
sobre este tema; apenas um trabalho também de conclusão de curso, no
Departamento de Serviço Social. Ela sugeriu que este seria um tema interessante
para uma Dissertação de Mestrado.

Fiquei com esta sugestão em minha mente. Decidi, dias depois, inscrever-
me para o Mestrado em Serviço Social, na PUC. Após ingresso, fui convidado
pelo prof. Luis Corrêa Lima para participar de seu grupo de pesquisa que tratava
de diversidade sexual, em reuniões nas manhãs de quintas-feiras. Já no grupo, tive

1Montagem é o nome usado pelas travestis ao se referirem à sua transformação


em sujeito travesti: uso de batom e outros adereços femininos, entre outros.
12

acesso ao material sobre homossexualidade e teoria queer, entre outros. Ao longo


do Mestrado, percebi que pouca literatura havia sobre religião e travestis. Sou
católico praticante e penso ser relevante a temática da religião para os grupos
sociais, seja de qual raça, etnia ou orientação sexual façam parte. Por que a
religião não seria para as travestis?

Procurei algumas travestis para entrevista em ruas e bares da Lapa e


Copacabana, mas este acesso foi difícil, já que era visto com desconfiança pelas
mesmas. Sublinho que as entrevistas que fiz para o TCC da especialização
mencionada foram realizadas em dupla, com a citada amiga assistente social, o
que favoreceu bastante o clima para a fala delas. Decidi retomar o contato com as
travestis anteriormente entrevistadas. Daí, surgiram as entrevistas que
possibilitaram esta dissertação. Por participar como ouvinte do Pré-Congresso e
Congresso Estadual para GLBT2 (realizados na UERJ, em 2008), conheci outras
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travestis que lá se encontravam e colaboraram com a pesquisa; também entrei em


contato com participantes do Projeto Damas, da Prefeitura do município do Rio
de Janeiro. As travestis destes três grupos indicaram-me outras, com quem entrei
em contato.

Para fundamentar a pesquisa, além de autores que escreveram sobre


travestis, como Hélio Silva (1993), dialogarei com a filósofa judia Hannah
Arendt. Embora já conhecesse alguns de seus textos, foi no Mestrado que me
aprofundei na sua obra. Comecei pelo clássico Sobre a Violência (2004), seguindo
depois para Condição Humana (1981), Eischmann em Jerusalém (1983) e demais
obras da autora.

Por que esta autora em especial? Percebi em toda a sua obra uma luta pela
condição humana, contra o preconceito para com os excluídos. É verdade que, por

2 A nomenclatura do movimento homossexual teve várias alterações no decorrer


dos anos. Neste trabalho, aparecerão as várias denominações, de acordo com
o momento histórico em que estarão sendo mostradas. Primeiro, foi denominado
GL (Gays e lésbicas); depois GLS (Gays, lésbicas e simpatizantes). Mais tarde,
GLBT (Gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), GLBTT (Gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais) e, após a Conferência Brasileira, realizada em Brasília (em
junho de 2008), passou a ser designada LGBT, para maior visibilidade e respeito
às integrantes lésbicas.
13

ser judia, e tendo sido feita prisioneira por duas vezes em campos nazistas na
Segunda Guerra, este tema lhe é caro e familiar.

No entanto, Arendt poderia muito bem ter feito uma defesa apaixonada do
judaísmo, apenas; no entanto, optou pela defesa de todas as formas de diversidade
humana. Seu discurso, portanto, é atemporal; serviu para o século XX, com a
predominância das guerras étnicas e religiosas; mas também serve para o século
XXI, quando se discute cada vez mais não apenas a diversidade étnica e/ou
religiosa. Neste começo de século, bastante material está sendo produzido no que
diz respeito à diversidade sexual, com os ganhos conquistados em todo o mundo
pela população LGBT, além da visibilidade dada em relação ao preconceito e
exclusão deste grupo. Que, embora denominada de ‘minoria’, compreende
milhares de pessoas ao redor do mundo, seja na vertente gay, lésbica ou qualquer
outra existente (ou que venha a existir). Alguns diriam tratar-se de uma ‘maioria
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silenciosa’ (Trasferetti, 1998). Não são maioria; no entanto, encontram-se em


todos os grupos étnicos, em todas as raças, em todas as classes sociais.

Esta dissertação se dividirá em quatro capítulos:

No primeiro capítulo, discorrerei sobre as travestis e sua vida. Serão


apresentados conceitos como exclusão social e violência doméstica, que
perpassam a vida das travestis;

No segundo capítulo, serão descritas as redes de solidariedade que possuem


e os tipos de guetos em que se inserem (tanto históricos como LGBT); além disso,
uma discussão sobre o local de socialização principal das travestis, conhecido
como ‘pista’3;

No terceiro capítulo, discorrerei sobre o papel da religião na sociedade;


além de descrever qual o posicionamento das religiões sobre a homossexualidade
e travestilidade;

No quarto capítulo, apresentarei dados obtidos na minha pesquisa de campo,


incluindo trechos de entrevistas com travestis, líderes religiosos e leigos (as). Ao

3 É o local em que exercem a prostituição (ruas e becos).


14

final, uma análise dos dados obtidos e se a religião pode efetivamente ser um
caminho possível para uma inclusão social.

A filósofa Hannah Arendt é uma autora importante em relação a esta


temática, embora não tenha focado especificamente a questão da orientação sexual
em suas obras; também, não era uma temática com muita visibilidade naquela
época (embora apareça na sua obra). Cavarero (2008), que escreveu sobre o
horrorismo4, reverencia a obra arendtiana, como importante e valiosa para a causa
LGBT.

Assim, ao lado dos autores, colocarei algumas idéias (discutidas) de Arendt,


que permitiram para mim um maior entendimento e embasamento da questão da
diversidade, tema desta Dissertação.

Por ter pouco material acadêmico sobre as travestis, muito do que será
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apresentado nesta dissertação nos dois primeiros capítulos não discorrerá


especificamente sobre elas, mas sobre o público LGBT em geral. Visto que, para
muitos, as travestis ainda são enquadradas apenas como gays. No histórico (sub-
capítulo 1.3), por exemplo: o movimento, quando iniciado, se denominava GL
(Gays e lésbicas), estando as travestis enquadradas nesta nomenclatura. Também
na parte sobre religião (Capítulo 2), quase nada foi encontrado no que diz respeito
especificamente à travesti. Nos preceitos religiosos citados, fala-se da
homossexualidade em geral e dificilmente especifica-se outras categorias, como
por exemplo, a de lésbicas e transexuais.

4Horrorismo é um neologismo para a violência contra os inernes. É um crime


ontológico, sendo a forma atual da banalidade do mal proposta por Arendt
(Cavarero, 2008).
2. Mas quem são as travestis?

As travestis são aquelas que possuem identidade de gênero oposta ao seu


sexo biológico. Portanto, se comportam como as pessoas do sexo oposto.
Realizam modificações corporais, com a aplicação de silicone (principalmente
nádegas e seios), injeção de hormônios femininos e realização de cirurgias
(principalmente no nariz e no pomo de Adão), além de se vestirem de forma
feminina (com saltos, saias, sutiãs). Este processo é conhecido por elas como
‘montagem’. Neste trabalho, usarei o artigo as ao invés de os. Isto por respeito á
sua luta política de serem conhecidas por denominação feminina, mais adequada a
sua forma corporal e sua identidade feminina 5.

As travestis, por fazerem parte de um grupo recente (em termos históricos)


são confundidas com outros grupos de homossexuais. Para deixar claro quem são,
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vou descrever os outros tipos de homossexuais queer a que são frequentemente


associadas:

- Crossdresser – aquele que usa apetrecho feminino (maquiagem, peruca,


roupas íntimas femininas), para a conquista de parceiros e durante o ato sexual. É
mais visado em ataques por homofóbicos do que os que não apresentam estes
sinais externos de homossexualidade;

- Transformista (ou Drag Queen) – usa apetrechos femininos e maquiagem


apenas para apresentações e shows, geralmente em boites noturnas. Não tem,
necessariamente, orientação homoafetiva;

- Transexual – declara sentir-se, desde a infância, uma mulher. Além da


injeção de produtos químicos, muitas vezes faz a cirurgia para embutir seu pênis.

5 Neste trabalho, estou escrevendo sobre as travestis; no entanto, também


existem os travestis: mulheres que modificam seus corpos para obterem
aparência masculina.
16

2.1. Silicone6

O passo fundamental para a conquista da identidade travesti é a injeção de


silicone em seu corpo (Silva, 1993). Portanto, um capítulo específico sobre este
tema se faz necessário

O uso de silicone líquido é um risco enorme, principalmente se injetado


pelas bombadeiras 7. Estas geralmente não possuem formação técnica necessária;
aprenderam quando elas mesmas foram ‘bombadas’. É, inclusive, considerado um
crime, o ato de injetar silicone sem ser profissional médico (Kulick, 2008).

A ‘bombação’ é um processo extremamente dolorido; é uma violência


contra o próprio corpo. O silicone, como lembra Garcia (2007), é um líquido
espesso; para ser injetado, é necessário o uso de seringas e agulhas veterinárias
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(usadas em animais). Além disso, as picadas demoram a cicatrizar; usa-se a cola


‘super-bonder’ para fechar a ferida. As travestis, por causa da violência
simbólica8, talvez estejam acostumadas a entenderem o que sofrem como sendo
natural. A dor e violência que sofrem durante o processo de injeção do silicone
podem, talvez, ser percebidas como condição necessária para a conquista de um
corpo feminino; são denominadas por elas como ‘dores de ser mulher’ (Idem, p.
92). Mas também há as que demonstram não querer o uso do silicone; no entanto,
denominam-se igualmente travestis. Foram relatadas duas razões para que não
usem:

- Por realmente não darem importância, não pensar que seja o uso do
silicone o constitutivo fundamental da travestilidade;

- O medo pelo que possa ocorrer caso o silicone seja implantado no corpo;
que o processo lhes cause a morte ou que fiquem aleijadas.

6 Silicone é um polímero inodoro e incolor; é empregado pela medicina para a


feitura de próteses (de mama, por exemplo).

7 Bombadeiras são as pessoas que aplicam silicone nas travestis.

8A violência simbólica se dá quando a vítima não questiona o ocorrido; pode


pensar que é merecedora da agressão.
17

A alternativa é a prótese de silicone, que é substancialmente mais cara.


Muitas travestis não possuem dinheiro para colocar próteses. Estas são vistas
como pertencendo a uma classe econômica inferior, em relação as que possuem
dinheiro para colocar prótese de silicone (Duque, 2005, p. 87). Sendo assim,
aplicam silicone líquido que, além de não dar muitas vezes o efeito desejado,
causa complicações de saúde que podem levar a deformações corporais e mesmo
à morte. Além disso, o silicone líquido se mistura de tal forma à pele que é
impossível ser retirado e pode produzir deformações.

Um caso conhecido é o de uma travesti que, envolvida em uma briga com a


polícia, levou socos no rosto. Com isso, o silicone líquido das maças de sua face
se deslocou para perto dos lábios (Duque, 2005). Sua face ficou desfigurada, sem
que haja possibilidade de intervenção cirúrgica para corrigir o feito.
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Há um grande risco de sequëlas, mesmo que a travesti não sofra violência.


Após a aplicação, a travesti deve permanecer alguns dias deitada, imóvel, para que
o silicone não desça para outras partes do corpo, o que poderia provocar
imperfeições permanentes.

Peres (2005) relata:

“Condições com que as travestis injetavam silicone em seus


corpos, que nem sempre essas práticas eram realizadas de forma
adequada e com a assepsia necessária, levando muitas travestis
à morte, quando não súbita, em decorrência de infecções e
desinformação sobre cuidados a serem tomados” (p. 31).

Kulick (2008) constatou a falta de assepsia e cuidados das bombadeiras,


quando injetavam silicone nas travestis em Salvador. Uma bombadeira, informa
esse autor, durante o processo, “mesmo que elas gritassem de dor continuava
empurrando o êmbolo da seringa e forçando o silicone a passar pela agulha”.
(idem, p. 94). Não se preocupavam com as travestis nem durante o processo de
injeção, nem mesmo depois; “despachavam as travestis tão logo terminavam a
18

injeção, sem nenhuma indicação dos cuidados pós-silicone” (Kulick, 2008, p. 95).
Como se não bastasse, ainda havia algumas que “chegavam a colocar álcool na
seringa com o intuito de criar abcesso nessa ou naquela travesti de quem não
gostavam por qualquer razão” (idem, p. 95).

2.2. Breve histórico de suas vidas

É importante dar um breve relato da história das travestis brasileiras. Para


tal, serão transcritos alguns achados de pesquisas junto a esse segmento (Peres,
2005; Natividade, 2008; Kulick, 2008; Duque, 2008). Elas, geralmente, são
nascidas em cidades interioranas brasileiras, sendo oriundas de famílias pobres,
cujos membros não tiveram acesso a formação escolar/ acadêmica formal (Peres,
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2005). Ao descobrirem e demonstrarem sua homossexualidade ainda na infância


ou adolescência, sofrem todos os tipos de violência doméstica (psicológica, física,
abuso sexual e negligência) por parte de parentes.

Chegam a manter relações sexuais forçadas, ainda em tenra idade, com


adultos (da família ou da vizinhança). Em todas estas relações, sua atuação é de
forma passiva, isto é, sendo penetrada pelo pênis de um outro e nunca de forma
ativa (Kulick, 2008). Como escreve Kulick, os papéis sexuais não foram
negociados, não sendo dada à criança uma escolha sobre uma posição ativa ou
passiva; além disso, não há preocupação com o prazer do passivo (idem, p.76).
Não há propriamente uma relação sexual, nem uma troca de carinhos, nenhuma
preocupação com o outro; há apenas o uso (ou abuso) do corpo do passivo,
parecendo ser este apenas um objeto de prazer. Não é considerada uma pessoa; é
apenas uma ‘coisa’, algo como um brinquedo que satisfaz as necessidades
fisiológicas do outro e depois é deixado de lado.

Na escola, elas também sofrem violência (principalmente psicológica),


sendo excluídas, gradativamente, do convívio escolar, o que termina levando a
19

evasão escolar bem cedo em suas vidas (geralmente no primeiro ou segundo ano
do ginásio).9

Muitas abandonam o lar (Peres, s/d), por volta dos 13 anos. Relato parecido
é o de Natividade (2008), que escreve que elas abandonam o lar entre 14 e 15 anos
de idade.

Sem renda, sem família, com baixa escolaridade, terminam por enveredar
pelo caminho da prostituição. Nos pontos de ‘batalha’ (como são conhecidas as
zonas de prostituição), conhecem travestis mais velhas, que as acolhem e as
ensinam como transformar seus corpos para serem mais femininas.

Terminam, na juventude, vivendo quase que invariavelmente da prostituição


(Kulick, 2008). As poucas que não vivem desta forma, tornam-se cabeleireiras,
‘bombadeiras’ (especializadas em aplicar silicone em outras travestis),
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comerciantes de roupas ou donas de pensão para travestis (idem).

Sofrem violência após violência, em um ciclo que leva à exclusão social.


Ressalto que a muitas preferem outros caminhos, mas encontram quase sempre as
portas do mercado de trabalho fechadas (Duque, 2005).

2.3. Histórico sobre exclusão e violência contra


homossexuais

Neste subcapítulo, mostrarei um breve histórico da violência sofrida por


travestis e por todo o segmento público LGBT.

9 Esta violência ocorrida nas escolas é denominada bullying. Este termo surgiu na
década de 1990, na Europa, com os trabalhos do professor Dan Olweus, na
Noruega (Neto, 2004). No Brasil, embora pouco conhecido, há algumas
pesquisas sobre o tema, como a realizada pela ABRAPIA. Este fenômeno vem
crescendo, sendo disseminado em todas as classes sociais. Não há, em língua
portuguesa, um vocábulo específico para bullying; entende-se, no entanto, que
acontece quando há uma tentativa de constranger, intimidar, machucar
fisicamente, isolar ou excluir algum estudante, sendo que os atos são realizados
repetidamente, por períodos extensos. Portanto, bullying pode ser entendido
como o uso da força ou de poder para intimidar e perseguir algum estudante.
20

No Brasil, até a década de 1990, não havia estatísticas oficiais sobre crimes
contra homossexuais. Os únicos relatos existentes eram fornecidos,
principalmente, por jornais, como O Globo e O Povo (Rio de Janeiro). O Grupo
28 de junho10 decidiu então, nos anos de 1990, reunir os dados em jornais do
município do Rio de Janeiro, das décadas de 70 a 90. Não foi um levantamento
sistemático de referências na imprensa, mas a constituição de um dossiê. Neste,
foram registrados aproximadamente 200 casos de violência anti-gay. Percebeu-se
que a violência ocorria com homossexuais masculinos, principalmente na faixa de
18 a 30 anos.

A abordagem dos jornais sobre os crimes era sensacionalista,


principalmente na década de 1980 e começo da década de 1990. Em suas
chamadas, os periódicos (de cunho mais popular e sensacionalista, como O Povo)
mostravam dizeres chocantes e de cunho pejorativo, sobre os homossexuais que
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muitas vezes eram nomeados de forma negativa (‘bichinha’), enfatizando os locais


aonde eram encontrados (geralmente, ermos, como matagais), com fotos e
descrições detalhadas, se fosse o caso, da forma com que os cadáveres eram
encontrados: sem roupas, sem partes do corpo, carbonizados. Com isto, eram
‘confirmadas’ representações vigentes sobre a homossexualidade, nas quais a
tragédia era efeito de fraquezas morais (uso do comportamento homossexual, que
leva à violência) e escolhas das próprias vítimas (dos locais que freqüentavam,
geralmente à noite, como zonas de prostituição e becos).

Lendo-se tais reportagens, poderia-se chegar à conclusão tendenciosa e


equivocada de que os indivíduos foram, eles mesmos, responsáveis pelos fatos
ocorridos; por serem homossexuais, relacionarem-se com garotos de programa e
comumente andarem por regiões perigosas, como se ‘ procurassem a morte’. Isso
acontecia, principalmente, no caso de travestis e em assassinatos de homossexuais
de classe média por garotos de programa. Havia uma ênfase na violência letal,
com exposição de cadáveres e reiteração da tragédia consumada (até o final dos

10O grupo tem este nome em referência aos acontecimentos ocorridos no bar
de Stonewall, nos Estados Unidos; estes serão discorridos em capítulo posterior.
21

anos 1990). Com os dados encontrados, foi realizada uma análise, na qual
algumas categorias foram propostas:

- Quando ocorre o latrocínio (roubo, seguido de morte). O nome dado a


estes casos foi o de crimes de lucro, segundo Ramos e Borges (2000);

- Quando há indícios de que as vítimas se conheciam (ex.: quando o corpo


do indivíduo é encontrado dentro de sua própria casa, sem sinal de arrombamento
presente). Há probabilidade de que haveria ligações amorosas entre a vítima e o
agressor: denomina-se de crimes interativos;

- Quando há execução, isto é, em que há morte, por arma de fogo


principalmente, sem que haja testemunhas: denomina-se violência letal.

As travestis, principalmente negras, de classes mais pobres, são as vítimas


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mais frequentes; 68% mortas por armas de fogo, em comparação com os gays,
que perfazem 23,5% das vítimas assassinadas da mesma forma, segundo
estatísticas do Arquivo da Polícia Civil, das décadas de 1980 e 1990 (Carrara;
Vianna, 2006).

Ativistas do movimento GLS, após fatos de agressões continuadas a


homossexuais, na década de 1990, na rua Visconde Silva, no bairro de Botafogo
(Rio de Janeiro), decidiram criar o DDH (Disque-Defesa Homossexual). Este
seria um programa de defesa homossexual, e não apenas de denúncia. O
programa, sendo fruto de parcerias diretas entre grupos de ativistas e a polícia,
pretendia agir de forma efetiva na prevenção de crimes e atendendo as vítimas de
crimes já ocorridos. São três compromissos e ações:

- Até a década de 1990, o movimento homossexual mantinha a posição de


vítima; isto é, a população GLS (atual LGBT) sofria violência e pouco podia
fazer, além de denunciar as agressões sofridas. Com o DDH, mostrou-se a
possibilidade de efetivamente reagir à violência, com um mecanismo mais eficaz
inclusive de prevenção e não apenas denúncia, depois do fato ter ocorrido.

- A equipe que criou suas diretrizes: atores políticos e pesquisadores ligados


a uma ONG e Universidades construíram todo um arcabouço teórico acadêmico
para atender as demandas;
22

- As informações coletadas partiam de relatos das próprias vítimas, e não


mais apenas de jornais; com isso, situações outras de agressão, como
discriminações, tiveram visibilidade inédita até aquele momento, permitindo um
centro de produção de dados sobre violência, com estudos sobre a homofobia.

Nos dezoito meses em que funcionou o DDH, 500 casos foram relatados,
sendo que a maioria se tratava não de crimes de violência letal, como os
reportados nos jornais, mas sim constituídos de dinâmicas cotidianas e silenciosas
de homofobia11. Eram casos de ofensas, ameaças, extorsões, agressões físicas e
discriminações na escola, trabalho, família; além disso, 1/3 dos casos ocorriam em
casa ou na vizinhança, sendo crimes não-letais.

Os 500 casos relatados foram classificados, pelos pesquisadores, como:

- interativos – aqueles ocorridos geralmente na casa da vítima ou em algum


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lugar de sua vizinhança, entre parceiros. As vítimas: gays, lésbicas e travestis;

- com fins de lucro – através de chantagens. As vítimas: gays e travestis;

- de ódio – com espancamentos, assassinatos - quase na totalidade de


travestis.

Um aspecto importante é a diferença da violência entre gays e travestis.


Quase todos os assassinatos de travestis se dão nas ruas; os de gays, na maioria,
acontecem na casa da própria vítima ou lugares bem próximos a esta.

Os crimes nas ruas se dão, provavelmente, pelo envolvimento das travestis


com a atividade de prostituição, que as coloca em maior exposição aos
homofóbicos. Outro motivo (Carrara; Vianna, 2006) pode ser o envolvimento
destas com o tráfico ou por falta de pagamento de ‘taxas de proteção’ a pessoas
que controlam determinados pontos de prostituição.

11 Já o terror em relação ás lésbicas é denominado lesbofobia.


23

2.4. Movimento homossexual brasileiro

Facchini (2005) propõe esse movimento dividido em duas ‘ondas’:

- a primeira, com o surgimento do primeiro grupo GLS, Somos e do jornal O


Lampião da Esquina (ambos de 1978), dedicado a temas homossexuais (notícias,
correio amorosos);

- a segunda, com o surgimento de outros grupos (como o Triângulo Rosa,


do Rio de Janeiro), na década de 1980 e 1990, e a crise promovida pela epidemia
da Aids. Isto fez com que os grupos tivessem que tomar posicionamentos mais
radicais (que os da década anterior), por causa da crescente homofobia relacionada
a essa epidemia.
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O grande ‘divisor de águas’, no movimento no Brasil, foi a eclosão da Aids,


conhecida na época como doença predominantemente homossexual, o ‘ câncer
gay’. Com esta, antigos preconceitos ressurgiram, como o da pretensa
promiscuidade ‘inerente’ de gays, o que levou a um aumento exponencial da
homofobia. Os grupos homossexuais tiveram que tomar medidas drásticas e
eficazes para tentar solucionar o aumento da violência anti-gay.

Isto se traduziu na criação e fortificação de entidades, com o aumento da


visibilidade do movimento, e o conseqüente posicionamento oficial do governo
brasileiro em relação à população homossexual.

Procurou-se ‘o englobamento e a inclusão de todas as categorias de


expressão de singularidade e da afetividade humana em grupos únicos’ (Froés,
2007, p.3). No entanto, esta tentativa de que vários grupos distintos ficassem
reunidos sob a efígie de uma mesma sigla (no caso, GLBTT ou a atual LGBT)
tornou-se um problema. Há muitas separações e divisões entre os vários ramos
que compõem o universo LGBT. Cada ramo tem singularidades e expectativas
diferentes. Esta reunião, embora parecesse ideal, já que reunia número
significativo de minorias em grupos amplos (o que fortaleceria uma luta que seria
comum a todos, como a pela inclusão social e não-discriminação) não tem como
24

ser livre de atritos. Essas identidades, tidas como coletivas, na verdade não são
homogêneas. Entre elas mesmas, há exclusão e preconceito.

Como conciliar necessidades díspares, como as reivindicações de


transexuais de realizar cirurgias de mudança de sexo, com as de lésbicas, que não
procuram estas cirurgias e tem outras questões a serem reconhecidas, como a
violência doméstica sofrida por suas companheiras em casa? Ou as de tratamento
médico por causa de silicone e hormônios de travestis, que não são as
reivindicações de gays, que não usam estes produtos em seus corpos, e se
preocupam mais com a não-aceitação em escolas, por exemplo?

Gays e lésbicas, desde o final do século passado, estão sendo


progressivamente aceitos na nossa sociedade. As relações homoafetivas vem
conquistando aceitação e respeito. Na esfera privada, cada vez mais pessoas
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assumem sua orientação homoafetiva. No espaço público, várias passeatas (sendo


a Parada Gay a mais importante, tendo edições em várias cidades do Brasil)
simbolizam o reconhecimento social da homoafetividade; a possibilidade de
homens e mulheres “(...) poderem ostentar sua identidade sexual, desfrutar seus
afetos e buscar a própria felicidade” (Barroso, 2004, p.4).

No entanto, estas identidades aceitas correspondem apenas a um grupo bem


pequeno do mundo homossexual e que é socialmente privilegiado. Fazem parte
dele quase que exclusivamente homens ou mulheres brancas, de classe média e
com nível universitário (idem, p. 7). Essa aceitação de gays e lésbicas não se
estende a outros grupos, com outras práticas sexuais.

É possível que os homossexuais e lésbicas então tenham medo de perder


esta aceitação da sociedade, já que entendem que esta não equivale à aprovação
social. Eles/ elas são aceitos/as não por sua orientação sexual, mas sim porque se
adaptaram a certo padrão socialmente aceito: são financeiramente bem-sucedidos,
comportam-se seguindo o modelo heterossexual (desejam adotar crianças, por
exemplo). Há uma necessidade de buscar uma identidade que seja reconhecida
socialmente, para que não seja invisibilizada (idem).
25

Segundo o professor da UERJ, Sérgio Carrara (CLAM, 2008), o movimento


encontra-se em seu terceiro momento, já que agora conta com o apoio do Estado e
de partes da sociedade civil organizada.

2.5. Ações positivas em prol do público LGBT

2.5.1. Brasil sem Homofobia12

O governo, através de projetos como o Brasil sem Homofobia, deu alguns


passos em direção a este propósito, reconhecendo a dívida histórica que tem
contra esta população excluída. Há uma tentativa de reivindicação da cidadania
deste grupo.
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Este projeto é fruto de uma articulação bem sucedida entre o Governo


Federal e a sociedade civil organizada, com os objetivos, entre outros, de
educação e mudança comportamental dos gestores públicos e a implementação de
novos parâmetros para definição de políticas públicas.

O Programa, plurianual, compreendendo os anos de 2004 a 2007,teve como


objetivo promover a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (que
compreende travestis e transexuais), através de ações como a disseminação de
informações sobre direitos e o incentivo à denúncia de violação de direitos
humanos do setor GLBT. Os princípios do Programa são:

- inclusão de perspectiva de não-discriminação por orientação sexual e


promoção de direitos humanos dos GLBT;

12Homofobia é um termo que designa o horror ao homossexual. Apareceu pela


primeira vez, na imprensa, no Jornal O Globo, em 1992 (Lacerda, 2006). Até
então, quando crimes ligados ao tema apareciam em jornais, eram citados
como ‘assassinatos de homossexuais’, mas eram tidos como fenômenos isolados,
sem estarem enquadrados em um conceito mais definido, que mais tarde seria
conhecido como Homofobia.
26

- produção de conhecimento para subsidiar a elaboração e posterior


implementação de políticas públicas que sejam voltadas para o combate à
violência e discriminação por orientação sexual;

- reafirmação de que o combate à homofobia é compromisso do Estado e,


também, de toda a sociedade. Baseia-se no conceito de que, enquanto existirem
cidadãos não respeitados por motivo de discriminação racial e sexual, não há
sociedade justa.

No Brasil sem Homofobia, há uma expectativa de implementação em todos


os setores (público, por exemplo) da sociedade, com um conjunto de ações que
promovam o respeito à diversidade sexual e combata as violações de direitos
humanos da população GLBT. Esta política visa a inclusão de homossexuais, com
a garantia de aceitação e respeito à diversidade (Brasil sem Homofobia, 2004).
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2.5.2. Conferência Nacional para GLBT

Inspirado pelo Brasil sem Homofobia, surgiu a Conferência Nacional de


GLBT (realizada em Brasília, em 2008).

No Texto-base da Conferência Nacional de Políticas Públicas para GLBT


(2008), há a designação de alguns pontos sobre a importância de novas pesquisas
sobre este público e ações de inclusão social. Há previsão de:

“Financiamento à produção de materiais sobre educação, diversidade


sexual e de gênero” (p. 20)

“Estimular e fomentar a criação e o fortalecimento de instituições, grupos e


núcleos acadêmicos, bem como a realização de eventos de divulgação científica
sobre gênero, sexualidade e educação, com vistas a promover a produção e a
difusão de conhecimentos que contribuam para a superação da violência, do
preconceito e da discriminação em razão de orientação sexual e identidade de
gênero” (idem, p. 22).
27

“Promover e apoiar a realização de concursos de monografias, dissertações,


teses e produções literárias nas temáticas relativas à diversidade de orientação
sexual e de identidade de gênero”. (Texto-base da Conferência Nacional de
Políticas Públicas para GLBT, 2008, p. 22).

Através de novas pesquisas, a referida Conferência propôs promover a


equidade para as travestis, partindo do entendimento de que têm vulnerabilidades
específicas, portanto tendo demandas de proteção de seus direitos humanos e
sociais. Por serem pouco conhecidas, não se sabe quais suas demandas específicas
e qual sua vulnerabilidade; sem ter conhecimento destas, não se entende quais
obstáculos para o acesso deste grupo e de como se pode promover a equidade
desta população. Pesquisas são necessárias, para não se incorrer no erro de pensar
que só precisam de proteção contra violência física ou contra doenças
transmissíveis, principalmente HIV-Aids. É relevante saber quais outras questões
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importantes, mas que passam despercebidas, como a violência psicológica que


sofrem ao entrarem em locais públicos (banheiros de escolas, por exemplo), com
as conseqüências negativas para sua saúde mental, auto-estima baixa e mesmo
suicídio (em alguns casos).

2.6. Sexualidade: binarismo e desconstrução

Para entender a identidade travesti e a violência/ exclusão pelas quais a


travesti passa, é necessário um estudo sobre sexualidade e gênero.

No tocante a sexualidade ocidental, um autor essencial a ser pesquisado é


Foucault (1977), que escreveu um clássico sobre o tema. Ele discutiu como se deu
a normatização do desejo, do prazer, do corpo; enfim, da sexualidade. Escreveu
sobre a forma como a sociedade regulava o indivíduo, determinando o que este
poderia ou não obter de prazer com o próprio corpo. Nesta regulação, estaria
implícito um padrão de ‘normalidade’, aceita socialmente. No entanto, havia uma
série de outras sexualidades, chamadas por ele de ‘heréticas’, que desafiavam os
limites do aceito socialmente.
28

Outro autor interessante é Derrida (2004). Ele escreveu sobre a binaridade


inerente na sociedade ocidental13. Apontava para uma tendência fortemente
arraigada no ser humano de entender o mundo de forma binária, isto é, como se as
coisas ou pessoas fizessem parte de dois pólos, a princípio opostos: mal-bom, luz-
trevas, masculino-feminino. Não há um outro; há um oposto. Assim, o homem
seria oposto da mulher, por exemplo. Acoplada a esta idéia, vem implícitos
valores não questionados; enquanto o homem é superior, seu oposto, a mulher, é
inferior. Portanto, um pólo sempre é positivo, superior, e o outro é negativo,
inferior. Assim, luz está relacionado a coisas boas; escuridão, a algo maligno;
masculino é entendido como superior ao seu pólo, o feminino; o heterossexual é
visto como mais saudável, completo do que o seu pólo, o homossexual, que até
tempos atrás era visto como doente.

Derrida (2004) propõe a metodologia da descontrução (pensada por


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Heidegger)14 . Com esta, propunha desestabilizar os binarismos e as tentativas que


se tinham feito de forjar uma verdade absoluta, com leis universais, isto é, para
todos. Através da desconstrução, pode-se entender como foram construídos
valores e normas, para se perceber que, justamente por terem sido construídos,
não são ‘dados pela natureza’, não são imutáveis; são fruto de determinada época
e cultura, podem ser mudados, ‘subvertidos’, permitindo que outras formas de
pensamento ou expressão aflorem.

13 Segundo Perelson (2004): “o binarismo é um produto reificado de práticas


discursivas múltiplas e difusas que funcionam como regimes de poder, sendo o
falocentrismo e a heterossexualidade compulsória apontados como os
elementos definidores desta produção/ construção”. O pensamento ocidental
opera sobre a base de princípios fundantes, com a ordenação e hierarquização
de pares opostos (Louro, 1996, p. 12). Essas oposições são historicamente
construídas e não naturais.

14 Heidegger visava libertar os conceitos herdados da tradição que haviam se


enrijecido, de tanto serem transmitidos de geração para geração, e retorná-los
á experiência de pensamento que os originou. Não se trata de um projeto
destrutivo, que visa um aniquilamento de algum conceito. É um processo teórico
e metodológico, que visa desmontar a lógica das operações binárias que são
base para a lógica dos pensamentos tradicionais.
29

A sociedade ocidental associa as transformações (no caso, de identidade


sexual) com ameaças à ordem estabelecida. Há receio de que um comportamento
diferente gere uma série de outros, que terminam por quebrar o já constituído
socialmente/ culturalmente. No entanto, a desconstrução não implica a destruição
do status quo; permite uma análise para entender como uma ordem social se
formou de uma maneira e não de outra. Com isto, a possibilidade da aceitação do
diferente.

Seria este um dos problemas que causariam a não-aceitação das travestis?


Será que as pessoas pensam que a incorporação desta destruirá o status quo
vigente?

2.7. Gênero
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Tanto em relacionamentos heterossexuais como homossexuais, há uma


tendência binária em codificar e tabelar as relações afetivas e amorosas. Há o
homossexual ativo (o ‘homem’ da relação) e o homossexual passivo (a ‘mulher’
da relação); há a lésbica ‘ machona’ e a lésbica ‘feminina’.

Para repensar essa concepção binária, foi criado o conceito de gênero


(Butler, 2003). Este pode ser entendido como as atribuições sociais
desempenhadas, por homens e mulheres, em uma sociedade; foi construído para
questionar as interpretações biologistas sobre o sexo (isto é, que o sexo biológico
é que define as características comportamentais do ser humano).

Estas interpretações biológicas foram responsáveis por explicar e mesmo


justificar as desigualdades entre homens e mulheres (Lopes, 1996). Essa
construção de papéis, no entanto, é cultural, não sendo ‘natural’, isto é, algo
intrínseco à condição biológica dos indivíduos (Oliveira, 1997). Portanto, o
homem não é mais feroz do que a mulher por causa de seu órgão genital; a mulher
não é mais doce porque não possui um pênis. Estas atribuições são construídas
culturalmente e não são ‘dadas’ pela biologia (Butler, 2003; p. 24). Com o
30

conceito de gênero, entende-se quais os significados culturais assumidos pelo


corpo sexuado, masculino ou feminino.

Esta concepção de gênero foi duramente criticada no final da década de


1990. Porque na teoria de gênero (que teve como principal intento a mudança
paradigmática da mulher como inferior), havia o pressuposto da existência de
apenas dois tipos de sexo, duas possibilidades apenas: a do homem heterossexual
e da mulher heterossexual. Não levava em conta outras, como o
homossexualidade, por exemplo.

Portanto, como o binarismo poderia entender a travesti, já que esta não se


enquadra no perfil de homem nem mulher? Como seria classificada? Essa ruptura
que causa no pensamento, na subjetividade da civilização rompe com os preceitos,
com a moral tradicional vigente. Portanto, ela não se encaixa em definições, em
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enquadres que possam ser reconhecidos. Isto faz com que não seja aceita nem
mesmo pelos gays, cuja mentalidade ainda funciona de acordo com o ensinamento
binário. Muitas vezes, o gay se pensa exclusivamente dentro do enquadre
heterossexual de ativo ou passivo.

2.8. Teoria queer

Para dar conta também desta questão, foi pensada a teoria queer, baseada
em estudos já citados de Foucault e Derrida, mas extrapolando os preceitos/
questionamentos dos autores. Esta teoria questiona não apenas o binarismo15, mas
também qualquer pressuposto existente que não possa ser maleável. Assim, não
aceita identidades fixas, que não sejam cambiáveis, que não possam ser

15A teoria queer propõe o questionamento sobre a ambiguidade e a fluidez das


identidades; pretende a desconstrução de todos os binarismos, já que eles são
contingenciais. No entanto, esta teoria não tem como finalidade a destruição
das identidades já existentes, normatizadas. Não propõe que as identidades
heterossexuais sejam destruídas; pretende entender como estas foram
construídas socialmente e naturalizadas. Ao fazer isto, traz o questionamento de
que poderiam ser construídas de outra forma, tirando sua posição de ‘natural e
‘universal’.
31

subvertidas, pois pensa o mundo como sendo plural e não cabendo na realidade
apenas algumas formas de sexualidade e comportamento. A teoria queer
possibilita uma melhor compreensão do sujeito travesti.

Butler (2003) tece comentários sobre como se constrói um sexo, sobre a


performatividade de gênero e da abjeção dos corpos. Assim, pensa os indivíduos
que vivem em áreas de abjeção, isto é, áreas em que a própria humanidade é
questionada, não sendo considerada pelos outros, por não corresponderem à
norma social.

Na busca de uma compreensão sobre os sujeitos queer, foi realizada por


Butler (2003) uma tentativa de criação de estratégias para que eles possam
sobreviver, passando a serem conhecidos e valorizados; passando assim a serem
merecedores de apoio e reconhecimento (idem).
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Em sua crítica, Butler (2003) tem como alvo principalmente o falocentrismo


e a heterossexualidade compulsória, sendo esta dada a todos como a verdadeira
sexualidade, a natural, a ‘certa’, sem que houvesse um questionamento sobre ela.

Com seus estudos, entende-se que alguns conceitos tidos como verdadeiros,
como sexo e sexualidade, por exemplo, são frágeis e podem ser questionados.
Este questionamento é importante porque permite um maior entendimento acerca
da variedade da raça humana, da diversidade existente. Aqui, há paralelo com
partes da obra de Hannah Arendt, sobre a defesa da diversidade humana.

Para Arendt (Lafer, 2006), não existe O Homem, mas sim seres humanos
que são únicos, plurais, sexuados e irrepetíveis. A defesa da pluralidade humana,
que Arendt (1979) usa para defender os expatriados, é aqui proposta para defender
os indivíduos que tem uma orientação sexual diferente da heterossexual. Em
sintonia com o pensamento dela, Guacira Louro (1996) escreve que “as
sociedades são e sempre serão constituídas por sujeitos diferentes, que buscam ser
politicamente iguais (...) suas múltiplas diferenças talvez possam ser motivo de
trocas, negociações, solidariedades e disputas” (idem, p.37).

Arendt (Lafer, 2006) escreve sobre os párias sociais e políticos, que tiveram
seus laços sociais com seus países cortados. Aqui, tento aumentar o alcance das
32

reflexões arendtianas, propondo as travestis como párias sociais, que não têm total
acesso à cidadania. A travesti é alijada de suas raízes (já que, geralmente, é
expulsa do lar, da escola). Com isso, não tem um lugar reconhecido no mundo;
não tem garantias de sobrevivência. É, portanto, supérflua; como não pertence a
lugar nenhum, pode ser facilmente obliterada.

2.9. Bibliografia pesquisada

Realizei uma pesquisa bibliográfica, com depoimentos em livros,


dissertações/ teses e em sites da Internet, seja de publicação de textos acadêmicos
(Psicologia, Serviço Social, entre outros), como de relatos de vida de travestis de
todas as regiões do Brasil, principalmente sudeste e norte.
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2.9.1. Na bibliográfica

Verifiquei que alguns (poucos) estudos foram realizados no Brasil (sobre


travestis), sendo principalmente da área da Antropologia.

Silva (1993) foi o precursor de pesquisas sobre travestis no Brasil. Realizou


uma etnografia, com as travestis que se prostituíam na Lapa, no Rio de Janeiro.
Relatou o dia-a-dia das travestis, não buscando uma classificação nosográfica,
mas uma fotografia do cotidiano delas. Seu interesse se norteou pela tentativa da
travesti em possuir um corpo e jeito femininos (através de cirurgias, entre outros),
além de sua preocupação com o vestuário, principalmente sapatos. Seu trabalho é
referência para as etnografias que foram escritas sobre o universo travesti, como
constatado nas que se seguiram a ela.

Denizart (1997) realizou entrevistas com travestis, sobre vários temas. Entre
eles:

- a mudança do jovem homossexual em travesti, que deve ocorrer ainda bem


cedo, por volta dos onze anos de idade. Isto porque haveria uma inibição
33

(provocada pelas drogas) dos hormônios masculinos, o que facilitaria a


feminilização de seu corpo;

- como se dá o mercado de sexo (no Brasil e na Europa). Quais são os seus


clientes, quanto costumam cobrar, quais os melhores pontos de prostituição (entre
outros);

- suas relações com drogas e com Aids, com a queixa de que as travestis
estão muito associadas a esta doença;

- a violência que sofreram em suas famílias, o abuso sexual por parte de tios
e primos, principalmente, quando ainda crianças. Destaco um relato de uma
travesti, Bené, que, quando criança, sofria coerção por parte dos adultos, para
manter silêncio sobre a relação sexual, sob pena de violência física:
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“Então, na época de criança, todos os meus tios me comiam (...)


Meus próprios tios, todos (...) Tinha oito anos... E colocavam o
pau assim na minha boca, passavam na minha bunda (...) Aí, no
fim me comiam. O que eu ia fazer? Eu não podia nem falar...
uns diziam assim: “Se você falar, eu te dou uma ... te meto
porrada...” Como eu tinha medo, não é?” (Denizart, 1997,
p.32);

- a procura por ‘maridos’, homens ativos que as travestis passam a


sustentar financeiramente.

Kulick (1998), pesquisador americano, procurou entender as práticas


sexuais das travestis profissionais do sexo, na cidade de Salvador, na Bahia,
particularmente problematizando as relações sexuais no binômio ativo/ passivo.
Além de entrevistas nos pontos de prostituição, Kulick morou com um grupo
delas, convivendo dia e noite com as travestis. Constatou que todas elas tiveram
relações sexuais cedo na infância, sempre de forma passiva, nunca ativa.
Registrou o respeito delas pelos homens ativos e desrespeito pelos homens
passivos, denominados por elas de ‘mariconas’; suas tentativas de ganhar mais
34

dinheiro após um programa, através de escândalos nos quartos de hotéis, com


clientes que não as satisfaziam sexualmente. Portanto, faziam questão de serem as
‘fêmeas’ na atividade sexual, procurando sempre a feminilidade; desagradava-lhes
serem ativas, fazendo os papéis de “machos”, durante o ato sexual.

Benedetti (2000) investigou sobre a construção de um corpo feminino,


(através de processos químicos e ‘montagem’) e de gênero das travestis que se
prostituem, na capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. O estudo se
deu através de relatos das travestis gaúchas, com quem conviveu, durante suas
tarefas diurnas (como compras em mercados) e as noturnas, na hora em que se
prostituíam (‘ na batalha’, segundo elas). No entanto, mesmo possuindo um viés
político, isto é, tentando entender a postura que possuíam na tentativa de
construção de identidade e de cidadania, focou-se bastante no processo de
feminilização das travestis. Há relatos detalhados sobre o momento em que se
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descobrem homossexuais, a entrada no mundo trans, ao conhecerem travestis


mais velhas, com quem se identificam, e que geralmente as ‘adotam’, ensinando-
lhes sobre o mundo das travestis; o começo da tomada de hormônios e implante
de silicone; e o esforço contínuo do dia-a-dia para possuírem um corpo feminino
estilizado, o mais parecido possível com o de uma mulher (excetuando,
logicamente, o pênis): a tentativa de tornar-se ‘Toda Feita’, adjetivo usado pelas
travestis para nomear aquelas que conseguiram este corpo feminino quase
perfeito.

2.9.2. Na documental

Há o livro, Princesa – Depoimentos de um travesti brasileiro (Albuquerque;


Jannelli, 1994), que não foi escrito por antropólogos. Trata-se de uma espécie de
diário de Fernanda, travesti presa na Itália, condenada por tentativa de homicídio.
Este livro não tem pretensões acadêmicas; é apenas um relato de Fernanda,
enquanto estava presa na Penitenciária de Rebbibia, em Roma, na década de 90.
No relato, ela fala de sua infância pobre, no Nordeste brasileiro; a descoberta de
sua homossexualidade, após encontros sexuais com adultos que moravam perto de
35

sua casa; a dificuldade que enfrentou na escola, causada pelo preconceito por
parte dos alunos e de seu professor; sua evasão do colégio e ida para outras
cidades, aonde terminou conhecendo travestis, que lhe ensinaram o modo de vida
trans; sua entrada na prostituição, sua ida para a Europa e seu envolvimento com
a violência, após desentendimento com uma senhora italiana, que lhe causou a
prisão.

Também foi realizada uma pesquisa, na qual foram coletados artigos em


jornais cariocas (O Globo) e dezenas de artigos da Internet, através do site
Google.com, mais especificamente Google Acadêmico, nos anos 2003 a 2008.

Entre eles, revistas eletrônicas como A Capa e Mix Brasil, aonde foram
encontrados relatos principalmente sobre a homofobia e, mais especificamente,
sobre a transfobia (fobia a travestis). Nestes, relatos de crimes e violências de
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toda forma contra as travestis, desde expulsão de colégios, invasão de domicílios


por parte da polícia até expulsão de igrejas. Esta pesquisa foi documental, já que
nos textos não havia ainda uma análise mais aprofundada do assunto, mas sim
basicamente a documentação do fato, algumas vezes com um pequeno editorial
comentando o ocorrido.

Os livros e artigos encontrados discorrem, principalmente, sobre o mundo


da prostituição e violência em que vivem a maior parte das travestis brasileiras.
Também sobre o florescer da homossexualidade, em idades muito precoces (ainda
crianças), com as primeiras experiências sexuais que tiveram e o processo de
transformação corporal em travestis, além da difícil tarefa de sua manutenção
diária (como a retirada de pêlos faciais).

Alguns outros fatores da vida das travestis não foram estudados de forma
mais aprofundada. Afinal, o mundo trans não se reduz apenas a violência,
prostituição, ‘montagem’ e rivalidade com as mulheres. Elas também possuem
sonhos de completar o curso médio e freqüentar faculdades (Peres, 2005). Há,
portanto, outros elementos que passam quase despercebidos pelos autores/
pesquisadores.
36

Elas possuem vontade de estudar? Como é a questão religiosa para elas?


Importa? Não importa? O que pensam sobre outros excluídos? Que tipo de vida
gostariam de levar, caso tivessem acesso a uma cidadania como os demais
brasileiros? Que gostam de fazer em seus tempos livres? Como poderiam
contribuir para a melhoria de vida de outros excluídos?

Esses questionamentos são mencionados, mas não aprofundados. Não


pretendo com isso desmerecer os trabalhos publicados. Como são de caráter
exploratório, não poderiam abarcar todos os temas relacionados às travestis (e
provavelmente nem era esse o objetivo). Foram os passos iniciais (e essenciais)
para uma visibilidade do mundo trans. Trabalhos como estes inspiraram
dissertações e teses publicadas nos últimos anos.
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2.9.3. Trabalhos acadêmicos recentes

Entre elas, destaco:

- Oliveira (2007) - escreveu sobre como se estrutura a identidade da travesti


em Florianópolis, focando como se dá a sua inserção social; quais estratégias usa
para isto;

- Peres (2005) - faz um mapeamento dos processos de estigmatização


passados pelas travestis durante toda a sua vida e as maneiras de enfrentamento
por parte delas. Visou, com este conhecimento, o surgimento de políticas públicas
para este grupo;

- Duque (2005) - estudou sobre o valor simbólico que a ‘bombação’ possui


para as travestis. Pesquisou as freqüentadoras de uma ONG (de nome Identidade)
e as profissionais do sexo de uma região de Campinas, São Paulo;

- Pelúcio (2007) - através de pesquisa etnográfica, procurou discutir o


modelo oficial de prevenção de DST/Aids do grupo de travestis que se prostituíam
na cidade de São Paulo;
37

- Garcia (2007) investigou travestis de baixa renda, em São Paulo. Estudou


a perspectiva da identidade travesti como sendo formada por várias identidades
sociais distintas, ambíguas (como ‘mulher submissa’, ‘puta’, ‘malandro’),
formando uma ‘colcha de retalhos’.

Há também a monografia de final de curso de Ana Paula Rezende (2007),


que pesquisou sobre a problemática do envelhecimento de travestis
frequentadoras de bairros da zona sul e arredores do centro carioca; e um livro, de
nome Sexy & Marginal – Travestis, de Neves et al (2007). Este livro é baseado no
trabalho de final de curso de uma turma de Jornalismo de Minas Gerais;
basicamente, é uma etnografia em estilo de reportagem, contendo fotos de
algumas travestis entrevistadas. Pode ser conseguido por e-mail, sem custos
operacionais; uma das escritoras gentilmente o enviou para colaborar em minha
dissertação.
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2.9.4. Filmografia

2.9.4.1. Documentários Brasileiros

Há três documentários brasileiros, realizados sobre a vida de travestis, do


diretor Wagner de Oliveira. São eles: Borboletas da Vida (2004), Basta um dia
(2006) e Sexualidade e Crimes de Ódio (2008).

Estes filmes, que fazem parte de uma trilogia, abordam a vida e dificuldades
de travestis de regiões mais pobres, com depoimentos, às vezes, estarrecedores,
sobre a violência que sofrem.

Das questões mostradas nos documentários, a que mais me impressionou foi


a da incerteza de sobrevivência, traduzida pela sua relação com a compra de
mantimentos, narrada por um dos integrantes da filmagem:
38

“Uma das coisas, assim, que mais me chamou a atenção no


trabalho das travestis, foi a incerteza do dia de amanhã. Todos
eles, a sua grande maioria, eu diria 90% deles, não fazem
compra do mês. Normalmente, as pessoas fazem compras
mensais dos seus mantimentos; o travesti, não. Ele faz a compra
diária. Aquilo que ele vai consumir no dia, ele compra na parte
da manhã, faz a sua refeição, o seu almoço, a sua janta e no dia
seguinte, volta essa rotina, porque (...) a incerteza do dia de
amanhã é muito grande, devido à violência que envolve essa
questão da prostituição (...)”.

Há também depoimentos sobre a questão da Aids na prostituição; que,


muitas vezes, embora peçam para o cliente usar camisinha, este se nega. Relatos
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denunciam as ameaças de morte feitas caso não se aceite manter relações sexuais
sem proteção; e de como muitas travestis tornam-se vítimas da Aids e outras
doenças por causa disso.

Isto contraria bastante as crenças comuns de que as travestis não se


preocupariam com Aids e de sua promiscuidade, sendo então responsabilizadas
elas mesmas pelo contágio da doença. Este dado é importantíssimo para o
conhecimento de sua vida no dia-a-dia e possibilita outro olhar sobre o caso, no
sentido de rever o combate à epidemia na prostituição. Não adianta então apenas
distribuição de camisinhas; embora isto seja fundamental, não abarca todas as
situações envolvendo as travestis e seus parceiros ‘noturnos’.

2.9.4.2. Assim me diz a Bíblia (For the Bible Tells me so)

O documentário Assim me diz a Bíblia (2008), do norte-americano Dan


Karslake, mostra a vida de cinco famílias norte-americanas, ligadas de alguma
maneira a religião cristã, e as mudanças sofridas quando da descoberta da
homossexualidade ou lesbiandade de um dos seus integrantes. Em todos os
depoimentos dos familiares, nota-se uma vontade de entender e se adaptar a
39

homo-orientação dos familiares; embora difícil, pode ser uma meta a alcançar, a
partir da humanização do homossexual, pois não o vê apenas com os estereótipos
conhecidos, mas como pessoa que sofre com a situação (primeiro ao se descobrir
homossexual, o que vai contra os preceitos religiosos, e depois ao tentar assumir
sua orientação sexual), se angustia por isso e precisa de apoio familiar e social.

Este filme também mostra depoimentos de leigos e religiosos de ambas as


posições: os que são contra a homossexualidade (entendida como anti-natural e
‘afronta’ a Deus) e os que a defendem ou, no mínimo, a toleram.

São mostrados trechos da Bíblia, em que se toca no assunto da


homossexualidade, com as defesas de que é pecado, em contraposição com as
idéias de que não o é. Estas últimas argumentam que se deve fazer uma leitura
não-literal dos textos bíblicos, já que foram escritos para uma população que vivia
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em tempo e espaço demarcados; não serviriam para todos os povos, que não os
judeus. Os textos deveriam ser lidos levando em conta o contexto em que foram
escritos; para quem o foram e por que. Além disso, como não se têm os textos
originais e, sim, traduções, não se sabe até que ponto os textos não foram
modificados, mesmo que de forma intencional. Até que ponto as palavras e
expressões encontradas refletem os conceitos atuais?
3. Violência, exclusão e inclusão

3.1. Violência

As travestis sofrem violências das mais variadas; por terem seu corpo
feminino exposto 24 horas por dia, são passíveis de vulnerabilidade social. Pode-
se pensar esta vulnerabilidade a partir do conceito de estigma13, que sofrem por
causa deste mesmo corpo feminino. No entanto, não sofrem apenas no presente,
quando seu corpo já está transformado. Desde a infância, são vítimas de violência
doméstica.

3.1.1. Violência doméstica


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A violência doméstica (também conhecida como violência intrafamiliar): se


divide em:

- Violência psicológica – quando os pais ou responsáveis depreciam a


criança e bloqueiam seus esforços de auto-aceitação, diminuindo a sua auto-
estima. Formas comuns: desprezo pelas capacidades da criança, ameaças de
abandono por parte do responsável, humilhação por palavras, entre outros. Ex:
Quando chamam as crianças por designações pejorativas (como bichinha, por
exemplo), como em caso relatado em A Princesa (Albuquerque; Jannelli, 1995);

- Violência física – quando causam dor física em uma criança, através de


hematomas, escoriações, queimaduras, entre outros;

- Abuso sexual – ato ou jogo sexual (heterossexual ou homossexual), entre


uma criança e um ou mais adultos, para satisfazer os desejos sexuais do (s) adulto
(s). Formas comuns: penetração de pênis/ objetos na vagina ou ânus da criança,
sexo oral realizado nas crianças ou pelas crianças, obrigá-las a tirar as roupas e

13Conceito criado por Goffman (1988); será descrito mais adiante, nesta
dissertação.
41

ficarem expostas, nuas, entre outros. Para que o abuso sexual ocorra, não é
necessário que haja contato físico entre ambos; colocar a criança em situação
constrangedora sexualmente já se caracteriza como abuso. Fazê-la assistir filmes
eróticos ou se despir também entra nesta lista.

Esta violência tende a ser pior que as outras. Por ser também constituído por
uma síndrome do segredo (a criança é coagida a não comentar com ninguém sobre
o ocorrido) e adição (pois o agressor, muitas vezes, obriga a vítima a participar de
forma ativa do abuso, fazendo com que se sinta culpada pelo ocorrido), é mais
difícil de ser revelada. Leva mais tempo para que se possa intervir, como no caso
relatado em Engenharia Erótica (Denizart, 1998)14.

A síndrome do segredo se dá quando o agressor ameaça a criança. Há várias


formas disto acontecer; uma delas se dá pela ameaça de que, caso a criança conte
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para alguém sobre a agressão, o agressor venha a matar o pai ou mãe desta
criança. Também pode ocorrer caso a criança não se deixe abusar e grite; neste
caso, o agressor pode machucar fisicamente ou mesmo matar a criança. Esta fica
com medo de que alguma ação sua possa causar a morte de um ente querido ou a
própria e termina por manter o segredo sobre o abuso.

Há a forma denominada síndrome de adição. Nesta, o agressor induz a


vítima a agir de forma ativa em um abuso. O agressor junta duas crianças e as faz
terem relações sexuais, através de carícias e/ou inserções de objetos/ língua no
ânus ou na vagina da criança mais nova. A criança maior acaba também sendo,
mesmo que induzida, uma agressora. Embora não tenha a noção exata do que está
acontecendo e nem das conseqüências (como machucados), a criança entende que
algo que fez será inaceitável socialmente e que poderá ser castigada caso outro
adulto descubra; fica com medo de contar o que aconteceu.

Por que é errado o sexo entre crianças e adultos?

Os argumentos de que seria errado moralmente, seja porque as crianças


podem ser machucadas ou por sentirem desprazer no ato sexual são insuficientes.

14 Ver o sub-capítulo 2.9.1. desta dissertação.


42

Não necessariamente as crianças se machucam; muitas vezes, as crianças sentem


prazer ao serem tocadas por adultos, em suas zonas erógenas.

São duas as razões de ser errado (Finkelhor, s/d):

- as crianças não possuem o conhecimento que os adultos têm sobre o sexo e


suas conseqüências; não sabem sobre gravidez, sobre doenças sexualmente
transmissíveis e mesmo não tem idéia do estigma moral que sofrerão, caso se
saiba do ocorrido;

- há a questão hierárquica: existe uma desproporcionalidade na relação de


poder entre o adulto e a criança. Como a criança é ensinada a sempre obedecer ao
adulto, passa a ter grande dificuldade em negar algo a ele.

Em uma entrevista realizada na Lapa15, a travesti Patrícia relatou que a sua


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primeira experiência sexual se deu aos quatro anos de idade. Segundo ela, teria se
apaixonado por um homem negro (de aproximadamente 18 anos) e conseguira
seduzi-lo, tendo com ele uma relação sexual. Provavelmente, a idade relatada está
incorreta; a memória do fato, muitas vezes, não é exatamente fiel ao acontecido.
Pode haver distorções (o que deve ter ocorrido no caso dela). Penso que o fato
realmente existiu, mas com ela sendo um pouco mais velha, com oito anos de
idade.

Mesmo que tenha seduzido o homem, em nenhum momento uma relação


sexual deveria ter sido consumada (pelos motivos descritos antes). Esse caso
apenas mostra a necessidade de um entendimento maior sobre a dinâmica sexual
criança/ adulto; para que, em momento algum, a criança seja responsabilizada
pelo ato e não o adulto. A criança, mesmo que sedutora, não pode ser
responsabilizada ou culpabilizada pela sedução ou pelo ato sexual; afinal, ela é
apenas uma criança.

- Negligência (que, em maior grau, se torna abandono) – não-provisão de


necessidades básicas das crianças ou a não supervisão dos responsáveis,
possibilitando que a criança possa vir a correr riscos. Como exemplos, a

15 Capítulo 5 desta dissertação.


43

desnutrição (sem disfunção orgânica determinante presente) e o desinteresse dos


pais pelas atividades escolares da criança.

Na infância, a totalidade das travestis sofre a maior parte dessas violências


16
. São agredidas fisicamente ou verbalmente pelos parentes, quando demonstram
sua homossexualidade. Muitas são abusadas sexualmente por parentes,
principalmente primos mais velhos e tios. Sofrem negligência, pois passam a não
serem cuidados da mesma forma que os demais irmãos ou irmãs.

3.1.2. Bullying

Na escola, sofrem discriminação por parte dos alunos, dos funcionários e


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mesmo de professores do sexo masculino que, muitas vezes homofóbicos,


reificam as ações de preconceito e exclusão. A esta violência continuada, dá-se o
nome de bullying, sendo algo que ocorre de forma mais freqüente nos recreios e
nas salas de aula (quando geralmente são mais sutis, através de sussurros e
desenhos que inferiorizam os homossexuais). É interessante notar que os meninos
estão mais envolvidos no comportamento agressor do que as meninas (Castro;
Abramovay, 2005). Portanto, a escola, ao invés de ser o lugar aonde se ensina
sobre a diversidade, acaba por transmitir conceitos (preconceitos) e estereótipos
sobre a orientação sexual ‘normal’, com base na binaridade homem/ mulher, tida
como a única passível de existência, em detrimento de qualquer outra. Há uma
visão pejorativa sobre gays e lésbicas.

A presença constante de expressões lingüístico-identitárias homofóbicas faz


com que os agredidos percebam-se como inferiores e/ou doentes: há um
sentimento de vergonha, sobre uma sexualidade que parece mal-resolvida, sendo
esta idéia introjetada bem cedo em suas vidas. Há a internalização de crenças
sobre a promiscuidade inerente a todos os homossexuais, além do uso de drogas
por parte deles, por exemplo.

16 Como relatam Silva (1993), Denizart (1997), Pelúcio (2008), entre outros.
44

No entanto, há casos de professoras que, possuindo uma postura mais


inclusiva, não permitem a violência verbal contra estes alunos. Mas não sabem ao
certo como lidar com a situação, ficando suas intervenções a um nível mais
pessoal (como conselhos para que se comportem de forma mais ‘masculina’, sem
trejeitos femininos, por exemplo), sem um arcabouço teórico para se valer (idem).
Até bem pouco tempo atrás, não havia cartilhas específicas sobre o assunto nas
escolas (ibidem). Atualmente, algum trabalho neste campo vem sendo efetuado,
como as cartilhas do Papo-Cabeça17, da UFRJ. Este projeto vem, de certa
maneira, responder a preocupação de alguns docentes sobre como lidar com a
questão homossexual nas escolas cariocas. Com a realização, pelos membros do
grupo, de oficinas nos colégios e teatralizações de situações de violências contra
homossexuais, há a possibilidade de uma abordagem sobre o tema, com alunos e
professores; um questionamento sobre a questão da orientação sexual se torna
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possível dentro dos colégios.

3. 2. Estigma

As travestis são estigmatizadas, isto é, possuem uma identidade deteriorada


socialmente. O estigmatizado possui características tão diferentes do que é
socialmente aceito, que deixa de ser entendido “como pessoa na sua totalidade, na
sua capacidade de ação e transforma-se em um ser desprovido de potencialidades”
(Melo, s/d).

Segundo Goffman (1988), o estigma é um atributo deveras depreciativo,


tendo sua origem nas relações sociais, nos valores e significações da cultura de
cada povo. Estas relações ditam o que é normal ou não, o que está dentro da
norma aceitável por esta cultura ou não. Portanto, aquilo que é diferente,
considerado fora dos padrões, desviante da norma social, terá um atributo
negativo.

Projeto criado em 2003, desenvolvido pela Faculdade de Medicina e da


17

Maternidade Escola da UFRJ (papocabeca.me.ufrj.br/principal.html).


45

Porque a criação dos estigmas? Segundo Melo (s/d):

“Alguém que demonstra pertencer a uma categoria com


atributos incomuns ou diferentes é pouco aceito pelo grupo
social, que não consegue lidar com o diferente e, em situações
extremas, o converte em uma pessoa má e perigosa, que deixa
de ser vista como pessoa na sua totalidade, na sua capacidade de
ação e transforma-se em um ser desprovido de potencialidades.
Esse sujeito é estigmatizado socialmente e anulado no contexto
da produção técnica, científica e humana” (p. 13).

O próprio indivíduo estigmatizado “tende a ter as mesmas crenças sobre


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identidade” (Idem, p.16) que os indivíduos da sociedade. Passa a pensar-se como


anormal (fora da norma), à margem da sociedade. A pessoa passa a pensar sua
identidade como deteriorada, o que a conduz a uma baixa auto-estima, que pode
levar a angústia, depressão e isolamento do resto da sociedade. Aqui, Goffmann
se coaduna com Bourdieu, que pensa a naturalização da norma agressora pelo
próprio agredido, nomeada de violência simbólica (Revista CULT, 2008). Como
constatado na fala de uma travesti entrevistada por Larissa Pelúcio (2004):

“É coisa de espírito maligno. É um vício”, conclui. Pega a


Bíblia para me mostrar a verdade e promete que irá se livrar
desse ‘mal’ com o poder de Jesus. “Deus fez o homem e a
mulher pra eles crescerem e se multiplicarem... Me diz, colega,
como um travesti pode cumprir os desejos de Deus”, pergunta
como quem já sabe a resposta” (p. 151).

Uma desvalorização da travesti, já que sua performance é considerada como


pecado ou algo intrinsicamente errado, pode ser constatado na fala de uma
46

entrevistada: “Jossy conclui que ‘a travesti é obra de Lúcifer... porque travesti


topa tudo!” (Denizart, 1997, p. 27).

Por ser ‘obra de Lúcifer’, a travesti permite que sua identidade seja
negativa, passível de punição; esta, então, torna-se aceitável. Há naturalização por
parte da própria travesti, da violência sofrida; uma ‘banalização da violência”,
segundo Arendt. A autora empregou este termo quando referiu-se ao extermínio
de raças (judeus principalmente) nos campos de concentração por burocratas
nazistas. É o genocídio daquele que é “diferente” (culturalmente, etnicamente,
sexualmente). A banalidade do mal surge quando os seres humanos parecem ser
incapazes de pensar o outro e condescem com o sofrimento, quando permitem a
tortura e mesmo assassinatos. A banalização da violência (e do mal) se dá,
segundo Pequeno (s/d) quando há:
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“a coisificação (reificação) do homem, a desumanização dos


indivíduos, perseguição/ aniquilamento; exclusão/
marginalização, eliminação de toda qualidade humana
superior.”

A travesti sofre todas as discriminações citados pelo autor.

Há duas categorias de estigmatizados (Wollman, 2008): os desacreditados e


os desacreditáveis.

O primeiro grupo tem seu estigma evidente, facilmente conhecido pelas


pessoas a sua volta. Já o segundo não tem o estigma aparente; as pessoas não o
identificam facilmente. Para esses, é comum usar o encobrimento (idem), isto é, o
estigmatizado esconde sua situação e pode manipular informações acerca de sua
verdadeira identidade. Nesta categoria, estão os homossexuais que não se
travestem, que se escondem por trás de uma fachada heterossexual e não revelam
seu homoerotismo.
47

No primeiro grupo, encontram-se as travestis. Elas não têm como ocultar


seu estigma (sua aparência física feminina) e, por isso, estão mais vulneráveis a
qualquer tipo de discriminação e violência.

No entanto, os processos de estigma são produzidos de acordo com o


contexto cultural e da época. Eles podem mudar, já que a cultura é mutável, não
estática (Ortner, 1997) e pode absorver valores novos, com o passar dos tempos.

Para se entender melhor os estigmas sofridos pelas travestis, são


necessárias cartografias dos processos que compõem a realidade destes
indivíduos; através destas, pode-se pensar em problematizações, com o intuito de
entender como acontecem, para que possamos desfazê-las.

Desta maneira, poderemos entender como se dá a violência estrutural, isto é,


o sistema “de inter-relações que ligam os indivíduos em conjunto” (Seffner, 2004,
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p. 90). Estas “admitem a prática da violência de forma rotineira” (idem). O


conhecimento de como se forma a violência estrutural (com as desigualdades
sociais e discriminação dos homossexuais, por exemplo) pode trazer entendimento
das vulnerabilidades sociais a que o grupo travesti está exposto, além da
estigmatização que sofre. Com este conhecimento, pode-se entender que a
violência (que sofrem) não é algo “fundante da vida social, ao contrário do que
muitas crenças difundem” (ibidem). A filósofa Hannah Arendt também concorda
com este argumento. Em seu livro, Sobre a violência (Arendt, 1984), desmistifica
esta idéia da violência como fundamental para o poder sobre os grupos.

Na época em que escreveu o referido livro, havia uma tentativa por parte de
alguns filósofos de justificar a violência na natureza humana, baseando-se em
estudos comparativos com animais. Segundo a autora, todavia, esta constatação
no meio animal não significa que o homem se comporte de acordo com as
espécies animais; esta agressividade não pode justificar a agressividade humana.
Defendia, portanto, que a violência não é natural; tem um caráter instrumental,
mas não é necessariamente um potencial humano. A partir do momento que se
defende a violência como natural, esta torna-se aceitável sem questionamentos 18.

18Como em entrevista registrada na dissertação sobre Violência anti-gay (Silva,


2005, p. 41).
48

Este parece ser o caso das travestis que sofrem a violência simbólica sem
questionarem o fato.

Mas Arendt (2004) não preconiza uma sociedade totalmente pacífica e nem
a total recusa da violência (idem). O uso da desobediência civil pode ser
justificável, sendo em algumas circunstâncias o único meio pelo qual se obtém a
justiça. Ou pelo menos que não ocorra mais injustiças ou mesmo uma violência
ainda maior.

No caso das travestis, era notório, até décadas atrás, os cortes violentos que
faziam em si mesmas, para não serem levadas para a delegacia policial e lá serem
violentadas sexualmente. Era comum travestis que se cortavam principalmente
com giletes; fazendo isso, evitavam abusos sexuais por possíveis violentadores ou
mesmo de policiais19. Ao verem o sangue, a libido destes era diminuída, além do
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medo por possível infecção causada pelo vírus HIV/ AIDS. Era uma maneira
possível de serem deixadas em paz, o que geralmente ocorria depois.

Há, portanto, na vida das travestis, todo um histórico de violência e estigma,


que culmina na exclusão destes indivíduos, que terminam sendo qualificados
quase que exclusivamente com atributos negativos, tendo sua condição de
cidadania desqualificada. Isso porque se entende que o indivíduo não nasce
excluído; ele torna-se excluído quando é colocado de fora das trocas sociais.

Sua exclusão não ocorre apenas quanto ao desemprego (Peres, 2005).


Também aparece na ordem política e subjetiva, já que suas próprias escolhas
existenciais são condenadas por quase toda a sociedade (como a escola e a igreja).

19Kulick (2008) descreve cenas impactantes de travestis brutalmente violentadas


por policias, em Salvador. Além de apanharem de vários policiais ao mesmo
tempo, eram também obrigadas a brigar entre si.
49

3. 3. Exclusão

Este é um conceito amplo, pois abarca em si uma série de problemas


(econômicos, sociais) que se traduzem em várias situações como pobreza, fome e
discriminação. Sublinho que não há, entre os pesquisadores, um consenso sobre a
que se refere á exclusão.

Costa (1998) propõe várias exclusões sociais possíveis: econômica, social,


cultural, patológica (por exemplo, de causa mental, como os distúrbios
psiquiátricos esquizofrenia e autismo) e comportamentos auto-destrutivos (como o
alcoolismo, por exemplo). Estas exclusões podem aparecer juntas, sendo muitas
vezes uma originada pela outra (alcoolismo causado por problemas econômicos,
por exemplo).
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Para Sposati (1998), a exclusão abarca valores culturais e discriminações,


que não passam necessariamente pelo viés da pobreza (como sexo e cor).

Castel (2001) pensa a exclusão não apenas relacionada com o mercado de


trabalho, mas com rupturas com instâncias como a família e o grupo social com
que se mantinha contato (amigos, por exemplo). Segundo ele, pode haver pobreza
sem que haja exclusão social, visto que as pessoas pobres podem, apesar do
problema financeiro, manter vínculos com parentes ou amigos na mesma situação:

“rigorosamente falando, não existe exclusão; existe contradição,


existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos
excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos
excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua
revolta, suas esperanças, sua força reivindicativa e sua
reivicação corrosiva. Essas reações (...) constituem o
imponderável de tais sistemas, fazem parte deles ainda que os
negando (apud Haesbert, p. 316).
50

Castel (idem) prefere utilizar não o termo exclusão social, mas sim
desfiliação que seria um processo de sucessivas perdas ao longo da vida (família,
escola, entre outras) que culminam com a exclusão social. Para ele, há três tipos
de práticas excludentes (percebidas ao longo da história humana):

- quando da supressão completa de uma comunidade, como a tentativa de


genocídio dos judeus por parte dos nazistas;

- quando da construção de espaços fechados e isolados da sociedade, como


os leprosários e asilos para loucos;

- com a existência de algumas categorias da população que seriam


classificadas como sendo cidadãos de segunda ordem.

Seja com qual destas ocorrer, há o perigo de que, juntamente com esta
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“produção de seres humanos sem lugar no mundo” (Oliveira, 1997, p. 58), se


perpetue um sentimento de hostilidade aos não-excluídos que chegue a tal ponto
de intensidade que possa aparecer uma mentalidade exterminatória. O apogeu
seria o extermínio daqueles seres excedentes socialmente; no caso das travestis,
seus assassinatos por causa da homofobia, principalmente durante a noite, em
locais de ‘batalha’ (prostituição). Fatos fartamente documentados nas obras
cinematográficas de Wagner de Oliveira.

Oliveira (Caldeira, 2005) pensa uma nova separação, na qual de um lado


estão os incluídos e na outra os excluídos. No entanto, questiona a existência de
alguém que seja totalmente excluído; segundo ele, todos os indivíduos, de certa
forma, estão incluídos na sociedade. Todos estão integrados em um mesmo
processo econômico.

Há ainda vários outros pensadores sobre o tema, como Paugam (1999) e


Martins (1997). São mais convincentes o conceito de Castel (2001), no tocante à
travesti. Ela sofre a desfiliação, isto é, perda ao longo de sua vida de vínculos,
como o familiar e o escolar; sua condição última é o resultado destas quebras
socializadoras durante toda a sua trajetória. E também o de Oliveira (1997); não
há ninguém totalmente excluído da sociedade. A travesti pode ser rejeitada, mas
está incluída de alguma maneira no sistema social e econômico. Prova disto é a
51

quantidade de clientes que a procuram nas noites, para programas, além de


existirem mesmo mercados especialmente destinados a este público (como uma
loja de roupas para travestis, localizada no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro).
Mesmo que de maneira precária, há certa inserção das travestis no sistema
econômico e social, portanto. Para citar Martins (1997, p. 21), uma forma pobre,
insuficiente e mesmo indecente de inclusão.

Portanto, quando escrevo sobre exclusão social (ou desfiliação), nesta


dissertação, estou usando o termo de acordo com estes dois autores citados
(Oliveira, 1997; Martins, 1997).

Mesmo seus parceiros em movimentos sociais, os gays, geralmente tem


posturas preconceituosas em relação a estas e geralmente não as aceitam. Por que
isso acontece?
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Historicamente, os homossexuais sofrem preconceito e exclusão da


sociedade (Filho, 2000). Parte dela foi herdada de leituras literais da Bíblia
Sagrada, com rejeições aos que praticavam sexo com pessoas do mesmo sexo
(Trasferetti, 1999). Somente há pouco tempo, vem tendo conquistas no âmbito
social, sendo mais incluídos na sociedade brasileira. No entanto, suas colegas
travestis, igualmente vítimas de preconceitos, são ainda mais invisibilizadas que
os outros homossexuais. Enquanto há estudos sobre violência contra
homossexuais, há pouca documentação sobre aquela sofrida por travestis. Há, por
exemplo, uma dissertação na área de Política Social, da UFF, sobre a violência
antigay, de Maria Angélica da Silva (2005). A autora entrevistou homossexuais
no Rio de Janeiro, da faixa entre 25 e 35 anos; buscou entender as percepções
destes indivíduos sobre a violência que sofrem, por causa de sua orientação
homoerótica.

Ao realizar uma pesquisa sobre a população travesti, naquela época, percebi


que, mesmo em trabalhos acadêmicos sobre violência doméstica, pouco interesse
se dava em relação a esta população; quando referente às travestis, apenas se
escrevia sobre prostituição, sobre a ‘montagem’ e sobre a sua ‘rivalidade’ com as
mulheres. Mas será que suas vidas se resumem a isso? É provável que não. Como
entendo que a religião é um aspecto importante na formação subjetiva e social dos
52

indivíduos (discutirei sobre isso mais adiante), procurei mais informações sobre o
tema, relacionado ás travestis. No entanto, o que me chamou a atenção não foi um
estudo específico sobre o tema; foi, antes, perceber a lacuna que existe sobre a
relação entre religião e esta população. Em comunicação pessoal de 2008, a
pesquisadora Larissa Pelúcio confirmou, para mim, esta afirmação; o pesquisador
Marcelo Natividade (no mesmo ano), também sublinhou esta falta de mais
material sobre o tema.

Embora haja alguns livros e artigos (principalmente na Internet) sobre


travestis, a maioria as estuda ligando-as à prostituição ou violência, durante
programas realizados em locais ermos das cidades. Havia dois livros escritos por
antropólogos, Hélio Silva (1993) e Benedetti (2005), e um com entrevistas e fotos
de travestis, de Hugo Denizart (1997), focando principalmente sobre seus
encontros noturnos com clientes e “maridos”, sobre o cuidado para feminilizar
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seus corpos (através de cirurgias de rosto, tratamento com hormônios e implante


de silicone), além de suas relações com suas mães e famílias. Um resumo destes
trabalhos será feito mais adiante. Em pesquisa pela Internet e jornais, também foi
constatado que se escrevia, predominantemente, sobre travestis em relação a vida
noturna (prostituição) e sobre sua ‘montagem’.

Pouco se falava de travestis, mesmo em Associações de Gays e Lésbicas.


Até mesmo entre os gays (que sofrem bastante preconceito), elas eram mal-
recebidas, na maior parte das vezes. “Esta parcela da população homossexual
talvez seja a mais excluída” (Peres, 2007, p. 41).

Por que elas são tão excluídas, mesmo por seus ‘supostos’ pares? Será que
os gays teriam preconceito com quem possui características de outro gênero?

Há cada vez mais travestis no Brasil. Um dos motivos é o acesso a


medicamentação (cada vez mais moderna e eficiente) que permite a transformação
corporal de forma mais saudável (décadas atrás, na maioria das vezes, era usado
apenas silicone industrial, extremamente tóxico para o corpo humano). Inclusive,
a travesti (do jeito que a conhecemos hoje) só foi possível por causa do avanço
tecnológico na medicina. Até a década de 60, as travestis eram apenas os homens
que se vestiam como mulheres. Com a chegada das pílulas anti-concepcionais no
53

Brasil, na década de 70, os homens tiveram a oportunidade de moldar seu corpo


de forma mais feminina, através dos hormônios femininos (Garcia, 2007). No
final dos anos 70, também chegou no Brasil o silicone industrial, inicialmente
contrabandeado (Kulick, 2008). As primeiras travestis, hormonizadas e com
silicone, só surgiram mesmo no começo dos anos 80. Cada vez mais, tanto o
silicone como os hormônios estão sendo aperfeiçoados, para causarem cada vez
menos danos ao corpo humano. Quem tem recursos financeiros, consegue acesso
a eles, além da realização de cirurgias plásticas (principalmente no nariz).

Além disso, cada vez mais indivíduos aceitam a sua personalidade trans20
(diria a sua condição trans) e parecem estar mais dispostas a ‘assumir’ sua
travestilidade. Criaram-se entidades focadas neste grupo, sendo que no início isto
ocorreu por causa da epidemia da Aids, na década de 80, principalmente.
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Um exemplo é a ASTRA (Associação de Travestis)21, que não existia há


alguns anos atrás. Portanto, o número de entidades tende a crescer e se consolidar.

No Relatório Anual do Centro de Referência GLBT (2004), em um ano de


atendimento (referindo-se a 2003/2004), foram atendidos 240 usuários, sendo 83
pela Assistência Social, 28 pela Assistência Psicológica, 81 pela Assistência
Jurídica e 48 pelo Disque-Denúncia Homossexual (DDH). A grande maioria dos
atendimentos feitos pela Assistência Social foi de travestis (78,31%), sendo a

20 Trans refere-se a transgênero. O termo (do inglês transgender), que pretendia


englobar tipos homossexuais que não gays e lésbicas, foi abolido por pressão
das travestis, que o entendiam como pejorativo (Facchini, 2005). Segundo elas,
lembra bastante o termo transgênico, que se refere a alimentos alterados
geneticamente. No entanto, seu diminutivo trans ainda é usado e aceito pelas
travestis.

21A ASTRA/RJ é uma “entidade não governamental sem fins lucrativos fundada
em 29 de janeiro de 2005 nas dependências do Centro Cultural com a missão de
associar e mobilizar Travestis e Homens e Mulheres Transexuais deste estado,
objetivando garantir o exercício pleno da cidadania e a igualdade de direitos a
esses segmentos” (ASTRA, s/d). A entidade desenvolve várias ações, além de
participar em eventos ou projetos que envolvam travestis e/ ou transexuais.
Embora já exista um movimento LGBT no Rio de Janeiro, entendeu-se necessária
uma organização de travestis e transexuais que, através de ação política,
procurasse a garantia de demandas que são mais específicas destes grupos
(como o tratamento em caso de problemas decorrentes de injeção de silicone).
54

procura concentrada em “tentativa de inserção no mercado de trabalho e/ ou


serviços, como alternativa de geração de renda á atividade sexual” (Relatório
Anual do Centro de RLGBT). O motivo principal pela falta de emprego seria
devido á baixa escolaridade e preconceito sofrido ao tentarem buscar emprego
formal. Também houve procura para possível encaminhamento a serviços
médicos, para tratamento de problemas relacionados ao uso indiscriminado de
silicone industrial (que é mais barato), que pode ser danoso ao corpo.

No entanto, os profissionais que as atendem (de um modo geral, assistentes


sociais, médicos e psicólogos) não possuem informações precisas sobre o sujeito
travesti. Por não entenderem sua subjetividade e mesmo suas demandas
específicas (por exemplo, de um tratamento mais adequado no tocante ao silicone)
não sabem como lidar com elas. Não há uma capacitação técnica para o trato com
elas.
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3. 4. Pânico Moral

A resistência á transformação social, pelo medo da quebra das regras


sociais, origina “cruzadas morais que tentam reavivar valores e instituições
tradicionais” (Miskolci, s/d, p.11). O receio de que as mudanças ameacem as
instituições sociais estruturadas (como casamento e família) é de tal ordem que se
tornam o chamado ‘pânico moral”:

“consenso partilhado por um número substancial de membros


de uma sociedade, de que determinada categoria de indivíduos
ameaça a sociedade e a ordem moral (...) esse número
considerável de pessoas que se sentem ameaçadas tende a
concordar que “algo deveria ser feito” a respeito desses
indivíduos e seu comportamento” (Goode e Bem-Yehuda, 2003,
p.9).
55

Com esta finalidade, aparatos de controle social são fortalecidos, com uma
condenação ou hostilidade maior ao modo de vida diferente; surgem os
empreendedores morais (por exemplo, líderes religiosos) que tomam para si a
‘missão’ de combater os ‘heréticos’, através de medidas educacionais e
preventivas. Um exemplo são as igrejas protestantes especializadas em curar o
homossexual de sua homossexualidade, que seria advinda de forças demoníacas
(Miskolci, s/d). Portanto, não se dá mais através da penalização legal e
criminalização, quando os homossexuais eram espancados e mortos em espaços
públicos, por decisão do Judiciário da época (Foucault, 1977)22.

Um dado interessante é que o pânico moral se dá, geralmente, pela


substituição de um assunto por outro. Para defender sua idéia, o empreendedor
moral incorpora outro dado, para corroborar sua teoria, já que ela, por si só, não
causaria o efeito desejado. Um exemplo nos dias atuais se deu em igrejas
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protestantes para barrar a Lei de Criminalização da Homofobia. Os


empreendedores morais ligaram a homossexualidade à pedofilia, para convencer
seus seguidores a mandar cartas ao Senado para evitar que a lei fosse aprovada
(Sardinha, 2008). Ora, não há nenhum argumento comprovado que ligue pedofilia
a homossexualidade. No entanto, este argumento desviou a atenção do tema da
‘pretensa’ imoralidade homossexual para ligá-la a algo criminoso, ou seja, o sexo
de adultos com crianças, como se os homossexuais fossem pedófilos. Isto ajudou
a mobilização dos fiéis nesta questão da homofobia. Portanto, temores que já
existem na coletividade (pedofilia) foram relacionados a um tema receado pelos
empreendedores morais (a homossexualidade e a suposta quebra de valores
tradicionais) 23.

22Um exemplo recente de pânico moral foi o de franciscanos, da Fraternidade


de Aliança Toca de Assis. A entidade não aceitou mantimentos arrecadados
durante a Semana LGBT de Uberaba, pois tem como premissa não aceitar
produtos que venham de gays (A Capa, 2008).

23 “Historicamente, grupos sociais estigmatizados por sua religião, visão política


ou orientação sexual são socialmente representados como um perigo para as
crianças. No caso dos judeus, são conhecidas as lendas que usariam crianças
em rituais de sacrifício humano. Também é notória a construção da imagem dos
comunistas como ‘devoradores de criancinhas’. No caso de homens gays, a
imagem de perigo os associa à pedofilia” (Miskolsci, s/d).
56

3.5. Redes sociais e de solidariedade

Há vários relatos de que as travestis, embora excluídas (ou à margem) da


sociedade tradicional, estão inclusas em outras redes sociais, criadas por outros
excluídos em situações semelhantes (Silva, 1993). Não apenas elas; para suprir
suas necessidades, os indivíduos excluídos geralmente criam vínculos em torno de
um fim comum, mesmo que não haja laços de parentesco. Assim laços de
solidariedade mecânica vêm substituir os laços de solidariedade orgânicas, que
para estes indivíduos são fragmentados.

O termo solidariedade, segundo Durkeim, refere-se a algo que liga as


pessoas, como uma rede de trocas. Não tem o significado de fraternidade ou ajuda
(Wollman, 2008). Durkeim baseou-se na biologia, pensando cada órgão do corpo
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tendo uma função para a sobrevivência do organismo. Portanto, na solidariedade


orgânica, o sujeito faz parte de um todo (a sociedade), sendo necessário para a
sobrevivência de seu próximo.

Já a solidariedade mecânica, é uma rede formada não por dependência entre


os indivíduos, e sim por um sentimento de amizade ou companheirismo. É nesta
rede que as travestis conseguem se inserir.

“A família é uma unidade social que desenvolve múltitplos


papéis fundamentais para o crescimento psicológico do sujeito,
marcando as diferenças sociais e culturais, mas com raízes
universais. Tem uma proposta e propriedades de auto-
perpetuação (...) através dos vínculos estabelecidos na família, o
sujeito estigmatizado pode encontrar o suporte para a apreensão
das suas diferenças, no contexto das semelhanças. Pode
relativizar a diferença e acrescentar pontos significativos na sua
identidade social, algo diferente no universo das semelhanças
(...) A ausência de vínculos inscreve a desordem, a ausência da
autonomia e da referência do ser individual no contexto social”
(Melo apud Minuchin, 1982, p.7 ).
57

Melo (1982) explica o papel e a importância fundamental da família na


construção e manutenção de uma identidade saudável do indivíduo, mesmo o
estigmatizado. Se levarmos em conta que o negro, por exemplo, é um
estigmatizado social, este texto explica que, por mais que sofra preconceitos na
rua ou na escola, encontra na família o suporte para enfrentar seus problemas. Da
mesma maneira, com os estigmatizados por religião. Isso equivale a dizer que
nenhum negro é vítima de violência e preconceito em sua família, pelo fato de ser
negro; nenhum judeu o é, na família, pelo fato de ser judeu. No entanto, o
homossexual o é, pela família, pelo fato de sua orientação homoerótica.

Sem família a quem recorrer, sem amigos, sem educação suficiente para ter
um trabalho que possibilite um mínimo de renda, as travestis sentem-se excluídas,
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isoladas.

A quem então recorrem estas estigmatizadas? A outros nas ruas. No entanto,


a necessidade de manter um vínculo com a família prepondera em todos os casos
pesquisados de travestis. Todas (o que foi corroborado por Kulick, durante
palestra na UERJ, em 200824) tem como sonho ganhar dinheiro e imediatamente
poder comprar uma casa para as suas mães.

Esta necessidade de vínculo é feita, muitas vezes, através de meios


financeiros; é a ‘compra’ do carinho dos familiares.

Mas mesmo assim muitas não são aceitas; continuam a ser estigmatizadas
mesmo por suas famílias. No entanto, esta necessidade de uma filiação persiste.
Elas conseguem certo substituto nas travestis mais velhas, que se tornam suas
mães ou madrinhas. É interessante que este fato ocorre mesmo com possível
prejuízo para as travestis mais velhas. Afinal, a procura por travestis mais novas,
por parte dos clientes, pode prejudicar seus ganhos na ‘pista’. Mesmo assim, há
uma acolhida das possíveis futuras rivais.

24Kulick veio ao Brasil no segundo semestre de 2008, por ocasião do lançamento


de seu livro Travestis. Participou de várias palestras na cidade, sendo uma delas
na UERJ.
58

Estas, por já terem também passado por esta experiência de repúdio


familiar, as acolhem nas pensões em que moram ou que são donas. É verdade que
as travestis lhes reembolsam financeiramente; passam a ser suas tutoras e suas
cafetinas na prostituição. Mas há também uma relação de afeto e de cumplicidade,
advindas de ambas. As cafetinas são aquelas que lhes ensinam (mesmo que não de
forma sempre carinhosa) como se comportar; como se vestir adequadamente, a
não se envolver com drogas.

As travestis demonstram um enorme respeito (e mesmo medo) delas; pode


ser comparado ao estabelecimento de uma relação ‘mãe-filha’. Mas não é
necessariamente uma relação de afeto mútuo, mas de autoridade e proteção, por
parte das novas ‘mães’.

Há uma primazia de um conjunto de normas e regulações (visíveis ou não)


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na formação da identidade e da incorporação do feminino (Guaraldo, 2007, p.


671). Há signos que são apreendidos socialmente para que se estabeleça uma
identidade travesti. Muitos são passados por suas madrinhas. Mas também pelas
outras travestis com quem convivem na ‘pista’.

Se concordarmos com Durkeim (Wolmann, 2008), de que a solidariedade


reclama uma organização apropriada, podemos entender o porquê da organização
das travestis nas pistas. Embora, para alguém que por lá passe, pense que não há
regras. Mesmo na ‘pista’ há regras bem definidas; desde a ocupação de qual parte
do território, passando pelo jeito como as travestis devem se comportar e com
quem será injetado silicone.

Caso a travesti invada o local de outra, sofrerá sanções, por parte das demais
travestis. Não são poucas as ocasiões em que brigam entre si por causa de espaço.
Outro motivo de desavenças diz respeito aos maridos e aos seus ‘vícios’ (garotos
na faixa de dezoito anos com quem costumam ter relações sexuais esporádicas).
Deve haver um respeito mútuo entre elas; uma não pode paquerar o marido das
outras. O receio das travestis não é de que o marido as abandone em detrimento da
outra, mas sim de que estes tenham relações sexuais de forma passiva com as
demais travestis. Isto seria uma desmoralização muito grande, ao tomarem
conhecimento de que seus homens passaram para o lado feminino. Para elas, o
59

homem só é masculino enquanto ativo; caso seja passivo, passa a ser


desvalorizado, virando uma ‘maricona’25.

Também ao que se refere ao silicone, parece haver regras que indicam com
qual bombadeira será feita a feminilização do corpo; para ser aceita no local,
devem fazer a injeção de silicone com determinada bombadeira e não outra.

Além da ‘pista’ e de guetos onde se reúnem (como nas pensões), poucos


lugares de acolhimento aonde existem. Geralmente em ONGs apenas. Nos outros
locais, são desvalorizadas e sofrem todo tipo de violência: risinhos, deboche, entre
outros. Geralmente, não tem os direitos civis respeitados, como o de ir e vir
livremente. Evitam, na maioria das vezes, sair as ruas de dia. Como no caso do
relato da travesti Carol de Castro (IParaiba, 2008), que fala de travestis que, por
receio de alguma violência, pagam a garotos (geralmente moradores do mesmo
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prédio) para comprarem mantimentos ou algum outro produto para elas, em


mercados ou alguma outra loja.

Quando elas mesmas decidem sair às ruas, durante o dia, muitas vezes se
vestem de boys, isto é, de forma a parecerem garotos. Nestas ocasiões, usam
26
bonés, camisas largas e calça comprida. Tudo que puderem fazer para evitar
preconceitos e desrespeito.

Há aquelas que ainda eram aceitas enquanto não estavam hormonizadas.


Quando passam a se identificar mais como travestis, sofrem preconceitos até
mesmo de quem as conhecia antes, como se encontra na fala de travesti Pérola
(Peres, 2005), quando:

25 ‘Maricona’ é uma “espécie de xingamento, de ofensa dirigida a certos tipos


de homens” (Pelúcio, 2007, p. 87); refere-se aos indivíduos “que passariam por
‘homens de verdade’ na vida pública, mas que na privacidade das práticas
sexuais escapariam para o desprestigiado pólo feminino, ‘virariam’ (viados)”
(idem). Seriam aqueles que procuram as travestis para ter uma relação ‘passiva’.

26 Benedetti (2005, p. 68-69) identificou três tipos de vestimentas usadas pelas


travestis: a de boys, a de ‘batalha’ e a de festa, usadas em concursos de beleza.
60

“Relembra com muita tristeza que nesta época, devido a sua


escolha pessoal, houve a perda de um amigo de quem gostava
muito, que era gay assumido, mas que tinha preconceito com
travesti, e que se afastou dela. Essa experiência, da perda de um
amigo querido, foi, segundo Pérola, uma experiência terrível
que foi experimentada como uma ação de violência, lembrando
de suas próprias palavras: ‘Fulano, pelo amor de Deus, para
com essa história de virar travesti, porque senão eu deixo de ser
seu amigo, eu deixo de sair com você. Você não percebe que
você está ficando louco” (p. 171).

Mas no caso das travestis, estas normas podem ser fluidas, assim como o é a
sua condição trans. Mesmo entre as travestis, não há um consenso sobre quem são
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elas, qual sua identidade; também não há consenso sobre como devam se
comportar. Isto varia de localidade para localidade.

Por exemplo, Kulick (2008) relatou que o roubo de clientes era comum em
Salvador; todas as travestis furtavam objetos e dinheiro de seus clientes. Além
disso, todas as entrevistadas faziam algum tipo de escândalo, após o final das
relações sexuais com os clientes. Muitas iam para a porta dos apartamentos e
ameaçavam gritar, xingando o cliente ou nomeando-o como ‘passivo’, para que
ele, envergonhado, pagasse a mais pelo programa (embora já tivesse pago o
combinado). Isto era fato rotineiro e mesmo incentivado pelas travestis há mais
tempo na ‘batalha’. Em conversa com elas, Kulick relatou que estas mesmo
ficavam surpresas com a volta freqüente de clientes que haviam sido roubados (p.
70-71); mesmo assim, continuavam a fazer programa com elas.

No Rio de Janeiro, no episódio do envolvimento do atleta de futebol


Ronaldinho com travestis, em 2008, muitas se posicionaram contra o fato da
suposta extorsão. Defenderam um código de ética, no qual o cliente não poderia
ter seu nome revelado; uma das defensoras mais veementes foi a presidente da
ASTRA-Rio, Majorie Machi27. Mesmo as travestis com quem conversei

A ASTRA/RJ tornou pública uma carta, em 2008, que pode ser acessada no site
27

www.astra.com.br.
61

informalmente, disseram que foi anti-ético da parte das travestis e que este fato só
denegria a imagem destas. Havia algumas sim que extorquiam; mas defendiam
que não era algo aceito ou estimulado pelo grupo. Os furtos afastariam os clientes
cariocas; o que parecia não acontecer em se tratando dos de Salvador. Portanto,
algo recorrente em uma comunidade (Salvador) parece não ser em outra (Rio de
Janeiro).

Nos relatos de Neves et al (2007), também há uma diferenciação sobre o


comportamento das travestis. As que ‘batalhariam’ em determinada parte da rua
seriam ladras e não se comportariam de maneira ideal; já as que ‘batalhavam’ na
parte de cima, seguiriam uma ética diferente e não furtariam. Outro ponto
importante é que as travestis não compactuam todas com a noção de uma mesma
identidade para elas. Para a maioria, segundo Benedetti (2005), travesti será
aquela que coloca silicone; as que não colocam, não seriam travestis ‘genuínas’.
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Já, segundo travestis entrevistadas por Duque (2005), para ser travesti não é
necessário silicone; e sim o fato de sentir-se e de portar-se como mulher.

Também há certa confusão sobre a diferença entre travestis e transexuais. A


idéia predominante é que, o que as difere, é a vontade ou não de realizar a cirurgia
de mudança de sexo 28.

No entanto, a travesti tem vontade de ser travesti, como enfatizado por


Majorie Machi, em palestra no Pré-Congresso da UERJ (2008). Não almeja ser
mulher, nem homem. A travesti almeja esta ambigüidade; quer manter o pênis e
não se sente uma mulher.

Já as transexuais são aquelas que dizem, desde cedo, sentirem-se mulheres.


Portanto, não desejam ser travestis; desejam ser mulheres. Muitas delas inclusive
têm uma relação de ódio ou nojo com o pênis; muitas não o reconhecem como
parte integrante de seu corpo. Por isso, adotam a cirurgia como uma meta, para
anularem de vez o último grande traço masculino de seus corpos.

Como percebido nas falas dos entrevistados religiosos e leigos, no capítulo 5


28

desta dissertação.
62

O que causa confusão é que as transexuais, enquanto não realizam a cirurgia


de mudança de sexo, estão na condição de travestis; algumas, também não se
decidiram ainda se preferem a condição de transexual ou a travesti.

Esta confusão identitária faz com que seja mais difícil, por profissionais de
saúde e pelo público leigo, o conhecimento de quem são; com isso, fortalecem-se
estereótipos, geralmente negativos, sobre elas e que não correspondem à
realidade. Em entrevista concedida pelo Pastor Gladstone (2008), por exemplo,
foi relatado que havia duas travestis que freqüentavam a sua Igreja. Após minha
explicação sobre a diferença, passou a nomeá-las transexuais. No entanto, no
decorrer da entrevista, novamente as chamou de travestis. Nem mesmo quem lida
com elas, às vezes, sabe exatamente sobre sua identidade; parecem não saber bem
a distinção entre travestis e transexuais.
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Kulick ressaltou o fato desta ‘confusão identitária’ em palestra na UERJ, em


200829; discorreu sobre a dificuldade de um enquadre nosológico, que permitisse
um maior entendimento destas. Reforçou que este fato fazia com que fosse difícil
um movimento político delas que fosse mais abrangente e mesmo que tivesse
respostas mais efetivas. Citou os jornais, por exemplo; muitos se referiam a elas
usando o artigo os, enquanto alguns o artigo as. Mesmo no meio acadêmico,
percebo esta dificuldade; alguns professores as nomeiam como os travestis, e
alguns como as travestis. O que é incorreto; as travestis são homens que mudam
para o pólo feminino; já os travestis são mulheres que se posicionam no pólo
masculino. Além disso, a confusão sobre classificarem as transformistas e drag
queens como travestis ainda persiste de forma grande, mesmo que no nível
acadêmico. 30 Por isso, minha escolha em distinguir os tipos homossexuais queer,
no início desta dissertação, para evitar quaisquer mal-entendidos.

29Palestra realizada em 21 de maio de 2008, com o título de ‘Causing a


commotion’,

30Esta confusão se deve ao fato de que, até a década de 70, qualquer homem
que vestisse roupas femininas era nomeado travesti. As chamadas travestis, de
hoje em dia, hormonizadas e com silicone, só apareceram no final da década
de 70. Mas o costume de nomear todos que se vestem como mulher, como
sendo travesti, ainda é comum.
63

3.6. Guetos e territórios

Há certa discussão nos meios acadêmicos sobre o gueto (Duque, 2005);


principalmente acerca de seu aspecto negativo, já que delimita o espaço de
transição entre os excluídos. Concordo com isto, mas penso que é fundamental
que existam, durante algum tempo. Isto porque, enquanto a sociedade não
conseguir mudar seus preconceitos, é um espaço que permite que os excluídos
sobrevivam de alguma maneira, podendo expressar sua identidade sem maiores
coibições (Haesbert, 2004, p. 361).

No caso das travestis, há uma ‘ditadura da noite’. Este espaço só é seu


durante determinado tempo (noite). De dia, estes mesmos espaços lhes são
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proibidos. Portanto, não funcionam da mesma forma que os guetos históricos,


31
como o de Varsóvia ou dos leprosos brasileiros . Estes eram validados pelo
Estado; havia um espaço demarcado para a população excluída, que ali podia
viver durante todo o tempo, e não apenas em determinado momento do dia ou
noite. Os guetos, portanto, eram espaços que separavam os ‘de dentro’ e os ‘de
fora’ (Haesbart, 2004). Nas ‘´pistas’, há uma precária territorialização, já que
existe uma reclusão socioespacial (Haesbart, 2004, p. 372).

31 O gueto de Varsóvia foi criado para os judeus na Alemanha, na época da I


Guerra Mundial. Havia muros em volta do gueto e sentinelas no portão de
entrada. Dentro, não havia a violência do resto da sociedade; havia certa
‘segurança’ para os judeus, dentro dos muros. Não havia o contato com os ‘de
fora’; os excluídos judeus só mantinham contato com aqueles quando saiam
para trabalhar, ao amanhecer. Os guetos dos leprosos (segundo o mestrando
Marcelo Martins, em palestra realizada na PUC-Rio, em 2008) eram semelhantes.
No entanto, foram idealizados para que os leprosos não saíssem de dentro dos
guetos em momento algum. Eram construídos em locais remotos do Brasil;
possuíam igrejas e comércio próprios; até mesmo a moeda que lá circulava não
tinha valor fora do leprosário. Os excluídos nem mesmo saiam para votar; havia
agentes do governo que pegavam suas identidades e votavam por eles,
devolvendo-as depois.
64

3.6.1. Guetos LGBT

Os guetos das travestis já são diferentes; não possuem esta peculiaridade


que difere os que são “de dentro” e os que são “de fora’. Elas não possuem neste
sentido um território próprio, legitimado pelo governo ou mesmo pela sociedade.
Sua pertença se dá quando estes territórios não são de valia para a sociedade; são
as ruas escuras e os becos desertos. Há também outros locais isolados, como o
32
caso do Museu do MAM, na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro . De dia,
respeitado centro cultural, com exposições de artistas (músicos, escritores,
pintores) nacionais e internacionais. À noite, no entanto, transforma-se em local
aonde ocorrem orgias ao ar livre, geralmente de 1h até 4h da madrugada. Orgias
homossexuais geralmente, aonde os excluídos se encontram. Geralmente, os
“atores” são os mais excluídos; as travestis mais velhas e menos ‘femininas’, os
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homossexuais mais pobres e que têm raras oportunidades de flertar, que não
aquelas horas da madrugada.

No entanto, não há unanimidade, entre o público LGBT, sobre os guetos;


muitos homossexuais os rejeitam (MacRae, 2005). Para eles, são espaços de
segregação, de não-inclusão. No entanto, mesmo sendo assim, são pelo menos
espaços possíveis enquanto uma maior democratização dos territórios não for
feita. Nestes guetos, há possibilidades concretas de vivência identitária
homossexual que não seria possível fora dali; estas vivências podem cristalizar
uma identidade, até o ponto em que o excluído se sinta apto a conquistar outros
espaços.

Na década de 1090, era muito conhecido um local de Botafogo (bairro da


zona sul carioca), no cruzamento das ruas Visconde Silva e Real Grandeza, como
sendo o ‘Baixo Gay’. Um espaço que se resumia a aproximadamente um
quarteirão, era formado por boates e barzinhos com a temática homossexual. Nas
noites de sexta-feira e sábado, dezenas de homossexuais, das várias vertentes, se
reuniam ali para conversar, para flertar e mesmo para ter relações sexuais, já que

32Estes dados apareceram na fala de duas travestis, por mim entrevistadas, em


2008.
65

havia quartos especialmente reservados para isso. Era tamanha concentração de


pessoas, que havia dificuldade para passar de carro pela rua, visto que a multidão
ocupava, além dos estabelecimentos, as calçadas e a rua.

Atualmente, não existe mais o Baixo Gay; os bares especializadas para o


público LGBT estão fechados. No entanto, foi este gueto em particular que
propiciou o surgimento do Disque-Denúncia Homossexual. Foi ele que permitiu
um sentimento de pertença a uma comunidade e uma auto-estima necessária para
se evitar as agressões homofóbicas e efetivamente criar um projeto social novo.
Fato parecido aconteceu nos EUA, em 1968: foi o conhecido movimento de
Stonewall. Este bar estava localizado em um gueto gay; era comum, no entanto,
que os homossexuais ali presentes sofressem violência por parte dos policiais, que
ali invadiam com a desculpa de procurarem por drogas em estabelecimentos.
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No entanto, em certa noite de junho, houve o funeral da atriz americana


Judy Garland (Johnson, s/d), protagonista de um dos filmes mais conhecidos de
Hollywood, O Mágico de Oz. A personagem que interpretou, Dorothy, ficou
famosa por cantar Over the rainbow, cujo tema era o de um tesouro embaixo do
arco-íris. Ela era um ícone da comunidade gay; milhares de homossexuais se
reuniram em seu enterro (que foi realizado nos arredores do bar Stonewall).
Talvez, por ter a temática do tesouro no final do arco-íris na canção-título do
filme, tenha remetido a população gay da situação desejada de aceitação da
diversidade. Não por coincidência, é justamente o arco-íris o símbolo
internacional do movimento LGBT: a junção de todas as cores num só fenômeno,
simbolizando a sociedade, formada pela diversidade sexual.

Naquela noite, havia centenas de homossexuais nos arredores do bar. Com


esta força numérica, conseguiram criar estímulos para não aceitar a violência
sofrida e revidaram. O tumulto durou todo o fim-de-semana. Este foi o estopim
para entenderem que possuíam uma força numérica expressiva e que podiam não
ser violentados; mais que isso, que podiam ser respeitados. Deste movimento de
resistência, surgiram as primeiras Paradas de Orgulho Gay americanas (idem), que
inspiraram outros países, inclusive o Brasil.
66

3.6.2. Na ‘pista’

Segundo Haesbaert (2004, p. 344), o homem é ‘um animal territorializador’.


Portanto, tem necessidade de possuir algum território; pode produzir e habitar
vários territórios. Com as travestis, não é diferente; há uma necessidade de
pertença não somente a um grupo social, mas também a um território.

No entanto, para as travestis, são reservados apenas territórios que são


espacialmente fragmentados; refiro-me aos locais em que fazem ‘programa’,
denominados de ‘pista’. São fragmentados porque não são únicos delas;
geralmente, tem que dividir seus territórios com prostitutas mulheres e
barraquinhas de vendas. Além disso, também há a fragmentação temporal; esses
espaços são seus apenas à noite/ madrugada, não podendo sê-lo durante o dia,
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quando são territórios de outros atores sociais que não lhes permitem a estadia. É
a ‘ditadura da noite’; há um campo demarcado no qual podem transitar (ás vezes
não tão livremente), mas que lhes é delegado apenas durante um período de
tempo.

Ainda segundo Haesbart (2004), há o fenômeno do multipertencimento. O


homem pode pertencer a vários territórios: o bairro aonde mora, o clube que
freqüenta ou o prédio no qual trabalha. Para as travestis, este multipertencimento é
vedado; pelo menos no espaço concreto. A elas, cabe apenas o espaço da ‘pista’,
apenas a noite. Durante o dia, parecem desaparecer; refugiam-se em pensões
antigas e pobres. Há, no entanto, a possibilidade de existência nos territórios
virtuais, em que não há espaço físico delimitado: a Internet. Percebe-se cada vez
mais travestis ocupando páginas de blog, Orkut e chats de conversa on-line.
Mesmo contatos com possíveis clientes para eventuais programas, têm aumentado
via-internet. No entanto, isto é muito pouco, para qualquer ser humano. Há uma
necessidade de conquistar novos territórios.

O território da ‘ batalha’, nomeado de ‘pista’, constitui-se na delimitação e


apropriação de um determinado espaço (geralmente alguns quarteirões de uma
rua). Estas demarcações não são formais; existem de forma simbólica, durante
determinada parte do dia. Neste território, desenvolvem-se laços afetivos entre os
67

excluídos, formando uma identidade cultural de determinado grupo; aprendem as


posturas do grupo, os modos gestuais, como reconhecer e interpelar os possíveis
clientes. Este gueto em que vivem seria então transformado em território; o
estigma que sofrem passaria a ser orgulho (Louro, 1996, p. 542).

Ocorre uma dinâmica que é peculiar do grupo; embora não se perceba


claramente, estes territórios são marcados por uma espécie de ‘campo de força’,
que delimita um grupo interno que tem identidades coesas, em relação a grupos
externos. As travestis não possuem identidades tão coesas assim, mas possuem
uma identidade mais ou menos identificável, dentro de alguns parâmetros, como o
modo de se vestir, de agir, de falar. Há laços identitários, com um conjunto de
normas tácitas de conduta para quem vive nos territórios. Para participar, o
indivíduo deve ‘aderir a um sistema de valores produzidos culturalmente, um
conjunto de normas identitárias para cada território’ (Louro, 1996, p. 543). Cada
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indivíduo deve agir de acordo com as regras instituídas, embora elas sejam,
muitas vezes, conhecidas apenas pelas travestis.

Na ‘pista’ é possível que a travesti estruture sua identidade trans, no contato


com outras travestis:

“A identidade forma-se num processo de socialização, por


meio do qual o sujeito se integra num determinado sistema
social através da apropriação de ‘generalizações
simbólicas’ (idioma, visões do mundo, regras de
comportamento etc.) Nesse processo, é fundamental que o
indivíduo aprenda a interiorizar ou internalizar essas
estruturas simbólicas” (idem, p. 545).

A formação da identidade trans se dá, então, quando há a interação da


recém-travesti com outras.
68

Portanto, estes locais de prostituição não são apenas locais aonde


conseguem renda; é também aonde há a sociabilidade, a possibilidade de trocas
amorosas e matrimoniais, e aprendizado do ser trans.

A ‘pista’ é um dos poucos locais em que as travestis conseguem ser


admiradas e elogiadas (Kulick, 2008, p.21). Em outros locais, geralmente são
humilhadas ou expulsas (como em mercados ou shoppings). É durante a ‘batalha’,
que elas conseguem a realização de serem apreciadas e desejadas; os homens que
as rejeitam durante o dia, em outros espaços, são aqueles que ‘sob o manto
anônimo da rua, ocultos no interior dos carros, em becos escuros ou em quartos de
hotel (...) podem elogiá-las’ (Kulick, 2008, p. 21).

São locais fundamentais no processo do travesti construir-se:


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“É apenas na prática da prostituição que elas conseguem um tipo


de organização grupal capaz de ser reconhecida e identificada
socialmente. Embora haja organizações não-governamentais em
que a participação das travestis ocorre, a visibilidade do grupo é
constituída pelos espaços apropriados pela atividade da
prostituição” (idem, p. 31).

Há uma lógica nesta fala; até o presente momento, os locais de ‘batalha’ são
aqueles em que se legitimam as travestis. Há um interdito em relação à sociedade
heteronormativa, que impede sua aceitação na sociedade. No entanto, elas são
objeto de desejos proibidos, por parte de indivíduos desta mesma sociedade que
interdita; é aí que se legitimam, que tem seu papel mais ativo.

Mas esta constatação pode ter efeito negativo; pode-se pensar que este
espaço é o único para elas, enquanto outros não seriam. No entanto, não é o único.
Podem ser criados outros espaços em que as travestis possam se socializar de
maneira diferente.
69

Pois o espaço da prostituição também é um espaço de exclusão, de não


garantia, de marginalidade; e a marginalidade mata. Mata porque não existe um
aparato de proteção que as salvaguarde de qualquer tipo de violência.

3.6.3. Humanização e simpatizantes

A maioria das mudanças sociais nas vidas das travestis foi realizada pelas
relações interpessoais que estabelecem com as pessoas que passam a conhecê-las;
ao aproximarem-se delas, passam a entender suas realidades. Passam a vê-las
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como seres humanos e não mais tanto como as caricaturas estigmatizadas que são
veiculadas pela mídia ou pela tradição homofóbica. Como aponta Peres (2005):

“(...) podemos perceber relações mais afetivas e respeitosas para


com a comunidade travesti, estabelecendo novos diálogos e
novas impressões a respeito do modo de vida travesti, na
medida em que alguns familiares, amigos e pessoas ligadas às
esferas da educação, da saúde e outros setores sociais, passam a
respeitar esses modos de existência” (Peres, 2005).

Um exemplo que foi presenciado por mim foi o da fala de Alexandre


Bortolini (coordenador do Projeto Papo-Cabeça, da UFRJ), quando da mesa-
redonda promovida pela UFRJ (realizada na sede do Teatro do Oprimido, na
Lapa) em dezembro de 2008. Ele teceu elogios públicos à travesti Majorie,
presente no evento; falou sobre sua excelente atuação como professora durante
aulas, em escolas públicas, que versavam sobre a diversidade sexual (como parte
do Projeto Papo-Cabeça, da UFRJ). Teriam sido, segundo ele, as melhores aulas
70

ministradas no segundo semestre de 2008. Outros participantes do grupo


concordaram com ele.

Outro exemplo pode ser visto no livro Toda Feita (Benedetti, 2005). Neste,
há o relato de um policial que, a princípio homofóbico, passa a conhecer travestis
nas noites. Com o tempo, percebe sua humanidade e passa mesmo a dar dinheiro
para que elas comessem sanduíches, durante o período em que se prostituíam.

Como relata a médica de família, Valéria Romano (2008), que trabalhava


com travestis na Lapa: há uma modificação de comportamento em relação às
travestis, depois que se passa a conhecê-las. A médica é responsável por um grupo
de estudantes de medicina, da Universidade Estácio de Sá, que se encontra com as
travestis, uma vez por semana, para tratamento e prevenção de DST. Há alguns
relatos de estudantes sobre o ocorrido. Um deles:
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“Elas tem tantas dúvidas sobre saúde, pareceram tão


interessadas em tirar dúvidas. Pensava que viviam mais
largadas, que não ligassem para nada, me senti útil. Foi bom”

Quanto mais desinformação sobre elas, maior será o preconceito (Peres,


2005); por isso, a relevância de cada vez mais estudos sobre esta população, que
envolvam não só o aspecto da prostituição e outros já relatados, mas também
aspectos que permitam a conscientização da humanidade das travestis.
4. Religião

Um exemplo famoso do uso da religião como tentativa de mudança social


foi a da Teologia da Libertação, que teve em Leonardo Boff um dos seus
expoentes. Esta foi, inclusive, usada como base para que se repensasse a Teologia
Moral Cristã sobre a questão homossexual (Leers; Traferetti, 2002). Dai, surgiu a
noção da necessidade da inclusão religiosa.

É incompleto o entendimento de como funciona a sociedade sem perceber a


importância da religião como um de seus fatores estruturantes. Ela pode ser
instrumento de inclusão ou exclusão de segmentos da sociedade. Logicamente, em
si mesma não é nem uma nem outra; a forma como é praticada (e ensinada) é que
a torna uma das duas opções. Portanto, a inclusão ou exclusão se dá não na
religião em si, mas na forma com que os grupos religiosos atuam, desenvolvendo
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seus valores, sua visão da moral e do mundo.

Grupos religiosos (principalmente os cristãos) tem, como base,


ensinamentos que entendem como universais e imutáveis. Quem discorda destes,
passa a ser ´herege´, excomungado ou algo parecido; excluído, poderíamos dizer.
A partir de uma leitura literal das escrituras teológicas (seja da Bíblia, seja de
qualquer outra), terminam por alijar vários segmentos sociais. Temos como o
exemplo das mulheres na tradição cristã, que não têm direito a presidir a
celebração das missas.

Uma leitura literal dos textos sagrados, aliada a uma visão patriarcal,
excluem as mulheres da Igreja, de uma forma mais ampla. Com os homossexuais,
dá-se de maneira semelhante, embora a exclusão seja não por condição social e
sim por ser um pecado, algo que seria intrinsicamente errado do ponto de vista
teológico. Baseada em algumas passagens bíblicas, exclui-se o homossexual de
qualquer participação possível em ritos ou vida religiosa. Entre elas, uma das mais
conhecidas:

“Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher; isto é uma


abominação”, do Livro de Levítico - 18:22 - parte do Antigo Testamento (Bíblia
Sagrada, 1982).
72

Passagens como esta reforçam o posicionamento da nossa sociedade; o


discurso religioso aqui usado (de que a homossexualidade é passível de
condenação) é retirada diretamente da Bíblia e se torna um alicerce e mesmo um
último bastião usado por quem deseja a exclusão deste ou de qualquer outro
grupo. A religião passa a ser uma fundamentação ideológica para que se pratique
a exclusão. Mas ela também pode ser usada para permitir a inclusão social. Pode
ser usada como ponte para uma maior auto-estima, uma autonomia que leve a
entender que essas pessoas possuem direitos.

Vários autores escreveram sobre a importância do fenômeno religioso na


vida humana. Há mesmo um consenso sobre a predisposição inata da
religiosidade. Entre os autores, destaco Jung (1971), Kierkgaard (2004), Durkeim
(1970), Rousseau (Budó, s/d) e Kant (2004). Não me proponho a discutir a fundo
o que cada um deles escreveu; também não penso que a religião discutida tenha o
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mesmo significado para todos. O que pretendo mostrar é que grandes pensadores,
de diferentes setores, perceberam (e discutiram) a importância desta para o
entendimento do homem e da sociedade.

Jung (1971) defendeu que a dimensão religiosa é condição imprescindível


para a existência e realização humana. Pensava que a religião estava centrada nas
necessidades pessoais do ser humano e seu uso potencializava o desenvolvimento
humano, não apenas em relação a si, mas em relação a sociedade como um todo.

Kierkgaard (2004) também pensou a dimensão religiosa como sendo sine


qua non para uma construção saudável da existência humana, frente ás
experiências boas ou ruins pelo qual passa o ser humano.

Durkheim (1989) entendia a religião como um fenômeno social, tendo nesta


tanto a sua origem como natureza. É a representação dos valores, dos princípios
morais fundantes da sociedade.

Rousseau (Budó, s/d) admitia a existência de uma religião natural e uma


força superior que moveria o universo, que poderia ser chamada de Deus, estando
relacionada à inteligência, bondade e justiça. Seria o temor a Deus um dos
73

motivos que fariam com que o ser humano se comportasse de forma a respeitar
seu semelhante.

Kant (2002) também acreditava na existência de um ser que teria criado o


universo.

A religião, como elemento de inclusão social para as travestis, não foi


suficientemente investigada (Pereira, 2004). Por que, se é uma possibilidade de
reintegração do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade? Há exemplos de
pessoas que “tiveram um melhor convívio social” após “sua inclusão na
comunidade religiosa” (Idem). Portanto, esta tem, em seu bojo, um poder de
mutação das realidades sociais.

Se em outras instâncias, como a escola, o indivíduo não tem como afirmar a


sua identidade, já que esta é vista como antinatural e negativa, pode buscar na
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religião esta afirmação, dando um significado para a sua vida dentro da sociedade.
A religião tem um poder de integração social (Bourdieu, 1998). Este poder
poderia possibilitar a inclusão da travesti em um determinado grupo social?

Outro aspecto importante da religião é que esta ajuda o indivíduo a vencer


os desafios e sofrimentos da vida. Um exemplo dado por Pereira (2004) é o da
pesquisa que realizou com mulheres pobres que alcançam “esperança e um novo
sentido para a vida” (idem), após o ingresso em uma instituição religiosa cristã.
Tratava-se de um grupo de mulheres de classe pobre, que encontraram na religião
forças para suportar as dificuldades e os obstáculos em suas vidas. Durante a
minha pesquisa, esta hipótese surgiu; decidi investigar o tema, tomando-o como
objeto desta dissertação. Como as entrevistadas relataram pertencer a diversas
religiões, estudei a visão destas sobre a homossexualidade e, mais
especificamente, sobre a travestilidade.

4. 1. Posicionamentos das religiões sobre a homossexualidade

4. 1. 1. Religiões cristãs tradicionais


74

4. 1. 1. 1. Religião Católica Apostólica Romana

A religião católica não aceita a prática do homoerotismo. Embora não se


pronuncie sobre a sua causa, prega que os homossexuais devam praticar a
abstinência.

Assim se expressa, no Catecismo da Igreja Católica (Catecismo da Igreja


Católica, s/d) sobre a homossexualidade:

“Parágrafo 2357 (...) Sua gênese psíquica continua amplamente


inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os
apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou
que “os atos de homossexualidade são intrinsicamente
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desordenados”. São contrários à lei natural. Fecham o ato


sexual ao dom da vida. Não procedem de uma
complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum
podem ser aprovados.

Parágrafo 2358. Um número não negligenciável de homens e de


mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente
enraizadas. Esta inclinação objetivamente constitui, para a
maioria, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito,
compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de
discriminação injusta”.

Sobre o comportamento ‘adequado’ dos homossexuais cristãos:

“Parágrafo 2359. Estas pessoas são chamadas a realizar a


vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao
sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem
encontrar por causa de sua condição. As pessoas homossexuais
são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio,
75

educadoras da liberdade interior, às vezes pelo apoio de uma


amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental,
podem e devem se aproximar, gradual e resolutamente, da
perfeição cristã”.

Portanto, segundo constatam Leers e Trasferetti (2002):

“A idéia central é esta: a natureza humana é heterossexual.


Homem é para mulher e mulher é para homem. Ambos se
destinam ao matrimônio e esse à procriação.
Consequentemente, atos homossexuais são contrários à natureza
e contra a lei que se baseia nela. Dentro do pensamento
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teológico, essas idéias existenciais são relacionadas à esfera


religiosa, Deus, criador do homem e da mulher, de modo que
atos homossexuais entram no circuito do pecado e da
condenação, sem exceção nenhuma” (ps. 9-10).

A homossexualidade passou a ser identificada com pecado contra a natureza


com São Tomás de Aquino (Filho, 2000); assim, contrária à natureza estipulada
por Deus, seria também contrária aos próprios desígnios divinos:

“A relação entre pessoas do mesmo sexo alteraria a ordem


natural do universo, colocando o homem no lugar da mulher e
vice-versa, e impediria a procriação, o que seria o fim natural da
sexualidade” (idem, p.120).
76

Assim, qualquer ato sexual deveria ser para a procriação (além daquele
realizado nos períodos infecundos, como controle de natalidade33); apenas o
heterossexual seria visto como ‘natural’, sendo, todos os outros, aberrações que
deveriam ser evitadas e, quando descobertas, punidas:

“O importante é que com santo Tomás de Aquino, a


homossexualidade deixou de ser o que fora até então, um
pecado ligado a outras formas de fornicação, tão grave como o
sexo fora do casamento e menos que o adultério, para tornar-se
uma falta de enormidade sem tamanho, odiado pela maioria e
um dos comportamentos mais severamente reprimidos pela
Igreja (...) os atos homossexuais deixaram de ser vistos como
um pecado menor, uma simples fornicação, ou um excesso de
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sensualidade praticado por pessoas educadas e clérigos, e


transformou-se num pecado gravíssimo, nefando, que sequer
deveria ser mencionado” (Filho, 2000, p.121).

No entanto, embora na ‘contramão’ da doutrina católica oficial, há padres


que acolhem a homossexualidade como uma sexualidade possível e não como um
pecado. Parece mesmo haver cada vez mais sacerdotes defendendo este ponto e
propondo uma maior inclusão por parte da Igreja Católica.

O Padre italiano, Cardeal Martini, assim se declarou, em 2008:

“Entre os meus conhecidos há casais homossexuais, homens


muito estimáveis e sociáveis. Jamais me foi perguntado e nem
me teria vindo em mente condená-los” (Diversidade Católica,
2008).

33Segundo o professor Luis Corrêa Lima, durante orientação realizada em 2008,


na PUC-Rio.
77

Já o Padre Chris Glaser (Leeds; Trasferetti, 2002), por exemplo, defende


abertamente a homossexualidade como uma orientação possível e devendo ser
aceita socialmente. Chega, inclusive, a destacar a orientação homossexual como
um carisma, positivando-a em relação á heterossexual, no livro de sua autoria,
Coming Out as a Sacrament, de 1998 (Igreja da Comunidade Metropolitana,
2008). Neste, afirma mesmo que a descoberta e aceitação da homossexualidade
pode ser comparada a um Sacramento, como o Batismo. Segundo ele, Deus faz
um chamado às pessoas LGBT para viverem em plenitude sua homossexualidade;
deve-se, inclusive, abandonar a identidade anterior, a ‘falsa’ heterossexual.
Convida, pois, às pessoas homo para ‘saírem do armário’ (Leeds; Trasferetti,
2002).

No Brasil, um desses expoentes é o Padre José Trasferetti, da paróquia de


São Geraldo Magela, em Campinas. Seu trabalho teve início quando teve contato
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com travestis que moravam na paróquia. Era a época em que o tema da Campanha
da Fraternidade (que muda de ano para ano) era “Fraternidade e os Excluídos”,
em 1995. Começou a freqüentar as casas de paroquianos gays e travestis.
Percebeu que eram fervorosos católicos: tinham imagens de santos católicos
espalhados pelas casas, rezavam o terço, faziam orações diárias. Constatou como
era dura a situação das travestis, em particular; e de como tinham vontade de
continuar pertencendo à Igreja Católica. Fundou então a Pastoral dos Excluídos,
cujo foco era basicamente na população gay. Ficou conhecido em todo o Brasil,
como o padre fundador da Pastoral Gay, embora este título não seja correto.

Celebra, até os dias de hoje, missas com a participação de travestis. No


primeiro momento, o fato causou estranhamento na população local; no entanto, a
aceitação veio com o tempo e já não escandaliza como antes. O Padre Trasferetti
escreveu alguns livros, dentre os quais cito Pastoral com Homossexuais (1998),
aonde descreve o início de sua Pastoral e como foi a experiência com os
homossexuais e travestis. Outro livro, em parceria com o sacerdote franciscano
Bernardino Leers (2002), tem um tom mais acadêmico; escrito de maneira menos
informal, discorre sobre a Teologia Moral Católica. Neste, questiona os
ensinamentos tradicionais e contesta a visão de pecado homossexual que
supostamente estaria contida em textos bíblicos.
78

Há também o padre salesiano José Gonçalves (Leers; Transferetti, 2002),


que é psicólogo e sociólogo. Segundo ele, há três tipos de homossexualidade:

- aquela em que há uma revolta contra o sexo oposto;

- a transitória, na qual há curiosidades no campo da sexualidade, sendo que


passaria com o tempo;

- a com tendências homossexuais, que provavelmente teria uma explicação


na genética (o gene gay).

Enquanto a primeira causa poderia ser passível de tratamento psicológico,


visto que não seria uma homossexualidade ‘verdadeira’ e sim causada por
neurose, a terceira seria ‘normal’ e poderia ser aceita pela Igreja. Baseia-se no
seguinte argumento: se o heterossexual tem o direito de ter relacionamentos
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sexuais com o sexo oposto, porque o homossexual também não poderia com
aqueles do mesmo sexo, já que haveria uma origem genética, sendo, portanto,
natural?

Há também padres que defendem a necessidade de que sejam criados ‘pólos


missionários’ para os homossexuais; pastorais reconhecidas pela Igreja, aonde
houvesse um trabalho de acolhimento deste público. Entre eles, o Padre Pedro C.
Cipolini (Campinas) e, fora do Brasil, o Padre Domenico Pezzini, de Portugal.
Nestes centros, o homossexual poderia encontrar com seus semelhantes sem que
houvesse a necessidade de ocultar sua identidade homossexual.

4. 1. 1. 2. Religiões reformadas34

As igrejas reformadas também condenam o homoerotismo. Sobre o assunto,


o líder que pensou a Reforma Protestante, no séc. XVI, Martinho Lutero:

34No Brasil, há várias denominações para estas igrejas. Neste texto, usarei as
denominações usadas pelos próprios entrevistados, isto é, igreja reformada
protestante ou igreja evangélica.
79

“Por isso, cada qual tem que aceitar o corpo tal como Deus lho
criou, e não está em meu poder transformar-me em mulher, e
não está em teu poder transformar-te em homem. Tal como fez
a ti e a mim, assim somos: eu um homem, tu uma mulher
(Gomes, 2006, p. 14)”.

De acordo com os preceitos dos evangélicos, a homossexualidade é causada


por uma incorporação de demônios. Portanto, o homossexual precisa ser
exorcizado e curado.

“O propósito de Deus é a família. A primeira sociedade. A


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prática homossexual é desnatural, condenável. A Bíblia diz isto


em Levítico 2:13. Vemos também em Romanos 1:26-27, em
Apocalipse 21:27 e I Cor. 6:1. Vemos homossexualismo como
uma desordem sexual causada por problemas emocionais onde
Satanás ataca poderosamente, pois leva-se em conta que o
viciado, depois de certo tempo, arruma variadas desculpas para
justificar o seu ato e se recusa a reconhecer o próprio erro como
fulminante, da mesma forma que age o alcoólatra e outros mais.
É um desvio, um vício, uma perversão, um comportamento
adquirido. Quando um lar é embasado no amor sólido um pelo
outro, com certeza os filhos não terão anormalidades”.

Há um caso conhecido de uma suposta “cura” da homossexualidade através


de exorcismo. Ocorreu com a travesti Sandra Le Baron, que atualmente retomou o
nome masculino, Pedro. Atualmente, ele é pastor, casado e tem três filhos. Sua
história é relatada no livro O Diamante (Bravo, 2001). Travesti desde os doze
anos, encontrou a sua conversão na igreja. É particularmente interessante a parte
do relato em que ‘se liberta’ da homossexualidade. Está sentada no primeiro
banco da Igreja e:
80

“(...) sentia-se isolada na multidão que ali estava. O líder


religioso começara as orações e os louvores eram entoados. De
repente, Sandra começa a espernear dando cabeçadas por todo
lado. Puxa os cabelos. Os membros da Igreja começam as
orações em prol da vida ali estendida no chão a rolar, a urrar.
Passam-se alguns segundos e eis uma nova cena a surgir. Todos
gritam, admirados: -É homem, não é possível! É Pedro quem
retorna. Dona Ana Maria procura uma fita para amarrar-lhe os
longos cabelos, mas não acha. Resolve então tirar a fitinha
(marcador) de sua Bíblia e faz uso dela. Pedro agora sai do
Templo já liberto. Satanás é derrotado” (Bravo, 2001, p.46).
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Passados alguns dias, Pedro encontra um rapaz, que se oferece para cortar
seus cabelos longos, resquícios de sua ex-identidade travesti agora ‘liberta’: “Ao
primeiro corte, caiu a primeira potestade e assim foi até o final, caindo uma e mais
outra e legiões foram saqueadas” (idem, p.37). Portanto, uma alma foi
‘conquistada’ e a legião, exército de Satanás, perdeu um membro. Anos depois,
encontra uma moça, com quem se casa. Após algum tempo, “a sucata
transformada presenteia sua esposa com três santidades: Daniel, Débora e
Samuel” (ibidem, p.58).

4. 1. 2. Candomblé e umbanda

As religiões afro-brasileiras são as mais inclusivas, neste sentido. Aceitam


os homossexuais, mas com algumas reservas. Por exemplo, nos terreiros, os
homossexuais (gays, travestis ou transexuais) devem vestir-se de acordo com o
seu sexo biológico (e não seu gênero). Por que uma aceitação maior? Nas
religiões afro-descendentes, entende-se que as entidades que habitam o mundo
espiritual assumem formas tanto masculinas quanto femininas:
81

- Oxalá, deus Criador, tem uma metade que é feminina; tem, inclusive, um
rapaz amante (segundo uma versão mítica);

- Logum-Edé, que se apresenta como másculo caçador, transforma-se (de


tempos em tempos) em ninfa que vive em águas doces;

- Iansã, embora feminina, veste-se com uma calça comprida, que fica sob a
saia.

Portanto, quem ‘possuir’ esses dois aspectos (masculino e feminino) teria


maior aptidão para transitar no mundo espiritual, servindo melhor como
receptáculo para as entidades ‘incorporarem’, já que elas por vezes assumem
aspectos femininos, às vezes masculinos. Embora aceitas nos centros, as travestis,
geralmente, tem que vestir-se de acordo com as convenções sociais, como relatado
em Seminário da UFRJ35 (2008); assim, vestem-se como homens (embora este
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caso não seja necessariamente válido para todos os Centros). Nos terreiros de
candomblé, acontece o mesmo. Como constatado nesta enquete do Orkut36, que
versava sobre entrada de travestis no Candomblé. Assim se pronunciaram os
candomblecistas, em relação ao tema:

“- Aqui no RJ tem um travesti quer coloca baiana (...) mas não


concordo com isso (Marcos)”.

“- Um travesti pode ser ekedi37? Jamais o será em uma roça de


respeito... (Joana)”.

“- Na roça ele (a travesti) se veste normal... com as roupas que


deve usar (...) mas na roça a roupa que ele usa é as que são
permitidas...” (Marcos).

35Seminário Religião e sexualidade na contemporaneidade, realizado em 24 e


25 de setembro de 2008, no campus da UFRJ (www.ess.ufrj.br).

36É comum alguns sites da Internet, como o Orkut, promoverem enquetes nas
quais os membros de uma comunidade virtual discutem sobre determinado
tema.

37 Ekédi (ou ekedy) é um cargo feminino, com funções cerimoniais no terreiro.


82

“- Não sou preconceituosa de forma alguma (...) mas acho que


com relação a ogãns38 e ekedys, cada coisa no seu lugar! Nunca
vi uma ekedy travesti! E nem ogãn pelo menos na minha casa
não!” (Joana).

“- Nada tenho contra o homossexualismo, apenas não aceito


uma pessoa (...) dentro do terreiro, não aceito pessoas
travestidas (...) Eu não aceito isto em um terreiro por nada no
mundo (...) Não sou contra opção sexual, sou contra ... dentro
do de um terreiro... acho que tudo tem um limite...” (Breno).

Então, embora seja uma religião mais ‘aberta’, que não pretende a
estigmatização ou preconceito, na realidade não se mostra assim de acordo com os
membros. As travestis podem freqüentar sim, contanto que se adéqüem ao modo
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tradicional de vestimenta e de comportamento (heterossexual).

Portanto, parece equivocado pensar que ocorre uma aceitação plena, por
parte destas religiões afro, sobre as travestis. Se nem mesmo os homossexuais são
aceitos sem reservas, o que se dirá delas.

4. 1. 3. Doutrina Espírita

Há também certa aceitação por parte dos centros espíritas. Segundo a


doutrina espírita, através da reencarnação (volta das almas ao plano material), há a
possibilidade do karma. Este se baseia na lei da causa e efeito; no tempo presente,
uma ‘dívida’ de sua vida anterior seria saldada. Haveria um ‘resgate’ por um erro
causado em vidas passadas: “A inversão resulta, também, de expiação,
envolvendo Espíritos comprometidos em abusos sexuais” (IRC-Espiritismo,
2003).

38Ogân se refere a homens que tem funções no terreiro. Entre elas, tocar os
atabaques durante as celebrações.
83

Como exemplo: se uma pessoa nasce ‘invertida” sexualmente, ela poderia


estar ‘pagando’ por ter abusado sexualmente de alguém do sexo oposto, em
reencarnação passada. No caso das travestis ou transexuais, elas habitarem um
corpo que não condiz com seu gênero (corpo masculino e gênero feminino) pode
ser uma forma de pagamento deste karma. Os espíritas, ao entenderem desta
maneira, terminam promovendo uma maior aceitação das travestis e transexuais.

No entanto, não é algo necessariamente aceito por todos os espíritas, como


fica claro no texto abaixo, que propõe alguns questionamentos aos homossexuais:

“- Com que finalidade encarnou num corpo masculino, tendo


uma alma predominantemente feminina?

- A finalidade seria desenvolver em sua alma as características


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do gênero biológico masculino, da presente encarnação?

- Seria conveniente desperdiçar esta oportunidade, deixando-se


levar pelas tendências psicológicas inatas?

- A opção por manter uma vida homossexual representaria uma


recusa inconsciente de constituir família, gerar filhos e assumir
a missão de acolher Espíritos necessitados de reencarnação?

- Não haveria nessa decisão um traço de egoísmo, de falta de


capacidade de dividir?

- A opção pelo homossexualismo não representa um sinal de


apego exagerado às sensações da matéria?”(IRC-Espiritismo,
2003).

Segundo a doutrina espírita, a própria pessoa escolhe a condição de vida da


próxima encarnação: se será homem, mulher, heterossexual, homossexual e em
qual família encarnará. Portanto, a escolha por nascer (reencarnar) homossexual é
escolha do próprio indivíduo. Essa pessoa escolhe a forma que melhor se adequar
para ter evolução espiritual. Ela então pode ‘escolher’ ser homo ou heterossexual.
84

Não encontrei nenhuma lista de questionamentos acerca da condição de


reencarnação hétero, apenas na homossexual. Portanto, parece que esta última é
uma condição especial do ser humano, não ‘natural’ como a heterossexual.

Segundo o fundador do Espiritismo, Alan Kardec, sobre o homem atrasado


espiritualmente (que não alcançou certo nível espiritual):

“Mudando de sexo, poderá, pois, sob essa impressão e em sua


nova encarnação, conservar os gostos, as tendências e o caráter
inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas
anomalias aparentes que se notam no caráter de certos homens e
certas mulheres” (Revista Espírita, 1993, p.3-4).
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Também poderia ter outra causa. Um indivíduo poderia estar sendo


obsediado por um espírito que teria uma posição inversa à sua. Seria algo como
um ‘encosto’ homossexual. A vítima deste ‘encosto’ então passaria a ter práticas
homossexuais não porque fazem parte de sua natureza, mas sim por força de um
espírito de sexo oposto.

Este espírito de sexo oposto, que estaria obsediando o indivíduo, poderia,


em caso de uma interação intensa e que durasse bastante tempo duradoura, passar
a ‘sentir prazer sexual semelhante á sua vítima, pervertendo-se nesse campo e se
condicionando a uma vivência homossexual em uma próxima encarnação’ (IRC-
Espiritismo, 2003). Assim, o espírito obsessor, em próxima encarnação, passaria
ele também a ter sentimentos homossexuais; não por ser de sua natureza, mas por
ter se acostumado a isso, quando obsessor. Seria um ‘tiro pela culatra’(idem)!

A seguir, apresento alguns textos, nos quais autores espíritas problematizam


a questão homossexual. No tocante à causa da homossexualidade, Raul Teixeira,
Doutor em Educação, escreve (1994):
85

“Proveniente dos recônditos da alma, onde se alocam


reminiscências de desrespeito e de crimes hediondos, cometidos
contra as leis morais que são presentes nas consciências
humanas, ou, por outro lado, decorrentes de processos
educacionais deletérios que se apoiaram em inclinações morais
deficitárias, ainda não suficientemente amadurecidas para a
verdadeira liberdade, os dramas homossexuais têm lugar na
intimidade das criaturas, largamente. Motivados, ainda, por
terríveis programas obsessivos, que antigos inimigos
desencarnados engendram por vingança ou, ainda, decorrentes
de perturbações psiquiátricas não devidamente diagnosticadas,
explodem quadros homossexuais, aqui e acolá (...)
Desembocam no estuário dos conflitos da homossexualidade
infindáveis gravames (...) provenientes de passadas
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encarnações, quando o abuso do próprio corpo e dos corpos


alheios, a agressão à própria constituição emocional e às
constituições alheias determinaram os torturantes quadros de
agora, na esfera da sexualidade (...)” (p.73-74).

Como devem se comportar (Teixeira, 1994):

“Amar jamais será desaconselhável seja entre quem for. Não


obstante, o homossexual não necessitará mergulhar nos
pântanos da pederastia, tampouco as homossexuais carecerão
perder-se nos viscos do lesbianismo, nas voragens da relação
carnal. Se um companheiro ou uma companheira percebe em si
as inclinações homossexuais, que procure identificar nisso os
gritos da expiação, induzindo à educação para que a vida seja
vitoriosa” (p. 75).

Sobre a castidade, assim se expressa o psiquiatra Jorge Andréa (1979):


86

“Para o homossexual existirá necessidade intransferível de


vivência na castidade construtiva, a fim de encontrar a harmonia
para as futuras formações corpóreas que as reencarnações
podem propiciar. Dúvida não pode haver de que cabe aos
homossexuais buscar sua reforma íntima, resistindo aos
arrastamentos instintivos e sensuais que os acometem (...)
Quem se omite ou finge não perceber graves problemas morais
na pederastia ou no lesbianismo, engana-se a si mesmo e
contribui para propiciar, por inação, terríveis males para o ser
imortal, com sensíveis repercussões na própria casa espírita.”
(Andréa, 1979, p. 35).

O bacharel em Economia e Administração, Eurípedes Khúl, assim se


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expressa sobre este ponto:

“Manter sob controle” é entender (...) que somente a abstenção,


agora, livrará seu portador de maiores problemas, já nesta,
quanto em vidas futuras (...) A oração, o Evangelho e a vontade,
juntos, darão ao homossexual outros prazeres, outras
compensações, pacificando assim o corpo e Espírito” (IRC-
Espiritismo, 2003).

Portanto, através da sublimação (conceito psicanalítico, em que há um


redirecionamento da libido para algo socialmente valorizado), o homossexual
conseguirá se livrar de “tão tormentoso débito” (idem).

Alguns exemplos de sublimação são dados, também por Khúl:

“o exercício continuado da caridade fará com que a tela mental


se reeduque, substituindo hábitos infelizes por amor fraternal ao
próximo; se as forças sexuais forem divididas entre estudo,
lazer e ações de fraternidade, elas se converterão em aspiração
87

evolutiva espiritual, anulando os impulsos deletérios do desejo”


(IRC-Espiritismo, 2003).

Sobre a lei natural, Imbassahy (idem) pensa:

“O homossexualismo como prática costumeira em detrimento


do hetero (sic) é pernicioso porque contraria a lei natural dos
seres vivos. Só as lesmas são bissexuais; isso deve ser
ponderado para análise.” (IRC-Espiritismo, 2003).

Sobre as conseqüências da homossexualidade, Pires (1987) escreve:


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“Se os abusos heterossexuais (ser dado à poligamia, a orgias, a


sadomasoquismo, a necrofilia, a pedofilia etc.) comprometem
nosso corpo físico e nosso equilíbrio sexual, que dizer das
práticas homossexuais? Tais condutas afrontam leis naturais
(leis de Deus, portanto) como a da reprodução, a da procriação
e a da continuidade das espécies, além de levar ao uso de certos
órgãos diversamente do que recomenda sua biologia, sua
fisiologia e sua concepção estrutural. O homossexualismo
também implica grave comportamento omisso diante da lei
geral da reencarnação. Se os casais homossexuais proliferam,
perdem-se valiosas oportunidades reencarnatórias, pois que
evidentemente não haverá procriação. Logo, menos Espíritos
poderão evoluir nas provas terrenas, o que repercute
negativamente sobre toda a humanidade” (p.31).

Sobre como proceder com os homossexuais, o autor Aras escreve que:


88

“(...) não podemos encarar o grave problema da


homossexualidade com despreocupação, cedendo apenas aos
apelos de uma conduta que se supõe politicamente correta (...)
O homossexual (como também o heterossexual desregrado) não
é um ser em equilíbrio espiritual. Ao contrário, tanto um quanto
outro quase sempre estão sob cerrado ataque fluídico negativo
ou em estrito conluio psíquico com entidades trevosas” (IRC-
Espiritismo, 2003).

E Khúl (idem):

“Os verdadeiros espíritas e os verdadeiros cristãos, que são a


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mesma coisa, sentem um enorme dó diante de uns e outros – os


homossexuais e os seus radicais detratores (...) Os
homossexuais não são passíveis de críticas, senão de
esclarecedoras luzes espíritas em suas sensíveis almas,
iluminando seu presente (...) A homossexualidade, seja
“provação”, seja “expiação”, sempre coloca seu portador em
situação delicada perante a sociedade, já a partir do lar. Em
casa, de nada adiantarão brigas entre os pais (...) Violência ou
ameaças contra filhos portadores da homossexualidade,
geralmente agravarão a convivência, tornando-a insuportável. O
confronto entre os costumes sociais e as exigências da libido já
expõe o homossexual a um penoso combate (...) Dificilmente,
sem ajuda externa, ele se livrará dos perigosos caminhos do
abandono do lar, da promiscuidade, dos tóxicos, da violência e
até mesmo do crime (...) Os pais (...) jamais condenarão o filho
ou a filha, mas também jamais deixarão de orientá-los quanto à
necessidade do esforço permanente para manter sob controle os
impulsos da homossexualidade (...)” (IRC-Espiritismo, 2003).

Khúl escreve ainda:


89

“Jamais faltarão mãos amigas para acolher “os filhos pródigos”


que retornarem à Casa do Pai, depois de terem morado algum
tempo em casas afastadas do Bem!" (IRC-Espiritismo, 2003).

Sobre como os religiosos devem proceder nos centros espíritas, em relação


aos homossexuais (Andréa, 1979):

“(...) cabe aos dirigentes das casas espíritas agir com tato para
vedar a participação de pessoas que se dediquem a práticas
homossexuais nos trabalhos do centro espírita, principalmente
nas tarefas vinculadas à mediunidade e á doutrinação. No que
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tange ao mediunato, muito grave seria permitir que uma pessoa


em desarmonia sexual se lançasse ao intercâmbio mediúnico.
Quantos processos obsessivos e interferências deletérias
poderiam daí advir? A lei de afinidade informa que semelhante
atrai semelhante. Evidentemente, isso não significa que se deve
afastar por completo o homossexual (e o heterossexual
desregrado) do trabalho doutrinário. Não, em absoluto (...) as
tarefas desses irmãos devem-se reduzir, durante determinado
período, à assistência a palestras, ao recebimento de tratamento
fluidoterápico e à participação em grupos de estudo
direcionados à compreensão da problemática sexual (...) para
sua própria edificação. Quando recuperados, podem, como
qualquer pessoa, integrar-se às atividades da casa espírita.”
(Andréa, 1979, p. 31).

A condição homo, portanto, seria condição direta de alguma ‘falta’ em outra


vida. Portanto, seria um pagamento, uma expiação. Não seria algo correto, visto
que entendem o correto apenas como a heterossexualidade. A homossexualidade,
sendo algo desvirtuada da ordem divina, não-natural, invertida, deveria não ser
apoiada e sim negada. Para os homossexuais, seria aconselhável a castidade e
90

nunca, em hipótese alguma, que os homossexuais deixassem aflorar qualquer


sentimento ou comportamento homo. Relações com outros iguais, então, nem
pensar. Caso isso acontecesse, poderia agravar ainda mais o karma, fazendo com
que, em outra encarnação, esta ‘inversão’ voltasse a ocorrer.

Além disso, há uma culpa embutida que, a meu ver, parece maior do que a
da religião católica. Enquanto nesta última, o homossexual estaria condenado
apenas a si mesmo, na espírita o homossexual estaria, através de sua prática,
impedindo que outras almas encarnassem; estaria impedindo que outras
evoluíssem. Além de condenar a si, também condenaria outras.

4. 1. 4. Budismo
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O Budismo prega que todos (independente de raça, gênero ou orientação


sexual) podem seguir sua filosofia. Não importa o exterior do indivíduo (como se
apresenta para a sociedade), mas seu interior, já que todos possuem potencial de
‘iluminação’ e podem atingir o estágio de ‘Buda’. Portanto, hétero, homossexual,
travesti ou de qualquer orientação queer são aceitos.

Em uma reunião a que tive acesso, em uma tarde de sábado de janeiro de


39
2009, foi constatado isto; todas as presentes aceitavam sem qualquer
discriminação a presença da travesti, Fiona, que ali se encontrava.

4.1.5. Wicca

Segundo a líder wicca Cynthia40, do grupo da Internet Wicca:

39A reunião (em um apartamento localizado na zona sul carioca) era destinada
apenas a líderes budistas femininas da cidade do Rio de Janeiro; portanto, não
havia homens, com exceção feita a minha presença. A reunião teve início com
recitação de um mantra por alguns minutos e, depois, houve uma discussão
sobre os planos e metas do grupo budista para 2009.
91

“A Wicca é uma nova forma de se praticar as antigas tradições


da bruxaria. Ao contrário do que a maioria pensa, não há nada
de mal nela; cultuamos a natureza em todas as suas formas de
vida com muito amor e respeito; acreditamos em mais de um
Deus e a maioria das tradições enfatiza a Divindade Suprema
como feminina, sendo a masculina seu complemento. Porém,
não acreditamos em diabo ou nada do gênero!

Todas as pessoas nascem bruxos e bruxas e todos podem ser


wiccanos, sem exceção. O caminho para entrar na Wicca não é
muito diferente de todas as outras religiões; primeiro, deve-se
entender as filosofias e práticas, encontrar pessoas que já fazem
parte desse círculo (cuidado com charlatães) e, finalmente,
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encontramos um Mestre, Sacerdote ou Sacerdotisa que já esteja


a um bom tempo dentro da religião e praticante, para ser
iniciado (a)”.

4.1.6. Religiões cristãs inclusivas

Embora a religião tradicional cristã (na vertente católica ou reformada) não


aceite a travesti (e os homossexuais em geral), há novas igrejas no Rio de Janeiro,
autodenominadas inclusivas. Estas têm como proposta o acolhimento, sem
discriminação, dos excluídos (por qualquer motivo que seja), principalmente por
sua orientação homoafetiva. Uma delas denomina-se Betel41, tendo sua sede na
Lapa, centro do Rio de Janeiro. Participam dela gays, lésbicas e transexuais. Até o
momento, não há travestis.

Igrejas como esta possibilitam uma rede para os excluídos, que passam a ter
o sentimento de pertença a uma comunidade, podendo criar um tipo de

40 Através de comunicação pessoal (email).

41 Betel, em grego, significa ‘Casa do Senhor (Deus)`.


92

solidariedade mecânica; fazem uma leitura crítica dos livros da Bíblia,


questionando as passagens que, historicamente, condenam os homossexuais.
Neste enfoque, analisam que alguns termos foram traduzidos de forma incorreta e
que certas prescrições são específicas para o povo judeu daquela época, e não para
gerações posteriores ou mesmo culturas diferentes. Faço aqui uma ressalva: o
termo igreja gay, ás vezes usado para denominá-las, não é correto. As igrejas
inclusivas têm como proposta o acolhimento de todas as pessoas, independente de
sua orientação sexual. No entanto, são igrejas reformadas, isto é, baseadas nos
princípios da Reforma Protestante, do século XIX. Diferem das católicas em três
aspectos básicos: não aceitação do culto aos santos, não aceitação do Papa como
líder supremo e divergências quanto à Eucaristia42.

As mais antigas inclusivas, no Brasil, são a Comunidade Metropolitana e a


Igreja Cristã Contemporânea.
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No entanto, mesmo essas igrejas inclusivas não possuem travestis entre seus
membros. A Igreja Contemporânea, por exemplo, segundo comunicado pessoal de
Natividade (2008), possui no momento apenas seis travestis. Em entrevista com o
Pastor Gladstone, da Igreja Cristã Contemporânea, em dezembro de 2008, foi
constatado que não havia nenhuma travesti atualmente. Havia apenas uma
transexual freqüentando a igreja regularmente.

4. 2. Novas leituras

Continuando a questão da discussão acerca da leitura literal de livros


religiosos, podemos acrescentar que alguns foram textos escritos durante os
últimos anos, sobre o acolhimento do homossexual pelas igrejas. Há, por
exemplo, o livro divulgado pela Igreja Contemporânea, A Bíblia sem preconceitos
(Gladstone, 2006).

42 No catolicismo, há a crença de que, na celebração da missa, o pão é


literalmente a carne e, o vinho, o sangue de Jesus. As igrejas reformadas
discordam; postulam que se trata apenas de uma simbologia.
93

Provavelmente, um dos primeiros a escrever sobre homossexualidade e


Bíblia, com uma proposta de releitura no século XX, foi o então padre católico
Daniel A. Helminiak (Filho, 2000). Sendo clérigo em Boston (EUA), teve contato
com adolescentes americanos que tinham sido expulsos de casa pela sua
orientação sexual. Começou então a estudar textos bíblicos que faziam referências
a homossexualidade; publicou O que a Bíblia realmente diz sobre a
homossexualidade, aonde tentava interpretar passagens bíblicas de forma não
literal (idem).

Esta forma se dava ao entender, juntamente com o texto, o contexto em que


fora escrito. Entendia que não se podia aplicar o texto a todas as épocas, visto que
era fruto de uma determinada época. Segundo Helminiak (Filho, 2000, p. 22), o
erro não estava na Bíblia em si, mas da forma com que as pessoas a liam, o que
terminaria por distorcer a verdadeira mensagem ali contida.
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Entre as passagens sobre uma suposta condenação da homossexualidade,


uma das mais citadas é a de Sodoma e Gomorra. Nesta, é narrada a história de
dois anjos do Senhor que foram à cidade de Sodoma. Lá chegando, foram
acolhidos na casa de Lot. Sabendo desta acolhida, homens da cidade foram até a
referida casa, bateram na porta e falaram que queriam ‘conhecer’ os estrangeiros.
A palavra usada (‘yadtha’, na língua hebraica) tinha a conotação de, além de
conhecer, ‘violentar sexualmente’. Lot, para proteger os visitantes, oferece suas
duas filhas para serem violentadas em seu lugar, mas a multidão não aceita a troca
e invade a casa. Acabam sendo cegados pelos anjos; Lot e sua família acabam
indo embora da cidade, que logo após é destruída por uma chuva de fogo e pedras.

É interessante que não se costume atentar para o comportamento de Lot, que


propôs a troca dos estrangeiros pelas suas filhas; mas não tratarei disto. Muitos
estudiosos interpretam esta passagem como se a destruição de Sodoma e Gomorra
(cidade vizinha) tivessem sido destruídas por causa da violência sexual contra os
estrangeiros; concluem que seria este ato, que denominaram homossexual, o
responsável pela destruição das cidades. Isto seria uma comprovação do ‘erro’ da
homossexualidade que atrairia a ira de Deus.
94

Esquecem-se (ou não sabem) que era um costume antigo a sodomização de


inimigos, como forma de acabar com a sua moral. Há inúmeras histórias sobre
soldados de exércitos na Antiguidade que sodomizavam (violentavam
sexualmente, com a penetração pelo ânus) os soldados derrotados, como forma de
humilhação. Isto não necessariamente comprova um ‘gosto’ homossexual; era
uma forma de violação, de humilhação, de constrangimento para com os
vencidos43. Portanto, a história dessas cidades não seria sobre sexo homossexual;
e sim sobre abuso (seja em qual forma aparecer) e desrespeito às regras de
hospitalidade para com os estrangeiros, vigentes naquela época. Provavelmente
esta regra de hospitalidade fosse tão importante, que Lot a colocou acima do bem-
estar das próprias filhas.

Há outro relato bem semelhante na Bíblia (1982), em Juízes, 19:22.


Também fala sobre um estrangeiro, Efraim, e sua concubina, que são acolhidos na
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casa de um velho senhor, na cidade de Gibéia. Os habitantes desta fazem a mesma


proposta de ‘conhecer’ este homem. O ancião se nega e entrega a concubina para
a multidão. Ela é estuprada repetidamente e morre devido aos ferimentos. A
cidade, posteriormente, é destruída, por causa da falta de hospitalidade com ela.
Portanto, aonde estaria a homossexualidade neste caso? Afinal, a violência sexual
foi heterossexual.

Há uma passagem específica sobre travestilidade na Bíblia; encontra-se em


Deuteronômio 22:5:

“A mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher;


aquele que o fizer, será abominável diante do Senhor, teu Deus”

Esta proibição acerca da travestilidade era uma forma de estabelecer os


limites de gênero. Há dois outros versículos, contidos em Deuteronômio 22:9-11
(idem), com um tom semelhante; não se deve colocar juntos bois e jumentos, e
nem juntar lã e linho na mesma roupa Seria uma referência (em contraposição) a
costumes dos povos pagãos daquela época. Os judeus, enquanto povo eleito de
Deus e, por isso, confessional, deveria se distinguir dos demais. A separação tanto

43 Segundo o Pastor Retamero, em palestra na Igreja Betel, em outubro de 2008.


95

de roupas quanto de animais seria então uma forma de distinção daquele povo em
relação aos demais, pagãos.

Além disso, naquela época a mulher era considerada um ser inferior.


Portanto, um homem que se vestisse como mulher seria rebaixado em sua
comunidade. Assim também, uma mulher que se vestisse com roupas masculinas
estaria elevando-se a mesma condição masculina; isto era impensável, pois
causaria descrédito aos homens.

Há outras passagens, como a da Epístola de Paulo aos Coríntios (Bíblia


Sagrada, 1982); no entanto, não irei continuar a interpretação destas para não fugir
do tema desta dissertação, que não é apenas sobre a religião cristã.

As interpretações não-literais concluem que não se poderia usar a Bíblia


para uma condenação da homossexualidade de forma honesta (Filho, 2000). As
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poucas referências não explicitam uma condenação de Deus à homossexualidade.

Outro ponto importante é que nos Evangelhos, Jesus não condena em


nenhum momento a homossexualidade; nem mesmo chega a comentá-la.
Portanto, se efetivamente fosse um pecado, provavelmente teria sido o assunto
abordado por Jesus (Leeds; Trasferetti, 2002).

Alguns sites (da Internet) foram criados, nesta década, em defesa da


homossexualidade e propondo questionar os posicionamentos oficiais das igrejas.
Entre eles, o Diversidade Católica; além de sites de homossexuais judeus,
budistas e testemunhas de Jeová.

Parece, portanto, haver uma maior aceitação da comunidade homossexual.


O que condiz com os aspectos da pós-modernidade: a aceitação de um campo
maior de possibilidades de escolha para o ser humano (Heilbornn, 1996). Assim,
haveria pelo menos um questionamento sobre a variedade da cultura humana;
assim, a diversidade sexual também poderia vir a ser aceita. Os dogmas rígidos de
estrutura de poder (principalmente religiosos) seriam menos aceitos, através de
críticas e questionamentos (Revista Mente, Cérebro & Filosofia, 2008). Assim,
exclusões radicais não seriam mais aceitas.
96

É neste sentido que Castel (2000) observa, quando fala sobre as exclusões,
que um subconjunto não pode mais ser aceito, o do extermínio (nesta era pós-
moderna):

“A modalidade mais radical de exclusão, a erradicação total,


parece impossível, exceto pela degradação absoluta da situação
política e social. Porém, é difícil que uma sociedade que tenha
guardado um mínimo de referências democráticas possa
suprimir puramente e simplesmente seus “inúteis ao mundo” ou
seus indesejáveis, como era o caso em outros tempos” (Castel,
2000, p. 43-44).44
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Portanto, é lícita a existência de um local aonde estes ‘indesejáveis’ possam


subsistir; daí, a emergência e consolidação dos guetos. Mas propicia que estes
guetos não sejam necessariamente estáticos, delimitados em determinado espaço,
como o eram os da Varsóvia (Polônia) ou o Baixo Gay, na rua Visconde Silva
(Brasil).

Parece haver possibilidade de que os guetos transcendam limites espaciais


demarcados, a partir do momento que os sujeitos excluídos conquistam novos
espaços e novos lugares, antes impensados. Um exemplo é o de travestis
participantes em mesas de Congressos (como da UERJ, em julho de 2008) e como
professores de discussão da diversidade nas Escolas cariocas, como o caso da
travesti Majorie Machi, do Grupo Diversidade na Escola45, ligado ao Projeto
Papo-Cabeça.

44 Castel (2000) identificou, na história da humanidade, três conjuntos de


excluídos: os que são vítimas de genocídio; os que vivem em espaços fechados
e isolados; os que possuem um ‘status especial’ e participam da sociedade,
embora tenha seus direitos restritos e só participem em algumas atividades
sociais.

45Projeto desenvolvido na Coordenação de Extensão do Centro de Ciências da


Saúde da UFRJ. Foi criado em 2005 (www.papocabeca.me.ufrj.br/diversidade).
97

Assim, a travesti sai cada vez mais dos espaços fechados; entra em
determinados círculos sociais ou culturais que permitam uma maior visibilidade;
com isso, uma maior aproximação com a sociedade. Isto permite a vivência de
que são seres humanos como todos os demais, embora com especificidades
diferentes, mas que não são negativas. Este processo permite uma humanização
das travestis, com o objetivo de maior respeito e menos inclusão perversa.

Os homossexuais podem sentir-se ameaçados de anomia; se aceitarmos a


hipótese de que a religião dá sentido à vida das pessoas, uma instituição religiosa
que tenha como foco o público homossexual pode dar esta nomia46. Para possuir
autonomia e obterem emancipação (visto que esta depende da primeira), tem que
possuir uma nomia.

Como alcançarão a emancipação, se não tem autonomia? Como possuirão


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esta última, se sofrem de anomia?

A religião (enquanto princípio de amor e tolerância) pode ser uma estrutura


que permita esta ‘nomia’ positiva para este grupo?

Embora a violência seja um elemento constitutivo da rua, como mostram


etnografias como as de Silva (1993), não é lícito, com este dado de realidade,
validar a violência como sendo condição para a vivência travesti. Com políticas
públicas e com uma maior humanização das travestis, esta violência pode passar a
ser considerada possível, mas não constitutiva. Esta violência é:

“praticada contra elas sempre cumpre a função de reforçar a


condição de abjeção, geralmente incidindo diretamente sobre os
signos de sua diferença: as marcas corporais e subjetivas que
atestam a recusa da norma” (MacDowell, 2008).

46 Nomia, no sentido de terem uma nomeação, uma identidade positiva.


5. A Pesquisa

A pesquisa teve como objetivo tentar entender como se dá a relação das


travestis com a religião; se aderem a alguma, se freqüentam espaços religiosos, se
são aceitas nestes. Este objetivo se deu após a leitura de estudos sobre a violência
e exclusão sofridas pelos sujeitos travestis, em livros como o de Silva (1993).

A pesquisa foi qualitativa. Para a coleta de dados, foram utilizadas


entrevistas semi-estruturadas, conduzidas por um roteiro. Estas variavam de
duração, de acordo com os entrevistados; em média, duravam cinqüenta minutos,
podendo se estender caso as travestis quisessem comentar mais detalhadamente
algum ponto específico.
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A pesquisa compreendeu dois momentos (concomitantes):

No primeiro, houve a pesquisa documental. Procurei livros e artigos


relacionados ao tema travesti. Os livros encontrados foram basicamente os
tratados de antropologia sobre o assunto, tais como Silva (1993) e outros.
Pesquisei artigos acadêmicos na Internet. Foram encontrados alguns que tratavam
sobre o tema, como o de Peres (2008); outros artigos que, embora não
inteiramente dedicados á temática acerca das travestis, discorriam sobre a
homossexualidade em geral e questões de gênero, como os de Butler (2003).
Também livros que discorriam sobre questões importantes na vida das travestis,
como as de violência e de exclusão (Por exemplo, Denizart, 1997). Li com maior
interesse a autora, Hannah Arendt, que discorreu de forma excelente sobre a
situação dos ‘inúteis para o mundo’ e defendeu a singularidade como aspecto
fundamental para a sociedade humana.

Entrei em contato com pesquisadores, que escreveram trabalhos acadêmicos


de graduação, dissertações e teses que resenhei, conforme visto em capítulo
anterior: Marcelo Natividade, por telefone; Larissa Pelúcio e William Peres,
através de e-mail (todos em 2008). Os contatos foram importantes; eles
indicaram-me outros pesquisadores, enviaram-me por e-mail dissertações e teses
recentes sobre travestis. Também pude, com eles, trocar algumas idéias sobre a
99

dissertação, pedindo-lhes opinião em alguns pontos, como por exemplo, se tinham


conhecimento acerca da participação de alguma travesti em igrejas inclusivas.
Foram perguntas sobre a relação travesti/ religião, primordialmente; se sabiam de
algum trabalho sobre o tema ou poderiam informar sobre a religiosidade das
travestis. Todos muito atenciosos. Também contatei dezenas de entidades, pela
Internet, como a AP (de judeus), a ASTRA-Rio, a ASTRA do Ceará e Arco-Íris.
As perguntas foram as mesmas feitas aos pesquisadores. Quase todas as entidades
responderam e-mails e mostraram muita cortesia comigo. Infelizmente, a maior
parte delas relatou ignorar dados sobre a questão travesti/ religião.

O segundo momento foi o de procurar indivíduos para as entrevistas.


Entrevistei três grupos: as travestis, os líderes religiosos e os freqüentadores dos
espaços religiosos (os leigos). Para cada um destes grupos, um tipo de entrevista
foi pensado, já que o enfoque das perguntas foi diferente.
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Foram entrevistadas quarenta travestis. As primeiras travestis entrevistadas


(cinco) foram usuárias de um Hospital Universitário no Centro do Rio. Já
conhecia algumas delas; possuía seus contatos, pois tinha realizado, com elas,
entrevistas para o curso de Atendimento à criança e adolescente vítimas de
violência doméstica. Fiz parte do Pré-Congresso GLBT e do Congresso LGBT, na
UERJ. Lá, conheci três travestis que me concederam entrevistas. Em seguida,
entrei em contato com o Projeto Damas. Participei de uma reunião deste, em
agosto de 2008, no bairro de Laranjeiras. Eram ao todo dezessete travestis
presentes, no dia em questão (uma quarta-feira). Sete travestis muito
atenciosamente se dispuseram a conceder entrevistas.

As travestis entrevistadas nestes três locais indicaram-me outras: com quem


dividiam quartos em hotéis ou colegas de rua. Através de e-mails cedidos por
aquelas, entrei em contato pela Internet e, posteriormente, encontrei pessoalmente
e realizei as entrevistas. Por indicação de um líder budista, entrei em contato com
duas travestis que freqüentavam uma sede budista no bairro de Botafogo.

Com exceção de uma indicada, que travei conhecimento via Orkut - que se
recusou a concessão de entrevistas, pois escreveu-me dizendo que eu era ‘um
evangélico homofóbico’ (sic) e que se recusava a falar com pessoas do meu ‘tipo’
100

(sic) -, todas foram extremamente atenciosas e educadas; algumas vezes,


terminaram por me convidar para alguma atividade social extra-acadêmica.

Para as travestis, o tema predominante foi sua relação com a religião; a


violência e exclusão social também apareceram com freqüência nas entrevistas.
Com o decorrer das entrevistas, alguns itens foram mudados. Assim, em seis
entrevistas, após expor a temática da religião, não perguntei mais sobre a religião
em si; as entrevistadas mostraram-se desapontadas com as religiões,
principalmente as cristãs, que demonstravam para com elas um alto nível de
rejeição em seus quadros. Passei, em um segundo momento, a perguntar sobre a
relação com Deus. Esta mudança de perspectiva teve efeito positivo e elas
passaram a falar mais abertamente sobre a sua religiosidade. As seis terminaram
mesmo declarando sua religião, que era cristã.
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Nem todas as entrevistas foram gravadas; em alguns casos, o desconforto


em saberem da gravação fez com que eu optasse por entrevistar sem o uso de
gravadores. No entanto, sublinho que não houve de parte delas qualquer negação
em gravar a entrevista. Mas, como seis travestis não se sentiram à vontade, optei
por não gravar, para que a entrevista corresse de forma mais tranqüila, o que
permitiria melhores resultados.

Nas primeiras entrevistas realizadas em hospital universitário localizado no


bairro da Lapa, as travestis mostraram-se desconfiadas; queriam saber para que
exatamente seria a pesquisa, se seria necessário tirar fotos delas e se estas seriam
veiculadas em sites pornôs da Internet. Respondia-lhes que não; no meio da
entrevista, este questionamento novamente era feito; eu assegurava que nem
tiraria fotos, portanto não haveria o menor risco de serem expostas. Além disso, os
nomes nas entrevistas seriam trocados; não haveria nenhuma exposição delas.

Embora a questão que norteasse a pesquisa fosse a relação delas com a


religião, dois temas apareceram de forma recorrente em suas falas: a violência e a
exclusão.

Tinha escolhido o tema da religião como uma possível oportunidade de


inclusão social delas; todo o material que tinha lido antes mostrava a exclusão que
101

sofriam47. Preliminarmente, procurei indagar sobre seu passado, desde a época da


infância até a fase em que adotaram a identidade travesti. Após montar uma linha
do tempo cronológica, com os fatos importantes e as idades que possuíam na
época, fiz perguntas sobre o seu dia-a-dia atual. Nestas, procurei saber aonde
moravam, quais locais freqüentavam, com quem se relacionavam. Finalmente,
após um levantamento de sua vida atual, perguntei sobre a questão religiosa: se
possuíam alguma, se freqüentavam algum templo, se eram aceitas, se sofriam
algum tipo de discriminação.

De acordo com as informações das travestis (acerca de sua religião),


procurei líderes e leigos das religiões por elas citadas, para entender suas posições
acerca da travestilidade. Já que procurava saber se a religião seria propiciadora de
inclusão social para o público trans, procurei efetivamente conhecer o
pensamento e posicionamento dos membros das Igrejas; se acolheriam as
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travestis, qual visão que os membros e a doutrina religiosa possuíam a respeito


delas.

Entrevistei cinco líderes de cada religião, com exceção da wicca e daqueles


das igrejas inclusivas. Da wicca, apenas uma pessoa foi encontrada; das igrejas
inclusivas, dois pastores. Sublinho que as religiões foram as mencionadas pelas
travestis. Exceção feita em relação á igrejas inclusivas, não citadas por aquelas.

Também entrevistei sessenta e sete leigos (não travestis): dez católicos, dez
evangélicos, dez umbandistas, dez candomblecistas, dez espíritas, dez budistas,
cinco de igrejas inclusivas e duas wicca48. Não houve nenhuma objeção por parte
de nenhum dos entrevistados de que fossem gravadas as entrevistas. Uma, no
entanto, realizada com um leigo budista (em um bar na Praia do Flamengo) não
foi, devido a problemas com a pilha do gravador. Outro entrevistado, também
budista, concedeu entrevista por telefone. Portanto, também não houve gravação.

47 Conforme autores como Silva (1993) e Denizart (1997).

48Tinha como objetivo um número igual de entrevistados. No entanto, foram


poucas as praticantes wicca que aceitaram comentar sobre sua religião com
um não ‘iniciado’.
102

Meu objetivo foi constatar quais as religiões que efetivamente aceitavam-


nas dentro de seus quadros.

Por isso, para os líderes, foi perguntado basicamente qual a posição de sua
religião em relação á travestilidade e se conheciam alguma que freqüentasse os
templos; para os leigos, as mesmas perguntas, tentando entender a prática da fala
dos líderes no dia-a-dia dos templos. Isto porque, mesmo que uma religião
teoricamente as aceite, não quer dizer que o mesmo ocorra no cotidiano. Este fato
ficou bem clarificado em relação aos umbandistas e candomblecistas. Embora
100% dos líderes (destas religiões) tenham afirmado a aceitação das travestis, o
mesmo só ocorre por parte dos leigos com algumas restrições; elas só podem,
geralmente, freqüentar os rituais se estiverem vestidas como heterossexuais e não
de forma feminina (com adereços, como brincos). Embora não fosse o foco da
pesquisa, visto que se trata da relação travestis e religião, entendo os questionários
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dos religiosos como um dado a mais para a compreensão da forma com que isto se
dá, vendo também a opinião dos ‘incluídos’.

O roteiro foi estabelecido no sentido de entender basicamente a relação das


travestis com a religião. Elas possuem alguma? Seria importante para elas um
vínculo com alguma religião? Como eram recebidas pelos membros destas
religiões? Haveria exclusão também por partes destes? A religião poderia
propiciar um sentimento de pertença a um grupo, além daquele estigmatizado com
quem convivem diariamente? Isto possibilitaria algum tipo de empoderamento49,
que se estenderia para outras atividades sociais delas no dia-a-dia? 50

Antes de enumerar as respostas, gostaria de expor um fato; todas as travestis


entrevistadas, além destas respostas, fizeram questão de explicar seu dia-dia e
mostrar a violência que sofrem não apenas no âmbito da religião. Fizeram questão

49 Empoderamento refere-se à capacidade das pessoas decidirem sobre


questões importantes nos vários âmbitos de suas vidas, como econômico e
psicológico (Horochovski; Meirelles, 2008).

50 Foi a partir das religiões citadas em suas falas, que busquei os líderes e leigos
destas para entrevistas. Exceção para o budismo. Uma conhecida minha,
informalmente, relatou saber de uma travesti budista no Rio de Janeiro. A partir
daí, entrei em contato com a referida, que me indicou outra, também budista.
103

(a meu ver, uma necessidade de falar sobre sua vida) de revelar como foi sua
infância, adolescência, passagem pelos colégios e a violência cotidiana (como não
poderem simplesmente, ás vezes, ir ao mercado sem serem xingadas e
humilhadas).

Os dados obtidos com estas informações se coadunam com os dados


relatados em livros como o de Silva (1993) e teses como a de Larissa Pelúcio
(2008), em relação à expulsão de casa, do colégio e chegada às ruas.

Não entrarei em detalhes maiores sobre estes dados, visto que esta pesquisa
é focada na relação das religiões com as travestis. No entanto, como estas falas
aparecem constantemente nas entrevistas, não pude deixar de registrá-las aqui,
mesmo que de forma sucinta.
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5.1. Travestis

5.1.1. Quadro I: Dados sobre as travestis – Idade, religião,


moradia, principal renda e principal local de socialização

Nome Idade Religião Moradia Principal Principal


renda local de
socialização

Aline 31 Wicca Lapa Programa Pista

Alessandra 32 Católica Lapa Programa Pista

Amanda 29 Evangélica Lapa Programa Pista

Ana Carla 28 Católica Lapa Programa Pista

Bárbara 28 Umband. Baixada Programa Pista

Berenice 31 Evangélica Lapa Programa Pista


104

Brigitte 34 Católica Lapa Programa Pista

Camila 31 Evangélica Baixada Cabeleireira Arredores de


casa

Carla 34 Católica Baixada Cabeleireira Arredores de


casa

Carolina 32 Católica Baixada Cabeleireira Pista

Clarice 29 Evangélica Lapa Programa Pista

Cristiana 28 Candombl. Lapa Programa Pista

Cynthia 30 Candombl. Baixada Programa Pista

Débora 30 Candombl. Baixada Programa Arredores de


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casa

Diane 30 Candombl. Baixada Programa Pista

Domênica 30 Evangélica Baixada Programa Arredores de


casa

Dulcinéa 30 Espírita Baixada Programa Pista

Ellen 29 Umband. São Programa Arredores de


Conrado casa

Fabiana 27 Umband. Lapa Programa Pista

Fernanda 19 Budista São Bicos Arredores de


Conrado casa

Fiona 60 Budista São Governanta Arredores de


Conrado casa

Flávia 29 Evangélica Gardênia Bicos Arredores de


Azul casa

Gabriela 32 Católica Gardênia Bicos Pista


Azul
105

Georgia 32 Umband. Gardênia Programa Pista


Azul

Ingrid 34 Católica Gardênia Bicos Pista


Azul

Jeanna 32 Evangélica Gardênia Programa Pista


Azul

Juliana 27 Umband. Gardênia Programa Pista


Azul

Lara 28 Umband. Gardênia Bicos Arredores de


Azul casa

Larissa 27 Católica Lapa Programa Pista


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Ludmila 29 Católica Lapa Bicos Arredores de


casa

Michele 31 Evangélica Baixada Programa Pista

Monique 57 Espírita Jacarépaguá Bicos Pista

Paloma 31 Espírita Baixada Programa Pista

Patrícia 32 Candombl. Lapa Programa Pista

Renata 32 Umband. Lapa Programa Pista

Roberta 28 Espírita Lapa Programa Arredores de


casa

Sabrina 27 Espírita Lapa Programa Arredores de


casa

Stephanie 29 Candombl. Lapa Programa Arredores de


casa

Tatianne 31 Evangélica Lapa Programa Arredores de


casa
106

Zafira 30 Candombl. Lapa Programa Arred. Casa

5.1.2. Questionário

1) O que significa a religião para você?

Três declararam que nada significava. Era apenas mais uma mostra de
sociedade de que eram excluídas, já que geralmente os religiosos (principalmente
cristãos) as tratavam como inferiores ou pecadoras.

Trinta e sete travestis declararam que era importante em suas vidas, já que
era um contato com Deus. Sublinho aqui que, ás vezes, se referiam
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especificamente a religião, às vezes a Deus em si.

2) Possui algum a religião?

Trinta e sete responderam que sim;

Três responderam que não, em primeiro momento. Depois, declararam


acreditar em Deus e, finalmente, serem de origem cristã.

3) Quais religiões?

Nove cristãs católicas;

Nove cristãs reformadas (evangélicas);

Sete umbandistas;

Sete candomblecistas;
107

Cinco espíritas;

Duas budistas;

Uma wicca.
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Gráfico I: Percentual das religiões das travestis.

4) Frequentam espaços religiosos?

Três católicas declararam que sim;


Quatro evangélicas declararam que sim;
Duas candomblecistas declararam que sim;
Uma umbandista declarou freqüentar;
Uma espírita declarou freqüentar;
Duas budistas declararam freqüentar;
Uma wicca declarou não freqüentar51.

51 No entanto, é importante frisar que os cultos wicca não são necessariamente


realizados em templos; geralmente, são realizados dentro de casa ou em lugares
ligados à natureza, como parques e florestas. Além disso, para serem realizados,
não precisam necessariamente de várias pessoas. A religiosa pode realizar o
108

5) Sente-se aceita nesta religião?

Nove católicas declararam que não;


Nove evangélicas declararam que não;
Sete candomblecistas declararam que sim;
Sete umbandistas declararam que sim;
Cinco espíritas declararam que sim;

Duas budistas declararam que sim;

Uma Wicca declarou que sim.


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6) Sente-se aceita pelos membros desta religião (líderes e leigos)?

Nove católicas declararam que não;


Nove evangélicas declararam que não;
Sete candomblecistas declararam que sim;
Sete umbandistas declararam que sim;
Cinco espíritas declararam que sim;
Duas budistas declararam que sim;
Uma Wicca não soube responder, visto que só conhece outras via Internet.

7) Sente-se parte da comunidade religiosa?

Nove católicas declararam que não;


Nove evangélicas declararam que não;
Cinco candomblecistas declararam que sim; duas que não;
Sete umbandistas declararam que sim;
Duas budistas declararam que sim;

ritual, sozinha. Na pesquisa, não encontrei nenhum templo wicca na cidade do


Rio de Janeiro.
109

Uma Wicca não soube responder.

8) O que significa este pertencimento/ ou não pertencimento em sua vida?

Resposta: Não pertencimento.

Nove católicas – Apenas mais uma exclusão;


Nove evangélicas – Apenas mais uma exclusão.

Resposta: Pertencimento.

Sete umbandistas – Oportunidade de pertença;

Sete candomblecistas – Oportunidade de pertença;


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Cinco espíritas – Oportunidade de entendimento de sua condição;


Duas budistas – Oportunidade de pertença;
Uma Wicca – ainda não sabe responder; mas almeja uma oportunidade de
pertença.

9) Este pertencimento pode levar a alguma mudança em sua vida?

Umbanda – Aumento de auto-estima;


Candomblé – Aumento de auto-estima;
Espírita – Aumento de auto-estima;
Budista – Aumento de auto-estima;
Wicca – Ainda não sabe responder.

5.1.3. Análise dos dados

Para a maior parte das travestis, a religião era importante; representava algo
em que se apoiar, em caso de necessidades. Como no seguinte relato:
110

“Muitas vezes, quando saímos na rua, sei lá, a gente é tão


atacada... a gente sai na rua de noite, nem sabia se voltava para
casa... Ficava pensando ‘Deus, me ajuda’... a gente tinha fé
nele... senão, sabe como é, com o resto das pessoas maltratando
a gente, xingando, humilhando... é muito difícil, sabe...”
(Alessandra, 32 anos).

Outra travesti:

“A minha família era religiosíssima. Sempre foi. Agora não


tenho mais meu pai e minha mãe (...) um dos fatores principais
na família era assim (...) aquela congregação da família para a
religião. Então eu, desde muito criança, sempre tive essa... não é
tendência... eu vivi a minha vida principalmente em torno da
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Igreja (...) católica (...) desde criança eu tinha uma elevação


espiritual” (Monique, 57 anos)52.

A maior parte das travestis entrevistadas declarou-se de religião cristã (seja


na vertente católica, seja da protestante). O fato não é surpreendente, visto que a
população brasileira é predominantemente cristã (IBGE, s/d). Além disso:

- vários estados e cidades do Brasil ostentam nomes cristãos (São Paulo, São
Sebastião do Rio de Janeiro);

- os feriados nacionais têm origem também em festas cristãs: Carnaval


(período anterior à Páscoa); Páscoa, referente à Paixão e morte de Cristo (que tem
origem no judaísmo); Natal; Corpus Christi (corpo de Cristo na Eucaristia); Festa
do Senhor Morto; Feriado de nossa Senhora Aparecida (em homenagem à
imagem que seria milagrosa, encontrada em rio de São Paulo).

52 Ela era católica, mas atualmente segue a doutrina espírita.


111

Portanto, a origem cristã das travestis não causou estranhamento; elas


geralmente vêm de famílias do interior, em que festas religiosas católicas e missas
de domingo são as grandes atrações das pequenas cidades, ainda nos dias de hoje.

Apesar do discurso segregacionista de líderes religiosos cristãos (no tocante


à homossexualidade), muitas continuam a ser cristãs, embora quase não
freqüentem igrejas. Segundo o pastor Retamero (em entrevista no ano de 2008),
há travestis que, disfarçadas, cobertas por mantos, freqüentam missas e cultos,
assistindo no fundo dos templos e saindo antes das celebrações terminarem, para
não serem discriminadas. Muitas também seguem as religiões afro, mas são
poucas as que efetivamente freqüentam os espaços. Em nenhum templo,
efetivamente constatei a presença de alguma; tampouco os freqüentadores destes
espaços souberam da presença de algumas delas em algum momento de suas idas
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aos cultos.

Esta afirmação se coaduna com a de Kulick (2008) que escreveu que,


embora as travestis se denominassem candomblecistas ou umbandistas, não
conheceu nenhuma que freqüentasse os terreiros. Embora a linguagem destas duas
religiões esteja presente no falar das travestis. Os termos que elas usam no dia-a-
dia são de origem, geralmente, destas religiões: como mona, que quer dizer
mulher falsa (Duque, 2005).

Segundo alguns pesquisadores, como Kulick (2008), as travestis e outros


excluídos por sua orientação sexual migram para os cultos afro-brasileiros. Há,
realmente, várias que o fazem; no entanto, parece mesmo não ser a sua
esmagadora maioria 53.

Todas as cristãs declararam serem mal recebidas em igrejas:

53 Santos (2008) também observou algo semelhante (visto que constatou na


população LGBT em geral e não tem dados específicos sobre travestis) este fato.
Apoiado em estatísticas da Parada Gay de São Paulo, de 2005 (na qual se
estima em apenas 6% dos participantes como candomblecistas e umbandistas),
também percebeu que a maior parte do público LGBT ainda se diz católica ou
protestante.
112

“Várias vezes, quis ir em igreja mas a gente sempre é mal


visto... pessoal fica olhando a gente... fica com medo de entrar,
ser mal-tratada...” (Alessandra, 32 anos).

“Quando era pequena, ia sempre nos domingos, assistia missa,


tomava benção do padre... mas depois que me assumi, a coisa
ficou diferente... Padre, pastor, esse pessoal não gosta da gente,
não respeita a gente... chama a gente tudo de filho do diabo,
pecador, que vamos para o inferno... o inferno é aqui mesmo, a
gente paga aqui” (Brigitte, 34 anos).

Poucas são as candomblecistas que efetivamente freqüentam terreiros:


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“Vou muito de vez em quando... só quando estou com vontade.


Mas sigo direitinho o que meu orixá me manda... sou uma filha
muito obediente (risos). Mas não costumo ir muito não...”
(Patrícia, 32 anos).

O mesmo se dá com as espíritas. Apenas uma entrevistada freqüenta com


regularidade os centros:

“Sim, vou nas sessões... foi no espiritismo que aprendi o que


acontece comigo. Foi lá que entendi o que eu sou. Frequento
quando dá, mas fico com medo quando tem espírito baixando.
Sei lá, fico com medo. Pessoal chama de sessão de descarrego e
tal... mas gosto de ir para assistir as palestras que falam sobre o
por que da gente tá aqui, pagando pelo que a gente fez em
outras vidas. Passo a entender muita coisa lá quando eu vou, lá
no Centro” (Sabrina, 27 anos).

A travesti wicca não freqüenta espaços:

“O culto wicca é diferente. A gente faz sozinha ou se reúne em


algum lugar, mata, matinha, com árvores. Não se encontra em
lugares, igrejas essas coisas não. Mas o meu grupo, que estou
113

conhecendo, é pela Internet. Não conheço pessoalmente. Nunca


encontrei ninguém, só por Orkut mesmo” (Aline, 31 anos).

Sobre aceitação, assim se declararam algumas cristãs:

“Tem que saber que uma coisa é Jesus, outra é igreja. Jesus me
fez assim, desse jeito, maravilhosa, feminina. Agora, os padres
dizem que sou filha do pecado, que vou para o inferno... Isso
não aceito não. Sou filha de Deus, Deus me ama como eu sou.
Sou verdadeira comigo e com Jesus. Ele não ama a todos que o
seguem? Então, Ele me ama. Eu sigo o meu mestre” (Carolina,
32 anos).

As travestis candomblecistas e umbandistas sentem-se aceitas:


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“Me aceita sim. Não conheço muito da religião. Mas sei que
sou filha de meu orixá, ele então me aceita. Dou minhas
oferendas, não faço o mal, não fico querendo o mal das pessoas.
Lá (no candomblé) a gente é bem aceito, não corre o risco de
entrar e pessoal ficar querendo te expulsar, não, como acontece
com esses crentes. Lá (no candomblé), não tem preconceito”
(Patrícia, 32 anos).

“Não, não gosto de padre... Acham que sou filha do capeta, que
vou para o inferno... Imagina, se vou confessar: Padre, pequei,
fiquei com um negão maravilhoso (risos). Iam me expulsar.
Não, eles odeiam a gente, tratam mal. Não soube do caso da
travesti que foi estrangulada pelo padre outro dia? Saiu no
jornal. Você não lê jornal?”
P: “Sim, li algo a respeito, mas o jornal (da Internet) não tinha
muitos detalhes”.
“Eh, a mona quis ir lá, quis freqüentar. Não sabe que pessoal
não gosta de travesti. Deu briga, o padre expulsou ela do altar.
Uma coisa horrorosa. Mas comigo nunca aconteceu, não. Nos
terreiros, é diferente... sou aceita nos terreiros.”
114

(Bárbara, 28 anos).

As cristãs sentem-se filhas de Deus, mas não parte da comunidade:

‘Sabe, sou filha de Deus, você também é, todo mundo é, sabe?


Mas não freqüento reuniões de igreja. Eles iam me expulsar de
lá, iam olhar de cara feia. Não, isso não. Mas sou parte da
família de Deus, sabe? Você também é, não é? Você é cristão?’
(Amanda, 29 anos).

Poucas travestis efetivamente freqüentam terreiros de Candomblé:

“Sou do blé (Candomblé), faço oferendas, tudo direitinho. Mas


não costumo ir, nem sei quem vai nos terreiros. Das minhas
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amigas, acho que nenhuma vai, mas não te dou certeza disso.
Não sou parte (da comunidade), não” (Stephanie, 29 anos).

Foi constatada a importância dos espaços religiosos, já que são poucos os


espaços possíveis para as travestis. A ‘pista’ aparece como sendo um local de
socialização importante, não apenas para as travestis que se prostituem.

“A travesti enfrenta tanta coisa na vida. Você não faz idéia. É


tanta gente que não quer a gente. Gente sai de dia, vai fazer
compra, coisa simples, uma comprinha de pão. Pessoal olha
estranho, vira a cara. Outro dia, fui comprar coisinha pouca
mesmo, pão, manteiga, essas coisas. Encontrei um ... que tinha
saído numa noite. Ele fingiu que não viu, ficou vermelho, saiu
de perto. Fiquei mal, saí dali logo. É muita gente contra, sabe?
Aí, quando vai no terreiro, vê o pessoal sem te xingar nem nada.
Sabe, tem pessoal de mente pequena, eles as vezes riem quando
a gente passa e tal, mas depois aceita. É bom poder ir em outros
lugares, sabe?” (Lara, 28 anos).

“É super-importante para mim. Tem poucos lugares... tem


quase nenhum lugar que posso ir sem ser discriminada. O lugar
115

que mais vou é de noite, visitar umas amigas que ainda estão
nas ruas. Elas, no intervalo, a gente fica conversando, fica
vendo os bofes. Sabe que até hoje quando saio o pessoal fica me
olhando? Fica mandando beijinhos, chamando de ‘meu bem’. É
muito bom a gente ser admirada. É um local bom, aumenta a
nossa auto-estima. Nos outros lugares, a gente nem entra.
Conheço uma travesti, deve ter o que, uns vinte anos de idade.
Nem sai do quarto. Pede para um garotinho, não tem nada com
ele não, paga para ele comprar sanduíche nas padarias, ela tem
tanto medo de sair, de ser atacada, de xingarem ela, coitada.
Comigo já aconteceu. Mas sempre enfrentei. Não tenho
vergonha de ser quem eu sou (...) As pessoas acham que travesti
gosta só de ficar na rua, de noite. Também gosta, é verdade.
Mas na rua ela é...como posso... respeitada, recebe carinho. Em
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outros, ih, nem conto... é tanta coisa ruim. Tanto xingamento...


não tem muito para onde ir” (Larissa, 27 anos).

“Tem uma travesti que conheço, não sou eu não, que tem boa
situação. Tem ... veste bem, elegante, chique de doer. Não
precisa vir sabe (para a ‘pista’). Mas, aí, não tem o que fazer.
Fica sozinha em casa, vendo televisão. Vem para cá (para a
‘pista’) para não ter solidão. Aqui, encontra as outras, dá
conselho para as travinhas... ensina como fazer para pegar um
bofe com dinheiro. Se sente útil. Em casa, sozinha... para onde
ela vai? Cinema? Com quem?” (Stephanie, 29 anos).

“É bom ter gente que aceita a gente. O pessoal de lá (do


terreiro) é legal, vê a gente como gente. Acaba sendo um lugar
legal, que encontro até as outras monas, a gente fica lá e depois
sai juntas, sabe. A travesti tem poucos lugares ... não vai em
qualquer lugar, sabe, não porque a gente não quer... é que... é
tanta gente, sabe... tanta gente maltratando a gente. Desde
quando descobri quem eu era, quando tinha seis anos, pessoal lá
de casa, todo mundo, me tratava que nem... que nem... que nem
eu não prestasse. Mas por que? Só porque eu era diferente? (...)
116

Então, algum lugar que aceita a gente, qualquer um, já faz a


gente ficar melhor sabe. Faz ter esperança de que as coisas
mudem. Tem até trans que recebe ajuda do governo... então,
porque nós não? (...) Ter alguém que aceite a gente, como a
gente é... isso é bom, aumenta a estima... aí, fica uma ‘alta-
estima’...” (Georgia, 32 anos).

“Ah todo mundo me aceita. Sou uma deles. O Budismo prega


isso. Uma floresta tem muitas árvores. Tem árvore que dá maça,
árvore que dá pêra, árvore que dá manga. São diferentes, né?
Mas são todas árvores. O Budismo vê isso. Todo mundo é
aceito, se for gay ou não. Então, pessoal me aceita. Sou uma das
líderes femininas. Deixa te explicar: O Budismo, têm várias
áreas; a do Leblon, de Botafogo, de São Conrado. A gente se
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reúne de vez em quando. Tem as reuniões dos homens e das


mulheres. Eu sou das mulheres. Reunião, que eu digo, como
você está vendo, só de mulheres. São as líderes do budismo. A
gente se reúne na casa de uma companheira, faz as orações e
depois discute sobre o que vamos fazer, como aceitar novas
pessoas que querem ser budistas...” (Fiona, 60 anos).

“Se pudesse, não vinha só aqui (na ‘pista’). Tinha vontade de


estudar... se fosse fazer (faculdade), acho que seria enfermeira
ou advogada... Mas, como, né, nem tenho escola completa... é
mesmo sonho...” (Domênica, 30 anos).

As travestis referem-se ao espaço da ‘batalha’ como fundamental em seu


aprendizado da vida trans. É um local importante de sociabilidade com outras
travestis e com outros segmentos da população (como possíveis maridos e
clientes).

A “pista”, embora local de aprendizado e convívio social por excelência


para elas, também é o local aonde sofrem violência; dos policiais, dos rapazes que
117

passam de carro ou moto e jogam garrafas, tacam pedras, dos clientes que não
pagam 54.

Vinte e nove entrevistadas relataram ganhar a vida como garotas de


programa, enquanto oito disseram que não; sua renda advém de outras fontes,
sendo principalmente de faxina e lavagem de roupa para vizinhos. Uma apenas
relatou ganhar seu sustento como governanta, em uma mansão na zona oeste
carioca. Das que se prostituem, sete travestis (que se denominaram cristãs)
afirmaram sentir culpa pelo fato; as de outras religiões, embora não se orgulhem,
não verbalizaram algum sentimento de culpa. Uma travesti que não mais se
prostitui afirmou que foi o único meio de sustento possível naquela época e não se
envergonha do fato.
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“Eu trabalhei sim (fazendo programa)... Não tinha dinheiro,


não tinha quem me ajudasse, tinha que me sustentar, né? Não
me arrependo... foi meu ganha-pão, foi assim que sobrevivi...
mas hoje não faço mais, tenho outros trabalhos...” (Stephanie,
29 anos).

Nas etnografias, foi constatado que as travestis entrevistadas, na maioria,


vivem na prostituição 55. Há aquelas que são todas feitas (Benedetti, 1997), isto é,
aquelas que conseguiram moldar o corpo de forma mais feminina que as outras.
Estas conseguem os clientes que pagam melhor; trabalham em locais mais
privilegiados das ruas, como nos casos relatados por Neves et al (2007), nos quais
as travestis trabalhavam na zona alta das ruas, em contraposição as que moravam
na baixa.

As que não alcançaram esse status mais feminino, as mais pobres,


trabalhavam em locais piores, em que havia maior possibilidade de agressão.
Geralmente, moravam em locais humildes, dividindo vagas em quartos, com

54 Fato também constatado por Neves et al (2007).

55 Como visto em Silva (1993), por exemplo.


118

outras travestis. Cuidando da pensão, havia geralmente outra travesti mais velha
(que já não se prostituía) e que tinha a função de mãe e de cafetina, muitas vezes.

Vinte e cinco travestis elegeram a “pista” como o principal meio de


sociabilidade delas. quinze elegeram outros locais, como arredores de casa
(barzinhos e parques), mas nenhum local privilegiado como ‘o’ principal.

Mesmo travestis que não se prostituem declararam ainda percorrer os locais


‘da batalha’, para rever amigas e mesmo serem apreciadas por transeuntes:

“Eu não faço programa... Mas quando é noite, não tem nada
para fazer... dou uma volta pelas ruas, encontro as amigas para
bater papo... Pessoal pensa que estou fazendo programa, mas
não estou não, sabe... Mesmo assim, tem muita gente que vem,
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chama ‘bonita’, ‘gostosa’ ah lá em casa ... me sinto bem”


(Gabriela, 32 anos).

O gueto (‘pista’ travesti) permite algum tipo de inclusão; é uma inclusão


“precária, instável, marginal” (Castel, 1998, p. 576). Ainda assim, é uma inclusão.

“A exclusão não é uma ausência de relação social, mas um


conjunto de relações sociais particulares da sociedade tomada
como um todo. Não há ninguém fora da sociedade...” (idem,
p.568).

As travestis também relataram querer outros espaços de socialização, como


universidades, por exemplo56.

Além disso, há cada vez mais travestis participando de outras atividades e


ganhando mais espaços, mais visibilidade em espaços nunca antes pensados57.

56 Como constatado também por Silva (1993).


119

5.1.4. Igrejas inclusivas

Embora as igrejas cristãs inclusivas tenham a proposta de acolhimento do


público trans, nestas não foram encontradas travestis (apenas transexuais).
Segundo Retamero (2008), como já explicado, elas teriam receio de serem vítimas
de preconceito por sua orientação sexual, como nas demais Igrejas cristãs, além
do ressentimento oriundo deste fato.

Outro ponto, segundo entrevista com Pastor Márcio Retamero (2008), é que
a prostituição é ainda um meio principal de vida das travestis. As Igrejas
inclusivas aceitam a diversidade sexual, mas repudiam a prostituição. Como as
travestis poderiam procurar essas igrejas se possuem receio de novamente
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sofrerem preconceito por causa da prostituição que praticam. Sem outras


condições favoráveis de renda, não tem como sair da prostituição. Portanto, passa
a ser impraticável a conciliação desses dois fatores. Uma proposta apresentada
pelo Pastor Márcio Retamero (durante entrevista em 2008) seria não tocar no tema
da prostituição, caso houvesse alguma travesti presente. Quando a igreja possuísse
condições financeiras para dar abrigo (moradia) para elas e financiar estudos
(como cursos de especialização), aí sim poderia falar sobre o ‘erro’ da
prostituição. Mas isto só seria feito se conseguisse efetivamente propiciar uma
saída da prostituição; caso contrário, isto afastaria definitivamente a travesti do
convívio da igreja.

Ao ter contato com as igrejas inclusivas, percebi que havia um número


expressivo de homossexuais que não queriam romper seus vínculos com a
religião, o que foi confirmado também por Natividade (2008). Como é encontrado
na fala de Flávia, freqüentadora de uma das igrejas inclusivas, em entrevista
concedida na Lapa (2008):

57Como a travesti Patrícia Araújo, que desfilou em janeiro de 2009, no Fashion Rio
(A Capa, 2009) e a cearense Luma Andrade, a primeira travesti a cursar um
curso de Doutorado, no Brasil (FolhaOnline, 2009). Sua tese será sobre a violência
sofrida por travestis nas escolas.
120

“Entrar para a Betel foi como ‘voltar para casa’. Eu era de


igreja católica e fui me afastando aos poucos, por causa da
minha condição lésbica, até o afastamento total. Só voltei ao
Cristianismo após entrar para a Betel, há dois anos. Soube pela
Internet de uma reunião de fundação de uma nova igreja e fui
ver. De lá para cá, nunca mais sai” (Flávia, 35 anos).

Portanto, se os homossexuais e lésbicas queriam manter contato com a


religiosidade, porque isto não aconteceria também com as travestis? Não havia
estudos sobre o tema porque inexistia o eixo travesti/religião ou não tinha sido
pensada como possível ou relevante em termos de estudo e pesquisa?
Optei pela segunda hipótese. As travestis possuíam sim desejo de ter alguma
religião. Este fato foi reforçado na fala do Pastor Márcio, em entrevista na Igreja
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Betel. Segundo ele, as travestis que conheceu são extremamente religiosas, mas
não encontram locais adequados para expressarem a sua religiosidade. Contou
sobre casos de travestis que freqüentam missas católicas e cultos evangélicos.
Para fazê-lo, vestem de forma discreta e sentam-se nos últimos bancos das igrejas.
Antes do final da missa/ culto, saem escondidas, para não serem identificadas e
novamente excluídas, fato que também foi constatado por Trasferetti (1998).

5.2 Líderes religiosos

5.2.1 Quadro II: Líderes religiosos – religião, idade e localização

Nome Religião Idade Localização

Alan Católica 51 Barra

Cláudio Católica 57 Barra

Emerson Católica 53 Gávea


121

Gabriel Católica 44 Gávea

Ildo Católica 47 Gávea

Batista Reformada 37 Tijuca

Diógenes Reformada 35 Tijuca

Flávio Reformada 49 Maracanã

Hiran Reformada 47 Maracanã

Janio Reformada 38 Maracanã

Ricardo Umbanda 39 Botafogo

Severino Umbanda 36 Botafogo


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Cleison Umbanda 39 Botafogo

Jorge Umbanda 35 Vila Isabel

Jamião Umbanda 35 Vila Isabel

Marcel Candomblé 31 Lapa

Manoel Candomblé 39 Lapa

Josué Candomblé 37 Lapa

Marinildo Candomblé 31 Centro

Renato Candomblé 34 Centro

Mário Espírita 41 Tijuca

Cláudio Espírita 39 Tijuca

Jamil Espírita 35 Bonsucesso

Martinho Espírita 39 Bonsucesso


122

Carlos Espírita 45 Bonsucesso

João Budista 37 Botafogo

Joana Budista 29 Santa Tereza

Carla Budista 32 Leblon

Clara Budista 37 Leblon

Tereza Budista 41 Leblon

Carla Wicca 29 Ipanema

Márcio Cristã Inclusiva 36 Lapa

Marcos Cristã Inclusiva 35 Lapa


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5.2.2. Questionário

1) O que você pensa acerca das travestis? São pessoas como as outras, mas
com peculiaridades? São doentes? São pessoas com desvios emocionais
e/ ou espirituais?

Cinco padres pensam terem desvios emocionais;


Cinco pastores pensam que são pecadores (desvios espirituais);
Cinco umbandistas pensam que são pessoas com desvios emocionais;
Cinco candomblecistas pensam que são pessoas com desvios emocionais;
Cinco espíritas pensam que são pessoas com desvios espirituais (pagando
o karma);
Cinco budistas pensam que são pessoas como as outras, mas com
peculiaridades;
123

Uma wicca pensa que são pessoas como as outras, mas com
peculiaridades;
Dois de igrejas cristãs inclusivas pensam que são pessoas como as outras,
mas com peculiaridades.

2) Conhece alguma travesti de sua religião?

Cinco padres não;


Cinco pastores não;
Dois umbandistas sim;
Três umbandistas não;
Quatro candomblecistas sim;
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Um candomblecista não;
Cinco espíritas não;
Uma wicca não.
Um líder de igreja inclusiva não; mas conhece cristãs58;
Um líder de igreja inclusiva não.

3) Alguma travesti freqüenta sua igreja/ templo/ terreiro/ centro?

Cinco padres relataram que não;


Cinco pastores relataram que não;
Cinco umbandistas relataram que não;
Cinco candomblecistas relataram que não;
Cinco espíritas relataram que não;
Cinco budistas relataram que sim;
Uma wicca relatou que não conhece nenhuma que frequente os encontros
em florestas;

58Este aparte foi feito, já que as religiões inclusivas são derivadas da religião
cristã reformada.
124

Dois de igrejas inclusivas relataram que não.

4) Caso freqüente (ou caso freqüentasse), com você vê (veria) isso? Aceita
(aceitaria)? Não aceita (aceitaria)? Alguma condição para a frequência?

Cinco padres não sabem se aceitariam;


Cinco pastores aceitariam, caso procurassem ‘libertação espiritual’;
Cinco umbandistas aceitariam; teriam que se portar apropriadamente;
Cinco candomblecistas aceitariam; teriam que se portar apropriadamente;
Cinco espíritas aceitariam;
Cinco budistas aceitam;
Uma wicca aceitaria nas reuniões;
Dois de igrejas inclusivas aceitariam.
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5.2.3. Análise dos dados:

Um problema na pesquisa, quando das perguntas59, foi a identificação da


identidade das travestis. As pessoas geralmente identificavam qualquer homem
com algum apetrecho feminino como sendo travesti e muitos não sabiam
identificar a diferença entre transformista, transexual e travesti. Teve que ser
explicado, pelo entrevistador, as diferenças entre estas (já mencionadas no cap. 1).

Os cinco líderes católicos relataram não ter contato com este grupo. Caso
tivessem, não as acolheriam da mesma maneira que os demais fiéis, visto que sua
condição é um distúrbio e necessitava de tratamento, assim como geralmente o é a
homossexualidade em geral. A sua posição é essencialista 60.

59 Problema tanto em relação aos líderes quanto em relação aos leigos. Todos os
líderes e leigos (as) entrevistados (as), excetuando-se um pastor de igreja
inclusiva, mostraram desconhecimento sobre as diferenças entre travestis e
transexuais, necessitando de uma explicação por parte do entrevistador.

60O conceito de essencialismo, que surgiu com Platão (Sousa, 2008), refere-se à
crença em uma essência verdadeira que seria irredutível e imutável.
125

Os cinco evangélicos disseram também não ter contato com o grupo. Caso
tivessem, indicariam-nas para tratamento psicológico e espiritual, como fazem
geralmente com os gays e lésbicas que freqüentam suas igrejas/ templos. Com o
grupo tanto travesti quanto gays e lésbicas, ocorre algo denominado ‘obsessão
diabólica’ que as leva á homossexualidade, que, afinal, é contrária á lei de Deus.
Um tratamento é necessário para que se ‘libertem’ desta condição. A posição
também é essencialista.

A fala dos umbandistas foi a mesma daquela dos cinco candomblecistas; os


cinco as aceitariam, contanto que se vestissem de forma apropriada, discreta, de
forma mais masculina; de preferência, de jeans.

“Em roça de respeito, tem que se vestir de forma... que respeite


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os orixás. Porque... a gente aceita, não tem nenhum... mas é


necessário se vestir assim... se nasceu homem, se veste que nem
homem. Se nasceu mulher, a mesma coisa. Tem que ter
respeito” (Josué, 37 anos).

Os cinco espíritas aceitariam e ensinariam o evangelho kardecista, que prega


que sua condição trans se deve a um pagamento de um karma oriundo de vida
pregressa. Mas é dever aceitar as travestis, já que são seres humanos sofredores e
estão aqui para expurgar seus ‘erros’ passados; portanto, são indivíduos que
necessitam de ajuda e os espíritas devem auxiliá-los para que evoluam
espiritualmente.

Os budistas aceitam, assim como aceitam a todos; a travesti poderia,


inclusive, ser um Budha, isto é, um ser iluminado. Sua condição trans em nada
impediria isto.

“O budismo aceita a todos. Porque todos temos, dentro de nós,


o potencial da iluminação... de sermos seres iluminados
espiritualmente (...) É como se fosse uma floresta; lá, tem várias
126

árvores diferentes... a que dá pêssegos, a que dá maça... são


diferentes, mas todas fazem parte da floresta. Assim é nossa
filosofia” (João, 37 anos).

Na wicca, apenas uma foi encontrada e contactada; aceitaria sem reservas:

“Não somos nós que escolhemos o caminho; não somos nós que
escolhemos ser ou não bruxas. Não adianta você procurar,
porque, se não for escolhido, não será (bruxa) (...) é a Deusa
que nos escolhe. Então, quem somos nós para discordar daquilo
que a Deusa escolheu?” (Carla, 32 anos).
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Os pastores das igrejas inclusivas têm a proposta de aceitação de todo o


público LGBT; aceitariam as travestis, como aceitam as transexuais que
freqüentam suas reuniões e cultos.

5.3. Leigos (as)

5.3.1. Quadro III – Religião, número de entrevistados (as),


idade, localização61

Número de
Religião entrevistados Idade (faixa) Localização
(as)

Católica 10 30-45 anos Zona sul

Para que não ficasse extenso, no quadro está apenas um resumo esquemático
61

dos leigos que foram entrevistados (Ver Anexo I).


127

Protestante 10 30-35 anos Zona norte

Umbandista 10 30-35 anos Zona norte

Candomblecista 10 30-40 anos Lapa/ Centro

Espírita 10 30-40 anos Zona norte

Budista 10 25-45 anos Zona sul

Wicca 02 30-35 anos Zona sul

Inclusiva 05 30-35 anos Lapa/ Centro


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5.3.2. Questionário

1) O que você pensa acerca das travestis?

Três católicas pensam que são doentes, precisam de ajuda;


Uma católica pensa que as travestis possuem desvios emocionais/
comportamentais;
Seis católicos não possuem opinião formada pensam serem filhos de
Deus como os demais cristãos;
Dez evangélicos pensam que são “pecadores” e precisam de
“libertação espiritual” / ajuda;
Sete umbandistas pensam que deveriam se portar como homens, pois
nasceram homens. Não sabem definir se é doença, mas certamente é um
desvio;
Três umbandistas dizem não ter preconceito, pois são filhas dos orixás
como todos;
Nove candomblecistas pensam que deveriam se portar como homens;
Um candomblecista não sabe o que pensar sobre o assunto;
128

Dez espíritas aceitam, pois são pessoas precisando de ajuda;


Dez budistas aceitam como iguais a todos; não há doença;
Uma wicca pensa que é desvio;
Uma wicca não tem opinião formada; aceitaria na sua religião.

2) Conhece alguma de sua religião?

Dez católicos afirmaram que não;


Dez evangélicos afirmaram que não;
Dez umbandistas afirmaram que sim;
Dez candomblecistas afirmaram que sim;
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Dez espíritas afirmaram que não;


Oito budistas afirmaram que sim;
Dois budistas afirmaram que não;
Duas wiccas afirmaram que não.

3) Alguma freqüenta sua igreja/ templo/ terreiro/ centro?

Dez católicos não;


Dez evangélicos não;
Dez umbandistas afirmaram que sim;
Dez candomblecistas afirmaram que sim;
Oito budistas afirmaram que sim;
Dois budistas afirmaram que não;
Dez espíritas afirmaram que não;
Duas Wiccas que não.

4) Caso freqüente (freqüentasse), como você vê isso? Aceita (aceitaria)? Não


aceita (aceitaria)?
129

Quatro católicos não aceitariam;


Seis católicos aceitariam, embora não soubessem como reagiriam;
Dez evangélicos aceitariam, caso fossem para tratar-se espiritualmente e
mudarem sua orientação homossexual;
Dez umbandistas aceitariam;
Dez candomblecistas aceitariam;
Dez espíritas aceitariam;
Dez budistas aceitariam;
Uma wicca não sabe como se portaria;
Uma wicca aceitaria sem reservas.

5.3.3. Análise dos dados


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Três católicas entendem a condição trans como doença; uma, como desvio
comportamental. Seis as vêem como ‘filhas de Deus’, podendo ser aceitas. No
entanto, reiteram que achariam ‘estranho’ a convivência com travestis.

“É, não sei se estaria... assim... preparada. É um pessoal que


sofre muita discriminação e tal... Mas não sei como seria lá, do
meu lado, cantando a Ave-Maria. Acho que não teria problema,
mas acharia meio estranho. Se bem que depois a gente
acostuma...” (Débora, 43 anos).

Dez evangélicos entendem como pecado; elas precisam de atendimento


psicológico e espiritual para que sejam ‘curadas’, afinal Deus criou o homem e a
mulher, e não os homossexuais. A sua posição é essencialista:
130

“Deus quando criou o homem, criou Adão é Eva; não criou


Adina e Ivo. Criou o homem e a mulher. Não criou outro tipo.
Não adianta querer dizer que não é uma aberr... um desvio, que
é certo. Não é. Deus criou homem e mulher. Não criou gay,
mulher que gosta de mulher... travesti, então, pior ainda.
Quando nascem, é o que? Homem ou mulher, não? Então, se
passam ‘para o outro lado’, deve ter algum problema sério. Não
sei se é infância, você que é psicólogo deve saber explicar. Mas
não, não é certo” (Andréa, 33 anos).

Dez umbandistas aceitariam, mas com ressalvas. As travestis, nos terreiros,


deveriam se portar de maneira masculina, sem ‘afetação’. A posição é
essencialista. Além disso, não poderiam ocupar posições cerimoniais dentro dos
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terreiros:

“A umbanda não é preconceituosa. É para todo mundo. Pode


freqüentar, não há problemas. Mas também, terreiro não é lugar
de bagunça. Nasceu homem, tem que ir vestido de homem.
Nasceu mulher, também. Pode ir, pode freqüentar. Mas tem que
se vestir de forma correta” (Natália, 30 anos).

“Não pode ser ekedy, não. Não é legal ... Se o cara não sabe
quem é aqui na Terra, então também não sabe quem é no
mundo espiritual. E para ser (ekedy), tem que ter uma
personalidade certinha. Já pensou se recebe santo e acaba
confundindo tudo por aqui? Não, é um papel de respeito, tem
que ser sério...” (Liziane, 32).

Dez candomblecistas aceitariam, mas também com ressalvas. Deveriam se


portar de maneira masculina, sem ‘afetação’. A posição é essencialista. Também
não poderiam ocupar certas posições dentro dos terreiros.
131

“Aceitamos, o blé (candomblé) não é preconceituoso. É a


religião dos excluídos. Mas tem que ter respeito na casa
(terreiro). Não é para ir vestido de forma errada, tem que
respeitar os santos” (Luana, 31 anos).

Dez espíritas aceitariam, já que têm o dever de ajudar os outros que estão
pagando algum karma. A posição é essencialista.

“É dever do kardecista ajudar os irmãos a encontrarem a luz, o


caminho. É muito triste a situação deles. Querem ser aquilo que
não são, não nasceram... assim... não nasceram desta maneira. O
kardecista tem que aceitar, ajudar os irmãos em necessidade.
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Mas é difícil. Gay e lésbica, ainda vá lá. Travesti já é mais


difícil, mas também pode ser aceito” (Angélica, 31 anos).

Uma wicca não sabe se aceitaria. Se aceitasse, não pensa que poderia ocupar
uma função como sacerdotisa, por exemplo; poderia ‘macular’ a imagem que os
outros têm da religião wicca. A outra entrevistada aceitaria, já que não é a pessoa
que escolhe ser wicca, mas sim ela é escolhida.

“Você não escolhe ser bruxa. Não é você quem escolhe. É a


feitiçaria que te escolhe. Não precisa sair procurando; ela quem
vai te escolher, que vai te dizer se você é bruxa ou não. Se você
for, ela te encontra. Então, se ela escolheu a travesti para ser
bruxa, (a travesti) pode ser” (Karen, 31 anos).

Para concluir, há traços que indicam que os católicos estão questionando a


homossexualidade (em geral) como algo pecaminoso e/ ou doentio; há, pelo
menos, a possibilidade de um debate sobre o tema, com questionamentos sobre o
132

que ensina a religião católica e a Bíblia. No entanto, para alguns, uma visão de
que é distúrbio ainda parece imperar.

Os evangélicos reafirmam a visão de que é a travestilidade é pecaminosa e


que as travestis precisam de tratamento; não há um questionamento sobre este
dado.

Os umbandistas e candomblecistas, embora aceitem, possuem muitas


reservas. As travestis, para freqüentarem, têm que se portar de maneira masculina
e não feminina. Além disso, não devem ocupar cargos na hierarquia de suas
religiões. Os que ocupam algum cargo são gays, que se vestem de forma
masculina, mas nunca travestis, que ‘negam’ sua identidade inicial.

Os espíritas aceitam, mas com ressalvas, visto que as travestis são pessoas
que precisam ser ‘curadas’. Portanto, estão em posição inferior, na escala
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evolucionista, kármica. A identidade trans é vista como sendo negativa, sendo


necessária uma mudança para que não se perpetue o ‘erro’ do homoerotismo em
outras vidas posteriores, o que ‘atrasaria’ o processo evolutivo de sua alma. Se o
referido ‘erro’ não for expiado nesta vida, poderá se perpetuar nas próximas, por
tempo indeterminado, com o conseqüente sofrimento por continuar a ‘ser’
travesti.

A wicca, teoricamente, aceita; no entanto, parece haver um receio de que,


tendo uma travesti em seus quadros, a religião possa perder sua seriedade em
ralação às pessoas de outras religiões.

Assim, foi constatado que a posição essencialista é predominante, mesmo na


maioria nas religiões ditas ‘mais abertas’, que seriam para todos62.

Nessas religiões, há a possibilidade de certa inclusão; no entanto, é uma


inclusão perversa, na qual o indivíduo é aceito apenas parcialmente. Os atributos
característicos deste são considerados negativos. Para ser aceito nos quadros
destas instituições, é necessário que não revele aqueles (femininos), que os

62 Excetuando-se as igrejas inclusivas.


133

mantenha disfarçados ou que os considere pejorativos, inferiores ou mesmo frutos


de ‘erros’ ou desvios de conduta, passíveis de ‘conserto’.

Para justificar a transfobia, na maior parte das vezes, foi constatado o uso
do argumento essencialista; isto é, de que o indivíduo deve portar-se
exclusivamente de acordo com o seu sexo original (homem ou mulher). Qualquer
outra maneira de manifestação identitária não é validade positivamente; teria em
sua origem uma doença psicológica e/ ou problema de ordem espiritual. Há,
portanto, necessidade de intervenção de alguma ordem para que se reestabeleça,
no indivíduo trans, um comportamento adequado, segundo as regras da
heteronormatividade, socialmente dominante.
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6. Considerações finais

Durante o mestrado, li dezenas de textos sobre travestis. Alguns me


chocaram, pela violência relatada; outros, surpreenderam-me positivamente, já
que ficou clara a coragem das travestis em persistirem, apesar de tudo (e, às vezes,
de todos!).

Aos poucos, fui entrando em seu mundo. Entendi o que sofrem e várias
vezes me emocionei com os relatos colhidos pelos autores, como Denizart (1997)
e Larissa Pelúcio (2008). De todos os relatos, um dos que mais me impressionou
foi o da travesti Velma (Silva, 1993). Mais idosa do que as suas colegas de
‘batalha’, mesmo sem conquistar clientes para programas, continuava na ‘pista’,
pelo menos durante uma ou duas horas, noite após noite.
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Tentei imaginar o que passaria em sua mente; que expectativas teria em sua
vida, já que não possuía mais os atrativos de outrora?

Pensei na tristeza, na decepção que ela devia sentir. O relato realmente ficou
em minha mente; durante os contatos com as travestis, na pesquisa de campo,
aquela ‘velha senhora’ às vezes aparecia em minha memória. O que será que ela
esperava ainda da vida? E o que será que a mantinha ligada à vida?

Se a ‘pista’, como foi constatado (Denizart, 1997), era o local de


socialização por excelência, o que seria dela se não tivesse mais lugar nas ruas? A
que ‘fio’ de esperança ela poderia se agarrar?

O trecho escrito por Silva (1993) me remeteu a uma questão, que se tornou
importante no decorrer da pesquisa: o que poderia dar um significado a vida delas,
além do campo do sexo, da modelagem do corpo, da prostituição? Seria a fé que
as faria continuar vivendo apesar de tudo? E porque lhes seria vedado outros
espaços, que não estes citados? Não poderia ser o espaço religioso uma alternativa
para, por exemplo, quando elas ficassem mais velhas?

Estes questionamentos estiveram presentes em minha pesquisa: Por que as


travestis não poderiam desfrutar de espaços religiosos para buscarem um aumento
135

na auto-estima e um empoderamento? Não alcançariam algum tipo de inclusão


social através desses espaços?

Passei a estudar mais profundamente sobre o tema, passando a tornar-se este


o objeto de pesquisa de minha dissertação: Poderia a religião ser um fator
facilitador da inclusão social delas? E porque não havia estudos neste sentido?

No decorrer da pesquisa, percebi como era relevante para elas; como estava
presente, em sua estrutura subjetiva, o conceito de Deus (mesmo que não
necessariamente atrelado à questão de pertencimento a grupos religiosos).

Ao final da pesquisa, uma constatação: de que a religião é almejada pelas


travestis, podendo ser um fator importante no empoderamento delas. Pode
permitir uma maneira mais saudável delas se relacionarem; a partir do auto-
respeito adquirido através de um sentimento de pertença, podem aumentar sua
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auto-estima. E assim desconstruir a violência simbólica que permeia suas vidas.

Sim, há ‘muros’ impostos às travestis, pela sociedade, expressos pelas três


formas de desrespeito (Honneth, 2003): maus-tratos/violação, privação de
direitos/exclusão e privação de honra/dignidade. No entanto, enquanto os ‘muros’
internos (que fazem com que as próprias travestis se excluam e não legitimem
positivamente sua condição sexual) não forem destruídos, as travestis não terão a
força necessária, para desconstruir preconceitos e mudar sua situação. A religião
(que positive sua condição no mundo) é um dos caminhos possíveis para isso.

Ainda há muito preconceito em relação aos homossexuais; embora cada vez


mais ‘tolerados’, enquanto se enquadrarem nas normas sociais vigentes, não são
totalmente aceitos.

Que dirá, então, as travestis, que tem mais dificuldade ainda em algum
enquadramento possível em uma sociedade patriarcal e regida pela hete-
ronormatividade.

Vítimas de preconceitos em todos os órgãos sociais (Peres, 2005), terminam


vítimas de uma exclusão social, o que as leva a formarem grupos de solidariedade
mecânica com seus similares e com alguns simpatizantes.
136

Pela exclusão vivida desde a descoberta da sua homossexualidade, sua auto-


estima é baixa. Passam a ver a violência perpetrada como sendo ‘natural’, já que
muitas vezes sua condição homo/ travesti seria errada ou fruto de algum pecado.
Embora algumas travestis não aceitem isto, este sentimento perpassa suas falas,
em vários momentos. Portanto, há a necessidade de se trabalhar a auto-estima das
travestis, no sentido de que entendam a violência simbólica que sofrem para que
se possa desfazê-la, ou no mínimo repensá-la. No entanto, há poucos espaços em
que podem se socializar. Mas há demanda, em suas falas, por outros.

O espaço religioso é um dos possíveis ‘novos’ territórios para elas. A partir


de experiências vividas nestes, podem aumentar seu campo territorial. É uma luta
política, talvez impensável décadas atrás; mas possível, se houver a humanização
das travestis.
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No entanto, o preconceito ainda está enraizado mesmo nas religiões mais


‘abertas’ ao ‘diferente’ (pelo menos, na maioria das vezes). Como constatado, a
aceitação plena de duas, entre quarenta entrevistadas, é um número pequeno; não
parece relevante estatisticamente. Mas é um dado da pesquisa; portanto, corrobora
a hipótese de que é possível uma inclusão pelo viés religioso.

Alguns movimentos religiosos, principalmente os cristãos, embora de forma


marginal (como do Padre Trasferetti, em São Paulo, e do Padre Luís Corrêa Lima,
no Rio de Janeiro), estão propondo um questionamento sobre a condição negativa
dos sujeitos LGBT. Embora no Rio não tenha sido encontrada nenhuma travesti
freqüentadora de igrejas cristãs católicas, foram constatados casos de aceitação
das travestis, em São Paulo63. Pode ser que em futuro próximo, haja mudanças
mais significativas, impulsionadas pela ação do governo brasileiro. Mas há espaço
para mudança em nossa cultura, nossa sociedade?

Segundo o antropólogo Clifford Geertz (1989), a cultura não se cristaliza;


está sempre em progresso (movimento), mudando, captando novos conceitos e

63Segundo o professor Luis Corrêa Lima, durante supervisão realizada em 2008,


na PUC-Rio.
137

idéias. Assim, não é algo ‘dado’ e acabado; pode absorver, portanto, mudanças em
relação a novos sujeitos.

A travesti é um desses novos sujeitos (historicamente falando); seu


surgimento (hormonizada e com silicone) se deu na segunda metade do século
XX. Apesar de enfrentar todo tipo de discriminação, não sendo aceita por nossa
sociedade, pode vir a sê-lo. A cultura, sendo dinâmica, não estática, possibilita sua
incorporação como membro, como merecedora de ser cidadã. Afinal, embora
relegada a espaços de abjeção, elas existem; ocupam um espaço marginal e
temporalmente delimitado, mas persistem. Não é porque sujeitos (como os
empreendedores morais) não aceitam a presença queer, que esta deixará de existir;
as travestis são exemplos da luta pela possibilidade da singularidade humana.

A despatologização da homossexualidade foi um grande passo para a


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desmistificação da condição ‘doente’ e negativa dos sujeitos LGBT; o mesmo se


dará, provavelmente em breve, com a travestilidade, que ainda consta como
doença nos anais psiquiátricos, como o CID-10 (1993).

Há uma necessidade de reconhecimento social pelas travestis; já que não há


um reconhecimento positivo pela sociedade em geral, há uma necessidade de pelo
menos no grupo trans. Honneth (2003) escreveu sobre as três esferas de
reconhecimento: do amor, do direito e da solidariedade. Já que as duas primeiras
são geralmente vedadas as travestis, procuram a terceira.

Durante um culto em outubro de 2008, o Pastor Retamero falou sobre o


coral de sua Igreja, composto exclusivamente por gays e lésbicas; sobre a
possibilidade de serem cantores, de louvarem a Deus pela música, fato que não era
possível em igrejas cristãs tradicionais.

Além disso, os participantes poderiam tornar-se membros oficiais da igreja e


ocupar funções administrativas, como por exemplo, tesoureiros e conselheiros
administrativos. Isto possibilita uma aceitação e um aumento de auto-estima em
um local antes vedado ao público LGBT, isto é, a organização religiosa, o que
poderia possibilitar que a esta população adquirisse, a partir desta positivação de
138

sua identidade, uma mudança de perspectiva e comportamento também em outros


segmentos da sociedade (no âmbito não-religioso).

Enquanto gays e lésbicas podem ser aceitos em alguns espaços religiosos


(no candomblé, há gays pais-de-santo, por exemplo), os indivíduos queer tem uma
dificuldade maior de aceitação.

Gays e lésbicas, ao se portarem segundo as regras heteronormativas


(vestindo-se de acordo com seu o seu ‘gênero’ corporal) não causam o mesmo
‘impacto’ que os sujeitos trans; aqueles (as) não questionam e rompem com o
modelo binário de sexualidade como as travestis.

No entanto, por serem discriminadas por outras instituições sociais, as


travestis procuram qualquer espaço religioso que as acolha; mesmo que, para
serem aceitas, precisem se submeter aos postulados religiosos que pregam que sua
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identidade é negativa. Assim fazendo, elas podem desfrutar de um sentimento de


pertença a algum grupo além daquele travesti. No entanto, pela não aceitação
plena nas religiões afro, também terminam por não freqüentar os terreiros
(algumas, embora freqüentem, não o fazem com regularidade). Embora o discurso
dos líderes dessas religiões seja o de uma aceitação e inclusão, não é o que
efetivamente acontece. Para fazerem parte da religião, as travestis têm que abdicar
de sua identidade, já que precisam vestir-se de forma masculina, o que contraria
seu desejo de ser feminina. Além disso, a maioria dos (as) entrevistados (as)
leigos (as) também as percebem como sendo ‘não-naturais’, isto é, em desacordo
com seu sexo de nascença; assim, por terem nascido homens, as travestis
(segundo aqueles) têm que continuar agindo, se vestindo, se portando de maneira
masculina, que é aquela que lhes foi ‘dada’ pela ‘natureza’.

Em relação às espíritas, parece ocorrer algo semelhante. A religião espírita


lhes possibilita algum entendimento de sua condição trans, o que, de certo modo,
lhes possibilita alguma explicação e um modo de viver de forma mais centrada.

No entanto, também não há uma regularidade na freqüência. Os centros não


são percebidos como locais de pertença; a comunidade espírita não é vista como
acolhedora. Há um isolamento, uma não inclusão no grupo social. Talvez por sua
139

identidade considerada negativa, fruto de uma condição de ‘erros’ passados, de


origem sexual. Portanto, há uma aceitação; antes, é um tipo de acolhimento que
pretende um arrependimento e uma mudança para o que seria o seu ‘sexo real’
(biológico), dado pela natureza.

Já na religião budista, como há uma maior aceitação, elas fazem mesmo


parte do grupo social. Participam de reuniões (sociais ou religiosas) nas casas de
outros membros e não apenas nos templos. Sentem-se aceitas; são responsáveis
por afazeres administrativos (como atas de encontros, por exemplo), o que lhes
permite um sentimento de pertença que possibilite um empoderamento, que se
estende para outros aspectos de sua vida, como em relacionamentos com as
pessoas que moram perto de sua casa.

As travestis entrevistadas são muito discriminadas em todas as instituições;


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escolas, por exemplo. Portanto, qualquer instituição que lhes dê um mínimo de


acolhimento, que lhes possibilite um mínimo de pertença, é aceito por elas.
Assim, as religiões escolhidas são muito mais porque lhes propiciaram alguma
pertença do que pela ideologia por trás de suas tradições.

Isto ficou claro para mim quando as travestis relatavam sobre serem do
candomblé ou da umbanda; em momento nenhum, souberam explicar as
diferenças conceituais entre as duas. Foram para estas religiões geralmente por
proximidade de sua casa e pelo fato de alguma conhecida (também travesti), já ser
freqüentadora, ter lhe chamado. Mas não por razões de crenças verdadeiras nas
religiões. Tanto assim parece, que elas nem freqüentam os terreiros. Primeiro,
porque não tem tanta identificação com as ideologias religiosas apresentadas; e,
concomitante a este fato, também não são aceitas, de forma completa.

Sua inclusão, em religiões de origem afro, realmente é parcial; eu diria que


ocorre uma inclusão perversa, já que está permeada de restrições para sua
aceitação. Além do fato da vestimenta, por exemplo, lhes é vedada a participação
nas atividades cerimoniais dos terreiros. São apenas espectadoras. O que, de
qualquer maneira, lhes parece melhor do que nas cristãs, em geral; nestas, nem
mesmo podem aparecer, sem ser motivo de murmúrios dos outros leigos. Para
140

entrarem nestas, tem que ficar quase que escondidas e saírem antes do término da
missa/ culto. Portanto, não há nem uma inclusão perversa; a exclusão é total.

Para fazer um paralelo, há gays e lésbicas aceitos em algumas comunidades


católicas, desde que sejam discretos; não dêem as mãos aos seus pares e
comportem-se segundo a heteronormatividade reinante. Além disso, são
disciplinados (ou aconselhados) pelos líderes religiosos para, caso não consigam
manter a castidade, ao menos terem um parceiro fixo (em relação monogâmica).
Agindo deste modo, podem, em alguns casos, serem aceitos em algumas igrejas.
Há um caso, relatado por um padre entrevistado, sobre certa igreja na zona sul que
teria uma missa especial em que os homossexuais poderiam participar, embora
eles tivessem que sentar-se nos bancos da parte dos fundos da igreja. Portanto,
parece haver uma aceitação com estes grupos; com as travestis, nem isto ocorre.
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Na religião espírita, a inclusão também é parcial (ou perversa); são apenas


expectadoras, que ali estão para ‘aprender’ sobre seus ‘erros’ passados, a fim de
mudá-los e não repeti-los. Mas são vistas como fruto de faltas passadas e não
participam também de atividades cerimoniais, nem mesmo de atividades
administrativas. São pessoas que precisam de ‘ajuda’; não parecem ter muito a
oferecer para a comunidade, a não ser exemplo da suposta confirmação da lei do
karma (reencarnação).

É interessante notar que as religiões têm alguns pontos doutrinais que


pregam a não aceitação da travesti. No entanto, como já visto no cap. 3, são
pontos que estão abertos á interpretação. Quando outra interpretação se torna
possível, mostrando uma lógica e harmonia com o resto da tradição religiosa, os
líderes e leigos buscam em outras fontes materiais para a não-aceitação das
travestis. E a fonte principal é a chamada lei natural.

Em todas as religiões que, de alguma forma, excluem as travestis, a


retomada do discurso de que o homem nasceu homem e não pode mudar de sexo,
isto é, mudar o que lhe foi dado pela natureza, prevalece como último bastião para
defender seus pontos de vista. Assim, é ‘anti-natural’ mudar a essência da pessoa;
é um ‘desvio’ a não-aceitação daquele corpo ‘dado’ pela natureza; este tem que
permanecer sempre imutável. Enquanto este conceito não for debatido, mesmo
141

que se mudem alguns conceitos na crença religiosa, a exclusão continuará para as


travestis.

A budista foi a única em que efetivamente a hipótese desta pesquisa foi se


confirmar. As travestis participam como espectadoras, mas também podem vir a
ter funções tanto administrativas (tesoureiras, por exemplo) como cerimoniais.
Participam ativamente nas orações budistas, podendo ser organizadoras destas e
de outras atividades, como festas, encontros e viagens. Também podem montar
núcleos budistas em outras regiões que ainda não possuam, como no caso da
travesti responsável pela criação de um espaço budista para crianças na Rocinha.

A partir desta pertença ao grupo, em relação às budistas foi constatado um


empoderamento que adentrou outras áreas de sua vida, como na de trabalho, já
que uma delas é governanta em uma mansão da zona oeste. Além disso,
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presenciei uma reunião delas, aonde não se percebeu em nenhum momento


qualquer discriminação por parte das outras líderes budistas reunidas. A sua fala,
durante a reunião, em relação às outras budistas, se dava de ‘igual para igual’, o
que não aconteceu em outros espaços religiosos visitados. As budistas podem
mesmo chegar a ser Budas, isto é, seres iluminados, que seria a posição maior
dentro do quadro de sua religião.

Portanto, o aumento da auto-estima, com o consequente empoderamento,


pode ser alcançado pelo viés religioso. Nos espaços religiosos, pode-se entender
como parte de um grupo além do seu, que é discriminado. Com isto, pode-se
expandir este sentimento de pertença para outros setores de sua vida. A religião
pode atuar como um sistema simbólico de integração social do indivíduo a
sociedade, resgatando a identidade e formando solidariedade comunitária.

Quanto mais entendimentos de quem são, desconstruindo o estereótipo


negativo (que atravessa sua identidade), haverá um processo mais amplo de
humanização delas. Com isto, quem sabe, uma diminuição do medo de que o
‘estranho’, o ‘diferente’ destrua o status quo. Quanto mais estudos e pesquisas
sobre a homossexualidade e travestilidade forem realizados, e mais apoio do
Poder Público for sendo exercido, maior será a desmistificação da travesti; para
que se torne possível a defesa da singularidade proposta por Hannah Arendt, que
142

entende todos os indivíduos, únicos, irrepetíveis, como seres humanos passíveis


de respeito e de cidadania.
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153

Anexo I

Identificação dos leigos (as) entrevistados (as)

Leigos (as) católicos (as)

Amanda, 40 anos;

Ana Luiza, 40 anos;

Ana Paula, 30 anos;

Carolina, 35 anos;

Débora, 43 anos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA

Armando, 35 anos;

Alan, 45 anos;

Francisco, 45 anos;

Júlio, 43 anos;

Mário, 43 anos.

Leigos (as) reformados (as) protestantes ou evangélicos (as)

Alana, 31 anos;

Alexandre, 31 anos;

Anastácia, 31 anos;

André, 35 anos.

Andréa, 33 anos.

Bernardo, 30 anos;

Bruno, 32 anos;
154

Carlos, 30 anos;

Clarice, 30 anos;

Flaviane, 35 anos.

Tatiana, 31 anos;

Leigos (as) umbandistas

Gabriel, 31 anos;

Gabriela, 31 anos;

Gilmar, 35 anos;

Guilherme, 36 anos;
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Leandro, 31 anos;

Lívia, 30 anos;

Liziane, 32 anos;

Natália, 30 anos;

Ticiane, 35 anos.

Leigos (as) candomblecistas

Daiane, 40 anos;

Eliandra, 40 anos;

Érika, 31 anos;

Lídia, 34 anos;

Luana, 31 anos

Hiran, 30 anos;
155

Márcio; 33 anos;

Nelson, 35 anos;

Nilson, 40 anos;

Otávio, 40 anos.

Leigos (as) espíritas

Ana, 30 anos;

Angélica, 31 anos

Antonio, 33 anos;

Azevedo, 32 anos;
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Bruna, 34 anos;

Camilla, 40 anos;

Catarina; 39 anos;

Diógenes, 39 anos;

Emerson; 39 anos;

Evaristo, 39 anos.

Leigos (as) budistas

Cleonice, 45 anos;

Jonas, 31 anos;

Leandro, 25 anos;

Leonardo, 30 anos;

Liziane, 25 anos;
156

Márcio, 25 anos;

Marilda, 26 anos;

Mariza, 30 anos;

Michel, 26 anos;

Michelle, 30 anos.

Leigas wicca

Karen, 31 anos;

Karina, 35 anos
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Leigos (as) de igrejas inclusivas

Arnaldo, 30 anos;

Bianca, 32 anos;

Fátima, 34 anos;

Flávia, 35 anos;

Zélia, 30 anos.
157

Anexo II

Roteiro das entrevistas das travestis

I – Dados pessoais

Nome social –

Idade –

Orientação sexual –

Naturalidade –

Bairro aonde reside –


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Escolaridade –

II – Atividades laborativas

Profissão –

Ocupação atual –

Gosta de sua atividade –

Gostaria de exercer outra profissão / atividade –

Remuneração (média) –

III – Atividades sociais

Possui grupo de amizades –

Quais outros grupos sociais frequenta –

Tem vontade de participar de outros –

Tem necessidade de participar de outros grupos –

IV – Ambiente religioso

Possui alguma religião -


158

Qual religião-

Faz parte de algum grupo religioso -

Caso não faça, tem vontade de participar de algum grupo –

Caso não, sente falta ou faz diferença em sua vida -

Por que sente falta, caso a resposta tenha sido afirmativa -

Um ambiente religioso permitiria alguma mudança em sua vida -

Conhece igrejas/ templos/ centros/ terreiros que acolhem –


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA
159

Anexo III

Termo de consentimento livre e esclarecido

Eu, Luiz Alberto Faria Ribeiro, aluno do Mestrado de Serviço Social da PUC-RJ,
estou desenvolvendo um projeto de pesquisa cujo objetivo principal é a análise da
possibilidade de inclusão social de travestis através da religião, no Rio de Janeiro.

Para este fim, estou realizando entrevistas com travestis que queiram participar da
pesquisa. Estas entrevistas se darão com o auxílio de um gravador portátil, para o
registro e fidelidade de suas informações. Não haverá para as entrevistadas
nenhuma despesa, nem qualquer risco de exposição, visto que todas as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA

informações serão de natureza sigilosa.

A informante poderá solicitar informações sobre a pesquisa e interromper a sua


participação a qualquer momento, sem nenhum ônus para a mesma.

Comprometo-me a utilizar as informações a mim confiadas exclusivamente para


fins acadêmicos/ científicos. A sua assinatura neste documento valerá como
reconhecimento de sua concordância em participar deste processo. Qualquer
necessidade de contato, estarei disponível no telefone: (21) 9118-9775 ou pelo e-
mail: luizribeiro31@bol.com.br.

Agradeço desde já a sua colaboração.

____________________________

Assinatura da entrevistada

____________________________

Assinatura do mestrando

Rio de Janeiro, _____ de __________ de 2008.

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