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Vox Dei: A Teologia Reformada da Pregação

Paulo R. B. Anglada

A pregação, como uma forma distinta de comunicação da vontade de Deus revelada na sua Palavra, está em declínio. Em
muitas igrejas ela tem sido substituída por um número cada vez maior de atividades.

Há 30 anos atrás, o Dr. Martyn Lloyd-Jones foi convidado a proferir uma série de conferências no Westminster
Theological Seminary, em Filadélfia. Nessas palestras, publicadas em 1971 com o título Pregação e Pregadores, ele
enfatizou que a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro, e explicou que estava ressaltando isso “por causa
da tendência, hoje, de depreciar a pregação em prol de várias outras formas de atividade.”1 A situação não melhorou.
John J. Timmerman observou, quase vinte anos depois, que “em muitas igrejas o sermão é uma ilha que diminui cada vez
mais em um mar turbulento de atividades.

Mesmo igrejas de tradição reformada parecem estar sucumbindo paulatina, mas progressivamente, a essa tendência, e o
lugar da pregação no culto tem perdido importância. John Frame, teólogo de tradição reformada, publicou há dois anos o
livro Culto em Espírito e em Verdade: Um Estudo Estimulante dos Princípios e Práticas do Culto Bíblico. No livro o autor
nega, entre outras coisas, que a pregação seja função restrita dos ministros da Palavra, ou mesmo dos presbíteros em
geral, considera a dramatização e o diálogo métodos legítimos de ensino no culto público, e não vê razão pela qual um
culto público não possa ser inteiramente musical.3 David Engelsma, outro reformado conhecido, observa, entretanto, que
com base na negação de qualquer distinção entre o culto público oficial e o culto familiar, John Frame faz uma
interpretação tão ampla do princípio regulador reformado, que este acaba se tornando sem sentido.4

Muitas são as razões para o declínio contemporâneo da pregação. O surgimento de novos meios de comunicação e de
novas mídias interativas, a aversão do homem pós-moderno pela verdade objetiva ou absoluta, a secularização da
sociedade, o afastamento do cristianismo das Escrituras, e a própria corrupção da pregação, em muitos púlpitos
degenerada em eloqüência de palavras, demonstração de sabedoria humana, elucubrações metafísicas, meio de
entretenimento, ou embromação pastoral dominical, certamente são algumas delas.5 Uma das principais razões,
entretanto, diz respeito à concepção moderna da pregação, muitas vezes encarada como atividade meramente humana e
pouco relevante, cuja eficácia depende fundamentalmente das habilidades naturais ou capacidade do pregador.

Todas estas tendências, influências e concepções produziram resultados devastadores sobre a pregação nos meios
evangélicos. Ela tornou-se como que um apêndice no culto público, e as conseqüências, sem dúvida, se têm feito sentir
na vida da igreja. Na perspectiva reformada, o declínio do lugar da pregação no evangelicalismo moderno é uma
constatação seríssima. Se a teologia reformada com relação à pregação reflete o ensino bíblico, então muito do estado
presente da igreja cristã, se explica como resultado desse declínio da pregação. Meu propósito com este artigo é
apresentar, resumidamente, o ensino reformado concernente à natureza, importância, eficácia e propósito da pregação.

I. A NATUREZA DA PREGAÇÃO

O conceito reformado de palavra de Deus é mais amplo do que aquele geralmente compreendido pela expressão. Ele
inclui a palavra escrita: a Bíblia; a palavra encarnada: Cristo; a palavra simbolizada ou representada: os sacramentos do
batismo e da ceia; e a palavra proclamada: a pregação.6 Na teologia reformada, portanto, a pregação da Palavra de Deus
é palavra de Deus. Esta concepção de pregação é professada no primeiro capítulo da Segunda Confissão Helvética, de
Bullinger, nos seguintes termos:

A Pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus. Por isso, quando a Palavra de Deus é presentemente pregada na igreja
por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria palavra de Deus é proclamada e recebida pelos féis; e
que nenhuma outra palavra de Deus deve ser inventada nem esperada do céu...

Isto não significa identificação absoluta da palavra pregada com a palavra escrita. As Escrituras são definitivas e supremas,
inerentemente normativas, enquanto que a autoridade da pregação é sempre delas derivada e a elas subordinada.7 Não
significa também que a pregação seja inspirada ou inerrante. Os pregadores, por mais fiéis que sejam na exposição das
Escrituras, não são preservados do erro como o foram os autores bíblicos. Muito menos significa que os ministros da
Palavra sejam instrumentos de novas revelações do Espírito. O próprio documento reformado acima citado repudia essa
idéia, ao afirmar que “nenhuma outra palavra de Deus deve ser inventada nem esperada do céu.”

A pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus, primeiro porque é na condição de porta-voz, de embaixador, de
representante comissionado por Deus, que o pregador fala (2 Co 5.20). “A natureza da obra do pregador,” observa
Dabney, “é determinada pela palavra empregada para descrevê-la pelo Espírito Santo. O pregador é um arauto.”8 A
pregação é palavra de Deus porque é entregue em nome de Deus, e debaixo da sua autoridade. Em segundo lugar, a
pregação é palavra de Deus em virtude do seu conteúdo. Parker observa que a pregação recebe seu status de palavra de
Deus das Escrituras. A pregação “é palavra de Deus, porque transmite a mensagem bíblica, que é a mensagem ou Palavra
de Deus.”9 Enquanto a pregação refletir fielmente a Palavra de Deus, ela tem a mesma autoridade, e requer dos ouvintes
a mesma obediência.10

Robert L. Dabney observa que o uso do termo arauto para descrever o ofício do pregador encerra duas implicações.
Primeiro, que não lhe compete inventar sua mensagem, mas transmiti-la e explicá-la. Segundo, que o arauto

...não transmite a mensagem como mero instrumento sonoro, como uma trombeta ou tambor; ele é um meio inteligente
de comunicação...; ele tem um cérebro, além de uma língua; e espera-se que ele entregue e explique de tal maneira a
mente do seu senhor, que os ouvintes recebam, não apenas os sons mecânicos, mas o verdadeiro significado da
mensagem.”11

Pregação, definiu Phillips Brooks, é a comunicação da verdade de Deus através da personalidade do pregador.12 Assim
como a palavra inspirada não deixa de ser divina, embora escrita por autores humanos em pleno uso de suas
peculiaridades humanas, assim também a palavra pregada não deixa de ser de Deus por ser mediada pela personalidade
do pregador.

Na verdade, mais do que mero instrumento de comunicação da vontade de Deus, a pregação, na concepção reformada, é
um dos meios pelos quais Cristo se faz presente na igreja. Assim como a fé reformada crê na real presença espiritual de
Cristo nos sacramentos, crê também na sua real presença espiritual na pregação, pela qual ele salva os eleitos e edifica e
governa a igreja.13 Essa concepção, em certo sentido sacramental da pregação, considerada como que uma epifania de
Cristo,14 é afirmada freqüentemente por Calvino nas Institutas e em seus comentários.15 Leith observa que,
nas Institutas (4.14.26), Calvino cita Agostinho, o qual referia-se às palavras como sinais, porquanto na sua concepção,
“na pregação, o Espírito Santo usa as palavras do pregador como ocasião para a presença de Deus em graça e em
misericórdia,” e, “nesse sentido, as palavras do sermão são comparáveis aos elementos dos sacramentos.”16

A concepção reformada de pregação como vox Dei é compartilhada por Lutero. Comentando João 4.9-10, o reformador
pergunta: “Quem está falando [na pregação]? O pastor? De modo nenhum! Vocês não ouvem o pastor. A voz é dele, é
claro, mas as palavras que ele emprega são na realidade faladas pelo meu Deus.”17 Condenando a tendência católica
romana de transformar em sacramento tudo o que os apóstolos fizeram, Lutero afirma que se alguma dessas práticas
tivesse que ser sacramentalizada, que a pregação o fosse.

Foi Calvino, entretanto, quem elaborou mais detalhadamente a questão da natureza da pregação como “a voz de
Deus.”19 Em seu comentário de Isaías ele afirma que na pregação “a palavra sai da boca de Deus de tal maneira que ela de
igual modo sai da boca de homens; pois Deus não fala abertamente do céu, mas emprega homens como seus
instrumentos, a fim de que, pela agência deles, ele possa fazer conhecida a sua vontade.”20 Comentando Gálatas 4.19,
“até ser Cristo formado em vós,” Calvino enfatiza a eficácia do ministério da Palavra, afirmando que porque Deus
“...emprega ministros e a pregação como seus instrumentos para este propósito, lhe apraz atribuir a eles a obra que ele
mesmo realiza, pelo poder do seu Espírito, em cooperação com os labores do homem.”21 Para Calvino, a leitura e
meditação privadas das Escrituras não substituem o culto público, pois “entre os muitos nobres dons com os quais Deus
adornou a raça humana, um dos mais notáveis é que ele condescende consagrar bocas e línguas de homens para o seu
serviço, fazendo com que a sua própria voz seja ouvida neles.”22 Por isso, quem despreza a pregação despreza a Deus,
porque ele não fala por novas revelações do céu, mas pela voz de seus ministros, a quem confiou a pregação da sua
Palavra.23 Ao falar Deus aos homens por meio da pregação, Calvino identifica dois benefícios: “...por um lado, ele [Deus],
por meio de um teste admirável, prova a nossa obediência, quando ouvimos seus ministros exatamente como ouviríamos
a ele mesmo; enquanto que, por outro, ele leva em consideração a nossa fraqueza ao dirigir-se a nós de maneira humana,
por meio de intérpretes, a fim de que possa atrair-nos a si mesmo, ao invés de afastar-nos por seu trovão.”24

Os puritanos não pensavam de modo diferente. Eles viam o pregador da Palavra como um porta-voz de Deus.25 Eles
afirmavam que “na fiel exposição da Palavra, Deus mesmo está pregando, e que se um homem está fazendo uma
verdadeira exposição das Escrituras, Deus está falando, pois é a palavra de Deus, e não a palavra do homem.”26 “Não
pode haver dúvida de que para estes adoradores, a pregação da Palavra tornou-se um sacramento verbal.’’27 John Owen,
por exemplo, escreveu que “Cristo nos chama a si... nas pregações do evangelho, pelas quais ele é evidentemente
crucificado diante de nossos olhos” (Gl 3.1).28 Mencionando a mesma passagem bíblica, Paul Helm comenta que, na
pregação, os Gálatas como que viram a Cristo com seus próprios olhos.29 Ele também observa que “os protestantes
geralmente enfatizam que a graça conferida nos sacramentos não é de natureza diferente e, certamente, não superior
àquela conferida na pregação fiel... assim como os sacramentos são emblemas visíveis da graça de Deus, assim também é
a pregação fiel.”30

II. A RELEVÂNCIA DA PREGAÇÃO

Em virtude dessa elevada concepção da pregação como vox Dei, a fé reformada atribui à proclamação pública da Palavra
de Deus a maior importância. Na tradição reformada a pregação é considerada como o principal meio de graça, como a
tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra, como o elemento central do culto, como marca genuína da
verdadeira igreja e como o meio por excelência pelo qual é exercido o poder das chaves.

A. O Principal Meio de Graça

Na teologia reformada a pregação é um meio de graça. Ela e a ministração dos sacramentos são as ordenanças pelas
quais o pacto da graça é administrado na nova dispensação.31

De fato, na concepção reformada, a pregação é o mais excelente meio pelo qual a graça de Deus é conferida aos
homens,32 suplantando inclusive os sacramentos. Os sacramentos não são indispensáveis; a pregação é. Os sacramentos
não têm sentido sem a pregação da Palavra, sendo-lhe subordinados.33 Os sacramentos servem apenas para edificar a
igreja; a pregação, além disso, é o meio por excelência pelo qual a fé é suscitada; é o poder de Deus para a salvação.34 Os
sacramentos são como que apêndices à pregação do evangelho.35 É assim que reformadores e puritanos interpretam as
palavras de Paulo em 1 Coríntios 1.17: “Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho.” Para
Calvino, os sacramentos não têm sentido sem a pregação do evangelho.36 Quando a ministração dos sacramentos é
dissociada da pregação, eles tendem a ser considerados como práticas mágicas.

A idéia puritana quanto à relevância da pregação não é diferente. Lloyd-Jones observou que “os puritanos asseveravam
também que o sermão é mais importante que as ordenanças ou quaisquer cerimônias. Alegavam que ele é um ato de
culto semelhante à eucaristia, e mais central no serviço da igreja. As ordenanças, diziam eles, selam a palavra pregada e,
portanto, são subordinadas a ela.”38 Comentando Efésios 4.11, Hodge explica o papel do pregador como canal da
operação do Espírito como segue:

Assim como no corpo humano há certos canais por meio dos quais a influência vital flui da cabeça para os membros, os
quais são necessários à sua comunicação, assim também há certos meios divinamente designados para a distribuição do
Espírito Santo, de Cristo para os diversos membros do seu corpo. Quais canais de influência divina são esses, pelos quais a
igreja é sustentada e impulsionada, é claramente indicado no verso 11, no qual o apóstolo diz: “Cristo deu uns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao
aperfeiçoamento dos santos.” É, portanto, através do ministério da Palavra que a influência divina flui de Cristo, o cabeça,
para todos os membros do seu corpo; de modo que onde o ministério falha, a influência divina falha. Isto não significa
que os ministros, na qualidade de homens ou oficiais, sejam de tal modo canais do Espírito para os membros da igreja,
que sem a intervenção ministerial deles, ninguém se torna participante do Espírito Santo. Significa, sim, que os ministros,
na condição de despenseiros da verdade, são, portanto, os canais da comunicação divina. Pelos dons da revelação e
inspiração, Cristo constituiu uns apóstolos e outros profetas para a comunicação e registro da sua verdade; e pela
vocação interna do seu Espírito, ele constitui outros evangelistas e outros pastores, com vistas à sua constante
proclamação e persuasão. E é somente (no que diz respeito aos adultos) em conexão com a verdade assim revelada e
pregada, que o Espírito Santo é comunicado.

Que graças são comunicadas por meio da pregação? A pregação é o meio pelo qual as pessoas adultas e capazes são
externamente chamadas para a salvação.40 É a causa instrumental da fé e principal meio pelo qual a fé é aumentada e
fortalecida, a igreja é edificada e o Reino de Deus é promovido no mundo.41 Pela pregação da Palavra a igreja é ensinada,
convencida, reprovada, exortada e confortada.42

B. A Tarefa Primordial da Igreja e do Pregador

Na concepção reformada, a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra.43 Em suas mensagens e
escritos, os reformadores condenam insistente e duramente o clero romano por negligenciar a pregação. Incapacitados
para a tarefa, os sacerdotes católicos delegavam a função a outros,44 e dedicavam-se a atividades secundárias, ou mesmo
à ociosidade e à luxúria. A superficialidade e leviandade com que as pessoas participavam da missa era, para Lutero, culpa
dos bispos e sacerdotes, que não pregavam nem ensinavam as pessoas a ouvir a pregação.45 Ele considera que:

...não há praga mais cruel da ira de Deus do que quando ele envia fome [escassez] de ouvir sua Palavra, como diz Amós
[8.11s], como também não existe maior graça do que quando envia sua Palavra, conforme o Salmo 107.20: “Enviou sua
Palavra e os sarou, e os livrou de sua perdição.” Também Cristo não foi enviado para outra tarefa do que para [pregar] a
Palavra; também o apostolado, o episcopado e toda ordem clerical para outra coisa não foram chamados e instituídos do
que para o ministério da Palavra.46

Para Lutero, “...quem não prega a Palavra, para o que foi chamado pela igreja, não é sacerdote de maneira alguma...
quem não é anjo (mensageiro) do Senhor dos Exércitos ou quem é chamado para outra coisa que não para
o angelato (por assim dizer), certamente não é sacerdote... Por isso também são chamados de pastores, porque devem
apascentar, isto é, ensinar. O múnus do sacerdote é pregar. O ministério da Palavra faz o sacerdote e o bispo.”

Calvino também condena repetidas vezes os sacerdotes e bispos por não pregarem o evangelho.48 Comentando Atos
1.21-22, quando Barsabás e Matias são indicados para preencher a vaga de Judas no apostolado, como testemunhas da
ressurreição de Cristo, Calvino conclui com isso que o ensino e a pregação são funções essenciais do ministério.49

A Forma de Governo Eclesiástico Presbiteriano relaciona, entre as atribuições do ministro da Palavra, juntamente com a
oração e a administração dos sacramentos, “alimentar o rebanho pela pregação da Palavra, de acordo com a qual deve
ensinar, convencer, reprovar, exortar e confortar.”

Esses documentos presbiterianos simplesmente refletem a concepção puritana. William Bradshaw, autor de uma das
obras mais antigas sobre os puritanos comenta que, para eles, “o mais elevado e supremo ofício e autoridade do pastor é
pregar o evangelho solene e publicamente à congregação.”51 Packer cita Owen para demonstrar que a pregação era, para
os puritanos, “o principal dever de um pastor. De acordo com o exemplo dos apóstolos, eles devem livrar-se de todo
impedimento a fim de que possam dedicar-se totalmente à Palavra e à oração.”52 Jonathan Edwards considerava a
pregação do evangelho o principal dever do ministro.53 Em uma carta, ele comentou:

Devemos ser fiéis em cada parte das nossas obras ministeriais, e nos empenhar para magnificar nosso ofício. De maneira
particular, devemos atentar para a nossa pregação, a fim de que ela seja não apenas sã, mas instrutiva, temperada,
espiritual, muito estimulante e perscrutadora; bem pertinente à época e tempos em que vivemos, labutando
diligentemente para isso.

Dentre as passagens bíblicas que fundamentam essa característica da pregação reformada, as seguintes podem ser
mencionadas: com relação a Jesus, Lucas 12.14 e João 6.14-15; com relação aos apóstolos, Atos 6.1-7 e 1 Coríntios 1.17;
com relação aos evangelistas, precursores do ministério permanente da pregação da Palavra, 1 Timóteo 5.15; e com
relação aos ministros permanentes da Palavra, Romanos 10.13-17 e 2 Timóteo 4.1-4.

C. A Centralidade da Pregação no Culto

No culto medieval, a pregação era considerada, no máximo, como elemento preparatório para a ministração e recepção
dos sacramentos. Na concepção reformado-puritana, “a leitura das Escrituras, com santo temor, a sã pregação da Palavra
e a consciente atenção a ela em obediência a Deus com entendimento, fé e reverência...,” são os principais elementos do
culto a Deus na dispensação da graça.55 A Reforma restaurou a pregação à sua posição bíblica, conferindo a ela a
centralidade no culto público.

Na antiga dispensação, o elemento central do culto público era o sacrifício, uma pregação simbólica apontando para o
sacrifício de Cristo. Na nova dispensação, havendo Cristo oferecido a si mesmo como o Cordeiro Pascal que tira o pecado
do mundo, não há mais lugar para sacrifícios. A pregação da Palavra é a legítima substituta do sacrifício como atividade
central do culto na dispensação da graça. O que o sacrifício proclamava de forma simbólica e pictórica na antiga
dispensação, deve ser agora anunciado de forma oral, pela leitura e pregação da Palavra.

Com o propósito de restaurar a igreja em Genebra ao modelo bíblico, Calvino e outros redigiram as Ordenanças
Eclesiásticas, um manual de governo eclesiástico e de culto. De acordo com as Ordenanças, a pregação da Palavra deveria
ser o elemento essencial do culto público e a tarefa essencial e central do ministério pastoral.57 No seu prefácio aos
sermões de Calvino sobre o Salmo 119, Boice observa:

Quando a Reforma Protestante aconteceu no século XVI e as verdades da Bíblia, que por longo tempo haviam sido
obscurecidas pelas tradições da igreja medieval, novamente tornaram-se conhecidas, houve uma imediata elevação das
Escrituras nos cultos protestantes. João Calvino, em particular, pôs isto em prática de modo pleno, ordenando que os
altares (há muito o centro da missa latina) fossem removidos das igrejas e que o púlpito com uma Bíblia aberta sobre ele
fosse colocado no centro do prédio.58

Lutero também “...considerava a pregação como a parte central do culto público e colocava a pregação da Palavra até
mesmo acima da sua leitura.”59 Timothy George descreve assim a contribuição de Lutero para a pregação:

Lutero recuperou a doutrina paulina da proclamação: a fé vem pelo ouvir, o ouvir pela palavra de Deus... (Rm 10.17).
Lutero não inventou a pregação mas a elevou a um novo status dentro do culto cristão... O sermão era a melhor e mais
necessária parte da missa. Lutero investiu-o de uma qualidade quase sacramental, tornando-o o núcleo da liturgia... O
culto protestante centrava-se ao redor do púlpito e da Bíblia aberta, com o pregador encarando a congregação, e não em
volta de um altar com o sacerdote realizando um ritual semi-secreto. O ofício da pregação era tão importante que até
mesmo os membros banidos da igreja não deviam ser excluídos de seus benefícios.

Quanto aos puritanos, eles “anelavam ver a pregação da Palavra de Deus tornar-se central no culto.”61 O culto puritano
culminava no sermão. Ryken observa que “os puritanos fizeram da leitura e exposição das Escrituras o evento principal do
culto.” A pratica puritana da “profetização” (prophesying), um tipo de escola de profetas em que ministros pregavam um
após o outro, com vistas ao treinamento de pregadores menos experientes,62 “contribuiu mais do que qualquer outro
meio para promover e estabelecer a nova religião na Inglaterra” na época.63

D. A Marca Essencial da Verdadeira Igreja

Porquanto na pregação Cristo fala e se faz presente, governando e ensinando a igreja, a fé reformada é unânime em
considerar que a pregação da Palavra é uma das marcas da verdadeira igreja. Diversos símbolos de fé reformados, dentre
os quais a Confissão Belga (artigo 29), a Confissão Escocesa de 1560 (artigo 18), a Confissão da Igreja Inglesa em
Genebra de 1556 (artigos 26-28), a Confissão de Fé Francesa de 1559, e a Segunda Confissão Helvética de 1566 (capítulo
17) professam que a “pregação pura do evangelho,” a “verdadeira pregação da Palavra de Deus,” é uma das marcas pelas
quais a verdadeira igreja de Cristo pode ser reconhecida neste mundo. Lutero escreveu que “unicamente Cristo é o
cabeça da cristandade. Ele age através do evangelho pregado, do Batismo e da Ceia do Senhor, os quais, portanto, são
também os sinais pelos quais a verdadeira igreja se identifica.”64 Para Calvino, Satanás tenta destruir a igreja fazendo
desaparecer a pregação pura.65 Conseqüentemente,

... os sinais pelos quais a igreja é reconhecida são a pregação da Palavra e a observância dos sacramentos, pois estes,
onde quer que existam, produzem fruto e prosperam pela bênção de Deus. Eu não estou dizendo que onde quer que a
Palavra seja pregada os frutos imediatamente apareçam; mas que, onde quer que seja recebida e habite por algum
tempo, ela sempre manifesta sua eficácia. Mas isto quando a pregação do evangelho é ouvida com reverência, e os
sacramentos não são negligenciados...66
De fato, dentre as três marcas da verdadeira igreja geralmente reconhecidas (a pregação, a ministração dos sacramentos
e o exercício da disciplina), a pregação é considerada a mais importante. Primeiro, porque inclui as outras duas: como
vimos, na concepção reformada, os sacramentos não podem ser dissociados da Palavra, nem o exercício da disciplina.
Segundo, porque é através da pregação verdadeira da Palavra que os eleitos são congregados e edificados. Berkhof, por
exemplo, afirma que, “estritamente falando, pode-se dizer que a pregação verdadeira da Palavra e seu reconhecimento
como o modelo da doutrina e da vida é a única marca da igreja. Sem ela não há igreja, e ela determina a reta
administração dos sacramentos e o exercício fiel da disciplina eclesiástica.”

Herman Hoeksema, outro teólogo reformado, escreveu: ...podemos dizer que a única marca distintiva importante da
verdadeira igreja é a pura pregação da Palavra de Deus. Onde a Palavra de Deus é pregada e ouvida, aí está a igreja de
Deus. Onde esta Palavra não é pregada, aí a igreja não está presente. E onde esta Palavra é adulterada, a igreja deve
arrepender-se ou morrerá.68

III. A EFICÁCIA DA PREGAÇÃO

Embora tendo elevada concepção da pregação, a fé reformada não atribui à palavra pregada eficácia automática,
mecânica ou mágica,69 e nem a associa primordialmente às habilidades e capacidades pessoais do pregador ou dos
ouvintes. A eficácia da pregação, na teologia reformada, depende fundamentalmente da operação do Espírito Santo e da
responsabilidade humana do pregador e dos ouvintes.

A. A Eficácia da Pregação e as Habilidades Pessoais do Pregador

Com base em 1 Coríntios 2.1-4 e 2 Coríntios 3.5, a fé reformada sustenta que a eficácia da pregação não depende, em
primeiro lugar, da eloqüência, linguagem elaborada, gesticulação premeditada ou da capacidade intelectual do pregador.
Um pregador pode ser eloqüente, pode gesticular bem, evidenciar grande capacidade intelectual e, no entanto, sua
pregação pode ser completamente ineficaz. De fato, estas coisas podem tornar-se até em empecilho para a genuína
promoção do reino de Deus. O ideal reformado-puritano da pregação inclui linguagem simples e gesticulação natural.

B. A Obra do Espírito Santo para a Eficácia da Pregação

No entendimento reformado, a eficácia da pregação depende principalmente da obra do Espírito,70 que ocorre em três
instâncias: na preparação do sermão, na entrega da mensagem e na recepção da mensagem por ocasião da pregação.
Com relação ao pregador, a eficácia da pregação depende da capacitação do Espírito para a tarefa (2 Co 3.5-6). É o
Espírito Santo quem confere poder à pregação (1 Co 2.4-5 e 1 Ts 1.5). Calvino escreveu que “nenhum mortal está por si
mesmo qualificado para a pregação do evangelho, a não ser que Deus o revista com o seu Espírito.”71 Para ele, como
observou seu biógrafo Thomas Smith, “as qualificações que habilitam qualquer homem para este elevado ofício [da
pregação] só podem ser conferidas por Deus, através de Cristo, e pela operação eficaz do Espírito Santo.”72 A eficácia da
pregação depende da ação iluminadora do Espírito Santo na preparação do sermão e da unção do Espírito na entrega da
mensagem. Na preparação, a escolha do texto ou do livro a ser exposto e a determinação da sua extensão; a
compreensão do seu propósito, sentido, argumentação, significado e aplicação; e a elaboração da mensagem (redigida,
em forma de esboço, ou apenas de idéias gerais); tudo depende especialmente da operação interna do Espírito Santo na
mente e no coração do pregador. Se o Espírito Santo não assistir o pregador no seu labor exegético, o resultado do seu
trabalho será insuficiente, por maior que seja o seu conhecimento e por mais diligente que seja no seu trabalho. Na
entrega da mensagem, a eficácia varia na proporção da dependência do pregador da assistência do Espírito, e não da
confiança no seu preparo ou habilidades naturais. Havendo se empenhado para compreender o texto e preparar a
mensagem e suplicado pela iluminação do Espírito, no momento da pregação o pregador precisa confiar-se
completamente à assistência do Espírito Santo, dando lugar a que ele intervenha na entrega da mensagem.

Com relação ao ouvinte, a eficácia da pregação depende, em última instância, da ação iluminadora interna do Espírito
Santo na sua mente e coração. É ele quem abre o coração dos ouvintes para que compreendam a mensagem (At 16.14). É
ele quem escreve a mensagem no coração dos ouvintes (2 Co 3.3). Somente ele faz resplandecer o evangelho no coração,
“para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2 Co 4.6). A pregação em si mesma, por mais
verdadeira que seja, e por mais ungido que seja o pregador, é inútil. Não porque falte poder a ela. Mas, por causa da
cegueira espiritual do homem natural, a palavra pregada só se torna eficaz pela operação interna imprescindível do
Espírito Santo, “o Mestre interior,” que a acompanha.73 Em contraste com a posição arminiana, a fé reformada enfatiza
que “é Deus somente, na pessoa do Espírito Santo, quem pode tornar e torna eficaz a pregação.74 A depravação do
coração humano não permite dissociar a palavra pregada da operação do Espírito.75 É este o ensino de Calvino sobre o
assunto, e aqueles que o investigam raramente deixam de observar o fato. Para ele, “assim como a pregação é o
instrumento da fé, assim também o Espírito Santo torna a pregação eficaz.”77 Em seu comentário de Isaías, ele escreveu
que “o Espírito está ligado à Palavra, porque, sem a eficácia do Espírito, a pregação do evangelho de nada adiantaria, mas
permaneceria infrutífera.”78 E em seu comentário do livro de Atos, ele deixa claro que depende do poder secreto do
Espírito Santo que a pregação dos ministros do evangelho seja eficaz.79 A vocação eficaz, explica Calvino, consiste de um
duplo chamado: externo, pela pregação da Palavra, e interno, pela iluminação do Espírito, que enraíza a palavra
pregada.80 Em seu comentário de Miquéias, por exemplo, o reformador observa que “o governo peculiar de Deus existe
no âmbito da igreja, onde pela Palavra e Espírito, ele dobra os corações dos homens à obediência, de modo que eles o
seguem voluntária e livremente, sendo ensinados interna e externamente — internamente pela influência do Espírito,
externamente pela pregação da Palavra.”81 O fato de que o apóstolo Paulo chama a sua pregação em 2 Coríntios 3.8 de
“ministério do Espírito,” mostra a Calvino quão relacionados estão a pregação da Palavra e o Espírito.82 Para ele, “o
Espírito exerce o seu ofício pela pregação do evangelho.”

A Confissão de Fé de Westminster afirma que é pelo ministério (da Palavra), tornado eficiente pela presença de Cristo e
pelo seu Espírito, que os santos são congregados e aperfeiçoados nesta vida.84 O Catecismo Maior de
Westminster reconhece que é o Espírito Santo quem torna a pregação da Palavra o meio especialmente eficaz para a
salvação: “O Espírito de Deus torna a leitura, e especialmente a pregação da Palavra, um meio eficaz para iluminar,
convencer e humilhar os pecadores; para lhes tirar toda confiança em si mesmos e os atrair a Cristo; para os conformar à
sua imagem e os sujeitar à sua vontade; para os fortalecer contra as tentações e corrupções; para os edificar na graça e
estabelecer os seus corações em santidade e conforto mediante a fé para a salvação.”

C. A Responsabilidade do Pregador e dos Ouvintes para a Eficácia da Pregação

Como vimos, a fé reformada condiciona a eficácia da pregação primordialmente à obra do Espírito no pregador e nos
ouvintes. Isso, entretanto, não ocorre em detrimento da responsabilidade humana de um e de outros. A eficácia da
pregação depende também da fidelidade do pregador em não adulterar ou mercadejar a Palavra de Deus (2 Co 2.17 e
4.2) e do uso correto que fizer da Palavra, o qual, por sua vez, dependerá da sua fidelidade no preparo. Depende, ainda,
da responsabilidade dos ouvintes em receberem com atenção, reverência, fé e obediência a palavra pregada (Rm 1.5;
15.26).

Os ministros da Palavra são descritos nas Escrituras como “presbíteros que se afadigam na Palavra e no ensino” (1 Tm
5.17), são exortados a manejarem bem a Palavra da verdade (2 Tm 2.15) e a não se tornarem negligentes na preparação
para a tarefa (2 Tm 4.14). Da perseverança deles nestes deveres dependerá também a eficácia da pregação para a
salvação dos ouvintes (v. 16).

Quanto aos ouvintes, são instados nas Escrituras a considerarem atentamente a Palavra e a não serem negligentes, mas
operosos praticantes (Tg 1.25); a “acolherem com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar
as vossas almas” (Tg 1.21b); a tornarem-se “praticantes da Palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos” (Tg 1.22).

Reformadores e puritanos enfatizaram bastante a responsabilidade dos ouvintes para a eficácia da pregação. A teologia
reformada da palavra pregada resultou em uma teologia reformada da palavra ouvida.86 Especialmente com relação à
edificação dos crentes, esta responsabilidade inclui o devido preparo prévio para ouvir a pregação, a atitude correta ao
ouvir a palavra pregada, e o uso apropriado posterior da mensagem ouvida. A preparação prévia requer oração, apetite e
um espírito ensinável. Somente uma semana vivida pensando nas coisas do alto, onde Cristo vive, deixa o crente
preparado para ouvir a pregação (Cl 3.1-2; 2 Co 4.18). A atitude ao ouvir exige reverência, atenção, humildade e fé (Hb
4.1-2), características daqueles que discernem a real natureza do culto e da pregação. O uso apropriado posterior inclui
meditação, oração e prática da mensagem ouvida (Tg 1.21-25).87

Lutero escreveu que “incorre em grave pecado quem não ouve [a pregação do] evangelho e despreza semelhante
tesouro...”88 Para Calvino, “a pregação é um ato corporativo da igreja toda.” A congregação participa da pregação tão
ativamente quanto participa da ceia.89 Por isso, ele insiste em que os ouvintes venham preparados para receber a
mensagem.90 Ele enfatizou que a pregação da Palavra precisa ser ouvida “com grande reverência”, “bastante atenção,” e
“sobriedade para o nosso proveito.” Acima de tudo, disse ele, “precisamos orar continuamente para que o generoso e
gracioso Senhor nos conceda seu Espírito, a fim de que por ele a semente da Palavra de Deus seja vivificada em nossos
corações.”91 Calvino menciona também a necessidade de humildade para receber a palavra pregada, mas observa que é o
próprio Espírito Santo quem torna uma pessoa desejosa de ser ensinada pela Palavra.92 William Perkins, um dos pais do
puritanismo inglês, escreveu que
...a responsabilidade daqueles que ouvem a pregação da Palavra de Deus, é submeterem-se a ela... O dever de vocês é
ouvir a Palavra de Deus, pacientemente, submeter-se a ela, ser ensinados e instruídos, e mesmo ser perscrutados e
repreendidos, e ter os seus pecados descobertos e as corrupções arrancadas.93

Whitefield pregou um sermão especificamente sobre o assunto, intitulado Instruções sobre Como Ouvir Sermões, baseado
em Lucas 8.18, “Vede, pois, como ouvis.”94 Eis suas instruções: 1) venha ouvir, não por curiosidade, mas motivado por um
sincero desejo de conhecer e praticar seus deveres; 2) “não apenas prepare seu coração de antemão para ouvir, mas
também atente diligentemente para as coisas que forem faladas da Palavra de Deus”; 3) não tenha prevenção contra o
ministro a que Deus constituiu bispo (supervisor) e embaixador sobre você;95 4) aplique tudo o que ouvir ao seu próprio
coração; 5) ore, antes, durante e depois do sermão, a fim de que Deus conceda poder ao pregador e habilite você a
praticar a mensagem.
O Breve Catecismo de Westminster, na resposta à pergunta de número 90, “Como se deve ler e ouvir a Palavra a fim de
que ela se torne eficaz para salvação?” resume assim a responsabilidade do ouvinte na pregação: “Para que a Palavra se
torne eficaz para a salvação, devemos ouvi-la com diligência, preparação e oração, recebê-la com fé e amor, guardá-la em
nossos corações e praticá-la em nossas vidas.” Já o Catecismo Maior de Westminster, na resposta à pergunta de número
160, afirma:

Exige-se dos que ouvem a palavra pregada que atendam a ela com diligência, preparação e oração; que comparem com
as Escrituras aquilo que ouvem; que recebam a verdade com fé, amor, mansidão e prontidão de espírito, como a palavra
de Deus; que meditem nela e conversem a seu respeito uns com os outros; que a escondam nos seus corações e
produzam os devidos frutos em suas vidas.

D. Conclusão

Estas considerações sobre a obra do Espírito e a responsabilidade humana para a eficácia da pregação não devem levar o
leitor a pensar que a pregação da Palavra só se torna eficaz quando obtém resposta positiva dos ouvintes. A genuína
pregação do evangelho nunca é vã. Os legítimos pregadores do evangelho são sempre conduzidos por Deus em triunfo,
pois por meio deles se manifesta em todo lugar a fragrância do conhecimento de Deus. Eles são, diante de Deus, o bom
perfume de Cristo, tanto nos que são salvos, como nos que se perdem. “Para com estes cheiro de morte para morte; para
com aqueles aroma de vida para vida” (2 Co 2.14-16).96 Mesmo quando rejeitada, a eficácia da palavra pregada se
manifesta tornando indesculpáveis os réprobos, os quais, afirma Calvino, são cegados e estupeficados ainda mais pela
pregação da Palavra.97 Ou a pregação nos aproxima de Deus, ou nos coloca mais perto do inferno.98

IV. O PROPÓSITO DA PREGAÇÃO REFORMADA

Em alguns círculos evangélicos em nossos dias, a pregação parece ter como propósito o entretenimento do auditório, a
exacerbação das emoções, o bem-estar material e emocional dos ouvintes e a promoção do próprio pregador ou da sua
denominação. Ricardo Gondim, pastor da Assembléia de Deus, reconhece que os púlpitos brasileiros “estão cada vez mais
empobrecidos. Pastores animam seus auditórios com frases de efeito, contentam suas igrejas com mensagens
superficiais...” Ele admite que necessitamos de uma nova Reforma no cristianismo, a qual deve começar pelo
púlpito.99 Em outro artigo, o mesmo autor comenta que “há uma tendência de transformar a igreja em big business.
Pior, big business do lazer espiritual.” Ele continua: “Pastores e padres abandonaram sua vocação de portadores de boas
novas. Assumiram novos papéis: animadores de auditório e levantadores de fundos. O púlpito transformou-se em mero
palco. A igreja, simples platéia... Sermões podem ser facilmente confundidos com palestras de neurolingüística.”
O propósito da pregação reformada é completamente diferente. Ela tem objetivos claros e elevados com relação ao
texto que está sendo pregado, com relação aos ouvintes e, especialmente, com relação a Deus e ao seu reino neste
mundo.

A. Com Relação ao Texto

Uma das qualidades mais marcantes da pregação reformada consiste na determinação de fazer do propósito do texto o
propósito do sermão. Reformadores e puritanos compreenderam que cada passagem das Escrituras tem propósito(s)
específico(s). Por isso, fizeram grande esforço para entender o texto, para discernir o seu propósito(s), para proclamar
fielmente a mensagem bíblica e aplicá-la em consonância com o propósito divino. Lutero, por exemplo, afirma que “a
principal tarefa do pregador é ensinar corretamente, procurar os pontos [doutrinas] principais e bases do seu texto, e
instruir e ensinar de tal maneira os ouvintes que eles entendam corretamente [o texto].”101 Ele assim descreve o dever do
pregador:

...ele deve saber ensinar e admoestar. Quando prega uma doutrina, deve, primeiramente, caracterizá-la. Em segundo
lugar, deve defini-la, descrevê-la e explicá-la. Em terceiro lugar, deve apresentar passagens bíblicas que a comprovem e
confirmem. Em quarto lugar, deve explicá-la e declará-la com exemplos. Em quinto lugar, deve adorná-la com
comparações. E, finalmente, deve admoestar e despertar os preguiçosos, reprovar veementemente todos os
desobedientes, todas as falsas doutrinas e seus autores...
A pregação de Zuínglio é geralmente “direcionada ao propósito de libertar seus ouvintes do mundo de superstições e da
falsa religião.” E isto ele fez, na avaliação de Bullinger, “pela verdade divina e com ela, e não com frivolidades
humanas.”103 O labor exegético de Calvino a fim de compreender e transmitir o sentido real do texto bíblico em sua
pregação é amplamente reconhecido. “Como pregador, Calvino tinha um ardente desejo, qual seja, de levar seus ouvintes
a um entendimento preciso do que Deus está dizendo à congregação na passagem escolhida das Escrituras e o que aquilo
significava para os diferentes tipos de pessoas que estavam ouvindo a pregação.” Ele mesmo testifica que, quando
assumia o púlpito, não era para expor ali seus sonhos e imaginações, mas para transmitir fielmente, sem nenhum
acréscimo, o que havia recebido.105 Calvino descreve o propósito geral da pregação do seguinte modo:

Nisto consiste o poder supremo com o qual os pastores da igreja, seja qual for o nome pelo qual sejam chamados
deveriam ser investidos: serem ousados na proclamação da Palavra de Deus, exortando toda virtude, glória, sabedoria e
autoridade do mundo a se submeter e obedecer sua majestade; ordenar que todos, dos maiores aos menores confiem no
seu poder [de Deus] para edificar a casa de Cristo e destruir a casa de Satanás; alimentar as ovelhas e expulsar os lobos;
instruir e exortar os dóceis; acusar e subjugar os rebeldes e petulantes, ligar e desligar; em suma, queimar (to fire) e
fulminar, mas tudo de acordo com a Palavra de Deus.

O que Dargan escreveu com relação à pregação de Lutero, pode certamente ser generalizado como ilustrativo do
propósito da pregação dos reformadores em geral: “O contexto é considerado, e o real sentido e intenção dos autores
das Escrituras é buscado e respeitado.”. Packer menciona um comentário bastante elucidativo de um pregador puritano
com relação à determinação reformado-puritana no sentido de discernir o propósito do texto e fazer dele o propósito da
pregação:

Eu nunca preguei, a não ser que me sentisse convencido de haver descoberto a vontade de Deus com relação ao sentido
da passagem. Meu propósito é extrair da Escritura o que ali está... Sou muito zeloso quanto a isso: nunca falar mais nem
menos do que acredito ser a mente do Espírito na passagem que estou expondo.108

B. Com Relação aos Ouvintes

1. Alcançar e Converter o Coração

Reformadores e puritanos queriam, com a pregação, informar o intelecto, mover as afeições e motivar a
vontade.109 Entretanto, o alvo estava além do intelecto, dos sentimentos e das emoções. Eles almejavam alcançar e
converter o coração, o próprio centro da alma humana.110 E isto eles buscavam, não por meio de manipulação retórica da
audiência, mas através da pregação fiel da Palavra de Deus.
Em uma de suas obras, Lutero resume assim o propósito da pregação: “Estimular os pecadores a sentirem seus pecados e
despertar neles o desejo pelo tesouro” do evangelho.112 Em outra obra, ele deplora o fato de que não poucos pregam a
Cristo meramente com a intenção de comover os sentimentos humanos, ao invés de promover neles a fé em
Cristo.113 Calvino escreveu que “o propósito pelo qual a Palavra de Deus é pregada é nos iluminar com o verdadeiro
conhecimento de Deus, fazer com que nos voltemos para Deus, e nos reconciliar com ele.”114

Para os pregadores puritanos, o sucesso da pregação não deve ser avaliado apenas pelo que acontece na igreja, mas pelo
seu efeito nas vidas dos ouvintes que estão fora da mesma.115 O Catecismo Maior de Westminster exorta os ministros da
Palavra a pregarem “...com sinceridade..., procurando converter, edificar e salvar as almas.”116 A salvação da alma é o
grande propósito da pregação reformada com relação àqueles que se encontram em estado de pecado.

2. Mediar Encontros com Deus

Como o coração é alcançado e convertido? Quando pecadores têm um encontro verdadeiro com Deus mediado pela
pregação do evangelho. Packer resume o propósito da pregação reformada como “mediar encontros com Deus.” Para ele,
a pregação de Lutero, Latimer, Knox, Baxter, Bunyan, Whitefield, Edwards, McCheyne, Spurgeon, Ryle, Lloyd-Jones, entre
outros, não tencionava apenas informar os ouvintes, mas fazer com que a “pregação se tornasse o meio de encontro de
Deus com seus ouvintes,” pela exposição e aplicação das verdades das Escrituras.118 Para Lloyd-Jones, “o propósito
primeiro e primordial da pregação não é somente fornecer informação mas produzir uma impressão...”;119 é colocar os
homens diante de Deus, propiciando um encontro verdadeiro com ele.120 Em suas próprias palavras, o propósito da
pregação “é dar a homens e mulheres a sensação de Deus e da sua presença.”121 Ao fazer essas afirmativas, Lloyd-Jones
segue de perto a tradição puritana.122

3. Restaurar a Imagem de Deus no Homem

A conversão, entretanto, é apenas o começo. Na concepção reformada, o evangelho deve ser pregado com o objetivo de
restaurar nos ouvintes a imagem de Deus corrompida na queda.

Calvino relaciona a restauração da imagem de Deus no ser humano com o ministério da Palavra. Para ele, a restauração
da imago Dei no coração humano é obra do Espírito Santo de Deus por meio da pregação da Palavra.123 Ele interpreta o
pedido de Paulo em 2 Tessalonicenses 3:1 no seguinte sentido: “Que sua pregação possa manifestar seu poder e eficácia
para renovar o homem de conformidade com a imagem e semelhança de Deus.”124 A “reforma” e “edificação” da vida dos
ouvintes, segundo Calvino, é o propósito geral da pregação com relação à igreja.

Os puritanos relacionavam igualmente o propósito da pregação com a restauração da imagem de Deus no homem. Peter
Lewis, um estudioso do movimento puritano escreveu que para eles, “o fim principal da pregação... era a glorificação de
Deus na restauração da sua imagem nas almas e vidas dos homens.”
Dennis Johnson, um autor reformado contemporâneo, assevera na mesma linha que a pregação não se exaure na
evangelização e no ensino. Seu telos é a maturidade espiritual dos ouvintes. Ele afirma, com base em Romanos 8.29,
Colossenses 3.10-11 e Efésios 4.24, que “o alvo da pregação não é plenamente alcançado senão quando um rebelde se
torna filho de Deus. A pregação cristã, o evangelho apostólico, tem como seu propósito nada menos do que a
conformidade completa de cada filho de Deus à perfeita imagem do Filho: Cristo.”127

C. Com Relação a Deus


A restauração da imago Dei na alma e na vida do homem, não é, contudo, o propósito principal da pregação reformada. O
propósito maior da pregação reformada consiste em promover o reino e a glória de Deus e destruir o reino de Satanás.
Reformadores e puritanos anelavam com a pregação da Palavra, por um lado, avançar com a obra de Deus no mundo,
libertando pecadores da escravidão de Satanás, e edificar os santos, instruindo-os a viver para a glória de Deus; e, por
outro lado, desmascarar e lançar por terra a obra do diabo. Na proclamação do evangelho a glória de Deus resplandece
na face de Cristo (2 Co 4.6), assim como a glória de Deus é proclamada na obra da criação (Sl 19).

Parker afirma que, para Calvino, “o propósito do pregador é direcionado antes de mais nada para Deus. Ele prega a fim de
que Deus seja glorificado.”128 Comentando 2 Corintios 2.15 (“somos para com Deus o bom perfume de Cristo”), Calvino
afirma que “temos aqui uma passagem notável, porque nela somos ensinados que seja qual for o resultado da nossa
pregação, ainda assim ela é agradável a Deus..., porque Deus é glorificado mesmo quando o evangelho resulta na ruína
dos ímpios.”129 Calvino afirma que os crentes da antiga dispensação “foram exortados a buscarem a face de Deus no
santuário... (Sl 27.8; 100.2; 105.4) por nenhuma outra razão, senão porque o ensino da lei e as exortações dos profetas
eram uma imagem viva de Deus, assim como Paulo afirma que na sua pregação a glória de Deus resplandece na face de
Cristo (2 Co 4.6).”130 Benoît, um autor reformado francês, observa que “fazer da salvação o fim da religião significa,
segundo Calvino, colocar o homem no centro e fazer de Deus um simples meio com vistas a um fim pessoal.” Ele
continua, afirmando que, para Calvino, “a salvação individual não é o propósito final da pregação do evangelho. Ela tem
um propósito muito mais elevado: a manifestação da glória de Deus...”131 Para o Sínodo de Dort, também, nota Peter
Jong, o propósito último da pregação “é a glória de Deus na salvação de pecadores.”132

Na tradição puritana, o Catecismo Maior de Westminster exorta os ministros da Palavra a pregarem... “tendo por alvo a
glória de Deus.” 133 Joseph Pipa, estudioso da pregação puritana, afirma que “o grande propósito do sermão puritano era
transformar a vida das pessoas e equipá-las para viver para a glória de Deus.”
3
Embora anelasse profundamente a conversão de almas para Cristo, Spurgeon não considerava esse o fim maior da
pregação. Ele enfatiza insistentemente que a glória de Deus, sim, é o principal propósito da pregação. Ele escreveu que
“nada deveria ser o alvo do pregador a não ser a glória de Deus através da pregação do evangelho da salvação.”135 “Vocês
e eu,” disse ele em um de seus sermões, “somos constrangidos a pregar o evangelho, mesmo que nenhuma alma jamais
seja convertida por ele; pois o grande propósito do evangelho é a glória de Deus, visto que Deus é glorificado mesmo
naqueles que rejeitam o evangelho.”136 “Preguem o evangelho tendo em vista unicamente a glória de Deus,” adverte
Spurgeon, “ou então, segurem suas línguas.

V. CONCLUSÃO

Em muitos círculos evangélicos contemporâneos e até mesmo entre reformados, o surgimento de novos meios de
comunicação, a aversão do homem moderno por verdades objetivas, a secularização da sociedade, o afastamento do
cristianismo das Escrituras, e especialmente a concepção moderna da pregação como uma atividade meramente humana,
têm resultado em evidente declínio da pregação. Outras atividades têm tomado o seu lugar no culto, e a pregação têm
sido relegada a um plano secundário no culto e na vida da igreja.
Na concepção reformada, entretanto, a pregação pública da Palavra de Deus é considerada não como palavra de homem,
mas como vox Dei. Na proclamação solene da Palavra de Deus por arautos comissionados pelo próprio Deus, Cristo se faz
presente, fala e governa a igreja. A fé reformada tem uma concepção quase que sacramental da pregação. Ela professa a
real presença espiritual de Cristo na pregação, assim como na Ceia.

Em virtude dessa elevada concepção quanto à sua natureza, a teologia reformada atribui grande importância à pregação.
Na teologia reformada, a pregação é imprescindível. É o principal meio de graça, a tarefa primordial da igreja e do
ministro, o principal elemento de culto na dispensação da graça; constitui-se em marca essencial da verdadeira igreja, e
meio pelo qual o reino de Deus é aberto ou fechado aos pecadores. Isto não significa que a fé reformada atribua eficácia
automática à pregação. A eficácia da pregação também não está, primordialmente, nas habilidades pessoais do pregador
ou dos ouvintes. Está, sim, na operação do Espírito Santo, tanto na preparação e entrega da mensagem, como na sua
recepção. Os pregadores devem laborar na interpretação da Palavra, e transmiti-la fielmente. Os ouvintes, devem receber
com atenção, reverência, fé e obediência a palavra pregada. Contudo, somente o Espírito Santo pode conferir eficácia à
pregação, assistindo e capacitando o pregador, e iluminando e convencendo os ouvintes do pecado e da graça de Deus
em Cristo. Não obstante, independentemente da resposta dos ouvintes, a genuína pregação do evangelho nunca é vã. O
reino de Deus é promovido também na condenação dos réprobos.O propósito da pregação reformada consiste na
fidelidade ao sentido, significado e propósito do texto; na conversão e restauração da imagem de Deus nos ouvintes; e na
promoção do reino e da glória de Deus no mundo. Que a vox Dei seja ouvida em nossos púlpitos, para a conversão dos
perdidos, para a restauração da imago Dei na alma e na vida dos ouvintes, com vistas à promoção do reino e da glória de
Deus no mundo.
NOTAS* O autor é ministro presbiteriano, professor de Grego e Hermenêutica no Seminário Teológico Batista Equatorial e presidente da
Associação Reformada Palavra da Verdade, na cidade de Belém. É mestre em Teologia pela Potchefstroom University for Christian Higher
Education (África do Sul) e doutorando em Ministério no Westminster Theological Seminary, na Califórnia.

Obs.: Este artigo é parte de um dos capítulos da dissertação de Doutorado em Ministério que está sendo elaborada pelo autor com o tema:
“Hermenêutica e Pregação: Manual de Hermenêutica Reformada para Pregadores.”

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