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O CORPO COMO ELEMENTO TRANSGRESSOR NA VIDA E ARTE DE HÉLIO
OITICICA
Florianópolis,
Novembro de 2017.
Tratando-se de Hélio Oiticica, a relação entre vida e obra é muito potente, isto é, não se
trata apenas de obras que caracterizem os anseios do artista no momento de sua produção, mas,
além disso, de um artista que transforma sua própria relação com mundo para propor uma arte
transformadora. Isso porque Hélio mescla tudo numa trajetória onde coexistem binômios como
vida-obra, construção-desconstrução, conceitual-sensível, política-arte. Sendo assim, falar de
Oiticica necessariamente implica em delinear ora sua vida pessoal, ora como dela surge sua
produção artística, tendo aqui como pontapé a análise de como a temática do corpo aparece como o
elemento transformador que emerge nesta trajetória cujas proposições atingem a excelência nos
Parangolés.
O programa ambiental
Nos anos 60, Hélio concretiza sua produção de transição onde a tela é substituída pela
construção de espaços/ambientes/instalações (para ele, os Penetráveis), como os Bilaterais, Relevos
Espaciais e Núcleos. Este é o marco inicial de seu programa ambiental, ou seja, de uma arte que
está em ambientes e precisa ser vivenciada, a própria arte se torna um espaço que deve ser
penetrado pelo espectador para ser contemplado de forma interativa. No caso dos Núcleos e
Bilaterais se trata de um programa que envolve ambiente, espectador e cor. A obra consiste numa
escala gradiente de tons que aos poucos, com o deslocamento de espectador vai sendo percebida
sensorialmente. Sua proposta é a busca pelo núcleo das cores e para que se possa percebê-la o
espectador se insere na estrutura da obra, adentra o espaço composto por placas coloridas
penduradas por fios, e cercado por elas pode perceber os desdobramentos de cor. Esses ambientes
exigem mais do que um espectador estático: a obra só faz sentido quando é habitada e
experimentada, isto é, na caminhada dentro e por volta da instalação percebe-se a mudança sutil das
cores, que são proporcionadas tanto pela característica da obra mas, também, pelas gradações da luz
do ambiente e que a própria percepção individual induz. A proposta é de um observador que tem
papel ativo cuja completa percepção da obra só se concretiza com esse deslocamento corporal.
Em 1963, a confecção dos primeiros Bólides caracteriza a progressão do programa que
introduz outro sentido nesta fuga da contemplação: o recurso tátil. O espectador está presente nos
Núcleos e Bilaterais, mas há um aprofundamento dessa questão com estas primeiras estruturas
manuseáveis que são baseadas na vontade de dar corpo à cor e acrescentar à experiência visual
outros estímulos sensoriais. Nesta série, Hélio Oiticica coloca o participador em contato com
diferentes artefatos de vidro, plástico, cimento, madeira em que materiais da natureza como
pigmentos, terra, areia, conchas, palha e zarcão são oferecidos para serem manipulados
manualmente e intuitivamente.
Os programas ambientais denominam este projeto de várias obras distintas que têm o
elemento ambiental em comum, ou seja, que são pensadas com o propósito de proporcionar
experiências de envolvimento sensorial e, além disso, promovem um exercício de
descondicionamento do modo tradicional e estático de apreciação da arte, de como se portar na
esfera do museu e de uma série de inscrições corporais socialmente disciplinadoras. Como aponta
Bourdieu, a ideia do museu de arte como o lugar da passagem entre o sagrado e o profano, faz com
que o corpo se adapte ao espaço e à comportamentos tradicionalmente “apropriados”.
Nesse sentido caminha o fato de Oiticica inserir o engajamento corporal como um aspecto
crítico e transgredir os limites entre o sagrado e o profano, tanto na produção artística quanto na
dualidade entre um racionalismo que se opõe ao sensível. Essa posição terá ainda mais impacto com
a confecção dos Parangolés quando, além de Oiticica propor uma nova etapa da interação de um
corpo participador na arte, ele redescobre seu próprio corpo no Morro da Mangueira.
O encontro com o samba, o Parangolé e o corpo marginal
A noção do corpo que recebe os estímulos das obras passa por uma transformação
importante a partir do contato de Hélio Oiticica com o Morro da Mangueira no Rio de Janeiro em
1964. O envolvimento com o morro aconteceu após a morte de seu pai, Paola Berenstein Jacques
nos mostra como o ano de 64 foi um ano de reviravolta na vida de Oiticica marcado por estes dois
eventos: a morte de seu pai e o Morro da Mangueira. Hélio trabalhava com o pai José Oiticica Filho
nos arquivos do Museu Nacional, com ele aprendeu e perpetuou uma metodologia racionalista,
rigorosa e disciplinada, e só após a morte de seu pai Hélio conhece o Morro a convite do amigo
Jackson Ribeiro. Através do depoimento de Lygia Pape, sua amiga muito próxima, é possível
entender o impacto do morro em Oiticica e como isso foi capaz de reformular sua percepção e
relação com o mundo e com seu próprio corpo.
Hélio era um jovem apolíneo, até um pouco pedante, que trabalhava com pai na
documentação do Museu Nacional, onde aprendeu uma metodologia: era muito organizado,
disciplinado [...] Em 1964, seu pai morreu; um amigo nosso, o Jackson, então, levou o
Hélio para a Mangueira, para pintar os carros, foi aí que ele descobriu um espaço
dionisíaco, que não conhecia, não tinha a menor experiência. Parecia uma virgem que caiu
do outro lado; ele não tinha mais o pai que poderia ser um super-ego. Descobriu, aí, o
ritmo, a música. Ficou tão entusiasmado que começou a aprender a dançar, para poder
participar dos desfiles, dos ensaios; se integrou na escola de samba, fez grandes amigos, ele
descobriu o sexo, aí então foi uma esbórnia total a vida de Hélio, tanto que o Jackson dizia
assim: “Nada como perder o pai!”. Hélio virou uma outra pessoa.
[...] Ele muda radicalmente, até eticamente; ele era um apolíneo e passa a ser dionisíaco
[L.P. discorre sobre a descoberta do sexo e da homossexualidade por H.O.] Essas barreiras
da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio “do
morro”, que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra. (Lygia Pape em entrevista
para JACQUES, 2001, p. 27)
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É importante não tomar a obra de H.O. de forma cronológica, dessa forma, o encontro com a Mangueira faz com que
os conceitos dos Penetráveis e Bólides sejam retomados e também sofram alterações. Os seus passos para a superação
da pintura são construções conceituais, mas que não comportam uma ideia de descoberta do novo e abandono do
antigo. Neste trabalho traçamos uma noção de linearidade da sua produção que deve ser entendida como conceitual, e
não necessariamente cronológica.
Toda a unidade estrutural dessas obras está baseada na estrutura-ação que é aqui
fundamental; o “ato” do espectador ao carregar a obra, ou ao dançar ou correr, revela a
totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação
própria no sentido do “ato expressivo”. A ação é a pura manifestação expressiva da obra. A
ideia da “capa”, posterior à do estandarte, já consolida mais esse ponto de vista: o
espectador “veste” a capa, que se constitui de camadas de pano de cor que se revelam à
medida que este se movimenta correndo ou dançando. A obra requer aí a participação
corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance, em última
análise. O próprio “ato de vestir” a obra já implica uma transmutação expressivo-corporal
do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição.
A criação da “capa” (já realizada a 1 e 2) veio trazer não só a questão de considerar um
“ciclo de participação” na obra, isto é, um “assistir” e “vestir” a obra para a sua completa
visão por parte do espectador, mas também a de abordar o problema da obra no espaço e no
tempo – não mais como se ela fosse “situada” em relação a esses elementos, mas como uma
“vivência mágica” dos mesmos. (OITICICA, 1986, p. 70-71)
Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no
meu caso particular o samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de
desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão, já que me sentia ameaçado
na minha expressão de uma excessiva intelectualização. (…) É portanto, para mim, uma
experiência da maior vitalidade, indispensável, principalmente como demolidora de
preconceitos, estereotipações etc.
(…) A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes etc., seria
inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri daí a conexão entre o
coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal – ou seja, o
desconhecimento de níveis abstratos, de “camadas” sociais, para uma compreensão de uma
totalidade. O condicionamento burguês a que eu estava submetido desde que nasci
desfez-se como por encanto – devo dizer, aliás, que o processo já se vinha formando antes
sem que eu soubesse. (OITICICA, 1986, p. 72-73)
BRAGA, Paula (Org.). Fios Soltos: A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2008.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra
de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, 2012.
MELO, Vaneza et al. Hélio Oiticica, Propositor De Práticas: Teoria Crítica sobre o
Parangolé, Nova Objetividade e Tropicália. Palíndromo: Revista do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais – CEART/UDESC, Florianópolis, n. 8, p.64-82, 2012.
NASCIMENTO, Silvana. A cidade no corpo: diálogos entre corpografia e etnografia.
Ponto Urbe. 19: 1-12, 2016.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
VIANNA, Hermano. “Não quero que a vida me faça de otário!”: Hélio Oiticica mediador
entre o asfalto e o morro. In: VELHO, G. ; KUSCHINER, K. (Org.). Mediação, Cultura e Política.
Rio de Janeiro: Aeroplano, p. 31-60, 2001.
Vídeos
Hélio Oiticica – Museu é o Mundo. Realização de Projeto Hélio Oiticica, Museu Nacional
da República, CAL/DEX UnB. Brasília: Vertigo 30 - Escritório de Produção, 2010. (31 min.).
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=FipU4XoPAsI >. Acesso em: 26 nov. 2017
H.O.. Direção de Ivan Cardoso. Rio de Janeiro, 1979. (13 min.). Disponível em: <
http://portacurtas.org.br/filme/?name=ho >. Acesso em: 20 nov. 2017
Palestra com curadores Celso Favaretto e Paula Braga da exposição Hélio Oiticica na
Unifor. Fortaleza, 2016. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=PoshpM4IU2Q >.
Acesso em: 28 nov. 2017