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O vaso
Em primeiro lugar, a alegria é um vaso onde se guarda aquilo que jamais se
poderá prender, mas que vem ao nosso encontro, a experiência imediata trans-
figurada em recordação. O vaso é inquebrável e poroso, é inquebrável porque
poroso, resultado daquela transfiguração: as mudanças do céu numa tarde de
aguaceiros, roupa a secar ao vento, os movimentos bruscos, ancestrais, secretos
e cómicos dos melros em acasalamento, a coisa que perdemos e desistimos de
procurar e um belo dia nos cai nas mãos. O tema é goethiano (Viagem a Itália).
[…] não seria toda a doença curável se se deixasse arrastar o mais longe possível —
até à foz — pela corrente da narração? Se imaginarmos que a dor é um dique que
resiste à corrente da narrativa, verificaremos claramente que ele será derrubado se
a inclinação for suficientemente forte para arrastar para o mar do esquecimento
feliz tudo o que encontrar pelo caminho. A mão que acaricia traça o leito desse rio.
Walter Benjamin, «Conto e cura», Imagens do pensamento1
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O desespero, o modo como a esperança ergue os braços, é o sinal apenas de
que a desproporção de viver implica contracção, fechamento. O inalcançável
é o teor do seu contraste. Por sua vez, embora conheçam alturas que os bra-
ços não alcançam, as asas não estão preparadas para a contracção. Nada de
mais verdadeiro, conclui Benjamin, sem amargura. Essa é, paradoxalmente, a
condição preparatória, para privados de esperança (criadora de asas que não
vencem os braços, isso que nos foi dado), podermos vir a ficar cheios de alegria.
O verso que dá o título a esta secção foi escrito por Hermann Broch em Die
Schuldlosen.
Lentidão e eternidade
Talvez a melhor decifração da palavra de Keats: «A thing of beauty is a joy
forever» seja uma outra de Nietzsche (Humano, demasiado humano): «A len-
ta flecha da beleza», em que vemos dar-se uma transição da eternidade para
a lentidão. Eis o mais nobre tipo de beleza: aquela beleza que cada «pessoa
traz consigo» e «uma vez mais vem ao seu encontro» em certos momentos de
esquecimento, de distracção, de abandono (Nietzsche chama-lhes «sonhos»),
uma beleza que não arrebata, mas se insinua sem pressas, aquela que volta a
fazer bater o coração e depositada nele «toma inteiramente conta de nós».
Por isso ela, do mesmo modo que o bater do coração, contrai-se e expande-se:
sentimos anseio e deixamos cair as lágrimas.
Louvor do hábito
Demoremo-nos na relação entre hábito — o retorno do que conhecemos, do
que conhecemos um dia e nos esquecemos, do que esperamos que retorne,
que volte para nós — e alegria. Nas Vermischte Bemerkungen [Observações
dispersas], surpreendemos, por contraste, essa associação do retorno do dia,
da repetição do que mudamente desejamos se repita, que conhecemos sob a
forma de hábito, à visão que proporciona alegria. A interrupção mais terrível
desse vínculo dá-se na visão catastrófica do mundo, aquela em que nada vol-
tará a nascer, aquela em que a luz do dia não regressará. Esse desabamento de
qualquer repetição, o poder hostilíssimo do que nunca mais se pode esperar, é
o Apocalipse. É dele que fala Wittgenstein.
«Toda a alegria da vida está fundada num retorno regular das coisas ex-
teriores. A alternância do dia e da noite, das estações, das flores e dos frutos, e
de todas as outras coisas que vêm ao nosso encontro periodicamente […] Eis
os verdadeiros recursos da vida terrestre», lê-se em Dichtung und Wahrheit.
É provável que Wittgenstein tenha lido a passagem.
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Que céu tão azul!
Nas Investigações Filosóficas Wittgenstein lembra-nos que, quando alguém diz:
«Que céu tão azul!», não olhamos para os seus olhos, mas para o céu, e mostra,
pedindo-nos para suspender quaisquer intenções filosóficas, que não nos ocor-
rerá pensar que a impressão do azul do céu nos pertença só a nós. Belo experi-
mento imaginativo, tão simples e certeiro, que contraria quaisquer argumentos
idealistas, qualquer supremacia divinizada da subjectividade, qualquer irreco-
nhecimento da inseparabilidade entre interior e exterior. Wittgenstein utiliza este
exemplo para desmontar as feéricas ilusões da incomunicabilidade solipsista.
Temporalidades
A alegria é sempre breve, brevíssima, como os anjos de que Benjamin nos fala (ci-
tando a cabala judaica): seres criados unicamente para louvarem Deus e que du-
ram o instante do próprio acto de louvor. Por isso a sua lucidez é incomparável.
A dor parece eterna, duradoura, invencível. Porém, o conhecimento que
promove restringe drasticamente o poder de olhar. A lucidez que a dor trans-
porta pode queimar, fazer-nos cegos, imunes a tudo o que a possa contrariar.
Inclemência que tira a doçura da voz. Sempre que se possa, apague-se esta
combustão devastadora. Às vezes sobrevém uma distracção redentora. A visão
de que a vida é dor não é falsa mas torna-se falsa, e ainda mais, enganadora, se
omitir aquilo que a torna parcial.
Alegria e espontaneidade
Não será demais acentuar a afinidade entre alegria e espontaneidade (sobretudo
numa época em que a espontaneidade se encontra em perigo): abrir a boca e a
voz faz-se ouvir; mover o corpo, as pernas, e andar, dançar ou correr; mastigar
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a comida e engolir; tocar e sentir a pele de alguém; pôr-se a escutar um segredo
e ouvir a sua ressonância; provar um fruto e tomar o gosto; ter sono e dormir.
Como diz Colli, todo o nosso corpo (à parte aquilo que está destinado estrita-
mente à conservação) parece destinado à espontaneidade. Creio que é disto que
Espinosa está a falar quando afirma que o homem nunca saiu do Éden, apesar de
não ter coragem de chamar assim ao mundo, e, por conseguinte, a reserva com-
passiva de Ceronetti: «Um pensamento destes resgata o mundo, mas ofende pro-
fundamente a dor humana» (apesar de tão admirável), não faz qualquer sentido.
Instruções da infância
Ninguém pode querer sem fazer. E com isto eu não quero apenas dizer a execução
deve seguir o querer, o que já é uma boa máxima de prática; quero dizer que a
execução deve preceder a prática. Como assim? […] Que o homem aja antes de
querer, é o que é evidente pela infância. O homem nada no universo desde que foi
lançado nele e nunca, de maneira nenhuma, se poderá retirar dele. A acção real
está, portanto, sempre começada.
Alain, Minerve ou la sagesse
Questões de fisiologia
Bocejar, espreguiçar-se, levantar os ombros, são movimentos do corpo que o
libertam de muita preocupação, dureza, rigidez. A alma agradece. As boas ma-
neiras, a graça de uma saudação, são-lhe aparentadas. Um sorriso muda tudo
e, segundo a formulação excelente de Alain em Propos sur le bonheur: «o fisió-
logo conhece bem a razão; pois o sorriso desce tão fundo como o bocejo e, a
pouco e pouco, liberta a garganta, os pulmões, o coração […] De resto aquele
que quer fazer de despreocupado sabe como levantar os ombros, o que, consi-
derando bem, areja os pulmões e acalma o coração, em todos os sentidos desta
palavra. Pois esta palavra tem vários sentidos, mas só há um coração». É por
isso que aqueles movimentos se converteram em disciplinas curativas.
Bocejar, levantar os ombros, espreguiçar-se, podem ser vistos como sinais
de saúde, gestos de vingança da vida contra a seriedade forçada. A alegria faz
deslassar a rigidez dos membros, é um convite à dança. Conta uma lenda que,
de vez em quando, mesmo o severo e angustiado S. João Baptista brincava com
uma perdiz: aqui, o instinto torna-se sabedoria e o abandono do corpo no jogo
com o animal segrega alegria. Que a vida seja vista através da jogo, realeza da
infância, é o ensinamento mais profundo de Heraclito.
Questões de mortalidade
Existe entre os homens esta grande questão: o homem pode ser feliz e mortal?
S. Agostinho, De Civitate Dei.
A melhor resposta, e a mais difícil, que conheço, à grande questão entre os ho-
mens, segundo a fórmula agostiniana, é a de Clarice Lispector, porque ela não
pede resignação ao «querer o que se pode» (o que já é muito), mas uma disci-
plina terapêutica, que transforma os limites da nossa condição em limiares, isto
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é, curar, até onde se puder, o medo de ser, medo que pode levar a preferir a vida
depois da morte à vida que se tem.
Numa carta a Florens Christian Rang de 26 de Novembro de 1923, Ben-
jamin desenha esse lugar em que poderia ocorrer a discussão entre cristãos e
judeus, a propósito do seu interesse pelas palavras de Rang (pastor protestan-
te, por quem Benjamin tinha uma amizade sem mácula) acerca da confissão,
interesse, confessa ele, acompanhado por uma estranheza no que se refere à
ideia de que morrer seria «ainda partilhar a proximidade de Deus» e viver
«fosse estar votado à perdição». Quanto ao esclarecimento desta obscuridade,
a expectativa de trocar «uma eternidade de depois da morte pela eternidade
enquanto estou viva» vai tão longe quanto é possível. Na origem desta expec-
tativa Clarice Lispector coloca, com humor e elevação, «a miséria da necessi-
dade», permitindo ver com uma clareza única que há grandeza na morte, mas
que a vida é incomensurável.
Corrupção e mistério
Surpreendemos nos filmes de Bresson um amor pelo corpo que nunca silencia
o seu estar votado à corrupção, que é o que distingue o corpo vivo de qualquer
sonho. Por outro lado, a corrupção que pertence à terra, e às suas devastações,
nunca é abandonada a si própria, nunca desbota a maravilha do corpo, que
no mistério da ressurreição conhece o seu ponto ardente. Na Divina Comédia
(«Paraíso», XIV), esse mistério é reconduzido à sua verdadeira condição, a
saber, a ressurreição não responde tanto ao amor que Deus nos tem, mas ao
desejo que as nossa mães e os nossos pais, e todos os que nos amam, têm de
voltar a ver o nosso corpo:
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4ª forma de alegria: implorar e receber
«Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e
mudamente se receba». Demoremo-nos neste outro uso de «talvez» (que não
pede a simétrica: «talvez não valha a pena ter nascido», quem pensa assim não
diz «talvez»), sem sombra de reserva nem ressentimento, apenas consciência de
que não haverá argumentos definitivos.
… precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente
porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa
reparti-la […] é urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes,
que até parece que só se as viu depois que tombaram […].