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4 A POLÍTICA NO LIMITE DO PENSAR

6 José Arthur Giannotti

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18 POSFÁCIO

19 Este é um texto de intervenção. Não é um artigo que,


20segundo os padrões atuais da grande imprensa, não pode ir muito
21além de seis mil caracteres, o que limita, e muito, o espaço da
22reflexão. Também não é um livro onde os problemas podem ser
23analisados e revisados para que possam demarcar seus terrenos de
24validade. Trata-se de um ensaio que visa diretamente questionar
25modos tradicionais de pensar a política, levando em conta certos
26ganhos que a lógica contemporânea logrou, principalmente a partir
27dos trabalhos de Frege e de Russell e da crítica minuciosa de
28Wittgenstein.

29 Política é disputa pelo poder. Assim enunciadas, essas


30palavras dizem pouca coisa, quando não embaralham os problemas.
31“Disputa” foi entendida de diversas maneiras, mas, tanto à esquerda
32como à direita, principalmente como contradição. No seu sentido
33estrito, a contradição, como junção de uma proposição e sua
34negativa, bloqueia o pensamento, porquanto sendo posta, dela se
35pode deduzir qualquer sentença. Hegel faz dela o núcleo de qualquer
36devir, mas para isso pensa o ser e o nada se determinando
37mutuamente vindo a ser a partir dessa tensão. Ao pensar a luta de
38classes como uma contradição, Marx se ajusta a esse modelo.
39Somente assim pode ver nos conflitos do capital e do trabalho um
40vetor que os supere e conserve suas potencialidades, criando outra
41figura que abriria uma nova época da história. No entanto, se a
42contradição é uma figura do discurso, como ela pode penetrar todo o
43real? Se ambos, o discurso e o real, tiverem a mesma estrutura.

44 Marx nunca poderia aceitar esse “idealismo”. Mas essa


45recusa deixa uma sobra no seu pensamento político. A passagem do
46capitalismo para o socialismo demanda a destruição do Estado, que
47no fundo é a imagem das relações capitalistas posta a serviço delas,
48e a substituição da política pela organização racional dos assuntos
49humanos. O resultado, como sabemos, foi o terror revolucionário,
50cada vez mais terror quando se tornava menos revolucionário.

51 Contrapondo-se fervorosamente ao marxismo, o jurista


52alemão Carl Schmitt também pensou a política como uma
53contradição, aquela entre amigos e inimigos, que articularia os
54homens antes mesmo que o Estado se organizasse como instância do

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55poder. Contradição que se resolve quando os amigos se aglutinam


56num soberano, aquele capaz de decidir os casos de exceção. Nada
57mais natural que aderisse ao nazismo.
58 Obviamente não tracei mais do que a caricatura desajeitada dos
59problemas que pretendo estudar. Mas é o caminho mais rápido para
60sublinhar que, ao partir da contradição para tentar entender a
61política, abre-se uma brecha que encaminha a decisão para o lado do
62terror. Compreende-se, assim, porque alguns autores ou mergulham
63na solução bem ajustada do comportamento racional em vista dos
64fins dados, ou nos equilíbrios do contrato social. No entanto,
65mudamos de patamar se levarmos em conta que os conceitos de
66contradição e de decisão ganham novo sentido depois do tsunami
67que atingiu a filosofia no século XX. Aliás, a história da filosofia não é
68a narração dessas grandes avalanches? De um lado, a fenomenologia
69heideggeriana retoma o conceito de práxis, dando enorme ênfase às
70questões relativas à decisão, entendidas muito mais como abertura
71para o Ser do que atividade meramente humana. E a abertura para o
72Ser é configurada pela linguagem. De outro lado, Wittgenstein,
73ensinando que o sentido das palavras se articula nos seus usos,
74passa a estudar a contradição no nível das linguagens cotidianas.
75Definida formalmente, ela vale tão só para os sistemas formais,
76deixando na sombra seu funcionamento nos vários níveis do
77contradizer. Nesse novo universo, a contradição passa a ter um
78significado, o que não acontecia na lógica formal enquanto ela
79manteve a matriz aristotélica. E, provida de significado, ela nos
80encaminha para um novo questionamento da política.
81 Esse último ponto é tratado no Apêndice, que se ocupa
82particularmente com Wittgenstein. Seria melhor que fosse lido como
83uma introdução preparatória, mas, considerando sua relativa
84dificuldade, talvez seja conveniente mordê-lo no final. A dificuldade é
85que esse texto está sempre presente.
86 Convém indicar àqueles poucos amigos que me têm lido no
87decorrer dos anos, o salto que este novo texto pretende dar. Até
88agora não tinha me dado conta do alcance do potencial explicativo
89que ganha a contradição quando passa a ter sentido. Ao invés de se
90reduzir à conjunção de um signo proposicional e sua negação, ela
91passa a articular uma proposição em ato e o ato de sua negação num
92determinado jogo de linguagem. Consiste numa “atividade” de
93contra-dizer que, se não exprime algo, não deixa de exteriorizar o
94bloqueio de duas atividades expressivas, as quais incitam uma
95decisão que, como tal, abre novas formas de exprimir, alimenta um
96novo jogo de linguagem e novos procedimentos de juízos.
97 Muitas vezes, inspirado em Carl Schmitt, já me referira à política
98como o conflito entre amigos e inimigos, mas como um dado que me
99obrigava a pensá-la até suas raízes, quando os agentes se defrontam
100dispostos a arriscar suas próprias vidas. Agora essa oposição passa a
101fazer parte da essência da política, ou melhor, determina uma regra a
102ser obedecida pelos agentes para que eles próprios se tornem
103políticos. Procuro agora descrever o jogo de linguagem que articula a

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104política, descrever a sua gramática. Procedo, pois, a uma análise


105conceitual.
106 Ao ser vista como contradição significativa a luta entre amigos e
107inimigos passa a exteriorizar uma comun-idade entre eles, uma
108mesmidade, que embora não seja algo pressuposto, não é um nada.
109Vem a ser graças à exteriorização de que, no limite, os agentes se
110dispõem a morrer para manter suas formas de vida em dissonância. E
111assim pensando, livro-me da tradição grega que considerava a
112política na polis, ou na mesma linha, no contrato social, na
113imaginação, no Espírito Absoluto e assim por diante. Noutras
114palavras, deixo de ser obrigado a supor que a política se realiza numa
115sociedade já pronta para poder pensá-la como o que apronta a
116sociedade para novas decisões.
117 Além do mais, se a contradição é quebrada pela decisão, esta
118não nasce tão só de um ato criador totalizante, mas da instalação de
119novos jogos que abrem o espaço para poder dizer o sim, o não, assim
120como para recuperar certas bases indubitáveis que amigos e inimigos
121possam acolher. Por isso, a contradição política melhor se resolve na
122democracia, quando os representantes de cada grupo performam
123suas representações levando em consideração a atividade dos
124inimigos.
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127 Por fim devo agradecer meus balizadores de sempre: Luciano


128Codato, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Márcio Sattin e Marco
129Zingano.

130 São Paulo, julho de 2014

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144 A CONTRADIÇÃO RENOVADORA

145 Nem todos os sentidos de uma ação política podem ser


146apreendidos pelos métodos científicos. Estes formam hipóteses sobre
147causas e sentidos da ação, as quais devem ser verificadas para que
148possam integrar uma teoria. A teoria explica fatos dados ou que
149podem acontecer segundo a lógica de tais dados; fatos que já se
150colocam numa dada região do ser. Mas uma declaração de guerra,
151por exemplo, só se torna objeto de ciência depois de proclamada.
152Cientistas e analistas podem prever que ela vá acontecer, conforme o
153conhecimento que possuem da situação de conflito, mas o ato de
154declará-la consiste numa decisão, numa escolha entre várias soluções
155possíveis do conflito, a que em geral correspondem vários esquemas
156explicativos possíveis lutando para que sejam aceitos. Costuma-se
157imaginar que o progresso das ciências irá decidir qual será a
158explicação validada. Mas por trás dessa crença da progressão linear
159da explicação científica reside a crença de que os acontecimentos
160seguem leis naturais como se fossem trens que pudessem continuar
161andando até ao infinito em trilhos paralelos. A linguagem científica
162seria como papel carbono que recolhesse os pormenores do real
163positivo, sem introduzir uma perspectiva eminentemente sua.

164 Para compensar esse ultrapositivismo, filósofos costumam


165ensinar que, além das causas existem valores, parâmetros daquilo
166que deve ser. E o valor não é uma causa, precisamente porque,

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167segundo sua própria natureza, não precisa ser seguido. Um chefe de


168estado se vê forçado a declarar guerra ao inimigo. Várias causas o
169impelem a tomar essa decisão. Mas como é um cristão pacifista
170simplesmente não a declara, mesmo sabendo que isso poderá causar
171a ruína de seu país. Fidel Castro não aceitou que, numa guerra
172nuclear desejada entre USA e a Rússia valeria a pena Cuba deixar de
173existir?

174 A separação entre fato – algo que simplesmente é – e valor –


175algo que simplesmente deve ser – tornou-se moeda corrente no
176pensamento do século XIX. Não resulta, porém, de certa concepção
177do que é, do ser, que o configura como algo subsistente por si
178mesmo? Mas se o ser fosse um dar-se, que se expõe assim como se
179esconde? A linguagem da ciência seria incapaz de apreendê-lo. Mas
180não é preciso chegar a essa posição extremada, de Martin Heidegger
181e de seus afilhados, para recusar essa oposição entre fato e valor.
182Basta reconhecer, como faz o segundo Wittgenstein, que a linguagem
183funciona como uma caixa de ferramentas, cujos instrumentos
184possuem aplicações específicas ou diversificadas , para que caia por
185terra essa rígida oposição entre fato e valor. Uma sentença como “O
186metro tem 100 centímetros” pode ser usada para explicar quanto
187vale um centímetro ou para explicar o fato de que esta barra não
188tem um metro.

189 Preferimos caminhar nessa direção. Desse ponto de vista, uma


190declaração de guerra não se resume num único de ato de fala que
191exprime uma decisão que faz algo acontecer como um raio caindo no
192campo. Foi precedida de outras falas entre amigos e inimigos que
193diplomaticamente trabalhavam, uns para que a guerra não fosse
194declarada, outros, para que ela acontecesse, prevendo que traria
195grandes vantagens para seu grupo ou seu povo. As tratativas
196anteriores a favor ou contra a guerra seguiam estratégias, as falas e
197os gestos obedeciam regras em que vários interesses se cruzavam e
198assim por diante. Toda essa trama de ações que resultou na
199declaração de guerra é como um jogo, aparece como se fosse um
200drama real em que o destino de muitos, em particular, de duas
201nações, se resolve. Desse modo, o simples enunciado da declaração
202não pode valer como se fosse apenas uma proposição que,
203performaticamente, se torna verdadeira. Fazendo parte de um jogo
204de linguagem, a declaração vem a ser uma proposição no conjunto de
205algumas outras. Se, por exemplo, foi proferida em português,
206valendo, pois, como exemplo das sentenças de uma língua travejada

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207por uma gramática própria, ao participar de um determinado jogo de


208linguagem está se articulando com outras proposições que podem ser
209verdadeiras ou falsas, que seguem regras que serão expressas por
210proposições, no caso indubitáveis, fora do jogo da bipolaridade do
211falso e do verdadeiro.

212 A declaração de guerra não será entendida nem como o efeito


213“mecânico” das causas que a informaram, nem como um momento
214único em que um sujeito se afirma, mas como lance de um jogo, por
215certo regulado por suas próprias regras, mas que, numa situação em
216que o jogador está acuado, ele escapa do esquema armado e inicia
217uma nova jogada pulando de um esquema de ação para outro que
218passa a ser regulado de outro modo inventado no momento. Decidir é
219abrir novos jogos de linguagem, obviamente sem perder a
220característica de vir a ser a partir de uma decisão que ultrapassa o
221jogo anterior que chega a uma situação limite. Na política
222encontramos exemplos desses momentos privilegiados. Como se
223estruturam eles?

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227 A VIOLÊNCIA DA VITÓRIA: O CASO GREGO

228 Estudaremos alguns fenômenos políticos desse ponto de vista,


229isto é, dos jogos de linguagem em que eles se desdobram e vêm a ser
230ditos. Sabemos que o discurso da filosofia política é, em geral,
231recheado de termos gregos. Não é à toa que a palavra “política”
232procede de “polis”. Mas convém perguntar se, além do vocabulário,
233ele ainda não conserva traços de certos pressupostos ligados à lógica
234e à metafísica antigas, aos modos pelos quais os gregos diziam e
235viviam o ser da polis. Mas há um ponto que precisamos repisar desde
236o início: o discurso político não procura apresentar fatos verdadeiros,
237ainda que os aproveite para montar seus argumentos, ele está a
238léguas de distância do discurso asseverativo das ciências. Se, por
239certo, utiliza argumentos científicos, seu intuito é convencer em vez
240de mostrar a verdade. Por isso Aristóteles não o estuda nos seus

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241livros de lógica, quando o exame do logos marca as mais diversas


242maneiras do ser, mas o remete basicamente à retórica, análise da
243argumentação. Obviamente esse tipo de análise não disputa terreno
244com as ciências políticas mais globais, mas procura apenas
245resguardar seu ponto de vista.

246 Não há como fazer aqui um balanço de tudo que o discurso


247político contemporâneo deve ao grego. Se esse fosse nosso propósito,
248no mínimo deveríamos começar examinando a política de Platão. Ao
249pedir que Aristóteles abra as portas de nosso texto, queremos
250unicamente ressaltar alguns aspectos de antigos conceitos que ainda
251sombreiam nossa linguagem política. O filósofo inicia seu livro sobre a
252política escrevendo que toda polis é uma espécie de comum-idade
253(koinônia), forma em vista de algum bem, no caso, o maior deles,
254porquanto inclui todos os outros que dizem respeito aos cidadãos que
255nela vivem em busca da felicidade. Mas a prioridade da polis sobre o
256indivíduo não impede que sua construção seja pensada a partir dele.
257O indivíduo participa da polis na medida em que integra três relações
258de dominação: do marido sobre a mulher, do pai sobre os filhos, do
259mestre sobre os escravos. Aristóteles por certo ressaltará, contra
260Platão, que a dominação política, precisamente porque visa o bem
261supremo, não se confunde com a dominação do pai sobre a família.
262Mas desde logo é de estranhar que os escravos participem da
263comum-idade da polis embora não sejam dotados dos direitos dos
264cidadãos. Colocam-se então dois problemas intimamente ligados:
265qual é o pleno sentido dessa comum-idade e que posição tinha nela o
266escravo? A unidade política grega não nasce de uma partição, de uma
267exclusão radical?

268 Tentaremos dar respostas muito breves a essas questões. Ao


269traduzir “koinônia” por “comun-idade”, salientamos nessa unidade
270comum a mesmidade que a polis assume em vista de seus membros,
271cujas ações devem visar o bem comum. Trata-se, pois, de uma união
272em vista de um destino. Qual é o sentido da exclusão dos escravos?
273Não é mais do que um ato de força? Visto como mera força de
274trabalho só pode participar da vida social na medida em que integra o
275corpo de suas condições materiais.O próprio Aristóteles os nomeia
276"instrumentos animados"*, organa empsucha, Política (I, 4, 1253b28.
277Não seria essa a fonte da expressão latina instrumentum vocale?

278 Qual é pois o sentido dessa participação excludente? Convém


279ter todo o cuidado para não confundir a escravidão clássica com a

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280moderna, principalmente aquela que vigorou nas Américas. Por aqui


281havia um verdadeiro mercado de escravos, alimentando a expansão
282do capitalismo marítimo e comercial, preparando nossa sociedade
283industrial. Nessa época é basicamente uma mercadoria configurando
284parte do capital variável empregado nas colônias, enquanto o escravo
285antigo, em particular o grego, trabalhava para a sobrevivência da
286população, Era indispensável, participava da polis como um meio
287oculto de sua apresentação. O deus ex machina, que era depositado
288no palco para dar uma saía a um impasse, não era propriamente um
289ator, mas participava da tragédia.

290 Nos tempos homéricos é pensado como prisioneiro de guerra;


291com o desenvolvimento da riqueza, aparece a escravidão por dívidas,
292que logo, porém, foi abolida. Em geral era comprado no mercado,
293ainda que não houvesse a intenção de gerar lucros. Muitos
294trabalhavam nas minas de prata do Laurion, cuja produção
295assegurava o funcionamento da própria polis; outros, nas
296propriedades agrícolas, que, não podendo ser muito grandes dadas as
297condições topográficas da Grécia, abasteciam os postos de mercado
298da cidade e seu pequeno comércio exterior. Alguns ocupavam cargos
299na administração pública, mas grande parte era companheiro de
300trabalho ou ajudante na vida cotidiana. Qualquer grego desejava ter
301um escravo, instrumento vocal que lhe evitasse as agruras do
302trabalho cotidiano.

303 A relação entre homem livre e escravo é, na Atenas


304democrática, muito peculiar. Em O que é a política, Hannah Arendt
305descreve a democracia ateniense como um amplo foro de discussão
306entre homens livres, de sorte que a essência da democracia seria a
307própria liberdade. Logo vem a pergunta: como foi possível tanto lazer
308para que as pessoas pudessem se dedicar à vida pública? Quantos
309deveriam trabalhar por elas? O número de escravos em Atenas até
310hoje é uma questão duvidosa. Se no século V a.C sua população total
311era de 200 mil habitantes, calcula-se que por volta de 50% era
312escrava. Mas somente uns 10% gozavam de plena cidadania; outros
313eram comerciantes estrangeiros etc.

314 Atenas, porém, recebia importantes recursos de seu pequeno


315império. Liderou a formação da Liga de Delos, reunindo no mesmo
316século V várias cidades gregas que precisavam enfrentar a ameaça
317persa. Todas pagavam um tributo, depositado em Delos, mas que
318logo foi transferido para Atenas. Ela durou até o fim da Guerra do

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319Peloponeso (404 aC), quando Esparta, depois de um longo


320conflito,venceu a supremacia ateniense * Cf. os clássicos livros de
321Moses F. Finley , Ancient and modern Democracy e Ancient Slavery
322and modern Ideology. Finley nos adverte que, nas colônias da
323América, o escravo-mercadoria sempre poderia ser substituído por
324outro comprado no mercado, constantemente abastecido pelos navios
325vindos da África, Valia, portanto, como uma espécie de argumento de
326uma variável de uma função. Na Antiguidade, porém, a demanda de
327escravos precede a oferta, de sorte que cada um aparece como
328alguém que foi colhido para desempenhar uma função, perdendo
329assim sua liberdade. No entanto, a não ser em Esparta, no que
330respeita aos hilotas, uma população inteiramente subjugada e
331incrustada na cidade, os escravos gozavam de determinados direitos,
332não perdendo, pois, inteiramente a qualidade de ser humano, embora
333como propriedade de outrem. Daí um antagonismo larvar entre eles,
334seres providos de direito embora desprovidos de liberdade * M.
335Finley,Ancient Slavery and modern Ideology p.93 trad. francesa.

336 No que concerte particularmente a Atenas, N. Fischer tira duas


337conclusões importantes. O funcionamento da escravidão. era
338considerado essencial para os atenienses, que não concebiam outro
339modo de produção e de vida. Por certo até hoje nem sempre há
340acordo a respeito de seu papel na sociedade ateniense, mas não se
341punha em dúvida que os escravos faziam parte da sua com-unidade,
342como aliás testemunha o texto de Aristóteles citado acima (Política I,
3434). Além do mais, a “distinção entre livres e escravos é uma das
344antíteses mais importantes e determinantes nas estruturas do
345pensamento e dos valores morais dos atenienses (e provavelmente
346de outros gregos). Essa polaridade desempenhou papel importante na
347formação ateniense de suas identidades e ideais como homens livres
348e independentes; além do mais, na medida em que se colocam como
349gregos, nela percebem a marca de sua liberdade, mais forte e
350avançada do que em qualquer estrangeiro. Também afetou
351profundamente suas atitudes e julgamentos morais dizendo respeito
352a muitos assuntos relativos à vida econômica, social e sexual”
353*N.Fischer, Slavery in Classical Greece, p.108.

354 Acredito ser necessário indagar com cuidado a natureza dessas


355antíteses que dominam o pensamento e a vida dos atenienses. É
356interessante notar desde logo que Aristóteles, embora seja um
357obstinado defensor da escravidão, ao insistir no seu caráter humano,
358termina caindo em contradição com outras passagens a ele

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359atribuídas, como se verifica no pormenor num lindo ensaio de Victor


360Golschmidt. Ao estudar a tripla relação pela qual o indivíduo grego se
361integrava na polis, Goldschmidt nota que, se a família é a célula
362originária da sociedade, nela já comparecia a relação mestre
363/escravo. Como entender a relação entre eles? Do ponto de vista da
364physis, porque uns nascem para mandar, outros para obedecer.
365Quando se passa, entretanto, para o plano do processo judiciário,
366como Aristóteles não concebe a justiça com o direito do mais forte,
367dessa perspectiva a escravidão deve ser justa. Entretanto, que
368espécie de justiça pode valer entre mestre e escravo? “Mas se é
369verdadeiro, como Aristóteles assumiu desde o início, que só o homem
370livre, de corpo e alma, é conforme à natureza, é claro que a lógica
371interna da doutrina recomendava tratar o homem servil como um
372‘pecado’ dessa natureza, devendo, pois, ser tratado pela arte
373[medida], para recompensar essa falta. Deveria assim ser educado
374para a liberdade, em vez de ‘naturalizar’ essa carência, em vez de
375ser interpretado, contraditoriamente, não como um ‘fracassado’, mas
376estando conforme a uma intenção diferente da natureza, aquela de
377produzir escravos” * La théorie aristotelicienne de l’esclavage, p,
37879,Écrits, tome 1, Vrin, 1984. O naturalismo de Aristóteles, pergunta
379Goldschmidt, não termina abalando essa instituição, em vez de
380justificá-la?

381 N. Fischer aponta antíteses na instituição da escravatura.


382Golschmidt mostra que a análise feita pelo grande Aristóteles termina
383numa contradição. Sobre esse ponto Platão era mais coerente, pois
384na República (VIII,549a) simplesmente afirmava que uma pessoa
385“perfeitamente educada despreza seus escravos”. Mas se essas
386contradições já davam o que pensar para os próprios gregos, não há
387dúvida de que os escravos eram radicalmente separados da vida
388política, principalmente em Atenas. Qual é o sentido dessas várias
389exclusões que terminam, no plano político, numa espécie de
390contradição? *Para um exame mais cuidadoso do conceito de
391contradição convém se reportar ao Apêndice A antiga luta de classes,
392que se dava entre aristocratas e plebeus, não pressupunha uma
393contradição maior entre homens livres e escravos?

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396 O TERROR REVOLUCIONÁRIO

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397 No início do mundo moderno europeu o grosso da escravidão foi


398relegado para a periferia e a violência interna se exerceu como
399guerras de religião. Se, em 1598, Henrique IV assina o Édito de
400Nantes, conferindo liberdade aos protestantes, não é por isso que a
401luta pela conformação do poder monárquico se separa da luta pela
402liberdade das consciências, pelo menos até 1648, com a Paz de
403Westfália. Pouco mais de um século depois, em 1762, Jean Jacques
404Rousseau publica Do contrato social, que funde num único esquema
405os anseios da liberdade da consciência com as disputas dos juristas a
406respeito dos indivíduos e dos povos. Mas nesse libelo pela liberdade
407dos indivíduos vamos encontrar a semente de uma nova violência
408excludente, o terror revolucionário.

409 Ao responder àqueles que perguntavam como um homem pode


410ser livre quando é forçado a obedecer a vontades alheias, Rousseau
411dá uma resposta radical: “Respondo que a questão está mal posta. O
412cidadão consente a todas as leis, mesmo àquelas que foram
413aprovadas contra sua vontade, até mesmo aquelas que o punem
414quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os
415membros do Estado é a vontade geral; pois é por meio dela que eles
416são cidadãos e livres. Quando se propõe uma lei na assembleia do
417povo, o que se lhes pede não é precisamente que aprovem a
418proposição ou a rejeitem, mas se está conforme ou não à vontade
419geral que é a deles. Cada um, ao dar o seu sufrágio, diz sua opinião a
420respeito, e do cálculo dos votos se tira a declaração da vontade geral.
421Quando pois vence a opinião contrária à minha, isto nada mais prova
422senão que eu estava enganado e o que eu estimava ser a vontade
423geral não o era. Se minha opinião particular tivesse vencido, não teria
424feito o que teria querido, é então que não teria sido livre” *Du
425Contract Social, IV,II, p.440/441, vol.III,Pléiade. Um dos monumentos
426da luta pela liberdade dos homens também claudicou.
427 Muito se insiste em que a vontade geral não é a soma das
428vontades particulares, mas nem sempre se registra que, a despeito
429de ela ser computada a partir dessas vontades particulares, depois
430que se conformou, as vontades particulares contrárias deixam de ser
431propriamente contrárias, deixam de se oporem num terreno comum
432para se converterem numa oposição sem pontos de contato: o voto
433contrário se reduz a um mero erro do julgar.Não é caso da regra,
434obedece a outra, fora de seu universo. Notem-se aqui dois problemas:
435a constituição de uma vontade substancial devoradora do particular e
436o próprio significado do contra-dizer.

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25

437 O terror é a consequência imediata dessa inteireza da vontade


438substancial sem fissuras, padrão e efeito das condutas morais. Por
439certo Rousseau inspirou valorosas lutas pela liberdade. Gostaria
440apenas de apontar um ponto cego na sua teoria do contrato, ligado a
441uma reminiscência de um conceito de substância que, posto como
442unidade máxima, termina por lhe emprestar uma feição devoradora.
443Tomadas as precauções devidas, isto se encontra até mesmo entre os
444nominalistas. Também Thomas Hobbes não se embrenha neste
445caminho escuro? No capítulo XVII do Leviatã, depois de enumerar as
446cinco causas que impedem que os homens naturalmente se ajustem
447numa Common-wealth, numa Civitas, ele escreve: “O único meio para
448erguer esse poder comum [ matriz sem fissura, diremos nós] ... é
449conferir todos os seus poderes e forças a um único homem ou a uma
450assembléia de homens que possa reduzir todas as suas vontades,
451pela pluralidade de votos, a uma única vontade:”*Leviathan, p. 131,
452Oxford, at the Clarendon Press, Ed. de 1651. E Hobbes prossegue
453explicitando que essa unidade real somente poderá ser efetivada
454quando as diversas vontades forem, no que concernem à paz comum
455e à segurança, unificadas numa única força, numa espécie de Deus
456Mortal: “Por meio dessa autoridade, conferida a ele por cada homem
457particular na Common-wealth, é-lhe conferido o uso de tamanho
458poder e força que, do terror daí decorrente, ele se torna capaz de
459conformar as vontades de todos para a paz no lar e ajuda mútua
460contra os inimigos externos” . E nele consiste a essência da Common-
461wealth, que é assim definida: “Uma única pessoa (one person) de
462cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos, se
463institui como autora a fim de poder usar a força e os recursos de
464todos, sendo instituída por cada um como autora, a fim de que ela
465possa usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar
466conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum” *Leviathan, II,
467cap. XVII, p.132. Mediante um contrato abrangendo todos os atos dos
468súditos forma-se um poder soberano que vale pelos atos de qualquer
469um. A multiplicidade das vontades se conforma numa vontade única,
470várias pessoas se conjuntam numa só pessoa. Essa arché ab-soluta
471não pode comportar qualquer contradição interna.
472 Até hoje a teoria do contrato social encontra acolhida entre os
473melhores pensadores. Não mais se discute se ele se torna necessário
474porque os seres humanos são naturalmente bons ou maus. A
475tendência é tomá-lo como condição de possibilidade do exercício da
476democracia, ou ainda de uma convincente teoria da justiça. Sob esse
477aspecto, o contratualismo de Hobbes, a despeito de ser processado
478de modo peculiar, tem as mesmas consequências do contratualismo
479de Rousseau. Sejam os seres humanos maus ou bons, o contrato que
480eles travam possui a mesma característica avassaladora: a vontade

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27

481geral é sempre faminta. Não deriva essa gula da formalização por que
482passa um contrato jurídico? Este, diferentemente do acordo,
483pressupõe a existência de um árbitro capaz de julgar os casos em
484conflito, inclusive aqueles em que a vontade de um contratante
485ultrapassa o que um ser razoável deve querer. O tribunal não anula o
486contrato leonino? Ambos querem a mesma coisa, mas em proporções
487diferentes. Em contrapartida, no contrato social, cada contratante
488entrega à autoridade sua própria faculdade de querer. Quando entra
489em minoria, seu querer anterior deixa de querer aquilo porque devia
490ter querido outra coisa. O conceito de contrato social somente tem
491sentido se houver um deslizamento do conceito de contrato tal como
492ele funciona nos tribunais. As teorias do contrato social supõem uma
493vontade numênica ou um jogo, pressuposto mas não exercitado, para
494formar o consenso.
495
496 Num nível meramente conceitual e formal, terror e virtude se
497entrelaçam. Como era de se esperar, é de Saint-Just que vem a
498fórmula mais precisa: há uma fusão harmoniosa das consciências de
499cada um dos membros de uma sociedade. “Ela é ainda mais do que
500sua finalidade, com efeito, cada consciência possui um sentimento de
501justiça e uma inclinação para o bem, existe uma consciência pública
502que é uma inclinação universal para o bem.” *in Ladret,Albert: Saint-
503Just ou les vicissitudes de la vertu, p. 252; PUF Lyon. Sade acabara de
504escrever: Justine ou les malheures de la vertu. O puro e o perverso
505aceitam o mesmo padrão de virtude, embora o primeiro a impõe a
506ferro e fogo e, o segundo, a viola até o fim. A consciência universal
507recusa fragmentações enquanto o espírito raciocinador produz o
508dissenso: “É preciso conduzir todas as definições à consciência; o
509espírito é um sofista que conduz as virtudes ao cadafalso” * Idem, p.
510252. Daí a reviravolta nas relações de poder: “Os infelizes são as
511potências da terra. Possuem o direito de falar como mestres aos
512governos que os negligenciam”*Idem p.78. Mas na medida em que a
513revolução demanda a inclusão dos despossuídos no todo virtuoso da
514nação livre, a liberdade necessita do terror inclusivo.
515 Robespierre é o taumaturgo dessa virtude revolucionária. Qual
516é o sentido desse terror virtuoso? Nos seus Essais sur le politique,
517Claude Lefort, analisando o extraordinário discurso proferido em 11
518de março de 1792, mostra passo a passo o jogo totalitário da
519argumentação. O Comité de Salvação Pública havia prendido Danton
520e seus amigos. Robespierre se precipita para a Convenção com o
521intuito de evitar que ela ouvisse os girondinos e, convencida por eles,
522revogasse a prisão. O argumento é direto: não pode haver fissura
523entre as instituições da República: a Convenção e o Comité são um
524só, bloco inteiriço que configura a própria com-unidade do povo:
525“tudo se deduz do princípio de identidade entre o povo, a Assembleia,
526os Comités de justiça; o princípio interdita todo questionamento sobre
527a legitimidade e a pertinência das decisões tomadas” *Claude Lefort:
528Essais sur le politique, p. 87, Éditions du Seuil,1986. E Lefort ainda
529sublinha a importância das variações dos pronomes usados pelo
530orador que passa do “on”, do “vous” e do “nous” para insinuar uma

28
29

531difusa ameaça contra os ouvintes. Num momento crítico ele mesmo


532se nomeia: “Eu digo que qualquer um que tremer neste momento é
533culpado, pois nunca um inocente teme a vigilância pública”. E tudo se
534passa como se o orador estivesse dizendo que “qualquer um que
535falasse neste momento é culpado”. Robespierre não teme. Posta essa
536integração dos corajosos no seio da nação, não há porque ouvir os
537condenados e os meandros de suas defesas.
538 Não deixa de ser sintomática a maneira pela qual Slavoj Zizek
539se contrapõe a Lefort em defesa do terror revolucionário: Robespierre,
540não tendo medo da morte, ao invés de manipular seu auditório de
541modo “totalitário”, não estaria afirmando a independência do sujeito
542face ao indivíduo empírico enquanto ser vivo? Essa defesa da
543subjetividade revolucionária tem raízes profundas que se ligam a uma
544corrente do pensamento francês do fim do século passado, em
545particular Lacan, Deleuze e Foucault. Sigamos algumas pistas de
546Zizek, que nos levam a repensar certos cacoetes de alguns
547pensadores brasileiros que se creem de esquerda, embora cultivando
548um decisionismo à la Heidegger.
549
550
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552
553 3
554
555 DISPOSITIVOS DA DOMINAÇÃO
556
557 Vale a pena nos demorarmos no caso de Foucault. Durante as
558lutas que levaram à queda de Reza Pahlavi, foi tomado por um
559entusiasmo fervoroso pela Revolução Iraniana; organizou uma equipe
560que pudesse acompanhar o processo passo a passo e publicou uma
561série de notáveis artigos, trabalhado como um verdadeiro historiador
562jornalista. Ressaltaremos apenas alguns aspectos que ele nota no
563processo revolucionário.
564
565 Foucault inicia o artigo de Le monde de 11-12 de maio de 1979
566citando dois motes da revolução: “Para que o xá vá embora estamos
567prontos a morrer”, diziam os revoltosos, mas o aiatolá Khomeyni já
568marcava a diferença: “ Que o Irã sangre, para que a revolução seja
569forte”. Não ressalta essa diferença de perspectiva entre aquele que
570está disposto a morrer e o chefe religioso que deixava morrer para
571que essas mortes purgassem a Revolução? O sacrifício não lhe daria
572uma tonalidade religiosa? Pode-se ver aí um exemplo extremo do
573poder pastoral, mas daquele que, cuidando de seu povo como o
574pastor de seu rebanho, deixa que o lobo sacrifique alguns cordeiros.
575 Como sabemos, Foucault é um nominalista consequente, não
576acredita nem na vontade geral separada das pessoas, nem no sujeito
577como unidade transcendental. Mas observa que, na revolução
578iraniana, a unânime oposição ao xá fez com que todas as diferenças
579desaparecessem e se aglutinassem numa única demanda: que ele
580morresse para que se possa viver sob as leis do Corão. “O que

30
31

581confere sua intensidade ao movimento iraniano foi seu duplo registro,


582uma vontade coletiva muito afirmada e, de outra parte, a vontade de
583uma mudança radical na existência; vontades aglutinadas por um
584desejo". *Dits et écrits, 1979, p. 754. Em contrapartida, esse desejo
585coexistindo na insurreição propicia a individualização dos atores: “E
586por que o homem se levanta é finalmente sem explicação, é preciso
587um desenraizamento que interrompa o fio da história e suas longas
588cadeias de razão, para que um homem possa, ‘realmente’, preferir o
589risco de morrer à certeza de ter de obedecer”*Dits et écrits, II,p.791.
590Depois de apontar a pressão dos religiosos para conter o impulso
591revolucionário, volta a sublinhar o aspecto renovador do processo: “As
592pessoas se revoltam, é um fato; e é por aí que a subjetividade (não
593aquela dos grandes homens, mas aquela de qualquer um) se introduz
594na história e lhe dá seu sopro. Um delinquente coloca sua vida em
595risco contra um castigo abusivo; um louco não pode mais ser
596encarcerado e diminuído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso
597não torna o primeiro inocente, nem cura o outro, assim como não
598assegura ao terceiro os próximos dias prometidos. Ninguém, aliás, é
599obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é obrigado a achar que essas
600vozes confusas cantam melhor do que as outras e dizem o fundo fino
601da verdade. Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo
602que se encarniça para fazer com que calem, para que tenha sentido
603escutá-las e procurar o que querem dizer”* Dits et écrits, II , p.795.
604 Não há dúvida de que Foucault retorna à fórmula da vontade
605geral e da liberação da subjetividade, mas sem lhe imputar qualquer
606força produtiva; os termos gerais servem apenas para descrever
607situações que num momento se cristalizaram. Foucault está abrindo
608novas veredas que o levarão ao estudo do nascimento da
609subjetividade moderna e das formas de poder. Estas se enraízam
610nessa subjetividade e a configuram, de sorte que, em vez de estudar
611as instituições, foca nelas as práticas conformativas: “O exercício do
612poder consiste em ‘conduzir as condutas’ e coordenar a
613probabilidade. No fundo, o poder é menos da ordem de
614enfrentamento entre dois adversários, menos do que o engajamento
615de um a respeito do outro, do que ordem de ‘governo’” * Dits et
616écrits, II. p,314. O ponto de partida é o estudo das diversas formas de
617resistência aos diferentes tipos de poder, salientando as diferentes
618formas de confronto: “De uma maneira geral, pode-se dizer que há
619três tipos de lutas: aquelas que se opõem às formas de dominação
620(éticas, sociais, religiosas); aquelas que denunciam as formas de
621exploração que separam os indivíduos do que eles produzem, e
622aquelas que combatem tudo que liga o indivíduo a si mesmo e que
623asseguram, assim, sua submissão aos outros (lutas contra a sujeição,
624contra as diversas formas de subjetividade e submissão)” * Dits et
625écrits, II , p. 303. No segundo plano se situa o poder do Estado
626moderno, quando o confronto vem a ser subsumido pelos problemas
627das governabilidades.
628 Esse poder, agora se exercendo sobre o que será chamado a
629sociedade civil, termina absorvendo outras formas de luta. Isso, em
630primeiro lugar, porque herdou o poder pastoral que se constituiu e

32
33

631imperou no fim da Antiguidade, quando os poderosos passaram a


632cuidar da alma de seus súditos. Mas o faz agora cuidando de todos os
633cidadãos mediante suas instituições, racionalizando e centralizando
634os modos de governar. Nessas práticas governamentais cabe
635distinguir ao menos três níveis estratégicos: 1) aquele que racionaliza
636para obter um objetivo definido; 2) aquele que tenta apreender o
637outro; 3) aquele que procura privar o adversário de seus meios de
638combate, obrigando-o a reduzir ou diminuir a luta: “trata-se então de
639meios destinados a obter a vitória” *Dits et écrits, II, p.319.Todas
640essas formas de confronto se condensam , por fim, na guerra que
641impede o outro de lutar.
642
643 Nas descrições variadas das práticas e processos nos quais o
644sujeito se insere ou não para se transformar ao longo da história,
645Foucault finalmente termina encontrando um fio que aponta para o
646conflito em busca da vitória. E nesse ponto hesita entre a exaltação
647do sujeito que rompe qualquer estrutura e se coloca como sujeito
648dominador, de um lado, e sua conformação pelas práticas históricas.
649O publicista Zizek salienta o primeiro aspecto, associando-o à
650negação do grande Eu por Lacan e ao anarquismo de Deleuze. Deste
651cita um texto em que, depois de criticar a moda contemporânea de
652denunciar os horrores da Revolução, explicita: “Mas está sempre
653confundindo duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir
654revolucionário das pessoas (des gens). Nos dois casos não são as
655mesmas pessoas. A única chance dos homens é no devir
656revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder
657aos intoleráveis” *Pourparlers, Minuit, 1990, p. 231: Zizek, idem,p. 54.
658Na calmaria da vida cotidiana alienada, a insurreição é o único
659momento da emergência do sujeito.
660 No entanto, o momento da insurgência vale, sobretudo,
661integrando-se nas estratégias do poder. Foucault é antes de tudo um
662extraordinário historiador. Contra a lógica dialética que “joga com os
663termos contraditórios no elemento do homogêneo”, antepõe outra:
664“Uma lógica da estratégia [que] não faz valer os termos contraditórios
665num elemento do homogêneo que promete sua resolução numa
666unidade. A lógica da estrategia tem por função estabelecer quais são
667as conexões possíveis entre os termos disparatados e que
668permanecem disparatados. A lógica da estratégia é a lógica da
669conexão entre os heterogêneos e não é a lógica da homogeneização
670dos contraditórios.” * Naissance de la biopolitique p.44, Gallimard
671Seuil, 2004. É graças a essa lógica da estratégia que, depois do
672nascimento da biopolítica a partir do século XVIII, da disciplina que se
673ocupa do bem estar das populações, pretende mostrar quais são as
674conexões que lograram unificar a “axiomática fundamental dos
675direitos do homem e o cálculo utilitário da independência dos
676governados”. Uma nova técnica de governabilidade, conhecida sob o
677nome geral de liberalismo.
678 Em vista do caso de Foucault, importa-nos agora, de um lado,
679essa erupção histórica do sujeito além das práticas que o conformam,
680de outro, o recurso a novos modos da contradição explorados pela

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35

681filosofia da lógica. Nossa análise tem no horizonte dois vértices do


682modo de pensar do século XX que, a despeito de desafiarem toda a
683sua estrutura, de certa forma têm sido empurrados para as sombras
684do esquecimento. Os “fracassos”, o do Tractatus e aquele de Ser e
685tempo, obrigam-nos a retomar o questionamento da linguagem e do
686ser.
687
688 Convém retomar, em linhas gerais, a matriz heideggeriana de
689grande parte do pensamento francês do século XX, inclusive Foucault.
690Já em 1929 Heidegger começa a virada de suas investigações. Em
6911934, logo depois de abandonar a reitoria da Universidade de
692Friburgo, retoma suas aulas, mas, em vez de tratar do Estado, como
693havia programado, examina “A lógica como pergunta pela essência
694da verdade” * Logik als die Frage nach dem Wesen der
695Sprache.GA,vol.38.Trata-se, usando um conceito foucaultiano, de um
696novo regime de verdade que marca a missão histórica da Alemanha
697contremporânea. Interessa-nos o método. Se a lógica tradicional,
698ainda pensada como teoria do logos, se desenvolve exclusivamente
699no plano da linguagem, cabe indagar pelas estruturas existenciais
700antepredicativas que sustentam e dão sentido ao discurso, este
701passando a ter, como parâmetro, o questionamento e o pensamento
702do Ser. A ação de falar retém o Ser e marca seu sentido historial. A
703nova Alemanha deve responder a esse apelo.
704 Como já ensinara Ser e tempo, a ação (Handlung ) do homem
705ocorre entre o estar aberto (Erschlossenheit) do Dasein e o estar
706decidido (Entschlossenheit), abertura e decisão ou resolução.
707Heidegger não emprega o termo “ação”, precisamente para dar a ela
708um sentido tanto positivo quanto negativo, uma dimensão ativa assim
709como passiva, capaz de resistir. O ser do homem primeiramente como
710verdade, como se abrindo para o mundo que vai além dele, só
711“existe’ como resolução que se entende se projetando. “A resolução é
712precisamente em primeiro lugar o projetar que abre e o determinar
713da possibilidade cada vez factual”*SuZ, p.298. A resolução é um
714projetar-se para o futuro e um determinar de uma possibilidade
715factual, portanto ligada ao estar aí do ser do homem, cuja
716temporalização tem a morte como limite e assim se determina. Note-
717se que esse determinar nada mais tem a ver com a predicação. Esta,
718como sabemos, é o nervo das determinações do ser, segundo
719Aristóteles. Mas se, para Heidegger, a determinação (Bestimmung)
720está ligada a uma tonalidade afetiva (Stimmung) como modo de o
721homem se abrir para o mundo, só podemos ganhar nossa essência a
722partir do instante historial pelo qual assumimos essa nossa missão
723historial * Logik as die Frage...p.117. Projetado no mundo, o ser do
724homem é estar aí como cuidado, por conseguinte cuidado da
725determinação; mas confiado ao dar-se do ser para responder-lhe, o
726ser aí do homem também é liberdade: “O cuidado da liberdade do ser
727historial é em si o que autoriza que reine plenamente a potência do
728Estado historial enquanto configura a essência de uma missão
729historial “*. Logik as die Frage...p.164. O novo Estado nazista
730responde a essa missão inserida no instante presente, instante que,

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37

731como indica a etimologia da palavra alemã (Augenblick), é um piscar


732de olhos *Cf. Ser e tempo, p.338. que aglutina o tempo presente
733como um se dar diante do futuro assegurando o ter-sido.
734 Por que insistimos nesse ponto delicado do estruturar da
735decisão e da temporalidade cotidiana, tal como Heidegger a pensou?
736Simplesmente porque boa parte dos pensadores franceses da última
737metade do século XX, em particular Lacan, Deleuze e Foucault,
738pensam a decisão e a emersão da subjetividade mantendo essa
739matriz heideggeriana. E nessa conformação explosiva tanto pode
740alimentar o decisionismo reacionário como o elogio da liberdade
741insurgente. Essa ambiguidade não se acentua ainda mais quando
742cultivada por pensadores que circulam “na periferia do capitalismo”?
743 O caso de Foucault é mais nuançado. Nos seus estudos
744históricos pretende examinar como se estruturam universais como a
745loucura, a sexualidade etc. Examinando o poder do Estado como
746governabilidade do que a partir do século XVII passa a se chamar
747sociedade civil, o governo passa a tratar dessas estruturas postas à
748disposição por uma nova ciência, a economia política. Foucault
749observa que “este momento é marcado pela articulação de uma série
750de práticas de certo tipo de discurso que, de uma parte, o constitui
751como um conjunto ligado por um fio inteligível e, de outra parte,
752legifera e pode legiferar sobre essas práticas em termos do
753verdadeiro e do falso” *Naissance de la biopolitique,p.20, Gallimard
754Seuil, 2004. Constitui-se uma racionalidade peculiar, um regime de
755verdade que vem à existência por um lapso de tempo na história.
756 Não se trata do aparecimento de uma nova ontologia, mas de
757práticas que passam a ser ditas por uma nova trama racional. Por
758certo Foucault pretende inverter a posição de Heidegger. Numa
759conferência de 1981 ele se explicita:” Para Heidegger é a partir da
760tekhnê ocidental que o conhecimento do objeto selou seu
761esquecimento do Ser. Reviremos a questão e questionemos a partir
762de quais tekhnai se formou o sujeito ocidental e se abriram os jogos
763da verdade e do erro, da liberdade e do constrangimento que os
764caracterizam” *L’herméneutique du sujet, p. 505, Gallimard Seuil,
7652001. Mas o vir a ser dessa nova racionalidade não está ligado a um
766piscar de olhos que, em vez de provir do ser, provém agora do próprio
767sujeito?
768
769 No entanto, Foucault também se move noutra direção. No que
770toca à contradição, recusa a solução hegeliana. Vale a pena repetir
771seu argumento : “Pois o que é a lógica dialética? Pois bem, a lógica
772dialética é uma lógica que joga com os termos contraditórios no
773elemento do homogêneo. E a essa lógica da dialética eu lhes
774proponho substituir, de preferência, o que chamaria uma lógica da
775estratégia. E uma lógica da estratégia não faz valer os termos
776contraditórios num elemento homogêneo que promete sua resolução
777numa unidade. A lógica da estratégia tem por função estabelecer
778quais são as contradições possíveis entre termos disparatados e que
779permanecem disparatados ...Rejeitemos a lógica dialética e eu
780tentarei lhes mostrar (durante o curso) quais são as conexões que

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39

781puderam manter em conjunto, que puderam fazer se conjuntar a


782axiomática fundamental dos direitos do homem e o cálculo utilitário
783da independência dos governados” *Naissance de la biopolitique,
784p.44, Gallimard Seuil, 2004.
785 Desconfio que o conceito clássico de contradição resvalou para
786um plano diferente do qual costuma ser usado. Há uma “axiomática”
787fundamental dos direitos humanos, um discurso jurídico a respeito
788dos direitos e dos deveres dos seres humanos em geral. Em
789contrapartida, conforme o liberalismo, na relação entre Estado e
790sociedade civil os indivíduos tratam de agir a partir de seus interesses
791pessoais, segundo a lógica dos ganhos diferenciais, que cria um
792espaço que o Estado tem que contar com ele sem nele poder intervir
793para não interromper a eficácia do mercado. Estado e mercado
794possuem lógicas estratégicas diferentes que precisam ser conciliadas.
795As relações jurídicas dos direitos humanos, os processos de
796governamentação do Estado e a lógica do mercado existem se contra-
797dizendo e se ajustando, mas não é por isso que formam um sistema
798discursivo contraditório.
799 Foucault simplesmente aponta no discurso da biopolítica a
800existência de uma contradição, vale dizer, pontos diferentes de
801enunciação que se confrontam estrategicamente. Como na política o
802discurso é retórico e tópico, a contradição, ao invés de barrar a ação,
803simplesmente estimula a discussão. A contradição lógica, contudo,
804bloqueia o discurso. Num sistema formal que parte de pressupostos e
805prossegue dedutivamente, esbarrar numa contradição implica ficar
806impedido de continuar. Se ao pensar ou ao falar chegarmos a uma
807sentença cuja estrutura pode ser formalizada como “(p e ~p)”, não
808podemos mais seguir no mesmo sistema, simplesmente porque dessa
809sentença tudo pode ser deduzido.

810 Foucault nunca se interessou por essas questões. Numa nota de


811L'Herméneutique du sujet (p.506), ao traçar as três linhas de
812investigação filosófica depois da metade do século XX, - teoria do
813conhecimento do objeto elaborada pela filosofia analítica, o
814estruturalismo e a sua própria, que pretende situar os sujeitos no
815domínio das práticas formadoras - ele mesmo comenta que não é
816nem estruturalista, nem,” com a vergonha conveniente, sou um
817filósofo analítico, Nobody is perfect”. Nos conhecemos, por volta de
8181970, na casa de Jules Vuillemin, que aliás o levou para o Colégio de
819França, mas que pouco o influenciou. Creio que tinha razão de
820desprezar a calculeira dos lógicos formais, mas gentilmente caçoava
821quando lhe falava de Wittgenstein. Eram outros os caminhos. Mas ao
822tocar no problema da contradição, talvez tenhamos deixado em
823branco um ponto que poderia despertar sua inquietação: o fato de
824Wittgenstein ter mostrado que a lógica aristotélica, padrão de quase
825todas as lógicas até Frege, e de qualquer “regime de verdade” até

40
41

826então estudado, não confere sentido à contradição. Se hoje isso pode


827ser feito, cabe perguntar como se age a partir dela - não topicamente
828a partir dela sem nela tocar. E esse novo agir não seguirá por certo o
829padrão do “piscar de olhos”, aquele da insurreição.

830 As diversas estratégias se antepondo só podem ser pensadas


831por suas diferenças. Nada as une num mesmo discurso. Além do
832mais, não são ditas por um discurso asseverativo, apofântico. Jacques
833Rancière trata de lhes dar uma unidade visada, em particular, no seu
834livro La mésentente. Aprendi com ele a valorizar o jogo do
835malentender na política e seus efeitos perversos e ideológicos. Mas a
836mésentente ocorre tendo como pano de fundo um objeto comum:
837“Ela diz respeito à apresentação sensível desse comum, a própria
838qualidade dos interlocutores quando o apresentam. A situação
839extrema da mésentente é aquela em que X não vê o objeto comum
840que Y lhe apresenta porque ele não entende que os sons emitidos por
841Y compõem palavras e agenciamentos de palavras semelhantes ao
842seus. Como veremos, essa situação extrema concerne, em primeiro
843lugar, à política”* La mésentente, p.14.Ed. Galilée, 1995. No limite, o
844que pode ser esse objeto comum pelo qual vale a pena arriscar a
845vida? Não está ligado a um próprio modo de vida? E para que os
846inimigos dele duvidem não precisam estar pressupondo algo comum,
847pelo menos a língua em que estão discutindo ou se traduzindo? Desse
848ponto comum o objeto em disputa não é contraditório. Esse
849“desentendimento” não é contranditório. Logo mais tentarei mostrar
850que há uma contradição no próprio modo pelo qual a vida
851materialmente se reproduz no capitalismo, e assim retomaremos uma
852velha discussão. Não é por isso que a política há de sempre se
853envolver tendo no centro essa contradição, mas não estaria no
854horizonte como um buraco negro que a pode engolir?

855

856 4

857 Diálogo com o marxismo

858 Minha geração começou a pensar e a fazer política dialogando


859com o marxismo. Nem sempre com muita propriedade, quando, por
860exemplo, alguns admitiram que o pensamento fosse regido por duas
861lógicas, uma excluindo a contradição, outra, acolhendo-a sem mais.

42
43

862Mas em geral pouco se refletiu sobre o tratamento que Marx


863dispensou a ela. Não cumpriu a promessa de escrever um texto que
864virasse de ponta cabeça a lógica hegeliana idealista; as dificuldades
865dessa inversão foram obscurecidas pela disputa entre idealismo e
866materialismo.

867 De minha parte, preferi examinar como funciona essa lógica na


868estruturação de seus textos. Em resumo, poderia afirmar que, nos
869primeiros escritos, a contradição se insere no esquema hegeliano do
870gênero e das espécies, com acenos ao sensualismo de Feuerbach.
871Desde logo, a humanidade é considerada como um ser genérico
872(Gattungswesen) que no início da sua história vivia apoiando-se numa
873apropriação comunitária de seus meios de produção. Quebrado o
874comunismo primitivo – não se sabe bem como, já que a dinâmica do
875conceito hegeliano deveria ser abandonada -, instala-se uma
876contradição entre meios de produção e relações de produção. Depois
877de instalada a propriedade privada dos meios de produção, sucedem-
878se diversos modos de produção que têm no capitalismo a forma mais
879completa. Nele se exerce a contradição maior, entre o proletariado e
880o capital. Na medida em que os proletários penetram no sistema
881vendendo sua força de trabalho, dele participam como capital
882variável, de sorte que se socializam mediante o próprio capital. Mas
883conformam a negação do sistema na medida em que este cria riqueza
884se apropriando dos diferenciais do valor da força de trabalho total,
885pago à classe operária, e o valor geral da produção social sob a forma
886de capital. O modo de produção capitalista levaria assim a
887contradição ao seu extremo, preparando sua eclosão e a superação
888das sociedades divididas em classes. A contradição ou se resolve
889abrindo as portas para apropriação coletiva dos meios de produção,
890superando a luta de classes que marcou o desenvolvimento da pré-
891história da humanidade, ou emperra, levando o mundo à barbárie.

892 Durante essa pré-história da humanidade, no seu sentido pleno,


893já opera uma divisão entre interesses privados e interesses coletivos,
894mas ainda ligados a uma sociabilidade natural clivada pela divisão do
895trabalho. Daí a atividade produtiva dos seres humanos submeter-se a
896uma força contrária exterior: “Esse autoenrijecimento da atividade
897social, essa consolidação de nossos próprios produtos num poder
898objetivo acima de nós que enfraquece nosso controle [sobre ele], que
899contraria nossas esperanças e anula nossos cálculos, é um dos
900momentos superiores do desenvolvimento histórico até agora, e
901afigura, partir da contradição entre os interesses particulares e

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45

902comuns, o interesse comum como Estado, uma configuração


903independente, separada dos efetivos interesses individuais e
904coletivos, e igualmente como uma sociabilidade ilusória (illusorische
905Gemeinschaftlichkeit) ...” *Marx & Engels, Die deutsche Ideologie,
906p.30 (Dietz Verlag, 1957). A trama contraditória da sociedade
907capitalista burguesa se projeta no Estado e nele esconde suas
908contradições, configurando os interesses das classes dominantes
909como interesses de todos. Daí seu caráter ilusório, a despeito de toda
910a força de que dispõe.

911 Por certo apresento esse desenvolvimento, aqui, de uma forma


912esquelética.* Para uma apresentação ainda introdutória, porém mais
913extensa, cf. meu texto: Marx além do marxismo,LPM, 2000. Mas o
914esqueleto já nos serve para suspeitar de que haja uma grande
915distância entre esses primeiros escritos de Marx e a extraordinária
916crítica da economia política elaborada no seu maior livro, O capital.
917Desde logo o primeiro capítulo do livro surpreende e muito. Marx
918apresenta a teoria do valor-trabalho de Ricardo jogando o tempo todo
919com relações formais entre valor de uso e valor de troca. Reconhece
920que essa primeira apresentação do valor como identidade dialética é
921complicada e não é à toa que deu a ela várias versões.

922 Como pode a identidade do valor-trabalho nascer da


923contradição entre valor de uso e valor de troca? Por que desde o início
924chamar de contradição a mera oposição entre os dois valores? Ora,
925dada a existência do mercado, na sua expressão mais simples, onde
926todos os produtos comparecem sob a forma mercantil, as relações de
927venda e compra se iniciam conforme um valor de uso se relaciona
928com todos os outros produtos do mercado, que aparecem como seus
929valores de troca. No início, suponhamos que um produto procura
930noutro seu valor de troca: “x mercadorias A vale y mercadorias B”.
931Como A é posta representativamente em relação a qualquer outra
932mercadoria que advenha ao mercado, todos os seus valores de troca
933passam a ser trocáveis entre si, formando um equivalente geral,
934forma que prenuncia o dinheiro . “Por conseguinte, primeiro, os
935valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam algo igual
936( ein Gleiches)”. Segundo, porém, o valor de troca só pode ser o modo
937de expressão, a “forma de manifestação” de um conteúdo dele
938distinguível *Das Kapital, I, p.41 (Dietz Verlag, 1957); trad. p. 46
939(Abril cultural, 1983).

46
47

940 Os valores de troca aparecem então como unidade, o valor,


941uma com-unidade de que participa cada valor de troca individual
942segundo seu quinhão. Ela é constituída pela posição e reposição dos
943relacionamentos de venda e compra. Trata-se de um processo de
944abstração do tipo: se acontece muitas vezes, há de acontecer
945sempre, mas fundada nas operações efetivas do mercado, como se A,
946B, C etc. fossem configuradas pelo próprio equivalente geral. Os
947agentes operam como se a abstração que conduz ao equivalente
948geral já estivesse pronta, ilusão necessária para que o mercado
949funcione como se fosse uma totalidade autônoma. Ilusão coletiva,
950primeiro, porque está supondo que todas as mercadorias estivessem
951como que expostas nas bancas de um supermercado universal:
952segundo, como se todos os atos de trabalho estivessem sendo
953medidos por um mesmo padrão segundo sua produtividade.

954 O produto de que partimos poderia ter sido escolhido a esmo,


955mas na medida em que se integra no jogo do valor mercantil, ele
956existe agora como um entre muitos que podem ser produzidos em
957qualquer parte de um mercado unificado. Cada produto passa a
958existir manifestando uma parcela da substância valor, por
959conseguinte como sendo produzido por um trabalho social e abstrato,
960cujas diferenças foram desbastadas pelo jogo das compras e vendas
961dos produtos enquanto mercadorias. A enorme diversidade dos
962trabalhos humanos, na medida em que o produto se integra na
963comun-idade do valor, aparece como sendo posta por essa unidade
964fantástica. Essa enorme diversidade dos trabalhos individuais – do
965ponto de vista do custo do tempo e de capacidades diversas – é posta
966como a grandeza de valor dos produtos de trabalho. As múltiplas
967relações entre os produtores são, por sua vez, postas como uma
968relação social entre os produtos do trabalho *Das Kapital, I, p. 71
969(Dietz Verlag, Berlin, 1957). Cada produto existente no mercado surge
970então como se estivesse sendo produzido por um trabalho social
971formal, em suma, como um fetiche.

972 Ao lermos as últimas aulas que formam o livro Naissance de la


973biopolitique, de Foucault, teremos uma visão muito clara do alcance
974da novidade do conceito marxista de capital. A partir do século XVIII,
975o homem jurídico, a primeira forma do cidadão moderno, conformado
976pelo contrato social e desenhando uma subjetividade plena de
977direitos, foi progressivamente sendo substituído pelo homo
978oeconomicus, dotado de interesses e de uma racionalidade que
979computa meios em relação a fins. O Estado soberano passa a se

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49

980confrontar com tais indivíduos integrados num mercado, que haveria


981de funcionar sozinho, formando uma sociedade civil dada, síntese
982espontânea dos indivíduos, voltados para seus interesses antes de
983estarem submetidos ao direito. As leis do mercado regem essa
984sociedade. Nela o Estado só poderia intervir em situação de crise. O
985modo de produção simples de mercadoria fecha-se sobre si mesmo.
986Ele possibilita que surja um modo mais complexo que tenha como
987origem o dinheiro - obviamente dotado de outra intenção, pois só vale
988a pena aplicar dinheiro se no fim do processo ele trouxer mais
989dinheiro. Assim ele se transforma em capital, criando a separação
990entre capital e trabalho impossível no modo anterior. A substância
991dominadora da polis se conforma como capital substância, a unidade
992do Estado nada mais é do que o seu reflexo.

993 A abstração responsável pela forma mercadoria, do capital e de


994todas as outras suas formas não é aquela do tipo: “o que acontece
995frequentemente acontece sempre”, mas “isto torna aparente o que
996está sendo produzido no mundo das formas". Por isso Marx fala do
997fetichismo da mercadoria: o próprio jogo entre os produtores
998independentes passa a ser feito como se fosse regido pelo deus
999mercadoria, em seguida pelo deus capital.

1000 Marx configura seu conceito de sociedade burguesa, de um


1001lado, aproveitando-se do conceito hegeliano de bürgeliche
1002Gesellschaft, onde as pessoas concretas são postas como fins em si
1003mesmas, procurando realizar a totalidade de seus desejos; de outro,
1004agregando-lhe o estudo minucioso do mercado capitalista, elaborado
1005principalmente pela nova economia política, sobretudo britânica. Mas
1006converte a universalidade hegeliana num fetiche, uma ilusão
1007necessária, que haveria de ser superada quando os sujeitos
1008propriamente produtivos, esvaziados do poder econômico ,
1009conquistassem o poder político.

1010 Ele mantém o princípio hegeliano de que essa nova esfera da


1011vida social estaria alinhavada pela trama de categorias formais,
1012desdobrando-se conforme se reportam umas às outras e nisso
1013ganhando autonomia de seus aspectos. Trata-se de uma história
1014categorial que desenha o mapa dos pontos de cruzamento das redes
1015do sistema; história que espelha os movimentos no tempo real,
1016portanto não simplesmente abstrata, conforme o sistema vai se
1017configurando. Mas, por exemplo, a história da instalação do
1018capitalismo na Europa não segue os mesmos trâmites que a história

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51

1019do capitalismo nas Américas. Essa diferença entre a história


1020categorial e a história do vir a ser * Grundrisse der Kritik der
1021PolistischenÖkonomie, p. 363 não foi absorvida pelo marxismo, que
1022inevitavelmente soçobrou no historicismo.

1023 Essa análise de Marx está muito distante do que, já em sua


1024época, se entendia por ciência. Um antropólogo, interessado na
1025religiosidade de certos processos mercantis, poderia se interessar por
1026esse fenômeno, mas não tocaria no modo pelo qual se produz a
1027riqueza das nações. Além do mais, a economia política sempre
1028trabalhou a partir do valor de troca. Mas quando Marx publica o
1029primeiro volume d”O capital, em1867, ela passa a tomar o valor de
1030uso como ponto de partida, e perde o nome “política”. A economia
1031política toma um produto como se ele estivesse sendo leiloado.
1032Examina-o a partir de curvas de preferência e somente depois é que
1033coloca a questão de sua troca por outros. Enquanto a economia
1034soviética dizia repeitar o esquema marxista, muitos pensaram ser
1035possível que a economia como ciência pudesse seguir dois
1036paradigmas: o marxista, com a teoria o valor trabalho, e a
1037marginalista, em que a noção de valor é secundária. Com a derrocada
1038da economia soviética o dilema desapareceu.

1039 Compreende-se por que os pensadores de esquerda mais


1040inventivos, a despeito de estarem influenciados por Marx,
1041abandonassem a teoria do valor-trabalho. Os primeiros foram os
1042frankfurtianos, que tentaram salvar a ideia clássica de razão, oposta à
1043razão instrumental operando no sistema capitalista - uma ideia da
1044direita alemã, que sempre culpou o desenvolvimento científico e
1045tecnológico por quebrar as velhas tradições. Outros simplesmente
1046passaram a examinar os comportamentos políticos como se cada
1047agente fosse um ser racional, dotado da racionalidade do homo
1048economicus. Com a derrocada da União Soviética o marxismo virou
1049objeto de museu, mas, hoje em dia, provavelmente por causa da
1050enorme crise que abala a economia mundial desde o fim do século
1051passado, volta a ideia de que o capital cria riqueza aumentando a
1052miséria relativa - a fama atual de Thomas Piketty o testemunha. Note-
1053se que seu livro, Cpital au XXIe siècle, identifica capital e patrimônio,
1054enquanto Marx entende por capital tão só aquela parte do patrimônio
1055envolvida na produção de mais valia. Mas para fins de cálculo, o real
1056interesse de Piketty, a definição de Marx seria muito difícil de ser
1057manipulada. Ambos, porém, sustentam a tese de que o capital cria
1058tanto riqueza quanto pobreza.

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1059 Sempre tentei dar sentido às contradições do capital e seu


1060caráter de fetiche. A contradição é um fato do discurso, Hegel a
1061integra no seu sistema porque pensa a própria história como discurso
1062do Absoluto. A lógica contemporânea, porém, não nos permite pensar
1063em jogos de linguagem não verbais? A trama das categorias do
1064capital não pode ser interpretada como um tal jogo perfazendo os
1065interstícios de nossa sociabilidade?

1066 No Apêndice lembro como a nova lógica formal se arma


1067deixando de lado a predicação e como Wittgenstein amplia
1068sobremaneira o conceito de discurso. Toda linguagem passa a ser
1069vista como trama de jogos, sendo possível pensar em jogos não
1070verbais. As relações formais que travam o modo de produção
1071capitalista não formariam, então, jogos de linguagem não verbais,
1072cujos parâmetros se fecham por ilusões necessárias?

1073 Voltemos ao texto do próprio Marx. O sistema mercantil traz em


1074si a possibilidade do comércio capitalista, isto é, daquele comércio
1075que, buscando produtos fora do sistema, pode tirar lucro das trocas
1076vistas como equivalentes. E assim a partir do século XVIII se
1077desenvolve uma produção propriamente capitalista quando um
1078agente, de posse de uma quantidade de dinheiro, o capital, se lança
1079na produção, a fim de obter mais dinheiro, a famosa mais-valia (ou
1080mais-valor). Desse modo, o sistema se diversifica criando diferentes
1081formas de capital: produtivo, comercial, financeiro e assim por diante.

1082 Conforme esse modo de produção se desenvolve, cada forma


1083de capital reformula e assume o fetiche da mercadoria. Trabalho e
1084meios de produção são configurados como capital variável e capital
1085constante. Ele se conforma como a produção de mercadorias por
1086meios de mercadorias, sempre visando lucro e, por causa de seu
1087próprio mecanismo de criar riqueza, somente criando-a se produzir
1088mais pobreza relativa. Qualquer modo de produção opera com três
1089elementos básicos: o capital, a terra e o trabalho. No modo de
1090produção capitalista eles comparecem produzindo magicamente o
1091lucro, a renda e o salário. Na sua forma final a riqueza capitalista se
1092apresenta fantasiada como se fosse uma santíssima trindade: o
1093capital produzindo lucro (ganho na produção mais juros), a terra
1094produzindo renda e o trabalho, salário.

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55

1095 A essa trindade constituindo o capital social total haveria de se


1096contrapor o trabalho total. Esse tema começa a ser desenvolvido do
1097III volume d’O capital, mas o livro permanece inacabado, et pour
1098cause. Além dos jogos das aparências, Marx acreditava que um verme
1099haveria de corroer a produtividade do capital: o desenvolvimento
1100tecnológico haveria de diminuir o valor dos produtos de tal forma que
1101se criaria a tendência de queda da taxa de lucro. Uma última
1102contradição interna estaria se armando no seio da grande forma do
1103capital total. Por conseguinte, no seio do trabalhador total,
1104preparando a Revolução. No entanto, basta ler o capítulo em que
1105examina essa tendência para se constatar que ela encontra tantos
1106fatores que impedem seu funcionamento que dificilmente poderia se
1107efetuar. As categorias desse modo de produção só podem entrar em
1108contradição porque se dão como um sistema simbólico, um jogo de
1109linguagem, cujos termos se tornam completos por causa do fetiche
1110correspondente. Uma contradição nuclear que viesse pôr em causa o
1111próprio sistema também colocaria em causa o fetiche, em particular
1112as formas trinitárias do próprio capital.

1113 A comun-idade do valor e depois do capital depende de os


1114produtores terem livre acesso ao desenvolvimento tecnológico, ao
1115ritmo cada vez mais alucinante de novas tecnologias. O
1116desenvolvimento capitalista depende de novos produtos cada vez
1117mais sofisticados, de sorte que a própria ciência se transforma numa
1118força produtiva. Ora, num capitalismo do conhecimento, todo
1119produtor de um novo saber que resulta em lucro tem todo o interesse
1120de garantir o monopólio desse saber. Primeiro ele o patenteia, depois
1121trata de aumentar a velocidade da produção de novos produtos a fim
1122de que, quando seus concorrentes chegam a ter acesso a eles ou a
1123similares, ele próprio já tenha novidades para apresentar no mercado.
1124Ao invés de uma lei interna que viesse implodir o capital – a famosa
1125tendência da queda da taxa de lucro –, temos outra tendência que
1126fragmenta a produção e os mercados, impedindo que trabalhem
1127tendo como pressuposto a mesma unidade do trabalho social
1128abstrato. O sistema se cliva. A globalização não se faz como se um
1129mercado mundial se constituísse unicamente segundo as leis
1130econômicas. O Estado sempre forçou a abertura dos mercados e
1131agora os Estados participam dessa concorrência.

1132 O mercado capitalista sempre se desenvolveu com a ajuda do


1133Estado. Já as relações de troca entre as mercadorias dependem de
1134regras jurídicas que assegurem a justeza e a implementação dos

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1135contratos. Para se espalhar num território necessita da proteção do


1136Estado, que cria bancos centrais para controlar a moeda e combater a
1137inflação, libera ou cerceia os mercados segundo as conveniências.
1138Marx obviamente conhecia esses fenômenos. Para compreender a
1139crise total do capital precisava estudar cada crise do sistema. Em
11401872, escreve a um amigo dizendo que não poderia terminar o livro
1141enquanto não observasse como iria evoluir a crise americana. Não
1142está diante de um dilema? De um lado, sua concepção da história do
1143vir a ser do modo de produção capitalista deveria levar à crise final
1144com a Revolução; por outro, sua história categorial, a cada passo,
1145introduz novos fatores formais que bloqueiam a formação do capital
1146social total, que traria no seu seio o trabalhador social total, dinamite
1147do sistema.

1148 Nunca o próprio Marx formulou esse dilema, mas não conseguiu
1149terminar seu livro. Deixou um monte de textos soltos que foram
1150editados por Engels. A publicação integral desses rascunhos mostra
1151que Marx atirava em todas as direções. Michael Heinrich, Carl-Erich
1152Vollgraf e outros estão explorando essa diversidade de caminhos. O
1153capital não é um livro acabado. Se ainda nos inspira, não o é pelo
1154sistema, mas pelo aprendizado que nos torna atentos aos fetiches e
1155às racionalidades enviesadas do mundo atual.

1156 No entanto, se o sistema contemporâneo não tende a uma


1157contradição totalizante, não é a própria ideia de Revolução que é
1158posta em xeque? Num sistema em que a ciência se torna força
1159produtiva, em que se torna impossível a mensuração dos mais
1160diversos processos de trabalho por um único critério, também se
1161torna impossível a formação do capital total, por conseguinte do
1162trabalhador total. Desaparece do horizonte aquela contradição
1163hegeliana que haveria de explodir numa revolução total. Devemos
1164retomar o ideal da revolução proletária, quando os explorados
1165haverão de exercer toda a violência necessária para vencer a
1166exploração capitalista? Podem os explorados constituir uma parte
1167sem contraparte, inclusive excluindo os exploradores do exercício da
1168política? A luta de classes pode se conformar numa contradição
1169efetiva ou apenas rege no horizonte a natureza mais profunda dos
1170conflitos políticos atuais? Essa é uma questão que, mutatis mutandis,
1171já estava posta para o movimento proletário desde o fim do século
1172XIX, em particular a partir da experiência da comuna de Paris, e se
1173torna crucial nos primeiros anos da Revolução russa. Conhecemos a
1174posição de Rosa Luxemburgo contra a decisão dos bolcheviques de

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1175dar todo o poder aos soviets, pois isso implicava retirar qualquer
1176capacidade de representar todos aqueles que não participassem
1177dessas organizações que reuniam soldados, operários e camponeses.
1178Conhecemos também a posição de Karl Kautsky, uma das maiores
1179autoridades do marxismo alemão da época, contra a interpretação
1180leninista do conceito de ditadura do proletariado. Vela a pena retomar
1181brevemente esse ponto, que nos obriga a reler um dos textos mais
1182extraordinários de Lenine: A revolução proletária e o renegado
1183Kautsky.

1184 O texto é de 1918 e se inicia criticando violentamente a isenção


1185com que Kautsky trata da democracia, sem levar em conta que ela
1186pode ser burguesa ou ligada a outros modos de produção. Sob esse
1187aspecto Lenine tem toda a razão, pois, como já vimos, não cabe
1188confundir a democracia antiga, escravagista, com a democracia
1189moderna. Kautsky, por sua vez, define corretamente a ditadura como
1190um poder que se apoia diretamente sobre a violência e que está
1191acima de qualquer lei. Ditadura significa, pois, supressão da
1192democracia se der margem a um poder pessoal. Ao mencionar a
1193ditadura de uma classe, não estaria Marx indicando mais do que uma
1194forma de governo, mas um estado de coisa que haveria de se
1195produzir todas as vezes que o proletariado conquistasse o poder
1196político?

1197 A violenta reação de Lenine acentua a necessidade de abolir o


1198Estado, suas forças militares e sua burocracia, exercendo contra ele
1199um poder, a ditadura, apoiado na violência livre do império de
1200qualquer lei. Contra esse argumento Kautsky já lembrara que, na
1201comuna de Paris, o primeiro experimento histórico da ditadura do
1202proletariado, os membros dirigentes não foram eleitos pelo sufrágio
1203universal. A ditadura do proletariado, argumenta ele, não estaria
1204diretamente ligada à democracia? Lenine responde que havia
1205operários ligados a Versalhes, onde se preparavam as tropas que
1206invadiriam Paris. A Comuna, governo operário da França, lutava
1207contra o governo burguês. E o próprio Engels acentua que a Comuna
1208não teria resistido um dia se não empunhasse as armas contra a
1209burguesia. A luta de classes é total, independentemente da posição
1210da diversidade de seus membros. Importa que, ao ocupar o Estado, o
1211movimento deve utilizá-lo, sobretudo, para que ele possa ser
1212superado, destruindo suas bases para fazer surgir uma sociedade
1213igualitária e sem classes. Note-se que Lenine está pressupondo que o
1214novo governo ou, mais precisamente, o partido esteja inteiramente

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1215identificado com a classe trabalhadora. Por isso, a democracia não


1216pode ser para todos, mas para a classe que há de vir a ser a
1217sociedade inteira. Na ditadura do proletariado haverá democracia
1218para os explorados, não para os exploradores, que devem ser
1219reprimidos e privados de seus direitos. O explorado não se iguala ao
1220explorador, somente haverá liberdade de fato quando toda
1221exploração for eliminada. Supor que numa revolução consciente de si
1222mesma valeria como processo decisório a relação entre maioria e
1223minoria é “prova de uma estupidez prodigiosa”* Lenine, Oeuvres
1224choisis, III, p. 95 Ed. du Progrès, 1968.

1225 Lenine é o legítimo herdeiro dos jacobinos da Revolução


1226Francesa. Embora suas ideias políticas se aproveitem dos meandros
1227da dialética hegeliana, o cerne de seu pensamento incorpora o terror
1228revolucionário. Até que ponto hoje ele pode nos servir de paradigma?
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1242 PARA MELHOR COMPREENDER A DECISÃO POLÍTICA
1243
1244 Carl Schmitt considerava Lenine “o mais consciente de todos os
1245políticos modernos” * Nationalsocialismus und Völksrecht em
1246Kervégan, J.-F. Que faire de Carl Schmitt?, p. 180 ,Gallimard, 2011.
1247Não convém examinar como se tocam os maiores pensadores do
1248totalitarismo do século XX? Segundo me parece, dois são os pontos
1249fundamentais no pensamento de Carl Schmitt sobre o político, isto é,
1250sobre a condição da política. Em primeiro lugar, que a relação
1251contraditória entre amigo e inimigo se exerce logicamente antes da
1252unidade do Estado. Em segundo lugar, que essa contradição, por isso
1253mesmo, não possui substância, podendo assim se manifestar em
1254qualquer nível da sociedade. Seu discípulo Julien Freund nos lembra
1255*Cf. Prefácio da trad. francesa de Der Begriff des Polistischen, p. 19.
1256que Schmitt distingue instância de substância. Por ser uma
1257substância o Estado conforma um poder de decisão sobre negócios
1258internos e externos, tendo por trás um quadro institucional onde a
1259vida política se realiza normalmente. No entanto, Schmitt faz essa
1260distinção considerando que o processo de neutralização progressiva

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63

1261dos diversos domínios da vida cultural chega ao seu fim, lembrando


1262que a própria forma Estado está sendo posta em xeque * Um exemplo
1263é a Sociedade das Nações em que um conglomerado de Estados
1264serve a propósitos políticos de um Estado dominante. ; acredita dever
1265tomar como ponto de partida de sua análise jurídico-política uma
1266situação-limite, instancial, em que a política revela seu lado
1267propriamente , a condição transcendental da política cotidiana. Não é
1268ela a relação amigo/inimigo? Como indica Freund, cabe “descobrir
1269uma relação que determina o político em sua realidade existencial,
1270independentemente das normas que, do exterior, lhe deem um
1271conteúdo * Idem, p. 21. Esse modo de colocar a questão encaminha o
1272decisionismo de Schmitt. Mas, cabe perguntar, a contradição
1273amigo/inimigo não se exerce inserida num contexto linguístico maior,
1274em determinados jogos de linguagem?
1275 Católico fervoroso, Schmitt acredita na santíssima trindade e
1276pensa a contradição como se abraçasse o infinito verdadeiro, que, por
1277isso mesmo, nela pode se manifestar. Diante do inimigo, isto é, de
1278todos aqueles que contestam sua forma de existência, um grupo se
1279constitui como unidade soberana. E soberano é aquele que pode
1280decidir em caso de exceção. Desse ponto de vista, não importa se
1281eles já estão socialmente ligados, um ou vários povos ganham
1282soberania quando formam uma unidade política, que dispõe do jus
1283belli, o direito de declarar a guerra e a paz, traduzindo essa vontade
1284unificada numa Constituição. Kant distinguia o contrato social do
1285contrato político. Carl Schmitt retoma essa dualidade, mas nega que a
1286comunidade política nasça de um contrato, na medida em que ela
1287está sempre ameaçada pela existência de uma alteridade radical.
1288 Na medida em que o político não possui conteúdo particular,
1289toda prática pode tornar-se política. Em 1964, numa carta a Julien
1290Freund, Schmitt escreve: “Meu Begriff des Politischen evita toda
1291fundação geral; ele é puramente fenomenológico (isto é, descritivo)”
1292* Cf. Kervégan, p. 183. O conceito se orienta para uma concepção
1293energética do político, que será retomada em especial por Deleuze e
1294Guattari em L’anti-Oedipe, por Antonio Negri em Le pouvoir
1295constituant e também por Giorgio Agamben. Mas este é um jurista,
1296ele se coloca no plano de Schmitt, o que nos permite evidenciar os
1297compromissos de ambos com um decisionismo de inspiração
1298heideggeriana. Sem o pano de fundo da contradição hegeliana,
1299precisam elucidar como a Revolução insurgente articula o passado
1300com um novo que deve desde logo ter alguma articulação.
1301 Em seu livro Estado de exceção, Agamben, com o intuito de
1302mostrar que hoje em dia vivemos nessa situação, procura defini-lo a
1303partir das diferenças que Walter Benjamin e Carl Schmitt imputam à
1304violência criadora. Do primeiro cita a seguinte passagem: “Se à
1305violência for garantida uma realidade também além do direito, como
1306violência puramente imediata, ficará demonstrada igualmente a
1307possibilidade da violência revolucionária, que é o nome a ser dado à
1308suprema manifestação da violência pura por parte do homem”*
1309Estado de exceção, p. 85, Boitempo, 2004. Convém lembrar que os
1310frankfurtianos abandonam o esquema do trabalho e com ele a

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1311dialética hegeliana. Sem o terreno homogêneo preparado pela


1312contradição dialética, Benjamin, antes mesmo de incorporar o
1313marxismo, já aposta numa violência pura, divina, portadora do novo.
1314Mas como a Revolução não é Aufhebung, abre-se um espaço inédito
1315para novas formas de sociedade, que somente conservam o passado
1316para a redenção: “O passado traz consigo um índice secreto que o
1317impele à redenção” * Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história,
13182. Obras escolhidas, I, p. 242,Brasiliense, 2012. ;. Agamben admite
1319que o direito reconhece a decisão espacial e temporalmente
1320determinada como categoria metafísica, mas esse reconhecimento só
1321coresponde à “peculiar e desmoralizante experiência da
1322indecibilidade última de todos os problemas jurídicos” * Estado de
1323exceção, p.85, Boitempo, 2004. A redenção que vem suprimir a luta
1324de classes aproveita-se da brecha da indecibilidade última das regras
1325jurídicas.
1326 Também Schmitt tenta trazer a violência para o universo do
1327Direito. Ao renovar a crítica a Benjamin num novo livro, Politische
1328Teologie, Schmitt procura invalidar qualquer violência pura sem beira,
1329porquanto esta sempre há de ter no horizonte o corpo da legalidade
1330que ela está destruindo. No estado de exceção, quando o Direito é
1331suspenso, ela não deixa de estar presente como se estivesse entre
1332parênteses? Além do mais, ao definir o soberano como aquele que
1333decide no estado de exceção , Schmitt não faz da soberania o lugar
1334da decisão suprema? Como não é possível configurar com precisão
1335quando se está diante de um caso indubitável de suspender a lei, não
1336há como evitar uma margem de indecisão na ação soberana ao
1337cortar o nó górdio. Assumindo a indecibilidade de todos os conceitos
1338jurídicos, Benjamin procura a violência pura. Schmitt, ao contrário,
1339retira dessa indecibilidade a necessidade da ação excepcional, mas
1340que se perfaz tendo o direito no horizonte. No entanto, quer a
1341ditadura soberana do Führer, quer a ditadura do proletariado, ambas
1342continuam a ser pensadas em termos estritamente fenomenológicos,
1343isto é, sem que esse ato abra um espaço do que vem a ser adequado
1344ou inadequado. Se ambos os autores recusam a negação hegeliana
1345porque traz o perfume do Espírito absoluto, não se deixam eles se
1346embriagar pelos mesmos ares, agora, porém, tendo como único
1347parâmetro a estrutura legal violada? A pergunta fundamental é: a
1348Revolução se resolve num processo linear ou abre um novo jogo de
1349linguagem?
1350 Para Agamben importa separar, de um lado, a forma lógica da
1351regra, de outro, sua aplicação – esta só pode se dar no nível da
1352práxis. Também o Tratactus cometeu o mesmo engano. Mas o voltar-
1353se para a práxis não pode deixar a norma jurídica formulada no
1354código, como se ela fosse expressão direta da forma geral da
1355proposição. A norma jurídica também é práxis. Uma regra que nunca
1356fosse seguida não seria regra. Desde que a regra faça parte de um
1357jogo de linguagem, a questão é explicitar como vem a ser seguida. E
1358desde logo não se pode compreender a regra como se ela contivesse
1359embutida em si mesma todos os seus casos. Daí o contrassenso de se
1360perguntar se a sequência 7777 está ou não contida na sequência dos

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1361dígitos de O número irracional é um modo de calcular que

1362implica essa indefinição, e não é por isso que só define a fração


1363seguinte depois de calculada.
1364 Agamben, porém, continua percebendo a regra como se fosse
1365uma idealidade: “Uma colocação correta do problema da aplicação
1366exige, portanto, que ela seja preliminarmente transferida do âmbito
1367lógico para o âmbito da práxis. Como mostrou Gadamer (1960, p.
1368360, 365), não só toda interpretação linguística é sempre, na
1369realidade, uma aplicação que exige uma operação eficaz (que a
1370tradição hermenêutica teológica resumiu na fórmula colocada em
1371epígrafe por Johann A. Bengel em sua edição do Novo Testamento: te
1372totum applica ad textum, rem totam applica ad te), mas no caso do
1373direito, é perfeitamente evidente (...) que a aplicação de uma norma
1374não está de modo algum contida nela e nem pode ser deduzida, pois
1375de outro modo não haveria a necessidade de se criar o imponente
1376edifício do direito processual.” *Idem, pp.62/63.
1377 Se o capital se mostra com vestes divinas, não é por isso que a
1378Revolução deveria conservar o mesmo guarda roupa. Agamben
1379continua a conferir à regra resquícios de platonismo, o que o leva a
1380situar a guerra contra o capital nos jardins do templo. Neles rem
1381totam applica ad te, ela só pode então se resolver numa violência
1382divina ou numa insurgência purificadora.
1383
1384 Para justificar essa separação entre regra e caso, Agamben
1385invoca a relação que os linguistas franceses encontram na relação
1386que a linguagem mantém com o mundo: “Essa passagem da langue à
1387parole, ou do semiótico ao semântico, não é de modo algum uma
1388operação lógica, mas implica sempre uma atividade prática, ou seja,
1389a assunção da langue por parte de um ou de vários sujeitos falantes e
1390a aplicação do dispositivo complexo que Benveniste definiu como
1391função enunciativa e que, com frequência, os lógicos tendem a
1392subestimar” *Idem, p. 62. Transferida a questão do âmbito da lógica
1393para aquele da práxis, aceitando que “a aplicação da norma não está
1394contida nela, nem pode dela ser deduzida”, Agamben pode
1395concentrar-se no exame do estado de exceção onde se manifesta, de
1396modo exemplar, essa separação entre norma e ação. Nesse estado,
1397as normas básicas do direito ficam entre parênteses para que se
1398produza a exceção a elas. Por isso não desaparecem, mas são
1399repostas no horizonte do processo revolucionário.
1400 Ao invés de se aproveitar da oposição entre langue e parole,
1401língua e fala ou vocábulo, tal como os franceses da época
1402empregavam tendo como referência Ferdinand Saussure, Agamben se
1403reporta a Benveniste para evitar a sincronia da fonologia
1404saussuriana.. Por exemplo, as unidades fonológicas são desenhadas
1405por suas diferenças, por suas oposições distintivas. Em português os
1406fonemas “e” e “i” diferem no corpo das palavras portuguesas como
1407“dedo” e “Dido”, mas essa diferença desaparece no fim da palavra,
1408formando um arquifonema, isto é, não distinguimos oralmente entre

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1409“cidade” e “cidadi”. Por isso os fonemas, para Saussure, aparecem


1410como se estivessem num único plano, o que distingue radicalmente a
1411langue institucionalizada da parole proferida.
1412 Segundo Benveniste, a semiologia, teoria geral dos signos,
1413comporta dois eixos, um semiótico, cujas estruturas são semelhantes
1414às analisadas por Saussure, e outro, propriamente semântico, cujas
1415estruturas são em geral ignoradas pelos linguistas. Desse novo ponto
1416de vista, o “princípio das consecuções discursivas”, que considera as
1417palavras na sua consecução linear, confere à semântica uma
1418dimensão ignorada pelos semióticos e pelos lógicos. Enquanto
1419Saussure toma a dispersão e identificação dos fonemas como ponto
1420de partida, Benveniste observa desde logo as palavras no curso de
1421seu proferimento. “O sentido do predicado varia, pois, com a sua
1422construção: ‘procurar não tem o mesmo sentido conforme digo
1423‘procuro meu chapéu, ou quando digo ‘procuro a entender’ .
1424‘Procurar’ não é ‘procurar a’. Não é a mesma palavra. Da ‘língua’
1425passamos ao ‘discurso’. * Benveniste, Emile. Dernières leçons (Ehess
1426Gallimard, Seuil, 2012). Ao publicar Estado de exceção em 2003,
1427Agamben não conhece ainda essa publicação das últimas lições de
1428Benveniste. Talvez por isso não desenvolva esse lado semântico do
1429discurso até o fim. Ora, os dois sentidos de “procurar” podem ser
1430expressos, na linguagem de Wittgenstein, como sendo uma palavra
1431que ganha sentido conforme participa de dois jogos de linguagem
1432diferentes.
1433 Agamben se movimenta no universo dos autores franceses
1434ligados ao pós-estruturalismo, que em geral estão muito distantes do
1435pragmatismo. Benveniste é exceção, porquanto se interessa por
1436Pierce. Em contrapartida, Agamben mantém uma separação muito
1437rígida entre langue e parole. A norma lógica está desvinculada da
1438práxis unicamente na cabeça daqueles autores. Se levasse mais a
1439sério o “princípio das consecuções discursivas”,seria obrigado a
1440repensar o alcance das indefinições das palavras. Ao invés de
1441prejudicarem o seu encadeamento, não o auxiliam? Como lembra
1442Wittgenstein, num pistão o êmbolo não pode estar muito ajustado ao
1443cilindro que o acolhe pois, nesse caso, não poderia se mover e
1444cumprir suas funções.
1445 Interpretando a legalidade frágil em que vivemos como um
1446estado de exceção, Agamben engrossa a corrente dos críticos do
1447capitalismo que convertem o fetichismo do capital, sempre a explodir
1448nas suas ambiguidades, sempre, por assim dizer, politeísta, num
1449fenômeno puramente monoteísta. A palavra “religio” não mais
1450proviria do verbo religar, mas de reler, conformando a religião no
1451tempo do mundo. A teoria da história de Walter Benjamin abre esse
1452espaço. Mas, de certo modo, se a crítica contra o capitalismo volta a
1453se armar no pensamento de Feuerbach, não cairia sob a objeção de
1454Marx, que acusa o materialismo feuerbachiano de ignorar a práxis?
1455Para Marx a práxis é aquela do conceito hegeliano, mas virada de
1456ponta cabeça; para Agamben e seu grupo a práxis resulta numa
1457insurgência que coloca o direito entre parêntesis, sem se
1458comprometer com a criação de um novo jogo de linguagem. * Para

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71

1459uma análise muito completa dessa problemática, de um ponto de


1460vista contrário ao meu, cf. Arantes, Paulo. O tempo do mundo,
1461Boitempo, 2014.
1462 Voltemos a Agamben, cujos enganos me parecem
1463paradigmáticos. É nessa relação da norma com o caso - objeto da
1464crítica de Heidegger a Wittgenstein – , que o nervo da questão
1465aparece exposto. Não é uma questão apenas de subsunção lógica,
1466mas antes de tudo passagem de uma proposição geral dotada de um
1467referente puramente virtual à referência concreta, a um segmento de
1468realidade ; “ nada menos do que o problema da relação atual entre
1469linguagem e mundo” * Idem, p. 62. Afirmação que me parece
1470absolutamente correta, contanto que se acrescente que essa relação
1471virtual é bipolar, isto é, verdadeira ou falsa, adequada ou inadequada
1472e assim por diante. Agamben por certo o reconhece: “No caso da
1473norma jurídica, a referência ao caso concreto supõe um ‘processo’
1474que envolve sempre uma pluralidade de sujeitos e culmina, em última
1475instância, na emissão de uma sentença, ou seja, de um enunciado
1476cuja referência operativa à realidade é garantida pelos poderes
1477institucionais” *Idem, p. 62. Mas o caso, depois de configurado,
1478depois que a norma determinante foi completada numa sentença, se
1479esta quase sempre vem a ser seguida, é porque ainda se liga a uma
1480forma de vida coletiva, a instituições já existentes ou que estão vindo
1481a ser.
1482 O sujeito não se abre apenas para o mundo, mas, o fazendo por
1483meio da linguagem, cria entre a norma e o caso um espaço de
1484indefinição que precisa ser resolvido caso a caso. Por isso seguir uma
1485regra sempre é uma práxis, como sublinha Wittgenstein. E se a regra,
1486seja lá de qual tipo, não espelha o estado de coisa, ao se efetivar, isto
1487é, ao vir a ser propriamente uma regra, e não um flatus vocis, é
1488preciso que o agente se comporte como se decidindo se este é ou não
1489o caso. Necessita recorrer a um critério, ligado a situação indubitável,
1490que só pode ser formulado por uma proposição monopolar, mas que
1491permita uma decisão que individualiza aplicando a regra de modo
1492adequado ou inadequado. E assim termina o mito da decisão
1493“führende”, da revolta divina, da insurgência, do ato único, que nem
1494mesmo se inspira no fiat de Jeová. Depois de ter criado o céu e a
1495terra, Deus criou a luz para impedir que tudo fosse coberto pelas
1496trevas e assim formou a alternância do dia e da noite. Transformar a
1497regra tão só na antevisão de seus casos ao infinito equivale a pensá-
1498la como se fosse um par de trilhos que levasse o trem da política
1499sempre para mais longe.
1500 O exercício da bipolaridade se inscreve numa situação que só
1501pode ser dita de modo indubitável, monopolarmente. Quando num
1502jogo de linguagem - inclusive aqueles não verbais, como um sinal de
1503trânsito, as relações de venda e compra, até mesmo os contratos
1504quando feitos tacitamente –uma contradição é atingida, quando ela
1505aparece como sinal dos deuses, aceno fora do jogo para que se
1506caminhe adiante, a decisão só pode se exercer em vista de uma nova
1507bipolaridade criada. Não é por isso que Marx, talvez antevendo essa

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1508estrutura da decisão, sempre lembrasse o mote: Socialismo ou


1509Barbárie?
1510 Exercido no limite, o jogo político exige que se decida se cabe
1511aniquilar ou poupar o inimigo. Mais de um século de revoluções
1512mostraram que a morte dele - física ou excludente do jogo – revive a
1513unidade da substância devoradora criando as condições para que o
1514terror se instale. Se não quisermos desprezar essa experiência, cabe,
1515a meu ver, associar à observação de Schmitt, de que a política não
1516tem substância, outra de Claude Lefort, * Essais sur le politique, pp.
151727-segs, Seuil, 1986. de que a democracia não possui lugar definido.
1518O lugar do poder torna-se vazio, a sociedade não tem corpo, a
1519totalidade orgânica perde seu sentido. Livre desses fantasmas,
1520reconhecendo a importância da práxis política a partir da Revolução
1521Francesa e da Revolução Americana, somos obrigados a apostar na
1522democracia. Somente ela, tendo no horizonte a quebra da
1523contradição, é capaz de recolocar amigos e inimigos no plano das
1524relações entre aliados e adversários, criando um campo comum onde
1525essa contrariedade possa se exercer para que não ecloda o perigo
1526sempre iminente do inimigo devorador.
1527 Vivemos numa situação muito peculiar de nossa história. O jogo
1528político (melhor seria dizer: os jogos), a despeito de toda sua
1529corrupção, tem no horizonte um Estado provedor que encontra sua
1530principal razão de ser na medida em que exercem políticas de
1531compensação das desigualdades existentes, principalmente no seu
1532território. A principal desigualdade diz respeito à própria
1533sobrevivência física e cidadã do indivíduo e de seu grupo. O Estado
1534deve controlar uma distribuição justa da riqueza nacional. Deixemos
1535de lado o significado dessa justiça, cujo sentido e critério também são
1536objeto de disputa. Mas não sabemos como criar essa riqueza a não
1537ser mediante o mercado, única forma até agora conhecida de se
1538determinarem os preços das mercadorias, ajustando oferta e procura.
1539Todas as formas de controlar diretamente a produção foram por água
1540abaixo e se associaram ao terror. Daí a contradição latente entre
1541Estado e mercado capitalista, que sempre precisa ser “superada”
1542pela criação de novos campos de contrariedade. Mas se o Estado
1543continua a ser territorial, o capital é globalizante. Se nessa expansão
1544ele cria misérias e perversões inauditas, ele também civiliza. Na
1545medida em que depende da produção de novos conhecimentos, cria a
1546possibilidade de vidas mais seguras e saudáveis. O terrível espetáculo
1547da destruição que o capitalismo provocou e continua provocando se
1548torna ainda mais terrível se lembrarmos que ele tem no horizonte
1549nuvens de bonança.
1550 Se a Revolução hoje em dia está fora de um horizonte factível,
1551só nos resta controlar essa contradição impondo-lhe cotidianamente
1552campos de contrariedade, em que a oposição entre aliados e
1553adversários se torne consciente de que seu sucesso depende da
1554preservação do outro. Não vejo como evitar a aposta na democracia,
1555na sua extensão para além do jogo propriamente político, visando que
1556as próprias formas de vida se tornem abertas às experiências alheias.
1557E como tais sempre aceitando alguma forma de representação para

74
75

1558que o vitorioso do momento possa continuar representando o vencido


1559do momento e assim possam habitar novos terrenos.
1560
1561 Pelo visto, o conceito de democracia direta me parece um mal
1562entendido. Não há dúvida de que a representação política na base de
1563eleições, tal como a conhecemos hoje, tem sua história e cada dia
1564que passa mostra suas limitações. Por certo os meios de comunicação
1565de massa, as redes sociais e assim por diante permitem que as
1566opiniões circulem livremente entre as pessoas e que movimentos
1567sociais podem se construir a partir dessas correntes de ideias e
1568avaliações. Mas para que um movimento social se torne político ele
1569precisa estar sempre considerando seu inimigo ou seu adversário, os
1570obstáculos que se lhe antepõem, os atritos que ajudam a desenhar
1571seu próprio perfil. E a partir daí ele também se torna representativo,
1572pois seus líderes tanto representam aqueles que comungam com suas
1573opiniões, assim como os adversários em negativo. Suas ações só
1574adquirem sentido se conservarem essa negatividade. Nada mais
1575ilusório, me parece, do que imaginar que as verdadeiras decisões
1576políticas “racionais” possam se basear num sumário das diversas
1577opiniões dos grupos sociais capazes de vocalizar seus anseios. A
1578representação nasce do conflito. A proposta no velho caminho da
1579comun-idade não renova a perspectiva do terror?
1580 Se nas condições atuais a Revolução fica fora do horizonte, não
1581é por isso que dele desaparece a luta de classes. Esta renasce
1582sistematicamente no horizonte das categorias demarcando uma
1583distribuição desequilibrada da riqueza nacional que não pode ser
1584aceita por todos. De que maneira ela se situa na trama do combate
1585político vai depender de como os conflitos e ajuntamentos sociais se
1586articulam. Como isso se organiza historicamente é preciso ser
1587examinado de modo empírico.
1588
1589
1590 6
1591
1592 PARA TERMINAR SEM CONCLUIR
1593
1594 Uma oposição entre grupos humanos se torna política quando
1595alguns indivíduos lutam tendo no limite a possibilidade de perder a
1596vida, isto é, quando o conflito tem no horizonte a possibilidade de se
1597converter numa contradição. Esta abre espaços para novas ações que
1598se traduzem em novos jogos de linguagem e se cristalizam em novas
1599formas de vida. Instala-se uma comun-idade de amigos e inimigos. Na
1600democracia essa contradição passa a ser representada na medida em
1601que essa comum-idade perde sua substância, porquanto vem a ser
1602exercida pela luta entre aliados e adversários, que estão sempre
1603desenhando um espaço comum de disputa que evite a guerra civil.
1604 Essa representação tem sua história. Em Atenas o inimigo é
1605representado como se estivesse fora na polis, nas entranhas da
1606escravidão ou no exercício do imperialismo no ateniense E assim a
1607luta de classes entre ricos e pobres pôde se desenvolver no plano da

76
77

1608contrariedade. Desse ponto de vista a ágora era obrigada a intervir


1609nos modos em que a contradição se matinha, na disputa conta
1610Esparta, na regulação do imperialismo marítimo, como nos mostram a
1611expedição à Sicilia ou a repressão das cidades rebeldes contra a
1612Confederação de Delos. A história política de Atenas precisa elucidar
1613várias dessas contradições políticas.
1614 A partir do século XVI, no Ocidente, a comun-idade se
1615conformou representativamente num Estado, articulado por três
1616poderes, tendo como principais tarefas assegurar a defesa do País, os
1617limites do público e do privado e uma justa distribuição da riqueza
1618nacional. Mas com o desenvolvimento do modo de produção
1619capitalista, essa riqueza somente se mantém se produzir mais
1620riqueza, de sorte que os cidadãos começam a exercer sua cidadania
1621pelo consumo. A política contemporânea tem que se ocupar dessa
1622tragédia.
1623 O sistema capitalista tende a se estender pelo globo, para
1624sobreviver os povos precisam produzir riqueza sob a forma capitalista,
1625convivendo com as determinações e indeterminações dos mercados
1626de capitais. Mas ao se mundializar essa contradição entre capital e o
1627trabalho se mescla com outras contradições de caráter regional. Não
1628cabe confundir a história categorial do capital, isto é, o
1629desdobramento de suas formas de ação que tendem para a
1630contradição entre capital e trabalho, e sua história do vir a ser, como
1631se enraíza na diversas regiões do planeta. A instalação do
1632capitalismo nos Estados Unidos criou uma contradição entre a
1633população branca e a população negra; esta somente ganhou
1634cidadania quando logrou modificar o comportamento de ambas as
1635partes, reforçando o sentido do espaço público. No Brasil a paulatina
1636integração da população negra e parda está se fazendo conforme ela
1637se integra no espaço público, que, originariamente mal estruturado,
1638recebe esses influxos sem sofrer grandes transformações. Se nos dois
1639casos, americano e brasileiro, a luta se faz pelo reconhecimento de
1640direitos, os direitos conquistados nem sempre servem para os
1641mesmos fins.
1642 Uma rápida visada na situação política do Oriente Médio nos
1643mostra uma contradição que pode ser caracterizada como um conflito
1644de civilizações. Não há dúvida de que todos esses povos são tocados
1645pelo capitalismo, mas na medida em que os árabes, e eles são muito
1646diferentes entre si, assistem ao abalo de suas tradições familiais e
1647religiosas, eles se levantam contra a dissolução de suas antigas
1648formas de vida. E para salvaguardá-las muitos estão dispostos a
1649morrer, a se lançar numa guerra. Não sendo guerra entre Estados só
1650pode se estender pela guerrilha, isto quando a guerrilha não pretende
1651formar um Estado, como parece acontecer no momento com o ISIL.
1652 Talvez o caso mais interessante do emaranhado contemporâneo
1653das contradições políticas seja a construção do Estado de Israel. O
1654sionismo politizou o preconceito de que foi vítima o povo judeu
1655durante séculos, e caminhou para a formação de um Estado. E como
1656não se conhece até hoje a criação de um Estado que não seja pela
1657força, tudo tem sido permitido para a obtenção desse fim. Notável é

78
79

1658que as primeiras expedições que foram explorar a Palestina não


1659perceberam que ali já habitavam árabes. Para que o Estado fosse
1660judeu, desde o início houve limpeza étnica, tentativas de expansão do
1661território em busca dos limites da terra prometida, diminuindo e
1662esfarelando o território onde deveria assentar-se o Estado Palestino.
1663Carl Schmitt já notara a decadência do Estado contemporâneo. Seu
1664monopólio da decisão política se enfraquece, na medida em que, de
1665um lado, os conceitos teológicos em que se baseia sua teoria se
1666tornam cada vez mais laicos; de outro, o Jus publicum europaeum
1667vem se dissolvendo num direito mundial indistintamente universal.
1668Tanto a Liga das Nações como as Nações Unidas tem mostrado que
1669esse vago direito universal passa pelo crivo dos interesses dos
1670Estados mais fortes. Por certo esse esfarelamento do poder estatal
1671reforça o princípio dos Direitos Humanos e das instituições ligadas a
1672eles, mas estamos longe de vê-los incorporados às práticas da
1673política contemporânea.
1674 Levando em conta essas considerações, cabe a pergunta se a
1675formação do Estado de Israel como Estado Judeu não representa uma
1676tentativa de reforçar o lado teológico do Estado, mas às custas do
1677enfraquecimento de suas representações democráticas. Por volta de
167820% da população de Israel é muçulmana e, a despeito das várias
1679formas pelas quais tratam de ser integradas, permanece a
1680contradição naquele cidadão muçulmano que pertence, com maiores
1681ou menores restrições, a um Estado que afirma uma religião que ele
1682não comunga. Criou-se um Estado cercado de amigos e inimigos por
1683todos os lados, gerando uma teia de contradições que só podem ser
1684neutralizadas por uma representação que, somente pela força, pode
1685tomar distância do inimigo. A guerrilha está sempre no horizonte * Na
1686enorme bibliografia sobre a fundação de Israel, muito me marcou o
1687recente livro de Ari Shavit, My Promised Land. Spiegel & Grau, Nova
1688York, 2013.
1689 Do lado oposto, temos assistido a instalação da Comunidade
1690Europeia, a primeira grande tentativa de instituir um organismo pós-
1691estatal. São os mais variados os desafios que essa Comunidade têm
1692de enfrentar. Mas basta lembrar que a adoção do euro como moeda
1693única, circulando entre países de economias baseadas em diferentes
1694taxas de produtividade do trabalho social, tem criado inúmeras
1695situações em que os cidadãos não se veem representados.
1696 Que o sapateiro não vá além dos chinelos. Esta enumeração de
1697situações críticas de que temos notícias todos os dias pela imprensa,
1698por mais imprecisa ou errônea que possa ser, visa apenas lembrar
1699que o estudo do político, ao sublinhar a contradição em que se
1700assenta e seu caráter limítrofe, apenas abre as portas da análise dos
1701casos, sem o que a reflexão lógica logo se converta num jogo mental.
1702Não importa aqui a veracidade dos fatos. A enumeração serve apenas
1703para sublinhar a necessidade de que uma análise do sentido
1704gramatical do político requer o complemento do estudo propriamente
1705histórico, que venha elucidar como a representação junta contradição
1706e contrariedade. Mas desde logo serve para indicar que o conceito de
1707democracia direta é um contrassenso. Se a contradição entre amigos

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81

1708e inimigos é sempre representada, de um modo ou de outro, a


1709decisão política e os políticos estão sempre representando ambas as
1710partes em jogo na sua totalidade. Cada representante em ação
1711conforma suas práticas sempre tendo no horizonte o perigo da guerra
1712civil. Muito se tem discutido se o representante representa seu
1713partido, sua clientela ou o povo como um todo. E se nessa
1714representação também representasse a contradição que marca essa
1715comun-idade?
1716 Nos últimos tempos, o desenvolvimento da internet e das redes
1717sociais tem sido tomado como prenúncio de uma articulação política
1718em que cada cidadão pudesse estar presente pessoalmente. E como
1719se a decisão política se transformasse na gestão de uma empresa. O
1720perigo da falência toma o lugar da guerra civil. A comun-idade
1721substantiva, justificando o terror, é substituída pela ideia do público a
1722que cada cidadão deve ter acesso por direito. Mas não se busca
1723somente o publico, como espaço de liberdade, isto é espaço do
1724exercício do direito de cada um, mas ainda a condições materiais
1725responsáveis pela manutenção desse espaço. No lugar da comun-
1726idade substantiva temos a comunidade dos representantes dos
1727setores particulares da sociedade, quando cada um representa
1728interesses singulares, inclusive os próprios, como se fossem agentes
1729de uma firma cuja sede estivesse num lugar distante. Uma
1730contradição em geral se resolve pela violência, criativa ou não. Se os
1731atores pretendem instalar uma comun-inade inteiriça, desandam no
1732terror, na aniquilação do inimigo em nome da integridade do povo. Ao
1733buscarem apenas a democracia parlamentar de interesses,
1734configuram o comum como o espaço público de onde cada cidadão
1735pode retirar sua parte. Em vez do terror, temos a violência aos
1736pedaços e a corrupção deslavada. É muito difícil manter o
1737representante como aquele que participa de um sistema
1738representativo em que cada um age incorporando a possível ação do
1739inimigo, evitando a guerra civil, preservando os espaços onde se
1740formam as regras, onde são executadas, onde as faltas são corrigidas.
1741Somente assim é possível caminhar na direção de uma justiça capaz
1742de distribuir equitativamente, segundo um critério comum, o que uma
1743sociedade produz, sejam os bens materiais, sejam aqueles espirituais.
1744

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1751 Apêndice

1752 CONTRA-DICÇÃO

1753 Não seria a contradição inerente à política? Para defender essa


1754tese preciso de um conceito de contradição mais amplo do que
1755aquele configurado pela lógica formal. Todos conhecemos o princípio
1756da contradição, que diz ser impossível afirmar de uma proposição sua
1757verdade e sua falsidade. O cálculo proposicional formula essa
1758impossibilidade como a negação de p e não-p: ~(p e ~p) . Isso desde
1759que as proposições simbolizadas pela variável p e por sua negação
1760~p digam respeito ao que é ou ao que foi. Desde o De Interpretatione
1761de Aristóteles, a contradição envolve uma questão modal, a diferença
1762entre o possível e o impossível ligada à questão da temporalidade:
1763nesse caso, a contradição não pode ser afirmada de algo ao mesmo
1764tempo.

1765 No cálculo proposicional, que combina as proposições


1766unicamente segundo seus valores de verdade, a contradição junta
1767duas sentenças de tal modo que essa conjunção é sempre falsa para
1768qualquer um dos valores de p e ~p. Por isso é desprovida de sentido,
1769por não poder ser verdadeira ou falsa. Depois que Wittgenstein se
1770desencantou do cálculo proposicional e abandonou a tese central do
1771Tractatus, que considerava a proposição como figuração (Bild) de um
1772estado de coisa (a contradição estando, pois, impedida de afigurar),
1773passa a atribuir à contradição novo papel. Desde logo porque uma
1774proposição somente tem sentido no contexto de um jogo de
1775linguagem. Se várias palavras e até mesmo signos não verbais se
1776juntam para, de forma regulada, apresentarem certos estados de
1777coisa, certos casos, de maneira correta ou incorreta, isso somente se
1778efetua porque esses signos estão sendo usados em obediência a
1779determinadas regras, em vista a obter certos resultados. Desse modo,
1780a bipolaridade do falso e do verdadeiro se diversifica conforme se
1781arma a oposição entre seguir a regra de modo adequado ou não.

1782 A linguagem é como uma caixa de ferramentas que servem a


1783vários propósitos. Nessas condições, o conceito de negação ganha
1784sentido conforme funciona num determinado jogo: “A negação,
1785poderíamos dizer, é um gesto que exclui, que rejeita. Mas
1786empregamos tal gesto em casos muito diferentes” *Philosophische

86
87

1787Untersuchungen, 550. Se a linguagem lida com símbolos não


1788simplesmente formais, ligados e separados entre si, a negação não se
1789resume numa substituição do sinal V por F ou vice-versa, apenas
1790invertendo o sentido da sentença, mas passa a ser uma forma de
1791ação ligada a um modo de dizer. Varia, pois, segundo a diversidade
1792dessas ações sendo ditas, isto é, segundo práticas que se tramam
1793discursivamente. Está muito longe, portanto, de uma negatividade
1794legada ao ser, que ao se dar também se esconde, como pretende
1795Heidegger, ou da negatividade hegeliana que carrega uma atividade
1796própria e uma positividade. Já no início da Ciência da lógica ela
1797aparece como determinidade (Bestimmheit) mais simples do próprio
1798ser entanto determinidade imediata, equivalente, pois, ao nada, mas
1799por isso mesmo, porque já é nadificando-se, carrega em si um devir
1800que resulta em devir visando algo, por conseguinte uma
1801determinação (Bestimmung) que afigura um destino.

1802 No entanto, a análise gramatical de Wittgenstein configura os


1803objetos ditos, em última instância, como pertencendo ao mundo. O
1804exercício negador se diferencia em cada jogo de linguagem, sem que
1805haja um jogo superior, um gênero supremo que compreenda os outros
1806como se fossem suas espécies. A unidade é formada pela trama dos
1807próprios jogos ligados por semelhanças de família e das ações que os
1808transformam em partidas. Essas junções diferenciadoras estão
1809centrifugando situações lógicas indubitáveis, que vêm a ser expressas
1810por proposições monopolares. Não é nelas que o discurso vem a se
1811fundar? “Fundar” não no sentido tradicional de dar razões, mas
1812simplesmente de amparar, deixar que o discurso caminhe adiante. A
1813dúvida abre o espaço para a negação, mas ela só tem sentido se
1814houver situações expressas por sentenças indubitáveis. Cada jogo é
1815dominado por uma gramática, mais ou menos aberta, mais ou menos
1816determinada, que regula as diversificadas ações expressivas dos
1817seres humanos em dados momentos de sua história. Na trama dessas
1818ações o modo de ser dos objetos se articula e se apresenta: “Que
1819espécie de objeto uma coisa é, é dito pela gramática” *PhU,373. Se
1820até mesmo a objetidade de Deus é dita por uma gramática, a
1821teologia, por que não esperarmos que a gramática da política venha
1822nos dizer o que é uma ação política? Platão nos ensinou que o sofista
1823se apresenta como um camaleão ligado ao não ser. Mas se ele vem a
1824ser numa contradição? Não estaria se aproximando do político que
1825tem no horizonte de sua ação a luta entres amigos contra os
1826inimigos?

88
89

1827 Mas voltemos ao conceito de contradição reformulado por


1828Wittgenstein. Num de seus últimos escritos ele anota: “A lógica
1829aristotélica marca a contradição como uma não-proposição, que deve
1830ser excluída da linguagem. Essa lógica, porém, trata apenas de uma
1831pequena região da lógica de nossa linguagem. (É como se o primeiro
1832sistema da geometria tivesse sido uma trigonometria; e como se
1833acreditássemos agora que a trigonometria é a base fundamental, e
1834até mesmo talvez toda a geometria)”* Últimos escritos sobre a
1835filosofia da psicologia (MSS 137-138), 525, p. 152,F.C. Goulbenkian,
1836(Werkausgabe in 8 Bändes. B. 7, 525, pp. 414-415.
1837
1838 Para entender o alcance de toda essa crítica convém, ainda que
1839brevemente, situá-la no seu contexto. Cabe lembrar que os conceitos
1840da lógica formal nascem de um processo muito peculiar de
1841transformação. A lógica dos predicados costuma substituir qualquer
1842sentença do tipo “Sócrates é filósofo” por “f(a)”; “f” indicando o
1843predicado e “a”, um indivíduo que pertence a um domínio indicado
1844pela variável “x” na função f(x). Embora no novo cálculo uma função
1845possa ter diversas variáveis, como no caso das relações, todas as
1846sentenças verificacionais continuam a ter a mesma forma lógica. A
1847partir da função e suas variáveis é possível quantificá-las, conforme o
1848objeto indicado acontece algumas vezes ou todas. Essa passagem
1849sem fissuras do múltiplo particular para um universal é herança da
1850lógica aristotélica e, no fundo, baseia-se num pressuposto muito
1851peculiar: “O que acontece muitas vezes poderia acontecer sempre” [E
1852o filósofo Wittgenstein pergunta: ]– que espécie de frase seria essa?
1853Uma semelhante a esta: Se ‘F(a)’ tem sentido, então ‘(x)F(x)’ tem
1854sentido * Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 345. A
1855formalização termina pressupondo essa continuidade entre a regra e
1856o caso, entre a essência e o ente, este sendo reduzido a seu
1857fenômeno. Não é assim que se passa do mundo sublunar para o
1858mundo das ideias? Note-se que qualquer relação entre a regra e o
1859caso e vice-versa, que mobilizar apenas a bipolaridade das
1860proposições, termina num universal abstraído do tempo. Esse vício
1861atinge qualquer processo reflexionante. Inclusive o juízo reflexionante
1862kantiano, que salta dos casos para a regra graças ao papel unificador
1863do eu transcendental, a uma potência fora da linguagem.
1864 Não há razão alguma para supor que esse processo de
1865formalização sempre valha para a análise lógica do discurso
1866cotidiano. Se descartarmos qualquer intervenção divina na captura do
1867sentido de uma palavra,este somente pode ser configurado no modo
1868pelo qual ela se junta com outras e se distingue delas no seu uso.
1869Nesse uso ela não pode funcionar sozinha, porquanto o uso há de ser
1870adequado ou inadequado ao que se está querendo dizer. Isso Platão
1871e, particularmente, Aristóteles já o sabiam. Para eles cada palavra
1872ganha sentido na proposição conforme ela se junta ou separa de
1873outras mediante a cópula “é”. Mas pressupuseram que a matriz de
1874qualquer proposição era a proposição asseverativa, apofântica, que,

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91

1875graças à sua verdade e/ou sua falsidade possíveis, apresenta ou não


1876algo como algo; na linguagem moderna, um estado de coisa.
1877 Esse pressuposto é quebrado por Wittgenstein. Retirando a
1878tralha ontológica da predicação, esta lhe parece como um método
1879projetando diferentes figuras de um plano A para outro plano B, mas
1880de tal modo que a diversidade das figuras de A são expressas
1881unicamente por círculos. O método é correto, mas pouco se sabe de A
1882se examinarmos apenas B. Abandonando a predicação, Wittgenstein
1883passa a examinar como as palavras se juntam em situações muito
1884simples de convivência humana. Por exemplo, na intimidade de seu
1885escritório um deputado trata de "banana" um colega de quem não
1886gosta. Ao perguntar a um de seus auxiliares: “Como a banana está
1887hoje?”, este não vai à copa examinar as bananas a serem servidas no
1888lanche. Formou-se um significado secundário da palavra, embora
1889apenas inteligível para um grupo de pessoas.
1890 As palavras ganham, pois, sentido no entremear de jogos de
1891linguagem, cada jogo sendo regulado por regras que, por sua vez, se
1892exprimem supondo termos, coisas e situações indubitáveis. Não é
1893tão-só a bipolaridade do correto ou incorreto, do adequado ou
1894inadequado, em suma, do verdadeiro e do falso que define a
1895proposição. Na medida em que essas regras de uso vêm a ser
1896formuladas, elas precisam ser ditas de modo a não comportar, na
1897situação do jogo, qualquer dúvida. As proposições ganham sentido
1898conforme se tornam bipolares em vista de certas situações
1899discursivas sobre as quais não cabe duvidar – estas são ditas por
1900sentenças monopolares. O falar uma língua pode ser comparado ao
1901ato de girar uma bola. Na rotação criam-se dois polos imóveis e
1902círculos em que um ponto determinado está sempre mudando de
1903lugar. Mas uma vez formados, esses polos permanecem como ações
1904padronizadas a regularem a vida em comum.

1905 Uma expressão falada, além de estar regida pelas regras que a
1906tornam correta do ponto de vista da língua culta, ainda obedece a
1907outras regras que asseguram seu sentido em determinados esquemas
1908de seu uso. Cabe não confundir a gramática da língua portuguesa, por
1909exemplo, com a gramática filosófica que considera a linguagem em
1910geral. Esta formula certas regras que determinam frases como
1911corretas ou incorretas em certas situações. São regras aprendidas,
1912como as de toda gramática, embora nunca se pode ter a certeza que
1913o aprendiz vá cumpri-las do mesmo modo do que os outros e para
1914sempre. É inevitável que seguir uma regra incorpore doses de
1915indeterminação, cujas diferenças se revelam ou se ocultam conforme
1916as contingências de sua aplicação. Por isso, ao seguir uma regra, o
1917agente não chega ao caso mediante uma intuição, mas convém dizer
1918que “é necessário em cada ponto como uma nova decisão
1919(Entscheidung) *PhU, 186 . Um ato parecido à decisão, mas que não
1920se confunde com ela, porque toda linguagem depende de um acordo

92
93

1921entre os falantes que julgam o caso, sem que este se realize de


1922fato.Quem segue uma regra está sempre cobrindo uma
1923indeterminação.

1924 Por sua vez, os falantes, cujos critérios de identificação são os


1925mais diversos, * PhU, 404 são determinados pelo uso dessa
1926linguagem, cujos movimentos estão tendo como pano de fundo
1927situações lógicas indubitáveis, condições para que todos possam agir
1928de forma convergente. Seguir uma regra cristaliza instituições que
1929possuem no horizonte uma forma de vida. Algumas certezas
1930“fundam” minhas ações. Mas esse fundamento perde o sentido
1931moderno de algo que se dá, se evidencia, por si mesmo. Se duvidar
1932de que agora estou sentado diante de meu computador, não há mais
1933critério para separar proposições dubitáveis de proposições
1934indubitáveis. No cotidiano, se alguém diz “dói” dificilmente vamos
1935duvidar de que está sofrendo. E as crianças em geral apreendem a
1936palavra “dói” quando lhes ensinam que ela pode substituir um grito
1937de dor. Nesse caso, primeiro vem a ação e depois a palavra, que no
1938fundo é uma expressão (Äusserung). No entanto, essa ação fundadora
1939não aparece como fundando a própria linguagem? A análise lógica
1940dependeria do processo evolutivo do ser humano?

1941 Pertence à lógica tudo que descreve os jogos de linguagem. O


1942modo pelo qual em geral se aprende a palavra “dor”, e todas as
1943expressões similares, responde pelo sentido da palavra “dor” cercado
1944de segura certeza. A ação primordial, no sentido de Goethe, que
1945Wittgenstein atribui aos fundamentos da linguagem, ganha esse
1946papel unicamente como o fator que confere indubitabilidade à frase,
1947dá sentido a essa indubitabilidade. Por isso é que a palavra
1948“expressão” passa a ser empregada a casos que nunca poderiam ser
1949reportados a um comportamento espontâneo. Por exemplo, se digo:
1950“Naturalmente eu sei que isto é uma toalha”, estou pronunciando
1951uma expressão (Äusserung), não penso numa verificação. Para mim
1952essa é uma expressão imediata. Não penso no passado ou no futuro.
1953(...). É inteiramente como um agarrar imediato, como se eu, sem
1954duvidar, agarrasse a toalha” *Über Gewissheit, 510. E logo adiante
1955fica explícito que esse agarrar imediato, em vez de consistir num
1956saber, corresponde a uma segurança (Sicherheit). A ação criadora
1957está ligada à segurança, não ao modo pelo qual foi obtida. Não se
1958aprende a dizer que se sabe que isto é uma toalha substituindo o
1959gesto de apanhá-la pelas palavras que a família ensina. Conforme se

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95

1960analise a linguagem ela tende a escapar dela mesma, mas não vai
1961além dessa tendência, que é uma de suas características.

1962 Nisso ela desenha uma imagem do mundo (Weltbild), a que


1963toda comunidade linguística há de ter como pano de fundo de suas
1964ações. Não tem fissuras. Está aí como a vida. Mas sempre é Bild do
1965mundo ou Form da vida, conforme a ação primeva e criadora está
1966configurada pelo exercício da própria linguagem. Por isso a
1967Lebensform e o Weltbild não devem ser confundidos com o mundo da
1968vida (Lebenswelt), conceito fenomenológico que designa um mundo
1969onde as ações e o falar se enraízam antes do próprio falar, tramados
1970por relações ante-predicativas, ainda consideradas como a trama
1971mais aparente da linguagem. A imagem do mundo e a forma de vida
1972constituem um conceito lógico necessário para que se compreenda
1973como as regras de uma linguagem são seguidas, panorama projetado
1974pelo uso das palavras. A forma de vida transita nesse falar como um
1975fio vermelho ligando as decisões. Uma forma de vida não pode ser
1976colonizada.

1977 No seu funcionamento um jogo de linguagem, ou uma trama


1978deles, marca seus limites. Ao chegar a um país cuja língua
1979desconheço, procuro me comunicar com os nativos mediante gestos,
1980apontando para certos objetos de uso comum. Reporto-me a fatos
1981muitos simples que em geral servem de base para a vida coletiva.
1982Conforme, porém, esses fatos começam a servir ao diálogo, eles
1983passam a ser vistos a partir da linguagem que estamos formando,
1984cada pessoa privilegiando neles certos aspectos. Quando fico doente
1985procuro um médico, meu vizinho procura um feiticeiro. Numa disputa
1986com ele posso lhe dar toda sorte de razões para justificar minha
1987conduta; ele se defenderá como puder. “Disse que “combateria” o
1988outro, - mas não lhe daria razões (Gründe). Por certo que sim, mas
1989até onde elas alcançam? No fim das razões fica a persuasão
1990(Überredung). (Pense no que acontece quando missionários
1991convertem nativos)” *Sobre a certeza, 612. Aqui o sentido de
1992“persuasão” invoca a composição da palavra alemã: um discurso
1993(Rede) que vai além (über). Quando não há mais razões que os
1994interlocutores podem trocar entre si, se quiserem continuar a
1995conversa, tentam então persuadir, passar por cima do discurso
1996estabelecido. Mesmo quando aponto para fatos muito simples
1997conhecidos por todos, continuo a dar razões. E se pretendo continuar
1998a me fazer entender, tento persuadi-lo por gestos de simpatia,
1999criando entre nós uma tonalidade afetiva que permita um novo

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2000entendimento. No entanto isso pode falhar, quando, por exemplo,


2001perdemos todos os pontos de referência que possam nos valer.
2002Suponhamos que alguém duvidasse até mesmo do nome com que ele
2003próprio se apresentara. Estaria sendo contradito por todos os lados e,
2004nesse caso, falta fundamentos para meus juízos. Está se contra-
2005dizendo, no seu sentido mais amplo.

2006 Num sistema formal uma contradição simplesmente enuncia


2007uma proposição cuja estrutura é (p e ~p). Nada significa, mas indica
2008que o raciocínio não pode seguir adiante, visto que tudo pode ser
2009deduzido de uma contradição. Outros caminhos precisam ser
2010encontrados. Numa linguagem cotidiana, vista como trama de jogos
2011de linguagem, ela impede a ação: “A contradição impede-me de
2012chegar a agir num jogo de linguagem” * Zettel, 685. A lógica formal
2013clássica trata de evitar uma contradição, mas se estivermos no plano
2014dos jogos de linguagem cabe perguntar: “o que devemos fazer se
2015chegamos a uma contradição?” * Zettel, 688. Cuidar para sair dela.
2016Não cabe tratá-la como um fantasma amedrontador. Pelo contrário,
2017pode nos servir de alerta para prosseguir adiante: “A contradição
2018poderia ser apreendida como um sinal dos deuses para que eu
2019devesse agir e não refletir (überlegen)” * Bemerkungen über die
2020Grundlagen der Mathematik, p.254. A contra-dicção, em
2021determinadas circunstâncias de desajuste, barra o diálogo, mas
2022também pode incentivar para que passemos adiante e, sem mesmo
2023refletir, tentarmos uma abertura para a comunicação com os outros.
2024Certas contra-dicções podem colocar em xeque nossas formas de
2025vida. Diante dessa ameaça que pode abrir a perspectiva da morte e
2026da guerra, não é o caso de agir? Simplesmente matando o contra-
2027dictor? Mas essa é a ação mais adequada? Ora, dede que se
2028pergunte pela adequação, já se está operando num jogo de
2029linguagem em que há ações julgadas adequadas, outras julgadas
2030inadequadas e situações lógicas indubitáveis que, quando ditas, o são
2031por proposições monopolares. Noutras palavras, o novo jogo requer o
2032aprendizado de novas técnicas e com elas novas formas de julgar: “O
2033que se apreende não é uma técnica, aprendem-se juízos
2034corretos”*PhU, II, XI.

2035 Por mais distante que o contra-dictor se situe, por mais inimigo
2036que ele se mostre, o locutor e o contraditor já estão se vendo como
2037seres humanos, por mais que um considere o outro degenerado. E por
2038isso têm à disposição fatos comuns muito gerais e que podem ser
2039mobilizados para entrarem numa relação simbólica de persuasão ou

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2040de agressão. Por certo, a nova ação é uma decisão, uma


2041Entscheidung, a separação de dois domínios, mas, na medida em que
2042ela já se move num plano simbólico, articulando movimentos ditos
2043bipolares ou monopolares, ela coloca a questão de como lidar
2044adequadamente, na situação dada, com o contra-dictor. Basta
2045configurá-lo como inimigo? O que fazer com ele? Em determinada
2046situações ele não passa a ser necessário?

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