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O Imaginário

i n j n t n j h t O Hatier, 1994
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Implen,so no Brasil l'tnihki ín
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R]
Sumário

INTRODUÇÃO 3

I. O PARADOXO DO IMAGINÁRIO NO OCIDENTE 9


1. Um iconoclasmo endêmico 9
2. As resistências do imaginário 16
3. O efeito perverso e a explosão do vídeo 3 1

II. AS CIÊNCIAS DO IMAGINÁRIO 35


1. As psicologias das profundezas 3 5
2. As confirmações anatomofisiológicas e etológicas
40
3. As sociologías do selvagem e do comum 46
4. As “Novas Críticas”: da mitocrítica à mitoanálise 57
5. O imaginário da ciência 68
6. Os confins da imagem e do absoluto do símbolo:
homo religiosus 7 1

3
0 imaginário

1 í I Oi $ÀÍ ANÇO CONCEITUAL E O NOVO MÉTODO PARA A


ABORDAGEM DO MITO 79 A/ O alógico do imaginário 79
1.0 pluralismo específico e as classificações 79 Introdução
2. A lógica do mito 82
3. A gramática do imaginário 88

W A tópica sociocultural do imaginário 92


C/ A dinâmica do imaginário: a bacia semântica 100
Seria muito banal afirmar que os enormes progres-
CONCLUSÃO 117
sos das técnicas de reproduções por imagens (a fotografia, 0 cinema, os
BIBLIOGRAFIA 121 vídeos, “as imagens de síntese” etc.) e de seus meios de transmissão (o
belinógrafo,* a televisão, 0 fax etc.) permitiram ao século 20 acompanhar a
construção de uma “civilização da imagem”. Por conseguinte, torna-se fácil
imaginar que uma inflação de imagens prontas para o consumo tenha
transtornado completamente as filosofias, que até então dependiam do que
alguns denominam “a galáxia Gutenberg”1, isto é, a supremacia da imprensa
e da comunicação escrita — com sua enorme riqueza de sintaxes, retóricas e
todos os processos de raciocínio — sobre a imagem mental (a imagem
perceptiva, das lembranças, das ilusões etc.) ou

* Antigo aparelho (e ancestral do fax atual), inventado por Edouard Be- lin (1876-1963),
destinado à transmissão de imagens fixas de documentos (especialmente fotografias)
pela rede telefônica. (N.T.)
1
Mc Luhan, Understanding Media (Entendendo a mídia), Toronto, 1964.
4
5
O imaginario

icônica (o figurativo pintado, desenhado, esculpido e


fotografado...).
Esta inovação permitiu recensear, e eventualmente
classificar num trabalho exaustivo e que possibilitou o
estudo dos processos de produção, transmissão e recepção,
o “museu” — que denominamos o imaginário — de todas as
imagens passadas, possíveis, produzidas e a serem
produzidas. Contudo, não terá sido este mesmo processo
que provocou uma ruptura, uma verdadeira revolução
“cultural”, nesta filosofia de livros e escritos que constituiu
o privilégio bimilenar do Ocidente?
As civilizações não-ocidentais nunca separaram as
informações (digamos, “as verdades”) fornecidas pela
imagem daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Os
ideogramas (o signo escrito copia algo num desenho quase
estilizado sem limitar-se a reproduzir os signos
convencionais, alfabéticos e os sons da língua falada) dos
hieróglifos egípcios ou os caracteres chineses, por exemplo,
misturam com eficácia os signos das imagens e as sintaxes
abstratas.1 Em contrapartida, antigas e importantes
civilizações como a América pré-colombiana, a África
negra, a Polinesia etc., mesmo possuindo uma linguagem e
um sistema rico em objetos simbólicos, jamais utilizaram
uma escrita.
Introdução

1
P. Aroneanu, Le Maítre des signes (O mestre dos signos), Syros, Paris,
1989; M. Granet, La Pensée chinoise (O pensamento chinês), 1934, Albin
Michel, 1988.

5
Todas estas civilizações não-ocidentais, em vez de
fundamentarem seus princípios de realidade numa
verdade única, num único processo de dedução da
verdade, num modelo único do Absoluto sem rosto e por
vezes inominável, estabeleceram seu universo mental,
individual e social em fundamentos pluralistas, portanto,
diferenciados. Aqui, toda diferença (alguns mencionam um
“politeísmo de valores”2) é percebida como uma figuração
diferenciada com qualidades figuradas e imaginárias.
Portanto, todo “politeísmo” ipso Jacto é receptivo às
imagens (iconófilo) quando não aos ídolos (eidôlon, em
grego, significa “imagem”). Ora, o Ocidente, isto é, a
civilização que nos sustenta a partir do raciocínio socrático
e seu subseqüente batismo cristão, além de desejar ser
considerado, e com muito orgulho, o único herdeiro de
uma única Verdade, quase sempre desafiou as imagens. É
preciso frisar este paradoxo de uma civilização, a nossa,
que, por um lado, propiciou ao mundo as técnicas, em
constante desenvolvimento, de reprodução da
comunicação das imagens e, por outro, do lado da filosofia
fundamental, demonstrou uma diw confiança iconoclasta
(que “destrói” as imagens ou, pelo menos, suspeita delas)
endêmica.3

2 Famosa expressão do sociólogo alemão Max Weber


3 H. Corbin, Les Paradoxes du monothéisme (Os paraduxim rln

monoteísmo), L'Herne, 1981.

6
7
I

O PARADOXO DO IMAGINARIO
NO OCIDENTE

1. Um iconoclasmo endémico

Sem dúvida que nossa herança ancestral mais antiga


e incontestável é o monoteísmo da Bíblia. A proibição de
criar qualquer imagem (eidôlon) como um substituto para o
divino encontra-se impressa no segundo manda- mentó da
lei de Moisés (Êxodo, XX. 4-5). Outrossim, como podemos
constatar no Cristianismo (João, V 21; I. Corintios, VIII 1-13;
Atos, XV 29...) e no Islamismo (Corão, III. 43; VII. 133-134;
XX. 96 etc.), a influencia do judaísmo nas religiões
monoteístas e que se origina ram nele foi enorme. O
método da verdade, oriundo do socratismo e baseado
numa lógica binária (com apenas dois valores: um falso e
um verdadeiro), uniu-se desde <» início a esse iconoclasmo
religioso, tornando-se com a herança de Sócrates,
primeiramente, e Platão e Ansio teles em seguida, o único
processo eficaz para a bus» u da verdade. Durante muitos
séculos e especialmeuu i p uní

8
0 paradoxo do imaginario no Ocidente

de Aristóteles (século 4 a.C), a via de acesso à verdade foi a


experiência dos fatos e, mais ainda, das certezas da lógica
para, finalmente, chegar à verdade pelo raciocínio binário que
denominamos de dialética e no qual se desenrola o princípio
“da exclusão de um terceiro” na íntegra (“Ou... ou”,
propondo apenas duas soluções: uma absolutamente
verdadeira e outra absolutamente falsa, que excluem a
possibilidade de toda e qualquer terceira solução). Lógico
que, se um dado da percepção ou a conclusão de um
raciocínio considerar apenas as propostas “verdadeiras”, a
imagem, que não pode ser reduzida a um argumento
“verdadeiro” ou “ falso” formal, passa a ser desvalorizada,
incerta e ambígua, tornando-se impossível extrair pela sua
percepção (sua “visão”) uma única proposta “verdadeira” ou
“falsa” formal. A imaginação, portanto, muito antes de Male-
branche,4 é suspeita de ser “a amante do erro e da falsidade”.
A imagem pode se desenovelar dentro de uma descrição
infinita e uma contemplação inesgotável. Incapaz de
permanecer bloqueada no enunciado claro de um silogismo,
ela propõe uma “realidade velada” enquanto a lógica
aristotélica exige “claridade e diferença”.
Não devemos esquecer que a mensagem cristã foi
difundida em grego, a língua de Aristóteles. Para alguns foi a
sintaxe grega que permitiu a lógica aristotélica! São
Paulo, o “segundo fundador” do cristianismo, era um judeu

4 Nicolás Malebranche (1638-1715), filósofo cartesiano francês. (N.T.)

9
O imaginario

helenizado. O texto dos Evangelhos so nos foi transmitido na


sua forma primitiva em grego. Além disso, antes da grande
redescoberta dos textos de Aristóteles pelo Ocidente cristão
no século 13, não espanta que, a partir do século 8, a questão
das imagens tenha se colocado com grande precisão na
região mais helenizada da cristandade: o Oriente bizantino (a
Igreja ainda não se separara de Roma e do Papa) que estava
ameaçado tanto espiritual quanto materialmente pela
invasão muçulmana. Os imperadores de Bizancio, sob o
pretexto de enfrentar a pureza iconoclasta do Islã ameaçador,
destruirão, durante quase dois séculos (730-780 e 813- 843), as
imagens santas guardadas pelos monges que acabarão
perseguidos como idólatras. Contudo, e voltaremos ao
assunto mais adiante, os iconólatras (adoradores de ícones)
acabaram triunfando. De certa forma, esta famosa “querela”5
é um exemplo dos motivos e razões que ao longo dos séculos
levaram o Ocidente a minimizar e perseguir as imagens dos
seus defensores.
Não podemos deixar de lembrar outro momento da
construção da base sólida do iconoclasmo: a escolástica
medieval. As obras de Aristóteles quase desapareceram ao
longo dos treze séculos de peripécias que cobrem ■» ! M I ni
i,i do Ocidente, a qual acompanhou, sucessivamen- it , o
naufrágio da civilização grega e do Império de Alexandre, o
surgimento e a destruição do Império romano, o nascimento

5 B. Duborgel, L'lcóne, art et pensée de 1'invisible (O ícone, arle e


pensamento do invisível), CIEREC, Saint-Étienne, 1991.

10
0 paradoxo do imaginario no Ocidente

do Cristianismo, o cisma de Bizáncio e Koma, o


aparecimento do Islamismo e das Cruzadas etc. De repente,
eis que Averroes de Córdoba (1126-1198), um sábio
muçulmano da Espanha conquistada pelos mouros, descobre
e traduz para o árabe os escritos do filósofo grego. Os
filósofos e teólogos cristãos passaram a ler avidamente as
traduções. O mais famoso e influente foi São Tomás de
Aquino. Numa tentativa enorme para conciliar o
racionalismo aristotélico e as verdades da fé numa “suma”
teológica, seu sistema tornou-se a filosofia oficial da Igreja
Romana e o eixo de reflexão de toda a escolástica (a doutrina
da escola, isto é, das universidades controladas pela Igreja)
dos séculos 13 e 14.
Muito mais tarde, Galileu e Descartes fundaram as bases
da física moderna e o terceiro momento do icono- clasmo
ocidental. Embora corrigissem muitos erros cometidos por
Aristóteles, nenhum dos dois jamais contradisse sua meta
filosófica nem a de seu seguidor, Tomás de Aquino, pois
consideravam a razão como o único meio de legitimação e
acesso à verdade. A partir do século 17,o imaginário passa a
ser excluído dos processos intelectuais. O exclusivismo de
um único método, o método, “para descobrir a verdade nas
ciências” — este é o título completo do famoso Discurso
(1637) de Des- cartes — invadiu todas as áreas de pesquisa
do “verdadeiro” saber. A imagem, produto de uma “casa de
loucos”, é abandonada em favor da arte de persuasão dos
pregadores, poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à

11
O imaginario

dignidade de uma arte demonstrativa.


O legado do universo mental, as experiências de Ga-
lileu (lembremo-nos da demonstração da “lei da queda dos
corpos” no plano inclinado) e o sistema geométrico de
Descartes (na geometria analítica, uma equação algébrica
corresponde a cada imagem e a cada movimento, donde a
cada objeto físico) representam um universo mecânico no
qual não há espaço para a abordagem poética. A mecánica de
Galileu e Descartes decompõe o objeto estudado no jogo
unidimensional de urna única causalidade: assim, tomando
como modelo de base bolas de sinuca que se chocam, o
universo concebível seria regido por um único determinismo,
e Deus é relegado ao papel de “dar o empurrãozinho” inicial
a todo o sistema.
O século 18 acrescentará outra coluna da tradição
aristotélica a esta herança cristã de cinco séculos de
racionalismo incontornável: o empirismo factual (que
delimitará os “fatos” e fenómenos). Os grandes nomes de
David Hume e Isaac Newton permanecem atrelados ao
empirismo e com eles esboça-se o início do quarto momento
(no qual ainda estamos mergulhados) do ico- noclasmo
ocidental. O “fato”, aliado ao argumento ra cional, surge
como outro obstáculo para um imaginário

12
0 imaginário

cada vez mais confundido com o delírio, o fantasma do


sonho e o irracional. Este “fato” pode ser de dois tipos: o
primeiro, derivado da percepção, poderá ser tanto o fruto da
observação e da experiência como um “evento” relacionado
ao fato histórico. Mas, se o século das Luzes6 nem sempre
atingiu o frenesi iconoclasta dos “enraivecidos” de 1793,
colocou, cuidadosamente — com Emmanuel Kant, por
exemplo —, um limite intransponível entre o que pode ser
explorado (o mundo do fenômeno) pela percepção e a
compreensão, pelos recursos da Razão pura, e o que
permanecerá desconhecido para sempre, como o campo das
grandes questões metafísicas — a morte, o além e Deus (o
universo do “númeno”)... — as quais, com suas soluções
possíveis e contraditórias, constituem as “antinomias” da
Razão.
O positivismo e as filosofias da História, às quais nossas
pedagogías permanecem tributárias (Jules Ferry era discípulo
de Auguste Comte), serão frutos do casamento entre o
factual dos empiristas e o rigor iconoclasta do racionalismo
clássico. As duas filosofías que desvalorizarão por completo
o imaginário, o pensamento simbólico e o raciocínio pela
semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo (doutrina
que só reconhece a verdade comprovada por métodos
científicos) e o historicis- mo (doutrina que só reconhece as
causas reais expressas de forma concreta por um evento

6G. Gusdorf, Les Principes de la pensée au siécle des Lumiéres (Os princípios
do pensamento no século das Luzes), Payot, 1971.

13
O imaginario

histórico). Qualquer “imagem” que não seja simplesmente


um clichê modesto de um fato passa a ser suspeita. Neste
mesmo movimento as divagações dos “poetas” (que
passarão a ser considerados os “malditos”), as alucinações e
os delírios dos doentes mentais, as visões dos místicos e as
obras de arte serão expulsas da terra firme da ciência. Vale
observar que na lei francesa que regulamentava as
construções dos edifícios públicos, apenas 1% das despesas
destinava-se à decoração e ao embelezamento artístico. O
recai - camento e a depreciação são tenazes que ainda
influenciam a teoria da imaginação e do imaginário de um
filósofo contemporâneo como Jean-Paul Sartre.7
Embora, por um lado, tenha sido a lenta erosão do
papel do imaginário na filosofia e epistemología do Ocidente
que possibilitou o impulso enorme do progresso técnico, por
outro, o domínio deste poder material sobre as outras
civilizações atribuiu uma característica marcante ao “adulto
branco e civilizado”, separando-o, assim como sua
“mentalidade lógica”, do resto das culturas do mundo
tachadas de “pré-lógicas”, “primitivas” ou “arcaicas”.
Todavia, esta consolidação exclusiva de um
“pensamento sem imagem”,8 de uma rejeição — da natureza

7
J.-P. Sartre, L'imaginaire (O imaginário), Gallimard, 1940. Para Sai tre a
imagem não passa de uma "quase observação", um "nada", uma
"degradação do saber" com um caráter "imperioso e infantil" "parecida ao
erro em Spinoza (s/c)", acrescenta ele, optando assim pela tese clássica a
partir de Aristóteles.
8 A. Burloud, La Pensée d'aprés les recherches expérimentales de H.J. Watt,
Messer et Bühler (O pensamento segundo as pesquisas experimentais de H.J.

14
0 paradoxo do imaginario no Ocidente

e de tantas civilizações importantes — dos valores e poderes


do imaginário em prol dos esboços da razão e da brutalidade
dos fatos encontrou muitas resistências no próprio Ocidente.

2. As resistências do imaginário

Desde o alvorecer socrático do racionalismo ocidental e


com o objetivo de dar uma legitimidade à imagem, o próprio
Platão — no qual reconhece-se a filosofia de Sócrates, seu
mestre — defende uma doutrina mais matizada do que a de
Aristóteles, seu sucessor. E verdade que os famosos Diálogos
difundirão e garantirão a legitimidade do raciocínio dialético.
Afinal, não é à toa que Platão é o mestre de Aristóteles! Mas
Platão sabe que muitas verdades escapam à filtragem lógica
do método, pois limitam a Razão à antinomia e revelam-se,
para assim dizer, por uma intuição visionária da alma que a
antigüidade grega conhecia muito bem: o mito. Ao contrário
de Kant, e graças à linguagem imaginária do mito, Platão
admite uma via de acesso para as verdades indemonstráveis:
a existência da alma, o além, a morte, os mistérios do amor...
Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a
imagem mítica fala di rotamente à alma.
Esta herança platônica animará uma parte do século 8:
a famosa “querela” dos iconoclastas vitoriosos. Na mais pura
tradição do idealismo platônico, no qual paira um mundo
ideal que justifica e ilumina o mundo aqui embaixo onde

Watt, Messer e Bühler), Alean, 1927.

15
O imaginario

reinam a “reprodução e a corrupção”, São João, o Damasceno


(século 8), foi arauto e vencedor da defesa das imagens
contra uma teologia da abstração, da recondução pelo ícone
para um “outro lugar” além deste mundo vil. ícone cujo
protótipo foi a imagem de Deus encarnada na pessoa visível
de Jesus, seu filho. Essa mesma imagem viva, projetada e
reproduzida no véu com o qual a misericordiosa Santa
Verônica teria enxugado o rosto do Cristo supliciado. Graças
à encarnação do Cristo em face da antiga tradição iconoclasta
do monoteísmo judeu estava criada uma das primeiras
reabilitações das imagens no Ocidente cristão. Pois, à
imagem do Cristo, a imagem concreta da santidade de Deus,
logo acrescentar- se-ia a veneração das imagens de todas as
pessoas santas (aquelas que tivessem atingido uma certa
semelhança com Deus), da Virgem Maria, mãe de Cristo
(théotokos, “a mãe de Deus”), seguida pelas do precursor João
Batista, dos apóstolos e, por último, de todos os santos...
Portanto, na cristandade, e paralelamente à corrente tão
poderosa do iconoclasmo racionalista, germinavam ao mes

16
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

rno tempo urna estética da imagem “santa” que a arte


bizantina perpetuaría durante vários séculos e bem depois
do cisma de 1054, assim como, com a mariolatria (o culto da
Virgem) e as hiperdulias dos santos, um culto pluralista às
virtudes da santidade divina que por vezes beirava a
idolatria ou, pelo menos, introduzia as variantes politeístas
no monoteísmo estrito e originário do judaismo. E, por
último, a oração diante dos icones privilegiados constituía
um acesso direto e não sacramental (pois escapava à
administração eclesiástica dos sacramentos) que ultrapassava
o sacrossanto...9
A esta resistencia bizantina à destruição da imagem
somou-se, nos séculos 13 e 14 da cristandade do Ocidente, a
grandiosa floração do culto à imaginária sacra (iconodulie)9 10
gótica sustentada, em grande parte, pelo êxito da
mentalidade da jovem e fraterna ordem de São Francisco de
Assis (1226). A “época das catedrais” pregada por São
Bernardo, com sua rica ornamentação figurativa (estátuas,
vitrais, iluminuras etc.), substituirá progressivamente o
iconoclasmo gentil da estética cis- terciense do século 12. Aos
poucos ela suplantará no coração da cidade a clausura
austera dos monastérios isolados nas terras agrestes e nos
vales rurais. Os francis- canos, monges não enclausurados,

9 B. Duborgel, op. cit.


10 Iconodulie: 1. icono-[Do gr. eikón, onos.jEI. comp.'imagem': iconólatra,
iconoteca; 2. dulia [Do gr. douleía.]S. f. Teol.1. Culto prestado aos santos e
aos anjos. (N. T.)

17
O imaginario

serão os propagadores desta nova sensibilidade religiosa —


devotio moderna — e os criadores de inúmeras “transposições
para imagens” dos mistérios da fé (representações teatrais
dos “Mistérios”, das quatorze estações do “Caminho da
Cruz”, criação da devoção ao presépio da Natividade,
encenação no Sacro Monte dos episódios da vida do santo
fundador, divulgação das “bíblias moralizadas” ricamente
ilustradas etc.). Entrementes, no Ocidente, os promotores de
uma das raras filosofias da imagem darão início com os
llfioretti ” de São Francisco à abertura para a natureza,
cantando nosso irmão Sol e nossa irmã Lua, que abrangerá o
Itinerarium mentis in Deum (Itinerário da alma até Deus) de
São Boaventura, o Superior Geral da Ordem e sucessor de
São Francisco. Ao ser contemplada, a imagem da santidade
não apenas instiga, como em João, o Damasceno, e na
tradição platônica, a penetrar na própria santidade (o
naturalismo empírico aristotélico já passou por isso!). Como
toda representação da natureza e da criação, ela é um convite
para seguir o caminho até o Criador. Qualquer
contemplação, qualquer visão da Criação, mesmo no seu
grau mais baixo, é um “vestígio” (vestigium) de Toda a
Bondade do Criador. Mas é pela imagem (imago) que a alma
humana representa com maior exatidão ainda as virtudes da
santidade í *«»» fim atinge-se a etapa suprema do caminho:
Deus h ¡n •• poder de conceder à alma santa uma “st im
Ihau^a1 (.similitudo) à sua própria imagem e a alma criada
será reconduzida ao Deus Criador seguindo os graus das tres

18
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

representações imaginárias: o vestígio, a imagem


propriamente dita e a semelhança. Esta doutrina propiciará o
impulso para as várias receitas de uma Imitatio Christi e o
florescimento de cultos aos santos nos quais os dominicanos
e franciscanos rivalizarão com suas “lendas douradas”1^
concorrentes. Ela passará a ser tão determinante,
especialmente na estética da iconografia e da cristan- dade
ocidental, quanto a estética e o culto ao ícone foram para a
Igreja do Oriente. De certa forma essas duas estéticas da
imagem, a de Bizâncio e da cristandade de Roma,
desenvolveram-se em sentido inverso. Enquanto Bizâncio
concentrava-se na figuração e contemplação da imagem do
homem transfigurado pela santidade, da qual Jesus Cristo é o
protótipo vivo, São Francisco de Assis e uma Roma pontificai
introduziam a “senhora” natureza nas pinturas. E a
sensibilidade dos países celtas (a França, a Bélgica, os Países
Baixos, a Irlanda, a Escócia...) mergulhará deliciada nessa
opção, pois a mentalidade da antiga cultura dos celtas,
investia-se, em grande parte, do culto e das mitologias das
divindades da floresta, do mar, das tempestades... 11 12 A
preferência por cenas ao ar livre passará a dominar
paulatinamente nas pinturas de temas religiosos (a Fuga do
Egito, o Sermão da Montanha, as Pescas Milagrosas, os

11 Dentre as quais a mais célebre é a do dominicano Jacques de Vorágine


que, ciumenta, exclui qualquer alusão à ordem concorrente de São
Francisco...
12 G. Durand, Beaux-Arts et archétypes, la religión de 1'art (As belas- artes e
os arquétipos, a religião da arte), P.U.F., 1989.

19
O imaginario

judeus no Deserto, a Sarça Ardente etc.) e predominará


progressivamente até invadir toda a superfície da imagem. A
liberdade da abertura voltada para a natureza e suas
representações provocará uma espécie de efeito perverso
duplo: por um lado, a imagem do homem apaga-se cada vez
mais da paisagem natural das águas, florestas e montanhas;
por outro, paradoxalmente, o culto à natureza facilita o
retorno das divindades elementais mas antropomórficas dos
antigos paganismos. O humanismo do Renascimento do
Quattrocento (século 1 5) verá, sempre paradoxalmente, a
exaltação ao homem natural e sua paisagem agreste, mas,
também, o retorno ao paganismo e à teologia natural das
forças antropomórficas que regem a natureza...
A necessidade de uma Reforma e o que denominaremos
de terceira resistência à imaginária sacra explodirão neste
momento de crise da teologia cristã e provocarão a Contra-
Reforma. A Reforma Luterana, sobretudo a dos seus
sucessores, como Calvino, representa uma ruptura com os
maus hábitos adquiridos pela Igreja ao longo dos séculos,
notadamente pela contaminação humanista dos grandes
papas do Renascimento (Pio !, Alexandre Borgia, Júlio II,
Leão X, filho de Loumiçn, u Magnífico). A Reforma
combaterá a estética da imagr m e a extensão do sacrilegio do
culto aos santos. O icono- clasmo evidente traduz-se nas
destruições das estátuas e dos quadros. Todavia, devemos
assinalar que, no meio protestante, este iconoclasmo, no
sentido estrito de “destruição de imagens”, diminui de

20
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

intensidade com o culto às Escrituras e também à música13 —


Lutero, que também era músico, colocava a Senhora Música
(Frau Musika) imediatamente atrás da teologia! De passagem,
podemos observar que, ñas grandes religiões teístas com um
iconoclasmo bem solidificado como no Islamismo e
Judaísmo, a necessidade de uma representação relacio- na-se
tanto à imagem literária quanto à linguagem musical. Henry
Corbin, protestante francês e grande estudioso do Islamismo,
não se enganou neste ponto. O Islamismo compensava a
proibição das imagens pintadas ou esculpidas com poetas de
primeira grandeza (Attar, Hafiz, Saadi), a prática de recitais
sagrados da música espiritual (sama) e a “recitação
visionária” por meio de imagens literárias, portanto sem um
suporte icônico, que consistia em uma técnica de recondução
(tawil) à santidade inefável. Da mesma forma há no
Judaísmo, ao lado das exegeses puramente legais, uma
exegese “poética” das Escrituras (nas quais incluem-se os
“livros” poéticos tais como o famoso e tão decantado
“Cântico dos Cânticos”) e, sobretudo, um investimento
religioso na música do culto e mesmo na música denominada
profana.
Como ponto de comparação com essas “imagens” dos
monoteísmos judeu e muçulmano, que poderiamos
denominar “espirituais”, podemos citar a imensa exegese
musical — e tão poética! — da obra de Johann- Sebastian

13E. Weber, La Musique protestante en langue allemande (A música


protestante em alemão), Champion, 1980.

21
O imaginario

Bach (1685-1750), o maior compositor protestante. Bach,


músico e protestante tardio da Reforma, manteve intactas a
inspiração e a teoria estética de Lute- ro. Os textos e as
músicas de suas duzentas cantatas e “Paixões” são
testemunhas magníficas da existência de um “imaginário”
protestante de uma profundidade incrível mas que se destaca
na pureza iconoclasta de um lugar de oração do qual as
imagens visuais — os quadros, as estátuas e os santos —
foram expulsos.
A Contra-Reforma da Igreja Romana tomou exatamente
a atitude oposta a essa decisão iconoclasta dos Reformadores.
Num primeiro momento, felizmente logo esquecido, chegara
mesmo a suspeitar da onipresente Senhora Música no ofício
luterano.14 15 16 Mas será principalmente a imaginária sacra
das imagens carnais da Santa Família “jesuítica” (Jesus,
Maria e José), dos santos Doutores e Confessores da Igreja
que se oporá ao imagi-

14Os Oradores (daí o termo oratório) de são Felipe Neri impuseram


a música religiosa como um poderoso instrumento de conversão e
pregação contra a Contra-Reforma.

22
O imaginario

crucificação e da raríssima representação da aparição de


Jesus à sua mãe (uma aparição concreta, segundo um
exercício de aparições).17 Nessa mesma época, o imaginário
teatral de um certo Shakespeare apresentará durante a
encenação principal de uma peça uma cena secundária. Isso é
tão verdadeiro que, para atingir a profundidade da
iluminação pela própria aparência e pelo sentido, a
sensibilidade e a espiritualidade “barrocas” comprazem- se
na multiplicação das aparências “por abismos”.
No entanto, apesar da concorrência tão proveitosa do
imaginário da Reforma e da Contra-Reforma, a ruptura
definitiva com a cristandade medieval, as “Guerras das
Religiões” e a Guerra dos 30 Anos particularmente — que
arruinou e cobriu de sangue a Europa até o tratado da
Westfália (1648) — obrigou os valores visionários do
imaginário a procurarem refúgio longe dos combates
fratricidas das Igrejas. Eram individualismos reivindicando a
independência, hostilidades contra os jesuítas ou calvinistas
ou movimentos à margem de qualquer instituição religiosa.
Claro que este imaginário autônomo junto com a
desvalorização dos seus suportes confessionais
enfraqueceram os poderes da imagem, e o preço desta
autonomia foi, com freqüência, o neo-racio- nalismo dos
filósofos que, no século 18, retomaram a estética de um ideal
clássico. O neoclassicismo reintro- duz o desequilibrio

17Lima de Freitas, 515, le lieu du miroir, art et numérologie (515, o lugar do


espelho, da arte e da numerologia), Albín Michel, 1993.

26
0 imaginário

iconoclasta entre os poderes da Razão e a parte devida à


imaginação no século das Luzes. Objetivando desde logo
uma funcionalidade pura,17 o símbolo das arquiteturas
austeras é substituido pela alegoria insípida.
Contudo, no século das Luzes, os movimentos como o
pré-romantismo (Sturm und Drang, na Alemanha) e o
Romantismo foram portos privilegiados e triunfantes. A
estética pré-romântica e os movimentos românticos daí
decorrentes demarcam perfeitamente a quarta resistência do
imaginário aos ataques maciços do racionalismo e do
positivismo. Pela segunda vez, esta estética reconhece e
descreve um “sexto sentido” além dos cinco que apoiam
classicamente a percepção.18 Mas este “sexto sentido”, que
possui a faculdade de atingir o belo, cria, ipsofacto, ao lado da
razão e da percepção costumeira, uma terceira via de
conhecimento, permitindo a entrada de uma nova ordem de
realidades. Uma via que privilegia mais a intuição pela
imagem do que a demonstração pela sintaxe. Será com a
Razão pura e prática que Emmanuel Kant irá teorizar este
procedimento de 1 7 G. Durand, "Notes pour 1'étude de Ia romanomanie"
(Notas para o estudo da romanomania), ¡n Les Imaginaires des Latins [Os
imaginários latinos], EPRIL, Université de Perpignan, 1992.
V. Basch, Essai critique sur l'esthétique de Kant (Ensaio crítico sobre a
estética de Kant), Vrin, 1927.
nário “espiritual” protestante do culto. Com a codificação do
famoso Concilio de Trento, no século 16, o triunfo da Contra-
Reforma pode ser considerado como o terceiro grande
momento da resistencia ao iconoclas- mo do Ocidente. A

24
0 paradoxo do imaginario no Ocidente

partir de agora, esta resistencia possui um alvo preciso. Ela


oporá aos excessos da Reforma os excessos inversos da arte e
da espiritualidade barrocas. Dois famosos especialistas neste
período18 deram às suas análises subtítulos que
circunscrevem em duas imagens as qualidades deste novo
imaginário. O Barroco é realmente “um banquete dos anjos”
— título que une duas imagens antitéticas (ou “oxímoros”):
as dos seres de espírito puro, os anjos, e aquela do banquete,
totalmente carnal — mas, ao mesmo tempo, é a
“profundidade da aparência” (título não menos enigmático,
pois a profundidade nos é sugerida pelo que há de mais
superficial: apesar de toda pompa a aparência nega em mos-
trar-se...). Estas são as qualidades da imagem propostas pelo
Barroco: uma plétora profundamente carnal, trivial mesmo,
da representação, mas que também dá acesso à profundidade
do sentido por meio destes efeitos superficiais de jogos de
epiderme e virtuosismos triunfalistas.
Diante desse imaginário protestante voltado para o

18
Cl.-G. Dubois, Le Baroque, profondeur de 1'apparence (O barroco e a
profundidade da aparência), Larousse, 1973; D. Fernandez, Le Banquet des
anges, 1'Europe baroque de Rome à Prague (O banquete dos anjos, a Europa
barroca de Roma a Praga), Plon, Paris, 1984.

27
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

texto literário ou musical, a Contra-Reforma também irá


exagerar o papel espiritual conferido às imagens e ao culto
aos santos. As imagens esculpidas ou pintadas, ou às vezes
as imagens pintadas que imitam esculturas à trompe-l’oeil,
invadem o vasto espaço desocupado das naves das novas
basílicas de “estilo jesuíta” e os virtuosismos arquiteturais
com os quais o Barroco beneficiará a Europa — o famoso
“crescente barroco”19—, e que se estenderá durante quase
três séculos pela Itália, Europa Central e... América do Sul.
Por trás das obras de arquitetos tais como Borromini e o
cavalheiro Bernin e pintores como Veronese, Ticiano e
Tintoretto, Rubens e Andréa Pozzo encontram-se os Exercitia
spiritualia (1548) de Santo Inácio de Loyola, o fundador da
sociedade — ou Companhia — de Jesus. Trata-se de um
verdadeiro tratado de contemplação imaginativa que, com o
Itine- rarium de São Boaventura, tornou-se uma das duas
Cartas mais importantes apoiadas primeiro pelos
franciscanos e depois pelos jesuítas, as duas ordens religiosas
mais poderosas da devoção moderna e do imaginário místico
do Ocidente cristão. O companheiro de Jesus é submetido a
exercícios de imaginação sistemáticos desde o noviciado:
visualização seguida de contemplação de cenas do Inferno,
da Natividade, da fuga do Egito, da conhecimento pelo
“juízo de gosto”. Mas não apenas. No âmago do processo do
juízo racional da Razão pura, e para permitir a união entre as

19 P. Charpentrat, Baroque (O barroco), Office du Livre, Frlburg, 1964.

25
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

“formas a priori” da percepção (espaço e tempo) e as


categorias da Razão, Kant reabilita a imaginação como uma
“esquematização” preparando, de certa forma, a integração
da simples percepção nos processos da Razão. Os sistemas
filosóficos mais importantes do século 19, como os de
Schelling, Schopenhauer e Hegel, terão uma participação
régia nas obras da imaginação e da estética. 19 O poeta
Hõlderlin afirmará, no alvorecer do século: “Os poetas
autenticam o que permanece”20 21 e será retomado por
Baudelaire e Rimbaud. O primeiro coroará a imaginação com
o título de “A Rainha das Faculdades”, enquanto o segundo
constatará que “qualquer poeta tende a tornar-se um
visionário”. Não há dúvida de que o artista tornou-se
“maldito” devido ao sucesso insolente das ciências e técnicas
que inauguraram uma inquisição política e uma ditadura
econômica novas. Mas nem por isso todos os artistas deixam
de reivindicar ferozmente os títulos de “gênio”, “vidente”,
“profeta”, “mago” e “guia”... No final do século 19, a arte
passa a uma “religião” autônoma, revezando-se com seus
cenáculos e suas capelas com a nova Igreja positivista e o
esgotamento das religiões tradicionais do Ocidente. Mas isto
não aconteceu de um dia para o outro.
Embora as primeiras insurreições do Sturm und Drang
(1770) — a etapa da doutrina romântica da “arte pela arte”

19 L. Guichard, La Musique et les lettres au temps du romantisme (A música e


as letras na época do Romantismo), P.U.F., 1955.
21 "Ce qui demeure les poètes le fondent." {N.T.)

27
O imaginario

seguida de seu herdeiro imediato, o perfeccionismo


“parnasiano” — explorassem e consolidassem o território
imaginai do “sexto sentido”, elas não foram além da perfeição
imánente das imagens. Será preciso aguardar a chegada da
corrente “simbolista” para desprezar a perfeição formal e
elevar a imagem icônica, poética, até musical, a videncia e
conquista dos sentidos. Dar o titulo de “símbolo” à imagem
artística significa apenas fazer do significante banal a
manifestação de um simbolismo inefável. Segundo um
especialista em Simbolismo, seria o mesmo que reencontrar
“a galáxia das significancias [...] o rumor dos deuses...”.2^ A
obra de arte irá libertar-se aos poucos dos serviços antes
prestados à religião e, nos séculos 18 e 19, à política. Esta
emancipação lúcida das artes será o feito tanto de um
Gustave Moreau, Odilon Redon ou um Gauguin na pintura
como de um Richard Wagner ou seu rival Claude Debussy
na música... O Surrealismo da primeira metade do século 20
será o resultado natural e reconhecido do 22
Simbolismo. Este “sexto sentido”, que no século das Luzes
revelou ingenuamente a estética, desabrochou numa filosofia
de um universo “completamente diferente” do pensamento
humano e definido por André Bretón, no Manifesto de 1924,
como o “funcionamento realista do pensamento”.23 Contudo,
podemos imaginar os constantes entraves sofridos por este

22 R.-L. Delvoy, Le Journal du symbolisme (O diário do simbolismo), Skira,


1977.
23 G. Picón, Le Journal du surréalisme (O diário do surrealismo), 1919-1939,

Skira, Genebra, 1974.

28
0 paradoxo do imaginário no Ocidente

movimento de um retorno ao Surrealismo, que se posiciona


do outro lado de um empirismo institucionalizado na todo-
poderosa corrente positivista com sua pedagogia obrigatória,
até ser finalmente marginalizado durante quase todo o
século 20. A prova encontra-se no campo das belas-artes e,
por vezes, entre os detentores do Surrealismo e no
desenvolvimento dogmático de toda urna pintura e música
não imaginárias, cujas abstrações geométricas como o
Cubismo, o dodecafonismo e o desconstrutivis- mo foram,
até o último quarto do século, suas manifestações mais
ferrenhas.24

24M. Ragon, L'Aventure de l'art abstrait (A aventura da arte abstrata), Paris,


1956; R. Leibowitz, Introduction à Ia musique de douze tons (Introdução à
música de doze tons), L'Arche, 1949.

29
O paradoxo do imaginario no Ocidente

3. O efeito perverso e a explosão do vídeo

Na confluência desta corrente dupla poderosíssima e


contínua do iconoclasmo ocidental e da afirmação do papel
“cognitivo” (que produz consciencia) da imagem
— esta muito mais esporádica e dominada por aquela
— explodirá, passado mais de meio século, sob nossos
olhos, o que podemos denominar de “a revolução do
vídeo”. O que não deixa de ser extraordinário é que esta
explosão da “civilização da imagem” tenha sido um efeito,
e um “efeito perverso” (que contradiz ou desmente as
conseqüências teóricas da causa), do... iconoclasmo técnico-
científico, e cujo resultado triunfante será a pedagogia
positivista. A descoberta da imagem fotográfica, primeiro
em preto (N. Niepce, 1823; ]. Daguerre, 1837) e depois em
cores (L. Ducos de Hauron, 1869; G. Lippman, 1891) está
estreitamente ligada ao progresso químico que permitiu a
gravação da imagem projetada “às avessas” pela objetiva
da câmara escura numa placa sensibilizada — um
fenômeno muito conhecido a partir do século 15. A
animação da imagem reproduzida quimicamente (A. e L.
Lumière, 1885) resulta da aplicação mecânica de um
fenômeno fisiológico conhecido, teorizado em 1828 por
joseph Antoine Plateau, o criador de um dos primeiros
cinematógrafos, o fenacistocó- pio, um aparelho formado
por dois discos que dão a ilusão de movimento pela

30
0 paradoxo do imaginario no Ocidente
continuidade das imagens da retina. A transmissão
instantânea destas imagens e “filmes” à distancia será o
fruto da aplicação da telecomunicação oral (É. Branly, 1890;
A. S. Popov, 1895; G. Mar- coni, 1901) e depois das imagens
na televisão (B. Rosing, 1907; V K. Zworykin, 1910-1927) e a
descoberta da onda eletromagnética considerada “inútil e
puramente teórica” por H. Hertz (1888), seu inventor. Eis
um belo exemplo de cegueira de um sábio educado nas
escolas e laboratórios positivistas que se recusou a ver — e
prever — o importante resultado civilizacional de sua
descoberta, que permitirá a inesperada “explosão” da
comunicação e difusão das imagens. Estas receberíam ainda
os suportes magnéticos dos progressos da física e
passariam por uma expansão gigantesca com o advento do
videocassete (1972) e videodisco. Se nos detivemos
detalhadamente nesses inventores e suas invenções foi para
marcar bem a “perversidade” dos efeitos do progresso da
física e da química, bem como das experiências e
teorizações matemáticas do racionalismo iconoclasta do
Ocidente.
Aos nossos olhos, a ultrapassagem, quando não o
“fim” da “galáxia de Gutenberg”, pelo reino onipresente da
informação e da imagem visual teve conseqüências cujos
prolongamentos são apenas entrevistos pela pesquisa. 25 A
razão é muito simples: este “efeito perverso”

25 A. Leroi-Gourhan, Le Geste et la parole (O gesto e a palavra), 2 vols.,


Albín Michel, 1964.

31
O imaginario

jamais foi previsto nem mesmo considerado. Embora a


pesquisa triunfal decorrente do positivismo tenha se
apaixonado pelos meios técnicos (óticos, físico-químicos,
eletromagnéticos etc.) da produção, reprodução e
transmissão das imagens, ela continuou desprezando e
ignorando o produto de suas descobertas. Fato comum nas
nossas pedagogías técnico-científicas: foi necessário que
uma parte da população de Hiroxima fosse destruída para
que os físicos se horrorizassem com os efeitos de suas
descobertas inocentes sobre a radioatividade provocada...
O que não ocorreu com a “explosão” do imaginário.
Como a imagem sempre foi desvalorizada, ela ainda não
inquietava a consciência moral de um Ocidente que se
acreditava vacinado por seu iconoclasmo endêmico. A
enorme produção obsessiva de imagens encontra-se
delimitada ao campo do “distrair”. Todavia, as difusoras de
imagens — digamos a “mídia” — encontram-se
onipresentes em todos os níveis de representação e da
psique do homem ocidental ou ocidentalizado. A imagem
mediática está presente desde o berço até o túmulo, ditando
as intenções de produtores anônimos ou ocultos: no
despertar pedagógico da criança, nas escolhas econômicas e
profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas (a
aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos
ou privados, às vezes como “informação”, às vezes velando
a ideologia de uma “propaganda”, e noutras escondendo-se
atrás de uma “publicidade” sedutora... A importancia da

32
0 paradoxo do imaginario no Ocidente

“manipulação icônica” (relativa à imagem) todavia não


inquieta. No entanto é dela que dependem todas as outras
valorizações — das “manipulações genéticas”, inclusive.
Felizmente e apesar de tudo, nos últimos 25 anos uma
minoria de pesquisadores, que cresce a cada dia,
interessou-se pelo estudo deste fenômeno fundamental da
sociedade e pela revolução cultural que implica.

33
II

As CIENCIAS DO IMAGINÁRIO

1. As psicologías das profundezas

Os bastiões da resistencia dos valores do imaginário


no seio do reino triunfante do cientificismo racionalista
foram o Romantismo, o Simbolismo e o Surrealismo. E foi
no cerne desses movimentos que uma reavaliação positiva
do sonho, do onírico, até mesmo da alucinação — e dos
alucinógenos — estabeleceu-se progressivamente, cujo
resultado, segundo o belo título de Henri Ellenberger,24 foi
a “descoberta do inconsciente”. A idéia e as experiencias do
“funcionamento concreto do pensamento” comprovaram
que o psiquismo humano não funciona apenas à luz da
percepção imediata e de um encadeamento racional de
idéias mas, também, na penumbra ou na noite de um
inconsciente, revelando, aqui e ali, as imagens irracionais
do sonho, da neurose

24 H. Ellenberger, ver Bibliografia.

34
0 imaginário

ou da criação poética. Claro que esta descoberta


fundamental está ligada ao nome de Sigmund Freud (1856-
1939).26 Os estudos clínicos de Freud e a repetição das
experiências terapêuticas — o famoso “divã” —
comprovaram o papel decisivo das imagens como
mensagens que afloram do fundo do inconsciente do
psiquismo recalcado para o consciente. Qualquer
manifestação da imagem representa uma espécie de
intermediário entre um inconsciente não manifesto e uma
tomada de consciência ativa. Daí ela possuir o status de um
símbolo e constituir o modelo de um pensamento indireto
no qual um significante ativo remete a um significado
obscuro. Em termos médicos, este símbolo significa um
“sintoma”. Por conseguinte, a imagem perde sua
desvalorização clássica e deixa de ser uma simples “louca
da casa” para transformar-se na chave que dá acesso ao
aposento mais secreto e mais recalcado do psiquismo.
Contudo, a imagem limita-se a ser o indicador dos vários
estágios do desenvolvimento da pulsão única e
fundamental (a “libido”) onde a concretização normal do
desejo encontra-se reprimida por um traumatismo afetivo.
Muitos discípulos de Freud esforçaram-se para
mostrar que, por um lado, o psiquismo humano não era
passível de uma única libido (o pansexualismo) e, por

26S. Freud, ver Bibliografia. N. Dracoulidès, L'Analyse de 1'artiste et de son


oeuvre fAnálise do artista e sua obraj, Mont Blanc, Genebra, 1952.

35
As ciências do imaginario
outro — segundo o título célebre, “as formas e as
metamorfoses da libido” —, que a única virtude da imagem
não consistia na sublimação de um recalcamento neurótico,
pois o psiquismo normal continha uma função construtiva e
poética (poiesis: “criação”).
Não podemos deixar de mencionar o papel do
psiquiatra suíço Carl-Gustav Jung (1875-1961)26, o qual
“normalizou” o papel da imagem e foi o primeiro a
pluralizar a libido com clareza. Para Jung, a imagem, por
sua própria construção, é um modelo da autocons- trução
(ou “individuação”) da psique. Os doentes com
perspectivas de cura têm sonhos espontâneos ou desenham
círculos quadrangulados como aqueles usados nas
meditações do budismo tibetano (mandolas). Portanto, de
alguma forma, a imagem representa um “sintoma ao
contrário” e um indicador da boa saúde psíquica. Mas por
ser tão terapêutica e como o psiquismo não é orientado por
uma libido única e totalitária, ela abandona a unicidade
obsessiva e se pluraliza. O psiquismo divide- se em, pelo
menos, duas séries de impulsos: aqueles que se originam na
parte mais ativa, mais conquistadora, quando o animus
mostra-se freqüentemente sob os traços da grande imagem
arquétipa (do tipo arcaico, primitivo e primordial) do herói
que derrota o monstro e, por outro lado, aqueles elaborados
na parte mais passi- va, mais feminina e mais tolerante, a
anima, a qual surge muitas vezes sob a figura da mãe ou,
ainda, da Virgem... Por conseguinte, a imagem passou de
26 C.-G. Jung, ver Bibliografia.

36
As ciências do imaginario
um simples papel de sintoma ao de agente terapéutico, e
toda urna escola de pesquisadores, os estudiosos do “sonho
acordado”,27 tentará guiar os sonhos de um paciente para
que este libere, por meio de uma secreção, por assim dizer,
as imagens-anticorpos que contrabalançarão ou destruirão
as imagens neuróticas obsessivas.
Os seguidores de Jung aperfeiçoaram ainda mais o
pluralismo psíquico do mestre de Zurique. Não só há duas
matrizes arquetípicas produtoras de imagens e que se
organizam em dois esquemas míticos, animus e anima, mas
que se pluralizam num verdadeiro “politeísmo”
psicológico: a anima, por exemplo, pode ser Juno, Diana ou
Venus... O psiquismo não se limita a ser “tigrado” por dois
conjuntos simbólicos opostos, mas é também mosqueado
por uma infinidade de nuanças que remetem ao panteão
das religiões politeístas e das quais as astrologias modernas
mantiveram alguns traços.28
Os resultados clínicos foram confirmados pelo método
experimental dos testes “de projeção”, nos quais um sti-
mulus provoca uma manifestação espontânea dos conteúdos
psíquicos latentes. O teste mais conhecido é o que foi

27 R. Desoille, Le Rêve éveillé en psychothérapie (O sonho acordado na


psicoterapia,), PUF, 1945.
28
J. Hillman, Le Polythéisme de l'âme (O politeísmo da alma), Mer- cure de
France, Paris, 1982; G. Durand, L'Áme tigrée, les pluriels de psyché (A alma
tigrada e os plurais da psique,), Denoèl, 1981; P. Solié, La Femme
essentielle, mythanalyse de Ia grande mère et de ses fils amants (A mulher
essencial, mitoanálise da grande mãe e seus filhos amantes), Seghers, 1948.
29 Y. Durand, ver Bibliografia.

37
O imaginario

aperfeiçoado pelo psiquiatra suíço Hermann Roschach, em


1921. O sujeito recebe dez pranchas com uma mancha de
tinta em cada uma (selecionadas, é claro), não-figurativas,
sendo algumas coloridas. Dependendo da escolha de cor ou
forma, do conjunto ou dos detalhes etc., o profissional
classificará o sujeito num dos quatro tipos psicológicos.
Além deste teste famoso, vários outros “testes de
figuras” costumam ser usados para provocar associações
livres por imagens. Tanto pode ser a construção de urna
“aldeia” com um jogo de construção pronto, ou o desenho
de uma árvore, casa ou paisagem. Neste florilégio
abundante de testes de projeção devemos ainda assinalar,
por se tratar de um dos florões da Escola de Grenoble, o
“teste arquétipo dos nove elementos”29 do psicólogo Yves
Durand, que consiste em enunciar nove palavras que
correspondem a imagens (uma queda, um incendio, água,
um monstro que devora...) e pedir ao sujeito que, a partir
destas iscas semânticas, faça um desenho livre seguido de
uma narrativa. Este teste não apenas constitui um
diagnóstico psiquiátrico excelente

38
O imaginário

como confirma os resultados teóricos que havíamos criado


pessoalmente para as “estruturas” do imaginario: todo
imaginário humano articula-se por meio de estruturas
plurais e irredutíveis, limitadas a três classes que gravitam
ao redor dos processos matriciais do “separar” (heroico),
“incluir” (místico) e “dramatizar” (dissemi- nador), ou pela
distribuição das imagens de urna narrativa ao longo do
tempo.

2. As confirmações anatomojisiológicas e etológicas

O estudo anatomofisiológico do sistema nervoso


humano, em particular do encéfalo, confirmou e especificou
algumas observações clínicas dos psicólogos. Por um lado, o
estudo demonstrou a singularidade anatômica do “cérebro
humano volumoso”, segundo o termo usado H. Laborit.
Podemos afirmar tratar-se aqui de um “volume” ao
“quadrado”. Ele capitaliza sob o “cérebro pré-frontal” (ou
“terceiro cérebro”) os dois outros cérebros: o palencéfalo
(centro da agressividade “repti- liana”) e o mesencéfalo
(centro da emotividade “mamífera”). Este “terceiro cérebro”
ocupa dois terços da massa cerebral e controla todas as
informações filtradas pelas outras esferas do sistema nervoso
por meio de suas ligações neurológicas (as fibras de mielina).
A riqueza das articulações permite a ligação simbólica entre
dois objetos diferentes — fato comum a muitos animais (cf.
as experiências de Pavlov com cães) — assim como as

39
O imaginario

articulações simbólicas e praticamente ilimitadas existentes


no Homo sapiens adulto, especialmente a ligação entre dois
dos sistemas representativos — o visual e o auditivo, sendo
este último muito pobre nos outros antropóides (J.-C.
Tabary).
No mamífero não-humano — répteis e peixes afor- tiori
— o stimulus provoca uma reação direta: a agressividade no
crocodilo, a emotividade no cão etc. No homem, como todas
as informações são controladas pelo “terceiro cérebro” (ou
“cérebro noemático”) (R Chau- chard),29 elas passam a ser
indiretas. Todo pensamento humano é uma re-presentação,
isto é, passa por articulações simbólicas. Ao contrário do que
afirmou um psiquiatra que esteve durante algum tempo na
moda, no homem não há uma solução de continuidade entre
o “imaginário” e o “simbólico”. Por conseqüência, o
imaginário constitui o conector obrigatório pelo qual forma-
se qualquer representação humana.
Em segundo lugar, e embora hoje sejamos
extremamente prudentes quanto às “localizações cerebrais”
tão criticadas pelo filósofo Henri Bergson e prefiramos
considerar as influências do meio exterior sobre as
especializações neurocerebrais (a emergência “epigenética”,
J.-C.
Tabary), nem por isso os trabalhos de R. Sperry (Prêmio
Nobel de Medicina, 1982) e E. T. Roll impedem que

29 p. Chauchard, Précis de biologie humaine (Enunciado dfl biologia


humanai, Paris, 1952.

40
As ciências âo imaginário

distingamos as zonas cerebrais mais favoráveis para estas


articulações simbólicas que, a partir de 1959, denominamos
“diurnas” e “noturnas”. Os trabalhos de Sperry, ratificados
pelo neurologista francês Paul Chauchard, situam estas duas
articulações nos hemisférios cerebrais “direito” e
“esquerdo”, reciprocamente. O esquerdo, “mais privilegiado
por nossas culturas e pedagogías ocidentais” (P Chauchard)
seria a sede (a famosa “circunvo- lução frontal esquerda”
que Broca já descobrira no século 19) do pensamento
verbalizado, da consciência pensada e do aspecto sintático
da escrita, enquanto o direito, o “cérebro mudo”, seria o dos
pensamentos e das linguagens não-lógicas (musical,
icônica...), das representações carregadas de emotividade e
do processo corporal. E verdade que estes “dois cérebros”
ligam-se por “corpos calosos” conforme confirmaram as
experiências de Roll com macacos. Qualquer que seja a
relação de independência ou hierarquia entre os dois campos
da simboliza- ção, a “alma [permanecerá] tigrada” (segundo
o título de um dos meus livros, inspirado numa metáfora a
Victor Hugo). Embora certamente não indefinidas, as línguas
múltiplas da simbolização são suficientemente pluralistas
para proporcionar uma classificação dos “processos” de
funcionamento do simbolismo.
Ao expor o conceito de “gesto” ou “reflexo domi-

41
As ciencias do imaginario

nante” (que inibe todos os outros reflexos)30 nas primeiras


décadas do século 19, a reflexologia da Escola de Leningrado
permitiu a circunscrição das matrizes originárias sobre as
quais serão construídos progressivamente os grandes
conjuntos simbólicos. W Betcherev e sua equipe
comprovaram dois reflexos dominantes no recém-nascido: o
primeiro, da “posição”, privilegia a verticalidade e a
horizontalidade. Qualquer perturbação da postura (um
empurrão brutal, uma queda...) provoca um reflexo
“dominante” de postura. O segundo e não menos
importante é o da “nutrição”, que se manifesta por reflexos
de sucção labial e uma orientação adequada da cabeça. Em
ambos os casos qualquer reação estranha ao reflexo
dominante encontra-se muitas vezes inibida ou, pelo menos,
retardada.
Uma terceira dominante, mas que só foi estudada no
animal adulto, mais precisamente na rã macho, é a
“dominante copulativa”. A partir de então, acostuma- mo-
nos a observar uma dominante muito poderosa na conduta
vital da pulsão sexual. Os “esquemas propulsores do
acasalamento são processos inatos [...] que dependem do
amadurecimento das conexões nervosas, até então latentes,
na estrutura inata do organismo”. Estamos diante de três
grandes séries de “gestos dominan- tes” (postural, digestivo,
copulativo), nas quais a maioria dos psicofisiólogos e

30 Segundo os trabalhos de W. Betcherev e J. M. Oufland, cf. C. Du- rand,


Bibliografia.

42
v4s ciências do imaginário

psicólogos, partidários de uma origem central e exclusiva do


fenômeno da domináncia ou de uma teoria periférica (onde
o corpo inteiro participa na construção do fenômeno),
observaram os processos matriciais das grandes categorias
das re-presentações.
Devemos ainda acrescentar aos resultados destas
observações que confirmam de forma extrema o
imperialismo da re-presentação, portanto da imagem e da
existencia de esquemas imaginários distintos no homo
sapiens, as observações dos etólogos (especialistas que se
interessam pelos usos, costumes e comportamentos), que
constataram a existência de grandes imagens primordiais
(Urbilder), que são as diretrizes dos gestos e das atitudes
específicas nos comportamentos dos animais. Os trabalhos
de K. Lorenzd2, N. Tinbergen e K. von Friesch sobre estas
imagens diretrizes que implicam um “mecanismo inato de
desencadeamento” muito próximo aos arquétipos
junguianos e aos “esquemas arquetí- picos” que nós
havíamos assinalado (1959) seriam coroados por um Prêmio
Nobel (1973). Nos conhecidís- simos estudos sobre o
comportamento dos gansos selvagens, do lagarto verde e do
peixinho carapau, eles descobriram as imagens stimuli
desencadeadoras dos poderosos reflexos dominantes. Por
exemplo, uma pequena 31 mancha azul atrás da abertura
auricular do lagarto verde macho provocava a agressividade

31 K. Lorenz, Le comportement animal et humain (O comportamento animal


e humano), Seuil, 1976.

43
0 imaginário

de um outro macho, como foi demonstrado quando


pintaram propositada- mente uma dessas manchas numa
fêmea, provocando a agressividade no macho em vez de
uma atitude que seria, por instinto, muito mais galante. O
mesmo fenômeno íoi observado no carapau macho, desta
vez com a cor vermelha, o que provocou um ataque de
cólera heróico, pois tratava-se de uma bola de celulóide dez
vezes maior do que ele. Portanto, se no mundo das vértebras
inferiores não há “articulações simbólicas” complexas, há,
pelo menos, “ligações simbólicas” inatas e rudimentares que
formam a base de um universo imaginário regularizador dos
comportamentos vitais da espécie.
Por fim, devemos levar em consideração um fenômeno
que justifica amplamente as afirmativas de uma teoria
epigenética da representação estudada por todos os
neurofisiologistas: a formação do “grande cérebro” humano
é muito lenta (neotenia). Se a ligação simbólica ocorre a
partir dos dezoito meses, a articulação simbólica somente se
manifesta por volta dos quatro ou cinco anos. A formação
anatômica do cérebro humano se encerra por volta dos sete
anos, e as reações encefalográfi- cas se normalizam aos vinte
anos... “O homem é o único ser com uma maturação tão
lenta que permite ao meio, especialmente ao meio social,
desempenhar um grande papel no aprendizado cerebral” (R
Chauchard, op. cii ),

44
O imaginario

A conseqüência desta neotenia lenta é dupla: não apenas


requer a educação dos “sistemas” da simbolização como faz
com que esta educação, dependendo das culturas e até dos
momentos culturais de uma mesma cultura, seja muito
variável. Isto foi apontado pela “escola culturalis- ta”
americana, obrigando as ciências sociais a voltarem- se para
outros lados além de sua própria área cultural. E será ao
pluralismo de um imaginário bem fundamentado pela
psicologia e anatomofisiologia que reagirá uma sociologia do
longínquo, do “selvagem”.

3. As sociologías do selvagem e do comum

Antes de mais nada, qualquer teoria do imaginário deve


esboçar rapidamente o eurocentrismo que acalentou o
nascimento da sociologia e da história. O século 19
acompanhou o desabrochar do positivismo paralelamente à
sociologia unidirecional de Auguste Comte e ao historicismo
unidimensional de Karl Marx. Contudo, como aqui nosso
objetivo não consiste em detalhar esta apresentação, nós nos
limitaremos a expor a corrente que foi “além” dos
pressupostos positivistas e materialistas. Basta acrescentar
que para Comte e Marx, seus pais fundadores, o imaginário
e seus trabalhos situam-se bem “à margem” da civilização
tanto na idade “teológica” do primitivismo humano quanto
na superfície da insignificancia superestrutural. Ambos se

45
0 imaginário

inserem subrepticiamente no mito inelutável do progresso


providencial do modelo proposto pelo abade Joachim de
Flore32, no século 12. Este mito fundador do pensamento
moderno situa o progresso inelutável da humanidade em
três “épocas” consecutivas da Revelação, a saber: primeiro a
do Pai, depois a do Filho e, por último, a do Espírito Santo,
isto é, a época da paz universal por vir.
Em contrapartida, situar o poder do imaginário — a
representação simbólica — na base do pensamento do
Sapiens significa recusar, num único movimento, os
“progressos de uma consciência” cujos objetivos seriam tão
iconoclastas quanto as perspectivas muito curtas e por
demais regionais de um historicismo fruto do determinismo
em mão única da Europa moderna.
A partir desta nova esfera de influências científicas
acompanharemos a abertura da história à pré-história, o que
um historiador francês denominou de “a longa duração”, e
veremos a sociologia transvazar seu aconchegante berço
parisiense e escapar para o vasto campo das culturas
exóticas. Depois da confirmação do aparecimento da espécie
homo na África há dois milhões de anos, a pré-história
mostrou a aptidão do homem para fabricar ferramentas e
que — graças à descoberta das caixas cranianas e sua
anatomia — as zonas cerebrais de Broca e Wernicke
(temporal-parietal esquerdo) localizam-se no grande cérebro

32 H. de Lubac, La Postérité spirituelle de Joachim de Flore (A posteridade


espiritual de Joachim de Flore), 2 vols., Lethielleux, 1978-1980.

46
As ciencias do imaginario

donde, por conseqüência, o homo erectus ser dotado da fala.


Além disso, as decorações dos sítios funerários indicam sua
capacidade de acompanhar a morte com um conjunto de
signos e objetos rituais.33 Por conseguinte, o cérebro do
homem, um ser marcadamente diferente das demais
criaturas vivas, torna-o um homo symbolicus desde suas
origens mais remotas.
Estes achados numa vizinhança fraterna dos ancestrais
do homo sapiens moderno perseguirão literalmente toda a
nova sociologia causando a explosão do seu euro- centrismo
natal. O paradoxo desta descolonização intelectual coincide
com a colonização, pelas potências européias, dos povos que
consideram “inferiores”. Altamente significativo destas
mudanças e descobertas é o intervalo mínimo — apenas
vinte anos e às vezes não mais que dois ou três anos — que
separa a obra do grande etnólogo e teórico Lucien Lévy-
Brühl, autor de Fonctions mentales dans Ies sociétés inférieures
[As funções mentais nas sociedades inferiores] (Alean, Paris,
1910), daquela do grande etnólogo e pesquisador de campo
Marcei Griaule (Masques dogons [As máscaras dos Do-

33 y. Coppens, Le Singe, l'Afrique et l'homme (O macaco, a África e o


homem), Fayard, 1983.

47
ds ciências do imaginário

gons], Instituto de Etnologia, Paris, 1932). Enquanto os


etnólogos pesquisadores de campo constatarão a inexistência
de uma diferença quanto à natureza do “próximo e
longínquo”, Lévy-Brühl atribui aos “primitivos” uma
mentalidade “inferior” e “pré-lógica” que os diferencia e
separa do “adulto branco e civilizado”.34
Imediatamente após a exorcização da “inferioridade”
do “pré-lógico” e especialmente dos processos de
participação, similitude e homeologia (que permitem à
alteridade ocupar um lugar legítimo, de “terceiro dado”, até
mesmo de “confusão”), a ciência do homem social passou a
abordar todas as declinações (as “derivações”) do
pensamento imaginário. Muito significativa, e já há cerca de
cinqüenta anos, é a mudança de valor das terminologias. Os
conceitos pejorativos “pré-lógico”, “primitivo” e
“pensamento mítico” vão sendo aos poucos substituídos por
“arquétipo”, “a outra lógica”, “participação” etc. Todos estes
“ancestrais”, ou melhor, estas áreas mantidas à distância
pelas ciências sociais clássicas, a sociologia francesa em
particular, readquirem sua dignidade e seus direitos.
Durante muito tempo seu significado foi o de “barbárie”
com conotações de infantilismo, crueldade, grosseria e
incultura, opondo-se radicalmente ao de “civilizada”. Os
últimos cinqüenta anos inverteram por completo esta
relação. Claude Lévi-Strauss afirma, no seu famoso livro 0

34 R. Bastide, ver Bibliografia, e Sociologie et psychanalyse (Sociolo gia e


psicanálise), P.U.F., 1949-1950.

48
ris ciências do imaginário

pensamento selvagem (1962), que, em oposição a qualquer


eurocentrismo, “os homens sempre souberam pensar muito
bem” e que em cada homem subsiste um patrimônio
“selvagem” infinitamente respeitável e precioso. A partir de
então, este título e esta posição filosófica fizeram escola. 35
Esta reviravolta de valores permitiría fundar uma
“sociologia do imaginário” deliberada e complementar, de
forma exógena, os imperativos do imaginário sendo
evidenciados pela pesquisa psicológica e etológica. Foi o que
percebeu com lucidez o grande sociólogo francês Roger
Bastide (1898-1974), que passou muitos anos no meio da
sociedade policultural brasileira; a partir do final da década
de 50, ele introduziu com veemência nas terrae incognitae a
pesquisa sociológica “do pensamento obscuro e confuso” do
sonho,36 dos fantasmas das doenças mentais, dos transes
religiosos, do símbolo, dos mitos e das utopias, Além de
inserir este setor importante do imaginário na “sociologia do
conhecimento”, construindo desse modo uma ponte entre a
sociologia e as psicologias das profundidades, sua vasta
erudição e grande curiosidade permitiram-lhe criar
passarelas entre a sociologia do símbolo e do sonho e as
produções literárias.
E será nesta brecha enorme aberta no flanco da

35 R. Bastide, Le Sacré sauvage (O sagrado selvagem), Payot, 1975; M. Hulin,


La Mystique sauvage (A mística selvagem), P.U.F., 1993.
36
R. Bastide, "La pensée obscure et confuse" (O pensamento obscuro e
confuso), in Le Monde non chrétien (O mundo não-cristão), n°? 75/76, Paris,
1965.

49
O imaginario

sociologia positivista que muitas pesquisas de campo, até


então negligenciadas, acabariam precipitando-se.
Esta corrente oriunda da sociologia do “conhecimento
pelo imaginário” do sociólogo da cidade de São Paulo teve
duas ramificações: uma retomaria imediatamente os estudos
americanos de Bastide, impregnando toda a etnologia
contemporânea, e a outra se voltaria por inteiro, por assim
dizer, para os domínios deixados por conta da sociologia.
A primeira ramificação inserirá as reservas do
imaginário — os símbolos, os mitos e os rituais das
sociedades distantes — no centro dos estudos. Aqui, não
podemos deixar de abrir um grande espaço no rico jazigo
dos americanistas para os trabalhos de Roger Caillois e
Jacques Soustelle, Alfred Métraux e Jean Cazeneuve. Estes,
porém, devem ser considerados mais como gene- ralistas do
que especialistas. Aliás, seus trabalhos permaneceram
durante muito tempo em segredo universitário, um sinal da
resistência que a Universidade francesa, teimosamente,
ancorada no seu positivismo natal, insistia em manter. Era
inevitável que Caillois, que ainda não era diretor da
UNESCO nem acadêmico, Michii Leiris, Alexandre Kojève e
Georges Bataille, depois cie um longo “flerte” com o
Surrealismo fundador do Collège de Sociologie [Escola de
Sociologia] (19Í7) < vnl

50
0 imaginário

tados para “a pesquisa dos fenómenos humanos das


grandes profundezas” (sic) fossem considerados suspeitos
das piores intenções subversivas devido à ortodoxia da
Sorbonne — onde reinava Léon Brunschvicg — e “suas
particularidades de caráter maníaco e puramente
ritualísticas”. O sagrado, o lúdico, o mito, a “incerteza” dos
sonhos, o fantástico: tantas regiões do Imaginário exploradas
— poderiamos até dizer “criadas” — por Caillois, o autor
deste pequeno livro fulgurante de 180 páginas, Le Mythe et
l’homme38 [O mito e o homem], um dos maiores arquivos
comparativos imagináveis e onde se cotejam
desordenadamente a psicofisiologia, a psi- copatologia, a
etno-sociologia, a estética ou... a entomología! Este combate
do imaginário, dos mitos e do lúdico contra o
“particularismo maníaco”, este combate de um “saber em
diagonal” contra as especializações ce- gas encontraria
novamente um eco na epistemología do “transversal” de
Edgar Morin e no vigoroso e luxuriante “alegre saber” do
africanista Louis-Vincent Thomas37 38, discípulo de Bastide,
especialista do imaginário da morte e nosso mui saudoso
amigo.

37 R. Caillois, ver Bibliografia, e Roger Caillois et les approches de


l'imaginaire (Roger Caillois e as abordagens do imaginário), Cahiers de
l'imaginaire nu 8, L'Harmattan, 1992.
38 L.V. Thomas, Fantasmes au quotidien (As fantasmagorías do cotidiano),
Méridiens, 1984; G. Auclair, Le Mana quotidien, structures et fonctions du
fait divers (O mana cotidiano, as estruturas e funções das crônicas policiais),
Anthropos, 1970.

51
O imaginario

Ainda na esteira de Griaule, é preciso lembrar a


expansão da nova sociologia entre os africanistas e
especialistas da Oceania e a grande figura de Maurice Lec-
nhardt (1878-1954) a quem devemos um dos livros mais
importantes sobre o imaginário dos melanésios: Do Kamo, la
personne et le mythe dans le monde mélanésien [Do Kamo, a
pessoa e o mito no mundo melanésio] (Paris, 1947). Dentre
os discípulos de Griaule, além de D. Zahan e Viviana
Páques, devemos citar o livro de Jean Servier, especialista em
tribos berberes. Servier também se baseia no “Ensaio geral
de etnologia”, de 1964, cujo título L’Homme et Vinvisible [O
homem e o invisível] pode parecer iconoclasta. Na verdade,
os capítulos constituem um florilégio de grandes imagens
que reconduzem ao símbolo absoluto, como, por exemplo, a
descrição dos rituais funerarios em “Os itinerários para o
invisível” e dos rituais iniciáticos, os passos e os graus
evolutivos dos rituais xamanísticos etc. em “As portas de
sangue”. Trata-se de um vasto conjunto imaginário de todas
as forças e provas da etnologia que se opõe às abreviações
das constatações fortuitas da paleontologia. Neste ensaio
demente, de uma ironia mordaz e um florilégio de exemplos
irrefutáveis, as reivindicações de um evolucionismo são
admitidas como dogma. A orientação de todos os
simbolizadores rituais e míticos para o invisível arrebata a
espécie humana do determinismo animal e vulgar. Aqui
percebemos como a obra do etnólogo do Invisível conduz ao

52
As ciencias do imaginario

campo das revalorizações modernas das “ciências


religiosas”. Antes, todavia, examinaremos a outra grande
corrente do pensamento que inaugurará um dominio para
uma “sociologia do imaginário .
O primeiro, como acabamos de ver, desdobrava-se na
prospeção do “longínquo” e na reabilitação do “selvagem” e
do “primordial”. O segundo, ao contrário, embora com um
resultado idêntico, fecha-se sobre a prospecção do mais
próximo e do mais “comum”, reabilitando o “cotidiano” dos
“desfavorecidos”. Seus propósitos podem ser comparados ao
ready-made (uma obra ou um objeto pronto para consumo)
que os surrealistas elevavam ao nível de obras de arte. Mas,
entre os etnólogos do “longínquo”, o imaginário prevalecerá
quando se tratar de tornar disfuncionais e menos banais os
objetos modestos — como o famoso “porta-garrafas” de
Marcei Duchamp — e tão familiares que já não suscitam
mais nenhuma imagem. O sociologo alemão Geor- ges
Simmel39, precursor desta sociologia “surrealista”, foi quem,
no início do século, atraiu a reflexão filosófica e a análise
sociológica para as futilidades da “moda”, do “galanteio”,
das “grandes cidades” (Roma, Florença,

39 G. Simmel, Philosophie de Ia modernité (A filosofia da modernidade), 2


vols.; textos reunidos e traduzidos por J.-L. Vieillard-Baron, Payot, 1990.

53
/lí ciências do imaginario

Veneza...), do “aventureiro”, do “jogador”, do “retrato” etc.


A posteridade dessa corrente reinstalará — e devolverá —,
no coração do imaginário, uma “forma” aos campos de
pesquisa especialmente ricos, mas bastante abandonados,
dos sociólogos da Escola de Grenoble: os trabalhos de
Jacques Bril, cuja tese, Symbolisme et Civili- sation. Essai sur 1
cfficacite anthropologique de 1’imayinaire [Simbolismo e
civilização. Ensaio sobre a eficácia antropológica do
imaginário] (Champion, Paris, 1977), abre toda uma série de
trabalhos referentes aos objetos antropológicos como “a tela
e o fio”, os instrumentos musicais etc. e que se posicionam
entre a mitoanálise tão cara aos pesquisadores de Grenoble e
a psicanálise; Pierre Sansot, o sociólogo da “mostra” poética
do sensível Formes sensibles de Ia vie sociale [As formas
sensíveis da vida social] (PUF, 1986) e, por conseqüência, do
imaginario respigado numa vasta colheita transversal, tanto
na Poétique de ¡a ville [A poética da cidade] (Klinck- sieck,
1972) como nas Variations paysagères [As variações
paisagísticas] (1980), com seus trabalhos sobre as lembranças
da “infância” provinciana, o jogo de rugby ou ainda dos
“desprovidos”; e Michel Maffesoli40, fundador simultâneo de
uma “estética sociológica” atenta às menores imagens do
cotidiano, ao frívolo, efêmero, conquistadora do presente e

40 M. Maffesoli, La Conquête du présent, pour une sociologie de Ia vie


quotidienne (A conquista do presente: para uma sociologia da vida
cotidiana,), P.U.F., 1979; cf. A. Bailly, L'Humanisme em géogra- phie (O
humanismo na geografia.), Anthropos, 1990.

54
As ciencias do imaginario

do atual e de um neobar- roquismo epistemológico ligado,


este também, ao Au creux des apparences [No vazio das
aparências] (Pión, 1990). Para esta corrente sociológica
original convergirá a sociologia denominada de “as historias
da vida”41 na qual a investigação do sociólogo cede diante do
imaginário recitativo e representante de uma amostragem de
um grupo social. Finalmente, com Cornelius Cas- toriadis ou
Georges Balandier, as razões políticas dos poderes aparentes
serão tão racionalizadas que se destacarão sobre um fundo
imaginário mais ou menos passional.42 Nas sociologías mais
recentes há um esforço para um “reencantamento”
(Eezauberung) do mundo da pesquisa e seu objeto (“social” e
“societal”*), tão desencantado pelo conceptualismo e as
dialéticas rígidas e unidimensionais dos positivistas. E este
“reencantamen- to” passa acima de tudo pelo imaginário, o
lugar-comum do próximo, da proximidade e do longínquo
“selvagem”. A partir de agora, a sociologia passará a ser “fi-
gurativa”43 (P Tacussel), fundamentando-se num

41 F. Ferraroti, Histoires et histoires de vie, Ia méthode biographique des


Sciences sociales (Histórias e histórias da vida, o método biográfico das
ciências sociais), Klincksieck, 1983.
42 C. Balandier, Pouvoirs sur scéne (Os poderes em cena), Balland, 1990; C.
Castoriadis, L'institution imaginaire de Ia sociétè (A instituição imaginária da
sociedade), Seuil, 1975.
* O impacto no nível da sociedade; as dificuldades econômicas, sociais ou
ambientais, de natureza setorial ou regional. (N.T.)
43
P. Tacussel, L'Attraction sodale, le dynamisme de l'lmaginaire daos la
soclété monocéphale (A atuação social, o dinamismo do imaginário na
sociedade monocéfala), Méridiens, 1984.

55
O imaginario

“conhecimento comum” (M. Maffesoli) onde sujeito e objeto


formam um so no ato do conhecer e no qual o estatuto
simbólico da imagem constitui o paradigma (o modelo
perfeito, a demonstração satisfatória pelo exemplo).

4. As “Novas Críticas”:
da mitocrítica à mitoanálise

Este horizonte “figurativo” inaugurado pelas recentes


sociologías repercutiría junto com toda urna corrente
literária e artística denominada a “nova crítica irritada” — o
termo pertence a Lévi-Strauss —, tendo por única
justificativa as obras culturais, as filiações históricas e as
genealogias dos vários letrados. Gastón Bache- lard (1884-
1962) foi o pioneiro incontestável desta “nova crítica” tão
ávida de documentos (texto, obra de arte), em particular dos
conteúdos imaginários e das heranças estéticas. Será ao redor
das imagens poéticas e literárias dos quatro elementos
clássicos que, ainda antes da 2? Guerra Mundial (A
psicanálise do fogo44), Ba- chelard construirá uma análise
literária na qual a imagem surge para iluminar a própria
imagem, criando assim

44 Psychanalyse du feu (A psicanálise do fogo), Gallimard, 1938.

56
0 imaginário

uma espécie de determinismo transversal na história e


na biografia. Trata-se de uma elaboração poética ao longo
das famílias das imagens simbólicas e da qual a obra escrita
em 1960, La Poétique de la rêverie [A poética do devaneio]
seria o testamento. Com freqüencia, esses trabalhos
fundadores convergiam com a crítica psicanalítica da qual
Charles Mauron45, o criador da “psicocrítica”, foi o
representante mais obstinado. Contudo, com Ba- chelard e
seus discípulos e ao contrario das contestações psicanalíticas
à obra devidas aos incidentes biográficos do seu autor,
ocorre uma liberação da imagem realmente criadora —
^poética” — da obra, do seu autor e seu tempo. Esta mesma
confluência deu-se também pelo menos com uma certa
condescendência para com o formalismo — com a Escola de
Genebra e foi ilustrada seguindo a esteira de Marcei
Raymond (1897-1984), Jean Rousset, Jean Starobinski e o
belga Georges Pou- let46 e, por fim, com a convergência com
os trabalhos de Michel Cazenave sobre o mito de Tristão.
Todavia, a originalidade de Bachelard e sua
posteridade foi a de nunca terem se sacrificado ao canto das
sereias “estruturalistas”. Estas, desejando libertar-se da
“irritação” provocada pela crítica historicista, nem por
isso deixaram de recair nos caminhos habituais do

45 ch. Mauron, Des Métaphores obsédantes au mythe personnel (Das


metáforas obsessivas ao mito pessoal), Corti, 1963.
46
J. Rousset, Forme et signification (Forma e significado), J. Corti, 1962; G.
Poulet, Études sur le temps humain (Estudos sobre o tempo humano),
Rocher, 1950; ). Starobinski, L'CEil vivant (O olho vivo),
O imaginario

positivismo mascarado pelas supostas “ciencias” da


literatura (a gramatologia, a semiótica, a fonología etc.) onde
os poderes “poéticos” da imagem se perdem de novo nos
mistérios de um sistema que esvazia a pluralidade
antropológica em prol deste novo “monoteísmo” que é a esti
utura abstrata todo-poderosa. Esta considera-se “órfô de pai
e mãe” enquanto, na realidade, insere-se de ioj ma banal
numa velha lógica binaria obcecada pelo silogismo. Os
discípulos de Bachelard, Jean Pierre Richard (Littérature et
sensation [Literatura e sensação], 1954), uma das figuras de
popa da “Nova Crítica”, e nós mesmos (Le Décor mjthique de
La Chartreuse de Parme [O ambiente mítico da Cartuxa de
Parma], Corti, 1960) permanecerão fiéis aos conteúdos
imaginarios dos trabalhos. Mais adiante veremos como esta
fidelidade à “gestação simbólica” (E. Cassirer) permitirá o
acesso a urna outra lógica totalmente diferente daquela,
binária, do “ou... ou” e com base na “exclusão de um
terceiro”. No entanto, na pessoa de Claude Lévi-Strauss47,
devemos restituir ao estruturalismo o que há de mais
fecundo na sua exploração do mito. De fato, será ele quem
apontará a qualidade essencial do sermo mythicus, isto é, da
redun-
dância. Como o mito não é nem um discurso para
demonstrar nem urna narrativa para mostrar, deve ser- vir-
se das instâncias de persuasão indicadas pelas variações

‘18 Cl. Lévi-Strauss, L'Anthropologie structurale (A antropologia


estrutural), Pión, 1958.

58
As ciências do imaginario

simbólicas sobre um tema. Estes “enxames”, “pacotes” e


“constelações” de imagens podem ser reagrupados em séries
coerentes ou “sincrónicas” — os “mi- temas” de Lévi-Strauss
(a menor unidade semântica num discurso e que se
distingue pela redundancia) — além do fio temporal do
discurso (diacronia). Foi assim que o etnólogo dos
Nanbikwara48 classificou, em tabelas divididas em duas
partes (diacronica e sincrónica), os mitos amerindios como
também examinou à “americana” os mitos clássicos como o
de Édipo ou Parsifal. No entanto, aprisionado à lógica
binária, Lévi-Strauss recu- sou-se a perceber que estas
ligações transversais à narrativa diacronica criavam pelo
menos uma terceira dimensão, um “terceiro dado”. Nem por
isso este método dei-

48 NAMBIQUARA — Ñambikwára ou Nhambiquara. Nome genérico, em tupi,


de diversos povos cujas línguas tonais são agrupadas numa mesma família,
não incluída em unidades maiores. Vivem, na maioria, no oeste de Mato
Grosso, na fronteira com Rondônia. Os Nam- biquaras do Campo vivem nas
áreas indígenas Ñambikwára e Ti- racatinga; os principais grupos são
Halotesu, Kitaulhu, Wakalitesu e Sauentesu. Os Nambiquaras do Norte vivem
nas áreas indígenas Pi- rineus de Souza, Tubarão-Latundê e Vale do Guaporé;
os principais grupos são Negarotê, Mamaindê, Latundê, Sabanê e Manduka.
O Nambiquara do Sul ou do Vale vive nas áreas indígenas Vale do Guaporé e
Sararé; os principais grupos são Hahaintesu, Alantesu, Waikisu, Alanketesu,
Wassusu, Sararé, Katitaurlu e Nuntatesu. Em 1990, segundo a Funai, eram
885 índios. (N. T.)

59
A? ciências do imaginário

xa de ser a propedêutica indispensável para qualquer


tratamento do mito. E interessante notar que Victor Hugo49
já observara em Shakespeare este “fato muito estranho” de
uma “ação dupla que se repete em menor ao longo do
drama”, e em Hamlet e no Rei Lear, “junto a um drama menor
que copia e acompanha o drama principal, ocorre o
desenrolar de uma ação que arrasta consigo, como uma lua,
uma ação menor, sua semelhante”. Sem saber, o grande
poeta, que Lévi-Strauss iguala a Richard Wagner, seria o
ancestral das nossas mitocríticas modernas que se apoiam
nas redundâncias constitutivas das “sincronicidades”.
Neste movimento sólido de uma mitocrítica (que
permanece bachelardiana) assinalemos o departamento das
“línguas e letras” da Escola de Grenoble, mais conhecida
pelo seu antigo nome, “Centro de Pesquisas do Imaginário”
[Centre de Recherche sur I’Imaginaire — C.R.I.]. Fundado em
1966 por três professores da Universidade de Grenoble, um
dos quais foi Léon Cellier, o departamento apresentou um
grande número de trabalhos — iniciados dez anos antes com
nosso 0 ambiente mítico da Cartuxa de Parma, Corti, 1961 —
dos “mitocríticos” sobre autores tão diversos como Júlio
Verne (S. Vierne, 1972); Shelley (J. Perrin, 1973); Proust (C.
Robin, 1977); Baudelaire (P Mathias, 1977); Blake (D. Chau-
vin, 1981) etc., e os trabalhos mais recentes de Ph. Wal- ter
sobre a literatura da época do rei Artur; e de J. Siga- nos,
autor de urna tese importante sobre o simbolismo do inseto.

49V. Hugo, WiIIiam Shakespeare, Flammarion, 1973.

60
As ciencias do imaginario

Outrossim, há ainda as pesquisas que se entremeiam nas


“mitoanálises”, ultrapassando a obra de um único autor,
como o mito da infância na literatura narrativa italiana do
século 20 (G. Bosetti); o conjunto dos romances afro-negros
de língua francesa (A. e R. Chemain, 1973); a mitologia
japonesa (A. Rocher, 1989); e a literatura anglo-saxã (J.
Marigny, 1983), cujos objetivos coníluem para o Laboratorio
de Pesquisa sobre o Imaginário Americano [Laboratoire de
Recherche sur l’Imaginaire Américain] dirigido por Viola Sachs
de Paris VIII. Se nós nos permitimos dedicar meia página ao
C.R.I. de Grenoble é porque ele foi o embrião de cerca dos
quarenta e três centros de Pesquisa sobre o Imaginário que,
em 1982, se reuniram na Associação de Pesquisa
Coordenada [Groupement de Recherche Coor- donnée —
G.RE.CO.] (um centro de pesquisa que, infelizmente, já não
existe mais) no C.N.R.S. Não se trata aqui de catalogar todos
os Centros espalhados pelos cinco continentes, de Seul a
Sidney, de Montreal ao Recife ou de Brazzaville a Lublin. No
entanto, como exemplo das pesquisas da mitocrítica
chamamos a atenção para o Laboratorio Pluridisciplinar de
Pesquisa do Imaginário Literário [Laboratoire Pluridisciplinaire
de la Recherche sur I’Imaginaire Littéraire — LAPRIL] da
Universidade de
Bordeaux III, dirigido por Claude-G. Dubois. Fundado sete
anos mais tarde e irmão caçula do Centro de Gre- noble, o
Laboratorio edita há mais de vinte anos o Boletim de
Pesquisas Eidolon, publica as pesquisas voltadas para a

61
O imaginario

“mitocrítica”, como ilustra muito bem o trabalho


monumental de Patrice Cambronne sobre as estruturas do
imaginário de Auguste Comte. Devemos ainda acrescentar
que os trabalhos de Claude-G. Dubois servirão como
exemplo para a simultaneidade da abertura e ampliação da
mitocrítica para a mitoanálise e dos nossos métodos em
colaboração com os da Escola de Constança,50 o berço da
“teoria da recepção”.
A partir do “longínquo” século 16, tão importante para
nossa civilização ocidental, Claude Dubois pode dar conta
da fragilidade dos historicismos e das explicações históricas
que quase não conseguiram libertar-se do “mítico” do século
de Bodin, Aubigné e Postei. Além disso, ele demonstrou que
a determinante do “Imaginário do Renascimento”
[L’Imaginaire de la Rennaissance] RU.F., 1985, foi uma espécie
de “meta-história” (uma história além ou ao lado da cadeia
unidimensional dos acontecimentos) e que criou um campo
receptivo muito tipificado, o do “barroco” e do
“maneirismo”, o que conduziu a uma leitura sistemática do
que chamaremos mais adiante de “campos semânticos”. Os
trabalhos do latinista Joél Thomas, fundador da “Equipe
para a Pesquisa do Imaginário dos Latinos” [Equipe pour la
recherche sur l’imaginaire des Latins — EPRIL] devem ser
inseridos ñas perspectivas desta mitoanálise formadora de
urna historia completamente diferente e não eventual. No

50H. R. Jauss, Pour une esthétique de Ia réception (Para uma estética da


recepção), prefácio de J. Starobinski, Gallimard, 1978.

62
As ciencias do imaginario

seu trabalho magistral, “As estruturas do Imaginário na


Eneida” [Les Structures de l’Imaginaire dans l’Éneide, Bel- les
Lettres, París, 198151], Thomas mostra como a confluência de
urna obra poética e a ação política de Auguste Comte
fundamentam e restabelecem o mito cíclico da era de
Saturno e proporcionam à restauração do Império uma ética
da iniciação.
Ao voltarmos para o domínio de Grenoble, devemos
ainda assinalar o esforço para reconciliar um novo olhar
histórico e sociológico com o mito da “mitoanálise”. Léon
Cellier abriu um caminho ao liberar os grandes “mitos
românticos” (1954) com os vários trabalhos de Ballanche,
Soumet, Lamartine etc. Anteriormente, a enorme pesquisa de
Gilbert Bosetti, condensada num “livrinho” de 360 páginas,
mostrava e evidenciava à exaustão que, apesar da tenacidade
das oposições ideológicas do uVentennio nero”, desenrolava-
se, como num

si J. Thomas (sob a direção de), Les Imaginaires des Latins (Os imaginários
dos latinos), P. Univ. Perpignan, 1992; Cl.-G. Dubois, La Con- ception de
l'histoire de France au XVIf siècle (A concepção da história da França no
século XVI), Nizet, Paris, 1977; Mots et règles, jeux et délires (Palavras e
regras, jogos e delírios), Paradigme, Caen, 1992.

63
d s ciências do imaginário

pano de fundo, um conjunto mítico relativo à infância.


Aurore Frasson, no seu trabalho sobre ítalo Calvino, já
pressentia até que ponto a obra de um grande romancista
reforça a história de uma época com um conjunto mítico e
imaginário. Por outro lado, o já citado sociólogo Alain Pessin
mostrava que, por detrás de toda a história do século 19 e
seus maiores expoentes — Hugo, Michelet, Ballanche,
Lamennais, Daumier, Pierre Le- roux, Blanqui ou George
Sand — seguia, como o Pio vermelho de um colar, o mito do
Povo.52
Em Grenoble, o estudo das “mitologias” do século 19
— já abordadas por M. Maffesoli e Jean Brun no retorno de
Dioniso — foi a especialidade de Françoise Bornadel e Jean-
Pierre Sironneau, que estudaram juntos e “a contrapelo”:
enquanto Bornadel examinava as esperanças míticas
escondidas no século, Sironneau dedicava-se aos desastres
das mitologias oficiais. Em um livro magistral e fenomenal,
Philosophie de l’alchimie [A filosofia da alquimia] (PU.E, 1993),
subintitulado de forma esclarecedora de “Grand-CEuvre et
modernité” [A grande obra e a modernidade], a especialista
em filosofia hermética mostra como os pensadores mais
sérios da nossa modernidade e tão “desocupados” — não
apenas os inovadores de correntes ocultas como Eliade,
Corbin, Jung e Bachelard, mas também Wagner, Nietzs- che,

52
A. Pessin, Le Mythe du Peuple et Ia société française au XIX? siè- cle [O
mito do povo e a sociedade francesa no século 19], P.U.F., 1992; La Revêrie
anarchiste (1848-1914) [O onírico anarquista (1848-1914)], Méridiens, 1982.

64
0 imaginário

Artaud, Th. Mann, Caillois, Bousquet, Heidegger ou


Bonnefoy... — buscaram a inspiração para suas obras num
consenso mítico difuso mas profundo que não é outro senão
a velha filosofia “imaginária” da alquimia. Em todos estes
autores que compõem nossa modernidade ainda que “pós-
moderna” há uma intuição “filosofal” que ultrapassa os
conceitualismos filosóficos, um “imaginai" (uma
“transcendência do imaginar”, segundo a definição de
Corbin) que sustenta as imagens. Segue uma observação
sobre os ressurgimentos de antigos mitos que atualizam a
mitoanálise no seio de uma história obcecada pelo único
mito do progresso: que estes retornos, estas “dissimilitudes”
(Entgleichzigkeit) são, como Lévi-Strauss e R Sorokin53 já
haviam observado, a conseqüência da estreiteza de escolhas
possíveis no âmago de um estoque mítico próprio ao sapiens
e limitado pelas leis da coerência das imagens. Estas
inserem-se em algumas raras possibilidades (em três,
segundo R Sorokin e nós mesmos) definidas pelos regimes
das imagens. As mudanças do imaginário são regidas por
um “princípio dos limites” duplo: um “limita” no tempo a
gestação de uma viga mítica e o outro, as escolhas das
mudanças míticas.

53 P. Sorokin, ver Bibliografia.

65
As ciencias do imaginário

Em contrapartida, Jean-Pierre Sironneau, na sua tese


Sécularisation et religions politiques [A secularização e as
religiões políticas], atém-se aos dois grandes mitos que
ocuparam oficialmente a Europa e urna parte do mundo: o
nacionalsocialismo de um lado e, de outro, o “comunismo
leninista-stalinista”. Causa-nos grande espanto que estes
mitos — que consideravam-se explícitamente um “mito”,
segundo Alfred Rosenberg, ou apoiavam-se numa lógica
afetiva e num mito milenar, porque não dizer joaquinista,
inconfessos mas presentes em Marx — regeram de acordo
com suas normas tanto o cientificismo alemão ou russo
quanto as Igrejas.54 Mas nessas duas séries de trabalhos, o
que devemos ter em mente é a própria superposição num
mesmo século de duas vigas míticas antagonistas: uma,
oficializada pelos poderes políticos, e a outra, subterrânea e
“latente”. Aquela encontrando conforto nas teorias cientistas
e pseudocientíficas, esta mascarando os problemas e as
angustias da nossa modernidade debaixo de soluções e
imagens de teorias herméticas antiqüíssimas.
Esta “superposição” será um tema de reflexão quando
abordarmos a questão da “tópica” sociocultural. (Ver página
92.)
5. O imaginario da ciencia
Quando pesquisamos os mitos constitutivos do sé- culo

54
H. Desroche, Socialisme et sociologie religieuse (O socialismo e a
sociologia religiosa), Cujas, 1963; A. Besançon, Les Origines inte- lectuelles du
léninisme (As origens intelectuais do leninismo), Cal- man-Lévy, 1977.

66
As ciências do imaginário

19, estes últimos procedimentos da mitoanálise, bem como a


lenta constituição pluridisciplinar das “ciências do
imaginário”, levaram-nos a reconsiderar o imperialismo
ideológico conferido pelo Ocidente à ciencia como a única
dona de uma verdade iconoclasta e o fundamento supremo
dos valores. Já demonstramos como, mais cedo ou mais
tarde, todas as ciências do imaginário se emanciparam do
“monoteísmo” cientista. Há muito tempo que a ciência
ocidental defrontou-se com as concepções imaginárias. Para
Bachelard sempre foi muito difícil separar seus “dois
amores”, a ciência e as imagens, chegando ao ponto de
escrever um livro inteiro, La Formation de 1’esprit scientifique
[A formação do espírito científico] (Vrin, 1947), para tentar
mostrar que a ciência somente se formava quando as
imagens eram repudiadas. A nosso ver foi um trabalho em
vão, pois as imagens, expulsas pela porta da frente, reentra-
vam pela janela para atacar os conceitos científicos mais
modernos como as ondas, os corpúsculos, as catástrofes, o
bootstrapy a teoria dos superstrings... O espistemólo- go
Georges Canguilhem55, por exemplo, como estava menos
comprometido com o sistema do imaginário do

positivismo — para Bachelard, a herdeira era a ciencia


físico-química, doutora em medicina e não em química —,
afirmava que, na biologia, a pesquisa e a descoberta

55 G. Canguilhem, Connaissance de Ia vie (O conhecimento da vida),


Hachette, 1952; J. Schlanger, Les Métaphores de 1'organisme (As metáforas
do organismo), Vrin, 1977.

67
0 imaginário

ocasional dependiam do sistema da imagem na qual


estavam inscritas “tanto a imagem de uma substância
plástica fundamental quanto uma composição de partes dos
átomos...” estanques e individualizados. O antagonismo —
que beirava as raias da incompreensão — entre os
citologistas (aqueles que partem do estudo da célula) mais
ou menos mecánicos e os histologistas (aqueles que partem
do conjunto de um tecido), adeptos do continuo, deve-se
apenas, ao que parece, à valorização positiva (dos
citologistas) ou negativa (dos histologistas) dada à imagem
de uma membrana celular. Este papel da imagem como o
embrião imaginário da criação científica — como
constataram quase todos os sábios desde Francis Bacon no
século 17 a Poincaré em 1908 ou matemático J. Hadamard
em 1945 — e como a regra par- ticularizadora de urna lógica,
uma estratégia, até de um método de invenção, foi mais ou
menos apontado por Michel Foucault, Abraham Moles56 e F.
Hallyn. Mas Gerald Holton 57, médico americano, foi quem
melhor determinou, com uma seriedade e exaustão
totalmente científicas, o papel direcional dos sistemas da
imagem

(que ele denomina “pressupostos temáticos” ou théma-


ta) na orientação singular da descoberta. Estes themata

56 A. Moles, La Création scientifique (A criação científica), Kister, 1956; F.


Hallyn, Les Structures poétiques du monde (As estruturas poéticas do
mundo), Seuil, 1987.
57 G. Holton, ver Bibliografia; cf. M. Cazenave, La Science et 1'âme du monde

(A ciência e a alma do mundo), Imago, 1983.

68
As ciências do imaginário

contribuíram para o que Einstein chamava de Weltbild, a


“imagem do mundo” (não apenas do Universo, mas “do
mundo”, do ambiente cotidiano e humano). Na sua
generalidade formal, os themata se aproximam (descon-
tínuo-contínuo; simplicidade-complexidade; invarián- cia-
evolução etc.) dos “arquétipos junguianos” ou do que
denominamos de “esquemas”. Holton, ao retomar uma
diferença célebre entre os imaginários “dionisíacos” e
“apolíneos”, demonstrou, de maneira muito minuciosa e
corroborada por ampias pesquisas de psicos- sociólogos, que
as descobertas dos especialistas mais importantes (Kepler,
Newton, Copérnico e sobretudo Niels Bohr e Einstein...)
foram de alguma forma pressentidas pela formação e as
fontes imaginárias de cada pesquisador (freqücncias,
educação, leituras...). Desta maneira evidencia-se a discussão
irredutível entre um Einstein partidário do “deus da ordem”
de Newton, e muito próximo do Jeová bíblico, e um Niels
Bohr partidário de um Deus jogador de dados, “intolerável”
aos olhos de Einstein. Esta posição de Niels Bohr, ao optar
por uma física do descontínuo, do “salto” quântico, foi
acalentada na sua infância pelo filósofo e psicólogo
dinamarquês Harald Hõffding — um amigo da família Bohr
—, adepto da psicologia de William James, o famoso “fluxo
de consciência”, onde a unidade é complementar aos eventos
descontínuos e dispersos, assim

69
As ciencias do imaginário

como o trajeto de um pássaro consiste na continuidade


do seu vóo e paradas. Podemos ainda citar a influencia do
célebre filósofo dinamarqués Kierkegaard, para quem, ao
contrário da “síntese” hegeliana, são as contradições e as
descontinuidades da vida que tecem a continuidade da
existencia. Este estudo minucioso de Gerald Holton permite-
nos perceber que, atualmente, e para explicar suas próprias
orientações, o pensamento científico vê-se constrangido a
pedir auxílio ao mesmo imaginário durante tanto tempo
reprovado, no século 17, pelo iconoclasmo das teorias
originárias... No próprio santuário da física, que esteve
longamente voltado apenas para o seu mecanismo, as
imagens irreconciliá- veis da onda (contínua) e do
corpúsculo (descontínuo) vêem-se obrigadas a se associarem
a um “mecanismo ondulatorio”. Dessa forma, a precisão
científica não pode abrir mão de uma “realidade velada”
(Bernard d’Espargnat), onde os símbolos, estes objetos do
imaginário humano, servem como modelo...

6. Os confins da imagem e do absoluto do


símbolo: homo religiosus

Numa primeira abordagem teríamos a impressão de


que as psicologias das profundidades, estas sociologías
“figurativas” e epistemologías abertas aos “pressupostos
temáticos”, terminam em linha reta e se reúnem ao rcll giosus
da ciência das religiões, pois desde os tempos inu:
moríais — pelo menos desde o alvorecer da espécie homo

70
As ciencias do imaginario

sapiens — as manifestações religiosas sempre foram


consideradas como provas da principal faculdade de
simbolização da espécie. Ora, acontece que não é nada disso:
no Ocidente, tanto o dominio do religioso como o do profano
passaram pelas mesmas perversões positivistas e
materialistas. Ao aceitar o aggiornamento por concordatas
(doutrina que tenta conciliar os dados religiosos com os da
ciencia), o Ocidente calculou mal e acabou sendo relegado ao
“teológico”, à época mais arcaica do conhecimento ou a um
nivel de superestru- tura soporífica e nociva. No Ocidente, a
partir do final do século 18, as religiões institucionalizadas
passaram a ser consideradas conforme o gosto historicista e
cientista do dia. Estas tentações, que reagrupamos sob o
nome de “modernismo”, almejam, segundo as palavras do
filósofo Jean Guitton, “fundar a fé sobre o espirito dos
tempos”. Donde, claro, o esforço dobrado dos teólogos para
“desmitificar” as verdades da fé e fundamentá-las em fatos
históricos positivos. Os teólogos ocidentais só conseguiram
exorcizar as tentações modernistas e iconoclastas
recentemente. Com o questionamento da “modernidade”, o
“monoteísmo” do futuro científico fragmen- tou-se em
pluralismos, foi renegado por uma “filosofia do não” (G.
Bachelard), e as grandes “religiões seculares”, o nacional-
socialismo e o leninismo-stalinista, desmoronaram. Jean-
Pierre Sironneau, na primeira parte de sua tese Sacre et
désacralisation [O sagrado e a dessacra- lização], analisou
muito bem estes movimentos de dessa- cralização e

71
O imaginario

secularização que atingem a teologia em cheio. Não deixa de


ser significativo que o revisionismo teológico tenha se
originado fora das diretrizes das Igrejas. Nos primeiros anos
do nosso século, as dificuldades para as explicações
historicistas do sagrado produziram uma corrente inteira de
análises “fenomenológicas” (que se atêm “à coisa em si”, ao
próprio objeto do religiosus) do Sagrado. E é nesta corrente
que se situam dois dos principais inovadores do papel do
imaginário nas aparições (hierofanias) do “religioso” no
centro do pensamento humano: o romeno Mircea Eliade
(1907-1986) e o francês Henry Corbin (1903-1978).58
Numa obra monumental, ambos resgataram o
imaginário constitutivo na sua relação com o Absoluto, o
religiosus. Eliade, ao retomar as conclusões de filologia
comparada de Georges Dumézil — que, em 1949, escreveu o
prefácio do célebre Trai té d’histoire des religions [Tratado da
história das religiões] do mestre romeno — mostra que em
todas as religiões, mesmo nas mais arcaicas, há uma
organização de uma rede de imagens simbólicas coligidas
em mitos e ritos que revelam uma trans-história por detrás
de todas as manifestações da religiosidade na historia. Um
processo mítico que se manifesta pela redundancia imitativa
de um modelo ar- quetípico (perceptível mesmo no
cristianismo, onde os “eventos” do Novo Testamento se
repetem sem “eliminar” aqueles do longínquo Antigo

58 Duas revistas do "Cahiers de 1'Herne" lhes foram respeitosamente


dedicadas.

72
As ciencias do imaginario

Testamento) e pela substituição do tempo profano por um


tempo sagrado: o illud tempus da narrativa ou ato ritual.
Estes elementos encontram-se ainda no comportamento
cristão, onde o tempo litúrgico substituirá o porvir profano.
Como em Dumézil — quando, o que havíamos considerado
durante muito tempo a historia romana positiva, como em
Tito Lívio, por exemplo, será absorvido pelos grandes mitos
indo-europeus — “a historia das religiões” revela a
perenidade das imagens e dos mitos fundadores do
fenómeno religioso. Eliade, que é também um grande
romancista, mostra que há uma continuidade entre os
imaginários: o do romancista, do mitógrafo, do contador, do
sonhador...
No islamólogo Henry Corbin59 há urna preferencia —
como em Bachelard, que já distinguia nitidamente a nobreza
criadora do devaneio da banalidade pouco coerente do
sonho — por uma “eletividade” de uma parte da imaginação
criadora em relação ao venha-como-vier do imaginário. Esta
preferencia é a do “imaginai” — a

59 H. Corbin, Avicenne et le récit vislonnaire (Avicena e a narrativa


visionária), 1954, Berg, 1979; Terre céleste et corps de réssurection (A terra
celeste e o corpo da ressurreição), Buchet-Chastel, 1960.

73
As ciencias do imaginário

faculdade humana que permite a algumas pessoas


atingirem um universo espiritual, uma realidade divina — ,
a essência do religiosus, a qual, por vezes, “olha para o
homem” e, por outras, é o objeto de sua “contemplação”. O
“imaginai”, imaginatio vera, a faculdade “celestial” —
confirmada por vários místicos protestantes como Jakob
Bõhme ou Emmanuel Swedenborg — encontra seu campo
privilegiado no islamismo, onde não pesam os
intermediários eclesiásticos e a “inteligencia espiritual” tem
acesso direto ao objeto do seu desejo. Todas as “narrativas
visionárias” orientais, tanto as pré- islâmicas do
zoroastrismo quanto, e sobretudo, as sufis- tas (sunitas) e
chiitas baseiam-se nesta faculdade da “imaginação criadora”
que permite ao contemplativo o acesso a um mundus
imaginalis, um mundo “intermediário”, o malakut da tradição
iraniana, onde “os corpos se espiritualizam e os espíritos se
corporalizam”.
O que é admirável, tanto em Eliade como em Corbin,
para uma teoria do imaginário, é que eles conseguem
mostrar, com uma erudição gigantesca, que o imaginário
dispõe, ou tem acesso a, de um tempo — illud tempus —
específico que escapa à entropia da dissi- metria newtoniana
(sem o “depois” que necessita o “antes”), e a uma extensão
figurativa (na koja abad = “não-onde” em persa) diferente do
espaço das localizações geométricas. Não há dúvida de que o
mundo do imaginário que coloca em evidência o estudo das
rdi giões constitui um mundo específico e cujos

74
As ciências do imaginário

fundamentos localizam-se no próprio mundo profano.


Apesar das inúmeras reticências de um cristianismo inquieto
com a possibilidade de ser ultrapassado pela modernidade,
alguns teólogos oficiais das Igrejas aderiram — por razões
diferentes e que não examinaremos aqui — ao movimento
“pós-moderno” da ressurreição do simbólico. Como seus
precursores imediatos citaremos os padres Jean Daniélou
(1905-1975) e Jacques Vidal (1925- 1987). O primeiro, jesuíta e
cardeal da Igreja Romana, teve o mérito de redescobrir o que
o segundo denominou de o “gênio do paganismo” e
sublinhar que o tecido simbólico nada mais era que o tecido
comum a todas as religiões. O segundo, franciscano e
sucessor de Daniélou na direção do Instituto de Ciência e
Teologia das Religiões de Paris [Instituí de Science et de
Théologie des Religions de Paris], trabalhou para mostrar a
correlação indispensável entre o homo religiosus e o homo
symbolicus, especialmente quando foi o presidente do Comitê
de Redação do Dictionnaire des religions [Dicionário das
religiões] nas edições RU.F. (1948), sob a direção do cardeal
Paul Poupard. Estes pioneiros de uma releitura “anagógica”
(que destaca um significado espiritual por detrás do
materialismo das imagens) das religiões, em particular do
cristianismo, tiveram seus seguidores na Escola de Louvain-
la-Neuve, especialmente no “Centro de História das
Religiões” [Centre d’Histoire des Religions], do qual Julien Ríes
é o entusiasta mais expressivo com a publicação de “Homo

75
O imaginario

Religiosus”, sob sua direção.60

Portanto, constatamos em todas as disciplinas do saber


(a psicologia, a etno-sociologia, a historia das idéias, as
ciencias religiosas, a epistemología etc.), a formação
progressiva e não premeditada de urna “ciencia do
imaginário” e que desmistifica as proibições e os exilios
impostos à imagem pela civilização que criou estas mes- mas
disciplinas deste saber. Resta-nos apenas apresentar o
balanço conceituai e axiomático destes progressos
heurísticos tão importantes.

60 j. Ries et al., L'Expression du sacré dans les grandes religions (A expressão


do sagrado ñas grandes religiões;, 3 vols., Louvain l.i No uve, 1978-1985.

76
As ciências do imaginário

77
III

O BALANÇO CONCEITUAL E O NOVO


MÉTODO PARA A ABORDAGEM DO MITO

A/ O alógico do imaginário

1. O pluralismo específico e as classificações


Deve-se a Bachelard o conceito de “pluralismo
coerente” tal como ele o aplica à “química moderna”. Urna
aplicação a urna ciencia da matéria e reveladora de urna
reviravolta epistemológica, que não atinge apenas as
ciências do homem. Por ora, examinaremos apenas o
“pluralismo”. Ao contrário do que ocorre com a taxino-
mia clássica das espécies animais ou vegetais e que se
baseia no princípio de uma identidade “exclusiva” e exclui
qualquer “terceiro” [elemento], o pluralismo não indica
uma classificação simples de vários elementos sob um
gênero comum. Esta identidade repousa sobre o
fundamento de base de todo o racionalismo ocidental ou
no famoso “silogismo”: “Sócrates pertence ao gênero
humano, todo homem é mortal, então... etc.”. Como

78
0 balanço conceituai e o novo método

foi demonstrado por Kant, este modelo de raciocínio assenta-se


sobre as “formas a priori” da percepção, ou seja, no espaço
euclidiano onde os círculos de Euler inscrevem as relações
identificadoras (o “círculo” mortal contém o do homem, que
contém Sócrates...) e indicam as exclusões: não-mortal ou
imortal, rochedo, estátua etc. Aqui, a identificação localiza-se e
separa-se do resto nas coordenadas de um espaço-tempo
universal e homogêneo (Euclides e Newton). A identidade
constitui uma espécie de ficha do “estado civil” (René Thom)
que fixa seu objeto no tempo e o circunscreve no espaço (a
separabilidade).
No pluralismo é totalmente diferente; é o que constatamos
— como Eliade e Corbin, entre outros — pela existência de
fenômenos que se situam num espaço e tempo completamente
diversos. Aqui, trata-se do illud tempus do mito, que — segundo
Eliade, o qual também é um romancista e escreveu narrativas
profanas como o conto, a legenda, o romance... — contém seu
próprio tempo numa espécie de relatividade (generalizada!)
bem específica e “não-assimétrica” (Olivier Costa de Beau-
regard), onde o passado e o futuro independem entre si e os
eventos são passíveis de reversão, de uma releitura, de litanias
e rituais repetitivos... como foi apontado pela filosofia pré-
socrática com o termo enantiodromia ou retrocesso ou “dar a
meia-volta”. É também o “não- onde”, caro a Corbin, dos
fenômenos “não-separáveis”
como foi constatado pela física contemporânea em certas
áreas materiais (B. d’Espagnat). O resultado a priori desta

79
0 imaginário

“simetria” e “não-separabilidade” é que, embora


identificados, os elementos do discurso (sermo mythicus),
nem por isso são menos solidários. Segundo os lógicos, o
status da identidade deixa de ser uma “extensão” do
objeto/conceito para tornar-se uma “compreensão” (o
conjunto de suas qualidades e seus “atributos”). Segundo a
velha formula, uin subjecto” (praedicatum inest subjecto...), a
identificação já não reside mais “num sujeito”, mas na
trama relativa dos atributos que constituem o “sujeito” ou,
melhor, o objeto...
Ao estudarmos o mundo imaginário, os maus hábitos
herdados do “terceiro excluído” vão se atenuando aos
poucos. Muito significativa em Freud, esta segunda tópica
composta de três elementos (o isto, o eu e o su- perego)
substituirá a primeira tópica dualista: conscien- te-
inconsciente. Nós também substituímos a contradição, fácil
demais, do “diurno” e “noturno” — herança de Guy
Michaud61 — por uma tripartição estrutural (esquizomorfa ou
heróico-mística ou participativo-sin- tétáca ou, melhor ainda,
“disseminadora”). Aliás, a pas- I Nagem para um pluralismo
tripartite é sinal do abando- I no do dualismo “exclusivo” em
Georges Dumézil e Pi-

r''
(¡. Michaud, Introduction à une science de Ia littérature (Introdução a
uma ciência da literatura), Puhlan, Istambul, 1950.

80
O imaginario

tirim Sorokin ou na taxinomia que compartilhamos com Yves


Durand e Dominique Raynaud e, de maneira mais complexa,
com Pierre Galláis, o especialista em literatura medieval, que
acrescenta dois outros valores às oposições “exclusivas” das
proposições contraditórias: a disjunção e a conjunção que
permitem à narrativa se “desenrolar”.61
Desta concepção resultou, além da identidade, uma lógica
— ou melhor, uma alógica — do imaginário, seja ele o sonho, o
onírico, o mito ou a narrativa da imaginação.

2. A lógica do mito

A lógica do mito encontra-se exatamente na sua diferença


em relação à lógica clássica ensinada desde Aristóteles até Léon
Brunschvicg e que provocou, e continua provocando, tanto
uma desconfiança quase religiosa em relação ao imaginário
como hostilidades violentas contra os pesquisadores do
imaginário nas múltiplas disciplinas.
A alogia do mito ou do sonho sempre foi rejeitada no
purgatório (quando não no inferno) do “pré-lógico” e da
“participação mística” onde, como todos sabem, os índios
bororos, por causa de uma confusão mental, se tomam por
araras (L. Lévy-Bruhl, E. Durkheim...). Já devíamos ter sido

61 p. Calíais, Dialectique du récit médiéval, l'hexagone logique (A dialética da


narrativa medieval, o hexágono lógico), Rodopi, Ams- terdam, 1982; R. Blanché,
Structures intellectuelles (As estruturas intelectuais), Vrin (1922), 1969.

81
0 imaginário

alertados por esta agressividade e este combate heurístico que


assumem os ares de uma cruzada “heróica”: quando evocamos
o Diabo em nome do bom Deus é porque precisamos dele!
Como Freud já observara, o herói depende do monstro ou do
dragão para transformar-se num herói, e os trabalhos de Yves
Durand mostram que, quando o monstro é minimizado —
“guliverizado”, como diz Bachelard —, o herói pendura a
espada no vestiário e calça os chinelos... Na afeti- vidade
(Freud), como em qualquer projeção imaginária, liá uma
conivência dos contrários, uma cumplicidade onde um
elemento existe pelo outro. Segundo um título de Bachelard,
todo “pluralismo” é “coerente”, e o próprio dualismo, ao
tornar-se consciente, transforma-se numa “dualidade” onde
cada termo antagonista precisa do outro para existir e para se
definir. É o que denominamos um “sistema” e que é inverso à
acepção do termo em francês onde significa uma certa rigidez
ideológica. Para os especialistas da “teoria dos sistemas”, 62 este
vocábulo implica, ao contrário, a idéia de uma abertura
necessária e uma flexibilidade: trata-se de um conjunto
relacionai entre vários elementos que podem até ser contrários
ou contraditórios. Por conseguinte, a origem da coerência dos
plurais do imaginário encontra-se na sua natureza sistêmica, e
esta, por sua vez, funda-se no princípio do “terceiro dado”, na
ruptura da lógica bivalente onde A exclui não-A. Com efeito,
permitir um conjunto de qualidades intermediárias significa

hl
L von Bertalanffy, Théorie générale des systèmes (A teoria geral <los sistemas),
Dunod, 1973.

82
0 balanço conceituai e o novo método

permitir a A, e a não-A, participar em B. Temos: A =


A + B e A + B = A . B coloca uma ponte entre a A e A. Por
exemplo, se A = animal (um boi) e A = não-ani- mal (um
arado), o “terceiro dado” pode estar associado ao boi e ao
arado. Pois, na verdade, ambos são definidos por lavra, lavrar,
lavragem... Este “terceiro dado” não representa toda uma classe
inclusiva (um “gênero vizinho”) como na lógica clássica, mas
uma qualidade que pertence a A e a A e que denominamos + B.
Não apenas todo “objeto” imaginário é constitutivamente
“dilemático” (Claude Lévi-Strauss) ou “anfibológico” (isto é,
“ambíguo” ao compartilhar com seu oposto uma qualidade
comum), mas é a física contemporânea que, pelos seus
conceitos de “complementaridade” (Niels Bohr), antagonismo e
“contraditariedade”, introduziu o status científico do anfibólio.
Muito significativo, como observa Gerard Holton, é o fato de o
grande físico dinamarquês ter escolhido o Tai ki dos taoístas
(um círculo dividido por um S que forma dois setores
simétricos e de cores diferentes, cada um contendo um círculo
pequeno com a cor do outro), como brasão no qual cada figura
simétrica e oposta contém uma parcela do outro. Um outro
físico, Fritjof Capra, deu o título de 0 Tao da Física a um de seus
livros. Na física, este anfibólio consiste nas famosas “relações
de incerteza” de Heisenberg, no qual, quanto mais um
elemento do sistema for conhecido, isto é, analisado nos seus
parâmetros, tanto mais o outro torna-se vago e “velado”. Num
eloqüente “ensaio de sociologia quânti- ca”, um jovem

83
0 imaginário

“sociólogo do imaginário”63 resumiu suas conivências por uma


chamada irreverente: “A crítica da Razão impura”.
E desta lógica64 comum ao topo da ciência e ao imaginário
que origina-se o princípio da redundância observado por todos
os mitólogos (os que praticam a mitocrítica e a mitoanálise), de
Víctor Hugo a Lévi- Strauss, e que outros denominarão o
“surgimento”.65 O sermo mythicus, assim como as seqüências de
um ritual fundamentado sobre um tempo “simétrico” e um
espaço “não separável”, também não consegue acompanhar o
processo de uma demonstração analítica nem seguir aquele de
uma descrição histórica ou localizável. Os processos do mito,
onírico ou do sonho consistem na repetição (a sincronicidade)
das ligações simbólicas que os compõem. Por conseguinte, a
redundância aponta sempre para um “mitemaAssim, no mito de
Hermes, o mitema do mediador emerge da bastardía do deus
das encruzilhadas, das trocas e do comércio. Filho de Zeus e uma
mortal, Hermes é o protetor do bastardo Dioniso, o intermediário
de Zeus junto a Alcmena, o intérprete entre Zeus e as três
deusas, e o pai de um ser ambíguo: Her- mafrodita...
A partir de então a distinção lamosa e um pouco rápida de
Román Jakobson entre a metáfora e a metonimia será
reabsorvida, de alguma forma, por uma metonimia
generalizada (a que designa um objeto pela sua relação semântica

63 S. joubert, La Raison polythéiste (A razão politeísta), L'Harmattan, 1991.


64 J.-J. Wunenberger, ver Bibliografia.
65 P. Brunel, Mythocritique, théorie et parcours (A mitocrítica: teoria e
percurso), P.U.F., 1992.

84
0 balanço conceituai e o novo método

com outro objeto). O mito não raciocina nem descreve: ele tenta
convencer pela repetição de uma relação ao longo de todas as
nuanças (as “derivações”, como diria um sociólogo) possíveis.
A contrapartida desta particularidade é que cada mitema — ou
cada ato ritual — é o portador de uma mesma verdade relativa
à totalidade do mito ou do rito. O mitema com- 66 porta-se
como um holograma (Edgar Morin) no qual cada fragmento e
cada parte contém em si a totalidade do objeto.
Portanto, o imaginário, nas suas manifestações mais
típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da
imaginação etc.) e em relação à lógica ocidental desde
Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico. A
identidade não-localizável, o tempo não-assimétrico e a
redundância e metonimia “halográfica” definem uma lógica
“inteiramente outra” em relação àquela, por exemplo, do
silogismo ou da descrição eventualista, mas muito próxima, por
alguns lados, daquela da música. A música, da mesma forma
como o mito e o onírico, repousa sobre as inversões simétricas
dos “temas” desenvolvidos ou “variados”, um sentido que
somente pode ser conquistado pela redundância (o refrão, a
sonata, a fuga, o Leitmotiv etc.) persuasiva de um tema. A
música, acima de qualquer coisa, procede por uma ação de
imagens sonoras “obsessivas”.67

66 Mitema — Uma narrativa puramente ficcional. Ceralmente envolve pessoas,


ações ou eventos supernaturais e incorpora alguma idéia popular referente a
um fenônemo natural ou histórico, in EOD (EngUsh Oxford Dictionary). (N.T.)
67
G. Durand, "Le cothurne musical", entretien avec Monique Veaute (O

85
0 imaginário

coturno musical, uma entrevista com Monique Veaute), Avant-Scène Opéra (n°
74),1985; M. Guiomar, Le Masque et le fantasme, 1'imagination de Ia matière
sonore dans la pensée musí cale d'Hector Berlioz (A máscara e o fantasma, a
imaginação da matéria sonora no pensamento musical de Héctor Berlioz), Cortl,
1970.

86
O imaginario

3. A gramática do imaginario

Como já mencionamos, a narrativa “imaginária” e o mito


em particular, ao repudiarem o velho adágio uprae- dicatum inest
subjecto” e dando outros valores às “partes do discurso”,
causaram o transtorno da hierarquia de nossos gramáticos
indo-europeus, especialmente da gramática francesa. No sermo
mythicus, o substantivo deixa de ser o determinante, o “sujeito”
da ação e, afortio- ri, o “nome próprio”, para dar lugar a muitos
atributos — os “adjetivos” —, sobretudo à “ação” expressa pelo
verbo. Nas mitologias e lendas religiosas, o assim chamado
“nome próprio” não passa de um atributo substantivado pela
ignorância ou a usura de sua etimologia: Hércules significa a
“glória de Hera”; Afrodite, a que “nasceu da espuma” (ék ou
aphrôu); Efesto, “aquele que não envelhece” (atributo de Agni, o
deus védico do fogo:ya- vishtha); Apoio, “aquele que afasta (o
mal)” (apellôn)... Por fim, é preciso lembrar que Zeus (da raiz
Dif) significa “o brilhante”, e Christos, o “ungido”... Por
conseguinte, este atributo substantivado vem a ser reforçado
por outros epítetos: stator, “que pára” (os sabinos); elicius “que
atrai a multidão”; moneta “a que adverte” (graças aos gansos do
Capitólio); lucina, “a que esclarece” etc.
Desta relativização do nome próprio surge o fenômeno
duplo que pode ser muito bem observado na hagiografía: por
um lado, como em todas as litanias, há uma espécie de
revestimento atributivo: virgo prudentíssima, virgo veneranda,
virgo clemens etc. e, por outro, a ubiquidade e as vicariantes (a
“substituição por...”, o “vigário” substitui o pároco numa

87
0 imaginário

paróquia). Uma ubiquidade que é encontrada em múltiplas


situações geográficas: Lourdes, Loreta, Fátima etc. para a
Virgem Maria; e as vicariantes devidas à insignificância do
nome próprio na atribuição de qualidades: a âncora é o atributo
tanto de são Clemente como de são Nicolau, santa Filomena ou
santa Rosa de Lima; o cachorro, o de santo Eustáquio, são
Lázaro, são Roque ou são Juliano, o Hospitaleiro. Portanto, não
é o “estado civil” indicado pelo nome próprio o que importa na
identificação de um deus, herói ou santo, mas as litanias
“compreensivas” dos seus atributos. Mas o atributo quase
sempre é subentendido por um verbo: afastar, avisar, atrair,
ungir etc. É o nível verbal que desenha a verdadeira matriz
arquetí- pica. Dominique Raynaud evidenciou muito bem na
sua tese este primado da “esquematização verbal”68 do qual
derivam secundariamente o que, em 1990, denominamos de as
“imagens arquetípicas epítetas”, seguidas das “substantivas” e,
por fim, dos símbolos supradetermi- nantes pelo meio
geográfico e social, e o momento so- ciocultural.
Esta hierarquia das “partes do discurso” imaginário vem
sendo corroborada há muito tempo, em particular pelas
observações de Théodule Ribot e pelo seu adversário, Henri
Bergson. Na afasia progressiva, elas constatam primeiro o
desaparecimento dos nomes próprios, depois dos nomes
comuns e dos adjetivos e, por último, do verbo. Como diz Ribot

68 D. Raynaud, "Essai de schématologie" (Ensaio de esquematologia) in


L'lmagination architecturale (A imaginação arquitetural), Universi • té des
Sciences sociales de Grenoble, 1990.

88
0 balanço conceituai e o novo método

(Maladies de la mémoire [Doenças da memória] I, 1881), “a


destruição da memória decresce, progressivamente, do instável
ao estável”. Uma observação que vai ao encontro da lei de
regressão, a qual afirma que o esquecimento atinge primeiro as
lembranças mais recentes.
Ora, seguindo a ordem da afasia progressiva e da lei da
regressão, estas duas observações em conjunto confirmam
nossas constatações de 1960 e 1974 quanto ao “trajeto
antropológico” e os níveis formativos do símbolo. O “trajeto
antropológico” representa a afirmação na qual o símbolo deve
participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de
“vaivém” contínuo nas raízes inatas da representação do
sapiens e, na outra “ponta”, nas várias interpelações do meio
cósmico e social. Na formulação do imaginário, a lei do “trajeto
antropológico”, típica de uma lei sistêmica, mostra muito bem a
complementaridade existente entre o status das aptidões inatas
do sapiens, a repartição dos arquétipos verbais nas estruturas
“dominantes” e os complementos pedagógicos exigidos pela
neotenia humana. Por exem- pio, para tornar-se um símbolo, a
estrutura de posição fornecida pelo posicionamento do reflexo
dominante na vertical necessita a contribuição do imaginário
cósmico (a montanha, o precipício, a ascensão...) e socio-
cultural (todas as pedagogías da elevação, da queda, do
infernal...) sobretudo. Reciprocamente, o precipício, a ascensão
e o inferno ou o céu somente adquirem um significado de
acordo com a estrutura da posição inata da criança.
As estruturas verbais primárias representam, de alguma

89
0 imaginário

forma, os moldes ocos que aguardam serem preenchidos pelos


símbolos distribuídos pela sociedade, sua história e situação
geográfica. Reciprocamente, contudo, para sua formação todo
símbolo necessita das estruturas dominantes do
comportamento cognitivo inato do sapiens. Assim, os níveis “da
educação” se sobrepõem na formação do imaginário: em
primeiro lugar encontra-se o ambiente geográfico (clima,
latitude, localizações continentais, oceânicas, montanhosas etc.),
mas desde já regulamentado pelos simbolismos parentais da
educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das aprendizagens por
último. E, finalmente, pelo nível que René Alleau denomina de
“sintomático”, ou o grau dos símbolos e alegorias
convencionais determinados pela sociedade para a boa
comunicação dos seus membros entre si.
Mas, nesta primazia do verbo sobre seu sujeito, há ainda
mais: as “vozes” verbais passiva e ativa são substituídas com
uma maior facilidade do que nas realidades psicanalíticas, onde
o amor pode inverter-se em ódio. E assim que as divindades
das tempestades tanto protegem dos raios como, ao mesmo
tempo, os lançam. Elas fazem parte, uma por vez, do fascínio
(fascinendum) e do terror (itremendum). Como bom hagiógrafo e
mitógrafo, Philippe Walter69 examinou muitas “inversões de
voz”. Nas lendas cinegéticas, o mito do caçador caçado é fre-
qüente. Num poema de Maria de França, o caçador Guigemar é
ferido por uma flecha destinada a uma corça. A dramaturgia de
Parsifal, explorada por Richard Wagner, baseia-se na cura do
rei ferido pela mesma lança que provocou o ferimento...

B/ A tópica sociocultural do imaginário

69 Ph. Walter, Mythologie chrétienne. Rites et mythes du Moyen Âge (A


mitologia cristã, os rituais e mitos da Idade Média), Entente, 1992.

90
0 balanço conceituai e o novo método

Em 1980 elaboramos um esquema da “tópica” das


utilizações classificadas do imaginário numa sociedade dada e
num momento (a “médio prazo”, o que examinaremos mais
adiante) dado. O conceito de tópica (de topos, “lugar”) situa os
elementos complexos de um sistema num diagrama. Foi assim
que Freud apresentou o esquema do funcionamento da psique
nas duas tópicas sucessivas e famosas. No primeiro quadro, ele
mostrou o nível do consciente solidário com um inconsciente;
uma espécie de infra-estrutura que o satisfaz. Na segunda
tópica, o esquema se complicava em três níveis: o consciente
dividia-se em “ego” e “superego”, enquanto o inconsciente era
denominado “isso” (id). Estas instâncias coincidem com as duas
“pontas” do “trajeto antropológico” onde o inconsciente e o
“isso” situam-se, de preferência, na ponta inata do trajeto
inconsciente, enquanto o ego e o superego situam-se na
“ponta” educada.
Se desenharmos um círculo para representar o conjunto
imaginário cobrindo uma determinada época de uma
sociedade, podemos dividi-lo em duas “fatias” na horizontal, as
quais correspondem, de baixo para cima, às três instâncias
freudianas e que aqui serão aplicadas metaforicamente a uma
sociedade. A fatia inferior, a mais “profunda”, representa um
“isso” antropológico, o lugar que Jung denomina o
“inconsciente coletivo”, mas que nós preferimos denominar de
o “inconsciente específico” e que está ligado à estrutura
psicopsicológi- ca do animal social, o Sapiens sapiens. É neste

91
0 imaginário

campo que os esquemas arquetípicos provocam as “imagens


arque- típicas”, Urbilder. As estruturas destas imagens,
conquanto embaçadas, nem por isso são menos precisas, tal
como aquelas divindades da Roma antiga que, segundo
Georges Dumézil, são “pobres em representações figuradas
mas ricas em suas coerências estruturalmente funcionais”.70
Este “inconsciente específico” forma-se quase no estado de
origem (tal como o gesso “adquire a forma” num molde) das
imagens simbólicas sustentadas pelo meio ambiente,
especialmente pelos papéis, as personae (as máscaras),
desempenhados no jogo social, e constituem a segunda “fatia”
horizontal do nosso diagrama, correspondendo,
metaforicamente, ao “ego” freudiano. É a zona das
estratificações sociais onde são modelados os diversos papéis
conforme às classes, castas, faixas etárias, sexos e graus de
parentesco ou em papéis valorizados e papéis marginalizados,
de acordo com o corte vertical do círculo por um diámetro.
Devemos insistir bastante num ponto: enquanto as imagens dos
papéis positivamente valorizados tendem a se
institucionalizarem num conjunto muito coerente e com
códigos próprios, os papéis marginalizados permanecem num
Underground mais disperso com um “fluxo” pouco coerente.
Contudo, estas imagens de papéis marginalizados são os
fermentos, bastante anárquicos, das mudanças sociais e do mito

no G. Dumézil, La religión romaine archai'que (A religião romana arcaica), Payot,


1966.

92
0 balanço conceituai e o novo método

condutor como, por exemplo, em 1789, a multidão confusa de


girondinos, frades bernardinos, jacobinos etc. do Terceiro
Estado ou os soldados das legiões romanas do Baixo Império.
Contudo, não há, por um lado, papéis predestinados ao
conservadorismo das instituições e, por outro, outros
reservados às reviravoltas e revoluções. Neste caso, os papéis
desempenhados pelos militares e pela guarda pretoriana são
conservadores da sociedade. Em outras circunstâncias serão os
soldados que suscitarão os pronunciamentos. Na história do
Ocidente cristão — na famosa querela do Sacerdócio com o
Império — os papéis positivos foram às vezes desempenhados
pelos clérigos e noutras, pelos barões. Por fim colocaremos na
“fatia” horizontal superior do nosso diagrama o “superego” da
assim chamada sociedade. Este superego organizará e
racionalizará em códigos, planos, programas, ideologias e
pedagogias, os papéis positivos do “ego” sociocultural.
A estas duas dimensões da tópica, a vertical que divide as
duas metades “sistêmicas” do círculo, isto é, os dois
hemisférios das contradições sociais que constituem uma
sociedade, e a horizontal que reparte o imaginário sociocultural
em três “fatias” de diversas qualidades, acrescentaremos uma
terceira dimensão, dessa vez temporal: partimos do pólo
inferior do nosso hexa- grama, cujo eixo é o diâmetro vertical,
percorremos a periferia do círculo no sentido dos ponteiros do
relógio e subimos pela esquerda ao longo do círculo. Ao partii
de uma extremidade repleta de fluxos de imagens do “isso”
constatamos tratar-se do esboço confuso de um imaginário que,

93
0 imaginário

aos poucos, irá regularizar-se na sua parte mediana de acordo


com os vários papéis, somente para terminar muito
empobrecido na extremidade superior onde o alógico do mito
tende a atenuar-se em prol da lógica em curso. Portanto, os
conteúdos imaginários (os sonhos, desejos, mitos etc.) de uma
sociedade nascem durante um percurso temporal e um fluxo
confuso, porém importante, para finalmente se racionalizarem
numa “teatralização” (Jean Duvignaud, Michel Maffesoli) de
usos “legalizados” (Algirdas, Greimas, Yves Durand), positivos
ou negativos, os quais recebem suas estruturas e seus valores
das várias “confluencias” sociais (apoios políticos, econômicos,
militares etc.), perdendo assim sua espontaneidade mitogênica
em construções filosóficas, ideologias e codificações.
Quando mencionamos os trabalhos de Françoise Bonardel
e Jean-Pierre Sironneau que, separadamente, colocaram em
evidência os dois grandes mitos antagônicos do século 20, esta
organização espaço-temporal de uma tópica do imaginário era
previsível. Na superfície triunfante encontra-se o mito
prometéico longamente amadurecido no século 19 e que
culmina com a seleção eugênica de uma raça de senhores,
marcando assim o apogeu do cientismo com Lênin, o discípulo
de Marx, e da “secularização” com o Kulturkampf. Na
profundidade, nas terras marginalizadas da arte, e como se

94
O balanço conceituai e o novo método

estivesse recalcado, ressurge o mito alquímico ou her- metista.


Adotando a terminologia de Stéphane Lupasco, poderiamos
afirmar que vários mitos (pelo menos dois) se sobrepõem numa
cultura e a qualquer momento. Enquanto uns são
“atualizados”, isto é, expressam-se à luz do dia, perdendo a
lógica de qualquer “pensamento selvagem” para se
classificarem na lógica da razão causai e da narrativa descritiva,
outros são “potencializados” e obrigados a permanecerem na
sombra, sendo, por isso, muito mais carregados de
possibilidades riquíssimas do “alógico” do mito. Nietzsche já
observara que a civilização helénica só subsistiu devido ao seu
confronto com Apolo, o Luminoso, e Dioniso, o Noturno...
Ninguém melhor do que o grande sociólogo Roger
Bastide71 evidenciou, na mitocrítica do famoso escritor André
Gide, o confronto dos mecanismos desta tensão sistêmica numa
psique (é inútil mencionar se é “coletiva” ou “individual”, pois
estas duas nuanças apagam-se no trajeto antropológico) situada
entre um imaginário atualizado e um imaginário
potencializado. Ou, como escreveu Bastide ao retomar os
conceitos da psicanálise, um “mito” que se manifesta e um mito
“latente”. O mito manifesto é aquele que deixa passar o
conjunto de valores e ideologias oficiais. Em Gide, são as
imagens inspiradas na ética crista do despojamento: a poda do
jardineiro, a sede ascética do deserto, a nudez que não tolera

71 R. Bastide, Anatomie d'André Gide (Anatomia de André Gide), P.U.F., Paris,


1972; cf. G. Durand, Le lointain et les ânesses (O longínquo e as jumentas),
Bastidiana n‘J 4, Association Roger Bastide, Paris V, 1993.

95
O imaginario

nem a barba, as imagens de pobreza evangélica que levam o


escritor movido por um ódio à propriedade a aderir ao
comunismo. Em toda a ética deste imaginário protestante —
como outrora no jansenista Pascal — “procura-se exatamente o
que já se encontrou”. Mas quando o despojamento é
exacerbado pelo autor de L’Immoraliste (O imoralista) e Les
Caves du Vatican (Os subterráneos do Vaticano) para uma
espécie de “principio dos limites”, isto é, para uma saturação
das possibilidades semânticas, transparecerá uma ética
proibida, ainda que envergonhada e bloqueada pela censura
exercida pelo imaginário conformista. Então, ao esbarrar na
predestinação augustiniana e luterana que se esconde sob a
procura hesitante de um nome próprio mítico, a máxima
blasfematoria será: “você só encontra aquilo que não procura”.
Verdade que o escritor tenta camuflar os pretextos evangélicos
desta máxima com as parábolas da “Ovelha Perdida” ou o
“Festim de Casamento”, mas na obra há ainda um monte de
outros nomes que tentam esconder a brutalidade insustentável
desta ética. Na obra de Gide é Cora, a Compassiva, que nos
Infernos mostra-se a implacável Perséfone; é Édipo que não
encontra outros meios a não ser o horror do parricidio, do
incesto e do olho vazado para salvar Tebas. E
Cristóvão Colombo que, à procura da rota para as índias
Ocidentais, encontra um novo mundo. É Saúl que parte à
procura de suas jumentas perdidas e volta do deserto com uma
coroa real... Nesta mitocrítica exemplar e que repousa na
mitoanálise subjacente da França protestante da primeira

96
0 balanço conceituai e o novo método

metade do século, percebemos muito bem como o imaginário


atualizado reprime e exclui o imaginário em potencial. A partir
de então, marginalizado, este entra na clandestinidade da
latência e mal consegue classificar-se sob a denominação de um
mito preciso. Ele multiplica tanto suas redundâncias como as
vicariantes: Saul ocupa o lugar de Cristóvão Colombo, que
ocupa o lugar de Edipo, que ocupa o lugar de Cora etc. Há
ainda as premissas de uma “mudança do mito”: o mito — tão
luterano — de Deus Todo- Poderoso e do “servo arbítrio” do
homem vai se apagando aos poucos por detrás do mito da
gratuidade fervorosa da ação humana, até agora censurado.
Como observamos nas tensões sistêmicas dos elementos
da tópica, tanto o imaginário oficial codificado e manifesto
quanto seu oposto, o imaginário recalcado, “selvagem” e
latente, necessitam de uma dinâmica que responda pela
mudança.
C/ A dinâmica do imaginário: a bacia
semântica

Todos os pesquisadores que se debruçaram sobre a


história sempre constataram que as mudanças numa
determinada sociedade nunca se efetuavam de modo amorfo e
anómico (sem forma nem regra), mas que entre os eventos
instantâneos e os “tempos muito longos” (Fernand Braudel) há
períodos médios e homogéneos quanto aos estilos, as modas e
os meios de expressão. Daí, a partir da existência de uma
ciência histórica, a divisão tradicional da historia de uma

97
O imaginario

sociedade, da nossa sociedade ocidental, em “Antigüidade ,


Idade Média” e “Tempos Modernos”. Uma divisão que integra
inconscientemente o mito progressista joaquimista (a época do
Pai, do Filho e Espírito Santo), o qual, por sua vez, inspirava-se
na profecia bíblica do proteta Daniel que aguarda a Era do
Ouro, depois a do Bronze, Ferro e Argila. Uma divisão de uma
pobreza incrível, pois considera apenas as cronologias e nem
um pouco os conteúdos estilísticos e semânticos, e que foi
contestada pelo historiador alemão Osvvald Spengler (1880-
1936)72 ao substituir este modelo etnocêntrico demais por uma
pluralidade de civilizações com culturas diferentes e

72 O. Spengler, Le Déclin de l'Occident (O declínio do Ocidente), 1916-1920,


Callimard, 1948.

98
0 balanço conceituai e o novo método

“contemporâneas”, isto é, que reaparecem de uma cultura


a outra — mas cada uma com fases bem marcadas de estações
culturais: primavera, verão, outono e inverno. Além do painel
sombrio de Spengler, muitos especialistas, como os
economistas e historiadores da arte, observaram numa
sociedade dada tanto os ciclos econômicos, as tendências
(trends) que se repetem periodicamente (infelizmente os
economistas não chegaram a um acordo sobre a duração desses
trends), os estilos de épocas muito bem definidos pelos
historiadores da arte como o clássico, o barroco, o romantismo
etc. É verdade que as artes pictóricas, plásticas e musicais
permitiram captar diretamente — pelo olhar e o ouvido! — as
diferenças dos estilos de época marcantes. A grande querela
“do barroco” consolidou a divisão em fases do imaginário
sócio-histórico futuro. E mais, a generalização inevitável do
barroco (Eugenio d’Ors), fora de sua situação privilegiada
(séculos 16 e 17 europeus), e a extensão dos termos a montante
(o gótico resplandecente) e a jusante (barocus romanticus!)
definiram a teoria do “retorno” das grandes fases do
imaginário que foi entrevista por Jean-Baptiste Vico (ricorso) no
século 18.
Por fim, os embriólogos —J. Henri Waddington e Rupert
Sheldrake73 — propõem conceitos como chréode
(o encaminhamento formativo necessário para a maturação do
embrião) ou “forma causativa” (a causa que não se situa no

73 R. Sheldrake, Une nouvelle Science de Ia vie (Uma nova ciência da vida), trad.
fr., Le Rocher, 1985.

99
0 imaginário

montante do fenómeno, como na causalidade eficiente, mas “a


jusante” ou pelo menos “em outro lugar”). Estes conceitos estão
muito próximos do logoi do matemático René Thom e da “re-
injeção” do físico inglés David Bohm. Ora, para entender esses
sistemas, os embriólogos utilizam a metáfora da “bacia fluvial”,
que determina o curso do rio, o qual, por sua vez, é regulado
pelo fluxo dos afluentes.
Pitirim Sorokin (cf. Bibliografía), após urna pesquisa
sociológica gigantesca efetuada por sua equipe de Harvard, foi
o primeiro a elaborar uma classificação da “dinâmica
sociocultural” de uma entidade sócio-históri- ca num número
de fases bem restrito (três: sensate / idea- tional / idealistic). Será
esta restrição que exigirá um retorno inevitável quando as três
ocorrências se esgotarem. Este retorno, porém, é
indeterminado: B não segue necessariamente A, nem C segue
necessariamente B. Assim, pela ordem dos ricorsi, obteremos
combinações diferentes: A B, B "'"►C, C A, C B, B A etc.
Contudo, no estudo do sociólogo americano, estas fases
permanecem vagas quanto à sua duração e sobretudo quanto
ao seu conteúdo pouco dirigido para os índices imaginários
mais sólidos (as figuras míticas, os estilos e motivos pictóricos,
os temas literários etc.). Como resultado deste indeterminismo,
os mecanismos
de formação e deformação das fases permanecem
indefinidos.
Assim, levando em consideração estas várias
constatações, aperfeiçoamos o conceito de “bacia

100
0 balanço conceituai e o novo método

semântica”. Ele já estava implícito na nossa “tópica”,


matizando em subconjuntos o movimento sistêmico, o
qual, por um lado, conduz o “isso” imaginário ao
esgotamento no “superego” institucional e, por outro,
suspeita desse “superego” e o erode pelos escoamentos
abundantes de um “isso” marginalizado. Em
contrapartida, é preciso encontrar um padrão de medida
para esta “duração mediai” que descreve um percurso
cíclico ao redor do nosso diagrama da tópica.
Mantendo a metáfora potamológica (referente a rio =
potamos), em primeiro lugar o conceito de “bacia
semântica” permite a integração das evoluções científicas
supracitadas e, em seguida, uma análise mais detalhada em
subconjuntos — seis, para ser exato — de uma era e área do
imaginário: seu estilo, mitos condutores, motivos
pictóricos, temáticas literárias etc. numa mitoanálise
generalizada, isto é, propondo uma “medi-

Í da” para justificar a mudança de modo mais pertinente do


que o menos explícito “princípio dos limites”.
Antes, porém, devemos tomar uma precaução
redobrada: por um lado, nossas pesquisas examinaram as
sociedades mais ricas em documentos e monumentos,
como também as mais acessíveis, as assim chamadas
sociedades ocidentais “quentes”. Alguns estudos semelhantes
começam a dar frutos em certas sociedades orientais com uma
ordenação histórica e cultural como a China, o Japão e a índia.
Mas, por enquanto, nossa pesquisa obteve bons resultados

101
0 imaginário

somente nas sociedades européias e suas extensões coloniais


americanas. Segunda precaução: precisar com exatidão a escala
do terreno de pesquisa. Um sistema sociocultural imaginário
desta- ca-se sempre de um conjunto mais vasto e contém os
conjuntos mais restritos. E assim ao infinito. Um imaginário
social, mitológico, religioso, ético e artístico sempre tem um pai,
mãe e filhos... Por exemplo, o imaginário do barroco dos
séculos 16 e 17 se insere na cristan- dade latina e na sua ruptura
reformadora que, por sua vez, se insere no mito gibelino do
império do Ocidente etc., mas este barroco insere suas
derivações venezianas, alemãs, ibéricas, americanas... E quando
passamos do Império do Ocidente do mar Mediterrâneo para
as nações modernas voltadas para o grande e vasto oceano
Atlântico, ocorre uma mudança na escala demográfica,
econômica e geográfica... Portanto, não devemos jamais perder
de vista esta prudência limitativa quanto à escolha de nossos
campos e amostragens.
Depois destas precauções examinaremos com precisão as
fases da bacia semântica. A primeira denominamos escoamento.
Em qualquer conjunto imaginário delimitado sob os
movimentos gerais oficiais institucionalizados transparece uma
eflorescencia de pequenas correntes descoordenadas,
disparatadas e freqüentemente antagonistas. Elas ressurgem no
setor “marginalizado” da nossa tópica e testemunham a usura
de um imaginário localizado, cada vez mais imobilizado em
códigos, regras e convenções. Assim, enquanto no século 12, no
estado monacal rural, o ascetismo estético dos cister- cienses se

102
0 balanço conceituai e o novo método

esgotava em proveito do urbano e do luxo eclesiástico do


“tempo das catedrais”, fervilhavam correntes religiosas e
filosóficas de todo tipo: os fraticelli74, os “irmãos de espírito
livre” ou os cátaros etc. Apesar da disparidade das teorias e dos
usos e costumes, todos esses “escoamentos” tinham um ponto
em comum: com o desenvolvimento nascente da luxuriante
arquitetura gótica no final do século 12, o rude ascetismo cis-
terciense será aos poucos submergido pelo naturalismo dos
celtas e normandos. “O sabor da felicidade terrestre” e a
emancipação estética que o acompanhavam permitirão a
inclusão da beleza profana e de formas naturais e vegetais nos
arabescos e capitéis, e a cor se irradiará nas rosáceas e vitrais do
imaginário europeu no limiar do século 13.
Bem antes da metade do século 18, as múltiplas correntes
começaram a “escoar” de forma análoga —
Spengler diria “contemporânea” — em oposição ao ideal
clássico e ao século das Luzes: na Alemanha, o Sturm und
Drang-, na França, o pré-romantismo; e em toda a Europa, a
filosofia de Rousseau. Já assinalamos que, assim como o final
do século 12, este final de século 18 representa um período de
resistência aos incono- clasmos que o envolve. Ao contrário do
que ocorreu no final do século 12, não é mais a arquitetura que
dá o tom a um imaginário novamente naturalista e
sentimentalista. Apesar dos caprichos do rococó na França do

74 Uma minoria franciscana adepta do uso da violência e que expressava (de


várias formas) sua desaprovação contra a riqueza dos líderes eclesiásticos.
(N.T.)

103
0 imaginário

príncipe regente Luís Xiy e na Alemanha com os grandes


arquitetos de um barroco muito tardio, como Neu- mann ou
Cuvillès, por exemplo, no século de Haydn, Gluck e Mozart a
música será a catedral invisível. É preciso observar que o
terreno muda de escala também: aqui não se trata mais da
Cristandade de Inocencio III que permeava toda a Europa antes
da Reforma, mas de nações e até de principados ainda menores.
As premissas da estética romântica surgirão na Alemanha. Em
contrapartida ao virtuosismo italiano, a ópera de Gluck
favorece a expressão natural dos sentimentos. A assim
chamada música “pura” medra entre os filhos de Bach,
tornando-se, de algum modo, o santuário dos sentimentalismos
pré-românticos. Mas, na oposição velada dos escoamentos
estéticos alemães contra o neoclassi- cismo francês, já começa a
esboçar-se uma clara divisão das águas que se firmará no
apogeu revolucionário do final do século e atingirá
rapidamente a superioridade no neoclássico.
Outro período “contemporâneo” destas sensibilidades do
imaginário, que vieram para contestar o icono- clasmo
ocidental, é aquele que ainda irriga nossa bacia semântica
moderna e formou-se dos escoamentos dos símbolos
decadentes dos anos 1860 a 1914-1918. Sob o imaginário estável,
corroborado pelos sucessos da Revolução Industrial e a partir
de Les Fleurs du Mal (As flores do mal, Ch. Baudelaire) e da
pintura simbolista, assim como de seu contrário, o
impressionismo naturalista, e em oposição ao humanismo
romântico que se esgota na superfície plana do moralismo

104
0 balanço conceituai e o novo método

positivista ou socialista, escorre um novo imaginário pela


esteira dos primeiros “re-mitologismos” de Freud, Wagner e
Zola.
A segunda fase da bacia semântica é a divisão das águas.
Trata-se do momento da junção de alguns escoamentos que
formam uma oposição mais ou menos acirrada contra os
estados imaginários precedentes e outros escoamentos atuais.
Esta é a fase propícia para as quere- las das Escolas.
Na nossa Idade Média não faltaram querelas, tais como a
que mencionamos e que opôs a austeridade cis- terciense do
final do século às novas criações vitoriosas do imaginário
gótico. No século 13, esta famosa quere- la, a “querela dos
universais”, retomou um novo impulso com o platonismo
franciscano dos partidários e dis-
cípulos de Duns Scot75, o qual se opunha ao aristotelis- mo
dominicano, do qual são Tomás de Aquino foi o representante
mais ilustre. No entanto, era urna querela de fachada, pois o
imaginário gótico, embriagado de um naturalismo concreto e
atento aos realismos e às curiosidades da natureza, apoiava-se
tanto na física de Aristóteles como no empirismo franciscano,
começando com Roger Bacon e depois Guilherme d’Occam.
Mas a divisão fundamental das águas, formada no imaginário
gótico, do qual os franciscanos são os porta-vozes e que os
conduzirá, mais de dois séculos antes da Reforma, à ruptura
com Roma, representa sua oposição obstinada a uma Igreja
ostensivamente coberta de riquezas que enclausura suas ordens

75 John Duns Scot (1265(?) — 1308), teólogo e filósofo escocês. (N.T.)

105
0 imaginário

religiosas nos vales e desertos do campo. Os discípulos de


Francisco querem ser uma fraternidade e não uma ordem;
querem livrar-se da clausura monacal; querem, enfim, estar em
contato com o povo, os animais e a natureza através de uma
arte popular cuja manifestação viva pode ser pictorial, litúrgica
ou teatral. Mas, e principalmente, revoltados pela opulência
dos abades e seculares instalados nas grandes cidades, eles se
afirmam por um despojamento liberador destas mesmas
grandes cidades em lase de surgimento: Radix omnium malorum
est cupiditas, “a cobiça é a raiz de todo mal”, proclamará o
General dos francis-

106
0 imaginário

canos, Michel de Césène, numa rebelião aberta contra o


papa João XXII.
O romantismo que desponta no final do século 18 não é
menos rico em querelas. Depois das oposições de salão —
Madame du Meffand contra Mademoiselle de Lespinasse —,
depois das terríveis e repentinas “divisões das águas”
revolucionárias causadas pela guilhotina, os girondinos contra
os montanheses, Danton contra Robespierre..., depois da
querela exemplar do naturalismo místico de Rousseau contra o
racionalismo dos Enciclopedistas, o Romantismo — tendo
como pano de fundo as guerras napoleónicas —, cujo emblema
na França será tardiamente a famosa “querela de Hernani”,
abrirá uma profunda querela nacional entre a França de
Napoleão, prudentemente iconoclasta no seu deísmo e
racionalismo, e a Alemanha, as terras preferidas do romantismo
— louvadas por Madame de Staél —, com seu abundante
imaginário musical, místico e poético.
Ao adquirir uma escala, ou pelo menos uma marca
nacional exata, esta divisão das águas será, infelizmente,
enfatizada na nossa modernidade pelas terríveis guerras
franco-alemãs. Os conflitos entre França e Alemanha acabarão
perturbando o jogo franco de seus imaginários recíprocos.
Verdade que haverá uma disputa viva entre a visão do mundo
cientista e a surrealista, entre formalismos e fenomenologías de
toda sorte.
/

E exatamente neste instante, embora à primeira vis- ta


pareça extrínseco ao imaginário, que as confluencias
desempenhem em cheio seu papel. Assim como um rio e

107
O imaginario

formado dos seus afluentes, uma corrente nitidamente


consolidada necessita ser reconfortada pelo reconhecimento, o
apoio das autoridades locais e das personalidades e
instituições.
A confluência da pequena fraternidade de Francisco de
Assis, que não passaria de uma seita perdida no escoamento
tumultuado das seitas do século 13, foi a dos objetivos políticos
eclesiásticos do terrível papa Ino- céncio III. É significativo ter
sido uma visão e um sonho que confirmaram o poder de
Francisco no espirito de Inocencio III, que estava convencido de
que o poverello certamente seria quem “devia reparar a Igreja
que estava caindo aos pedaços”. O papa — não há tempo aqui
para descrever seu reinado decisivo — teve a intuição genial de
que, por um lado, a “reparação” da Igreja vacilante não
passaria mais por uma milícia aristocrática de enclausurados
contemplativos e, por outro, a eleição de um fraticeüo entre
osfraticelli teria o poder de administrar a anarquia e a
indisciplina reinantes... Não devemos omitir, ao lado da
principal confluência do poder pontifical, o prolongamento,
por assim dizer, do Weltbild de Francisco, morto em 1226, por
Santa Clara, que sobreviveu quase trinta anos a seu pai
espiritual e foi contemporânea dos mitógrafos franciscanos
Antônio de Pádua e Tomás de Celano.
Verdade que as confluências que vigiavam o nascimento
do imaginário romântico são tão difíceis — sobretudo para um
francês — de serem percebidas, pois são falsificadas, quanto a
divisão das águas pelas forças nacionais. Na França, Napoleão
desempenhou o papel de freio para a nova sensibilidade vinda

108
0 balanço conceituai e o novo método

da Alemanha. Porém, é nestas águas represadas que, no além-


Reno, começa a tecer-se uma grande rede de confluências. O
que teria sido de Haydn, no século 18, sem a forte proteção dos
Esterhazy? O que teria sido de Goethe na sua ascensão à corte
do duque de Weimar? O que teria sido de Beethoven, no início
do século 19, sem o cortejo principesco de seus admiradores e
do arquiduque Rodolfo? Não podemos deixar de citar ainda a
extraordinária dinastia da Bavária, desde Schnorr von
Carosfeld até Richard Wagner, que apoiou “o ideal” romântico.
Na nossa modernidade pós-guerra serão,
preferencialmente, as confluências tácitas, apoiadas nos mitos
latentes, que se entrelaçarão nas técnicas da imagem em pleno
desenvolvimento, nas teorias do “novo espírito científico”, nos
esboços de novas lógicas, as “novas críticas”. Mas seria preciso
esperar mais de trinta anos — pelo Coloquio de Córdoba em
1979... — para que as ciências de vanguarda, os poetas, os
técnicos e os teóricos da imagem se manifestassem e se
encontrassem.
O nome do rio, que, de alguma forma, é o “nome do pai”
solidamente mitificado, esboça-se quando um per-

109
O imaginario

sonagem real ou ficticio caracteriza a bacia semântica


como um todo. Claro que, para o século franciscano, o nome do
pai é Francisco de Assis, que está respaldado por sua “lenda
dourada” escrita por seus sucessores Tomás de Celano (1260),
Henrique d’Avranche (1234), o irmão Elias e o prestigioso
Boaventura (1274). É urna onda gigantesca de imagens que irá
eclipsar a gesta e a iconografía do próprio Cristo, a fonte de
toda a renovação do imaginário ocidental e que acompanha a
integração de Francisco de Assis, o “Pai Santíssimo”, no mito
joaquimita, como o fundador da “ordem dos Serafins” e o
anunciador do “Papa Angelical” e da “época da flor-de-lis”.
Parece que neste desfraldar inusitado do imaginário
romântico somente nos resta a dificuldade da escolha para
eleger o nome do campeão da Naturphilosophie. A quem
coroaremos? Beethoven, Novalis, Schelling, Schle- gel ou
Hegel? Que escolha difícil! No entanto, nós acharíamos que o
“nome do rio” devia permanecer coletivo e simbolizado pelo
rio Reno, essa fonte de todas as riquezas... No entanto, no início
do século, será o brilho de um poeta, cujo mito já tão
“sistêmico” assume as contradições da época e ressuscita o
Doutor Fausto, que se estenderá até Delacroix, Berlioz, Gounod
e Nerval, e que “confluirá” com os músicos em tantos Lieder e
baladas: Goethe, o profeta da “religião derradeira” e das
nostalgias de tantos Werther, parece convir perfeita- mente à
paternidade do rio romántico.
Na nossa modernidade, esta ressonância, este espírito de
síntese entre os sentimentos, esta experiência científica e

110
0 balanço conceituai e o novo método

sobretudo estas imagens devem, incontesta- velmente, retornar


a Freud e à enorme e persistente hagiografía psicanalítica.
Posicionar Freud no ponto mais profundo do rio não é, de
nossa parte, uma garantia da verdade freudiana, mas apenas da
sua formação semântica.
Quanto à organização dos rios, esta consiste numa
consolidação teórica dos fluxos imaginários onde ocorrem, com
freqüência, os exageros de certas características da corrente
pelos “segundos fundadores”, como são Paulo e o
prolongamento dos Evangelhos. Não insistiremos aqui, pois já
o mencionamos na primeira parte do livro, no papel re-
fundador e didático de são Boaven- tura, o Doctor Seraphicus.
Quanto ao romantismo, esse não tem o que invejar ao século 13,
tamanha sua riqueza de “organizadores de afluentes”. Além de
Kant, todos serão “filósofos da natureza” e cada qual fará mais
e melhor: Fichte, Novalis, Schleiermacher — este “hiper-
joaquimista” segundo E de Lubac —, Schlegel e o próprio
Hegel se incumbirão de teorizar uma filosofia da Darstellung,
da “demonstração” da Divindade nas obras do mundo. Mas,
aparentemente, Schelling será o novo Boaventura desta nova
“exemplaridade” solidamente fundamentada no mito
joaquimita das “três épocas” c cujo desenvolvimento não será
outra coisa que a “ex pansão do coração de Deus”. As duas
obras, Idées pour une Philosophie de la Nature [Idéias para urna
filosofía da natureza] e Aphorismes pour Introduire a la Philosophie
de la Nature [Aforismos para a introdução à filosofia da
natureza] de 1797 e 1 8 1 5 , respectivamente, servem de mapa

111
O imaginario

para todo o imaginário romântico, sendo uma especie de


itinerario do espirito para a Darstellung divina.
Quanto às “margens” do imaginário na nossa
modernidade, estas foram organizadas por toda uma plêia- de
de pesquisadores — cujos trabalhos já indicamos na segunda
parte deste livro, e dentre os quais nos incluímos — que
construíram, a partir da década de 50, o edifício de uma
filosofia do imaginário e de uma “mito- dologia”.
E, assim, chegamos à sexta e última fase da “bacia
semântica”, os deltas e os meandros. Esta ocorre quando a
corrente mitogcnica — o “inventor” dos mitos — que
transportou o imaginário específico ao longo de todo o curso do
rio se desgasta, atingindo, segundo Sorokin, uma saturação
“limite”, e deixa-se penetrar aos poucos pelos escoamentos
anunciadores dos deuses por vir... Sabemos como a “bacia
semântica”, gótica e franciscana começou a se desagregar no
Qiiattrocento, tanto por razões intrínsecas (um nominalismo
cada vez mais acentuado, a ruptura seguida da guerra aberta
contra o papado durante o Grande Cisma do Oriente etc.)
quanto extrínsecas (as oposições e as críticas do monacato ao
clero secular, o surgimento do humanismo e do neopa-
ganismo até o trono pontifical de um Nicolau V ou de um Pio II
etc.)
Intrínsecamente, a “bacia” romântica já traz em si este
“verme dentro do fruto”, ou o gosto pelas ruínas, o
catastrofismo que, a partir da metade do século 19, fornecerá os
germes para o decadentismo, mas sobretudo ao introduzir nela,

1 14
0 balanço conceituai e o novo método

como um efeito perverso de sua generosidade, uma


Kulturphilosophie que desafia cada vez mais a natureza e a
contemplação em proveito da praxis prometéica (apologias da
Indústria, dos trabalhadores, da “transformação do mundo”
etc. ).
Finalmente, na bacia semântica da nossa modernidade, de
forma latente e mascarados pelas vulgata freudiana, junguiana,
eliadiana e a nossa, encontram-se certamente os meandros e
escoamentos prenunciadores.
Agora, resta responder à pergunta que não foi resolvida
por Sorokin: a duração de uma “bacia semântica”. A mudança
profunda do imaginário de uma época foi, muitas vezes,
equiparada a uma simples mudança de gerações. Esta revolta
periódica de “pais contra filhos” é curta demais para cobrir a
amplitude de uma bacia semântica. Constatamos que sua
duração, desde os primeiros escoamentos perceptíveis até os
meandros terminais, era de cento e cinqüenta a cento e oitenta
anos. Uma duração justificada, por um lado, pelo núcleo de três
ou quatro gerações que constituem as informações

113
O imaginario

“à boca pequena”, o “ouvi dizer que” familiar entre o avô


ou o mais velho e o neto, ou seja, numa continuidade de cem a
cento e vinte anos à qual acrescenta-se, por outro lado, o tempo
da institucionalização pedagógica de cinqüenta a sessenta anos,
que permite ao imaginário familiar, sob a pressão de eventos
extrínsecos (a usura da “bacia semântica”, as profundas
mudanças políticas, as guerras etc.), se transformar num
imaginário mais coletivo e invadir a sociedade ambiental
global.

114
Conclusão

Foi assim que, em meados do século 20, os trabalhos


pluridisciplinares convergentes permitiram tanto a criação de
um balanço heurístico rico em estudos do imaginário como
apresentar os conceitos-chaves de uma abordagem metódica
das representações do Universo, ou de uma “mitodologia”. O
pluralismo taxinômico, a tópica e a dinâmica permitem
abarcar as bacias semânticas que articulam aquilo que é
“próprio do homem”, o imaginário, com uma precisão
mensurável. Este define- se como uma re-presentação
incontornável, a faculdade da simbolização de onde todos os
medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram
continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos
que o homo erectus ficou em pé na face da Terra.
Contudo, não poderiamos concluir com esta constatação
triunfalista. Verdade que a “civilização da imagem” permitiu
a descoberta dos poderes da imagem há
tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os ^
mecanismos de formação, as deformações e as elipses da

115
0 imaginário

imagem. Por sua vez, a “explosão video , fruto de um efeito


perverso, está prenhe de outros efeitos per ver sos” e
perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens.
Em primeiro lugar porque ela impõe seu sentido a um
espectador passivo, pois a imagem enlatada anestesia aos
poucos a criatividade individual da imaginação, como já
apontava Bachelard ao dar preferencia à imagem literária”
sobre qualquer outra imagem icônica mesmo animada
como a de um filme.
Portanto, a imagem “enlatada’ paralisa qualquer
julgamento de valor por parte do consumidor passivo, já
que o valor depende de uma escolha; o espectador então
será orientado pelas atitudes coletivas da propaganda: é a
temida “violentação das massas”. Este nivelamento é
perceptível no espectador de televisão, que engole com a
mesma voracidade, ou melhor, com a mesma falta de
apetite, espetáculos de “variedades , discursos
presidenciais, receitas de cozinha e notícias mais ou menos
catastróficas... E o mesmo “olho de peixe morto que
contempla as crianças que morrem de fome na Somália, a
“purificação étnica” na Bosnia ou o arcebispo de Paris
subindo a escadaria da Basílica de Montmartre carregando
uma cruz... Esta anestesia da criatividade do imaginário e
o nivelamento dos valores, numa indiferença espetacular,
são reforçados por outro e último perigo.

116
Conclusão

Trata-se do anonimato da “fabricação” destas imagens.


Elas são distribuídas com tanta generosidade que escapam de
qualquer “dignitário” responsável, seja ele religioso ou
político, interditando assim qualquer delimitação e qualquer
estado de alerta, permitindo, portanto, as manipulações éticas
e as “desinformações” por produtores não-identificados. A
famosa “liberdade de informação” é substituída por uma total
“liberdade de desinformação”. Sub-repticiamente, os poderes
tradicionais (éticos, políticos, judiciários e legislativos...)
parecem ser os tributários de uma única veiculação de
imagens “pela mídia”.
Não deixa de ser paradoxal que tal “poder público ,
que se tornou absoluto por técnicas sofisticadas que ele utiliza
e por quantias colossais de dinheiro que ele drena, seja
abandonado ao anonimato, quando não ao oculto. De modo
mais geral, o problema concreto da ruptura entre o poder da
mídia e os poderes sociais está ligado ao excesso de
“informações” (no sentido muito amplo, íormações e
desinformações, inclusive) das estruturas das instituições.
Como se sabe, por natureza a informação (L. Brouillin) é
“não-entrópica” — isto é, ela aumenta indefinidamente, sem
conter em si mesma o germe da sua usura — enquanto as
instituições, como qualquer construção humana que precisa
gastar suas energias, são entrópicas, isto é, condicionadas ao
desaparecimento e à morte. Então, a plétora indefinida de
y^formações poderia ser um fator de entropia para as
instituições sociais que ela desestabiliza... Constatamos que

117
O imaginario

quanto mais uma sociedade é “informada” tanto mais as


instituições que as fundamentam se fragilizam...
Um perigo tríplice para as gerações do “zapping”:
perigoso quando a imagem sufoca o imaginário, perigoso
quando nivela os valores do grupo — seja de uma nação,
cantão ou “tribo”76 — e perigoso quando os poderes
constitutivos de toda a sociedade são submersos e erodidos
por uma revolução civilizacional que escapa ao seu controle...
Ao menos se formou — como o demonstramos ao longo
destas páginas — um “magistério” discreto de sábios
competentes aos quais “os políticos”, aqueles que ainda
pretendem “governar” os grupos sociais, deveríam prestar
atenção...

Bibliografía

Mais de cem títulos já foram citados no texto e nos rodapés deste livro. Na bibliografia

sumária a seguir somentefiguram as obras mais propícias a uma teorizarão.


• G. Bachelard, La Poétique de la rêverie, P.U.F., 1960.
• R. Bastide, Le Prochain et le lointain, Cujas, 1970.
• R. Caillois, Le Mythe et 1’homme, Gallimard, 1938.
• E. Cassirer, Philosophie des formes symboliques, (3 vols.), Minuit, 1972.
• H . Corbin, L'lmagination créatrice dans le soufisme d’Ibn Arabí, Flammarion,

76 M. Maffesoli, La Transfiguration du politique, Ia tribalisation du monde (A


transfiguração do político e a tribalização do mundo), Grasset, 1992.

118
1958.
• B. Duborgel, ímaginaire et pédagogie, de l’inconoclasme scolaire a la culture des
songes, Sourire qui mord, 1983.
• G. Dumézil, Júpiter, Mars, Quirinus, (3 vols.), Gallimard, 1941- 1948.
• G. Durand, Les Structures anthropologiques de 1’imaginaire, introduc- tion à
1’archétypologiegénérale (1960), 11? ed., Dunod, 1993.
• M. Eliade, Aspects du mythe, Gallimard, 1966.
• FI.-F. Ellenberger, A la découverte de Vlnconscient. Histoire de la psychiatrie
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• S. Freud, La Science des reves, Payot, 1950.

• &. Gusdorf, Mythe et métbaphysique, Flammarion, 1953.


• G. Holton, L’Imagination scientifique, Gallimard, 1982.

• C.-G. Jung, Métamorphoses et symboles de la libido, Montaigne, 1932.


• Cl. Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, Pión, 1962.

• M. Maffesoli, La Connaissance ordinaire, Lib. Méridiens, 1985.

• E. Morin, La Méthode, (3 vols.), Seuil, 1977-1980.

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Rocher, 1994.
• P. Sorokin, Social and cultural dynamics, (4 vols.), Porter Sargent Pub., 1957.

• J.-J. Wunenberger, La Raison contradictoire, Sciences et philosophie modernes:

la pensée du complexe, Albin Michel, 1990.

119
i tM*. ti Durand, Gilbert
0 imaginário: ensaio acerca das ciencias e da filosofia da Imagem / Gilbert Durand; tradução Renée Eve
Levié. — Rio de Janeiro: DIFEL, 1998. O imaginario
128p. — (Coleção Enfoques. Filosofia)

Tradução de: L’imaginaire Inclui bibliografia ISBN 85-7432-003-X


1 Imaginação. 2. Imagem (Filosofia). 3. Simbolismo (Psi- mlugia). I, Título. II. Série.

9M If.'if, CDD153.3
CDU 159.954

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.*0040 DO ♦ tíio d.- janeiro RJ
Irl (O 111 ’M JOKJ 1 (021) 263-6112
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