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Os habitantes da Montanha do Vento

Júlia Selau Verdum


Os habitantes da Montanha do Vento

Júlia Selau Verdum

Brasília
2017

acadêmica
© 2017 Sobrescrita.
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que a fonte
seja citada e que não haja venda nem fins comerciais.
Tiragem: 1ª edição – 2017 – 300 exemplares

Revisão de Língua Portuguesa Conselho Editorial


Ana Terra Cecília Mori
Flávia Biroli
Capa, Editoração Eletrônica e Layout Larissa Polejack
João Neves Mônica Nogueira
Neuma Brilhante
Fotografia da capa Rosamaria Carneiro
Claudia Andujar Rozana Naves
Urihi-a da série Casa Soraya Fleischer
1976 Wederson Santos
Fotografia da quarta capa
Ana Carolina Matias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Responsável: Raíssa Menêses (CRB1/DF 3183)

V487h Verdum, Júlia Selau


Os habitantes da Montanha do Vento / Júlia Selau Verdum. – Brasília: Sobrescrita,
2017.
110 p. : il.

ISBN 978-85-93989-01-8

1. Antropologia. 2. Pesquisa de campo. 3. Yanomami. 4. Povo indígena. 5. Práticas


agrícolas. 6. Horticultura. I. Título.

CDU: 39 (=1-82)

Sobrescrita Editora e Serviços Linguísticos


(61) 99116-8312
contato@sobrescrita.com.br
www.sobrescrita.com.br
Aos Yanomami

Que seus cabelos e olhos continuem semelhantes aos de Omama.


Agradecimentos

Somos levados a crer que o trabalho acadêmico é um


trabalho solitário… de fato o é, mas só em parte, pequena parte.
Grande parte deste trabalho só foi possível porque foi feito junto e
por longo tempo.

Em primeiro lugar, minha infinita gratidão a todas e todos


os yanomamis de Watoriki, que carinhosamente me acolheram
e me apresentaram sua morada e seus caminhos. Awei, totihi
yamaki nohimaio!

Ao Davi Kopenawa, que é um e é muitos. Um abraço forte,


um povo forte.

À Hutukara Associação Yanomami: Morzaniel Yanomami,


Dário Yanomami, Antônio, Ailton, Norma e, novamente, Davi.

7
Como bem disse Viveiros de Castro, no Brasil só não é índio
quem não é. Do Instituto Socioambiental – Boa Vista, profunda
gratidão a Silas, Sid, Moreno, Ana Paula e Matthieu. Ainda em Boa
Vista, ao Felipe, pelo acolhimento, e a Vicente, Ed, Ana Paula, Joana
e Panchita. À Flávia, pela sensibilidade e pelo olhar de borboleta.
A Majoí e Chloe, pela companhia e pelo carinho.

Ao Carlo Zaquinni, por seu sorriso largo e lúcido e calor que


vibra. Continue amando tudo o que faz!

Ao Bruce, que me recebeu numa Montevidéu chuvosa e que


me fez lembrar histórias. À Bia Lima, que me ensinou a arte dos
mapas e aprendeu a fazer arte. Ao François-Michel Le Tourneau,
que escreveu um livro lindo e gentilmente me indicou o “caminho”
para os mapas aqui presentes.

Aos docentes e funcionários do Departamento de Geografia


da Universidade Federal Fluminense, principalmente ao professor
Valter Cruz, que topou me orientar e construir isso junto, e aos
professores Ruy Moreira e Emerson Guerra, que fizeram parte
da banca.

Aos meus pais, Gorete e Ricardo, que me mostraram o


que tenho guardado na lembrança. Me ensinaram a amar e me
desejaram liberdade. Prometo buscar sempre e não parar nunca.
À Joana, pela irmandade de alma e telepatia.

Transformar a monografia em livro não foi tarefa fácil,


principalmente pela tendência que por vezes temos de desvalorizar
o que fazemos. Lidar com minhas inseguranças talvez tenha
sido das tarefas mais difíceis nesse processo, e para isso contei
com muito apoio, ajuda, empurrõezinhos e torcida. Agradeço
imensamente à professora Soraya Fleischer, que ofereceu a Oficina
de Escrita Etnográfica e que, sensível e acolhedora, esteve presente
e incentivando as várias etapas do processo. Agradeço também aos
colegas de oficina pela leitura atenta e pelas dicas cuidadosas: Ana
Carol, Bárbara Oliveira, Felipe Almeida, Monique, Roberto Sobral,
Juanita, Júlia Clímaco, Léia, Lourival, Luciana, Maíra, Caetano,
Melina, Tati e Uriel.

Agradeço à Ana Terra e ao João Neves, da editora


Sobrescrita, pela infinita paciência, pelo trabalho cuidadoso e pelo
resultado lindo.

A fotografia da capa é da Claudia Andujar, a quem admiro e


agradeço imensamente, por ter me mostrado os xapiripës que se
escondem na floresta cor-de-rosa e por permitir que eu usasse a
imagem no livro.

As apresentações são da Soraya e da Sílvia Guimarães. Muito,


muito grata pelas leituras e pelo esmero.

Os desenhos são da Madalena e do Edinho, a quem agradeço


novamente, bem como a todas e todos os yanomamis, pela acolhida
e por me mostrar que cuidado tem mil formas.

Aos que estavam na torcida. Aos amigos espalhados que


fizeram parte desse processo.

Aos meus pais, de novo, que corujamente acreditam em suas


filhas e as incentivam.

E a todas que não mencionei aqui.


Os Brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio
de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados
dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os
nossos filhos.
Davi Kopenawa, traduzido por Bruce Albert
(Kopenawa; Albert, 1999, n.p.)

O que a vista apreende pode descrever-se por palavras. Estas dão


conta apenas imperfeitamente das formas e das cores, mas permitem
veiculá-las pelo relato.
(Claval, 2011, p. 227)
Na perspectiva do tempo geológico, que se mede em milhões de anos,
toda espécie sobrevive em função de sua capacidade de continuar a
aprender segundo sua experiência adquirida ao longo do tempo.
Apesar de seu tamanho descomunal (sua população hoje chega
perto dos 6,7 milhões), sua linhagem excepcional (cuja principal
característica é o tamanho do seu cérebro e o advento da consciência)
e seu poder de transformar o habitat planetário (resultado do enorme
desenvolvimento de conhecimentos e tecnologias), a espécie humana
ainda precisa, para sobreviver e superar seus desafios atuais, de uma
memória de sua trajetória pelo planeta nos últimos 200.000 anos.
Se o Homo sapiens conseguiu permanecer, colonizar e expandir sua
presença na Terra, isso se deve à sua habilidade de reconhecer e
explorar os elementos e processos do mundo natural, um universo
caracterizado pela diversidade. Essa habilidade tem sido possível
pela permanência de uma memória, individual e coletiva, que se
estendeu pelas diferentes configurações societárias que formaram
a espécie humana. Esta característica, evolutivamente vantajosa
para a espécie humana, tem sido limitada, ignorada, esquecida ou
tacitamente negada com o advento da modernidade, uma era cada
vez mais orientada pela “vida instantânea” e pela perda da capacidade
de lembrar.

(Toledo; Barrera-Bassols, 2008, p. 15-16, tradução minha)


Sumário
Nota sobre a grafia de termos yanomamis........................17

Sobre etnografias e vivências..................................................21


Sílvia Guimarães

Tomando caminhos kahumães e boreioyos


ao fazer antropologia.................................................................27
Soraya Fleischer

Introdução.........................................................................................33

Meu pensamento em movimento


e seus caminhos.................................................................................43

Povo que caminha...........................................................................57

Os habitantes da Montanha do Vento................................69

O manejo do mundo:
espaço vivido, espaço criado.....................................................83

Considerações finais.....................................................................99

Referências.......................................................................................103
Nota sobre a grafia de
termos yanomamis

Para ter uma ideia de como pronunciar as palavras e


expressões presentes neste livro, deve-se ter em mente as
seguintes indicações:

• ë, como em xapiripë, é uma vogal central média,


pronunciada como o e de mesa;

• i, como em Watoriki, é uma vogal central alta,


pronunciada como o u de but, no inglês;

• y e w, como em Yanomami e Watorikï, são semivogais,


pronunciadas como i (pai) e u (pau) breves no
português;

• não há distinção fonêmica entre p e b, t e d, l e r ou


h (aspirado) e f, que serão grafados indistintamente;

• o t aspirado, pronunciado como um t seguido de um


leve sopro, será representado por th, como em theripë;

• o til (~), como em heehã, representa um som nasalizado;

• os sons não mencionados aqui correspondem


aproximadamente aos do português.

17
Durante minha estadia em Watoriki, fui várias vezes ao roçado de
Madalena — algumas acompanhada por ela, outras acompanhada
por sua filha Suhuma. Levei um punhado de canetinhas hidrográficas
e folhas para o campo e um dia pedi que Madalena desenhasse seu
roçado. A intenção era apreender, através do desenho, a organização
das plantas, a importância dada a algumas espécies etc. Nem
sempre era fácil me fazer entender e não fui muito feliz na minha
tentativa. Como Madalena não entendia o que eu pedia, peguei uma
folha e também comecei a desenhar. A nós se juntou Edinho, neto de
Madalena, que começou a imitar os desenhos da vó e a desenhar as
plantas que eu pedia. Portanto, apesar de terem me ajudado muito
na identificação dos nomes dados às espécies e às várias partes das
plantas, os desenhos não podem ser considerados uma representação
gráfica do roçado yanomami. Ainda assim, decidi colocá-los no
início de cada capítulo por achá-los interessantes e bonitos.

19
Sobre etnografias e vivências
Sílvia Guimarães
Departamento de Antropologia
Universidade de Brasília

O trabalho de Júlia Verdum é uma leveza. Trata-se de uma


experiência de campo entre os Yanomami de Watoriki e de
leituras sobre diversos subgrupos yanomamis. A partir do campo
disciplinar da geografia, a autora transita por outros saberes e
práticas buscando “ser afetada” pela narrativa dos Watoriki a
respeito da maneira como experienciam o espaço.

Devo mencionar que esta obra me trouxe boas lembranças


de um trabalho de campo que vivenciei entre os Sanumá de
Auaris, subgrupo yanomami, por nove meses entre 2003 e 2004.
A escrita de Júlia me fez recordar algumas dimensões do campo,
do prazer da companhia das mulheres e da admiração em transitar
pela floresta amazônica, pela densidade do seu chão e pelas copas
das árvores.

Na trilha de seu livro, semelhante às trilhas que seguiu


com os Watoriki enquanto aprendia com eles, Júlia nos apresenta
um fazer etnográfico que pontua a importância de se colocar no

21
Sobre etnografias e vivências

texto. Assim, é a partir de uma narrativa construída por uma


pesquisadora, mulher, branca, que ela faz seu campo entre os
Watoriki. Essa subjetividade transparece em trechos do diário
de campo apresentados ao longo deste livro. Tal foco na
subjetividade da pesquisadora é um ponto central nas produções
de teorias etnográficas.

A teoria etnográfica pretende ser um encontro entre


o pesquisador e as pessoas com quem se pretende estudar;
consequentemente, não diz respeito apenas aos atores sociais
ou ao pesquisador, mas à intricada relação da etnógrafa com o
contexto de onde parte a experiência (Magnani, 2009; Peirano,
2008). Na esteira da discussão apresentada por Peirano (2008)
sobre a etnografia como uma teoria vivida, Júlia é “afetada”, nos
termos de Favret-Saada (2005). A autora está no campo, aberta
à sensibilidade. Não se concentra em uma atividade intelectual,
exclusivamente mental, mas se submete aos sabores, às cores,
aos cheiros. Por meio dessa sensibilidade, busca o fio condutor
que liga sua primeira estadia entre os Yanomami, ainda criança,
acompanhando os pais, à de hoje, como pesquisadora em
campo. Assim, produz uma “aproximação” e não o esperado
“distanciamento” do fazer etnográfico. Esse distanciamento,
conforme explica Pinho (2003), reproduz a ideia de um “etnógrafo
neutro” que, coincidentemente, é um sujeito hegemônico
(branco, de classe média, masculino, heterossexual) com um
objeto a ser estudado.

Por conseguinte, o exercício de se colocar no texto permite


o início de uma crítica à autoridade etnográfica, pautada em um
saber científico que desconsidera outras narrativas. Connel (2012)
pontua o que seriam abordagens ou preocupações na produção
e uma teoria social que reforçaria essa crítica à autoridade
etnográfica. Discutir sistemas indígenas de conhecimento seria
uma dessas abordagens, além do debate sobre territórios. É assim

22
que Júlia inicia o desenho da epistemologia indígena Watoriki
ao entrelaçar saberes sobre práticas agrícolas com cosmografia
(Little, 2002).

Ao mesmo tempo, a autora não deixa de expor conflitos


vivenciados pelos Watoriki, os quais violentam suas experiências
territoriais. Poderes coloniais atuam usurpando territórios e
desqualificando esses saberes e práticas e sua complexidade. Ao
tratar dessas relações de poder, Júlia revela a agência, a história e
os contextos vividos e não reduz os Watoriki a um plano simbólico
harmônico. De acordo com Besan (1998), contextos são imanentes
a práticas, e há o risco de determinadas etnografias produzirem
uma homogeneidade social ao esmagar os fatos e despojá-
los de contradições e dinâmicas. Na esteira desse argumento,
Hampâté Bâ (2003) discute a violência dos epistemicídios ao
tratar das histórias africanas e de como sua produção, a partir de
acontecimentos advindos de sonhos premonitórios e previsões,
entre outros, é desqualificada. Essa violência está presente,
também, quando se pretende construir teorias etnográficas  que
reduzem o plano simbólico a um discurso falso, imaginário,
que, além disso, retira a agência dos sujeitos em processos
históricos localizados e não apresenta o poder colonial em suas
diversas dimensões. Júlia demonstra como a história watoriki se
entrelaça ao espaço, ao cultivo, ao ato de se alimentar, à coleta, sem
ignorar os conflitos territoriais que marcam a vida desses sujeitos.

A autora transita entre sua presença e a de outros não


indígenas no território dos Watoriki. Estes últimos controlam
a presença da pesquisadora, ao decidir levá-la a possíveis trilhas
de conhecimento. Assim, Júlia nos encaminha na direção daquilo
que Connel (2012) afirma serem elementos importantes para a
produção de uma teoria social.

23
Sobre etnografias e vivências

Na construção dessa epistemologia watoriki voltada a uma


cosmografia, relembro as narrativas sanumás sobre a origem das
plantas cultivadas. O cultivo de plantas na roça, para os Sanumá,
está relacionado com as trocas de conhecimento com outros povos
indígenas, especialmente os Yecuana, conforme me relatou um
velho Sanumá:

antigamente, antes de os sanumá se encontrarem com os yecuana,


eles não tinham roças. Não tinham machados, facas como têm
hoje, não tinham nada. Lourenço yecuana, contou esta história. Um
dia, esses sanumá encontraram wanimaitilia pata, era um sanumá-
cobra (que depois se transformaria em cobra). Ao redor dele havia
mandioca, banana, batata, enfim, havia muitas coisas. Os anciãos
pediram a esse sanumá sementes e mudas de várias plantas. Disseram
que da mandioca eles iriam fazer beiju, tirar a casca da mandioca, ralá-
la, espremê-la, jogar o veneno fora e, assim, não ficariam com fome,
pois fariam muitos beijus. Com as mudas doadas, fizeram as roças.
Queimaram uma área pequena, pois não havia facão nem fósforo.
Usavam o graveto polotikö (da árvore poloi) para acender o fogo.
Queimaram, plantaram e colheram os alimentos. Na roça, havia o
bananal, mandioca e outras plantas. Assim, os sanumá foram fazendo
suas roças, um foi mostrando ao outro. O sanumá que deu as mudas e
sementes para os outros fazerem roça virou uma cobra grande e velha,
wanimaitilia pata. Antes de ter roça, os sanumá caçavam, viajavam
muito, faziam muitos acampamentos pela floresta com toda a família
(Guimarães, 2005, p. 96).

O conhecimento a respeito do cultivo na roça é divulgado


e inserido em rotas de troca. Um Sanumá aprende a fazer uma
roça e ensina a outro e assim por diante. Essa transmissão de
informação parece seguir as trilhas das trocas que acontecem
entre os subgrupos Sanumá e outros indígenas. Júlia foi inserida
nessas trilhas que se embrenham na floresta, nos roçados,
e alcançam outros espaços, pessoas e seres.

24
Das roças, é possível adentrar redes de interação, trilhas
de troca que ligam os Sanumá ou Watoriki com outros coletivos,
espaços-temporalidades. Conforme afirma a autora, como um
fato social total, a partir das roças, antigas e novas, os Watoriki
transitam por ocupações espaciais, locais de coleta, caça, pesca, por
onde vivenciam o espaço e as sociabilidades. São espaços vividos
que se corporificam nas pessoas. Para os Sanumá, a cerimônia
funerária era marcada pela cremação do morto e tudo que lhe
pertencia, inclusive sua roça e casa, o que era uma ação radical
realizada, de fato, na morte de um grande xamã (Guimarães, 2005).
A roça compunha a corporalidade do sujeito, por isso deveria
ser destruída na sua morte. Nesse sentido, as roças nos levam
a várias dimensões da vida social. Uma delas está nas roças em
si, conforme discute a autora, nas plantas cultivadas e dispostas,
propositalmente, aqui e acolá, apresentando um microcosmo da
vida social.

Júlia nos dá a dica da continuidade desse trabalho junto


aos Watoriki sobre suas práticas agrícolas. Ela nos deixa à espera
de outra trilha que está por vir, marcada pela narrativa contra-
hegemônica watoriki de uma sabedoria que, como ela mesma
afirma, é a potencialidade de “reinvenção de futuros possíveis”.

Referências

Bâ, A. H. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena; Casa das
Áfricas, 2003.

Besan, A. Da micro-história a uma antropologia crítica. In: Revel, J. (org.).


Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
p. 39-76. Publicado originalmente em 1996.

Connell, R. A iminente revolução na teoria social. Revista de Ciências


Sociais, v. 27, n. 80, p. 9-20, out. 2012.

25
Sobre etnografias e vivências

Favret-Saada, J. Ser afetado. Caderno de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005.

Guimarães, S. Cosmologia sanumá: o xamã e a constituição do ser. Tese


(Doutorado) – Universidade de Brasília, Brasília, 2005.

Little, P. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma


antropologia da territorialidade. Série Antropologia, n. 322, p. 1-31, 2002.

Magnani, J. G. Etnografia como prática e experiência. Horizontes


Antropológicos, ano 15, n. 32, p. 129-156, jul.-dez. 2009.

Peirano, M. Etnografia ou a teoria vivida. Revista Ponto Urbe, ano 2, v. 2,


p. 1-10, 2008.

Pinho, O. Uma experiência de etnografia crítica: raça, gênero e sexualidade


na periferia do Rio de Janeiro. Sociedade e Cultura, v. 6, n. 1, p. 71-84,
jan‑jun. 2003.

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Tomando caminhos kahumães e
boreioyos ao fazer antropologia
Soraya Fleischer
Departamento de Antropologia
Universidade de Brasília

Kahumãe é o caminho principal. É a picada mais aberta e


oficial feita pelos Yanomami em meio à mata até seus roçados,
hortas e pomares. Há também os boreioyos, as pequenas trilhas,
os discretos e quase imperceptíveis caminhos traçados por uma
ou por outra pessoa dentro da floresta. São os itinerários feitos de
modo personalizado, ligando idiossincrática e sentimentalmente
plantas, árvores e marcos territoriais. São pouco visíveis, nem
sempre compartilhados coletivamente. Mas tanto o kahumãe
quanto os diversos boreioyos levam às terras cultivadas e coletadas
pelos moradores, vizinhos e parentes da Watoriki, uma das aldeias
dos quase 40 mil yanomamis que vivem nas terras localizadas na
fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Vamos conhecendo esses
moradores pela trajetória intelectual e subjetiva da geógrafa e
antropóloga Júlia Verdum. Sua monografia de graduação, agora
transformada em livro, vai sendo apresentada pelos seus próprios
caminhos kahumães e também pelos boreioyos que traçou.

27
Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia

Começo este texto de apresentação do livro pelos caminhos


kahumães. Depois de passar um mês em Boa Vista (RR)
conhecendo a literatura, realizando entrevistas, produzindo mapas
e conseguindo consentimentos, Júlia passou outro mês em intensa
convivência com os yanomamis de Watoriki. No início desta
obra, ela nos apresenta esse povo caçador, coletor e agricultor.
Percorre e dialoga com as principais referências bibliográficas
clássicas e também contemporâneas, da antropologia e da
geografia, para delinear características gerais das línguas (e
sotaques locais), da demografia, da topografia e da mobilidade dos
yanomamis. Júlia nos lembra que os Yanomami tendem ao que a
antropóloga Alcida Rita Ramos chamou de “dispersão territorial”,
realizando microdeslocamentos (ao buscar novos locais de caça,
coleta e roçados), macrodeslocamentos (ao deixar áreas esgotadas
ou minadas de conflitos), migração (ao expandir seu território) e até
certo vaguear (o que foram obrigados a fazer diante de epidemias,
invasões e violências de todo tipo). Júlia, por sua vez, acrescenta
uma quinta forma de transitar pelo mundo, um macromovimento
pendular, em que, mais recentemente, os Yanomami vão e
voltam de aldeias vizinhas ou mesmo da capital Boa Vista por
conta de suas agendas de trabalho, burocracia e cuidado com a
saúde. Ao oferecer uma contribuição conceitual, Júlia apresenta
um quadro menos dual entre mobilidade e sedentarismo. Mostra-
nos vividamente como, em suas próprias palavras, esse é um povo
que caminha.

Em seguida, Júlia descreve a yano a, casa coletiva que fica


no centro da aldeia Watoriki, onde todas as redes e fogueiras
são abrigadas. Ali é também onde se dão atividades de trabalho,
cozimento, cuidado, lazer e descanso. A autora apresenta,
ainda, os espaços que partem da yano, onde os parentes se
encontram, as crianças brincam, as aulas acontecem, as notícias
circulam, os xamãs e seus espíritos auxiliares operam. Casa,
terreiros, rádio, escola e locais rituais vão compondo o que Júlia

28
chama de espaço-mundo, todos os territórios significativos para
os yanomamis, criados e recriados pelas ações, ideias e projetos
que sucessivamente ali vão tomando parte. Aos poucos, ela passa
da casa yano, a comunal, e também as casas individuais para
os círculos mais amplos ao redor da aldeia. É da yano que parte
o principal caminho kahumãe e os eventuais boreioyos, todos
somando na criação do espaço-mundo.

Por fim, conhecemos o manejo do mundo. Aqui, trechos dos


diários de campo são centrais para descrever como Júlia conheceu,
participou e paulatinamente também cultivou as plantas e a
floresta com os yanomamis. Havia roçados que, a cada época,
eram abertos, mantidos, fechados e reiniciados. Ao caminhar
todo dia até esses roçados, ou deles voltar, muita coisa acontecia.
Vislumbramos Júlia e seus anfitriões alcançando frutas, comendo
e deixando sementes pelo caminho; açaí, caranguejos ou outros
alimentos sendo encontrados e estocados para o jantar; horas
passadas limpando trechos, colhendo tubérculos ou leguminosas,
replantando mudas para os meses seguintes; plantas de cura
sendo identificadas, catalogadas mentalmente, ensinadas aos mais
jovens; brincadeiras, cantoria e histórias sendo compartilhadas
pelo trajeto; crianças trelando e usando as ferramentas; adultos
exibindo formas de fazer e cultivar sem explicações explícitas;
pesquisadora labutando para acompanhar todas essas trocas
e invenções acontecendo. Júlia nos explica que o “roçado não é o
único local manejado”, e vou aprendendo com ela que o roçado,
por sua vez, também maneja e cria cotidianamente os horticultores
adultos e mirins.

As casas, os caminhos, os locais coletivos, a floresta são


todos espaços que formam a urihi a, essa ideia central para os
Yanomami. Muito diferente de um espaço inerte, contínuo ou
estático, a urihi a é considerada uma entidade viva, “um todo
que vai sendo transformado pelos yanomamis”. A floresta, como

29
Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia

“espaço vivido e palco das relações entre humanos e não humanos,


torna[-se] um espaço transformado e criado”. As três partes
do livro vão adensando os sentidos que compõem a urihi a, essa
terra-floresta, expressão hifenizada para transmitir como vínculos,
histórias, usos e defesas do território yanomami se hibridizam a
todo momento. Ao hifenizar a expressão, Júlia está ao mesmo
tempo amalgamando e explodindo as tradicionais fronteiras entre
lápis e papel, enxada e terra, sujeito e objeto, cultura e natureza,
vivido e contado.

Revendo todas essas fronteiras, Júlia conheceu os principais


kahumães, mas, sobretudo, traçou seus próprios caminhos
boreioyos. O livro foi escrito por uma graduanda em geografia,
que depois o revisou como mestranda em antropologia. Ele
nos mostra que é possível produzir pesquisa de qualidade
na graduação e publicar belos livros no mestrado – duas
tarefas incomuns entre os discentes vivenciando essas fases.
A autora nos convida a pensar em tantas outras possibilidades e
oportunidades para o que convencionalmente se percebe como
uma “etapa de formação”. A criação científica já pode acontecer
com força nesses momentos.

Júlia não se restringe à palavra escrita, tão canonizada como


a linguagem acadêmica. Ela traz um colorido conjunto de outros
materiais, como mapas, fotografias, desenhos e croquis. Em
alguma medida, diversifica e compartilha a autoria do livro, já que
Madalena Yanomami e Edinho Yanomami são desenhistas, Denise
Yanomami é cartógrafa, Bruce Albert coleta e traduz depoimentos,
Ricardo Verdum e Morzaniel Yanomami são fotógrafos que
contribuíram para compor a obra. A iconografia, portanto, é marca
constitutiva deste trabalho. Os desenhos abrem e introduzem
as partes. Os mapas, em todos os capítulos, maiores, menores e
até desdobráveis, fornecem panoramas. Os croquis resumem as
informações, ajudando a focar nosso olhar. As fotografias, por

30
outro lado, adensam as paisagens, agregando detalhes insuspeitos.
Percebo essas imagens como lâminas que vão sendo colocadas
de modo delicado sobre a realidade etnografada, nos ajudando a
construir um entendimento progressivo, cuidadoso e estético da
relação dos yanomamis com seu(s) espaço(s).

Este livro é um convite para conhecer a perspectiva


etnoecológica dos Yanomami ao construir e ser construídos
por sua urihi a, para seguir por essa geografia do mundo vivido.
É também um convite para que os Yanomami conheçam mais
um retrato sobre sua realidade, na forma de uma devolução
de dados e de novas oportunidades de diálogo. Aqui, ao mesmo
tempo que o livro contribui para que se conheça um pouco mais
o olhar yanomami sobre o mundo, a autora reforça seu laço com
esse povo, anunciando publicamente seu desejo de continuar
comprometida com a convivência e a troca de dádivas. Seu
lugar como pesquisadora, autora e amiga vai sendo desenvolvido,
como picadas abertas por dentro de florestas densas e povoadas
por tantas outras pessoas, espíritos, bichos, plantas e histórias.

Insufladas com o exemplo e a autoconfiança dessa jovem


pesquisadora, outras jovens pesquisadoras poderão levar adiante
seus projetos de parceria, pesquisa e publicação. E é isso que vejo
de mais delicado e precioso no livro: ao apostar em escrever e,
mais importante, publicar este livro, Júlia está levando a sério a
experiência, com toda a força e o risco que isso pode envolver, seja
pela abertura ao desconhecido e ao perigo, seja por unir sentimento
e pensamento, seja por expor seus processos de aprendizado, seja
por permitir que o que nos passa, toca ou transforma, como ela
diz, possa também constituir os processos de pesquisa, escrita e
comunhão com as outras pessoas e suas naturezas. A autora nos
revela os passos de sua primeira pesquisa, por vezes inseguros
e titubeantes, por vezes ousados e poéticos. Mas aposta, a todo
tempo, em atentar para sua subjetividade e, sobretudo, para os

31
Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia

encontros intersubjetivos que teve a sorte de estabelecer com os


yanomamis como forma de realizar experimentos antropológicos
e existenciais na prática.

Júlia assumiu um empreendimento duplo, o de conhecer os


Yanomami e o de se conhecer como pesquisadora. É a prática de
pesquisa, miúda e cotidiana, que a captura. É essa descoberta
de que geografia e antropologia se fazem aos poucos, entre idas
e vindas, entre encontros e desencontros, entre o pensar e o
repensar. É desses ou, talvez, nesses entres que a proximidade
e a compreensão podem se intensificar. Ao entender que os
Yanomami são um povo que caminha, Júlia também topou o belo
desafio de andar, ver e fazer por entre kahumães conhecidos e,
mais importante, inventando e compartilhando conosco seus
próprios e inovadores boreioyos.

32
Introdução

Já tinha decidido não falar muito dessa vez, não pulverizar a


energia, mantê-la comigo, mas quando ficou confirmado que
eu iria não aguentei. Esqueci o último aprendizado e joguei a
energia no ambiente. Depois da euforia, fiquei nervosa. Meu
peito vazio da energia que eu tinha jorrado pra fora e a emoção
confluíram em lágrimas. Chorei enquanto caminhava para casa.

O dia amanheceu chuvoso e frio. Até entrar no avião, ainda


estava de casaco. Ontem pedi para o Davi avisar os xapiripës
que eu estou chegando. Pedir para que me protejam.

Deu-se início à viagem; e eu não sei o que me espera.

(anotações do diário de campo)

33
Introdução

Este livro é uma versão revisada da minha monografia


de conclusão de curso, apresentada em 2013 ao Departamento de
Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Trata-
se de uma reflexão-relato baseada em pesquisa documental e
leituras de livros e artigos e, principalmente, na vivência de um
mês que tive junto aos Yanomami de Watoriki,1 comunidade
que conta hoje com aproximadamente 195 pessoas. A aldeia
de Watoriki está localizada no extremo nordeste do estado do
Amazonas, entre as bacias dos rios Alto Catrimani (formador
do Rio Branco) e Demini (o último grande afluente da margem
esquerda do Rio Negro), no início das planícies ao longo da borda
sul da cordilheira Parima, que define a fronteira entre Brasil e
Venezuela (Mapa 1). Me proponho aqui a pensar sobre essa
experiência, articulando as observações feitas em campo, fruto
do contato direto entre corpo e mundo, com discussões próprias
da geografia em diálogo com a antropologia.

Relatar minha experiência de campo e a subjetividade


dessa vivência é uma tentativa de entender o próprio processo da
pesquisa. A relação sujeito–objeto, ou pesquisadora–pesquisada,
sempre me pareceu ter um quê de violenta, sem no entanto eu
saber como fugir dela. Tento aqui compreender um pouco desse
processo, tendo nas mãos uma experiência que me transborda.

Se falar da subjetividade se configura como mecanismo


de entender o processo, é também uma forma de explicitar que
quem fala tem carne e osso, e sente. Ainda por cima, é mulher.
Trata-se, assim, de uma opção metodológica que me distancia do
olhar científico, neutro e masculino. Não a priori, mas por opção.
Não sempre. Os anos passados dentro do ambiente acadêmico se
aproveitam de um momento desavisado.
1
Adotei a seguinte padronização: maiúscula e singular, “os Yanomami”, quando se
trata do povo em geral; minúscula e variando singular ou plural quando se trata
de substantivo ou adjetivo (“Joseca é um yanomami”, “Suhuma e Guiomar são
yanomamis”, “os povos yanomamis”).

34
Cheguei ao campo com uma foto na mochila. Entre 1986
e 1991, meus pais trabalharam em um projeto de assistência à
saúde na terra yanomami coordenado pela Comissão pela Criação
do Parque Yanomami, a CCPY, e eu os acompanhei nas viagens
que fizeram à Terra Indígena Yanomami. Na foto, eu, de pesimak
(tanga usada pelas mulheres, geralmente feita de algodão), e mais
três meninos yanomamis posávamos para o retrato no centro da
casa coletiva. Eu tinha entre 3 e 4 anos e meus coleguinhas, com
exceção de um, que certamente tinha mais, aparentavam ter a
mesma idade.

Foto 1 — Júlia no Demini

Foto: Ricardo Verdum, 1991

A pista de pouso funciona em um pequeno trecho do que foi


um dia a Perimetral Norte, hoje em grande parte já coberta pela
floresta. Junto à pista, há um posto de saúde, o ponto de cultura
e a sede da Hunai (Funai, a Fundação Nacional do Índio). Ao
chegar, me deparei com o posto de saúde cheio, principalmente
de mulheres e crianças: era dia de vacina. Sentei-me entre elas e,
enquanto as observava, com suas miçangas coloridas cruzadas no
peito e bebês gorduchos presos aos seios, era também observada

35
Introdução

por elas. Me pediram para ver a foto e eu, me apontando nela, disse
kami ya, oxe tëhë (“esta sou eu, quando era pequena”). Verificaram
a semelhança.

Chegar não foi fácil. Apesar de ter nas mãos a foto que
comprovava qualquer que fosse a aproximação, eu me sentia, e de
fato era, completamente napë (estrangeira, não yanomami).

Como nos lembra Werther Holzer (1998), nossa experiência


no mundo está calcada em grande parte nas relações que travamos
no espaço com tudo que nos rodeia; sob esse aspecto, a geografia é
essencial para compreender o ser. Além desse movimento proposto
por Holzer, da geografia para o ser, penso que outro é possível e
complementar: compreender o ser é importante para compreender
a geografia. A proposta deste livro é perceber o espaço, seus usos,
manejos e transformações como expressão humana.

Foram trinta dias compartilhados na Terra Indígena


Yanomami, nos quais tive a oportunidade de acompanhar minhas
anfitriãs e anfitriões em algumas de suas atividades cotidianas —
idas ao roçado, saídas para coleta de alimentos, pescas e visitas a
outras malocas —, percorrendo seus caminhos e sendo apresentada
pouco a pouco ao seu espaço. Uma experiência com imenso grau
de complexidade e alteridade que agora me esforço para traduzir
em palavras.

A visita à Terra Yanomami foi precedida de 28 dias em Boa


Vista (Roraima), quando estive em contato com pesquisadores,
integrantes da Hutukara Associação Yanomami e do Instituto
Socioambiental e pessoas que há muitos anos se dedicam à causa
yanomami. Essa vivência me permitiu ampliar minha visão
a respeito do contexto político indígena e, particularmente,
yanomami em Roraima. Ali fiz entrevistas, reuni mapas, dediquei-
me à revisão de literatura e conversei com alguns homens e

36
mulheres yanomamis de passagem pela cidade. Esse tempo foi
também necessário para viabilizar meu transporte aéreo até
a aldeia e a formalização do convite que recebi para visitá-los.
O consentimento formal foi obtido na coordenação da HAY,
representada por Davi Kopenawa Yanomami, liderança tradicional
e morador de Watoriki.

Mapa 1 — O território yanomami

37
Introdução

Cheguei a Watoriki com o objetivo de observar de que


forma os watoriki theri pës ocupam seu território, com ênfase nas
atividades de horticultura. Queria compreender que associações
(técnicas, simbólico-religiosas ou mitológicas) eles estabelecem
ao escolher os locais a serem cultivados, ao definir de que
modo proceder os plantios, as espécies a utilizar, e que espécies
associar. Queria saber, ainda, se é considerada como orientação a
movimentação do Sol e da Lua ou outros fatores.

Os Yanomami realizam o manejo de um ecossistema


notoriamente delicado, possível porque esse grupo vem
acumulando, transmitindo e testando seus conhecimentos e
práticas há centenas de anos, em um processo de íntima interação
e compreensão do seu entorno. Esse sistema de manejo do espaço
foi construído dentro de uma forma própria de compreender e
ocupar o mundo; tentar entendê-lo separado das outras dimensões
da vida cotidiana resultaria, sem dúvida, em conclusões limitadas.

Logo percebi que trinta dias não seria tempo suficiente


para conhecer essas práticas em tamanha profundidade. Decidi,
portanto, vivenciar tudo com olhos, ouvidos e coração abertos.
Eduardo Marandola Jr. (2005) nos lembra que não ter muitas ideias
a priori é importante para não se fechar ao pensamento e deixar,
dessa maneira, de perceber o que é sensível a partir da experiência.
Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 24) nos conta que experiência, em
espanhol, é aquilo que nos pasa; em francês, é ce que nous arrive;
em português e inglês, soa como “aquilo que nos acontece, nos
sucede”, ou happens to us. A experiência não é, portanto, o que se
passa, o que acontece ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca, nos formando e nos transformando. Para
isso, é necessária uma disponibilidade fundamental, uma abertura
essencial e um gesto de interrupção — um gesto “quase impossível
nos tempos que correm”:

38
[…] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos
e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,
escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço (Bondía, 2002, p. 24).

Segundo Yi-Fu Tuan (1983), experienciar é aprender, atuar


sobre o dado e criar a partir dele. O dado, porém, não pode ser
conhecido em sua essência; o que pode ser conhecido é uma
realidade que é um constructo da experiência, uma criação de
sentimento e pensamento. Uma vez que não se pode antecipar o
resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto,
até uma meta que se conhece de antemão, mas uma abertura para
o desconhecido, para o que não se pode antecipar, nem “pré-ver”,
nem “pré-dizer”. Experienciar é ainda vencer os perigos, visto
que, para experienciar no sentido ativo, é preciso aventurar-se no
desconhecido e experimentar o novo e o incerto (Bondía, 2002).

Algumas reflexões que eu trouxe para esta pesquisa já


vinham sendo nutridas em ambientes coletivos, como o grupo de
estudos em geografia descolonial Epistemologias do Sul e o grupo
de pesquisa do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e
Territorialidades (LEMTO), ambos do Departamento de Geografia
da UFF, onde discussões enriquecedoras foram compartilhadas;
o Mutirão de Agricultura Ecológica (MAE), grupo e projeto de
extensão também dessa universidade, do qual participei durante
grande parte da graduação e onde muitas sementes foram
plantadas e regadas; e ainda conversas com pesquisadores e colegas
da geografia e de outras áreas. Esses encontros, transdisciplinares,
indisciplinares e indisciplinados, aconteciam na universidade e
fora dela.

39
Introdução

Já em Boa Vista, a essas reflexões foram acrescidas novas,


surgidas na experiência e nas conversas. Mas foi nos dias passados
em Watoriki e no compartilhar das atividades com os watoriki
theri pës que pude vivenciar uma fração de seu espaço-mundo.
As páginas que seguem são o resultado desta vivência.

Este livro está dividido em quatro capítulos. No primeiro,


“Meu pensamento em movimento e seus caminhos”, busco
dialogar com os conceitos e as ideias que me ajudaram a construir
um ponto de partida e a contextualizá-lo. Essas ideias e os
caminhos empíricos percorridos estão intimamente relacionados,
em um processo contínuo de assimilação–ação–transformação–
assimilação.

No segundo, que chamei de “Um povo que caminha”, além


de apresentar características gerais dos Yanomami, como divisões
linguísticas, formas de organização e histórico da ocupação,
relaciono o processo de expansão geodemográfica yanomami
e descida para as chamadas terras baixas com a incorporação
de novos conhecimentos sobre a floresta. Foi no caminhar (em
micro e macrodeslocamentos) que esses conhecimentos foram
sendo adquiridos e incorporados pelos Yanomami, num processo
de aprendizado, experimentação e transmissão, enriquecendo a
memória coletiva do grupo. À medida que entravam em contato
com novas espécies, diferentes devido às mudanças de altitude,
por exemplo, os Yanomami precisavam se adaptar a elas. Lanço
mão de uma breve caracterização geomorfológica e da vegetação,
que ajuda a compreender essa complexa dinâmica.

O terceiro capítulo, “Os habitantes da Montanha do Vento”,


é dedicado a Watoriki. Aqui, retomo o processo da expansão
geográfica, porém com foco nos deslocamentos e na história
deste grupo. Conceitos como micro e macrodeslocamentos são
evocados e articulados à discussão de territorialidade, bem como

40
modelos utilizados por pesquisadores para compreender formas de
ocupação e representação geográfica e sistemas de uso da floresta.
Trilhas e caminhos percorridos são imagens importantes. Também
é feita a descrição de Watoriki, da organização da maloca e dos
núcleos familiares, dos espaços, públicos e privados, identificáveis,
da distribuição das habitações e outras pequenas construções
(escola, casa da radiofonia etc.) e das espécies frutíferas plantadas
em volta da maloca. Além desse espaço-mundo, que é percorrido,
habitado e humanizado, sobreposto a ele e compartilhando o
mesmo substrato, um mundo mágico é acessível apenas aos
xamãs xapiri, treinados para transitar por essas dimensões
espaçotemporais.

Já o quarto capítulo, “O manejo do mundo: espaço vivido,


espaço criado”, está focado no sistema de manejo yanomami, um
sistema dinâmico e complexo. Partindo de uma discussão sobre
os espaços ocupados com os cultivos, sua preparação, seu plantio
e seus cuidados, chega-se à compreensão de que esse manejo dos
roçados está inserido em um sistema mais amplo, onde a floresta
como um todo vai sendo manejada. Seja na dinâmica de abertura,
cultivo, abandono e regeneração dos roçados, seja no próprio ato
de caminhar e transformar a paisagem, os múltiplos usos dados à
floresta, espaço vivido e palco das relações entre humanos e não
humanos, tornam-na um espaço criado e transformado. Neste
percurso, alguns mitos sobre a agricultura e questões sobre a
transmissão do conhecimento também são apresentados.

Ao longo do texto, alguns mapas e imagens que considerei


importantes ou interessantes foram acrescentados para facilitar a
visualização e localização.

41
Meu pensamento em movimento
e seus caminhos

Apresento aqui os autores e as contribuições teórico-


conceituais que adotei como referência na construção da minha
problemática e no desenvolvimento da minha pesquisa. Ressalto
que nem todos os conceitos abordados aqui aparecerão de forma
explícita ao longo do texto. Não são por isso menos importantes.
Busco resumir um percurso: a construção de um pensamento. Ao
escolher um conceito, uma abordagem, estamos optando também
por um caminho e por um olhar, contextualizando o ponto de onde
partimos e de onde falamos. Não se trata de uma escolha aleatória:
os conceitos, formados pela realidade e para sua interpretação, são
também formadores desta.

43
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

Boaventura de Sousa Santos et al. (2004) dizem que o


conhecimento científico atual impõe uma única cosmovisão como
interpretação possível da realidade. Tal cosmovisão é imposta
como explicação global do mundo, globalizando um localismo e
anulando a possibilidade da complementariedade entre saberes:
a multiplicidade de mundos é reduzida ao mundo terreno, e a
multiplicidade de tempos é reduzida ao tempo linear.

Uma característica fundamental da concepção ocidental


de racionalidade seria o fato de, por um lado, contrair o presente
e, por outro, expandir o futuro. Com isso, o que se considera
contemporâneo é uma parte extremamente reduzida do
simultâneo: o olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma
enxada não consegue ver nela senão o camponês pré-moderno.
Nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de
quem estabelece o tempo que determina a contemporaneidade.
Santos et al. (2004) propõem uma trajetória inversa: expandir o
presente e contrair o futuro, numa tentativa de evitar o gigantesco
desperdício da experiência que sofremos hoje.

Como será visto nos próximos capítulos, a perspectiva


agroecológica se constituiu numa referência estratégica ao
trabalho aqui desenvolvido, na pesquisa e na escrita etnográfica.
Esta perspectiva demanda mudanças radicais na maneira como
olhamos para a relação entre seres humanos e os chamados
elementos e serviços da natureza, ao mesmo tempo que postula
modos alternativos de produzir, circular, transformar e consumir
(Toledo; Barrera-Bassols, 2008). Outra referência é a etnoecologia,
que, segundo Paul Little (2002a), focaliza sua atenção investigativa
nos conhecimentos ambientais, nas estruturas produtivas, nas
formas e frequências de mobilidade, na cosmologia e nos ritos
religiosos que orientam o uso de conhecimentos e tecnologias.

44
Segundo Victor Toledo e Narciso Barrera-Bassols, o ser
humano foi capaz de colonizar o planeta e expandir sua presença
nele graças a sua capacidade de

[…] reconhecer e explorar os elementos e processos do mundo


natural […]. Essa habilidade tem sido possível pela permanência de
uma memória, individual e coletiva, que se estendeu pelas diferentes
configurações societárias que formaram a espécie humana. […] Com o
advento da modernidade, […] identificada pela velocidade vertiginosa
das mudanças técnicas, cognitivas, informáticas, sociais e culturais
que impulsiona a racionalidade econômica baseada na acumulação,
centralização e concentração da riqueza, a era moderna (consumista,
industrial e tecnocrática [e, eu acrescentaria, midiática]) tem se
convertido em uma época cativa do presente, dominada pela amnésia,
pela incapacidade de recordar tanto os processos históricos imediatos
como aqueles de médio e longo prazo.
Essa falha nodal responde a uma ilusão alimentada por uma espécie de
ideologia do “progresso”, “desenvolvimento” e “modernização”, que
é intolerante a toda forma pré-moderna (e, em sentido estrito, pré-
industrial) […] (2008, p. 15-16, tradução minha).

É raro que a modernidade, ao menos a que hoje se expande


pelos rincões do planeta, tolere outra tradição que não seja a sua.
Em consequência, as formas modernas de uso dos recursos arrasam
com todas as formas tradicionais de manejo da natureza e os
conhecimentos relacionados. Trata-se de um conflito nodal entre
as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produzir.

Diante da crise social e ecológica do mundo contemporâneo,


torna-se essencial identificar e reconhecer essa memória biocultural
da espécie humana. Isso permitiria adquirir uma perspectiva
histórica ampliada, desvelar os limites epistemológicos, técnicos
e econômicos da modernidade e visualizar soluções de escala
civilizatória para os problemas atuais (Toledo; Barrera-Bassols, 2008).

45
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

O padrão civilizatório antropocêntrico, monocultural


e patriarcal de crescimento sem fim atravessa uma crise. Se
por um lado a humanidade precisa incorporar a diversidade
e multiplicidade de culturas, formas de conhecer, pensar e
viver, como alternativa para essa crise civilizatória, por outro,
paradoxalmente, povos e culturas indígenas e campesinas de
todo o planeta estão sendo ameaçados pelo avanço da lógica
do processo de acumulação por expropriação (Lander, 2013).
Resta-nos a questão colocada por Edgard Lander: “hoje, a questão
não é se o capitalismo poderá sobreviver a essa crise terminal.
Se em pouco tempo não conseguimos frear essa maquinaria
de destruição sistemática, o que está em jogo é a sobrevivência da
humanidade diante do colapso final do capitalismo” (2013, p. 28,
tradução minha).

Ao descrever a cosmologia e o modo de vida dos Achuar,


povo indígena que tem seu território parte no Equador e parte
no Peru, Philippe Descola (2000) afirma que o bosque — como
lugar vivido, longe de ser reduzível ao lugar prosaico provedor
de comida — constitui o palco de uma sociabilidade sutil onde,
dia a dia, se relacionam seres que só a diversidade de aparências
e defeitos de linguagem distingue da realidade humana. Trata‑se
de um mundo onde a fronteira entre sujeito e objeto é porosa,
e onde os vegetais e animais possuem subjetividade.

Uma compreensão de mundo muito semelhante nos é


apresentada por Bruce Albert e Willian Milliken (2009), que
verificaram que a noção de Urihi a dos Yanomami, a terra-
floresta, se refere a uma entidade viva, inserida numa complexa
dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não
humanos (animais, plantas e outros), estando distante da ideia de
um mero espaço inerte de exploração econômica. Na cosmologia
yanomami, como contam Bruce Albert e Davi Kopenawa (2003),
não existe a natureza como domínio de existentes definido pela

46
sua exterioridade e oposição especular à sociedade humana,
pois humanos e não humanos estão agrupados num único
coletivo. Dessa forma, ao dualismo natureza (tornada “meio
ambiente”) e cultura, contrapõe-se a concepção de uma totalidade
cosmológica sociomorfa na qual humanos e não humanos, visíveis
(animais) ou não (espíritos, mortos), são dotados de faculdades e
subjetividades de natureza idêntica, mantendo entre si relações
sociais de comunicação, troca, agressão ou sedução, estando
ontologicamente associados e distribuídos numa mesma economia
de metamorfoses.

Conceito central neste trabalho, a Urihi a significa, na


cosmologia yanomami, a floresta e seu chão. Significa também
território, ipa urihi (minha terra) ou, em nossas palavras, “a terra
yanomami”. É a mata que Omama deu para os Yanomami viverem
de geração em geração.1 É o próprio mundo, a grande terra-floresta,
que abriga os animais, avatares dos antepassados míticos, e onde
dançam e brincam os espíritos xapiripës.2

Davi Kopenawa, em depoimento recolhido e traduzido por


Bruce Albert, conta muito, e do jeito yanomami, sobre a Urihi a:

os brancos pensam que a floresta foi posta sobre o solo sem qualquer
razão de ser, como se estivesse morta. Isso não é verdade. Ela só é
silenciosa porque os espíritos xapiripë detêm os entes maléficos e a
raiva dos seres da tempestade. Se a floresta fosse morta, as árvores
não teriam folhas brilhantes. Tampouco se veria água na terra.
As árvores da floresta são belas porque estão vivas, só morrem
quando são cortadas e ressecam. É assim. Nossa floresta é viva, e se os
brancos nos fizerem desaparecer para desmatá-la e morar em nosso
lugar, ficarão pobres e acabarão sofrendo de fome e sede.

1
Omama é o demiurgo da mitologia yanomami, criador da humanidade atual e de
suas regras sociais.
2
Os xapiripës, imagens (utupë) dos seres primordiais, são os espíritos auxiliares dos
xamãs yanomamis.

47
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

As folhas e as flores das árvores caem e acumulam-se no chão.


É o que dá cheiro e fertilidade à floresta. Esse perfume desaparece
quando a terra se torna seca demais, e os riachos se retraem nas
suas profundezas. É o que acontece quando se corta e se queima as
grandes árvores, como as castanheiras, as sumaúmas e os jatobás.
São elas que atraem a chuva. Só tem água na terra quando a floresta
está com boa saúde. Quando ela está nua, desprotegida, Mothokari,
o ente solar, queima os igarapés e os rios. Ele os seca com sua língua
de fogo e engole seus peixes. E, quando seus pés se aproximam do
chão da floresta, ele endurece e fica ardendo. Nada mais pode brotar
nele. Não tem mais raízes e sementes na umidade do solo. As águas
fogem para muito longe. Então, o vento que as seguia e nos refrescava
como um abano se esconde também. Um calor escaldante paira em
todos os lugares. As folhas e flores que ainda estão no chão ressecam e
encolhem. Todas as minhocas da terra morrem. O perfume da floresta
queima e desaparece. Nada mais cresce. A fertilidade da floresta vai
para outras terras.
A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo.
O dos seres humanos é muito menor: vivemos e morremos depressa.
Se não a desmatarmos, a floresta não morrerá. Ela não se decompõe.
É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem. Quando estamos
muito doentes, em estado de espectro, ele também ajuda na nossa
cura. Vocês não veem, mas a floresta respira. Olhem para ela: suas
árvores estão bem vivas e suas folhas brilham. Se ela não tivesse
sopro, as árvores estariam secas. Esse sopro vem do fundo da terra,
lá onde repousa seu frescor. Ele também está em suas águas. É assim.
A floresta está viva. Não a ouvimos quando ela se queixa. Porém, ela
sofre como os humanos. Ela sente dor quando está queimada e geme
quando suas árvores caem. É por isso que não queremos deixar que ela
seja desmatada. Queremos que nossos filhos e netos possam crescer
achando nela seus elementos. Nossos antepassados foram cuidadosos
com ela, por isso está até hoje em boa saúde. Desmatamos muito
pouco para abrir nossas roças. Plantamos bananeiras, mandioca,
cana-de-açúcar, inhame e taioba. Depois, deixamos a floresta crescer
de novo. As roças antigas são logo tomadas por uma vegetação
emaranhada, e as árvores brotam novamente. Quando se planta no
mesmo lugar, nada cresce direito. A terra perde seu cheiro de floresta.

48
Fica ressecada demais. Assim, as plantas ficam quentes e não se
desenvolvem. Por isso, nossos antigos se deslocavam na floresta, de
uma roça para outra, quando suas plantações enfraqueciam e a caça
diminuía perto de suas casas.
A floresta não está morta, como pensam os brancos. Mas, se eles a
destruírem, ela morrerá, com certeza. Seu sopro vital fugirá para longe.
A terra se tornará árida e só haverá poeira. As águas desaparecerão.
As árvores ficarão secas. As pedras da montanha irão se aquecer e se
partir. Quando o sopro da imagem da terra está presente, a floresta
é bela, a chuva cai e o vento sopra. Ela vive com os xapiripë, foram
criados juntos. É assim. A floresta não é bela por acaso. Mas os
brancos parecem pensar que é. Eles se enganam. O que vocês chamam
“natureza” é, em nossa língua, Urihi a, a terra-floresta e sua imagem
utupë vista pelos xamãs: urihinari a. É porque existe essa imagem
que as árvores são vivas. O que chamamos urihinari a é o espírito da
floresta, das suas árvores, huutihiripë; das suas folhas, yaa hanaripë;
e dos seus cipós, thothoxiripë. Esses espíritos são muito numerosos e
brincam no seu chão. Nós o chamamos também urihi a, “natureza”,
da mesma maneira que os espíritos animais yaroripë e mesmo os
das abelhas, das tartarugas e dos caracóis. O poder de fertilidade da
floresta, nërope a, também é “natureza” para nós: ele foi criado com
a floresta, é a sua riqueza. Os xapiripë possuem a “natureza”, o vento
e a chuva. Quando os filhos e as sobrinhas dos entes do vento brincam
na floresta, a brisa circula e não faz calor. Quando os seres da chuva
descem sobre as colinas e as montanhas da floresta, a chuva cai.
A terra se refresca e as doenças vão embora. É assim. Se os xapiripë
ficam no peito do céu e não são chamados pelos xamãs, a floresta se
aquece. As epidemias e os seres maléficos se aproximam. Os humanos,
então, não param de ficar doentes. Os xapiripë se movem sem parar
dentro da floresta. Ela pertence a eles e isso os deixa felizes. Eles
estão presentes em toda parte. Os filhos e as filhas dos espíritos das
águas yawarioma pë brincam ali sem parar. Os brancos não sabem
nada disso. Eles pensam que a floresta é bela, fresca e ventilada
sem nenhum motivo. Para nós, “natureza” é urihi a, a terra-floresta,
é também os espíritos xapiripë que nos foram dados por Omama.
A floresta não existe sem razão. Os xapiripë vivem nela, e Omama quis
que protegêssemos suas moradas (Albert; Milliken, 2009, p. 7-8).

49
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

Para Descola (2000), nosso modo de identificação,


o naturalismo, princípio da cosmologia ocidental, impregna tanto
nosso sentido comum quanto nossa prática científica; estrutura
tanto nossa percepção de outros modos de identificação quanto
nossa epistemologia. Trata-se, no entanto, de mais uma das
expressões e conceitualizações possíveis entre outras: conceitos
como o de natureza são construídos de forma diferente nas culturas
ao longo do mundo, estão inseridos em distintas cosmologias e
geram diferentes formas de relacionamento com ela. Entretanto,
apesar de haver certo reconhecimento da existência desse mosaico
sociocultural, ainda predomina entre nós a crença de que nossa
concepção de natureza, baseada no dualismo entre natureza e
sociedade, é superior e deve ser universalizada.

Claude Lévi-Strauss (1989) estabeleceu uma interessante


distinção entre o que denominou “ciência neolítica” e “ciência
moderna”, considerando-as como duas maneiras de pensamento
científico, função não de etapas do desenvolvimento do espírito
humano, mas de estratégias de conhecimento. Dessa forma,
para compreender de maneira adequada os saberes tradicionais,
é necessário entender a natureza da sabedoria local, que se
baseia em uma complexa inter-relação particular entre crenças,
conhecimentos e práticas (Toledo; Barrera-Bassols, 2009).

Por tudo isso, é possível afirmar que essas cosmologias


nativas complexas se inscrevem como fenômenos sociais totais
da vida indígena. Estão na economia, na política, na religião, e
têm efeitos visíveis no manejo da paisagem e na conservação da
floresta. Por décadas, as estratégias indígenas de uso e manejo
da floresta tropical foram identificadas exclusivamente como
agricultura de coivara, corte e queima ou nômade, e descritas
como um sistema de baixa produtividade. Da mesma forma,
os agricultores e as agricultoras tradicionais dessas regiões
foram considerados destruidores da floresta tropical ou ainda

50
remanescentes de sociedades arcaicas (Ballé; Erickson, 2006).
Uma reinterpretação dos sistemas de corte e queima, com base
nas evidências arqueológicas e etno-históricas das áreas utilizadas
por culturas indígenas, indica antigas manipulações da floresta
tropical (Ballé, 2008; Erickson, 2008). Demonstra, com isso, que
povos indígenas praticam um manejo intensivo da floresta tropical
e de outros ecossistemas, incluindo a manipulação não apenas
de várias espécies e outros elementos naturais, mas também de
processos ecológicos subjacentes (Toledo et al., 2003). Dessa forma,
outra noção que ajuda na compreensão da discussão aqui proposta
é a de múltiplos usos da floresta.

Uma vez que os grupos sociais possuem formas particulares


de se relacionar com o seu território e que seus saberes ambientais,
ideologias e identidades, coletivamente criados e historicamente
situados, são utilizados no estabelecimento e na manutenção
do seu território, me pareceu adequado utilizar o conceito de
cosmografia, como definido por Little (2002b). Este inclui regimes
de propriedade, vínculos afetivos que os grupos mantêm com
seu território, a história da sua ocupação guardada na memória
coletiva, o uso social que dão ao território e as formas de defesa
dele. Nessa perspectiva, a cosmografia pode ser entendida como
a junção da cosmologia e da geografia, estando visões culturais de
mundo, cosmos, inscritas, grafia, no espaço (Lima, 2013).

Como aponta Isnard (1982), o espaço vivido é um campo


de representações simbólicas que traduzem, em sinais visíveis,
não só o projeto vital de toda a sociedade subsistir, proteger‑se
e sobreviver, mas também suas aspirações, suas crenças e o
mais íntimo de sua cultura. Da mesma forma, uma sociedade só
se torna concreta em seu espaço: o espaço que ela produz e que
só é inteligível na sociedade. Não há, portanto, por que falar de
espaço e sociedade como se fossem coisas separadas, que
reuniríamos a posteriori.

51
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

O espaço vivido nos remete à ideia de lugar — um lugar


vivenciado e experimentado, que induz a análise geográfica a uma
outra dimensão, a da existência, pois refere-se a um tratamento
geográfico do mundo vivido. De um lado, o lugar se singulariza
a partir de visões subjetivas vinculadas a percepções emotivas, a
exemplo do sentimento topofílico a que se refere Tuan (1975). De
outro, o lugar pode ser lido à luz do conceito de geograficidade,
termo que, segundo Edward Relph (1979), encerra todas as
respostas e experiências que temos de ambientes onde vivemos,
antes de analisarmos e atribuirmos conceitos a essas experiências.
Isso implica compreender o lugar por meio de nossas necessidades
existenciais: localização, posição, mobilidade, interação com os
objetos e/ou com as pessoas. Identifica-se essa perspectiva com a
nossa corporeidade e, a partir dela, o nosso estar no mundo — no
caso, a partir do lugar como espaço de existência e coexistência.

Segundo Gilles Sautter (1979), entre homens e mulheres e


sua paisagem existe uma conivência secreta da qual o discurso
racional científico, dissecador e classificador, não pode dar
conta. A paisagem é ao mesmo tempo prolongamento e reflexo
de uma sociedade, ponto de partida para pensar na diferença
com outras paisagens e outras sociedades. O discurso geográfico
atual, voluntariamente limitado, exprime apenas uma parte da
realidade: existem outros níveis de relações entre mulheres,
homens e seu solo.

Por fim, como nos lembra Paul Claval (2011), o espaço


explorado pelos geógrafos não é um dado natural; além de
transformado pela ação humana, é um espaço apreendido por
meio de categorias imaginadas e carregadas de sentidos pelos
grupos que o habitam ou o frequentam. A própria paisagem é
repleta de símbolos. Alguns foram concebidos e instaurados como
tais, outros adquiriram valor simbólico apenas indiretamente. Isso
exige um olhar por meio do qual o geógrafo deve buscar pôr-se no
lugar das pessoas que observa, ver o mundo como elas o percebem,

52
apreciar os horizontes que se abrem aos seus olhos. Nesse sentido,
este livro almeja ser mais do que uma descrição objetivista do
espaço ocupado, manejado e transformado pelos Yanomami
da comunidade de Watoriki. O esforço feito na sua realização foi
orientado pela ideia de que outras geografias são possíveis.

O trabalho que originou este livro foi desenvolvido em três


fases: 1) levantamento bibliográfico e sistematização inicial da
discussão; 2) trabalho de campo; e 3) sistematização da vivência e
reflexão sobre os resultados, bem como processamento dos dados
de campo e das entrevistas.

Durante a pesquisa bibliográfica, levantei dados sobre os


Yanomami, mais especificamente os de Watoriki. Por exemplo,
dados sociodemográficos; ocupação do território; atividades
de horticultura, caça e coleta; relações intercomunitárias;
pressões externas que interferem na mobilidade, limitando-a ou
direcionando-a; e aspectos cosmológicos da cultura yanomami.
Os dados referentes ao estado de Roraima foram retirados
principalmente de publicações e da página digital do Instituto
Socioambiental.

Já o trabalho de campo teve dois momentos: um em Boa Vista,


onde permaneci 28 dias e tive a oportunidade de conversar com
Davi Kopenawa e outros yanomamis que estavam na Hutukara
Associação Yanomami, com pesquisadores e indigenistas de
passagem pela cidade e também com Carlo Zaquinni, que há mais
de 50 anos se dedica à causa yanomami. O segundo momento foi
em Watoriki, com duração de um mês. Lá participei do dia a dia
da aldeia, acompanhando as mulheres no trabalho na roça, na
busca de lenha e na coleta de alimentos na floresta; me dedicando
ao aprendizado de diversos tópicos e, sobretudo, à tarefa mais
difícil e que mais pareceu estimular os watoriki theri pës,
o aprendizado da língua yanomae. Apesar de ter aprendido muita
coisa e sair de lá entendendo bastante do que os yanomamis

53
Meu pensamento em movimento e seus caminhos

falavam, ainda não conseguia me expressar com desenvoltura,


tendo dificuldade em dialogar com as anciãs e os anciões da aldeia
da forma como gostaria.

Em Watoriki fui acolhida pela Felícia, o que significou,


numa casa coletiva, que minha rede foi posta próximo à fogueira
mantida por ela. Esta fogueira nos aquecia durante a noite, e nela
cozinhávamos nossas refeições. Levei uma quantidade suficiente
de comida napë (não yanomami, estrangeiro), que cozinhava e
oferecia para ela e suas filhas. Do mesmo modo, ela me oferecia
uma quantidade da comida que cozinhava. Percebi que aceitar a
comida por ela oferecida significava que estava realmente disposta
a conhecer os Yanomami e seu modo de vida: comeria do que eles
comem. Era uma relação de troca, e foi este o código criado entre
nós duas e mantido durante toda a minha estadia. Notei que comer
a comida yanomami era importante, pois com frequência me
perguntavam o que eu já tinha experimentado. Comia com prazer,
a comida yanomami é uma delícia.

Pela manhã, quando não ia ao roçado, ficava junto ao fogo


de Felícia e algumas vezes também me sentava junto ao de Davi
Kopenawa e sua família. Às tardes eu ia sentar junto ao fogo
de Suhuma e, enquanto ela preparava o açaí, eu, ela e mais um
grupo de mulheres conversávamos. As conversas iam por temas
variados: como é menstruar, como é a gravidez e o parir, como
é trabalhar, como ensinam, como aprenderam, como plantam,
quando colhem, como curam… Elas iam conversando e me
contavam enquanto riam das minhas dúvidas.

Aos poucos, fui entendendo o ritmo do dia e sua rotina;


aprendi os caminhos pela mata, o lugar das roças, a busca por ara
amuko (espécie de cogumelo) ou por frutas, os locais de pesca,
o nome das plantas. Aprendi também a ficar horas em frente
ao rádio: todos passam por ali um momento do dia, pois é pelo
rádio que chegam e são transmitidas as notícias do cotidiano das

54
malocas.3 Foi acompanhando as mulheres e os homens no seu
trabalho na roça que vi como faziam. Para alguns, perguntava
de forma mais sistematizada, outras vezes apenas observava e
ia aprendendo aos poucos com o ver-fazer. Foram estas inserções
nas atividades e na vida cotidiana que delimitaram os dados aqui
apresentados. Mais do que de entrevistas estruturadas, é das
conversas casuais e do compartilhar de atividades na aldeia e na
roça que resultou esta obra.

Também fiz um esforço de registrar cartograficamente


elementos como a localização das aldeias, dos roçados, das
habitações coletivas e de unidades familiares, os trajetos e a coleta.
Alguns mapas foram elaborados pelos yanomamis e outros por
mim, a partir das descrições que eles faziam. Nestes, não houve a
rigidez das regras cartográficas, tratando-se mais de registros que
facilitassem a visualização — a minha e a de quem lê este trabalho.
Também busquei mapas e registros cartográficos nos artigos e
nas publicações que visitei durante a pesquisa bibliográfica; disso
resultou a confecção de alguns mapas aqui apresentados, o que
só foi possível com a gentil ajuda de Bia Lima e Françoise-Michel
Le Tourneau.

Para escrever, além de retornar às fontes bibliográficas, fiz


várias visitas ao meu diário de campo, importante ferramenta de
registros, do qual transcrevo alguns trechos neste livro.
3
Parte da vulnerabilidade da Terra Indígena Yanomami está relacionada com
a ausência de uma estrutura de comunicação que permita que as denúncias
sobre as invasões e ameaças sejam comunicadas com agilidade à sede da Hutukara
e às autoridades competentes. Para começar a solucionar essa questão, em 2005
a Associação Yanomami desenvolveu um projeto piloto para a formação de uma
pequena rede de rádios instalada em 12 regiões da Terra Indígena Yanomami.
A rede mostrou-se eficiente na circulação de informações fundamentais para
o êxito das ações da associação, e em oito anos o número de regiões associadas
passou para 32. Em 2012, a Hutukara iniciou uma campanha para a expansão de sua
rede visando consolidar sua ação junto às comunidades e defender seu território.
A campanha pode ser vista em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
socioambientais/colabore-com-a-expansao-da-radiofonia-na-terra-indigena-
yanomami>. Acesso em: 10 maio 2017.

55
Povo que caminha
As trilhas yanomami são o testemunho mais pedestre, por
assim dizer, das movimentações desse povo que parece
ter sido feito para andar, locomover-se, espraiar-se.
(Ramos, 1995, p. 3)

Os Yanomami constituem uma sociedade de caçadores,


coletores e agricultores do norte da Amazônia. Estão
subdivididos em quatro subgrupos falantes de quatro línguas
intimamente relacionadas: Yanõmami, Yanomae (ou Yanomama),
Sanumá e Ninam (ou Yanam). Por se diferenciarem genética
e linguisticamente dos povos ameríndios vizinhos, como os
Ye’kuana, da família linguística Caribe, acredita-se que sejam
descendentes de um antigo grupo ameríndio que há cerca de
um milênio se estabeleceu na Serra Parima, permanecendo
relativamente isolado nesta região. A partir daí, teria iniciado,

57
Um povo que caminha

há mais ou menos 700 anos, o processo de diferenciação que deu


origem às quatro línguas hoje existentes e seus dialetos (Albert,
1997; Holmes, 1995; Kopenawa; Albert, 2015; Migliazza, 1982).

A maioria dos Yanõmami e dos Sanumá estão na Venezuela;


os Yanomae estão no Brasil, com exceção de umas poucas
comunidades localizadas na Venezuela, nas cabeceiras do Orinoco,
bem próximo à fronteira com o Brasil. Já os Ninam se distribuem
quase em partes iguais em ambos os países.

Dentro de cada subgrupo existem pequenas variações,


fenômeno absolutamente normal, existente em qualquer
comunidade linguística. Basta pensar em alguém que atravesse o
Brasil do norte ao sul: esta pessoa facilmente notará as variações,
tanto culturais como na forma de falar; muitas vezes, essas variações
ocorrem dentro de um mesmo estado, de uma cidade para outra,
fruto de processos migratórios ou de interações diferenciadas
com culturas externas à comunidade sociocultural em questão. Na
zona ocupada pelo grupo Yanõmami, por exemplo, Jacques Lizot
aponta pelo menos três (e possivelmente quatro) formas de falar,
que se influenciam mutuamente: “isso significa que existem zonas
intermédias entre cada fala, que cada fala de determinada
zona não é absolutamente homogênea, e que a situação linguística
não é estática” (1996, p.  13, tradução minha). Já Henri Ramirez
(1993) aponta que a língua yanomae, com um número de falantes
superior a 17.000, pode ser dividida em 7 dialetos e um número
ainda maior de subdialetos. As diferenças lexicais e gramaticais
entre esses dialetos nunca impedem a intercompreensão,
passando-se de um ao outro com certa continuidade. Durante
o processo de pesquisa, em conversa com alguns yanomamis
integrantes da Hutukara, me foi dito que, entre os Yanomami, se
reconhece um conjunto cultural composto por nove línguas.1
1
A mesma afirmação encontra-se na página da Hutukara na internet.
Disponível em: <http://www.hutukara.org/index.php/hay/historia-dos-
yanomami>. Acesso em: 17 out. 2013.

58
Mapa 2 — Divisão linguística do povo yanomami

Fonte: adaptado de Le Tourneau (2010)

A população yanomami total, incluindo Brasil e Venezuela,


foi estimada em 2011 em 35.000 pessoas, pertencentes
a comunidades locais autônomas política e economicamente.2 Estas
comunidades mantêm relações de troca matrimonial, cerimonial
2
No Brasil, em 2011, a população yanomami era estimada pela Secretaria Especial
de Saúde Indígena em 19.338 pessoas, repartidas em 228 comunidades. Em
2016, a população yanomami no Brasil foi estimada em 23.512 pessoas (Instituto
Socioambiental, 2016).

59
Um povo que caminha

e econômica com os grupos locais circunvizinhos, estabelecendo


alianças multicomunitárias que se superpõem parcialmente e
formam uma rede sociopolítica ampla e complexa que liga as
aldeias yanomamis de uma ponta a outra do território indígena.
No centro deste território encontra-se a Serra Parima, maciço
montanhoso de 1.500 metros de altitude e divisor de águas entre
o alto Orinoco (Venezuela) e o alto Parima (Roraima). Conforme a
tradição oral yanomami, a Serra Parima é seu centro de dispersão,
constituindo ainda hoje o local de maior concentração demográfica
yanomami (Albert; Milliken, 2009).

Com aproximadamente 9,6 milhões de hectares, a


demarcação das terras yanomamis no Brasil foi oficializada em
novembro de 1991 e homologada por um decreto presidencial
em 19923 como Terra Indígena Yanomami, considerada pela
comunidade científica região prioritária em termos de proteção
da biodiversidade na Amazônia brasileira (Capobianco, 2001).
Na Venezuela, os Yanomami vivem nos 8,2 milhões de hectares
da Reserva de la Biosfera del Alto Orinoco-Casiquiare, criada em
5 de junho de 1991 pelo Decreto n° 1.635 e subscrita no Programa
Hombre Biosfera (MAB) da Unesco em 1993. As duas áreas juntas
conformam o maior território indígena do mundo.

Diferentemente da maior parte das sociedades ameríndias


que entraram em contato com a sociedade ocidental, durante os
séculos XIX e XX os Yanomami encontravam-se em um período
de expansão demográfica e territorial. Acredita-se que a expansão

3
O decreto de 1992 afirma, em seu artigo 1º, que “fica homologada, para os efeitos
do art. 231 da Constituição Federal, a demarcação administrativa promovida pela
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, da Terra Indígena Yanomami, localizada
nos Municípios de Boa Vista, Alto Alegre, Mucajaí e Caracaraí, Estado de Roraima
e Santa Izabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira, Estado do
Amazonas, caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena,
com superfície de 9.664.975,48 ha (nove milhões, seiscentos e sessenta e quatro
mil, novecentos e setenta e cinco hectares e quarenta e oito ares) e perímetro de
3.370 km (três mil, trezentos e setenta quilômetros)” (Brasil, 1992).

60
geográfica yanomami teve início no século XIX (Le Tourneau,
2010) e foi possibilitada pela expansão demográfica, ocasionada
pela aquisição de novas plantas de cultivo e de ferramentas
metálicas, ou fragmentos metálicos, por meio de trocas e guerras
com grupos indígenas vizinhos, Caribes e Arawak (Lizot, 1984).
Estes dois grupos mantiveram contato direto com a fronteira
branca durante todo o século XIX e acabaram dizimados por,
principalmente, epidemias devidas ao contato. O esvaziamento
progressivo desses territórios acabou favorecendo a expansão
geográfica dos Yanomami, que, a partir da Serra Parima, foram se
espalhando em direção às “terras baixas” dos anos 1800 até pós-
1950.4 Na sobreposição de mapas que segue, é possível observar
tanto o relevo como a expansão geográfica e a “descida” dos
Yanomami em direção a essas terras.

A Serra Parima pertence a um extenso conjunto geológico


muito antigo,5 o Maciço Guianense, que se alonga desde o Atlântico
até a planície do Orinoco, numa espécie de dorsal leste–oeste de
centenas de quilômetros, desaparecendo pouco a pouco a Oeste,
a Sul e a Norte sob os sedimentos terciários e quaternários das
planícies do Orinoco, amazônica e litorânea do Caribe. Este relevo
revela várias configurações geomorfológicas, testemunhas da
história deste cráton.

Os conjuntos mais elevados, como a Serra da Neblina,


são compostos de sedimentos do grupo Roraima6 que foram
aplainados em superfície de erosão: com uma forma que lembra
“grandes mesas” e conhecidos como Tepuis, estes são os únicos
exemplos no Brasil desses platôs compactos marcados por
bordas abruptas. Algumas cadeias menos elevadas, como a Serra
Uafandara, a Serra Urutanin, a Serra Tepequém e a Serra Araça,
4
Para mais detalhes sobre a expansão geodemográfica dos Yanomami, ver Albert
(1985, p. 29-42), Kopenawa e Albert (2015, p. 557-563) e Verdum (1996).
5
Pré-cambriano inferior (2.500–1.800 milhões de anos).
6
Aproximadamente pré-cambriano médio (1.805 milhões de anos).

61
Um povo que caminha

são compostas dos mesmos sedimentos, mas seu aspecto tabular


é por vezes mascarado pela erosão, que as dissecou em séries de
topos achatados separados por cânions.

Mapa 3 — Altitude + expansão yanomami

Fonte: adaptado de Le Tourneau (2010)

O restante do relevo, entre 600m e 1.500m, forma a fronteira


e é composto de sedimentos bastante antigos, contemporâneos da
formação do cráton guianense, várias vezes aplainados, falhados

62
e metamorfizados, compreendendo intrusões de materiais
vulcânicos e graníticos. O conjunto apresenta hoje cumes acirrados
e vales profundos e estreitos, que formam a Serra Tapirapecó,
a Serra Gurupira, a Serra Urucuzeiro (a menos elevada do
conjunto), a Serra Parima e a Serra Pacaraima. Ao leste da Serra
Parima se estende uma larga região de colinas dissecadas que
incluem colinas entre 400m e 600m de altitude, compostas da
mesma formação. Ao leste e ao sul estão as planícies sedimentares
dos rios Negro e Branco, compostas principalmente de sedimentos
terciários e quaternários.

As espécies que compõem a floresta sofrem influência


direta da altitude. Em razão de suas consideráveis variações (entre
100m e 1.600m acima do nível do mar), a área de floresta tropical
ocupada pelos Yanomami abriga uma importante variedade
florística, incluindo floras típicas de topo de montanha e de
afloramentos rochosos, de savanas e florestas de altitude (na Serra
Parima), de florestas tropicais submontanas e de florestas densas
de terras baixas inundáveis (Huber et al., 1984).

À medida que foram se deslocando das terras altas da Serra


Parima em direção às terras baixas da bacia do Orinoco (na
Venezuela) e dos rios Negro e Branco (no Brasil), em um movimento
de crescimento demográfico, fissões residenciais e expansão
geográfica, os Yanomami foram entrando em contato com novas
espécies e precisando ajustar sua seleção das espécies vegetais em
função da disponibilidade, envolvendo-se num processo contínuo
de adaptação às condições ecológicas encontradas ao longo de
suas migrações. Além disso, transformações significativas no
uso dos elementos vegetais e na cultura material yanomami
são fruto do contato interétnico e da grande diversificação dos
saberes botânicos adquiridos pelos numerosos grupos locais
que se espalharam nesta vasta região durante séculos (Albert;
Milliken, 2009). Neste processo de “caminhar”, os Yanomami

63
Um povo que caminha

foram incrementando seu acervo de conhecimentos sobre a


floresta, as espécies e seus manejos e construindo sua memória,
tanto individual quanto coletiva, ao mesmo tempo que a floresta
foi sendo modificada, manejada, manipulada.

Segundo Toledo e Barrera-Bassols,

a expansão geográfica da espécie humana foi possível graças a sua


capacidade de se adaptar às particularidades de cada habitat do
planeta e, sobretudo, ao reconhecimento e apropriação adequada
da diversidade biológica contida em cada paisagem. Portanto, […],
a diversificação dos seres humanos se fundamentou na diversificação
biológica, agrícola e paisagística (2008, p. 25, tradução minha).

Existem, ainda de acordo com os autores,

estreitos vínculos entre vários processos de diversificação […]


biológica, genética, linguística, cognitiva, agrícola e paisagística.
Em conjunto, elas conformam o complexo biológico-cultural originado
historicamente que é produto dos milhares de anos de interação das
culturas com seus ambientes naturais (Toledo; Barrera-Bassols, 2008,
p. 25, tradução minha).

Praticamente não há fragmento do planeta que não tenha


sido habitado, modificado ou manipulado ao longo da história.
Ainda que pareçam virgens, muitas das últimas regiões silvestres
mais remotas ou isoladas estão ou estiveram habitadas por
grupos humanos por milênios (Toledo; Barrera-Bassols, 2008).
Nesse sentido, a natureza amazônica poderia ser considerada
muito pouco natural; ao contrário, é o produto cultural de uma
manipulação muito antiga da fauna e da flora (Descola, 1997). Tal
ação pode ser observada na abundância de solos antropogênicos e
sua associação com florestas de palmeiras ou de árvores frutíferas
silvestres (Balée, 1993), que sugerem que a distribuição dos
tipos de florestas e de vegetação na região resulta, em parte, de
milênios de ocupação.

64
Toledo e Barrera-Bassols (2008) consideram ainda os
conhecimentos sobre a natureza como uma dimensão notável das
expressões que emanam de uma cultura, pois refletem a acuidade
e riqueza de observações sobre o entorno realizadas, mantidas,
transmitidas e aperfeiçoadas através de longos períodos, sem as
quais a sobrevivência dos grupos humanos não seria possível.
Trata-se de saberes transmitidos oralmente de geração a geração,
em especial aqueles conhecimentos imprescindíveis e cruciais,
por meio dos quais a espécie humana foi moldando suas relações
com a natureza.

Devido a sua organização socioespacial, os Yanomami


ficaram conhecidos como um povo nômade, segundo um senso
comum que toma qualquer tipo de mobilidade espacial como sinal
de nomadismo. Como nota Alcida Ramos (1995, 2008), o que
ocorre é que, altamente sábios e conhecedores da dinâmica da
floresta, os Yanomami desenvolveram um sistema social, político
e econômico que privilegia a dispersão territorial, uma vez que a
concentração demográfica levaria inevitavelmente ao esgotamento
dos recursos.

Ao longo dos séculos, os Yanomami têm praticado dois


tipos de deslocamento, de magnitude e motivações diferentes.
O primeiro, caracterizado como microdeslocamento, está associado
à busca de locais de caça e coleta e à abertura de roçados: com o
tempo, o acesso às fontes de proteína rareia e a distância entre a
aldeia e as roças fica tão grande que se torna mais vantajoso trocar
a aldeia de lugar. O segundo, macrodeslocamento, pode ser causado
pelo esgotamento acumulado de uma área após anos de uso, ou
ainda pela eclosão de epidemias ou de conflitos entre comunidades.

Ramos (1995) faz referência a mais dois processos de


mobilidade: um terceiro movimento, que ela propõe chamar
de migratório e que está relacionado à expansão territorial

65
Um povo que caminha

yanomami; e um quarto, imposto pela construção da Perimetral


Norte nos anos 1970 e pela invasão às terras yanomamis por
milhares de garimpeiros no final dos anos 1980 (mais precisamente
em agosto de 1987), que trouxeram as piores epidemias de malária
que a região já viu. Inúmeras comunidades foram devastadas, e os
sobreviventes foram obrigados a vaguear de aldeia em aldeia em
busca de um novo lar.

Durante minha pesquisa foi possível observar, ainda, um


quinto movimento, que proponho chamar de macromovimento
pendular. Este é caracterizado pelo deslocamento dos yanomamis
para aldeias distantes, ou para Boa Vista, por um curto período,
após o qual retornam para a aldeia de origem. Este movimento de
ida e volta, por isso pendular, é facilitado pela presença dos aviões
do serviço de saúde que periodicamente visitam os polos-base do
Distrito Sanitário Yanomami.

Apesar de alguns estudos apontarem para uma crescente


diminuição da mobilidade das comunidades yanomamis nas
últimas décadas, em função, principalmente, do estabelecimento
de não indígenas nas aldeias, como postos de saúde, postos da
Funai, pelotões do exército e missões religiosas, Maurice Tomioka
Nilsson (2010) afirma que não houve alteração significativa no
padrão tradicional de mobilidade deste povo nos últimos 20 anos,
havendo inclusive o aumento dos deslocamentos de algumas
comunidades. Os padrões de deslocamento identificados por
Nilsson, que estudou a mobilidade yanomami e os efeitos na
floresta por meio da análise de imagens de satélite, revelaram
considerável diversidade de movimentos, que podem estar
associados a estratégias de aproveitamento dos recursos naturais.
Isto nos leva a concluir que a movimentação yanomami é mais
elaborada do que a simples dualidade mobilidade/sedentarismo.

66
Durante minhas investigações, verifiquei estar havendo
uma descentralização da população em Watoriki, com a abertura
de roças e construção de malocas nas proximidades da maloca
coletiva. Em conversas com yanomamis integrantes da Hutukara,
soube que este processo está ocorrendo em outras localidades
do território yanomami. Isto demonstra que o movimento de
sedentarização, resultante principalmente do contato, não é um
processo de mão única.

67
Os habitantes da Montanha do Vento
Watoriki theri pë,
os habitantes (theri pë) da Montanha do Vento (Watoriki)

Os Yanomami de Watoriki constituem um dos cerca de


260 grupos locais yanomamis atualmente existentes no Brasil.
Habitam um yano a (casa coletiva) ao pé da Serra Demini desde o
início de 1993, quando abandonaram o antigo yano a, localizado a
aproximadamente 2 km a 3 km de distância do atual. Lá ficaram
as cinzas de dois importantes xamãs, cujos nomes não devem
mais ser pronunciados. Este deslocamento dos Watoriki theri pë é
considerado o último da longa série de macro e micromovimentos
desde a cabeceira do Rio Parima em direção às terras baixas até
alcançar a planície da bacia do Rio Demini.

69
Os habitantes da Montanha do Vento

Segundo Albert e Milliken (1997), originários da região do


Alto Rio Mucajaí, onde viviam nas primeiras décadas do século
XX, os mais velhos watoriki theri pës e seus pais ocupavam,
no fim dos anos 1960, a região do Alto Rio Lobo d’Almada
(afluente do Rio Catrimani). A convite de uma missão evangélica
próxima,1 migraram, no início da década de 1970, para a bacia
do Rio Mapulaú, afluente do Rio Demini. Após uma epidemia de
doença infecciosa não identificada, em 1973, breves contatos com
o subposto da Funai do Rio Mapulaú, entre 1974 e 1976, e uma
segunda epidemia em 1976, desta vez de sarampo, o grupo acabou,
por meio de micromovimentos, gradativamente se aproximando do
Posto Demini, aberto pela Funai no ano seguinte — implantado
na base da Serra do Demini, na altura do Km 211 da rodovia
Perimetral Norte (BR–210). Por fim, alcançou a localização onde
permaneceu até 1993 e, em seguida, sua localização atual.

Watoriki está situada a menos de 200 metros de altitude e


ladeada por uma série de colinas íngremes e picos rochosos que
se elevam a mais de 700m, a Serra do Demini. Os solos são do tipo
ferroso comum em florestas tropicais (Projeto RADAMBRASIL,
1975), mas mais fino e mais arenoso em locais onde grandes
pedras ou montes cortam a superfície. A região é coberta por
densa floresta tropical, composta principalmente por árvores
de médio porte, ofuscadas por algumas espécies salientes, como
maçaranduba (Manikara huberi), cedro (Catenaeformis cedrelinga),
mafumeira (Pentandra ceiba) e jatobá (Hymenaea parvifolia).
A vegetação é fina, exceto em depressões do solo, onde se
encontram muitas espécies de árvores baixas e cachos de
palmeiras. Nos morros, a vegetação é escassa e menor por causa
de ladeira íngreme, o que, ao longo de alguns picos e cumes, é tão
extremo que a terra se tornou completamente desnudada (Albert;
Milliken, 2009).

1
A ex-Missão Toototobi, da Organização Novas Tribos do Brasil (MNTB).

70
Mapa 4 — Localização do posto do Demini

Fonte: Fundação Nacional de Saúde – Roraima (1994-1995)

Cercada por aproximadamente 30 hectares de roça


(Kopenawa; Albert 2015), Watoriki fica perto de uma seção
abandonada da Rodovia Perimetral Norte, agora já em grande parte
recuperada pela floresta, que foi construída na porção sudeste do
território yanomami em 1973–76, causando a morte de centenas
de yanomamis e desestruturando econômica e socialmente várias
aldeias.2 Um trecho desta estrada, a cerca de 2,5 km de Watoriki,
mais tarde foi transformado em pista de pouso que oferece o único
acesso de fora para a área, via aeronaves monomotores de pequeno
porte desde Boa Vista, a cerca de 280 km. Ao lado da pista de
pouso fica o Posto Demini, hoje um posto de controle da Funai,
um posto de saúde da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e, em
uma mesma construção bimodal, uma pequena farmácia e o ponto
de cultura.
2
Sobre a Perimetral Norte, ver Ramos e Taylor (1979).

71
Os habitantes da Montanha do Vento

Ao mesmo tempo que está numa situação de relativo


isolamento, pois só é acessada por via aérea ou após dias de
caminhada, a comunidade tem uma escola, um posto de saúde e
um ponto de cultura; alguns jovens, de ambos os sexos, estão indo
estudar fora da Terra Indígena, em Boa Vista, Manaus e outras
cidades; e nela residem as principais lideranças yanomamis que
atuam nacional e internacionalmente na defesa dos direitos do
seu povo. Além disso, a comunidade tem sido local de reuniões e
assembleias yanomamis, com a participação de líderes ameríndios
e outras autoridades e convidados brasileiros e de outros países.

Foto 2 — Maloca de Watoriki, Demini

Foto: Morzaniel Yanomami, 2013

Do posto à grande maloca são aproximadamente trinta


minutos de caminhada. No início, o trajeto é bem marcado entre
o capim, que rapidamente se transforma depois que o poapoa
tharisipee (“pássaro genro do jacaré”) anuncia nossa passagem,
alertando seu sogro de que há gente por ali. Adentramos uma mata
mais fechada, onde a floresta já tratou de retomar o espaço que
um dia foi seu. O caminho vai ficando mais estreito, serpenteia,
a vegetação torna-se mais densa e o ar fica mais fresco. Ao longo

72
deste caminho principal, que os Yanomami chamam de kahumãe,
ramifica-se uma série de pequenas trilhas em ambos os lados: são
os boreioyos. Alguns mais visíveis, outros quase imperceptíveis
ao olhar descuidado, é por eles que os yanomamis caminham,
percorrendo a Urihi a.

Esses caminhos se entrecruzam, subdividem e bifurcam,


ligando roças, acampamentos, malocas, áreas de coleta, igarapés,
regiões de caça e aldeias vizinhas, de longe e de perto, refletindo
a série de atividades, ora individuais, ora coletivas, através das
quais os Yanomami vêm modificando e produzindo seu espaço.
Finas nervuras de terra, eles nascem, vivem e morrem ao sabor do
interesse das pessoas em manter seus vínculos com este ou aquele
lugar, ou, como assinalou Ramos:

se, por um passe de mágica, todas as trilhas já abertas em terras


yanomami aflorassem no solo  e novamente se tornassem visíveis,
teríamos um mapa viário dos mais densos e um retrato fidedigno
de todas as rotas ligando todas as roças, todas as aldeias e todos os
acampamentos sazonais passados e presentes, numa estonteante
profusão de indícios gráficos da eficiência talvez milenar com que os
Yanomami vêm ocupando a região ocidental das Guianas (1995, p. 3).

Os Yanomami possuem uma apurada sensibilidade espacial


e um profundo conhecimento dos ambientes em que vivem. Por
entre a mata, neste emaranhado de trilhas e caminhos estreitos,
caminham com destreza e facilidade. Igarapés e trilhas estão
impregnados de memória e “compõem a trama intricada de uma
topografia historicizada e topológica que contém um universo
de eventos marcantes e relações em fluxo” (Ramos, 1990, p. 29).
Espacialidade e temporalidade fundidas, os lugares carregam uma
história topográfica, e a grande intimidade com os ambientes da
floresta impregna a memória coletiva com relatos históricos e
narrativas míticas que recuam no tempo (Pateo, 2005).

73
Os habitantes da Montanha do Vento

Através desta rede de caminhos, que se espalha por todo


o território e liga lugares conhecidos e nomeados, geossímbolos
prenhes de sentidos, produz-se o espaço e as territorialidades
(Bonnemaison, 2005). Observei que é no caminhar e no dar
sentido que os Yanomami vão grafando seu mundo. Isto me fez
lembrar a leitura da resenha feita por Murielle Nagy (1998) do livro
de Béatrice Collignon (1996) sobre o conhecimento geográfico
dos Inuit. Collignon afirma que os topônimos são importantes
para a integração das pessoas com o seu meio social, que se torna
humanizado, lugar onde a cultura pode florescer. Os nomes dos
lugares são usados principalmente na tradição oral, sendo os
guardiões da memória e os pontos de ancoragem da história.
Aqueles que conhecem esses nomes irão usá-los não para se
orientar, mas para se conectar com o lugar de uma forma familiar.

É na prática que os fragmentos de conhecimento, que são


parte de um conhecimento total, holístico, podem ser observados.
Como não há um discurso formal do conhecimento geográfico, este
parece mais uma construção efêmera e em permanente construção
do que uma estrutura fixa. No entanto, existe em estado latente um
modelo comum que opera quando determinada situação mobiliza
os fragmentos de conhecimento para formar o saber geográfico;
sem um contexto, a matriz se torna uma estrutura vazia.

As crianças são conhecedoras da densa rede de caminhos


nas imediações da casa coletiva, e não foram poucas as vezes que,
para buscar alguma fruta ou cogumelo, percorri na companhia
delas caminhos que, de forma mágica, terminavam em lugares
por mim inimaginados. Certas vezes, fazíamos algum desvio
e de repente saíamos do outro lado. Enquanto caminhávamos,
estávamos sempre comendo: uma frutinha, uma fava, uma
horehorekiki (espécie de flor comestível). Aqueles caminhos eram
percorridos num raio não muito longe do yano a, e de vez em
quando atravessávamos por algum roçado.

74
Pela trilha que parte do posto (kahumae), depois de
aproximadamente meia hora de caminhada, uma sumaúma
(Ceiba pentandra) apresenta a morada coletiva: “Awey, totihi
wamaki kopema” (“que bom que você chegou, seja bem-vindo”).
Os yanomamis de Watoriki, que contam aproximadamente 195
pessoas,3 vivem em um yano a tradicional, uma estrutura anelar
de cerca de 80m de diâmetro que circunda uma praça central.
Nesta casa coletiva, vivem quase todos os watoriki theri pës, cada
família com seu espaço privado bem definido.

A distribuição espacial das unidades familiares (famílias


nucleares) dentro do yano a é determinada por regras de parentesco.
O fogo fica no centro do espaço familiar privado (Albert, 1985;
Lizot, 1988). É próximo a ele que se desenrola a vida familiar
dentro do yano a: aí se preparam as comidas, se desenvolvem as
atividades artesanais, se descansa e se conversa. De suas cinzas se
faz o pee nahe, tabaco enrolado em cinza que os Yanomami usam
nos lábios; e próximo a elas as mulheres permanecem sentadas
durante a menstruação.

Em cima da fogueira, do teto, pendem cordas repletas


de okarahaki (bananas), naxohiki (bijus gigantes) ou utensílios de
trabalho, além de inúmeras cestas de formas e usos variados; as
redes ficam dispostas em forma de triângulo ao redor do fogo.
Entre os fundos da casa e o local onde as redes são amarradas,
espaço de uso essencialmente feminino, são guardadas lenhas,
cestas, comidas, ferramentas, água e utensílios. Assim os
Yanomami organizam seu lar — uma organização nada monótona,
mas ao contrário, multicolorida.

3
Cheguei a este número tendo como base o Censo Populacional do Distrito
Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) de 2012, atualizando-o com os
bebês nascidos há um ano ou menos.

75
Os habitantes da Montanha do Vento

Foto 3 — Vista da maloca de Watoriki

Foto: Júlia Verdum, 2013

O interior da maloca é aberto: uma grande praça central


que se abre ao céu dando as boas-vindas ao sol e tornando a casa
coletiva fresca e mais iluminada. O Hee a, como os yanomamis de
Watoriki chamam esta praça central, é reservado para as atividades
cerimoniais das festas funerárias de aliança intercomunitária
(heahu). Nele se recebem os visitantes, se trocam presentes e se
dança durante as festas. No fim da tarde, é comum as crianças
se reunirem ali para brincar, atirar pequenas flechas e dançar.

Um terceiro espaço fica em frente ao espaço familiar, dando a


volta na praça central. É uma espécie de corredor coberto pelo teto,
mas aberto ao olhar de todos. Por ele os yanomamis circulam e as
crianças pequenas brincam. Também é nele que se desenvolvem
os rituais xapiris, onde os xamãs inalam a yakuana (planta mágica e
meio de acesso ao outro mundo) e cantam, invocando os xapiripës

76
ou espíritos auxiliares e tornando-se, eles próprios, também
xapiris. E, durante as noites e madrugadas, é neste espaço que se
desenrola o hereamuu – discurso proferido pelos homens mais
velhos (pata thë pë) no qual histórias dos antigos são contadas
– e que a comunidade se organiza: caças coletivas são definidas,
decisões são tomadas coletivamente, ou um recém-chegado
compartilha as novidades da aldeia de origem. Muitos foram os
hereamuu que escutei atentamente da rede, tentando entender o
que estava sendo dito.

No dia a dia, estes espaços coletivos e particulares são


percebidos e vividos como nuances que se fundem, alcançando
um preciso valor espacial de surpreendente unicidade. Seu sentido
reside numa concepção espacial compartida e enraizada numa
forma de vida ancestral coletiva, numa integração vida-espaço
alcançada por toda a comunidade em harmonia e fluidez.4

Figura 1 — Croqui da maloca de Watoriki

Fonte: Júlia Verdum, 2012

4
Sobre o uso cultural do espaço da habitação coletiva yanomami, ver Gasparine e
Margolies (2004) e Kopenawa e Albert (2015, p. 566-567).

77
Os habitantes da Montanha do Vento

Do lado de fora, oito casas de formatos variados, a escola,


o rádio e uma casa para reuniões (também chamada de hereamuu)
estão dispostos ao redor do yano a. As oito casas pertencem a
núcleos familiares que, ao se formarem, optaram por viver fora do
yano a, pois este “já estava muito cheio”. Em duas casas, mais de um
núcleo — a mãe e a família de seu filho homem — compartilham o
mesmo espaço.

A clareira em volta da maloca é chamada de cipo a. Nela,


inúmeras árvores frutíferas plantadas pelos yanomamis servem de
brinquedos para as crianças, que agilmente sobem para derrubar
os frutos quando estão maduros. Pupunha, manga, laranja, limão,
diferentes espécies de ingá recheados com massinha branca,
cacau, bacaba, castanha, taperebá, goiaba e espécies locais cujo
nome não sei em português, além de espécies usadas para cura,
crescem ao redor da grande casa coletiva. Quando os watoriki
theri pës decidirem que está no momento de ir para outro lugar,
mais próximo dos novos roçados e das áreas de caça, e a floresta
tomar conta deste local, estas espécies formarão parte da paisagem
florestal, agora mais diversa e enriquecida. Esta provavelmente
se tornará uma área de atração de caça, fonte de alimentos, e será
visitada periodicamente pelos yanomamis de Watoriki, que terão
contribuído para a diversificação local.

Em julho, período das chuvas, há abundância de açaí (Euterpe


oleracea) e, durante minha estadia, fazíamos vinho de açaí quase
diariamente. Os caroços eram depositados do lado de fora, em
pequenos acumulados já formados, da mesma forma que os de
pupunha (Bactris gasipae) e buriti (Mauritia flexuosa) em outras
épocas do ano: em alguns lugares, pezinhos de açaí brotavam da
terra. Os de pupunha não nasciam. Falaram-me que a pupunha
não nasce se jogada a semente na terra; é preciso plantá-la, o que
os yanomamis de Watoriki costumam fazer em volta da maloca e
também nos roçados.

78
É do cipo a que partem as trilhas principais: duas para
o igarapé que nasce na serra e passa ao norte da maloca, bem
próximo dela, e outras três que, mais à frente, se ramificam em
outras várias, sendo os caminhos para os roçados e para as outras
aldeias. Os roçados estão a distâncias variadas, espalhados pela
Urihi a.

Até recentemente, o espaço explorado por uma comunidade


yanomami era descrito com base no modelo de uma série de
círculos concêntricos ao redor da aldeia, com contornos mais
ou menos delimitados (Albert, 1997; Colchester, 1982; Fuentes,
1980; Sponsel, 1981). Esquematicamente, estava subdividido da
seguinte forma:

1. uma área próxima à habitação coletiva, que comporta


as hortas, os espaços de pequena coleta e caça do dia
a dia, bem como de pescas individuais ou, no verão,
coletivas com timbó;5

2. uma área mais distante (5 km a 10 km), destinada a


caçadas individuais (rama huu) e à coleta familiar do
dia a dia; e

3. uma área distante cerca de 10 km a 20 km, destinada às


expedições de caças coletivas (henimu) que precedem
os rituais funerários e grandes encontros cerimoniais
intercomunitários heahu, além de longas expedições
plurifamiliares de caça e coleta (waima huu), que
ocorrem durante os períodos de entressafra. Neste
“terceiro círculo” estariam também as roças novas e
antigas, onde os yanomamis acampam esporadicamente
e a caça é abundante (Albert; Gomez, 1997).

5
Timbó (Clibadium sylvestre) é uma espécie utilizada nas pescas coletivas e
cultivada nas roças e nos arredores do yano a.

79
Os habitantes da Montanha do Vento

Como alternativa a este modelo, Bruce Albert e Françoise


Michel Le Tourneau (2007) apresentam uma nova abordagem
para o sistema yanomami de uso da floresta, baseado nos
conhecimentos e no uso coletivo da comunidade de uma rede
de lugares nomeados e caminhos florestais que se entrecruzam,
formando uma estrutura reticular que se espalha da casa coletiva
para fora. O espaço florestal abrangido por este sistema, definido
como kami yamaki urihipë, “a nossa floresta”, está estruturado
por três redes principais: rede de locais próximos de caça, pesca
e eventuais coletas; rede de viagens e de caça diária; e rede de
expedições coletivas de caça e coleta de longa distância. Este
sistema de rotas, que chegam a cobrir quase vinte quilômetros se
medidas em linha reta,6 é produto dos movimentos individuais
e coletivos ao longo do tempo, em decorrência das variações ​​da
paisagem e da desigual distribuição de recursos naturais, que são
bastante irregulares em forma.

O método utilizado por Albert e Le Tourneau demonstra


que a estruturação cultural do modelo espacial yanomami
fundamenta-se, principalmente, em redes de trajetórias (linhas)
e locais (pontos), contrapondo-se ao modelo dominante, que
privilegiava a representação baseada em zonas de exploração
(superfícies fechadas), muito semelhante ao proposto por Von
Thunen e aplicável, sobretudo, às atividades agrícolas. Esta
complexa rede de caminhos e lugares de uso coletivo (campos
de caça e coleta, habitação antiga, roçados, bosques de árvores
frutíferas) está intimamente ligada com a intrincada ramificação
da rede hidrográfica (composta de rios e córregos nomeados),
o que constitui outro principal referencial espacial.

6
Note-se que os autores identificaram apenas os caminhos referentes às atividades
econômicas, não explorando outras esferas da vida yanomami, como visitas a
outras aldeias, por exemplo, o que ampliaria a distância coberta por esse sistema
de rotas.

80
Figura 2 — Modelo reticular de uso da floresta em Watoriki

Fonte: adaptado de Albert e Le Tourneau (2007)

Este modelo de territorialidade yanomami se aproxima


bastante do modelo proposto por Bonnemaison (2002) para os
Vanuatu da Melanésia. Segundo este autor, a territorialidade deve
ser buscada nas relações sociais e culturais que um grupo mantém
com a trama de lugares e itinerários de seu território. Antes de ser
uma fronteira, o território é uma rede de lugares hierarquizados
conectados por caminhos, englobando simultaneamente aquilo
que é fixação e aquilo que é mobilidade.

Além deste espaço-mundo que é percorrido, habitado


e humanizado, sobreposto a ele e compartilhando o mesmo
substrato, um mundo mágico se revela e é acessível apenas aos
xamãs xapiri, treinados na travessia entre as duas dimensões

81
Os habitantes da Montanha do Vento

espaçotemporais. Os xapiripës (espíritos auxiliares) estão


presentes no cotidiano: o farfalhar das folhas é produzido por
suas brincadeiras. São, no entanto, invisíveis aos yanomamis não
iniciados, que não aprenderam a usar a yakuana.

Recordo-me das sessões de xapirimu que presenciei no heehã


(espaço público coberto dentro do yano a). Naqueles momentos,
dois mundos ocupavam o mesmo espaço físico, se sobrepunham.
Os xapiripës eram convidados a descer de sua morada para
ajudar o xamã, então tornado um xapiri pela aspiração da
yakuana. Compartilhando o mesmo substrato, os dois mundos se
desenrolavam em dimensões distintas, com o xamã xapiri presente
em ambas. Apenas um destes mundos era acessível visivelmente
para mim, de onde observava os xamãs em sua interlocução com os
xapiripës. Enquanto as sessões se desenrolavam, o yano a, mesmo
que vazio, ficava cheio. Múltiplos espaços habitados o preenchiam.
As sessões de xapiri que presenciei foram sessões de cura, não na
dimensão do corpo, mas dos próprios seres mágicos causadores
da doença.7

7
O propósito deste relato é menos o de descrever com profundidade o processo
xamânico e mais o de evidenciar a existência destas múltiplas dimensões
ocupando o mesmo espaço material. Para mais informações sobre o xamanismo e
o mundo mágico yanomami, ver Albert (1985) e, sobre a geografia xamânica, ver
Taylor (1996).

82
O manejo do mundo:
espaço vivido, espaço criado

Como vimos, e como ficará mais evidente a partir daqui, a


Urihi a dos Yanomami se refere a uma entidade viva, inserida numa
complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos
e não humanos, distante da ideia de um mero espaço inerte
de exploração econômica. A fronteira entre sujeito e objeto é
porosa, e os vegetais e animais possuem subjetividade. O espaço
explorado não é um dado natural: além de transformado pela
ação humana, ele é apreendido por meio de categorias imaginadas
e carregadas de sentidos. Isso inclui vínculos afetivos que os
indivíduos e os grupos mantêm com seu território, as histórias
guardadas na memória coletiva, o uso social que dão ao território e
as formas de defesa dele.

83
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

Os Yanomami, como a maioria dos povos indígenas da


Amazônia, praticam na floresta uma agricultura de corte e
queima. Na agricultura indígena, o ciclo de derrubada, queima,
cultivo, abandono, regeneração e retorno a uma paisagem florestal
é um processo dinâmico (Nilsson, 2010), e a paisagem resultante
forma um amplo mosaico de clareiras e áreas em regeneração.
Como aponta Connell (1978), são justamente estes “distúrbios
intermediários”, que afetam a floresta, o que permite a sua
renovação.

Trata-se de uma prática complexa que envolve a transferência


dos nutrientes estocados na biomassa para o solo, com a derrubada
e a queima das árvores, o aproveitamento destes nutrientes pelas
plantas cultivadas e a recolonização, pela floresta, dos espaços
abertos. Cada roça contém numerosas espécies cultivadas, que
ocupam diferentes níveis de vegetação. Pouco tempo depois
do plantio, uma diversificada cobertura vegetal começa a se
desenvolver, de forma que o solo não fica exposto. O abandono do
roçado, depois de aproximadamente dois a três anos de cultivo,
se justifica pelo aumento da quantidade de trabalho necessário
para limpeza da vegetação secundária e pelas plantas de cultivo
já degeneradas, ou pela distância crescente da parte cultivada da
roça e pelo decréscimo da fertilidade do solo.1

Depois de um ano ou dois de produção, a roça já está engajada


num processo de reconstituição da floresta, e durante vários
anos as roças abandonadas continuam a ser visitadas: nelas ainda
é possível coletar pupunha, taioba, diferentes tipos de banana  e
canas de flecha, além de frutas e matérias-primas (Colchester,
1982; Smole, 1989). Verdadeiras agroflorestas, estas formas de
agricultura contribuem não apenas para a manutenção da paisagem
florestal, mas também para o incremento da sua biodiversidade.

1
Sobre a agricultura yanomami, ver Colchester (1982), Hames (1983), Lizot (1978,
1980) e Smole (1976, 1989).

84
Os watoriki theri pës ocupam a mesma área desde o final da
década de 1970 e, dadas as escolhas políticas e os investimentos
materiais associados à construção, em 1993, do yano a atual,
é improvável que o local seja abandonado em futuro próximo
(Albert; Milliken, 2009). Para lidar com esta situação sedentária,
os yanomamis de Watoriki têm evitado o uso demasiado da
floresta próxima; por causa de irregularidades topográficas
e descontinuidades de solos férteis, são escassas as áreas que
poderiam ser mais adequadas para o estabelecimento de novos
roçados. Durante a minha estadia, enquanto acompanhava
o trabalho nos roçados ou nas conversas, mais ou menos
sistematizadas, pude perceber que muitos yanomamis se
queixavam da distância que era preciso percorrer até os roçados.

Em Watoriki, tem-se optado por limitar o tamanho de novas


clareiras, utilizando parcelas cultivadas o máximo de tempo
possível e devolvendo algumas das florestas secundárias para o
cultivo após um breve período de recuperação — no Demini, a roça
é produtiva por quatro a seis anos, período maior que o de roças de
populações com mobilidade (Nilsson, 2010). Essas novas práticas
vêm tendo um efeito notável sobre a agricultura de Watoriki. Em
estudo realizado em 2003, Albert e Le Tourneau (2007) chegaram
à conclusão de que, depois de mais de dez anos de sedentarismo,
ainda eram ótimas as condições alimentares da comunidade, não
sendo observada erosão ou compactação do solo.

Durante a pesquisa, os yanomamis identificaram algumas


espécies que haviam sido levantadas em 1993 e 1994 por Albert
e Milliken (2009), mas que atualmente não são mais encontradas
nos roçados de Watoriki. Umas foram deixando de ser plantadas
porque os Yanomami “foram esquecendo como se planta”; outras,
quando plantadas, já não nascem nas roças: é o caso do tabaco.

85
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

A origem das plantas cultivadas é tematizada por dois mitos:


o de Koyori, situado no tempo dos primeiros ancestrais animais
(yayori), e o de Tëpërësiki, o ser aquático sogro de Omama, no
tempo das origens da humanidade atual (Wilbert; Simoneau,
1990). Segundo a mitologia yanomami, as roças surgiram com
Koyori. No tempo em que Koyori veio a ser, as pessoas só comiam
frutos da floresta. Foi ele quem pediu as plantas cultivadas ao ser
da fertilidade, Në roperi, e fez crescer milho, bananeiras, mandioca,
taioba e cará.

No primeiro tempo, quando a floresta ainda estava se


transformando, Koyori descobriu nela o valor da fertilidade das
roças e o transmitiu para os Yanomami. Koyori é o verdadeiro
dono da fertilidade da floresta, por isso os Yanomami não
precisam ficar regando as roças, só o valor de fertilidade basta.
Kopenawa e Albert (2015) contam que Koyori trabalhava
sozinho na floresta, o dia todo. Dizia para os outros que estava
derrubando árvores à procura de mel, mas na verdade passava o
tempo todo abrindo uma roça cada vez mais imensa. Como naquele
tempo ainda não existiam plantas cultivadas, Koyori batia o pé no
chão e as bananeiras e os pés de milho começavam a crescer. Sua
sogra, chamada Poomari, tinha um gênio difícil e reclamava muito.
Um dia ela insultou Koyori e, para se vingar, ele pediu que ela fosse
buscar milho cada vez mais longe em sua vasta roça. Ela acabou
se perdendo e se transformando no pássaro poopoma, cujo canto
até hoje pode ser ouvido nas roças.

Em síntese, na mitologia yanomami, Koyori é associado à


fertilidade da terra e à riqueza das roças. É um incansável abridor
de roças, dono de imensas plantações de milho. Koyori é também
o ancestral mitológico (o “pai”) da formiga cortadeira koyo,
grande devastadora de roças de mandioca. Note-se que, nas roças,
o milho é a única planta que essas formigas não atacam (Gourou,
1982, p. 83).

86
Já Omama pescou a filha do ser aquático Tëpërësiki, Thëyoma,
e se casou com ela. Então seu sogro decidiu fazer-lhe uma visita e
ensinar Omama a cultivar plantas de roça. Ele levava um enorme
e pesado saco de palmeiras trançadas cheio de brotos de bananeira,
manivas de mandioca, cará, taioba, batata-doce, cana de açúcar,
sementes de tabaco, mamão e milho. Mas de longe Tëpërësiki fazia
um barulho amedrontador e, com pavor de encontrar o sogro,
Omama se transformou numa peça de metal e se fincou no chão
de sua casa. Seu irmão Yoasi quis imitá-lo, mas se transformou
numa simples cavadeira de madeira de palma. Quando Tëpërësiki
entrou na casa, viu apenas sua filha e perguntou onde estavam
o marido e o cunhado dela. Ela indicou com os lábios a barra de
ferro e o pedaço de madeira. Tëpërësiki então declarou: “vocês vão
plantar as coisas que eu trouxe e multiplicá-las. Quando tiverem
filhos, e os humanos forem muitos, eles poderão se alimentar
delas!” Depois, voltou para sua casa debaixo d’água, e são esses os
alimentos que os Yanomami comem até hoje.

Em Smole (1976) encontrei um trecho sobre alguns


heróis culturais dos Barafiri, grupo yanomami que habita o lado
venezuelano da Serra Parima, em que é citado Omawa, espírito a
quem se atribui quase tudo o que este grupo sabe ou tem. Segundo
Smole, quando Omawa descobre que Rajara, uma serpente gigante
que às vezes se transmuta em uma anciã, tem um jardim secreto
onde crescem bananas e outros cultivos, força-a a ensiná-lo como
cultivar. É desta forma que Omawa pode passar este conhecimento
à humanidade. Do lado brasileiro da Parima, Rajara é um espírito
masculino que habita as águas profundas. Também Lizot (1974)
compila uma série de mitos no livro El hombre de la pantorrilla
preñada. Um deles conta a origem dos bananais, e outro, a origem
do tabaco, ambos citando o monstro da água Rajara.

87
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

Nas roças, é plantada uma grande variedade de espécies,


sendo a maior parte do espaço dedicado ao cultivo de bananeiras e
tubérculos, principalmente mandioca, mas também cará, taioba
e batata-doce, além de plantas de cura e venenos. Várias espécies
frutíferas e algumas plantas de cura também são plantadas na cipo
a, em volta da maloca, e outras tantas foram identificadas ao longo
dos caminhos percorridos.

***

Há uns dias acompanhei Felícia, Salomé e Dariana ao roçado. Entramos


pelo mesmo boreioyo que leva ao roçado da Guiomar, mas depois da
pedra enveredamos para o outro lado. Trabalhamos colhendo mandioca.
Percebi que colhemos mais de uma espécie, mas não sei quais eram.
Também não perguntei na hora, fiquei envergonhada e com a impressão
de que não sabia como desenterrar as mandiocas nem descascá‑las.
Não tenho o mesmo domínio e agilidade com a faca que elas.

(trecho do diário de campo)

Neste dia, trabalhamos no que pareciam ser dois roçados


(hutu kana kupë) contíguos. Eram pequenos e só tinham
mandioca. As mandiocas foram descascadas ali mesmo no roçado
e depositadas no cesto wii a. Os alimentos eram quase sempre
processados no local, o que evitava que se carregassem pesos
desnecessários. Após descascarmos as mandiocas, Salomé separou
algumas estacas para serem cortadas em manivas e replantadas no
dia seguinte. No caminho, em um veio d’água que nos cobria os
tornozelos por causa da chuva, as mandiocas foram lavadas.

Neste processo de pesquisa, as coisas foram sendo


descobertas ao longo do tempo e da vivência. Alguns eventos
só eram compreendidos posteriormente, trazendo novas peças
e iluminando questões passadas e futuras. Anotei no diário
de campo:

88
hoje fui no roçado com a Suhuma e a Madalena. Lá plantamos cana,
depois de limpar com o facão a área. Novos roçados são abertos no
verão quando é verão forte. Primeiro, derrubam-se as árvores maiores
e limpa-se o lugar. Juntam-se os galhos e folhas e bota-se fogo. Em
seguida, inicia-se a limpeza mais fina. As mudas e manivas são
plantadas no início das chuvas. Até lá, muitas plantas já nasceram
e árvores estão começando a rebrotar, então é feita uma “nova
limpeza” com facão e terçado. O que é arrancado é amontoado em
um canto, junto com os da limpeza anterior. Aparentemente não
existe sistemática, é plantado tudo misturado. Os genros trabalham
nas roças de seus sogros. A roça da Madalena é também do Jair e
do Morzaniel. Os roçados são conjuntos, mas separados, cada um
tem o seu espaço, mas para quem olha parece que é um só. O local
onde a terra concentra mais cinza é considerado o melhor para
plantar. A ida ao roçado é diária, às vezes ao novo, às vezes ao
antigo. Normalmente vai-se pela manhã. As crianças vão, mas não
trabalham, se deliciam com cana ou algum mamão maduro. Nas roças
antigas, continuam plantando naxokoko (mandioca); elas também
são chamadas de wãro patarim kana. Fiquei com algumas perguntas
na cabeça: os galhos amontoados no canto são usados para alguma
coisa depois? Continua-se plantando banana no roçado velho?

Esta visita ao roçado da Madalena me fez compreender o que


havia feito alguns dias antes no roçado da Felícia: não se tratava de
dois roçados, e sim de um antigo, já em processo de ser tomado pela
floresta, mas onde ainda eram colhidas e plantadas mandiocas. As
manivas separadas por Salomé seriam, algumas, replantadas ali
mesmo, e as outras, levadas para o novo roçado.

Como outros grupos yanomamis, os Watoriki theri pë


praticam uma agricultura de corte e queima itinerante e, ao que
parece, não têm, em sentido estrito, um ciclo anual completo de
trabalho e plantas de cultivo; depois que o roçado é aberto e limpo,
as espécies vão sendo progressivamente plantadas: as manivas de
mandioca, as bananeiras, a batata-doce, o cará, o mamão, a cana-

89
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

de-açúcar, “tudo misturado”, como repetia a Suhuma enquanto


cobria com terra três caroços de manga que espalhou pelo
roçado. Espécies frutíferas também são plantadas nos roçados,
principalmente pupunha e manga. Praticamente todos os roçados
têm pupunha.

Quando a área aberta já foi cultivada por completo, abre-se


mais uma parcela. Aí também a floresta é derrubada e queimada;
o roçado torna-se maior. Desta forma os roçados vão crescendo
numa direção geralmente constante. As novas plantações avançam
numa espécie de “nariz”, e é nelas que se trabalha; as antigas são
abandonadas progressivamente e vão sendo reocupadas pela
floresta. Este movimento segue por cinco a sete anos, segundo
Lizot (1980), quando o roçado é abandonado por completo e um
novo é aberto em outro local.

Apesar de, ao que parece, qualquer tarefa poder ser feita


em qualquer momento, no período de seca, que vai de novembro
a abril, os galhos pegam fogo mais facilmente, sendo o momento
preferido para a queima. No entanto, durante os meses chuvosos
ocorrem intervalos de estiagem, que são aproveitados para a
abertura de novas roças, da mesma forma que podem ocorrer
chuvas esporádicas durante os meses secos, permitindo o trabalho
agrícola. Durante minha estadia em Watoriki, que se deu na época
das chuvas, José estava abrindo uma nova roça:

hoje pela manhã o José e a Eda me levaram em seu roçado, foram


me mostrar as plantas de cura que a Eda e sua mãe plantaram lá.
[…] O roçado deles é perto e ele está abrindo um novo mais longe.
No que visitamos não tinha flecha, as flechas são retiradas de um
roçado antigo bem próximo dali. Ao lado avistava-se alguns pés
de pupunha, e ele disse que se tratava de um roçado mais antigo
ainda. […] No roçado atual há cinco pés, como ele me mostrou.

90
Trata-se de um sistema dinâmico e complexo. Quando a roça
está no auge produtivo, uma nova já foi derrubada e outra, velha
e já tomada pela mata, ainda fornece banana, pupunha, canas de
flecha e alguns tubérculos. É desta roça velha (hoterim kana) que
são retirados os rebentos de bananeira e as manivas de mandioca
que serão plantadas no novo roçado (toterim kana). Com alguns
meses, as árvores cortadas no processo inicial de abertura da
roça começam a rebrotar. São pirimaaho thotho, hoko si, apia hi,
okara sisi, hotakaa xihi, raxa kiki, maka hi… Os grandes troncos das
árvores derrubadas que permanecem caídos pelos roçados viram
lenha e alimentarão as fogueiras.

A escolha e a preparação do local são atividades masculinas


e envolvem conhecimentos específicos. O plantio também é
realizado pelos homens, que podem ser ajudados por suas esposas.
Mulher que trabalha na roça é bem-vista, e Porfírio se gabava que
sua esposa Anita não era preguiçosa, gostava de ajudá-lo na roça e
também plantava. Apesar de os yanomamis repetirem que quem
trabalha na roça são os homens, observei diariamente mulheres
indo ao roçado: elas são responsáveis pela colheita, assim como
por prover a casa de lenha. Mas não apenas isso: tanto Felícia e
sua filha Salomé como Madalena e sua filha Suhuma realizaram
plantios em seus respectivos roçados. Com Madalena, plantei a
cana-de-açúcar do Morzaniel, seu genro, e da Ehuana, sua filha,
que estavam em Boa Vista para tratar da saúde de sua filha mais
nova. Na área que estava sendo limpa, Madalena plantaria sua
própria “parte” de cana. Mais tarde, conversando com as mulheres
e os homens na maloca, cheguei à conclusão de que quase todas
ajudam na limpeza e no plantio. Pelo que percebi, apenas a abertura
da área e a derrubada das árvores são exclusivamente masculinas.

Como já foi dito, as mulheres são responsáveis por cortar e


carregar a lenha. O corte é feito com machado, normalmente dos
troncos das árvores caídas pelo roçado. Um dia fomos pegar lenha

91
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

na toterim kana (roça nova) da Madalena. Fomos eu, Madalena,


Nayara e Denise, as duas com suas filhinhas bebês, Dariana, que
é sobrinha da Nayara e tem 13 anos, e Nina e Edinho, netos da
Madalena, que têm entre 7 e 10 anos. Percebi que é comum as
mulheres com bebês de colo irem para a roça acompanhadas de
pelo menos uma criança, que fica responsável por segurar o bebê e
cuidar dele enquanto a mãe trabalha.

Neste dia, enquanto Nayara e Denise se revezavam para


cortar a lenha, Madalena limpava a área (a mesma onde seriam
plantadas suas canas). Limpava e contava como pretendia
organizar aquela parte do roçado. Os vários troncos queimados
que se estendem pela roça, criando um desenho geométrico e áreas
isoladas, ajudam na delimitação. Limpávamos uma área isolada
por dois troncos. Madalena indicava esta área e a seguinte como
o local onde plantaria sua cana: “daqui até lá”. Apesar disso, não
foi possível identificar alguma organização padrão das roças, o que
não quer dizer que não exista; as espécies iam sendo distribuídas
de acordo com as condições do local.

Se a escolha e primeira limpeza da área são atividades


exclusivamente masculinas, assim como o plantio do timbó,
o plantio das espécies de cura e dos venenos é de domínio
exclusivamente feminino. Porém, nem todas as mulheres
podem plantá-las: é preciso saber seus cantos e possuir outros
conhecimentos específicos. As plantas ficam distribuídas pelo
roçado, misturadas às outras, e tem-se a impressão de que estão
sendo “protegidas” pelas outras espécies. Elas são plantadas
próximo a algum tronco caído e onde há grande quantidade de
cinzas misturada à terra.

No final dos anos 1970, os Watoriki theri pë passaram


a ter contato mais permanente com a enfermaria do posto da
Funai do Demini e com os remédios alopáticos. Particularmente

92
os antibióticos e antimaláricos adquiriram grande prestígio, em
virtude de sua eficácia, durante as graves epidemias de sarampo
e malária que afetaram os Yanomami nas décadas de 1970 e
1980. Como o conhecimento fitoterápico yanomami tinha sido
desenvolvido no quadro epidemiológico do período anterior ao
contato, sua farmacopeia parecia “insuficiente” diante das novas
doenças trazidas pela invasão do território yanomami por não
indígenas. Tudo isso acarretou a diminuição do uso das plantas
medicinais yanomamis. Além disso, a maioria das mulheres idosas
da aldeia, conhecedoras dessas plantas, morreram nos anos 1970,
muitas em consequência dessas epidemias.

Atualmente, poucas mulheres de Watoriki têm o domínio


do plantio das plantas de cura. No entanto, como o quadro das
doenças oriunda dos não indígenas apresenta relativa estabilização,
os remédios alopáticos deixaram de ser culturalmente
supervalorizados e os conhecimentos dos antigos começaram a
despertar o interesse das novas gerações yanomamis. Entre 2012 e
2013 foram realizadas oficinas de pesquisa e sistematização destes
conhecimentos envolvendo jovens pesquisadores yanomamis,
anciãos e outros membros da comunidade (Albert; Coelho, 2013).2

O sistema de cura yanomami tem como principal pilar a


atuação dos xamãs e está focalizado na etiologia das doenças,
buscando atuar sobre os diversos agentes e vetores maléficos
identificados com a origem dos danos infligidos à imagem (utupë)
dos pacientes. A cura com os remédios da floresta é empreendida
após a sessão xamânica e visa, em geral, reduzir os sintomas —
febres, tosses, dores etc. (Albert; Gomez, 1997).

Apesar do acesso aos remédios alopáticos, em todos os roçados


visitados, as plantas de cura e o uso de cada uma eram conhecidos

2
O Manual dos remédios tradicionais Yanomami (HAY; ISA, 2016) foi a concretização
deste projeto de escuta, transmissão e sistematização do conhecimento.

93
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

por todos os yanomamis adultos com quem conversei, mulheres e


homens. O uso dessas plantas pode ter diminuído bastante, mas
não desapareceu, como se tem a impressão ao ler alguns relatos de
pesquisadores. Plantas para dar coragem, por exemplo, parecem
continuar sendo amplamente utilizadas. Como em Watoriki poucas
mulheres têm o domínio do plantio, algumas mudas vinham de
outras malocas. Isto me fez pensar que possivelmente haja uma
grande rede de trocas no território em torno das plantas de cura.
Algumas sementes, como as de tabaco, também são trocadas.
Tentativas recentes de plantio de tabaco foram feitas com sementes
trazidas de malocas localizadas no extremo norte da Terra Indígena
Yanomami no Brasil. No entanto, segundo os relatos das watoriki
theri pës, as sementes não brotaram.

Assim como para outros povos da Amazônia, como é o caso


das zonas ecológicas dos Kayapós (Robert et al., 2012), apesar de
haver lugares específicos de roçado, o restante do território
da aldeia — isto é, lugares de antigas roças e aldeias, caminhos,
florestas e campos — deve ser entendido como elemento de um
mesmo sistema de cultivo, manejo e cuidado com as plantas.

Através do tempo, os Yanomami vêm realizando o manejo


de um ecossistema notoriamente delicado. Este manejo incorpora
um profundo conhecimento construído na integração com o
meio, acumulado, experimentado e transmitido pela linguagem
e memória. Configura-se, portanto, numa lógica de transmissão
do conhecimento baseada na oralidade. As sociedades orais não
são necessariamente sociedades analfabetas, uma vez que sua
oralidade não é falta de escrita, e sim a não necessidade dela.

Ontem fui pegar o cesto com a Josane. A mãe dela estava ralando
mandioca para beiju enquanto ela fazia, numa espécie de tear feito
com galhos amarrados, uma tipoia para carregar Letícia. Perguntei
quem a tinha ensinado a fazer aquilo e ela respondeu que ninguém

94
a tinha ensinado, que ela aprendeu sozinha. Da mesma forma o
cesto. Hoje no fim da tarde Salomé cortava um tronco de árvore para
fazer lenha. Ao seu lado, a pequena NaPata golpeava o tronco com
um facão. Imagino que, se daqui a alguns anos perguntar à pequena
NaPata quem a ensinou a cortar lenha, me responderá que ninguém,
que aprendeu sozinha. Não lembro exatamente a situação, mas me
falaram aqui, a respeito de como aprender alguma coisa que no
momento eu provavelmente queria aprender: “olha, que você aprende”.

Talvez possamos identificar este processo como o que Toledo


e Barrera-Bassols (2009) chamam de acumulação-transmissão-
experimentação, que se desenvolve intergeracionalmente como
uma espiral em várias escalas espaçotemporais. O processo
de aprendizado é contínuo, e nele cada pessoa vai absorvendo,
interiorizando, acumulando e dominando esses saberes segundo
as experiências vividas e a trajetória pessoal. É por meio de
brincadeiras e pela informalidade que as crianças vão aprendendo.
Trata-se, portanto, de conhecimentos e técnicas tão antigos como
presentes, tão coletivos quanto individuais e atualizados no
manejo do mundo:

há dois dias, saímos para pegar açaí. Fomos seis mulheres — eu,
Salomé, Nayara, Denise, Guiomar e Eda —, quatro bebês e o Vovô
Luís. As mulheres com suas crianças apoiadas na cintura e os cestos
devidamente equilibrados na cabeça. Fomos pela trilha que segue para
Ananariú, a famosa Perimetral Norte, que já foi tomada por árvores e
cipós. Dela só restou o tubo que desvia a água para o igarapé em
que tomamos banho no início do trajeto. Enquanto nos refrescávamos
e brincávamos com os peixes, Vô Luís cortou um galho do ingá.
Comemos um bocado e eu descobri que minhoca é totihi (bom), mesmo
as vermelhas, que ao meu olhar napë pareciam um tanto indigestas.
Enquanto caminhávamos, íamos cuspindo os caroços de ingá pelo
caminho. Paramos em seguida, numa floresta de castanheiras que se
erguia na Urihi. Recolhemos os ouriços que estavam pelo chão. Com
seus facões, as cinco mulheres e Vô Luís batiam com força, abrindo
um dos lados, por onde tiravam as castanhas. Tentei voltar num lugar,

95
O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado

a alguns metros dali, onde tinha visto muitos ouriços pelo chão, mas,
com pouco hábito de andar pela floresta, não tenho a habilidade
em diferenciar árvores, galhos quebrados ou algo que possa servir
de referência. Não achei os ouriços e só reencontrei meus parceiros
porque Salomé me chamou e eu, seguindo sua voz, retornei ao lugar
onde estavam sentados. Enquanto trabalhavam, comemos muitas
castanhas. Um trajeto que facilmente, ao olhar de um napë, poderia
parecer “ao léu”, para os yanomamis estava muito claro. Uma série de
trilhas e caminhos marcados na floresta, se cruzando e bifurcando.
Os olhos atentos avistavam frutos invisíveis para mim. Vô Luís subiu
num pé de açaí e nos trouxe dois cachos cheios. As castanhas foram
colocadas em trouxas de folhas dispostas em forma de asterisco e
fechadas depois com um cipó. Antes disso, Salomé me deu um cacau.
O sabor era doce, e na mão ficava uma sensação de banana verde.
Tenho a impressão de que demoro infinitamente mais para comer uma
fruta do que eles. Assim como o ingá, as sementes do cacau foram
dispersadas pelo caminho. As de açaí, que deixam roxos os dentes
e dedos de quem os come e manuseia, também eram deixadas nos
lugares onde parávamos, quando cada uma pegava umas quantas na
mão. Passamos por uma espécie de pântano, um lugar enlamaçado
onde tive muita dificuldade para me movimentar. O chinelo soltava a
tira, e eu fiquei presa umas quantas vezes. Por fim escorreguei e, para
não cair, me apoiei em uma árvore cujo tronco está cheio de espinhos
longos e duros. Machuquei a mão, e dois dias depois a almofada do
dedo indicador ainda está inchada. Neste momento sentei, esperando
enquanto as mulheres enfiavam seus braços em buracos à procura
dos caranguejos que habitam esses lamaçais. Os caranguejos também
foram colocados em trouxinhas de folhas. Mais tarde, essas trouxinhas
seriam colocadas na fogueira e os caranguejos seriam saboreados. […]
Enquanto esperava que elas catassem os tais bichos, percebi que Vô Luís
se embrenhava em alguma árvore, fazendo com que frutos caíssem de
forma barulhenta no chão. Eram os deliciosos hotakaa xiki. Comemos
bastante. Eu comeria muito mais, mas logo quiseram continuar a
jornada. Ainda consegui pegar três que botei no meu cesto para mais
tarde. Apesar de terem vários espalhados pelo chão, não me aventurei
a entrar na lama para buscá-los. Próxima parada: açaí. Vô Luís trouxe

96
uns doze cachos que debulhamos sobre folhas de bananeira. Enquanto
eu e Salomé nos empenhávamos na função, as outras conversavam e
comiam. Agora os cestos estavam pesados. Salomé se propôs a levar
o meu, mas preferi levá-lo eu mesma. Andamos um pedaço. Paramos
mais uma vez para pegar açaí e Vô Luís apareceu com mais uns
quatro cachos. Desta vez, não insisti, e Nayara trouxe o cesto cheio.

Ao caminhar pelas trilhas, acompanhando as mulheres


yanomamis na coleta de frutas, observando sua habilidade em
identificar frutos e sua prática de espalhar sementes ao longo
do caminho, me dei conta de que o roçado não é o único local
manejado. Em suas caminhadas, os yanomamis vão transformando
a Urihi a como um todo. A floresta, espaço vivido e palco das
relações entre humanos e não humanos, torna-se também um
espaço transformado e criado.

Figura 3 — Demini e seus roçados

Fonte: Mapa desenhado por Denise Yanomami

97
Considerações finais
Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é
morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos
xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos
resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco?
[…] Porque se a floresta for devastada, nunca mais vai nascer outra.
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 65)

Muitos pensamentos e reflexões me vieram à cabeça no


período em que fiquei em Watoriki e depois, já fora da Terra
Yanomami. A realidade tem a capacidade de ser mais complexa
que o produzido pela imaginação. Me deparei com pessoas e com
seu mundo. Um mundo que é este e que é outro. Um mundo que
está em movimento. O que encontrei não foi mesmo encontrado

99
Considerações finais

pelos pesquisadores nos anos 1970. Isso pelo simples fato de que
as sociedades não são estáticas, mas interagem com a realidade.
O que encontrei foram yanomamis que usam relógio, chinelo,
se comunicam por rádio e andam de avião, mas que pensam a
partir de uma matriz de racionalidade yanomami. No processo de
pesquisa, não pude deixar de me impressionar com o fato de que,
apesar do grande número de artigos científicos, documentários e
reportagens sobre os Yanomami, continuam sendo negligenciados
seu modo de viver e seu profundo conhecimento da floresta e
de seu manejo.

O tempo e os recursos limitados não me permitiram


aprofundar estes temas, mas algumas questões merecem ser
investigadas. Uma delas é a “perda” de algumas espécies e a
consequente introdução de sementes napë, por vezes transgênicas,
como no caso do milho levado de Boa Vista para a Terra Indígena
Yanomami, tema que demanda atenção urgente. Percebi que
algumas espécies que não são mais plantadas em Watoriki ainda
o são em outras aldeias, o que torna interessante um projeto de
troca de sementes entre as malocas da Terra Indígena Yanomami
como também com outros grupos indígenas. Um projeto como este
poderia potencializar as trocas que já ocorrem, além de ampliar o
número e a diversidade de espécies cultivadas. Um mapeamento
desta rede de troca também poderia gerar resultados bastante
interessantes — novos “caminhos” de circulação e uma outra
compreensão da intrincada rede yanomami.

Como vimos, a floresta é humanizada em Watoriki, por


meio da domesticação de algumas espécies e da “silvestrização” de
outras. Os múltiplos usos dados pelos Yanomami à Urihi a parecem
produzir um ambiente diversificado e harmônico. Os hutukanapë
(roçados) estão inseridos no contexto mais amplo: a floresta
como um todo é um espaço de produção. Ambos são lugares
sociais onde se manifesta a memória coletiva dos conhecimentos
100
adquiridos, mas também os conhecimentos esquecidos. É por meio
dos caminhos percorridos que o território vai sendo vivenciado
e atualizado. Territorialidade engloba fixação e mobilidade
simultaneamente e pode ser compreendida pela relação cultural e
social que um grupo mantém com a trama de lugares e itinerários
que constituem seu território. Desvendar a produção deste espaço
e das territorialidades foi o principal desafio deste trabalho, o que
passou por um esforço de superar a visão naturalista da formação
geográfica, tentando apreender o espaço transformado pelos
yanomamis através das categorias imaginadas e carregadas de
sentidos deste grupo.

Não posso deixar de ressaltar que conflitos territoriais,


disputas por recursos naturais, migrações, crescimento
demográfico, frentes de desmatamento, políticas públicas para
o “desenvolvimento” são fatores que tiveram fortes efeitos
sobre a população yanomami. Na Amazônia brasileira, as Terras
Indígenas, mesmo homologadas, e suas populações sofrem com
pressões externas e internas, como extração ilegal de recursos,
políticas e projetos de desenvolvimento, mudanças alimentares e
sedentarização (Robert et al., 2012).1

Vem causando preocupação a crescente invasão de


garimpeiros ao território yanomami, tanto no Brasil quanto na
Venezuela, e os seus já visíveis impactos nas formas yanomamis
de apropriação do espaço e suas territorialidades. A atividade
mineradora implica revolver o solo, remover a vegetação e
contaminar os cursos d’água com mercúrio. Onde está instalada,
tem provocado violência e conflitos entre os yanomamis, além
da introdução de doenças infectocontagiosas e parasitárias, que
têm gerado altos índices de morbidade. É importante apontar
que quase 55% da Terra Indígena Yanomami no Brasil é objeto

1
Na página do Instituto Socioambiental (ISA), é possível ter acesso a muitos dados.
Disponível em: <ti.socioambiental.org>. Acesso em: 6 jul. 2017.
101
Considerações finais

de 657 processos de requerimento de mineradores (ISA, 2013). Na


Venezuela, o governo, em convênio com a empresa chinesa CITIC,
tem a intenção de explorar minérios nos rios Ocamo (Alto Orinoco),
Parágua, Caura e Ventuari, dentro do território yanomami e
Ye’kuana. No Brasil, grande parte do território yanomami está
requerido por empresas mineradoras para exploração, e um
projeto de lei tramita no Congresso Nacional com o objetivo de
“regulamentar” a exploração dos recursos minerais em terras
indígenas (Senado Federal, 1996).

Apesar das fortes pressões sobre as formas de compreensão


e interação com a floresta e, consequentemente, sobre as práticas
agrícolas, em Watoriki os yanomamis continuam cultivando e
utilizando grande diversidade de plantas, seja para alimentação,
veneno ou cura. Nesse sentido, o estudo e a compreensão das
sabedorias tradicionais é e será uma atividade importante para a
reinvenção de futuros possíveis.

102
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Esta obra foi composta em Gandhi Serif e impressa
pela XXXXXXXXX em offset 75g para a editora Sobrescrita
em agosto de 2017.

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