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Brasília
2017
acadêmica
© 2017 Sobrescrita.
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que a fonte
seja citada e que não haja venda nem fins comerciais.
Tiragem: 1ª edição – 2017 – 300 exemplares
ISBN 978-85-93989-01-8
CDU: 39 (=1-82)
7
Como bem disse Viveiros de Castro, no Brasil só não é índio
quem não é. Do Instituto Socioambiental – Boa Vista, profunda
gratidão a Silas, Sid, Moreno, Ana Paula e Matthieu. Ainda em Boa
Vista, ao Felipe, pelo acolhimento, e a Vicente, Ed, Ana Paula, Joana
e Panchita. À Flávia, pela sensibilidade e pelo olhar de borboleta.
A Majoí e Chloe, pela companhia e pelo carinho.
Introdução.........................................................................................33
O manejo do mundo:
espaço vivido, espaço criado.....................................................83
Considerações finais.....................................................................99
Referências.......................................................................................103
Nota sobre a grafia de
termos yanomamis
17
Durante minha estadia em Watoriki, fui várias vezes ao roçado de
Madalena — algumas acompanhada por ela, outras acompanhada
por sua filha Suhuma. Levei um punhado de canetinhas hidrográficas
e folhas para o campo e um dia pedi que Madalena desenhasse seu
roçado. A intenção era apreender, através do desenho, a organização
das plantas, a importância dada a algumas espécies etc. Nem
sempre era fácil me fazer entender e não fui muito feliz na minha
tentativa. Como Madalena não entendia o que eu pedia, peguei uma
folha e também comecei a desenhar. A nós se juntou Edinho, neto de
Madalena, que começou a imitar os desenhos da vó e a desenhar as
plantas que eu pedia. Portanto, apesar de terem me ajudado muito
na identificação dos nomes dados às espécies e às várias partes das
plantas, os desenhos não podem ser considerados uma representação
gráfica do roçado yanomami. Ainda assim, decidi colocá-los no
início de cada capítulo por achá-los interessantes e bonitos.
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Sobre etnografias e vivências
Sílvia Guimarães
Departamento de Antropologia
Universidade de Brasília
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Sobre etnografias e vivências
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que Júlia inicia o desenho da epistemologia indígena Watoriki
ao entrelaçar saberes sobre práticas agrícolas com cosmografia
(Little, 2002).
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Sobre etnografias e vivências
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Das roças, é possível adentrar redes de interação, trilhas
de troca que ligam os Sanumá ou Watoriki com outros coletivos,
espaços-temporalidades. Conforme afirma a autora, como um
fato social total, a partir das roças, antigas e novas, os Watoriki
transitam por ocupações espaciais, locais de coleta, caça, pesca, por
onde vivenciam o espaço e as sociabilidades. São espaços vividos
que se corporificam nas pessoas. Para os Sanumá, a cerimônia
funerária era marcada pela cremação do morto e tudo que lhe
pertencia, inclusive sua roça e casa, o que era uma ação radical
realizada, de fato, na morte de um grande xamã (Guimarães, 2005).
A roça compunha a corporalidade do sujeito, por isso deveria
ser destruída na sua morte. Nesse sentido, as roças nos levam
a várias dimensões da vida social. Uma delas está nas roças em
si, conforme discute a autora, nas plantas cultivadas e dispostas,
propositalmente, aqui e acolá, apresentando um microcosmo da
vida social.
Referências
Bâ, A. H. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena; Casa das
Áfricas, 2003.
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Sobre etnografias e vivências
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Tomando caminhos kahumães e
boreioyos ao fazer antropologia
Soraya Fleischer
Departamento de Antropologia
Universidade de Brasília
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Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia
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chama de espaço-mundo, todos os territórios significativos para
os yanomamis, criados e recriados pelas ações, ideias e projetos
que sucessivamente ali vão tomando parte. Aos poucos, ela passa
da casa yano, a comunal, e também as casas individuais para
os círculos mais amplos ao redor da aldeia. É da yano que parte
o principal caminho kahumãe e os eventuais boreioyos, todos
somando na criação do espaço-mundo.
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Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia
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outro lado, adensam as paisagens, agregando detalhes insuspeitos.
Percebo essas imagens como lâminas que vão sendo colocadas
de modo delicado sobre a realidade etnografada, nos ajudando a
construir um entendimento progressivo, cuidadoso e estético da
relação dos yanomamis com seu(s) espaço(s).
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Tomando caminhos kahumães e boreioyos ao fazer antropologia
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Introdução
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Introdução
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Cheguei ao campo com uma foto na mochila. Entre 1986
e 1991, meus pais trabalharam em um projeto de assistência à
saúde na terra yanomami coordenado pela Comissão pela Criação
do Parque Yanomami, a CCPY, e eu os acompanhei nas viagens
que fizeram à Terra Indígena Yanomami. Na foto, eu, de pesimak
(tanga usada pelas mulheres, geralmente feita de algodão), e mais
três meninos yanomamis posávamos para o retrato no centro da
casa coletiva. Eu tinha entre 3 e 4 anos e meus coleguinhas, com
exceção de um, que certamente tinha mais, aparentavam ter a
mesma idade.
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Introdução
por elas. Me pediram para ver a foto e eu, me apontando nela, disse
kami ya, oxe tëhë (“esta sou eu, quando era pequena”). Verificaram
a semelhança.
Chegar não foi fácil. Apesar de ter nas mãos a foto que
comprovava qualquer que fosse a aproximação, eu me sentia, e de
fato era, completamente napë (estrangeira, não yanomami).
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mulheres yanomamis de passagem pela cidade. Esse tempo foi
também necessário para viabilizar meu transporte aéreo até
a aldeia e a formalização do convite que recebi para visitá-los.
O consentimento formal foi obtido na coordenação da HAY,
representada por Davi Kopenawa Yanomami, liderança tradicional
e morador de Watoriki.
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Introdução
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[…] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos
e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,
escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço (Bondía, 2002, p. 24).
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Introdução
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modelos utilizados por pesquisadores para compreender formas de
ocupação e representação geográfica e sistemas de uso da floresta.
Trilhas e caminhos percorridos são imagens importantes. Também
é feita a descrição de Watoriki, da organização da maloca e dos
núcleos familiares, dos espaços, públicos e privados, identificáveis,
da distribuição das habitações e outras pequenas construções
(escola, casa da radiofonia etc.) e das espécies frutíferas plantadas
em volta da maloca. Além desse espaço-mundo, que é percorrido,
habitado e humanizado, sobreposto a ele e compartilhando o
mesmo substrato, um mundo mágico é acessível apenas aos
xamãs xapiri, treinados para transitar por essas dimensões
espaçotemporais.
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Meu pensamento em movimento
e seus caminhos
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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Segundo Victor Toledo e Narciso Barrera-Bassols, o ser
humano foi capaz de colonizar o planeta e expandir sua presença
nele graças a sua capacidade de
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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sua exterioridade e oposição especular à sociedade humana,
pois humanos e não humanos estão agrupados num único
coletivo. Dessa forma, ao dualismo natureza (tornada “meio
ambiente”) e cultura, contrapõe-se a concepção de uma totalidade
cosmológica sociomorfa na qual humanos e não humanos, visíveis
(animais) ou não (espíritos, mortos), são dotados de faculdades e
subjetividades de natureza idêntica, mantendo entre si relações
sociais de comunicação, troca, agressão ou sedução, estando
ontologicamente associados e distribuídos numa mesma economia
de metamorfoses.
os brancos pensam que a floresta foi posta sobre o solo sem qualquer
razão de ser, como se estivesse morta. Isso não é verdade. Ela só é
silenciosa porque os espíritos xapiripë detêm os entes maléficos e a
raiva dos seres da tempestade. Se a floresta fosse morta, as árvores
não teriam folhas brilhantes. Tampouco se veria água na terra.
As árvores da floresta são belas porque estão vivas, só morrem
quando são cortadas e ressecam. É assim. Nossa floresta é viva, e se os
brancos nos fizerem desaparecer para desmatá-la e morar em nosso
lugar, ficarão pobres e acabarão sofrendo de fome e sede.
1
Omama é o demiurgo da mitologia yanomami, criador da humanidade atual e de
suas regras sociais.
2
Os xapiripës, imagens (utupë) dos seres primordiais, são os espíritos auxiliares dos
xamãs yanomamis.
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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Fica ressecada demais. Assim, as plantas ficam quentes e não se
desenvolvem. Por isso, nossos antigos se deslocavam na floresta, de
uma roça para outra, quando suas plantações enfraqueciam e a caça
diminuía perto de suas casas.
A floresta não está morta, como pensam os brancos. Mas, se eles a
destruírem, ela morrerá, com certeza. Seu sopro vital fugirá para longe.
A terra se tornará árida e só haverá poeira. As águas desaparecerão.
As árvores ficarão secas. As pedras da montanha irão se aquecer e se
partir. Quando o sopro da imagem da terra está presente, a floresta
é bela, a chuva cai e o vento sopra. Ela vive com os xapiripë, foram
criados juntos. É assim. A floresta não é bela por acaso. Mas os
brancos parecem pensar que é. Eles se enganam. O que vocês chamam
“natureza” é, em nossa língua, Urihi a, a terra-floresta e sua imagem
utupë vista pelos xamãs: urihinari a. É porque existe essa imagem
que as árvores são vivas. O que chamamos urihinari a é o espírito da
floresta, das suas árvores, huutihiripë; das suas folhas, yaa hanaripë;
e dos seus cipós, thothoxiripë. Esses espíritos são muito numerosos e
brincam no seu chão. Nós o chamamos também urihi a, “natureza”,
da mesma maneira que os espíritos animais yaroripë e mesmo os
das abelhas, das tartarugas e dos caracóis. O poder de fertilidade da
floresta, nërope a, também é “natureza” para nós: ele foi criado com
a floresta, é a sua riqueza. Os xapiripë possuem a “natureza”, o vento
e a chuva. Quando os filhos e as sobrinhas dos entes do vento brincam
na floresta, a brisa circula e não faz calor. Quando os seres da chuva
descem sobre as colinas e as montanhas da floresta, a chuva cai.
A terra se refresca e as doenças vão embora. É assim. Se os xapiripë
ficam no peito do céu e não são chamados pelos xamãs, a floresta se
aquece. As epidemias e os seres maléficos se aproximam. Os humanos,
então, não param de ficar doentes. Os xapiripë se movem sem parar
dentro da floresta. Ela pertence a eles e isso os deixa felizes. Eles
estão presentes em toda parte. Os filhos e as filhas dos espíritos das
águas yawarioma pë brincam ali sem parar. Os brancos não sabem
nada disso. Eles pensam que a floresta é bela, fresca e ventilada
sem nenhum motivo. Para nós, “natureza” é urihi a, a terra-floresta,
é também os espíritos xapiripë que nos foram dados por Omama.
A floresta não existe sem razão. Os xapiripë vivem nela, e Omama quis
que protegêssemos suas moradas (Albert; Milliken, 2009, p. 7-8).
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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remanescentes de sociedades arcaicas (Ballé; Erickson, 2006).
Uma reinterpretação dos sistemas de corte e queima, com base
nas evidências arqueológicas e etno-históricas das áreas utilizadas
por culturas indígenas, indica antigas manipulações da floresta
tropical (Ballé, 2008; Erickson, 2008). Demonstra, com isso, que
povos indígenas praticam um manejo intensivo da floresta tropical
e de outros ecossistemas, incluindo a manipulação não apenas
de várias espécies e outros elementos naturais, mas também de
processos ecológicos subjacentes (Toledo et al., 2003). Dessa forma,
outra noção que ajuda na compreensão da discussão aqui proposta
é a de múltiplos usos da floresta.
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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apreciar os horizontes que se abrem aos seus olhos. Nesse sentido,
este livro almeja ser mais do que uma descrição objetivista do
espaço ocupado, manejado e transformado pelos Yanomami
da comunidade de Watoriki. O esforço feito na sua realização foi
orientado pela ideia de que outras geografias são possíveis.
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Meu pensamento em movimento e seus caminhos
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malocas.3 Foi acompanhando as mulheres e os homens no seu
trabalho na roça que vi como faziam. Para alguns, perguntava
de forma mais sistematizada, outras vezes apenas observava e
ia aprendendo aos poucos com o ver-fazer. Foram estas inserções
nas atividades e na vida cotidiana que delimitaram os dados aqui
apresentados. Mais do que de entrevistas estruturadas, é das
conversas casuais e do compartilhar de atividades na aldeia e na
roça que resultou esta obra.
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Povo que caminha
As trilhas yanomami são o testemunho mais pedestre, por
assim dizer, das movimentações desse povo que parece
ter sido feito para andar, locomover-se, espraiar-se.
(Ramos, 1995, p. 3)
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Um povo que caminha
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Mapa 2 — Divisão linguística do povo yanomami
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Um povo que caminha
3
O decreto de 1992 afirma, em seu artigo 1º, que “fica homologada, para os efeitos
do art. 231 da Constituição Federal, a demarcação administrativa promovida pela
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, da Terra Indígena Yanomami, localizada
nos Municípios de Boa Vista, Alto Alegre, Mucajaí e Caracaraí, Estado de Roraima
e Santa Izabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira, Estado do
Amazonas, caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena,
com superfície de 9.664.975,48 ha (nove milhões, seiscentos e sessenta e quatro
mil, novecentos e setenta e cinco hectares e quarenta e oito ares) e perímetro de
3.370 km (três mil, trezentos e setenta quilômetros)” (Brasil, 1992).
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geográfica yanomami teve início no século XIX (Le Tourneau,
2010) e foi possibilitada pela expansão demográfica, ocasionada
pela aquisição de novas plantas de cultivo e de ferramentas
metálicas, ou fragmentos metálicos, por meio de trocas e guerras
com grupos indígenas vizinhos, Caribes e Arawak (Lizot, 1984).
Estes dois grupos mantiveram contato direto com a fronteira
branca durante todo o século XIX e acabaram dizimados por,
principalmente, epidemias devidas ao contato. O esvaziamento
progressivo desses territórios acabou favorecendo a expansão
geográfica dos Yanomami, que, a partir da Serra Parima, foram se
espalhando em direção às “terras baixas” dos anos 1800 até pós-
1950.4 Na sobreposição de mapas que segue, é possível observar
tanto o relevo como a expansão geográfica e a “descida” dos
Yanomami em direção a essas terras.
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Um povo que caminha
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e metamorfizados, compreendendo intrusões de materiais
vulcânicos e graníticos. O conjunto apresenta hoje cumes acirrados
e vales profundos e estreitos, que formam a Serra Tapirapecó,
a Serra Gurupira, a Serra Urucuzeiro (a menos elevada do
conjunto), a Serra Parima e a Serra Pacaraima. Ao leste da Serra
Parima se estende uma larga região de colinas dissecadas que
incluem colinas entre 400m e 600m de altitude, compostas da
mesma formação. Ao leste e ao sul estão as planícies sedimentares
dos rios Negro e Branco, compostas principalmente de sedimentos
terciários e quaternários.
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Um povo que caminha
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Toledo e Barrera-Bassols (2008) consideram ainda os
conhecimentos sobre a natureza como uma dimensão notável das
expressões que emanam de uma cultura, pois refletem a acuidade
e riqueza de observações sobre o entorno realizadas, mantidas,
transmitidas e aperfeiçoadas através de longos períodos, sem as
quais a sobrevivência dos grupos humanos não seria possível.
Trata-se de saberes transmitidos oralmente de geração a geração,
em especial aqueles conhecimentos imprescindíveis e cruciais,
por meio dos quais a espécie humana foi moldando suas relações
com a natureza.
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Um povo que caminha
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Durante minhas investigações, verifiquei estar havendo
uma descentralização da população em Watoriki, com a abertura
de roças e construção de malocas nas proximidades da maloca
coletiva. Em conversas com yanomamis integrantes da Hutukara,
soube que este processo está ocorrendo em outras localidades
do território yanomami. Isto demonstra que o movimento de
sedentarização, resultante principalmente do contato, não é um
processo de mão única.
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Os habitantes da Montanha do Vento
Watoriki theri pë,
os habitantes (theri pë) da Montanha do Vento (Watoriki)
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Os habitantes da Montanha do Vento
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A ex-Missão Toototobi, da Organização Novas Tribos do Brasil (MNTB).
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Mapa 4 — Localização do posto do Demini
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Os habitantes da Montanha do Vento
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deste caminho principal, que os Yanomami chamam de kahumãe,
ramifica-se uma série de pequenas trilhas em ambos os lados: são
os boreioyos. Alguns mais visíveis, outros quase imperceptíveis
ao olhar descuidado, é por eles que os yanomamis caminham,
percorrendo a Urihi a.
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Os habitantes da Montanha do Vento
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Pela trilha que parte do posto (kahumae), depois de
aproximadamente meia hora de caminhada, uma sumaúma
(Ceiba pentandra) apresenta a morada coletiva: “Awey, totihi
wamaki kopema” (“que bom que você chegou, seja bem-vindo”).
Os yanomamis de Watoriki, que contam aproximadamente 195
pessoas,3 vivem em um yano a tradicional, uma estrutura anelar
de cerca de 80m de diâmetro que circunda uma praça central.
Nesta casa coletiva, vivem quase todos os watoriki theri pës, cada
família com seu espaço privado bem definido.
3
Cheguei a este número tendo como base o Censo Populacional do Distrito
Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) de 2012, atualizando-o com os
bebês nascidos há um ano ou menos.
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Os habitantes da Montanha do Vento
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ou espíritos auxiliares e tornando-se, eles próprios, também
xapiris. E, durante as noites e madrugadas, é neste espaço que se
desenrola o hereamuu – discurso proferido pelos homens mais
velhos (pata thë pë) no qual histórias dos antigos são contadas
– e que a comunidade se organiza: caças coletivas são definidas,
decisões são tomadas coletivamente, ou um recém-chegado
compartilha as novidades da aldeia de origem. Muitos foram os
hereamuu que escutei atentamente da rede, tentando entender o
que estava sendo dito.
4
Sobre o uso cultural do espaço da habitação coletiva yanomami, ver Gasparine e
Margolies (2004) e Kopenawa e Albert (2015, p. 566-567).
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Os habitantes da Montanha do Vento
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É do cipo a que partem as trilhas principais: duas para
o igarapé que nasce na serra e passa ao norte da maloca, bem
próximo dela, e outras três que, mais à frente, se ramificam em
outras várias, sendo os caminhos para os roçados e para as outras
aldeias. Os roçados estão a distâncias variadas, espalhados pela
Urihi a.
5
Timbó (Clibadium sylvestre) é uma espécie utilizada nas pescas coletivas e
cultivada nas roças e nos arredores do yano a.
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Os habitantes da Montanha do Vento
6
Note-se que os autores identificaram apenas os caminhos referentes às atividades
econômicas, não explorando outras esferas da vida yanomami, como visitas a
outras aldeias, por exemplo, o que ampliaria a distância coberta por esse sistema
de rotas.
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Figura 2 — Modelo reticular de uso da floresta em Watoriki
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Os habitantes da Montanha do Vento
7
O propósito deste relato é menos o de descrever com profundidade o processo
xamânico e mais o de evidenciar a existência destas múltiplas dimensões
ocupando o mesmo espaço material. Para mais informações sobre o xamanismo e
o mundo mágico yanomami, ver Albert (1985) e, sobre a geografia xamânica, ver
Taylor (1996).
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O manejo do mundo:
espaço vivido, espaço criado
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
1
Sobre a agricultura yanomami, ver Colchester (1982), Hames (1983), Lizot (1978,
1980) e Smole (1976, 1989).
84
Os watoriki theri pës ocupam a mesma área desde o final da
década de 1970 e, dadas as escolhas políticas e os investimentos
materiais associados à construção, em 1993, do yano a atual,
é improvável que o local seja abandonado em futuro próximo
(Albert; Milliken, 2009). Para lidar com esta situação sedentária,
os yanomamis de Watoriki têm evitado o uso demasiado da
floresta próxima; por causa de irregularidades topográficas
e descontinuidades de solos férteis, são escassas as áreas que
poderiam ser mais adequadas para o estabelecimento de novos
roçados. Durante a minha estadia, enquanto acompanhava
o trabalho nos roçados ou nas conversas, mais ou menos
sistematizadas, pude perceber que muitos yanomamis se
queixavam da distância que era preciso percorrer até os roçados.
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
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Já Omama pescou a filha do ser aquático Tëpërësiki, Thëyoma,
e se casou com ela. Então seu sogro decidiu fazer-lhe uma visita e
ensinar Omama a cultivar plantas de roça. Ele levava um enorme
e pesado saco de palmeiras trançadas cheio de brotos de bananeira,
manivas de mandioca, cará, taioba, batata-doce, cana de açúcar,
sementes de tabaco, mamão e milho. Mas de longe Tëpërësiki fazia
um barulho amedrontador e, com pavor de encontrar o sogro,
Omama se transformou numa peça de metal e se fincou no chão
de sua casa. Seu irmão Yoasi quis imitá-lo, mas se transformou
numa simples cavadeira de madeira de palma. Quando Tëpërësiki
entrou na casa, viu apenas sua filha e perguntou onde estavam
o marido e o cunhado dela. Ela indicou com os lábios a barra de
ferro e o pedaço de madeira. Tëpërësiki então declarou: “vocês vão
plantar as coisas que eu trouxe e multiplicá-las. Quando tiverem
filhos, e os humanos forem muitos, eles poderão se alimentar
delas!” Depois, voltou para sua casa debaixo d’água, e são esses os
alimentos que os Yanomami comem até hoje.
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
***
88
hoje fui no roçado com a Suhuma e a Madalena. Lá plantamos cana,
depois de limpar com o facão a área. Novos roçados são abertos no
verão quando é verão forte. Primeiro, derrubam-se as árvores maiores
e limpa-se o lugar. Juntam-se os galhos e folhas e bota-se fogo. Em
seguida, inicia-se a limpeza mais fina. As mudas e manivas são
plantadas no início das chuvas. Até lá, muitas plantas já nasceram
e árvores estão começando a rebrotar, então é feita uma “nova
limpeza” com facão e terçado. O que é arrancado é amontoado em
um canto, junto com os da limpeza anterior. Aparentemente não
existe sistemática, é plantado tudo misturado. Os genros trabalham
nas roças de seus sogros. A roça da Madalena é também do Jair e
do Morzaniel. Os roçados são conjuntos, mas separados, cada um
tem o seu espaço, mas para quem olha parece que é um só. O local
onde a terra concentra mais cinza é considerado o melhor para
plantar. A ida ao roçado é diária, às vezes ao novo, às vezes ao
antigo. Normalmente vai-se pela manhã. As crianças vão, mas não
trabalham, se deliciam com cana ou algum mamão maduro. Nas roças
antigas, continuam plantando naxokoko (mandioca); elas também
são chamadas de wãro patarim kana. Fiquei com algumas perguntas
na cabeça: os galhos amontoados no canto são usados para alguma
coisa depois? Continua-se plantando banana no roçado velho?
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
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Trata-se de um sistema dinâmico e complexo. Quando a roça
está no auge produtivo, uma nova já foi derrubada e outra, velha
e já tomada pela mata, ainda fornece banana, pupunha, canas de
flecha e alguns tubérculos. É desta roça velha (hoterim kana) que
são retirados os rebentos de bananeira e as manivas de mandioca
que serão plantadas no novo roçado (toterim kana). Com alguns
meses, as árvores cortadas no processo inicial de abertura da
roça começam a rebrotar. São pirimaaho thotho, hoko si, apia hi,
okara sisi, hotakaa xihi, raxa kiki, maka hi… Os grandes troncos das
árvores derrubadas que permanecem caídos pelos roçados viram
lenha e alimentarão as fogueiras.
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
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os antibióticos e antimaláricos adquiriram grande prestígio, em
virtude de sua eficácia, durante as graves epidemias de sarampo
e malária que afetaram os Yanomami nas décadas de 1970 e
1980. Como o conhecimento fitoterápico yanomami tinha sido
desenvolvido no quadro epidemiológico do período anterior ao
contato, sua farmacopeia parecia “insuficiente” diante das novas
doenças trazidas pela invasão do território yanomami por não
indígenas. Tudo isso acarretou a diminuição do uso das plantas
medicinais yanomamis. Além disso, a maioria das mulheres idosas
da aldeia, conhecedoras dessas plantas, morreram nos anos 1970,
muitas em consequência dessas epidemias.
2
O Manual dos remédios tradicionais Yanomami (HAY; ISA, 2016) foi a concretização
deste projeto de escuta, transmissão e sistematização do conhecimento.
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
Ontem fui pegar o cesto com a Josane. A mãe dela estava ralando
mandioca para beiju enquanto ela fazia, numa espécie de tear feito
com galhos amarrados, uma tipoia para carregar Letícia. Perguntei
quem a tinha ensinado a fazer aquilo e ela respondeu que ninguém
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a tinha ensinado, que ela aprendeu sozinha. Da mesma forma o
cesto. Hoje no fim da tarde Salomé cortava um tronco de árvore para
fazer lenha. Ao seu lado, a pequena NaPata golpeava o tronco com
um facão. Imagino que, se daqui a alguns anos perguntar à pequena
NaPata quem a ensinou a cortar lenha, me responderá que ninguém,
que aprendeu sozinha. Não lembro exatamente a situação, mas me
falaram aqui, a respeito de como aprender alguma coisa que no
momento eu provavelmente queria aprender: “olha, que você aprende”.
há dois dias, saímos para pegar açaí. Fomos seis mulheres — eu,
Salomé, Nayara, Denise, Guiomar e Eda —, quatro bebês e o Vovô
Luís. As mulheres com suas crianças apoiadas na cintura e os cestos
devidamente equilibrados na cabeça. Fomos pela trilha que segue para
Ananariú, a famosa Perimetral Norte, que já foi tomada por árvores e
cipós. Dela só restou o tubo que desvia a água para o igarapé em
que tomamos banho no início do trajeto. Enquanto nos refrescávamos
e brincávamos com os peixes, Vô Luís cortou um galho do ingá.
Comemos um bocado e eu descobri que minhoca é totihi (bom), mesmo
as vermelhas, que ao meu olhar napë pareciam um tanto indigestas.
Enquanto caminhávamos, íamos cuspindo os caroços de ingá pelo
caminho. Paramos em seguida, numa floresta de castanheiras que se
erguia na Urihi. Recolhemos os ouriços que estavam pelo chão. Com
seus facões, as cinco mulheres e Vô Luís batiam com força, abrindo
um dos lados, por onde tiravam as castanhas. Tentei voltar num lugar,
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O manejo do mundo: espaço vivido, espaço criado
a alguns metros dali, onde tinha visto muitos ouriços pelo chão, mas,
com pouco hábito de andar pela floresta, não tenho a habilidade
em diferenciar árvores, galhos quebrados ou algo que possa servir
de referência. Não achei os ouriços e só reencontrei meus parceiros
porque Salomé me chamou e eu, seguindo sua voz, retornei ao lugar
onde estavam sentados. Enquanto trabalhavam, comemos muitas
castanhas. Um trajeto que facilmente, ao olhar de um napë, poderia
parecer “ao léu”, para os yanomamis estava muito claro. Uma série de
trilhas e caminhos marcados na floresta, se cruzando e bifurcando.
Os olhos atentos avistavam frutos invisíveis para mim. Vô Luís subiu
num pé de açaí e nos trouxe dois cachos cheios. As castanhas foram
colocadas em trouxas de folhas dispostas em forma de asterisco e
fechadas depois com um cipó. Antes disso, Salomé me deu um cacau.
O sabor era doce, e na mão ficava uma sensação de banana verde.
Tenho a impressão de que demoro infinitamente mais para comer uma
fruta do que eles. Assim como o ingá, as sementes do cacau foram
dispersadas pelo caminho. As de açaí, que deixam roxos os dentes
e dedos de quem os come e manuseia, também eram deixadas nos
lugares onde parávamos, quando cada uma pegava umas quantas na
mão. Passamos por uma espécie de pântano, um lugar enlamaçado
onde tive muita dificuldade para me movimentar. O chinelo soltava a
tira, e eu fiquei presa umas quantas vezes. Por fim escorreguei e, para
não cair, me apoiei em uma árvore cujo tronco está cheio de espinhos
longos e duros. Machuquei a mão, e dois dias depois a almofada do
dedo indicador ainda está inchada. Neste momento sentei, esperando
enquanto as mulheres enfiavam seus braços em buracos à procura
dos caranguejos que habitam esses lamaçais. Os caranguejos também
foram colocados em trouxinhas de folhas. Mais tarde, essas trouxinhas
seriam colocadas na fogueira e os caranguejos seriam saboreados. […]
Enquanto esperava que elas catassem os tais bichos, percebi que Vô Luís
se embrenhava em alguma árvore, fazendo com que frutos caíssem de
forma barulhenta no chão. Eram os deliciosos hotakaa xiki. Comemos
bastante. Eu comeria muito mais, mas logo quiseram continuar a
jornada. Ainda consegui pegar três que botei no meu cesto para mais
tarde. Apesar de terem vários espalhados pelo chão, não me aventurei
a entrar na lama para buscá-los. Próxima parada: açaí. Vô Luís trouxe
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uns doze cachos que debulhamos sobre folhas de bananeira. Enquanto
eu e Salomé nos empenhávamos na função, as outras conversavam e
comiam. Agora os cestos estavam pesados. Salomé se propôs a levar
o meu, mas preferi levá-lo eu mesma. Andamos um pedaço. Paramos
mais uma vez para pegar açaí e Vô Luís apareceu com mais uns
quatro cachos. Desta vez, não insisti, e Nayara trouxe o cesto cheio.
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Considerações finais
Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é
morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos
xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos
resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco?
[…] Porque se a floresta for devastada, nunca mais vai nascer outra.
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 65)
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Considerações finais
pelos pesquisadores nos anos 1970. Isso pelo simples fato de que
as sociedades não são estáticas, mas interagem com a realidade.
O que encontrei foram yanomamis que usam relógio, chinelo,
se comunicam por rádio e andam de avião, mas que pensam a
partir de uma matriz de racionalidade yanomami. No processo de
pesquisa, não pude deixar de me impressionar com o fato de que,
apesar do grande número de artigos científicos, documentários e
reportagens sobre os Yanomami, continuam sendo negligenciados
seu modo de viver e seu profundo conhecimento da floresta e
de seu manejo.
1
Na página do Instituto Socioambiental (ISA), é possível ter acesso a muitos dados.
Disponível em: <ti.socioambiental.org>. Acesso em: 6 jul. 2017.
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Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; Laced, p. 39-48, 2002a.
Lizot, J. Círculo dos fogos: feitos e ditos dos índios Yanomami. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
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Brazil. In: Posey, D. A.; Balée, W. (Eds.). Resource management in Amazonia:
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1989. p. 115-128.
Wilbert, J.; Simoneau, K. (eds.). Folk literature of the Yanomami indians. Los
Angeles: UCLA Latin American Center, 1990.
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Esta obra foi composta em Gandhi Serif e impressa
pela XXXXXXXXX em offset 75g para a editora Sobrescrita
em agosto de 2017.