Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Quando recebi o convite para estar nesta mesa, logo pensei o que poderiam
esperar, desde a fonoaudiologia convocante, de alguém apresentado como um
filósofo, junto a um antropólogo e um médico. Lembrei-me logo de algo que,
nesses mesmos dias, uma amiga me relatava como uma frase de cabeceira de
seu pai: “um filósofo é alguém que, quando um molar dói, percebe que, para além
deste molar que dói, há muitos outros que não doem.” Gostei da imagem e logo
me veio à cabeça um tema que dói e que também não dói, sobre o qual venho
trabalhando há algum tempo e que também está associado diretamente a uma
falta, a uma das faltas mais “infaltáveis” como é a falta da linguagem. Refiro-me,
claro, à infância.
i. Infância
Percebam então que a etimologia reúne as crianças, aos não habilitados, aos
incapazes, aos deficientes, ou seja, a toda uma série de categorias que têm como
marca central uma ausência e que essa ausência fundamenta sua exclusão da
ordem social. É dessa falta marcada pela etimologia de infância, uma falta que
não pode faltar, uma falta a partir da qual uma linguagem, um direito e uma
política dominantes consagram uma exclusão, que gostaria de me pronunciar
nesta mesa. E como temos um psicanalista como debatedor da mesa, não vou
falar da falta enquanto falta, da falta propriamente dita, mas de como podemos
pensar essa falta desde um outro lugar, desde uma presença e não apenas desde
uma ausência, desde uma capacidade tanto quanto desde uma incapacidade,
desde um dentro com não menos força que desde um fora.
O movimento que estou tentando sugerir sobre a infância pode ser pensado a
respeito de muitas outras formas que aparecem na cultura e particularmente nos
discursos e práticas educacionais, revestidas de uma ausência originária: por
exemplo, o ignorante, aquele a quem falta o saber, o estrangeiro, aquele que não
fala a nossa língua ou o imprudente, aquele a quem falta a prudência, a sabedoria
prática, para se dar bem no mundo. Vou então me referir a outras formas de um
dispositivo que está muito longe de se limitar à infância.
Um belo exemplo destas formas está contido no livro O mestre ignorante,
de J. Rancière (Belo Horizonte: Autêntica, 2002). Rancière conta a história de um
pedagogo francês, pós-revolucionário, de inícios do século XIX, Joseph Jacotot.
Jacotot era um professor qualquer até que a situação política o obriga a deixar sua
terra. Sua estrangeiridade nasce, como quase sempre, de uma viagem. O retorno
dos Bourbons à França, obriga Jacotot a se exilar e, a convite do rei dos Países
Baixos, vai dar aulas de literatura na Universidade de Louvain. Ali, se enfrenta, de
cara, com sua estrangeiridade: seus alunos falam uma língua que ele desconhece
(holandês) e eles desconhecem a língua que Jacotot fala (francês). Não estão
dadas as condições da comunicação, não há língua em comum. O professor não
pode ensinar; os alunos não podem aprender: não há signos em comum entre
quem ensina e quem aprende. Não há como transmitir uma cultura em comum.
Não há nada em comum entre eles.
A primeira vista, um professor não pode ser um estrangeiro, pelo menos
para seus alunos. Eles devem falar a mesma língua para que ela sirva de
transmissão do saber consagrado pela instituição pedagógica. Mas Jacotot não
desiste e encontra uma edição bilíngüe – holandês e francês – do Telêmaco de
Fénelon, que pode ser a coisa comum tão desejada. Com a ajuda de um
intérprete, pede para que seus alunos aprendam a dizer o texto na língua que eles
ignoram e que ele sabe, o francês. Ninguém aposta muito na tentativa, incluído o
próprio Jacotot, mas os resultados são surpreendentes: os seus alunos
estrangeiros, holandeses, se deram muito melhor com o texto do que se dariam
muitos franceses! A experiência sacode o professor que não apenas está numa
terra lingüística estrangeira à sua, mas na terra mais estrangeira da pedagogia
dominante que era até então a sua própria terra pedagógica. Jacotot ensina sem
fazer o que fez sempre, o mesmo que fazemos quase todos os professores:
considerar a tarefa principal de um professor formar espíritos e fazer isso
transmitindo conhecimentos de forma ordenada, dos mais simples ao mais
complexos; em outras palavras, Jacotot, como quase todos os professores,
pensava que “o ato essencial do mestre era explicar ”.
Mas uma simples experiência de estrangeiridade ajuda a colocar em xeque a terra
da explicação. Um mestre tinha ensinado, os alunos tinham aprendido, sem
explicação. Jacotot ensinou sem fazer o que um professor deve fazer para ensinar
e os alunos aprenderem sem fazer o que um aluno deve fazer para aprender. Sem
transmissão de conhecimento, alguém ensinou e alguém aprendeu. Todo muito
estrangeiro. Jacotot decide empreender outras experiências para testar o valor da
ignorância e, surpreendentemente, confirma sua suspeita. Oferece cursos de
matérias que ignora (pintura, piano), sem explicar nada, e os alunos aprendem. A
estrangeiridade se multiplica: o professor não apenas não explica o que os alunos
aprendem, o ignora! Os alunos lotam as aulas, não querem deixar de aprender
com o estrangeiro. Jacotot torna-se completamente estrangeiro da escola, tanto
que aos poucos ele não encontra mais lugar em qualquer instituição educacional
(Rancière, 2002, p. 142-147).