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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas:

aproximando agendas e agentes

23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP)

A inserção da segurança pública na estratégia de articulação federativa e


multidisciplinar do programa Crack, é possível vencer.

MÁRCIO JÚLIO DA SILVA MATTOS

Ministério da Justiça

Departamento de Sociologia/UnB

1
1. Introdução

O consumo de crack tem se expandido em todo o mundo nos últimos


anos, contudo, tem sido marcado por especial intensidade no Brasil na última
década. Concomitante a esse movimento, a exposição que o tema tem tido
perante a opinião pública estimula a estigmatização de usuários e de espaços
e a inclinação por medidas extremadas de intervenção.
Diante da complexidade do fenômeno da dependência química e, em
particular, do crack, o sentido indicado pela revisão da literatura indica para a
integração entre as diferentes políticas públicas, extrapolando lógicas de
atuação apartadas no âmbito de medidas específicas. Nesta comunicação,
pretende-se discutir a inserção do campo da segurança pública na estratégia
de articulação federativa e multidisciplinar do Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e outras drogas. Denominado posteriormente de
Crack, é possível vencer, o referido plano foi lançado em maio de 2010, como
corolário do processo de construção coordenado pela Casa Civil da
Presidência da República. Em detalhe, o plano se propõe a induzir a integração
entre as redes de saúde, de assistência social, de segurança pública, de
educação e do sistema de garantia de direitos, nos diferentes níveis de
governo e com a participação da sociedade civil. Em outras palavras, a
estratégia de governança do programa abrange a articulação da União, dos
Estados e dos Municípios, em campos temáticos específicos, com suas
características, práticas a atores, cuja interseção é o alinhamento, conceitual e
de processos, sobre uma política de drogas.
Para tanto, apresenta-se um breve histórico de construção da política
sobre drogas no Brasil, caracterizando-o em torno das abordagens
proibicionista e integracionista. Em seguida, discute-se a relação entre os
conceitos de governamentalidade e de governança, associados à perspectiva
de gestão em rede. A partir daí, são apresentados os eixos e características do
Programa, para em seguida problematizar a inserção do campo de segurança
pública nessa discussão, por meio da análise dos relatos construídos durante
as reuniões de adesão e as oficinas de nivelamento conceitual conduzidas ao
longo de 2012.

2. As políticas sobre drogas no Brasil

A complexidade que envolve o tema das drogas e, consequentemente, a


dependência química, está associada a distintas concepções de natureza
social, política, econômica e moral. Por vezes, essas divergências acabam
resultando no agravamento dos problemas decorrentes da ineficiência do

2
Estado, em suas múltiplas abordagens, em estabelecer políticas que
contemplem as diversas interfaces envolvidas nesse fenômeno. Nesse sentido,
a discussão em torno das drogas no Brasil tem oscilado num movimento
pendular resultante das lutas concorrenciais protagonizadas por diversos
atores sociais e políticos sobre o tema das drogas no Brasil. Grosso modo, de
um lado, está a perspectiva proibicionista ou intervencionista, em que se
destacam ações de controle social, em especial de repressão ao tráfico e ao
consumo, conduzidas pelos órgãos do sistema de justiça criminal; no polo
oposto, encontram-se correntes que defendem abordagens que privilegiam a
perspectiva de saúde pública, cujas medidas estão centradas em múltiplos
atores conduzindo ações de prevenção, tratamento, educação e reinserção
social de longo prazo, sob o ponto de vista da integralidade em detrimento da
orientação jurídico-criminal (Brasil, 2003). A despeito dos pressupostos que
opõem as duas correntes citadas, o sentido do histórico de políticas públicas
sobre drogas indicam alternativas híbridas, antecipando soluções de
tangenciamento entre as perspectivas apresentadas.
Notadamente, a perspectiva proibicionista encontra respaldo num
conjunto de ideias que defendem a associação entre o grau severidade da
legislação e o controle social (Rodrigues, 2002, p.108). Nesse sentido, o
cenário internacional1 representou um espaço de discussões de incomum
consenso em torno da necessidade de reprimir o tráfico e o consumo de
drogas, repercutindo, sobretudo, a política estadunidense da primeira metade
do século XX2. Com efeito, o esforço dirigido à redução da oferta e da
demanda de drogas, que tende a criminalizar o tráfico e o uso, traz consigo um
componente moral que associa a droga à ilegalidade, numa percepção de que
o usuário ou o traficante estaria constantemente desafiando o pacto social ou a
própria coletividade. Essa lógica é refratária à ideia durkheiminiana de que o
crime seria um fato social e se definiria pela sanção social e não pelo fato em
si, ou seja, pela resposta de reafirmação e de fortalecimento da consciência
coletiva (Durkheim, 2007). Nesse sentido, a literatura registra críticas ao
posicionamento proibicionista por relacionar a pecha negativa das drogas
ilicitude em si, e não à sua toxicologia, aos efeitos deletérios clínicos e
terapêuticos que causam (Forte, 2007; Rodrigues, 2002; Garcia et ali., 2008;
Andrade, 2011). Em outras palavras, a droga se torna algo ruim por ser ilegal,
quando sua malignidade está diretamente relacionada à dependência e não à

1
Apenas no âmbito da Organização das Nações Unidas, destacam-se as convenções de 1961, em Nova
Iorque, de 1971, em Viena, e de 1988, novamente em Viena, como representativas da orientação
proibicionista em torno das discussões em torno das drogas. Ver Ribeiro e Araújo, 2006.
2
Neste sentido, conferir a discussão de Paulo Cesar de Campos Morais (2005) sobre a construção da
política estadunidense sobre drogas.

3
ilegalidade em si. E essa lógica acompanha a violência associada às drogas:
não se trata de um desígnio criminoso relacionado à rede do tráfico; pelo
contrário, a dependência é o fator que motiva grande parte dos atos de
violência dos usuários (Ribeiro e Laranjeira, 2012, p.76).
Historicamente, a legislação brasileira mostra-se alinhada com a
perspectiva proibicionista de abordagem do fenômeno das drogas. Desde
1940, com o Código Penal, a legislação criminalizou o porte e o tráfico de
substâncias entorpecentes, e o fez de maneira indistinta3. Posteriormente, em
1976, a Lei 6.368 reiterou a perspectiva proibicionista, prevendo, contudo, a
assistência à saúde de dependentes de substâncias entorpecentes. De toda
forma, as ações de saúde ainda estavam em segundo plano, sob o título de
recomendação e não uma determinação legal (Alves, 2009).
Já em 2002, a Lei nº 10.409 não alterou a criminalização do porte de
drogas, contudo trouxe referências às ações de redução de danos sociais e à
saúde, antecipando medidas protetivas e de integralidade, como a adoção de
medidas profiláticas e educativas aos usuários. Por sua vez, em 2005, a
Política Nacional Antidrogas4 apresentou características marcadamente
proibicionistas, como o objetivo de buscar o ideal de uma sociedade livre do
uso de drogas ilícitas e do seu uso indevido5, convocando o Estado a combater
firmemente as drogas. Por outro lado, o texto trazia como pressuposto “a
implantação de atividades, ações e programas de redução de danos, levando
em consideração os determinantes de saúde” (PNAD, 2002). Já em 2006, a lei
11.343 estabeleceu a possibilidade de penas alternativas 6 à privação de
liberdade para o usuário de drogas. Além disso, possibilitou-se a diferenciação
entre as condições de usuário e de dependente químico, o que indica o avanço
da perspectiva de saúde pública no tratamento legal da questão.
Em suma, se é verdade que a legislação brasileira está amparada em
pressupostos proibicionistas, também é inequívoco o movimento no sentido da
flexibilização da abordagem criminal, diferenciando papéis sociais em torno do
uso e do tráfico de drogas. Nesse sentido, é crescente nos estudos sobre as
agências policiais a percepção de que o encarceramento não representa a
alternativa mais eficiente em relação às drogas (Saffer e Chaloupka, 1998 apud

3
O artigo 281 do Código Penal equiparava as condutas importar ou exportar, vender ou expor à venda, e
trazer consigo, todas sujeitas às apenações de reclusão e multa.
4
A Política Nacional Antidrogas foi instituída por meio do Decreto nº 4.345/2002. Posteriormente, foi
modificada e passou a se chamar Política Nacional Sobre Drogas, esta aprovada por meio da Resolução
nº 03 do Conselho Nacional Antidrogas, de 27 de outubro de 2005.
5
Transcrição do pressuposto 2.1 da PNAD.
6
Tais como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Art. 28, incisos I a III. Para além, existem a
admoestação verbal e o pagamento de multa.

4
Morais, 2005). Pelo contrário, os resultados indicam que a repressão e o
tratamento de usuários são eficientes na redução do consumo, mas não a
prisão.

3. Governabilidade, governança e gestão em rede

Durante a análise da política pública representada pelo Programa Crack,


será recorrente a utilização das ideias de governamentalidade e de
governança, além da noção de gestão em rede. Em relação ao primeiro campo
semântico e conceitual, recorre-se à construção de Michel Foucault (1980,
2002 e 2009) acerca do funcionamento do Estado. O método do autor7,
conhecido como princípio da exterioridade, direcionava a análise não para o
Estado enquanto objeto, mas nas suas técnicas e processos, ou seja, nas
ações típicas de governo. Em outras palavras, a preocupação ontológica
residia nos mecanismos típicos que caracterizavam e tornavam possível o
objeto, ou seja, suas atividades, procedimentos, técnicas, saberes e poderes
(Foucault, 2002).
A governamentalidade, assim, diz respeito ao conjunto formado pelas
instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que
possibilitam o exercício de sua forma assaz e específica, embora complexa, de
poder, que tem por alvo a população, por principal forma de conhecimento a
economia política e por meio técnico essencial os aparatos de segurança
(Burchell et all, 1991, apud Amos, 2010). Em específico, a perspectiva
foucaultiana contribuiu com a diferenciação entre governo e estado, em que as
lógicas das relações de poder são apresentadas numa perspectiva histórica
desde o governo de territórios, do patriarcado e da soberania, o governo de
populações, dos dispositivos de segurança, até os saberes relacionados ao
aparato racional-legal weberiano de governo.
A discussão acerca de governança, por sua vez, é refratária à ciência
política e às ciências sociais8 e está associada às noções de ordem, de
direcionamento, de regulamentação (Mayntz, 2009, apud Amos, 2010).
Contudo, a partir da perspectiva orientada em Foucault, é possível pensar na
interpretação da governança como sendo a capacidade de direcionar, ordenar
vontades, por negociação, obediência ou adaptação (Amos, 2010), em suma,
refere-se à capacidade de governar. Mais específica que a
governamentalidade, a governança prescinde de relações de hierarquia que

7
É notória a aplicação do método na análise acerca das prisões apresentada pelo autor em Vigiar e Punir
(1995).
8
Para essa discussão, ver o artigo de Karin Amos (2010). Nas relações internacionais, o conceito é
debatido com referenciais próprios, em que a obra seminal é Governança sem governo, de Rosenau e
Czempiel (1992).

5
caracterizam o Estado, sendo marcada por estruturas em forma de rede. Em
grande medida, a noção de governança enseja relações de mútua
dependência, em que os atores em rede são regulados por relações de poder
pautadas pela participação e não pela vinculação.
Nesse sentido, ressaltar a análise de Walter Powell (1990) sobre as
formas de organização em rede é bastante apropriado. Segundo o autor, a
lógica de ordenamento em rede é caracterizada por padrões recíprocos de
comunicação e trocas, segundo a qual o pertencimento dos atores é participar
para continuar fazendo-o. A despeito de se dirigir ao campo de estudos
econômicos, a ideia de Powell possibilita implicações ao entendimento da
organização estatal: ora, a viabilidade do modelo de rede não está centrada na
lógica concorrencial dos mercados, tampouco na lógica hierárquica das
burocracias governamentais, mas sim no princípio da reciprocidade. Para
Peters (1998), esse conjunto de ideias oferece à teoria política ferramentas
para interpretar o relacionamento em rede na esfera estatal a partir de ações
como indução, coordenação, articulação e não mais a dispositivos como
comandar ou ordenar.
Assim, a governança das redes de políticas públicas compatibilizam
autonomias e interdependências, cuja análise deve levar em consideração um
novo tipo de capital, qual seja a capacidade de coordenação de ações dos
atores participantes em termos colaborativos e não essencialmente impositivos.
Para Costa (2011), os sistemas de normas institucionalizados, que são
marcantes na esfera estatal, contribuem no direcionamento e na coordenação
desses atores. Nesse sentido, parece importante direcionar esforços na
formulação de estruturas de governança que contemplem o convencimento e o
pertencimento dos diferentes atores com a vontade coletiva representada pela
política pública em questão.
Em suma, os conceitos de governamentalidade (Foucault, 1980) e a
noção de governança estruturada em rede (Powell, 1990; Peters, 1998),
permitem a compreensão de aspectos das políticas públicas a partir da análise
dos seus mecanismos de participação e de envolvimento dos atores envolvidos
em seu escopo. Nesse sentido, as relações de poder que atualmente orientam
o estabelecimento programático das políticas públicas em grande medida se
valem da lógica da gestão em rede, em que ações como induzir, coordenar e
articular ganham espaço, delineando o Estado como mais um ator no processo,
além da posição de protagonismo.

4. Cultura policial e tendências de gestão

6
A revisão da literatura sobre segurança pública quase sempre destaca
características que distanciam as agências policiais e seus gestores do
processo de construção compartilhado e integrado com outras políticas
públicas. É marcante na cultura policial a desconfiança, como uma espécie de
a priori que orienta o trabalho cotidiano nas ruas e, em alguma medida, o
próprio processo de tomada de decisões. Por um lado, destaca-se o isolamento
social e o forte sentimento de solidariedade interna como corolários da
exposição ao perigo e do próprio exercício de autoridade (Skolnick, 2005;
Waddington, 2005). Por outro lado, são recorrentes descrições acerca da
dificuldade em ter acesso a informações acerca do sistema criminal, em
especial das polícias, o que ajuda a explicar o ainda acanhado, porém
crescente, desenvolvimento do número de pesquisas nesse campo. A
publicação periódica e consistente de dados criminais ainda está distante de
ser regra no país, e a própria consideração acerca de sua relevância nas
instituições parece não ser uma questão prioritária.
Em que pese diferentes estudos apresentarem aspectos que marcam o
caráter fechado das agências policiais, existem indícios que salientam um
processo gradual de mudança. Para Garland (2001), dentre as diferentes
tendências observadas no campo do controle, duas estratégias parecem
organizar ações de maior impacto: a segregação punitiva e as parcerias
preventivas. A primeira diz respeito à centralidade das agências policiais e
prisionais, postulando maior autonomia desses autores. Por meio do
endurecimento do período e das condições prisionais, o discurso legalista
apresenta à opinião pública o argumento da eficiência alocativa dos recursos
existentes, de forma a garantir a neutralização dos apenados, e não mais o
ideal de reabilitação.
Em relação às parcerias preventivas, Garland refere-se à tendência de
coordenação de ações envolvendo diversas agências, sobretudo dirigidas à
prevenção criminal por meio da redução das oportunidades e da
conscientização do público. Numa palavra, Garland afirma que “esta estratégia,
que é constantemente invocada por autoridades da justiça criminal nos dois
lados do Atlântico, implica um conjunto de crenças criminológicas (as novas
criminologias da vida cotidiana); um estilo de governança (responsabilização,
governar à distância); e um repertório de técnicas e conhecimentos, todos
muito recentes e distintos dos modos de pensar e agir até então praticados”
(Garland, 2001, p. 314). Ora, destaca-se justamente a tendência ao
compartilhamento de responsabilidades e da aproximação ao público para
orientação. Corolário desse conjunto de ideias, estão medidas que visam a

7
diminuir a discricionariedade dos policiais, a expansão dos controles internos e
externos, os sistemas de monitoramento com recursos de tecnologia da
informação e a adoção de modelos de gestão por resultados nas dinâmicas
internas (Macedo, 2012).
Nesse sentido, Garland destaca a inclinação das agências de justiça
criminal, em especial as polícias, em atuar na redução dos medos, das
desordens e das incivilidades. A percepção de segurança que correntemente
afeta as pessoas diz respeito a sintomas de desordem em relação a aspectos
próximos ao cotidiano, relacionados à qualidade de vida. Mesmo as estatísticas
criminais indicam que apenas uma parcela reduzida dos atendimentos das
polícias está relacionada a crimes ou contravenções. Por óbvio, não implica
dizer que se trata de fatores de menor importância. De fato, é justamente o
oposto. O avanço do medo e da insegurança acompanha a frustração hodierna
na capacidade de se conseguir qualidade de vida (Bauman, 2008). Segundo
essa lógica, os encontros nos espaços públicos são marcados pela incerteza,
em que tende a prevalecer a não convivência, enclausurando as pessoas em
enclaves fortificados (Caldeira, 2008).
Com efeito, a atenção gerencial às demandas associadas à redução dos
medos e dos sintomas de desordens está diretamente relacionada à polícia
comunitária. Em grande medida, a estratégia comunitária de orientar a atuação
das agências policiais está relacionada à ampliação do conceito de segurança
para além da perspectiva legalista que conduz à vigilância, ao controle social e
ao cumprimento penal. Em sentido expandido, revela-se que a qualidade de
vida é o aspecto central da segurança pública, e, em última medida é aquilo
que orienta as concepções de desordem e mesmo de crime, este último
formalizado como sendo a vontade coletiva. Dessa forma, as agências policiais
são instituições constituídas para garantir condições mínimas de regulação das
relações interpessoais numa dada comunidade (Bayley, 2002, p. 22), tendo
sido conferidas, para esse desígnio, com o recurso do uso da força legítima de
maneira oponível a todos os demais. Existe, portanto, um mandato social que
confere às polícias as atribuições que atualmente se conhecem como lhes
sendo típicas, mas que na prática têm variado dentre atividades tão distintas
quanto a emissão de documentos, controles de aduanas e fronteiras,
policiamento ostensivo e condução de processos criminais, dentre outros.
A polícia comunitária, dessa forma, busca instaurar novas formas de
interação e parceria entre as instituições policiais e a sociedade, privilegiando o
atendimento preventivo (Trojanowicz e Bucqueroux, 2003). Para tanto, os
policiais são orientados a estreitar laços com a comunidade em que atuam,

8
conhecendo os moradores e os seus problemas que possam gerar crimes e
desordens. Lógica tal que, por princípio, deve caracterizar e conferir identidade
à polícia, ou seja, garantir a segurança por meio da mútua-interação com a
comunidade, que a auxilia e legitima. Ou seja, não existem unidades, frações,
setores comunitários. Como valor e princípio, deve ser encarado como
elemento fundante das relações conduzidas por seus agentes (NEV, 2009). Em
grande medida, a polícia comunitária inverte a lógica de priorizar os
atendimentos emergenciais e se esforça em resolver os problemas específicos
da região de forma preventiva, é o que se denomina de estratégia de
policiamento orientado para o problema9.
Em suma, a estratégia de polícia comunitária representa a tendência das
agências policiais em dispensarem atenção e esforços para questões que
afetam a qualidade de vida das pessoas. Mais do que isso, insere-se num
contexto de monitoramento de resultados em que se destaca a redução da
discricionariedade dos profissionais de segurança pública. A lógica de atuação
integrada e em contextos multiagenciais está associada à definição de
responsabilidades dirigidas à redução da criminalidade por meio do maior
acesso à informação e à diminuição das oportunidades de comportamentos
desviantes.

5. O Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas

O Governo Federal instituiu, em maio de 2010, o Plano Integrado de


Enfrentamento ao Crack e outras Drogas10. Como corolário do movimento de
flexibilização que o antecedeu, o referido plano estipula como seus objetivos a
prevenção do uso, o tratamento e a reinserção social de usuários e o
enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas. Posteriormente,
estes virão a ser os eixos de estruturação do Plano, em que os papéis dos
atores envolvidos ainda careciam de delineamento. Nesse sentido, a estrutura
de governança previa a articulação entre Estados, Municípios e a União,
observadas “a intersetorialidade, a interdisciplinaridade, a integralidade, a
participação da sociedade civil e o controle social” 11, coordenando as políticas
de “saúde, assistência social, segurança pública, educação, desporto, cultura,
direitos humanos, juventude, dentre outras” 12. A coordenação do comitê gestor

9
Os conceitos não se confundem, mas compartilham estratégias. Para uma discussão ampliada acerca
da relação entre a polícia comunitária e o policiamento orientado para o problema consultar a obra
seminal de Herman Goldstein, Problem-Oriented Policing, de 1990. Posteriormente, o autor apresenta
em Policiando uma sociedade livre (2003) discussões mais abrangentes acerca da atuação das agências
policiais, em especial no capítulo 2.
10
Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010.
11
Art. 1º, § 1º, do Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010.
12
Art. 1º, § 2º, do Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010.

9
do Plano era conduzida conjuntamente pelo Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, ao qual se vinculava a Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas, a SENAD, e pelo Ministério da Justiça.
Cabe novamente destacar o sentido de compatibilização entre as
vertentes proibicionista e integracionista no referido Plano. Se, por um lado,
são incentivadas medidas de enfrentamento ao tráfico de drogas pelas
agências policiais em conjunto com as Forças Armadas, inclusive com a
criação de um centro integrado de combate ao crime organizado e o
fortalecimento das polícias estaduais para o enfrentamento ao tráfico de crack
em áreas de maior vulnerabilidade ao consumo; por outro lado, a ampliação da
rede de atenção à saúde e à assistência social para o tratamento e a
reinserção de usuários de crack e a ampliação das ações de prevenção ajudam
a distinguir a diferença no tratamento em relação aos usuários. Com efeito, o
Plano não apresentou novidades quanto à criminalização do uso de drogas,
contudo estipulou a priorização da perspectiva de saúde pública na condução
das questões relacionadas ao consumo.
Em dezembro de 2011, o Plano foi alterado por meio do Decreto 7.637,
por meio do qual foram introduzidas mudanças significativas. Em primeiro
lugar, a coordenação executiva do programa passou a ser concentrada no
Ministério da Justiça, em detrimento da condução conjunta com o Gabinete de
Segurança Institucional. À época, a SENAD já havia sido transferida para o
Ministério da Justiça13, o que simbolicamente reflete o sentido da
desvinculação da questão das drogas do âmbito das discussões de segurança
nacional, refratárias à operação segundo uma lógica essencialmente militarista.
Em segundo lugar, destaca-se o incremento da governabilidade do Plano por
meio da obrigatoriedade de que os ministros e os secretários executivos dos
órgãos envolvidos participassem do processo de tomada de decisão e,
sobretudo, do monitoramento das ações. Anteriormente, a participação era
delegada a representantes dos órgãos envolvidos. Em especial, deve-se
destacar que a Casa Civil da Presidência da República14 tem papel de
destaque na articulação e no acompanhamento do Plano.
Em terceiro lugar, o instrumento de pactuação da União com os entes
federados passou a ser o termo de adesão. Em grande medida, essa opção
indica a preocupação em manter a linha conceitual do Plano durante as
negociações com os Estados e os Municípios, o que se reflete nas ações

13
O Decreto 7.426, de 7 de janeiro de 2011 formalizou a desvinculação da SENAD em relação ao
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
14
Em específico, o Plano é acompanhado pela estrutura da Subchefia de Articulação e Monitoramento da
Casa Civil.

10
imediatas e estruturantes previstas no decreto. No ordenamento anterior, não
havia definição quanto à formalização da cooperação com os entes federados,
o que ensejava a possibilidade de desvios em relação aos serviços e
estratégias pensados para o Plano de uma maneira geral. Além disso, corolário
do ponto anterior, passou-se a exigir dos entes federados a estruturação de
instâncias de articulação federativa nos entes, priorizando minimamente as
áreas de saúde, assistência social, segurança pública e educação.
Pragmaticamente, revela-se a preocupação em garantir a replicação das
estruturas de governança da União para os demais entes federados, ao menos
nos eixos prioritários do Plano. Por fim, a estratégia de divulgação e
comunicação foi alterada, sendo que a marca do Plano passou a ser Programa
Crack, é possível vencer.
Em suma, a estrutura de governança do Programa apresenta o duplo
desafio a que se propõe, quais sejam coordenar, articular e integrar diferentes
redes de políticas públicas, contemplando a participação da sociedade, e fazê-
lo em diferentes níveis de governo. Em outras palavras, o Programa traz em
suas diretrizes a perspectiva de atuação coordenada e integrada entre as redes
e lógicas de funcionamento da área de saúde, de assistência social, de
educação, do sistema de garantia de direitos, incluídas as instâncias de
participação social, em âmbito federal, estadual e municipal.

a. Os eixos

O Programa Crack é possível vencer está estruturado em três eixos:


cuidado, prevenção e autoridade. O eixo cuidado reúne medidas das políticas
de assistência social e de saúde com o objetivo de aumentar a oferta de
tratamento de saúde e atenção aos usuários, de acordo com o estabelecimento
de serviços para as diferentes necessidades, buscando a reinserção social e
oferecendo apoio integral aos usuários e às famílias (Brasil, 2012). Já o eixo
prevenção destina-se a reduzir o ritmo de crescimento do número de usuários
de crack por meio de ações da política de educação e de medidas de
informação e capacitação. Nas escolas e nos Centros Regionais de Referência,
a política de prevenção está associada à disseminação de informações acerca
da dependência química, seus efeitos e formas de prevenção e tratamento,
sendo essas últimas destinadas especificamente aos profissionais das redes
de saúde, assistência social, segurança pública e do sistema de justiça
criminal.
Por sua vez, as ações de segurança pública estão organizadas no eixo
autoridade e são conduzidas por meio da articulação do Ministério da Justiça,
em especial pela SENASP, Polícia Federal e Rodoviária Federal, com as

11
secretarias estaduais e municipais. A estratégia do eixo autoridade está
construída por meio de duas ações prioritárias, quais sejam a atuação nas
cenas de uso e o enfrentamento às organizações criminosas. Essa última
refere-se a medidas de incremento à atuação das agências policiais na
investigação e desmantelamento do crime organizado, sobretudo aquelas
estruturas relacionadas ao tráfico de drogas. Nesse sentido, desde o aumento
do número de policiais nas fronteiras, à realização de operações conjuntas com
as polícias estaduais, estão previstas ações de repressão à rede de
empreendedores (Sapori, 2012) do tráfico de drogas.
Em relação às cenas de uso, o objetivo é promover a atuação dos
profissionais de segurança pública em conjunto com as demais redes em
territórios de elevada vulnerabilidade social, garantindo as condições de
tratamento e cuidado dos usuários e inibindo o tráfico local de drogas. O
Decreto 7.17915 trata da “implantação de ações integradas de mobilização,
prevenção, tratamento e reinserção social nos Territórios de Paz do
PRONASCI e nos territórios de vulnerabilidade e risco”. A estratégia utilizada
para tanto é o fortalecimento da mobilização a partir da estratégia de polícia
comunitária.
Essa concepção contribuiu à construção do consenso entre os três eixos
em torno de áreas prioritárias, de forma a compatibilizar as lógicas de
articulação dos serviços das diferentes redes nos territórios. Tendo em vista a
compulsão ao uso associada à dependência de crack e a lógica de relações de
violência implicadas nas redes de bocas (Sapori, 2012:21), os territórios
urbanos marcados pela pecha de cracolândias têm aumentado
significativamente. Como decorrência, os espaços passam a ser de não
convivência, estigmatizando os seus frequentadores e sendo estigmatizados
numa espiral que tem na degradação o sentido de sua retroalimentação. Ora,
distingue-se um duplo movimento: o primeiro relacionado ao enfrentamento ao
tráfico de drogas nesses territórios e o segundo de proporcionar condições de
tratamento e cuidado aos usuários de crack pelos profissionais de saúde e
assistência social por meio da estratégia de polícia comunitária.

b. As relações de governança

A forma de adesão ao programa não constitui um eixo, todavia seus


instrumentos e rituais apresentam características que merecem destaque.
Rotulado como prioritário em âmbito federal, o Programa Crack passa a ser
incorporado ao conjunto de políticas acompanhadas pela Casa Civil da

15
Em específico, trata-se do inciso III, § 2º, Art. 5º do Decreto 7.179, de 20 de maio de 2010.

12
Presidência da República, o que enseja a condição de ser pautado pela chefa
do executivo aos ministros responsáveis. De maneira pragmática, os critérios
de distinção servem à governabilidade da política que remete à coordenação
de ações de diversas pastas, entretanto representam, ainda, razões à sua
priorização nas respectivas burocracias, tendo em vista a iminente
possibilidade de ter ações questionadas e medidas repreendidas. Dessa forma,
a estratégia de governança do programa abrange a articulação da União, dos
Estados e dos Municípios, em campos temáticos específicos, com suas
características, práticas a atores, cuja interseção é o alinhamento, conceitual e
de processos, sobre uma política de drogas.
Para aderir ao Programa, os entes devem, em primeiro lugar, constituir
um comitê gestor que tenha participação mínima das áreas de saúde,
assistência social, segurança pública e educação. Isso equivale a dizer que
cada município e o estado devem atender à regra. Feito isso, é realizada a
formalização por termo assinado pelo respectivo governador, prefeito e
ministros das áreas envolvidas. Por óbvio, essa rotina processual, envolvendo
diferentes redes de políticas públicas, suscita questionamentos e dúvidas,
desde aspectos conceituais àqueles mais procedimentais. Para tanto, criaram-
se as reuniões de pactuação e as oficinas de alinhamento conceitual.
Grosso modo, as reuniões de pactuação consistiram em viagens
conjuntas de técnicos16 do Governo Federal às capitais17 dos Estados, onde
permaneciam reunidos discutindo as respectivas políticas sobre drogas. Ao
final dessa reunião, haveria a assinatura do termo de adesão do município e do
estado ao Programa Crack, com a presença de um dos ministros das áreas
envolvidas. O quadro abaixo apresenta a relação das reuniões de pactuação
realizadas em 2012, com as respectivas datas e locais.

Reuniões de adesão

16
Os técnicos do Governo Federal envolviam, normalmente: Ministério da Saúde, profissionais da
Secretaria Nacional de Atenção à Saúde, em especial da Coordenação de Saúde Mental; Ministério da
Educação; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça, em
especial profissionais da Secretaria Nacional de Segurança Pública e da Polícia Federal; Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, profissionais da Secretaria Nacional de Assistência Social;
além da própria Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil da Presidência da República. No
final do ano, foram realizadas reuniões em Brasília, oportunidade em que os representantes dos Estados
e dos Municípios se dirigiam à capital.
17
Durante o ano de 2012, priorizou-se a pactuação com as capitais dos Estados. A partir da reformulação
do Programa no início de 2011, os Estados e as respectivas capitais receberam informações a respeito
das propostas da União. A partir daí, seguiu-se o processo de articulação federativa com aqueles entes
que manifestaram interesse em aderir ao Programa. Em 2013, a expansão do Programa dirigiu-se aos
136 municípios com população superior a 200 mil habitantes. Nessa oportunidade, a pactuação foi
conduzida por videoconferência. Os demais municípios interessados serão atendidos de acordo com o
diagnóstico de cada ministério.

13
Município/Estado Data de Local de Assinatura dos
realização realização termos de
adesão

1 Rio de Janeiro/RJ 4, 9 e 19/01/12 Rio de Janeiro 13/04/12

2 Recife/PE 16 e 17/01 /12 Recife 14/03/12

3 Maceió/AL 7 e 8/02/12 Alagoas 27/03/12

4 Porto Alegre/RS 13 e 14/02/12 Porto Alegre 17/04/12

5 Brasília/DF 3/04/12 Brasília 7/12/12

6 Salvador/BA 26 e 27/04 /12 Salvador Não houve

7 Florianópolis/SC 24 e 25/05/12 Florianópolis 5/7/12

8 Rio Branco/AC 28 e 29/05/12 Rio Branco 2/7/12

9 Belo 28 e 29/06/12 Belo Horizonte 29/6/12


Horizonte/MG

10 Vitória/ES 10 e 11/07/12 Vitória 11/7/12

11 Campo 24/07/12 Brasília 24/7/12


Grande/MS

12 Teresina/PI 26/07/12 Brasília 26/7/12

13 Curitiba/PR 27/07/12 Brasília 27/7/12

14 Fortaleza/CE 31/07/12 Brasília 31/7/12

15 São Paulo/SP 12/11/12 São Paulo 8/11/12

Reuniões de adesão do Programa Crack, é possível vencer. Fonte: MATTOS, 2013.

As oficinas de alinhamento conceitual e de monitoramento, por sua vez,


têm como objetivo propiciar a discussão acerca das políticas sobre drogas
envolvendo técnicos e gestores em nível federal, estadual e municipal,
relacionados às áreas de segurança pública, saúde, assistência social e do
sistema de garantia de direitos. Além disso, a intersetorialidade é apresentada
e analisada em dois dias de reuniões por meio de oficinas temáticas18 que
problematizam situações específicas e rotineiras envolvendo a dependência
química relacionada ao crack, tais como situações de urgência e emergência,

18
Comumente, são reunidos até 30 profissionais em cada oficina. De maneira voluntária, as pessoas
participam dos temas, respeitada a necessidade de garantir a representação de todas as redes em cada
oficina.

14
situações envolvendo crianças e adolescentes, envolvendo violência e
envolvendo pessoas em situação de rua. Durante as oficinas, são discutidas as
fragilidades e potencialidades das redes envolvidas, sendo estimulada a
participação dos técnicos na formulação de soluções de integração entre os
serviços associados a cada política. Ao final das oficinas, é realizado um
encerramento com a presença dos gestores das redes que integram o
Programa. O quadro abaixo apresenta a relação de oficinas realizadas em
201219.

Oficinas de alinhamento conceitual

Município/Estado Data de realização Local de realização

1 Rio de 18 e 19/09/12 Rio de Janeiro


Janeiro/RJ

2 Maceió/AL 11 e 12/9/12 Alagoas

3 Porto Alegre/RS 23 e 24/08/12 Porto Alegre

4 Florianópolis/SC 6 e 7/11/12 Florianópolis

5 Rio Branco/AC 26 e 27/09/12 Rio Branco

Oficinas de alinhamento conceitual do Programa Crack, é possível vencer. Fonte: MATTOS, 2013.

Em resumo, foram realizadas 15 reuniões de adesão e 5 oficinas de


alinhamento conceitual conforme tabelas acima. Ao final dessas reuniões e das
oficinas, foram produzidos relatórios que refletem as discussões e as
percepções dos participantes nos diferentes locais. Em que pese tais relatórios
não serem sistemáticos servirão de subsídios às considerações que serão
apresentadas adiante.

6. A inserção da segurança pública no Programa Crack, é possível


vencer.

A principal característica que ilumina a inserção do campo da segurança


pública no Programa Crack é possível vencer é a abordagem da gestão em
rede. Em virtude da complexidade do fenômeno do uso e do abuso de crack e
do poder destrutivo que se lhe associa, a concertação de diferentes atores e
medidas atende às diferentes interfaces que envolvem a questão. Trata-se de
pressuposto ao enfrentamento de suas dimensões a partir das abordagens de
diferentes políticas públicas, além do âmbito individual ou mesmo familiar. A

19
Para o ano de 2013, as oficinas de alinhamento serão realizadas seguindo à orientação conceitual e
metodológica apresentada, contudo a sua representação para atender a todos os Municípios está sendo
analisada.

15
própria opção pela articulação multiagencial e federativa revela a inefetividade
que envolve ações desconectadas e fragmentadas.
De fato, reside neste aspecto o ponto mais caro da proposta
concatenada pelo Programa Crack e talvez aquele de maior repercussão para
o amadurecimento das relações entre as políticas públicas envolvidas. A
intersetorialidade, a partir de uma perspectiva da gestão rede, pressupõe o
mútuo reconhecimento entre os parceiros de interação, em condições de
respeito às lógicas próprias de ordenação que informam as políticas
envolvidas. A indução e o convencimento são ações com sentido próprio, que a
despeito de se distanciarem de ordenar e comandar, não prescindem do
estranhamento que informa a relação entre atores, suas práticas, rotinas,
vontades e regras, desabituados em, muitas vezes, interagirem. E justamente
esse parece ser o fator de crescimento proporcionado pela perspectiva de
gestão em rede: a compreensão da alteridade, naquilo que a distingue e
qualifica, e o seu reconhecimento como parceiro de interação. Em outras
palavras, o Programa Crack estabelece as condições para atuação integrada e
coordenada entre os profissionais das redes de assistência social, de saúde,
de educação, do sistema de garantia de direitos, de segurança pública, dentre
outros, com o objetivo comum de enfrentar o uso e o abuso de crack. Adiante,
argumentaremos que essa estrutura pode repercutir em diversos outros
aspectos da organização da política de segurança pública.

a. Infraestrutura e qualificação

A partir da perspectiva de integração, o primeiro gargalo tratava de


compatibilizar lógicas de referenciação territorial distintas entre as redes
envolvidas. Enquanto as políticas de saúde, assistência e educação são
marcadamente municipalizadas, estruturadas em torno da oferta de serviços
definidos em conferências20 que envolvem as três esferas de governo e
inclusive com definição orçamentária para tanto, a política de segurança
pública é essencialmente centrada nos Estados. Além de possuírem os efetivos
mais numerosos, as instituições estaduais de segurança concentram grande
parte das atribuições criminais no país.
Mais do que isso, as duas principais instituições operam segundo lógicas
distintas e por meio de equipamentos e serviços também diversos: as polícias
militares são orientadas pelos valores da hierarquia e da disciplina e são

20
Como exemplo, em 2011 foi realizada a 14ª Conferência Nacional de Saúde, sendo que a primeira foi
realizada em 1941, durante o Governo de Getúlio Vargas. Em relação à política de assistência social, está
agendada para o final de 2013 a 9ª Conferência Nacional de Assistência Social, tendo iniciado o processo
em 1995. Ao passo que a primeira e única Conferência Nacional de Segurança Pública foi realizada em
apenas em 2009.

16
responsáveis pelo policiamento ostensivo; ao passo que as polícias civis não
são militarizadas e têm atribuições de investigação e de polícia judiciária. Às
guardas municipais cabe a segurança patrimonial. Dessa feita, os
equipamentos a serem utilizados no Programa crack serão bases comunitárias
móveis com videomonitoramento. Em que pese a mobilidade das cenas de
uso, a estratégia visa aliar carros e motos, para as rondas, ao
videomonitoramento, que poderá compartilhado com as centrais de comando.
Além disso, serão entregues pistolas de condutividade elétrica e espargidores
de pimenta para os profissionais que atuarão nas cenas de uso, como
alternativas de uso da força de menor efeito letal.
A iniciação dos profissionais de segurança pública no Programa Crack
se dá com a realização de um curso de capacitação que conta com 160 horas,
divididas em três módulos. Como critério para participação, exige-se que os
profissionais tenham prévia formação em polícia comunitária, sejam,
preferencialmente, voluntários a esse trabalho e que as turmas tenham
composição das instituições de segurança pública estaduais e municipais
envolvidas. O primeiro módulo21 possui duas semanas de duração e representa
uma especialização na estratégia de polícia comunitária, em que são
abordadas questões como gestão de projetos, direitos humanos e mobilização
comunitária.
Já o segundo módulo é denominado Tópicos Especiais em Policiamento
e Ações Comunitárias - TEPAC: Redes de atenção e cuidado e foi formatado
de maneira conjunta por especialistas das áreas de saúde, de assistência
social e de políticas. O objetivo principal é possibilitar aos profissionais de
segurança pública o reconhecimento das redes de atenção, prevenção e
cuidado e o seu papel nesse cenário. Destaca-se no TEPAC Redes de atenção
e cuidado a metodologia do psicodrama na condução do primeiro dia de
atividades, oportunidade em que os policiais, bombeiros e guardas municipais
assumem os papéis dos outros atores no contexto das cenas de uso. Dessa
forma, os limites e as possibilidades de intervenções podem ser deslindados,
por meio de posturas proativas voltadas à construção de soluções aos
problemas apresentados em grupo. Ademais, os docentes desse módulo são
integrantes das redes estaduais e municipais de saúde e de assistência.
Por fim, o terceiro módulo é o TEPAC Abordagem policial a pessoas em
situação de risco, cujo objetivo principal é oferecer alternativas ao uso da força
por meio do estímulo ao diálogo e ao emprego de técnicas de condução não
coercitiva. Amparado em diretrizes internacionais de uso da força,

21
Trata-se do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária (Ministério da Justiça, 2006).

17
recepcionados pela Portaria 4.22622, o curso estimula a reflexão por meio de
oficinas de vivenciamento em que são retratadas situações cotidianas que
envolvam a possibilidade de encaminhamento dos usuários aos serviços de
saúde e de assistência social.
Durante o ano de 2012, foram realizados 26 cursos de capacitação,
sendo formados 933 profissionais para atuação no Programa Crack é possível
vencer, dentre policiais militares, policiais civis, bombeiros e guardas
municipais. Os Estados que realizaram capacitações foram: Acre, Alagoas,
Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, além do Distrito Federal. No decorrer dos
cursos, são produzidos relatórios com as avaliações dos discentes acerca do
curso e dos docentes, além dos relatórios dos supervisores do Ministério da
Justiça que acompanharam parte dos cursos. Em seguida, tais relatórios serão
utilizados, juntamente com os relatórios das reuniões de adesão e das oficinas
de alinhamento conceitual, como dados secundários para a apresentação das
considerações a respeito da inserção do campo da segurança pública na
estratégia de articulação federativa e multidisciplinar do Programa.

b. Culturas profissionais

Inicialmente, foram recorrentes os relatos acerca da diversidade de


olhares acerca do uso da droga e da dependência química como
consequência. Dentre os profissionais de segurança, parece arraigado o
sentido da criminalização orientado pela perspectiva legalista que ajuda a
informar a cultura profissional dos agentes da lei. Em grande medida, foram
registrados diversos relatos favoráveis à internação compulsória dos usuários e
ao endurecimento transacional e penal dos traficantes. Por vezes, a linha entre
o uso e o tráfico foi questionada pelos profissionais de segurança pública,
identificando a dificuldade associada à diferenciação entre tais condutas.
Expressões como “viciado não tem discernimento, condição de escolha”
e “o que resolve é internar” exemplificam a reticência dos policiais. Por um
lado, são reflexos do comportamento conservador e pessimista que marca as
polícias em termos gerais, espécies de componentes que retratam os
esquemas de percepções e disposições que orientam o trabalho policial,
iluminando, em grande medida, a interpretação de aspectos do habitus policial
militar, como o processo de construção dos suspeitos (SILVA, 2009), a relação
com a exposição ao risco (SUASSUNA, 2011) e a valorização do policiamento
repressivo. Contudo, esse conservadorismo moral (SHEARING; ERICSSON,

22
A Portaria 4.226 de 31 de dezembro de 2011 foi fruto do trabalho coordenado entre o Ministério da
Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

18
2005) está diretamente relacionado ao sentimento de descrença e frustração
associados à proposta de medidas que pretendam ações integradas com
outras redes de políticas públicas.
Em alguma medida, o discurso de integração entre as próprias agências
policiais traz consigo uma pecha negativa, decorrente de iniciativas de gestão
compartilhadas empreendidas sem sucesso no país. Mais do que isso, a
reticência dos policiais está relacionada à ausência de representatividade nas
discussões, ou seja, o processo de tomada de decisão não lhes é
compartilhado.
Por outro lado, o desconhecimento acerca do funcionamento das redes
de assistência e de saúde ajuda a explicar aquelas expressões e
questionamentos como “levar pra onde?”, “qual o horário de funcionamento?” e
“em quanto tempo são atendidos?”. Mais do que desvendar as siglas
associadas aos serviços de saúde e assistência, a capacitação proporcionou a
interação entre os técnicos e os responsáveis pela execução das políticas. É o
caso, por exemplo, de visitas aos Centros de Atenção Psicossocial, que têm a
função de regulação e referenciação dos atendimentos relacionados à
dependência química no sistema de saúde, em que policiais relataram que
aquela era sua área de atuação e imaginavam se tratar de mais um posto de
saúde. Por vezes, durante as oficinas de alinhamento conceitual, os técnicos
das áreas de saúde destacaram a dificuldade que eles encontram em se
fazerem conhecer, em orientar acerca do funcionamento dos seus
equipamentos. Ora, se o aumento da oferta de serviços de atenção e cuidado
aos usuários é uma das principais diretrizes do programa, parece que a
sensação de isolamento relatada pelos policiais reflete aspectos de sua rotina
diária. Numa palavra, um policial militar em Fortaleza resumiu essa rotina de
relações: “de que adianta levar o viciado para a delegacia? Ele sai antes da
gente e volta pro mesmo lugar onde o pegamos. Não adianta, tem de internar”.
Outro ponto de discussão relatado nas oficinas de alinhamento
conceitual é a lógica de construção de vínculos por parte dos assistentes
sociais. Grosso modo, trata-se da estratégia de escutar necessidades e
demandas não apenas dos usuários, como também das pessoas que o
circundam e fortalecem, possibilitando a construção de vínculos para o
estabelecimento de planos de acompanhamento de acordo com suas
necessidades23. Por meio de diferentes técnicas, os assistentes sociais
compartilham aspectos da vivência daqueles sujeitos que os levam a gerar
relações de confiança, dentre eles relatos de violências e desvios. Em termos

23
TEPAC – RAC (Ministério da Justiça, 2012).

19
éticos e profissionais, essa lógica destina-se à reconstrução das condições de
superação do próprio indivíduo, o que nem sempre é entendido pelos agentes
da lei. Em alguns casos, durante as oficinas de alinhamento, essa lógica foi
questionada quanto à possibilidade de serem ocultadas situação de
cometimento de crimes. Em especial, a divergência entre as lógicas legalista e
de acolhimento foi ressaltada durante o psicodrama nas capacitações,
oportunidade em que, no papel de assistentes sociais, os policiais puderam
experimentar a dificuldade associada no convencimento sobre a dependência
química e a importância do envolvimento do contexto familiar.
Em relação à estratégia de redução de danos, houve pouca divergência
entre os policiais e os agentes redutores. Em grande medida, durante as
capacitações, os efeitos epidemiológicos associados ao uso de drogas
causaram grande impacto nos discentes. Numa ocasião, foram apresentadas
situações limites em que a indicação clínica seria a administração da própria
substância psicoativa, o que, discutido a partir de abordagens científicas, gerou
elevada adesão dos discentes. A menor resistência à abordagem de redução
de danos pode estar relacionada ao emprego de conteúdos apresentados em
pesquisas científicas relacionadas à vitimização e a estratégias de tratamento
em outros países. Quanto à lógica de construção de vínculos, em
contrapartida, a relação pode ser oposta: a dificuldade de apreensão das
interações envolvidas contribui à menor adesão, sobretudo diante de públicos
resistentes.
Dessa feita, a proposta do Programa Crack tem de lidar com obstáculos
internamente nas agências policiais, quer sejam de natureza gerencial, como a
reticência à integração que povoa o imaginário dos policiais, quer sejam
relacionados às dificuldades de compreensão e adesão a lógicas de
funcionamento e a serviços diversos. Em outras palavras, as práticas, os
hábitos, as rotinas que marcam o trabalho de cada uma desses profissionais
parecem seguir em sentidos que os afastam, e isso de maneira sistêmica, para
além de suas concepções morais. De toda forma, foi possível constatar uma
maior adesão à proposta de integração das redes apresentada pelo Programa
Crack, após as oficinas de alinhamento e, sobretudo, depois das aulas com os
profissionais das redes envolvidas.

c. Organização administrativa das redes de saúde, assistência e


segurança pública

A estruturação das redes de saúde, de assistência social e de segurança


pública foi um ponto recorrente de discussão tanto nas oficinas quanto nas
capacitações. Como um amálgama para críticas de natureza institucional, as

20
diferentes formas de organização federativa dos serviços de cada uma das
redes foram citadas como empecilhos à integração por profissionais de todas
as áreas envolvidas.
Em suma, tal sorte de colocações reflete o quadro que indica, por um
lado, a municipalização das redes de assistência social, de saúde e de
educação; e por outro a perspectiva centrada na figura dos Estados que orienta
a política de segurança pública. “Qual o 190 da saúde?”. Com esta pergunta,
diversos policiais e guardas questionavam a capacidade de atendimento das
demais redes. A distância entre os equipamentos também foi citada nos relatos
das oficinas de alinhamento. Sob o argumento de agirem de maneira higienista,
os agentes de segurança eram questionados por serem preconceituosos, por
atuarem tentando esconder os problemas da opinião pública, por vezes de
maneira truculenta.
Nesse sentido, o entendimento e o reconhecimento que antecedem o
processo de integração das redes configuram a oportunidade de maturidade
das políticas públicas envolvidas. Para além do Programa Crack, o processo de
integração, com rotinas e processos compartilhados, tanto em nível técnico
quanto operacional, se apresenta como possibilidade real de continuidade de
serviços e atendimentos. Por exemplo, a atuação dos policiais militares do
Programa Educacional de Resistência às Drogas nas escolas dirige-se à
prevenção primária ao uso e ao abuso de drogas por crianças e adolescentes
em idade escolar. Em comum com componentes curriculares do Programa
Mais Educação do Ministério da Educação, trazem abordagem de temas ainda
pouco discutidos, contudo por meio da figura do policial. A convergência entre
essas estratégias também se dá no atendimento ao público de crianças e
adolescentes matriculados em escolas, o que está longe de esgotar os grupos
em mais grave situação de vulnerabilidade.
Além do PROERD, diversos são os programas e ações conduzidos
pelas agências policiais e que se inserem no campo da prevenção social da
criminalidade. São iniciativas que associam práticas esportivas a palestras
educativas, como os projetos Bom de bola, bom na Escola24 e Esporte à meia-
noite25; atividades artísticas e de expressão cultural a rodas de conversas e
aulas sobre dependência química, como o Bloco Show26 e o Picasso não
pichava27; dentre outros, esses projetos trazem em comum a atuação de
profissionais de segurança pública que têm a prevenção como fio condutor. O

24
Projeto de Campo Grande/MS.
25
Programa de Brasília/DF.
26
Projeto de Belo Horizonte/MG.
27
Programa de Brasília/DF.

21
que se percebe é a inclinação por agregar serviços e formas de atuação que
por vezes divergem de reclamações desses mesmos agentes acerca da
diversidade de atendimentos que realizam e são instados a realizarem. Se por
um lado é forte perante a sociedade a crença de que a função policial está
centrada no controle do crime, por outro lado, internamente, os policiais se
veem diante de atividades bastante diversas. Em outras palavras, não se trata
de questionar a importância de que esses trabalhos sejam realizados, mas o
ponto principal é o protagonismo das agências policiais e a própria integração
às demais políticas existentes.
A filosofia de polícia comunitária pressupõe estratégias e modalidades
segundo as quais os serviços de segurança pública devem ser realizados. Mais
do que isso, dirige-se à modificação da maneira como esses serviços são
prestados, são interpretados pelos seus agentes. O ponto de inflexão indica a
participação da comunidade na identificação dos problemas e na construção
das soluções. Este conjunto de ideias, por exemplo, é compartilhado pela
política de saúde por meio da HumanizaSUS28. Segundo o caderno de
formação na política de humanização:

“a problemática adjetivada como desumanização, conceito síntese que


revela a percepção da população e de trabalhadores da saúde frente a
problemas como as filas, a insensibilidade dos trabalhadores frente ao
sofrimento das pessoas, os tratamentos desrespeitosos, o isolamento
das pessoas de suas redes sócio familiares nos procedimentos,
consultas e internações, as práticas de gestão autoritária, as deficiências
nas condições concretas de trabalho, incluindo a degradação nos
ambientes e das relações de trabalho etc, derivam de condições
precárias da organização de processos de trabalho, na perspectiva da
PNH. Ou seja, estes problemas são a expressão fenomênica - tomam
expressão concreta e real - de certos modos de se conceber e de ser
organizar o trabalho em saúde” (Ministério da Saúde, 2010).

Literalmente, o excerto indica o sentido da aproximação dos serviços


prestados às necessidades da comunidade que os recebe. Mais do que apenas
se aproximar das ideias defendidas pela filosofia de polícia comunitária, essa
citação indica um sentido que orienta as políticas públicas de uma maneira
mais ampla. Em que pese os argumentos que associem a adoção de
perspectivas semelhantes em virtude de crises de legitimidade enfrentadas
pelas diferentes redes, parece ser o caso engendrado por novas maneiras de

28
A respeito, ver a série de cadernos publicados pelo Ministério da Saúde em 2010.

22
formular, estruturar e conduzir políticas públicas. Com efeito, esta corrente está
associada ao modelo gestão em rede, em que as ações são associadas ao
convencimento e à indução, em detrimento do protagonismo de relações
hierárquicas próprias de comandar e ordenar (Powell, 1990).
Em suma, o que se apresenta é a possibilidade que o Programa Crack
esteja conduzindo a um processo de integração entre diferentes lógicas de
construção e condução de políticas públicas que marcam não apenas suas
especificidades, mas a própria constituição do exercício de governar em
sociedades democráticas. Nesse sentido, a aproximação entre as lógicas de
saúde, assistência social e de segurança pública são antes uma forma de
reconhecimento que tende a mover as relações entre o Estado e a sociedade.

7. Considerações finais

A discussão apresentada possibilitou a apresentação do Programa


Crack é possível vencer e suas características de composição, articulação e
condução. Nesse sentido, a lógica de coordenação federativa e multidisciplinar
que pressupõe a integração entre diferentes políticas em níveis de governos
distintos impõe formulações próprias da perspectiva de gestão em rede.
O Programa em si foi apresentado em torno de suas características que
contemplam tanto ideias de vertente proibicionistas, quanto aquelas de
orientação integracionista, tendentes à flexibilização da abordagem criminal,
diferenciando papéis sociais em torno do uso e do tráfico de drogas. A própria
composição da governança do Programa indica o fio condutor que conduz a
estruturação da política: ações articuladas envolvendo saúde, assistência
social, educação, segurança pública e o sistema de garantia de direitos.
Em especial, dedicou-se atenção à inserção do campo de segurança
pública nesse cenário de construção compartilhada e de atuação integrada. A
estratégia de polícia comunitária orienta a perspectiva das ações de segurança
pública nas cenas de uso e abuso de crack, diferenciando o tratamento
destinado aos traficantes. Em outras palavras, as forças policiais são
orientadas a distinguirem as práticas e condutas das redes de bocas, por um
lado, e das redes de empreendedores por outro.
A partir das análises dos relatórios produzidos durante as oficinas de
alinhamento conceitual entre os técnicos das diferentes áreas e os cursos de
capacitação dos profissionais de segurança pública, distinguiram-se três
conjuntos de considerações principais. Em primeiro lugar, as divergências em
relação às culturas profissionais foram marcantes. A percepção dos próprios
indivíduos que integram essas redes por vezes diverge quanto à natureza do
uso de droga. Enquanto o sentido da criminalização é sedimentado pela

23
orientação legalista dos agentes de segurança, a dimensão da integralidade do
cuidado estabelece os contornos da discussão na assistência e na saúde. Em
outras palavras, as práticas, os hábitos, as rotinas que marcam o trabalho de
cada uma desses profissionais parecem seguir em sentidos que os afastam, e
isso de maneira sistêmica, para além de suas concepções morais. Em
especial, a oposição entre a lógica de redução de danos e a estratégia de
redução de danos, por um lado, e a criminalização dos usuários, por outro, foi
marcada nos relatórios.
Em segundo lugar, as diferentes formas de organização administrativa
das redes também foram motivo de discussões. Por um lado, as redes de
assistência social, de saúde e de educação são marcadas pela
descentralização da oferta de seus serviços e da estruturação de suas redes
de governança, de acordo com as diferentes necessidades, no sentido da
municipalização. Por outro lado, a segurança pública é concentrada em nível
estadual, relegando à gestão municipal atividades de menor prestígio. Os
relatos mostram, ainda, a resistência na articulação com esferas políticas
distintas.
Em terceiro lugar, os mecanismos de interação entre as gestões nos
diferentes níveis de governo são orientados por lógicas também distintas: as
redes de cuidado e proteção foram formatadas por meio de conferências
nacionais que permitiram a consolidação de instrumentos de gestão próprios,
como o financiamento por meio de repasses fundo a fundo. Já na segurança
pública, o processo de redemocratização é o ponto de inflexão na análise de
sua estruturação, sendo que a vinculação constitucional das instituições aos
Estados e à União estabeleceu as características atuais. Quanto às formas de
financiamento, a única conferência nacional sobre o tema possui como legado
a modificação do fundo nacional e a constituição de um conselho que a regula.
Os relatórios demonstram que a mobilização de recursos é recorrente na
comparação entre as redes envolvidas.
Por fim, discute-se a tendência representada pelo Programa Crack é
possível vencer que conduz à formulação de políticas públicas orientadas para
integração de processos e rotinas. Nesse sentido, a aproximação entre as
lógicas de saúde, assistência social e de segurança pública são antes uma
forma de reconhecimento que tende a mover as relações entre o Estado e a
sociedade.

8. Referências bibliográficas

24
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