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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO Parte I – O DIREITO CIVIL E O Parte II – O DIREITO DO CONSUMIDOR E O

NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL


Doutor em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela
UFPE. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. O novo perfil da curatela: interseções entre a LBI e o CPC O diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO

O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL


Código de Processo Civil e a substancial ampliação do âmbito
Membro do Ministério Público Federal (Procurador da
República).
Nelson Rosenvald
de proteção dos direitos fundamentais do consumidor em MICHAEL CÉSAR SILVA
A concretização dos direitos da pessoa com deficiência e o juízo
VINÍCIUS LOTT THIBAU

REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS


reconhecimento da possibilidade das diretivas antecipadas Claudia Lima Marques | Luis Alberto Reichelt
MICHAEL CÉSAR SILVA como exercício da sua autonomia privada
A dinâmica de redistribuição do ônus da prova no novo Coordenadores A abertura do sistema jurídico – sem desconhecer
Doutor e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Cristiano Chaves de Farias | Melissa Ourives Veiga
Código de Processo Civil a relevância das regras jurídicas – acolhe gene-
Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista Da (im)possibilidade de celebração do negócio jurídico Bruno de Almeida Lewer Amorim | César Fiuza
em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade processual pela pessoa com deficiência através da tomada rosamente os princípios, dotando-os de força
de decisão apoiada Os impactos do Código de Processo Civil de 2015 na vinculante. As bases, conceituais e normativas,
Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de
distribuição judicial do ônus de provar relativa ao direito do
Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de Direito da Bruno Oliveira de Paula Batista | Marcos Ehrhardt Jr. das quais o intérprete dispõe, neste século, au-
consumidor
Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio). Professor Nulidade dos negócios jurídicos e conhecimento de ofício André Cordeiro Leal | Vinícius Lott Thibau torizam a construção de horizontes de sentido
da Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universi- pelo juiz: entre o Código Civil e o novo Código de Processo
Negociação processual e as relações de consumo: uma que protejam mais amplamente o ser humano,

O DIREITO PRIVADO E O
Civil (Lei no 13.105/2015)
dade Católica de Minas Gerais. Professor da Escola análise do instituto à luz da vulnerabilidade presumida do
Superior Dom Helder Câmara. Professor da Escola de Paulo Nalin | Renata C. Steiner à luz dos preceitos consagrados na Constituição
consumidor
Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro Sistema de prova do fato jurídico à luz dos Códigos Civil e de Lucas Magalhães de Oliveira Carvalho | Michael César Silva | da República. Aliás, a revitalização que o direito
Processo Civil Samuel Vinícius da Silva privado experimenta se conecta com essa aber-
da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/MG.
Membro do Instituto Brasileiro de Estudos da Respon-
sabilidade Civil (IBERC). Advogado.

VINÍCIUS LOTT THIBAU


Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Tutela contra o ilícito: em busca de contornos conceituais
Felipe Peixoto Braga Netto | Karine Cysne Frota Adjafre
Reflexos da nova legislação processual civil no direito do
consumidor: a ampliação dos mecanismos de amparo
Elcio Nacur Rezende | Gabriella de Castro Vieira
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL tura. O direito privado dialoga não só com outras
fontes normativas, mas também redefine suas
respostas normativas a partir de (significativas)
Parte III – O DIREITO EMPRESARIAL E O
Doutor e Mestre em Direito Processual pela PUC
Tutela provisória e a liminar possessória
Marcelo de Oliveira Milagres
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS mudanças teóricas. Nossos passos, nessa medida,
Minas. Professor de Direito Processual Civil no Curso Os problemas na aplicação da teoria da desconsideração não são dados apenas pelas normas jurídicas,
Repetição de pagamento indevido. Condenação judicial.
de Graduação em Direito da Escola Superior Dom Exceção de prescrição (NCPC, art. 525, §1o, VII)
da personalidade jurídica e as perspectivas decorrentes da mas também por novos modos de percepção,
entrada em vigor do CPC/2015
Helder Câmara, nas modalidades integral e conven- Humberto Theodoro Júnior democraticamente construídos.
Fernando Solá Soares | Giovani Ribeiro Rodrigues Alves |
cional. Professor de Direito Processual Civil no Curso Marcia Carla Pereira Ribeiro
de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Cível da Assistência judiciária como direito do necessitado, e não Nessa linha de intelecção, o projeto normati-
como favor do Estado no Código de Processo Civil Incidente de desconsideração da personalidade jurídica no
Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados vo constitucional permeado pela dignidade da
Mariza Rios | Newton Teixeira Carvalho Código de Processo Civil de 2015

FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO


do Brasil – Seção Minas Gerais. Professor de Direito Vinícius Jose Marques Gontijo pessoa humana, solidariedade, igualdade, dia-
Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito: a busca
ao respeito da inexistência de hierarquia entre as provas A desconsideração da personalidade jurídica no Código de
logicidade e fiscalidade impõe a transformação
em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica

MICHAEL CÉSAR SILVA


dos conteúdos normativos do sistema jurídico

VINÍCIUS LOTT THIBAU


Renato Campos Andrade Processo Civil de 2015
do Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Luciana de Castro Bastos | Rodrigo Almeida Magalhães
Universidade Católica de Minas Gerais. Presidente Conta-se em dias úteis ou dias corridos o prazo para pagamento para coadunar com o processo de reconstrução
da Comissão de Estudos sobre o Novo CPC da Escola
no cumprimento definitivo de sentença por quantia certa? Novos horizontes da dissolução parcial de sociedades dos paradigmas do direito privado e do direito
Marcos Boechat Lopes Filho Pedro D’Angelo Ribeiro | Roberto Henrique Pôrto Nogueira
Superior Dom Helder Câmara. Vice-Presidente do processual no contexto do Estado Democrático
Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos. Advogado. de Direito.

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O DIREITO PRIVADO E O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Repercussões, Diálogos e Tendências
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
MICHAEL CÉSAR SILVA
VINÍCIUS LOTT THIBAU
Coordenadores

O DIREITO PRIVADO E O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Repercussões, Diálogos e Tendências

Belo Horizonte

2018
© 2018 Editora Fórum Ltda.

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.

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D597 O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões,


diálogos e tendências/ Felipe Peixoto Braga Netto, Michael César
Silva, Vinícius Lott Thibau (Coord.). – Belo Horizonte : Fórum, 2018.
441 p.

ISBN: 978-85-450-0456-1

1. Direito Privado. 2. Direito Civil. 3. Código de Processo Civil. I.


Braga Netto, Felipe Peixoto. II. Silva, Michael César. III. Thibau,
Vinícius Lott. IV. Título.
CDD 342.1
CDU 347.1

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e
tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 441 p. ISBN 978-85-450-0456-1.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..................................................................................... 15

PARTE I
O DIREITO CIVIL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.......... 17

CAPÍTULO 1
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E
O CPC
Nelson Rosenvald....................................................................................... 19
1.1 Flexibilização da curatela............................................................. 19
1.1.1 O binômio capacidade negocial e capacidade de consentir.... 20
1.2 A teoria dos intervalos lúcidos e o termo legal de
incapacidade................................................................................... 27
1.3 O fim da curatela extensiva.......................................................... 29
1.4 A curatela transitória e as revisões periódicas.......................... 30
1.5 Curatela conjunta........................................................................... 34
1.5.1 Curatela conjunta compartilhada................................................ 35
1.5.2 Curatela conjunta fracionada....................................................... 36
1.6 A humanização da curatela no CPC/15...................................... 38
1.6.1 Curador-cuidador.......................................................................... 38
1.6.2 Personalização da curatela........................................................... 41
1.7 Conclusão ....................................................................................... 43
Referências.................................................................................................... 43

CAPÍTULO 2
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE
DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS COMO EXERCÍCIO DA SUA
AUTONOMIA PRIVADA
Cristiano Chaves de Farias, Melissa Ourives Veiga............................. 45
2.1 A importância das diretivas antecipadas como mecanismo
de efetivação da autodeterminação da pessoa humana........... 45
2.2 Nova teoria das incapacidades: a inclusão da pessoa
com deficiência como sujeito de direito em igualdade de
condições com as pessoas sem deficiência e a liberdade de
declarar as diretivas antecipadas................................................. 50
2.3 A pessoa com deficiência enquadrada no conceito de
incapacidade, a estrita abrangência da curatela e a
possibilidade de prática de atos existenciais, inclusive as
diretivas antecipadas..................................................................... 53
2.4 Possibilidade de diretivas antecipadas de vontade por
pessoas com deficiência sob o regime de curatela.................... 56
Referências ................................................................................................... 59

CAPÍTULO 3
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO
JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
ATRAVÉS DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA
Bruno Oliveira de Paula Batista, Marcos Ehrhardt Jr........................... 61
3.1 Introdução....................................................................................... 61
3.2 O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a tomada de decisão
apoiada............................................................................................ 62
3.2.1 A tomada de decisão apoiada e a autonomia da pessoa com
deficiência....................................................................................... 67
3.3 Negócio jurídico processual......................................................... 70
3.3.1 Delimitação do conceito de negócio jurídico processual......... 73
3.4 Possibilidade de realização do negócio jurídico processual
por meio da tomada de decisão apoiada.................................... 76
3.4.1 Esclarecimentos sobre a capacidade processual....................... 76
3.4.2 Negócio jurídico processual por meio da tomada de decisão
apoiada............................................................................................ 78
3.4.3 Alguns limites ao negócio processual praticado por meio da
tomada de decisão apoiada.......................................................... 80
3.5 Considerações finais...................................................................... 83
Referências.................................................................................................... 84

CAPÍTULO 4
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO
DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015)
Paulo Nalin, Renata C. Steiner................................................................. 87
4.1 Apresentação do problema: a validade ..................................... 87
4.2 Características próprias das nulidades....................................... 89
4.3 O caráter absoluto da nulidade e as exceções à sua
decretação....................................................................................... 92
4.4 Conhecimento da nulidade de ofício e oitiva das partes: art.
168, parágrafo único, do Código Civil versus art. 10 do novo
Código de Processo Civil.............................................................. 95
4.4.1 Decretação de nulidade e direito de participação no
processo........................................................................................... 97
4.4.2 Decretação de nulidade e princípio da conservação dos
pactos............................................................................................... 99
4.4.3 Da validade à eficácia: tendências de direito material e
processual....................................................................................... 101
4.5 Notas conclusivas.......................................................................... 102
Referências ................................................................................................... 103

CAPÍTULO 5
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS
CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
Guilherme Calmon Nogueira da Gama.................................................. 105
5.1 Noções gerais.................................................................................. 105
5.2 Prova: conceito, princípios e espécies......................................... 108
5.3 Modalidades de prova.................................................................. 112
5.3.1 Confissão......................................................................................... 113
5.3.2 Prova documental.......................................................................... 115
5.3.3 Prova testemunhal......................................................................... 122
5.3.4 Prova pericial.................................................................................. 126
5.4 Presunção........................................................................................ 131
5.5 Nota conclusiva.............................................................................. 133
Referências.................................................................................................... 134

CAPÍTULO 6
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS
CONCEITUAIS
Felipe Peixoto Braga Netto, Karine Cysne Frota Adjafre.................... 137
6.1 Introdução: contextualização e precisões conceituais.............. 137
6.2 Ilícito civil é sinônimo de responsabilidade civil?.................... 140
6.2.1 Uma categoria com eficácia única?............................................. 140
6.2.2 Críticas à concepção da eficácia única........................................ 141
6.2.3 Convivendo com as outras eficácias........................................... 143
6.2.3.1 Ilícito indenizante.......................................................................... 144
6.2.3.2 Ilícito caducificante........................................................................ 144
6.2.3.3 Ilícito autorizante........................................................................... 145
6.2.3.4 Ilícito invalidante........................................................................... 147
6.3 Abuso de direito ou ilícito funcional.......................................... 148
6.3.1 O ilícito funcional como uma cláusula geral............................. 151
6.4 Tutela contra o ilícito no novo Código de Processo Civil........ 152
6.4.1 Noções preliminares...................................................................... 152
6.4.2 Tutela genérica × tutela específica............................................... 155
6.4.3 Tutela preventiva × tutela repressiva.......................................... 157
6.4.4 Tutela inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória............. 160
6.5 Considerações finais – tutela contra o ilícito e
prescindibilidade de discussão judicial sobre dano................. 163
Referências.................................................................................................... 166

CAPÍTULO 7
TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA
Marcelo de Oliveira Milagres................................................................... 169
7.1 Introdução....................................................................................... 169
7.2 Tutela provisória: disposições gerais.......................................... 171
7.3 Tutela de urgência......................................................................... 172
7.3.1 Tutela de urgência antecipada antecedente .............................. 172
7.3.2 Tutela de urgência cautelar antecedente ................................... 174
7.4 Tutela de evidência........................................................................ 175
7.5 Tutela liminar possessória............................................................ 176
7.6 Conclusão ....................................................................................... 178
Referências.................................................................................................... 178

CAPÍTULO 8
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO
JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
Humberto Theodoro Júnior...................................................................... 179
8.1 Introdução....................................................................................... 179
8.2 Abolição dos embargos à execução do título judicial.............. 179
8.3 Natureza jurídica da impugnação............................................... 181
8.4 Defesa de mérito............................................................................ 183
8.5 A prescrição é basicamente um fenômeno do direito
material............................................................................................ 183
8.6 Prescrição da pretensão condenatória e da pretensão
executiva......................................................................................... 186
8.7 Um caso particular de prescrição e decadência: a sentença
da ação de repetição do pagamento indevido........................... 187
8.8 Visão pretoriana moderna do enriquecimento sem causa...... 189
8.9 Observações conclusivas............................................................... 191
Referências.................................................................................................... 192

CAPÍTULO 9
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO,
E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL
Mariza Rios, Newton Teixeira Carvalho ................................................ 193
9.1 Introdução....................................................................................... 193
9.2 Considerações sobre Estado e democracia ................................ 195
9.3 O princípio da gratuidade de justiça na jurisprudência até o
advento do Código de Processo Civil de 2015 ......................... 198
9.3.1 O papel da Defensoria Pública na efetividade do direito ao
acesso à justiça ............................................................................... 199
9.4 O princípio da gratuidade de justiça no atual Código de
Processo Civil ................................................................................ 200
9.4.1 Decisão judicial ............................................................................. 201
9.5 A dificuldade no deferimento da assistência judiciária por
alguns juízes do Estado de Minas Gerais ..................................... 204
9.5.1 A jurisprudência e a realidade prática ...................................... 206
9.6 Alguns argumentos inválidos para o indeferimento da
assistência judiciária ..................................................................... 207
9.7 Conclusão........................................................................................ 209
Referências ................................................................................................... 211

CAPÍTULO 10
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE
HIERARQUIA ENTRE AS PROVAS
Renato Campos Andrade........................................................................... 213
10.1 Introdução....................................................................................... 213
10.2 Implicações probatórias no direito civil e processual civil...... 214
10.3 Ônus da prova: importância e implicações jurídicas ............... 218
10.4 Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito............... 220
10.5 Alterações causadas pelo Código de Processo Civil e
possíveis efeitos.............................................................................. 221
10.6 Considerações finais...................................................................... 225
Referências.................................................................................................... 226

CAPÍTULO 11
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO
PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE
SENTENÇA POR QUANTIA CERTA?
Marcos Boechat Lopes Filho..................................................................... 229
11.1 Introdução....................................................................................... 229
11.2 Normas processuais e normas materiais.................................... 230
11.3 Prazos processuais, prazos materiais e prazos mistos............. 233
11.4 Natureza do prazo para pagamento........................................... 236
11.5 Considerações finais...................................................................... 242
Referências.................................................................................................... 245

PARTE II
O DIREITO DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL......................................................................................... 247

CAPÍTULO 1
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A SUBSTANCIAL
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO CONSUMIDOR EM JUÍZO
Claudia Lima Marques, Luis Alberto Reichelt...................................... 249
1.1 Introdução....................................................................................... 249
1.2 A formação de um sistema de caráter protetivo a partir
da harmônica combinação entre o Código de Defesa do
Consumidor e o novo Código de Processo Civil ..................... 250
1.3 As inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de
2015 e sua compatibilização com o regime instituído pelo
Código de Defesa do Consumidor.............................................. 253
1.4 O diálogo das fontes entre o novo Código de Processo Civil
e o Código de Defesa do Consumidor e o incremento em
termos de cidadania processual do consumidor....................... 258
1.5 Reflexões finais............................................................................... 260
Referências.................................................................................................... 261

CAPÍTULO 2
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Bruno de Almeida Lewer Amorim, César Fiuza................................... 265
2.1 Introdução....................................................................................... 265
2.2 Distribuição e redistribuição do ônus probatório no novo
Código de Processo Civil.............................................................. 266
2.3 A redistribuição do ônus probatório antes do novo Código
de Processo Civil............................................................................ 272
2.4 Inversão ope judicis do ônus da prova nas relações de
consumo ‒ principais controvérsias e soluções......................... 275
2.5 Conclusão........................................................................................ 285
Referências.................................................................................................... 286

CAPÍTULO 3
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA
DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA AO
DIREITO DO CONSUMIDOR
André Cordeiro Leal, Vinícius Lott Thibau........................................... 289
3.1 Introdução....................................................................................... 289
3.2 Os requisitos legais autorizativos da distribuição judicial
do ônus da prova no Código de Proteção e Defesa do
Consumidor ................................................................................... 291
3.2.1 A verossimilhança das alegações do consumidor e a
imprestabilidade do raciocínio indutivo.................................... 291
3.2.2 A hipossuficiência do consumidor e a assimetria de
informações.................................................................................... 294
3.3 O CPC de 2015 e o debate dogmático-consumerista sobre o
momento procedimental da distribuição ope judicis do ônus
de provar ........................................................................................ 297
3.4 A controversa (ir)recorribilidade da decisão judicial sobre o
ônus de provar............................................................................... 301
3.5 Conclusão........................................................................................ 303
Referências ................................................................................................... 303
CAPÍTULO 4
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO:
UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA VULNERABILIDADE
PRESUMIDA DO CONSUMIDOR
Lucas Magalhães de Oliveira Carvalho, Michael César Silva,
Samuel Vinícius da Silva........................................................................... 307
4.1 Introdução....................................................................................... 307
4.2 Negociações processuais típicas e atípicas................................. 309
4.3 Contratos de adesão...................................................................... 316
4.4 A principiologia contratual e a negociações processuais
em sede de relações de consumo: reflexos nos contratos
coletivos e atuação do Ministério Público.................................. 320
4.5 Conclusão........................................................................................ 326
Referências.................................................................................................... 329

CAPÍTULO 5
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL
NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS
MECANISMOS DE AMPARO
Elcio Nacur Rezende, Gabriella de Castro Vieira................................. 333
5.1 Introdução....................................................................................... 333
5.2 A jurisdição internacional e o foro do domicílio do
consumidor .................................................................................... 334
5.2.1 O foro do domicílio/residência do consumidor: um
mecanismo de tutela da parte mais vulnerável ........................ 336
5.2.2 A jurisdição do domicílio/residência do consumidor: um
instrumento processual de combate à abusividade ................. 339
5.3 A atuação dos magistrados: o dever de cooperação na
resolução dos conflitos.................................................................. 342
5.3.1 Poder diretivo do juiz................................................................... 344
5.4 Considerações finais...................................................................... 348
Referências.................................................................................................... 349

PARTE III
O DIREITO EMPRESARIAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL............................................................................................................... 351
CAPÍTULO 1
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS
PERSPECTIVAS DECORRENTES DA ENTRADA EM VIGOR DO
CPC/2015
Fernando Solá Soares, Giovani Ribeiro Rodrigues Alves,
Marcia Carla Pereira Ribeiro..................................................................... 353
1.1 Introdução....................................................................................... 353
1.2 A personalidade jurídica e o princípio da autonomia
patrimonial..................................................................................... 354
1.3 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica:
distorções na sua aplicação.......................................................... 356
1.4 Devido processo legal, contraditório e ampla defesa na
desconsideração da personalidade jurídica pelo NCPC.......... 363
1.5 Conclusão........................................................................................ 367
Referências.................................................................................................... 368

CAPÍTULO 2
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Vinícius Jose Marques Gontijo................................................................ 371
2.1 Introdução....................................................................................... 371
2.2 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
inversa............................................................................................. 373
2.3 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica........ 375
2.4 Conclusões...................................................................................... 383
Referências.................................................................................................... 384

CAPÍTULO 3
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Luciana de Castro Bastos, Rodrigo Almeida Magalhães..................... 387
3.1 Introdução....................................................................................... 387
3.2 A evolução do direito de empresa.............................................. 388
3.3 Personalização da empresa.......................................................... 390
3.4 A teoria clássica da desconsideração da personalidade
jurídica............................................................................................. 394
3.4.1 Disregard doctrine contemporânea............................................... 396
3.5 A aplicação da disregard doctrine no Código de Processo
Civil de 2015................................................................................... 398
3.6 Conclusão........................................................................................ 407
Referências.................................................................................................... 407

CAPÍTULO 4
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
Pedro D’Angelo Ribeiro, Roberto Henrique Pôrto Nogueira............. 411
4.1 Considerações iniciais................................................................... 411
4.2 Dissolução parcial das sociedades antes do Código de
Processo Civil de 2015, de acordo com o Código Civil de
2002.................................................................................................. 413
4.3 Dissolução parcial: aspectos controversos anteriores ao
Código de Processo Civil de 2015............................................... 415
4.3.1 Dos atos relativos à liquidação de sociedades na dissolução
parcial.............................................................................................. 416
4.3.2 Possibilidade de dissolução parcial nas sociedades
anônimas de capital fechado........................................................ 417
4.3.3 Legitimidade passiva.................................................................... 418
4.3.4 Legitimidade ativa......................................................................... 419
4.3.5 Ônus decorrentes de sucumbência e pagamento de verbas
honorárias....................................................................................... 420
4.4 A dissolução parcial como procedimento especial no novo
Código de Processo Civil.............................................................. 421
4.4.1 Objeto.............................................................................................. 422
4.4.2 Legitimidade ativa: sujeitos e condições.................................... 424
4.4.3 Legitimidade passiva.................................................................... 426
4.4.4 Procedimento................................................................................. 427
4.4.5 Apuração de haveres..................................................................... 429
4.5 Conclusões...................................................................................... 432
Referências.................................................................................................... 433

SOBRE OS AUTORES............................................................................. 437


APRESENTAÇÃO

O direito dos nossos dias é, em muitos sentidos, o direito do


diálogo. Ficou no museu das ideias o modo clássico de legislar, através
de normas que não dialogam entre si, normas que se bastam. Por
isso, tanto se alude atualmente ao diálogo das fontes. Os percursos
argumentativos que caracterizam o direito do século XXI exigem que
o intérprete transite – de modo responsável – por variados setores da
experiência jurídica sem que possa ficar restrito a um deles.
A abertura do sistema jurídico – sem desconhecer a relevância
das regras jurídicas – acolhe generosamente os princípios, dotando-os
de força vinculante. As bases, conceituais e normativas, das quais o
intérprete dispõe, neste século, autorizam a construção de horizontes
de sentido que protejam mais amplamente o ser humano à luz dos
preceitos consagrados na Constituição da República. Aliás, a revitali-
zação que o direito privado experimenta se conecta com essa abertura.
O direito privado dialoga não só com outras fontes normativas, mas
também redefine suas respostas normativas a partir de (significativas)
mudanças teóricas. Nossos passos, nessa medida, não são dados apenas
pelas normas jurídicas, mas também por novos modos de percepção,
democraticamente construídos.
Nessa linha de intelecção, o projeto normativo constitucional
permeado pela dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade,
dialogicidade e fiscalidade impõe a transformação dos conteúdos norma-
tivos do sistema jurídico para coadunar com o processo de reconstrução
dos paradigmas do direito privado e do direito processual no contexto
do Estado Democrático de Direito.
A passagem da estrutura à função – desde os clássicos escritos
de Bobbio – define a mudança de olhar dos estudos contemporâneos.
Não mais o conceitualismo abstrato, o apego (quase) religioso ao
formalismo, mas a percepção de que o intérprete está autorizado a
lançar um olhar mais vasto para as dimensões funcionais, e não só
estruturais, dos conceitos, categorias e institutos. A dimensão formal,
sim, é importante, mas o intérprete não pode se dar por satisfeito com
ela. É preciso ir além.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
16 O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

No entanto, talvez não exageremos ao dizer que, se o olhar do


direito privado (e do processo civil), no século XX, foi um olhar voltado
para as normas repressivas, no século XXI será fundamentalmente um
olhar voltado para as teorias, técnicas e funções que potencializem a
prevenção de certos bens jurídicos fundamentais.
Nesse contexto, entregamos – com alegria – esta obra aos leitores.
Ela é feita de contribuições tematicamente distintas de juristas variados,
todos movidos pelo propósito de compreender as encruzilhadas teóricas
do necessário diálogo entre o direito privado e o Código de Processo
Civil de 2015. Uma nova lei – sobretudo uma lei com a relevância
majestosa do CPC/2015 – sempre provoca perplexidades interpreta-
tivas. É fundamental que possamos ler e ouvir as impressões de quem
conhece verticalmente o assunto.
Esta obra coletiva, fruto de tantos esforços distintos, tenta dialogar
com perplexidades teóricas atuais, promovendo uma maior reflexão,
debate e aprofundamento de questões controversas, para oferecer no
âmbito das relações privadas um esforço de compreensão sobre o cenário
jurídico na contemporaneidade, cuja única permanência é a mudança.

Felipe Peixoto Braga Netto


Michael César Silva
Vinícius Lott Thibau
PARTE I

O DIREITO CIVIL E O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
CAPÍTULO 1

O NOVO PERFIL DA CURATELA:


INTERSEÇÕES ENTRE A LBI1 E O CPC

Nelson Rosenvald

1.1 Flexibilização da curatela


O procedimento especial de curatela se aprimora no CPC/15, em
cotejo com o instrumental fornecido pelo CPC/73 e pelo próprio Código
Civil. As inovações processuais são positivas, no sentido da funcionali-
zação e personalização do modelo da curatela. A grande censura que se
faz a Lei nº 13.105/15 é a manutenção do descontextualizado vocábulo
“interdição” para nomear a providência desconstitutiva de capacidade
civil. Em acato à CDPD2 (com estatura de emenda constitucional), o
Estatuto da Pessoa com Deficiência aboliu o termo “interdição” pelo
sentido evidentemente restritivo de direitos fundamentais da pessoa
com deficiência submetida à curatela. Para tanto, impôs no art. 85 que
“a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de
natureza patrimonial e negocial. §1º A definição da curatela não alcança
o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Por conseguinte, a curatela
se destina à promoção de direitos fundamentais da pessoa deficiente
sem lhe amputar situações existenciais.

1
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)
– Lei nº 13.146/2015.
2
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
20
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

1.1.1 O binômio capacidade negocial e capacidade de


consentir
Estatui o art. 12.4 da CDPD: “Os Estados Partes assegurarão que
todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salva-
guardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade
com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas
assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade
legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa,
sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam
proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem
pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular
por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e
imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais
medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa”.
Essa regra é fundamental para a compreensão da superação de
um modelo baseado na exclusão de pessoas incapazes pela substituição
nos processos decisórios pós-curatela por um novo modelo inclusivo
de apoio, cujo desiderato é o reconhecimento da igualdade de pessoas
com deficiência, de forma que a curatela seja aplicada excepcionalmente,
restringindo minimamente as suas situações existenciais, e – naquilo que
aqui avulta –, seja o projeto da curatela marcado pela proporcionalidade,
seja no tempo como no conteúdo das medidas e na atuação do curador.
Quando pronunciada a curatela, quais seriam os limites dela
segundo a redação original do CC/02? De acordo com artigo 1.772,
apenas haveria imposição judicial de limites à curatela quando a sentença
fixasse a incapacidade como relativa, ou seja, nas hipóteses em que a
pessoa fosse submetida à curatela em razão de discernimento reduzido,
decorrente de deficiência ou enfermidade mental. Todavia, sendo o
provimento jurisdicional fundado na constatação de incapacidade
absoluta, o interdito não mais se autodeterminaria, e a sua atuação seria
neutralizada pelo alter ego do curador, que o representaria em todos
os atos da vida civil sem que remanescessem espaços de autonomia
para o incapaz.
Nossa crítica quanto a esse dispositivo sempre foi contundente;
afinal, submete a vida pós-incapacitação a uma opção entre incapa-
cidade absoluta e relativa. Essa escolha arbitrária frequentemente
despersonaliza o sujeito, silencia a sua voz, oculta a sua vontade e
preferências. Seres humanos são deslegitimados na ordem civil em
razão das soluções rígidas e uniformes. A interdição total e ilimitada
desacolhe a regra da proporcionalidade e impede a funcionalização da
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
21

curatela, desvirtuada em sanção punitiva ao invés de modelo protetivo


da dignidade da pessoa humana.
Salvo situações excepcionais e exaustivamente fundamentadas,
um representante não pode assumir totais poderes decisórios sobre a
vida alheia. Isto implica obliquamente na “morte civil” do destinatário
da curatela. Apesar de todas as limitações, o incapaz não abdica de ser
gente, pois o peso da condição humana lhe é inerente. O ser humano é
um valor unitário, insuscetível de fragmentação naquilo que lhe suprima
a individualidade. Se o sistema privado seleciona unicamente o critério
científico da integridade psíquica como vetor de uma ampla interdição
de direitos, culmina por esvaziar outras relevantes potencialidades e
dimensões do temperamento humano.
A funcionalização do modelo jurídico da curatela evidencia que
ela deve, na medida do possível, promover os objetivos solidaristas da
Constituição Federal. Em alguns casos, as potencialidades afetivas do
incapaz se mantêm idôneas. Assim, a singularidade de seu contexto
pode indicar que, não obstante as limitações psíquicas, ainda há margem
para a formação de uma entidade familiar, seja pelo casamento ou pela
união estável. Se o nubente compreende o ato que esteja praticando,
apesar de alijado da capacidade civil, terá competência para tomar
decisões quanto ao seu projeto da conjugalidade. Nessas circunstâncias,
o impedimento ao matrimônio seria violentador da condição humana
do curatelado. Prevalece a máxima de Pascal: “O coração tem razões
que a própria razão desconhece”.
Pois bem, em vistas à materialização da CDPD, a Lei nº 13.146/15
alterou a redação do art. 1.772 do Código Civil, doravante com o seguinte
teor: “O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os
limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e
indicará curador”. A alusão ao artigo 1.782 do Código Civil visa estabe-
lecer uma prévia demarcação dos poderes de representação do curador,
restritos agora ao apoio na prática de atos meramente patrimoniais.3
Em complemento, preceitua o art. 85 da Lei nº 13.146/15: “A
curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de
natureza patrimonial e negocial”. Em arremate, o Estatuto da Pessoa com
Deficiência reservou o modelo da incapacidade civil absoluta para os
menores de dezesseis anos de idade, removendo as pessoas deficientes
com graves transtornos psíquicos para a condição de relativamente

3
Art. 1.782, CC/02: “A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir,
dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos
que não sejam de mera administração”.
22
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

incapazes pela duradoura impossibilidade de autodeterminação. De


acordo com o art. 4º, I, do Código Civil: “São incapazes, relativamente
a certos atos ou à maneira de os exercer: III – aqueles que, por causa
transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.
A renovada dicção do art. 1.772 do Código Civil é digna de
encômios, pois vivifica a flexibilização da curatela e remete ao magis-
trado – com a colaboração das partes, Ministério Público e profissionais
envolvidos no processo – a responsabilidade de conceber um projeto
terapêutico individualizado de curatela, adaptado às singularidades de
cada pessoa, que venha a se converter em um relativamente incapaz.
Após o advento da LBI, não podemos admitir mais que somente
a determinação judicial da curatela seja por si a medida suficiente para
proteger a pessoa com deficiência. A equipe multiprofissional, essencial
no apoio técnico ao juiz e ao Ministério Público, deve analisar detalha-
damente todos os aspectos do caso concreto e propor medidas ao juiz
do feito que concretizem e possibilitem ao máximo o exercício, por si só,
de várias atividades pela pessoa com deficiência a fim de que exerça a
maioria de seus direitos fundamentais, sejam elas medidas temporárias
ou permanentes que possibilitem a essa pessoa o usufruto da maioria
dos bens e serviços à disposição dos demais cidadãos, inclusive a
autodeterminação. O laudo multiprofissional extrapola a perspectiva
única da medicina e incorpora uma perspectiva social da deficiência
a partir de diagnósticos trazidos por outras ciências, por exemplo, a
assistência social, psicologia, arquitetura e a engenharia.4
Porém, quando o art. 1.772 remete os limites da curatela ao
que dispõe o art. 1.782 do Código Civil, culmina por convertê-la em
um modelo assistencial de caráter meramente patrimonial, dado esse
inequivocamente respaldado pelo referido art. 85 da Lei nº 13.146/15.
Seria essa absoluta fratura entre a plena preservação da autonomia
existencial do deficiente incapaz e a restrição à capacidade negocial a
melhor forma de proteção e promoção à sua dignidade? Ou, em verdade,
o legislador estaria apenas substituindo o binômio incapacidade absoluta
× relativa por uma nova solução rígida (obviamente mais evoluída), o
par, capacidade negocial × capacidade de consentir? Essas indagações
são importantes para o debate, pois temos que optar entre dois modelos
de flexibilização da curatela, hábeis a impedir que o processo seja um

COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Comentários ao estatuto da pessoa com deficiência. São
4

Paulo: Saraiva, 2017, p. 370.


NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
23

estereótipo de abstratas restrições legais que jamais se legitimarão


como soluções das complexas necessidades da pessoa do curatelado.
A primeira forma de enfrentar o problema consiste na cisão entre
os critérios de capacidade legal e capacidade de consentir; a segunda,
mais radical, pretende abolir completamente classificações apriorísticas
de gradações de incapacidade.
Em defesa da rearticulação da teoria das incapacidades, Judith
Martins-Costa5 sustenta a irrealidade da clássica noção de capacidade
negocial para tutelar as situações existenciais da pessoa humana. Em
face da impertinência de institutos como representação e assistência
para a legitimação de atos que atingirão profundamente a esfera pessoal
do indivíduo, sugere-se uma especial “capacidade para consentir”,
aplicável casuisticamente à proteção de interesses extrapatrimoniais,
preservando-se o regime da capacidade negocial para os aspectos
patrimoniais.6
Com efeito, a experiência demonstra que o absolutamente incapaz
certamente demandará proteção para a esfera de decisões patrimoniais,
sob pena de se ver alijado do mínimo existencial. Porém, a constatação
da falta de idoneidade para o exercício de decisões econômicas não pode
motivar uma sentença que extrapole a diligência financeira e prive o
indivíduo de circular autonomamente pela vida social. Esse pronuncia-
mento judicial fatalmente tolherá outros confins da subjetividade, que

5
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres. In:
MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwing (Orgs.). Bioética e responsabilidade.
Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 320.
6
Cogitemos da mulher deficiente que se submete a uma vida sexual descuidada.
Ilustrativamente, a jovem que já possui dois filhos e que novamente se encontra grávida.
Mais uma criança que nascerá sem pai, evidentemente sem a própria mãe em condições de
criá-la, muitas vezes desprovida de amparo de familiares maternos. Eventualmente, uma
gravidez de risco e com fortes chances de prejuízos à saúde da própria criança. A Lei nº
9.263/96 prevê, no §6º do artigo 10, que “a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente
incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma
da Lei”. A norma cogita da realização de intervenção cirúrgica no corpo feminino, mas
o trato da matéria demanda que se aprecie o direito fundamental ao livre planejamento
familiar (§7º, art. 226). A ponderação, por um lado, entre a proteção da pessoa do incapaz e,
por outro, a tutela de sua intimidade e integridade psicofísica, é ameaçada pela privação da
aptidão da mulher para gestar. Evidentemente, trata-se de um balanceamento de interesses
em que a legitimidade da decisão judicial concessiva da esterilização requer a unanimidade
de especialistas multidisciplinares (psiquiatra, psicólogo, ginecologista, clínico geral etc.).
Todavia, qualquer decisão referente ao tema não poderá olvidar o art. 23, 1, letra b, da
convenção internacional, propugnando pelo reconhecimento dos “direitos das pessoas com
deficiência de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o espaçamento
entre esses filhos e de ter acesso a informações adequadas à idade e a educação em matéria
de reprodução e de planejamento familiar, bem como os meios necessários para exercer
esses direitos. c) As pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade,
em igualdade de condições com as demais pessoas”.
24
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

não se relacionam com as limitações inerentes ao transtorno mental ou


a deficiência. Vale dizer, em certas esferas do convívio humano subsiste
autonomia para a realização de atos de manifestação e desenvolvimento
da personalidade. Mesmo após a incapacitação legal, cumpre respeitar
as vontades, afetos e direitos fundamentais do ser humano. A curatela
absoluta é uma medida violentadora de direitos humanos da pessoa
com deficiência psíquica ou intelectual. Uma coisa é o cuidado com a
pessoa; outra, com o patrimônio.
De certa forma, essa trilha já foi percorrida pelo Conselho de
Justiça Federal ao conceber o Enunciado nº 138: “A vontade dos absolu-
tamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é juridicamente
relevante na concretização de situações existenciais a ele concernentes,
desde que demonstrem discernimento bastante para tanto”. Não obstante
direcionado às pessoas menores de 16 anos, do texto se extrai uma
proposta de cisão entre os planos de autonomia patrimonial e o consen-
timento para decisões que afetem a construção e o desenvolvimento
da personalidade, fragmentação essa perfeitamente extensiva para o
redimensionamento do objeto da curatela e dos poderes do curador,
em razão de esvaziamento do discernimento da pessoa. O corte entre
titularidade e exercício de situações jurídicas é uma construção teórica
perfeitamente plausível para as situações proprietárias e creditícias,
porém injustificável no que concerne à afirmação da subjetividade, se
ainda subsistem áreas férteis para a manifestação do consentimento.
A despeito do mérito dessa solução, como inegável avanço ao
negativo estado da arte, acreditamos que ela apenas tangencia a real
questão de fundo, concebendo nova dicotomia no sistema, justamente
quando o que se anseia é a eliminação de rígidas categorizações que
afetem a materialização de direitos fundamentais. Em outras palavras,
redefinir a curatela pela oposição entre um estático estatuto patrimonial
apriorístico do Código Civil e uma cláusula geral de um dinâmico
estatuto existencial – balizado pelo concreto discernimento da pessoa –
aprofundará o seccionamento da vida humana em setores operativos
jurídicos que demandarão a elaboração de novas regras. Ao inverso,
postulamos pela total abolição de esquemas normativos que encarcerem
a pessoa em perfis de incapacitação.
É possível afastar restrições descabidas ao florescimento da
vida criativa, afetiva e sexual da pessoa pela prevalência de um radical
raciocínio por concreção, atento às singularidades do ser humano,
sejam elas econômicas ou existenciais. Para tanto, em uma interpre-
tação conforme a Constituição Federal (e também a Convenção das
Pessoas com Deficiência) da atual redação do art. 1.772 do Código Civil,
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
25

impende inverter a teleologia da norma infraconstitucional material


e processual de modo a adequar a incapacitação civil à consideração
do ser humano como valor-fonte e fundamento do direito. O ponto
de partida e de chegada de qualquer sentença será a aferição do nível
de discernimento da pessoa para assumir a vida como ela é, dentro de
suas especificidades. Subverte-se à axiologia constitucional quando a
fundamentação da decisão principia do enquadramento da pessoa ao
perfil normativo de absoluta ou relativamente incapaz (inclusive sob
a ótica de uma rígida delimitação entre atos patrimoniais e existen-
ciais). Mesmo que, em seguida, o julgador conforme o modelo legal à
concretude do caso, já haverá o vício de origem, consistente na eleição
do discurso redigido pelo legislador, a despeito das vicissitudes do
protagonista do processo.
A realidade palpável é extremamente rica e delicada para ser
artificialmente reduzida à dicotomia do tudo ou nada. Se a linguagem
médica descreve o estado do paciente em uma escala que vai de
grave a completamente saudável, qual seria a razão de legitimar um
discurso jurídico binário: capaz para atos existenciais e incapaz para
atos patrimoniais? Impende avaliar as condições de saber e querer
para individualizar estatutos protetivos conforme as especificidades
da pessoa com deficiência, selecionando os interesses concretamente
merecedores de tutela com base em parâmetros objetivos que respeitem
a historia pessoal de cada um. Como consequência provável de uma
argumentação voltada à tópica, uma sentença de curatela poderá
determinar que, para certos atos da vida, a pessoa preservará a sua
autonomia; em outros, a sua vontade será somada à de um assistente,
sem que, necessariamente essa distinção seja pautada pela oposição
entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. Eventualmente, o
grau de discernimento do indivíduo indicará a sua aptidão à autônoma
prática de atos patrimoniais, sendo a sua fragilidade psíquica justa-
mente um fator de acentuado cuidado no trânsito existencial, espaço
que demandará a atuação da pessoa do curador.7

7
Nesse sentido, também nos parece que transita a advertência de Ana Carolina Brochardo
Teixeira e Renata de Lima Rodrigues: “Com isso afirmamos que a incapacidade deve
ser sempre construída e delimitada apenas diante do caso concreto, fator que obriga a
reestruturação do regime das incapacidades que, em uma profunda mudança de perspectiva,
impõe o fim de categorias apriorísticas. Ou seja, não podemos preceituar que certas pessoas,
porque enfermas ou deficientes, são absoluta ou relativamente incapazes de maneira abstrata.
Essas restrições à capacidade de exercício e à autonomia dos indivíduos só podem ser
realizadas a partir de questões devidamente problematizadas e legitimamente reconstruídas
no caso concreto” (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochardo; RODRIGUES, Renata de Lima. O
direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 35).
26
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Um claro indicativo por essa opção é a redação do art. 755 do


CPC/15: “Na sentença que decretar a interdição, o juiz: I – nomeará
curador, que poderá ser o requerente da interdição, e fixará os limites
da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito”.
Por mais que o Código de Processo Civil tenha se equivocado ao manter
o uso do termo “interdição” (por três vezes), percebe-se a evolução no
trato do tema.
O repensar da curatela evita que o processo seja um abrupto marco
de irrupção do status jurídico da despersonificação. A inserção de regras
de proporcionalidade permitirá que se reserve à deliberação da pessoa
aquilo que a medida de seu discernimento lhe oportunize, mesmo que
na seara patrimonial. Qualquer reserva de autonomia faculta à pessoa
a posição de partícipe da própria existência. A complexidade da psique
exige respostas flexíveis do sistema. Ao invés do silêncio e limitação do
espaço, concede-se maior poder de iniciativa e inclusão social.
A flexibilização da curatela também se adequa à diretriz da
concretude, tão cara a Miguel Reale. Em qualquer processo dessa
natureza, há de se levantar o véu do ser humano que subjaz ao indivíduo
abstrato e categorizado pela norma. Ao invés de uma sentença reducio-
nista que rotule a pessoa na praticidade do pret a porter de regras
estanques, o ordenamento jurídico oferecerá respostas mais complexas e
ajustadas às circunstâncias de cada pessoa – na linha da “alta costura” –,
soluções artesanais e ajustadas a cada perfil humano. Enfim, a subje-
tividade humana é bem mais complexa do que um catálogo de regras
jurídicas, e nada melhor que um pouco de delicadeza no trato do
semelhante.
O direito precisa saber mais sobre as fronteiras da consciência
e de seus processos volitivos para estabelecer qual o limite de respon-
sabilização do sujeito, explica Rodrigo da Cunha Pereira. Para tanto,
prossegue: “Faz-se necessário verificar a sua estrutura de persona-
lidade, seu raciocínio, atuação e comportamento em suas relações
sociais. Médico, psicólogo e assistente social, juntos e a partir de seus
conhecimentos específicos são os que melhor poderão levar subsídios
ao processo sobre a capacidade e limites da responsabilidade do sujeito.
Portanto, a formação do melhor juízo sobre aquele a quem nenhum
juízo se atribuía, só estará próxima do ideal de justiça se demarcada
com a ajuda de outros campos do conhecimento”.8

8
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Comentários ao novo código civil, XX. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 404.
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
27

A abstração do sujeito se dissolve na concretude das necessidades


de uma pessoa “situada”, impregnada pelas dificuldades da existência,
subjetivamente impotente perante os obstáculos que a organização
social lhe impõe. Ademais, a referência constitucional à dignidade da
pessoa humana se apresenta como um vínculo duplamente relevante:
como finalidade da ação pública, que deve assegurar o seu desenvolvi-
mento, e também como limite intransponível da ação legislativa, que,
em nenhum caso, poderá negar ao ser humano o respeito que lhe é
devido. Nesses termos, a reconstrução da unidade da pessoa em torno
de sua identidade psicofísica requer que se considere a “saúde” não
como ausência de doença, mas como “estado de completo bem-estar
físico e psíquico”. Segundo a definição da Organização Mundial de
Saúde, isso implica a passagem de uma condição excepcional para uma
de normalidade da vida da pessoa.9

1.2 A teoria dos intervalos lúcidos e o termo legal de


incapacidade
A par da flexibilização da curatela, localizamos na legislação civil
em vigor certos preceitos que se revelam incompatíveis com a impres-
cindível submissão do processo de curatela a parâmetros objetivos de
proporcionalidade, desrespeitando a ordem constitucional e o sistema
internacional de direitos humanos já internalizado no Brasil.
Como cantava Elis Regina, “apesar de termos feito tudo o que fizemos,
ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Em pleno século XXI,
o direito civil ignora a eficácia de atos jurídicos praticados pelo incapaz
sob curatela em seus “intervalos lúcidos”. Prestigiando a segurança
jurídica, entendem-se suprimidos os efeitos de negócios praticados
pelo curatelado sem a necessária representação, como decorrência da
sanção da nulidade (art. 166, I, CC).
Todavia, os fatos teimam em atropelar o direito. Com a notável
evolução da farmacologia, paulatinamente os raros intervalos lúcidos
se convertem em longos períodos de sanidade, não raramente facul-
tando ao curatelado uma normalização de sua vida comunitária. Essa
realidade, contudo, persevera desprezada pelo ordenamento jurídico,
que ainda parte do pressuposto da presunção absoluta de invalidade
dos atos praticados pelo sujeito sem o acompanhamento do curador.

9
RODOTA, Stefano. Dall soggeto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007, p. 40.
28
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Não se quer discutir aqui o plano da validade do ato de autonomia


privada, pois há de se respeitar o direito posto no que concerne à repre-
sentação como requisito de qualificação da manifestação de vontade
do incapaz para fins de conformá-la ao ordenamento. Nada obstante,
a formal imperfeição na declaração volitiva – desprovida de chancela
do curador – eventualmente poderá ser desconectada da sanção da
ineficácia e reposição das partes ao estado anterior ao ato. Basta funcio-
nalizarmos o modelo jurídico da curatela para a proteção e promoção
da pessoa submetida a ela. Por esse viés, será legítima a eficacização de
atos jurídicos que desatendam a representação, mas que não causem
ao curatelado qualquer espécie de prejuízo aos seus interesses. Algo
semelhante já se evidencia no respaldo a algumas decisões unilate-
ralmente adotadas por adolescentes em sua progressiva edificação
da personalidade, impedindo a fragmentação entre a titularidade e o
exercício de situações existenciais.
Mais uma vez, o ordenamento civil escancara o seu perfil abstra-
tizante da condição humana, denegando ao curatelado o acesso a um
estatuto personalizado da sua curatela que lhe garanta uma tutela
efetiva aos interesses concretamente merecedores de tutela, sejam eles
de ordem existencial ou patrimonial.
Outrossim, no tocante à célebre discussão sobre a validade dos
atos praticados pela pessoa antes da sentença supressora de capacidade,
o projeto do CPC se posicionava de maneira clara e precisa ao dispor que:
“A sentença de interdição não invalida os atos jurídicos praticados pelo
interdito, mas, observado o termo inicial, faz prova da incapacidade para
administrar os seus bens ou praticar ato da vida civil” (§5º do art. 770
do projeto). Esse termo inicial seria a data a partir da qual se presume a
incapacidade do interdito para administrar seus bens ou praticar ato da
vida civil (§3º). Em face da natural dificuldade de demarcação do termo
legal de incapacitação, o juiz supletivamente consideraria como tal “a
data da propositura da ação de interdição” (§4º). Destarte, surgiriam
três regimes sucessivos de qualificação dos atos jurídicos praticados
pelo curatelado: a) atos praticados antes do termo inicial seriam válidos
e eficazes; b) atos praticados após o termo da incapacidade poderiam
ser invalidados e privados de eficácia em ação autônoma, desde que
evidenciado o prejuízo do incapaz, presumindo-se a ciência da outra
parte quanto à fragilidade psíquica da outra parte. Em face da natureza
constitutiva de eficácia ex nunc da sentença, o câmbio do status jurídico da
pessoa pela sujeição ao excepcional regime da incapacidade não poderia
automaticamente impactar nas relações pregressas com terceiros; c) atos
jurídicos pessoalmente praticados após a curatela seriam invalidados
(art. 166, I, CC).
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
29

Infelizmente, a norma projetada não encontrou respaldo na


redação final do CPC/15. Todavia, em face da ausência de regula-
mentação da matéria, poderá servir para o reforço de uma construção
doutrinária que pondere a tutela do incapaz com a boa-fé de terceiros
e a segurança jurídica exigida pela coletividade.

1.3 O fim da curatela extensiva


De acordo com o artigo 1.778 do Código Civil, “a autoridade do
curador estende-se à pessoa e aos bens dos filhos do curatelado”. Trata
o dispositivo da chamada “curatela extensiva”, pela qual o curatelado
não apenas perde o controle sobre a sua própria vida, como também
será destituído da autoridade parental, fato que poderá precipitar
dolorosas consequências sobre pais, mães e filhos.10
O Código Civil de 2002 concebia a interdição como uma espécie de
ilícito caducificante, materializado pela supressão do poder de família,
como se a condição de incapaz impusesse ao ser humano a pecha de
autor de um comportamento antijurídico. A curatela extensiva se revela
uma técnica de controle social devastadora nas várias situações em que
o curatelado ostenta manifestações objetivas de afetividade pelos filhos.
O artigo 1.778 do Código Civil não foi revogado pela Lei nº
13.146/15; porém, é incompatível com o art. 85, §1º, do Estatuto da Pessoa
com Deficiência: “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos
direitos de natureza patrimonial e negocial. §1º A definição da curatela
não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Vale dizer, se
a pessoa deficiente curatelada possuir autodeterminação residual para
exercer a autoridade parental, não poderá invadir o curador o espaço
reservado à privacidade familiar.
Outrossim, o CPC/15 feriu diretamente o tema ao dispor que
“a autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz
que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao
tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais
conveniente aos interesses do incapaz” (art. 757 do CPC/15).

10
Este episódio foi encantadoramente retratado no filme Uma Lição de Amor (I am Sam, 2001), no
qual Sam (Sean Penn), de 40 anos, possuía deficiência mental que lhe reduzia o discernimento
ao equivalente a uma criança de oito anos. Todavia, desde o nascimento, com a ajuda de
amigos, cuidou com muito carinho de sua filha Lucy, trabalhando parte do tempo na rede
de cafés Starbucks. Quando Lucy completa oito anos, percebe as limitações cognitivas do
pai e se boicota para não agredi-lo. Percebendo as circunstâncias, uma assistente social
pretende destituir o pai da autoridade parental. Indagada sobre a capacidade do pai, Lucy
é convicta ao afirmar “ele tem capacidade para amar... tenho sorte, nenhum dos outros pais
costuma levar o seu filho ao parque”.
30
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

De fato, a curatela extensiva não pode repercutir automatica-


mente, como se a privação psíquica induzisse ao inexorável expurgo
do genitor do curatelado ao acesso ao direito fundamental à convi-
vência familiar, tal como extraído do artigo 227 da CF. O preceito não
se relaciona apenas com o imperativo da proteção integral da criança
e adolescente por parte daqueles que exercitam a autoridade parental.
Essa leitura da norma constitucional é insuficiente. Clarifica apenas a
eficácia negativa de um direito fundamental “de convivência” pelo viés
da dimensão defensiva da dignidade da criança e do adolescente. Em
verdade, devemos extrair um compromisso ético ampliado do referido
princípio. Carece ele de uma renovada configuração, que revele a sua
eficácia positiva, como dever dos pais de não apenas proteger, mas de
promover a personalidade de seus filhos, funcionalizando a autoridade
parental ao desenvolvimento das potencialidades de seres humanos
em desenvolvimento.
Essa dimensão afirmativa do princípio é extraída da integração,
ao art. 227, da norma do art. 229 da Constituição Federal, que explicita
os deveres parentais de assistência, criação e educação dos filhos.
Dessume-se que a autoridade parental não é um fim em si, mas instru-
mento consubstanciado em diuturno processo educacional, que, a
seu cabo, edificará a autonomia de uma pessoa apta a realizar as suas
escolhas existenciais e por elas se responsabilizar.
Acreditamos, contudo, que o art. 227 requer ainda uma terceira
dimensão. Para além de um direito de proteção e promoção da convi-
vência no interno da família constituída, há de se resguardar o direito
fundamental “à convivência” como inegável prerrogativa de acesso da
criança e do adolescente ao relacionamento familiar.
Portanto, a indiscriminada aplicação da curatela extensiva ofendia
o direito fundamental de convivência em três planos, afetando situações
existenciais de pais e filhos. Daí a necessidade de reservá-la para aquelas
situações em que evidentemente os filhos se encontram em situação
de risco diante de pais disfuncionais, pelo fato de a enfermidade ou
deficiência influir negativamente na parentalidade. Aí então se justi-
ficará a transmissão do poder de família para uma pessoa designada
pelo magistrado.

1.4 A curatela transitória e as revisões periódicas


Tivemos a oportunidade de examinar aspectos legislativos que
mereceram renovado enfoque por parte do Estatuto da Pessoa com
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
31

Deficiência em vista a uma adequação da curatela ao respeito aos


direitos, vontades e preferências da pessoa humana, o que exige normas
e decisões proporcionais e apropriadas às suas circunstâncias.
Porém, outro imperativo que se relaciona à humanização da
curatela diz respeito à necessidade de restringir o decreto de incapa-
cidade ao mais curto período possível, ou seja, defende-se uma curatela
não apenas motivada, como também submetida a prazo.
Nesse passo, de acordo com o art. 12.4 da CDPD:
Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exer-
cício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas
para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional
dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas
relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade
e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de
influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias
da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à
revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, indepen-
dente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que
tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. (Grifo nosso)

A curatela deve ser compreendida na lógica de um processo,11 ou


seja, um conjunto de atos coordenados cuja finalidade é a restituição à
pessoa do direito fundamental da capacidade civil. A curatela sem prazo
subverte essa dinâmica, institucionalizando a incapacidade sem que os
sujeitos do processo terapêutico percebam claramente a premência da
função de libertação da pessoa humana submetida ao status de incapaz.
Nos moldes do Código Civil de 2002, a “interdição” seguramente
ostenta o posto de mais grave sanção punitiva do direito brasileiro: ao
contrário da prisão, não há proporcionalidade entre o delito e o apena-
mento; inexiste previsão de duração da pena, assim como progressão
de regime, revisão de condições ou qualquer benefício no transcurso de
seu cumprimento. Em regra, ela será vitalícia e desprovida de controle
sobre a situação pessoal do curatelado e fiscalização do comportamento
do curador.

11
Aderimos aqui a noção de processo da forma concebida por Clóvis do Couto e Silva, utilizada
para materializar o direito das obrigações, dinamizando o adimplemento: antes, mero ato
formal de realização de uma prestação; agora, finalidade para o qual a obrigação se polariza
desde a etapa embrionária das tratativas até a fase pós-negocial. O percurso é iluminado
pela diretriz da concretude, que concretiza deveres de conduta, hábeis a guiar as partes
ao cumprimento das prestações em um ambiente de lealdade e respeito, evitando-se a
frustração das legítimas expectativas dos iguais titulares de direitos fundamentais.
32
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Como indicativo de acato à CDPD, dispõe o §3º do art. 84 da


Lei nº 13.146/15 que “a definição de curatela de pessoa com deficiência
constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades
e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível”.
No projeto original do Código de Processo Civil, havia a alvissareira
instituição da curatela temporária, banindo-se do sistema a perpetuação da
curatela. À luz do inciso III do art. 770 do CPC projetado, no momento
da sentença o juiz fixaria “o termo da interdição” (melhor seria o “termo da
curatela”). A submissão da decisão a um prazo não seria mera faculdade
do magistrado, porém exigência legal calcada na esfera da proporcio-
nalidade, densificando a dignidade da pessoa humana pela mínima
restrição da norma infraconstitucional a direitos fundamentais. Sendo a
supressão da capacidade civil uma excepcional mitigação da autonomia
privada, não poderia a incapacitação exceder o prazo de cinco anos. Em
complemento, consoante o natimorto art. 774 do projeto do CPC, o juiz
reavaliaria “a situação do interditando e a curatela a cada cinco anos”.
Caso o texto fosse preservado, a curatela oficialmente se converteria em
modelo jurídico transitório, com nítido caráter resolúvel, independen-
temente do transcurso do lustro legal da curatela.
De qualquer forma, o CPC/15 preservou o caráter rebus sic stantibus
da sentença, eis que a curatela poderá ser levantada a qualquer tempo,
sendo bastante que cesse a sua causa originária (art. 756 do CPC/15),
com o acréscimo de que, mesmo nos casos excepcionais de curatela
ilimitada, “a interdição poderá ser levantada parcialmente quando
demonstrada a capacidade do interdito para praticar alguns atos da
vida civil” (§4º do art. 756 do CPC/15).
A nosso viso, por mais que o CPC/15 tenha perdido a oportu-
nidade de regulamentar a curatela com prazo, nada impedirá ao
magistrado a prévia delimitação de um marco temporal para que se
reavalie a necessidade da manutenção da curatela.
Realmente, uma curatela despida de um “ponto de chegada”
revela duas ordens de questionamentos. Primeiramente, a ausência de
expectativas com relação a uma reavaliação do curatelado robustece
a incapacidade, pois suprime o ímpeto da pessoa de se submeter a
tratamentos que possam restabelecer o equilíbrio psíquico. No mais,
o levantamento da curatela depende de pedido do curador ou do
indivíduo sentenciado. Caso a iniciativa não parta do representante (por
negligência ou por não considerar que cessou a causa que motivou a
sentença), dificilmente o requerimento partirá do próprio curatelado,
seja pela natural barreira do acesso ao Judiciário sem o acompanha-
mento do representante, ou mesmo pelo déficit de credibilidade de
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
33

um requerimento de lavra de uma pessoa previamente deslegitimada


pelo sistema jurídico.12
Outra exigência da CDPD concerne à necessidade de submissão da
curatela a uma revisão regular, independente e imparcial (art. 12.4). O CC/02
é silente nesse particular, e o art. 1.774 nos remete às disposições concer-
nentes à tutela. Assim, como norma comum a ambos os modelos jurídicos,
resta o art. 1.755, impondo aos tutores (e extensivamente aos curadores)
a obrigação de prestar contas de sua administração. Esse ultrapassado
dispositivo reforça a preocupação com o patrimônio do curatelado em
detrimento do necessário cuidado com o ser humano subjacente aos bens
fiscalizados, como se houvesse uma presunção absoluta de diligência na
conduta do curador perante a pessoa do curatelado.
Certamente, não se pode menosprezar a criteriosa aferição da
legalidade dos atos de gestão econômica por parte de quem administra
bens alheios e a sua eventual responsabilização pelos prejuízos consta-
tados, mesmo porque a esmagadora maioria dos curatelados depende
daquele patrimônio mínimo para extrair o necessário à sua sobrevi-
vência. Todavia, da funcionalização desse modelo jurídico se extrai que
a atuação do representante somente será merecedora de tutela se ele
se compromete objetivamente a apoiar a recuperação do curatelado. O
interesse digno de proteção da pessoa submetida à curatela se vincula
à diuturna humanização do tratamento. Não será a omissão da legis-
lação infraconstitucional que servirá como obstáculo a uma imediata
aplicação da Constituição no sentido de vincular o Poder Judiciário a
conjugar a prestação de contas a uma periódica revisitação do estado de
saúde do ser humano curatelado e do zeloso cumprimento pelo curador
do papel promocional da dignidade da pessoa submetida à curatela.
Por mais que a Lei nº 13.146/15 tenha aparentemente silenciado no
tocante à necessidade de submissão da curatela a uma revisão regular,

12
Uma excepcional situação de levantamento da curatela pelo próprio destinatário da curatela
é narrada no clássico Memórias de um doente de nervos, cujo autor, Daniel Schreber, magistrado
e membro de corte superior de tribunal alemão, elabora relato autobiográfico, com destaque
para o período de sua internação e o seu posterior reingresso na sociedade. Essa narrativa
se tornou um dos recursos mais utilizados para o estudo da psicose, visto que os delírios
do autor são descritos de forma muito detalhada. No início da obra, o autor assume que,
“considerando que tomei a decisão de, em um futuro próximo, solicitar minha saída do
sanatório para voltar a viver entre pessoas civilizadas e na comunhão do lar com minha
esposa, torna-se necessário fornecer às pessoas que vão constituir meu círculo de relações
ao menos uma noção aproximada de minhas concepções religiosas, para que elas possam,
se não compreender plenamente as aparentes estranhezas de minha conduta, ter ao menos
uma ideia da necessidade que me impõe tais estranhezas” (SCHREBER, Daniel P. Memórias
de um doente dos nervos. Tradução e introdução de Marilene Carone. 3. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2006).
34
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

independente e imparcial, sem maiores dificuldades hermenêuticas


será possível extrair do já realçado §3º do art. 84 que, se a curatela
deve durar “o menor tempo possível”, naturalmente o magistrado
conjugará a prefixação de um termo, a determinação de um novo
exame multidisciplinar para a aferição das condições do tratamento, a
atualização quanto ao grau de deficiência da pessoa e a viabilidade da
cessação da incapacidade relativa. Mesmo que não se queira conferir
tal elasticidade ao estatuto, nunca é por demais lembrar que, seguindo
o procedimento do §3º do art. 5º da Constituição Federal, o Congresso
Nacional aprovou a CDPD com status de emenda constitucional. Com
isso, desde 2009 a convenção passou a gerar efeitos jurídicos internos,
impondo a todos (inclusive ao Poder Judiciário) a adequação imediata
de posturas e de políticas públicas.
Pelo fato de a sentença que declara a curatela ser revista a
qualquer tempo, considerando o acompanhamento multidisciplinar
e a evolução do estado psíquico do paciente, os dados de registro dos
limites de exercício da autonomia privada oscilarão. Ilustrativamente,
o curatelado poderá optar por não se sujeitar ao tratamento indicado
pela equipe multidisciplinar. Nesse caso, com base na opinião de todos
os envolvidos, inclusive do curatelado, o magistrado poderá interferir
diretamente na medida da curatela por meio do reforço do cuidado
por via das ações do curador.13
Não se pode mais reduzir a curatela a um encargo ou a um munus.
A reconfiguração ou despatrimonialização do instituto necessariamente
se prende a uma imposição solidarista pela qual todo curador será um
“cuidador da saúde” que promoverá a autonomia do sujeito incapaz,
favorecendo as decisões que respondam às suas preferências. A relação
entre representante e representado necessariamente ostentará uma
dinâmica de afetividade.

1.5 Curatela conjunta


Em nossa proposta, a curatela conjunta é um gênero que contém
duas espécies: curatela conjunta compartilhada e curatela conjunta
fracionada.
No Código Civil de 2002, não havia explícita previsão legal
para a curatela conjunta em ambas as espécies. Pelo contrário, o art.
1.775 do Código Civil enunciou uma ordem sucessiva de nomeação do
curador, com primazia para o cônjuge ou companheiro, passando pelos

SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Belo Horizonte: D’Placido
13

Editora, 2016, p. 322.


NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
35

ascendentes e descendentes do curatelado, culminando na escolha pelo


magistrado na falta das mencionadas pessoas.14
A omissão legislativa jamais serviu de empecilho para a consa-
gração da funcionalização da curatela pela via da pluralização de
curadores se esta fosse a construção que melhor se adaptasse à proteção
e promoção de direitos fundamentais da pessoa submetida à curatela.
Todavia, a Lei nº 13.146/15 inovou com o art. 1.775-A nos seguintes
termos: “Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o
juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa”.

1.5.1 Curatela conjunta compartilhada


O direito fundamental à convivência familiar é extraído do artigo
227 da CF. No sentido que atualmente lhe confere, relaciona-se com o
imperativo da proteção integral da criança e adolescente por parte daqueles
que exercitam a autoridade parental. Extrai-se de sua eficácia defensiva que
os detentores do poder familiar efetivem a tutela infantojuvenil, assegu-
rando o respeito ao sujeito de direito em sua progressiva formação da
subjetividade, notadamente pela preservação de sua integridade psico-
física. Mas não é só! Em sua dimensão afirmativa, o referido princípio incita
os genitores a promover a personalidade de seus filhos, funcionalizando
a autoridade parental ao desenvolvimento das potencialidades de seres
humanos em desenvolvimento. Por fim, o referido art. 227 materializa
uma terceira dimensão. Para além da dupla face de proteção e promoção
da convivência no interno da família constituída, há de se resguardar
o direito fundamental “à convivência” como inegável prerrogativa de
acesso da criança e do adolescente ao relacionamento familiar. Trata-se
do direito fundamental do filho de não se separar dos seus pais quando
a vida afetiva do casal alcança os seus estertores.
Se a família se desestruturou, o estatuto do acesso se viabiliza
pela via da guarda compartilhada, considerada como a responsabili-
zação conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que
não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos
comuns. O estatuto civil assegurou a guarda compartilhada quando
fruto do consenso parental (art. 1.584, I, CC).
Sendo a guarda compartilhada a forma eleita pela lei civil para
efetivar o direito fundamental à convivência na tríplice dimensão da

14
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.692/2011, que visa acrescentar o art.
1.775-A ao Código Civil a fim de contemplar a curatela compartilhada entre os genitores
nos casos de curatela de pessoa com deficiência física grave ou deficiência mental, tal como
postulado no caso dos autos.
36
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

proteção, promoção e acesso dos filhos menores a uma estruturação


psíquica, evidentemente que a curatela compartilhada também concretiza
o direito fundamental à convivência da pessoa interdita com ambos os
pais. O momento de decretação da supressão da capacidade não pode
representar um corte na relação entre o sujeito e um dos seus pais, o
que geralmente ocorre quando o dever de cuidado é atribuído a apenas
um dos genitores.
Assim, o requerimento de curatela compartilhada pelos pais
não significa apenas mais uma opção concedida pelo art. 1.775-A do
Código Civil, senão o desfecho prioritário e vinculativo do magistrado
na eleição da pessoa do curador, que só poderá ser rechaçado por razões
justificáveis, justamente por se tratar da solução virtuosa que melhor
dignifica a pessoa do curatelado. Sendo o processo um instrumento
de efetivação das aspirações do direito material, o aconselhável é que
o Ministério Público e o magistrado concitem os genitores – se ambos
possuírem condições físicas e psíquicas para tanto –, no sentido de
compartilhar a curatela, como modo de dilatação da eficácia do poder
familiar (art. 1.630, CC), originalmente dedicada aos filhos menores,
mas seguramente favorável aos interesses existenciais das pessoas
maiores, porém incapazes.
A guarda compartilhada poderá alcançar outros sujeitos conforme
aponte a concretude do caso: ilustrativamente, a responsabilização
conjunta de um genitor e um irmão, ou mesmo um filho da pessoa
interdita; os dois avós do curatelado; um padrasto e um tio… enfim,
no contexto ampliado das famílias, a noção de afetividade assume um
caráter objetivo para se aproximar de um ethos de solidariedade entre
pessoas que partilham a sua existência.15

1.5.2 Curatela conjunta fracionada


A compartilhada gera responsabilização conjunta para exercício
da totalidade de direitos e deveres relativos ao cuidado com a pessoa

15
Nesse sentido, o ensinamento de Maria Berenice Dias: “Embora a lei confira legitimidade
ao pai ou a mãe para o exercício da curatela (CC 1.775, §1º), necessário reconhecer a
possibilidade de ambos os genitores exercerem de forma compartilhada tal tarefa. Não só
pais, mas também avós ou parentes outros que sejam casados ou vivam em união estável
hétero ou homoafetiva, podem ser nomeados em conjunto. Afinal, situações particulares
como a tutela de netos e a curatela de filhos não podem ficar atreladas à rigidez das normas
e nem prescindir da utilização de novos critérios hermenêuticos de afirmação, que cumprem
a verdadeira finalidade do direito: garantir ao cidadão o exercício efetivo de seus direitos
fundamentais” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011, p. 623).
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
37

sob curatela. Ambos os curadores atuam em prol da pessoa e de seu


patrimônio sem distinção de funções ou periodicidade.
Todavia, diante de toda a valorização da pessoa do curatelado,
naturalmente o ordenamento exigirá mais do curador. A curatela deixa
de ser um simples munus, resumido à fase estrutural da designação
formal do representante judicial de um incapaz. Em substituição, surge
o curador-cuidador, modelo proativo que demandará de seu titular maior
especialização e dedicação à pessoa sob curatela.
Em face da complexidade desse novo modelo e do evidente
desgaste da pessoa que abraçará tal gama de cuidados, será aconse-
lhável – quando possível – o fracionamento das funções entre cocuradores,
cada qual empenhado nas atividades para as quais se dirijam as suas
afinidades e talentos. Bem evidencia Rodrigo Mazzei16 que:

É perfeitamente possível a ocorrência de situações em que o curador


virtual, embora possa atuar com exemplar empenho para a preservação
dos atos para a vida e dignidade do interdito, não tenha aptidão para a
atuação patrimonial em prol do curatelado, reconhecendo o fato perante
o juiz. Em tais casos, não enxergamos motivo para se negar pedido de
nomeação conjunta a fim de que as tarefas sejam fracionadas, assumindo
cada um dos nomeados, função distinta, com sujeição de ambos aos
efeitos (e deveres) do múnus público atrelado à figura do curador, espe-
cialmente quando há postulação fundamentada e consensual assinada
por aqueles que pretendem dividir a curatela.

Lembre-se, por necessário, que a tutela significa uma extensão


do poder familiar para crianças e adolescentes, dispondo o art. 1.774 do
Código Civil que se aplicam à curatela as disposições concernentes à
tutela. Portanto, em um processo de curatela, as circunstâncias concretas
podem aconselhar o recurso ao art. 1.742 do Código Civil, que institui
a figura do protutor, pessoa designada pelo juiz para a fiscalização dos
atos do tutor, beneficiando a conservação do patrimônio do infante e
legitimando a prestação de contas.
Não obstante tenha o art. 1.775-A previsto tão somente a curatela
compartilhada a mais de uma pessoa (Lei nº 13.146/15), nada impede
que as peculiaridades do caso indiquem preferencialmente a cisão de
responsabilidades entre duas pessoas.

16
MAZZEI, Rodrigo. Curatela compartilhada: exemplo (e possibilidade) de curatela conjunta.
Necessidade de uma nova concepção da curatela, adequando-se aos reclames da atual
sociedade. Revista de Direito de Família e Sucessões, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 2, 2015.
38
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Com efeito, o fracionamento será mais necessário nas invulgares


hipóteses em que a existência de um patrimônio mais significativo
demande certa expertise do curador, o que atrairá a necessidade de
reservar a outro curador a exclusividade do cuidado existencial da
pessoa. Exemplificativamente, o cônjuge ou um dos genitores atua em
benefício da saúde, enquanto um filho ou irmão evita a dilapidação de
bens. Enfim, as possibilidades são inúmeras. Com a disjunção de áreas
de atuação em prol dos melhores interesses do curatelado, simultanea-
mente valorizamos o exercício dos deveres relacionados à afetividade
e a fiscalização dos assuntos econômicos.

1.6 A humanização da curatela no CPC/15


Em certo ponto, o cenário apresentado pela legislação processual
reformista se coaduna com os referenciais demarcados por Erik Jayme17
para o direito de família da pós-modernidade: o pluralismo, a narração,
a comunicação e o regresso dos sentimentos. Admitir tais tendências
pode soar caótico e ameaçador à segurança jurídica, porém possui a
vantagem de melhor corresponder à complexidade da vida atual.

1.6.1 Curador-cuidador
Em sentido diverso à anacrônica ordem de preferência de
nomeação do curador, com prioridade para o cônjuge e o compa-
nheiro ‒ sucessivamente delegada aos ascendentes e descendentes do
curatelado (art. 1.775, caput e §1º, CC) ‒, o CPC/15 atribui a curatela a
quem mais bem possa atender aos interesses do curatelado (§1º do art. 755
do CPC/15). A elogiável abertura do dispositivo materializa o dever
de cuidado perante a pessoa curatelada, preservando o direito funda-
mental de convivência com quem antes já lhe assistia, a despeito de
sua condição ou não de componente da entidade familiar. O preceito
se mostra igualmente eficaz para aquelas situações em que não se
legitime com nitidez um personagem que exercite atos objetivos de
afetividade, cabendo ao magistrado promover o acesso da pessoa ao
acompanhamento responsável daquele que possua melhores condições
de zelar pelo respeito e consideração com o ser humano incapacitado.

17
JAYME, Erik. Pós-modernismo e Direito de Família. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,
Coimbra: Universidade de Coimbra, v. LXXVIII, 2002, p. 220.
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
39

Em idêntico sentido caminhou a Lei nº 13.146/15 ao incluir um


parágrafo único no art. 1.772 do Código Civil com o seguinte teor: “Para
a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências
do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência
indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da
pessoa”. Apesar de o Estatuto da Pessoa com Deficiência ter preservado
o citado o art. 1.775 do CC/02, ele praticamente perde a sua vitalidade,
pois a ordem nele consagrada só será respeitada se coincidir com a
pessoa que tenha condições efetivas de velar pela mais ampla tutela
aos direitos fundamentais da pessoa interditada.
No perfil funcional da curatela como um processo consubstan-
ciado por um conjunto de atos direcionados à recapacitação civil da pessoa,
todos os atos desenvolvidos pelo curador somente serão legitimados
pelo sistema jurídico se voltados à proteção e promoção das situações
patrimoniais e existenciais daquele cuja autonomia é temporariamente
suprimida. Daí se extrai a fundamentalidade da escolha daquele que
conduzirá o processo de libertação do curatelado pela via do resgate de
sua autonomia plena. Em outras palavras, tem-se aquilo que o art. 14
da Lei nº 13.145/15 define como processo de reabilitação:

O processo de habilitação e de reabilitação é um direito da pessoa com


deficiência. Parágrafo único. O processo de habilitação e de reabilitação
tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habili-
dades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais,
profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia
da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas.

A permeabilidade do §1º do art. 755 do CPC/15 atrai a aplicação


do princípio da afetividade jurídica objetiva. Vale dizer, na designação
da pessoa que melhor possa conduzir o processo – de decretação
da curatela até o seu levantamento –, o magistrado localizará fatos
signopresuntivos que indiquem objetivas manifestações de afetividade
na pregressa relação entre o curatelando e alguém que materialmente já
o tratava como curador. O seu substrato envolve relações de cuidado,
entreajuda, respeito, manutenção de subsistência, educação, proteção,
carinho etc.18 A externalidade pública de todos ou alguns desses signos

18
Ricardo Lucas Calderón evidencia a existência de duas dimensões da afetividade: subjetiva
e objetiva. A dimensão subjetiva restaria vinculada ao psíquico de cada pessoa (ao afeto em
si), de modo que não interessa ao direito. Para a seara jurídica, esta dimensão subjetiva resta
implícita sempre que presente a sua dimensão objetiva. Por outro lado, a dimensão objetiva
40
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

identificadores de um dignificante convívio edificará o fato jurídico da


socioafetividade, que, a seu turno, receberá eficacização no processo de
curatela através da sua atribuição em prol do detentor fático da função
de curador. A percepção dessa realidade pelo direito será decisiva para
a conformação do encargo aos interesses patrimoniais e existenciais
concretamente merecedores de tutela da pessoa curatelada.
Não se olvide que a melhor forma de materialização da pessoa
que atenderá ao projeto terapêutico do horizonte do “melhor interesse
do curatelado” será justamente a eleição da pessoa por ele designada,
pela via da diretiva antecipada da vontade da autocuratela. O exercício
da autonomia prospectiva no período da capacidade plena facultará
a designação de uma ‒ ou mais de uma pessoa ‒ para o futuro papel
de curador, consubstanciando um guia de orientações fundamentais
acerca das vontades, desejos e crenças de alguém que eventualmente
não possa mais se reconhecer no porvir da curatela.
Na falta de diretivas antecipadas, parece-nos evidente e aconse-
lhável que o atendimento aos interesses do sujeito curatelado enseje
uma pluralização da sua representação pela curatela conjunta, seja ela
compartilhada ou fracionada, conforme as circunstâncias que indiquem a
corresponsabilidade ativa ou a divisão de atribuições em prol do sujeito.
Outrossim, a curatela conjunta será especialmente valiosa para as
excepcionais hipóteses em que “a autoridade do curador estende-se à
pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsa-
bilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar
outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz” (art. 757
do CPC/15). Em sua parte derradeira, o texto admite que o magistrado
remova a curatela extensiva quando considere desaconselhável ampliar a
representação do curador à pessoa sob a autoridade parental do curatelado
(como exige o caput do art. 1.778 do Código Civil). Uma saudável herme-
nêutica do texto projetado passa pelo compartilhamento da autoridade
parental sobre o filho da pessoa incapacitado entre o próprio curatelado
(que não será destituído do poder de família) e o seu curador, ou então
entre aquele e um segundo curador, especialmente vocacionado para as
tomadas de decisão conjuntas sobre a criança ou o adolescente.

envolve fatos da realidade concreta que permitam a constatação de uma manifestação de


afetividade. Estando presentes tais fatos indicativos (dimensão objetiva), seria possível
constatar desde logo a afetividade, visto que a outra esfera (dimensão subjetiva) seria sempre
implícita. Ou seja, o direito não estaria regulando sentimentos, mas sim apenas valorando
fatos representativos, tidos como relevantes para o ordenamento, no caso a afetividade.
(CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro:
Renovar, 2013, p. 321-322).
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
41

Digno de aplausos é o texto do art. 758 do CPC/15: “O curador


deverá buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia
pelo interdito”. A ele se acresça o §2º do art. 85 da Lei nº 13.146/15: “A
curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença
as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do
curatelado”. O curador definitivamente assume a condição de cuidador,
protagonizando a função promocional de reinserir o curatelado em sua
condição plena de cidadania. A curatela se converte em processo (na
leitura de Clóvis do Couto e Silva) à medida que o sistema desvincula a
curatela de um fim em si para tratá-la como fase intermediária e neces-
sária, de gradual travessia entre um período patológico de ausência
ou redução de discernimento para a aquisição de autodeterminação
do paciente, na plenitude de sua condição fisiológica. Com ênfase na
boa-fé objetiva, o curador assume deveres laterais de proteção, cuja
forte carga ética consiste no exercício de comportamentos colaborativos
direcionados à emancipação da pessoa.

1.6.2 Personalização da curatela


De acordo com o art. 749 do CPC/15, ao promover a curatela,
“incumbe ao autor, na petição inicial, especificar os fatos que demonstram
a incapacidade do interditando para administrar seus bens e, se for o
caso, praticar ato da vida civil, bem como o momento em que a incapa-
cidade se revelou”. Aqui há a louvável iniciativa de direcionar a curatela
para o âmbito da gestão patrimonial, sem distinção entre a curatela da
pessoa relativa ou absolutamente incapaz. A privação para o autônomo
exercício dos direitos fundamentais e atos existenciais será medida
excepcional, demandando motivação própria. O curador se despe da
arrogante postura de alter ego do “sentenciado silenciado”, converten-
do-se em auxiliar da travessia pela superação de suas limitações.
Em reforço, proclama o art. 751 do CPC/15 que “o interditando
será citado para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que
o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens,
vontades, preferências, laços familiares e afetivos, e sobre o que mais
lhe parecer necessário para convencimento quanto a sua capacidade
para prática de atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo as
perguntas e respostas”. O CPC/15 expressamente revogou art. 1.771 do
Código Civil. Enquanto o art. 1.771 do Código Civil dispõe que o magis-
trado, assistido por especialistas, “examinará pessoalmente o arguido
de incapacidade” (em sentido idêntico ao art. 1.181 do CPC/73, que
determina obrigatório acompanhamento da inspeção por especialistas),
42
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

o CPC/15 discrimina a atividade do juiz com relação aos profissionais


da saúde como uma fase procedimental de “entrevista”, momento em
que aquele vivenciará o diálogo com a pessoa, abrindo espaço para a
escuta da sua narrativa, sem tecnicismos (doravante a presença de um
especialista será facultativa, a teor do §2º do art. 751 do CPC/15). Trata-se
de uma oportunidade de contato do juiz com a história de vida do ser
humano, subjacente a um patrimônio que se queira acautelar. O conhe-
cimento das suas crenças, motivações e versões não servirá para a coleta
de aspectos técnicos do eventual transtorno psíquico, mas para que o
magistrado colha importantes elementos de convicção sobre quem é de
fato aquele ser humano conduzido à iminência de uma incapacitação
civil. Como bem refere o §3º do mesmo dispositivo, será assegurado o
emprego de recursos tecnológicos para que a entrevista seja levada a
efeito da melhor forma possível. Ilustrativamente, pessoa que ostente
enfermidade progressivamente incapacitante, como a esclerose lateral
amiotrófica, poderá fazer uso de aparelhos especiais de comunicação
com o magistrado.
Em complemento, o §1º do artigo 751 do CPC/15 – “Não podendo
o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver” – atrai
o dever de colaboração do juiz com as partes (art. 6º do CPC/15), mais
precisamente pela materialização do dever de auxílio, assistindo a parte
deficiente na superação de obstáculos que impediriam o exercício de
seus direitos. Daí a imposição do deslocamento do magistrado para
o local em que a pessoa estiver a fim de que este cumpra o seu dever
processual de prestar a entrevista.
Preconiza o art. 755 do CPC/15 que, “na sentença que decretar
a interdição, o juiz: I – nomeará curador, que poderá ser o requerente
da interdição, e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o
desenvolvimento mental do interdito”. Em louvável avanço, a regra
flexibiliza a curatela em todos os níveis, eliminando a apriorística figura
da curatela ilimitada (art. 1.772 do CC) como sanção padronizada para
todos aqueles que se subsumam a moldura abstrata de absolutamente
incapazes.
A variação do espaço de autonomia reservada à pessoa interdita
oscilará conforme os interesses concretamente dignos de proteção – e
não mais sobre signos estigmatizantes –, sendo alçados à posição de
parâmetros objetivos de ponderação entre a preservação da autodeter-
minação do curatelado e a necessidade de sua proteção aspectos como
a consideração das “características pessoais do interdito, observando
suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências” (inciso II do
art. 755 do CPC/15). A instrumentalidade do processo legitimamente
NELSON ROSENVALD
O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC
43

se curva à priorização da preservação dos direitos fundamentais da


pessoa humana, notadamente da capacidade civil, meio necessário para
a diuturna afirmação da subjetividade, pelo livre acesso ao trânsito nas
relações sociais, afetivas e familiares.

1.7 Conclusão

Assim, há de se enaltecer o desiderato funcionalizado da curatela.


Não mais um instituto exclusivamente vocacionado à conservação do
patrimônio do incapaz, porém um modelo jurídico instrumentalizado
à proteção e promoção das situações existenciais da pessoa humana
submetida à curatela. A partir de agora, com os olhos voltados para a
CDPD (Decreto nº 6.949/09), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei
nº 13.146/15) e o CPC/15, procuraremos materializar o que se deseja para
a personalização da curatela, seja pelo expurgo do arcabouço jurídico
incompatível com esse propósito, bem como pela submissão das normas
infraconstitucionais ao primado da dignidade da pessoa humana e de
direitos fundamentais incorporados ao bloco de constitucionalidade.

Referências
CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro:
Renovar, 2013.
COSTA FILHO, Waldir Macieira. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São
Paulo: Saraiva, 2017.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011.
JAYME, Erik. Pós-modernismo e direito de família. Boletim da Faculdade de Direito de
Coimbra, Coimbra: Universidade de Coimbra, v. LXXVIII, 2002.
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas
incapazes pelo uso de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a
reflexão bioética. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwing (Orgs.).
Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
MAZZEI, Rodrigo. Curatela compartilhada: exemplo (e possibilidade) de curatela conjunta.
Necessidade de uma nova concepção da curatela, adequando-se aos reclames da atual
sociedade. Revista de Direito de Família e Sucessões, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 2, 2015.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo Código Civil. v. XX. Rio de Janeiro:
Forense, 2004.
RODOTÀ, Stefano. Dal soggeto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007.
44
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e introdução de Marilene


Carone. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Belo Horizonte: D’Placido
Editora, 2016.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias
entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010.
UMA LIÇÃO de amor (I’am Sam). Direção: Jessie Nelson. Produção: Richard Solomon.
Intérpretes: Dakota Fanning, Laura Dern, Michelle Pfeiffer, Sean Penn, e outros. Roteiro:
Jessie Nelson, Kristine Johnson. Estados Unidos, New Line Productions, 2001, 133min.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

ROSENVALD, Nelson. O novo perfil da curatela: interseções entre a LBI e o


CPC. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU,
Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil:
repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17-44.
ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 2

A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS


DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O
RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE
DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS COMO
EXERCÍCIO DA SUA AUTONOMIA PRIVADA

Cristiano Chaves de Farias


Melissa Ourives Veiga

2.1 A importância das diretivas antecipadas como


mecanismo de efetivação da autodeterminação da
pessoa humana
De forma ainda mais acentuada em meios às complexidades da
vida contemporânea (aberta, plural e multifacetada), dúvida inexiste
de que a liberdade de autodeterminação há de ser a regra da conduta
humana. É o que se denomina, no âmbito jurídico, de autonomia privada,
ou seja, a pessoa humana tem o direito de escolher os seus caminhos
nas relações entre particulares, sendo certo o velho e conhecido adágio
de que, nas relações privadas, é possível tudo menos o que a lei proíbe.
Nessa ambiência, ganha especial relevância a cláusula geral de
avançada proteção da dignidade humana (CF, art. 1º, III); na medida,
em caráter ordinário, caberá fundamentalmente ao titular estabelecer
as latitudes e longitudes do que seja, para si mesmo, o direito a uma
vida digna.
Aliás, como consectário lógico e inexorável do reconhecimento
de um direito à vida digna, exsurge a afirmação de que é seu desdobra-
mento certo e incontestável a afirmação de um direito à morte digna.
46
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

São, enfim, o verso e o reverso de uma mesma moeda. Em palavras mais


claras: ao direito de viver com dignidade haverá de corresponder como
espelho invertido o direito de morrer dignamente. Até mesmo porque
uma morte digna é consequência natural de toda e qualquer vida digna.
Na certeira ponderação de Maria de Fátima Freire de Sá, “morrer
é parte integral da vida, tão natural e previsível quanto nascer. É inevi-
tável”. De toda maneira, o que parece mais assustar aos humanos é
“que ninguém sabe o que lhe espera depois da vida”.1
Fatal e inevitável, a morte não precisa, contudo, ser marcada por
dores e sofrimentos. Um processo digno da morte é corolário para uma
vida que se qualificou pela dignidade do exercício de suas possibili-
dades. Pondera, nessa trilha, Anderson Röhe que “a dor e o sofrimento
tornaram-se desvalores rejeitados por uma sociedade adoradora do
corpo e da perfeição. Daí a necessidade de uma medicina operante que
assegure aos homens o seu bem-estar físico e mental, proporcionando
uma boa morte, mais humana e capaz de ser compreendida”.2
Importante, no ponto, chamar a atenção para uma significativa
advertência, evitando uma confusão conceitual com categorias distintas:
não se trata de debater aqui a admissibilidade, ou não, de uma morte
piedosa, bondosa, quase gentil. Cuida-se, em verdade, de buscar a
afirmação do direito à morte digna como corolário, como consequência
natural, do direito a uma vida digna. Equivale a dizer: a dignidade que
norteou a vida de uma pessoa humana deve lhe acompanhar até o momento
derradeiro, restando obstadas condutas procrastinatórias ou fúteis que,
a par de causar sofrimento, afrontam a sua integridade física, psíquica
e intelectual. Invocando a precisa ponderação de Diaulas Costa Ribeiro:

[...] a morte digna também é um direito humano. E por morte digna se


compreende a morte sem dor, sem angústia e de conformidade com a
vontade do titular do direito de viver e de morrer. E nesse sentido é
paradoxal a postura social, muitas vezes emanada de uma religiosidade
que a religião desconhece, que compreende, aceita e considera ‘humano’
interromper o sofrimento incurável de um animal, mas que não permite,
com o mesmo argumento – obviamente sem a metáfora – e nas mesmas
condições, afastar o sofrimento de um homem capaz e autônomo.3

1
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer, eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte:
Del Rey, 2001, p. 80.
2
RÖHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004,
p. 123.
3
RIBEIRO, Diaulas Costa. A autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte.
Cadernos Rio de Janeiro: Saúde Pública, v. 22, n. 8, p. 1.749-1.754, ago. 2006, p. 1.752.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
47

É nessa exuberante arquitetura que se apresentam as diretivas


antecipadas de vontade, indevidamente apelidadas de testamento vital,4
como um mecanismo de afirmação da autonomia privada, por meio do
qual o titular concretiza a sua percepção sobre o que seria, para si, uma
morte digna, como corolário de seu direito a uma vida digna. Cuida-se
de interessante instrumento de afirmação da vontade humana no que
tange à extensão da assistência médica a ser prestada a alguém.
Com essa fina percepção, a Resolução nº 1.995/12, do Conselho
Federal de Medicina,5 louvando-se a toda evidência da afirmação da
autonomia do paciente, a partir do livre consentimento informado,
autoriza as diretivas antecipadas em solo brasileiro, procurando
minimizar as dores e sofrimentos decorrentes de tratamentos e proce-
dimentos médicos que prolongam a vida dos doentes terminais sem
chance de cura (a chamada futilidade médica), em clara sintonia com
o direito à vida e à morte dignas.6
Logo no comando do seu art. 1º, o ato normativo explica que as
diretivas antecipadas de vontade constituem o “conjunto de desejos,
prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados
e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver
incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.
O ato regulamentar determina aos médicos o respeito às diretivas
antecipadas de vontade manifestadas pelo paciente, afastando, inclusive,
eventual discordância dos familiares.7 Através dessas diretivas anteci-
padas, o paciente pode definir, enquanto estiver no gozo de suas
faculdades mentais, os limites terapêuticos a serem adotados em seu
tratamento de saúde, em eventual hipótese de estado terminal. Exige-se,

4
Considerando que o conceito de testamento é intrinsecamente ligado à transmissão
patrimonial, explicita-se a atecnia da terminologia. A título ilustrativo, convém lembrar que
a melhor civilística brasileira assevera ser o testamento “o ato essencialmente revogável pelo
qual a pessoa física ou natural, dentro dos ditames da lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu
patrimônio, ou realiza determinações de caráter não patrimonial, cujos efeitos serão produzidos
para depois da sua morte” (CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 536), deixando patente a sua absoluta impropriedade para servir
de sinônimo para as diretivas antecipadas.
5
No sistema jurídico germânico, designa-se a medida como Patientenverfügungen, disciplinada
pela reforma do Código Civil alemão, o BGB, nos §§1901a-1904.
6
Nos Estados Unidos da América, indo mais longe, já se normatizou, inclusive, a possibilidade
do chamado durable power of attorney for health care, consistindo em um “ato de instituição de
um procurador que tomará, em nome do paciente, as decisões relativas ao tratamento, suas
formas, sua duração e sua cessação”, como noticia Luciana Dadalto (DADALTO, Luciana.
Testamento vital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 100).
7
As diretivas antecipadas de vontade “prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico,
inclusive sobre os desejos dos familiares” (§3º do art. 2º da Resolução).
48
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

para tanto, declaração expressa de vontade (diretiva antecipada de


vontade, consoante a expressão consagrada na Espanha). Essa decla-
ração, por óbvio, terá validade e eficácia e prevalecerá, inclusive, sobre
qualquer outro parecer não médico e sobre a própria manifestação de
vontade dos familiares (§3º do art. 2º da resolução).
Não há necessidade de manifestação de vontade por meio de
instrumento público, bem como não se exige o registro em cartório da
declaração de vontade para que possa surtir efeitos, em face da inexis-
tência de exigência expressa da resolução.8
Trata-se de concretização da autonomia privada, conferindo ao
titular o reconhecimento de efetivar pessoalmente o seu direito à morte
digna como uma consequência natural do direito à vida digna. Cuida-se,
fundamentalmente, do direito do paciente de morrer sem sofrimentos
desnecessários na medida em que a medicina não conseguiu estabe-
lecer a cura ou tratamentos mais adequados e eficazes para situações
específicas.
Uma vida digna há de desembocar em um epílogo igualmente
digno e, a cada pessoa, há de se reconhecer o direito de autodeterminação,
sopesando os próprios sentimentos, medos, fraquezas e possibilidades.
E as diretivas antecipadas se apresentam como mecanismo de concre-
tização dessa autodeterminação, possibilitando a quem não deseja
tratamentos incertos ou soluções paliativas o respeito à sua vontade.
Há, sobre o tema, interessante decisão do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul corroborando da tese. No caso julgado, foi reconhecido
a um paciente, internado em unidade hospitalar, o direito de não ser
submetido a uma cirurgia indesejada de amputação, a partir de sua
própria manifestação volitiva.

1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação,


preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofri-
mento”; e, conforme laudo psiquiátrico se encontra em pleno gozo das
faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a
cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo
nobre de salvar sua vida.
(...)
3. O direito à vida, garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com
o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da

8
A partir da inteligência do art. 107 do Código Civil, somente é exigido o cumprimento de
formalidade nos negócios jurídicos por força da norma ou por expressa disposição das
partes. Diz o texto codificado: “A validade da declaração de vontade não dependerá de
forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
49

CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição


institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite
que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia,
máxime quando mutilatória. (...)
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação
de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez
o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012,
do Conselho Federal de Medicina. (TJ/RS, Ac. 1ª Câmara Cível, Ap. Cív.
70054988266 – comarca de Viamão, rel. Des. Irineu Mariani, j. 20.11.2013,
DJRS 27.11.2013).

Demais de tudo isso, harmoniza-se, a toda evidência, com o


comando do art. 14 do Estatuto Civil,9 que consagra a possibilidade de
dispor do corpo para depois da morte, concretizando substancialmente
a autonomia privada, que rege as relações do direito civil, até porque
não haveria justificativa ideológica para uma intervenção estatal nessa
matéria.
Indubitavelmente, a pessoa humana que, no pleno gozo de sua
faculdade mental, declarou a sua vontade, livre e desembaraçada, de
não se submeter a determinados tratamentos de saúde ou intervenções
médicas em certas situações deve ter a sua autonomia privada respeitada
a fim de que se efetive a sua dignidade na plenitude. Trata-se de mera
projeção de sua autonomia privada, concretizando a sua liberdade
de autodeterminação, como corolário da dignidade almejada pelo
constituinte.
Disso não diverge Roxana Cardoso Brasileiro Borges, cuja arguta
percepção termina por asseverar a existência de uma “reapropriação da
morte pelo próprio doente. Há uma preocupação sobre a salvaguarda
da qualidade de vida da pessoa, mesmo na hora da morte. Reivindica-se
uma morte digna, o que significa ‘a recusa de se submeter a manobras
tecnológicas que só fazem prolongar a agonia’”.10
E é exatamente por isso que, mesmo antes do advento da Resolução
nº 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina, já se nos afigurava válida
e eficaz essa declaração prévia de vontade em face da premente neces-
sidade de respeitar a autonomia privada do paciente terminal a partir
de preceitos éticos e jurídicos e da terminalidade inexorável da vida

9
Art. 14, Código Civil: “É válida, com objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita
do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”.
10
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia,
consentimento informado, testamento vital. Análise constitucional e penal e direito
comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Org.). Biodireito: ciência da vida,
os novos desafios. São Paulo: RT, 2001, p. 284.
50
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

humana. Com o mesmo pensar, Luciana Dadalto, pioneiramente, já


pontuava que a “declaração prévia de vontade do paciente terminal é
válida no Brasil, mesmo com a inexistência de legislação específica, a
partir de uma interpretação principiológica do ordenamento jurídico
pátrio”.11 12

2.2 Nova teoria das incapacidades: a inclusão da


pessoa com deficiência como sujeito de direito
em igualdade de condições com as pessoas sem
deficiência e a liberdade de declarar as diretivas
antecipadas
Com a visível (e salutar) preocupação de inaugurar um novo
tempo no tratamento jurídico e social das pessoas com deficiência, a
Convenção de Nova Iorque13 impôs uma revisita à teoria das incapa-
cidades no que tange à indevida (porém, histórica) correlação com a
deficiência humana, em seus aspectos físico, psíquico ou intelectual.

11
DADALTO, Luciana. Testamento vital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 148.
12
Bastante oportuna, no ponto, a lembrança de um trecho da sensível e emocionante película
Mar adentro, traduzindo na tela a história real do marinheiro Ramón Sampedro, passada
em pequena cidade da Espanha. Tetraplégico desde os 25 anos de idade por conta de um
acidente no mar que o deixou paralisado sobre a cama, apenas movimentando os músculos
da face, Ramón resolveu requerer, em juízo, o reconhecimento do seu “direito de morrer”.
Argumentou, inclusive, que a única visão que tinha era de uma pequena janela, aberta
para o mar. Como o marinheiro não tinha como pôr fim à sua própria vida em face do
estado físico e por não querer a ajuda de amigos (para evitar eventual responsabilização
penal), pediu aos juízes dos Tribunais de Barcelona e La Coruña que lhe fosse permitido
se objetar às sondas pelas quais era alimentado. Ambas as cortes negaram o seu pleito. O
Tribunal Constitucional espanhol também não acolheu o pedido. Por isso, entendeu que
foi “condenado a viver”. Em última tentativa, dirigiu-se à Comissão Europeia de Direitos
Humanos, onde, mais uma vez, teve indeferida a autorização. Sem dúvida, o seu caso é
emblemático para o direito civil e a discussão acerca da efetiva compreensão da morte.
13
Assinada em 30.3.07, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu protocolo facultativo impõe aos países signatários, inclusive o Brasil, proibir qualquer
discriminação baseada na deficiência, garantindo às pessoas com deficiência igual e efetiva
proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. Elaborada ao longo de quatro
anos, o aludido tratado contou com a colaboração direta de 192 países. Logo em seu art. 1º
consta que o seu propósito é “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e
promover o respeito pela sua dignidade inerente” e que reconhece as pessoas com deficiência
como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
51

De fato, uma deficiência não pode induzir necessariamente


à incapacidade. Inexiste, enfim, uma correlação implicacional entre
deficiência e incapacidade jurídica.
Todavia, de acordo com o histórico tratamento dedicado pela lei
(inclusive pela redação originária do Código Civil de 2002), a pessoa com
deficiência vinha, ao longo dos tempos, sendo enquadrada no conceito
de incapaz – o que, para dizer pouco, escapava à razoabilidade e feria
uma visão igualitária e digna sobre humanidade.
Com efeito, o conceito de deficiência (centrado na existência de
uma menos valia de longo prazo, física, psíquica ou sensorial, indepen-
dentemente de sua gradação) não tangencia, sequer longinquamente,
uma incapacidade para a vida civil. A pessoa com deficiência pode
desfrutar, plenamente, dos direitos civis, patrimoniais e existenciais.
Já o incapaz, por seu turno, é um sujeito cuja característica elementar
é a impossibilidade de autogoverno. Assim, a proteção dedicada pelo
sistema jurídico a um incapaz há de ser mais densa, vertical, do que
aquela deferida a uma pessoa com deficiência, que pode exprimir a sua
vontade. A premissa metodológica estabelecida pelo estatuto, portanto,
é irretocável.14
Desbravando essas sendas, antenada na proteção internacional
pactuada pelo Brasil, a nova redação imposta pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência impôs significativas inovações no regime das incapa-
cidades, absoluta e relativa.15
Por conseguinte, a Lei nº 13.146/15, apelidada de Estatuto da
Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão, mitigou, mas
não aniquilou, a teoria das incapacidades do Código Civil, apenas
adequando-a às normas (regras e princípios) da Constituição da
República e da Convenção de Nova Iorque. Com uma visão prática,
ficou abolida ‒ para sempre (!) por conta da cláusula de proibição de
retrocesso social, implícita no Texto Constitucional ‒ a perspectiva
médica e assistencialista, pela qual se rotulava como incapaz aquele
que, simplesmente, ostentava uma insuficiência psíquica ou intelectual.

14
Para aprofundamento sobre a matéria, seja consentido remeter a FARIAS, Cristiano Chaves
de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. v. 1. 14. ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, onde se trata com verticalidade dos novos quadrantes da teoria das
incapacidades.
15
Art. 3º, Código Civil: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida
civil os menores de 16 (dezesseis) anos” e Art. 4º, Código Civil: “São incapazes, relativamente
a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito
anos; II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III – aqueles que, por causa transitória
ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV – os pródigos. Parágrafo único. A
capacidade dos índios será regulada por legislação especial”.
52
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Como não poderia ser diferente, agora se trata de pessoa humana


plenamente capaz. Aliás, até porque toda pessoa humana é especial
pela sua simples humanidade, tenha ou não algum tipo de deficiência.
Não se justifica, em absoluto, impor a uma pessoa com deficiência o
enquadramento jurídico como incapaz, por conta de um impedimento
físico, mental, intelectual ou sensorial. Toda pessoa é capaz em si mesma
e, agora, o sistema jurídico reconhece essa assertiva, até porque, de fato,
evidencia-se discriminatório e ofensivo chamar um humano de incapaz
somente por conta de uma deficiência física ou mental.16
Realmente, em tempos pós-modernos, com preocupações de
inclusão social e cidadania, não mais se pode admitir que a lei repute
um ser humano incapaz absolutamente somente por conta de uma
deficiência física ou mental e, muito pior do que isso, que promova uma
transferência compulsória das decisões e escolhas sobre a sua vida e as
suas relações existenciais para um terceiro, o curador, aniquilando a
sua vontade e a sua preferência. Equivale, na prática, a uma verdadeira
morte civil de um humano.
Há absoluta coerência filosófica: as pessoas com deficiência não
podem ser reputadas incapazes em razão, apenas e tão somente, de
sua debilidade. É que, na ótica civil-constitucional, especialmente à luz
da dignidade humana (CF, art. 1º, III) e da igualdade substancial (CF,
arts. 3º e 5º), as pessoas com deficiência dispõem dos mesmos direitos e
garantias fundamentais que qualquer outra pessoa, inexistindo motivo
plausível para negar-lhes ou restringir-lhes a capacidade.17
Seguindo nessa trilha garantista, nota-se que as pessoas com
deficiência precisam ter pleno acesso aos direitos fundamentais, constitu-
cionalmente reconhecidos a toda e qualquer pessoa humana, exercendo
em sua plenitude a dignidade prometida no texto constitucional. Não
se admite qualquer limitação ao exercício de direitos pela pessoa com
deficiência no que tange aos seus direitos fundamentais, o que poderia,
em última análise, representar uma afronta à sua própria dignidade.

16
Com esse mesmo espírito, colhe-se em nossa doutrina: “Em verdade, o que o Estatuto
pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que
a pessoa com deficiência deixasse de ser rotulada como incapaz, para ser considerada – em
uma perspectiva constitucional isonômica – dotada de plena capacidade legal, ainda que
haja a necessidade de adoção de institutos essenciais específicos, como a tomada de decisão
apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos da vida civil” (GAGLIANO,
Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. v. 1. 19.
ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 150).
17
Para mais referências acerca da proteção deferida constitucionalmente às pessoas com
deficiência, faça-se justa alusão à pioneira obra de ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção
constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: CORDE, 1994.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
53

No ponto, com idêntica sustentação teórica, Luciana Barbosa


Musse, enfaticamente, assegura “o gozo das mesmas oportunidades
concedidas aos ‘normais’ pelas pessoas com transtorno mental,
em relação a qualquer dos direitos fundamentais assegurados na
Constituição Federal de 1988, sejam eles individuais – vida, honra,
imagem, privacidade, liberdade, propriedade – ou sociais – educação,
trabalho, saúde, transporte, aposentadoria, moradia, lazer”.18
É exatamente nesse espaço que se percebe estar situada a liberdade
de autodeterminação e de expressão da própria vontade. Uma pessoa
com deficiência, efetivamente, pode sofrer limitações de diferentes
matizes, mas, seguramente, não perde a possibilidade de manifestação
de sua própria individualidade em aspectos existenciais, como a afeti-
vidade e o seu próprio eu.
À luz de tais considerações, uma conclusão deflui com convicção
cristalina: uma pessoa com deficiência não mais estará enquadrada,
automaticamente, no conceito de incapacidade (absoluta ou relativa) na
medida em que a deficiência (física, mental ou intelectual) não enseja,
por si só, incapacidade jurídica. A partir da plenitude de sua capacidade,
então, uma pessoa com deficiência (física, mental ou intelectual) pode,
sim, manifestar as suas vontades livremente, inclusive no que tange às
diretivas antecipadas, que lhe são facultadas, por meio de instrumento
público ou particular, como a qualquer outra pessoa sem deficiência.19
Trata-se de conclusão fatal e inexorável: a simples existência de
uma deficiência não induz, automaticamente, incapacidade. E, assim,
a pessoa com deficiência é plenamente capaz, podendo eleger os seus
caminhos e opções, inclusive no que tange às diretivas antecipadas.

2.3 A pessoa com deficiência enquadrada no conceito


de incapacidade, a estrita abrangência da curatela
e a possibilidade de prática de atos existenciais,
inclusive as diretivas antecipadas
Malgrado a regra geral do novo sistema, descortinado pela Lei
Brasileira de Inclusão, seja o desatrelamento absoluto entre a deficiência

18
MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na
visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2008, p. 76.
19
Temos, portanto, um novo sistema que, vale salientar, fará com que se configure como
imprecisão técnica considerar a pessoa com deficiência incapaz. Ela é dotada de capacidade
legal, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida
(GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte
Geral. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 150).
54
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

e a incapacidade, tendo na tela da imaginação a clareza meridiana do


comando do art. 4º da nova redação emprestada ao Código Civil, é
possível que uma pessoa com deficiência seja considerada incapaz,
nos mesmos moldes de uma pessoa plenamente capaz, quando não
puder exprimir vontade.
Incorpora-se, no ordenamento interno, o art. 12.2 da Convenção
Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, que é
lacônico, porém absolutamente preciso. Veja-se: “Os Estados Partes
reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade
legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os
aspectos da vida”.
Dessa forma, concretizando o comando convencional, a pessoa
com deficiência há de estar submetida à mesma normatividade das
demais pessoas em relação à teoria das incapacidades. Por isso, nota-se
que a única hipótese de se lhe imputar a condição de relativamente
incapaz é quando não puder exprimir vontade, a partir do que reza o
inciso III do art. 4º da Codificação de 2002.
Assim, não podendo manifestar a sua vontade, uma pessoa com
deficiência (física, mental ou intelectual) pode ser reputada incapaz
relativamente (jamais pode ser considerada absolutamente incapaz!),
ficando submetida ao regime jurídico da curatela.
Atente-se, de todo modo, que o regime da curatela, a partir da
nova sistemática imposta pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, é
limitado, restrito a determinados atos,20 com vistas a que não se retire
da pessoa curatelada (com ou sem deficiência, mas que não pode
exprimir vontade) a liberdade de autodeterminação existencial. É dizer:
a curatela há de ser compreendida como medida protetiva específica,
abrangendo atos para os quais o curatelado não consiga exercer de per

20
O Tribunal de Justiça de São Paulo já teve oportunidade de, expressamente, asseverar que
o decreto de curatela pode ter uma extensão maior, ou menor, de poderes para o curador,
a depender da situação específica e concreta do curatelando. Assim, chegou a afirmar que
“a quase total falta de discernimento da requerida para os atos da vida civil foi percebida e
retratada nitidamente nos autos, não restando a mais pálida dúvida sobre a inexistência de
plena capacidade da interditanda”. O ponto alto do decisum merece alusão: “Uma interpretação
sistemática e teleológica do Estatuto da Pessoa com Deficiência impõe a conclusão de que
as pessoas que não consigam exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente
devem ser consideradas relativamente incapazes, pois em geral conservam sua autonomia
para a prática de atos de natureza existencial, relacionados aos direitos da personalidade,
a exemplo dos direitos sexuais e reprodutivos, e aqueles relacionados ao planejamento
familiar. Todavia, dependendo do grau de comprometimento das faculdades mentais da
pessoa, poderá ela submeter-se à curatela total ou parcial, que abrangerá eminentemente
os atos de natureza patrimonial e negocial” (TJ/SP, 1ª Câmara de Direito Privado, Ap. Cív.
0307037-84.2009.8.26.0100 – Comarca de São Paulo, rel. Des. Francisco Loureiro, voto 29.643).
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
55

si a individualidade. Bem por isso, inclusive, a sentença que constitui


a curatela precisa estabelecer um projeto terapêutico individualizado21
para o curatelado, delimitando os atos e aspectos em relação aos quais
reclamará a presença do curador.
Incorporando essas ideias, a própria Norma Estatutária cuidou
de estabelecer, in litteris, em seu art. 85, que a curatela não pode trans-
bordar os limites dos atos patrimoniais, preservados os atos existenciais
ao curatelado, ou seja, a ninguém mais do que ao próprio curatelado
interessa a sua essência humana, a sua existência. Não é despiciendo
conferir a clareza da dicção legal:

Art. 85, Estatuto da Pessoa com Deficiência:


A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de
natureza patrimonial e negocial.
§1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à
sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao
trabalho e ao voto.
§2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os inte-
resses do curatelado.
§3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear
curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de na-
tureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.

Ora, patenteia-se, com segurança, que a decisão judicial consti-


tutiva da curatela não pode atingir valores constitucionalmente
preservados em favor da pessoa humana, como a liberdade, as manifes-
tações afetivas e sentimentais e a intimidade.22
Significa que a curatela somente é justificável, em ótica civil-
constitucional, com especial atenção à dignidade humana, em nome das
necessidades do próprio curatelando. E essas necessidades “devem ser
compreendidas em função de seus interesses, devendo ser respeitadas

21
A respeito do projeto terapêutico individualizado, já se disse, com razão, que “a sentença
de curatela apresentará, necessariamente, uma forte carga argumentativa para justificar o
projeto terapêutico individualizado, além de regulamentar a extensão da intervenção sobre a
autonomia privada daquela pessoa humana. Cada curatelando tem o direito (de envergadura
constitucional) de ter parametrizada a sua curatela de acordo com as suas particularidades,
sem fórmulas genéricas e neutras” (FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches;
PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado. Salvador: JusPodivm,
2016, p. 270).
22
Na mesma direção, Flávio Tartuce consigna, expressamente, em relação à curatela, que
“podem existir limitações para os atos patrimoniais e não para os existenciais, que visam a
promoção da pessoa humana”. (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte
Geral. v. 1. 12. ed. São Paulo: Forense, 2016, p. 131).
56
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

como manifestação de seu livre desenvolvimento e de vida”, consoante


à percepção aguda de Célia Barbosa Abreu.23
E é exatamente por conta dessa necessária limitação da extensão da
curatela que a atuação do terceiro em relação à pessoa do curatelado não
pode alcançar situações atinentes “ao próprio corpo, à sexualidade, ao
matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”,
por dizerem respeito aos seus direitos fundamentais, concretizadores
de sua dignidade. Ilustrativamente, não mais há qualquer obstáculo
ou requisito de validade atrelado à deficiência física ou psíquica do
agente para a celebração de um casamento. Casar é ato de vontade e
de manifestação afetiva e, por isso, não pode ser invalidado por mera
deficiência de uma das partes.
Assim, como regra, a atuação do curador está restrita, por
óbvio, às relações patrimoniais do curatelado, não lhe sendo possível
invadir a esfera personalíssima das relações do curatelado, sob pena
de afronta à sua dignidade. Ademais, implicaria em transferência da
própria titularidade da personalidade de um ser humano. Por isso, no
que tange às relações existenciais, como a privacidade, sexualidade,
afetos, integridade física e psíquica, não há atuação do curador, sendo
possível ao curatelado livremente se comportar.

2.4 Possibilidade de diretivas antecipadas de vontade


por pessoas com deficiência sob o regime de curatela
Como se nota, proclamando uma opção visivelmente humanista, o
EPD delimitou as latitudes e longitudes do regime de curatela: somente
são abrangidos os atos patrimoniais e negociais, como reza o seu art. 85.
Em sendo assim, o curatelado somente sofre restrições para
a prática de atos de índole patrimonial (econômica), reclamando a
presença do curador – que se apresentará como um representante ou
um assistente, a depender da extensão da curatela.
A outro giro, os atos de natureza existencial (de matriz ontológica)
podem ser praticados diretamente pela pessoa curatelada, independen-
temente de representação ou de assistência. E é exatamente aqui que
está domiciliada a efetiva possibilidade de uma pessoa com deficiência,
sob o regime de curatela, manifestar, eventualmente, diretivas anteci-
padas de vontade, dispensando, validamente, tratamentos médicos em

23
ABREU, Célia Barbosa. Curatela e Interdição Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 225.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
57

determinadas situações, conforme a regulamentação da Resolução nº


1.995 do CFM.
Efetivamente, tal ato pode ser praticado pela pessoa curatelada
quando, de algum modo, possa externar os seus desejos. Isso porque o
regime da curatela incide quando, por causa transitória ou definitiva,
uma pessoa não puder exprimir vontades relacionadas à sua esfera
patrimonial de interesses, incidindo no conceito de incapacidade
relativa (CC, art. 4º, III). Nada impede que uma pessoa que não pode
externar validamente vontade em negócios econômicos (por conta de
uma potencialidade de prejuízo) tenha a exata noção do que deseja, ou
não, em relação à sua existência na Terra, notadamente no que tange
aos seus aspectos ônticos.
Efetiva-se, assim, uma clara afirmação da dignidade humana,
respeitada a essência valorativa de uma pessoa, independentemente
de estar, ou não, sob o regime de curatela, por não poder se autodeter-
minar patrimonialmente.
Merece destaque o fato de que a declaração volitiva de uma pessoa
sob curatela, acerca de suas diretivas antecipadas, pode ser inferida
de diferentes atos ou condutas. Não se impõe a necessidade de uma
manifestação formal, escrita – até por falta de previsão normativa. É
de se lhe reconhecer a possibilidade de exteriorizar as suas vontades
e desejos das mais diferentes maneiras, com vistas a efetivar a sua
dignidade, sem aviltar a sua autodeterminação.
Invocando as palavras de Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat
Cabral e Carlos Henrique Medeiros de Souza, a pessoa interessada nas
diretivas antecipadas pode, inclusive, “solicitar ao médico que registre
no prontuário sua decisão de não desejar se submeter a certas práticas,
procedimentos ou utilização de suporte vital e quaisquer outros meios
artificiais de manutenção da vida”.24
Incorporando e ampliando essa ideia, é perfeitamente possível a
validade incontestável da manifestação de última vontade da pessoa com
deficiência declarada aos familiares, amigos, cuidadores ou apoiadores,
quer seja na forma verbal, escrita (desenhada) e até mesmo gestual.
Sob esse aspecto, é importante que se afirme não existir legitimidade
hierárquica entre as pessoas receptoras da informação das diretivas

CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de. As
24

diretivas antecipadas de vontade e a efetividade da ortotanásia. In: CABRAL, Hildeliza


Lacerda Tinoco Boechat (Coord.). Ortotanásia: bioética, biodireito, medicina e direitos da
personalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 117.
58
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

antecipadas escolhida pelo paciente, devendo, necessariamente, preva-


lecer a manifestação de última vontade do interessado.
Verticalizando ainda mais, é de se admitir até mesmo o supri-
mento judicial quando a manifestação de vontade não foi precisa ou
existirem dúvidas objetivas acerca dela. Seria o caso de uma declaração
de vontade do curatelado externada a um determinado amigo que se
colocou em rota de colisão com a vontade da família no que diz respeito
ao tratamento a que deve ser submetido o paciente. Na hipótese, é de
se admitir o suprimento de outorga através de um procedimento de
jurisdição voluntária, devendo o juiz decidir com base no conjunto
probatório, priorizando a autonomia privada da pessoa sob curatela.
Aliás, em conformidade com o parágrafo único do art. 723 do Código de
Processo Civil, em se tratando de jurisdição voluntária, o juiz não está
adstrito à legalidade estrita, podendo decidir por equidade, adotando
a solução mais conveniente e oportuna.
Admitir a possibilidade de suprimento judicial é preservar a
autonomia privada do curatelado no campo das relações existenciais,
respeitando a opção ideológica do EPD. Oportuna, inclusive, a lembrança
da advertência de John Stuart Mill, ainda na Inglaterra liberal dos
oitocentos, de que “a razão para não interferir nos atos voluntários de
uma pessoa, exceto para salvaguardar terceiros, é a consideração pela
sua liberdade. A sua escolha voluntária é a prova de que o que escolher
é desejável, ou, pelo menos, suportável para si e, de um modo geral,
atende melhor ao seu bem”.25
Em interessante precedente, a Corte de Justiça do Rio Grande
do Sul, ancorada no supraprincípio da dignidade, reconheceu que a
vontade humana de ter um mínimo de controle da morte deve ser
respeitada, ainda que não tenha sido externada de maneira escrita e
formal – o que serve para aplicar às pessoas curateladas que puderem,
de algum modo, se manifestar sobre a sua existência:

Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana,


que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua
hierarquia. O desejo de ter a ‘morte no seu tempo certo’, evitados
sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de
meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade
indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se
submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora
o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser

25
MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario: Batoche Books/Kitchener, 2001, p. 194.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, MELISSA OURIVES VEIGA
A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS...
59

respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocu-


pação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não
dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir. (TJ/RS,
Ac. 21ª Câmara Cível, Ap. Cív. 70042509562 – comarca de Porto Alegre,
rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa, j. 1.6.2011, DJRS 22.6.2011).

Não se ignore, inclusive, a depender de situações episódicas e


casuísticas, a possibilidade de utilização de mecanismos tecnológicos
variados para a captação da vontade da pessoa humana sob curatela,
preservando a sua liberdade de autodeterminação.
Obtempere-se, por oportuno, que, não podendo a pessoa humana
sob a curatela, de nenhuma maneira, exprimir a sua vontade, sequer
para escolhas pessoais e existenciais, restará prejudicada a possibilidade
das diretivas antecipadas de vontade. Não estará prejudicada por se
lhe obstar o cabimento da medida, mas, sim, pela impossibilidade
de se compreender os seus anseios e desejos. Nesse caso, caberá aos
familiares deliberarem.

Referências
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ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência.
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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil:
Parte Geral. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario: Batoche Books/Kitchener, 2001.


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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FARIAS, Cristiano Chaves de; VEIGA, Melissa Ourives. A concretização dos


direitos da pessoa com deficiência e o reconhecimento da possibilidade das
diretivas antecipadas como exercício da sua autonomia privada. In: BRAGA
NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.).
O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e
tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 45-60. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 3

DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO
DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL
PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ATRAVÉS
DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA

Bruno Oliveira de Paula Batista


Marcos Ehrhardt Jr.

3.1 Introdução
O atual Código de Processo Civil (CPC) e o Estatuto da Pessoa
com Deficiência (EPD), em vigor no Brasil desde o ano de 2016, instau-
raram novos paradigmas em suas respectivas áreas de atuação. De um
lado, o novo Código traz um modelo de processo apoiado em uma
série de garantias fundamentais e processuais que dão o tom e ritmo
para a aplicação e interpretação de suas normas, voltado para um
processo fundado num modelo de cooperação entre todos os sujeitos
envolvidos. De outro lado, temos o EPD, que rompe completamente
com o paradigma do deficiente incapaz, permitindo agora que este
último seja incluído na sociedade e conferindo-lhe não só capacidade,
mas também promovendo uma série de mudanças para assegurar a
autonomia daquela pessoa.
Apesar de contemporâneos, os dois diplomas acima mencionados
parecem nem sempre dialogar, tornando ainda mais relevante a tarefa do
intérprete e aplicador do direito, de não permitir que os objetos e valores
neles consagrados se tornem apenas mais um conjunto de dispositivos
sem qualquer eficácia social dentro do nosso ordenamento jurídico.
Abordaremos uma novidade trazida por cada um dos mecanismos
legais acima mencionados, ou seja, o negócio jurídico processual,
decorrente do princípio do respeito ao autorregramento da vontade,
previsto no art. 3º, §3º, do atual CPC, que permite às partes a disposição
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

acerca de situações jurídicas processuais e também acerca do próprio


procedimento, e a tomada de decisão apoiada, prevista no artigo 1.783-A
do atual Código Civil, que foi acrescido pelo artigo 116 do EPD, por
meio do qual a pessoa com deficiência pode escolher duas pessoas
de sua confiança para auxiliá-la e também protegê-la em assuntos de
natureza patrimonial.
Buscando conciliar os dois mecanismos acima mencionados,
pretendemos analisar se é possível que a pessoa com deficiência, por
meio da tomada de decisão apoiada, pode celebrar o negócio jurídico
processual. O estudo de temas aparentemente sem qualquer relação
(negócio jurídico processual e tomada de decisão apoiada) fez com que
tivéssemos que revisitar alguns conceitos tradicionais tanto do direito
material quanto do direito processual, a exemplo da capacidade jurídica,
negócio jurídico e capacidade processual. Tudo isso só foi possível graças
à realização de cortes que serão sempre mencionados no decorrer de
todo o trabalho, esclarecendo não só nossa opção metodológica como
o marco teórico utilizado para tratar de cada um desses assuntos.
Para o alcance do objetivo acima mencionado, dividimos o
presente trabalho em três partes. Na primeira, abordaremos a situação da
pessoa com deficiência após o advento do EPD, analisando a capacidade
jurídica de tal pessoa, bem como a tomada de decisão apoiada e a
autonomia da pessoa com deficiência. Na segunda parte, cuidaremos de
analisar a figura do negócio jurídico processual, inserido na teoria do fato
jurídico. E, na última parte, trataremos da possibilidade de celebração
do negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência por meio
da tomada de decisão apoiada, tentando apontar alguns problemas e
soluções que a combinação de tais mecanismos pode fazer surgir.
Com isso, buscamos evitar uma abordagem meramente descritiva,
bastante comum em estudos de figuras novas no direito, tentando não
fugir ao tema proposto no presente trabalho. Não temos nenhuma
pretensão, por óbvio, de lançar qualquer conclusão que se pretenda
definitiva ou imune às críticas, mas apenas de fixar algumas bases para
reflexão acerca de um tema que, apenas recentemente, começou a ser
tratado pelo nosso legislador.

3.2 O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a tomada de


decisão apoiada
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, ao entrar em vigor no
Brasil, fez com que alguns conceitos clássicos do direito civil fossem
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
63

revisitados ou mesmo tivessem seu conteúdo alterado, passando por


uma verdadeira ressignificação. Tal estatuto é decorrência da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD),
que, por sua vez, reflete o “ideário de inserção dos deficientes nas
relações jurídicas, com atuação ativa e manifestação de vontade expressa
e reconhecida”,1 conforme ressaltam Correia Junior e Albuquerque.
Para adequada compreensão do problema aqui proposto, é necessário
analisarmos o sentido dado aos conceitos de personalidade e capacidade.
Destarte, é a personalidade o atributo que expressa a possibi-
lidade de alguém ser parte numa relação jurídica como consequência da
própria condição humana e de poder titularizar direitos e deveres.2 Em
seu aspecto objetivo, a personalidade seria um conjunto de atributos do
ser humano que garante a sua integridade e a sua dignidade, conforme
afirmado por Menezes e Teixeira.3
Outro conceito a ser revisitado é o de capacidade, que, tradi-
cionalmente, enquanto gênero, sempre foi compreendido através de
suas duas espécies: capacidade de fato e capacidade de direito. Com o
advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, este passou a utilizar
o termo capacidade legal ou jurídica, que vinha sendo utilizado pela
doutrina como sinônimo de capacidade de direito, como observado
por Menezes e Teixeira,4 e que será doravante empregado também no
presente trabalho.
A capacidade de direito seria a manifestação dos poderes de
ação que são inerentes à personalidade, sendo medida jurídica desta
última; é a aptidão para alguém ser titular de direitos e deveres. Já a

1
CORREIA JUNIOR, José Barros; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. A influência do direito
civil constitucional sobre a (im)prescritibilidade contra portadores de deficiências mentais
após o Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR, Marcos (Coord.). Impactos
do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 377.
2
Mendonça afirma que a noção de personalidade vai além da visão estrutural e abstrata que
a associa à subjetividade, sendo ela o conjunto de características da pessoa humana e que
possuem tutela privilegiada na ordem constitucional, diante do princípio da dignidade
da pessoa humana (MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as principais
mudanças operadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) no regime
das incapacidades. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no
Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 259).
3
MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo
da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR.,
Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 178.
4
MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo
da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR.,
Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 178.
64
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

capacidade de fato seria a aptidão que uma pessoa tem para praticar os
atos da vida civil e para exercer os direitos previstos no ordenamento
jurídico, independentemente de representação ou de assistência.
Conforme afirmam Menezes e Teixeira,5 a capacidade de fato remete
ao discernimento, à higidez psíquica, à capacidade mental de medir
as consequências dos atos praticados. O pressuposto da primeira é
o nascimento com vida (para as pessoas físicas), e o da segunda é a
capacidade de querer e entender.
Nesse sentido, uma das principais inovações do EPD foi a de
retirar a categoria dos deficientes (que sempre foram tidos pela ordem
jurídica brasileira como incapazes) desse rol de pessoas sem a capacidade
de fato, ou seja, o estatuto em questão excluiu a deficiência como critério
redutor da capacidade. Correia Junior e Albuquerque6 afirmam que,
independentemente da limitação mental, toda pessoa é um sujeito de
direito e, por conseguinte, deve desfrutar da maior dignidade que o
direito deve proporcionar.
Tal mudança se fez necessário não só como medida de inclusão
do deficiente na sociedade, mas também como corolário da própria
ressignificação da noção de capacidade que, tradicionalmente, sempre
serviu como proteção para os aspectos patrimoniais do sujeito, sem
levar em consideração seus aspectos existenciais. Essa nova visão da
capacidade civil decorre dos princípios da dignidade da pessoa humana,
autodeterminação, inclusão social e da cidadania, como observam
Nishiyama e Toledo.7 E prosseguem os mesmos autores:

(...) a capacidade civil se estendeu tornando-se mais ampla, mais


personificada, mais jurídica onde a manifestação da vontade amplia
sua definição e alcança outros sujeitos, tornando-se plena a garantir o
exercício de direitos existenciais, como os sexuais, ou reprodutivos, os
que tratam do planejamento familiar, da conservação da fertilidade, os
que preservam a formação da família, a convivência familiar e comu-
nitária, bem como os relativos à guarda, à tutela, à curatela e à adoção,

5
MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo
da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR.,
Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 179-180.
6
CORREIA JUNIOR, José Barros; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. A influência do direito
civil constitucional sobre a (im)prescritibilidade contra portadores de deficências mentais
após o Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR, Marcos (Coord.). Impactos
do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 371.
7
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa
com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 42.
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
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como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as


demais pessoas.

O que se observa, portanto, é que a noção de capacidade passa a


levar em consideração a própria pessoa, e não apenas os seus interesses
patrimoniais. É exatamente por conta dessa restrição ao âmbito patri-
monial que Meirelles8 afirma que a restrição da ordem jurídica a um
aspecto exclusivamente patrimonial faz com que a personalidade civil
se distancie cada vez mais da dignidade humana.
Nessa ordem de ideias, a noção de capacidade deve ser revista,
deixando-se de lado o sujeito abstrato e valorando-se a pessoa humana
concreta, bem como se levando em consideração a possibilidade de
autodeterminação, consoante acentuam Menezes e Teixeira.9
A autodeterminação 10 é uma categoria mais ampla que a
autonomia privada da vontade, configurando um poder juridicamente
reconhecido e socialmente útil, que permite a abertura do homem para
o mundo e suas experiências, qualificando o modo de regência humana
num plano individual, conforme defendido por Rodrigues Junior.11
Tal autodeterminação é decorrência da própria dignidade da pessoa
humana, que põe o sujeito com limitações intelectuais ou psíquicas em
igualdade com as demais pessoas, no que diz respeito à sua capacidade.
Nesse sentido, a autodeterminação vira expressão do próprio princípio
da dignidade. Tal noção fica ainda mais clara quando a CDPD, em seu
artigo 12, §1º, assegura que as pessoas com deficiência têm direito ao

8
MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura
patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 97-98.
9
MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo
da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR.,
Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 187-188.
10
É inevitável, ao tratar do tema ora proposto, enfrentar a distinção entre os termos “autonomia
da vontade, autonomia privado e autodeterminação”, que, ainda hoje, são empregados em
sentido equivocado ou, o que é pior, como se fossem sinônimos. A despeito de tal observação,
tal enfrentamento foge aos limites do problema aqui proposto e pensamos que não influencia
a conclusão a que chegaremos, razão pela qual apenas deixaremos claro o que entendemos
por autodeterminação. Para uma melhor compreensão dessa temática, recomendamos a
leitura de RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada
e autodeterminação. Notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-
modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 113-130.
ISSN 0034-835x. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496895>.
11
RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e
autodeterminação. Notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-
modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 113-130.
ISSN 0034-835x. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496895>.
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

reconhecimento de sua personalidade jurídica e, por conseguinte, à


capacidade jurídica, ou seja, tais pessoas têm assegurada sua autode-
terminação, independentemente da sua capacidade mental.
Lôbo,12 ao tratar da autonomia privada, afirma que esta não pode
mais ser considerada como um espaço livre e desimpedido onde os
indivíduos podem autorregular seus interesses, mormente quando se
está diante de uma parte vulnerável. Para aquele autor, em um sentido
axiológico, a finalidade da autonomia privada é servir como instrumento
para promoção da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.
É justamente em tal sentido axiológico13 que o EPD busca preservar a
autonomia da pessoa portadora com deficiência.
Daí porque também, em relação à capacidade, é isso que o
EPD busca assegurar: igual dignidade a todas as pessoas, com igual
reconhecimento de capacidade jurídica, deixando esta última de se
concretizar como uma barreira ampliadora da desigualdade e que
impede a fruição de direitos existenciais. Em outras palavras, conforme
acentua Mendonça,14 o EDP busca provocar uma mudança social
capaz de assegurar às pessoas com deficiência sua plena inclusão na
sociedade através da eliminação das barreiras que impedem o alcance
de tal objetivo.
Assim, a capacidade jurídica, frise-se, passa a ser garantida a
todos, independentemente de sua capacidade mental.15 Esta última,

12
LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 92.
13
É também nesse sentido que Perlingieri defende a autonomia privada, entendendo que esta
não se restringe, nem se identifica apenas com a liberdade econômica da pessoa. É que,
para o autor, por trás da noção sempre difundida de autonomia privada – como sendo a
liberdade de regular por si as próprias ações – estão escondidos tão somente o liberalismo
econômico e a tradução em regras jurídicas de relações de força mercantil. Ainda segundo
o referido autor, as expressões de liberdade em matéria não patrimonial ocupam uma
posição mais elevada na hierarquia constitucional (PERLINGIERI, Pietro; CICCO, Maria
Cristina de (Trad.). Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17-18).
14
MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as principais mudanças operadas
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) no regime das incapacidades. In:
EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro.
Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 263.
15
Para Mendonça, tal afirmação não seria correta, pois a incapacidade será concretamente
apurada com base na situação global da pessoa, sob pena de se imputar responsabilidades
infundadas às pessoas com deficiência. Entendemos a preocupação da autora; todavia, a
despeito da aparente discordância com o que afirmamos, o que acaba sendo defendido é
que a capacidade não seja um elemento de exclusão ou obstáculo ao exercício de direitos
de conteúdo não patrimonial. (MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as
principais mudanças operadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015)
no regime das incapacidades. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC
e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 267-269).
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
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quando reduzida ou quando se afigura como obstáculo para tomadas


de decisão, faz com que surja para o Estado e para a sociedade como
um todo a obrigação de que seja disponibilizada toda uma rede de
apoio, que pode ir desde o auxílio informal até a tomada de decisão
apoiada ou a curatela.
Por isso, é correto afirmar que a mudança de paradigma verificada
em relação ao tratamento jurídico dispensado aos portadores de
deficiência ocorre por meio da troca de um modelo protetivo fundado
na substituição de vontade – no qual um terceiro era escolhido para
gerir e tomar todas as decisões em nome da pessoa com deficiência –
para um modelo de apoio, no qual se asseguram o respeito à dignidade
e a autonomia, incluindo aí a liberdade de fazer as próprias escolhas.

3.2.1 A tomada de decisão apoiada16 e a autonomia da


pessoa com deficiência
Como forma de concretizar seus objetivos, ou seja, de permitir a
inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, bem como o exercício
da autodeterminação por aquela mesma pessoa, o Estatuto da Pessoa
com Deficiência inovou ao trazer um mecanismo denominado tomada
de decisão apoiada (TDA). É uma forma de concretizar o comando do
artigo 1º17 da Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com
Deficiência, aprovada por meio do Decreto nº 6.949/09.
Por meio do artigo 116, o EPD incluiu o artigo 1.783-A no Código
Civil vigente, trazendo a tomada de decisão apoiada, que, sendo uma
forma alternativa à curatela, permite que a pessoa com deficiência,
por sua própria iniciativa, nomeie pelos menos duas pessoas idôneas
“com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para
prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, forne-
cendo-lhes os elementos e informações necessárias para que possa
exercer sua capacidade”.

16
Como não pretendemos fazer aqui uma abordagem descritiva e procedimental da tomada
de decisão apoiada, recomendamos a leitura integral do artigo 1.783-A do Código Civil
vigente, que cumpre satisfatoriamente tal objetivo.
17
Artigo 1º. Propósito: O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar
o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
(Grifamos)
68
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Conforme afirma Requião,18 o mecanismo em questão confere


autonomia ao portador de deficiência, permitindo que ele constitua, em
torno de si, uma rede de sujeitos de sua confiança, objetivando que tais
pessoas prestem auxílio em assuntos de seu interesse, ou seja, é o oposto
da antiga curatela, na qual alguém era escolhido (sem a participação
do curatelado) para decidir em nome da pessoa com deficiência e, às
vezes, até contra a vontade e interesses daquela última. É um terceiro
gênero protetivo que auxilia as pessoas com deficiência na prática de
atos patrimoniais, garantindo não só a igualdade com as demais pessoas,
mas também a efetividade da dignidade e liberdade, segundo as lições
de Nishiyama e Toledo.19
Com a tomada de decisão apoiada, o respeito à autodeterminação
da pessoa com deficiência é muito maior, pois, além de haver neces-
sidade de iniciativa do próprio apoiado, é este quem escolherá seus
apoiadores, ou seja, como lembra Requião, a pessoa com deficiência
possuirá apoiadores “não porque lhe foram designados, mas sim
porque assim quis”.20
Por ser um tema bastante recente, há uma questão pouco debatida
que importa para os limites do presente trabalho e que, por tal razão,
necessita ser enfrentada. Ela diz respeito ao seguinte: com a TDA, a
capacidade do apoiado é afetada?
Pelo próprio texto e objetivos do EPD, entendemos que a pessoa
apoiada não tem sua capacidade afetada por conta do procedimento
da TDA, de maneira que ela não perderá sua capacidade, tampouco
terá reduzido tal atributo. Consoante também defendido por Requião,
ela é apenas um reforço à validade dos negócios jurídicos realizados
pela pessoa apoiada.21

18
REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão
apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio
Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 43.
19
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa
com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 42.
20
REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão
apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio
Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 43.
21
REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão
apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio
Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 43.
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
69

Prova do que acaba de ser dito pode ser encontrada no próprio


artigo 1.783-A, §§4º e 5º, do Código Civil vigente,22 que não fornece
espaço para invalidação de negócio jurídico praticado com base e nos
limites do termo de tomada de decisão. A conclusão a que acaba de se
chegar influencia diretamente no problema aqui proposto, haja vista
poder influenciar na possibilidade ou não de a pessoa portadora de
deficiência praticar negócio jurídico processual por meio da TDA. Ora,
se a TDA afetasse a capacidade da pessoa apoiada, restringindo tal
atributo, certamente a prática do negócio jurídico processual restaria
comprometida pela pessoa com deficiência.
Feita a observação acima, pode-se afirmar, conforme defendem
Tostes e Aquino,23 que a TDA é mais um reflexo do compromisso que o
Estado brasileiro assumiu24 na ordem internacional, com vistas a proteger
a dignidade das pessoas com deficiência. O que se observa, portanto, é
que tal mecanismo é essencial para o exercício da autodeterminação e,
por conseguinte, da dignidade, permitindo que a pessoa com deficiência
possa exercer suas escolhas individuais, gerindo livremente sua esfera
de interesses e orientando sua vida de acordo com as suas preferências,
com bem acentua Ribeiro.25
É importante salientar que, como corolário da necessidade de
manter a autonomia das pessoas com deficiência, o Estado brasileiro
deve garantir o efetivo acesso de tais pessoas à justiça, nas mesmas
condições que as demais, inclusive por meio de adaptações processuais
que sejam adequadas à idade, facilitando o exercício efetivo de todas

22
Art.1.783-A [...] §4º A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre
terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. §5º Terceiro
com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores
contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao
apoiado.
23
TOSTES, Camila Strafacci Maia; AQUINO, Leonardo Gomes de. A repercussão do estatuto da
pessoa com deficiência no regime da capacidade civil. In: NERY JÚNIOR, Nelson (Coord.).
Revista de Direito Privado. v. 75. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 69.
24
O artigo 32 da convenção assim dispõe: Artigo 32. Cooperação internacional.1. Os Estados
Partes reconhecem a importância da cooperação internacional e de sua promoção, em
apoio aos esforços nacionais para a consecução do propósito e dos objetivos da presente
Convenção e, sob este aspecto, adotarão medidas apropriadas e efetivas entre os Estados e,
de maneira adequada, em parceria com organizações internacionais e regionais relevantes e
com a sociedade civil e, em particular, com organizações de pessoas com deficiência. Estas
medidas poderão incluir, entre outras: (...).
25
RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o
princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999, p. 22.
70
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

as garantias processuais, na condição de participante direto ou indireto


do processo, conforme ressaltam Nishiyama e Toledo.26

3.3 Negócio jurídico processual


Negócio jurídico é uma espécie de fato jurídico, integrando a
Teoria Geral do Direito. Isso não significa dizer, contudo, que seja um
conceito estanque, imutável e que não tenha seus contornos adaptados
ao ramo do direito a que ele serve. Os conceitos e categorias, elaborados
por Pontes de Miranda e difundidos por Marcos Bernardes de Mello
e dos quais o negócio jurídico faz parte, são de indiscutível utilidade
para solução de situações conflituosas que não se limitam ao direito
privado e que podem ser aplicados, entre outros ramos, ao direito
processual civil.
Isso sem contar na própria evolução do conceito de negócio
jurídico, sobretudo a partir do final do século passado, quando surgiram
novas tentativas de redefinição do instituto com vistas a adequá-lo
às exigências do Estado social e da própria noção de autonomia da
vontade, à força normativa da Constituição, bem como à eficácia das
normas constitucionais, conforme acentuado por Nogueira.27
A evolução conceitual acima mencionada passou por uma noção
em que a vontade seria o elemento essencial do negócio jurídico, de
modo que os efeitos por ele produzidos estariam ligados diretamente
ao querer da parte (teoria subjetivista). Depois, contrapondo-se a tal
noção, surge a ideia segundo a qual o negócio jurídico se configuraria
num preceito com vistas à realização dos efeitos jurídicos correspon-
dentes (teoria preceptiva). Por fim, apresentando uma visão que nega
as duas concepções até aqui apresentadas, tem-se a noção de negócio
jurídico com um ato de autonomia privada.
O que acaba de ser dito serve para deixar claro que a concepção
de negócio jurídico defendida no presente trabalho não se coaduna com
a teoria subjetivista, segundo a qual o negócio seria um ato de vontade
que busca produzir determinados efeitos jurídicos (defendemos que os
efeitos do negócio já estão definidos na norma; não derivam da vontade),
tampouco com a noção que enquadra o negócio jurídico como um

26
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa
com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 37.
27
NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
123.
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
71

preceito, uma vez que, conforme acentuado nas lições de Nogueira,28


ela não se prestaria a definir o que é um negócio jurídico, bem como não
fornece uma explicação satisfatória acerca da figura do negócio nulo.
Ainda em relação à teoria subjetivista, são esclarecedoras as
lições de Mello,29 para quem o sistema jurídico, quando estabelece
o conteúdo das relações por ele reguladas, pode: a) formular uma
regulação exaustiva, sem deixar qualquer liberdade para a vontade
dos agentes, podendo estes escolherem apenas a categoria do negócio,
ou b) permitir que a vontade dos agentes escolha, dentre as espécies
negociais, variações quanto à irradiação e intensidade de cada uma,
de maneira que é possível escolher a categoria negocial e estruturar
o conteúdo eficacial das relação jurídica dela decorrente. Porém, em
nenhuma das duas situações é permitido que a vontade seja criadora
de efeitos que não estejam previstos ou, no mínimo, que sejam permi-
tidos pelo sistema.
A ressalva acima formulada é fundamental para que se afaste o
que se denomina de “dogma da vontade”30 e se delimite o conceito aqui
adotado de negócio jurídico, fundamental para que se possa rebater a
grande maioria das críticas que são dirigidas à admissão da figura do
negócio jurídico processual, conforme se demonstrará no item a seguir.
É por tal razão que concordamos com a noção de Mello,31 para
quem o negócio jurídico é um fato jurídico que traz como elemento
nuclear de seu suporte fático a manifestação da vontade de forma
consciente e em relação ao qual o sistema jurídico permite aos sujeitos
envolvidos, dentro de certos limites já predeterminados, a escolha da
categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações
jurídicas quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no
mundo jurídico; ou ainda, nas palavras de Lôbo,32 poder ser conceituado

28
NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
132.
29
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 225.
30
De acordo com Cunha, tal dogma impediu que no processo se construísse uma adequada
teoria sobre os atos processuais, bem como um tratamento satisfatório sobre sua interpretação
e sobre os vícios da vontade sobre os atos processuais. Isso porque sempre se entendeu que no
processo, a vontade das partes seria irrelevante, tendo estas unicamente a opção de praticar
ou não o ato previsto numa sequência fixada de antemão pelo legislador. (CUNHA, Leonardo
Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: I Congresso Peru-
Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 10-11. Disponível em: <www.academia.
edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>).
31
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 233.
32
LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 228.
72
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

como “fato jurídico cujo núcleo é a vontade negocial exteriorizada nos


limites da autonomia privada, ou a conduta humana participante de
tráfico jurídico, a que o direito confere validade e eficácia negociais”.33
Ainda nesse sentido, observa-se que o elemento que vai distinguir
o negócio jurídico das demais espécies de fato jurídico é o autorregra-
mento da vontade,34 que engloba a liberdade de negociação (negociações
preliminares), liberdade de criação (criar novos modelos negociais
atípicos), liberdade de estipulação (referente ao conteúdo do negócio)
e liberdade de vinculação (celebrar ou não o negócio). Assim, ainda
que só reste ao indivíduo uma das esferas de liberdade acima mencio-
nadas, o negócio jurídico permanecerá de pé, uma vez que preservado
(mesmo que de forma mínima) o autorregramento,35 como bem acentua
Nogueira.36

33
Essa segunda parte do conceito do autor, conforme ele mesmo adverte, difere do conceito
tradicional de negócio jurídico, posto que inclui as condutas ou comportamentos avolitivos,
sendo necessário apenas a inclusão destes no tráfico jurídico, ou seja, são negócios nos quais
se exclui a vontade, atribuindo-se eficácia negocial à conduta das pessoas. Para Lôbo, a noção
tradicional de negócio jurídico não atende à realidade dos fenômenos contemporâneos da
concentração empresarial e da massificação social, onde os negócios jurídicos têm no núcleo
de seu suporte fático não a vontade exteriorizada, mas as condutas, abstraídos os aspectos
volitivos. Seriam exemplos os contratos de adesão e os chamados contratos massificados
(transporte coletivo, telefonia, água etc.), nos quais pouco importa a vontade do sujeito
contratante (LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 229-231).
34
Nogueira, com fundamento nas lições de Pontes de Miranda, utiliza a expressão
“autorregramento” no lugar de “autonomia privada”, pois entende que ela é mais apropriada
ao direito processual e, especificamente, para relacioná-la aos negócios jurídicos processuais
(NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
135-136). É assim que faremos também neste trabalho, sem prejuízo das observações que já
fizemos acima, na nota de nº 10, quando tratamos da expressão “autodeterminação”. Para
Toledo, o autorregramento é a prerrogativa que os sujeitos possuem de escolha da categoria
eficacial do negócio jurídico, bem como o preenchimento do conteúdo de tal categoria
eficacial, por meio da manifestação da vontade humana (TOLEDO, Arthur de Melo. O poder
de autorregramento da vontade e os seus limites. In: BESERRA, Karoline Mafra Sarmento;
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; SILVA, Jéssica Aline Caparica (Orgs.). Estudos sobre a teoria
do fato jurídico na contemporaneidade: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. Sergipe:
Editora Universitária Tiradentes, 2016, p. 82-88). Sobre o mesmo assunto, é interessante a
opinião de Cabral, para quem não é a liberdade contratual do direito privado que justifica a
autonomia das partes no processo. Esta última autonomia seria assegurada pela combinação
do princípio dispositivo e princípio do debate (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções
processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 141).
35
Lôbo não concorda com a ideia defendida nesse parágrafo, afirmando que onde entra a
necessidade sai a liberdade (LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 229-230). Apesar do peso argumentativo de tal afirmação, ficamos com a opinião
contrária, defendida por Nogueira (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais.
Salvador: Juspodivm, 2016, p. 136) e que tem apoio nas lições de Mello, para quem, mesmo
na alternativa de aceitar ou não aceitar a celebração do negócio, está presente a liberdade
de escolha (autorregramento), ainda que de forma mínima. (MELLO, Marcos Bernardes
de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 190).
36
NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 136.
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
73

Destarte, a vontade das partes, mesmo integrando o suporte


fático dos negócios jurídicos, não é plena e não é capaz de ilidir os
limites que são impostos pelo ordenamento jurídico, conforme acentua
Toledo.37 No caso do direito processual civil, que é regulado, em sua
maior parte, por normas cogentes, tais limites são ainda mais fortes,
mas não a ponto de eliminar o poder de autorregramento da vontade.

3.3.1 Delimitação do conceito de negócio jurídico


processual38
Feitas as considerações acima, resta-nos definir os contornos
do que vem a ser um negócio jurídico processual.39 Para Nogueira,40 o
negócio jurídico processual é:

O fato jurídico voluntário em cujo suporte fático e descrito na norma


processual, esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a
categoria jurídica ou estabelecer, dentre os limites fixados no próprio
ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais.41

É preciso esclarecer que, no presente trabalho, a noção de negócio


jurídico processual exige como elemento essencial a referibilidade a

37
TOLEDO, Arthur de Melo. O poder de autorregramento da vontade e os seus limites. In:
BESERRA, Karoline Mafra Sarmento; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; SILVA, Jéssica Aline
Caparica (Orgs.). Estudos sobre a teoria do fato jurídico na contemporaneidade: homenagem a
Marcos Bernardes de Mello. Sergipe: Editora Universitária Tiradentes, 2016, p. 79.
38
No presente trabalho, partimos da premissa de que os negócios processuais são admitidos
pelo direito processual civil. Assim, não trataremos (até por conta dos próprios limites aqui
traçados) das posições contrárias ao negócio jurídico processual. Tal discussão (acerca da
possibilidade ou não de celebração de negócios jurídicos processuais), a nosso ver, perdeu
muito de sua importância em razão da positivação, pelo atual CPC, de tais negócios
processuais. Prova do que foi dito, apenas a título de exemplo, encontra-se nos artigos 190
e 200 daquele mesmo diploma legal.
39
A nomenclatura “negócio jurídico processual” não é utilizada de forma unânime na doutrina.
Há quem prefira a locução “convenção processual”, como o fazem CABRAL, Antonio
do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 31 e segs.; e MOREIRA,
José Carlos Barbosa. Convenções das partes sobre matéria processual. In: Temas de Direito
Processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 89, ou “atos de disposição processual”,
utilizada por GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – Primeiras reflexões. In:
MEDINA, José Miguel Garcia et al. (Coords.). Os poderes do juiz e controle das decisões judiciais:
estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p.
290. Por coerência com a teoria do fato jurídico, utilizaremos também a expressão “negócio
jurídico processual” ao longo de todo o trabalho.
40
O autor adota uma noção ampla de fato processual, com a qual concordamos, e que engloba
(ou é capaz de englobar) certos acontecimentos (mesmo que extraprocedimentais) e que
estejam ligados ao processo, resultando situações jurídicas exercitáveis no procedimento.
41
NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
152.
74
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
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um procedimento, ou seja, os negócios jurídicos que têm como objeto


uma demanda futura, também chamados de negócios jurídicos sobre o
processo, estão fora da definição aqui proposta e, portanto, do próprio
objeto deste trabalho.42
Para Cabral,43 é um ato que produz ou pode produzir seus
efeitos no processo escolhido como decorrência da vontade do sujeito
praticante e que é capaz de constituir, modificar ou extinguir situações
processuais ou alterações no procedimento.44
Tal negócio é uma espécie de ato jurídico processual lato sensu e
se contrapõe ao ato jurídico processual stricto sensu, no qual a vontade é
importante para a estrutura do ato, mas não é capaz de determinar seu
conteúdo eficacial. Segundo Cunha,45 os atos jurídicos seriam incondi-
cionáveis e inatermáveis, cabendo ao sujeito apenas praticar (ou não) o
ato. Já nos negócios jurídicos processuais, tal vontade é relevante não
só na opção por praticar ou não o ato, como também na definição de
seus efeitos,46 conforme esclarece Cabral.47
Por meio da categoria ora em comento, os sujeitos do processo
podem influir e participar no procedimento, em todas as suas etapas. É
preciso ter em mente, contudo, que o que importa para que se caracterize

42
A mesma posição é defendida por Nogueira, ao afirmar que os negócios que “têm em mira
futuras demandas não são adjetivados de ‘processuais’, uma vez que faltaria a ‘processualidade’
inerente à existência concreta de um procedimento ao qual se refira” (NOGUEIRA, Pedro
Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 231). Já Cabral não
exclui tais espécies de acordos dos quais ele denomina de “convenção processual” (CABRAL,
Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 75-80).
43
Apesar do conceito apresentado, o objeto de estudo do autor mencionado são as convenções
processuais, sendo tal expressão, ainda segundo o autor, mais adequada para se referir aos
negócios plurilaterais pelos quais as partes, antes ou durante o processo, criam, modificam
e extinguem situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento. Note-se, assim,
que tal noção é mais ampla do que a que apresentamos quando mencionamos a expressão
“negócios jurídicos processuais”.
44
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 48.
45
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In:
I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 5. Disponível em: <www.
academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.
46
Uma das principais objeções feitas à categoria dos negócios jurídicos processuais é que, em
razão da publicidade do processo, todas as condutas das partes já teriam seus efeitos fixados
na lei, havendo apenas, portanto, o ato jurídico processual em sentido estrito. Todavia,
conforme salienta Nogueira, não existem efeitos jurídicos que decorram exclusivamente da
vontade das partes, como se costumava acreditar nas teorias que defendiam o “dogma da
vontade” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm,
2016, p. 155). Didier Júnior defende que a categoria negócio jurídico é conceito lógico-jurídico
e que, portanto, pela sua pretensão de validez universal, não se restringe ao âmbito do
direito privado (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 3.
ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 52-55 e 60).
47
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 49.
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75

determinado ato como negócio jurídico processual é que a vontade do


sujeito esteja direcionada não só para a prática do ato, mas também à
produção de determinado efeito. Isso não significa, porém, que todos os
efeitos do ato sejam decorrentes da vontade do sujeito, como se houvesse
a necessidade de correspondência entre eles (vontade e efeitos do ato),
haja vista que tal correspondência não se verifica nem mesmo no plano
material, como advertem Didier Junior e Nogueira.48
Assim, a realização de negócio jurídico processual, além de
possível, é fruto da autonomia privada (ou autorregramento), sendo
caracterizada pela liberdade de celebração e de estipulação. Tal liberdade,
contudo, não impede que a lei fixe determinados limites, bem como o
regime para celebração de tais negócios, como ressalta Cunha.49 Tais
limites, diga-se de passagem, também são fixados para os negócios
jurídicos não processuais, e nem por isso se cogita negar que tais
negócios são admitidos no ordenamento jurídico.
Os negócios jurídicos processuais são, antes de tudo, desdo-
bramento do próprio Estado Democrático de Direito, que exige a
participação de todos os sujeitos envolvidos no processo e que serão
submetidos às decisões proferidas em assuntos que lhes digam respeito.
O atual CPC (Lei nº 13.105/15) torna a realidade acima mencionada
ainda mais evidente, uma vez que instaura, de forma expressa, o
chamado modelo cooperativo de processo, no qual a vontade das partes é
valorizada. Neste sentido, merecem ser transcritas as palavras de Cunha:
Põe-se a descoberto, no novo CPC, o prestígio da autonomia da vontade
das partes, cujo fundamento é a liberdade, um dos principais direitos
fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal. O direito à
liberdade contém o direito ao autorregramento, justificando o chamado
princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo.50

Percebe-se, portanto, que a figura dos negócios processuais, assim


como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem como ponto comum a
fundamentação na autonomia privada da vontade (ou autorregramento),
posto que ambos tentam concretizar a dignidade da pessoa humana
por meio do respeito das escolhas feitas pelo indivíduo, sejam elas no

48
DIDIER JÚNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos Fatos Jurídicos
Processuais. 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 64-65.
49
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In:
I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 14. Disponível em: <www.
academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.
50
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In:
I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 21. Disponível em: <www.
academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.
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âmbito pessoal ou no próprio processo, decidindo os melhores rumos


para o alcance de seus objetivos.
O que nos resta saber, constituindo aqui o ponto central do tema
proposto, é se a pessoa com deficiência, que se encontra auxiliada por
meio do procedimento da tomada de decisão apoiada, pode celebrar o
negócio jurídico processual ou se tal auxílio se limita apenas a questões
patrimoniais fora do âmbito do processo. É sobre este ponto que nos
debruçaremos no item a seguir.

3.4 Possibilidade de realização do negócio jurídico


processual por meio da tomada de decisão apoiada
No presente subcapítulo, abordaremos a capacidade das pessoas
com deficiência para celebrar o negócio jurídico processual, bem como
a realização de tal ato por meio da tomada de decisão apoiada.

3.4.1 Esclarecimentos sobre a capacidade processual


O problema da participação das pessoas com deficiência no
processo guarda estreita relação com a questão da capacidade processual.
Assim, é necessário que se faça uma pequena abordagem acerca de tal
capacidade para que se construa mais uma das premissas em que se
funda o trabalho ora apresentado.
As normas que tratam da capacidade processual asseguram a
participação das partes, permitindo que estas possam compreender o
significado de tal participação e os efeitos produzidos na esfera jurídica
de todos os interessados. E não é só: elas asseguram o direito funda-
mental à paridade de armas e ao processo justo, conforme ressaltam
Marinoni, Arenhart e Mitidiero.51 É preciso ter em mente, contudo,
que, em qualquer acordo, se deve verificar a capacidade da parte à luz
dos requisitos previstos tanto no direito material quanto no direito
processual, como lembra Cabral.52
É exatamente nesse sentido que ganha relevo a questão da
participação das pessoas com deficiência no processo. Por tal razão,
antes da entrada em vigor do EPD, o atual Código de Processo Civil
exigia que tais pessoas, quando consideradas relativa ou absolutamente

51
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de
Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 81.
52
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 273.
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incapazes, estivessem assistidas ou representadas. Tal situação, contudo,


foi alterada, consoante se verá um pouco mais adiante.
Tradicionalmente, a doutrina sempre dividiu a capacidade
processual em capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e
capacidade postulatória. A capacidade de ser parte é o que se denominada
de personalidade judiciária, conforme ensina Didier Júnior,53 ou seja,
é a aptidão para ser sujeito da relação jurídica processual ou assumir
uma situação jurídica processual. Em suma: é a aptidão de figurar como
parte no processo civil.
A noção de capacidade de ser parte confunde-se com a própria
noção de personalidade jurídica, prevista no art. 1º do atual Código
Civil, não obstante ser mais ampla, posto que, em alguns casos, a lei
processual confere a capacidade de ser parte a quem não possui perso-
nalidade jurídica, a exemplo do nascituro e da massa falida. Possuem
a capacidade ser parte todos os que possuem a personalidade civil,
decorrente de garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição,
que se encontra prevista no artigo 5º, XXXV, da constituição vigente.
A capacidade de estar em juízo é definida pelo próprio artigo 70
do atual Código de Processo Civil e, segundo o qual, “toda a pessoa
que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar
em juízo”. Percebe-se que tal capacidade guarda estreita relação com
a capacidade de fato54 (ou de exercício), prevista no direito civil, e da
qual já cuidamos neste trabalho ao discorrermos sobre a capacidade
civil. Por tal razão, as pessoas que não possuem a capacidade de estar
em juízo devem regularizar tal situação nos moldes disciplinados pela
própria legislação processual.
A capacidade postulatória, por seu turno, também conhecida
como jus postulandi, diz respeito a uma capacidade técnica que pode ser
exigida do sujeito para a prática de atos processuais. Na lição de Marinoni,
Arenhart e Mitidiero, “é a capacidade de traduzir juridicamente as
manifestações de vontade e as declarações de conhecimento das partes
no processo civil, portando a partir daí a produção de efeitos jurídicos”.55
Possuem-na os advogados regulamente inscritos na OAB, os defensores

53
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm,
2015, p. 314.
54
Nada impede, porém, que a lei processual restrinja a capacidade processual de pessoas que
possuem a capacidade de fato (ou de exercício), como são exemplos as situações previstas
nos artigos 72, II, e 73 do Código de Processo Civil.
55
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de
Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 81.
78
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públicos e os membros do Ministério Público. Excepcionalmente, também


pode ser conferida a outras pessoas que não teriam a formação técnica dos
aludidos profissionais, a exemplo das partes nos processos que tramitam
sob o procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.
Note-se, portanto, que a capacidade processual é a aptidão para
praticar atos processuais sem representação ou assistência, consistindo
no somatório das três modalidades acima mencionadas, ou seja, da
capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e da capacidade
postulatória. Por isso, ausentes quaisquer das três modalidades, não
se pode falar em capacidade processual, devendo esta ser integrada na
forma do próprio Código de Processo Civil.

3.4.2 Negócio jurídico processual por meio da tomada


de decisão apoiada
Pois bem, feitas as considerações acima, é preciso salientar que,
conforme já mencionado, com o advento do EDP, a regra é que as
pessoas com deficiência são dotadas de capacidade jurídica, ou seja,
possuem tanto a capacidade de ser parte num processo (o que sempre
se admitiu) quanto a capacidade de estar em juízo (situação que não
existia nem mesmo com o advento do atual CPC).
Tal fato significa, por óbvio, que as pessoas com deficiência
possuem a capacidade de estar em juízo independentemente de repre-
sentação ou assistência, permitindo assim amplo acesso à justiça, na
forma garantida pelo já mencionado artigo 5º, XXXV, do CPC. Assim, não
se pode excluir a possibilidade de as pessoas com deficiência poderem
utilizar o importante mecanismo de reforço de acesso à justiça, que se
traduz na possibilidade da prática de negócio jurídico processual. Nas
palavras de Cabral:

De fato, a possibilidade de celebração de acordos processuais por


grupos vulneráveis, sejam pessoas com deficiência, sejam incapazes
(pensemos em crianças, já não em pessoas com deficiência), deve ser
admitida sobretudo porque estes pactos podem beneficiar o vulnerável,
ampliando prazos, facilitando-lhes a produção de prova ou conferindo
oportunidade de ajuizamento da demanda em foro mais próximo da
sua residência.56

56
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 276-277.
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79

O procedimento da tomada de decisão apoiada vem ao encontro


do objetivo acima mencionado. Ora, sendo uma participação quali-
ficada por meio da qual a pessoa com deficiência pode tomar decisões,
preservando sua manifestação de vontade e autonomia, então não
há razão para que se negue a possibilidade de celebração de negócio
jurídico processual.
E não é só. A admissão da prática do negócio jurídico processual
pela pessoa com deficiência atende não só aos objetivos do EPD,57 mas
do próprio sistema instaurado pelo atual CPC. Destarte, como acentua
Cabral, tais negócios contribuem não só para a contenção do arbítrio,
mas também para o controle e a mais adequada repartição de poder
no processo.58
Ademais, se a pessoa com deficiência tem domínio sobre assuntos
patrimoniais e existenciais que lhe dizem respeito, por que não poderia
dispor também de assuntos que digam respeito ao processo? Em outras
palavras, se há autonomia para tomadas de decisão cujos assuntos
estejam regulados pelo direito material, por que não admitir que tal
autonomia ocorra também em relação ao processo, que serve exatamente
como método de solução para os problemas que digam respeito aos
assuntos do direito material?
Entendemos que restringir a autonomia da pessoa com deficiência,
impedindo a prática do negócio jurídico processual, viola todos os
objetivos e princípios até aqui mencionados. E nem se cogite que tal
restrição seria necessária para proteger a limitação de discernimento
que algumas pessoas com deficiência possuem. Tal proteção revelaria
um preconceito velado, desprezando a autonomia e capacidade que
tais pessoas possuem, sobretudo com o advento do EPD, que também
assegura salvaguardas para permitir a efetiva inclusão social da pessoa
com deficiência, sempre que necessário.
Outrossim, a eventual vulnerabilidade das pessoas com deficiência
não é motivo, por si só, para que se impeça a prática do negócio
processual, a nosso ver. Isso porque tal vulnerabilidade não é exclusiva
de tais pessoas e não decorre apenas de deficiências, mas de diversos
fatores de natureza econômica, social, cultural, técnica, tecnológica, entre
outros, conforme lembrado por Cabral.59 Tais fatores de vulnerabilidade

57
O próprio artigo 79 do EPD assegura que “o poder público deve assegurar o acesso da
pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,
garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva”.
58
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 137-138.
59
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 320.
80
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não são suficientes para impedir a prática dos referidos negócios pelas
pessoas que se incluem em tais grupos, mas tão somente exigem uma
maior atenção com vistas a se preservar a igualdade e, consequente-
mente, o exercício da liberdade.
Nessa ordem de ideias, a tomada de decisão apoiada surge como
importante ferramenta não só de apoio, mas também de proteção à
pessoa com deficiência, permitindo que esta última possa celebrar o
negócio jurídico processual sem que nenhuma garantia fundamental
ou processual seja violada.
A possibilidade que aqui acaba de ser defendida é ainda mais
evidente quando se trata de um negócio jurídico processual unilateral,
em que não há a necessidade de concordância de outros sujeitos, uma
vez que envolvem apenas a esfera jurídica do sujeito que o pratica. Mais
uma vez aqui, reveste-se a tomada de decisão apoiada da condição de
importante instrumento não só de apoio, mas também de proteção da
pessoa com deficiência.

3.4.3 Alguns limites ao negócio processual praticado


por meio da tomada de decisão apoiada
A prática de negócios jurídicos processuais pela pessoa com
deficiência encontra limites, mas não em decorrência do fato de ser o
praticante uma pessoa com deficiência. Repita-se: esta última possui
a capacidade jurídica e também a capacidade de estar em juízo. Tais
limites são decorrentes da própria natureza dos negócios jurídicos
processuais.60 Ademais, o negócio jurídico processual celebrado pela
pessoa com deficiência submete-se aos mesmos requisitos de validade
do negócio jurídico comum, a saber: o sujeito capaz, a forma prescrita
ou não defesa em lei e o objeto lícito, além do respeito ao formalismo
processual. Destarte, impor limites à prática de negócio jurídico
processual pela pessoa com deficiência seria impor restrição que
contraria aos próprios objetivos do EPD, que já foram comentados ao
longo do presente trabalho.
Situação interessante, porém, diz respeito aos limites para a
prática dos atos por meio da tomada de decisão apoiada. Isso sucede

Para Nogueira, os limites do negócio jurídico processual são ditados pelo formalismo
60

processual, que, sendo uma noção ampla, abrange não só as formalidades do processo,
mas “delimitarão os poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, a organização
do procedimento a fim de que suas finalidades essenciais sejam alcançadas” (NOGUEIRA,
Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 161).
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
81

porque o §1º do artigo 1.783-A do Código Civil vigente61 exige que o


pedido formulado deve vir acompanhado de termo em que constem
os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores,
bem como o prazo de vigência do acordo, além de outros requisitos.
Assim, cabe a seguinte indagação: acaso o termo referido no dispositivo
legal ora mencionado não conste expressamente a possibilidade de
negócio jurídico processual, é permitido à pessoa com deficiência a
prática de tal negócio?
Em outras palavras, se o termo que delimitará o âmbito de atuação
dos apoiadores não fizer nenhuma menção à prática de negócio jurídico
processual, poderá a pessoa portadora de deficiência praticar tal ato?
Entendemos que a resposta à indagação acima formulada está
na própria observação que já fizemos em relação à capacidade de estar
em juízo, ou seja, se a pessoa portadora de deficiência é juridicamente
capaz e se possui também a capacidade de estar em juízo, não há por
que proibir a celebração do negócio jurídico processual, sob pena de
restrição indevida no autorregramento de vontade daquela última. O
argumento de que tal pessoa não teria o adequado discernimento para
a prática de tal ato também não parece nos convencer, isso porque uma
pessoa sem deficiência que não possua a capacidade postulatória não
parece, a nosso juízo, ter mais ou menos noção – em relação a uma pessoa
com deficiência – do inteiro significado da desistência de um recurso,62
por exemplo. Nem por isso alguém ousaria afirmar que a pessoa sem
deficiência estaria proibida de praticar o negócio jurídico processual.
Pois bem, respondida a primeira indagação, é necessário enfrentar
outro problema, a saber: ainda ausentes, nos limites do termo referido
no §1º do artigo 1.783-A, os poderes para a prática do negócio jurídico
processual, ainda assim os apoiadores poderiam auxiliar a pessoa com
deficiência? Ou seja, poderiam prestar auxílio para a prática de um ato
não previsto no termo ora em questão?

61
§1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os
apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e
os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à
vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar.
62
Será mesmo que uma pessoa sem deficiência teria a inteira compreensão das consequências
práticas de seu ato processual? Teria ela conhecimento de que a desistência do recurso é um
fato extintivo do direito de recorrer? Que traria o imediato trânsito em julgado da decisão?
Que permitiria a execução da obrigação reconhecida na decisão? Não acreditamos que as
respostas sejam positivas. Daí porque frisamos que a ausência de discernimento completo
em relação ao ato praticado não serve como argumento contra a prática de negócio jurídico
processual pela pessoa com deficiência.
82
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Mais uma vez, não enxergamos obstáculo. Se a pessoa com


deficiência pode praticar o negócio jurídico processual, independente-
mente de assistência ou representação, posto que dispõe da capacidade
de estar em juízo, por que não poderia praticá-lo com o auxílio de
pessoas de sua confiança? A ausência de poderes expressos nos termos
em que se funda a decisão apoiada seria obstáculo para a prática de
tais atos? Apesar da resposta negativa, devemos admitir que a questão
interferirá na responsabilidade dos apoiadores, bem como na eficácia
do ato perante terceiros. Expliquemos.
A responsabilidade do apoiador parece estar presente apenas
nos casos em que ele agir com culpa (v.g. negligência), exercer pressão
indevida sobre o apoiado ou não adimplir as obrigações assumidas. É
o que se depreende da leitura do §7º63 do artigo 1.783-A. Assim, desde
que o negócio processual seja realizado com o auxílio do apoiador, sem
que este incorra em uma das condutas mencionadas no dispositivo ora
em comento, não há que se falar na sua responsabilidade, ainda que a
prática de tal ato não esteja inserida expressamente no termo de que
trata o §1º do artigo 1.783-A do Código Civil vigente.
Todavia, é preciso que se esclareça que o apoiador, com funda-
mento neste motivo (ausência de poderes incluídos no termo), pode
apresentar recusa em prestar o apoio para a prática do negócio jurídico
processual ou solicitar que seja feita a ressalva de que tal negócio está
sendo praticado pela pessoa com deficiência contra a vontade daquele
apoiador. Contudo, repita-se, mesmo diante de tal recusa do apoiador
ou ressalva apresentada, a pessoa com deficiência pode praticar o
negócio jurídico processual.
Já no que diz respeito à eficácia do negócio processual praticado
na forma acima mencionada em relação a terceiros, é preciso que se
interprete o §4º do artigo 1.783-A,64 que regula exatamente a eficácia da
decisão tomada por pessoa apoiada perante terceiros. Tal dispositivo
não parecer trazer qualquer influência sobre os negócios jurídicos
processuais, haja vista que estes últimos apenas podem produzir
efeitos para os sujeitos celebrantes, vinculando também o juiz (que não
é terceiro na forma do artigo 1.783-A). Assim, não há como o negócio
jurídico processual, a nosso ver, afetar a esfera jurídica de terceiros que,
repita-se, não se vinculam ao aludido ato negocial.

63
§7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as
obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia
ao Ministério Público ou ao juiz.
64
A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições,
desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado.
BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
83

3.5 Considerações finais


Apesar de algumas conclusões já terem sido apresentadas ao
longo do trabalho, como consequência da necessidade de realização
de cortes necessários para apresentação do tema nos limites de um
artigo, cuidaremos de reforçar as principais premissas aqui utilizadas
na tentativa de apresentar uma resposta ao problema proposto.
O EPD, ao entrar em vigor no Brasil, retirou as pessoas com
deficiência do rol de incapazes previstos no Código Civil vigente. Assim,
com o advento daquele estatuto, as pessoas com deficiência passaram a
gozar de capacidade jurídica e, por isso, não mais precisam ser assistidas
ou representadas para a prática de quaisquer atos. Mas não foi só isso:
o EPD criou uma verdadeira rede de apoio à pessoa com deficiência,
garantindo, na perspectiva promocional voltada à inclusão social, a
efetivação da dignidade daquela por meio do exercício de sua autonomia.
Dentre os mecanismos que integram a rede de apoio acima
mencionada, tem-se a tomada de decisão apoiada, representando
importante instrumento para o exercício de autonomia da pessoa com
deficiência sem que esta tenha sua vontade substituída por um terceiro
nomeado contra a sua vontade. Pelo contrário, a tomada de decisão
apoiada preserva o direito de escolha da pessoa com deficiência não
só no que diz respeito à nomeação dos apoiadores – que devem ser
pessoas de confiança do apoiado – como também das próprias decisões
a serem tomadas.
Com relação ao atual Código de Processo Civil, verificou-se que o
aludido diploma consagra o princípio do respeito ao autorregramento da
vontade e afasta as opiniões contrárias à aceitação do chamado negócio
jurídico processual. Decerto, o Código em comento, a exemplo do EPD,
também consagra a autonomia das partes para decidirem acerca da
melhor maneira de como solucionar seus conflitos, podendo dispor
tanto de situações jurídicas processuais como do próprio procedimento.
Assim, uma vez admitida a possibilidade de negócio jurídico
processual – agora positivado no CPC/15 – resta-nos saber se é possível à
pessoa com deficiência praticar tais atos, utilizando, inclusive, a tomada
da decisão apoiada, se for o caso.
Ora, se com o advento do EPD a pessoa com deficiência possui
capacidade jurídica, então não há mais a necessidade de assistência ou
representação para exercício da capacidade de estar em juízo. Portanto,
é clara, a nosso ver, a possibilidade de celebração do negócio jurídico
processual por aquela pessoa, sujeitando-se aos limites impostos apenas
para a prática de tais negócios e não aos limites que antes existiam por
ser ela considerada incapaz.
84
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A tomada de decisão apoiada surge como um instrumento de


auxílio à pessoa com deficiência, mas não se revela como condição
necessária para a prática do negócio jurídico processual. Isso porque uma
pessoa com deficiência não é mais ou menos capaz porque se encontra
(ou não) auxiliada por um apoiador. Note-se que o pedido de tomada de
decisão apoiada deve partir da própria pessoa com deficiência. Apenas
ela tem a iniciativa na forma do artigo 1.783-A do Código Civil vigente.
Se ela optou por não tomar tal iniciativa, deve-se respeitar tal decisão
e não presumir uma redução em sua incapacidade, criando obstáculos
não previstos em lei para a prática de atos jurídicos.
A restrição da prática do negócio jurídico processual, pela pessoa
com deficiência, não encontra fundamento no ordenamento jurídico
e viola os objetivos previstos pelo EPD e, sobretudo, pela Convenção
Internacional das Pessoas com Deficiência.

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BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BATISTA, Bruno Oliveira de Paula; EHRHARDT JR., Marcos. Da (im)


possibilidade de celebração do negócio jurídico processual pela pessoa com
deficiência através da tomada de decisão apoiada. In: BRAGA NETTO, Felipe
Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito
Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências.
Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 61-85. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 4

NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E


CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ:
ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015)

Paulo Nalin
Renata C. Steiner

4.1 Apresentação do problema: a validade


Analisar a validade de determinado negócio jurídico significa
realizar a verificação de sua adequação a preceitos jurídicos basilares
de determinado ordenamento. Isso admitido, pode-se afirmar, de
maneira bastante introdutória, que o regime das invalidades se presta
a delimitar requisitos mínimos que devem ser observados pelas partes
de um negócio jurídico, cuja inobservância,1 usualmente, obstará a
produção de seus efeitos.2

1
Conforme ensina Marcos Bernardes de Mello, a invalidade é uma sanção imposta pelo
ordenamento jurídico a negócios jurídicos (ou atos jurídicos) que não observem as regras
de validade. Assim, “embora concretize suporte fático previsto em suas normas, importa,
em verdade, violação de seus comandos cogentes. A recusa de validade a um ato jurídico
consubstancia uma forma de punição, de penalidade, à conduta que infringe as normas
jurídicas, com a qual se busca impedir que aqueles que a praticaram possam obter resultados
jurídicos e práticos vantajosos” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano
da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6).
2
No mundo concreto, do sujeito localizado, são os efeitos do negócio jurídico que efetivamente
interessam. Assim, a discussão entre existência e validade perde sua importância, observando-
se no direito atual uma ênfase ao plano da eficácia, no qual os efeitos jurídicos dos fatos,
atos e negócios jurídicos são produzidos.
88
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Assim, será nulo o negócio jurídico firmado por absolutamente


incapaz porque se elege, como pressuposto de validade, o discernimento
das partes para prática do negócio jurídico. Da mesma forma, serão
nulas a compra e a venda de imóveis acima de trinta salários mínimos
realizadas por instrumento particular, porque também se elegeu a
escritura pública como formalidade adequada à segurança desses tipos
de negócio (art. 108 do CC).
Exemplos e correspondentes explicações poderiam ser feitos
em relação a todas as hipóteses de nulidade, expressas ou virtuais,3
previstas no direito brasileiro. Isso se dá porque a eleição de um critério
como integrante do plano de validade corresponde a uma escolha
fundamentada em valores e princípios orientadores de determinada
ordem jurídica. Exatamente por isso é que não se pode pensar em uma
teoria geral universal das invalidades, já que estas somente podem ser
compreendidas quando ligadas a um ordenamento jurídico específico.4
Da mesma forma e sem qualquer contradição, pode-se então
afirmar que o regime das invalidades está em constante transformação,
ainda que o seu regime possa ser menos flexível. Não é repetitivo afirmar
que a escolha dos critérios de validade é intrinsicamente dependente
de considerações culturais e políticas feitas pelo legislador em deter-
minado momento.5
É no Código Civil brasileiro que se encontra a base fundamental
desse regime próprio das invalidades. Porém, uma compreensão
completa somente possa ser obtida pela análise de outros diplomas
legais. Isso se dá tanto porque há invalidades previstas em legislação
extravagante – ou seja, o Código Civil apenas fixa um regime jurídico,
mas não cria taxativamente as hipóteses de invalidade – como também

3
Há invalidades consideradas expressas, porque a lei, além de proibir determinada
circunstância, expressamente determina a aplicação da nulidade. Há casos, contudo, em que
a lei proíbe a prática de determinado ato, mas não lhe aplica sanção. Estes são chamados de
nulidades virtuais ou tácitas, tendo como base o art. 166, VII, do CC, que serve para fechamento
do sistema.
4
Na crítica de Clóvis Bevilaqua, à luz do Código Civil de 1916, mas que pode ser considerada
atual ainda hoje, a teoria das nulidades ainda é vacilante na doutrina, ao que se alia a falta de
nitidez dos dispositivos legais e ausência de princípios diretores do pensamento legislativo
(BEVILAQUA, Clóvis. Theoria geral do Direito Civil. Actualizada por Achilles Bevilaqua. 5.
ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.326).
5
Exemplificativa dessa afirmação é a alteração, empreendida pelo Código Civil de 2002, a
respeito do grau de invalidade da simulação. Sob a égide do Código Civil de 1916, negócios
simulados eram anuláveis (art. 147, II, CC/1916) e, a partir do novo Código, passaram a
ser nulos (art. 167). Como se vê, a escolha do grau de invalidade é também uma escolha
legislativa e naturalmente mutável, respeitada a eficácia da lei no momento da formação
do contrato (art. 6º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro).
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
89

porque o reconhecimento das invalidades será usualmente realizado


no curso de processo judicial (ou arbitral), o que torna imprescindível
o diálogo com normas próprias de processo civil.
Com efeito, em se tratando de invalidades, o sincretismo legal
se mostra indispensável para uma leitura mais ampla e completa do
complexo sistema jurídico. Normas processuais e normas de direito
material devem caminhar em consonância e adequação uma com a outra.
É exatamente no diálogo entre direito civil e direito processual
que se localiza o tema central do presente texto. Sem pretender descer
às vicissitudes das invalidades na teoria geral do direito, o ensaio busca
fundamentalmente estabelecer seu relacionamento entre o disposto no
art. 168 do Código Civil, o qual determina que as nulidades devem ser
pronunciadas de ofício, com o disposto no art. 10 do novo Código de
Processo Civil (2015, doravante NCPC), o qual, inovando no direito
positivado brasileiro, estabelece que “o juiz não pode decidir, em grau
algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não
se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se
trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Nesse viés, foca-se exclusivamente na análise do regime das
nulidades, vez que são elas que podem (rectius, devem) ser conhecidas
de ofício pelo julgador e que, portanto, são diretamente abrangidas pela
regra processual agora expressa no direito brasileiro.

4.2 Características próprias das nulidades


As invalidades são classificadas no direito brasileiro a partir de
dois diferentes graus. Aquelas mais graves se submetem ao regime
das nulidades; e as menos graves, ao regime da anulabilidade. Falar em
regime jurídico é trabalhar com regime consequencial, que, por critério
de proporcionalidade, é diverso a depender da gravidade respectiva.6
Conforme delimitado, interessa-nos exclusivamente o regime das
nulidades, remetendo o leitor a uma breve comparação ao regime das
anulabilidades nas notas de rodapé.7

6
Na síntese de Pontes de Miranda, o negócio nulo é aquele deficiente desde a entrada e para
sempre, e o anulável, desde a entrada no mundo jurídico, mas por algum tempo (PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro, Borsoi,
1954, p. 4).
7
A diferenciação entre nulidade e anulabilidade se dá essencialmente no que toca ao seu regime
jurídico, ou seja, às consequências aplicáveis para cada qual. Aliás, não se pode perder de
vista que o CC/1916 continha inúmeras imprecisões a respeito da distinção entre esses dois
graus de invalidade, o que foi corrigido pelo CC/2002. Nesse sentido, a crítica de José Carlos
90
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A fixação de consequências mais gravosas à nulidade se dá, em


grande parte, porque os interesses protegidos por elas transcendem a
esfera individual dos partícipes do negócio. É o que se passa, retomando
o exemplo acima apresentado, na proibição de prática de atos por absolu-
tamente incapazes sem a devida representação, em que se protege a
própria ordem jurídica e não apenas o incapaz, mesmo porque a tutela
da pessoa humana, em sua plenitude, é de natureza constitucional.
Cabe prioritariamente ao legislador fixar as consequências e
regras aplicáveis às nulidades. Isso posto, há algumas características
de seu regime jurídico que são extraídas expressamente do disposto
no Código Civil brasileiro. Outras, contudo, são obtidas pela análise
doutrinária, que, como não poderia deixar de ser, se fundamenta também
no alcance das normas legais.
Do ponto de vista normativo, sobressai-se o disposto nos artigos
1688 e 169,9 os quais estabelecem três regras gerais aplicáveis à nulidade:
o rol de legitimados para alegá-la, o dever de conhecimento de ofício,
bem como a impossibilidade de ser sanada com o tempo ou confirmada
pelas partes.
No que toca ao rol de legitimados, a lei estabelece que qualquer
interessado pode alegar a nulidade, inclusive o Ministério Público nos
casos em que sua intervenção é cabível.10 Para Orlando Gomes, essa
amplitude dos legitimados corresponde ao reflexo processual de seu
caráter absoluto.11 Mais do que isso, dessa regra se pode extrair a eficácia
erga omnes da decretação de nulidade.

Barbosa Moreira: “A terminologia equívoca terá provavelmente contribuído para a frequência


com que a linguagem forense, e às vezes a doutrinária, incorreu no erro de misturar as
duas figuras, empregando promiscuamente os substantivos ‘nulidade – anulabilidade’, os
adjetivos ‘nulo – anulável’ e as expressões ‘declarar nulo – anular’. O problema não seria
grave, se a disciplina fosse igual num e noutro caso; mas não era, conforme ressaltava, antes
de mais nada, do disposto nos arts. 146 e 152 [CC1916]”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Invalidade e ineficácia do negócio jurídico. In: MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui.
Doutrinas essenciais. Direito Civil. Parte Geral. v. VI. São Paulo: RT, 2011, p. 369).
8
Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado,
ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.
Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do
negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido
supri-las, ainda que a requerimento das partes.
9
Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo
decurso do tempo.
10
Já no que toca às anulabilidades, o art. 177 estabelece que somente interessados podem
alegá-la e que a sentença somente produz efeitos em relação a eles, ressalvados os casos de
indivisibilidade ou solidariedade.
11
GOMES, Orlando; BRITO, Edvaldo (Coord.). Introdução ao Direito Civil. 19. ed. revista,
atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008,
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
91

Ainda segundo Orlando Gomes, as nulidades são também


incuráveis e perpétuas, ou seja, não podem ser sanadas com o transcurso
do tempo ou por ato de vontade das partes.12 A regra atinge também a
figura do juiz, a quem a lei proíbe a possibilidade de supri-la, mesmo
quando a requerimento das partes.13 Dessa consideração, expressa no
Código Civil, decorre o reconhecimento doutrinário de que as nulidades
são imprescritíveis, ou seja, podem ser alegadas a qualquer tempo – ainda
que pendente relevante discussão quanto à prescritibilidade de seus
efeitos patrimoniais.14
Por fim, o regime estabelecido pelo Código Civil cria um dever
ao magistrado de decretar15 a nulidade quando ela estiver demons-
trada, o que se fará de ofício, ou seja, independente de arguição pelas
partes, pelo Ministério Público ou por algum interessado. Dito de
outra forma, a decretação de invalidade pode ser obtida como objeto
principal do processo – como nas hipóteses em que se ajuíza ação para
esta finalidade – bem como incidentalmente, inclusive nas hipóteses
em que sequer foi trazida a discussão sobre a invalidade do negócio
jurídico pelas partes.
É o que se passaria, por exemplo, no caso de ação ajuizada com
pedido de cumprimento da obrigação contratual em que as partes
colidem a respeito da existência de pagamento integral e o juiz, ex
officio, verifica a ilicitude do objeto. Como é natural, uma decisão que

p. 425. Alguns doutrinadores entendem, contudo, que nem todas as nulidades podem ser
alegadas pelos legitimados dispostos no art. 168 do CC. É o caso de Marcos Bernardes de
Mello, para quem, em algumas hipóteses (como é o caso do art. 48 do CC) se delimita o rol
de legitimados, o que se faz sem afastar a aplicação do regime mais gravoso da nulidade.
(MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 247-248).
12
GOMES, Orlando; BRITO, Edvaldo (Coord.). Introdução ao Direito Civil. 19. ed. revista,
atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense,
2008, p. 425-426.
13
Em comparação com o regime das anulabilidades, diga-se que estas podem ser confirmadas
expressa ou tacitamente pelas partes, bem como que o tempo convalesce o defeito negocial.
Isso importa concluir que os negócios anuláveis podem se tornar válidos com o passar do
tempo, o que também afasta a imprescritibilidade da anulação (arts. 172, 174, 176 e 178,
CC).
14
Sustentando que o art. 169 do CC estabelece a imprescritibilidade da decretação de nulidade,
mas não dos seus efeitos patrimoniais, vide TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa
Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição
da República. v. I. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 320.
15
Adere-se aqui à concepção de Pontes de Miranda, tão bem expressada por Marcos Bernardes
de Mello, no sentido de que a nulidade é decretada, e não apenas declarada. Trata-se de
provimento constitutivo-negativo (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico.
Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 251).
92
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

reconhecesse a invalidade nesta hipótese não extrapolaria os limites


da demanda, exatamente porque passível de ser proferida de ofício.16
Com essas características, o Código Civil cria um regime bastante
gravoso aplicável à nulidade. Dentre elas, os focos passam a ser dirigidos
apenas à regra pela qual o juiz deve conhecer da nulidade de ofício,
quando se encontrar demonstrada.

4.3 O caráter absoluto da nulidade e as exceções à sua


decretação
Segundo disposto no parágrafo único do art. 168 do Código Civil,
o juiz deve pronunciar a nulidade quando conhecer do negócio jurídico,
ainda quando não arguida pelo interessado, quando seus elementos
se encontrarem comprovados nos autos, não sendo permitido supri-la,
ainda que a requerimento das partes. Trata-se, como a utilização do verbo
dever denota, de uma obrigação do julgador, o que dialoga de forma
estreita com a gravidade do regime de nulidades no direito brasileiro.
A conclusão encontra abrigo nas regras gerais do regime das nulidades,
acima revisitadas. Ora, se nulidades são absolutas, incuráveis e perpétuas,
características conferidas a elas por Orlando Gomes e aceitas com
tranquilidade pela doutrina brasileira, não haveria discricionariedade
judicial no reconhecimento da sua ocorrência. À mesma conclusão
chegar-se-ia pela leitura literal e isolada do disposto no art. 168 do
CC, no sentido de se concluir que o magistrado não poderia deixar de
pronunciar a nulidade que se encontre provada: a única alternativa
possível seria a decretação da nulidade.
Ocorre que uma leitura sistemática do atual Código Civil afasta
o absolutismo dessa interpretação, o que se faz essencialmente à luz

16
Sobre o tema, não se pode deixar de notar que há súmula do Superior Tribunal de Justiça
que relativiza a regra de conhecimento de ofício de nulidade de cláusula inserta em contratos
bancários (Súmula nº 381: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de
ofício, da abusividade das cláusulas). Segundo disposição do art. 51 do Código de Defesa
do Consumidor, cláusula abusiva nada mais é do que cláusula nula e, portanto, seja por
disposição do CC, seja por regra própria do CDC, deveria ser conhecida de ofício. O
entendimento do STJ – sem que se tenha aqui espaço para lhe traçar qualquer consideração
crítica – sublinha o fato de que as características próprias da nulidade não são imutáveis,
podendo ser flexibilizadas em determinadas circunstâncias. No caso específico da Súmula
nº 381, Bruno Miragem conclui que, apesar das críticas, “sua aplicação resultou, na prática,
na exigência de pedido e demonstração in concreto da abusividade da cláusula, o que se
aplica ao controle da cláusula de juros bancários”, do que se pode retirar um fundamento
da decisão tomada pelo STJ (MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: RT, 2013, p.
300).
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
93

de uma ressignificação do conteúdo rígido das nulidades a partir do


princípio da conservação dos pactos.
O próprio Código Civil prevê hipóteses de aproveitamento de
negócios jurídicos nulos. É o que se passa com o instituto da conversão
substancial do negócio jurídico, previsto no art. 170 do CC.17 Ou seja,
ainda que existente a nulidade, o juiz não é obrigado a decretá-la,
podendo converter o negócio inválido em negócio jurídico válido, que
produzirá os seus efeitos.18
Verifica-se uma importante passagem dos poderes do juiz, da
codificação de 1916 para a vigente de 2002, os quais de absolutos e
inflexíveis passaram a ser discricionários (mas, sempre, devidamente
fundamentados), tendo em vista do máximo aproveitamento dos efeitos
do negócio. Trata-se de um novo capítulo no estudo das invalidades e
que, antes aprisionadas apenas ao plano da validade, agora se voltam
também à eficácia dos negócios jurídicos; afinal, é para produção de
efeitos que os fatos jurídicos se voltam.
A mesma previsão de conservação é encontrada na hipótese do art.
167, caput, no que toca a negócios jurídicos simulados.19 Segundo dispõe
o Código Civil, o negócio dissimulado pode subsistir se válido for na
substância e na forma. Ainda que nulo o negócio simulado, pode-se
interpretar como válido o ato dissimulado nas hipóteses de simulação
relativa. O instituto é chamado por Pontes de Mirada de extraversão e
aproxima-se (ainda que não se confunda)20 com a conversão dos negócios
jurídicos prevista no art. 170 do CC.
É o que se passa, por exemplo, quando uma compra e venda a
preço vil são feitas para dissimular uma doação. Nesses casos, se válida
for a doação na substância e na forma (dentre outros, se observar a

17
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este
quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem
previsto a nulidade.
18
Os exemplos de aplicação prática da conversão são muitos. A título exemplificativo, vide:
“(...) 6. Na hipótese, sendo nulo o negócio jurídico de doação, o mais consentâneo é que
se lhe converta em um contrato de mútuo gratuito, de fins não econômicos, porquanto é
incontroverso o efetivo empréstimo do bem fungível, por prazo indeterminado, e, de algum
modo, a intenção da beneficiária de restituí-lo. 7. Em sendo o negócio jurídico convertido
em contrato de mútuo, tem a recorrente, com o falecimento da filha, legitimidade ativa e
interesse de agir para cobrar a dívida do espólio, a fim de ter restituída a coisa emprestada.
(...)” (REsp nº 1225861/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
22.04.2014, DJe 26.05.2014).
19
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido
for na substância e na forma.
20
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1954, p. 402.
94
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

forma legal, bem como não se prestar a fraudar lei imperativa), será
possível receber a compra e venda simulada como contrato de doação,
produzindo os efeitos deste.21
Em outras circunstâncias mais tradicionais, o direito brasileiro
permite uma relativização das características próprias da nulidade. É o
que se passa quando se admitem: a nulidade parcial do negócio, desde
que destacável a parte inválida (art. 184, CC);22 a redução do negócio
jurídico para adequação às regras legais e cogentes;23 a separação do
instrumento e do negócio, quando este puder ser comprovado de
outra forma (art. 183, CC);24 ou mesmo a manutenção de certos efeitos
contratuais derivados de contratos nulos, quando impossível o retorno
ao status quo ante.25
Todas essas circunstâncias representam, com suas peculiaridades
próprias, a aplicação do princípio da conservação dos pactos, cuja
observância na teoria do negócio jurídico e no regime das validades
tem sido sustentada por abalizada doutrina e aplicada, mesmo quando
sem menção expressa à nomenclatura específica, pela jurisprudência
nacional.26

21
Sobre o tema, veja-se o seguinte julgado: “(...) Pretensão voltada à declaração de nulidade
absoluta de negócio jurídico, consistente em cessão de direitos sobre bem imóvel, a fim de
ocultar doação. Instâncias ordinárias que reconheceram a existência de simulação, declarando,
no entanto, a nulidade parcial da avença, reputando parcialmente válido o negócio jurídico
dissimulado (doação), isto é, na fração que não excedia à legítima. (...) 3.1 De acordo com a
sistemática adotada pelo novo Código Civil, notadamente no artigo 167, em se tratando de
simulação relativa – quando o negócio jurídico pactuado tem por objetivo encobrir outro de
natureza diversa – , subsistirá aquele dissimulado se, em substância e forma, for válido. (...)
3.3 O negócio jurídico dissimulado apenas representou ofensa à lei e prejuízo a terceiro (no
caso, o recorrente) na parte em que excedeu o que a doadora, única detentora dos direitos
sobre o bem imóvel objeto do negócio, poderia dispor (doação inoficiosa)” (REsp nº 1102938/
SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10.03.2015, DJe 24.03.2015).
22
Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não
o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal
implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.
23
Exemplificativamente, no caso de haver cláusula penal que exceda os limites impostos pelo
art. 412 do CC, nada impede que o juiz a reduza até o limite legal. Da mesma forma, em
caso de doação que exceda o limite da legítima (art. 2.007 do CC) ou mesmo na inserção de
juros acima do limite previsto em lei.
24
Art. 183. A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este
puder provar-se por outro meio.
25
Pense-se, por exemplo, na invalidade de um contrato de trabalho ou de um concurso público.
Nesses casos, é possível “modular” os efeitos da decretação de nulidade, a qual somente
produziria efeitos ex nunc. A noção de modulação, aliás, é amplamente admitida mesmo
nos casos de vícios de inconstitucionalidade.
26
Sobre o princípio da conservação, assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
“(...) A ordem jurídica é harmônica com os interesses individuais e do desenvolvimento
econômico-social. Ela não fulmina completamente os atos que lhe são desconformes em
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
95

Essa constatação importa uma leitura acautelada do disposto no


art. 168, parágrafo único, do Código Civil, no sentido de se compreender
o dever de decretação da invalidade como relativo: o juiz não é obrigado
a decretá-la quando se puder, mediante aplicação de regras expressas
ou implícitas do direito brasileiro, conservar o pacto em detrimento de
sua invalidação. Em outras palavras, as regras de nulidade não devem
ser consideradas como absolutas, ainda que em sua gênese a teoria das
invalidades se prestasse a tal interpretação.27

4.4 Conhecimento da nulidade de ofício e oitiva das


partes: art. 168, parágrafo único, do Código Civil
versus art. 10 do novo Código de Processo Civil
Ora, se o princípio da conservação dos pactos importa lançar novas
luzes ao dever judicial de conhecimento de ofício das nulidades, a regra
disposta no art. 10 do NCPC vem fomentar ainda mais o debate sobre
o alcance desse dispositivo, integrando-o com outras possibilidades de
interpretação desse poder-dever judicial. E não sem tempo.
O Código de Processo Civil de 2015 não é apenas resultado da
soma de regras processuais, mas antes um código funcionalmente novo.
Com efeito, pese embora as inúmeras críticas ao NCPC (e que somente
serão de fato explicitadas, confirmadas ou excluídas a partir de sua
entrada em vigor e consequente aplicação), certo é que a racionalidade
do novo diploma é prestigiar o papel das partes no processo, sem que
isso signifique mitigar o poder-dever instrutório do juiz.
Os exemplos dessa democratização do processo civil são inúmeros
e talvez possam ser essencialmente representados pelos chamados
negócios processuais (arts. 190 e 191 do NCPC), pelos quais se confere
às partes (em alguns casos previamente à instauração do litígio) fixar

qualquer extensão. A teoria dos negócios jurídicos, amplamente informada pelo princípio
da conservação dos seus efeitos, estabelece que até mesmo as normas cogentes destinam-
se a ordenar e coordenar a prática dos atos necessários ao convívio social, respeitados
os negócios jurídicos realizados. Deve-se preferir a interpretação que evita a anulação
completa do ato praticado, optando-se pela sua redução e recondução aos parâmetros da
legalidade” (REsp nº 1106625/PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em
16.08.2011, DJe 09.09.2011).
27
Na ocasião da edição do Código Civil de 2002, afirmou Leonardo Mattietto que não apenas
o novo diploma civil, como o princípio da conservação dos pactos seriam vieses para a
revisão crítica das regras de invalidades, profundamente inspiradas em subsídios históricos
do direito romano (MATTIETTO, Leonardo. Invalidade dos atos e negócios jurídicos. In:
TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva
civil-constitucional. 3. ed. revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 325).
96
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

regras de flexibilização do procedimento judicial. Aliás, conforme


afirmou Fredie Didier, o autorregramento da vontade é um princípio
vetor no NCPC e que se desdobra no reconhecimento de que o devido
processo legal é também um processo exercido em torno da liberdade.28
Falar em autorregramento da vontade – expressão utilizada por
Pontes de Miranda para se referir ao que usualmente se denomina
autonomia privada – é falar em liberdade individual, que, no âmbito do
processo, é funcionalizada para o exercício de garantias processuais que
não podem ser afastadas (aqui se incluem, por exemplo, garantias do
contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal). E, embora
o art. 10 do NCPC não se refira expressamente à liberdade das partes,
certamente sua disposição é um desdobramento da nova racionalidade
que o legislador pretendeu imprimir ao processo civil. Explica-se.
Com a entrada em vigor do NCPC, passou a ser expressamente
defeso ao juiz decidir com base em fundamento novo, sobre o qual as
partes não tenham tido oportunidade de se manifestar. Trata-se de
postulado que decorre do princípio do contraditório e que, na definição
de Fredie Didier, é apenas uma pseudonovidade normativa. Isso porque
a proibição da decisão-surpresa e a invalidade deste pronunciamento
já eram plenamente defensáveis à luz dos princípios processuais e
constitucionais.29
A regra é também adotada em outros ordenamentos jurídicos,
correspondendo a uma tendência de compreensão do princípio do
contraditório. É o caso, exemplificativamente, do art. 3º, 3, do CPC
português30 e do §139 (2) do ZPO alemão.31 É certo, porém, que agora o
legislador deixou bastante claro, e é neste ponto que o disposto no art.

28
A afirmação foi feita em conferência intitulada Devido processo legal e respeito ao autorregramento
da vontade, proferida no curso Negócios processuais no novo CPC promovido pela AASP e
retransmitido pela OAB/PR em 18.03.2014.
29
DIDIER, Fredie. A eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Disponível
em: <https://www.academia.edu/9008318/Efic%C3%A1cia_do_novo_CPC_antes_
do_t%C3%A9rmino_do_per%C3%ADodo_de_vac%C3%A2ncia_da_lei>. Acesso em: 04
abr. 2015.
30
Art. 3º, 3 (Código de Processo Civil de Portugal) – O juiz deve observar e fazer cumprir, ao
longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de
manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento
oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
31
§139 ZPO (Direção substancial do processo): (2) A Corte pode embasar sua decisão em aspecto
sobre o qual a parte tenha reconhecidamente negligenciado ou considerado irrelevante,
desde que não se esteja diante de uma pretensão acessória, somente quando tenha apontado
este aspecto e conferido a possibilidade de manifestação. O mesmo é válido para aspecto
sobre o qual a Corte decide diferentemente a ambas as partes (em tradução livre de §139
Materielle Prozessleitung. (2) Auf einen Gesichtspunkt, den eine Partei erkennbar übersehen oder
für unerheblich gehalten hat, darf das Gericht, soweit nicht nur eine Nebenforderung betroffen
ist, seine Entscheidung nur stützen, wenn es darauf hingewiesen und Gelegenheit zur Äußerung
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
97

10 do NCPC passa a ser relevante ao tema aqui tratado, que a decisão


surpresa é defesa inclusive nos casos em que a matéria invocada possa
ser conhecida ex officio. Chega-se então a um ponto de contato entre o
regime da nulidade e a “nova” regra processual.
Ora, como visto, o Código Civil cria ao juiz o dever de conhecer
a nulidade quando se encontrar provada (art. 168, parágrafo único).
O NCPC, por sua vez, proíbe que haja decisão fundamentada em
argumento não ventilado no curso do processo. Conclusivamente, o juiz
deve conhecer a nulidade do negócio jurídico, mas, preliminarmente,
também deve abrir oportunidade de manifestação às partes.
Uma leitura apressada dessa conclusão – que se tem como bastante
lógica – poderia levar à incompreensão do alcance do dispositivo no que
toca à nulidade. O leitor poderia se perguntar, afinal, qual o objetivo
de se determinar a prévia oitiva das partes quando houver causa de
nulidade: afinal, se os negócios jurídicos nulos não são sanáveis e não
podem ser confirmados por ato das partes, haveria utilidade em ouvi-las?
Duas ordens de argumentos afastam a aparente incongruência
entre os dispositivos e sublinham o acerto do legislador ao incluir a regra
de prévia oitiva das partes para decretação de nulidade. O primeiro
deles dialoga com a interpretação e aplicação do direito e está intima-
mente vinculado às garantias e aos princípios processuais. O segundo
tem ligação com as regras de conservação dos pactos acima estudadas.

4.4.1 Decretação de nulidade e direito de participação


no processo
Sob a primeira ótica, referente à interpretação e à aplicação do
direito ao caso concreto, não se pode perder de vista que, embora as
regras de nulidade sejam cogentes, o preenchimento de seu suporte
fático não é objetivo, mas essencialmente dependente da atividade
interpretativa. Aqui se insere um elemento subjetivo e de convencimento
do juiz. Às partes não pode ser negada a possibilidade de interferir no
processo decisório, essencialmente quando são surpreendidas pelo
reconhecimento de nulidade que, a seu ver, nem sequer seria existente.
Se em algumas hipóteses de nulidade é possível, em tese (e
apenas em tese), objetivar seu reconhecimento – vide, por exemplo, a
incapacidade absoluta do agente32 ou o vício de forma, que são externa

dazu gegeben hat. Dasselbe gilt für einen Gesichtspunkt, den das Gericht anders beurteilt als beide
Parteien).
32
Antes da entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
nem mesmo a incapacidade absoluta poderia ser tida como objetivamente aferível. Basta
98
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

e objetivamente determinados –, outras hipóteses dependerão em maior


ou menor grau da atividade interpretativa. Entram nesse grupo, por
exemplo, a nulidade por motivo ilícito e fraude à lei (art. 166, III e VI, do
CC), por simulação (art. 167 do CC)33 ou mesmo a ilicitude, indetermina-
bilidade ou impossibilidade do objeto (art. 166, II, do CC), especialmente
quando se reconhece que ilicitude não se confunde com ilegalidade.34
Nesses casos, abrir o contraditório às partes é essencial à formação
do convencimento judicial e dá luz à ideia de que as partes não podem
ser surpreendidas por decisão sobre fundamento não ventilado no
curso do processo. Aliás, veja-se que o art. 168, parágrafo único, do CC
possibilita ao juiz conhecer de ofício a nulidade quando esta estiver
provada nos autos, o que sublinha que os elementos da nulidade também
são objeto de prova e, portanto, que as partes devem ter o direito de
participar na formação do convencimento judicial sem que isso afaste
o princípio do livre convencimento do juiz.
Dentro dessa concepção, o disposto no art. 10 do NCPC cria
um requisito suplementar de validade da decisão judicial proferida,
qual seja, de que o fundamento invocado de ofício pelo juiz tenha
sido previamente compartilhado com as partes. Somente assim é que
elas podem manifestar-se em favor da interpretação de validade do
negócio jurídico. A contrario senso, a decisão que reconhece a invalidade
do negócio de ofício, porém sem dar oportunidade de manifestação às
partes, será inválida por vício processual.

pensar na hipótese de um negócio firmado por um maior de idade que sofresse alguma
deficiência cognitiva, mas ainda não houvesse sido interditado ao tempo da conclusão do
negócio, embora já estivessem presentes os requisitos que autorizariam a interdição. Como
a sentença de interdição pode produzir retroativos à data em que se constatar, teve início
a causa de incapacidade. Como se sabe, a Lei nº 13.146/2015 revogou o art. 3º e incisos do
Código Civil e conferiu nova redação ao caput: “São absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.
33
Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, decidiu o juízo a quo – sem oitiva as
partes – pela nulidade do negócio jurídico firmado ao argumento de que haveria cláusula
não verdadeira e, portanto, que o negócio seria simulado. No caso específico, as partes
haviam acordado uma forma de pagamento e, no curso da execução, este foi realizado de
forma diversa da acordada, mediante quitação. Em recurso de apelação, o TJPR considerou
que “a modificação da forma de pagamento da parcela ajustada na cessão de direitos
hereditários não caracteriza simulação e não autoriza concluir que possa comprometer
a validade do negócio”, reformando a sentença para afastar a nulidade (TJPR – 17ª C.
Cível – AC – 1081904-2 – Curitiba – Rel.: Lauri Caetano da Silva – Unânime – J. 21.05.2014).
Trata-se de típico exemplo em que a prévia oitiva das partes poderia ter influenciado no
convencimento judicial, com ganhos evidentes em economia processual.
34
Conforme interpretação conferida por Marcos Bernardes de Mello e aqui referendada, o
conceito de ilicitude compreende tanto a contrariedade à lei, à moral (bons costumes), como
à ordem pública, na trilha do art. 122 do CC (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato
jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 91).
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
99

Veja-se que a oportunidade de manifestação quanto ao funda-


mento invocado ex officio pelo juiz não se confunde com a possibilidade
de sanar ou confirmar o ato nulo. Está-se aqui apenas invocando o
direito de participação no processo e, essencialmente, no convencimento
judicial em defesa da validade do negócio. Sob esta primeira ótica, o art.
10 do NCPC contém regra exclusivamente processual e que, de forma
alguma, retira do juiz o poder-dever disposto no art. 168, parágrafo
único, do CC. Os dispositivos são plenamente compatíveis.

4.4.2 Decretação de nulidade e princípio da conservação


dos pactos
Sob o segundo ponto de vista, ou seja, da conservação dos
negócios jurídicos, não se pode perder de vista que é conferida às
partes a possibilidade de conservar alguns dos efeitos pretendidos pelo
negócio jurídico, ainda que este seja considerado nulo. O princípio da
conservação dirige-se não apenas ao juiz, como também às próprias
partes, que têm melhores condições de estabelecer a vontade hipotética
buscada na conversão, na extraversão ou mesmo na redução parcial
do negócio ou de cláusula contratual.
Por evidente que essa possibilidade de atuar ativamente na
aplicação de tais mecanismos não transforma as regras de nulidade em
regras dispositivas, e nem se poderia interpretar (e não é isso que se
sugere) uma alteração de sua natureza jurídica por força do disposto no
art. 10 do NCPC. Mas é certo que, nesta mesma linha interpretativa, a
abertura do contraditório pode estar intimamente ligada à conservação
dos pactos, em atenção ao interesse das partes.
Quando previamente ouvidas, podem as partes tanto defender a
validade do negócio, como também atuar na defesa da conservação de
seus efeitos, ou de alguns de seus efeitos, influenciando o convencimento
judicial no que toca à preservação do negócio jurídico. Trata-se de uma
atuação processual, mas estreitamente ligada ao próprio direito material.
Nesse ponto específico, a prévia oitiva das partes encontra algum
paralelo com o reconhecimento ex officio da prescrição, possibilitado,
desde a revogação do art. 194 do CC e inclusão do §5º ao art. 219 do
CPC/1973,35 dispositivo que se manteve no art. 487, II, do NCPC. Veja-se
que tanto nulidade como prescrição são normas de ordem pública e
conhecíveis de ofício pelo juiz.

35
Ambos (revogação e inclusão) se deram por força da Lei nº 11.280/2006.
100
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

No que toca à prescrição, relevante doutrina, seguida por parte


da jurisprudência, já sustentava à luz do CPC/1973 entendimento de
que o conhecimento de ofício não afasta a necessidade de prévia oitiva
do devedor. Conforme afirmam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel
Mitidero, “embora seja uma exceção de direito material, pode o juiz
pronunciar de ofício a prescrição. Tem, todavia, de dialogar previamente
com o demandado a fim de colher eventual renúncia à prescrição”.36
O principal fundamento da conclusão é a possibilidade de
renúncia à prescrição (art. 191 do CC),37 ato jurídico que somente pode
ser exercido por seu titular (in casu, o devedor).38 A forma pela qual se
adequam o direito da parte à renúncia e o dever do juiz de decretação,
é justamente a instauração do contraditório prévio ao reconhecimento
da prescrição.
Melhor do que se falar apenas em oitiva do devedor, contudo, é
abrir a possibilidade de manifestação às partes processuais. Com efeito,
a natureza da demanda, o prazo prescricional incidente bem como o
próprio termo a quo de sua contagem podem ser matérias estreitamente
ligadas à interpretação e à produção de provas e, consequentemente,
caberá às partes influenciar o convencimento judicial. Com a entrada
em vigor do NCPC, certamente é este o entendimento a ser observado
por força do disposto no art. 10.
Veja-se que a lógica inerente à declaração ex officio da prescrição
é bastante próxima àquela da nulidade. Embora as partes não possam
renunciar à nulidade – frise-se, não se trata de direito dispositivo –,
podem manifestar sua vontade de conservação do pacto mediante
aplicação de mecanismos admitidos por lei ou, ainda, da modulação dos

36
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo
por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 224.
37
Art. 191. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem
prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se
presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.
38
Há entendimento reiterado no Superior Tribunal de Justiça, contudo, que, no caso de
prescrição direta (ou seja, que não sejam qualificados como prescrição intercorrente) em
execuções fiscais, é dispensável a prévia oitiva da Fazenda Pública para seu reconhecimento.
Para o STJ, o disposto no art. 40, §4º, da Lei nº 6.830/1980, que determina prévia oitiva,
somente é aplicável no caso de prescrição intercorrente. Vide, exemplificando jurisprudência
consolidada: “(..) 4. O caso dos autos não cuida de prescrição intercorrente, porquanto
não houve interrupção do lapso prescricional. Tratando-se de prescrição direta, pode
sua decretação ocorrer de ofício, sem prévia oitiva da exequente, nos termos do art. 219,
§5º, do CPC, perfeitamente aplicável às execuções fiscais. Agravo regimental improvido”
(AgRg no AREsp nº 515.984/BA, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado
em 18.06.2014, DJe 27.06.2014). Veja-se que, nesses casos, afasta-se a intimação do credor,
enquanto que, no caso do entendimento aqui defendido, deve-se intimar o devedor para
que, querendo, exerça sua renúncia.
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
101

efeitos do reconhecimento da nulidade. E, da mesma forma pela qual


podem atuar no convencimento do juiz a respeito da inaplicabilidade
de determinado prazo prescricional, podem defender a manutenção,
ainda que parcial ou convertida, do negócio jurídico (sendo o mesmo
raciocínio válido para inúmeras outras questões que formam o conven-
cimento judicial).
Também nessas hipóteses, a não observância do disposto no
art. 10 do NCPC levará à invalidade da decisão judicial proferida sem
oportunizar a oitiva das partes. Frise-se que o dispositivo do novel
CPC apenas se refere à oportunidade de manifestação, sendo ônus
processual das partes efetivamente se utilizar da prerrogativa. A mera
intimação para manifestação já supre, assim, o objetivo do NCPC, não
sendo necessário que haja efetiva manifestação.
A incompatibilidade entre as características próprias da nulidade
e a abertura do contraditório prévio ao seu conhecimento de ofício é
meramente aparente, portanto. O cabimento da regra agora expressa
no NCPC é fundamentado tanto na ordem processual como à luz do
direito material.

4.4.3 Da validade à eficácia: tendências de direito


material e processual
De todo o exposto, resta possível apontar algumas tendências de
direito civil e de direito processual no que toca ao regime das nulidades
dos negócios jurídicos.
Sob o ponto de vista do direito material, o diálogo necessário a
ser estabelecido entre o art. 168, parágrafo único, do CC e o art. 10 do
NCPC pressupõe a compreensão de um novo capítulo do regime de
nulidades no direito brasileiro no sentido de que só há sentido decre-
tá-las quando o negócio jurídico for efetivamente incompatível com
princípios sensíveis ao ordenamento jurídico.
É certo, conforme se tem afirmado, que essa compreensão não é
inaugurada com o NCPC, mas, sim, tem seus fundamentos na releitura
do estrito e rígido regime de nulidades ensinado como algo natural nos
cursos de direito ao longo das décadas. O direito de hoje não parece ser
mais condizente com uma análise meramente estruturalista ou forma-
lista e, ainda que as regras de validade sejam imprescindíveis – e nem
se cogita dizer o contrário –, é na eficácia das relações jurídicas que os
acentos devem ser voltados.
102
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A lógica inerente ao NCPC, ligada à valorização da democra-


tização do processo, pode e deve contribuir para essa reestruturação
do direito privado, especificamente aqui no que toca ao regime das
nulidades. E, neste ponto, uma nova racionalidade do direito material
encontra também abrigo em garantias e princípios processuais sensíveis
à ordem jurídica brasileira.
Sob o ponto de vista processual, a observância ao contraditório,
à ampla defesa e ao devido processo legal vem possibilitar às partes
que atuem na defesa do ato considerado nulo e que possam ativamente
influenciar o convencimento judicial, sem que isso importe danos à
celeridade e economia processuais.39 Aliás, muito pelo contrário. Em
sendo a nulidade matéria preliminar à análise do plano da eficácia – no
qual se desenrolam questões referentes ao cumprimento ou descumpri-
mento das obrigações, por exemplo –, a prévia oitiva das partes mitiga
os riscos de retorno dos autos para instrução probatória não realizada
ao tempo correto ou, ainda, da indesejável supressão de instância.
Em um desenrolar lógico do processo, matérias de invalidade
negocial devem ser apreciadas antes mesmo da análise de questões
eficaciais e, como são também fundamentos de decisão, devem encontrar
abrigo naquilo que foi debatido no curso do processo. Sempre que a
nulidade é conhecida de ofício, altera-se (legitimamente, contudo) o
curso natural do processo e da tutela esperada pelas partes. É a expec-
tativa das partes do processo na tutela de direito material buscada, de
um lado, e as garantias processuais, de outro, que afirmam o acerto do
legislador ao incluir a regra do art. 10 no NCPC.

4.5 Notas conclusivas


Como é natural, o NCPC somente poderá ser efetivamente
compreendido a partir de sua entrada em vigor e de sua aplicação
prática. Lições doutrinárias podem ser traçadas antes disso, mas é o
dia a dia dos tribunais que dará conteúdo às novas regras processuais
e estabelecerá seu relacionamento com regras de direito material já
existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Sob o ponto de vista estrutural, não se vislumbra nenhuma
incompatibilidade entre a regra do art. 168, parágrafo único, do CC, que

39
Afinal e conforme afirma com precisão Rodrigo Ramina de Lucca, “tanto o contraditório como
a ampla defesa só se justificam se forem dirigidos ao convencimento judicial” (RAMINA
DE LUCCA, Rodrigo. O dever de motivação das decisões judiciais. Salvador: JusPodivm, 2015).
PAULO NALIN, RENATA C. STEINER
NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...
103

estabelece o dever de conhecimento ex officio da nulidade dos negócios


jurídicos, e aquela do art. 10 do NCPC, que proíbe decisão embasada
em fundamento sobre o qual as partes não tiveram oportunidade de
se manifestar, ainda quando conhecível de ofício. Pelo contrário, são
regras complementares e em harmonia com os objetivos buscados pelo
direito brasileiro, material e processual.
Uma leitura rígida e absoluta das nulidades, mesmo sob a égide
do Código Civil, parece incompatível com o reconhecimento de que
nulidades são obtidas mediante interpretação jurídica, ato naturalmente
subjetivo, e com a existência de inúmeros mecanismos de promoção à
conservação dos pactos, que afastam o caráter absoluto da decretação de
nulidade. Não há nulidade de pleno direito, por assim dizer, porque
toda e qualquer nulidade dependerá de uma atividade cognitiva prévia
à sua decretação.
Da mesma forma, a observância do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal fomentados pelo NCPC não serve,
de forma alguma, para alterar o caráter cogente da nulidade, mas,
sim, para consagrar a união de uma teia complexa de prerrogativas
dispostas entre o dever de conhecimento pelo juiz, o caráter cogente da
nulidade e a diretriz de conservação buscada pelo Código Civil, ainda
que implicitamente.
A estabilização de regra expressa no art. 10 do NCPC, embora
não seja condição indispensável à aplicação do resultado pretendido,
enaltece o processo civil como locus de participação democrática, que,
em última análise, pode ser importante instrumento para que se voltem
os olhos ao plano da eficácia, tantas vezes esquecido em detrimento de
formalidades e estruturas não compatíveis com a função que se busca
conferir, hoje, ao direito privado brasileiro.

Referências
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Invalidade e ineficácia do negócio jurídico. In:
MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui. Doutrinas essenciais. Direito Civil. Parte Geral.
v. VI. São Paulo: RT, 2011.

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104
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

GOMES, Orlando; BRITO, Edvaldo (Coord.). Introdução ao Direito Civil. 19. ed. revista,
atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense,
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MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado
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MATTIETTO, Leonardo. Invalidade dos atos e negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo
(Coord.) A parte geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3.
edição, revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: RT, 2013.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo:
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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Rio
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TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina.
Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. v. I. 2. ed. revista e atualizada.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NALIN, Paulo; STEINER, Renata C. Nulidade dos negócios jurídicos e


conhecimento de ofício pelo juiz: entre o Código Civil e o novo Código de
Processo Civil (Lei nº 13.105/2015). In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA,
Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código
de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum,
2018. p. 87-104. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 5

SISTEMA DE PROVA DO FATO


JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS
CIVIL E DE PROCESSO CIVIL

Guilherme Calmon Nogueira da Gama

5.1 Noções gerais


O Código Civil de 2002 encerra sua Parte Geral (no Livro III)
com o título reservado à “Prova”, consolidando algumas posições
doutrinárias e jurisprudenciais adotadas na interpretação do Código
Civil de 1916 e procedendo às devidas e necessárias alterações, em
consonância com as diretrizes observadas pela Comissão Elaboradora
e Revisora do texto projetado. Nesta parte da disciplina do direito
civil, houve opção metodológica de tratar tão somente da prova do
fato jurídico (em sentido amplo), abrangendo os fatos jurídicos, atos
jurídicos e negócios jurídicos, e não cuidar da forma dos negócios
jurídicos. José Carlos Barbosa Moreira registra, com propriedade, que
outros fatos (não jurídicos, os fatos simples) também podem ser objeto
de prova – como no exemplo do fato indiciário –, não sendo justificável
considerá-los fora da abrangência do Código Civil de 2002.1 O Código
de Processo Civil em vigor – Lei nº 13.105/2015 – trata “Das Provas” no
capítulo XII do Livro I da Parte Especial, nos arts. 369 a 484. O direito
à prova no âmbito do processo tem natureza constitucional, pois está
inexoravelmente vinculado à garantia do contraditório (CF/88, art. 5º,

1
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil.
In: DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito
Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 208.
106
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

LV), eis que o contraditório abrange a oportunidade que as partes se


manifestem e produzam provas sobre os fatos afirmados, além de se
manifestarem sobre a matéria que o juiz deva conhecer de ofício antes
de proferir qualquer decisão.2
A respeito da forma do negócio jurídico, é essencial observar que
toda forma negocial apresenta inelutavelmente uma função – “todo
‘como’ do direito tem sempre um ‘porquê’ juridicamente relevante”.3
Nos casos em que a forma é perfil essencial do acordo negocial e, assim,
se vincula ao conteúdo deste, ela não pode faltar ou se mostrar alheia
aos aspectos funcionais da ordem negocial. A prova passa a fazer
parte inseparável do conteúdo do negócio. Assim, levando em conta a
noção de interesse na acepção axiológica-constitucional, a perspectiva
funcional incide no campo da interpretação das normas jurídicas e do
regulamento negocial sobre a forma, permitindo se indagar acerca de
qual é o seu objetivo.4
As questões referentes à prova, no âmbito do direito civil,
passaram a ser tratadas em título autônomo, a demonstrar a impor-
tância do assunto, além de não necessariamente haver direta e exclusiva
pertinência entre a prova e o negócio jurídico.5 E, como acontecia ainda
na vigência do Código Civil de 1916, houve fundado questionamento
sobre a pertinência do texto codificado civil ainda apresentar uma
disciplina própria em relação ao tema, levando em conta o tratamento
legal dispensado pelo Código de Processo Civil.6 A opção do legis-
lador foi a de seguir a linha divisória sugerida pela doutrina: a) ao
direito civil cabe realizar a determinação das provas, indicar seu valor
jurídico e suas condições de admissibilidade; b) ao direito processual
são reservadas as atribuições de fixar o modo de constituir a prova e

2
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo
Ferres da Silva: MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros comentários ao Novo Código de
Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 640.
3
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 296.
4
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 296-297.
5
José Carlos Moreira Alves justificou a opção da estruturação da prova em título autônomo
devido à circunstância de que todos os fatos jurídicos – e não apenas o negócio jurídico – são
suscetíveis de ser provados (ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de Código
Civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 87).
6
José Carlos Barbosa Moreira registra a ocorrência de intromissões e de superposições a
respeito, já que normas relativas ao direito civil “insinuam-se em códigos processuais, ou
vice-versa”, sendo denominadas de heterotópicas (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo
Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.).
Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 92). No
âmbito do Código de Processo Civil de 2015, houve novamente o tratamento da prova dos
fatos jurídicos no processo (arts. 369 a 484).
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
107

de produzi-la em juízo.7 É fundamental registrar que nem sempre as


questões relacionadas aos fatos, atos e negócios jurídicos deságuam nos
tribunais por variados motivos, dentre os quais a não configuração do
conflito de interesses ou a resolução do conflito por meios alternativos,
como, por exemplo, a conciliação, a mediação e a arbitragem, o que,
por si só, já seriam suficientes para justificar a disciplina normativa no
direito civil tendo como objeto de regulamentação a prova.8
Caio Mário da Silva Pereira confirma a existência de uma zona
fronteiriça entre o direito civil e o direito processual civil na matéria
relacionada à prova, reconhecendo que se trata de assunto que é, simul-
taneamente, objeto de disciplina pela lei civil e pela lei processual.9
Assim, enquanto o direito civil define os meios de prova, enuncia os
lineamentos do regime a que deve se submeter a comprovação do fato
jurídico (em sentido amplo) – em especial a declaração de vontade –,
ao direito processual incumbe estabelecer a técnica de apresentação e
valoração da prova em juízo.10 Em resumo: a) nos casos em que houver
litígio levado ao conhecimento do Poder Judiciário, o direito processual
terá a missão de disciplinar a técnica de demonstração concreta do
valor de suas pretensões, enquanto que o direito civil determinará o
valor intrínseco dos meios de prova; b) nos demais casos, incumbe
exclusivamente ao direito civil definir quais são os meios de prova que
os interessados (não litigantes ou contendores) devem se valer para
provar qualquer fato jurídico.11

7
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. v. 1. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1983, p. 42.
8
Fredie Didier Jr. indica a utilidade do tratamento da prova no Código Civil em dois pontos:
a) sua aplicação à prova extrajudicial, e b) a delimitação da forma de certos negócios jurídicos
(DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004,
p. 30).
9
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 589.
10
Alexandre Freitas Câmara anota que a disciplina da prova no Código Civil de 2002 contempla
disposições que melhor estariam no âmbito do Código de Processo Civil (CÂMARA,
Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. In: DIDIER
JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual.
Salvador: JusPodivm, 2006, p. 111). Assim, observa que o exemplo mais claro da má relação
entre o Código Civil de 2002 e o direito processual é o título destinado às provas, eis que,
para Alexandre Câmara, o Código Civil não é o lugar apropriado para estabelecer regras
sobre provas (CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito
Processual Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código
Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 117).
11
Carlos Santos de Oliveira segue o entendimento exposto no texto: “Compete, portanto,
ao direito civil determinar os requisitos para a validade da emissão volitiva, bem como se
pronunciar a respeito do valor de certo meio de prova do negócio jurídico. À lei processual fica
reservado, por exemplo, a atribuição de disciplinar o modo através do qual os advogados dos
108
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Renan Lotufo acentua que, na contemporaneidade, o conheci-


mento dos fatos é adquirido por meio de probabilidades, ou seja, é
relativo, já que os fatos não podem ser conhecidos na sua totalidade e,
assim, o direito desenvolve metodologia das hipóteses. Desse modo,
após a passagem pelas teorias dos centros de argumentação, da teoria
do provável e do normal, alcançou-se a teoria da relevância da prova –
formulada em termos negativos, com base na lógica das exclusões.12
De acordo com o art. 369 do Código de Processo Civil de 2015,
a prova deve incidir sobre “a verdade dos fatos em que se funda o
pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. A parte
final do art. 369 do CPC/2015 consagra o princípio do contraditório
participativo, no qual se reconhece a posição jurídica de vantagem das
partes de influenciarem o juiz na formação do seu convencimento sobre
a matéria a ser decidida.13

5.2 Prova: conceito, princípios e espécies


Em termos bem-resumidos, pode-se conceituar a prova como o
conjunto dos meios empregados por alguém para demonstrar, em conformidade
com a ordem jurídica, a existência de um fato, ato ou negócio jurídico.14 No
conceito, são destacados alguns aspectos: a) a ideia de instrumento, e não
de fim em si mesmo; b) o efeito de demonstrar algo; c) a legitimidade
e licitude da prova; d) a demonstração de um fato jurídico em sentido
amplo – fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico.
Com efeito, a prova é do fato, e não do direito15 e, em razão da
prova do fato, são extraídos os efeitos jurídicos dele decorrentes (ex
facto oritur jus). Tal circunstância permitiu a construção do regime

litigantes deverão se utilizar, bem como o tempo processual oportuno, para a demonstração
da existência e da validade do negócio jurídico” (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova
dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 430).
12
LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 561.
13
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Novo Código
de Processo Civil Anotado e Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 213.
14
Os conceitos apresentados pela doutrina sempre destacam as ideias de instrumento e de
demonstração. Assim, para Renan Lotufo, “a prova é o meio de que o interessado usa para
demonstrar legalmente a existência fática de um negócio jurídico” (LOTUFO, Renan. Código
Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 562). Silvio Rodrigues, servindo-se do
auxílio de Clovis Bevilaqua, leciona que “prova é o conjunto dos meios empregados para
demonstrar legalmente a existência de um ato jurídico” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil.
v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 266).
15
Uma ressalva a tal afirmativa pode ser encontrada no art. 376 do Código de Processo Civil de
2015, que prevê a necessidade de demonstração do teor e da vigência do direito municipal,
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
109

de prova, consoante o qual da mihi factum, dabo tibi jus ou jura novit
curia, representando apenas a necessidade da comprovação dos fatos
narrados para o fim de o magistrado aplicar o direito que, por óbvio,
lhe é conhecido. Há, nos casos de litígios judiciais, necessidade de se
verificar a quem cabe o ônus da prova (se do autor, do réu, do terceiro
interveniente), ou seja, o ônus de produzir a prova para o fim de permitir
o convencimento do juiz a respeito das consequências jurídicas dele
decorrentes e que são favoráveis a tal pessoa. A distribuição do ônus
da prova segue o critério do interesse relativo à afirmação do fato: cabe
ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito, ao passo que
incumbe ao réu o ônus de provar os fatos modificativos, extintivos ou
impeditivos do direito do autor. O Código de Processo Civil de 2015
inova ao estabelecer a possibilidade de o juiz atribuir o ônus da prova
de modo diverso do previsto no caput do art. 373 do referido texto nos
casos previstos em lei (como no exemplo das relações de consumo – Lei
nº 8.078/90) ou diante das peculiaridades da causa quanto à impossi-
bilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou, ainda,
à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, desde que
haja decisão judicial fundamentada, facultando à parte a oportunidade
de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído (CPC/2015, art. 373,
§1º). É também admitido o negócio jurídico processual a respeito do
ônus da prova, ocasião em que as partes podem convencionar de forma
distinta da prevista em lei a distribuição do ônus da prova, seja no
período anterior ao processo ou no curso deste. É possível que o negócio
jurídico processual abranja a admissibilidade de provas atípicas, tal
como a realização de perícia consensual.16
A doutrina costuma apontar como características da prova no
direito brasileiro a admissibilidade, a pertinência e a concludência.
Prova admissível é aquela não proibida ou vetada no ordenamento
jurídico brasileiro, especialmente em se considerando o disposto no art.
5º, inciso LVI, da Constituição Federal – que não admite, no processo,
as provas obtidas por meios ilícitos. Prova pertinente é aquela que
efetivamente se relaciona à situação de fato enfocada, sendo idônea
a demonstrar tal fato. Finalmente, prova concludente é a que permite
a demonstração do fato jurídico, sem necessidade de qualquer outro

estadual, estrangeiro ou consuetudinário à parte que o alegar, desde que haja determinação
judicial.
16
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 649.
110
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

recurso ou meio, ou seja, apta a esclarecer pontos controvertidos ou a


confirmar alegações feitas.17
Alguns princípios específicos em matéria de prova são também
enunciados. Inicialmente, o princípio da unidade da prova, que significa
que a evidência do fato é uma só, produzindo efeitos quanto aos
interessados; daí ser impróprio afirmar que a testemunha é do autor
ou do réu, na demanda judicial, ou, ainda, do credor ou do devedor, na
hipótese de ainda não existir litígio. Logo, demonstrado determinado
fato, não pode excluir de suas consequências qualquer dos interessados,
em cuja esfera jurídica percuta.18 Outro princípio importante se refere
ao ônus da prova: aquele que sustenta a ocorrência de determinado
fato, ato ou negócio jurídico tem o ônus de comprová-lo, como regra,
já que há a ideia da tentativa de mudança de uma situação jurídica e
fática anteriormente existente. Há, ainda, o princípio da liberdade ou
da livre admissibilidade da prova, que significa a possibilidade de
demonstração do fato (em sentido amplo) por qualquer meio, sendo
que, apenas a título excepcional e com previsão expressa na lei, poderá
ser exigida a comprovação do fato por certo e determinado meio de
prova. Tal princípio está intimamente associado à distinção entre prova
geral e prova especial. Na primeira, aplica-se inteiramente o princípio da
liberdade da prova, ao passo que, na segunda, existe a obrigatoriedade
de observância de determinado meio de prova, como no exemplo da
comprovação do pacto antenupcial por escritura pública (art. 1.640,
parágrafo único, do Código Civil de 2002).
Assim, costuma-se classificar a prova dos negócios jurídicos
(excluídos, pois, os fatos jurídicos stricto sensu e os atos jurídicos) em:
a) prova de natureza geral (ou livre), que é consectário do princípio
da liberdade da prova, observada a consonância da prova com o
ordenamento jurídico em vigor, daí a verificação da característica da
admissibilidade; b) prova de natureza especial, que, ao contrário, não é
livre, devendo ser observado o comando legal acerca do meio de prova
específico sem o qual não há como considerar provado determinado
negócio jurídico e, consequentemente, não haverá produção de efeitos
jurídicos.
O art. 212 do Código Civil de 2002 encampa o princípio da
liberdade de forma – e, portanto, a regra da prova de natureza geral –,

17
Por todos: DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 430.
18
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 591.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
111

ressalvando, no entanto, os negócios que, por força de lei, demandam a


observância de forma especial. Os fatos e os atos jurídicos lícitos (art. 185
do Código Civil), via de consequência, podem ser provados por qualquer
meio em direito admitido.19 No campo do direito processual civil, o art.
369 do Código de Processo confirma tal conclusão ao estabelecer que
“as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como
os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código,
para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e
influir eficazmente na convicção do juiz”. De modo excepcional, portanto,
há determinados casos em que se imporá prova de natureza especial
que, em regra, se confundem com os negócios jurídicos solenes devido
à exigência de determinado documento ou conjunto de solenidades
para sua concretização, como nos pactos antenupciais, na renúncia
à herança, na cessão do direito à sucessão aberta, entre outros. O art.
212 do Código de 2002 expressamente ressalva a hipótese do negócio
a que a lei impõe forma especial do princípio da liberdade da prova.
No art. 406 do Código de Processo Civil de 2015, da mesma forma, é
reafirmada tal exceção ao enunciar que, nos casos de exigência legal
do instrumento público para o negócio jurídico, nenhuma outra prova
poderá suprir-lhe a falta, por mais especial que seja.
A esse respeito, observa-se também o disposto no art. 220 do
Código Civil em vigor, que prevê que a anuência ou autorização de
outrem à realização do negócio jurídico, indispensável para sua validade,
deverá ser provada do mesmo modo deste, de preferência no mesmo
instrumento negocial.
Há, ainda, a questão da prova pré-constituída, ou seja, aquela
produzida previamente com o objetivo de produzir efeito no futuro,
como a lavratura dos assentos no registro civil (nascimento, casamento,
separação, divórcio, morte), o título de confissão de dívida firmado pelo
devedor e entregue ao credor, ou mesmo o caso de vistoria ad perpetuam
rei memoriam. E, no passado, houve período histórico em que se adotou
o princípio da prova legal – e não o da liberdade da prova –, em que a
lei indicava os meios de prova sobre determinado fato e, assim, o fato

Precisa é a observação de Fredie Didier Jr., que aponta alguns atos jurídicos em sentido
19

estrito que devem também seguir forma especial, como no exemplo do reconhecimento
voluntário de paternidade, não havendo óbice na limitação contida no art. 212 do Código
Civil de 2002 aos negócios jurídicos (DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos
do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p.36).
112
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

não era reputado provado quando se produzisse outro meio de prova,


diverso daquele previsto na lei.20
O art. 212 do Código Civil enuncia os seguintes meios de prova:
a confissão, o documento, a testemunha, a presunção e a perícia. No
art. 136 do Código Civil de 1916, havia, ainda, a menção aos atos proces-
sados em juízo, aos exames, vistorias e arbitramento, além de referência
aos documentos públicos e particulares. A alteração do dispositivo
que correspondia ao art. 136 (revogado) não excluiu tais provas do
ordenamento jurídico brasileiro por duas principais razões: a) o rol
do art. 212 do Código de 2002 não é exaustivo e, consequentemente,
podem ser considerados outros meios de prova, desde que sejam
provas obtidas por meios lícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal);
b) houve aprimoramento da redação no art. 212, levando em conta que
atos processados em juízo, documentos públicos e particulares são espécies
de documento, e exames, vistorias e arbitramento são espécies de perícia.
Desse modo, a ideia foi apenas de aprimorar a redação do dispositivo
que trata dos meios de prova, mantendo, ainda, a noção do caráter
exemplificativo do rol.21

5.3 Modalidades de prova


Como bem registra Carlos Santos de Oliveira, o art. 212 do
texto codificado civil de 2002 elenca as modalidades de prova para a
demonstração dos fatos, atos e negócios jurídicos, estes últimos desde
que não solenes, de forma livre, enquanto que, para os negócios jurídicos
solenes, a prova é “o próprio instrumento que a lei eleva à categoria de
substância do próprio negócio”.22

20
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 593.
21
Oportuno, no entanto, o registro de José Carlos Barbosa Moreira acerca do art. 212 do
Código Civil de 2002 e sua convivência pacífica com o art. 332 do Código de Processo Civil
de 1973 – atual art. 369 do CPC/2015 – (que acolheu a tese da não taxatividade das provas
especificamente reguladas na lei), sendo importante observar que a atipicidade não se refere
às fontes de que o juiz se serve para extrair elementos na formação de seu convencimento, e
sim ao modo pelo qual as informações ministradas pelas fontes (pessoas, coisas, fenômenos
naturais ou artificiais) chegam ao órgão do Poder Judiciário (MOREIRA, José Carlos Barbosa.
O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo
(Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p.
104).
22
OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo
(Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 434.
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113

Feitas tais ponderações e, em consonância com a ideia da existência


de zona fronteiriça entre o direito civil e o direito processual civil em
matéria de normatização da prova, serão analisados os principais
aspectos relacionados às modalidades de prova no contexto do Código
Civil de 2002, sem a pretensão de esgotar aspectos que se relacionem
mais diretamente ao direito processual civil.

5.3.1 Confissão
A confissão está prevista no inciso I do art. 212 do Código Civil,
além de ser regulada nos arts. 213 e 214 do mesmo texto legal. No Código
de Processo Civil de 2015, a confissão é tratada nos arts. 389 a 395. A
confissão é a admissão da veracidade de determinado fato, contrário
ao interesse do confitente e favorável à outra pessoa, podendo ter sido
alegado (ou não) por esta. Enquanto o Código Civil não apresenta os
contornos da confissão, o Código de Processo Civil, no art. 389, estipula
que “há confissão, judicial ou extrajudicial, quando a parte admite a
verdade de fato contrário ao seu interesse e favorável ao do adversário”.
Caio Mário considera a confissão como a mais convincente das provas,
já que representa a negação da contrariedade aos fatos relacionados aos
efeitos jurídicos em desfavor do confitente.23 A confissão é ato jurídico
em sentido estrito, ou seja, ato decorrente da vontade humana de efeitos
necessários, não sendo possível sua efetivação sob condição ou termo.24
A confissão pode ser: a) judicial, ou seja, quando se concretiza
no curso do processo judicial em tramitação; b) extrajudicial, ou seja,
quando operada fora do processo judicial, como na hipótese de confissão
por termo lavrado nos autos do procedimento administrativo.25 Lembra
a doutrina que a confissão judicial normalmente terá força de prova
plena do fato admitido, e o mesmo poderá se verificar na confissão
extrajudicial quando reduzida a escrito, sendo, neste caso, passível

23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 603.
24
DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004,
p. 44.
25
José Carlos Barbosa Moreira anota, com razão, que a confissão não poderia figurar ao
lado da testemunha e do documento no art. 212 do Código Civil de 2002, porquanto, seja
judicial ou extrajudicial, ela se corporifica num depoimento pessoal, nos testemunhos ou
num documento. “A fonte da prova, a rigor, não é a confissão, e sim a parte que confessa
(quando presta seu depoimento), ou o documento em que ela admite o fato contrário ao seu
interesse e favorável ao adversário.” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o
título “Da Prova” do Novo Código Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.).
Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 214).
114
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

de oposição pela parte contrária, pois consiste numa declaração de


vontade; não seguindo a forma escrita, a confissão se sujeita à verificação
(reconstituição) através de prova testemunhal.26
Nos termos do art. 213 do Código Civil de 2002 – na mesma linha
do art. 392 do Código de Processo Civil de 2015 –, a confissão deve ser
feita, de maneira válida, por pessoa que tenha o poder de dispor do
direito a que se referem os fatos confessados. Assim, além de ter plena
capacidade, o confitente não pode sofrer qualquer restrição acerca da
disponibilidade do direito a que se refere o fato confessado. É possível
a confissão feita por representante desde que haja poderes específicos (e
especiais) para tanto (art. 390, parágrafo único, do Código de Processo
Civil), não tendo eficácia quanto à parte que ultrapassar os limites em
que o representante poderia vincular o representado (art. 213, parágrafo
único, do Código Civil).
Outra classificação envolvendo a confissão é aquela que distingue
a confissão expressa da confissão presumida, mais especialmente no
campo processual civil. A confissão expressa é a inequívoca, em que
houve assunção ou reconhecimento da verdade do fato contrário ao
seu interesse pelo confitente por expressa deliberação sua representada
verbalmente ou por escrito. A confissão presumida (ou ficta) se verifica
quando a própria lei presume a admissão da verdade dos fatos contrários
à determinada pessoa em razão de comportamento omissivo da parte
litigante (arts. 341, 344 e 385, §1º, todos do Código de Processo Civil de
2015); por não ter impugnado especificamente determinado fato narrado
na inicial, em razão da revelia; ou por não comparecer em audiência
para prestar depoimento pessoal requerido pela parte contrária – ou,
comparecendo, se recusar a depor. De se ressalvar que não se aplica, por
óbvio, a noção de confissão presumida ou ficta aos fatos relacionados
aos direitos indisponíveis.
Como regra, a confissão judicial é indivisível, ou seja, não pode
ser fracionada ou dividida para o fim de a outra pessoa somente a
invocar como prova na parte que a beneficia, mas não na outra parte
que lhe é desfavorável (art. 395 do Código de Processo Civil). Poderá, no
entanto, ser cindida quando o confitente aduzir fatos novos, passíveis de
constituir fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção
na ação já instaurada. Ademais, a confissão é irrevogável (irretratável)
devido à sua natureza não negocial, não podendo o confitente se retratar

OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo
26

(Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 434.
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da admissão da verdade do fato contrário ao seu interesse (art. 214 do


Código Civil de 2002). Contudo, nos casos de vício de consentimento
representado por erro de fato ou coação, será possível a invalidação da
confissão com fundamento na sua anulabilidade.27

5.3.2 Prova documental


O documento é previsto no inciso II do art. 212 do Código de
2002, além de ser objeto de regulamentação nos arts. 215 a 226 do mesmo
texto civil. No Código de Processo Civil, a prova documental vem
tratada nos arts. 405 a 441, com a inclusão de seção sobre os documentos
eletrônicos. A verificação da extensão do tratamento legislativo acerca
do documento – sem dúvida, trata-se do meio de prova que mereceu
maior atenção do legislador – já é revelador da importância da prova
documental no direito civil brasileiro, sendo reputada a mais nobre
das provas.28
Conceitua-se o documento como o escrito que permite a perpe-
tuação e formalização do ato ou negócio jurídico mediante a enunciação

27
Caio Mário da Silva Pereira sustenta que, mesmo com outro vício de consentimento como
o dolo, será anulável a confissão, tendo a lei (art. 214) dito menos do que queria (PEREIRA,
Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
604). Renan Lotufo assinala que, com o disposto no art. 214 do Código Civil de 2002, há
um aparente conflito entre tal norma e aquela constante do art. 352 do Código de Processo
Civil de 1973 – atual art. 393 do CPC/2015 –, que se refere à revogação da confissão em caso
de erro, dolo ou coação, mas de fato não ocorre tal conflito eis que o termo “revogação”
foi empregado de modo inadequado na legislação processual, eis que se trata de anulação
da confissão (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
569). No mesmo sentido: MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito
Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código
Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 104. Fredie Didier Jr. entende que,
de maneira correta, o dolo foi excluído das hipóteses de anulabilidade da confissão, daí
porque houve revogação parcial do art. 352 do Código de Processo Civil de 1973. É válido
transcrever trecho da posição do referido autor: “De fato, o dolo somente é relevante para
o direito privado enquanto tenha sido capaz de levar outrem a erro. A circunstância de o
confitente declarar o fato por dolo de outrem somente tem relevância jurídica, para fins de
invalidação, se o dolo tiver sido apto a gerar erro. Se houve dolo, mas não houve erro, não
se pode invalidar a confissão. Eis a razão pela qual se preferiu a expressão ‘erro de fato’,
como síntese da hipótese de invalidade: o que importa é a falsa percepção da realidade; se
o erro foi espontâneo ou provocado, pouco importa” (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais
no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49). Na realidade, observa-se que
as posições doutrinárias acima enunciadas coincidem a respeito das conclusões a respeito
da anulabilidade da confissão, havendo divergência apenas de fundamentação. O CPC de
2015 não incluiu o dolo nos casos de invalidação da confissão (art. 393, caput), empregando
melhor redação e com preceito harmônico com o Código Civil de 2002 (BUENO, Cassio
Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 283).
28
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 593.
116
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

da declaração de vontade. Desse modo, a reconstituição da vontade


declarada não fica vinculada à falibilidade de fatores precários à sua
demonstração.29 Nesse sentido, o art. 219 do Código Civil de 2002 prevê
que “as declarações constantes de documentos assinados presumem-se
verdadeiras em relação aos signatários”, o que, sem dúvida, representa
maior força probante do que outros meios de prova acerca do conteúdo
material de tais declarações volitivas.30 Silvio Rodrigues observa que o
termo documento não se confunde com o vocábulo instrumento ‒ sendo
aquele, o gênero; e este, a espécie.31 O instrumento, nesta visão, seria
o elemento criador do negócio, quer por ser de sua substância, quer
por representar prova pré-constituída de sua existência. O documento,
por sua vez, é mais abrangente, já que, além de também abranger o
instrumento, abarca outros papéis úteis para comprovar a existência do
negócio jurídico. Ressalve-se, no entanto, que a maior parte da doutrina
não faz tal distinção.
A principal classificação dos documentos é aquela que os distingue
em: a) documentos públicos, ou seja, aqueles que emanam de autoridade
ou agente público, nos limites de suas atribuições legais, e que também
constam de livros, notas, papéis e registros oficiais; b) documentos parti-
culares, isto é, os escritos feitos pelos próprios interessados, totalmente
manuscritos ou datilografados, digitados ou impressos, e assinados por
eles. Acerca dos documentos públicos, há a mesma natureza e força
pública nas certidões e traslados que o oficial público – tabelião ou oficial
de registro – extrai dos instrumentos e documentos lançados em suas
notas (art. 217 do Código Civil), bem como as certidões fornecidas pela
autoridade competente dos atos e fatos próprios da repartição pública
no âmbito do Poder Executivo, Poder Legislativo e do Poder Judiciário.
No que tange aos atos praticados no processo judicial, os arts. 216 e 218,
ambos do Código Civil de 2002, estabelecem que as certidões textuais
de qualquer peça judicial, do livro de registro de atas das audiências,
de qualquer outro livro sob a responsabilidade cartorária, e os traslados
de documentos originais apresentados em juízo como prova de algum
ato farão a mesma prova que os originais, desde que extraídos pelo

29
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 594.
30
Renan Lotufo, com razão, anota que as enunciações que não se relacionem diretamente
com as disposições principais do negócio, sendo irrelevantes, meramente incidentes, ou
explicações desnecessárias, não podem receber a mesma força probante das disposições
principais, já que não se referem à parte essencial do ato negocial (LOTUFO, Renan. Código
Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 577).
31
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 274.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
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117

escrivão ou sob sua vigilância (e por ele subscritos), sendo considerados


também documentos públicos. Há, ainda, a previsão dos traslados de
autos, concertados por outro escrivão, considerados com a mesma força
probante dos originais.32
No segmento dos documentos públicos, deve ser destacada a
escritura pública, lavrada em notas de tabelião, dotada de fé pública,
fazendo “prova plena”33 da declaração nela contida (art. 215, caput, do
Código Civil de 2002). Em regra, a escritura pública deve conter os requi-
sitos previstos no §1º do referido art. 215: data e local de sua realização;
reconhecimento da identidade e capacidade das partes e dos demais
participantes do ato (representantes, intervenientes ou testemunhas);
nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das
partes e demais participantes, e, em se tratando de pessoa casada, o
regime de bens do casamento, o nome do cônjuge e filiação; manifes-
tação clara da vontade das partes e dos demais participantes; menção à
observância das exigências legais e fiscais referentes à legitimidade do
ato praticado;34 declaração de ter sido a escritura lida na presença das
partes e dos demais participantes, ou de que todos a leram; assinatura
das partes e dos demais participantes, além do tabelião ou seu substituto
legal, para fins de encerramento do ato. É obrigatório o emprego da
língua nacional na redação da escritura pública (§3º do art. 215), sendo
que, na eventualidade de algum participante não poder ou não souber

32
Caio Mário da Silva Pereira critica a manutenção de tal possibilidade no Código de 2002:
“O conserto ou a conferência, realizada por outro escrivão, é praxe tabelioa que o Código
de 1916 consagrava, e que o Código de 2002 deveria ter eliminado. A autenticidade do
documento decorre da fé pública do serventuário que o subscreve. Não aumenta com a
assinatura de um colega, e não desmerece pela ausência dela” (PEREIRA, Caio Mário da
Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 594).
33
Há fundada crítica a tal expressão devido ao princípio contemporâneo da livre valoração
da prova, remontando a expressão “prova plena” ao período em que se adotava o sistema
da prova legal: “Falta manifestamente qualquer rigor científico” (MOREIRA, José Carlos
Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI,
Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm,
2006, p. 105). Alexandre Freitas Câmara também critica a expressão, lembrando, nos termos
do art. 131 do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 371 do CPC/2015 –, que o direito
brasileiro adota o sistema da persuasão racional (CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações
entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo
(Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p.
121).
34
Importante registrar a manifestação de José Carlos Moreira Alves sobre tal requisito: “Não
se trata de formalidade inútil, mas de exigência no sentido de que o tabelião ateste que
cumpriu com o dever, imposto por leis especiais, de fiscalização que elas lhe impõem, e
cuja inobservância acarreta a ilegitimidade do ato, respondendo o tabelião inclusive pelo
dano causado à parte prejudicada” (ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de
Código Civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 195).
118
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

escrever, outra pessoa capaz assinará por ele, a rogo. Caso haja alguma
parte que não saiba a língua nacional e o tabelião não compreenda o
idioma estrangeiro em que ela se expressa, deverá participar do ato o
tradutor público como intérprete ou, na impossibilidade de sua presença,
outra pessoa que tenha idoneidade e conhecimento daquela língua
alienígena suficiente para compreender a manifestação do estrangeiro
(§4º do referido art. 215). Há a obrigatoriedade da presença de duas
testemunhas para o fim de atestar a identidade de uma das partes
quando o tabelião não a conhecer, nem houver possibilidade de sua
identificação por documento de identidade idôneo.35
No que tange ao documento particular, deve o instrumento ser
assinado pelo declarante ou seu representante (legal ou voluntário),
sendo que, neste caso, deve ser declarado que firma o documento na
representação dos interesses do representado.36 Não é válida a aposição
de carimbo como firma ou assinatura, salvo nos casos expressamente
ressalvados em lei especial.37 O art. 221 do Código Civil de 2002 –
diferentemente do que acontecia com o art. 135 do Código Civil de
1916 – não exigiu a assinatura de duas testemunhas no documento
particular, em claro tratamento diferenciado no que tange ao instru-
mento público. Tal mudança se revela importante e atual, em perfeita
consonância com a maior agilidade e celeridade das relações jurídicas
modernas, sendo certo que, na prática, havia apenas a aposição de
assinatura de duas testemunhas – meramente instrumentárias –, sem
que soubessem do conteúdo do documento particular no sistema do
Código Civil de 1916. Os documentos particulares devem ser exibidos
no original, como regra, sendo que, em havendo apresentação de cópia,
o questionamento a respeito de sua autenticidade exige a exibição do
original. O documento particular, em não havendo exigência legal ou
convencional quanto à forma pública, faz prova das obrigações conven-
cionais de qualquer valor, produzindo efeitos entre as partes. Contudo,

35
Silvio Rodrigues sustenta que, com a disciplina legal do art. 215 do Código Civil de 2002,
não há mais a exigência da presença de duas testemunhas para a validade da escritura
pública, medida que vem a confirmar a maior relevância da substância do negócio do que
a sua forma, salvo na hipótese em que o tabelião não conhecer qualquer dos declarantes
(RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 269).
36
São exemplos de documento particular a carta, o telegrama, o bilhete, o memorando ou
qualquer outro escrito que se refira a determinado fato, assinado pela pessoa contra quem
poderá ser produzida a prova (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos.
In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 435).
37
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
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119

para ter eficácia em relação a terceiros, o documento particular deverá


ser levado a registro no Cartório de Títulos e Documentos, como ocorre
nos casos de contrato de locação de imóvel residencial para o fim de ser
reconhecido o direito de preferência do locatário na eventual venda do
bem a terceiro. O art. 223 do Código Civil de 2002 prevê que a cópia de
documento, devidamente conferida pelo tabelião, terá o mesmo valor
probante da declaração de vontade constante do original, mas, havendo
impugnação, deverá ser exibido o original, salvo no caso de título de
crédito em que a lei ou as circunstâncias exigem a exibição do original
do título para o exercício do direito (parágrafo único do art. 223).
Os documentos públicos são, logicamente, oponíveis às pessoas
que participaram da sua formação e, em regra, também a terceiros,
ressalvados os casos em que a lei exige o registro. Há fé pública na
autenticidade do ato ou negócio jurídico realizado devido à sua reali-
zação perante e pelo oficial público ou seu substituto legal. A doutrina
costuma diferenciar a falsidade material (autenticidade do ato notarial
sob o aspecto extrínseco) da falsidade ideológica (falta de correlação entre
o conteúdo da declaração e a verdade a respeito) para o fim de somente
considerar eventual responsabilidade do tabelião no primeiro caso.38
Quanto aos documentos elaborados no exterior, redigidos em
língua estrangeira, exige o art. 224 do Código Civil de 2002 que sejam
traduzidos para a língua portuguesa por tradutor oficial, onde houver,
ou por tradutor juramentado em juízo, de modo a produzir efeitos no
Brasil (art. 192 do Código de Processo Civil de 2015).39 Relativamente ao
telegrama, o Código Civil de 2002 prevê, no art. 222, que tal documento
faz prova mediante a conferência com o original; ocorre que o dispo-
sitivo é omisso a respeito do telegrama fonado, do “fac-símile” (fax)40

38
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 596.
39
Há de ser ressalvada a regra constante do Decreto nº 2.067/96, que aprovou, no âmbito do
MERCOSUL, o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional (Protocolo de Las Leñas),
consoante o qual os documentos produzidos em espanhol, sendo públicos, têm o mesmo
valor que os nacionais, independentemente de tradução. Corretamente, Fredie Didier Jr.
defende a flexibilização da regra do art. 224 do Código Civil de 2002 para os documentos
públicos produzidos nos países signatários do MERCOSUL (DIDIER JR., Fredie. Regras
processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 55). O CPC/2015, no art.
192, parágrafo único, admite, além da versão portuguesa do documento redigido em língua
estrangeira firmada por tradutor juramentado, poder ser a versão em português tramitada
pela via diplomática ou pela autoridade central, nos termos dos tratados e convenções
internacionais aplicáveis.
40
A respeito do “fax”, Renan Lotufo lembra que a Lei nº 9.800/99 permite a transmissão de
dados para a realização de atos processuais, de modo a salvaguardar os prazos, tendo a
parte que se utiliza de tal expediente o dever de apresentar os originais em juízo no prazo
120
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

e à comunicação eletrônica via e-mail, o que evidencia a defasagem da


letra do Código de 2002 em relação aos avanços tecnológicos nessa
matéria.41 O Código de Processo Civil de 2015 prevê que a forma
impressa de mensagem eletrônica tem aptidão para fazer prova dos
fatos representados (art. 422, caput e §3º). É prevista a viabilidade de
as fotografias digitais e aquelas extraídas da rede mundial de compu-
tadores fazerem prova das imagens nelas reproduzidas, sendo que, se
houver impugnação, poder ser apresentada a respectiva autenticação
eletrônica ou ser realizada perícia a esse respeito (art. 422, §1º). Tais
previsões se revelam em sintonia com a modernização dos meios de
documentação e, por isso, o CPC/2015 não poderia ignorá-los.42
O art. 225 do Código Civil inova o sistema de prova no direito
civil ao tratar da regra referente às reproduções fotográficas, cinemato-
gráficas, registros fonográficos, bem como quaisquer outras reproduções
mecânicas ou eletrônicas de fatos ou coisas.43 Há bastante semelhança
com a regra contida no art. 422 do Código de Processo Civil de 2015,
que também estabelece que tais reproduções fazem prova dos fatos
ou das coisas representadas se a pessoa contra quem foi produzida
tal prova não impugnar a autenticidade ou, se impugnar, a perícia
realizada concluir pela sua exatidão. O Código de 2002, além dos
outros meios de reprodução, se refere expressamente às reproduções
eletrônicas, em sintonia com os avanços tecnológicos na área dos meios
de comunicação e documentação mais céleres e ágeis. Caio Mário da
Silva Pereira adverte, no entanto, a necessidade de cautela na valoração
de tais reproduções e processos técnicos como meio de prova, salien-
tando que é possível que a gravação do som, ao mesmo tempo em que
permite a reprodução das conversas, pode também ensejar deturpações,
supressão de trechos e enxerto de declarações que, eventualmente,
podem não deixar qualquer vestígio.44 Há de ser feita a ressalva, nesta
matéria, acerca das provas obtidas por meio ilícito, como no exemplo
do “grampeamento” clandestino das conversações telefônicas sem a

de cinco dias, nos termos do art. 2º da referida lei (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado.
v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 581).
41
OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo
(Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 449.
42
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Novo Código
de Processo Civil Anotado e Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 237.
43
Correta é a crítica de Fredie Didier Jr. à expressão “prova plena” empregada no art. 225 do
Código Civil de 2002, já que representa resquício do sistema da prova legal (DIDIER JR.,
Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 39).
44
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 609.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
121

devida e necessária autorização judicial, que, nos termos do art. 5º,


inciso LVI, da Constituição Federal, é reputado prova obtida por meio
ilícito e, portanto, inadmissível ou imprestável para o fim de comprovar
determinado fato, ato ou negócio jurídico.
O Código de Processo Civil de 2015 trata, em seção específica,
dos documentos eletrônicos, estabelecendo a necessidade de sua
conversão à forma impressa e de verificação da autenticidade na forma
da lei (art. 439). Como o documento é considerado qualquer meio para
preservar a representação de um fato, uma imagem, um som, ideias,
pensamentos através do decurso do tempo,45 atualmente é possível
que ele seja baseado em suporte digital de modo a ser armazenado,
autenticado e poder transmitir dados. O CPC/2015 remete a admissão
dos documentos eletrônicos produzidos e conservados à legislação
específica (art. 441), que, atualmente, consiste na Lei nº 11.419/2006
(sobre o processo eletrônico) e na Lei nº 12.682/2012 (sobre documento
eletrônico). O art. 3º da Lei nº 12.682/2012 prevê que o documento
eletrônico deve ser “assinado” com uso de certificado digital expedido
no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).
O juiz deverá valorar o documento eletrônico não convertido como
prova,46 assegurando às partes o acesso ao seu teor (CPC/2015, art. 440).
Nos termos do art. 226 do Código Civil de 2002, os livros e fichas
dos empresários individuais e das sociedades empresárias fazem prova
contra as pessoas a que pertencem, desde que sejam escriturados sem
vício extrínseco ou intrínseco, e venham a ser confirmados por outros
subsídios,47 além de não haver exigência legal quanto à observância
da escritura pública ou documento particular revestido de requisitos
especiais. Tais livros e fichas também são considerados provas a favor
do empresário ou da sociedade, desde que cumpridas as exigências
legais. A matéria também tem previsão normativa nos arts. 417 a 421
do Código de Processo Civil de 2015. O art. 226 do Código Civil de 2002
resolve a polêmica anteriormente instaurada acerca do valor probante
da prova resultante em lançamento feito nos denominados livros
“comerciais” na vigência do Código Civil de 1916, sendo possível, com

45
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 719.
46
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Novo Código de Processo Civil: principais modificações.
Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 182.
47
Renan Lotufo ressalta que o tratamento da matéria referente à escrituração dos dados e
informações pelos empresários e sociedades empresárias, e seu valor probante se relacionam
à diretriz da unificação do Direito das Obrigações no bojo do Código Civil de 2002 (LOTUFO,
Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 585).
122
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

o novo sistema, substituir os livros previamente encadernados pelas


fichas soltas, desde que atendidos critérios de segurança no lançamento
e escrituração dos dados e informações. A prova relacionada aos livros
e fichas dos empresários ou das sociedades empresárias serve como
demonstração das operações, dos fatos, dos atos e negócios realizados
no âmbito da atividade empresarial, não suprindo, no entanto, a prova
especial quando esta for exigida. Nos termos do Código de Processo
Civil de 2015, a exibição dos livros e documentos do empresário ou da
sociedade somente será parcial, determinada de ofício pelo magistrado
ou a requerimento de algum interessado no processo (art. 421 do Código
de Processo), sendo que a exibição integral ocorrerá na eventualidade
de ocorrer a liquidação da sociedade, sucessão por morte de sócio ou
em outros casos previstos na lei.

5.3.3 Prova testemunhal


O art. 212, inciso III, do Código Civil de 2002 arrola a testemunha
como outro meio de prova, sendo que os arts. 227 a 229 do mesmo texto
regulam alguns aspectos importantes a respeito da prova testemunhal.
A matéria vem regulada, no âmbito do Código de Processo Civil de
2015, nos arts. 442 a 463.
Registre-se, a respeito do tema, que somente fatos perceptíveis
pelos sentidos (visão, audição, principalmente) podem ser objeto da
prova testemunhal, já que somente aquilo que é visto e ouvido pode
ser exposto por uma pessoa que tenha presenciado o fato jurídico (em
sentido amplo). Testemunha é a pessoa humana ‒ excluída, pois, a
pessoa jurídica ‒ que tenha condições de esclarecer a verdade sobre o
ato ou o fato que se pretende demonstrar em razão de ter assistido ou,
de algum modo, obtido informações de relevo para o esclarecimento
do fato, ato ou negócio jurídico.48
Nos termos do art. 227, caput, do Código Civil de 2002, a prova
exclusivamente testemunhal somente é admissível nos negócios jurídicos
cujo valor não seja superior a dez vezes o maior salário mínimo vigente no
Brasil ao tempo em que foram realizados. O parágrafo único do referido
dispositivo prevê a possibilidade da prova testemunhal ser subsidiária
ou complementar da prova documental, independentemente do valor

48
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Capacidade para testar, para testemunhar e para
adquirir por testamento. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coords.). Direito das Sucessões e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del
Rey, 2005, p. 224.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
123

do negócio. No Código Civil de 1916, havia referência a valor certo


(dez mil cruzeiros), que, com o passar do tempo e as transformações
da economia e do padrão monetário, se tornou sem qualquer expressão
econômica. Em 1973, com o advento do Código de Processo Civil à
época aprovado, o art. 401 estabeleceu a regra do décuplo do maior
salário mínimo vigente no país, o que foi repetido no art. 227 do Código
Civil de 2002. Tal disposição não foi repetida no Código de Processo
Civil de 2015. Registre-se que, relativamente aos fatos jurídicos stricto
sensu e também aos atos jurídicos lícitos (art. 185 do Código), a prova
pode ser exclusivamente testemunhal, como nos exemplos das ações
possessórias, de reparação de danos decorrentes de responsabilidade
civil extracontratual, ações de separação ou divórcio, entre outras.49
No passado, havia convicção de que uma só testemunha não teria
condições de demonstrar a ocorrência de determinado fato (testis unus,
testis nullus), sendo que tal orientação foi, paulatinamente, cedendo
ao entendimento de que, mais importante do que a quantidade, é a
qualidade da prova testemunhal. Desse modo, pode um só testemunho
ser suficiente para se alcançar a certeza do fato testemunhado, com a
devida valoração feita pelo destinatário da prova – normalmente, o
magistrado no litígio judicial – acerca da suficiência daquele único
testemunho. O Código de Processo Civil de 2015 estabelece o número
máximo de testemunhas que podem ser chamadas e ouvidas em juízo
(art. 356, §6º), sem fixar número mínimo de testemunhas, sendo atual-
mente uniforme o entendimento de que o sistema da persuasão racional
do juiz permite considerar suficiente uma única testemunha para fins
de comprovação de determinado fato.
De acordo com orientação doutrinária a respeito, as testemunhas
se dividem em: a) testemunhas instrumentárias (ou testemunhas certifica-
doras), a saber, aquelas que assistem e subscrevem o documento relativo
ao ato para o qual foram chamadas; b) testemunhas judiciárias, ou seja,
aquelas que declaram o que sabem e conhecem sobre determinados
fatos controvertidos durante a fase de instrução em litígio judicial. A
testemunha instrumentária, na sucessão testamentária, é a pessoa que
presenciou a facção do testamento (ou ao menos sua apresentação à
pessoa com atribuições de recebê-lo para depois cerrá-lo), normalmente

49
Há outra hipótese de prova exclusivamente testemunhal que tem previsão no art. 445 do
Código de Processo Civil de 2015 – “quando o credor não pode ou não podia, moral ou
materialmente, obter a prova escrita da obrigação, em casos como de parentesco, de depósito
necessário ou de hospedagem em hotel ou em razão de práticas comerciais do local onde
contraída a obrigação” (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 59).
124
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

subscrevendo-o para assegurar que efetivamente não houve qualquer


vício, podendo ser chamada para confirmar os fatos e atos presenciados,
após a morte do testador, em juízo.
A temática da prova testemunhal inclui a incapacidade e a falta
de legitimação para testar. Assim, enquanto a incapacidade se carac-
teriza pela inaptidão da pessoa a praticar determinado ato ou negócio
jurídico – inclusive ser testemunha –, a falta de legitimação (ou ilegiti-
midade) decorre da proibição imposta pela lei de determinada pessoa
intervir em uma determinada relação jurídica devido à posição jurídica
(ou fática) peculiar.
Diante da diferença entre incapacidade e falta de legitimação,
podem ser considerados os seguintes casos de incapacidade para teste-
munhar, baseados em motivos de inaptidão resultantes de aspectos
físicos ou psíquicos (art. 228, incisos I, II e III, do Código Civil de 2002):
a) os menores de dezesseis anos, independentemente de sexo, levando
em conta sua imaturidade; b) as pessoas que, por enfermidade ou retar-
damento mental, não tiverem discernimento para a prática dos atos da
vida civil devido à ausência de condições psíquicas para testemunhar;
c) os cegos e os surdos, apenas quando a ciência do fato que se quer
provar dependa dos sentidos que lhes faltam. Os analfabetos foram
apontados por Itabaiana de Oliveira como incapazes de testemunhar,
no campo da sucessão testamentária, devido à assinatura da testemunha
na cédula testamentária ser considerada requisito essencial nas várias
modalidades de testamento.50
Na condição de pessoas desprovidas de legitimação para teste-
munhar, nos termos do art. 228, incisos IV e V, do Código Civil de 2002,
devem ser considerados: a) o interessado no litígio que pode vir a ser
instaurado,51 bem como o amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer
das partes do negócio ou ato jurídico; b) o cônjuge, os ascendentes, os
descendentes e os colaterais, até o terceiro grau de qualquer das partes,
seja por vínculo de parentesco – não restrito à ideia de parentesco natural

50
OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de direito das sucessões. 5. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1987, p. 202.
51
Renan Lotufo tece interessante comentário a respeito do inciso IV, parte inicial, do art. 228,
do Código Civil de 2002 (proibição de testemunhar ao interessado no litígio), considerando-o
incompatível com a regra prevista no art. 405, §3º, inciso IV, do Código de Processo Civil de
1973, que o considerava suspeito de testemunhar. Nas suas palavras, “há que se entender
que a limitação pela lei civil é revocatória da disposição do CPC” (LOTUFO, Renan. Código
Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 589) e, desse modo, não há necessidade de
haver contradita pela parte contrária na audiência, eis que o juiz, de ofício, não permitirá
a oitiva de tal pessoa. O CPC de 2015 considera, igualmente, suspeito para testemunhar
aquele que tiver interesse no litígio (art. 447, §3º, II).
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
125

(em decorrência da consanguinidade), seja por vínculo de afinidade. Tais


restrições para as pessoas indicadas serem testemunhas se fundamentam
no interesse (direto ou indireto) que poderia conduzir à falta de isenção
a respeito do que testemunhou, havendo risco de desvio da realidade no
campo probatório.52 Desse modo e levando em conta a própria inserção
do companheirismo no rol das famílias constitucionalmente protegidas
(art. 226, §3º, da Constituição Federal), deve também o companheiro de
qualquer das partes ser considerado pessoa desprovida de legitimação
para testemunhar. O CPC de 2015 acolhe tal orientação ao expressa-
mente incluir o companheiro de alguma das partes como impedido de
testemunhar (art. 447, §2º, I). O parágrafo único do art. 228 do Código
Civil inova ao prever a excepcional admissibilidade do testemunho das
pessoas indicadas no caput do mesmo dispositivo a respeito da prova
dos fatos que somente elas conheçam. Tal exceção já era contemplada
no art. 405, §4º, do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 447,
§4º, do CPC/2015 –, ocasião em que os depoimentos serão prestados
independentemente de compromisso, devendo o juiz proceder à devida
valoração para considerá-los no julgamento da causa.
É fundamental asseverar que tanto a incapacidade quanto a
ilegitimidade para testemunhar devem ser aferidas no momento da
produção da prova testemunhal. Outro aspecto a ser considerado é a
possibilidade da presença de testemunhas extranumerárias – ou seja,
aquelas que ultrapassam o limite mínimo das testemunhas instrumen-
tárias, com reforço da segurança, aumento da cautela e aperfeiçoamento
da prova. Caso haja alguma testemunha incapaz ou ilegítima, tal
motivo não contaminará necessariamente o negócio realizado – como
no exemplo do testamento – quando houver número suficiente mínimo
de testemunhas capazes e dotadas de legitimação.
O art. 229 do Código Civil de 2002 elenca algumas situações que
autorizam a manifestação de recusa da pessoa a servir como testemunha.
Assim, aqueles que, por estado ou profissão, devem guardar segredo de
determinado fato que souberam em razão de seu ofício ou ministério
(como o advogado, o médico, o padre, parteira, o auditor fiscal, entre
outros) podem se recusar a ser testemunha em juízo, sendo que alguns
se encontram sujeitos ao sigilo profissional de acordo com o regulamento

52
Fredie Didier Jr. registra que o art. 228 do Código Civil de 2002 não repetiu a previsão do
condenado por crime de falso testemunho e de pessoa que, por seus costumes, não for digno
de fé como suspeitos de testemunhar, diversamente do que consta do art. 405, §3º, incisos
I e II, do Código de Processo Civil, o que mereceu elogios do autor (DIDIER JR., Fredie.
Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 65-67).
126
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

de suas profissões ou ofícios. Além deles, também não são obrigadas


a depor sobre fato as pessoas que não possam responder às questões
sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível ou
amigo íntimo;53 no inciso II do art. 229, também deve ser considerada
a desonra de seu companheiro para não obrigá-lo a ser testemunha.54
Finalmente, também estão excluídas da obrigação de depor as pessoas
que porventura ficariam expostas (bem como as pessoas a elas ligadas
no inciso II) a perigo de vida, de demanda judicial ou de dano patri-
monial imediato (inciso III do art. 229).

5.3.4 Prova pericial


A perícia vem arrolada no inciso V do art. 212 do Código Civil
de 2002, sendo regulada, em aspectos específicos, nos arts. 231 e 232 do
mesmo texto legal. O Código de Processo Civil de 2015 regula a prova
pericial nos arts. 464 a 480.
A perícia é meio de prova relacionado aos fatos que dependem
de conhecimento técnico ou mais específico, não sendo próprio da
percepção comum das pessoas em geral. No Código Civil de 1916, não
se utilizou o termo “perícia” no art. 136, e sim as expressões exames,
vistorias e arbitramento (incisos VI e VII), que, na realidade, são espécies
de perícia. De acordo com o art. 464, caput, do Código de Processo Civil
de 2015, a prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação, sendo
caso de indeferimento da perícia nos casos em que a prova do fato não
depender de conhecimento especial de técnico, for desnecessária devido
à presença de outros meios de prova (falta de pertinência) ou quando a
verificação do fato ou coisa for impraticável (impossibilidade material
da realização da prova pericial).
O exame consiste na verificação ou apreciação de determinada
coisa ou pessoa por pessoas especializadas (peritas) para permitir
subministrar esclarecimentos fundamentais ao destinatário da prova,
que, assim, poderá valorar. Daí o exame de sangue, o exame médico,

53
Carlos Santos de Oliveira anota, com propriedade, que os incisos II e III do art. 229 do
Código de 2002 objetivam dar proteção à pessoa humana, em consonância com a orientação
constitucional de preservação da dignidade da pessoa chamada a testemunhar como valor
maior (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 439).
No mesmo sentido, revela-se a doutrina de Renan Lotufo (LOTUFO, Renan. Código Civil
comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 590).
54
Caio Mário da Silva Pereira assim justifica tal exceção à obrigação de testemunhar: “Não é
razoável que, chamado como testemunha, o indivíduo incrimine-os, ou os exponha à execração no
ambiente social em que vivem” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I.
21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 601).
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
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127

o exame grafotécnico. A vistoria, por sua vez, consiste em inspeção


ocular com o objetivo de apurar o estado de fato de determinada coisa,
como, por exemplo, ter a mesma sofrido avaria (ou não), ou seu estado
de conservação.55 O arbitramento é a perícia realizada em determinada
coisa visando estimar o respectivo valor em dinheiro ou para o fim de
ser fixado o correspondente pecuniário de determinada obrigação a ser
cumprida. No processo judicial, há várias regras detalhadas acerca do
modo de produção da prova pericial, com a previsão da quesitação,
da possibilidade de atuação de assistentes técnicos, da elaboração e
apresentação do laudo pericial, entre outros aspectos.
No campo da perícia, há novidades nas regras contidas nos arts.
231 e 232, ambos do Código Civil de 2002, que se referem, implicitamente,
ao direito da personalidade referente à integridade físico-corporal. No
curso da demanda, pode ocorrer de o juiz entender fundamental para o
deslinde da controvérsia judicial a realização de um exame médico. Nos
termos do art. 231 do Código Civil, é possível que a pessoa se recuse a
submeter-se a exame médico, mas não poderá tal pessoa se aproveitar de
sua oposição à realização do exame: o magistrado formará seu conven-
cimento de acordo com o conjunto de provas ou de circunstâncias do
caso concreto. Todavia, não se revela razoável e possível que a pessoa,
sob o manto protetor do direito à integridade física, pratique abuso
(art. 187 do Código Civil de 2002), sendo mister observar “a dosagem
do comportamento do litigante” que se opõe ao exame.56 De qualquer
modo, o art. 232 do Código Civil de 2002, encampando orientação do
Supremo Tribunal Federal, prevê a possibilidade de a recusa à submissão
à perícia médica suprir a prova que se pretendia obter com o próprio
exame, como nos casos de recusa do investigado, nas ações de investi-
gação de paternidade, à realização do exame do DNA.
O direito à identidade pessoal,57 com importantes reflexos no
pleno desenvolvimento da pessoa humana no contexto de uma vida
sadia, deve prevalecer, como regra, ao direito à integridade física do

55
Carlos Santos de Oliveira observa que a vistoria é modalidade de perícia não técnica, com
o objetivo precípuo de descrever e relatar objetos e locais (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da
prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código
Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 443). Silvio de Salvo Venosa exemplifica tal hipótese
com a vistoria ad perpetuam rei memoriam, no campo da produção antecipada de provas, de
modo a fixar fatos que podem, muito provavelmente, se modificar ou desaparecer com o
tempo (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 567).
56
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 607.
57
A análise da questão foi feita de maneira mais detalhada no trabalho intitulado A Nova
Filiação: o Biodireito e as Relações Parentais (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 901-917).
128
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
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investigado. No julgamento do Habeas Corpus nº 71.373-4-RS, o Supremo


Tribunal Federal considerou, por maioria, a impossibilidade de o réu
ser submetido, coercitivamente, ao exame pericial conhecido como
exame de determinação da paternidade pelo método do DNA (ácido
desoxirribonucleico) em ação de investigação de paternidade, sendo que
houve manifestações de alguns ministros acerca do respeito do direito
ao conhecimento da origem biológica.58 Importante notar que, naquele
julgamento, houve a abordagem a respeito do “direito elementar que
tem a pessoa de conhecer sua origem genética”, na expressão adotada
pelo relator do recurso, o Ministro Francisco Resek.59 Na ponderação
entre dois direitos fundamentais – direito à identidade e direito à
integridade físico-corporal60 –, o relator considerou que “o sacrifício
imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado
com o interesse do investigante, bem assim como a certeza que a prova
pericial pode proporcionar à decisão do magistrado”61 e, em seguida,
também afastou a suposta prevalência do direito à intimidade sobre
o direito à identidade pessoal. É imperioso observar que o voto acima
transcrito não prevaleceu na solução da questão concreta levada ao
conhecimento do Poder Judiciário, mas representa, sem sombra de
dúvida, parâmetro seguro para o trabalho do jurista na ponderação

58
O julgamento referido foi bastante comentado pela doutrina, valendo lembrar, entre
outros, os seguintes trabalhos: MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do
exame do DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade. In: BARRETO,
Vicente (Org.). A Nova Família: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.
169-194; MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa
ao exame de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo
de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.
217-233; LÔBO, Paulo Luiz Netto. O Exame de DNA e o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Revista Brasileira de Direito de Família, v. 1, n. 1. Porto Alegre: Síntese, abr./jun. 1999,
p. 67-73; MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o Teste de Paternidade através do Exame
do DNA em Direito Brasileiro – Direito Pós-Moderno à Descoberta da Origem? In: LEITE,
Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 27-60.
59
A íntegra do v. acórdão foi publicada na edição do seguinte trabalho: COUTO, Sérgio
(Coord.). Nova Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica,
1998, p. 110-117.
60
Sugerindo que seja considerado o princípio da proporcionalidade dos valores, José Renato
Silva Martins e Margareth Vetis Zaganelli comentam que o valor maior a ser tutelado é
o da personalidade e/ou identidade, devendo o intérprete procurar conciliar as normas
constitucionais num sistema buscando a máxima efetividade (MARTINS, José Renato Silva;
ZAGANELLI, Margareth Vetis. Recusa à realização do Exame de DNA na investigação de
paternidade: direito à intimidade ou direito à identidade? In: LEITE, Eduardo de Oliveira
(Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 160).
61
Trecho do voto do Ministro-Relator Francisco Resek, publicado em: COUTO, Sérgio (Coord.)
Nova Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica, 1998, p.
113.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
129

dos interesses e bens jurídicos para o fim de verificar qual dos vários
direitos ou interesses em conflito deve prevalecer. Neste mesmo julga-
mento, o Ministro Carlos Velloso, ao proferir seu voto, expressamente se
referiu ao maior interesse moral que deve ser reconhecido na civilização
humana – “o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico” –
e, em seguida, reconheceu que deve ser considerada no contexto do
direito à dignidade a realização do exame de DNA para que a criança
possa conhecer, com certeza, se a pessoa que se recusa a se submeter
à perícia é ou não o seu genitor biológico.62
Tal direito à identidade se especializa no direito à historicidade
pessoal, buscando compreender, por exemplo, suas diferenças físicas
ou psíquicas em relação aos seus pais (jurídicos). A matéria que foi
apreciada no julgamento referido dizia respeito à paternidade que era
investigada, sendo que o réu se recusou a se submeter ao exame de
DNA sob o argumento de que o direito à liberdade não permite que
ele pudesse ser constrangido a fazer algo que ele não tinha vontade
(diante da reserva absoluta de lei para criar deveres e obrigações),
além do direito à integridade física. Como bem observou Maria Celina
Bodin de Moraes, não se pode reconhecer a tutela integral da criança,
em particular de sua dignidade, sem o conhecimento da identidade –
verdadeira , e não presumida – dos seus pais: “Núcleo fundamental da
origem de direitos a se agregarem no patrimônio do filho, sejam eles
direitos da personalidade ou direitos de natureza patrimonial, a pater-
nidade e a maternidade representam as únicas respostas possíveis ao
questionamento humano acerca de quem somos e de onde viemos”.63 O
conhecimento da verdade a respeito da sua própria origem biológica64 –
e, consequentemente, da sua história – é direito fundamental que
integra o conjunto dos direitos da personalidade. Deve-se reconhecer
abusivo, no caso concreto, o ato praticado pelo investigado no sentido
de se recusar a se submeter ao exame pericial. Na linha do pensamento
doutrinário que deve ser aplicado a respeito, é necessário reconhecer

62
Trecho do voto do Ministro Carlos Velloso, publicado em: COUTO, Sérgio (Coord.) Nova
Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica, 1998, p. 115.
63
MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa ao exame
de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira
(Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 226-227.
64
Nas palavras de Claudia Lima Marques, “a bagagem genética é hoje parte da identidade
de uma pessoa” (MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o Teste de Paternidade através
do Exame do DNA em Direito Brasileiro – Direito Pós-Moderno à Descoberta da Origem?
In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, p. 45).
130
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

que o princípio que veda o abuso do direito deve ser materialmente


considerado para limitar internamente o próprio direito que, desse
modo, somente poderá ser exercido pelo titular se e enquanto não for
nocivo ao interesse social. O abuso do direito, portanto, serve como
limite interno ao próprio direito e normalmente se verifica quando o
exercício do direito, de maneira antissocial, concretiza séria e fundada
ameaça à fruição dos direitos de outras pessoas, acarretando objetiva
desproporção – sob o prisma axiológico – entre a utilidade do exercício
do direito e as consequências que as demais pessoas precisam suportar.65
Diante da nova ordem civil-constitucional instaurada em 1988,
especialmente relacionada à prevalência da pessoa humana sobre
qualquer outro valor, é fundamental atribuir efetividade aos direitos da
personalidade no seu conteúdo mais básico e essencial: a historicidade
da pessoa para que ela possa gozar de uma vida sadia e desenvolver
plenamente todas as suas potencialidades, priorizando o ser em detri-
mento do ter. Assim, deve ser interpretado o art. 232 do Código Civil
de 2002, no sentido de se considerar a paternidade provada quando
efetivamente houver recusa à perícia médica determinada pelo juiz,
devido à circunstância do comportamento do investigado, associado a
outros elementos de prova, permitir a avaliação do conjunto de provas
em desfavor do réu da ação investigatória. Contudo, na eventualidade de
não existir outro elemento de prova, será fundamental realizar a devida
ponderação no caso concreto e, desse modo, será possível reconhecer
o abuso do direito para o fim de ser possível a condução coercitiva do
réu para se submeter à perícia.66
Além da perícia, há a inspeção judicial, tratada exclusivamente
no Código de Processo Civil (arts. 481 a 484), que consiste na verificação
feita pelo próprio magistrado, pessoalmente, no exame de uma pessoa
ou de uma coisa, para o fim de colher elementos importantes para a
prova dos fatos tratados na causa. Uma vez encerrada a diligência,

65
MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa ao exame
de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira
(Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 231-232.
66
De acordo com a posição de Gisele Santos Fernandes Góes, o art. 232 do Código Civil de
2002 cuida de uma presunção simples (judicial ou hominis), havendo avaliação casuística
da sua incidência, daí ser equivocada a orientação contida na Súmula nº 301 do Superior
Tribunal de Justiça – in verbis: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-
se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade” –, já que a redação do
enunciado jurisprudencial induz à conclusão de que se trataria de presunção legal ou relativa
(GÓES, Gisele Santos Fernandes. O art. 232 do CC e a Súmula 301 do STJ – presunção legal
ou judicial ou ficção legal? In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do
novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 236).
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
131

deverá ser lavrado um auto circunstanciado, com menção a tudo aquilo


que se mostrar útil para o julgamento do litígio (art. 484 do Código de
Processo Civil de 2015). José Carlos Barbosa Moreira observa que, na
inspeção judicial, o próprio juiz dirige de propósito sua visão ou audição
a determinado alvo, comparecendo pessoalmente ao local para captar
a informação relevante.67

5.4 Presunção
O Código Civil de 2002, no inciso IV do art. 212, elenca, entre
os meios de prova, a presunção, repetindo a mesma regra contida
no inciso V do art. 136 do Código Civil de 1916.68 Como já advertia a
doutrina no período de vigência do Código Civil de 1916, a presunção
não é prova, e sim um processo lógico através do qual se revela possível
a descoberta do fato ocorrido. Nas palavras de Caio Mário da Silva
Pereira, “presunção é a ilação que se tira de um fato certo, para prova
de um fato desconhecido”.69 No fundamento da presunção se localiza
um fato, provado e certo, ou seja, na comprovação de um “fato base”.
Observa-se que três elementos são essenciais para haver verdadeira
presunção: a) um fato provado (chamado, por alguns, fato conhecido);
b) um fato não provado (também chamado de fato desconhecido); c)
uma relação entre eles, admitida pelo juiz ou reconhecida na lei, em
função da qual da ocorrência do primeiro se possa também inferir a
do segundo.70
A doutrina costuma classificar a presunção em: a) presunção
comum (praesumptio hominis), ou seja, aquela que se funda no que ordina-
riamente acontece (advém de circunstâncias da vida), e não decorre
da lei; b) presunção legal, isto é, aquela que decorre da lei de modo a

67
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código
Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no
Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 215. O autor critica o Código Civil de 2002
por não ter incluído a inspeção judicial no art. 212.
68
Nas lições de Fredie Didier Jr., o art. 212, IV, do Código Civil de 2002 se refere à prova
indiciária, já que é a partir do indício que se elabora a presunção judicial (DIDIER JR.,
Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 38).
69
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 605.
70
MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em
1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei n. 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 187.
O mesmo autor apresenta o seguinte esquema da estrutura fundamental das presunções:
“fato provado + presunção (tomado o termo como atividade intelectiva) → fato presumido”
(idem, ibidem).
132
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

servir para considerar um fato ou situação tratada no ordenamento.


Nos termos do art. 230 do Código Civil de 2002, pode ser considerada
a presunção comum nos casos em que a prova testemunhal exclusiva é
aceita.71 No âmbito das presunções legais, há outra divisão: i) presunção
absoluta (praesumptio iuris et de iure) – aquela que não admite prova
em contrário, como no exemplo da coisa soberanamente julgada; ii)
presunção relativa (praesumptio iuris tantum) – a presunção que pode
ser ilidida ou contrariada por prova em contrário. Na presunção
absoluta, há um interesse de ordem pública em que a dedução feita
pela lei seja verdadeira, impedindo qualquer tentativa contrária. Na
presunção relativa, a ilação que a lei considera de um fato certo deve
ser mantida enquanto não for contrariada por prova em contrário, como
na comoriência (art. 8º do Código Civil de 2002). Com efeito, no caso
da presunção relativa, ocorre a inversão do ônus da prova, como bem
observa Silvio Rodrigues, já que, em havendo a presunção legal relativa
a respeito de determinado fato, a outra parte deverá demonstrar não
ser verdadeira tal circunstância.72
Na distinção entre as presunções absolutas e relativas, há funções
próprias de cada uma de tais presunções legais. De acordo com a
doutrina mais contemporânea, apenas as presunções relativas guardam
pertinência com a prova, atuando no campo do ônus probatório: “As
presunções relativas constituem fenômeno puramente processual: é no
processo (e, mais precisamente no momento de julgar) que elas exercem
sua verdadeira função”.73 Não há qualquer relevância das presunções
relativas, em termos de eficácia, no campo do direito material, e sim
na seara do direito processual, servindo como regras de julgamento.
As presunções absolutas, ao revés, desempenham função no plano
do direito material. Ao invés da norma legal estabelecer, diretamente,
que certo efeito jurídico se produz independentemente da presença
de certo fato, prefere mencionar que tal fato se presume. Em outras
palavras: a presunção absoluta tem sua eficácia no plano do direito
material, e o esquema legal poderia tranquilamente evidenciar que
o fato presumido se mostra irrelevante no que tange à produção de

71
Há fundada e procedente crítica de Fredie Didier Jr., que considera a regra do art. 230 do
Código Civil de 2002 como um parâmetro, mas não deve ser considerado absoluto, nem
inexorável (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 73).
72
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 279.
73
MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em
1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei n. 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 188.
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVIL
133

determinado efeito jurídico.74 O exemplo do art. 550 do Código Civil


de 1916 – referente à usucapião extraordinária de imóveis no sistema
anterior –, em que o texto empregava o verbo “presumir” ao se referir
à boa-fé e ao título do possuidor (hipótese de presunção absoluta), é
emblemático, bastando observar que o art. 1.238 do Código Civil de
2002 (correspondente no novo sistema ao art. 550 do Código de 1916),
ao alterar a redação anterior, estabeleceu que haverá a aquisição da
propriedade imóvel, nas condições previstas, “independentemente
de título e boa fé”.75
Não há que se confundir presunção com indício. O indício é
o fato provado que, por si só, não é suficiente para caracterizar, por
exemplo, a lesão como defeito do negócio jurídico. O indício é o meio
de se alcançar uma presunção, ou seja, “o ponto de partida de onde,
por inferências, se pode estabelecer uma presunção”.76

5.5 Nota conclusiva


Ainda que o texto do Código Civil de 2002 seja merecedor de
várias críticas relacionadas ao tratamento dado a respeito da prova, o
certo é que algumas das alterações realizadas tiveram claro objetivo
de observar as diretrizes da Comissão Elaboradora e Revisora do texto
projetado. Desse modo, os princípios norteadores e as regras gerais e
específicas acerca da matéria objeto deste estudo – constantes do Código
Civil de 2002 – foram mais bem apresentados no curso do Título V, do
Livro III, da Parte Geral, reservado à prova. Houve a encampação de
algumas orientações doutrinárias e orientações jurisprudenciais verifi-
cadas no período de vigência do Código de 1916. De qualquer maneira,
ainda deve ser empreendido intenso e árduo esforço interpretativo por
parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras.
Há, no âmbito da temática relacionada à prova, importante
capítulo referente ao fenômeno da constitucionalização do direito civil
e do processo civil, conforme se pôde demonstrar no âmbito da recusa

74
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil.
In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito
Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 210: “(...) quando a lei consagra uma presunção
absoluta (...) o que na verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado
efeito jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema fático”.
75
MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em
1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei nº 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 190.
76
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
437.
134
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

à perícia médica, por exemplo, prestigiando-se os valores e princípios


constitucionais que congregam a unidade, a harmonia e a coerência
no sistema jurídico. Efetivamente, as normas jurídicas editadas com o
Código Civil de 2002, apesar de toda a preocupação do legislador na
cautela e zelo na sua elaboração, ainda se ressentem de certa ideologia
associada à época das codificações oitocentistas, impondo que haja
constante avaliação axiológica e teleológica das normas em consonância
com seus efeitos na sociedade. O Código de Processo Civil de 2015,
nesse particular, se revela mais consentâneo com a tábua de valores
inserida na Constituição Federal de 1988, quando determina, logo no
início (art. 1º), que o processo civil será ordenado, disciplinado e inter-
pretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidas na
Constituição Federal de 1988. É indubitável todo o esforço legislativo,
neste início do século XXI, de encampar os princípios mais importantes,
como o da eticidade, o da operabilidade e da socialidade na Parte Geral
do Código Civil de 2002, além de se associar aos princípios constitu-
cionais, como se verifica na Parte Especial do Código de Processo Civil
de 2015 no tratamento sobre as provas no processo. Contudo, não se
mostra possível, nos dias contemporâneos, retroceder ao período das
codificações, com o hermetismo e a rigidez das normas jurídicas, sem
qualquer análise e consideração axiológicas. Somente com o espírito e
o pensamento voltados para a concretização dos valores e princípios
fundamentais do ordenamento jurídico, localizados na Constituição
Federal de 1988, será possível reconstruir o direito civil brasileiro. É
fundamental reafirmar a perda do sentido individualista, materialista
e patrimonialista do direito privado, que, em razão das transformações
ocorridas, se caracteriza pela solidariedade e pela eticidade, desempe-
nhando autêntica função social.77

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77

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Sistema de prova do fato jurídico à


luz dos Códigos Civil e de Processo Civil. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto;
SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo
Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p. 105-136. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 6

TUTELA CONTRA O ILÍCITO:


EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS

Felipe Peixoto Braga Netto


Karine Cysne Frota Adjafre

6.1 Introdução: contextualização e precisões conceituais


O referencial clássico associa à ilicitude civil a culpa, o dano e o
dever de indenizar. São elementos sem os quais – pensa-se – é impossível
a caracterização de um ilícito civil. Nesse contexto, “ato ilícito é, assim, a
ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente,
um preceito jurídico do direito privado, causando-se dano a outrem”.1
São fartas, nos livros de doutrina, as menções a tais conceitos quando
se analisam os ilícitos civis. Aliás, não é sem significação o uso, quase
sempre no singular, do termo ilícito civil, e não ilícitos civis, expressão
essa que denota um gênero com várias espécies. Entendemos que nem
a culpa, nem o dano, nem o dever de indenizar caracterizam a ilicitude
civil. Estão eventualmente, não necessariamente, ligados à ilicitude civil.
Convém formular uma análise crítica da concepção que vê os ilícitos
como atos voluntários, adjetivados pela culpa, pelo dano e pela eficácia
ressarcitória. O direito material, acorde com os valores constitucionais,
está redimensionando seus conceitos e categorias, em ordem a suprimir
o obsoleto e o anacrônico, prestigiando os valores que projetam a pessoa
humana em suas múltiplas dimensões.

1
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 415.
138
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Uma compreensão teórica mais profunda, em nosso juízo, não


pode prescindir da tentativa de conferir à categoria uma maior adequação
valorativa e uma maior adequação empírica. O que isso significa? Primeiro,
por adequação valorativa entendemos uma efetiva compreensão do
direito civil – ilícitos inclusive – à luz dos valores, princípios e normas
constitucionais. Essa é uma perspectiva, por assim dizer, substantiva,
que remodela significativamente o direito civil, com notáveis mudanças
hermenêuticas. Segundo, por adequação empírica entendemos o
trabalho, analítico e amplo, de pensar as espécies possíveis de ilícitos
civis. Apenas para exemplificar, é possível identificar no sistema jurídico
ilícitos civis cujas eficácias não se resumem ao dever de indenizar. Então,
tem inegável interesse teórico conhecer essas modalidades possíveis de
eficácia, inclusive para melhor operacionalizar a aplicação do direito.
O ilícito civil, se perspectivado em termos contemporâneos,
ostenta uma permeabilidade aos valores que é inédita aos olhos clássicos.
Possui uma mobilidade que lhe permite transitar pelo sistema jurídico
incorporando referências axiológicas e as traduzindo em sanções, em
ordem a assegurar, de forma aberta e plural, a preponderância dos
valores fundamentais no sistema do direito civil. É possível perceber – no
contexto brevemente descrito – que o ilícito civil é um tema fascinante –
repleto, porém, de ambiguidades. Algumas precisões conceituais,
porém, se impõem desde já. A doutrina nacional, em sua ampla maioria,
identifica ilícito civil com responsabilidade civil. Imagina, portanto,
que ilícitos civis são aqueles previstos no Código Civil (Código Civil,
arts. 186 e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar
(Código Civil, art. 927). Tal visão, segundo cremos, é parcial e não dá
conta da realidade do mundo jurídico. Na verdade, bem vistas as coisas,
os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e multiforme, cujos
contornos não aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina
clássica, ainda hoje repetida nas novas edições.
Outro aspecto relevante – que independe do que dissemos no
parágrafo anterior – é que está havendo, atualmente, uma redescoberta
das funções da responsabilidade civil – um tema que estranhamente
ficou ausente do debate por muito tempo. A função preventiva da
responsabilidade civil tem sido objeto de valiosos estudos neste século.
Convém frisar que:

A função preventiva da responsabilidade civil tanto pode ser instru-


mentalizada pela sanção punitiva, como pela sanção reparatória, ex-
clusivamente nos casos em que esta se aparta do mecanismo da tutela
ressarcitória e se apropria da tutela restituitória, como regra de incentivo
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
139

à reação aos ilícitos, superando o plano intersubjetivo da neutralização


de danos para valorizar a função de desestímulo de comportamentos
nocivos a toda a sociedade.2

Ainda outra observação relevante, que (também) independe


das anteriores: não se deve confundir excludentes de ilicitude (estado
de necessidade, legítima defesa e exercício regular de direito) com
as excludentes de responsabilidade civil (caso fortuito, força maior e
culpa exclusiva da vítima). As excludentes de ilicitude retiram a contra-
riedade ao direito da conduta, mas não isentam, de modo absoluto, o
responsável pela reparação dos danos – no estado de necessidade o ato,
apesar de lícito, é indenizável (Código Civil, art. 188, II; art. 929). Na
legítima defesa com erro na execução (aberratio ictus), embora lícita, gera
o dever de indenizar os terceiros atingidos (Código Civil, art. 188, I; art.
930, parágrafo único). Já as excludentes de responsabilidade civil, por
romperem o nexo de causalidade, afastam o próprio dever de reparar
os danos (durante a viagem de ônibus, o assalto à mão armada, que
causa danos aos passageiros, é, segundo sólida jurisprudência – em
relação a qual guardamos reserva – caso fortuito externo, e não gera
responsabilidade da empresa de transporte).
Existem, portanto, fatos jurídicos lícitos que provocam dever de
indenizar3 – estado de necessidade, por exemplo, na linha de disposição
legal expressa (Código Civil, art. 188, II; art. 929). Existem, também,
conforme veremos adiante, fatos jurídicos ilícitos cuja eficácia não é o dever
de indenizar. As sanções civis, desse modo, não se resumem no dever de
indenizar ou ressarcir, podendo também compreender: a) a autorização
para a prática de certos atos pelo ofendido, b) a perda de certas situações
jurídicas (direitos, pretensões e ações) ou c) a neutralização da eficácia
jurídica (não produção dos efeitos jurídicos como sanção).
O CPC/2015, de modo correto, encarou o ilícito civil de modo
amplo, prevendo no artigo 497:
Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz,
se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará
providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado práti-
co equivalente. Parágrafo único: Para a concessão da tutela específica

2
ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 2017, p. 109.
3
Expressiva a ponderação de Orizombo Nonato: “Contudo é possível, diante deles, afirmar,
como o egrégio Clóvis, que a ideia de dano ressarcível é, em nosso direito, mais ampla do
que a de ato ilícito” (Apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. São Paulo:
Saraiva, 1974, p. 69).
140
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito,


ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano
ou da existência de culpa ou dolo.

Ou seja, o conceito de ilícito civil não está vinculado ao dano ou à


culpa. Também não é possível vincular, de forma absoluta, a ilicitude à
reparação, seja porque existe, no atual sistema civil-material, uma tutela
preventiva, seja porque existe, na própria tutela repressiva clássica,
ilícitos cujos efeitos não se enquadram na reparação. Sejamos mais claros.
A ilicitude civil, tradicionalmente, é perspectivada como uma condição
por cujo intermédio tem lugar uma sanção, representada, com exclusi-
vidade, segundo se pensa, pela reparação dos danos causados. Estaria
correta tal perspectiva se proposta com exclusividade? A resposta só pode
ser negativa. A ilicitude civil, se vista com olhos de hoje, apresenta-se
multiforme, aberta e plural, sendo inadequadas as tentativas, muito
comuns no passado, de restringi-la a aspectos estáticos e estanques.

6.2 Ilícito civil é sinônimo de responsabilidade civil?


A doutrina nacional, em sua amplíssima maioria, identifica
ilícito civil com responsabilidade civil. Imagina, portanto, que ilícitos
civis são aqueles previstos no Código Civil (arts. 186 e 187), cujo efeito
é, sempre e apenas, o dever de indenizar (art. 927). Acreditamos que
tal visão é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico. Na
verdade, bem vistas as coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero,
variado e multiforme, cujos contornos não aceitam a tradução dogmática
oferecida pela doutrina clássica, ainda hoje repetida nas novas edições.
Não cabe, portanto, como dissemos, confundir a categoria (ilícitos civis)
com um de seus efeitos (responsabilidade civil).

6.2.1 Uma categoria com eficácia única?


Uma das mais conhecidas associações, que se faz a respeito dos
ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre
que se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o
dever de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma
ideia que nasceu muito provavelmente da definição de ilícito do Código
Civil de 1916, que relacionou, de forma peremptória, ilícito ao dever
de indenizar como eficácia supostamente única: “Art. 159. Aquele que,
por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar
direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Tal
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
141

disposição, que praticamente exaure o Título Dos Atos Ilícitos do Código


Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse as possibilidades de
ilícitos no campo do direito civil.
Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua.
O ilustre jurista, quando das discussões para a feitura do nosso Código
Civil de 1916, pugnava contra a inclusão legislativa dos ilícitos num título
único, ao argumento que lhes faltava “a necessária amplitude conceitual”.4
Tal posição – que restou vencida quando da redação do Código – reflete
bem a mentalidade dos juristas a respeito da matéria, que não foi sequer
encarada como um problema que merecesse cogitação teórica.
O Código Civil de 2002 se referiu aos atos ilícitos por intermédio
de duas cláusulas gerais. O art. 186 prescreve: “Aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.5
O art. 187 tem a seguinte redação: “Também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”. Consagrou-se, com esse dispositivo, a teoria do abuso de
direito, velha conhecida da jurisprudência, cuja caracterização como
ilícito, todavia, era polêmica.6 O Código Civil, mais adiante, no art.
927, estatui: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo” (lembrando que o suporte fático e o
preceito – determinação de efeitos – de determinada norma podem não
estar no mesmo dispositivo legal, como é o caso). É fácil perceber que o
Código Civil de 2002, se interpretado literalmente, conduz à conclusão
que a única eficácia possível, derivada dos ilícitos civil, é a obrigação
de indenizar os danos causados.

6.2.2 Críticas à concepção da eficácia única


Dissemos que o ilícito civil, tradicionalmente, apareceu identi-
ficado com a responsabilidade civil. São comuns, destarte, ponderações

4
BEVILÁQUA, Clóvis. O Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
5
Trata-se, por certo, da mais conhecida cláusula geral do direito privado brasileiro, a cláusula
geral da responsabilidade civil subjetiva (CC/1916, art. 159; CC/2002, art. 186).
6
O art. 187 está informado pela ideia de relatividade dos direitos. Isto é, os direitos flexibilizam-
se mutuamente; não há direito isolado, mas dentro do corpo social, onde outros direitos
convivem. Pontes de Miranda observou que “repugna à consciência moderna a ilimitabilidade
no exercício do direito; já não nos servem mais as fórmulas absolutas do direito romano”
(PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966,
p. 62).
142
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

no sentido da absoluta indissociabilidade entre os atos ilícitos civis e


a responsabilidade civil.7 Nesta concepção – que chamaremos, por
brevidade, de clássica – o ilícito é pensado e tratado, sempre e sem
exceção, como um apêndice da responsabilidade civil.
Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero –
os ilícitos civis – e uma espécie – o ato ilícito indenizante. Sempre que
se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo que fosse carac-
terística sua se atribuía, em descabida generalização, à classe, ao
gênero ilícito. E como essa espécie é geradora de responsabilidade
civil, nasceu outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade
civil. No entanto, a experiência jurídica atual desmente essa identi-
ficação entre ilícito civil e responsabilidade civil. Não é possível,
teoricamente, manter a tradicional associação.8 Primeiro, responsa-
bilidade civil é efeito, não é causa. Seu isolamento temático induz
a certas análises equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou
ilícito, que origina o dever de indenizar. Depois, uma abordagem
restrita à responsabilidade civil necessariamente oblitera as eficácias
não indenizantes dos ilícitos civis.
Seria, mutatis mutandis, o mesmo que confundir uma fábrica,
produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas
produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente,
o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos efeitos de uma de
suas espécies. A responsabilidade civil – cabe sempre repetir – é efeito
de certos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis
que não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes
termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica que obscureça
as diferenças significativas existentes.
No direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem
traduzido pelo nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não ostentavam
apenas a eficácia indenizante. Essa foi uma falha de perspectiva advinda
do apego ao literalismo do Código. Existiam então – como ainda hoje
existem – ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou ilícitos

7
Mesmo entre os maiores juristas, como, por exemplo: GOMES, Orlando. Introdução ao Direito
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 417.
8
Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: “Há mais atos
ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar”
(Tratado de Direito Privado. t. II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 201). Aliás, ainda antes, em
1928, no seu livro Fontes e Evolução do Direito Civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos
não se esgotavam no dever de indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos
adotada pelo Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem
delitos (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928,
p. 176).
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
143

que implicam na perda de direitos em relação a quem os praticou. Por


outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato lícito. O dever
de indenizar resultante de ato praticado em estado de necessidade não
importa em resultante de ato ilícito, porquanto a contrariedade ao direito
foi pré-excluída. Assim, “há indenizabilidade – excepcionalmente, é
certo – que não resulta da ilicitude. Reparam-se danos que se causaram
sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos”.9
Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de
indenizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se
lancem as demais espécies para debaixo do tapete. Se a eficácia
indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos
civis, está evidenciada a inconveniência do critério clássico. É interes-
sante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma
relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Esse
dever, bem vistas as coisas, representa a eficácia de uma espécie de
ilícito – o ilícito indenizante –, sem que possa ser tido, ademais, como
propriedade exclusiva sua, mercê da possibilidade de surgir como
eficácia produzida por um ato lícito.

6.2.3 Convivendo com as outras eficácias


A responsabilidade civil é tema cuja relevância não pode ser
posta em dúvida. Experimenta, atualmente, notável evolução, com o
aprofundamento matizado de seu estudo, sendo visível o surgimento,
a cada dia, de temas inéditos a reclamar ponderações e análises.10 O
que nos incomoda, entretanto, é a redução indevida dos ilícitos civis
à responsabilidade civil. Seja como for, parece fundamental, para a
adequada visualização do problema, conhecer as espécies ilícitas no
direito civil brasileiro (não se trata de gênero com espécie única). Assim, sob
o ângulo da eficácia produzida, os atos ilícitos no direito civil podem
ser classificados11 em: a) ilícito indenizante; b) ilícito caducificante; c)
ilícito invalidante; d) ilícito autorizante. Vejamos, muito brevemente,
cada uma das espécies.

9
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966,
p. 197.
10
Pedimos licença para remeter à obra onde o tema é fartamente desenvolvido (FARIAS,
Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado
de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017).
11
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003,
p. 89.
144
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

6.2.3.1 Ilícito indenizante


É o ilícito que produz como eficácia o dever de indenizar.
Ressalte-se, porém, que, no dever de indenizar, pode estar compreendido
o dever de ressarcir, que, aliás, deve ser priorizado. Denota, de qualquer
sorte, o dever do agressor de recompor a esfera jurídica do agredido. É tão
conhecido e tão comum que nos dispensaremos de maiores referências
a propósito. Diga-se apenas que quem, culposamente, causa danos a
outrem, comete ato ilícito e deverá repará-los (Código Civil, art. 186).
Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no direito civil, o
dever de reparar os danos causados. O Código Civil reconheceu essa
realidade e definiu, no art. 927, que: “Aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Portanto,
os ilícitos civis, causando danos, obrigam aquele que os provocou a
repará-los. É, sob o prisma sociológico, o efeito que presumivelmente
mais importa ao ofendido, porquanto possibilita restaurar, na medida
do possível, seu patrimônio jurídico, atingido com a violação. As demais
eficácias, em princípio, não se prestam a isso, senão indiretamente.

6.2.3.2 Ilícito caducificante


No ilícito caducificante, o sistema relaciona ao ilícito a perda de
um direito;12 aliás, mais propriamente, a perda de qualquer categoria
eficacial.13 Assim, decorre do ilícito, de modo direto e imediato, a perda
de um direito.
O Código Civil prevê no art. 1.638: “Perderá por ato judicial o
poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho;
II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e
aos bons costumes;14 IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas
no artigo antecedente” (havia, no Código Civil de 1916, dispositivo
correspondente: art. 395). Assim, o pai (ou a mãe) que espanque o filho
pode perder o poder familiar. Se a mãe de recém-nascido o abandona,

12
No direito brasileiro, Pontes de Miranda percebeu, precursoramente, que ilícitos civis podem
ensejar a caducidade. (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 216).
13
Partido da premissa, forte em Pontes de Miranda, de que a relação jurídica está no plano
da eficácia, integrada, no seu esquema integral, por direitos e deveres, pretensões e obrigações,
ações e situação de acionado (ação de direito material) e exceção e situação de exceptuado.
14
Escrevemos em outra ocasião: “Moral e bons costumes é uma expressão cujo conteúdo remete a
uma moral oficial, linear e preconceituosa. Andaria melhor o Código Civil se não a trouxesse.
A jurisprudência, no entanto, saberá interpretar o termo em consonância com a Constituição,
traduzindo os padrões comportamentais plurais da sociedade contemporânea”. Há outras
menções no Código Civil aos bons costumes, como, por exemplo, no art. 187.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
145

de igual modo a sanção poderá se fazer presente. Trata-se, na espécie,


de um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal porventura caracterizado
(lembremos que, se o efeito – perda do poder familiar – é civil, o fato
jurídico que originou esse efeito também o é). Sem prejuízo, repita-se,
do fato configurar, simultaneamente, suporte fático de ilícito penal.
Os ilícitos civis – cabe insistir – podem dar ensejo à perda de
direitos ou de outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar,
o herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito
que sobre eles pudesse ter. Quer dizer, a perda de um direito como
efeito de um ilícito civil. Digamos que um dos filhos, que mora com
o pai, rico colecionador de arte, esconde dos irmãos alguns quadros
após a morte do pai, evitando que esses bens entrem para o inventário.
Se assim agir, escondendo bens, perderá o direito sobre eles. Trata-se
da clássica sanção de sonegados (pena civil que só pode ser imposta
judicialmente, em ação proposta pelos herdeiros ou por credores da
herança: Código Civil, art. 1.994).
O contraente que pratica ato proibido pelo contrato pode perder
certos direitos, como o direito à resolução, o direito à posse de deter-
minado bem, etc. Tal perda não decorrerá de um ato inválido, mas
apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda
de um direito, mercê do ato praticado. Outrossim, a posse de má-fé é
um ilícito civil cujo efeito é a perda – ilícito caducificante, portanto –
de certas benfeitorias porventura realizadas (Código Civil, art. 1.220).
Tal perda, importa frisar, não decorre de um ato inválido, mas apenas
de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda de um
direito, mercê do ato praticado. Sempre, portanto, que a sanção civil
consistir, de forma direta e imediata, na perda de um direito, o ilícito
é caducificante.15 Dissemos de forma direta e imediata porquanto os
atos inválidos podem, eventualmente, ter sua eficácia neutralizada,
mas será de forma oblíqua, como consequência da invalidade, o que
não ocorre nos caducificantes.

6.2.3.3 Ilícito autorizante


São os ilícitos cujo efeito consiste na autorização, facultada pelo
sistema, ao ofendido (ou mesmo outrem) para praticar, ou não, deter-
minado ato. Cabe sempre relembrar que as sanções, em direito civil, não
se resumem ao ressarcimento, à reparação ou à indenização. Existem

15
Importa sempre frisar que caducidade é eficácia (Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de
Direito Privado. t. II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 205).
146
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

outros efeitos, além do dever de indenizar, que podem resultar dos


ilícitos civis. Desde que se perceba, com clareza, essa realidade, que
emerge do próprio direito legislado, é possível dimensionar, com mais
exatidão, os atos ilícitos e perceber-lhes os limites e as possibilidades.16
Não se deve negar, conceitualmente, que certas autorizações sejam
concedidas através do Judiciário (embora isso não seja necessário em
todos os casos).
No ilícito autorizante, o ordenamento relaciona ao ilícito uma
autorização que, sem o ilícito, não existiria. Nasce, geralmente para o
ofendido, a possibilidade de praticar certo ato como efeito do ato ilícito.
Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito civil
cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordenamento
faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (art. 557,
Código Civil). A revogação, em linha de princípio, não seria possível.
Sua possibilidade surge como eficácia do ilícito praticado. O doador,
mercê do ilícito, pode revogar, se assim lhe aprouver, o negócio jurídico.
Imaginemos que alguém doe uma fazenda para seu afilhado. O
afilhado (donatário), porém, é ingrato para com o doador (conceito de
ingratidão de acordo com a lei civil). O Código Civil autoriza o doador,
nesse caso, a revogar, caso deseje, a doação válida e formalizada. Qual
o ilícito? A ingratidão do donatário. Qual o efeito? A possibilidade de
revogação da doação. Cabe repetir que essa possibilidade de revogação
da doação – autorização – só existe porque o ilícito foi praticado. Sem
o ilícito, ela não existiria. É mais uma demonstração de que os efeitos
dos ilícitos civis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única.
Formulemos outras hipóteses. Uma pessoa tem sua residência
invadida por desconhecidos. Poderá, caso queira, expulsar à força
os invasores, desde que o faça logo e sem excessos. Trata-se de um
dos poucos casos de exceção ao monopólio estatal no uso legítimo
da força, ao lado da legítima defesa. O Código Civil, art. 1.210, §1º,
regula a situação descrita: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá
manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo;
os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável
à manutenção, ou restituição da posse”. Trata-se, novamente, de uma
autorização (expulsar os invasores) que o Código Civil disponibiliza a
quem sofre um ilícito civil. Outrossim, a possibilidade de resolução do
negócio jurídico bilateral em razão do inadimplemento é uma autori-
zação que decorre de um ilícito. Assim, se, por exemplo, num contrato,

16
Cf. DIDIER, Fredie. Curso de Processo Civil. v. I. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 252.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
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147

o devedor praticar o ato a cuja abstenção se comprometera, há violação


do acordo, e surge, para o credor, a possibilidade de resolver o contrato,
sem prejuízo de outros efeitos, igualmente possíveis.
É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não
existe uma relação necessária entre ilícitos civis e o dever de indenizar.

6.2.3.4 Ilícito invalidante


A grande questão que aqui se põe não é tanto identificar os
inválidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilícitos. A doutrina
tradicional, mercê da identificação do ilícito civil com uma de suas
espécies, afastou, sem maiores discussões, os inválidos da seara ilícita.
Assim, no direito civil, salvo em tópicas manifestações, os inválidos são
considerados lícitos, ainda que por exclusão.
Há juristas, contudo, que distam dessa orientação, em posição
que julgamos mais adequada (considerando os inválidos como ilícitos).
Basta dizer, aqui, que inválido, em direito civil, é o ato (em sentido
amplo) cuja ausência do requisito ou presença do defeito compromete
sua validade. É preciso, nesse ponto, firmar uma premissa: invalidade
é sanção.17 É uma sanção atípica se nos atermos ao senso comum de que
sanção, em direito civil, corresponde, fundamentalmente, à reparação
dos danos causados, mormente pecuniários.
Não há, de fato, razão jurídica a secundar a peremptória exclusão
dos inválidos da seara dos ilícitos civis, ou seja, a tese tradicional pugna
pela conformidade ao direito de atos forjados à base de dolo, coação, etc.
Como, por exemplo, defender o caráter lícito de um contrato em cujo
firmamento um dos contraentes foi coagido? Ora, a coação, ainda que
exercida por terceiro, estranho à relação jurídica contratual, é causa de
anulação do negócio, mesmo que as partes desconheçam sua existência.
Não há razão jurídica para postular a conformidade ao direito de um
ato tal. Eles são contrários ao direito e, como tais, ilícitos.
A sanção, aqui, será a possível neutralização dos efeitos produ-
zidos pelo contrato em virtude de ato contrário ao direito. Figure-se,
outrossim, a hipótese, bastante comum, de um bem gravado com a
cláusula da inalienabilidade. O negócio jurídico que intenta aliená-lo é
nulo, e o efeito do ilícito, no caso, é impedir a alienação, neutralizando
os efeitos do negócio, de forma a resguardar o interesse objetivado
na cláusula. Cabe lembrar que o dualismo lícito/ilícito esgota, sob o

17
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p.
104.
148
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

prisma da conformidade ou contrariedade ao direito, as possibilidades


de categorização dos atos jurídicos. Destarte, o que não for lícito será
ilícito, e vice-versa. Portanto, os que perfilham a tese de que somente
são ilícitos os atos cujo efeito é a indenização aceitam, de modo oblíquo,
a conformidade ao direito de atos realizados por pessoas coagidas ou
contratos firmados com objetos ilícitos, por exemplo.
Em alguns casos facilmente imagináveis, os atos inválidos, se
o sistema não lhes podasse os efeitos, levariam o direito a situações
vexatórias. Pense-se no jornal ou empresa de comunicação que realize
negócio com político, comprometendo-se, sob certa paga, a não divulgar
notícias de corrupção que o envolvam. Cometem, por óbvio, ato ilícito,
realizando acordo nulo, que não produz, obviamente, sob o prisma
jurídico, os efeitos pretendidos. Os atos inválidos funcionam, por
vezes, como uma espécie de rede de segurança, impedindo a eficácia
indesejada pelo sistema jurídico. Nos inválidos, apenas ocorre a
negativa da produção dos efeitos do ato ilícito realizado sem que se
perca direito já integrante do patrimônio jurídico (caducificantes), sem
que surja autorização para praticar um ato (autorizantes) ou sem que
surja, necessariamente, o dever de indenizar (indenizantes).

6.3 Abuso de direito ou ilícito funcional


A teoria do abuso de direito somente surgiu no final do século
XIX como superação de concepções individualistas que entendiam o
direito subjetivo como poder da vontade e expressão maior da liberdade
individual e, assim, ilimitado. Ela resulta – como nota Orlando Gomes –
de uma concepção relativista dos direitos;18 aliás, os conceitos funcionais
aparecem, com frequência, nas mais diversas searas jurídicas, sendo
nota indissociável do direito contemporâneo.
Desde a clássica obra de Bobbio, sublinhando a necessidade
do abandono de uma concepção puramente estrutural em favor de
uma postura funcional,19 é evidente a importância de semelhante
perspectiva. Há uma tendência difusa, porém perceptível, no direito
contemporâneo de tolerar cada vez menos a dimensão puramente
formal dos conceitos. Aliás, conforme ponderou Wieacker, uma das
notas próprias do Estado Social é a relativização dos direitos, à luz

18
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 131.
19
BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milano: Edizioni di Comunitá, 1977.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
149

de sua função social.20 Atualmente, mercê da força, no direito atual,


das diretrizes constitucionais pertinentes, é algo fora de dúvida que a
utilização de um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que
orientaram seu nascimento, tampouco podem colidir com princípios
maiores, se em choque.
Por exemplo, o produto adequado, ao qual o fornecedor está
obrigado, não é, apenas, aquele que cumpra as normas técnicas perti-
nentes. Vê-se que o direito atual vai além: para que o produto seja
escorreito, livre de vícios, ele deve ser adequado ao fim a que se propõe.
Funcionaliza-se, assim, o conceito de produto, evidenciando-se a
insuficiência de se respeitar, estática e estruturalmente, as regras a ele
aplicáveis. É necessário que ele satisfaça o consumidor nos fins a que
se propôs. O fornecedor, seja ele público ou privado, deve qualidade,
segurança, presteza, adequação, pontualidade etc.
Embora a funcionalidade, sendo um conceito social, se preste a
interpretações diversas, comportando certa dose de fluidez, é inegável
a utilidade do instituto, cuja feição há de surgir dos casos concretos,
segundo standards valorativos consensuais. No campo negocial,
observa-se, com perspicácia, a função de controle da boa-fé objetiva (e
as outras funções, que já vimos). Com ela, tem-se valioso mecanismo
operacional para impedir ações ou omissões abusivas antes, durante
ou depois da relação negocial.21 Nesse contexto, denominamos ilícito
funcional o ilícito que surge do exercício dos direitos. Não haveria aqui,
a princípio, contrariedade ao direito, porquanto o ato não figura entre
aqueles vedados pelo ordenamento. A contrariedade surge quando
há uma distorção funcional, ou seja, o direito é exercido de maneira
desconforme com os padrões aceitos como razoáveis para a utilização de
uma faculdade jurídica (a teoria do abuso de direito permite vislumbrar
uma via intermediária entre o permitido e o proibido, trazendo maior
fluidez conceitual para o ilícito civil, o que é positivo).
A cada direito conferido pelo sistema, corresponde um perfil,
mais ou menos nítido, que fornece as proporções de sua utilização. Se
ocorre um desvio no perfil objetivo do direito, cessa a tutela e passa
a haver uma situação contrária ao direito. Os padrões ético-sociais de

20
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, p. 624.
21
Judith Martins-Costa anota que a boa-fé objetiva implica “em cabal limitação do exercício de
direitos abusivos que contrariam o valor maior da solidariedade da vida social” (MARTINS-
COSTA, Judith. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em
torno de uma notícia jornalística. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, São Paulo, 1992, p.
155).
150
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

comportamento, devidamente contextualizados, aliados às circunstâncias


do caso, definirão quando uma conduta ultrapassa os limites do aceitável,
timbrando-se como ilícita. O direito contemporâneo repudia a utilização
arbitrária, caprichosa ou inconsequente das situações jurídicas. Toda
ação secundada em norma jurídica está condicionada à sua projeção
social, onde certamente encontrará outras ações igualmente amparadas,
dentre as quais deve haver uma mútua flexibilização. Isso implica, por
óbvio, uma análise menos formal. Sempre que os limites socialmente
aceitos forem ultrapassados, dando lugar a situações geradoras de
perplexidade, espanto ou revolta decorrentes do exercício de direitos,
a resposta do ordenamento só pode ser uma: a repulsa ao agir abusado,
desarrazoado.
É um ilícito que nasce da função dos direitos ou, melhor dizendo,
da disfunção dos direitos. Na sistemática do direito civil, a função social
atua de forma intensa. Nesse sentido, não só a propriedade imóvel, mas
a propriedade de quaisquer bens, sejam materiais ou imateriais, deve
plasmar-se pelo princípio da função social (sobretudo em ricos diálogos
com a boa-fé objetiva). A existência do direito não é único padrão de
referência. Não basta, atualmente, ter direito. A análise ganhou uma ótica
funcional. A dimensão social é valorizada, impedindo que, a pretexto do
exercício de um direito, atos de conteúdo socialmente perversos sejam
praticados. As virtuais interpretações que podem ser extraídas dessa
mudança são formidáveis. Se antes seria anedótico pensar em limitar,
funcionalmente, o exercício dos direitos, mormente a propriedade, hoje
seu conteúdo já nasce com semelhante feição. Ser proprietário não é
mais ser titular de um bloco rígido de prerrogativas, mas ser titular de
direitos cuja conformação varia de acordo com a inserção social.
São múltiplas as possibilidades de desvio funcional dos direitos.
A doutrina, nos mais variados setores, principia a aprofundar a análise
a respeito das consequências do exercício dos direitos. Os altos destinos
do art. 187, na ordem jurídica brasileira, dependem, sobretudo, da
jurisprudência. Ela, na concretização mediadora que opera, realizará,
iluminada pela Constituição, os fins sociais do direito, que não se
conciliam com o abuso. Não se trata, portanto, de um ato proibido,
estaticamente incompatível com o ordenamento. O ilícito funcional – que
abrange ações e omissões, liberdades, faculdades, situações jurídicas
em geral – decorre de uma conduta que, apesar de assegurada pelo
sistema, foi exercida de modo desarrazoado, ostentando caracteres
abusivos (verifica-se não apenas a infração à legalidade estrita de uma
regra, mas a normatividade generosa dos princípios e a legitimidade
em geral). O ilícito funcional é algo que só faz sentido em sistemas
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
151

abertos, percebidos – como sugere o civilista alemão Claus-Wilhelm


Canaris – como “ordem teleológica de princípios gerais de direito”.
Tem caráter dinâmico, não estático, e dialoga com as mudanças sociais,
incorporando-as às dimensões normativas através da interpretação.

6.3.1 O ilícito funcional como uma cláusula geral


Estudamos que os ilícitos, em direito civil, são fatos jurídicos dos
quais muitas vezes decorre – mas nem sempre – o dever de indenizar.
Quem, culposamente, causa dano a outrem comete ato ilícito (Código
Civil, art. 186). Quem excede manifestamente os limites impostos pelo
fim econômico ou social do direito, pela boa-fé ou pelos bons costumes
(Código Civil, art. 187) também pratica ato ilícito, e a consequência,
segundo a literalidade da lei, em ambos os casos, é o dever de reparar.
O art. 187 do Código Civil realça que o critério do abuso não reside no
plano psicológico da culpabilidade, mas no desvio do direito de sua
finalidade ou função social. Acolhe-se a teoria objetiva finalista, que tem
em Josserand seu maior expoente.
Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no direito
civil, o dever de reparar os danos causados. O Código Civil dispôs a
propósito no art. 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187)22 causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-los”. Porém, como pensamos
ter demonstrado, os ilícitos não se esgotam nas hipóteses dos artigos
citados. Há outros possíveis. Mesmo se permanecêssemos nos artigos
186 e 187, a letra da lei, ainda assim, estaria equivocada. É que a eficácia
do art. 187, do abuso de direito, nem sempre é indenizatória. Muitas
outras cargas de eficácia podem resultar do abuso de direito (perdas
de direito, nulidades e anulabilidades, revisão de cláusulas abusivas,
eficácia probatória contrária aos interesses de quem age abusivamente
etc.). Em outras palavras, a classificação quanto à eficácia que antes
expusemos (ilícitos indenizantes, ilícitos caducificantes, ilícitos invali-
dantes e ilícitos autorizantes) aplica-se, também, aos ilícitos funcionais,
que é uma cláusula geral com eficácia múltipla, multiforme.
O ilícito funcional opera como uma cláusula geral da ilicitude –
uma das mais ricas do Código Civil –, destinada a manter o exercício

O art. 187 tem suporte fático distinto do art. 186. “Se assim não fosse – isto é, se para a
22

configuração do abuso de direito tivessem de concorrer os pressupostos do art. 186 – tornar-


se-ia inútil o art. 187. Haveria, não equiparação, mas identificação, ou melhor, subsunção
da figura do abuso de direito na do ato ilícito segundo o art. 186” (BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Abuso de direito. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 13, p. 97-110, jan./mar.
2003).
152
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

do direito nos limites socialmente toleráveis. Tem aplicação ampla,


em qualquer setor da experiência jurídica. Há, assim, no sistema do
direito civil, uma espécie ilícita aberta que se manifesta no exercício
dos direitos.23 O direito subjetivo, em nossos dias, é direito-função, isto
é, não pode ser usado para desequilibrar (outras) situações jurídicas
legitimamente construídas.
Toda utilização de um direito, portanto, que ultrapassar os
limites do razoável, orçando pelo abuso, pelo perturbador, traz em si,
de forma insofismável, a pecha da oposição aos valores que permeiam
o sistema do direito civil brasileiro. Será, nesse contexto, contrário ao
direito o ato ou a omissão que implicar um estorvo social incompatível com
a dimensão do direito fruído. Convém sempre lembrar que a eficácia
do abuso de direito (Código Civil, art. 187) não é apenas indenizante.
Outras dimensões de eficácia podem surgir, e frequentemente surgem.

6.4 Tutela contra o ilícito no novo Código de


Processo Civil
6.4.1 Noções preliminares
Muitos debates já foram travados sobre qual seria efetivamente
o conteúdo do direito constitucional de ação. Outrora confundido
com o próprio provimento do direito material almejado, passando-se
por discussões sobre sua natureza concreta ou abstrata, fato é que,
qualquer que seja a elaboração conceitual adotada, certamente o direito
de ação apresenta intrínseca e necessária relação com “o direito ao
modelo processual capaz de propiciar a tutela do direito afirmado
em juízo”.24 Pois bem, se nossa Constituição Republicana garante
que nenhuma lesão ou ameaça a direito deixará de ser apreciada
pelo Poder Judiciário, nada mais condizente que, em complemen-
tação a essa garantia, ao apreciar a demanda levada a sua cognição,

23
Aliás, nosso tão citado art. 187 do Código Civil – claramente inspirado no art. 334 do Código
Civil português – tem conteúdo normativo assim disposto: “Art. 187. Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Cremos que a referida
norma não inovou substancialmente o sistema jurídico brasileiro. O exercício abusivo de um
direito já não era tolerado, mesmo antes do Código de 2002. O dispositivo tem, contudo, o
inegável mérito de destacar que os ilícitos civis não se esgotam na fórmula tradicional que
reúne a culpa, o dano e o dever de indenizar.
24
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006, p. 32.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
153

o Judiciário aplique instrumentos processuais efetivamente aptos


a tutelar o direito pleiteado. De nada adiantaria ao jurisdicionado
obter o legítimo reconhecimento da existência de seu direito25 se fosse
este desacompanhado de institutos capazes de garantir sua proteção
ou aplicação prática. Decorre, portanto, que um modelo ideal de
direito processual, em harmonia com os direitos e garantias constitu-
cionais, necessariamente deverá propiciar diferenciadas tutelas, que
se amoldem à efetiva proteção exigida por cada uma das possíveis
situações jurídicas do direito material.
Tutela é termo que apresenta diferentes sentidos em nosso
ordenamento jurídico, podendo ser utilizado: a) como sinônimo do
próprio procedimento processual empregado; b) em referência ao tipo
de decisão judicial proferida; c) como o resultado jurídico-substancial
buscado.26 Em todas essas três significações, mostra-se imprescindível
a aplicação do princípio da adequação. Para além de ritos e meios
executivos adequados, é preciso identificar que tipo de resultado (tutela
jurisdicional) está sendo objetivado a fim de que seja aplicada a técnica
processual capaz de viabilizar sua concretização.
Levando-se em consideração a referida ideia de adequação,
vem sendo bastante difundida a noção de “tutela jurisdicional
diferenciada”. Novamente há mais de uma ótica sob a qual esse
conceito pode ser analisado. Pode dizer respeito à cronologia da
tutela no iter procedimental (como a possibilidade de antecipação de
seus efeitos ou mesmo em relação à atividade cognitiva necessária
para sua concessão), bem como à tutela em si mesma, entendida
como o provimento jurisdicional que satisfaz a pretensão da parte.27
De maneira simples, Fredie Didier nos ensina que “toda vez que o
legislador confere um tratamento diferente do tratamento padrão,
seja no procedimento, na decisão ou no resultado, pode-se falar em
tutela jurisdicional diferenciada”.28
Por isso a importância, num primeiro momento, de procedi-
mentos especiais, os quais, como o próprio nome sugere, possuem

25
Ressalve-se o ajuizamento de ação objetivando uma sentença meramente declaratória.
26
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011,
p. 407.
27
ARMELIN Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de processo, São Paulo: RT, n.
65, p. 105.
28
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011,
p. 409.
154
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

processamento diferente do procedimento padrão (ordinário) e, assim,


por meio de uma distinta sequência de atos processuais ‒ incluindo-se
a possibilidade de provimento antecipatório ‒, permitem uma tutela
jurisdicional em maior conformidade com o resultado demandado
pelo direito material em questão. No Código de Processo Civil de
2015, alguns dos procedimentos especiais previstos no Diploma de
1973 foram suprimidos. No entanto, a nova lei processual promoveu
uma maior flexibilização no processo ordinário comum, a exemplo
da previsão contida no art. 139, que faculta ao juízo dilatar os prazos
processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova,
adequando-os às necessidades do conflito, de modo a conferir maior
efetividade, justamente, à tutela do direito. Some-se a isso a previsão
de tutelas provisórias, tanto de caráter antecipado quanto cautelar
(sendo dispensável, inclusive para esta última, o processamento
em autos apartados exigido pelo código anterior), que podem ser
concedidas de modo antecedente ou incidental (art. 294, parágrafo
único, CPC/15), bem como a possibilidade conferida ao juiz de efetuar
quaisquer providências necessárias à garantia da tutela específica
pleiteada ou, na sua impossibilidade, a tutela pelo resultado equivalente
(art. 497, CPC/15). Diante dessas técnicas processuais aplicáveis ao
procedimento comum ordinário (algumas inclusive já implementadas
no CPC/73), conferindo tratamento diferenciado tanto no bojo do rito
procedimental quanto no resultado material, caminha-se cada vez mais
para a prestação de uma tutela jurisdicional de melhor qualidade, do
ponto de vista da adequação e da eficiência.
As tutelas jurisdicionais, como gênero, podem ser alvo das
mais diversas classificações: tutelas de urgência e de evidência; final e
antecipada; genérica e específica; repressiva e preventiva. Tutelas final
e antecipada dizem respeito ao momento processual de sua concessão
e ao grau de cognição exigido para tanto. Já as de urgência e evidência
tratam de situações processuais distintas (não necessariamente contra-
postas), sendo a primeira concedida diante de elementos que explicitem
a probabilidade do direito, somada à existência de perigo de dano ou
de risco ao resultado útil do processo (art. 300, CPC/15), ao passo que a
segunda dispensa este último requisito, recaindo exclusivamente sobre
as hipóteses previstas nos incisos do art. 311 do CPC/15. Há muito que
se comentar sobre a nova disciplina conferida a essas tutelas no novo
diploma processual. No entanto, o objeto do presente trabalho centra-se
na análise das duas outras classificações (tutelas genérica e específica,
tutelas preventiva e repressiva), de suma relevância para a compreensão
do tratamento conferido à tutela contra o ilícito.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
155

6.4.2 Tutela genérica × tutela específica


Essa classificação está intrinsecamente relacionada à noção de
tutela como resultado do processo. A tutela específica efetiva-se quando
a resposta jurisdicional coincide com o resultado desejado no âmbito
material, como se a parte ré houvesse voluntariamente cumprido o que
o autor esperava no mundo fático, sem a necessidade de intervenção
judicial. Lado outro, na tutela genérica, conhecida também como tutela
pelo equivalente em dinheiro,29 não se proporciona ao sujeito o exato bem
da vida que ele judicialmente reclama. Sua efetivação ocorre mediante
ressarcimento pecuniário. Com efeito, é vislumbrada mediante um
caráter genérico em razão do (suposto) fato de que qualquer prestação
pode ser convertida no pagamento de perdas e danos.
Quanto à tutela específica, sua maneira mais clara de concreti-
zação ocorre através do cumprimento in natura da prestação postulada.
Assim, o resultado material do processo variará conforme a natureza de
cada um dos pedidos em jogo, explicitando o caráter específico desse
tipo de tutela. Podemos ainda pensar em sua concretização mediante
aquilo que se denomina “resultado prático equivalente ao do adimple-
mento”, tipicamente aplicado às obrigações de fazer fungíveis. Existem
mecanismos tendentes a coagir o réu a cumprir a prestação devida (a
exemplo da multa); porém, quando ele ainda assim se recusar a praticar
o ato, é possível, sempre que a obrigação não for personalíssima, que
ela seja executada por um terceiro. Assim, tarefas que, primitivamente,
cabiam ao devedor podem ser autorizadas ao próprio credor, que as
implementará por si ou por prepostos, como previsto no art. 249 do
Código Civil. O autor deve, ao final, apresentar nos autos as contas
dos gastos efetuados e dos prejuízos acrescidos, sendo imputado ao
réu o pagamento daquilo que foi despendido para o cumprimento da
prestação.30 Embora o devedor seja, em desfecho, condenado a uma
prestação pecuniária, o Judiciário não deixa de ter prestado uma tutela
específica, visto que o sujeito obteve exatamente a prestação in natura
pretendida (embora não praticada diretamente pelo réu).
Ressalte-se que, quanto às obrigações de pagar quantia, não há
maiores problemas em se imputar uma resposta pecuniária. Contudo,

29
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011,
p. 411.
30
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual
civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. III. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2016, p. 258.
156
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

em relação aos outros tipos de prestações (fazer e não fazer; dar coisa
diversa de dinheiro), claramente denota-se que o sujeito da relação
jurídica inicialmente objetivava uma prestação específica, diversa do
recolhimento monetário. Ora, pensando na maior efetividade dos
direitos, um sistema processual ideal é aquele que se preocupe em
tutelar, exatamente, a satisfação do direito material do autor em vez de,
como resposta automática a qualquer resistência à referida pretensão,
converter a prestação em perdas e danos.
Diante disso, é importante destacar uma alteração ocorrida
ainda na vigência do CPC de 1973: a reforma processual de 1994 (Lei nº
8.952/94) conferiu nova redação ao art. 461, dispondo, em seu parágrafo
único, que “a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o
autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do
resultado prático correspondente”. No caput do dispositivo, foi imposta
ao juiz a concessão da tutela específica, de modo que a sentença que
desse provimento à prestação de fazer ou não fazer deveria condenar
o devedor a realizar, in natura, a prestação devida. Para tanto, a Lei nº
8.952/94 conferiu ao juiz a possibilidade de adotar providências que
assegurassem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
Tem-se aqui a positivação da preferência pela tutela específica em
detrimento da tutela genérica. O legislador pátrio acabou por romper
com o dogma liberal dos séculos anteriores, quando então imperava
certa confusão entre a tutela contra o ilícito e a tutela ressarcitória, de
modo que converter a prestação em seu equivalente em pecúnia confi-
gurava prática jurídica comum.31
Portanto, sob a égide do CPC anterior, foi consagrado o que se
pode denominar de “tutela diferenciada”, entendida como a prestação
jurisdicional específica e adequada para cada espécie de violação de
direitos. Vislumbra-se, destarte, um relevante passo na individuali-
zação da noção de ato ilícito. Afinal, como já tratado neste estudo, nem
sempre um comportamento contrário ao direito ensejará pagamento
de perdas e danos. Na verdade, em alguns casos, a ocorrência de
ato ilícito prescindirá de dano, o que certamente, por si só, já afasta
eventual conversão da resposta em equivalente pecuniário por “perdas
e danos”. Fez muito bem o atual CPC em manter a primazia da tutela
específica, determinando, em seu artigo 499, que a obrigação somente

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
31

Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 18-19.


FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
157

será convertida em perdas e danos se o autor assim requerer ou se


impossível a tutela específica. Como bem observa Marinoni:

A confusão entre tutela contra o ilícito e tutela ressarcitória pelo equiva-


lente, portanto, tem raízes na monetização dos direitos, acentuada pelos
valores do Estado liberal antigo, em que o equivalente em pecúnia, sem
pôr em risco a liberdade, mantinha em funcionamento os mecanismos
do mercado. A tutela jurisdicional não tinha qualquer preocupação de
fazer valer o desejo das normas ou de tutelar direitos – garantindo sua
integridade ou repristinação – mas apenas de prestar um equivalente ao
sinal da lesão, o que significava dizer que a jurisdição não tinha como
meta primária a tutela de direitos. A sanção do faltoso pressupunha a
intangibilidade da sua vontade e a equivalência dos bens, a evidenciar a
liberdade individual e o equilíbrio do mercado como limite e justificativa
de uma tutela jurisdicional de natureza negativa.32

Tradicionalmente, os institutos jurídicos são permeados por


intensa carga de patrimonialidade. Em contrapartida, o atual século
é marcado por um elevado pluralismo, o qual se mostra presente não
apenas nas diversas concepções de mundo, mas, sobretudo, no âmbito
dos sujeitos protegidos pelas normas, das próprias normas e, como
não poderia deixar de ser, dos interesses tutelados. A tendência do
direito, portanto, caminha no sentido da despatrimonialização e da
repersonalização das relações sociais. Muitos dos direitos que ensejam
a tutela jurisdicional não apresentam cunho patrimonial. Desse modo,
o anterior modelo ‒ que primava pela tutela genérica de conversão em
pecúnia ‒ ainda estava assentado na interdependência entre os institutos
da ilicitude e da responsabilidade civil (especificamente no que tange
à tutela reparatória). Essa compreensão, como já vimos, é insuficiente
para a correta tutela contra o ato ilícito, visto ser a reparação civil apenas
uma de suas possíveis consequências.

6.4.3 Tutela preventiva × tutela repressiva


Avançando nessa análise, temos que ter em mente que os desafios
e ameaças atuais são, de certo modo, distintos daqueles dos tempos
passados. Reparar danos é uma função essencial; porém, não deixa de
ser uma resposta tardia do ordenamento jurídico ‒ atuando somente
após a infeliz perpetração da lesão ‒ e muitas vezes imperfeita, visto

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
32

Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 19.


158
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

que, em grande parte dos casos, sobretudo em se tratando de direitos


extrapatrimoniais, a repristinação ao estado anterior à lesão é comple-
tamente inviável. A tutela ideal seria, evidentemente, a preventiva,
dirigindo esforços para impedir que lesões ocorram ou que continuem
a ocorrer. Diante da intensificação das transações comerciais, das novas
tecnologias, da massificação das relações de consumo, da velocidade
com que se propagam as informações – enfim, da intensificação da
sociedade de riscos –, nosso atual paradigma clama, cada vez mais, por
prevenir ilícitos ao invés de, passivamente, esperar que eles ocorram
para só depois remediá-los. Anuncia Nelson Rosenvald que a prevenção
é o cerne do direito contemporâneo. O que se deu à reparação de danos
em termos de protagonismo nos últimos dois séculos necessariamente
se concederá à prevenção daqui em diante.33 Hoje já não se questiona
apenas sobre a melhor forma de reparar danos, mas, sim, se repará-los
seria, efetivamente, a melhor solução.34
Diante disso, ainda buscando a máxima tutela dos direitos,
sobretudo daqueles bens jurídicos desprovidos de valoração material,
passemos à análise da segunda classificação anteriormente mencionada,
qual seja, as tutelas preventiva e repressiva. Entendida como uma
espécie de tutela específica, a modalidade preventiva tem como escopo
preservar a integridade do direito, antes mesmo da perpetração do ato
ilícito. Consoante os ensinamentos de Marinoni,35 ela assume enorme
importância não apenas em razão do fato de que alguns direitos simples-
mente não podem ser reparados (ou não podem ser suficientemente
tutelados pela técnica ressarcitória), mas, sobretudo, por ser, como já
discorrido neste trabalho, melhor prevenir do que ressarcir. Assim,
enquanto se confere preferência à tutela específica sobre a genérica, é
igualmente imperativa a primazia da tutela preventiva sobre a repressiva.
Esta última, também denominada tutela reparatória ou sancionatória,36
incide quando a resposta jurisdicional ocorre após a prática de um ilícito.
A tutela preventiva encontra fundamento no artigo 5º, XXXV,
da Constituição da República, por meio do qual é garantido o acesso à

33
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2014, p. 79.
34
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 228.
35
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006, p. 38.
36
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011,
p. 411.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
159

justiça em face de qualquer ameaça a direito (dispensando, portanto, a


concretização de uma lesão). No plano infraconstitucional, Silva Nunes
observa que, curiosamente, embora se trate de sistema processual
mais recente, o instituto foi primeiramente positivado na esfera do
direito processual coletivo, consoante artigo 84 do CDC (Lei de 1990).37
Apenas foi inserido no diploma processual civil, de maneira genérica,
quando da já mencionada reforma processual ocorrida em 1994 (ainda
na vigência do CPC de 1973), determinando, no art. 461, mecanismos
técnico-processuais capazes de garantir a eficácia da tutela específica.
Marinoni destaca que, quando editado, o CPC de 1973 apenas
estabeleceu tutelas preventivas (específicas) no caso de interdito proibi-
tório (art. 932) e nunciação de obra nova (art. 936, II). Para o doutrinador,
a alteração do art. 461 significou a quebra do princípio da tipicidade das
formas executivas, permitindo que o juiz aplicasse o meio mais adequado
para impedir a violação do direito.38 E isso teria ocorrido em caráter
geral, abarcando inclusive a tutela de direitos da personalidade, não
obstante, à primeira vista, pareça ter sido confeccionado tão somente
para as obrigações stricto sensu de fazer e não fazer.
A reforma processual de 1994 foi norteada pelo princípio da efeti-
vidade. Ora, toda norma deve ser interpretada em função da unidade
sistemática do ordenamento jurídico. Para o ilustre autor, é inconcebível
que o legislador tenha previsto uma tutela preventiva restrita a essas
obrigações: “Na verdade, não há como não se vislumbrar na ratio,
no fim do art. 461 (interpretação teleológica), a intenção da tutela de
direitos que não poderiam ser adequadamente protegidos a partir de
uma interpretação excessivamente comprometida com o tecnicismo da
linguagem jurídica”.39
Direitos extrapatrimoniais, como a integridade física, a perso-
nalidade, a saúde, o meio ambiente, o patrimônio histórico, entre outros,
não podem ser efetivamente tutelados por uma técnica repressiva (a
posteriori). Considerando esse fato, a fim de fazer valer a inafastabilidade
da jurisdição, é que se defende a ideia de uma tutela preventiva geral.40
Aos poucos construída a partir do Código de Defesa do Consumidor e da

37
NUNES, Leonardo Silva. Tutela inibitória coletiva. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2013,
p. 74.
38
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006, p. 86.
39
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2006, p. 88.
40
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – volume único. 8. ed.
Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 91.
160
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

reforma processual de 1994, tal disciplina geral, felizmente, encontra-se


consagrada de forma clara no novo CPC ao prever expressamente a
possibilidade de uma “tutela específica destinada a inibir a prática, a
reiteração ou a continuação de um ilícito” (art. 497, parágrafo único). E
encerrando a discussão de possível restrição às obrigações stricto sensu,
o novo diploma legal utiliza-se da designação de qualquer “ação que
tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer”, e não simplesmente
da obrigação de fazer e não fazer.

6.4.4 Tutela inibitória, de remoção do ilícito e


ressarcitória
Celebrando a alteração promovida pelo Código Processual de
2015, Marinoni aduz que o parágrafo único do artigo 497 “consagra
a necessidade de tutela jurisdicional contra o ato contrário ao direito,
ou melhor, de tutela jurisdicional contra o ilícito”.41 Para ele, a norma
em comento elenca duas formas de tutela jurisdicional em desfavor
do ilícito: i) a tutela inibitória, que pode ser voltada contra a prática,
a repetição ou a continuação de um ilícito; ii) a tutela de remoção do
ilícito, direcionada à remoção dos efeitos concretos da conduta ilícita.
Ambas as tutelas (inibitória e de remoção), diferentemente
do que ocorre com a ressarcitória (forma clássica de tutela contra o
ato ilícito), independem da ocorrência de dano, visto que o escopo é,
justamente, conceder efetividade à própria norma violada (ou em vias
de violação) – nunca sendo demais lembrar que o ato ilícito, em si,
prescinde da existência de lesão. O processualista paranaense sugere um
esclarecedor exemplo para melhor compreendê-las: se há uma norma
que proíbe a venda de determinado produto, mostra-se possível uma
ação judicial que simplesmente pleiteie inibir sua violação, diante da
existência de indícios de que a norma será desobedecida. Caso a regra
já tenha sido efetivamente violada, havendo a exposição do produto em
prateleiras, abre-se espaço para uma ação que demande a remoção dos
efeitos oriundos da inobservância do dispositivo legal, o que poderia
ser concretizado mediante medida de busca e apreensão dos produtos
colocados à venda. Observe-se que em momento algum se exigiu a
perpetração de uma lesão. Caso o consumidor adquira o produto e de

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: art. 497, parágrafo único, CPC/2015.
41

Disponível em: <http://revistadeprocessocomparado.com.br/wp-content/uploads/2016/01/6-


MARINONI-Luiz-Guilherme-TUTELA-CONTRA-O-ILICITO.pdf>.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
161

seu uso resulte um dano, será cabível uma ação que pleiteie a tutela
ressarcitória dos prejuízos gerados.
Nada impede que as três tutelas sejam cumuladas em uma única
ação. No caso ilustrado, seria perfeitamente possível demandar que a
empresa: a) não coloque à venda o produto em questão; b) remova das
prateleiras os bens já colocados à venda; c) repare os prejuízos causados
pelo consumo do produto. Raciocínio idêntico pode ser transplantado
para o direito ambiental, no qual comumente se postula, para além da
reparação dos prejuízos ambientais ocasionados, que o poluidor não
pratique o ato lesivo ao meio ambiente e, se possível, reverta todos
aqueles já colocados em prática.
É evidente a natureza preventiva da tutela inibitória, utilizada
para evitar ou obstar a prática do ato contrário ao direito. Ressalte-se
que o fato de o ilícito já ter sido uma vez praticado não retira o caráter
preventivo dessa tutela.42 Consoante redação do parágrafo único do art.
497 do CPC/15, ela visa inibir a prática, a reiteração ou a continuação de
um ilícito. O próprio texto legal nos indica que ela ainda é útil diante
da reiteração ou continuação da perpetração. Pois bem, quanto ao ato
em si praticado, provavelmente haverá demanda de uma tutela de
remoção ou de ressarcimento de danos, mas, se ainda subsiste a ameaça
de reiteração ou continuidade da prática ilícita, subsiste também o
interesse nesse tipo de tutela.
Igualmente, não restam dúvidas acerca da natureza repressiva
da tutela ressarcitória, visto incidir contra o dano já consumado (seja
ele oriundo ou não da prática de um ilícito) a fim de promover sua
reparação. Note-se que a reparação de um prejuízo não necessariamente
está vinculada à forma pecuniária (embora seja a mais comum). Assim,
a tutela ressarcitória pode se manifestar tanto na forma genérica quanto
na específica.43 No primeiro caso, fatalmente ocorrerá a entrega de soma
em dinheiro para ressarcir o prejuízo patrimonial ocasionado (ou para
compensar um dano moral). Já no segundo, é possível pensarmos numa
tutela que permita restabelecer a situação que vigia antes da prática da
lesão (ou, pelo menos, propiciar o estado mais próximo possível). Como
exemplo, há o ato do desagravo público, previsto no art. 7º, XVIII, da
Lei 8.906/94, por meio do qual será promovido um pedido público de

42
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – volume único. 8. ed.
Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 90.
43
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,
Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011,
p. 418.
162
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

desculpa em relação à ofensa ocorrida contra o advogado no exercício


de sua profissão ou em razão dela (não é possível remover o ato que
ensejou o dano à honra, mas é possível tentar remediar a lesão gerada).
Por outro lado, quanto à tutela de remoção do ilícito, também
denominada reintegratória, encontramos uma zona um pouco mais
nebulosa. Certo é que ela incide, precisamente, após a prática do
ilícito, pois é impossível remover algo que ainda não ocorreu (cabendo,
nesse momento fático, tão somente a tutela inibitória). Seria esse
fato suficiente para atribuir a essa técnica uma natureza repressiva?
Preferimos concluir, por hora, pela impossibilidade de lhe atribuir
uma natureza puramente preventiva. Passemos então à análise do
ponto de vista repressivo: a tutela reintegratória busca remover o
ilícito, ao passo que a ressarcitória objetiva reparar uma lesão. Ora,
estando mais do que esclarecido que o ato ilícito prescinde de dano,
a tutela em questão não necessariamente serviria para remover um
prejuízo, o que nos leva à impossibilidade de lhe imputar também
um caráter puramente repressivo. Melhor então designar a ela uma
natureza sui generis. Em brilhante exposição, Marinoni esclarece que
“esta forma de tutela não se destina a inibir o ilícito, uma vez que
o ilícito já foi praticado, mas também não se dirige contra o dano.
A tutela jurisdicional se destina a remover ou eliminar a realidade
concreta que a norma proíbe para que o dano não ocorra”.44
Sua aplicação pode ser muito bem visualizada num exemplo
de tutela contra concorrência desleal. O caput do artigo 109 da Lei
nº 9.279/96 garante o ressarcimento de perdas e danos em razão de
prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade
industrial, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a
criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou presta-
dores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio
(tutela ressarcitória). Logo adiante, seu §2º permite ao juiz determinar
a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens,
etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada
(tutela de remoção do ilícito). Desse modo, caso um agente esteja utili-
zando indevidamente marca registrada alheia, independentemente da
verificação de qualquer prejuízo às vendas ou reputação da empresa
detentora do registro, é possível pleitear tutela judicial simplesmente em
razão da violação normativa. Se há indicação de que a prática do ilícito

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
44

Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 27.


FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
163

será reiterada, é cabível também a ação inibitória. Com efeito, a tutela


de remoção volta-se exclusivamente ao ato já consumado, buscando
remover-lhe os efeitos (qual seja, no caso, a permanência no mercado de
produtos com marca usurpada). É evidente que tal técnica processual
poderá impedir eventual ocorrência de lesão, porquanto exclui a fonte
do dano potencial. Porém, é preciso ter em mente que seu objetivo não
é prevenir o prejuízo, e sim remover o ilícito praticado.
Observando a confusão presente na doutrina e jurisprudência
italiana a respeito da tutela ressarcitória específica e a tutela reintegra-
tória, Marinoni destaca que essa ambiguidade deve-se a uma “constante
sobreposição do ilícito e do dano, ou melhor, a uma falta de distinção
entre a transgressão das normas jurídicas e a produção do dano, fruto
de uma posição que não distinguia as necessidades de eliminar o
ilícito e de reparar o dano”.45 Não são raras as decisões judiciais que
consideraram, como tutela reparatória in natura, a demolição em razão
de construção efetuada em desobediência à legislação urbanística. Na
verdade, a demolição não pretende remediar eventual dano causado
pela obra indevida, mas, sim, precisamente, remover o ilícito (visto
que construir em desacordo com a legislação é, por si só, ato contrário
ao direito). A concreta lesão gerada por esse ato ‒ como, por exemplo,
a poluição provocada pela obra, por ter dificultado o escoamento de
esgoto ‒ é que será alvo da tutela reparatória.

6.5 Considerações finais – tutela contra o ilícito e


prescindibilidade de discussão judicial sobre dano
Podemos concluir, com Marinoni, à luz do que foi dito, que “se
da revisão do conceito de ilícito exsurge indiscutível a importância da
distinção entre o ato contrário ao direito e dano para o efeito de tutela
civil dos direitos, não há qualquer razão para pensar que a tutela
contra o ilícito futuro é necessariamente tutela contra a probabilidade
de dano”.46 Justamente nesse aspecto reside um dos grandes méritos
do Código de Processo Civil de 2015, ao positivar, com clareza, que,
“para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a

45
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 218.
46
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 25.
164
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante


a demonstração da ocorrência de dano” (art. 497, parágrafo único).
É desnecessário, nesse contexto – para obtenção da tutela inibitória
ou reintegratória –, que o autor faça prova da possibilidade de dano,
eventualmente oriundo da prática do ato ilícito que busca inibir ou
remover. De tal sorte, possível defesa da parte ré no sentido de que, por
exemplo, a obra construída em desacordo com a legislação pertinente
não acarretará qualquer prejuízo ao meio ambiente e ao bem-estar da
vizinhança, ou que o produto indevidamente exposto à venda não
prejudicará a saúde e segurança dos consumidores definitivamente
não poderá ser valorada pelo juízo como argumento capaz de afastar
a tutela contra o ilícito.
Não obstante esse avanço, ao tratar da técnica processual da tutela
antecipada, o legislador perdeu uma boa oportunidade de encerrar,
de vez, qualquer dúvida acerca da prescindibilidade da discussão
de dano em ação contra o ilícito. Dispõe o art. 300 que “a tutela de
urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem
a probabilidade do direito e o perigo de dano”. De sua leitura literal,
poderia resultar a conclusão segundo a qual, para a concessão de tutela
inibitória antecipada, seria imprescindível a demonstração do perigo
de dano, ou seja, a tutela antecipada estaria restrita, exclusivamente, à
ação contra o ilícito que provoca lesão.47
No entanto, preferimos nos valer de uma interpretação sistemática,
levando em consideração todo o avanço doutrinário e legislativo acerca
da distinção entre ato ilícito e dano, bem como uma maior adequação
valorativa e empírica – comentadas no início deste trabalho –, de modo
a compreender a tutela contra o ilícito à luz da melhor operacionali-
zação da aplicação do direito e, principalmente, dos valores, princípios
e normas constitucionais. Desse modo, para se demandar uma tutela
inibitória em caráter antecipado, seria descabido exigir a comprovação

47
Inclusive, encontramos em respeitável doutrina (pós-edição da Lei nº 13.105/15) a seguinte
passagem: “Cabe observar que, para a concessão da tutela específica que se destine a inibir
a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a
demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo (art. 497, parágrafo
único). A tutela, na espécie, é preventiva, tem por objetivo evitar o dano ou sua continuação, e
não repará-lo” (THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do
direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. III. 47. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2016, p. 261-262). Ao final de sua exposição, o renomado processualista
insiste em associar as tutelas inibitória e de remoção ao propósito de evitar a ocorrência
de dano, embora concorde que elas independem da alegação de já ter sido concretizada a
lesão.
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
165

da probabilidade de dano,48 bastando a prova da probabilidade da


prática de ato contrário ao direito (fumus boni iuris) e de sua possível
concretização antes da efetivação da sentença (periculum in mora).
Ressalte-se que, quando uma norma proíbe determinada conduta,
o legislador já está, de antemão e de modo amplo, considerando a proba-
bilidade de dano49 (embora este nem sempre esteja presente nos suportes
fáticos dos ilícitos). Portanto, embora primordialmente o objetivo da
tutela inibitória seja evitar um ato contrário ao direito, sua concessão
pode – como efeito secundário, porém jamais necessário – impedir a
ocorrência de circunstancial lesão (haja vista que, fatalmente, eliminará
a possível fonte de prejuízo). A discussão acerca do dano não entra,
portanto, no horizonte de eventos da tutela inibitória antecipatória. Se
assim fosse, o juiz, ao negar a tutela inibitória antecipada por falta de
prova da potencialidade de lesão, praticamente estaria autorizando
que o réu concretizasse a conduta contrária ao direito, em afronta ao
princípio da prevenção.
Note-se que em momento algum é vedado ao autor reforçar
a necessidade da tutela inibitória com supedâneo no argumento da
lesividade da conduta – é desnecessário, porém não vedado. Todavia,
caso a parte contrária fundamente a improcedência do pedido com
base na ausência de probabilidade de dano, não é possível exigir do
autor, como requisito para a concessão da tutela antecipada contra o
ilícito, a desconstrução dessa alegação. Direito civil e direito processual
civil, embora autônomos, dialogam e constroem conceitualmente, de
modo conjunto, soluções mais razoáveis e harmônicas aos conflitos dos
nossos dias (tão sabidamente complexos). O conceito de ilícito, hoje,
não é mais singular, é plural. As notas clássicas já não nos servem. Um
dos pontos que foram teoricamente reverenciados nos séculos passados
foi a associação entre ilícito civil e dano. Essa associação, hoje, já não
seria adequada, já não descreveria, com exatidão, o que se passa nas
dimensões normativas do direito brasileiro do século XXI. A tutela
contra o dano, nesse contexto, se dissociou da tutela contra o ilícito,
havendo especificidades em cada uma delas.

48
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 125.
49
Assim, “a probabilidade de dano é um juízo contido na norma, o que significa que a remoção
imediata de um ilícito é tutela da norma, e, por consequência, tutela contra a probabilidade
de dano suposta da norma” (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória
e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 126).
166
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE
TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS
167

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha.


Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ADJAFRE, Karine Cysne Frota. Tutela contra o
ilícito: em busca de contornos conceituais. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto;
SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo
Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p. 137-167. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 7

TUTELA PROVISÓRIA E A
LIMINAR POSSESSÓRIA

Marcelo de Oliveira Milagres

7.1 Introdução
Em tempos de intensa movimentação de pessoas, coisas, bens e
ideias, das mais diversificadas e sofisticadas formas de comunicação,
vivenciamos experiências em tempo real. A vida parece on demand. As
fronteiras geográficas foram superadas. A previsibilidade e a segurança
parecem desafios crescentes.
Em razão disso, vivenciamos a necessidade contínua de novos
mecanismos de regulação de complexos fenômenos até então não
imaginados. Nada mais provisório que o definitivo, nada mais obsoleto
que o presente. O ultrapassado de hoje foi o novo de ontem. O porvir
se insere nos riscos da existência.
Nessa perspectiva, como pensar e aplicar o direito?
O tempo influencia as relações jurídicas, e o próprio direito tem
o poder de condicionar os efeitos do tempo nas relações da vida. Como
não pensar em prescrição e decadência, suppressio e surrectio?
Como acentua François Ost, a dialética entre tempo e direito é
profunda: “O direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao
passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito.
Ainda mais precisamente: o direito temporaliza, ao passo que o tempo
institui”.1

OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru:
1

Universidade do Sagrado Coração, 2005, p. 13.


170
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Os desafios são enormes.


No âmbito da judicialização dos conflitos, o julgador tem a difícil
missão de dizer o sentido atual dos textos e a versão contemporânea
dos acontecimentos a partir dos fatos de ontem.2
O ritmo do processo judicial, à evidência, não acompanha a
velocidade da vida. Muitas vezes, não se pode esperar; daí por que o
contraditório deve ser diferido, sob pena da absoluta ausência de efeti-
vidade do provimento jurisdicional. O direito material não se realiza por
si só, não é o bastante. A efetividade do bem da vida requer tutela juris-
dicional ou tutela processual, que, em face de toda essa dinamicidade,
deve ser diferenciada, com mecanismos de celeridade, de urgência. O
fator temporal deve ser sempre considerado pelo Estado-Juiz.
A noção de uma uniformidade e neutralidade procedimental
restou superada há muito.
Como já apontava Luiz Guilherme Marinoni, “[...] é fundamental
para o encontro da real efetividade do processo a tomada de consciência
de que são de natureza vária os bens envolvidos nos litígios”.3 O
processo, pois, não pode ser indiferente a essa realidade complexa,
dinâmica e plural.
Ao iniciado no universo jurídico não são estranhas discussões
sobre medidas cautelares, antecipação dos efeitos da tutela, liminares,
tutela inibitória, procedimentos especiais – enfim, uma diversidade de
mecanismos na busca da efetividade processual.
Se o processo deve ter uma duração razoável, somente se pode
pensá-lo a partir de seu caráter instrumental. As formas de tutela
sumária e a diversidade de procedimentos de cognição devem objetivar
o mesmo propósito: uma tutela eficiente, adequada, tempestiva e justa.
Nesse sentido, benfazeja a edição do Código de Processo Civil
de 2015, que, superando a clássica divisão defendida por Carnelluti,
afastando a autonomia do processo cautelar, prevê mecanismos de
celeridade, com destaque para as tutelas provisórias.
A propósito, merece relevo uma Parte Geral, com disposição
sobre normas fundamentais do processo civil. Enfatiza-se um processo
cooperativo, resolutivo, com mecanismos de tutela satisfativa. A coope-
ração interna e internacional é prevista. Os mecanismos de solução
alternativa dos conflitos se apresentam como realidade fundada na

2
OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru:
Universidade do Sagrado Coração, 2005, p. 17.
3
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.
23.
MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES
TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA
171

perspectiva também de contratualização do processo. As demandas


individuais repetitivas, as situações de decisão antecipada de mérito,
os precedentes, a inserção e a modificação de procedimentos especiais,
tudo isso se insere nessas diretrizes.
O Código de Processo Civil de 2015 também nos impõe algumas
reflexões. Haveria a possibilidade de uma tutela definitiva no âmbito
de uma cognição sumária, enfim, não exauriente? Como explicar a
regra do art. 304, que propõe a estabilização da tutela antecipada sem
o efeito de coisa julgada?
A tutela provisória parece ganhar maior complexidade em se
tratando da posse. O regime geral de cognição sumária é parcialmente
afastado pelo procedimento especial de tutela da posse, particularmente,
nos conflitos coletivos.
Este é, pois, o propósito do artigo: apresentar a disciplina da
tutela provisória pelo atual Código de Processo Civil, analisando-se
a tutela provisória da posse.

7.2 Tutela provisória: disposições gerais


Com a atual disciplina processual, temos a técnica da cognição
sumária mediante a tutela provisória, que se divide em tutela de urgência
(arts. 300 a 310) e tutela de evidência (art. 311).
A tutela de urgência pode ter natureza satisfativa (tutela de urgência
antecipada) ou natureza conservativa (tutela de urgência cautelar).
Quanto ao momento de concessão da tutela de urgência, ela pode
ser antecedente ou incidental; pode também ser concedida liminar-
mente, ou seja, com o recebimento da inicial (parágrafo único do art.
294 e §2º do art. 300).
Em se tratando de decisão proveniente de cognição sumária,
prevalece a regra de sua temporariedade, podendo ser fundamen-
tadamente modificada ou revogada (arts. 296 e 298). A decisão de
tutela provisória, a teor do art. 1.015, I, desafia o recurso de agravo de
instrumento.
Reconhece-se o poder geral de cautela do juiz, consoante as regras
inscritas nos arts. 297 e 301. Segundo este último, o juiz pode determinar
arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra
alienação de bens e qualquer outra medida de caráter conservativo,
buscando, pois, resguardar o direito material.
Em termos bem práticos, há a previsão de que a tutela provisória
seja requerida em caráter incidental independentemente do pagamento
de custas (art. 295).
172
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

7.3 Tutela de urgência


A tutela de urgência requer a probabilidade do direito material
e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300).
Essa tutela de urgência pode ter caráter satisfativo ou natureza
meramente conservativa. Em se tratando de tutela de urgência antecipada,
não se pode concedê-la se houver risco de irreversibilidade dos seus
efeitos (art. 300, §3º), o que não exclui a possibilidade de sua concessão
na hipótese de irreversibilidade recíproca. Exemplo disso é a situação
comum de tratamento médico urgente: se não for realizado, pode-se
chegar ao óbito do autor-requerente; realizado, não se tem como voltar
ao estado de fato anterior.
Para Luiz Guilherme Marinoni, “[...] não há razão para não
admitirmos a possibilidade de uma tutela antecipatória que possa
produzir efeitos fáticos irreversíveis, pois a tutela cautelar não raramente
produz tais efeitos”.4
A concessão da tutela de urgência pode ser condicionada a uma
garantia, a uma caução, para garantir o ressarcimento de eventuais
prejuízos da parte contra quem a tutela foi deferida. Independentemente
do dano processual, os prejuízos pela efetivação dessa tutela de cognição
sumária podem ser indenizáveis nas situações reconhecidas pelo art. 302.

7.3.1 Tutela de urgência antecipada antecedente


Em situação de máxima efetividade, pode-se adiantar o bem da
vida ao requerente sem a necessidade de cognição exauriente, podendo
a satisfação do direito material ocorrer de forma liminar. Segundo o
art. 303, essa tutela pressupõe situação de urgência contemporânea ao
ajuizamento da pretensão de cognição sumária. A petição inicial pode
limitar-se ao requerimento da tutela provisória.
Se a tutela for concedida, o autor deverá aditar a inicial no prazo
de 15 (quinze) dias, sob pena de extinção do processo sem resolução
do mérito.
Em caso de indeferimento do pedido de tutela antecipada
antecedente, o autor deverá aditar a inicial no prazo de 5 (cinco) dias,
sob pena de extinção da relação processual.

4
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.
169.
MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES
TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA
173

O grande ponto de discussão diz respeito à possibilidade de


estabilização da tutela antecipada antecedente, deferida liminarmente
ou após justificação.
Segundo o art. 304, a tutela antecipada antecedente é estável se
não for objeto do devido recurso. Trata-se, pela literalidade da regra, da
interposição de agravo de instrumento, não se podendo falar em meios
autônomos de impugnação. Ocorrerá a estabilização pela ausência ou
intempestividade do recurso de agravo de instrumento, ainda que o
réu conteste a pretensão do autor.
Poder-se-ia questionar se essa estabilização se cingiria à falta de
recorribilidade. E se, ausente o recurso, o autor buscasse o aditamento
da inicial nos termos do art. 303, §3º, I? Presumir-se-ia o propósito da
busca à cognição plena? Entendo que essa estabilização, na hipótese
única de tutela de urgência antecipada antecedente, independe desse
aditamento. Essa parece ser a proposta normativa, mesmo porque o
autor, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, vai
aditar a inicial no prazo de 15 (quinze) dias, não tendo, possivelmente,
ciência de eventual recurso interposto pelo réu contra essa decisão de
deferimento da tutela provisória de urgência. Ou seja: o aditamento do
autor virá antes do agravo de instrumento do réu. O aditamento não
significa, pois, intenção de busca da cognição exauriente. Em verdade,
busca-se evitar a extinção do processo sem resolução do mérito.
E se o agravo de instrumento não for provido? Ocorrerá a
estabilização da tutela provisória? Não se tem, como condição dessa
estabilização, o resultado do julgamento recursal. Em termos práticos,
pode-se fomentar a recorribilidade apenas com o propósito de impedir
a estabilização da tutela antecipatória antecedente.
Interposto o recurso de agravo de instrumento e aditada a
inicial, segue-se o processo principal, ou seja, o procedimento comum
de cognição exauriente.
Uma vez estabilizada, a decisão de tutela provisória de urgência
antecedente somente pode ser revista ou invalidada por ação própria
ou autônoma, nos termos do §2º do art. 304. O ajuizamento dessa
ação deve observar o prazo decadencial de 2 (dois) anos contados da
ciência da decisão que extinguiu o processo pela estabilização da tutela
provisória. Ultrapassado esse prazo, não se admite a possibilidade de
revisão. Trata-se de natureza definitiva de decisão proferida no âmbito
de cognição sumária, que, como se sabe, pode ter sido deferida liminar-
mente sem a oitiva do réu. Não há que se falar, pois, em coisa julgada.
A estabilização definitiva do provimento sumário, sem formação da
coisa julgada, impediria o reexame da matéria, sendo justificável o
174
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

fundamento do art. 487, II, do Código de Processo Civil (reconhecimento


de decadência). Tem-se a possibilidade de decisão definitiva fundada
no provimento de natureza provisória. Paradoxo apenas aparente.
Esse mecanismo de estabilização, pela ordem normativa vigente,
não alcançaria a tutela antecipada incidente, ou seja, concedida no
curso do procedimento ordinário, não se podendo falar, igualmente,
em estabilização na hipótese de tutela de urgência cautelar.
Finalmente, pode haver dúvida quanto ao alcance da tutela
provisória requerida: se ela alcançaria a antecipação do próprio bem da
vida ou se teria natureza meramente conservativa. O próprio Código
de Processo Civil reconhece a possibilidade de fungibilidade (art. 305,
parágrafo único), podendo e devendo o juiz, por exemplo, conhecer
do pedido cautelar antecedente como se fosse de tutela antecipada
antecedente. Em verdade, ao tratar desses mecanismos, sob o gênero
de tutela provisória, busca-se a unificação entre a tutela cautelar e a
tutela antecipada.

7.3.2 Tutela de urgência cautelar antecedente


A tutela de urgência cautelar objetiva assegurar a efetividade
da relação processual, a utilidade da prestação jurisdicional. Pode ser
concedida em caráter antecedente ou incidental.
Como bem aponta Luiz Guilherme Marinoni:

A tutela cautelar tem por fim assegurar a viabilidade da realização de


um direito, não podendo realizá-lo. A tutela que satisfaz um direito,
ainda que fundada em juízo de aparência, é “satisfativa sumária”. A
prestação jurisdicional satisfativa sumária, pois, nada tem a ver com a
tutela cautelar. A tutela que satisfaz, por estar além do assegurar, realiza
missão que é completamente distinta da cautelar. Na tutela cautelar há
sempre referibilidade a um direito acautelado. O direito referido é que
é protegido (assegurado) cautelarmente. Se inexiste referibilidade, ou
referência a direito, não há direito acautelado.5

Em se tratando de tutela cautelar antecedente, a teor do art. 305,


o requerente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária
do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao
resultado útil do processo. O pedido cautelar poderá ser formulado
juntamente com o principal (art. 308, §1º). Como já afirmado, o nosso

MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998,
5

p. 86.
MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES
TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA
175

ordenamento não previu a estabilização da tutela de urgência cautelar


antecedente.
Segundo o art. 308, efetivada a tutela cautelar, o pedido principal
terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta) dias, caso em
que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido
de tutela cautelar.
Uma das hipóteses de cessação da eficácia da tutela cautelar
antecedente é justamente a ausência de formulação do pedido principal
no prazo legal (art. 309, I), seguida da ausência de sua efetivação no
prazo de 30 (trinta) dias (art. 309, II) e julgamento improcedente do
pedido principal ou a extinção do processo sem resolução de mérito
(art. 309, III).
O indeferimento da tutela de urgência cautelar não impede a
formulação e a análise da pretensão principal, não se podendo associar
a cognição sumária àquela de natureza exauriente. Nesse sentido, é o
disposto no art. 310, segundo o qual o indeferimento da tutela cautelar
não obsta a que a parte formule o pedido principal, nem influi no julga-
mento deste, salvo se o motivo do indeferimento for o reconhecimento
de decadência ou de prescrição.

7.4 Tutela de evidência


Em se tratando de tutela provisória na modalidade de evidência,
não há necessidade de demonstração de perigo de dano ou de risco ao
resultado útil do processo.
Trata-se de antecipação da tutela do mérito em razão de situações
reconhecidas pela lei. Segundo o art. 311 do Código de Processo
Civil, a tutela de evidência alcança: i) abuso do direito de defesa ou o
manifesto propósito protelatório da parte; ii) alegações comprovadas
documentalmente e existência de tese firmada em julgamento de
casos repetitivos ou em súmula vinculante; iii) pedido reipersecutório
fundado em prova documental adequada do contrato de depósito; iv)
petição inicial instruída com prova documental suficiente dos fatos
constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz
de gerar dúvida razoável.
A tutela de evidência poderá ser concedida liminarmente apenas
nas situações descritas nos itens ii e iii, nas quais não há necessidade de
prévia oitiva da parte requerida. Trata-se de observância do disposto
no art. 9º do Código de Processo Civil, reconhecendo-se a diretriz do
contraditório substancial.
176
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

7.5 Tutela liminar possessória


Nesse quadro de tutela provisória, sobressai a discussão sobre o
enquadramento da liminar possessória. O Código de Processo Civil de
2015, no âmbito dos procedimentos especiais, manteve vários do diploma
processual anterior e suprimiu alguns, destacando-se o procedimento
especial das ações possessórias (arts. 554 a 568).
A tutela da posse – particularmente em se tratando de situação
de esbulho – tem por fundamento o tempo da posse. Vale dizer: na
definição do procedimento, é preciso saber se a pretensão foi ajuizada
dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho (art. 558).
Verificando-se situação de tutela da posse nova, o procedimento
poderá ser o especial, com destaque para a liminar possessória (art.
562), ou seja, a tutela satisfativa em cognição sumária. Nesse sentido,
a tutela provisória seria de urgência ou de evidência?
O questionamento se afigura relevante, pois, se a posse é nova, o
dano e a urgência são legalmente presumidos. Ao requerente, cumpre
apenas demonstrar o exercício fático da posse. Tratar-se-ia, pois, de
tutela provisória de evidência, nos termos do art. 311 do Código de
Processo Civil?
A resposta é negativa. A uma, porque a tutela possessória não se
encontra no rol da referida regra. A duas, porque as únicas hipóteses
legais de tutela de evidência liminar envolvem prova meramente
documental e tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em
súmula vinculante (art. 311, I); ou pedido reipersecutório fundado em
contrato de depósito (art. 311, II).
Muito antes do Código de Processo Civil de 2015, entendia
Humberto Theodoro Júnior que os interditos possessórios se inseriam
no âmbito da tutela do direito evidente:
Descarto, pois, o tratamento indiscriminado das liminares, no direito
processual brasileiro, como medidas cautelares. Muitas delas não se
baseiam sequer no periculum in mora, mas na conveniência da tutela
do direito evidente, como é o caso dos interditos possessórios e das
ações locatícias, a propósito das revisionais e renovatórias, onde se
cuida de assegurar efeitos econômicos imediatos, sem o pressuposto
do periculum in mora.6

Em verdade, a tutela especial da posse poderia ser enquadrada


como tutela provisória de urgência (art. 300). O fato, como já sublinhado,

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela jurisdicional de urgência. 2. ed. Rio de Janeiro:


6

América Jurídica, 2001, p. 7.


MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES
TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA
177

é que, tratando-se de posse nova, o dano ou o risco são legalmente presu-


midos. Destarte, a tutela liminar da posse nova seria uma modalidade
diferenciada de provimento provisório de urgência.
No caso da tutela da posse velha, o procedimento, segundo o
parágrafo único do art. 558 do Código de Processo Civil, será comum,
o que, por certo, não exclui a possibilidade de tutela de urgência. Nessa
situação, cabe ao requerente o ônus de demonstrar a probabilidade do
direito e, principalmente, o perigo de dano ou o risco ao resultado útil
do processo.
No mais das vezes, até pela efetividade, a tutela possessória
seguirá o procedimento especial. Ainda, nessa situação, o Código de
Processo Civil parece apontar algumas incoerências. Vejamos.
O pressuposto da tutela liminar possessória pelo procedimento
especial é a posse nova (art. 558). Porém, segundo o art. 565, no litígio
coletivo pela posse do imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado
na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de
apreciar o pedido de liminar, deverá designar audiência de mediação.
Como apreciar o pedido de tutela de urgência há mais de um ano e
um dia se o pressuposto da própria liminar possessória é a tutela da
posse nova? A regra parece sugerir que o pedido de tutela liminar foi
apresentado dentro de ano e dia, mas sua apreciação se verificou após
tal lapso temporal. A demora na apreciação do pedido liminar ensejará
a designação de audiência de mediação.
A inconsistência parece insuperável.
Não se pode limitar a tutela provisória possessória de urgência
pela demora da prestação jurisdicional. O tempo do processo não pode
ser um ônus para o autor.
De outro lado e com fundamento no art. 3º, §3º, do Código de
Processo Civil, deve ser incentivada a autocomposição, a resolução
consensual dos conflitos.
Para dirimir essa incoerência, defende-se, em conflitos coletivos
possessórios, seja posse nova ou posse velha, a realização de audiência
de mediação.
A preocupação com autocomposição se destaca pelo teor do
§1º do art. 565, segundo o qual, concedida a liminar, se esta não for
executada no prazo de 1 (um) ano, a contar da data de distribuição,
caberá ao juiz designar audiência de mediação.
Em síntese, a tutela judicial da posse se diferencia pelo tempo
da posse e pela natureza do conflito. Como forma de compatibilizar
a aparente incoerência entre as regras veiculadas pelos arts. 558 e
565, defende-se a necessidade de audiência de mediação em conflitos
178
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

possessórios coletivos, não se afirmando a possibilidade da tutela de


urgência liminar.
Diferencia-se a tutela possessória do regime geral previsto nos
artigos 294 a 311. Trata-se de tutela provisória especial incidental de
urgência.

7.6 Conclusão
A efetiva realização do direito material deve ser o objeto do
processo. Nesse sentido, devem ser pensadas e implementadas as mais
diversas técnicas processuais.
Muito salutar a disciplina geral do Código de Processo Civil da
tutela provisória, compreendendo, no âmbito da cognição sumária, as
tutelas de urgência e de evidência, com destaque para a estabilização
da tutela de urgência antecipada antecedente, o que não exclui a possi-
bilidade de aprimoramento das tutelas, como, v.g., a igual estabilização
da tutela de urgência cautelar em caráter antecedente.
A partir da lógica trazida pelo atual Código de Processo Civil,
pode-se pensar a tutela da posse nova a partir de provimento provisório
especial incidental de urgência. Trata-se de tutela que não se ajusta,
à perfeição, à moldura prevista no art. 294 e seguintes desse diploma
legal, o que também não afasta a possibilidade de tutela provisória da
posse velha mediante mecanismo de urgência.

Referências
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru:
Universidade do Sagrado Coração, 2005.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela jurisdicional de urgência. 2. ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2001.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Tutela provisória e a liminar possessória. In:


BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos
e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 169-178. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 8

REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO.


CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE
PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)

Humberto Theodoro Júnior

8.1 Introdução
O CPC/2015 mantém o sistema unitário da relação processual,
no qual não existe uma nova ação – a actio iuticati, distinta da ação
condenatória –, outrora necessária para que o credor pudesse fazer atuar
concretamente o comando sentencial. Uma única relação processual se
presta ao acertamento do direito subjetivo material da parte e à realização
da prestação jurisdicional juris-satisfativa. Diante dos títulos executivos
judiciais, não há duas ações (uma para emissão da sentença, e outra para
sua execução forçada). Um só e único processo se compõe de duas fases:
a primeira, de certificação do direito subjetivo do credor, descumprido
pelo devedor; e a segunda, que, sem solução de continuidade, enseja a
prática dos atos judiciais de cumprimento da sentença pronunciada no
primeiro estágio do procedimento. É por isso que se fala em processo
“unitário” ou “sincrético”.

8.2 Abolição dos embargos à execução do título judicial


Uma vez que não há mais ação de execução de sentença civil
condenatória, desaparece também a ação incidental de embargos do
devedor no âmbito do cumprimento dos títulos judiciais. Sendo única
a relação processual em que se obtém a condenação e lhe dá cumpri-
mento, as questões de defesa devem, em princípio, ficar restritas à
180
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

contestação, onde toda matéria oponível à pretensão do credor haverá


de ser exposta e avaliada.
No entanto, como os atos executivos se sujeitam a requisitos legais,
não se pode pretender realizá-los sem propiciar às partes o adequado
controle de legalidade. A garantia constitucional do contraditório exige
que ao executado seja dada oportunidade de se manifestar e de se
defender, diante de cada ato processual executivo, ou de preparação
do provimento satisfativo pretendido pelo exequente.
A peça básica de defesa do executado é a impugnação ao cumpri-
mento da sentença, que pode ser produzida no prazo de quinze dias
contados da intimação1 para realização voluntária correspondente à
obrigação certificada no título judicial (NCPC, arts. 523 e 525).2
Vê-se, assim, que o executado, após a intimação para pagar
a dívida, terá o prazo trinta dias úteis (art. 219)3 4 para apresentar a
impugnação: quinze dias para realizar o pagamento voluntário, e mais

1
Para o novo CPC, a ciência inequívoca da parte equivale à sua intimação: (a) “CONTESTAÇÃO –
Intempestividade – Caracterização – Comparecimento espontâneo do demandado – Termo
inicial da contagem – Juntada de procuração ao processo – Ciência inequívoca – Aplicação
do art. 239, §1º, do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15)” (TJ/SP, 2ª Câm. de Direito
Privado, AgIn nº 2001205-74.2016.8.26.0000, Rel. Des. Alvaro Passos, data do julgamento
25.08.2016, data do registro 25.08.2016); (b) “O cômputo do prazo para a interposição do
agravo de instrumento deve se dar a partir da data em que ocorreu a ciência inequívoca
da decisão, ou seja, da formulação de pedido de reconsideração perante o R. Juízo a quo e
não da disponibilização desta no DJE” (TJ/SP, 30ª Câm. de Direito Privado, AgIn 2113476-
26.2016.8.26.0000, Rel. Des(a). Maria Lúcia Pizzotti, data do julgamento 28.09.2016, data do
registro 07.10.2016).
2
O TJ/SP decidiu que, por enquanto, não há condições necessárias à intimação da Fazenda
Pública por meio eletrônico: “Agravo de Instrumento. Embargos à execução. Cumprimento
de sentença. Decisão que indeferiu o pedido de intimação da Fazenda por meio eletrônico.
Pretensão à reforma. Desacolhimento. Impossibilidade, por ora, da realização de intimação
por meio eletrônico da Fazenda Pública, no âmbito deste Tribunal de Justiça. Inteligência do
artigo 270 do NCPC” (TJ/SP, 18ª Câm. de Direito Público, AgIn nº 2105973-51.2016.8.26.0000,
Rel. Des. Ricardo Chimenti, data do julgamento 03.11.2016, data do registro 08.11.2016).
3
A contagem dos prazos em dias úteis, segundo o TJ/SP, aplica-se tanto aos processos regulados
pelo CPC, como por leis especiais: “Alienação fiduciária. Ação de busca e apreensão. Aplicação
do novo Código de Processo Civil no tocante à forma de contagem dos prazos. Cabimento.
Falta de disciplina sobre o tema na lei especial que impõe adotar o regime comum traçado
pelo CPC, inexistindo motivo para se aplicar forma de contagem de lei já revogada” (TJ/SP,
36ª Câm. de Direito Privado, AgIn 2148811-09.2016.8.26.0000, Rel. Des. Arantes Theodoro,
data do julgamento 25.08.2016, data do registro 25.08.2016).
4
A contagem em dobro, de acordo com o TJ/SP, refere-se aos prazos processuais, e não
aos de direito material: “Agravo de instrumento – tutela antecipada requerida em caráter
antecedente – sustação de protestos – art. 303 do Código de Processo Civil – tutela cautelar
efetivada – pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 dias – natureza
jurídica do prazo do art. 308 do Código de Processo Civil – material – prazo que deve ser
contado em dias corridos e não em dias úteis” (TJ/SP, 16ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº
2150988-43.2016.8.26.0000, Rel. Des. Coutinho de Arruda, data do julgamento 03.11.2016,
data do registro 03.11.2016).
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
181

quinze dias para a impugnar o cumprimento da sentença, se for o caso.


E tal prazo se conta agora independentemente de penhora ou depósito,
pondo fim à controvérsia doutrinária ao tempo do CPC/1973 acerca de
ser ou não a garantia da execução o marco inicial do prazo da defesa do
executado.5 Ou seja, o executado pode apresentar a impugnação sem
qualquer garantia prévia do juízo.6 Não haverá contagem em dobro do
respectivo prazo, mesmo em caso de litisconsortes representados por
advogados diferentes, se o processo for eletrônico.7

8.3 Natureza jurídica da impugnação


A impugnação ao cumprimento da sentença não tem a natureza
de ação, como se dá com os embargos à execução de título extrajudicial.
Estes, sim, podem conter ataques ao direito material do exequente, tal
como se passa nos prosseguimentos do processo de conhecimento. E,
por isso, deságuam em provimento que pode tanto certificar a existência
como a inexistência do direito subjetivo substancial, que se pretendeu
executar em juízo.
Uma vez que a dívida exequenda já foi acertada por sentença, não
cabe ao executado reabrir discussão sobre o mérito da condenação. Sua
impugnação terá de cingir-se ao terreno das preliminares constantes dos
pressupostos processuais e condições da execução. Matérias de mérito
(ligadas à dívida propriamente dita) somente poderão se relacionar
com fatos posteriores à sentença que possam ter afetado a subsistência,
no todo ou em parte, da dívida reconhecida pelo acertamento judicial

5
A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao cumprimento
da sentença (...). Se o dispositivo – art. 475-J, §1º, do CPC [de 1973] – prevê a impugnação
posteriormente à lavratura do auto de penhora e avaliação, é de se concluir pela existência de
garantia do juízo anterior ao oferecimento da impugnação (...) (STJ, 3ª T., REsp nº 1.195.929/
SP, Rel. Min. Massami Uyeda, ac. 24.04.2012, DJe 09.05.2012). Nossa opinião, todavia, era no
sentido de que “a referência à penhora, no aludido dispositivo legal não deve ser entendida
como definidora de um requisito do direito de impugnar o cumprimento da sentença. O
intuito do legislador no §1º, do art. 475-J foi apenas o de fixar um momento processual em
que a impugnação normalmente deva ocorrer” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso
de direito processual civil. 49. ed. v. II. n. 652. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 58).
6
A impugnação ao cumprimento da sentença não impede o credor de proceder ao protesto
e à inscrição do devedor em cadastro de proteção ao crédito (TJ/SP, 1ª Câm. Reservada de
Direito Empresarial, AgIn nº 2211802-21.2016.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, data do
julgamento 24.11.2016, data do registro 24.11.2016; TJ/SP, 13ª Câm. de Direito Privado, AgIn
nº 2195397-07.2016.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Giaquinto, data do julgamento 04.11.2016,
data do registro 04.11.2016).
7
TJ/SP, 14ª Câm. de Direito Privado, Ap 1023351-50.2015.8.26.0554, Rel. Des. Carlos Abrão,
data do julgamento 02.12.2016, data do registro 02.12.2016.
182
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

condenatório, como o caso de pagamento, novação, remissão, compen-


sação, prescrição etc., ocorridos supervenientemente.
A mesma razão que levou a extinguir a ação de embargos do
devedor prevalece também para os embargos à arrematação e à adjudi-
cação. Se os primeiros foram transformados explicitamente em simples
impugnação, não há razão para se manter a natureza de ação incidental
para o ataque aos atos executivos posteriores à penhora. Num e noutro
caso, os questionamentos do executado haverão de ser feitos por meio
de incidentes no bojo do próprio procedimento de cumprimento da
sentença. A solução sempre será encontrada por meio de decisão inter-
locutória, e o recurso interponível será o agravo de instrumento,8 9 salvo
quando a decisão decretar a extinção da execução.10
A impugnação – a exemplo do que se admitia nas chamadas
exceções de pré-executividade ou objeção de não executividade – manifesta-se
por meio de simples petição no bojo dos autos. Não se trata de petição
inicial de ação incidental, como é o caso dos embargos à execução de
título extrajudicial. Por isso, não há citação do credor e nem sempre se
exige autuação apartada. Cumpre-se, naturalmente, o contraditório,
ouvindo-se a parte contrária e permitindo-se provas necessárias à
solução da impugnação.11

8
Os embargos à arrematação e à adjudicação passam a constituir ação que diz respeito,
como regra geral, à execução fundada em título executivo extrajudicial. Incidentes relativos
à expropriação apoiada em título executivo judicial devem ser resolvidos, doravante e
via de regra, dentro do próprio processo originário, em sua fase executiva, mostrando-se
inadequado o ajuizamento de embargos de segunda fase (OLIVEIRA, Robson Carlos de.
Embargos à arrematação e à adjudicação. v. 59. São Paulo: RT, 2006, p. 322 – Coleção estudos
de direito de processo Enrico Tullio Liebman).
9
A partir da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, inexiste razão para que os
recursos interpostos antes da ocorrência do termo inicial do prazo deixem de ser conhecidos
sob a alegação de intempestividade – Art. 218, §4º, do NCPC (TJ/SP, 31ª Câm. de Direito
Privado, AgIn nº 2196581-95.2016.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Nunes, data do julgamento
18.10.2016, data do registro 18.10.2016).
10
É sentença o ato que extingue a execução: “Impossibilidade de interposição de agravo de
instrumento contra pronunciamento que extingue a execução – Recurso cabível de apelação –
Dicção dos artigos 203, §1º e 1.009, caput do novo Código de Processo Civil” (TJ/SP, 28ª Câm.
de Direito Privado, AgIn nº 2143233-65.2016.8.26.0000, Rel. Des. Mario Chiuvite Júnior, data
do julgamento 10.11.2016, data do registro 10.11.2016).
11
Necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais, ainda que de modo conciso,
sob pena de nulidade – Inteligência dos artigos 11, do novo Código de Processo Civil, vigente
à época da prolação da decisão agravada, e 93, inciso IX, da Constituição Federal (TJ/SP,
24ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2169787-37.2016.8.26.0000, Rel. Des. Plinio Novaes de
Andrade Júnior, data do julgamento 27.10.2016, data do registro 19.12.2016).
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
183

8.4 Defesa de mérito


Em regra, a impugnação do devedor restringe-se às irregula-
ridades dos atos executivos, já que não se pode permitir ataque ao
mérito da causa resolvido na sentença exequenda. A coisa julgada a
torna imutável e indiscutível (CPC/2015, art. 502). A obrigação certificada
judicialmente, sem embargo da intangibilidade da sentença, tem, no
entanto, vida própria, a qual pode sofrer modificações, impedimentos
e até extinção por eventos supervenientes ao trânsito em julgado. O
pagamento e a remissão, por exemplo, quando ocorridos após a sentença,
extinguem a obrigação certificada no título judicial, impedindo a insta-
lação ou o prosseguimento da segunda fase do processo unitário (fase
executiva ou de cumprimento da sentença).12
O mesmo se passa com a prescrição, cuja arguição, não sendo feita
antes da sentença, sofre o efeito inibidor da preclusão máxima derivada
da coisa julgada (NCPC, art. 508), o que, entretanto, não impede que novo
lapso prescricional possa se iniciar e consumar depois da res iudicata.
Eventos dessa natureza, obviamente, podem ser suscitados
na impugnação ao cumprimento da sentença sem que se afete a sua
autoridade de coisa julgada (CPC/2015, art. 525, §1º, VII). A executi-
vidade, todavia, ficará suprimida, uma vez extinta a obrigação definida
na sentença, ou a pretensão dela oriunda, se eventualmente a defesa
do executado for acatada.13

8.5 A prescrição é basicamente um fenômeno do direito


material
Dentre as duas grandes propostas de conceituação da prescrição
encontradas no direito comparado – a do direito alemão (extinção da
pretensão não exercida no prazo legal) e a do direito italiano (extinção do
direito por falta de exercício pelo titular durante o tempo determinado

12
Extinção do processo executivo por sentença. Homologação judicial de acordo celebrado
pelas partes. Substituição do título executivo pelo acordo. Descumprimento da avença.
Possibilidade de protesto da decisão judicial, se transitada em julgado e o prazo para
pagamento voluntário do débito tiver expirado. Exegese do art. 517 do CPC/2015 (TJ/SP,
34ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2162001-39.2016.8.26.0000, Rel. Des. Gomes Varjão,
data do julgamento 28.09.2016, data do registro 30.09.2016).
13
É nula a sentença que não se manifesta sobre todos fundamentos e fatos invocados pelas
partes, e julga a ação procedente sem atentar para a pretensão acidentária do benefício,
caracterizando ofensa ao princípio da fundamentação dos atos processuais (TJ/SP, 17ª Câm.
de Direito Público, Ap. nº 0000291-67.2011.8.26.0146, Rel. Des. Afonso Celso da Silva, data
do julgamento 27.09.2016, data do registro 29.09.2016).
184
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

em lei) –, o atual Código Civil brasileiro optou pelo primeiro modelo,


que, à luz do seu art. 189,14 pode assim ser explicado: “A prescrição
faz extinguir o poder de uma pessoa de exigir de outra uma prestação
(ação ou omissão), ou seja, provoca a extinção da pretensão, quando não
exercida no prazo definido na lei”.15
A compreensão desse posicionamento normativo exige que
se faça uma nítida distinção entre direito subjetivo e pretensão, já que,
para nosso Código Civil, “não é o direito subjetivo descumprido pelo
sujeito passivo que a inércia do titular faz desaparecer, mas o direito
de exigir em juízo a prestação inadimplida que fica comprometido
pela prescrição”.16
Quem, por exemplo, é titular de um crédito não vencido detém,
sem dúvida, um direito subjetivo. Acha-se, porém, numa situação jurídica
estática ou de inércia momentânea perante o devedor. Se, todavia, a
obrigação se vence e o devedor deixa de resgatá-la, nasce para o credor
o poder de exigir a prestação a que se obrigou o devedor, cabendo, por
isso, atuar em juízo, se necessário for, para fazer prevalecer a pretensão
oriunda da violação cometida contra seu direito subjetivo. Assim, a
situação jurídica torna-se dinâmica diante do nascimento da pretensão.
A anspruch (isto é, a pretensão), segundo Windscheid, citado por
Pugliese, nada mais é do que o direito de postular a eliminação da violação
de um direito primário; portanto, é uma figura distinta do direito violado,
cuja não satisfação seria a condição da actio.17
Para nosso Código Civil, nessa ordem de ideias, não é nem o direito
subjetivo material da parte, nem o direito processual de ação (direito à
sentença) que será objeto da prescrição, mas, sim e apenas, “a pretensão
de obter a prestação devida por quem a descumpriu (actio romana ou
ação em sentido material)”.18
Tampouco se pode afirmar que o titular do direito material
alcançado pela prescrição perca o direito processual de ação, visto que
tal direito se exprime como poder de exigir do juiz uma decisão que

14
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 157.
15
Código Civil/2002, art. 189: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se
extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
16
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 158.
17
PUGLIESE, Giovanni. Actio e dirittosubiettivo. n. 43. Milano: Giuffrè, 1939, p. 253, apud
MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do Projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 1986, p. 151, nota 7.
18
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 160.
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
185

solucione o conflito de direito material, sem indagação de qual parte


esteja com a razão no plano substancial. E quando se reconhece ou
se recusa a configuração da prescrição, o litígio, sem dúvida, resulta
composto pelo mérito (CPC, art. 487, II).
Quanto à sobrevivência do direito substancial, mesmo após a
prescrição, é bom que se diga que “o direito subjetivo, embora desguar-
necido da pretensão, subsiste, ainda que de maneira débil (porque não
amparado pelo direito de forçar o seu cumprimento pelas vias jurisdi-
cionais), tanto que, se o devedor se dispuser a cumpri-lo, o pagamento
será válido e eficaz, não autorizando repetição de indébito (art. 882)”.19
A par disso, a subsistência do direito subjetivo do credor violado
pelo devedor, após o transcurso do lapso prescricional, é evidenciada
também pela faculdade reconhecida ao devedor de renunciar aos efeitos
da prescrição já consumada, o que pode acontecer de forma expressa
ou tácita (Código Civil, art. 191).
É certo que o art. 194 do Código Civil, que vedava o reconhe-
cimento da prescrição pelo juiz, de ofício, foi revogado pela Lei nº
11.280/2006, tornando possível a respectiva decretação, independen-
temente de requerimento do interessado. Isto, porém, só será feito
depois de ouvidas as partes, as quais poderão evidenciar a ocorrência
de impedimentos ou de suspensão da fluência do prazo prescricional,
ou viabilizar a renúncia aos efeitos extintivos da prescrição (CPC/2015,
art. 487, parágrafo único).20
Nessa perspectiva, as Jornadas de Direito Civil, patrocinadas
pelo Centro de Estudos Jurídicos (CEJ) do Conselho da Justiça Federal,
emitiram o Enunciado nº 295, assim redigido: “A revogação do art.
194 do Código Civil pela Lei nº 11.280/2006, que determina ao juiz o

19
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302.
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 158.
20
(a) “EXECUÇÃO – PRESCRIÇÃO – ‘DECISÃO-SUPRESA’ – Pretensão de reforma da
respeitável sentença que extinguiu o processo, reconhecida a prescrição da pretensão
executiva – Cabimento – Hipótese em que deve ser anulada a respeitável sentença, pois não
houve prévia manifestação da parte acerca do decurso do prazo prescricional – Vedação da
chamada ‘decisão-surpresa’, nos termos do novo Código de Processo Civil (arts. 9º E 10º)” (TJ/
SP, 13ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 0042876-03.2006.8.26.0602, Rel. Des(a). Ana de Lourdes
Coutinho Silva da Fonseca, data do julgamento 15.09.2016, data do registro 15.09.2016); (b)
“Patente a afronta ao artigo 10 do CPC – Antes de desconstituir a constrição com base na
simples nota de devolução, o Juízo a quo deveria oportunizar à parte a manifestação sobre
o documento, – Decisão anulada” (TJ/SP, 11ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2149313-
45.2016.8.26.0000, Rel. Des. Marino Neto, data do julgamento 18.10.2016, data do registro
18.10.2016); (c) Todavia, não se anula o ato se a “decisão surpresa” não causou prejuízo
à parte (TJ/SP, 12ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2144216-64.2016.8.26.0000, Rel. Des.
Cerqueira Leite, data do julgamento 11.10.2016, data do registro 11.10.2016).
186
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possi-


bilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado”. Por
isso mesmo, a lição de Arruda Alvim, mesmo antes do novo Código
de Processo Civil de 2015, já era no sentido de não poder o juiz, sem
ouvir o réu e o autor, pura e simplesmente, indeferir a pretensão objeto
da prescrição, de ofício.21
A estrutura clássica da arguição da prescrição em juízo sempre
foi a de uma exceção de direito material (defesa de mérito, manejável por
iniciativa do demandado).22 A possibilidade de a questão ser suscitada
por iniciativa do juiz não altera a natureza da decisão. Se a matéria está
afetada ao mérito da causa, a solução que lhe dê o juiz somente poderá
ser qualificada como julgamento de mérito, suscetível, portanto, de
revestir-se da autoridade de coisa julgada material (CPC, art. 502).
Com maior razão, esse entendimento se aplica ao regime da lei que
trata a prescrição como causa de extinção do direito subjetivo, a exemplo do
Código Civil italiano. Se assim é, seja em nosso direito, seja no italiano,
ao acolher a exceção de prescrição formulada pelo demandado, o juiz
estará pronunciando a rejeição do próprio pedido do autor constante
da petição inicial. Configurar-se-á, portanto, a forma mais típica de
resolução do mérito, qual seja, a do acolhimento ou rejeição do pedido
formulado na ação (CPC/2015, art. 487, I).

8.6 Prescrição da pretensão condenatória e da pretensão


executiva
Dentre as matérias de mérito arguíveis na impugnação ao cumpri-
mento da sentença, figura a prescrição, se acaso tiver ela ocorrido após a
coisa julgada (CPC/2015, art. 525, §1º, VII). A propósito, está sumulado
o entendimento do STF de que há duas prescrições distintas: (i) a da
pretensão veiculada no processo de conhecimento e (ii) a da execução
da condenação obtida com a sentença. O prazo a observar, nas duas
situações, é, no entanto, o mesmo (Súmula nº 150/STF).
O novo Código de Processo Civil, por sua vez, não deixa dúvida
de que continuam a existir as duas prescrições distintas e sucessivas:
uma, para a pretensão condenatória; outra, para a pretensão executiva.

21
ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel. Lei 11.280, de 16.02.2006: análise dos arts. 112, 114
e 305, do CPC e do §5º, do art. 219, do CPC. Revista de Processo, v. 143, p. 23, jan. 2007.
22
Segundo o art. 487, II, do CPC/2015, “haverá resolução de mérito quando o juiz (...) decidir,
de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição”.
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
187

Tanto é assim que, transformado o procedimento cognitivo em executivo,


admite-se, entre as defesas possíveis contra o cumprimento da sentença
transitada em julgado, a exceção de prescrição, desde que superveniente ao
aperfeiçoamento do título judicial (art. 525, §1º, VII). Por isso, é evidente
que a Súmula nº 150 do STF não restou invalidada com o advento da
atual sistemática de cumprimento do título executivo judicial.23
Outra questão que o novo CPC superou foi a da prescrição inter-
corrente (art. 924, V), que pode se consumar tanto no curso do processo
de conhecimento quanto no de execução, embora o dispositivo legal
aludido só se refira à execução.24 O seu pressuposto é o abandono do
feito, pelo autor, deixando-o paralisado por tempo superior ao prazo
prescricional aplicável ao caso. Há, entretanto, no art. 1.056, uma regra
de direito intertemporal, que veda a contagem da prescrição intercor-
rente em período anterior à vigência do novo CPC.25

8.7 Um caso particular de prescrição e decadência:


a sentença da ação de repetição do pagamento
indevido
Quando a sentença resolve questão ligada à invalidação de
cláusula contratual ou do próprio contrato, costumam-se reunir num
só processo duas pretensões: a de invalidar o negócio viciado e a de
recuperar os pagamentos indevidamente feitos em função do ajuste
nulo ou anulado.

23
Não obstante a concepção do cumprimento do título judicial, como incidente do processo
único previsto para certificação e realização do direito do credor, continua persistindo o
discernimento entre a pretensão de acertamento e a de execução, de modo a sujeitar cada
uma delas a uma prescrição própria e não contemporânea. Primeiro, flui a da pretensão de
condenação; depois, a da pretensão de fazer cumprir a respectiva sentença (THEODORO
JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. n. 52. Rio de Janeiro: Forense,
2016, p. 92). No mesmo sentido: STJ, 2ª T., REsp nº 1.072.882/SP, Rel. Min. Castro Meira,
ac. 20.11.2008, DJe 12.12.2008; STJ, 1ª T., AgRg no Ag nº 1.418.380/RS, Rel. Min. Arnaldo
Esteves Lima, ac. 15.12.2011, DJe 02.02.2012; STJ, 1ª T., AgRg no AREsp nº 186.796/PR, Rel.
Min. Napoleão Nunes Maia Filho, ac. 25.06.2013, DJe 07.08.2013.
24
Em execução fiscal, o reconhecimento da prescrição intercorrente não enseja remessa ex officio:
“Inteligência do art. 496, §3º, inciso III, do novo Código de Processo Civil – Reexame necessário
não conhecido” (TJ/SP, 18ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 0530167-77.2007.8.26.0266, Rel.
Des. Wanderley José Federighi, data do julgamento 24.11.2016, data do registro 28.11.2016).
25
O artigo 1.056 do Novo Código de Processo Civil determina que se considerará como termo
inicial do prazo para a prescrição a que alude o art. 924, V, a data de vigência da nova lei
adjetiva, inclusive para as execuções em curso (TJ/SP, 37ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº
1006835-17.2014.8.26.0577, Rel. Des. Pedro Kodama, data do julgamento 22.11.2016, data
do registro 22.11.2016).
188
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Não há no Código Civil a previsão específica do prazo prescri-


cional aplicável à repetição do indébito. Existe, porém, a regra do seu
art. 206, §3º, IV, que estabelece o prazo de três anos para “a pretensão
de ressarcimento de enriquecimento sem causa”. Seria esta a prescrição
aplicável à repetição do pagamento indevido? Ou seria a prescrição
decenal genérica do art. 205?
Em diversas hipóteses de repetição de pagamento efetuado com
base em cláusula negocial abusiva ou nula, o STJ, inclusive em recursos
repetitivos, tem assentado a tese de que, com o reconhecimento judicial
da nulidade ou com a invalidação promovida em juízo, desaparece a
causa lícita do pagamento, caracterizando, assim, o enriquecimento indevido
daquele que o recebeu.
Nessa perspectiva, o enriquecimento sem causa, visto mais
como um princípio do que como um instituto, abrange, para efeito
prescricional, a pretensão de recuperação do pagamento realizado
em função do negócio ou cláusula invalidados. Por conseguinte, a
pretensão de reconhecimento de nulidade de cláusula de reajuste de
preço, constante de determinado contrato – como, v.g., o de plano de
saúde, com a consequente repetição do indébito –, corresponde à ação
fundada no enriquecimento sem causa, de modo que o prazo prescricional
a aplicar é o trienal de que trata o art. 206, §3º, IV, do Código Civil.26
Para a aplicação da prescrição própria do enriquecimento sem
causa, na espécie, não importa que a ação seja declaratória (de nulidade),
insuscetível de prescrição ou constitutiva (de nulidade), sujeita a prazo
decadencial, visto que, a respeito da repetição do pagamento indevido,
a pretensão é de natureza condenatória. A qualquer tempo, o requeri-
mento do contratante de reconhecimento da cláusula contratual abusiva
ou ilegal poderá ser deduzido em juízo. “Porém, sua pretensão conde-
natória de repetição do indébito terá que se sujeitar à prescrição das
parcelas vencidas no período anterior à data da propositura da ação,
conforme o prazo prescricional aplicável”, como ressaltado no REsp.
nº 1.361.182/RS, pela 2ª Seção do STJ.

STJ, 2ª Seção, REsp. nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac.
26

10.08.2016, DJe 19.09.2016. A mesma tese foi aplicada à cláusula que abusivamente imputava
ao promissário comprador a obrigação de pagar comissão de corretagem ou de serviço de
assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere. Também aqui, em caráter
uniformizador da jurisprudência, foi fixada a tese da incidência da prescrição trienal própria
da pretensão de ressarcimento do enriquecimento sem causa (Código Civil, art. 206, §3º, IV)
(STJ, 2ª Seção, REsp. nº 1.551.956/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ac. 24.08.2016,
DJe 08.09.2016).
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
189

8.8 Visão pretoriana moderna do enriquecimento sem


causa
O voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze no REsp nº 1.361.182,
que foi o condutor do respectivo acórdão, contém uma larga história
do enriquecimento sem causa como fonte de obrigação, tanto no direito
comparado como no direito brasileiro. Nele se faz uma resenha de
como o tratamento legal da matéria evoluiu desde o Código Civil de
1916 até o vigente Código de 2002, de modo a evidenciar, com ampla
invocação de precedentes do STJ, que o instituto do enriquecimento
sem causa foi adotado, entre nós, em seu sentido mais amplo possível.
Por isso, qualquer que seja a origem do locupletamento ilícito,
mesmo o derivado de relações contratuais, sempre será possível o
seu enquadramento nos parâmetros do enriquecimento sem causa.
Dentre as diversas hipóteses de enriquecimento sem causa, figura
aquela correspondente à “ausência de causa jurídica para a recepção
da prestação que foi realizada”, devendo esta ausência de causa ser
definida em sentido subjetivo, “como não obtenção do fim visado
com a prestação”. Caberá a restituição da prestação sempre que for
realizada com vistas à obtenção de determinado fim, e tal fim não
vier a ser obtido”, no dizer de Menezes Leitão.27
Nesse sentido, além da doutrina alemã citada no acórdão do STJ,
são invocadas as lições de Agostinho Alvim, que inspirou o Código
de 2002, e de Menezes Leitão, formulada em análise direta de nosso
atual Código Civil. Por fim, arrola o Ministro Marco Aurélio Bellizze
vários acórdãos do STJ para demonstrar que, em sua jurisprudência,
é firme o entendimento de que o pagamento indevido em função de
cláusula contratual nula ou abusiva se sujeita à repetição, dentro do
prazo prescricional do ressarcimento do enriquecimento sem causa
(Código Civil, art. 206, §3º, IV),28 isto porque – aduz o ilustre Ministro –
“é entendimento assente desta Corte que a repetição é consequência lógica
do reconhecimento judicial da ilegalidade de cláusulas contratuais abusivas
e do acolhimento do pedido de restituição do que foi pago a mais, em atenção

27
MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código
Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 28.
28
STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.220.934/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, ac. 24.04.2013, DJe
12.06.2013; STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.249.321/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, ac. 10.04.2013,
DJe 16.04.2013; STJ, 3ª T., REsp nº 1.238.737/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. 08.11.2011,
DJe 17.11.2011.
190
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, prescindindo, pois, da


prova do erro prevista no art. 965 do Código Civil”.29
Toda essa rica orientação pretoriana provém de uma visão do
fenômeno do enriquecimento sem causa que não fica restrito à sua
função subsidiária lembrada pelo art. 886 do Código Civil. De fato,
por derivação do caráter subsidiário ou complementar (Código Civil,
art. 886), atribuído costumeiramente ao enriquecimento sem causa,
como fonte da obrigação de ressarcir o dano provocado por aquele que
se locupleta, sem justa causa, com o prejuízo de outrem, é recorrente
atribuir-lhe o feitio de um instituto jurídico destinado a completar o
sistema de reparação do dano injusto nas relações patrimoniais (art.
884). Mas não é só nas lacunas do sistema repressivo do prejuízo
injusto que o enriquecimento sem causa opera. Há, nas previsões do
direito civil, vários institutos que, se destinando a gerar a obrigação
de ressarcir o prejuízo injusto, embora de maneira típica, encontram
fundamento primário na repressão necessária ao enriquecimento
sem causa.
Pense-se, por exemplo, na obrigação do dono de indenizar
benfeitorias necessárias introduzidas pelo possuidor de coisa alheia,
ainda que de má-fé (Código Civil, art. 1.220), bem como na obrigação
do dono do negócio de reembolsar ao gestor as despesas necessárias
ou úteis que este houver feito na administração benéfica do interesse
alheio (Código Civil, art. 869). Estes e outros casos correspondem a
obrigações de ressarcir regulados pela lei de maneira própria e com
requisitos específicos. Todos, porém, se inspiram, em última análise,
no princípio geral que veda o enriquecimento sem causa.
É por isso que todos esses institutos, naquilo que não contarem
com regras específicas, poderão se valer da sistemática do regime do
enriquecimento sem causa, para se completarem, como, por exemplo,
faz convincentemente a jurisprudência do STJ em matéria de prescrição
da pretensão de repetição do pagamento indevido.

STJ, 4ª T., Ag Rg no REsp nº 557.301/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, ac. 28.06.2005, DJU
29

22.08.2005, p. 283. Precedentes arrolados: STJ, 4ª T., AgRg no REsp 733.037/RS, Rel. Min.
Aldir Passarinho Júnior, ac. 05.05.2005, DJU 13.06.2005, p. 322; STJ, 3ª T., AgRg no REsp
nº 699.352/RS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, ac. 24.05.2005, DJU 20.06.2005, p. 284;
STJ, 4ª T., AgRg no REsp nº 546.446/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, ac. 07.04.2005, DJU
02.05.2005, p. 356. No mesmo sentido: STJ, 4ª T., AgRg no AREsp nº 182.141/SC, Rel. Min.
Isabel Gallotti, ac. 12.05.2015, DJe 19.05.2015; STJ, 4ª T., AgRg no REsp nº 1.052.209/MG,
Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, ac. 16.06. 2009, DJe 04.08.2009; STJ, 3ª T., AgRg no Ag
1.125.621/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, ac. 19.05.2009, DJe 03.06.2009.
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR
REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)
191

8.9 Observações conclusivas


Prevalecem, enfim, no STJ, os entendimentos seguintes:

(a) O conceito de enriquecimento sem causa no direito moderno não


é unívoco, de modo que sua proibição “consiste apenas numa máxima
de justiça comutativa que se encontra a um nível de abstração tal, que
carece de preenchimento pelo julgador, efetuado pela integração ao caso
numa categoria específica de enriquecimento sem causa”.30
(b) Na mais atualizada concepção, o enriquecimento sem causa é um
largo gênero (mais próximo de um princípio do que mesmo de um
instituto), que abarca tanto o campo da transmissão dos bens como o pro-
longamento da eficácia do direito de propriedade, inserindo-se, de tal modo,
“no âmbito da proteção jurídica dos bens” (WILBURG). Vários tipos ou
hipóteses de fenômeno jurídico podem, exemplificativamente, configurar
enriquecimento sem causa, como o enriquecimento por prestação, por
intervenção, por liberação de dívida paga por terceiro, por despesas efetuadas
em coisa alheia, etc. (VON CAEMMERER).31
(c) “Cuidando-se de pretensão de nulidade de cláusula de reajuste
prevista em contrato de plano ou seguro de assistência à saúde, com a
consequente repetição do indébito, a ação ajuizada está fundada no enri-
quecimento sem causa e, por isso, o prazo prescricional aplicável é o trienal,
previsto no art. 206, §3º, IV, do Código Civil de 2002”.32 (g.n.)
(d) “Tanto os atos unilaterais de vontade (promessa de recompensa, arts.
854 e ss.; gestão de negócios, arts. 861 e ss.; pagamento indevido, arts.
876 e ss.; e o próprio enriquecimento sem causa, arts. 884 e ss.) como os
negociais, conforme o caso, comportam o ajuizamento de ação fundada
no enriquecimento sem causa, cuja pretensão está abarcada pelo prazo
prescricional trienal previsto no art. 206, §3º, IV, do Código Civil de 2002.”
(g.n.) 33

Última observação: mesmo que a ação de repetição do indébito,


decorrente de cláusula contratual abusiva ou nula, tenha sido ajuizada
e julgada sem infringir o prazo trienal de prescrição, é preciso estar
atento ao posterior prazo de prescrição da pretensão executiva, aplicável

30
MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código
Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 25-27 (orientação seguida no REsp
nº 1.361.182/RS).
31
MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código
Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 25-27 (orientação seguida no REsp
nº 1.361.182/RS).
32
STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac. 10.08.2016,
DJe 19.09.2016 (tese firmada em recurso repetitivo).
33
STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac. 10.08.2016,
DJe 19.09.2016 (tese firmada em recurso repetitivo).
192
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

ao cumprimento da sentença condenatória (NCPC, art. 525, §1º, VII).


Se o credor, após o trânsito em julgado da decisão que reconheceu o
seu direito à repetição do pagamento indevido, permanecer inerte,
deixando de requerer a instauração da fase executiva do processo
(NCPC, art. 523, caput), a pretensão ao cumprimento da sentença se
extinguirá em três anos. É bom ter sempre em mente que, a partir da
res iudicata, “prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da
ação” (Súmula nº 150/STF).34

Referências
ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel. Lei 11.280, de 16.02.2006: análise dos arts. 112,
114 e 305, do CPC e do §5º, do art. 219, do CPC. Revista de Processo, v. 143, jan. 2007.
MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código
Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004.
OLIVEIRA, Robson Carlos de. Embargos à arrematação e à adjudicação. v. 59. São Paulo: RT,
2006 ‒ Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman.
PUGLIESE, Giovanni. Actio e diritto subiettivo. Milano: Giuffrè, 1939 apud MOREIRA
ALVES, José Carlos. A parte geral do Projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1986.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. Rio
de Janeiro: Forense, 2008.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. II. Rio de
Janeiro: Forense, 2014.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Repetição de pagamento indevido.


Condenação judicial. Exceção de prescrição (NCPC, art. 525, §1º, VII). In:
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos
e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 179-192. ISBN 978-85-450-0456-1.

34
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. n. 52. Rio de
Janeiro: Forense, 2016, p. 90-93.
CAPÍTULO 9

ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO


DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO
ESTADO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Mariza Rios,
Newton Teixeira Carvalho

9.1 Introdução
A Constituição Federal de 1988 garantiu, no inciso XXXV de seu
art. 5º, o princípio conhecido como acesso à justiça ou direito de ação.
Este princípio foi incorporado ao texto pelo legislador para garantir que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito”1 e, por essa razão, pode-se afirmar que todos têm direito
de requerer a tutela jurisdicional para amparar direito ameaçado ou
conseguir a adequada reparação quando ele é ofendido.
Assim, a consequência lógica natural da Constituição republicana
de 1988 foi o reconhecimento de inúmeros outros direitos no nosso
ordenamento jurídico, razão de ser aquela Lei Maior rotulada, com
perfeição, de inclusiva ao trazer para o mundo do direito inúmeras
pessoas até então marginalizadas.
O citado princípio se apresenta, no contexto brasileiro, como fruto
de uma ordem democrática construída, conectada a uma realidade de
país historicamente marcado pela presença de uma população que,
na sua maioria, é pobre no sentido jurídico da palavra e, portanto,

1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1998. Disponível em: <www2.
senado.gov.br/sf/legislacao/const/>. Acesso em: 23 maio 2017.
194
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

necessita da garantia estatal para que seu direito fundamental de ação


seja efetivado.
Logo após essa nova ordem democrática, formalmente perfeita,
veio uma melhor regulamentação dos direitos das crianças e adoles-
centes, bem como o Código do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para
citar algumas entre várias outras leis.
Entretanto, continuamos um país pobre e com uma população
pouco esclarecida em relação aos seus direitos. Assim, para que a
Constituição Cidadã atinja a todos, sem distinção, necessário é que as
pessoas que não podem contratar advogado para a realização de atos e
negócios e também para que, havendo discussão, possam ajuizar a ação
necessária, não basta garantir formalmente direitos, mas que tenham
a devida e imediata atenção. Essencial, neste momento, a presença do
Estado, por meio de suas instituições, com os esclarecimentos almejados
e com advogados prontos para ajuizar a ação competente. Indispensável
também que o Poder Judiciário não dificulte o acesso dos hipossuficientes
economicamente falando, com a ação necessária, inclusive exigindo,
indevidamente, com a inicial, a prova de que o requerente é pobre.
Segundo Espíndola,2 no direito, enquanto ordem jurídica, os
princípios, universalmente reconhecidos como normas de direito,
são providos de positividade e possuem eficácia positiva e negativa
em relação a comportamentos público ou privado, bem assim sobre a
interpretação e a aplicação de outras normas.
Dessa forma, neste trabalho pretende-se demonstrar que dificultar
o acesso ao judiciário a pessoas pobres é descumprir a Constituição,
negando-lhes o exercício da cidadania. É, por conseguinte, descumprir
a garantia do direito de ação tanto do rico como do pobre.
A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica e a experiência
jurisprudencial, que vem marcando o contexto nacional nos últimos
tempos, com inúmeras decisões que dificultam o direito do acesso à
justiça ao hipossuficiente.
Em primeiro lugar, o ensaio traça considerações sobre Estado e
democracia. Em segundo, recorda o princípio da gratuidade de justiça,
sob o olhar da jurisprudência no contexto do Código de Processo até
2015 e, em seguida, ocupa-se do mesmo princípio sob a égide do atual
Código de Processo Civil, em vigor a partir de 2016. Em seguida, o texto
apresenta as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário do Estado

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos
2

Tribunais, 1999.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
195

de Minas Gerais no deferimento da assistência judiciária e finaliza


pontuando argumentos que, na ótica dos autores, são inválidos para o
indeferimento da assistência judiciária.

9.2 Considerações sobre Estado e democracia


Para Cláudio De Cicco e Álvaro de Azevedo Gonzaga,3 Estado
é uma instituição organizada política, social e juridicamente, ocupa
um território definido e, na maioria das vezes, sua lei maior é uma
constituição escrita. Sob o ponto de vista administrativo, é dirigido
por um governo soberano reconhecido por todos e responsável pela
organização e pelo controle social.
Sociologicamente falando, o ente estatal representa a consonância
de todas as forças sociais existentes num dado espaço territorial, cuja
finalidade consiste em dar segurança e promover o interesse comum
da população. Por isso, o Estado é uma composição dos ideais de
comunhão que ele traz dentro de si.
Sob o olhar político, pode-se dizer que o ente estatal se converteu
em sede do poder político. A partir disso, o poder político passou a ter
no Estado a sua expressão mais altiva, estando ambos (Estado e poder
político) intrinsecamente conectados e, por essa mesma razão, o Estado
transforma-se no poder institucionalizado, que deve sempre garantir
a liberdade dos homens e, por conseguinte, a individualidade de cada
pessoa, agindo no sentido de concretizar e garantir os direitos básicos
de seu povo.
Darcy Azambuja, pensando o Estado em seu aspecto político,
afirma que:

O Estado Moderno é uma sociedade à base territorial, dividida em


governantes e governados, e que pretende, nos limites do território que
lhe é reconhecido, a supremacia, sobre todas as demais instituições. De
fato, é o supremo e legal depositário da vontade social e fixa a situação
de todas as outras organizações.4

Na mesma linha, define Marcelo Figueiredo:

3
DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política.
São Paulo: RT, 2007, p. 43.
4
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: Globo,
1963, p.6.
196
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O Estado é uma organização jurídico-política, formada de povo, terri-


tório e soberania. Todo Estado é um organismo político. Sob o ângulo
jurídico, titular de direitos e obrigações na órbita internacional e interna,
fruto de sua criação e de seu direito.5

O caráter político do Estado consiste na função de coordenar


grupos e indivíduos a fim de abrangê-los com meios adequados; ao
atingir essa pretensão, é preciso, logo de início, identificar as necessi-
dades prevalecentes do povo, considerando seus mais amplos anseios.
Dalmo de Abreu Dallari evidencia que o Estado, no exercício
do poder diretivo, deve buscar o máximo de eficácia em suas normas
e aponta:

Aí está um dos grandes problemas do Estado contemporâneo: ele existe


em função dos interesses de todos os indivíduos que o compõem, e
para o atendimento desses interesses busca a consecução de fins gerais;
visando atingir esses objetivos, ele exerce um poder que pretende al-
cançar o máximo de eficácia, sobrepondo-se a todos os demais poderes
e submetendo até aqueles que lhe dão existência; ao mesmo tempo, é
a expressão suprema da ordem jurídica, assegurando a plena eficácia
das normas jurídicas, mesmo contra si próprio.6

Assim, a força dominante do direito na formação do Estado lhe


dá autoridade e obrigação. Autoridade para fazer cumprir os preceitos
normativos na forma em que ele foi definido e obrigação de dar à norma
a devida eficácia direcionada à garantia de direitos fundamentais da
população. É nesse contexto que se insere o direito de acesso à justiça
que contemple a todos; para tanto, aos que não possuem condições de
chegar ao Judiciário em defesa de seus direitos, cabe ao Estado o dever
de prover, pela gratuidade de justiça, o direito de acesso aos pobres e
necessitados.
Democracia, palavra que se origina do grego demokratía, é
composta por demos (que significa povo) e kratos (que significa poder).
Neste sistema político, o poder é exercido pelo povo por meio do
sufrágio universal. Democracia é um regime de governo em que todas
as importantes decisões políticas estão com o povo, que elege seus
representantes por meio do voto. Regime de possível existência tanto no
sistema presidencialista, no qual o presidente é o maior representante
do povo, como no sistema parlamentarista, em que existe o presidente

5
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 42-43.
6
DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48-49.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
197

(eleito pelo povo) e o primeiro ministro (que toma as principais decisões


políticas). A democracia é marcada por princípios que protegem, que
garantem a dignidade como coluna vertebral de sua existência, baseada
no governo da maioria associado diretamente aos direitos fundamentais
de toda a população de forma igual.
A democracia no Brasil tem início no século XX, após a Ditadura
Militar, período de repressão e perseguição aos que lutavam por direitos,
por dignidade e por respeito. Depois de 20 anos de Ditadura Militar,
o país passava por uma crise econômica, social e política, que, por sua
vez, pôde apontar um sistema democrático com a apresentação de
uma nova Constituição em que a liberdade de direitos e a igualdade
social ganharam centralidade na nova ordem nacional, precedida pelo
processo de redemocratização, consolidado com a promulgação da
Constituição da República de 1988.
Assim, o Estado Democrático de Direito, na precisa lição de José
Afonso da Silva, configura-se como:

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas


unir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de
Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leve
em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supere na
medida em que incorpora um componente revolucionário de transfor-
mação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art.
1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa
do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como
mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está
proclamando e fundando.7

O mesmo autor, discorrendo sobre a diferenciação entre Estado


de Direito e Estado Democrático de Direito, ensina que:

O Estado democrático de Direito concilia Estado democrático e Estado


de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos
desses dois tipos de Estado. Revela, em verdade, um conceito novo que
incorpora os princípios daqueles dois conceitos, mas os supera na me-
dida em que agrega um componente revolucionário de transformação
do status quo. Para compreendê-lo, no entanto, teremos de passar em

7
SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro, 1988, p. 21. Disponível
em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso
em: 25 maio 2017.
198
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

revista a evolução e as características de seus componentes, para, no


final, chegarmos ao conceito-síntese e seu real significado.8

O Estado Democrático de Direito, assentado nos pilares da


democracia e dos direitos fundamentais, surge como uma forma de
barrar a propagação de regimes totalitários que, adotando a forma de
Estado Social, feriam as garantias individuais, maculando a efetiva
participação popular. Nesse contexto do princípio democrático do
acesso à justiça para todos, concretiza-se, para aqueles que não possuem
meios suficientes, o direito à gratuidade de justiça.

9.3 O princípio da gratuidade de justiça na


jurisprudência até o advento do Código de Processo
Civil de 2015
Na jurisprudência construída sob o comando do Código de
Processo Civil anterior e buscando uma melhor interpretação da Lei nº
1.060/50, recepcionada pela Constituição Republicana de 1988, destaca-se
o entendimento, corretíssimo, do Supremo Tribunal Federal, no sentido
de que bastava a simples afirmação do interessado, pessoa física, na
petição, no sentido de que é pobre, isto é, de que não está, no momento
do ajuizamento da ação ou da contestação, em condições de arcar com a
custa do processo e dos honorários de advogado, sem prejuízo próprio
ou da família, para concessão do benefício de gratuidade de justiça.
O princípio da justiça gratuita, portanto, tem por escopo permitir
o acesso à ordem jurídica justa ou da proteção jurídica integral, de
maneira que o interessado em ajuizar ação não seja prejudicado, por
não ter condições para tanto, ou seja, pela insuficiência de recursos
econômicos.
Ressalta-se a necessidade de se fazer, a partir da Constituição/88,
a distinção entre assistência jurídica, instituto de direito administrativo
e função-dever do Estado, do benefício da justiça gratuita, instituto de
direito processual, que se concretiza pela dispensa de antecipação das
custas processuais e, já na sentença, a suspensão da condenação nas
custas e nos honorários advocatícios.

8
SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro, 1988, p. 2. Disponível
em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso
em: 25 maio 2017.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
199

Por conseguinte, dificultar o acesso do hipossuficiente, finan-


ceiramente falando, aos esclarecimentos jurídicos necessários, nos
atos e negócios praticados no dia a dia e, se necessário, judicializar
a questão, negar-lhe o direito a demandar, na ausência de impossi-
bilidade econômica para tanto, é denegar-lhe a cidadania, efetivada
pelo conhecimento dos direitos, pela segurança na prática dos atos da
vida em sociedade.
Com relação à aplicação da Constituição e de entendê-la como
expressão de desenvolvimento cultural e, por conseguinte, como
conquista de um povo, a ser preservada por meio de sua aplicação,
destacamos as colocações de Márcio Ricardo e Rafael Padilha:

A autêntica Constituição precisa ter o próprio texto constitucional


cultivado. A Constituição de letra viva é aquela cujo resultado é fruto
de todos os intérpretes de uma sociedade aberta. Por isso, o aspecto
jurídico é apenas um dos elementos da Constituição como cultura. A
aceitação de uma Constituição pressupõe normas jurídicas, mas isso não
constitui, de per si, uma garantia daquilo que o Estado constitucional
esteja de fato realizando, porque é preciso averiguar se há consenso em
âmbito constitucional, se há correspondência entre texto constitucional
e a cultura política do povo, se os cidadãos se sentem identificados os
com a Constituição.9

Ora, para que os cidadãos possam ser incluídos no ordenamento


jurídico, necessário é que, com relação a eles, seja observado o texto
constitucional garantidor da assistência judiciária ao necessitado
(art. 5º, inciso LXXIV, CF). Retirá-lo do direito de poder entender o
ordenamento jurídico, através de esclarecimentos por parte do técnico
no assunto ‒ o advogado, o defensor público ‒, bem como de poder,
se necessário, ajuizar ação em defesa do direito, é uma maneira de
afastá-lo do entendimento, da identificação, do texto normativo, eis
que se sentirá sem proteção, desamparado.

9.3.1 O papel da Defensoria Pública na efetividade do


direito ao acesso à justiça
O papel da Defensoria Pública, dando concretude ao mandato
constitucional, torna-se de importância vital na prestação da assistência

9
STAFFEN, Márcio Ricardo; SANTOS, Rafael Padilha dos. O fundamento cultural da dignidade
da pessoa humana e sua convergência para o paradigma da sustentabilidade. Veredas do
Direito. Direito Ambiental e Desenvolvimento sustentável, Belo Horizonte: Escola Superior
Dom Helder Câmara, v. 13, n. 26, maio/ago. 2016, p. 267.
200
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

jurídica à população de baixa renda. Para tanto, necessário é que, em


todas as comarcas de todos os Estados brasileiros, exista, junto ao juiz
e ao Ministério Público, uma defensoria direcionada ao atendimento
imediato dos necessitados, ou seja, a todos aqueles que não possam
arcar com as custas do processo ou com os honorários de sucumbência,
em caso de perder a demanda.
Nesse contexto da importância da Defensoria Pública em nossa
incipiente democracia, calha, com perfeição, a compreensão de Moraes:
Desta forma, o papel das Defensorias Públicas é essencial para a reali-
zação de um Estado Democrático de Direito, assentado em princípios
igualitários que são a sua finalidade precípua, além de funcionar como
um instrumento de viabilização do exercício de direitos fundamentais
titularizados pelos hipossuficientes econômicos e suas respectivas ga-
rantias, com vistas a alcançar a efetividade do Estado Democrático de
Direito.10

Por fim, ressalta-se que o direito à informação sobre os direitos


deve partir de pessoas qualificadas para tanto, ou seja, com relação aos
pobres, a partir de uma Defensoria Pública atualizada e capacitada. Não
é aceitável que pessoas fora da área jurídica prestem informações aos
pobres, fazendo prévio juízo da necessidade ou não do ajuizamento da
ação ou até mesmo redigindo petições aos necessitados, como acontece,
geralmente, nos juizados especiais, onde sequer é exigida a formação
jurídica para tanto.

9.4 O princípio da gratuidade de justiça no atual Código


de Processo Civil
O atual Código de Processo Civil prevê a gratuidade da justiça
nos arts. 98 a 102. O art. 98 melhorou o disposto no art. 2º da Lei nº
1.060/50 ao deixar expresso que a pessoa natural ou jurídica, brasileira
ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas,
as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à
gratuidade da justiça, na forma da lei.
Da maneira como redigido o art. 98, necessário será a redação de
uma nova lei ou a recepção da Lei nº 1.060/50 pelo atual Código, no que
não for incompatível com ele. Entretanto, lendo o NCPC, verifica-se que
poderia dispensar a expressão “na forma da lei” ou, então, entendê-la

MORAES, Guilherme Braga Pena de. Assistência Jurídica, Defensoria Pública e o Acesso à
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jurisdição no Estado Democrático de Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 42-43.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
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como na forma deste Código, eis que este encampou praticamente toda
a Lei nº 1.060/50.
O §1º do art. 98 do Código de Processo Civil define quais casos
são compreendidos pela gratuidade da justiça, ou seja, as taxas ou as
custas judiciais; os selos postais; as despesas com publicação na imprensa
oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; a indenização
devida à testemunha, que, quando empregada, receberá do empre-
gador salário integral, como se em serviço estivesse; as despesas com
a realização de exame de código genético (DNA) e de outros exames
considerados essenciais; os honorários do advogado e do perito e a
remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação
de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;
o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para
instauração da execução; os depósitos previstos em lei para interposição
de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos
processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório;
os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da
prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário
à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial
no qual o benefício tenha sido concedido.
Portanto e com o novo Código, dúvida nenhuma mais persiste no
sentido de que o deferimento da assistência judiciária em juízo abrange
também todos os atos necessários à efetivação de decisão judicial nos
cartórios extrajudiciais, como, por exemplo, o registro do divórcio
decretado por quem se encontra sob o pálio da assistência judiciária.
O §2º do art. 98 afirma que a concessão de gratuidade não afasta
a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos
honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência. Porém e
pelo §3º deste mesmo artigo, repetindo, com melhor redação e neces-
sários acréscimos, o art. 12 da Lei nº 1.060/50, vencido o beneficiário,
as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição
suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos
5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as
certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de
insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade,
extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

9.4.1 Decisão judicial


Nota-se a necessidade de o juiz condenar na sentença ao
pagamento da verba honorária e das custas, mesmo estando a parte
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

amparada pela assistência judiciária para, no caso de posterior possibi-


lidade de pagamento, o credor já entrar com a ação de execução e não
ser obrigado a propor, primeiro, ação de arbitramento de honorários.
Portanto, não é correto afirmar, na sentença, que “deixa de condenar
o réu nas custas e verba honorária, por estar o mesmo amparado pela
assistência judiciária”.
Dessa maneira, mostra-se contraditório o disposto no §4º do art. 98
do Código de Processo Civil ao afirmar que a concessão de gratuidade
não afasta o dever de o beneficiário pagar, ao final, as multas proces-
suais que lhe sejam impostas. Nota-se que, pelo atual CPC, a pessoa é
pobre para o pagamento das custas, mas não o é para o recolhimento
de multas processuais.
O §5º do art. 98 permite que a gratuidade seja concedida em
relação a algum ou a todos os atos processuais ou consistir na redução
percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar
no curso do procedimento. E, pelo §6º deste mesmo artigo, conforme o
caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas proces-
suais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
Em se tratando de emolumentos devidos a notários ou regis-
tradores, o §7º permite o custeio com recursos alocados no orçamento
do ente público. E, pelo §8º, o notário ou registrador, após praticar
o ato, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos
pressupostos para a concessão de gratuidade, pode requerer ao juízo
competente para decidir questões notariais ou registrais a revogação total
ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento, caso
em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar
este requerimento.
Pelo art. 99, §2º, do mesmo diploma legal, o juiz somente poderá
indeferir o pedido de gratuidade da justiça se houver nos autos elementos
que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de
gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a
comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos. E, pelo §3º
deste mesmo artigo, presume-se verdadeira a alegação de insuficiência
deduzida exclusivamente por pessoa natural.
O §4º do art. 99 esclarece que a assistência do requerente por
advogado particular não impede a concessão da gratuidade da justiça.
E, pelo §5º do art. 99, o recurso que verse exclusivamente sobre o
valor de honorários de sucumbência fixados em favor do advogado
de beneficiário estará sujeito a preparo, salvo se o próprio advogado
demonstrar que tem direito à gratuidade.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
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Ressalta-se que o indeferimento de assistência judiciária há de ser


realizado com cuidado, considerando o princípio da proteção judiciária,
também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Depois, há uma praxe viciosa de o juiz exigir a comprovação da pobreza,
de chofre, o que não é correto em face da presunção de veracidade da
alegação de insuficiência, conforme se demonstrará abaixo.
Pelo §7º do art. 99, requerida a concessão de gratuidade da justiça
em recurso, o recorrente estará dispensado de comprovar o recolhimento
do preparo, incumbindo ao relator, neste caso, apreciar o requerimento
e, se indeferi-lo, fixar prazo para realização do recolhimento.
Pelo art. 100, deferido o pedido, a parte contrária poderá oferecer
impugnação na contestação (art. 337, inciso XIII), na réplica, nas contrar-
razões do recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado
por terceiro, por meio de petição simples, a ser apresentada no prazo
de 15 (quinze) dias, nos autos do próprio processo, sem suspensão de
seu curso. Portanto, a impugnação à assistência judiciária é formulada,
doravante, por simples petição e no bojo dos próprios autos em que
deferido tal benefício.
Pelo parágrafo único do art. 100, revogado o benefício, a parte
arcará com as despesas processuais que tiver deixado de adiantar e
pagará, em caso de má-fé, até o décuplo de seu valor a título de multa,
que será revertida em benefício da Fazenda Pública estadual ou federal
e poderá ser inscrita na dívida ativa.
Pelo art. 101, contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que
acolher pedido de sua revogação, caberá agravo de instrumento, exceto
quando a questão for resolvida na sentença, contra a qual caberá apelação.
Pelo §1º do art. 101, o recorrente estará dispensado do recolhi-
mento de custas até decisão do relator sobre a questão preliminarmente
ao julgamento do recurso e, pelo §2º deste mesmo artigo, confirmada a
denegação ou a revogação da gratuidade, o relator ou o órgão colegiado
determinará ao recorrente o recolhimento das custas processuais, no
prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de não conhecimento do recurso.
O art. 102 afirma que, sobrevindo o trânsito em julgado de decisão
que revoga a gratuidade, a parte deverá efetuar o recolhimento de todas
as despesas de cujo adiantamento foi dispensada, inclusive as relativas
ao recurso interposto, se houver, no prazo fixado pelo juiz, sem prejuízo
de aplicação das sanções previstas em lei. E, pelo parágrafo único deste
mesmo artigo, não efetuado o recolhimento, o processo será extinto
sem resolução de mérito, tratando-se do autor, e, nos demais casos, não
poderá ser deferida a realização de nenhum ato ou diligência requerida
pela parte enquanto não efetuado o depósito.
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Verifica-se, da transcrição da legislação processual, que o legis-


lador detalhou bem as hipóteses de assistência judiciária e, caso a pessoa
não possa pagar as custas, no todo, poderá reduzi-la e até mesmo
parcelá-la. Pode, por conseguinte, o juiz, também, deferir assistência
judiciária até um momento processual, por exemplo, até que seja
concretizada a venda de um bem.
A respeito da flexibilização do atual Código de Processo Civil no
tocante ao deferimento da assistência judiciária, total ou parcial, assim
deixou expresso o Desembargador João Moreno Pomar, do TJRS, no
Agravo de Instrumento nº 04212238-44.2016.8.21.7000:
Admite que a gratuidade da justiça possa ser concedida em relação a
algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual
de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso
do procedimento; e conforme o caso, para parcelamento de despesas
processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedi-
mento. Circunstância dos autos em que se impõe manter a decisão que
concedeu o benefício para parcelamento das custas.

Diante da carência de recursos momentâneos, também é possível


deferir assistência judiciária para recolhimento das custas ao final,
conforme constou da ementa do acórdão de relatoria do Des. Edmilson
Jatahy Fonseca Junior, da 2ª Câmara Cível, julgado em 31.01.2017, do
Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA):

A gratuidade judiciária visa a oferecer certas garantias e direitos relacio-


nados à defesa dos que necessitam de proteção judicial, estabelecendo
igualdade de todos perante a Lei e que, por força do art. 5º, LXXIV, da
Constituição Federal, deve ser ampla e integral. Forçoso concluir que, para
o deferimento do benefício, não se exige o estado de miséria absoluta,
mas pobreza na ação jurídica do termo. A nova sistemática prevista no
Código de Processo Civil permite ao Juiz flexibilizar o pagamento das
custas, autorizando o deferimento da gratuidade para atos específicos,
a redução de percentual, bem como o parcelamento. Por tudo quanto
visto nos autos, razoável a adoção analógica da solução prevista no
NCPC, em seu art. 98, §6º, para autorizar aos agravantes que suportem
as custas processuais ao final da demanda.

9.5 A dificuldade no deferimento da assistência judiciária


por alguns juízes do Estado de Minas Gerais
Na contramão da história e dificultando o acesso ao Poder
Judiciário, menciona-se a dificuldade imposta por alguns juízes mineiros
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no deferimento da assistência judiciária, olvidando que a “cidadania


implica na possibilidade amparada legalmente de ingressar em redes
dialógicas de discurso”.11 Ora, fechar as portas do Judiciário ao pobre
é impedi-lo de dialogar no processo como procedimento em contra-
ditório.12
Ao almejar a assistência judiciária gratuita, na inicial, alguns
juízes de Minas Gerais estão proferindo a seguinte decisão: “Intime-se
a parte autora, a fim de promover o preparo, no prazo de 15 (quinze)
dias, sob pena de cancelamento da distribuição, conforme art. 290 do
Código de Processo Civil”. Essa não é uma exceção, eis que há vários
outros julgados, da 13ª Câmara Cível do TJMG, esclarecendo contra-
riamente a esse entendimento, que:

De acordo com entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de


Justiça e o disposto no artigo 99, §§3º 4º do atual Código de Processo
Civil, tratando-se de pessoa natural, incide em seu favor a presunção
de verdade acerca da alegação de insuficiência deduzida na petição
inicial. Cabe ressaltar que, o texto legal é taxativo ao prescrever que o
indeferimento do pedido da gratuidade da justiça está condicionado à
existência de elementos nos autos que evidenciem a falta dos pressu-
postos legais para a sua concessão, conforme dispõe o §2º, do art. 99 do
Código de Processo Civil. (TJMG)

Entretanto e se realizada simples pesquisa no site do TJMG, verifi-


ca-se que o entendimento antes transcrito não é unânime, infelizmente.
Assim, algumas câmaras estão ratificando entendimento dos juízes de
primeira instância, exigindo que, de chofre, a parte requerente faça
prova de que carece de assistência judiciária, sob pena de extinção do
feito, sem análise de mérito.
Nesse contexto, podemos visualizar, no Jornal Mensal da
Associação dos Magistrados Mineiros, nº 184, de maio de 2017, o artigo
de Adalberto José Rodrigues Filho, Juiz da 1ª Vara Cível da Comarca
de Betim, Justiça gratuita com responsabilidade civil, do qual o próprio
jornal destacou duas frases: “Aquele que postula com gratuidade não
assume qualquer risco. Pode fazer o pedido mais improvável, seja
com bons ou maus propósitos, se perder a demanda, apenas deixou

11
O’DONNELL, Guilhermo. Democracia, agência e estado: teoria com intenção comparativa.
Tradução Vera Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 206.
12
Processo como procedimento em contraditório é o que permite aplicação do princípio da
igualdade, da ampla defesa e do contraditório. Assim, não é correto negar ao pobre o direito
de discutir suas desavenças em juízo, num debate amplo e, por conseguinte, influindo, a
todo momento, na construção da sentença, aqui também considerado como ato participado.
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

de ganhar. E o demandado fica no prejuízo”; e outra: “Essa opção


legislativa tem incentivado a postulação aventureira. Os exemplos são
gritantes e crescentes. Assim, seria muito razoável a retirada do crédito
por honorários advocatícios sucumbenciais da esfera de abrangência
da gratuidade de justiça”.

9.5.1 A jurisprudência e a realidade prática


Tais colocações não coadunam com a proposta de permitir que os
necessitados possam ajuizar suas ações e, como acontece geralmente, na
imperfeição das pessoas, pretende que um instituto de enorme alcance
social seja desprezado. Primeiramente, a própria lei de assistência
judiciária, conforme transcrevemos acima, permite que o juiz, no curso
do processo, se provado que a parte requereu a assistência judiciária
indevidamente, revogue a concessão e exija o pagamento, inclusive
com aplicação de multa. Depois, a parte interessada também poderá
fazer a prova de que outra parte requerente pode, sim, arcar com os
ônus de sucumbência, hipótese que leva à cassação do benefício da
assistência judiciária.
Depois e ainda contra-argumentando o articulista antes citado
Adalberto José Rodrigues Filho, mesmo que deferida assistência
judiciária, se comprovado que a pessoa não fazia jus a tal benefício
ou que passou a não mais fazê-lo, o Estado, com relação às custas, e
o advogado, credor dos honorários de sucumbência, ainda terão mais
5 (cinco) anos para cobrar tais ônus sucumbenciais. Nota-se que a lei
exige que o juiz condene e, em seguida, suspenda a cobrança de tais
verbas por cinco anos. Portanto, neste período, se realmente demons-
trado que a pessoa tem condições de pagar tais verbas, basta a parte
credora executá-la.
Por último, não há lógica nenhuma em permitir a cobrança
de honorários advocatícios de pessoas pobres em razão da perda
da demanda, supondo uma possível má-fé. Por mais razão que uma
pessoa tenha, não significa que será vitoriosa em juízo, em virtude de
inúmeros outros fatores, inclusive o de ser o processo uma técnica, a
exigir cumprimento de prazos, ônus de provas etc.
Por todo o exposto, é preocupante a questão envolvendo o
deferimento de assistência judiciária, cujas dificuldades de atendimento
relatadas apenas em Minas Gerais certamente devem ocorrer em todos
os Estados brasileiros, por exemplo, nos Estados do Rio de Janeiro e
de São Paulo, principalmente se criado o Fundo Especial do Poder
Judiciário, a exemplo de Minas Gerais, mediante a Lei nº 20.802/13.
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ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
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Com o Fundo Especial do Poder Judiciário (FEPJ), ficaram


assegurados recursos necessários ao desenvolvimento das atividades
específicas do Poder Judiciário, tais como, segundo art. 2º da Lei nº
20.802/13: construção, ampliação e reforma de prédios próprios e de
imóveis utilizados pelo Poder Judiciário; ampliação e modernização dos
serviços informatizados; aquisição de material permanente; aquisição
de bens imóveis; realização de despesas de caráter indenizatório, classi-
ficadas em outras despesas correntes; entre outras.
E, pelo art. 3º da Lei nº 20.802/13, constituem recursos do FEPJ,
entre outros, receitas provenientes do pagamento das custas judiciais
devidas ao Estado no âmbito da justiça estadual de primeiro e segundo
graus.
Portanto, para o indeferimento da assistência judiciária, não
se pode ter em mente a arrecadação das custas ao FEPJ, em hipótese
alguma, mas, sim, se o requerente faz jus ou não a tal benefício, sendo
certo que, para tanto, não é necessário ser miserável. Basta que, em razão
da demanda, não possa cumprir com os compromissos anteriormente
realizados.

9.6 Alguns argumentos inválidos para o indeferimento


da assistência judiciária
Alguns entendem que, se a pessoa física conseguiu fazer finan-
ciamento para a compra de um veículo, com prestação mensal de R$
2.000,00, por exemplo, não é hipossuficiente e, por conseguinte, não faz
jus ao benefício da assistência judiciária. Ledo engano! Na verdade, a
pessoa fez o financiamento em razão de, na época, ter condições econô-
micas para tanto. Entretanto, depois adveio piora na situação financeira,
com redução salarial, com a perda de emprego etc. Há, neste caso, de
se perquirir, para o deferimento da assistência judiciária, da situação
da pessoa no momento da distribuição da ação ou da contestação se a
parte fraca, financeiramente falando, for o réu.
Ainda no exemplo acima, que se encaixa em vários outros
casos, não se pode desprezar, também, que a pessoa pode ter feito o
financiamento, mesmo não podendo, diante da facilidade do crédito
colocado à disposição dela pela própria instituição financeira, e acabou
o mutuário não podendo honrar com o compromisso já na primeira
prestação. Ora, não é correto o entendimento de que, se prestou infor-
mações cadastrais inverídicas, deve arcar com as consequências de seus
atos. Há que se levar em consideração a real capacidade da pessoa e
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

também a irresponsabilidade das instituições financeiras em fornecer


financiamentos, algumas sequer exigindo atualização cadastral.
Outro argumento de alguns juízes, para indeferir a assistência
judiciária, é que, para tanto, ou seja, para os necessitados, existe o juizado
especial. Também não coadunamos com tal colocação. O juizado especial
não é justiça dos pobres, mas, sim, de demandas pequenas, que podem
tê-las tanto o rico como o pobre. Porém, o argumento maior, para não
direcionar obrigatoriamente os necessitados àquela justiça, é o de que,
no juizado especial, não existem todas as garantidas processuais, tais
como agravo, ação rescisória, perícia. Ora, entender que, para o pobre,
basta ajuizar a ação no juizado especial, já que lá não há custas, é uma
maneira de discriminá-lo, de não lhe dar todas as garantias processuais
e, por conseguinte, de ferir, escandalosamente, o devido processo legal,
eis que ausente a ampla defesa. É tal entendimento uma maneira fascista
de criar uma justiça para os ricos, e outra aos pobres. É negação do
direito à cidadania e princípio isonômico.
A respeito do princípio da igualdade, esclarece Silvana Maria
Moreira que:

O princípio da igualdade ou isonomia é um princípio medular dos


direitos fundamentais e das garantias constitucionais, além de ser a
essência do regime democrático. Ele determina a inadmissibilidade
de privilégios ou distinções, de forma a assegurar uma equiparação
de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos,
assim como à sujeição de deveres.13

Portanto, também não é correto o juiz estadual declinar, de


ofício, da competência para o juizado especial. Ora, se naquela justiça
sintética não há todas as garantias processuais, ditadas pelo Código
de Processo Civil, não pode ser obrigatório o ajuizamento das ações
pequenas naquela instância.
É por tal razão que se insiste sempre na inconstitucionalidade
da legislação, que tornou a competência absoluta do juizado especial,
nas ações ínfimas, em tramitação perante a justiça federal.
Também a existência de bens por si só não é causa de indefe-
rimento de assistência judiciária, como, por exemplo, no inventário.
Ora, enquanto tramita o inventário, os herdeiros não necessariamente

13
MOREIRA, Silvana Maria. O Acesso à Justiça como Direito Fundamental. In: CASTRO, João
Antônio Lima; FREITAS, Sérgio Henriques Zandona (Coords.). Direito Processual – Estudo
Democrático da Processualidade Jurídica Constitucionalizada. Belo Horizonte: PUC Minas –
Instituto de Educação Continuada, 2012, p. 58.
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...
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possuem condições de arcar com as despesas processuais. Ter bens


não traduz, automaticamente, em capacidade financeira, o mesmo
acontecendo com possível partilha de bens na Vara de Família, na ação
de divórcio postulada pela mulher, estando todos os bens nas mãos
do marido.
Destacando a importância do direito à assistência jurídica ao
cidadão, o Des. Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, na Apelação Cível
nº 0000092-49.2010.815.2001, do Tribunal de Justiça da Paraíba, salienta,
com fundamento na obra Acesso à Justiça, escrita por Mauro Cappelleti
e Bryan Garth, traduzida pela Ministra Ellen Gracie, a importância da
assistência judiciária como meio de aproximação da população à justiça.
Com efeito, seguindo a essência da gratuidade e o tratamento
substancial igualitário entre os jurisdicionados, não se pode admitir
como obstáculo ao acesso à justiça o pagamento de custas processuais,
as quais, normalmente, possuem valores elevados. A fim de eliminar
essa barreira, foi criado o instituto da gratuidade da justiça para os que
dela necessitam.
Por fim, o direito à assistência jurídica ao cidadão alcançou status
constitucional, na atual Carta Política, quando se estabeleceu como
garantia fundamental, entre outras, que “o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos” (art. 5º, inciso LXXIV, CF).

9.7 Conclusão
A construção do Estado Democrático tem sua centralidade
na observância de princípios básicos que possam garantir direitos
fundamentais a toda a população. Dentro desses princípios de cunho
fundamental, elegemos o princípio do acesso à justiça de forma universal,
em que a gratuidade de justiça, por excelência, se constitui em direito
fundamental endereçado a todos que não possuem condições básicas
para exercer o direito de ação em defesa de suas necessidades. Nesse
contexto, buscou a pesquisa, com foco na atividade jurisdicional, analisar
a eficácia dessa garantia constitucional traçando um paralelo entre o
princípio a gratuidade de justiça e a jurisprudência sobre o tema, ou
seja, a decisão judicial.
Por essa razão, para os autores, não é correto o juiz, já na inicial
ou na contestação, exigir que o requerente da assistência judiciária
comprove que é pobre, no sentido legal, salvo evidências fortes em
sentido contrário, como, por exemplo, comprovação de ganhos altos,
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

imóveis etc. e, mesmo antes de indeferi-la, o correto é o magistrado


pedir esclarecimento ao requerente sobre os possíveis sinais de riqueza
constante dos autos.
Aliás, o mais correto, em se tratando de assistência judiciária, é
o juiz deferi-la se requerido na inicial ou na contestação; e se, no curso
do processo, vier a ser comprovada a boa situação financeira do reque-
rente, deverá cassar o deferimento e exigir o recolhimento imediato,
aplicando-se a multa ditada pelo atual Código de Processo Civil.
Porém, os juízes estão agindo de forma equivocada. Já na inicial,
conforme vimos, estão indeferindo a justiça gratuita, exigindo, por
conseguinte, que a parte oferte agravo e que a decisão seja resolvida no
Tribunal, desviando, por meses, o foco principal, que é o debate sobre
o direito material posto na inicial.
Depois, ressaltamos que o atual Código de Processo Civil
reafirmou a necessidade de deferir assistência judiciária ao neces-
sitado, encampando integralmente a Lei nº 1.060/50. Portanto, toda a
jurisprudência construída sob o império da Lei nº 1.060/50 há de ser
encampada pelo atual Código de Processo Civil, ou seja, basta a simples
afirmativa da parte no sentido de que é pobre para deferir a assistência
judiciária, em se tratando de pessoa física. A pobreza é presumida, o
que não é novidade em um país pobre como o nosso.
Exigir, como regra, a comprovação, da parte requerente, de que
é pobre no sentido legal não é correto e acaba por dificultar o acesso ao
Judiciário das pessoas que não têm condições de arcar com as custas
processuais e com os honorários advocatícios. Assim, tal atitude não
encontra amparo no atual Código de Processo Civil e muito menos na
Constituição Republicana de 1988.
De nada adianta o legislador constituinte garantir o direito de ação
a todos, e o próprio Judiciário, antagonicamente, dificultar o exercício
deste direito, principalmente àqueles que mais necessitam do Poder
Judiciário – os pobres – diante da necessidade deles de resolver suas
desavenças e desencontros.
Ainda em cumprimento do direito de acesso das pessoas pobres
ao Poder Judiciário e também à integral assistência jurídica, mister que
os Estados instalem defensorias públicas em todas as comarcas para
que o necessitado, financeiramente falando, não fique perambulando
pelos escritórios de advogados no afã de achar uma boa alma para
patrocinar a sua causa.
Também se espera que os juízes cumpram o Código de Processo
Civil, deferindo assistência judiciária, de chofre, e não dificultando a sua
concessão e, por conseguinte, desviando o foco da questão principal;
MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO
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depois – e se for caso – que o próprio advogado da parte adversa se


insurja, como preliminar na contestação, contra tal deferimento ou então
que, no curso do processo, a concessão seja revogada, se deferida indevi-
damente, com a aplicação das penalidades previstas pelo próprio CPC.
Com relação ao recolhimento das custas diretamente aos cofres
do Poder Judiciário, nos Estados que conseguiram o acima aludido
Fundo Especial do Poder Judiciário, esperamos que tal conquista não
seja obstáculo para o deferimento da assistência judiciária, eis que, antes
de tudo, tem-se que preservar o direito de ação a todos constitucional-
mente garantido, não podendo o pobre ser prejudicado e discriminado
no exercício de direitos, principalmente quando considerados funda-
mentais, como o é o direito à assistência jurídica e judiciária, com reflexo
imediato no direito de ação.

Referências
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: Globo,
1963.
BAHIA. Agravo Civil n. 0021861-71. 2016.8.05.0000. 2ª Câmara Cível. Tribunal de Justiça
da Bahia.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


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CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Assistência judiciária como


direito do necessitado, e não como favor do Estado no Código de Processo
Civil. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU,
Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil:
repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 193-212.
ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 10

PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA
AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE
HIERARQUIA ENTRE AS PROVAS

Renato Campos Andrade

10.1 Introdução
A prova testemunhal é historicamente tratada como a menos
importante dentre todas as outras. Tal fato se dá em virtude da falibi-
lidade humana e na possibilidade da pessoa não se recordar precisamente
dos fatos ou, até mesmo, mentir.
Nessa interpretação, parece absurdo proferir uma decisão judicial
com base em um depoimento de testemunha, mesmo que seja consi-
derado em conjunto às demais provas produzidas. Julgar com base
puramente em um testemunho, então, seria absurdo.
O período histórico cultivou esse desprestígio desde os tempos da
“prova legal” (valores pré-fixados para cada tipo de prova) e chegando
ao período do “livre convencimento” (decisão livre do juiz mesmo
diante do conjunto probatório confeccionado). Mesmo no processo
atual, em que se busca prestigiar a persuasão racional, em que a análise
probatória, junto com as alegações das partes e conjuntamente com o
juiz, busca um provimento legítimo, subsiste o preconceito quanto ao
depoimento de testemunhas.
No entanto, os princípios que regem o direito processual indicam
que inexiste hierarquia entre as provas, pelo que todas possuem igual
importância.
Ainda assim, é possível encontrar nas codificações brasileiras
um tratamento diferenciado para a prova testemunhal, de maneira
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

a inferiorizá-la e até excluí-la como meio probatório da existência de


certos atos jurídicos.
O Código Civil, antes da entrada em vigor do NCPC, previa
expressamente, por exemplo, que a prova testemunhal só era admitida
em negócios jurídicos que não ultrapassassem dez vezes o valor do
maior salário mínimo vigente no País. Sendo assim, um empréstimo
verbal, na presença de testemunhas, precisaria de outras provas para
ser considerado válido e eficaz.
O Estado Democrático de Direito, no sentido de igualdade em
oportunidades e respeito ao devido processo legal, isonomia e ampla
defesa, demanda um tratamento mais equânime quantos aos meios
probatórios.
Óbvio que eventual aceitação da prova testemunhal deve ser
realizada em respeito ao devido processo legal, com direito a ampla defesa,
contraditório e utilização de todos os demais meios de prova admitidos
em direito, inclusive com a ajuda das presunções legais e judiciais.
Neste sentido, a entrada em vigor, em março de 2016, do novo
diploma processual, ao alterar mandamentos do Código Civil, incitou
novas interpretações e atribuições ao depoimento de testemunhas.
O objetivo do presente trabalho é abordar os efeitos do novel
Código de Processo Civil no Código Civil, especialmente quanto às
alterações dos artigos 227, 229 e 230 deste último.
A nova lei processual, que entrou em vigor em março de 2017,
revogou expressamente os artigos supracitados e impactou profunda-
mente o diploma civil no que tange à prova testemunhal.
Sendo assim, abordar-se-ão as alterações, bem como seus possíveis
impactos. Para tanto, expor-se-á primeiramente um breve introito sobre
o tema: a questão probatória, prova em espécie, ônus da prova e, final-
mente, a prova testemunhal, de maneira a deixar clara a importância
do assunto.
Em seguida, adentraremos nas alterações, significados e possíveis
efeitos a fim de vislumbrar se as mudanças serão positivas e se terão
efetividade.

10.2 Implicações probatórias no direito civil e


processual civil
Antes de se abordar o tema probatório nos diplomas indicados
no título deste item, cumpre discorrer brevemente sobre o que se trata
a prova.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
215

Diretamente ligada ao princípio do contraditório, a prova,


conforme lembra Didier, “é também um direito fundamental”,1 que,
conforme o mestre, abrange:

a) o direito à adequada oportunidade de requerer provas; b) o direito


de produzir provas; c) o direito de participar da produção da prova;
d) o direito de manifestar-se sobre a prova produzida; e) o direito ao
exame, pelo órgão julgador, da prova produzida;2

No presente artigo, o aspecto da produção da prova e o direito


de ser ela examinada pelo juiz se destacam especialmente porque,
conforme se verá, a prova testemunhal possui muita resistência quanto
à sua validade e força.
Finalisticamente, alguns autores indicam que o caminho para se
descobrir a verdade ou a verossimilhança das alegações se faz por meio
da prova, pelo que impedir a produção de determinada prova pode
significar em uma consequência jurídica ilegítima e injusta.
Ramos, de forma didática, expõe a questão:

Assim, se a regra do art. 121 do CP afirma que quem matar alguém terá
uma pena correspondente, será absolutamente injusto aplicar tal pena
sem a ocorrência do fato previsto (matar alguém), da mesma forma
como em um jogo de futebol será considerada injusta a decisão que
considerar que houve marcação de gol quando, em verdade, a bola não
tiver ingressado inteiramente na goleira.3

O autor, com citação de Michele Taruffo, indica que uma decisão


será justa se atender a três critérios: correta interpretação da regra
jurídica, apuração adequada dos fatos e emprego de procedimento
válido para se chegar à decisão.
Veja-se a importância da prova para um processo justo na medida
em que é ela que trará a verdade para que o julgador interprete a norma
no caso concreto. Sendo assim, desprezar um meio probatório se revela
temeridade capaz de resultar em uma decisão injusta.

1
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa
julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 41.
2
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa
julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 41.
3
RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 31.
216
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Não se quer aqui discutir aspectos epistemológicos e filosóficos


de justiça, apenas enfatizar a importância da verdade e da prova para
a confecção do provimento jurisdicional.
Mas há uma uniformidade na doutrina quanto à necessidade dos
fatos verdadeiros para a formação da convicção do julgador:

Para o juiz sentenciar é indispensável o sentimento de verdade, no mí-


nimo de certeza, pois sua decisão necessariamente deverá corresponder
à verdade ou, ao menos, aproximar-se dela. É oportuno lembrar que a
prova em juízo tem por objetivo reconstruir historicamente os fatos que
interessam à causa, porém há sempre uma diferença possível entre os
fatos, que ocorreram efetivamente fora do processo, e a reconstrução
desses fatos dentro do processo.4

Marinoni5 sintetiza ao dizer que “não há dúvida de que a função


dos fatos (e, portanto, da prova) no processo é absolutamente essencial”.
A prova é abordada tanto no Código Civil quanto no Código
de Processo Civil.
Sabe-se que o Código Civil é o diploma mais importante do direito
privado, em que pese que fazer a dicotomia entre público e privado
hodiernamente é muito mais didático do que prático.
Contudo, é inquestionável a importância da codificação civilista
que regula as relações privadas no campo material, de maneira a compor
normas que ditam direitos subjetivos dos particulares.
Em que pese se tratar de codificação eminentemente material,
o Código Civil, por vezes, contém normas que igualmente influem no
campo procedimental. Ocorre claramente, por exemplo, no direito das
obrigações, mais especificamente no pagamento em consignação, donde
se extrai: “Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento,
cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e
os riscos, salvo se for julgado improcedente”.6
Ademais, em sua Parte Geral, no Título V, Da Prova, são editadas
diversas normas quanto à prova dos fatos jurídicos. Estes se tratam
de todo acontecimento no mundo fático que implica a incidência de
uma norma jurídica. Um exemplo é a chuva. O simples fato de chover

4
MERGULHÃO, Rosana Teresa Curioni. Ativismo judicial e a produção da prova. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010, p. 34.
5
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com
o CPC de 2015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 29.
6
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
217

não é jurídico, mas se dela decorre uma enchente, que causa diversos
prejuízos ao patrimônio, tratar-se-á de fato jurídico.
O Título V se propõe a editar certas prescrições quanto à prova
do fato jurídico. Em linguagem simples, preocupa-se em estabelecer
como se comprova a existência dos fatos jurídicos.
Consta, no rol do artigo 212, a possibilidade de haver provas
por meio da confissão, documento, testemunha, presunção e perícia.
Não é despiciendo ao menos apontar a crítica dos civilistas e
processualistas quanto à indicação da presunção como meio de prova,
visto que, na verdade, se trata mais de forma de raciocínio para indicar
a ocorrência de um fato.
Presunção é uma dedução que ocorre mediante um fato conhecido,
do qual se extrai um desconhecido. Juridicamente, pode ser relativa
(admite prova em contrário), absoluta (não admite prova em contrário),
legal (decorrente da lei) ou judicial (indicada no exercício do procedi-
mento judicial).
Indicar que o pagamento da última prestação de uma obrigação
de trato continuado faz presumir que as anteriores foram quitadas não
se trata de prova do ocorrido, mas de dedução do que provavelmente
ocorreu.
Ultrapassada essa breve digressão quanto à presunção, cumpre
abordar o diploma procedimental.
Não é o objetivo deste artigo polemizar quanto às diversas
divergências existentes nos dois diplomas, mas é preciso indicar qual
caminho é trilhado. Em que pese à intitulação como Código de Processo
Civil, de maneira a entender o processo como garantia constitucional,
na qual estão inseridos o procedimento, o contraditório, a ampla defesa,
a isonomia e o direito à defesa técnica, em deferência ao professor
Rosemiro Pereira Leal, melhor seria trocar o nome do diploma para
Código de Procedimentos Civis.
Se o direito material contém os direitos subjetivos, sobre os quais
os sujeitos têm a faculdade de transitar e de defendê-los, o procedimento
serve para apontar o caminho formal que uma lide judicial deve tomar.
Neste sentido, o novel Código de Processo Civil traz o Capítulo
XII – Das Provas, com sua Parte Geral (normas que abrangem toda a
atividade probatória, bem como os meios de prova em espécie – ata
notarial, pessoal, confissão, exibição de documento ou coisa, prova
documental, prova testemunhal, prova pericial e inspeção judicial).
Pela nominação dos meios de prova, percebe-se a diferença das
implicações das provas constantes no diploma civil e processual civil.
Naquele, trata-se de comprovar um fato jurídico, especialmente quanto
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

à sua existência e validade. Neste último, a ideia é a forma de produção


de provas dentro de um procedimento judicial com o objetivo de se
desincumbir do ônus probatório e sujeitar à outra parte a sucumbência
em determinado ponto e, possivelmente, na prolação da sentença.
O que é comum aos dois diplomas, além da mesma nomeação
dos meios de prova, é que ambos compõem um importantíssimo campo
que proporciona ao sujeito fazer valer, de forma coercitiva, o direito
subjetivo existente e comprovado.
Ressalte-se que a prova é vital para aquele que tem a obrigação
de comprovar, isto é, para quem detém o ônus probatório.

10.3 Ônus da prova: importância e implicações jurídicas


Conforme já citado, a prova possui importância para aquele que
deseja comprovar a existência de um fato jurídico, tanto para atestar
seus efeitos quanto para ter um trunfo procedimental para poder ter
um provimento judicial favorável.
Contudo, a importância da prova ganha relevo especial para
aquele que tem interesse em produzi-la, especialmente diante de uma
lide procedimental, em que a produção ou não pode implicar em
procedência ou improcedência. É que o ônus probatório tem o aspecto
subjetivo de produção – qual parte deve provar o quê –, mas, também e
especialmente, a necessidade de se desincumbir de uma carga. Se uma
parte possui tal ônus e não produz a prova, será sucumbente quanto ao
fato específico, o que poderá implicar em decisão desfavorável.
Conforme ensina Didier:7

(...) o ônus da prova pode ser atribuído pelo legislador, pelo juiz ou por
convenção das partes. O legislador distribui estática e abstratamente
esse encargo (art.373). Segundo a distribuição legislativa, compete, em
regra, a cada uma das partes o ônus de fornecer os elementos da prova
das alegações de fato que fizer.

Farias e Rosenvald esclarecem a questão:

Embora reconhecida a necessidade de prova para o convencimento


do julgador acerca da demonstração da verdade (...) sobre algum fato,
sobreleva destacar que inexiste um dever jurídico de provar e tampouco

7
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa
julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 111.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
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uma faculdade do interessado de provar o que alega. Na verdade, o


que há é um ônus de provar o que se alega, de modo que o interessado
assume o risco de, eventualmente, perder a causa se não demonstrar a
verdade dos fatos em que sustenta sua pretensão.8

Esse também é o entendimento de Didier,9 ao indicar que “(...)


vale observar que o sistema não determina quem deve produzir a prova,
mas sim quem assume o risco caso ela não seja produzida”.
Ramos relembra:

Quanto ao aspecto objetivo do ônus da prova, o autor lembra que o


julgador não pode fundamentar sua decisão quanto a existência de
fatos que não foram demonstrados. Para tanto, trata-se de uma regra
de julgamento.10

Não é outro o sentimento do professor Vinicius Thibau, ao


indicar que “o instituto jurídico da Prova é que nos permitirá extrair a
verossimilhança (verossimilitude dos fatos)”.11 O autor ainda lembra
Karl Raimund Popper ao indicar que a prova serviria para identificar
sua proximidade dos fatos.
O julgador precisa ser imparcial e analisar as questões de fato,
o que só é possível por meio da atividade probatória.

Diante disto, o integrante do Poder Judiciário, sujeito imparcial, precisa


analisar as questões de direito e de fato. Em relação às primeiras, o juiz,
em regra após o contraditório, estaria em condições de respondê-las e
proferir decisão; porém, para as questões de fato, há a necessidade do
emprego dos meios de prova.12

Dessa forma, ambos os diplomas legais citados conferem aos


sujeitos meios de prova capazes de facilitar seu trabalho e se livrar do
pesado ônus probatório.

8
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 773.
9
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de
direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa
julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 111.
10
RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 48.
11
THIBAU, Vinicius Lott. Presunção e prova no direito processual democrático. Belo Horizonte:
Arraes Editores, 2011, p. 97.
12
FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2014, p. 53.
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Nesse sentido, ganha especial importância a prova testemunhal,


visto que, historicamente, exceto nas causas trabalhistas, se vislumbra
um preconceito quanto à sua força.

10.4 Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito


O senso comum e, até mesmo, o mundo jurídico historicamente
tratam a prova testemunhal como meio frágil e em patamar inferior aos
demais. A palavra de uma pessoa, inserta na falibilidade humana, não
pode valer a ponto de decidir quanto à verossimilhança de uma alegação.
O primeiro pensamento é que a pessoa que presta depoimento
pode mentir ou deturpar os fatos.
Esquece-se, assim, que mentir em um depoimento testemunhal
configura crime de falso testemunho.
Ademais, esse raciocínio apressado despreza a importância da
prova testemunhal, que, muitas vezes, é a única forma de comprovar
a existência de um fato. Relegar tal produção pode significar, como
indicado no tópico anterior, a sucumbência em um procedimento judicial.
Imagine-se ser condenado no pagamento de uma vultuosa
indenização mesmo diante de uma prova testemunhal clara e idônea,
simplesmente porque se considerou a prova testemunhal menos impor-
tante e incapaz de conferir uma certeza jurídica.
Não se pode olvidar que, ainda que a testemunha tenha sido
levada por uma parte, seu depoimento passa a ser do processo, podendo,
inclusive, ser prejudicial à própria parte que indicou a testemunha:

O princípio da comunhão da prova expressa que ao ser produzida uma


prova, esta será apreciada, independentemente do responsável pela
sua obtenção, podendo até mesmo prejudicar a parte que a produziu.13

O descarte da prova testemunhal impede que o sujeito desincumba


de um pesado ônus, bem como viola o princípio processual que indica
não haver hierarquia entre as provas.
Deve-se repetir que o direito à produção da prova é um direito
constitucional, umbilicalmente ligado ao devido processo legal, pilar
do procedimento democrático e expressamente constante na Carta
Magna, em seu artigo 5º, LV: “LV – aos litigantes, em processo judicial

13
FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2014, p. 129.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
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ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contra-


ditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Saliente-se que já existiu tal diferença quando as provas produ-
zidas tinham valorações matemáticas distintas, de maneira que, por
exemplo, a prova documental tivesse peso 3; a pericial, 4; a documental,
2; e a testemunhal, 1.
Esse tempo não mais existe e não se coaduna com o Estado
Democrático de Direito, que prima pela construção legítima e partici-
pativa dos provimentos estatais.

10.5 Alterações causadas pelo Código de Processo Civil e


possíveis efeitos
Adentrando no objetivo primordial deste trabalho, passa-se a
analisar as específicas alterações efetuadas.
Extrai-se do artigo 1.072, II, do CPC que foram revogados os
artigos 227, caput, 229 e 230 do Código Civil, entre outros.
Cada um desses artigos merece uma análise pormenorizada.

Art. 227. Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só


se admite nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do
maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados.
Parágrafo único. Qualquer que seja o valor do negócio jurídico, a prova
testemunhal é admissível como subsidiária ou complementar da prova
por escrito.14

A exclusão do caput do artigo 227 revela sintonia com o Estado


Democrático de Direito e respeito à ausência da hierarquia entre as
provas, na medida em que permite a prova exclusivamente (unicamente)
testemunhal para negócios jurídicos de quaisquer valores.
A limitação econômica da prova testemunhal nos negócios
jurídicos impedia sua utilização quando fosse o único meio de prova,
por exemplo, e de maneira a utilizar os valores atuais, contratos cujo
valor fosse superior R$9.370,00 (nove mil, trezentos e setenta reais).
Claramente se limitava consideravelmente a utilização de testemunhas.
O Código de Processo consagra, em seu artigo 442, que “a prova
testemunhal sempre é admissível, não dispondo a lei de modo diverso”.
O impacto é direto na medida em que amplia enormemente a
utilização da prova testemunhal nos negócios jurídicos.

14
BRASIL, Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
222
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Nas palavras de Farias e Rosenvald:


(...) em boa hora, o art.1.072, II, do Código Instrumental de 2.015 revo-
gou, expressamente, o art. 227 do Código Civil que, indevidamente,
estabelecia limitações à produção da prova testemunhal em sede
contratual, quando o valor do negócio jurídico excedesse o décuplo do
salário mínimo.15

Os autores não poupam críticas à revogada legislação, que, a


se ver, se tratava de resquício de uma discriminação social e violava o
princípio da igualdade substancial:
A restrição legal, realmente caracterizava indevido resquício de dis-
criminação social em face da condição econômica da parte, retirando
daquele que celebra negócios mais vultosos o direito (constitucional-
mente assegurado no art. 5º, XXXV) de produzir amplamente a prova,
inclusive testemunhal, vulnerando frontalmente o princípio da igual-
dade substancial.16

Por tudo abordado até aqui, é pertinente rememorar que a prova se


trata de verdadeira garantia constitucional e, ao se relegar a prova teste-
munhal a um nível abaixo das demais e impedir sua ampla utilização em
termos negociais, estar-se indo contra a própria Constituição da República.
Farias e Rosenvald, de maneira peremptória, concluem:
(...) Ademais, se a Constituição da República garantiu amplo e irrestrito
acesso à Justiça – motivo pelo qual vislumbra-se, como visto alhures,
um direito constitucional à prova-, não era possível restringir, em sede
infraconstitucional, a produção da prova testemunhal, sob pena de
absoluta incompatibilidade com a Carta Maior.17

Destaca-se que ainda existem limitações legais quanto à exclu-


sividade em situações especiais, como nas hipóteses do artigo 44318 do
diploma procedimental, que indica seu indeferimento sobre fatos “já
provados por documento ou confissão da parte; que, só por documento
ou por exame pericial, puderem ser provados”, bem como no artigo
444 do mesmo diploma:

15
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.
16
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.
17
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.
18
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
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Nos casos em que a lei exigir prova escrita da obrigação, é admissível a


prova testemunhal quando houver começo de prova por escrito, ema-
nado da parte contra a qual se pretende produzir a prova.19

No entanto, a equiparação da prova testemunhal aos demais


meios probatórios admitidos em direito para negócios jurídicos, sendo
excluída somente em casos específicos, trata-se de uma correção histórica.
Outra alteração é quanto à revogação completa do artigo 229:20
Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato:
I – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo;
II – a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge,
parente em grau sucessível, ou amigo íntimo
III – que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a
perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato.

Neste caso, várias são as mudanças. Quanto ao inciso primeiro,


a revogação significou apenas uma mudança terminológica impor-
tante: substituiu-se a palavra segredo para sigilo, conforme redação
do diploma processual:
Art. 448. A testemunha não é obrigada a depor sobre fatos:
(...)
II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.21

No inciso II, a expressão desonra, palavra conservadora e bastante


subjetiva, é trocada por “que lhe acarretem grave dano”, e o grau suces-
sível agora não se limita ao cônjuge, mas vai até o terceiro grau: “ (...) que
lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge ou companheiro
e aos seus parentes consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral,
até o terceiro grau”.
Quanto ao amigo íntimo em que a testemunha não era obrigada
a depor se seu depoimento causasse dano, desonra ou exposição, é
excluído do rol, pelo que, de imediato, não é mais justificativa para não
depor. Talvez esta seja uma mudança criticável, sob o ponto afetivo,
mas que visa implicar objetividade à prerrogativa, visto que definir o
que é amigo íntimo tem caráter inegavelmente subjetivo.
O inciso III não possui redação semelhante no diploma procedi-
mental, visto que abarcado pela nova redação do inciso I, do art. 448,
do CPC.

19
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
20
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
21
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
224
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Quanto à revogação do artigo 229, especialmente em relação ao


trecho “que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente,
a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato”,22
Marinoni destaca:

Com a revogação, o preceito volta a ter dimensão mais adequada à


extensão que se espera de uma regra de exclusão.
(...) o excesso cometido pela regra do CC era evidente. Afinal, o perigo da
demanda ou de dano patrimonial imediato poderia autorizar qualquer
pessoa a se negar a respeito de qualquer fato.
O dever de sigilo decorre da necessidade de se preservarem determina-
das profissões e estados, bem como o interesse daquela que confessa.23

O que ocorreu foi uma adaptação legislativa às interpretações


contemporâneas quanto a conceitos profissionais e ampliação do
conceito de família.
Ademais, prestigia-se a busca da verdade dos fatos, já que todos
devem colaborar com a justiça, mesmo diante de eventuais consequências
às pessoas citadas: “Art. 378. Ninguém se exime do dever de colaborar
com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.24
Não se pode esquecer que a escusa a depor será objeto de análise
ponderada do magistrado, diante do caso concreto. Como bem lembram
Farias e Rosenvald, “infere-se, com tranquilidade, a possibilidade de,
em cada caso concreto, em atividade de ponderação, ser considerada
lícita pelo magistrado a recusa da parte ou da testemunha de depor
sobre determinados fatos”,25 mesmo as que não tiverem que guardar
sigilo profissional.
A última alteração do CPC citada na introdução diz respeito à
revogação do artigo 230: “Art. 230. As presunções, que não as legais,
não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal”.26
Nas palavras de Gonçalves: “Presunção é a ilação que se extrai
de um fato conhecido, para se chegar a um desconhecido”.27

22
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o
CPC de 2.015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.29.
23
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o
CPC de 2.015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.29.
24
BRASIL, Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
25
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 821.
26
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
27
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 554.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
225

O autor adverte para que não ocorra confusão com o indício:


Não se confunde com indício, que é meio de se chegar a uma presun-
ção. Exemplo de presunção: como é conhecido o fato que o credor só
entrega o título ao devedor por ocasião do pagamento, a sua posse pelo
devedor conduz à presunção de haver sido pago (CC, art. 324). Pode
ser mencionada, ainda, a morte presumida (art. 6º), a gratuidade do
mandato (art. 658), a boa-fé (art. 1.203), dentre outras.28

Novamente se trata de respeito à importância da prova teste-


munhal. Antes da alteração, não existia presunção quando a lei excluía
a prova testemunhal, isto é, não pode haver presunção quando para
sua exclusão não se permita a comprovação por testemunha. Trata-se
de equilíbrio quanto às presunções judiciais.
Como, nos termos do art. 442, “a prova testemunhal é sempre
admissível, não dispondo a lei de modo diverso”, a amplitude deste
meio de prova permite a dedução da presunção.
Não é o objeto deste artigo, mas não se podem olvidar as alterações
causadas na prova testemunhal pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência,
que alterou o artigo 228,29 que considerava incapazes para depor:
II – aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não tiverem
discernimento para a prática dos atos da vida civil;
III – os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer provar
dependa dos sentidos que lhes faltam;

A alteração diz respeito à mudança legislativa quanto à capacidade


das pessoas, que insere a pessoa capaz como regra e permite um maior rol
de pessoas aptas aos atos da vida civil e de também serem testemunhas.
Cumpre destacar que, mesmo com essas alterações, ainda existem
diversas hipóteses no ordenamento jurídico pátrio que a prova exclu-
sivamente testemunhal não é permitida. Servirá, assim, como início de
prova ou como prova auxiliar.

10.6 Considerações finais


A edição de um novo Código de Processo Civil, indubitavelmente
necessária, mas que realizada com várias questões controversas, no que
tange à prova testemunhal, parece merecer aplausos.

28
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 555.
29
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
226
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O novel diploma processual se preocupou em equilibrar a teste-


munha à mesma importância das demais provas, de maneira a impactar
diretamente nos procedimentos judiciais, na medida em que, o que
antes era utilizado apenas para complementar outras provas pode ser
produzido de forma exclusiva e com plena eficácia.
Ainda que remanesçam algumas limitações legais à utilização
exclusiva da prova testemunhal, trata-se de avanço importante na legis-
lação pátria. As mudanças se coadunam melhor com a Constituição da
República, bem como com os princípios processuais.
Ademais, quanto às alterações realizadas, cita-se a adaptação de
algumas nomenclaturas e institutos que buscaram objetivar a prerro-
gativa daqueles que não podem ser obrigados a depor, em contrapartida
com importância de se chegar à verdade fática, com toda colaboração
possível.
Uma decisão só pode ser considerada legítima e se aproximar
do senso de justiça, se for baseada na construção colaborativa, estabe-
lecida entre as partes e o juiz, sobre o arcabouço probatório, de maneira
a reconstruir da maneira mais fiel possível os fatos que demandam
proteção jurídica.
Nesse sentido, a revisão da prova testemunhal vem em boa hora.
A conclusão é que tais mudanças foram positivas, e resta agora
aguardar que a jurisprudência e doutrina encampem as alterações e
façam bom uso das mudanças.

Referências
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 26 maio 2016.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 25 maio 2016.
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>.
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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e
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DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso
de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente,
coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.
RENATO CAMPOS ANDRADE
PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE...
227

FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo. Editora
Revista dos Tribunais, 2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São
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MERGULHÃO, Rosana Teresa Curioni. Ativismo judicial e a produção da prova. Belo
Horizonte: Del Rey, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo
com o CPC de 2015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
THIBAU, Vinicius Lott. Presunção e prova no direito processual democrático. Belo Horizonte:
Arraes Editores, 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

ANDRADE, Renato Campos. Prova testemunhal e Estado Democrático de


Direito: a busca ao respeito da inexistência de hierarquia entre as provas. In:
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos
e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 213-227. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 11

CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS


CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO
NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE
SENTENÇA POR QUANTIA CERTA?

Marcos Boechat Lopes Filho

11.1 Introdução
Inaugurada uma nova era do direito processual civil brasileiro com
a entrada em vigor da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, emergiram
inúmeras questões com implicações de ordem prática no cenário jurídico
doméstico, dentre as quais se destaca a nova sistemática de contagem
de prazo, tomando-se em conta apenas os dias úteis.
Isso porque assim determina o artigo 219 do Código de Processo
Civil, que, na contagem de prazo em dias, estabelecida por lei ou pelo
juiz, computar-se-ão somente os dias úteis, sendo certo que o parágrafo
único de tal dispositivo limita seu âmbito de incidência somente e
precisamente aos prazos processuais.
Em proêmio e sem muitas controvérsias, infere-se que o novo
diploma legal trouxe regra até então inexistente no cenário jurídico
nacional, pois que tradicionalmente os prazos processuais civis seguiam
basicamente idêntica regra de contagem dos prazos de natureza material
(direito civil), isto é, contavam-se em dias corridos, excluindo-se o dia
de início e incluindo-se o dia de término, computando-se aqueles em
que não houvesse expediente forense, tais como sábados, domingos e
feriados, inclusive.1

Art. 184, CPC/1973: Salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo


1

o dia do começo e incluindo o do vencimento. §1º Considera-se prorrogado o prazo até o


230
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A par da correção ou não de tal inovação legislativa, fato é que


o descompasso doravante existente entre as regras de contagem de
prazos materiais (em dias corridos) e processuais (em dias úteis) pode
causar a perda da oportunidade da prática de determinado ato ou fato,
inclusive com aplicação de eventuais sanções jurídicas, a depender da
exigência ou não da contagem restrita aos dias úteis.
Isso porque é cediço que não se pode apontar a natureza de
determinado prazo pela mera constatação de que este se encontra
previsto em determinada lei. Vale dizer, não basta ser citado no texto
do Código de Processo Civil para que se afirme que determinado
prazo tem natureza processual, pois que, por vezes, lá se encontram
previstos prazos de natureza meramente material ou, ainda, de
natureza mista.
É, pois, nesse ponto que reside o presente trabalho, o qual almeja,
conquanto sem pretensão de esgotamento do tema, investigar se o
prazo para pagamento previsto no artigo 523, caput, do CPC/2015 tem
natureza processual, material ou mista, concluindo-se pela incidência ou
não da regra disposta no artigo 219 do CPC/2015, qual seja, a contagem
do tempo restrita somente aos dias úteis.

11.2 Normas processuais e normas materiais


Na concisa, porém precisa, lição de Araken de Assis, “o direito
processual civil é o ramo jurídico que traça as regras da jurisdição estatal
em matéria civil”.2 Em complementação, o renomado autor esclarece:

Em termos gerais, as normas processuais civis distinguem-se das nor-


mas materiais pela função: aquelas disciplinam a atividade do órgão
judiciário e do juiz, na relação processual, estas, disciplinam as relações

primeiro dia útil se o vencimento cair em feriado ou em dia em que: I – for determinado
o fechamento do fórum; II – o expediente forense for encerrado antes da hora normal.
§2º Os prazos somente começam a correr do primeiro dia útil após a intimação (art. 240 e
parágrafo único).
Art. 132, CC: Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos,
excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. §1º Se o dia do vencimento cair em
feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil. §2º Meado considera-se,
em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. §3º Os prazos de meses e anos expiram no dia
de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. §4º Os prazos
fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto.
2
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 185.
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
231

das pessoas na vida em sociedade e fornecem os subsídios que o juiz


utilizará para resolver a lide expressa no objeto litigioso.3

E sobre o objeto das normas de direito processual civil, Araken


de Assis sustenta que os atos praticados pelos diversos atores proces-
suais correspondem a duas perspectivas complementares, sendo, de
um lado, a relação entre os sujeitos do processo; e, de outro, a relação
entre os atos. E assevera:

O objeto das normas processuais civis compreende essas duas pers-


pectivas interligadas. Esse objeto específico da norma processual civil
permite distingui-la, no que interessa ao escopo do processo civil, de
normas de natureza distinta, e que contrastam com a norma processual,
teoricamente, no que tange aos limites temporais e especiais. É preciso
ter em mente que não importa a localização formal da norma, mas o
seu conteúdo e finalidade.4

Ainda segundo o festejado autor, a função da norma processual


difere da norma material quando se observa que aquela se destina à
aplicação do direito material na resolução da lide em atividade justa e
constitucionalmente equilibrada, concluindo que “as normas processuais
emprestam efetividade ao direito material”, razão por que se “revelam
eminentemente instrumentais ou secundárias”.5
Relevante destacar nessa imbricada simbiose existente entre as
normas processuais e materiais que as primeiras, como dito alhures,
têm por escopo efetivar ou assegurar as segundas, máxime quando
estas forem violadas ou se encontrarem em iminente risco de violação.
Cuida-se, pois, do caráter instrumental do processo civil, muito bem
explicado por Fredie Didier Júnior:

Não há processo oco: todo processo traz a afirmação de ao menos uma


situação jurídica carecedora de tutela jurisdicional. Essa situação jurí-
dica afirmada pode ser chamada de direito material processualizado
ou simplesmente direito material. Se em todo processo há uma situação
substancial afirmada (‘direito material’, na linguagem mais frequente),
a relação entre eles é bastante íntima, como se supõe. A separação
que se faz entre ‘direito’ e ‘processo’, importante do ponto de vista

3
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 186.
4
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 197.
5
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 199.
232
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

didático e científico, não pode implicar um processo neutro em relação


ao direito material que corresponde ao seu objeto. O processo deve ser
compreendido, estudado e estruturado tendo em vista a situação jurídica
material para a qual serve de instrumento de tutela. A essa abordagem
metodológica do processo pode dar-se o nome de instrumentalismo,
cuja principal virtude é estabelecer a ponte entre o direito processual
e o direito material.6

E, após citar Calmon de Passos, com inigualável lucidez, conclui


o renomado professor:

O Direito só é após ser produzido. E o Direito se produz processual-


mente. Quando se fala em instrumentalidade do processo, não se quer
minimizar o papel do processo na construção do direito, visto que é ab-
solutamente indispensável, porquanto método de controle do exercício
do poder. Trata-se, em verdade, de dar-lhe a sua exata função, que é a
de coprotagonista. Forçar o operador jurídico a perceber que as regras
processuais hão de ser interpretadas e aplicadas de acordo com a sua
função, que é a de emprestar efetividade às normas materiais.7

Não se olvide que, a par dessa constatação, a prática dos atos


processuais não se restringe aos limites intrínsecos do caderno processual,
mesmo porque, em algumas oportunidades, caberá à própria parte (e
não ao seu advogado) praticar determinada conduta prevista na lei
processual, a qual, por vezes, se realiza em plano exterior ao processo.
Nesse sentido, colhe-se a lição de José Miguel Garcia Medina ao
distinguir fatos de atos processuais:

São fatos processuais aqueles que criam, modificam ou extinguem


relações ou situações jurídicas processuais, isso é, produzem efeitos
processuais. São atos processuais, realizados no processo, a contestação,
a sentença etc.; atos processuais realizados fora do processo, mas que
nele produzem efeitos, a cláusula de eleição de foro, a cessão do crédito
etc. Como exemplo de fato processual que não se enquadra no rol de
atos processuais, pode ser citada a morte de uma das partes, dentre
outros, que seriam fatos jurídicos processuais stricto sensu.8

Sobre o conceito de ato processual, pela objetividade e clareza,


menciona-se o ensinamento de Elpídio Donizetti ao dispor que:

6
DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 38.
7
DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 38.
8
MEDINA, J. M. G. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 325.
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
233

Ato processual é espécie do gênero ato jurídico. Este tem por fim ime-
diato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos,
ou seja, tem efeito sobre a relação jurídica de direito material. Aquele
tem por fim instaurar, desenvolver, modificar ou extinguir a relação
jurídico-processual. Em outras palavras, ato processual é toda ação hu-
mana que produz efeito-jurídico em relação ao processo. Ato processual
é modalidade de fato processual. Fato processual é todo acontecimento
com influência sobre o processo. O ato processual também tem influ-
ência sobre o processo, com uma diferença: decorre da manifestação
da pessoa humana.9

Lado outro, explica Fredie Didier Júnior que o conceito de fato


jurídico processual ainda é bastante polêmico e aponta, sinteticamente,
quatro correntes doutrinárias sobre o ponto:

a) alguns entendem que é suficiente o produzir efeitos no processo


para que o fato seja havido como processual; b) há quem o vincule aos
sujeitos da relação processual: apenas o ato por eles praticado poderia
ter o qualificativo de processual; c) há os que exigem tenha sido o ato
praticado no processo, atribuindo à sede do ato especial relevo; d) há
quem entenda que ato processual é o praticado no procedimento e pelos
sujeitos processuais.10

Todavia, no mesmo sentido que Donizetti, Didier defende a


ideia de que:

Todo ato humano que uma norma processual tenha como apto a produzir
efeitos jurídicos em uma relação jurídica processual pode ser considerado
como um ato processual. Esse ato pode ser praticado durante o itinerário
do procedimento ou fora do processo. (...). Assim, ato processual é todo
aquele comportamento humano volitivo que é apto a produzir efeitos
jurídicos num processo, atual ou futuro.11

11.3 Prazos processuais, prazos materiais e prazos mistos


Em que pese à nomenclatura tradicional e comumente utilizada
pela qual se qualificam e classificam os prazos em processuais, materiais
ou mistos, de rigor se mostra alertar que o prazo em si mesmo não pode

9
DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.
411-412.
10
DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 373.
11
DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 374.
234
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

ser enquadrado como ato ou fato processual, nos termos das lições doutri-
nárias revistas em linhas pretéritas. O transcurso do tempo, sim, pode
gerar reflexos processuais e, como tal, ser visto como fato processual.
O prazo, abstratamente previsto em lei ou comando judicial, não.
Nesse compasso, em verdade denota-se que o prazo é simples-
mente um intervalo de tempo previsto em lei, manifestação judicial
ou convenção entre as partes para que alguém pratique determinado
fato (em sentido amplo), o qual, cumprido ou não, poderá produzir
diversos efeitos de natureza processual, material ou mesmo mista.
Nesse sentido, socorre-se das lições de Teresa Arruda Alvim Wambier
e Arthur Mendes Lobo:

Em um primeiro momento se poderia pensar que prazos processuais são


aqueles lapsos temporais concedidos aos sujeitos dos processuais (juiz,
partes, perito, assistente técnico, assistente litisconsorcial, custos legis,
escrivão, oficial de justiça, enfim, atores do processo), para que atuem
no processo, impulsionando-o, para obter a prestação jurisdicional
almejada. Sob outro prisma, seria possível afirmar que prazos proces-
suais são todos aqueles previstos em leis processuais. Mas e quando a
lei contém prazos não processuais? Uma interpretação mais razoável
e condizente com a segurança jurídica seria, a nosso ver, a seguinte:
prazos processuais são os prazos fixados em lei ou em decisão judicial
que determinam ‘quando’ e ‘como’ devem ocorrer situações jurídicas
que geram efeitos processuais. São atos que marcam as fases do processo
e impulsionam o feito para a fase seguinte.12

No mesmo estudo, Wambier e Lobo exemplificam e concluem:

Há situações em que não se têm dúvidas a respeito de certo prazo ser


material, e portanto deverá ser contado em dias corridos. É o caso, por
exemplo, de prazo prescricional, prazo decadencial ou um prazo para
pagar o preço de uma mercadoria em um contrato de compra e venda.
Sim, nestes casos não há dúvida de que se refere à pretensão ou a direito
material, porque sua contagem, a obrigação a ser cumprida ou o ônus
obrigacional, independem da existência de um processo. Porém, se um
prazo é previsto em uma norma processual, ainda que não integrante
do novo CPC, este deve ser contado, sim e sempre, em dias úteis, ain-
da que se possa eventualmente dizer, com bons argumentos, que, no

12
WAMBIER, T. A. A.; LOBO, A. M. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com novo
CPC. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/prazos-processuais-
contados-dias-uteis-cpc>. Acesso em: 29 maio 2017.
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
235

fundo, se trataria de um prazo material, de modo a evitar confusão e


insegurança jurídica.13

Visto isso, possível se mostra a ilação de que os atos ou fatos a


serem praticados durante o decurso de determinado prazo legal ou
judicial podem gerar três efeitos distintos, a saber: i) efeitos exclusi-
vamente processuais; ii) efeitos exclusivamente materiais; iii) efeitos
processuais e materiais (natureza mista).
Sobre tal classificação, ao analisar o stay period previsto na Lei de
Recuperação Judicial e Falência, explica Manoel Justino Bezerra Filho,
desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que:

Assim, determinar se um prazo é processual ou material não parece


ser critério suficiente para encontrar a melhor aplicação da lei. O que se
propõe então, para trazer segurança jurídica, é classificar os prazos em:
(i) prazo processual, (ii) prazo material absoluto e (iii) prazo material
relativo. O prazo processual seguiria estritamente o CPC, como, por
exemplo, o prazo para contestação (art. 98), para impugnação (art. 8),
para objeção (art. 55) etc. O prazo material absoluto seria contado em
dias corridos, sem aplicação do CPC, como, por exemplo, o prazo da
letra “a” do inc. II do art. 27; o prazo do art. 36; o prazo de 90 dias do
parágrafo 1º do art. 117 etc. Já o prazo material relativo será contado
de acordo com o CPC, computando-se somente os dias úteis, tais como
o prazo de 180 dias do parágrafo 4º do art. 6º. E qual seria o critério
recomendável para distinguir prazo material absoluto do prazo material
relativo (ou que outro qualificativo se queira dar). O material absoluto
é aquele que corre de forma contínua porque não sofre interferência
de outros atos ou prazos processuais em seu decurso. Isto ocorre, por
exemplo, no prazo de 30 dias previsto na letra “a” do inciso II do art.
27. Já o prazo previsto no parágrafo 4º do art. 6º, embora prazo material
(ou misto), depende, sem dúvida, da contagem de outros prazos de na-
tureza processual e, por isto, este seria o típico prazo material relativo,
pois será completado a partir de uma série de atos processuais, para
os quais o prazo será contado em dias úteis. Enfim, ao que parece, a
simples determinação de tratar-se de prazo de direito processual ou de
direito material não seria suficiente para que se determinasse o tipo de
contagem, se em dias úteis ou corridos.14

13
WAMBIER, T. A. A.; LOBO, A. M. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com novo
CPC. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/prazos-processuais-
contados-dias-uteis-cpc>. Acesso em: 29 maio 2017.
14
BEZERRA FILHO, M. J. A recuperação judicial e o novo CPC. 2016. Disponível em: <http://
www.valor.com.br/legislacao/4581655/recuperacao-judicial-e-o-novo-cpc>. Acesso em: 30
maio 2017.
236
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Em apertada síntese, perpassados os conceitos de normas proces-


suais e normas materiais, infere-se que os prazos processuais são
aqueles que se referem à prática de ato processual, consistente este
em “comportamento humano volitivo que é apto a produzir efeitos
jurídicos num processo, atual ou futuro”, segundo Didier.
Noutro prisma, os prazos materiais vinculam-se à prática de fatos
ou atos jurídicos regulados pelo direito material, sendo certo que, para
parcela da doutrina, daqueles podem-se visualizar duas espécies: i)
prazos materiais absolutos (efeitos exclusivamente materiais); ii) prazos
materiais relativos ou mistos (efeitos processuais e materiais). O fator
de discrímen reside na constatação de que um ato ou fato regulado
pelo direito material eventualmente produz ou não efeitos processuais.
Dessarte, é possível asseverar que atos e fatos de natureza
material podem gerar concomitantemente efeitos regulados pelo
direito substancial e pelo direito processual, conduzindo o intérprete
à necessidade de averiguar caso a caso qual é o aspecto preponderante,
notadamente ante o comando normativo do artigo 219 do CPC/2015,
pois que de rigor saber de antemão de que forma se dará a contagem do
prazo (legal ou judicial) estabelecido para a prática de tais condutas ‒
em dias úteis ou em dias corridos.

11.4 Natureza do prazo para pagamento


Precisamente, dispõe o artigo 523 do CPC/2015 que:

Art. 523. No caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liqui-


dação, e no caso de decisão sobre parcela incontroversa, o cumprimento
definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o
executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias,
acrescido de custas, se houver. §1º Não ocorrendo pagamento voluntário
no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento e,
também, de honorários de advogado de dez por cento. §2º Efetuado o
pagamento parcial no prazo previsto no caput, a multa e os honorários
previstos no §1º incidirão sobre o restante. §3º Não efetuado tempesti-
vamente o pagamento voluntário, será expedido, desde logo, mandado
de penhora e avaliação, seguindo-se os atos de expropriação.

Vê-se, pois, que o comando legal é o de que o devedor (então


executado) deve ser intimado para efetuar o pagamento da dívida e
das custas (se houver) no prazo de 15 (quinze) dias, não esclarecendo o
texto legal se tal contagem segue a regra do artigo 219 do CPC/2015 ou
do artigo 132 do Código Civil. Noutros termos, significa dizer que há
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
237

dúvidas se a contagem do prazo quinzenal deverá observar apenas os


dias úteis ou, ao revés, seguir os dias corridos, computando-se aqueles
em que não houver expediente forense.
Sobre a fluência e contagem dos prazos, ensina Araken de Assis
que:

De acordo com entendimento bastante difundido na doutrina, mas


despercebido na prática, cumpre distinguir entre a fluência do prazo,
ou seja, o início do prazo, e a regras [sic] atinentes à sua contagem, em
particular o início da contagem do prazo. Os verbos correr e contar
expressam conceito juridicamente diferentes. O prazo flui, ou corre, de
um ponto temporal a outro. Traz a ideia de movimento. A sua contagem
considera a unidade de tempo usada no prazo. Desse modo, a contagem
do prazo inicia após completar-se a primeira unidade, e, não, no termo
a quo. Por exemplo, no prazo em dias, sendo o termo inicial segunda-
feira, a fluência começa na terça-feira, sendo dia útil.15

Mais especificamente em relação à regra contida no artigo 219


do CPC/2015, Araken de Assis é certeiro ao sustentar que:

A contagem do prazo processual só leva em conta dias úteis (art. 219,


caput). Era assim quando o termo inicial ou o termo final recaiam em dia
não útil, protraindo-se, em casos tais, para o primeiro dia útil seguinte.
Entenda-se, mais uma vez, que ‘dia útil’, na contagem do prazo em dias,
é o dia em que há expediente forense (de segunda a sexta-feira) completo.
(...) O art. 219, caput, modificou a regra básica num ponto fundamental:
os feriados forenses (sábados, domingos e dias sem expediente forense)
descontam-se da contagem.16

Por certo, a intenção do legislador foi a de excluir os dias sem


expediente forense da contagem dos prazos (legais ou judiciais) fixados
em dias porque, a princípio, encontrando-se fechado o fórum, não
poderia a parte (por si ou por seu advogado) praticar determinado ato
processual. Ao menos não em relação aos processos físicos, pois os atos
processuais em processos eletrônicos podem ser praticados validamente
fora do horário de expediente forense.17 Não por outra razão, a regra
anterior, como bem lembrado por Araken de Assis, prorrogava o prazo

15
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.431.
16
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.450.
17
Art. 212, CPC/2015: Os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20
(vinte) horas.
238
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

encerrado em dia sem expediente forense (ou em que este, por qualquer
motivo, se encerrou mais cedo) para o primeiro dia útil subsequente.
Há quem explique, como Elpídio Donizetti, que a contagem
de prazos apenas em dias úteis revela por objetivo permitir que os
advogados não sejam obrigados a trabalhar nos fins de semana e
feriados. Confira-se:

Quando dos trabalhos da Comissão de Juristas, tive a oportunidade de


alertar para a complicação, mas regra da contagem dos prazos somente
em dias úteis acabou prevalecendo. Diziam os advogados da Comissão
que a contagem em dias úteis permitia que os advogados pudessem
descansar no final de semana.18

Ocorre que, como visto, o prazo em análise refere-se ao pagamento


da dívida pelo devedor (executado), ato jurídico regulado pelo direito
material, conquanto com reflexos processuais. Portanto, não se trata de
ato processual a ser praticado pelo advogado do executado, mas por
este, pessoalmente.19 Daí, há de se questionar se a mens legis no caso
implicaria na necessidade de contagem do referido prazo tomando-se
em consideração tão somente os dias úteis, pois, afinal, a novel regra
assim foi criada em benefício dos advogados, não das partes.
Quanto ao pagamento em si, ensinam Cristiano Chaves de Farias
e Nelson Rosenvald o seguinte:

O adimplemento (ou cumprimento, pagamento) possui três requisitos:


a) voluntário – pois será efetuado espontaneamente pelo devedor. Caso
exista coerção praticada pelo credor, estaremos diante de hipótese de

Art. 213, CPC/2015: A prática eletrônica de ato processual pode ocorrer em qualquer horário
até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia do prazo. Parágrafo único. O horário vigente
no juízo perante o qual o ato deve ser praticado será considerado para fins de atendimento
do prazo.
Art. 3º, Lei nº 11.419/2006: Consideram-se realizados os atos processuais por meio eletrônico
no dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário, do que deverá ser fornecido
protocolo eletrônico. Parágrafo único. Quando a petição eletrônica for enviada para atender
prazo processual, serão consideradas tempestivas as transmitidas até as 24 (vinte e quatro)
horas do seu último dia.
18
DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016,
p. 435.
19
Enfim, não se cogite de adimplemento de uma obrigação quando, ao invés do devedor,
terceira pessoa efetuar o pagamento, ou quando a prestação for obtida coativamente, mediante
o exercício de pretensão do credor. Trata-se de casos em que o devedor é desonerado da
obrigação, com a satisfação do credor, sem, contudo, que propriamente tenha ela sido
adimplida (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 267).
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
239

inadimplemento (art. 580 do CPC);20 b) exato – a prestação será satisfeita


no tempo, local e forma ajustados (art. 394 do CC), sob pena de perda
de sua utilidade e constituição do inadimplemento; c) lícito – não é
suficiente cumprir a obrigação principal – prestação –, mas também os
deveres anexos resultantes da boa-fé objetiva perante o parceiro (art.
422 do CC), com atenção à função social da relação jurídica (art. 421 do
CC), caso contrário, haverá abuso do direito, considerado objetivamente
como ato ilícito, pelo art. 187 do Código Civil. (...). Em suma, o devedor
cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.21

Nesse ponto, é imperioso notar que, se há processo em fase de


cumprimento definitivo de sentença, presume-se que o executado foi
condenado ao pagamento de quantia certa por ato judicial sob o pálio
da coisa julgada. Assim é que, regularmente intimado, cabe a este
promover o pagamento da dívida (e das custas, se houver) no prazo
de 15 (quinze) dias. Cuida-se, pois, de prazo para cumprimento de
obrigação de pagar quantia certa, líquida e exigível materializada em
título executivo judicial definitivo.22
Evidentemente, podem-se vislumbrar três condutas possíveis
do executado no interstício em questão: i) pagar integralmente a
dívida; ii) pagar parcialmente a dívida; iii) não pagar a dívida. A
par dos efeitos típicos do pagamento previsto na lei civil, para cada
uma dessas condutas o CPC/2015 também prevê efeitos processuais
diversos. Em caso de pagamento integral, extingue-se a execução em
razão de a obrigação ter sido satisfeita.23 Lado outro, o não pagamento
permite sobre o débito o acréscimo de multa de 10% (dez por cento) e
de honorários advocatícios também de 10% (dez por cento), expedin-
do-se, desde logo, mandado de penhora e avaliação, seguindo-se os
atos de expropriação. O mesmo ocorre no caso de pagamento parcial

20
O dispositivo legal mencionado refere-se ao CPC/1973.
21
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 268.
22
Nesse ponto há de se atentar para o fato de que a obrigação de pagar quantia certa, líquida e
exigível não decorre do título executivo em si mesmo, senão de uma relação jurídica subjacente
com origem no direito material, a qual, por evidente, restou reconhecida judicialmente em
caráter definitivo. O título executivo judicial (normalmente sentença ou decisão interlocutória)
apenas se constitui processualmente como instrumento hábil para inauguração da fase de
cumprimento de sentença, identificando em seu conteúdo a obrigação em todos os seus
pormenores (quem deve, a quem se deve, o que se deve, quanto se deve e quando se deve).
23
Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se,
no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial
deste Código.
Art. 924. Extingue-se a execução quando: (...); II – a obrigação for satisfeita;
240
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

em relação ao saldo devedor residual. É o que dispõem os §§1º ao 3º


do artigo 523 do CPC/2015 mencionados alhures.
Infere-se, pois, que o pagamento é conduta que gera efeitos
materiais e, por acaso, também processuais. É, portanto, ato de natureza
mista quando, sobre o direito material envolvido, pender processo
judicial. Inexistindo processo judicial, evidentemente, o pagamento
produz tão somente efeitos materiais, notadamente o de extinção da
respectiva obrigação.
Não se olvide ainda que o pagamento é ato jurídico regulado
pelo Código Civil,24 cujos efeitos (sejam materiais ou processuais)
independem da manifestação de vontade do devedor que o realiza. Em
verdade, trata-se de ato-fato jurídico,25 cujos efeitos, ao que foi visto,
são inexoráveis e independem da vontade do executado, travestindo-se,
simultaneamente, em ato-fato processual,26 desde que ocorra, repita-se,
na pendência do respectivo processo judicial.
Bem explica Araken de Assis que:

Os atos processuais constituem espécie de atos jurídicos em sentido estri-


to. Destacam-se da classe porque seus elementos de existência, requisitos
de validade e fatores de eficácia encontram-se previstos unicamente na
lei processual civil. Os atos que adquirem existência fora do processo,

24
Vide artigos 304 e seguintes do Código Civil.
25
Enfim, ato-fato jurídico é aquele em que a hipótese de incidência pressupõe um ato humano,
porém os seus efeitos decorrem por conta da norma, pouco interessando se houve, ou não,
vontade em sua prática (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil
Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 506).
26
Ao tratar das espécies de fatos processuais, Araken de Assis ensina que: “Provindo o ato da
conduta, em algumas situações abstrai-se a relevância da vontade humana, considerando
apenas o fato daí gerado, criando, assim, a subespécie do ato-fato jurídico” (ASSIS, A.
Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo I. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 1.270). Também Medina leciona que: “Há, ainda, fatos processuais
de que alguém participa, em sua configuração, sendo irrelevante a vontade, contudo. É
o que ocorre com aquilo que Pontes de Miranda chamou de ato-fato. Como exemplo de
ato-fato processual podem ser citados a não realização de um ato processual (que tem como
efeito a preclusão), o preparo etc.” (MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil
Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 325). Na mesma trilha, Didier:
“Há os atos-fatos processuais – atos reconhecidos pelo Direito como fatos, sendo, portanto,
absolutamente irrelevante a discussão sobre a existência de vontade e sobre o seu conteúdo.
Há diversos exemplos: a) atos-fatos reais: adiantamento de custas e do preparo (art. 1.007,
CPC); b) atos-fatos caducificantes: a revelia (art. 344, CPC) e a admissão (art. 374, III, CPC) –
em regra, a perda do prazo é exemplo de ato-fato processual caducificante; c) atos-fatos
indenizativos, como, por exemplo, a execução provisória que causou prejuízo ao executado,
com superveniente reforma/ou anulação do título judicial (art. 520, I, CPC). É claro que a
revelia, o preparo etc. podem ser condutas praticadas voluntariamente pelas partes. Mas
não é isso o que as caracteriza. Para o Direito Processual, é irrelevante a averiguação da
existência de vontade em tais atos” (DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17.
ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 375-376).
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
241

incluindo os negócios jurídicos, ingressam no processo por meio das


manifestações ou das declarações das partes (e dos demais figurantes
do processo), e só então, alterada a respectiva natureza, passam a atos
processuais.27

Nesse palco, percebe-se que o ato de pagar por parte do executado,


após regularmente intimado para tanto, inicialmente adquire existência
fora do processo28 e neste ingressa somente por meio da manifestação
de seu advogado informando e comprovando o pagamento ao juízo.
Afinal, a prova do pagamento cabe, de regra, ao devedor.29
Veja-se, assim, que o pagamento é um ato-fato jurídico material
praticado fora do processo, embora produza também alguns efeitos
processuais a partir do momento em que, comprovado pela quitação
juntada aos autos, o juiz extingue a execução por sentença. Nota-se
que há de ser considerado como preponderante o aspecto material da
conduta de pagar quando o devedor (por acaso, executado) cumpre
a prestação a que se obrigou e que foi judicialmente reconhecida com
definitividade.
Igualmente, tem-se como de maior relevância o aspecto material
da conduta omissiva do devedor (então executado) que deixa transcorrer
o prazo quinzenal sem efetuar o pagamento da dívida, conquanto sua
inércia possa gerar os efeitos processuais previstos nos §§1º e 3º do
artigo 523 do CPC/2015. Cuida-se propriamente de ato-fato caducifi-
cante, conforme lição de Fredie Didier Júnior já revista neste trabalho.
Não por demais é rememorar que o caráter instrumental do
processo civil em relação ao direito material ao qual se vincula demonstra
que o escopo do legislador é utilizar daquele para se efetivar este.
O processo é o meio legalmente previsto para efetivação do direito
material. Não o contrário.
Isso quer significar que a fase do cumprimento de sentença, como
a própria nomenclatura está a indicar, visa promover a efetivação do
comando contido no ato judicial ‒ no caso em estudo, o pagamento de
uma prestação de dar dinheiro (quantia certa). A prioridade é fazer

27
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo I. Parte Geral: institutos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.277.
28
É verdade que o devedor pode promover o depósito judicial da dívida para fins de impedir
a incidência dos consectários da mora (juros e correção monetária, por exemplo), ato que não
poderia ser considerado externo ao processo. Mas tal conduta não se revela propriamente
como pagamento, mesmo porque, nesse caso, procura o executado assim agir para que
possa discutir judicialmente a dívida sem o risco de esta ser agravada pela mora.
29
Art. 319, CC: O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento,
enquanto não lhe seja dada.
242
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

com que o credor (então exequente) receba exatamente aquilo que


lhe é conferido pelo direito material (crédito). Inegavelmente, o que
interessa é a entrega do objeto da prestação ao credor para se atingir a
pacificação social, encerrando-se o conflito de interesses qualificado,
até então, pela pretensão resistida.
Vale dizer, do pagamento, mais relevante é o aspecto material
(adimplemento da obrigação) do que o processual (extinção da fase
de cumprimento de sentença e arquivamento do processo). Ou, por
outro lado, mais importa o inadimplemento em si do que seus reflexos
processuais (multa, honorários advocatícios, penhora, avaliação e atos
de expropriação), pois o primeiro é causa; os demais, consequência.
Do contrário, seria priorizar o meio ao fim; a consequência, à
causa; o processo, ao direito material.

11.5 Considerações finais


Hodiernamente, pouco se extrai da jurisprudência acerca do tema
posto, mesmo porque ainda recente é a entrada em vigor do CPC/2015.30
Da doutrina, denota-se que poucos autores se dedicaram à questão em
suas obras ou ensaios já publicados, conquanto se possa observar que
estes, em sua maioria, têm manifestado o entendimento de que o prazo
previsto no caput do artigo 523 do CPC/2015 é de natureza processual
e, como tal, deve seguir a regra de contagem inovadora prevista no
artigo 219 daquele diploma legal. Confira-se:

O pagamento, realizado em atenção ao art. 523 do CPC/2015, é ato


processual, sendo de igual natureza o prazo respectivo; logo, deve-se
lhe aplicar o disposto no art. 219 do CPC/2015, contando-se o prazo
em dias úteis.31

O prazo fixado no texto ora comentado tem como destinatário a parte,


que é quem deve praticar ato para cumprimento da sentença (pagamen-
to) em quinze dias. Trata-se de prazo fixado em lei, como exige o CPC
219 caput para que a contagem se dê em dias úteis. O segundo requisito
legal para a aplicação do critério de contagem somente em dias úteis é
a destinação da intimação: prática de ato processual, que é o que deve
ser praticado no, em razão do ou para o processo. Cumprimento da

30
O presente artigo foi redigido em maio de 2017, portanto, pouco mais de um ano após a
entrada em vigor do CPC/2015, que se deu em 18 de março de 2016.
31
MEDINA, J. M. G. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 935.
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CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
243

sentença, portanto, é ato processual que deve ser praticado pela parte.
Incide a regra da contagem de prazo prevista no CPC 219 caput e par.
ún., de que os prazos previstos em lei ou designados pelo juiz fixados
em dias, correm apenas em dias úteis.32

Impõe-se, por fim, indagar a respeito da contagem do prazo de quinze


dias, notadamente diante da regra contida no art. 219 pelo qual ‘a conta-
gem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão
somente os úteis’, com a ressalva contida no seu parágrafo único de que
tal regra ‘aplica-se somente aos prazos processuais’. Conquanto o ato
de pagar seja voltado à parte, o comando exarado pelo juiz, instando
o executado a pagar em determinado prazo, como já dissemos, é ato
executivo, de natureza mandamental (coercitiva), daí porque se trata
de um prazo processual e, como tal, deve observar o comando do art.
219. Assim, o prazo de quinze dias deve ser contado em dias úteis.33

Nesse sentido, o prazo para pagamento voluntário previsto no art. 523


do novo CPC – quinze dias contados da intimação para pagamento, rea-
lizada na forma do art. 513, §2º – é de natureza processual ou material?
Certamente haverá margem para discussão, mas considerando que esse
ato (pagamento) também se destina (ainda que não exclusivamente) a
produzir efeitos no processo, inibindo a deflagração das próximas etapas
do cumprimento de sentença, com a realização de atos constritivos sobre
o patrimônio do executado, parece que o prazo deve ser qualificado
como processual, computando-se apenas nos dias úteis.34

Na linha do exposto no tópico anterior, creio ser um prazo processual [7],


considerando (i) estar previsto na legislação processual, para a realização
de um ato processual e (ii) trazer consequências processuais, as quais
serão abaixo expostas. Ainda que haja, por óbvio, reflexos para fora do
processo, como a não fluência de juros e o recebimento de valores pelo
exequente, decorrente do pagamento.35

32
NERY JUNIOR, N.; NERY, R. M. A. Código de Processo Civil Comentado. 16. ed., rev. atual e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.392.
33
WAMBIER, T. A. A. (Coord.). Primeiros Comentários ao novo código de processo civil: artigo por
artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 955.
34
ROQUE, A. V. As armadilhas dos prazos no novo CPC. 2015. Disponível em: <https://jota.
info/colunas/novo-cpc/as-armadilhas-dos-prazos-no-novo-cpc-07092015>. Acesso em: 30
maio 2017.
35
DELLORE, L. O prazo para pagamento é em dias úteis ou corridos no cumprimento de sentença
e execução? 2016. Disponível em: <https://jota.info/colunas/novo-cpc/no-cumprimento-
de-sentenca-e-execucao-no-novo-cpc-o-prazo-para-pagamento-e-em-dias-uteis-ou-
corridos-02052016>. Acesso em: 30 maio 2017.
244
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Por prisma diverso, no entanto, há autores que defendem a


contagem do prazo para pagamento pela regra dos dias corridos
(computando-se sábados, domingos, feriados, enfim, dias sem expediente
forense). Veja-se:

Ressalte-se, por fim, que a regra de contagem de prazos apenas em dias


úteis aplica-se tão somente a prazos processuais. Isso significa que os
prazos concedidos às partes para o cumprimento de sentença ou deci-
sões interlocutórias que lhes imponham obrigações não contarão com
o beneplácito do art. 219, contando-se de forma corrida igualmente em
dias não úteis.36

Apesar de existir corrente doutrinária que defende tratar-se de um


prazo processual (apud, Scarpinella Bueno, Manual, p. 402), em meu
entendimento o prazo é material, porque o pagamento é ato a ser pra-
ticado pela parte e não pelo advogado, não se tratando, portanto, de
ato postulatório.37

Do exposto ao longo deste breve estudo sobre tema de relevância


prática ímpar, em que pesem aos argumentos citados pelos consagrados
autores que sustentam a conjugação do disposto nos artigos 219 e 523,
caput, do CPC/2015, infere-se que o prazo quinzenal para pagamento da
quantia certa sob cumprimento definitivo de sentença revela natureza
mista, pois que se trata de ato-fato material, que, se praticado na
pendência de processo judicial, por obra do acaso, também provocará
efeitos processuais.
Por isso há de preponderar a natureza material da conduta de
pagar praticada pelo devedor (executado), pois que mais relevante é a
entrega do objeto da prestação obrigacional (direito material) do que
a extinção do processo (direito processual), já que este último é o meio
para se atingir determinada finalidade, qual seja, a efetivação do direito
material, no caso, o crédito do credor (ora exequente) em desfavor do
devedor (ora executado).
Em assim sendo, há de se afastar a regra de contagem do prazo
em dias úteis, prevista no caput do artigo 219 do CPC/2015, porque,
segundo o parágrafo único desse dispositivo legal, tal se aplica somente
aos prazos processuais. Significa dizer que o pagamento, como ato-fato
regulado pelo Código Civil (direito material) permite adjetivar como

36
AMARAL, G. R. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 310.
37
NEVES, D. A. A. Manual de Direito Processual Civil: Volume Único. 8. ed. Salvador: JusPodivm,
2016, p. 1.124.
MARCOS BOECHAT LOPES FILHO
CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE...
245

misto o prazo quinzenal em apreço, preponderando, no entanto, o


caráter material da conduta do devedor.
Prevalecendo a natureza material do pagamento, deve-se contar
o prazo para pagar, portanto, em dias corridos, afastando-se a regra
do artigo 219, caput, do CPC/2015, em observância ao disposto em seu
parágrafo único.
Não se olvide, por derradeiro, que, em obediência ao processo civil
constitucionalizado, sobretudo ao princípio da cooperação, positivado
pelo CPC/2015 no ordenamento jurídico doméstico, assim como para
que se evite a indesejável insegurança jurídica, o magistrado diligente
deve esclarecer e alertar previamente o devedor (então executado) de
que está sendo intimado a pagar a dívida em execução no prazo de
15 (quinze) dias corridos a fim de evitar que se possa seguir equivo-
cadamente a contagem em dias úteis e, eventualmente, concretize a
prestação intempestivamente, submetendo-se aos rigores das sanções
processuais cabíveis.38

Referências
AMARAL, G. R. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016.
ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais.
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www.valor.com.br/legislacao/4581655/recuperacao-judicial-e-o-novo-cpc>. Acesso em:
30 maio 2017.
DELLORE, L. O prazo para pagamento é em dias úteis ou corridos no cumprimento de
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no-cumprimento-de-sentenca-e-execucao-no-novo-cpc-o-prazo-para-pagamento-e-
-em-dias-uteis-ou-corridos-02052016>. Acesso em: 30 maio 2017.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.
DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 8. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009.

38
Vide §§1º e 3º do artigo 523 do CPC/2015.
246
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

MEDINA, J. M. G. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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NERY JUNIOR, N., NERY, R. M. A. Código de Processo Civil Comentado. 16. ed. rev. atual
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
NEVES, D. A. A. Manual de Direito Processual Civil: Volume Único. 8. ed. Salvador:
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WAMBIER, T. A. A. (Coord.). Primeiros Comentários ao novo código de processo civil: artigo
por artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
WAMBIER, T. A. A.; LOBO, A. M. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com
novo CPC. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/prazos-proces-
suais-contados-dias-uteis-cpc>. Acesso em: 29 maio 2017.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LOPES FILHO, Marcos Boechat. Conta-se em dias úteis ou dias corridos o prazo
para pagamento no cumprimento definitivo de sentença por quantia certa?. In:
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos
e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 229-246. ISBN 978-85-450-0456-1.
PARTE II

O DIREITO DO CONSUMIDOR E O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
CAPÍTULO 1

O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA


DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL E A SUBSTANCIAL
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DO CONSUMIDOR EM JUÍZO

Claudia Lima Marques


Luis Alberto Reichelt

1.1 Introdução
Di-a-logos; duas lógicas e só uma aplicação conjunta e coerente
de várias fontes e suas “lógicas” e espécies a um mesmo caso. Com esta
expressão semiótica e poética, o Professor Erik Jayme consolidou, na
teoria geral, a solução dos antigos conflitos de leis no tempo, a indicar
que, no pluralismo contemporâneo de fontes, elas não mais se excluem
ou se derrogam, até mesmo porque seus campos de aplicação material
e substancial não são mais perfeitamente coincidentes, mas co-habitam
e di-a-logam, sob os mandamentos constitucionais de proteção.1
O novo Código de Processo Civil não trata diretamente dos
direitos processuais (coletivos) do consumidor, mas naturalmente
o advento de um novo Código de Processo Civil coloca o intérprete
diante do desafio de reconstruir o sistema de defesa do consumidor,

1
Veja mais sobre o diálogo das fontes em JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le
droit internationale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International
de La Haye, Kluwer, Doordrecht, 1995, e na obra MARQUES, Claudia Lima (Org.). Diálogo
das fontes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 9 e seg.
250
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

em especial em sua parte processual.2 A pretensão de veiculação de um


novo paradigma através da edição da nova codificação constitui-se em
importante ponto de reflexão no que se refere à necessidade de preser-
vação e ampliação do âmbito de proteção do consumidor até então
existente. A preocupação com a compatibilização entre os comandos
construídos a partir das leis que ditam parâmetros em sede de direito
processual civil e de direito do consumidor é, antes de tudo, a conside-
ração de tais normas dentro de um marco civilizatório no qual não se
admite retrocesso, forte no mandamento do art. 5º, XXXII, da CF/1988.
Partindo dessas premissas, o presente estudo pretende lançar
luzes, em primeiro lugar, sobre a reflexão em torno da forma como se
dá a construção do sistema processual civil consumerista a partir do
encontro e harmonia das normas inseridas no novo Código de Processo
Civil com aquelas já constantes do Código de Defesa do Consumidor.
Cumprida tal etapa, passar-se-á à apresentação de um panorama que
confirma a existência de um sistema na presença de direitos funda-
mentais a serem assegurados ao consumidor no âmbito processual,
mostrando como esse sistema resta densificado pelo legislador infra-
constitucional. Vejamos.

1.2 A formação de um sistema de caráter protetivo a


partir da harmônica combinação entre o Código
de Defesa do Consumidor e o novo Código de
Processo Civil
Sendo o sistema jurídico um conjunto de normas dotado de
ordenação e de unidade,3 impõe-se refletir a respeito do significado
presente na pretensão de reconhecer a existência de um sistema
processual civil formatado em favor da defesa do consumidor em juízo.
Nesse sentido, a primeira preocupação a ser considerada diz
respeito à identificação do traço comum a todas as normas jurídicas
que funciona como referencial de unidade a justificar sejam elas inter-
pretadas e aplicadas a partir de uma mesma padronização. A esse
respeito, tem-se como inquestionável que o compromisso expresso do

2
Veja sobre o tema FIGUEIRA, Joel Dias Júnior. Projeto Legislativo de Novo código de
Processo Civil e a crise da jurisdição. Revista dos Tribunais, n. 926, dez. 2012, p. 455 e seg.
3
Sobre essa perspectiva a respeito do conceito de sistema, ver CANNARIS, Claus-Wilhelm.
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Trad. Antonio Menezes
Cordeiro. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1996.
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
251

texto constitucional em assegurar a defesa do consumidor em juízo, na


forma do constante do art. 5º, XXXII, serve como elemento que exerce
força atrativa em relação aos demais comandos editados pelo legislador.
É na circunstância de todas as normas cotejadas serem efetiva densi-
ficação do direito fundamental à tutela dos direitos do consumidor
que se encontra o fio condutor que impõe sejam determinadas normas
agrupadas entre si de modo a serem vistas como uma teia protetiva.4
Essa unidade de sentido identificada no cotejo das diversas
normas que densificam o direito fundamental à tutela dos direitos do
consumidor traz consigo a aplicabilidade de uma hermenêutica igual-
mente engajada. É nesse sentido que o art. 5º, XXXII, impõe que sejam
os comandos veiculados tratados como componentes de uma pauta
mínima de proteção em uma realidade político-cultural, a qual deve
ser defendida de maneira intransigente, não se admitindo a possibi-
lidade de qualquer forma de retrocesso em relação ao seu âmbito de
proteção.5 A essa pauta mínima deve ser assegurada aplicabilidade
da forma imediata, sendo o seu alcance inegavelmente passível de
ampliação pelo legislador e pelo intérprete, a quem compete zelar
pelo respeito às soluções que espelhem a existência de um âmbito de
proteção pautado pela máxima extensão possível no contraste com
outros direitos fundamentais.
Essa leitura crítica do trabalho desenvolvido pelo legislador
gera resultados muito interessantes em se considerando a forma como
o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo
Civil se entrelaçam na formação de um sistema de caráter protetivo.
A própria ordenação do sistema assume feições especiais, dado que a
lógica da hierarquia das fontes do direito e o critério da especialidade
cedem espaço diante da necessidade de sempre assegurar a primazia
da norma mais protetiva. Assim, o espaço assegurado ao novo Código
de Processo Civil para introduzir comandos aplicáveis em favor da
defesa do consumidor será aquele no qual o novel diploma se revele
capaz de ofertar um âmbito de proteção mais robusto do que aquele
anteriormente previsto nas normas consumeristas.

4
A esse respeito, comentando sobre o efeito útil e pro homine do status constitucional da proteção
do consumidor, ver o capítulo introdutório de Claudia Lima Marques em MARQUES,
Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código
de Defesa do Consumidor. 3. e. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 70.
5
Sobre o influxo da proibição de retrocesso na construção da hermenêutica própria dos
direitos fundamentais, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 448.
252
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A forma como se desenvolve a hermenêutica acima apontada


ganha cores especiais em se examinando o que se passa, quando um
mesmo tema é regulado tanto pelo Código de Processo Civil quanto pelo
Código de Defesa do Consumidor. A consideração de tais parâmetros
faz com que certos comandos constantes do novo Código de Processo
Civil ‒ que são abertamente orientados a partir de um viés liberal na
forma de tratamento das partes, baseados na suficiência da igualdade
formal como forma de proteção ‒ não possam ser considerados como
normas de aplicabilidade preferencial em se tratando de demandas
consumeristas. O Estado-Juiz deve, na forma da lei protetiva, realizar
a defesa do consumidor. Exemplificativamente, pode-se pensar nas
regras sobre ônus da prova: se, de um lado, é certo que a incidência da
fórmula constante do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor
afasta, por especialidade, a da regra geral prevista no caput do art. 373
do Código de Processo Civil, é certo, de outro lado, que a dinamização
do ônus da prova prevista no §1º do mesmo art. 373 pode se revelar
como uma regra capaz de ampliar a proteção do consumidor para além
das hipóteses expressamente contempladas pelo legislador.6
O reforço do âmbito de proteção já previsto no Código de Defesa
do Consumidor pode ser visto, de outro lado, na análise das regras
sobre desconsideração da personalidade jurídica. À consagração da
teoria menor no plano do direito material, necessária à viabilização
de proteção mais efetiva em favor do consumidor, soma-se agora a
providência processual constante do art. 792, §3º, do Código de Processo
Civil, segundo a qual a fraude à execução, nos casos de desconsideração
da personalidade jurídica, se verifica a partir da citação da parte cuja
personalidade se pretende desconsiderar.7 Vê-se, aqui, a necessidade
de conjugação de normas que se complementam com o intuito de
combater expedientes outrora empregados com o intuito de dificultar
a satisfação dos seus interesses.

6
Sobre os critérios envolvidos na aplicação de regras sobre inversão do ônus da prova e de
dinamização do ônus da prova, ver REICHELT, Luis Alberto. A Prova no Direito Processual
Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 344 e seguintes.
7
Sobre a desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC, ver XAVIER, José Tadeu
Neves. Primeiras reflexões sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Revista Jurídica, v. 458, 2015, p. 31-59; XAVIER, José Tadeu Neves. Aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica no direito do consumidor (Jurisprudência
comentada). Revista de Direito do Consumidor, v. 105, 2016, p. 452-464; SOUZA, Gelson
Amaro de. Desconsideração da personalidade jurídica no CPC-2015. Revista de Processo,
v. 255, 2016, p. 91-113; e REICHELT, Luis Alberto. A desconsideração da personalidade
jurídica no projeto de novo Código de Processo Civil e a efetividade da tutela jurisdicional
do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 98, 2015, p. 245-259.
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
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1.3 As inovações trazidas pelo Código de Processo


Civil de 2015 e sua compatibilização com o regime
instituído pelo Código de Defesa do Consumidor
A presença de uma série de inovações no Código de Processo
Civil de 2015 traz consigo a necessidade do debate em torno da compa-
tibilidade com o programa de defesa do consumidor até então existente
não só nos pontos em que já havia regulação expressa em relação a
determinado tema, mas também naqueles em que inexistia qualquer
previsão específica a seu respeito. Segue-se a trilha do disposto no art.
7º do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual os direitos
previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados
ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legis-
lação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades
administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios
gerais do direito, analogia, costumes e equidade.
Um primeiro caso a ser considerado envolve o fenômeno dos
negócios jurídicos processuais. O art. 190 do Código de Processo Civil
dispõe que, versando o processo sobre direitos que admitam autocom-
posição, tem-se como lícito às partes plenamente capazes estipular
mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa
e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres
processuais, antes ou durante o processo. A possibilidade veiculada
na cláusula geral em comento, contudo, é absolutamente incompatível
com a exigência de modelo de processo comprometido com proteção de
defesa do consumidor. Não por acaso, há previsão legal que expressa-
mente impõe ao juiz o dever de, de ofício ou a requerimento, controlar a
validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação
nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão
ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulne-
rabilidade.8 E mesmo que não houvesse o legislador assim disposto
de maneira expressa, o limite em questão seria imperioso por força da
necessidade de assegurar máxima eficácia e efetividade ao disposto no
art. 5º, XXXII e XXXV, do texto constitucional em favor do consumidor.
Da mesma forma, inova o legislador do Código de Processo Civil
ao prever a presença de um sistema de decisões dotadas de caráter

8
Ligando tal limite à necessidade de preservação da autonomia da vontade, ver as palavras
de Fernando Gajardoni em GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE,
André Vasconcelos; OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Teoria Geral do Processo. Comentários
ao CPC de 2015. Parte Geral. São Paulo: Método, 2015, p. 617-618.
254
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

vinculante no seu art. 927. Preocupado abertamente com a oferta de


tutela jurisdicional pautada por isonomia e por respeito à exigência de
segurança jurídica, tem-se na estratégia adotada pelo legislador uma
providência inegavelmente sintonizada com as exigências próprias de
uma sociedade na qual a litigiosidade judicial guarda íntima relação
com a massificação das relações sociais, no que é digna de elogios.
Há que se registrar, contudo, que a aplicabilidade da fórmula lá
inscrita reclama adequação às peculiaridades da realidade das partes,
principalmente no que se refere ao emprego de critérios de hermenêutica
que assegurem a prevalência do precedente mais favorável à tutela do
consumidor como forma de impedir que o distinguishing ou o overruling,
consumados na forma do previsto no art. 489, §1º, V e VI, do CPC, deem
azo ao surgimento de inaceitável retrocesso social.9
O influxo do sistema de precedentes vinculantes em favor do
consumidor pode ser sentido, entre outras formas, em se considerando
a influência por ele exercida no regime da tutela de evidência, regulada
no art. 311 do novo Código de Processo Civil.10 Presentes as circuns-
tâncias elencadas pelo legislador, é possível a concessão de medidas
liminares em favor do consumidor independentemente da presença
de perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Havendo tese
firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante
em favor do consumidor (e a probabilidade do surgimento dessas

9
Para aplicação prática a esse respeito em matéria consumerista, ver as considerações feitas em
REICHELT, Luis Alberto. O sistema de direitos fundamentais processuais densificado pelo
novo CPC e a necessária superação da Súmula 381 do STJ. Revista de Direito do Consumidor, v.
110, 2017, p. 459-472. Sobre o tema em geral à luz do novo CPC, ver, exemplificativamente,
FENSTERSEIFER, Wagner Arnold. Distinguishing e overruling na aplicação do art. 489, §1º, VI
do CPC/2015. Revista de Processo, v. 252, 2016, p. 371-385; MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da
persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2016; MITIDIERO, Daniel Francisco.
Precedentes, jurisprudência e súmulas no novo código de processo civil brasileiro. Revista
de Processo, v. 245, 2015, p. 333-349; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. O sistema de precedentes
desenvolvido pelo CPC/2015: uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing)
e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de Processo, v. 248, 2015, p.
331-355.
10
Para um panorama geral a respeito da tutela de evidência, ver FUX, Luiz. Tutela de segurança
e tutela da evidência: fundamentos da tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 1996; SILVA,
Jaqueline Mielke. A tutela provisória no novo Código de Processo Civil. 2. ed. Porto Alegre: Verbo
Jurídico, 2016; GRECO, Leonardo. A tutela da urgência e a tutela da evidência no Código de
Processo Civil de 2015. In: RIBEIRO, Darci Guimarães; JOBIM, Marco Félix (Org.). Desvendando
o novo CPC. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 111-137; GAIO JÚNIOR, Antônio
Pereira. Apontamentos para a tutela provisória (urgência e evidência) no novo Código de
Processo Civil brasileiro. Revista de Processo, v. 254, 2016, p. 195-223; TESHEINER, José Maria
Rosa; THAMAY, Rennan Faria Krüger. Aspectos da tutela provisória: da tutela de urgência
e tutela da evidência. Revista de Processo, v. 257, 2016, p. 179-214; CARDOSO, Oscar Valente.
A tutela provisória no novo código de processual civil: urgência e evidência. Revista Dialética
de Direito Processual, v. 148, 2015, p. 86-98.
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
255

orientações padronizadas em matéria consumerista é considerável, já


que o consumidor é o personagem mais emblemático a ilustrar o típico
sujeito da sociedade de massas pós-moderna), tem-se que a ele pode
ser estendida a tutela de evidência.
Nesse sentido, impõe-se destacar, ainda, que a conjugação da
inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa
do Consumidor com o previsto no art. 311, em especial nos incisos II e
IV, revela interessantes possibilidades em favor da ampliação da tutela
do consumidor. Assim ocorre na medida em que a correta conjugação
dos comandos legais em questão permitiria que fossem concedidas
liminares em sede de tutela de evidência mediante a consideração de
um standard de prova ainda mais reduzido do que aquele previsto pelo
Código de Processo Civil.11
Um ponto positivo a ser destacado dentre as inovações traba-
lhadas pelo legislador no novo Código de Processo Civil é a sofisticação
do sistema multiportas de acesso à justiça. A confiança da lei no bom
funcionamento de ferramentas como a mediação e a conciliação, com
o delineamento do campo de atuação de cada um dos profissionais (é
o que se observa da distinção dos personagens listados nos parágrafos
do art. 165), bem como a compreensão da utilização de tais meios
adequados de solução de litígios tanto para o contexto judicial quanto
extrajudicial, contribui substancialmente para a oferta de um maior
leque de alternativas a serem consideradas pelo consumidor com vistas
à tutela dos seus interesses. Trata-se de concretização do previsto no
art. 5º, XXXV, do texto constitucional, a qual vem sintonizada com o
disposto no art. 3º, §§2º e 3º, da mesma codificação processual civil.12

11
A respeito da noção de standard de prova, ver KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento
judicial: Paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense, v. 353, 2001, p. 15-52;
REICHELT, Luis Alberto. A Prova no Direito Processual Civil. Op. cit., p. 212; ALI, Anwar
Mohamad. Meios para superação da prova diabólica: da distribuição dinâmica do ônus
da prova aos standards probatórios. Revista Forense, v. 424, 2016, p. 459-478; BALTAZAR
JÚNIOR, José Paulo. Standards probatórios. In: KNIJNIK, Danilo (Coord.). Prova judiciária:
estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007,
p. 153-170.
12
Sobre a relação entre o art. 5º, XXXV, e o sistema de justiça multiportas, ver REICHELT, Luis
Alberto. O direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional e sua densificação
no novo CPC. Revista de Processo, v. 258, 2016, p. 41-58; TAKAHASHI, Bruno. Entre a liberdade
e a autoridade: os meios consensuais no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo,
São Paulo, v. 264, 2017, p. 497-522; MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; HARTMANN,
Guilherme Kronemberg. A audiência de conciliação ou de mediação no novo Código de
Processo Civil. Revista de Processo, v. 253, 2016, p. 163-184. Especificamente em relação à
situação consumerista, ver: MARQUES, Claudia Lima. Nota sobre a proteção do consumidor
no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). Revista de Direito do Consumidor, v.
104, 2016, p .555-564; FROTA, Renata Marques da. Mediação e conciliação de conflitos de
256
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Esse ponto merece atenção especial tendo em vista múltiplas


vantagens a serem consideradas. Para além dos ganhos decorrentes
da introdução de uma audiência de conciliação ou mediação anterior
ao estabelecimento do contencioso judicial (art. 334 do CPC), merece
ser destacada a possibilidade de formação de título executivo extra-
judicial quando da realização de acordos firmados com a chancela de
um mediador ou conciliador devidamente credenciado pelo Poder
Judiciário. Essa fórmula potencializa, se bem utilizada, a atuação do
Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, já que possibilita que a ação
integrada entre os órgãos do Poder Judiciário e o Programa Estadual
de Defesa dos Consumidores (PROCON) possa ensejar a produção de
documentos capazes de aparelhar a propositura direta de ação executiva,
dispensando a necessidade de prévia sentença em atividade processual
de conhecimento. Essa exegese guarda sintonia, inclusive, com a fórmula
inscrita no art. 4º do novo Código de Processo Civil, segundo o qual
as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral
do mérito, incluída a atividade satisfativa, que, por sua vez, densifica
o constante do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
Outros comandos do novo Código de Processo Civil que precisam
ser destacados como ferramentas capazes de viabilizar a oferta de tutela
jurisdicional adequada e efetiva em favor do consumidor são aqueles
que constam dos incisos do seu art. 139. As múltiplas faces da atividade
de direção material do processo,13 reguladas pelo legislador no comando
legal comentado, evidenciam a existência de balizas seguras a serem
seguidas pelo juiz com vistas a conformar o procedimento mediante
a adoção de providências de cunho prático que tomam em conta
aspectos inegavelmente importantes para a defesa do consumidor. O
compromisso com a oferta de igualdade de tratamento às partes (inciso
I), com a duração razoável do processo (inciso II), com a promoção da
autocomposição (inciso V) e com o diálogo com os entes legitimados
à propositura de ação civil pública destinada à tutela de direitos

consumo: uma análise luso-brasileira. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 22,


2016, p. 161-185; REICHELT, Luis Alberto. Considerações sobre a mediação e conciliação
no Projeto de Novo Código de Processo Civil. Revista de Direito do Consumidor, v. 97, 2015,
p. 123-143; LIMA, Jean Carlos. Possibilidade de aplicação da mediação ou arbitragem como
meios consensuais extrajudiciais de resolução de conflitos no direito do consumidor. Revista
Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 22, 2016, p. 259-284. RAMOS, Fabiana D’Andrea.
Métodos autocompositivos e respeito à vulnerabilidade do consumidor. Revista de Direito
do Consumidor, v. 109, 2017, p. 333-348.
13
Sobre a noção de direção do processo, ver MILLAR, Robert Wyness. The Formative Principles
of Civil Procedure. In: ENGELMANN, Arthur (Org.) A History of Continental Civil Procedure.
New York: Augustus M. Kelley Publishers, 1969, p. 23.
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
257

individuais homogêneos (inciso X) é, em verdade, o compromisso com


uma agenda que também é a agenda perseguida pelo consumidor em
juízo. Vale lembrar, neste último ponto, a remissão expressa do legis-
lador ao disposto no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, em
postura consciente quanto à importância do diálogo das fontes como
forma de construção de soluções eficientes com vistas à construção de
um sistema de natureza protetiva.
Para além do antes consignado, impõe-se lançar luzes em especial
sobre dois incisos do art. 139 do Código de Processo Civil. Em primeiro
lugar, refira-se o art. 139, IV, segundo o qual caberá ao juiz determinar
todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive
nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. Trata-se de
poderoso instrumento que viabiliza a adoção de providências em sede
de execução indireta, induzindo a parte à adoção de comportamentos
desejados pelo ordenamento jurídico que venham a ser tutelados
mediante decisão judicial.14 Permite-se ao julgador assumir um papel
eminentemente criativo no que se refere às escolhas a serem por ele
efetuadas com vistas à aplicação do constante da citada cláusula geral,
respeitados, por certo, os limites de congruência entre meios e fins
inerentes ao postulado da razoabilidade.15
De outro lado, a previsão inscrita no art. 139, VI, do Código de
Processo Civil, pela qual o juiz poderá dilatar os prazos processuais
e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às
necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela
do direito, também é uma ferramenta que pode e deve ser lida como
moldada às exigências próprias da tutela do consumidor.16 A adminis-
tração do tempo do debate pelo juiz deve levar em conta a presença de

14
A respeito da exegese do comando em questão, ver as ponderações de Fernando Gajardoni
em GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos;
OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015.
Parte Geral. Op. cit., p. 458; ALMEIDA, Roberto Sampaio Contreiras de in WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Org.). Breves
Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 451-453;
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução
de obrigação de pagar quantia certa – art. 139, IV, do novo CPC. Revista de Processo, v. 265,
2017, p. 107-150; SANTOS, Edilton Meireles de Oliveira. Medidas sub-rogatórias, coercitivas,
mandamentais e indutivas no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, v. 247,
2015, p. 231-246.
15
Veja sobre o tema o interessante HANAU, Hans. Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als
Schranke privater Gestaltungsmacht. Tübingen: Mohr, 2004.
16
Relativamente à possibilidade de adequação do procedimento na forma do art. 139, VI do
CPC, ver ALMEIDA, Roberto Sampaio Contreiras de in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim;
258
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

condições adequadas para a apresentação de manifestação, em especial


no que diz respeito à atividade de instrução. Não raro, a inadequação
das condições de participação decorrente da exiguidade dos prazos
acaba por servir como barreira a calar a voz do consumidor, a quem
se impõe assegurar efetivas condições para que a defesa técnica seja
exercida a contento.

1.4 O diálogo das fontes entre o novo Código de


Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor
e o incremento em termos de cidadania processual
do consumidor
O mandamento constitucional é claro no sentido da proteção do
consumidor (art. 5, XXXII, da CF/1988); sendo assim, a luz constitucional
ilumina a aplicação conjunta e harmônica do CDC e do CPC em casos
de consumo judicializados. Dos inúmeros frutos que se pode colher da
combinação entre os comandos do Código de Defesa do Consumidor
e do novo Código de Processo Civil com vistas à construção de um
sistema consumerista mais robusto, exsurge de maneira especial a
figura de um personagem qualificado, qual seja, o consumidor que, no
exercício de sua cidadania, encontra em seu favor um sistema que se
propõe a fazer com que sua voz seja mais bem representada quando
da tomada de decisão pelo órgão jurisdicional.
Para além da necessidade de garantir tratamento adequado
capaz de reduzir as assimetrias verificadas entre consumidores e
fornecedores no âmbito do direito material, o que se observa é que o
anseio por uma maior horizontalidade na relação entre o consumidor-
parte e o Estado-Juiz, que já podia ser sentido no Código de Defesa do
Consumidor, encontra eco também em diversas fórmulas previstas no
novo Código de Processo Civil. O diálogo entre parte e juiz na nova
codificação processual é pautado pelo respeito ao direito fundamental
ao contraditório, o qual atua de maneira transversal na conformação
do sistema jurídico de modo a exigir que os sujeitos do processo sejam
considerados em uma dinâmica de cooperação com vistas à construção
da decisão judicial. Com vistas à construção de tal cenário, impõe-se que
sejam assegurados às partes o direito a falar nos autos, o direito a serem

DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Org.). Breves Comentários ao
Novo Código de Processo Civil. Op. cit., p. 454-456.
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
259

ouvidas pelo órgão jurisdicional e o direito a não serem surpreendidas


pelo conteúdo da decisão judicial.17
A consagração constitucional do direito fundamental ao contra-
ditório no art. 5º, LV, combinada com a previsão do dever fundamental
de fundamentação das decisões judiciais, inscrito no art. 93, IX, da Lei
Maior, foi o ponto de partida considerado pelo legislador ao especificar
e reforçar a pauta mínima até então estabelecida. Nesse sentido, ao
mesmo tempo em que o art. 11 do Código de Processo Civil repete a
fórmula prevista no art. 93, IX, o art. 489, §1º, da codificação processual
brasileira acaba por especificar casos nos quais se considera que a decisão
judicial deve ser considerada como não fundamentada, ensejando a
aplicação da sanção de nulidade. Da mesma forma, enquanto o art.
7º do Código de Processo Civil impõe ao juiz o dever de zelar pelo
efetivo contraditório, dever que já era determinado pelo texto consti-
tucional, o art. 6º aprofunda esse dever inserindo o juiz como parte de
uma mecânica de colaboração com as partes com vistas à construção
da decisão de mérito justa e efetiva. A preocupação em especificar o
conteúdo do direito fundamental ao contraditório vem explícita, ainda,
no art. 9º, que estabelece o dever do juiz de ouvir as partes antes de
proferir decisões, e no art. 10, segundo o qual o juiz não pode decidir,
em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do
qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda
que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
A densificação de direitos fundamentais processuais não era
providência desconhecida do legislador responsável pelo Código de
Defesa do Consumidor. Basta ver, nesse sentido, que o art. 6º, VII,
previa como um dos direitos básicos do consumidor o acesso aos órgãos
judiciários com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais
e morais, individuais, coletivos ou difusos. Essa fórmula vem reforçada,
mais adiante, pelo constante do art. 83, segundo o qual, para a defesa dos
direitos e interesses protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor,
são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua
adequada e efetiva tutela. Ambos os comandos expressam a ideia do
direito à tutela jurisdicional adequada e efetiva, que é conteúdo do
direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional.

Sobre essa perspectiva, ver ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do


17

contraditório. Revista da AJURIS, v. 74, 1998, p. 103-120; REICHELT, Luis Alberto. O conteúdo
da garantia do contraditório no direito processual civil. Revista de Processo, v. 162, 2008, p.
330-351.
260
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A compreensão da forma como se entrelaçam os comandos em


questão reclama atenção, ainda, para a topologia dos comandos legais
supracitados. Observa-se, no Código de Processo Civil, a existência
de um quadro de normas fundamentais processuais cuja aplicação é
transversal ao longo de todo o sistema. Essa também é a orientação do
Código de Defesa do Consumidor, ao tratar da tutela citada no contexto
dos direitos básicos do consumidor. E, nos dois casos, as normas que
se colocam nos alicerces dos dois microssistemas acabam por ecoar em
outros pontos em função da forma como o legislador regula situações
mais específicas.
É comum a ambas as codificações a preocupação em tornar
expressa a ideia de que o trabalho do legislador é sintonizado com
parâmetros constitucionais. No caso do art. 1º do Código de Defesa do
Consumidor, há a expressa remissão ao disposto nos arts. 5º, XXXII,
e 170, V, da Constituição Federal, bem como ao art. 48 do Ato das
Disposições Constitucionais Finais e Transitórias. O novo Código de
Processo Civil, por sua vez, utiliza uma fórmula mais vaga, anotando,
em seu art. 1º, que o processo civil será ordenado, disciplinado e inter-
pretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos
na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as
disposições deste código. O emprego de tal técnica legislativa, ainda que
não indispensável à implementação de uma leitura crítica dos diplomas
infraconstitucionais à luz da pauta de direitos fundamentais, serve como
interessante auxílio ao intérprete, que, diante de opções hermenêuticas,
acaba por dispor de uma guia segura para efetuar as escolhas corretas.

1.5 Reflexões finais


Esperamos que o diálogo entre o novo Código de Processo Civil
e o Código de Defesa do Consumidor enseje o surgimento de um
sistema protetivo ainda mais robusto que o anterior. Essa construção,
contudo, passa pela necessidade de um olhar crítico que leve em conta
a perspectiva de densificação de direitos fundamentais do consumidor,
vendo no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal o esteio para a construção
de uma teia de comandos de direito material e de natureza processual,
um mandamento, um Gebot de proteção.
Se é cedo para que se possa afirmar que esse diálogo no cenário
da jurisprudência pode ser considerado efetivamente bem-sucedido,
parece-nos que cabe à doutrina o papel de, desde logo, indicar o norte
a ser seguido pelos tribunais. Com o advento de entendimentos mais
CLAUDIA LIMA MARQUES, LUIS ALBERTO REICHELT
O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A...
261

consolidados formados em termos de orientações forenses, assumirá a


mesma doutrina outro papel igualmente relevante, que é o de fiscal do
fiel cumprimento da orientação ora defendida, que nada mais é do que
a tradução da leitura mais sintonizada com a pauta protetiva constitu-
cional do consumidor. Se o diálogo das fontes é, desde sua utilização
pelo e. STF na decisão da ADIN nº 2.591,18 um instrumento sofisticado
da teoria geral atual, sua utilização permite olhar mais longe e aplicar
duas ou mais fontes orientadas pelos valores constitucionais, o que, no
caso dos consumidores, é mandamento que não pode ser esquecido.

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18
Veja o parecer de Claudia Lima Marques em Revista de Direito do Consumidor, n. 68, p. 9-39.
262
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

XAVIER, José Tadeu Neves. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade


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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MARQUES, Claudia Lima; REICHELT, Luis Alberto. O diálogo entre o Código


de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil e a substancial
ampliação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais do consumidor
em juízo. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU,
Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil:
repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 249-264.
ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 2

A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO
DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Bruno de Almeida Lewer Amorim


César Fiuza

2.1 Introdução
A forma pela qual ocorre a distribuição do ônus da prova no
processo é um dos temas mais relevantes em direito. Por meio dela é
que se estabelecerão as bases da relação jurídico-processual destinada à
satisfação do direito material invocado pela parte. Vale dizer, a obtenção
da tutela jurisdicional estará condicionada à satisfação adequada do
ônus probatório pela parte à qual este incumba. Por essa razão, é
essencial que a distribuição desse ônus entre as partes seja clara e leal.
Nesse sentido, tanto a clareza quanto a lealdade na distribuição do
ônus probatório são condicionantes que exsurgem da boa-fé objetiva, a
qual, segundo já se referiu em outra oportunidade,1 possui efeitos não
só sobre o direito material, mas também sobre o direito processual. O
destinatário desse dever é o magistrado.
De igual modo, além da clareza na distribuição do ônus proba-
tório, é indispensável a razoabilidade nessa distribuição. Nesse ponto,
exige-se do magistrado sensibilidade para não permitir a imposição a
uma das partes de ônus processual impossível ou excessivamente difícil.

AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. Princípio da boa-fé processual. In:
1

MAZIERO, Franco Giovanni Mattedi (Org.) O direito empresarial sob o enfoque do novo código
de processo civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
266
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Assim, embora a lei estabeleça a priori a forma pela qual se distribuirá


a carga probatória, deve o juiz ponderar sobre o caso concreto, redistri-
buindo tal ônus quando sobre uma das partes recair prova impossível.
Paralelamente, deve o magistrado estar atento à capacidade probatória
de cada uma das partes, redistribuindo o ônus probatório conforme a
aptidão de cada uma delas. Pode-se citar o caso de um consumidor que
tenha contratado determinado serviço pelo telefone sem que o forne-
cedor lhe tenha remetido cópia do contrato. Em caso de discussão acerca
da abusividade de determinada cobrança, será muito mais razoável
impor a ele o ônus de apresentar o contrato e comprovar a existência
de cláusula autorizando a referida cobrança do que ao consumidor.
A distribuição do ônus da prova é, portanto, tema que une o direito
material ao direito processual, merecendo detida análise, a qual será
objeto do presente artigo. Para tanto, serão traçados paralelos entre o
Código de Processo Civil de 1973 e o Código de Processo Civil de 2015,
bem como entre a aplicação do instituto nas relações consumeristas,
em que há expressa previsão da possibilidade de inversão judicial do
ônus probatório, desde 1990, data do advento do Código de Defesa do
Consumidor, e a sua aplicação nas relações cíveis não consumeristas.
Com isso, espera-se fornecer ao intérprete e ao aplicador do direito
uma compreensão mais ampla do tema e permitir um intercâmbio
de experiências na aplicação do instituto da redistribuição do ônus
probatório, que goza de franca aplicação na seara consumerista, em
que relevantes discussões vêm sendo travadas nos últimos anos.

2.2 Distribuição e redistribuição do ônus probatório no


novo Código de Processo Civil
Classicamente, a distribuição do ônus processual no direito
brasileiro segue a seguinte fórmula: ao autor incumbe a prova do fato
constitutivo do seu direito; ao réu incumbe a prova do fato modifi-
cativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor. Assim, tratando-se
de defesa direta de mérito – simples negativa dos fatos alegados pelo
autor –, o ônus probatório permanecerá com o requerente. Ao revés,
havendo reconhecimento dos fatos alegados pelo autor, com a oposição
de circunstâncias que modifiquem, impeçam ou extingam o seu direito,
passará ao réu o ônus da prova das referidas circunstâncias. Essa regra,
originalmente insculpida no art. 333 do Código de Processo Civil de 1973,
foi reproduzida ipsis literis pelo art. 373 do novo Código de Processo de
2015. Todavia, o novo Diploma Processual inovou no tema, com regras
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
267

que, embora já aplicadas jurisprudencialmente, não eram contempladas


expressamente pelo Texto Processual anterior.
O novo CPC inova ao conter, de forma expressa, autorização
para que o magistrado, atento às peculiaridades do caso, redistribua o
ônus da prova, atribuindo-o a cada uma das partes de modo diverso ao
estabelecido no caput do art. 373. Tal regra encontra-se no §1º do art. 373
do Diploma Processual. Outrossim, atento à necessidade de clareza e
razoabilidade na distribuição da carga probatória, o Diploma Processual
ressalva que a decisão que redistribuir o ônus probatório “não pode
gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja
impossível ou excessivamente difícil” – vide art. 373, §2º, do CPC de
2015. Desse modo, ressalva o Diploma Processual que a redistribuição
do ônus probatório não pode simplesmente transferir dificuldades entre
as partes. A redistribuição visa retirar ônus desarrazoado de uma parte
quando à outra seja factível ou mais razoável realizá-lo. Assim, não
será possível a redistribuição quando “gerar situação em que a desin-
cumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente
difícil”. Por outros termos, o novo CPC permite ao magistrado analisar
a aptidão de cada uma das partes para a produção das provas e, se for
o caso, redistribuir o ônus que caiba a cada uma delas. Se a uma delas
for mais factível a produção de determinada prova, pode o magistrado
superar a regra estabelecida no caput do art. 373, atribuindo-lhe a prova
de determinado fato que, originariamente, incumbiria à outra parte.
Resta clara a visão do processo como instrumento de realização do
direito material, afastando-o da ideia de fim em si mesmo.
A questão da redistribuição do ônus probatório é tratada com
tanta importância pelo legislador que este prevê no inciso XI do art.
1.015 do novo CPC o cabimento de agravo de instrumento contra as
decisões interlocutórias que versem sobre “redistribuição do ônus da
prova nos termos do art. 373, §1º”. A possibilidade de redistribuição
do ônus da prova, porém, não é exclusividade do novo CPC, apesar de
com ele ganhar maior amplitude. Tal possibilidade já era prevista pelo
CPC de 1973, embora o Diploma Processual a restringisse à convenção
das partes, não fazendo menção à redistribuição ope judicis, como faz
o novo Diploma. Assim, no parágrafo único do art. 333, o antigo CPC
dispunha: “É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus
da prova quando: I) recair sobre direito indisponível da parte; II) tornar
excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.
Tradicionalmente, todavia, foi o Código de Defesa do Consumi-
dor – Lei nº 8.078/90 – que primeiro positivou a possibilidade de
inversão ope judicis do ônus probatório no direito brasileiro. Segundo
268
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

dispõe o Diploma Consumerista, em seu art. 6º, inciso VIII, constitui


direito básico do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos,
inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo
civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando
for ele hipossuficiente”. A regra insculpida no referido dispositivo se
amolda às peculiaridades da relação de consumo, na qual a vulnerabi-
lidade inerente ao consumidor pode, em muitos casos, conduzir a sua
hipossuficiência, entendida como fraqueza de natureza processual,
decorrente da indisponibilidade de elementos probatórios por parte
do consumidor. Explica-se. É comum em serviços de telefonia, por
exemplo, que tudo o que o consumidor possua para comprovar suas
alegações seja um número de protocolo, gerado após uma reclamação
por intermédio do serviço de atendimento ao cliente (SAC) do forne-
cedor. Este, por sua vez, possui sob sua guarda – ou deveria possuir – o
contrato assinado pelo cliente, as gravações de suas reclamações junto
ao SAC, cópias das faturas de cobrança remetidas a ele, histórico de
reclamações, além de setores jurídico e contábil que sistematizam e
registram todas as suas transações comerciais, conforme as regras
impostas pela regulação própria do setor.
Nesse sentido, a vulnerabilidade não se confunde com a hipossu-
ficiência, sendo este último elemento acidental da relação de consumo
revelador de uma fraqueza processual – relacionada à capacidade
probatória do consumidor. É comum que se trate vulnerabilidade
e hipossuficiência como expressões sinônimas. Na seara do direito
do consumidor, porém, referem-se a fraquezas distintas. A vulnera-
bilidade é elemento necessário e intrínseco à relação consumerista,
denotando fraqueza de natureza material, ínsita à posição das partes
na relação jurídica material por elas estabelecida. Constitui princípio
basilar do direito do consumidor, insculpido no inciso I do art. 4º da
Lei Consumerista. Sem vulnerabilidade, não há relação de consumo.
Já a hipossuficiência, como dito, revela fraqueza de cunho processual,
nem sempre presente. A hipossuficiência constitui elemento acidental
da relação de consumo, podendo ou não estar presente. A consequência
da vulnerabilidade é a aplicação do Código de Defesa do Consumidor
à relação, já que não se poderia conceber a aplicação de uma lei parcial
e protetiva a uma relação igualitária. Já a consequência da hipossufi-
ciência é a inversão do ônus da prova pelo juiz. Esta, também, a lição
de Bruno Miragem:

Não se deve confundir os significados de hipossuficiência e vulnerabi-


lidade. Todos os consumidores são vulneráveis, em face do que dispõe
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
269

o artigo 4º, I, do CDC, constituindo-se a vulnerabilidade em princípio


basilar do direito do consumidor. Já a hipossuficiência é uma circuns-
tância concreta, não presumida a priori, de desigualdade com relação a
contraparte, e que no processo se traduz pela falta de condições materiais
de instruir adequadamente a defesa de sua pretensão, inclusive com a
produção das provas necessárias para demonstração de suas razões no
litígio. Em geral aponta-se a hipossuficiência como falta de condições
econômicas para arcar com os custos do processo. Na maior parte dos
casos é coreto identificar na ausência de condições econômicas a causa
da impossibilidade fática de realizar a prova e sustentar sua pretensão.
Mas não é, certamente, a única causa, Considerando o modo como se
desenvolvem as relações de consumo, a impossibilidade de o consu-
midor demonstrar suas razões pode se dar, simplesmente, pelo fato de
que as provas a serem produzidas não se encontram em seu poder, mas
sim com o fornecedor, a quem se resguarda o direito de não produzir
provas contra seus próprios interesses. Nesta situação, não se trata de
causa econômica que impeça a produção da prova, mas impossibilidade
fática decorrente da ausência de condições – inclusive técnicas – de sua
realização, em razão da dinâmica das relações de consumo, cujo poder
de direção e o conhecimento especializado pertencem, como regra, ao
fornecedor.2

Observando a dinâmica própria das relações de consumo, José


Rogério Cruz e Tucci assevera que a clássica regra da distribuição do
ônus da prova, no âmbito das relações de consumo, poderia tornar-se
injusta em razão das dificuldades da prova de culpa do fornecedor,
por causa da disparidade de armas com que conta o consumidor para
enfrentar a parte mais bem informada da relação.3 A jurisprudência
reconhece a possibilidade de a hipossuficiência defluir de circunstâncias
não econômicas, mas de natureza fática ou técnica do consumidor, na
maioria das vezes inserido como leigo em uma relação com um profis-
sional. Nesse sentido:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. HIPOSSU-


FICIÊNCIA TÉCNICA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSI-
BILIDADE. DANOS MORAIS. VALOR. REVISÃO PELO STJ. POS-
SIBILIDADE, DESDE QUE IRRISÓRIO OU EXORBITANTE. 1. Ação
indenizatória fundada na alegação de que, após submeter-se a trata-
mento bucal na clínica ré, o autor ficou sem os dois dentes superiores

2
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 210-211.
3
TUCCI, José Rogério Cruz e. Código do consumidor e processo civil. Aspectos polêmicos.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 671, set. 1991, p. 33.
270
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

frontais e impossibilitado de utilizar prótese dentária. Evidencia-se


a hipossuficiência técnica do autor frente à ré, na medida em que a
relação de consumo deriva da prestação de serviços em odontologia, o
desconhecimento do paciente acerca das minúcias dos procedimentos
a serem realizados. A clínica, por sua vez, detém amplo domínio das
técnicas ligadas à confecção de próteses, tanto que se dispôs a prestar
serviços nessa área. 2. A hipossuficiência exigida pelo art. 6º, VIII,
do CDC abrange aquela de natureza técnica. Dessa forma, questões
atinentes à má utilização da prótese deveriam ter sido oportunamente
suscitadas pela clínica. A despeito da sua expertise, não atuou, porém, de
modo a evitar lacunas na perícia realizada, as quais tornaram o laudo
inconcludente em relação à origem do defeito apresentado pela prótese
dentária (STJ, REsp 1.178.105/SP, 3ª T., j. 07.04.2011, rel. Min. Massami
Uyeda, rel. p/acórdão Min. Nancy Andrighi, DJe 25.04.2011).

Também nesse sentido, a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:

É importante esclarecer que a hipossuficiência a que faz menção o CDC


nem sempre é econômica. Embora pouco frequente, não é impossível
que o consumidor seja economicamente mais forte que o fornecedor,
e ainda assim seja hipossuficiente. A hipossuficiência pode ser técnica,
por exemplo (paciente submetido a cirurgia em clínica médica, oca-
sião em que ocorre um erro médico que o deixa cego). O consumidor,
nesse caso, será hipossuficiente, não tendo o conhecimento técnico da
especialidade médica, e a inversão do ônus da prova, por isso mesmo,
poderá ter lugar.4

Assim, embora todo consumidor seja vulnerável – esta carac-


terística está em seu DNA –, nem todo consumidor é hipossuficiente,
devendo esta circunstância ser averiguada pelo magistrado no caso
concreto.5 A inversão do ônus da prova, portanto, constitui relevante
prerrogativa assegurada ao consumidor, servindo como instrumento

4
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do
STJ. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 471-472.
5
Recomenda-se também a lição de Felipe Peixoto Braga Netto: “É importante distinguir
vulnerabilidade de hipossuficiência. A hipossuficiência deve ser aferida pelo juiz no caso
concreto e, se existente, poderá fundamentar a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º,
VIII). É possível, por exemplo, que em demanda relativa a cobranças indevidas realizadas
por operadora de telefonia celular, o juiz determine a inversão do ônus da prova tendo em
vista a hipossuficiência do cliente (não é razoável exigir do consumidor a prova de que
não fez determinadas ligações. É razoável, por outro lado, exigir da operadora semelhante
prova. É preciso, para deferir a inversão, analisar a natureza do serviço prestado, o grau
de instrução do consumidor etc.). A hipossuficiência diz respeito, nessa perspectiva, ao
direito processual, ao passo que a vulnerabilidade diz respeito ao direito material. Já a
presunção de vulnerabilidade do consumidor é absoluta. Todo consumidor é vulnerável,
por conceito legal. A vulnerabilidade não depende da condição econômica, ou de quaisquer
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
271

de facilitação da defesa de seus interesses em juízo. Essa facilitação será


necessária em determinados casos, tendo em vista as peculiaridades da
relação de consumo. Nesse sentido, deixa-se claro, desde logo, que nem
sempre o consumidor poderá utilizar esta prerrogativa, sendo necessária
a observância de certos requisitos legais, que serão tratados adiante.
Antes, porém, ressalta-se que a inversão do ônus probatório
é dividida pela doutrina e pela jurisprudência em três espécies: (i)
convencional; (ii) ope legis; e (iii) ope judicis. A inversão convencional é
aquela estabelecida pelas próprias partes. Não se trata propriamente
de uma inversão do ônus probatório, mas, sim, de uma distribuição
diversa da estabelecida em lei – pelo art. 373 do novo CPC – por meio
de convenção entre as partes. Essa hipótese é expressamente autorizada
pelo §3º do art. 373 do novo CPC6 – como ocorria também no parágrafo
único do art. 333 do CPC de 1973 –, sendo, porém, vedada quando recair
sobre direito indisponível de uma das partes ou tornar excessivamente
difícil a uma delas o exercício do direito. Nas relações de consumo, a
redistribuição convencional do ônus da prova é bastante restrita, já que,
por força do imperativo insculpido no art. 1º do Diploma Consumerista,
as garantias estatuídas em favor do consumidor são de ordem pública
e interesse social, não admitindo transação. É o caso, por exemplo, da
garantia legal de produtos e serviços, da qual não pode o fornecedor
exonerar-se nem mesmo mediante cláusula contratual – art. 51, I, do
CDC. Outrossim, estabelece o art. 51, em seu inciso VI, que são nulas
de pleno direito as cláusulas contratuais que “estabeleçam inversão do
ônus da prova em prejuízo do consumidor”.
A inversão ope legis, também chamada de inversão legal do ônus
da prova, é aquela que se opera por força de lei, independentemente
de determinação judicial. Também não se trata, propriamente, de uma
inversão do ônus da prova, mas, sim, de uma distribuição diversa da
prevista no art. 373 do novo CPC. Nesses casos, a própria lei estabelece
presunção de veracidade em prol de uma das partes, cabendo à parte
contrária afastar tal presunção. São exemplos: a) a regra contida no art.
232 do Código Civil, que trata da presunção da veracidade dos fatos
quando a parte contrária se recusa a se submeter à perícia médica; b) a
regra do parágrafo único do 2º-A da Lei nº 8.560/92, a qual estabelece

contextos outros” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz
da jurisprudência do STJ. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 471-472).
6
Art. 373 (...) §3º: A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por
convenção das partes, salvo quando: I – recair sobre direito indisponível da parte; II – tornar
excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
272
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético –


DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto
com o contexto probatório”. Nas relações de consumo, a inversão
ope legis pode ser encontrada nos arts. 12, §3º, e 14, §3º, do Código de
Defesa do Consumidor, que tratam da responsabilidade do fornecedor
por fato do produto e do serviço, bem como no art. 38 do mesmo
diploma, que imputa ao fornecedor o ônus da prova da veracidade e
correção da informação publicitária por ele veiculada ou patrocinada.
No caso dos arts. 12, §3º, e 14, §3º, do CDC, note-se que, comprovado
pelo consumidor o dano decorrente de fato do produto ou do serviço,
presume-se a responsabilidade do fornecedor – que é objetiva –, a qual
somente será afastada se o fornecedor provar a ocorrência de uma das
hipóteses previstas nos incisos enumerados nos referidos artigos. Em
tais casos, ocorre a distribuição diversa do ônus da prova mediante
presunção relativa em favor de uma das partes, admitindo-se prova
em contrário pela outra. No entanto, há casos de presunção que não
implicam inversão do ônus da prova, pois são absolutas, como, por
exemplo, a norma contida no art. 844 do novo Código de Processo
Civil, segundo a qual o terceiro não poderá alegar desconhecimento do
fato de o imóvel adquirido estar penhorado em razão de sua anterior
averbação no ofício imobiliário.
Por fim, a presunção ope judicis é aquela promovida pelo juiz
quando verificados os requisitos legais autorizadores da medida,
previstos no art. 6º, VIII, do CDC. Essa modalidade é a que mais suscita
discussões na doutrina e na jurisprudência, que serão adiante abordadas.

2.3 A redistribuição do ônus probatório antes do novo


Código de Processo Civil
Como dito, antes do novo CPC, muito se discutia sobre a possi-
bilidade de inversão do ônus probatório pelo juiz, nas relações cíveis,
diante da ausência de disposição expressa no CPC de 1973. Nas relações
de consumo, essa hipótese já era contemplada, desde 1990, pelo CDC,
que contém tanto normas de direito material quanto normas de direito
processual.
Sensível, porém, às necessidades da praxis, o Judiciário não
quedou inerte diante da omissão legislativa, passando a reconhecer
a possibilidade de redistribuição ou inversão do ônus probatório ope
judicis não só nas causas cíveis, mas até mesmo em causas de natureza
tributária. Para tanto, muitos julgados amparavam-se na denominada
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
273

teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, também conhecida como


teoria da carga probatória dinâmica, desenvolvida pelo jurista argentino
Jorge W. Peyrano, em sua obra Cargas probatórias dinâmicas.7 De modo
simplificado, tal teoria consiste em atribuir o ônus probatório à parte
que possui melhores condições de produzir a prova, independente-
mente de quem alegue os fatos. O intuito precípuo seria o de repelir a
prova impossível ou perversa. O amparo do ordenamento pátrio à teoria
de Peyrano pode ser encontrado no art. 5º, XXXV, da Carta Magna,
que estatui não só a inafastabilidade do Poder Judiciário, mas também
a instrumentalidade das formas com vistas à consecução concreta do
acesso à justiça. Sobre o tema, antes do advento do novo CPC, obser-
vavam Tereza Arruda Alvim e José Miguel Medina:

A sociedade e o direito material, consoante se observou, encontram-se


em intensa transformação, razão pela qual a regra disposta no art. 333
do CPC, concebida para a realidade existente na década de 1970, não
pode ser aplicada de modo inflexível, a qualquer hipótese, como se os
sujeitos da relação jurídica se encontrassem, sempre, em condições de
igualdade.8

Também os tribunais já vinham se posicionando nesse sentido.


O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, possui vasta juris-
prudência reconhecendo a aplicação da teoria desenvolvida por
Jorge Peyrano.9 No julgamento do Agravo Regimental nº 0068563-
66.2011.8.26.0000, constou do acórdão: “A produção da prova deve ser
carreada à parte que apresente melhores condições de produzi-la, à
luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas”. O relator
ainda ressalta em seu voto que a teoria é aplicável a qualquer caso, e
não somente às relações de consumo:

Caracterizando, aqui, relação de consumo, pois o agravado deve ser


tido como destinatário final, tem plena incidência a norma do código

7
PEYRANO, Jorge W. (Director); WHITE, Inês Lépori (Coordinadora). Cargas probatórias
dinâmicas. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008.
8
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Processo civil moderno –
Parte geral e processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 248.
9
Nesse sentido: Apelação nº 9064684-68.2006.8.26.0000, 8ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Luiz Ambra,
j. 04/05/2011, v.u.; Apelação nº 0003535-38.2004.8.26.0408, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos
Alberto Garbi, j. 27/04/2011, v.u.; Apelação nº 9203036-40.2005.8.26.0000, 27ª Câm. Dir. Priv.,
rel. designado Des. Gilberto Leme, j. 05.04.2011, m.v.; Apelação nº 0000467-40.2009.8.26.0397,
26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 01.03.2011, v.u.; Agravo de Instrumento
nº 0405015-36.2010.8.26.0000, 21ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Itamar Gaino, j. 02.02.2011, m.v.
274
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

consumerista que determina a inversão do ônus da prova (Inciso VIII,


do artigo 6º do CDC).
Ainda que assim não fosse, há necessidade de flexibilização das regras,
para que possa ser encontrada a verdade real e para que questões formais
não superem as de fundo.
Por isso, à luz de moderna orientação doutrinária, a produção da
prova deve ser carreada à parte que apresente melhores condições de
produzi-la, à luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas.
(TJSP – ARG 0068563-66.2011.8.26.0000, Rel. Beretta da Silveira, data de
julgamento: 24.05.2011, 3ª Câmara de Direito Privado).

Mesmo nas causas tributárias já era possível verificar o fenômeno


da redistribuição do ônus da prova conforme a aptidão das partes
para a sua consecução, segundo mostra o julgado abaixo, datado de
setembro de 1999:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO ADMINISTRATIVO


FISCAL – ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO
CONTRIBUINTE POR OCASIÃO DA LAVRATURA DO AUTO DE
INFRAÇÃO – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – NULIDADE DA
SENTENÇA – I – Tendo os embargos se fundamentado na inexistên-
cia de notificação do contribuinte por ocasião da lavratura do auto
de infração, inverteu-se, nesse ponto, o ônus da prova, ficando a Fazenda
Nacional com o encargo da prova de ter realizado a notificação. Precedentes
deste Tribunal: ausência de notificação alegada pela embargante e não
desmentida pela Fazenda, através da prova – afastamento da presunção
juris tantum de certeza e liquidez do título executório’’ (Apelação Cível
96.01.15745-0 /AP, Relatora Juíza Eliana Calmon) (grifo nosso). (TRF
1ª R. – AC 95.01.11165-2 – PA – 3ª T. – Rel. Juiz Jamil Rosa de Jesus –
Unânime – DJU 17.09.1999, p. 29).

Ressaltamos, porém, mais uma vez por questão de rigor técnico,


que nem sempre haverá propriamente a inversão do ônus probatório,
mas, sim, uma redistribuição deste, distinta da prevista no CPC, tendo
por norte a aptidão para a prova de cada uma das partes. Essa redis-
tribuição poderá ser pontual, atingindo apenas determinados fatos ou
provas.
Assim, fato é que a redistribuição do ônus da prova já era
realidade também nos processos de natureza não consumerista antes
mesmo do advento do novo CPC. Entretanto, diante do permissivo legal,
agora impresso de forma explícita no §1º do art. 373 do novo Diploma
Processual, a possibilidade de inversão ope judicis nos processos cíveis
torna-se incontroversa, o que poderá conduzir à ampliação da aplicação
do instituto. Essa ampliação poderá atingir até mesmo outros ramos
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
275

do direito. Nesse sentido, destacamos o Enunciado nº 302, editado pelo


Fórum Permanente dos Processualistas Civis, o qual dispõe sobre a
aplicabilidade dos §§1º e 2º do art. 373 ao processo do trabalho:

Aplica-se o art. 373, §§1º e 2º, ao processo do trabalho, autorizando a


distribuição dinâmica do ônus da prova diante de peculiaridades da
causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade da parte
de cumprir o seu encargo probatório, ou, ainda, à maior facilidade de
obtenção da prova do fato contrário. O juiz poderá, assim, atribuir o
ônus da prova de modo diverso, desde que de forma fundamentada,
preferencialmente antes da instrução e necessariamente antes da sen-
tença, permitindo à parte se desincumbir do ônus que lhe atribuído.

Outrossim, como visto, decisões judiciais anteriores ao novo CPC


já contemplavam a possibilidade de redistribuição do ônus da prova
até mesmo em processos de natureza tributária.
No entanto, inúmeras dúvidas e questionamentos poderão surgir
sobre a redistribuição do ônus probatório, muitos deles já enfrentados
e até mesmo pacificados no âmbito da doutrina e da jurisprudência
consumeristas, já que o CDC consagra a possibilidade de inversão
ope judicis desde 1990. Por essa razão, faz-se indispensável o diálogo
com o direito do consumidor, aproveitando-se parte da experiência
consumerista. A análise da experiência consumerista em muito poderá
contribuir para o aperfeiçoamento do instituto da inversão ope judicis
no direito civil, com a devida observância às peculiaridades de cada
ramo, realizando-se os ajustes e ponderações necessários. Assim, no
tópico seguinte analisar-se-ão as principais controvérsias e dúvidas
atinentes à inversão ope judicis no direito do consumidor, bem como
as soluções que vêm sendo dadas pela doutrina e pela jurisprudência,
de modo a oferecer referencial para a aplicação do instituto em todo
o direito privado.

2.4 Inversão ope judicis do ônus da prova nas relações de


consumo ‒ principais controvérsias e soluções
No que diz respeito à inversão pelo juiz do ônus probatório na
seara das relações de consumo, algumas questões suscitam dúvidas
e acaloradas discussões na doutrina e na jurisprudência. A primeira
delas concerne aos requisitos exigidos para a referida inversão. Segundo
dispõe o CDC, em seu art. 6º, pode o ônus probatório ser invertido em
favor do consumidor quando “for verossímil a alegação ou quando for
276
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

ele hipossuficiente”. A leitura do permissivo legal conduz à conclusão


de que os requisitos legais seriam alternativos. Vale notar que a norma
utiliza a conjunção alternativa “ou”, sugerindo a autossuficiência de
qualquer um dos requisitos. A verossimilhança é entendida como a
plausibilidade forte ou a razoabilidade dos fatos e do direito invocados
pelo consumidor, capazes de permitir a convicção do juiz em um nível
de cognição ainda sumária. Já a hipossuficiência denota a fraqueza
probatória do consumidor, capaz de, em última análise, conduzir à não
satisfação de seu direito. Nenhum dos dois elementos decorre automa-
ticamente da vulnerabilidade material do consumidor, constituindo
elementos acidentais, que necessitam ser demonstrados e comprovados
no processo.
A questão central, porém, é a seguinte: caso caracterizado apenas
um dos requisitos, estaria o juiz autorizado a promover a inversão?
Como dito, a literalidade do dispositivo legal conduz a uma resposta
afirmativa. Todavia, há respeitáveis vozes na doutrina que sustentam
a cumulatividade dos requisitos legais, defendendo uma interpretação
teleológica e sistêmica do inciso VIII do art. 6º do Diploma Consumerista.
A pergunta a ser respondida é: seriam os requisitos para a inversão do
ônus da prova no CDC cumulativos ou alternativos?
Filia-se à corrente que defende a cumulatividade dos requisitos
Antônio Gidi, para quem a inversão do ônus da prova exige sempre a
verossimilhança:

Afigurase-nos que verossímil a alegação sempre tem que ser. A hipossu-


ficiência do consumidor per se não respaldaria uma atitude tão drástica
como a inversão do ônus da prova, se o fato afirmado é destituído de
um mínimo de racionalidade. A ser assim, qualquer mendigo do centro
da cidade poderia acionar um shopping center luxuoso, requerendo
preliminarmente, em face de sua incontestável extrema hipossuficiên-
cia, a inversão do ônus da prova para que o réu prove que seu carro
(do mendigo) não estava estacionado nas dependências do shopping
e que, nele, não estavam guardadas todas as suas compras de Natal.10

À corrente que defende a alternatividade dos requisitos filiam-se


André Gustavo de Andrade e Mirella D’Angelo Caldeira.11 Segundo
André Gustavo, “a interpretação mais consentânea com a letra e com o

10
GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor.
Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 34.
11
CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
n. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001, p. 173.
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
277

espírito do texto legal é a que enxerga os requisitos da hipossuficiência


e da verossimilhança como alternativos”.12 E prossegue:

A alternatividade é indicada pela interpretação literal ou gramatical do


dispositivo, que utiliza a conjunção disjuntiva ou alternativa “ou” (em
lugar da aditiva ou copulativa “e”) a separar os dois requisitos.
Para que se pudesse interpretar a conjunção alternativa (“ou”) como
aditiva (“e”), caberia demonstrar que a inclusão da primeira no texto
legal foi de todo equivocada. A conclusão pela necessária cumulativi-
dade dos requisitos teria de ser precedida da demonstração de que a
interpretação literal (que é, francamente, a mais favorável ao consumi-
dor), seria ilógica, desarrazoada ou extravagante.13

Nesse ponto, recorde-se a importante lição de Francesco Ferrara,


segundo a qual: “Deve-se partir do conceito de que todas as palavras
têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não
há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de
surgir da compreensão harmônica de todo o contexto”.14
Kazuo Watanabe, por sua vez, considera, no que diz respeito à
verossimilhança, que não haveria propriamente uma inversão do ônus
da prova, mas simplesmente a aplicação do disposto no art. 335 do CPC
de 1973 – regra atualmente prevista no art. 375 do novo CPC –, que
autoriza o emprego das regras de experiência comum pelo magistrado,
subministradas pela observação do que ordinariamente acontece:

O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado,


com a ajuda das máximas de experiência e das regras de vida, considera
produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as con-
dições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte
do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a
consequência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência
deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte

12
ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do
consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em:
<https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb61-
8eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.
13
ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do
consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em:
<https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb61-
8eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.
14
FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: Armênio Amado, 1963,
p. 140.
278
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese


de inversão do ônus da prova.15

Segundo Watanabe, a lei, ao fazer referência à verossimilhança,


buscou apenas explicitar uma regra já existente, com propósitos
didáticos. E nesse ponto não se pode descurar da constatação de que a
verdade, para os céticos, é algo inalcançável pela razão humana. Para
os relativistas, não é possível falar na verdade, mas em uma verdade.16
Essa concepção, aliás, é muito bem sintetizada por Georges Santayana:

A posse da verdade absoluta não se encontra apenas por acaso além das
mentes particulares; é incompatível com o estar vivo, porque exclui toda
situação, órgão, interesse ou data de investigação particulares: a verdade
absoluta não se pode descobrir, justamente porque é uma perspectiva.17

Parece melhor a segunda corrente, integrada por André Gustavo


de Andrade e Mirella D’Angelo Caldeira, por ser mais consentânea com
o desequilíbrio ínsito às relações consumeristas e à tutela do consu-
midor. Parece desarrazoada e injustificada a exigência cumulativa dos
requisitos, mormente quando a própria legislação utiliza a conjunção
disjuntiva “ou” em lugar da aditiva. Interpretação diversa dificultaria a
defesa dos interesses do consumidor em juízo, indo na direção contrária
da pretendida pelo legislador. Nesse sentido, chama-se a atenção
para o fato de que o termo “hipossuficiência” não foi originariamente
utilizado pelos autores do anteprojeto em sua versão original entregue
ao Ministério da Justiça e publicado no Diário Oficial da União do dia
04.01.1989. O texto original dispunha que, dentre os direitos básicos dos
consumidores, estaria a “facilitação da defesa de seus direitos, inclusive
com a inversão do ônus da prova, quando verossímil a alegação do
consumidor, segundo as regras ordinárias de experiência”. Assim, o
termo “hipossuficiência” não constava da versão original do Diploma
Consumerista, elaborada pela Comissão Especial, tendo sido incluída
depois, quando da tramitação do projeto no Congresso Nacional.18

15
WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997, p. 618.
16
ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor –
O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em: <https://portaltj.
tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb618eafadf225c2&grou
pId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.
17
SANTAYANA, Georges Apud SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 40.
18
GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor – Comentado
pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 164.
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
279

José Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto,


observa que “hipossuficiência, como se sabe, é terminologia do chamado
Direito Social, ou Direito do Trabalho [...] de cunho eminentemente
econômico”, concluindo, portanto, que a inversão do ônus da prova
deve ser feita amparada “pela verossimilhança da alegação do autor,
porque é vulnerável, ou, então, alternativamente, porque é hipossuficiente
não podendo arcar com as custas do processo e, sobretudo, com o pagamento
de honorários de um perito”.19 Embora não se concorde com a concepção
meramente econômica de hipossuficiência, mister se faz apontar para
a avalizada posição de Filomeno, externada na condição de um dos
autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, capaz
de auxiliar na busca pela “essência” ou “razão de ser” do dispositivo
legal inserto no inciso VIII do art. 6º da Lei Consumerista. Assim, não
parece haver justificativa plausível para que se considerem cumulativos
os requisitos legais previstos no inciso VIII do art. 6º, separados pela
conjunção alternativa “ou”. São, em verdade, requisitos alternativos,
cuja identificação, ainda que isolada, de qualquer um deles já autoriza o
magistrado à inversão do ônus probatório, como máxima de efetivação
da defesa judicial dos interesses do consumidor.
Outra questão que suscita dúvidas é a relativa à obrigatoriedade
de inversão do ônus probatório quando evidenciados seus requisitos.
E nesse ponto chamamos a atenção para as diferentes modalidades de
inversão. A inversão ope legis, entendida como aquela realizada pelo
próprio legislador, é, sem dúvida alguma, obrigatória para o juiz, que
não pode simplesmente inobservar o comando legal. Nessa hipótese,
aliás, defendemos que sequer há inversão propriamente dita, mas tão
somente um modo diverso de distribuição do ônus probatório pelo
legislador para casos específicos. Exemplo claro de inversão legal do
ônus probatório – ou distribuição distinta da prevista no art. 373 do
novo CPC, como preferimos – é a inserta no §3º do art. 14 do Código
Consumerista, aplicável aos acidentes de consumo. Também a redistri-
buição do ônus probatório por convenção das partes deve ser respeitada
pelo juiz, ressalvado o disposto no inciso VI do art. 51 do CDC.
A dúvida surge, porém, quando se trata da inversão promovida
pelo juiz quando constatada a ocorrência de algum dos requisitos
previstos no inciso VIII do art. 6º do CDC. Nesse sentido, constatado
algum dos requisitos legais – verossimilhança das alegações ou

19
GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor – Comentado
pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 165.
280
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

hipossuficiência –, estaria o juiz obrigado à inversão do ônus proba-


tório? A resposta a essa questão também parece estar na literalidade do
dispositivo legal. Vale notar que o inciso VIII do art. 6º traz a expressão
“a critério do juiz”, deixando ao seu alvedrio a constatação dos requi-
sitos legais, bem como a inversão do onus probandi. Assim, ainda que o
consumidor entenda caracterizada a verossimilhança de suas alegações
ou a sua hipossuficiência, pode o magistrado entender de modo diverso,
valendo-se, para tanto, das regras ordinárias de experiências. De igual
modo, pode entender incabível a inversão por acarretar a atribuição
de ônus impossível ou excessivo à outra parte, no caso concreto. Mais
uma vez trazemos a lição de Bruno Miragem:

A rigor, do que se depreende de largo entendimento doutrinário e ju-


risprudencial, a decisão de inversão decorre de uma faculdade judicial
de, presentes os pressupostos estabelecidos na norma do artigo 6º, VIII,
examinar a adequação ou não da medida.20

A resposta a esta questão aproveita também ao questionamento


sobre o caráter automático ou não da inversão ope judicis quando
evidenciados os requisitos legais. Nesse sentido, muitos questionam
se a inversão ope judicis ocorreria de forma automática caso presentes
os requisitos legais, e a resposta, obviamente, há de ser negativa. A
ideia de inversão automática iria patentemente contra a lógica de uma
inversão judicial do ônus da prova. A inversão ope judicis é justamente
aquela que é promovida pelo juiz, conforme as circunstâncias do
caso concreto. A determinação judicial, portanto, é indispensável. Ao
contrário da inversão legal – ope legis –, esta sim automática, porque
determinada pelo próprio legislador. A este respeito, vale mencionar o
entendimento do STJ de que a possibilidade de inversão não significa
atribuir ao fornecedor o ônus de provar fato que lhe é impossível
demonstrar, diante das condições do consumidor de fazê-lo.21 Diz-se,

20
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 213.
21
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC) – AÇÃO DE COBRANÇA –
EXPURGOS INFLACIONÁRIOS EM CADERNETA DE POUPANÇA – PLANOS BRESSER E
VERÃO – EXIBIÇÃO DOS EXTRATOS BANCÁRIOS – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
EM FAVOR DA CORRENTISTA – POSSIBILIDADE – OBRIGAÇÃO DECORRENTE DE
LEI – CONDICIONAMENTO OU RECUSA – INADMISSIBILIDADE – RESSALVA –
DEMONSTRAÇÃO DE INDÍCIOS MÍNIMOS DA EXISTÊNCIA DA CONTRATAÇÃO –
INCUMBÊNCIA DO AUTOR (ART. 333, I, DO CPC) – ART. 6º DA LEI DE INTRODUÇÃO
AO CÓDIGO CIVIL – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO – INCIDÊNCIA DO
ENUNCIADO N. 211/STJ – NO CASO CONCRETO, RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
(...) A obrigação da instituição financeira de exibir os extratos bancários necessários à
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
281

neste caso, que a decisão seria ope judicis, ou seja, dependente de um


convencimento judicial sobre a adequação da medida. Oportunidade
de convencimento judicial esta que, segundo Bruno Miragem, “terá
lugar apenas quando presentes um dos requisitos estabelecidos pela
norma (hipossuficiência ou verossimilhança)”.22 Por essa razão, defen-
demos a natureza não automática da inversão ope judicis, primeiro por
ser algo compatível com a essência do instituto, segundo por outorgar
ao juiz a possibilidade de averiguar o cabimento da medida em cada
caso, evitando-a quando importe a imposição de ônus demasiado ao
fornecedor. Por consequência, filia-se a Filomeno quando defende que a
inversão ope judicis do ônus da prova, de que trata o art. 6º, VIII, “é uma
mera faculdade do juiz da causa”.23 Apenas a inversão ope legis pode
ser vista como impositiva ao juiz, por ser determinada pela lei.24 Nesse
sentido, vale notar que o legislador utiliza a expressão “quando, a critério
do juiz” no dispositivo legal inserto no inciso VIII do art. 6º do CDC.25

comprovação das alegações do correntista decorre de lei, já que se trata de relação jurídica
tutelada pelas normas do Código do Consumidor, de integração contratual compulsória,
não podendo ser objeto de recusa nem de condicionantes, em face do princípio da boa-
fé objetiva; (...) IV – Para fins do disposto no art. 543-C, do Código de Processo Civil, é
cabível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor para o fim de determinar
às instituições financeiras a exibição de extratos bancários, enquanto não estiver prescrita
a eventual ação sobre eles, tratando-se de obrigação decorrente de lei e de integração
contratual compulsória, não sujeita à recusa ou condicionantes, tais como o adiantamento
dos custos da operação pelo correntista e a prévia recusa administrativa da instituição
financeira em exibir os documentos, com a ressalva de que ao correntista, autor da ação,
incumbe a demonstração da plausibilidade da relação jurídica alegada, com indícios
mínimos capazes de comprovar a existência da contratação, devendo, ainda, especificar, de
modo preciso, os períodos em que pretenda ver exibidos os extratos (STJ, REsp 1.133.872/
PB, 2ª Seção., j. 12.12.2011, rel. Min. Massami Uyeda, DJe 28.03.2012).
22
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 213-214.
23
GRINOVER, Ada Pellegrini; FILOMENO, José Geraldo Brito; e outros. Código brasileiro de
defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011, p. 159.
24
Nesse sentido, vide arts. 14, §3º, e 38 do Código de Defesa do Consumidor. Nesses casos, é a
lei que distribui o ônus probatório de forma diversa prevista no art. 373 do novo CPC, e não
o magistrado. Enquanto no art. 6º, VIII, do CDC a inversão é posta como uma possibilidade
do juiz, nos arts. 14, §3º, e 38 do mesmo Diploma, a inversão – ou distribuição diversa do
ônus, como preferido – é determinada a ele, que não tem opção a não ser observá-la, quando
da análise dos fatos e das provas.
25
Esse também o entendimento jurisprudencial: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS
JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO REVISIONAL. CDC. INVERSÃO DO ÔNUS DA
PROVA. A inversão do ônus da prova prevista no inc. VIII do art. 6º do CDC não ocorre de
modo automático, mas ope judicis. O dispositivo autoriza o julgador a invertê-lo quando
convencido da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência da parte que a
postula. – Circunstância dos autos em que se impõe manter a decisão recorrida. NEGADO
SEGUIMENTO AO RECURSO” (grifo nosso). (TJRS – AI: 70063625602 RS, Relator: João
282
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Não sendo a inversão ope judicis automática, surge o questiona-


mento se poderia ser determinada de ofício pelo juiz ou se demandaria
pedido expresso do consumidor. Nesse ponto, defende-se que, por se
tratar de norma de ordem pública, a inversão prevista no art. 6º, VIII, do
CDC poderia ser determinada de ofício pelo magistrado.26 Tal entendi-
mento demonstra-se mais consentâneo com as peculiaridades da relação
de consumo, notadamente com a vulnerabilidade do consumidor.27
Por fim, uma das controvérsias mais relevantes é a concernente
ao momento de inversão do ônus da prova pelo juiz no processo. Nesse
ponto, lembre-se que a inversão do ônus probatório pelo juiz deve se
dar de forma clara e leal perante as partes, já que são destinatários da
prova não só o magistrado, mas também as partes, às quais incumbe
a sua produção. Por conseguinte, é preciso que reste absolutamente
claro e evidente às partes qual o ônus probatório que incumbe a cada
uma delas no processo. Se a regra disposta no art. 373 do Diploma
Processual for alterada pelo juiz, devem as partes ser cientificadas
antes do momento de especificação e produção das provas, sob pena
de violação aos princípios constitucionais da ampla defesa e da não
surpresa. Tanto a clareza quanto a lealdade na distribuição do ônus
probatório são condicionantes que exsurgem do dever de boa-fé objetiva,
o qual, segundo já se referiu em outra oportunidade, possui efeitos não
só sobre o direito material, mas também sobre o direito processual.
Nesse sentido, pondera-se:

[...] no novo Código o dever de respeito à boa-fé foi erigido à condição


de norma fundamental do Processo Civil, sendo uma das grandes pre-
missas do processo cooperativo/coparticipativo.
Considerando que o juiz queira dar vazão à sua pesada carga de traba-
lho, reduzindo numericamente os processos sob sua responsabilidade,

Moreno Pomar, Data de Julgamento: 23.02.2015, Décima Oitava Câmara Cível, Data de
Publicação: Diário da Justiça do dia 25.02.2015).
26
AGRAVO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO.
POSSIBILIDADE. NORMA DE ORDEM PÚBLICA. VULNERABILIDADE TÉCNICA DO
CONSUMIDOR. POSSIBILIDADE DE INVERSÃO. Desproveram o agravo. Unânime.
(TJRS – AI: 70044985497, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge
Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 29.03.2012).
27
Nesse sentido, lembre-se que a Lei nº 9.099/95, em seu art. 9º, dispensa a assistência por
advogado em causas de até vinte salários mínimos, podendo o consumidor comparecer
pessoalmente e realizar a atermação de sua reclamação. Nessas situações, prerrogativas
como a inversão do ônus da prova restariam prejudicadas se o magistrado não pudesse
avaliar a presença dos requisitos legais ex officio, uma vez que o consumidor, como regra,
desconhece aspectos técnico-jurídicos da demanda e não os arguirá se não estiver assistido
por advogado.
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
283

e que as partes queiram lograr êxito no litígio, por isso agindo estrate-
gicamente para alcançar esse objetivo, estabelecer um processo coope-
rativo/coparticipativo implica induzir comportamentos contrafáticos
aos atores processuais.
‘Nestes termos, não é possível mais ler, sob a égide do Novo CPC, a
cooperação como singela colaboração’, ela importa assumir o contradi-
tório como garantia de influência e não surpresa, além de inibir os atos
praticados em má-fé processual, com o objetivo exclusivo de retardar
a prestação jurisdicional.
Para atender a essas premissas surgem para o magistrado deveres, quais
sejam os de prevenção, de esclarecimento, de assistência e de consulta
das partes sobre os pontos fáticos e jurídicos que cerquem a demanda.
[...]
O dever de assistência às partes configura-se na obrigação de o juiz
remover os obstáculos que, justificadamente, dificultem a obtenção de
documento ou informação que condicione o eficaz exercício de uma
faculdade ou o cumprimento de um ônus processual ou dever jurídico
pelas partes.
Assim, tem-se que a boa-fé processual alcança não apenas as partes,
mas também os juízes e tribunais.28

O dever de boa-fé objetiva impõe aos seus destinatários, dentre


eles o juiz, a adoção de comportamento probo, leal, cooperativo, claro e
informado. Assim, ao fixar os pontos controvertidos da lide e estabelecer
o ônus probatório, caberá ao magistrado ser o mais claro e cooperativo
possível com as partes, permitindo-lhes identificar com clareza qual
o ônus que lhes compete na busca pela prestação jurisdicional. Nesse
sentido, pode a parte ter negada a tutela pretendida por não desin-
cumbência de seu ônus probatório – por impossibilidade ou por pura
negligência; mas nunca por dúvida ou incerteza quanto aos fatos que
lhe competia demonstrar.
Pode parecer uma constatação óbvia, mas, até 2011, as turmas
da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça ainda divergiam sobre a
natureza jurídica da inversão do ônus da prova, entendendo-a ora como
regra de instrução, ora como regra de julgamento. Foi somente em 21
de setembro de 2011, no REsp nº 802.832/MG, de relatoria do Ministro
Paulo de Tarso Sanseverino, que a jurisprudência da 2ª Seção da Corte
Superior se consolidou no sentido de que a inversão do ônus da prova
constitui regra de instrução, não de julgamento.

AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. Princípio da boa-fé processual. In:
28

MAZIERO, Franco Giovanni Mattedi (Org.) O direito empresarial sob o enfoque do novo Código
de Processo Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 6-7.
284
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Segundo a corrente que defende a inversão como regra de


julgamento, poderia o juiz decidir pela inversão do ônus probatório na
sentença, uma vez que a prova destinar-se-ia apenas ao magistrado.
Esse entendimento, porém, viola princípios de envergadura constitu-
cional, como o princípio da não surpresa e o da ampla defesa, na exata
medida em que permite ao magistrado determinar a inversão depois
de já produzidas as provas pelas partes, que se orientaram pelo ônus
que lhes competia, segundo a regra disposta no art. 373 do Diploma
Processual. Com isso, as partes só vêm a descobrir que ônus efetiva-
mente lhes competiam no processo depois de prolatada a sentença e
ultrapassada a fase de especificação e produção de provas.
Por outro viés, a corrente que concebe a inversão como regra de
instrução defende que deve o juiz se manifestar sobre eventual inversão,
antes do momento de especificação de provas, para que as partes
saibam previamente de que ônus deverão se desincumbir. Outrossim,
caso a inversão seja determinada após a produção das provas, deve
ser reaberta oportunidade de especificação e produção probatória,
resguardando-se o direito à ampla defesa das partes.29 Como dito,
a 2ª Seção do STJ consolidou seu entendimento no sentido de que a
inversão do ônus probatório deve ser feita antes da especificação das
provas pelas partes, constituindo a inversão regra de instrução, não
de julgamento. Esse parece o entendimento mais consentâneo com as
normas processuais e constitucionais, bem como com a exigência de
lealdade e cooperação no processo judicial. O novo CPC, por sua vez,

29
Nesse sentido posicionou-se o STJ, entendendo a inversão ope judicis do ônus probatório como
regra de instrução, conforme evidencia o julgamento do REsp nº 1.395.254/SC, de relatoria
da Min. Nancy Andrighi: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR
DANOS MORAIS. CIRURGIA ESTÉTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. INVERSÃO
DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE INSTRUÇÃO. ARTIGOS ANALISADOS: 6º, VIII, E
14, CAPUT E §4º, DO CDC. 1. Ação de indenização por danos materiais e compensação por
danos morais, ajuizada em 14.09.2005. Dessa ação foi extraído o presente recurso especial,
concluso ao Gabinete em 25.06.2013. 2. Controvérsia acerca da responsabilidade do médico
na cirurgia estética e da possibilidade de inversão do ônus da prova. 3. A cirurgia estética é
uma obrigação de resultado, pois o contratado se compromete a alcançar um resultado
específico, que constitui o cerne da própria obrigação, sem o que haverá a inexecução desta.
4. Nessas hipóteses, há a presunção de culpa, com inversão do ônus da prova. 5. O uso da
técnica adequada na cirurgia estética não é suficiente para isentar o médico da culpa pelo
não cumprimento de sua obrigação. 6. A jurisprudência da 2ª Seção, após o julgamento do
Resp 802.832⁄MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 21.09.2011, consolidou-se no
sentido de que a inversão do ônus da prova constitui regra de instrução, e não de julgamento. 7.
Recurso especial conhecido e provido” (grifos nossos) (STJ, REsp nº 1.395.254/SC, Rel. Min.
Nancy Andrighi, DJE 29.11.2013).
BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
285

pacifica a questão, positivando o posicionamento consolidado pelo STJ


em seu art. 357, inciso III:

Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá
o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: [...]
III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373.

Assim, o novo diploma processual assevera a natureza jurídica


da distribuição do ônus da prova como regra de instrução, devendo
qualquer alteração à regra do art. 373 ser definida em decisão de sanea-
mento e organização do processo, sem surpresa futura às partes. Além
disso, o §1º do art. 373 é categórico ao dispor que, havendo a atribuição
do ônus da prova de modo diverso ao previsto no art. 373, o magistrado
“deverá dar à outra parte a oportunidade de se desincumbir do ônus
que lhe foi atribuído”. Sem dúvida, o legislador valeu-se da experiência
já travada na seara das relações de consumo, observando o longo iter
até a pacificação do tema pelo STJ. Outrossim, o CPC de 2015 utiliza
expressão mais adequada quando se refere à possibilidade de o juiz
“definir a distribuição do ônus da prova” de modo diverso do estabe-
lecido no art. 373 em vez da expressão “inversão do ônus da prova”,
prevista no CDC. A expressão utilizada pelo novo CPC remete a uma
possibilidade mais ampla e até mesmo pontual ou parcial de alteração
do ônus probatório no processo.
Acredita-se, portanto, que todas essas discussões já travadas na
seara do direito do consumidor podem auxiliar na aplicação da novel
regra positivada pelo CPC de 2015, no §1º do art. 373.30

2.5 Conclusão
A partir da análise realizada neste capítulo, algumas constatações
são evidentes. Quanto às principais inovações contidas no novo Código
de Processo Civil, tangentes ao tema da distribuição do ônus da prova,
destacam-se a previsão expressa da possibilidade de distribuição
dinâmica do ônus da prova pelo juiz, a exigência de fundamentação
específica da decisão judicial que tratar do tema, estando inclusive
sujeita a recurso, e a positivação do entendimento pacificado pelo STJ

30
Dizemos novel regra apenas quanto à previsão expressa acerca da inversão ope judicis pelo
novo CPC, pois, como demonstrado, o instituto já era aplicado na seara cível e até mesmo
tributária mesmo sem previsão expressa no CPC de 1973.
286
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

de que o momento adequado para a redistribuição do ônus da prova é


o do saneamento do processo – ex vi do art. 357, inciso III, do novo CPC.
Por outro lado, o estudo da evolução e aprimoramento do instituto
da inversão do ônus da prova na seara das relações de consumo pode
auxiliar na aplicação e no desenvolvimento do instituto em outros ramos
do direito, pois, afinal de contas, já se passaram mais de 26 anos desde
sua inauguração na seara consumerista pela Lei nº 8.078/90. Foram
abordadas discussões como a natureza jurídica da inversão do ônus
probatório, as espécies de inversão – ope legis, ope judicis e convencional –,
o momento mais adequado para a inversão ope judicis, a possibilidade de
inversão ex officio, a automaticidade ou não do instituto e a sua aplicação
em outros ramos do direito, antes e após o advento do novo CPC.
Com essa leitura, espera-se auxiliar os intérpretes e aplicadores
do direito na compreensão do tema, tão relevante, por unir direito
material e direito processual, na busca da justa pacificação dos conflitos
e da harmonização das relações processuais, com a possibilidade
de investigação e reconhecimento concreto da aptidão para a prova
manifestada por cada uma das partes, pautando-se o processo pela
justa e adequada distribuição do ônus probatório. Foge-se assim a um
paradigma rígido, engessado e por vezes injusto de distribuição do
ônus probatório, passando-se ao reconhecimento de um sistema mais
dinâmico e particularista, capaz de melhor auxiliar na busca pela solução
justa dos conflitos e pela realização do direito.

Referências
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consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em:
<https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb-
61-8eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.
AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. Princípio da boa-fé processual. In:
MAZIERO, Franco Giovanni Mattedi (Org.) O direito empresarial sob o enfoque do novo
Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
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BRUNO DE ALMEIDA LEWER AMORIM, CÉSAR FIUZA
A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
287

GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Revista


de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código brasileiro de
defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011.
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
PEYRANO, Jorge W. (Director); WHITE, Inês Lépori (Coordinadora). Cargas probatórias
dinâmicas. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008.
SANTAYANA, Georges Apud SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Código do consumidor e processo civil. Aspectos polêmicos.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 671, set. 1991.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Processo civil moderno –
Parte geral e processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. A dinâmica de


redistribuição do ônus da prova no novo Código de Processo Civil. In: BRAGA
NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.).
O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e
tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 265-287. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 3

OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO


CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL
DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA
AO DIREITO DO CONSUMIDOR

André Cordeiro Leal


Vinícius Lott Thibau

3.1 Introdução
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC), instituído
pela Lei nº 8.078, entrou em vigor em 11 de setembro de 1990. Pela
codificação, passaram a integrar o ordenamento brasileiro, de modo
expresso, regras e princípios regentes da relação de consumo, que
receberam, do próprio legislador, a taxionomia de “normas de ordem
pública e interesse social” (art. 1º).
Versando sobre matéria procedimental, o CDC indicou as
diretrizes por via das quais a proteção do consumidor passou a alcançar
não só aspectos contratuais das relações consumeristas, mas, também,
sua atuação em juízo, fazendo-o mediante determinação expressa da
“facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus
da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as
regras ordinárias de experiências” (art. 6º, VIII).
Instituiu o CDC, portanto, a possibilidade de, no âmbito de sua
incidência, realizar-se a distribuição ope judicis do ônus de provar.
Embora sob o equivocado rótulo de “inversão do ônus da prova”,1 restou

Nesse sentido, confira a lição de Vinícius Lott Thibau, para quem: “Ao dispor sobre a
1

possibilidade da inversão do ônus da prova, portanto, o Código de Defesa do Consumidor


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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

autorizada, em certas circunstâncias, a dispensa (ou supressão) do ônus


de provar em prol do consumidor, com a simultânea atribuição, ao
fornecedor de produtos ou serviços, de encargos probatórios dos quais
não teria este de se desvencilhar, se consideradas as normas gerais do
ônus de provar que se encontravam previstas no Código de Processo
Civil de 1973, ainda vigente quando do ingresso em vigor do CDC.
Assim, para viabilizar a prometida facilitação da defesa do
consumidor em juízo, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor
estabeleceu a possibilidade de que, por decisão judicial, fosse atribuído
ao fornecedor o ônus de provar a não ocorrência de fatos alegados pelo
consumidor, fossem esses classificados, a depender da condição de
autor ou de réu do consumidor no procedimento, como constitutivos,
modificativos, impeditivos ou extintivos de direitos.
Permitiu o CDC, a partir de então e nos casos que envolvessem
discussão de direitos do consumidor, a flexibilização da regra geral
do ônus de provar disposta no art. 333 do Código de Processo Civil de
1973, pela qual incumbiria ao autor, salvo na hipótese de uma incomum
convenção das partes sobre o ônus de provar, a fixação do fato consti-
tutivo de seu direito e, ao réu, a do fato impeditivo, modificativo ou
extintivo do direito do autor.
Essa foi uma importante novidade que o Código de Processo
Civil de 2015 assimilou e ampliou, ao prever outras possibilidades de
distribuição diversa do ônus da prova no Brasil. Se, até o ano de 2015,
a distribuição ope judicis do ônus de provar destacava-se no âmbito do
direito do consumidor, com o advento da Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015, a distribuição judicial do ônus da prova ganhou relevância,
igualmente, nas chamadas relações paritárias de direito privado.
Com a superveniência do CPC de 2015, portanto, a previsão
normativa do Código de Proteção e Defesa do Consumidor passou a
integrar um rol muito mais amplo de possibilidades dadas ao juiz para
realizar a distribuição do ônus de provar. Além disso, pela nova codifi-
cação procedimental, foi indicado, de modo inequívoco, o momento

incorre em uma atecnia, uma vez que, em momento algum, atribui ao fornecedor o ônus de
provar o fato constitutivo do direito do consumidor autor do procedimento e, muito menos,
o ônus de provar o fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do consumidor
réu do procedimento. Para a facilitação da defesa do consumidor em juízo, o Código de
Defesa do Consumidor estabelece apenas a possibilidade de que, por determinação judicial,
atribua-se ao fornecedor o ônus de provar a inocorrência do fato alegado pelo consumidor,
seja ele constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo, conforme o consumidor ocupe
a posição de autor ou de réu no procedimento” (THIBAU, Vinícius Lott. A distribuição
judicial do ônus da prova e o direito do consumidor. Revista Eletrônica de Direito do Centro
Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 27, p. 77-85, set./dez. 2015, p. 78).
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
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adequado para que se defina a respeito da ocorrência da distribuição


ope judicis do ônus de provar – aspecto sobre o qual o CDC permaneceu
absolutamente silente.
Em outros termos, o CPC de 2015 parece ter resolvido o problema
acerca de quando, no iter procedimental, deverá ocorrer a frequente-
mente intitulada inversão do ônus da prova nas causas que envolvam
discussão sobre o direito privado, dentre as quais aquelas em que se
debatam direitos assegurados ao consumidor pelo CDC. De outra face,
porém, o novo Código de Processo Civil criou nova fonte de controvérsia
a respeito da distribuição judicial do ônus de provar quando tratou da
temática da recorribilidade relativa à decisão que define a distribuição
do ônus da prova, mantendo ou alterando os encargos estabelecidos
pela regra geral.
Conforme explicitam os tópicos seguintes, com efeito, de um lado,
o CPC de 2015 teria afastado, expressamente, a possibilidade de que
a distribuição ope judicis do ônus de provar dê-se apenas no momento
da prolatação da sentença. De outro, contudo, estaria a gerar uma
nova discussão relacionada à distribuição judicial do ônus de prova,
desta feita afeta à recorribilidade imediata, ou não, da decisão que não
excepciona a regra geral do ônus da prova, por inacolher o pleito de
distribuição diversa formulado no âmbito procedimental.

3.2 Os requisitos legais autorizativos da distribuição


judicial do ônus da prova no Código de Proteção e
Defesa do Consumidor
Nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, a distribuição judicial do ônus da prova encontra-se condi-
cionada à demonstração de dois requisitos a serem aferidos com base
em regras ordinárias de experiência: a verossimilhança das alegações
do consumidor e a sua hipossuficiência.

3.2.1 A verossimilhança das alegações do consumidor e


a imprestabilidade do raciocínio indutivo
A dogmática jurídico-consumerista costuma conceituar a veros-
similhança como a aparência de verdade.2 Assim sendo e pelo emprego

Sobre o assunto, veja, em especial, as obras de: PEDRASSI, Cláudio Augusto. O ônus da
2

prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista da Magistratura, São Paulo, v.
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de um raciocínio apontado como lógico, a apuração judiciária desse


requisito encontrar-se-ia a depender, necessariamente, da realização de
um “juízo comparativo entre o fato alegado e o que ‘ordinariamente
acontece’, de maneira que a análise do primeiro permita ao observador
extrair, mesmo sem provas e por simples raciocínio dedutivo”,3 a
existência aparente de um fato desconhecido.4
Vê-se, logo, que a perquirição acerca da verossimilhança das
alegações do consumidor está vinculada, como já se colhe da doutrina
processual tradicional, a um estado mental5 do juiz na realização de uma
inferência pela qual se pode afirmar, a partir de um fato similar experi-
mentado, outro fato a que não tiveram acesso os sentidos do julgador.
Tradicionalmente, por conseguinte, e no âmbito de incidência do CDC,
diante de alegações indemonstradas do consumidor, o magistrado
vale-se das máximas de experiência para, a partir dos seus conteúdos,

2, jul./dez. 2001, p. 69; CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Ainda a inversão do ônus
da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos
Tribunais, v. 807, p. 56-81, jan. 2003, p. 68; ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão
do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003, p. 91-92; SICA, Heitor
Vitor Mendonça. Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º,
VIII). Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 146, p. 49-68, abr. 2007, p. 54.
3
SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova
(CDC, art. 6º, VIII). Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 146, p. 49-68,
abr. 2007, p. 55.
4
Embora haja alusão a que se trataria de um raciocínio “dedutivo”, trata-se, de acordo com a
epistemologia tradicional, de um raciocínio indutivo. Segundo afirma David Hume, o filósofo
do indutivismo: “É apenas pela EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência
de um objeto da existência de outro. A natureza da experiência é a seguinte. Lembramo-nos
de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie; e também
nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompanharam
os primeiros, existindo em uma ordem regular de contigüidade e sucessão em relação a
eles. Assim, lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objetos que denominamos chama,
e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor. Recordamo-nos,
igualmente, de sua conjunção constante em todos os casos passados. Sem mais cerimônias,
chamamos à primeira de causa e à segunda de efeito, e inferimos a existência de uma da
existência da outra. Em todos os casos com base nos quais constatamos a conjunção entre
causas e efeitos particulares, tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos, e
foram recordados. Mas em todos os casos em que raciocinamos a seu respeito, apenas um é
percebido ou lembrado, enquanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência
passada” (HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Débora Danowski. 2. ed., rev. e ampl.
São Paulo: UNESP, 2009, p. 116).
5
POPPER, Karl R. O conhecimento e o problema corpo-mente. Trad. Joaquim Alberto Ferreira
Gomes. Lisboa: Edições 70, 2002.
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OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
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apurar e certificar se os fatos a que fazem referência as alegações do


consumidor teriam ou não a aparência de verdade.6
Daí, independentemente dos inúmeros questionamentos episte-
mológicos que possam ser suscitados por essa perspectiva, o que se
extrai da dogmática jurídico-consumerista é que a verossimilhança
consiste em uma medida (grau) do conhecimento da verdade, apurável
exclusivamente por estados mentais do magistrado – nada de novo
havendo, portanto, em relação a esse aspecto, quanto à compreensão
do termo pelos processualistas tradicionais.7
Embora sobre essa concepção de apuração da verossimilhança já
se tenham apresentado críticas incisivas,8 insta salientar, por ora, que,
de acordo com a dogmática jurídico-consumerista, a verossimilhança
não é “o que se pode ver (inferir) pela similitude (conjectura sobre base

6
Sobre o conceito de máximas de experiência, destaca-se o magistério de Friedrich Stein,
aludindo igualmente à indução: “São definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral,
desvencilhados dos fatos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência,
mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidos e que, além
desses casos, pretendem ter validade para outros novos”. No original: “Son definiciones o
juicios hipotéticos de contenido general, desligados de los hechos concretos que se juzgan en el processo,
procedentes de la experiencia, pero independientes de los casos particulares de cuya observación se
han inducido y que, por encima de esos casos, pretenden tener validez para otros nuevos” (STEIN,
Friedrich. El conocimiento privado del juez – investigaciones sobre el derecho probatorio en
ambos procesos. 2. ed. Traducción y notas de Andrés de la Oliva Santos. Bogotá: TEMIS,
1988, p. 27). Sobre o tema, no Brasil, confira, sobretudo, a lição de Moacyr Amaral Santos: “O
juiz, como homem culto e vivendo em sociedade, no encaminhar das provas, no avaliá-las,
no interpretar e aplicar o direito, no decidir, enfim, necessariamente usa de uma porção de
noções extrajudiciais, fruto de sua cultura, colhida de seus conhecimentos sociais, científicos,
artísticos ou práticos, dos mais aperfeiçoados aos mais rudimentares. São as noções a que
se costumou, por iniciativa do processualista STEIN, denominar de máximas da experiência,
ou regras da experiência, isto é, juízos formados na observação do que comumente acontece
e que, como tais, podem ser formados em abstrato por qualquer pessoa de cultura média”
(SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 24. ed. v. II. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 351).
7
É o que se lê, por amostragem, da lição de Piero Calamandrei, segundo o qual “[...] o juízo
de verossimilhança não aguarda as representações probatórias do fato a provar: baseia-se,
mas que na indagação em concreto, em uma máxima de experiência que corresponde à
frequência com que na realidade se produzem os fatos do tipo alegado. É um juízo ‘típico’,
que não surge da comparação entre diferentes representações do mesmo fato (entre a
representação que dá a parte e, por exemplo, as que lhe dão as testemunhas), e sim da
confrontação entre uma representação dele dada pela parte e um juízo de ordem geral, já
adquirido anteriormente, que tem por objeto a categoria típica sob a qual se pode incluir
abstratamente no fato representado” (CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual
civil. Trad. Douglas Dias Ferreira. 2. ed. v. III. Campinas: Bookseller, 2003, p. 285).
8
THIBAU, Vinícius Lott. A distribuição judicial do ônus da prova e o direito do consumidor.
Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 27, p.
77-85, set./dez. 2015, p. 79; LEAL, André Cordeiro. A teoria do processo de conhecimento e
a inconstitucionalidade do sistema de provas dos juizados especiais cíveis (Lei n. 9.099/95).
Revista do Unicentro Izabela Hendrix, Nova Lima, v. 2, p. 11-19, 2003, p. 15-16.
294
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

físico-corroborativa-verossimilitude) das alegações condutoras dos


conteúdos de materialidade da prova instrumentalizados e vistos (já
existentes) nos autos do procedimento”,9 mas o resultado de um juízo
solitário do magistrado sobre aquilo de que se tenha experiência em
situações semelhantes àquela que se põe a seu exame.

3.2.2 A hipossuficiência do consumidor e a assimetria


de informações
Quanto à hipossuficiência do consumidor, que é o segundo
requisito legalmente exigido à intitulada inversão do ônus de provar
no CDC, impõe-se distingui-la, de logo, da vulnerabilidade, porque,
enquanto esta é atributo da condição de consumidor, conforme reconhece
a norma haurida do art. 4º, I, do CDC, e esclarecem Felipe Peixoto Braga
Netto, Cíntia Rosa Pereira de Lima, Ernane Fidélis dos Santos e Claudia
Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem,10 aquela
se revela na “diminuição da capacidade do consumidor, não apenas
no aspecto econômico, mas a social, de informações, de educação, de
participação, de associação, entre outros”.11 Daí ser igualmente rotulada
de hipossuficiência técnica, relacionando-se, no entanto, tanto à ausência
de conhecimentos técnicos do consumidor a respeito da atividade que
é desempenhada pelo fornecedor quanto à falta de conhecimentos
científicos.12

9
LEAL, Rosemiro Pereira. Verossimilhança e inequivocidade na tutela antecipada em processo
civil. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática
processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 68.
10
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do
STJ. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 48-49; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão
do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 215; SANTOS, Ernane
Fidélis dos. O ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 269-279, jul./set. 2003, p. 273; e MARQUES, Claudia
Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa
do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 184.
11
MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 166.
12
Consoante a dogmática jurídico-consumerista, se comparado com o consumidor, em
regra, o fornecedor tem um maior acesso às informações relativas aos bens e serviços que
oferta – impondo-se-lhe a produção de provas que digam respeito a esses bens e serviços.
É o que se lê nos escritos de MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do
consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p.
161-169, jul./set. 1994, p. 166-167; CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001,
p. 166; GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor.
Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar.
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
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É essa afirmada discrepância que justifica, segundo a dogmática


jurídico-consumerista, a realização da distribuição judicial do ônus de
provar, inclusive nas hipóteses em que “esta prova é difícil mesmo para
o fornecedor, parte mais forte e expert na relação, pois o espírito do CDC
é justamente de facilitar a defesa dos direitos dos consumidores e não
o contrário, impondo provar o que é em verdade o ‘risco profissional’
ao – vulnerável e leigo – consumidor”.13
É de se esclarecer, não obstante, que, como ensina Luiz Eduardo
Boaventura Pacífico, com base nas lições de Antonio Gidi, Milton Paulo
de Carvalho Filho e Rodrigo Xavier Leonardo, a distribuição ope judicis
do ônus de provar está a depender, sempre, da verificação prévia de
uma assimetria de informação entre o consumidor e o fornecedor:

A natureza predominante técnica que conota a inversão do ônus da


prova conduz a uma importante constatação: a inversão deve se operar
sobre o fato (ou fatos) a respeito do que se verifique a assimetria de
informação entre o consumidor e o fornecedor.
Com efeito, se a inversão tem lugar na hipótese em que o fornecedor
possui o monopólio de uma determinada informação – até mesmo
em razão das vicissitudes de seu processo produtivo ou graças ao seu
superior poder probatório, por lhe ser mais acessível a fonte de prova,
entremostra-se evidente seja ela implementada pelo juiz exclusivamente
sobre o fato a respeito do qual ocorre o déficit informativo do consumidor.
Em relação aos demais fatos, por mais que o autor possa encontrar di-
ficuldades para a prova [...], não há razão porque se opere a inversão,
sendo irreparável a conclusão segundo a qual “a decisão que inverte
genericamente o ônus da prova, causando ao fornecedor uma efetiva
impossibilidade de produção probatória, é eivada de nulidade, em razão
da violação material das garantias constitucionais da ampla defesa e
do contraditório”.14

1995, p. 35; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova
em benefício do consumidor. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86,
p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 303-304; NOGUEIRA, Tânia Lis Tizzoni. A prova no direito do
consumidor – o ônus da prova no direito das relações de consumo. Curitiba: Juruá, 1998,
p. 57; PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. A inversão do ônus da prova no código de
defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 917, p.
175-202, mar. 2012, p. 182; e MORAES, Voltaire de Lima. Anotações sobre o ônus da prova
no código de processo civil e no código de defesa do consumidor. Revista Direito & Justiça,
Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 20, n. 21, p. 309-319, 1999, p. 316.
13
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários
ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 183-184.
14
PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. A inversão do ônus da prova no código de defesa
do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 917, p. 175-202,
mar. 2012, p. 183.
296
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O que se deduz dessas afirmações, por consectário, é que a


hipossuficiência autorizativa da distribuição judicial do ônus da prova
no CDC pode se verificar em relação a todos os fatos ou somente a um
ou a alguns deles, porque a distribuição ope judicis do ônus da prova,
embora seja destinada à facilitação do exercício do direito de defesa pelo
consumidor, não pode ser utilizada como técnica que imponha prejuízo
ao fornecedor quanto ao exercício de seus direitos fundamentais em
juízo.
Isso não conduz, entretanto, à admissão da tese no sentido de que
o acolhimento da alternatividade dos requisitos legalmente exigidos
à distribuição ope judicis do ônus da prova possa gerar uma situação
de abusividade em desfavor do fornecedor, uma vez que, por via da
distribuição diversa, um novo ônus de provar lhe seria judicialmente
determinado, mesmo quando as alegações do consumidor sequer
se apresentarem como verossímeis,15 ou, ainda, quando, apesar de
se qualificarem verossímeis, o consumidor não se apresentar como
hipossuficiente.16

15
De acordo com Rodrigo Xavier Leonardo, se não for acolhida a cumulatividade dos requisitos
legalmente previstos à distribuição judicial do ônus da prova, será possível que um “[...]
determinado fornecedor de alimentos (um sofisticado e caríssimo restaurante) seja demandado
por uma pessoa humilde que alega ter sofrido danos físicos e emocionais provenientes
da ingestão de uma refeição estragada no jantar da noite passada. A despeito de não ser
verossímil o consumo de alimentos, por uma pessoa humilde, naquele restaurante, não se
pode duvidar de eventual hipossuficiência do consumidor em relação àquele fornecedor”
(LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar,
2004, p. 272). Em sentido semelhante, confira, ainda, a lição de Antonio Gidi: “Afigura-se-
nos que verossímil a alegação tem que ser. A hipossuficiência do consumidor per se não
respaldaria uma atitude tão drástica como a inversão do ônus da prova, se o fato afirmado
é destituído de um mínimo de racionalidade. A ser assim, qualquer mendigo do centro da
cidade poderia acionar um shopping center luxuoso, requerendo preliminarmente, em face
de sua incontestável extrema hipossuficiência, a inversão do ônus da prova para que o réu
prove que o seu carro (do mendigo) não estava estacionado nas dependências do shopping e
que, nele, não estavam guardadas todas as suas compras de Natal” (GIDI, Antonio. Aspectos
da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 34). Também asseverando
a necessidade de preenchimento conjunto dos requisitos da verossimilhança das alegações
do consumidor e da sua hipossuficiência para possibilitar a distribuição judicial do ônus
da prova, confira, principalmente, as obras de NICHELE, Rafael. A inversão do ônus da
prova no código de defesa do consumidor – restrições quanto à sua aplicação. Revista
Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 18, n. 21, p. 209-225, 1997, p. 214; PEDRASSI,
Cláudio Augusto. O ônus da prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista da
Magistratura, São Paulo, v. 2, jul./dez. 2001, p. 70; e LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão
do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 222.
16
Nesse sentido, confira, sobretudo, a lição de Cândido Rangel Dinamarco que, ao se referir à
hipossuficiência como carência econômica, aduz que “[...] favorecer o consumidor abastado
transgrediria a garantia da igualdade, ainda quando verossímil o que alega, porque sem o
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
297

Por uma análise gramatical e finalística da norma prevista no


art. 6º, VIII, do CDC, extrai-se que os requisitos da verossimilhança das
alegações do consumidor e da sua hipossuficiência apresentam-se como
alternativos, bastando que um deles esteja presente para que ocorra a
distribuição ope judicis do ônus de provar.17

3.3 O CPC de 2015 e o debate dogmático-consumerista


sobre o momento procedimental da distribuição ope
judicis do ônus de provar
Diante do silêncio do Código de Proteção e Defesa do Consumidor
acerca do momento procedimental adequado a que se realizasse a
chamada inversão do ônus da prova, debate acalorado na doutrina do
direito do consumidor desenvolveu-se. Por um lado, autores defendiam
a perspectiva segundo a qual a distribuição judicial do ônus de provar
deveria ocorrer na sentença; por outro, havia aqueles que sustentavam,
considerado o CPC de 1973, que a distribuição diversa do ônus da prova
deveria se verificar na fase saneadora.
A solução divergia, fundamentalmente, quanto à melhor interpre-
tação a ser dada ao art. 6º, VIII, do CDC, para alcançar os níveis máximos
de proteção que a distribuição ope judicis do ônus da prova poderia
proporcionar ao consumidor. Enquanto alguns autores consideravam
que o complexo normativo da atribuição judiciária do ônus de provar
interpretava-se como um conjunto de regras de julgamento, devendo
a inversão ocorrer na sentença, outros afirmavam que se retiraria do
fornecedor, se assim fosse, a possibilidade de se desincumbir do ônus de

requisito da pobreza não há desigualdades a compensar” (DINAMARCO, Cândido Rangel.


Instituições de direito processual civil. 2. ed. v. III. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 80).
17
No mesmo sentido, confira as lições de CAMBI, Eduardo. A prova civil – admissibilidade e
relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 413; NERY JUNIOR, Nelson. Aspectos
do processo civil no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, p. 200-221, 1992, p. 221; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa.
Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo,
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86, p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 301; ANDRADE, André
Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003,
p. 93-95; CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001, p. 173; NOGUEIRA,
Tânia Lis Tizzoni. A prova no direito do consumidor – o ônus da prova no direito das relações
de consumo. Curitiba: Juruá, 1998, p. 58; e NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao
código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 122-123.
298
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

provar, motivo pelo qual a sua distribuição deveria se dar no momento


do saneamento procedimental.
Conforme o primeiro dos entendimentos divergentes, as normas
fixadas sobre o ônus de provar consistiriam em regras de julgamento,
as quais deveriam ser compreendidas como orientadoras e auxiliares
do juiz para evitar a decretação do non liquet em matéria fática – uma
possibilidade que só seria aferível após o término da instrução.18 Como
ensinava José Carlos Barbosa Moreira, o julgamento com base no ônus
da prova, por si só, “é uma tragédia psicológica para qualquer juiz de
sensibilidade apurada. Esse julgamento, segundo o ônus da prova, só
deve sobrevir depois que se esgotarem todos os meios”.19
Nesse sentido, Cecília Matos ressaltava, ao se pronunciar sobre
o réu-fornecedor, que, se “o demandado, fiando-se na suposição de
que o juiz não inverterá o ônus da prova em favor do demandante,
é surpreendido com uma sentença desfavorável, deve creditar seu
insucesso mais a um excesso de otimismo, do que à hipotética desobe-
diência ao princípio da ampla defesa”.20 Cíntia Rosa Pereira de Lima,
por sua vez, afirmava, que o fornecedor “não pode alegar ignorância de
lei que prevê como direito do consumidor a possibilidade da inversão
do ônus da prova”.21
De outra face, para os que compreendiam as normas do ônus da
prova como regras de procedimento, e não de julgamento, a distribuição
ope judicis no ato sentencial não se apresentaria recepcionável, porque,
se as normas do ônus de provar são determinativas de uma atividade
(ônus) a ser acatada pela parte, a distribuição diversa daquela fixada
pelo art. 333 do CPC de 1973 deveria ocorrer em momento procedimental

18
Nesse sentido, veja, em especial, as obras de MATOS, Cecília. O ônus da prova no código
de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais,
v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 167; NERY JUNIOR, Nelson. Aspectos do processo civil
no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista
dos Tribunais, v. 1, p. 200-221, 1992, p. 217-218; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão
do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 277-278; e ANDRADE, André
Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003,
p. 97.
19
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O juiz e a prova. Revista de Processo, São Paulo, Revista
dos Tribunais, v. 35, p. 177-184, 1984, p. 181-182.
20
MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 167.
21
LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do
consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p.
201-231, jul./set. 2003, p. 227.
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
299

que possibilitasse que essa se desincumbisse do encargo de que, por lei


e prima facie, não teria, originalmente, de se desincumbir.22
Com a entrada em vigor da Lei nº 13.105/15, a divergência foi
solucionada. Pelo novo CPC, não apenas foi introduzida, no ordena-
mento brasileiro, a chamada distribuição dinâmica do ônus de provar
para as relações não consumeristas,23 pela qual o juiz, mesmo em causas
não alcançadas pela proteção do CDC, está autorizado a realizar a
distribuição diversa do encargo probatório, como também se fixou,
de modo expresso, o momento para que referida distribuição possa
ser concretizada.
É que, embora o art. 373 do CPC 2015 reproduza, em seu caput e
incisos, o texto do art. 333 do CPC de 1973, toma a norma haurível desse
texto como regra geral passível de modificação e, portanto, excepcio-
nável, ao contrário do que ocorria com o CPC anterior:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:


I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou
extintivo do direito do autor.

22
Nesse sentido, pronunciavam-se BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo
civil democrático. Curitiba: Juruá, 2013, p. 197-198; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas
sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo, São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86, p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 306; CAMBI, Eduardo. A
prova civil – admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 418-420;
MORAES, Voltaire de Lima. Anotações sobre o ônus da prova no código de processo civil
e no código de defesa do consumidor. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS,
v. 20, n. 21, p. 309-319, 1999, p. 317-318; GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da
prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos
Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 38-39; NICHELE, Rafael. A inversão do ônus da
prova no código de defesa do consumidor – restrições quanto à sua aplicação. Revista Direito
& Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 18, n. 21, p. 209-225, 1997, p. 221-222; PEDRASSI,
Cláudio Augusto. O ônus da prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista
da Magistratura, São Paulo, v. 2, jul./dez. 2001, p. 71; e CARVALHO FILHO, Milton Paulo
de. Ainda a inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos
Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 807, p. 56-81, jan. 2003, p. 77.
23
Esse é o rótulo da nova técnica de distribuição do ônus de provar, segundo Elpídio Donizete
Nunes, que integrou a comissão de juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto
do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, autor que, ademais, procura justificar essa
escolha mediante afirmativa de que “trata-se da distribuição dinâmica do ônus da prova,
que se contrapõe à concepção estática prevista na legislação anterior (art. 333 do CPC/73).
De acordo com o novo CPC, o encargo probatório deve ser atribuído, casuisticamente, de
modo dinâmico, concedendo-se ao juiz, como gestor das provas, poderes pra avaliar qual
das partes terá maiores facilidades na sua produção. Evidentemente, a decisão deverá
ser fundamentada, justificando as razões que convenceram o juiz da impossibilidade de
produção da prova por uma das partes” (NUNES, Elpídio Donizete. Curso didático de direito
processual civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 566).
300
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa


relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o
encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova
do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso,
desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à
parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§2º A decisão prevista no §1º deste artigo não pode gerar situação em
que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou exces-
sivamente difícil.

Assim, o que se tem, a partir da entrada em vigor do CPC de


2015, é a ampliação das hipóteses em que a regra geral de distribuição
do ônus de provar, de acordo com a qual o encargo incumbe a quem
alega um fato, pode ser alterada para que, ope judicis, seja atribuída de
maneira diferente às partes. A proteção ao consumidor permaneceu
intocada, embora o CPC de 2015 tenha impactado diretamente a contro-
vérsia sobre a taxionomia do complexo normativo relativo à intitulada
inversão do ônus de provar.
É de se notar, sobre esse aspecto, que o CPC de 2015 foi explícito
em determinar, no §2º do art. 373, que, à parte, a quem se houver, excep-
cionalmente, atribuído encargo probatório que originariamente não lhe
incumbiria, deve-se oportunizar a possibilidade de se desincumbir desse
encargo. Com isso, resta excluída, a partir dos termos expressos do CPC
de 2015, a possibilidade da interpretação do conjunto de normas que,
no CDC, dispõe sobre distribuição do ônus de provar, sob taxionomia
de regra de julgamento.
Grife-se, ainda, que, não obstante o art. 373 do CPC de 2015 não
indicar, de maneira inequívoca, o momento, no iter procedimental,
em que o juiz está autorizado a empreender a chamada distribuição
dinâmica do ônus da prova, tal se identifica pelo exame de disposição
normativa integrante da Seção IV, do Capítulo X, do Título I, do Livro
I, da Parte Especial, do novo CPC, que é intitulada “Do saneamento e
da Organização do Processo”.
Pelo CPC de 2015, não sendo o caso de julgamento conforme
o estado do processo pela extinção deste (art. 354) ou de julgamento
antecipado parcial (art. 356) ou integral do mérito (art. 355), deverá
o juiz adotar providências que visem, em última análise, preparar o
adentramento da fase instrutória, fazendo-o mediante resolução de
questões que possam embaraçar a precisa escolha dos meios de prova
utilizáveis no procedimento.
Assim, segundo a nova codificação a que se faz alusão, por
expressa remissão do inciso III do art. 357 ao art. 373, erige-se legalmente
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
301

acertado que o momento procedimental no qual o juiz deve decidir


sobre a distribuição do ônus de provar, mantendo, ou não, a regra
geral prevista no art. 373, caput e incisos, é exatamente o saneamento.
Frise-se, inclusive, que, a depender da complexidade da causa,
essa decisão deve ser produzida no recinto de audiência designada
para essa finalidade (§3º do art. 357), conferindo-se às partes, ademais,
quando a audiência não seja necessária, o prazo de cinco dias para que
se pronunciem e solicitem ajustes ou correções na distribuição solita-
riamente realizada pelo juiz (§1º do mesmo artigo).
Por consectário, após a entrada em vigor do CPC de 2015,
mesmo sendo, de acordo com o art. 6º, VIII, do Código de Defesa do
Consumidor, a distribuição ope judicis do ônus da prova uma técnica
aplicável em favor da facilitação do exercício do direito de defesa do
consumidor em juízo, a decisão que versar sobre essa distribuição deve
ser tomada na fase de saneamento, e de forma fundamentada (art. 373,
§1º), afastando-se, assim, a possibilidade de a denominada inversão do
ônus de provar realizar-se tão somente na sentença.

3.4 A controversa (ir)recorribilidade da decisão judicial


sobre o ônus de provar
Embora o momento procedimental de fixação judicial do ônus
de provar esteja estabelecido com a superveniência do CPC de 2015,
há questão relevante que foi introduzida exatamente pela entrada em
vigor da nova lei.
É que a recente legislação procedimental, abandonando o modelo
de recorribilidade ampla das decisões interlocutórias que se havia
adotado no CPC de 1973, parece retornar à técnica assimilada pelo
Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939 (Código de Processo
Civil), no qual se estampava, nos arts. 841 e 842, uma lista taxativa das
decisões interlocutórias passíveis de recurso imediato.
O Código de Processo Civil de 2015, como o CPC de 1939,
apresenta, em seu art. 1.015, rol expresso de decisões interlocutórias
passíveis de enfrentamento pela via recursal do agravo de instrumento
e, apesar de a taxatividade dessas hipóteses estar sendo objeto de
importante discussão na literatura especializada,24 fato é que o aludido

24
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. v. 1. Rio de Janeiro:
Forense, 2015, p. 1.038; BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado. São
Paulo: Saraiva: 2015, p. 653; ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8. ed. rev., amp. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 615 e 622; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado
de processo civil. 16. ed. reform. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 537-538; e
302
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

dispositivo legal foi inequívoco, em seu inciso XI, em considerar


agravável a decisão pela qual se realiza a “redistribuição do ônus da
prova nos termos do art. 373, §1º” – o que somente se deu por uma
inserção que se verificou na última etapa do procedimento legislativo,
conforme acentua Cassio Scarpinella Bueno.25
Em outros termos, a decisão determinativa da distribuição ope
judicis do ônus de provar pode ser objeto de imediato pleito recursal,
embora se omita o CPC de 2015 em prever idêntica possibilidade em
relação à decisão que, indeferindo pleito de “redistribuição” eventual-
mente formulado pela parte, mantenha a incidência, no procedimento,
da regra geral da distribuição do encargo probatório.
De conseguinte, e não obstante preveja, expressamente, que as
decisões proferidas no curso do procedimento que não sejam imedia-
tamente impugnáveis por agravo de instrumento não se sujeitam à
preclusão (§1º do art. 1.009), podendo, portanto, ser objeto de revisi-
bilidade tribunalícia através de apelação ou de contrarrazões, é de se
indagar os motivos pelos quais tal se admitiria, já que, se, como explica
Elpídio Donizete Nunes, o que se pretendeu através da oferta de um
rol taxativo foi “reunir as principais situações nas quais a decisão
interlocutória é capaz de gerar prejuízo para uma das partes”,26 não se
imagina como o indeferimento do pleito de “redistribuição” formulado
pela parte não seria apto a gerar prejuízos ao requerente, a despeito do
seu deferimento impor tais prejuízos à parte contrária.
Consideradas especificamente as disposições do CDC, vê-se que a
pretendida proteção procedimental ao consumidor foi fragilizada pelo
CPC de 2015, já que, embora o novo Código ratifique a possibilidade
de distribuição judicial do ônus da prova em favor do consumidor,
parece prever, ainda, diante da omissão relatada, que, quando esse
mesmo consumidor tiver seu pleito de distribuição diversa do ônus da
prova indeferido pelo juízo, será obstado de recorrer imediatamente,
ao contrário do que poderá fazer o fornecedor que tiver, contra si, uma
decisão determinativa da “redistribuição”.

MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 1.259-1.260.
25
BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 653.
26
NUNES, Elpídio Donizete. Curso didático de direito processual civil. 19. ed. São Paulo: Atlas,
2016, p. 1.482.
ANDRÉ CORDEIRO LEAL, VINÍCIUS LOTT THIBAU
OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA...
303

Admitida essa inusitada hipótese, como se já não bastasse a


ocorrência de violação ao princípio da isonomia (art. 1º da CB), seria
possível se exigir do consumidor um esforço probatório inútil, já que
um eventual acolhimento do pleito que formule no recurso de apelação
ou mesmo nas suas contrarrazões, mediante decisão que reconhecesse
o seu direito à distribuição ope judicis do ônus da prova, implicaria
a reinauguração da fase probatória, com a dilação injustificável do
curso procedimental – o que poderia ser evitado, contudo, pela opção
do consumidor em prol da controversa impetração de mandado de
segurança à impugnação do ato decisório, vendo-se, obrigado, nesse
caso, a arcar com as despesas e riscos de um novo procedimento judicial.

3.5 Conclusão
O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu o momento
adequado para a prolatação da decisão relativa à distribuição ope
judicis do ônus da prova. Ao determinar o saneamento como o instante
procedimental para que o juiz realize a distribuição diversa do ônus
de provar, o novo CPC põe fim ao debate instalado na tradicional
dogmática jurídico-consumerista, fazendo-o pelo afastamento expresso
da perspectiva segundo a qual as normas relativas ao ônus da prova
deveriam ser compreendidas como regras de julgamento.
Por outro lado, o CPC de 2015 pode impactar negativamente a
defesa do consumidor em juízo, já que não encampa, no rol das hipóteses
de cabimento do recurso de agravo de instrumento, a decisão interlo-
cutória que indefere o pleito de distribuição diversa do ônus de provar
formulado pelo consumidor, apesar de, paradoxalmente, assegurar a
possibilidade de recorribilidade imediata da decisão interlocutória à
contraparte, caso essa se entenda prejudicada pelo deferimento desse
mesmo requerimento.

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dos Tribunais, v. 35, p. 177-184, 1984.
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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CAPÍTULO 4

NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES


DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO
INSTITUTO À LUZ DA VULNERABILIDADE
PRESUMIDA DO CONSUMIDOR

Lucas Magalhães de Oliveira Carvalho


Michael César Silva
Samuel Vinícius da Silva

4.1 Introdução
O princípio da participação efetiva das partes no processo
civil assumiu contornos diferenciados com o passar do tempo. Sob a
perspectiva do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), a parti-
cipação dos litigantes no processo encontrava-se restrita à defesa dos
interesses particulares de cada um, pouco se explorando as convenções
processuais para amoldar o processo. A rigidez e imutabilidade das
regras processuais era o marco do direito processual anterior, ressalvadas
as hipóteses de alterações pontuais, como a prorrogação de foro por não
arguição por exceção de incompetência relativa. Não se poderia esperar
algo diverso, visto que o CPC de 1973 fora criado durante o Período
Militar, pautado nos ideais de restrição de direitos fundamentais. Dessa
forma, o império das regras processuais refletia o poder dominante e
autoritário imposto ao indivíduo, em que respeitar o procedimento
era mais importante do que permitir o contraditório efetivo, a ampla
defesa e o devido processo legal.
A revolução copernicana do processo civil no Brasil ocorrera com
o advento do novo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), em
que se percebe nitidamente a mudança de paradigma, não se conce-
dendo primazia ao império da lei processual, mas, sim, aos princípios
constitucionais, capazes de remodelar o processo, a depender das
peculiaridades do caso concreto. A releitura é nítida e mereceu capítulo
308
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

próprio inaugural do Código de Processo Civil: das normas funda-


mentais do processo civil. A obsolescência do regime militar abriu
espaço para a discussão democrática, não apenas do direito material,
mas em especial do direito processual.
O princípio da participação democrática trouxe ao processo
civil brasileiro uma cláusula geral de negociação processual, inserta
no artigo 190 do CPC de 2015, ampliando consideravelmente o papel
das partes no procedimento judicial, tornando-as, assim, protagonistas
do próprio trâmite processual. A faculdade estendida aos litigantes de
modificar regras de processo tem como ponto nevrálgico a prevalência
da celeridade, isonomia, bem como o atendimento das peculiari-
dades do caso concreto. Entretanto, a preocupação com o regramento
processual no novo CPC antecede ao processo em si, vislumbrando,
inclusive, a possibilidade de pactos processuais em sede contratual,
mormente, nos contratos de adesão na seara consumerista. Destarte, é
preciso compreender as nuances desse novo instituto, com fulcro nas
negociações processuais havidas em contrato de consumo, a fim de
buscar analisar seus contornos, parâmetros e sua própria viabilidade
à luz dos preceitos norteadores da Constituição da República de 1988
e do ordenamento jurídico brasileiro.
Nesta senda, elenca-se como problema de pesquisa a viabilidade
das negociações processuais, especialmente no âmbito das relações de
consumo, em vista da patente condição de vulnerabilidade do consu-
midor, da posição de desigualdade do consumidor diante do fornecedor,
e das repercussões jurídicas havidas em um contrato de adesão.
O questionamento é pertinente, pois, à luz do Código de Defesa
do Consumidor (CDC/1990), quaisquer consumidores são vulneráveis
presumidamente, e negócios dessa natureza seriam realizados sem
qualquer assistência à parte mais fraca da relação de consumo. A
ausência de assistência técnico-jurídica na conclusão desses contratos,
aliada à imutabilidade contratual, poderá ensejar arbitrariedades e
despojamento de prerrogativas processuais antecipadamente, colocando
o consumidor vulnerável à mercê do convencimento motivado do
juiz para avaliar eventual nulidade de cláusulas contratuais no caso
concreto. O mesmo poderia ser dito em relação às contratações coletivas,
em que o número de contraentes não modificaria a dificuldade de dar
concretude ao instituto.
Objetiva-se por meio deste estudo compreender os limites e
aplicabilidade das negociações processuais atípicas, baseadas no artigo
190 do CPC de 2015, bem como traçar os contornos desse instituto em
período pré-processual, por meio do estabelecimento de contratos. O
questionamento tem como base a recente vigência do Código de Processo
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
309

Civil de 2015 e a existência de dúvidas em relação à aplicação do novo


instituto, bem como a ausência de referências doutrinárias sobre a
questão dos contratos de adesão nas negociações processuais. A eficácia
dessas negociações encontra-se, atualmente, restrita por aspectos prepon-
derantemente culturais em razão da dificuldade de se manter diálogos
diante de interesses antagônicos. O estudo da negociação processual
permeará essa realidade existente e buscará aproximar contratantes e
partes no processo pela primazia do princípio da participação.
O método adotado neste artigo será o analítico dedutivo, por
meio de pesquisas bibliográficas, tendo por fundamento a incidência
dos princípios da boa-fé objetiva, informação, transparência e vulne-
rabilidade no exercício da autonomia privada dos contratantes na
celebração de negócios processuais.
Primordialmente, os deveres anexos da boa-fé objetiva serão
utilizados como alicerce do pensamento das negociações processuais
na medida em que terão condão de traçar parâmetros de entendimento
e controle judicial do instituto em análise, demonstrando como se
compatibilizar o exercício da autonomia privada, notadamente, no
campo da liberdade contratual, com a vulnerabilidade do consumidor
no âmbito das relações jurídicas de consumo.
A hipótese trazida pelo artigo aponta para o caráter sui generis das
disposições processuais presentes nos contratos de adesão, sejam eles
coletivos ou individuais, de forma que as cautelas tomadas na renúncia
de prerrogativas processuais durante o trâmite do processo deverão
ser diferentes das existentes nos pactos firmados entre contratantes.
Em síntese, a realização de negócios de cunho processual necessita
de um componente complementar para ter validade, como forma de
suprimento da vulnerabilidade do consumidor no contrato de adesão,
primordialmente por meio de procurador habilitado pela OAB ou pela
própria assistência da Defensoria Pública. A respeito das contratações
coletivas, o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, poderia se
valer de controle preventivo dessas contratações. Em âmbito processual,
é dever do advogado, bem como do juiz, zelar pela idoneidade das
negociações processuais, de forma que a paridade entre litigantes
seja observada e não haja abusividade nas pactuações para fins de se
alcançar o equilíbrio desejado nas relações jurídicas de consumo, dentro
do contexto de modelo constitucional de processo.

4.2 Negociações processuais típicas e atípicas


O Código de Processo Civil de 2015 trouxe importantes
modificações em relação ao antigo CPC de 1973, dentre as quais, a
310
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

possibilidade de as partes realizarem negociações processuais atípicas (art.


190, CPC/2015)1 2 ou típicas (art. 191, CPC/2015), independentemente da
vontade do magistrado, ao qual caberá tão somente proceder a análise
do regramento legal do negócio jurídico e ao controle de validade das
convenções processuais firmadas pelas partes.3
Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Nogueira conceituam o negócio
processual como “o ato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja
conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica
ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento
jurídico, certas situações jurídicas processuais”.4 5
A outro giro, Antônio do Passo Cabral preleciona que o negócio
jurídico processual pode ser definido como sendo “a convenção (ou
acordo) processual”, que “é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual
as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade da interme-
diação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e
extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento”.6
Nessa linha de intelecção, por meio do princípio da cooperação,
as partes podem, entre si, por meio do autorregramento da vontade
e sem necessidade, em regra, de homologação judicial, estabelecer
flexibilizações procedimentais, nos ônus, poderes, faculdades e deveres

1
O artigo 190 do CPC de 2015 consagrou a denominada Cláusula Geral de Negociação
Processual. A referida cláusula permite às partes plenamente capazes estipular alterações
no procedimento para adequá-lo às especificidades do caso concreto, nas hipóteses em que
o processo versar sobre direitos suscetíveis de autocomposição, bem como convencionar
sobre seus ônus poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
2
Segundo Alexandre Freitas Câmara, a cláusula geral de negócios processuais trata-se “da
genérica afirmação da possibilidade de que as partes, dentro de certos limites estabelecidos
pela própria lei, celebrem negócios através dos quais dispõem de suas posições processuais”
(CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p.
126). Nesse sentido ver: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo
constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 77-83.
3
Antônio do Passo Cabral expõe que a flexibilização do procedimento pelo acordo de vontade
das partes remonta aos primórdios do direito processual no direito romano, preconizando
que “a litis contestatio podia ser visualizada como instrumento de tipo arbitral que representou
o formato mais primitivo – e o mais difundido – de acordo processual” (CABRAL, Antônio
do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 32).
4
DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Teoria dos fatos jurídicos processuais. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 59.
5
Nesse mesmo sentido, Guilherme Henrique Lage Faria conceitua o negócio jurídico
processual como sendo “fato jurídico processual cujo suporte fático tem como elemento
nuclear a exteriorização de vontade do sujeito, mediante o exercício de autorregramento
da vontade, dentro dos limites estabelecidos pelo sistema, para escolher entre categorias
jurídicas processuais e, em alguns casos, eleger o conteúdo e estruturação das relações
jurídicas processuais” (FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo
constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 225).
6
CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 68.
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
311

processuais não previstos no dispositivo processual supracitado para


que as idiossincrasias das partes sejam atendidas e, assim, possibilitem
a construção de uma decisão mais democrática por meio do princípio
da participação efetiva no processo.
O Modelo Constitucional caminha no sentido de maior partici-
pação das partes na condução do processo, com incentivo ao contraditório
substancial (como influência e não surpresa), tido como elemento
normativo estruturador da comparticipatividade democrática, culmi-
nando na introdução (definitiva) da técnica de negociação processual
no sistema brasileiro.7
Nesse sentido, as partes deixam de ser meras coadjuvantes e se
tornam protagonistas do trâmite processual. Logo, reafirma-se o preceito
constitucional da autonomia privada em face de um antigo processo
inflexivo, arbitrário e centralizado no magistrado, marcado pelo apego
excessivo ao publicismo.8 Chega-se à conclusão que, diante das novas
possibilidades e dos novos paradigmas do Código de Processo Civil
de 2015, as partem podem carrear não somente os fatos, mas também
as delimitações processuais contratuais referentes ao direito, tal como
a possibilidade de se limitar a matéria que o juiz averiguará em caso
de conflito entre os litigantes.9
Ademais, houve outra importante inovação no CPC de 2015, que
é a possibilidade de as partes em consonância com o juiz estabelecerem
negócios jurídicos sobre atos exclusivos do juiz, tal como o calendário
processual para a prática de atos, previsto no artigo 191 do CPC de
2015 (negociação típica). Portanto, a celeridade e a marcha processual
serão definidas pelos integrantes da relação jurídica a fim de se atender

7
FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 221.
8
Nesse sentido, ao se referir ao antigo Código, Trícia Navarro Xavier Cabral destaca que
“fortaleceram-se, assim, os dogmas de que as partes bastariam narrar os fatos, sendo o
direito de conhecimento privativo do juiz, passando este a ser o protagonista do processo”
(CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Avanços e desafios das convenções processuais no CPC/15.
In: JAYME, Fernando Gonzaga et al. (Coords.). Inovações e modificações do Código de Processo
Civil: avanços, desafios e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p. 87).
9
Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Francisco Mitidiero explicitam ao
discorrer sobre o artigo 8º do CPC de 2015, que “a dignidade da pessoa humana conecta-se
com o direito à liberdade e à autonomia privada, o que explica a necessidade de respeito,
dentro dos limites constitucionais e legais, aos negócios processuais realizados entre as
partes (art. 190, CPC) e constitui estímulo à realização de calendários processuais entre o
juiz e as partes como instrumento para a eficiente gestão do tempo no processo civil (art.
191, CPC)” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel
Francisco. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015,
p. 105).
312
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

as peculiaridades in casu e para extinguir lapsos temporais ociosos do


procedimento.10
O antigo Código de Processo Civil já previa a possibilidade do
procedimento ser flexibilizado, mas essa alteração perpassava, obriga-
toriamente, por um ato do juiz ou por determinação legal, como, por
exemplo, a desistência e a transação, excetuando-se algumas flexibili-
zações que independiam do magistrado, como, por exemplo, o acordo
para prorrogação de foro e para adiamento de audiência de instrução
de julgamento.
Não obstante, a flexibilidade do antigo procedimento prevista
no CPC de 1973, que parte da doutrina entendia que não se tratava de
uma negociação processual, mas, na verdade, de meros atos processuais,
pois a vontade dos contratantes não tinha aptidão para influenciar os
efeitos dos atos processuais.11 Nessa linha de raciocínio, era inadmissível
a existência de negócios processuais,12 pois os efeitos jurídicos eram
previamente determinados pela lei processual, e não pela vontade das
partes.13 14 15

10
Para mais informações sobre a calendarização processual, ver: COSTA, Eduardo José da
Fonseca. Calendarização processual. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro
Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 353-369 (Coleção
Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).
11
Nesse sentido se posicionava Daniel Mitidiero (em relação ao antigo CPC) citado por Pedro
Henrique Nogueira (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 143).
12
Elio Fazzalari posiciona-se no sentido de admitir a existência de negócios processuais,
indicando que a melhor nomenclatura para o modelo jurídico seria a de “atos processuais
negociais” (FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. Eliane Nassif. Campinas:
Bookseller, 2006, p. 416).
13
No mesmo sentido, ver: REDONDO, Bruno Garcia. Negócios jurídicos processuais. In:
WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Temas Essenciais
do Novo CPC: Análise das principais alterações do sistema processual civil brasil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016, p. 229.
14
Rodrigo Mazzei e Bárbara Seccato Ruis Chagas destacam que um relevante argumento
contrário ao reconhecimento da existência dos negócios jurídicos processuais no Brasil se
fundamenta na “interpretação da segurança jurídica e do devido processo legal sob a ótica
de que o processo deve ser regulamentado por lei, e apenas por ela”, enquanto garantia
conferida aos atores processuais de “pleno conhecimento das ferramentas à disposição para
o exercício da jurisdição” (MAZZEI, Rodrigo; CHAGAS, Barbara Seccato Ruis. Os negócios
jurídicos processuais e a arbitragem In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro
Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 524 (Coleção
Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).
15
Segundo Pedro Henrique Nogueira, as “negativas ao conceito de negócio processual podem
ser agrupadas em quatro vertentes: i) a incorporação da figura tipicamente privatística ao
processo poderia ser fonte de equívocos e poderia atingir a própria autonomia do Direito
Processual quanto à disciplina das formas processuais; ii) Os atos negociais celebrados
fora do processo não teriam propriamente efeitos processuais ligados à vontade do agente
(os efeitos desses atos para o processo sempre seriam sempre ex lege); iii) as declarações
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
313

Superada a atuação centralizada no magistrado,16 o CPC de


2015 veio possibilitar em maior grau a democratização do processo,
pautado pelo fortalecimento do contraditório, ampla defesa e devido
processo legal, paridade de tratamento, promoção da dignidade da
pessoa humana na aplicação da norma processual e da participação
cooperativa e efetiva das partes no processo. Verifica-se, portanto, que
os atores processuais, inclusive o magistrado, passam a figurar em uma
relação horizontal, e a condução do processo será realizada por todos
os agentes da relação jurídica, consagrando-se a plena possibilidade
de celebração de negócios jurídicos processuais.17
O controle sobre os requisitos de validade do negócio processual
caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, recusando-lhe a
aplicabilidade apenas no caso de nulidade, inserção abusiva em contrato
de adesão ou na hipótese em que alguma parte se encontre em manifesta
situação de vulnerabilidade (artigo 190, parágrafo único, CPC/2015).
Nesta senda, é imperioso salientar que o magistrado exercerá, tão
somente, o papel de controle dos negócios processuais, e não de parte,
pois o CPC de 2015 estabelece que as declarações unilaterais ou bilaterais
produzirão efeitos imediatos em relação à Constituição, modificação ou
extinção de direitos processuais (artigo 200, CPC/2015), sem a necessidade
de manifestação de outros sujeitos,18 não sendo requisito de eficácia dos
negócios processuais a homologação judicial, salvo quando a própria
lei assim o exigir, como, por exemplo, na hipótese de transação.
O juiz tem o dever de controlar a validade dos acordos processuais,
seja quando indevidamente incidem sobre os seus poderes (porque os

negociais não produziriam efeitos imediatamente, mas somente após a intervenção ou


intermediação judicial; iv) os negócios jurídicos com relevância processual (v.g. alienação
da coisa litigiosa) seriam para o processo meros fatos” (NOGUEIRA, Pedro Henrique.
Negócios Jurídicos Processuais: análise dos provimentos judiciais como atos negociais, 2011,
p. 138. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, Programa
de Pós-Graduação em Direito. Disponível em: <http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/
bitstream/ri/10743/1/Pedro%20Henrique.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2017). Nesse sentido ver:
FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 44-49.
16
Leonardo Carneiro da Cunha expõe que “fortaleceu-se a imagem do Estado Democrático
de Direito, que exige a participação dos sujeitos que estão submetidos a decisões a serem
tomadas sobre situações que lhes digam respeito” (CUNHA, Leonardo Carneiro da.
Negócios Jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo;
NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm,
2015, p. 45 (Coleção Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).
17
Nesse sentido ver: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo
constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 49-69.
18
Nesse sentido ver: CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm,
2016, p. 62-63.
314
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

acordos não podem incidir sobre os seus poderes), seja quando incidem
sobre os poderes das partes indevidamente (porque sua incidência
não pode violar a boa-fé e a simetria das partes). Em sendo o caso,
tem o dever de decretar a respectiva nulidade. A validade dos acordos
processuais está condicionada à inexistência de violação às normas
estruturantes do direito ao processo justo no que tange à necessidade
de simetria das partes. Quando o art. 190, parágrafo único, CPC, fala em
“nulidade”, “inserção abusiva em contrato de adesão” ou “manifesta
situação de vulnerabilidade”, ele está manifestamente preocupado em
tutelar a boa-fé (art. 5º, CPC) e a necessidade de paridade de tratamento
no processo civil (art. 7º, CPC).19
Para a realização de negócios processuais, o Código de Processo
Civil de 2015 demanda o respeito a algumas limitações. A primeira
é a necessidade de versar sobre direito que admita autocomposição,
em relação tanto a direito material quanto processual; todavia, faz-se
necessário explanar que o direito poderá ser indisponível e admitir
autocomposição.20 Porém, não se deve confundir o “núcleo duro” de
determinados direitos que não comportam transação com o método de
resolução de conflitos que, na maioria das vezes, possibilita tangenciar
parte da parcela de um direito não disponível a fim de se chegar a um
consenso.21
É necessário, ainda, que as partes sejam plenamente capazes,
conforme se extrai do artigo 190 do CPC de 2015. Todavia, o legislador
não especificou a qual capacidade se referiu ‒ a processual ou a civil.
Em relação à fase endoprocessual, é indubitável que se requeira a
capacidade processual e, também, a postulatória. A dúvida é maior em
relação aos negócios anteriores ao processo. Nesse sentido, Fredie Didier
Jr. preleciona que o legislador se referiu à capacidade processual ‒ e
não à material ‒ em relação aos negócios pré-processuais, pois, como

19
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco.
Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 245.
20
Enunciado nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A indisponibilidade
do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”
(NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil: Lei 13.105/2015: Lei
de Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73
Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas
Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da Legislação. 3. ed. rev. e ampl.
Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 126).
21
Pedro Henrique Nogueira exemplifica que “mesmos direitos teoricamente indisponíveis,
posto que irrenunciáveis (por exemplo, direito subjetivo a alimentos) comportam transação
quanto ao valor, vencimento e forma de satisfação” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios
Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 233).
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
315

visam à produção de efeitos a posteriori em eventual processo litigioso, é


incabível a flexibilização procedimental por quem não possui capacidade
processual plena para tal ato.22
Ademais, Fredie Didier Jr., ainda, qualifica o requisito exigindo
uma capacidade processual negocial,23 ou seja, não deve haver vulnerabi-
lidade, pois é causa de invalidade do negócio jurídico, pois vulneráveis
não estão aptos a celebrar tais formas de flexibilizações procedimentais.
Isso ocorre devido ao fato de que não é possível estabelecer-se a
negociação por pessoa(s) em condições de vulnerabilidade; todavia,
desde que a cláusula seja evidentemente benéfica ou não traga prejuízos
à parte vulnerável, o magistrado poderá considerar a validade da
negociação.
Outrossim, a leitura da validade dos negócios jurídicos proces-
suais deve ser feita em consonância com o princípio da pas de nullité
sans grief, ou seja, não há nulidade se não houver prejuízo para quem
alega.24 Com isso, não se pode decretar a invalidade de plano de um
negócio jurídico processual pelo simples fato de existir um vulnerável.25
Ademais, a interpretação da cláusula contratual deve se dar pela
interpretação teleológica da norma, qual seja, a proteção do vulnerável.
Não se concebe, portanto, que o legislador quis impossibilitar absolu-
tamente os negócios processuais em âmbito em que há incidência da
vulnerabilidade, mas que forneceu uma maior propugnação jurídica
tendo em vista a condição de desigualdade material entre os contratantes.
Verifica-se que tais métodos de flexibilização possibilitam o reforço do
conteúdo normativo previsto pelo próprio Código de Processo Civil de
2015 pautado pela celeridade e economia processual.

22
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil,
parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 389.
23
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil,
parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 389.
24
Enunciado nº 16 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “O controle dos
requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser
conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo” (NUNES,
Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil: Lei 13.105/2015: Lei de
Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73
Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas
Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da Legislação. 3. ed. rev. e ampl.
Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 127).
25
Na mesma linha, Roque Komatsu, citado por Vinícius Mattos Felício, considera que “requer-se
que quem invoca o vício formal alegue e demonstre que tal vício lhe produziu um prejuízo
certo e irreparável, que não pode sanar-se com o acolhimento da alegação de nulidade”
(KOMATSU, Roque. Da Invalidade do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1991, p. 241 apud FELÍCIO, Vinícius Mattos. As nulidades no Novo Código de Processo Civil.
Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 41).
316
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Por fim, destaca-se que o negócio jurídico processual não


poderá afastar os deveres inerentes à boa-fé processual e à cooperação
(Enunciado nº 6 do Fórum Permanente de Processualistas Civis ‒ FPPC)
para fins de controle da validade das convenções firmadas pelas partes.26

4.3 Contratos de adesão


No contexto do Estado Liberal, o incremento do processo de
industrialização, a influência do liberalismo econômico e a desper-
sonalização das relações contratuais motivada pela massificação dos
contratos27 influenciaram o surgimento de uma nova técnica de formação
do contrato, os chamados contratos de adesão, previstos no artigo 54 do
Código de Defesa do Consumidor (1990)28 e, posteriormente, nos artigos
423 e 424 do Código Civil (2002).
Ana Prata preleciona que o contrato de adesão pode ser concei-
tuado:
[...] como aquele cujo conteúdo clausular é unilateralmente definido por
um dos contraentes que o apresenta à contraparte, não podendo esta
discutir qualquer das suas cláusulas: ou aceita em bloco a proposta con-
tratual que lhe é feita, ou a rejeita e prescinde da celebração do contrato.29

No âmbito das relações jurídicas de consumo, o contrato de


consumo se apresenta como sendo um contrato tipicamente de adesão30

26
Segundo Dierle Nunes, “para o processo democrático, a teoria da confiança apresenta-se como
peça normativa do princípio da boa-fé, cuja observância é de um imperativo contrafático
normativo, não dependendo, pois, de cláusula ou convenção negocial para se legitimar e
obrigar. No âmbito dessa teoria insere-se a possibilidade de criação, modificação e até mesmo
de extinção de obrigações diante de negócios jurídicos” (THEODORO JÚNIOR, Humberto
et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 200).
27
César Fiuza destaca que a “massificação dos contratos é, portanto, consequência da
concentração industrial e comercial, que reduziu o número de empresas, aumentando-as
em tamanho. Apesar disso, a massificação das comunicações e a crescente globalização
acirraram a concorrência e o consumo, o que obrigou às empresas a racionalizar para reduzir
custos e acelerar os negócios: daí as cláusulas contratuais gerais e os contratos de adesão”
(FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2012, p. 460). Nesse sentido ver: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito civil
brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
ano 25, n. 97, p. 163-180, jan./mar. 1988, p. 178-179.
28
Art. 54, CDC: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela
autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou
serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
29
PRATA, Ana. Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais: anotação ao Decreto-Lei nº
446/85, de 25 de outubro. Coimbra: Almedina, 2010, p. 17.
30
Segundo Claudia Lima Marques, o contrato de adesão é “aquele cujas cláusulas são
preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
317

devido ao fato do aderente (consumidor) contratá-lo de acordo com


cláusulas previamente definidas unilateralmente pelo proponente
(fornecedor) ou regulamentadas e aprovadas pela autoridade compe-
tente, aceitando ou não, em bloco, as condições impostas na proposta
formalizada.
Entretanto, em inúmeros contratos de consumo, verificam-se
cláusulas contratuais que impedem a compreensão adequada do consu-
midor em relação aos termos do contrato, por não prestarem informações
suficientes e adequadas, ou mesmo por não serem transparentes, trazendo
inúmeros prejuízos ao aderente, notadamente, em razão de sua incon-
testável condição de vulnerabilidade31 “presumida e alçada a princípio
de proteção dos consumidores”32 no mercado de consumo.
Logo, nos contratos de adesão, não há mais lugar para negociações
e discussões acerca de cláusulas contratuais, pois a massificação dos
contratos, imposta através de cláusulas adesivas e predeterminadas em
formulários impressos, modificou toda a realidade das contratações,

(fornecedor), ne varietur, isto é, sem que outro o outro parceiro (consumidor) possa discutir
ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito. [...] Desta maneira, limita-se
o consumidor a aceitar em bloco (muitas vezes sem sequer ler completamente) as cláusulas
que foram unilateral e uniformemente pré-elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um
papel de simples aderente à vontade manifestada pela empresa no instrumento contratual
massificado. O elemento essencial do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma
fase pré-negocial decisiva, a falta de um debate prévio das cláusulas contratuais e, assim,
a sua predisposição unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou
rejeitar o contrato, não podendo modifica-lo de maneira relevante. O consentimento do
consumidor manifesta-se por ‘simples’ adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor
de bens ou serviços. [...] Realmente, no contrato de adesão não há liberdade contratual de
definir conjuntamente os termos do contrato, podendo o consumidor somente aceitá-lo ou
recusá-lo. É o que os doutrinadores anglo-americanos denominam contrato em uma take-
it-or-leave-it basis” (MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor:
o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.
78-79; 81). Nesse mesmo sentido, ver: FIUZA, César; ROBERTO, Giordano Bruno Soares.
Contratos de adesão. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 68; GOMES, Orlando. Contratos.
26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 128; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,
Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito dos contratos. 7. ed. rev. e atual. Salvador:
JusPodivm, 2017, p. 103.
31
Claudia Lima Marques leciona que a “vulnerabilidade é uma situação permanente
ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos,
desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado
do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção” (BENJAMIN, Antonio Herman
V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 7.
ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 108). Nesse sentido ver:
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 322; BRAGA NETTO,
Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 12. ed., rev.,
ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 59.
32
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 321.
318
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

permitindo aos conglomerados econômicos reduzir custos e otimizar


o processo produtivo para permitir contratações mais céleres.33
Nessa esteira, os consumidores aderem a contratos pré-redigidos,
padronizados, sem que possam ter conhecimento prévio, claro e preciso do
conteúdo contratual, pois não têm a oportunidade de ler e ponderar, com
precaução, sobre as cláusulas que lhes são impostas na contratação.
Na maioria dos casos, o consumidor somente recebe o contrato
após concluí-lo, e soma-se a isso a falta de conhecimento para entender os
termos técnicos do contrato, acrescidos a conteúdos extensos, impressos
em letras de tamanho reduzido, que visam desestimular a leitura e
análise do conteúdo contratual pelo aderente.34 Ademais, há a imposição
de várias cláusulas limitativas da contratação, as quais não são explícitas
e, ao contrário, por vezes se encontram inseridas sem qualquer destaque,
o que impede a verificação das mesmas no instrumento contratual.
Desse modo, a interpretação dessas situações adquire grande
importância na contemporaneidade com a inserção, nas relações de
consumo, do princípio da boa-fé objetiva e, em decorrência deste, do
princípio da informação, transparência e da confiança sobre o conteúdo
do contrato, bem como a observância à função social dos contratos e
à justiça contratual. É o sentido que direcionou os artigos 46 e 47 do
Código de Defesa do Consumidor e o artigo 423 do Código Civil, que
preveem a interpretação dos contratos de forma mais favorável ao
aderente/consumidor no intuito de resguardá-lo em caso de eventual
arbitrariedade praticada pelo proponente.35
Nessa linha de intelecção, Claudia Lima Marques ensina que
o “fenômeno dos contratos de adesão é cada vez mais comum na
experiência contemporânea, produzindo-se em múltiplos domínios,
como, por exemplo, o dos seguros, o dos planos de saúde, o das operações
bancárias, o da venda e aluguel de bens”.36
O contrato de seguro apresenta-se como um dos exemplos mais
comuns de contratos de adesão em face do dinamismo da atividade

33
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2012, p. 460; RIZZARDO, Arnaldo. Código de Defesa do Consumidor nos Contratos
de Seguro-Saúde e Previdência Privada. Ajuris, v. 22, n. 64, p. 78-102, jul. 1995, p. 85.
34
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 162.
35
Nesse sentido ver: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz
da jurisprudência do STJ. 12. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 61-67;
80-85.
36
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 80.
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
319

securitária, da massificação dos contratos e da necessidade de rapidez


na conclusão das relações contratuais securitárias. Todavia, inúmeras
críticas são delineadas em relação à formação do referido contrato
de consumo, principalmente quanto à falta de liberdade contratual
no tocante à estipulação do conteúdo contratual, que impõe aos
segurados condições, por vezes, excessivamente onerosas. Destaca-se
que, geralmente, os segurados aderem aos contratos sem que possam
ter informações necessárias e suficientes acerca do conteúdo contratual
de seus direitos e obrigações, conjugado ao fato de o contrato trazer em
seu bojo exacerbado tecnicismo, dificultando, assim, a compreensão
dos termos do instrumento contratual.37
Essa é situação que permeia a maioria dos contratos de consumo
no Brasil, onde se verifica haver patente desequilíbrio na relação
contratual e, por conseguinte, posição de inferioridade do consumidor
(vulnerabilidade) em face do fornecedor de produtos/serviços, especial-
mente em relação à fixação do conteúdo do contrato.
Urge destacar que o consumidor, via de regra, é leigo, sendo que
não possui conhecimentos a fim de compreender o conteúdo contratual
(vulnerabilidade técnica, jurídica ou científica), possuindo pouco ou
quase nenhum acesso a informações claras, precisas e transparentes
sobre o contrato (vulnerabilidade informativa) e, ainda, avença com
fornecedores que representam grandes conglomerados econômicos
(vulnerabilidade econômica), o que lhe impõe posição de evidente
inferioridade perante aos mesmos na contratação dos mais variados
contratos de consumo.38
E tal situação é de ocorrência cotidiana nas contratações que
envolvem contratos de consumo, pois os consumidores assinam as
propostas de contratação sem que possuam prévio e completo conhe-
cimento das condições gerais do contrato.

37
Para mais informações acerca do contrato de seguro, recomenda-se a leitura de: ALVIM,
Pedro. O contrato de seguro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999; TZIRULNIK, Ernesto;
CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro: de acordo
com o novo código civil brasileiro. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003; MARENSI, Voltaire Giavarina. O seguro no direito brasileiro. 8. ed. São Paulo: IOB
Thomson, 2007; SILVA, Michael César. Contrato de seguro de automóveis: releitura à luz da
nova principiologia do Direito Contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
38
Sobre as várias espécies de vulnerabilidade, remete-se à leitura de: MARQUES, Claudia
Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais.
7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 322-342; BENJAMIN, Antonio Herman V.;
MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 7. ed.,
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 108-119; GARCIA, Leonardo
de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor Comentado: artigo por artigo. 13. ed., rev., ampl.
e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 31-33.
320
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Clarividente que a obrigação do fornecedor é informar ao


consumidor sobre todo o conteúdo contratual no ato da contratação
e, sobretudo, entregar-lhe o contrato e sanar toda e qualquer dúvida,
inclusive técnica, acerca das condições gerais da contratação.
Contudo, não é o que ocorre na prática dessas contratações,
que impõem aos consumidores condições precárias para firmarem os
contratos e, por conseguinte, demandando um maior controle estatal
acerca da imposição de cláusulas abusivas e do próprio processo de
formação dos contratos de adesão a partir da interpretação do contrato
de forma mais favorável ao consumidor (art. 47, CDC), bem como pela
consagração da situação de vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I,
CDC), no sentido de se buscar garantir as premissas basilares do Código
de Defesa do Consumidor, quais sejam a proteção do consumidor e o
(re)equilíbrio da relação jurídica de consumo.

4.4 A principiologia contratual e a negociações


processuais em sede de relações de consumo:
reflexos nos contratos coletivos e atuação do
Ministério Público

A negociação processual, mesmo que em diminuta proporção,


comumente é vista em contratos, mormente empresariais. Ao tempo do
CPC de 1973, a rigidez do processo apenas permitiria algumas dispo-
sições atinentes a procedimentos, pois não se concebia de negociações
atípicas. Nesta seara, a cláusula processual mais comum era a eleição
de foro, relacionada à competência relativa.
Em sede de contratos de consumo, em sua maioria na modalidade
de adesão, há entendimento restritivo quanto à referida cláusula na
medida em que o consumidor possui a faculdade de ajuizamento de
ações em seu próprio domicílio, conforme dispõe o artigo 100, I, CDC,
sendo, portanto, muitas negociações consideradas abusivas por repre-
sentar negativa de acesso à justiça.
A vulnerabilidade presumida do consumidor impede que
seja ele posto em condição de desvantagem manifesta. Portanto, os
contratos nesse ramo são realizados sobre a premissa do desequilíbrio
entre contratantes, e a nulidade das disposições processuais recebe
tratamento mais rígido.
Bruno Miragem, acerca da cláusula de eleição de foro, preleciona
que:
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
321

Não se cogita, nas relações de consumo ‒ ao contrário do que se possa


eventualmente discutir em outras relações jurídicas, sobre as condições
pelas quais se caracteriza a abusividade ‒ de convalidação da cláusula
por inação ou preservação de sua eficácia em vista da preclusão pro-
cessual. Tampouco, que se demonstre hipossuficiência da parte a quem
prejudique o foro escolhido, a justificar inclusive a oportunidade de
alegar o caráter abusivo da cláusula em contestação.39

O CPC de 2015 instituiu negociações atípicas nos contratos de


adesão, o que, em primeira análise, induz a cogitar da paridade entre
os negociantes. O preceito normativo, contudo, carece de explanações
sobre os requisitos da negociação. Entretanto, mesmo diante da omissão
legislativa, o direito processual não é fim em si mesmo, devendo respeitar
os limites do direito material que veicula e, portanto, seus princípios.
Nessa linha de intelecção, com fulcro nas disposições normativas do
Código de Defesa do Consumidor, a “vontade das partes manifestada
livremente no contrato não é mais fator decisivo para o direito, pois as
normas do Código instituem valores superiores, como o equilíbrio e a
boa-fé nas relações de consumo”.40
Esvaziar o conteúdo de um novo instituto pela sua obscuridade e
complexidade é negar ao direito o próprio progresso. Uma vez inovada
a legislação, prevendo um novo conteúdo ao contrato de adesão, é
certo que sua viabilidade existirá; porém, seus contornos irão além dos
existentes em um mero contrato.
Nesse contexto, a autonomia privada dos contratantes ‒ exterio-
rizada por meio de sua liberdade contratual ‒ sofre no âmbito das
relações jurídicas de consumo profundas conformações, notadamente
em razão da incidência da principiologia contratual contemporânea aos
negócios jurídicos firmados entre consumidor e fornecedor.
Em síntese, a consequência lógica do exposto perpassa pela
compreensão de que a autonomia privada, enquanto encontro de
vontades desembaraçadas e livres que fazem nascer o consentimento,
pedra elementar do negócio jurídico,41 se une aos requisitos de validade

39
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito Do Consumidor. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 710.
40
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 950.
41
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: volume
4: tomo I. 12. ed. ver., ampl. e atual. de acordo com o novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016.
Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicitam que a autonomia
privada pode ser compreendida como “o poder concedido ao sujeito para criar a norma
individual nos limites deferidos pelo ordenamento jurídico.” (FARIAS, Cristiano Chaves
322
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

do negócio jurídico (art. 104, CC), formando um negócio perfeito, desde


que respeitados os preceitos norteadores da legislação consumerista,
dentre os quais se destacam a boa-fé objetiva, a informação, a transpa-
rência e a vulnerabilidade do consumidor.
Destarte, na hipótese de o conteúdo contratual da avença firmada
não ser efetivamente compreendido pelos consumidores, que celebram
contratos de consumo por meio de adesão em razão da falta de conhe-
cimento prévio de seu conteúdo ou por possuir termos redigidos de
modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance, os referidos
instrumentos contratuais não obrigarão os consumidores, com esteio na
previsão legal do artigo 46 do CDC.
Nesse mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor impõe,
ainda, em seu artigo 54, que as cláusulas de um contrato de adesão
devem ser redigidas em termos claros, ostensivos e legíveis, bem como as
cláusulas restritivas de direito devem vir em destaque, viabilizando sua
imediata e fácil compreensão. Assevera-se que a jurisprudência hodierna
é sensível a abusos contratuais e não vem aplicando disposições que
dificultem o conhecimento e entendimento do consumidor.42
O princípio da boa-fé objetiva nas negociações havidas em
contratos de consumo não pode ser atingido pela atuação solitária das
partes interessadas (fornecedor e consumidor). A vulnerabilidade do
consumidor, que desconhece o direito, impediria a validade do negócio
firmado. A boa-fé objetiva gera a lealdade que inspira confiança, que deve
ser preservada a fim de evitar comportamentos que violem direitos,43
principalmente no âmbito das garantias processuais trazidas à lume
com o CPC de 2015.
Em 2016, a boa-fé objetiva ingressa explicitamente no Novo
Código de Processo Civil. De acordo com o art. 5º da Lei n. 13.105/15,
“Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se
de acordo com a boa-fé”. Em complemento, preceitua o art. 6º: “Todos
os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha,
em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
O CPC/15 introduz um modelo cooperativo, pautado no princípio
da colaboração. Em princípio, muitos poderiam supor que se trataria de

de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito dos contratos. 7. ed. rev.
e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p.150).
42
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor Comentado: artigo por
artigo. 13. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017.
43
CRAMER, Ronaldo. O Princípio da Boa-fé Objetiva no Novo CPC. In: DIDIER JR., Freddie
et al. (Coord). Normas Fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2016.
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
323

um “simulacro” da boa-fé objetiva do direito privado. Ledo engano: a


boa-fé do Código Civil pressupõe os interesses convergentes das partes
no sentido do cumprimento, pela exata forma com que se estabeleceu
o “projeto obrigacional.” Enquanto o credor almeja a satisfação da
prestação, o devedor aspira recobrar a liberdade que cedeu ao se vincular.
No processo civil, todavia, os interesses das partes são divergentes, eis
que já se manifestou a crise do inadimplemento. Assim, não há uma
finalidade comum que irmane os litigantes, pois a sentença e a execução
apenas prestigiarão uma das partes.
Destarte, a boa-fé processual terá magistrado como destinatário.
Ela complementará a boa-fé civil, ao convidar ao diálogo aquele que
até então se mantinha em clausura. Sendo o processo um instrumento
idôneo para a concreção da tutela de direito material, o princípio colabo-
rativo demandará um compartilhamento de responsabilidades entre
as partes e o juiz, a fim de que se alcance uma decisão justa e efetiva.
A par da natural assimetria na fase decisória – naturalmente o ato de
sentenciar dispensa a dialética – , todo o comando do processo se dará
em bases cooperativas, com destaque para os deveres judiciais anexos
perante as partes, de auxílio, diálogo, esclarecimento e prevenção,
todos destinados à preservação do equilíbrio de forças no desenrolar
da lide. Do ponto de vista ético, o processo pautado pela colaboração
é um processo orientado pela busca tanto quanto possível da verdade
e que, para além de emprestar relevo à boa-fé subjetiva, também exige
de todos os seus participantes a observância da boa-fé objetiva (art. 5º
CPC/15).
A exaltação da boa-fé pelo CPC/15 demonstra que o processo não
é um conjunto abstrato de equações concebidas em um laboratório, mas
uma técnica a serviço de uma ética de direito material.44
Nesse mesmo giro, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz
Arenhart e Daniel Francisco Mitidiero prelecionam que se comporta com
boa-fé “aquele que não abusa de suas posições jurídicas” e, portanto,
atua para garantir a proteção da boa-fé objetiva no processo. Lado
outro, a inobservância da boa-fé processual ensejaria, conforme o caso,

44
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito
dos contratos. 7. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 220-221. Nesse sentido, ver:
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco.
Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 99-103.
324
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

“à ineficácia do ato processual contrário à boa-fé, à responsabilização


por dano processual e inclusive à sanção pecuniária”.45
Logo, a função de controle da boa-fé objetiva (art. 187, CC) assume
um papel de destaque em relação aos negócios jurídicos processuais
celebrados pelas partes, atuando como um instrumento capaz de coibir
o exercício abusivo de posições jurídicas que venham a frustrar a legítima
expectativa (tutela da confiança) despertada no âmbito das convenções
processuais firmadas.
Por conseguinte, cogita-se das negociações processuais válidas,
desde que a parte vulnerável esteja assistida por advogado ou mesmo
defensor público, que funcionarão como um plus aos requisitos do
artigo 104 do Código Civil.
A conclusão é singela, porém, demasiadamente lógica. Assevera
Gladston Mamede que, “em verdade, é o advogado um instrumen-
talizador privilegiado do Estado Democrático de Direito, a quem se
confia a defesa da ordem jurídica, da soberania, nacional, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana [...]”.46 Como defensor da ordem jurídica e
conhecedor do direito processual, cabe ao advogado suprir a ausência de
conhecimento do consumidor e conferir validade à negociação processual
atípica, o que permite ao último pactuar amplamente acerca do direito
processual, moldando o processo ao seu próprio interesse, suprindo a
vulnerabilidade presumida do consumidor.47 48 Tal situação facilita o
controle da validade das negociações processuais durante o curso de uma
ação judicial, visto que a mesma estaria mais propensa a ser considerada
válida, justa e efetiva, em consonância com os preceitos norteadores da
Constituição da República de 1988 e do Código de Processo Civil de
2015, notadamente relacionados ao modelo constitucional de processo,

45
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco.
Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 99.
46
MAMEDE, Gladston. A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2011, p. 7.
47
O Enunciado nº 18 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) dispõe que:
“Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem a
assistência técnico-jurídica” (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo
Civil: Lei 13.105/2015: Lei de Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos
correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum
Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da
Legislação. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 127).
48
Sobre a questão relativa ao acompanhamento técnico-jurídico, remete-se à leitura de: CÂMARA,
Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 126; FARIA,
Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 91-93.
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
325

com vistas à garantia dos princípios do contraditório, ampla defesa e


devido processo legal na esfera processual.
A atribuição de fiscalização e orientação por parte do advogado
já é prevista no próprio Estatuto da OAB, o que não deturpa o propósito
do advogado elencado na própria lei. Da mesma forma, a própria lei
da Defensoria Pública:

Lei nº 8.906/94:
Art. 1º São atividades privativas de advocacia:
II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas
Lei Complementar nº 80/94:
Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento
do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial
e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e
gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV
do art. 5º da Constituição Federal.

As contratações coletivas, a exemplo dos contratos de seguro


em grupo, recebem tratamento análogo. Nesse sentido, Felipe Peixoto
Braga Netto dispõe com propriedade que “a presunção de vulnerabi-
lidade do consumidor é absoluta. Todo consumidor é vulnerável, por
conceito legal. A vulnerabilidade não depende de condição econômica,
ou de quaisquer contextos outros”.49 Por consequência, infere-se que a
existência de mais de um consumidor em um dos polos da contratação
não supre a vulnerabilidade existente, razão pela qual a tratativa dos
negócios processuais atípicos em contratação coletiva não se difere da
análise dos contratos individuais.
A assistência jurídica nos contratos coletivos, para suprir a vulne-
rabilidade, todavia, recebe contornos próprios. Poder-se-ia conceber a
possibilidade de intervenção do Ministério Público como custus iuris,
dispensando a intervenção de advogado ou Defensor Público, pois se
trata de direitos individuais homogêneos.
Preleciona Uadi Lammêgo Bulos:

[...] na sistemática da Constituição de 1988, o Ministério Público galgou


ao posto de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do

49
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do
STJ. 12. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 59.
326
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Estado, encarregado de defender a ordem jurídica, o regime democrático


e os interesses sociais e individuais indisponíveis.50

Afigura-se possível inferir que o conceito de “interesse social”,


trazido por Uadi Lammêgo Bulos, abarca contratos coletivos. Logo, seria
possível o controle das negociações processuais atípicas pelo Ministério
Público. A intervenção do Parquet em casos de interesse social ou público
consta do próprio Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 178,
I, não requerendo qualquer ampliação de competência para abarcar a
fiscalização das negociações processuais, apenas se exige interpretação
ampliativa dos significados das expressões interesse social e público.
A própria Constituição Federal permite interpretação ampliativa
das funções do Parquet, pois se vislumbra de seu teor o seguinte dispo-
sitivo:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que com-
patíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial
e a consultoria jurídica de entidades públicas.

O Ministério Público, devido às funções a ele atribuídas pelo


constituinte originário, assume responsabilidade de zelar por todo o
ordenamento jurídico. Com tal mister, e competência não taxativa, é
seu dever zelar pela idoneidade das negociações processuais atípicas
em sede de contratos coletivos de consumo como forma de preencher
os requisitos de validade contratual.
O instituto da negociação processual é compatível com os
contratos de adesão, desde que respeitados os princípios da boa-fé
objetiva, informação, transparência e vulnerabilidade, através da inter-
venção de terceiros atores no negócio, sejam advogados, promotores
ou defensores públicos, o que viabiliza uma contratação paritária e
confere validade a ela. Essa intervenção funcionará como requisito
de validade específico do contrato que contiver cláusulas processuais
atípicas, seja ele coletivo ou individual, permitindo a ampla pactuação
sobre regras processuais.

4.5 Conclusão
As negociações processuais, principalmente as atípicas, são
instrumentos importantes para a efetivação da tutela jurisdicional de

50
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 1.402.
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
327

maneira mais célere, econômica e democrática, ao possibilitar que as


partes optem por flexibilizar o procedimento a fim de que as especifi-
cidades das mesmas sejam atendidas, trazendo decisões mais justas e
eficazes, fortalecendo-se, assim, o princípio da adequação processual.
Ademais, a inclusão dos negócios processuais trouxe uma nova
roupagem ao Processo Civil brasileiro ao superar, em grande parte, o
publicismo processual marcado por atos procedimentais contínuos,
inflexíveis e cogentes. Portanto, a reforma processual trouxe um novo
paradigma, qual seja a possibilidade de ser mitigar normas antes ditas
“absolutas”.
Houve ainda um fortalecimento do princípio processual funda-
mental da cooperação, em que as partes, conjuntamente com o juiz,
devem atuar de forma que os objetivos e expectativas privadas e públicas
sejam alcançados, ou seja, que o desenvolvimento procedimental se
dê pela construção de uma decisão judicial efetiva com a participação
plena dos atores do trâmite processual.
Os protagonistas processuais devem buscar a efetivação dessa
importante novidade trazida pelo CPC de 2015 para que as dispo-
sições legais não se tornem inutilizadas ou subutilizadas, pois se trata
de importante avanço legislativo em consonância com os objetivos
fundamentais constitucionais da autonomia privada, da liberdade e
da duração razoável do processo.
Nesse diapasão, entende-se que tais inovações possibilitarão a
redução da quantidade excessiva de processos judiciais no Brasil, tendo
em vista que se vislumbra um menor grau de litigiosidade acerca de
aspectos materiais e, também, processuais pela utilização de técnicas de
limitação probatória, acordo de instância única, dispensa de assistente
técnico, prévia necessidade de uma audiência de conciliação ou mediação,
limitação da matéria fática a ser conhecida pelo juiz, entre outros.
Todavia, em que pese à importância das negociações processuais
para a construção de decisões mais justas, céleres e econômicas, é de
grande valia ressaltar que essas flexibilizações devem ser efetivadas
com cautela em âmbito consumerista, sobretudo quando realizados
em sede de contratos de adesão. Isso porque os princípios basilares
do liberalismo foram sendo substituídos por uma concepção estatal
mais protetiva em relação as camadas sociais mais vulneráveis. Nesta
senda, o Estado, na imagem do magistrado, deve exercer papel para a
efetivação de uma igualdade material entre os contraentes, considerando
inválidas as cláusulas quando submetidas em uma relação permeada
pela desigualdade, tal como as verificadas nas relações jurídicas de
consumo.
328
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Aferiu-se como viável a realização de negociações processuais


atípicas em sede de contrato de adesão, independentemente da vulnera-
bilidade presumida do consumidor. A existência de um novo instituto,
tal como o art. 190 do CPC de 2015, não deve ser encarada como letra
morta na medida em que as inovações processuais são a essência da
modernização do próprio procedimento, e caberá ao operador do
direito adequar as novidades processuais aos outros ramos do direito,
mormente no caso em estudo, o direito do consumidor.
Trabalharam-se as negociações processuais em contrato de adesão
conferindo a elas outro requisito de validade. Nessa linha de raciocínio,
sob a perspectiva do princípio da boa-fé objetiva e da vulnerabilidade
presumida, constatou-se que negócios processuais contratuais não
devem receber o mesmo tratamento de quaisquer contratos na medida
em que as disposições contratuais processuais não são conhecidas pelo
consumidor. O desconhecimento do processo impede a paridade da
negociação, que deixa de ser pautada pelo princípio da informação e da
transparência, gerando, por consequência, a assimetria de informações.
É, portanto, imprescindível a atuação de terceiros nas contratações,
sejam elas coletivas ou individuais, a fim de suprir as limitações
impostas pela vulnerabilidade presumida, o que só pode ser feito pela
via da fiscalização de advogados, promotores ou defensores públicos,
conhecedores do direito e que auxiliarão na formação do contrato
válido. Essa intervenção deve ser adicionada aos requisitos do art. 104
do Código Civil.
Pelo método analítico-dedutivo, percebeu-se que, mediante
a atuação de terceiro (advogado, promotor ou defensor público),
as negociações processuais atípicas podem tomar maior amplitude,
abarcando quaisquer disposições processuais, ressalvadas as que forem
consideradas de ordem pública. Nos eventuais litígios futuros, decor-
rentes do contrato, deverá o juiz interferir minimamente no conteúdo
da negociação, visto que houve a participação de terceiros. Trata-se de
uma conclusão que facilitará o trabalho do magistrado no controle das
cláusulas processuais, bem como impedirá que as partes do processo
se sujeitem ao arbítrio judicial.
Pelo princípio da participação, também alicerce deste artigo,
conclui-se que as negociações processuais atípicas contribuem para a
realização de um processo democrático, constituindo norma essencial
do Código de Processo Civil de 2015, permitindo às partes moldar o
processo à sua maneira e necessidade. Os contratos de adesão, marcados
pela vulnerabilidade presumida do consumidor e pelo caráter unilateral
da imposição contratual, não são incompatíveis com as negociações
LUCAS MAGALHÃES DE OLIVEIRA CARVALHO, MICHAEL CÉSAR SILVA, SAMUEL VINÍCIUS DA SILVA
NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA...
329

processuais, desde que observadas as cautelas necessárias devido ao


desconhecimento do consumidor acerca das normas processuais.

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BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott
(Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos
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CAPÍTULO 5

REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO


PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO
DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO
DOS MECANISMOS DE AMPARO

Elcio Nacur Rezende


Gabriella de Castro Vieira

5.1 Introdução
Sabidamente, a entrada em vigor de uma nova legislação
processual civil implica em alterações significativas em todo o ordena-
mento jurídico e, em especial, em algumas áreas do direito, como a
consumerista. Isto porque uma das atribuições do processo é viabilizar
a efetivação do direito material, por isso a grande proximidade existente
entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e as normas processuais.
Cita-se como exemplo da importância de tal relação o fato de que
a concretização de alguns direitos subjetivos materiais, tutelados pela
Lei nº 8.078/1990 (CDC), em decorrência da vulnerabilidade jurídica
reconhecida pelo legislador infraconstitucional, somente se instru-
mentaliza diante da sistemática processual, como: a determinação da
competência pelo foro do domicílio do consumidor e decisões de ofício
do magistrado na condução das demandas processuais.
Em face da conexão entre os dois ramos do universo jurídico,
as questões pertinentes à legislação processual, mormente quando
digam respeito à modificação da respectiva regulamentação, impactam
sensivelmente nas tratativas que envolvam o direito do consumidor,
tanto na visão acadêmica quanto na atuação jurisdicional, assim como
na prática advocatícia.
334
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Nesse sentido, o presente capítulo tratará das inovações trazidas


pelo Código de Processo Civil de 2015 no que concerne à área consu-
merista. Cumpre destacar, desde o limiar deste estudo, que não há a
pretensão de se aprofundar no conceito, na historicidade ou em outros
aspectos doutrinários da temática. Objetiva-se analisar a mudança da
legislação processual civil no tocante à sua serventia para o direito do
consumidor, sob o viés da tutela protetiva, conforme preconizado pela
Lei nº 8.078/1990.

5.2 A jurisdição internacional e o foro do domicílio do


consumidor
O comportamento do consumidor brasileiro após a redemo-
cratização, iniciada no final da década de 1980, sofreu expressiva
transformação, o que decorreu da conjugação de vários fatores, como:
estabilidade monetária, controle inflacionário, técnicas aprimoradas
e sedutoras do mercado publicitário, concessão facilitada de diversos
produtos e serviços creditícios, surgimento e vertiginoso desenvolvi-
mento do comércio eletrônico.
O novo modo de consumir do indivíduo tornou-se desafiante
para o ordenamento jurídico e, consequentemente, para o exercício
das atividades do poder judiciário e da advocacia. Nesse tocante, uma
das questões que se destaca na contemporaneidade é a relação consu-
merista constituída para além das fronteiras nacionais, seja a efetivada
de forma presencial em outros países, em face do turismo de negócios
ou de lazer, seja aquela realizada pelo acesso da internet, vez que não
existe distância geográfica para essa ferramenta tecnológica.
Tal expansão do consumo provocou um desafio a respeito da
definição de a qual foro pertence a competência do julgamento das
demandas que envolvam as transações de direito do consumidor quando
forem concebidas no cenário internacional. Em grande parte das relações
consumeristas firmadas, o contrato é elaborado unilateralmente pelo
fornecedor, caracterizado como de adesão, contemplando a cláusula de
eleição de foro, estipulada em consonância com os interesses de quem
produziu o instrumento jurídico.
David Carvalho discorre:

A cláusula de eleição de foro, também conhecida por pactum de foro


prorrogando, é firmada entre as partes envolvidas em uma relação ju-
rídica negocial e tem por objetivo a escolha de uma jurisdição, seja ela
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
335

nacional ou estrangeira, para resolver controvérsias decorrentes de litígios


ou que possam surgir de uma relação jurídica, em especial a contratual.
[...] A necessidade da inclusão de uma cláusula de eleição de foro de-
corre da possibilidade de diversos Estados ampliarem a extensão de sua
jurisdição e deterem, simultaneamente, a competência para processar e
julgar uma relação jurídica com elementos de estraneidade.1

A escolha do foro para dirimir os conflitos surgidos nos negócios


instituídos é uma prática necessária e usual no ambiente contratual.
Contudo, quando se refere ao universo do direito do consumidor
na ordem jurídica pátria, existem regras específicas que devem ser
observadas para que não ocorra afrontamento à regulação especial,
representada pela Lei nº 8.078/1990.
Relativamente a esse aspecto, o Código de Processo Civil de 20152
inovou ao estipular: “Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária
brasileira processar e julgar as ações: [...] II – decorrentes de relações
de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no
Brasil” (BRASIL, 2015). O dispositivo em comento encontra-se em
consonância com os preceitos de amparo encampados pelo Código de
Defesa do Consumidor em face da condição jurídica de vulnerabilidade,
conforme se verifica pelo art. 101 do referido diploma legal: “Na ação
de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem
prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas
as seguintes normas: I – a ação pode ser proposta no domicílio do
autor” (BRASIL, 1990).3
Percebe-se pela análise dos preceitos acima, extraídos do CPC
e do CDC, respectivamente, que o foro competente para julgar as
demandas oriundas das relações consumeristas será determinado em
face do domicílio do consumidor brasileiro, mesmo quando a transação
negocial tenha sido concebida em solo estrangeiro ou, ainda, em ambiente
virtual que possua seu domínio registrado em outro país.

1
CARVALHO, David França Ribeiro de. A cláusula de eleição de foro estrangeiro nos
contratos internacionais: avanço no CPC de 2015. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA,
Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no
direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 605-605.
2
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
3
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor
e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.
336
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

5.2.1 O foro do domicílio/residência do consumidor:


um mecanismo de tutela da parte mais vulnerável
A designação pela jurisdição nacional estabelecida pelas norma-
tivas supramencionadas, NCPC e CDC, quando presente o requisito da
pertinência do domicílio ou residência, alinha-se com o que prescreve
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Título II
“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, ao estipular no inciso XXXII
do artigo 5º que: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor” (BRASIL, 1988).4
A intervenção do Estado nas transações comerciais promovidas
entre consumidor e fornecedor decorre da sua função social, mormente
em face da presunção de que o primeiro é pessoa frágil no negócio
constituído, conforme preconizado pelo CDC. Assim, o princípio da
autonomia da vontade, inerente ao direito contratual, sofre mitigação
pela referida regulamentação especial, em consonância com o princípio
da vulnerabilidade, considerado um dos basilares da Lei nº 8.078/1990.
Para Claudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno
Miragem:

A vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um estado inerente de


risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificados
no mercado (assim Ripert, Le regele morale, p. 153), é uma situação
permanente ou provisória, individual ou coletiva (Fiechter-Boulvard,
Rapport, p. 324), que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequi-
librando a relação.5

Maria Fernanda Soares Macedo aduz: “Essa vulnerabilidade


marcou a posição dos consumidores frente ao novo quadro social.
Significa dizer que o consumidor possuiu e ainda possui fragilidade
frente à estrutura das empresas”. 6
Acerca da adoção de medidas protetivas, cumpre ressaltar que
uma das formas do poder público assegurar a tutela, estabelecida pelo
legislador constituinte, é viabilizar ao consumidor a facilitação do acesso
à justiça, o que fora acautelado pela definição da competência do foro
em face da atração do seu domicílio ou residência.

4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015.
5
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários
ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 120.
6
MACEDO, Maria Fernanda Soares. A importância da escolha do consumidor na proteção
ambiental. Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 7. n. 13-14, jan./dez. 2010, p. 132.
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
337

Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça,7


vez que reconhece a importância do foro em favor do domicílio do
consumidor como meio de proporcionar a este o exercício do seu direito,
em observância aos preceitos constitucional e infraconstitucional, como
demonstra a decisão proferida no agravo de instrumento, emitida no
Conflito de Competência nº 127626-DF, abaixo colacionado:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DIREITO DO CON-


SUMIDOR. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇÃO REVISIONAL DE
CONTRATO DE FINANCIAMENTO AUTOMOTIVO. COMPETÊNCIA
ABSOLUTA. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR.
– Em se tratando de relação de consumo, a competência é absoluta, razão
pela qual pode ser conhecida até mesmo de ofício e deve ser fixada no
domicílio do consumidor.
– Agravo não provido.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
A decisão agravada foi assim fundamentada:
A 2ª Seção do STJ, ao analisar caso semelhante ao dos autos, manifestou
o entendimento de que a possibilidade de escolha do foro, do domicí-
lio do autor ou do réu, é uma faculdade pertencente somente àquela
pessoa física ou jurídica destinatária final do bem ou serviço na relação
de consumo. Nesse contexto, é inadmissível que o advogado ajuize a
ação em foro diverso, que não corresponde ao do autor, nem ao do réu.
[...]

A jurisprudência do STJ já está pacificada no sentido de reconhecer


que, em se tratando de relação de consumo, a competência é absoluta,
razão pela qual pode ser conhecida até mesmo de ofício e deve ser
fixada no domicílio do consumidor.
Tal posicionamento também é adotado pelo Tribunal de Justiça
de Minas Gerais,8 conforme pode ser vislumbrado pelo julgado recente
referente à Apelação Cível nº 1.0024.14.244549-3/001, que decidiu pela
competência territorial absoluta, tendo como um dos fundamentos o
princípio da facilitação da defesa do consumidor:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA


DE DÉBITO COM PEDIDO DE DANOS MORAIS. RELAÇÃO DE
CONSUMO. COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA. PRINCÍPIO

7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ>.
Acesso em: 20 abr. 2017.
8
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/
jurisprudencia/pesquisa>. Acesso em: 20 abr. 2017.
338
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

DA FACILITAÇÃO DA DEFESA DO CONSUMIDOR I. O Superior


Tribunal de Justiça já reconheceu que o critério determinativo da com-
petência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem públi-
ca, caracterizando-se como regra de competência absoluta, afastando,
dessa forma, a aplicação da súmula 33 do STJ. II. O CDC não confere
o direito ao consumidor de escolher aleatoriamente o local onde irá
propor sua ação, independentemente de conexão com seu domicílio ou
de cláusula de eleição de foro. III. No caso das instituições financeiras,
permitir a fixação ou atração da competência em razão da existência de
filial da ré no local seria o mesmo que permitir a escolha aleatória do
foro a demandar pelo consumidor, na medida em que essas instituições
possuem unidades em inúmeras comarcas, o que violaria o princípio
do juiz natural. IV. Inadmissível a eleição de foro para ajuizamento da
ação com base no domicilio dos procuradores que atuam no interesse
da parte por retratar violação ao principio do juiz natural, consagrado
no artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal.

Pelas decisões apresentadas acima, emanadas pelo STJ e TJMG,


percebe-se que o novo CPC encampou o preceito da igualdade material
no tocante às relações consumeristas em face da necessidade de guarida
da parte mais fraca na relação negocial, conforme determina o diploma
constitucional pátrio, vez que essa normativa estabelece que o poder
público deve proteger o consumidor. Nas palavras de Nelson Nery
Júnior:9
Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais,
e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades
[...] o que o princípio constitucional quer significar é a proteção da
igualdade substancial, e não a isonomia meramente formal.

A facilitação do ingresso no poder judiciário como uma das


formas de resguardar o exercício do direito do consumidor, propor-
cionada pelo novo Código de Processo Civil, segundo dispõe o inciso
II, do artigo 22, encontra-se em harmonia com o Regulamento da União
Europeia nº 1.215, de 12 de dezembro de 2012,10 do Parlamento Europeu
e do Conselho. O documento refere-se à competência judiciária, ao
reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Tal regramento intenciona facilitar mais a livre circulação de decisões
e continuar a reforçar o acesso à justiça.

9
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995, p. 40-41.
10
EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em:
<https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso em:
20 maio 2017.
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
339

Quanto às questões que envolvam a temática consumerista,


estabelece o artigo 18 do referido regulamento europeu: “No respei-
tante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente
proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais
favoráveis aos seus interesses do que a regra geral”.11
Viabilizar a entrada nos órgãos do poder judiciário, com vistas a
permitir que o indivíduo efetive as suas garantias legais, é uma tendência
contemporânea nos países que adotam o regime democrático de governo,
conforme se observa nas mais recentes legislações brasileiras, surgidas
após a promulgação da atual Constituição da República Federativa.
É válido destacar ainda que, além de favorecer o efetivo acesso
à justiça, a norma processual que regulamentou a jurisdição nacional,
desde que envolva consumidor residente ou domiciliado no país,
também possui uma importante funcionalidade para o amparo daquele
que é mais vulnerável: ser instrumento de coibição da prática abusiva
de eleição de foro, realizada unilateralmente pelo fornecedor, por força
de disposição contemplada em contrato de adesão internacional.

5.2.2 A jurisdição do domicílio/residência do


consumidor: um instrumento processual de
combate à abusividade
Com o crescimento vertiginoso do mercado consumidor, o contrato
paritário restou impraticável em várias atividades. Consequentemente,
a forma contratual de adesão tornou-se a modalidade mais adotada
em tal seara, pois propicia a contratação em massa em decorrência da
agilidade e facilidade, uma vez que o instrumento jurídico já se encontra
previamente elaborado por uma das partes, qual seja, o fornecedor.
O legislador infraconstitucional cuidou de prescrever o conceito:
“Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido
aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente
pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa
discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.12

11
EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em:
<https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso em:
20 maio 2017.
12
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do
consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.
340
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Paulo Khouri13 entende que a massificação das relações consume-


ristas gera uma singularidade para as contratações, vez que tem uma
característica própria: “[...] a relação contratual estabelecida através de
um termo-padrão tem uma adesão não de 100, 200 ou 1.000 consumi-
dores de uma única vez, mas de dezenas de milhares de aderentes que
periodicamente aderem à contratação contínua”.
Ocorre que, além de ser caracterizado pela agilidade e praticidade,
o contrato de adesão pode contemplar cláusulas abusivas em desfavor
do consumidor. Isto porque a elaboração das disposições contratuais
é realizada pela parte mais forte do pacto comercial ‒ o fornecedor ‒,
o que inviabiliza a discussão das condições estabelecidas, cabendo ao
indivíduo contratante, mais vulnerável, apenas a decisão de aderir ou
não ao negócio.
Dentre as várias abusividades que podem ser impostas no instru-
mento jurídico de massa, está a condição que determina o foro, eleito
em conformidade com os interesses do fornecedor, que será a jurisdição
apta para julgar os eventuais conflitos surgidos entre as partes. Sob a
ótica das relações constituídas em solo estrangeiro ou pela internet, a
estipulação unilateral do juízo competente configura prática abusiva,
que compromete a eficácia dos direitos do consumidor.
Caso tal cláusula prevaleça, apontam-se alguns obstáculos que
podem ser enfrentados pela pessoa consumidora: a dificuldade para ter
conhecimento do direito alienígena, o custo com o deslocamento para
o foro eleito, bem como com as traduções dos documentos necessários
ao processo, entre outros, o que resulta na violação do direito ao pleno
e livre acesso à justiça.
Para represar a prática abusiva, como o comprometimento do
exercício de direito fundamental de ingresso no poder judiciário, quando
identificar-se necessário, a Lei nº 8.078/1990 criou mecanismos de
proteção, com vistas a vedar e coibir práticas que coloquem em desvan-
tagem exagerada o consumidor. A reprimenda dos preceitos arbitrários
e prejudiciais fora adotada pelo legislador infraconstitucional com o
objetivo de gerar relações consumeristas harmônicas e equilibradas,
alicerçadas na transparência, respeito à dignidade, saúde e segurança
das partes, princípios da Política Nacional das Relações de Consumo.14

13
KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade
civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 104.
14
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor
e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.
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REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
341

Uma das disposições protetivas estabelecidas pelo CDC fora


prevista na Seção II, que regulamenta as cláusulas abusivas. O artigo
51 desse diploma legal possui um rol extensivo, meramente exempli-
ficativo, das condições contratuais que podem ser declaradas nulas de
pleno direito.
No que concerne à estipulação unilateral do foro, definida em
favor do fornecedor, poderá tal cláusula ser decretada inválida com
fundamento no CDC:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais
relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que colo-
quem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis
com a boa-fé ou a eqüidade;
§1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza
do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, consideran-
do-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso.
§2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o con-
trato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração,
decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.15

A legislação visa coibir abusos praticados contra o consumidor.


Dessa forma, uma condição contratual que tenha determinado a juris-
dição estrangeira como a competente para dirimir os conflitos oriundos
de um negócio de consumo poderá ser declarada nula por prejudicar a
parte mais fraca da avença, conforme motivos já expostos.
Merece destacar que o legislador pátrio considerou o Código
de Defesa do Consumidor como uma normativa de ordem pública
e de interesse social. E uma das prerrogativas adotadas pela referida
legislação é a possibilidade de proferir o magistrado decisão de ofício,
como previsto no artigo 51 supramencionado, pertinente às cláusulas
eivadas de abusividades. É o que destaca Paulo Khouri:

Indubitável que o CDC, como uma das revelações do movimento do


dirigismo contratual, só poderia atingir o seu objetivo de proteger o

15
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor
e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.
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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

vulnerável da relação contratual, se estabelece leis cogentes, de ordem


pública, que reduzissem o campo da autonomia da vontade na cele-
bração dos contratos.

O princípio básico do direito privado revela-se na máxima: tudo o


que não é proibido é permitido. A primeira parte do art. 122 do novo CC
deixa claro este princípio: “São lícitas em geral todas as condições que
a lei não vedar expressamente. E dentro do direito privado, o dirigismo
contratual, para atuar de forma eficaz, precisa estabelecer vedações,
nulidades, leis de ordem pública, que ocupem o espaço antes reservado
à autonomia da vontade, a fim de evitar o desequilíbrio contratual.16
Nessa perspectiva, o NCPC brasileiro estabeleceu ao juiz uma
condução processual mais ativa no sentido de garantir a efetividade
dos direitos e interesses discutidos nos litígios.

5.3 A atuação dos magistrados: o dever de cooperação


na resolução dos conflitos
Por se tratar de uma norma de ordem pública, o direito do
consumidor necessita de algumas ferramentas para executar a tutela
da parte mais fragilizada da relação comercial. Um dos instrumentos
estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor é a atuação de
ofício dos julgadores, como a prevista no artigo 51. Cristiano Schmitt
entende que a previsão constante na legislação consumerista viabiliza ao
juiz sancionar as disposições contratuais que identifique como abusivas
“[...] mediante a decretação de sua nulidade, o que pode ocorrer ex officio
pelo juiz, independentemente de ação específica. Isso não significa, no
entanto, a dispensa de uma dilação probatória, voltada para a análise
da efetiva abusividade da cláusula reputada abusiva”.17
Tal forma de condução do processo pelo magistrado também
fora preconizada pela nova legislação processual. O ato de proferir uma
decisão de ofício decorre do dever de colaborar com a tramitação da
demanda, vez que o NCPC determinou, a todos os sujeitos partícipes
do litígio, o dever da cooperação como um dos seus princípios: “Art.

16
KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade
civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 108.
17
SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 2. ed. rev. e atual.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 148.
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
343

6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se


obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.18
Percebe-se que não só o magistrado deve cooperar, mas também
as partes litigantes. Contudo, a autoridade estatal, representada pela
figura do juiz, possui prerrogativas específicas e próprias para que a
relação jurídica se desenvolva em observância aos preceitos e garantias
fundamentais. No tocante às lides de direito do consumidor, os vetores
constitucionais são incontroversos, já que a CRF/88,19 no capítulo que
trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, determina que
cabe ao Estado a promoção da defesa do consumidor, o que robustece
o dever de colaboração do julgador, como na operacionalização das
decisões de ofício.
O princípio da cooperação positivado pelo novo Código de
Processo Civil torna-se uma importante ferramenta para a tutela consu-
merista implementar a harmonização entre as partes, em atendimento
ao preceito da função social do contrato. A respeito discorre Humberto
Theodoro Júnior:

A função social continua sendo desempenhada pelo contrato de con-


sumo nos reflexos que produz no meio social, ou seja, naquilo que
ultrapassa o relativismo do relacionamento entre credor e devedor e
se projeta no âmbito de toda a comunidade. A lei de consumo protege,
é verdade, o lado ético das relações entre fornecedor e consumidor.
Mas não é propriamente nesse terreno, que a verdadeira função social
se desenvolve, mas no expurgo do mercado de praxes inconvenientes
que podem inviabilizar o desenvolvimento harmonioso e profícuo,
tornando-o instrumento de dominação e prepotência. Protege-se, enfim,
o consumidor para que a economia de mercado seja a mais sadia e mais
desenvolvimentista, dentro do ideal econômico da livre concorrência, e
do ideal social do desenvolvimento global da comunidade.20

O papel do juiz na condução do processo é de suma relevância


para que se impere a função social do contrato. É nesse contexto que
se insere a atuação de ofício do magistrado, o que se coaduna com o
princípio da duração razoável do processo, conforme prescreve a norma

18
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
19
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.>. Acesso em: 30 mar. 2015.
20
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2008, p. 84-85.
344
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

processual em análise: “Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo


razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.21
A figura do julgador passivo e integralmente inerte não mais se
sustenta no direito contemporâneo. Ao contrário, espera-se que o juiz
seja proativo e participe de forma efetiva no comando das demandas
processuais, com vistas a concretizar a tutela estatal, estabelecida nos
diplomas legais.

5.3.1 Poder diretivo do juiz


Com o advento do novo regramento das normas processuais
brasileiras, o juiz fora contemplado com um maior poder de direção
no sentido de propiciar uma demanda mais colaborativa e dinâmica.
É o que se infere do Título IV, Capítulo I:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,


incumbindo-lhe:
I – assegurar às partes igualdade de tratamento;
II – velar pela duração razoável do processo;
III – prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça
e indeferir postulações meramente protelatórias;
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais
ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem
judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
V – promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente
com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;
VI – dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos
meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a
conferir maior efetividade à tutela do direito;
VII – exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força
policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais;
VIII – determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das
partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não
incidirá a pena de confesso;
IX – determinar o suprimento de pressupostos processuais e o sanea-
mento de outros vícios processuais;
X – quando se deparar com diversas demandas individuais repetiti-
vas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do
possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347,

21
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
345

de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990,


para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.
Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode
ser determinada antes de encerrado o prazo regular.22

Percebe-se pela análise dos dispositivos acima que o poder


de gestão da autoridade estatal, condutora do processo judicial, foi
ampliado. Nessa perspectiva, encontram-se as tratativas positivadas
no Capítulo IX, que tratam das “Providências Preliminares e do
Saneamento”:

Art. 352. Verificando a existência de irregularidades ou de vícios sanáveis,


o juiz determinará sua correção em prazo nunca superior a 30 (trinta) dias.
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar
as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as dili-
gências inúteis ou meramente protelatórias.
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
[...]
§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa
relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir
o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da
prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de
modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em
que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que
lhe foi atribuído.23

Para efeitos da aplicação do direito do consumidor, merece


destaque o supramencionado §1º do artigo 373, uma vez que permite
ao juiz a gestão material do processo. Tal norma tem uma importância
singular para os conflitos oriundos das relações consumeristas em face
da peculiaridade de ser o consumidor a parte mais vulnerável, o que
importa muitas vezes na dificuldade de produzir o conjunto probatório,
seja pela deficiência técnica, financeira ou jurídica.
Cita-se, ainda, como exemplo da atuação do juiz as decisões de
ofício, que interessam particularmente ao direito do consumidor, como
a estabelecida no artigo 370, acima transcrito, relativamente ao ônus

22
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
23
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
346
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

probatório. Assim como prevê o §2º do artigo 464: “Art. 464. [...] §2º De
ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à
perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando
o ponto controvertido for de menor complexidade”.24
Ao identificar a situação de fragilidade processual no tocante à
produção de provas, poderá o magistrado exercer seu poder diretivo,
utilizando-se da regra descrita, o que conferirá uma demanda mais
dinâmica e justa. Esse dinamismo é exequível especialmente nas ações
que tramitam nos juizados especiais cíveis, vez que pedidos de prova
pericial, recorrentemente pleiteados pela parte fornecedora como
medida protelatória, poderão ser substituídos pelo juiz quando não
forem necessários, conforme permitido pelo artigo 464 do NCPC.
Essa prerrogativa da atuação por ofício também está prevista
quando restar detectada cláusula abusiva de eleição de foro, comum
nos contratos de adesão, unilateralmente elaborados pelos fornece-
dores: “Art. 63. [...] §3º Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se
abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará
a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu”.25
Cumpre frisar que a autoridade estatal que dirige o processo
deverá respeitar o princípio constitucional do contraditório, de acordo
com o que estipula o artigo 10 da referida legislação: “O juiz não pode
decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito
do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.26
Além das normas evidenciadas, é salutar ressaltar que os institutos
da mediação e conciliação receberam destaque do legislador infracons-
titucional. Para tanto, sua aplicação prática implica no imprescindível
papel exercido pelo juiz, quando da condução de tais instrumentos.
Prescreve o Código de Processo Civil:

Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o


caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de

24
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
25
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
26
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
347

conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias,


devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
[...] §1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente
na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto
neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária.
§2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à me-
diação, não podendo exceder a 2 (dois) meses da data de realização da
primeira sessão, desde que necessárias à composição das partes.
[...]
§11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada
por sentença.
§12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será orga-
nizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos
entre o início de uma e o início da seguinte.27

Dulce Maria Nascimento elucida:

De forma sumária, podemos concluir que a mediação judicial e extra-


judicial no Brasil passou a dispor de uma regulamentação, contendo
regras, princípios, fases e etapas comuns, bem como especificidades
de procedimento diferenciadas de acordo com a atuação judicial ou
extrajudicial.
A mediação corresponde a um processo consensual de resolução de
conflitos, confidencial e voluntário, no qual um terceiro imparcial e
independente facilita a negociação entre duas ou mais pessoas e as au-
xilia a encontrarem e construírem um acordo mutuamente satisfatório.28

Hodiernamente, as ferramentas que propiciam a autocompo-


sição têm auferido notoriedade em diversos ordenamentos jurídicos,
mormente em face da importância para a resolução dos conflitos,
mesmo que tais técnicas sejam executadas no poder judiciário, pois o
que se vislumbra é o alcance da paz social, e essa se ascende através de
mecanismos que proporcionem a celeridade e a equidade. Contudo, no
Brasil os institutos da mediação e conciliação ainda se encontram na fase
inicial de implementação, o que implica que todos os operadores do
direito identifiquem a pertinência dos seus princípios e a importância
da respectiva adoção.

27
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20
abr. 2017.
28
NASCIMENTO, Dulce Maria Marins. Mediação Empresarial. In: PERRUCI, Felipe Falcone;
MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC
no direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 393.
348
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Diante de tais preceitos, preconizados na nova normativa


processual, espera-se que o magistrado coopere de forma eficaz no
processo, mediante uma atuação participativa, sem viés autoritário,
utilizando-se dos instrumentos estabelecidos pela regulamentação e
com respeito às garantias e direitos processuais das partes.

5.4 Considerações finais


Por todo o exposto, resta evidente que o novo Código de Processo
Civil trouxe implicações para as normativas de direito do consumidor.
Em que pese se tratarem de diplomas legais autônomos, as regras
prescritas pela Lei nº 13.105/2015 propiciam uma maior efetividade da
tutela protetiva, encampada pela Lei nº 8.078/1990, vez que se coaduna
com o interesse social dessa regulamentação.
Não se pode olvidar que o momento da promulgação do NCPC
coincide com as transformações da sociedade de consumo, caracte-
rizada pelo dinamismo e aumento das relações negociais, praticadas,
inclusive, além das fronteiras nacionais, o que gera a majoração do
volume de conflitos. Tais aspectos exigem um sistema processual
mais condizente com a evolução social, mormente quanto à maior
eficiência das normas que estabelecem as diretrizes de condução das
demandas judiciais.
Na seara do direito do consumidor, as novas normas da legis-
lação processual civil alcançaram uma importância diferenciada,
pois proporcionam que o direito material contemplado pelo CDC se
concretize, evitando que práticas abusivas se convalidem, como as
cláusulas de eleição de foro, unilateralmente criadas pelos fornecedores
nos contratos de adesão.
Além da definição da jurisdição em favor da parte mais vulne-
rável, o NCPC introduziu ferramentas que podem resultar numa
maior efetividade das decisões judiciais ao determinar o princípio da
cooperação, que deve ser adotado por todos os sujeitos do processo,
principalmente pelo juiz, que teve o seu poder diretivo expressivamente
ampliado, bem como ao proferir as decisões de ofício e na instauração
de técnicas de autocomposição.
Certamente, são inegáveis os impactos trazidos pela novel legis-
lação processual civil brasileira sobre a regulamentação consumerista.
Resta a expectativa de que, com a evolução do tempo, o sistema que
regulamenta a temática das regras processuais vá se remodelando em
face das contribuições doutrinárias e jurisprudenciais que surgirão diante
ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA
REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...
349

da sua aplicabilidade prática, com vistas a atender uma das funções


mais relevantes do direito: pacificar e estabilizar as relações sociais.

Referências
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.
Acesso em: 30 mar. 2015.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consu-
midor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível
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CARVALHO, David França Ribeiro de. A cláusula de eleição de foro estrangeiro nos
contratos internacionais: avanço no CPC de 2015. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA,
Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no
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EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em:
<https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso
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KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabi-
lidade civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
MACEDO, Maria Fernanda Soares. A importância da escolha do consumidor na proteção
ambiental. Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 7, n. 13-14, jan./dez. 2010, p. 125-139.
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno.
Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NASCIMENTO, Dulce Maria Marins. Mediação Empresarial. In: PERRUCI, Felipe Falcone;
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NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo:
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008.
SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 2. ed. rev. e atual.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
350
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VIEIRA, Gabriella de Castro; REZENDE, Elcio Nacur. Reflexos da nova


legislação processual civil no direito do consumidor: a ampliação dos
mecanismos de amparo. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael
César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de
Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum,
2018. p. 333-350. ISBN 978-85-450-0456-1.
PARTE III

O DIREITO EMPRESARIAL E O
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
CAPÍTULO 1

OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA
TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA E AS
PERSPECTIVAS DECORRENTES DA
ENTRADA EM VIGOR DO CPC/2015

Fernando Solá Soares


Giovani Ribeiro Rodrigues Alves
Marcia Carla Pereira Ribeiro

1.1 Introdução
O presente capítulo tem como objetivo analisar as controvérsias
na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e também
os entraves processuais que decorrem de sua aplicação prática.
O debate da matéria ainda se mostra necessário em razão da
constante relativização do princípio da autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas, que torna a atividade empresarial, na prática, mais
arriscada e menos atrativa.
Além disso, recentemente foram introduzidas novas regras para
a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica a partir da
entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, de modo que
se buscará levantar diferentes perspectivas de análise e problemas que
o novo regramento trará para o bom entendimento da questão ora em
debate.
Primeiramente, serão abordadas questões gerais sobre a perso-
nalidade jurídica e o princípio da autonomia patrimonial. Ato contínuo,
será analisada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica,
abordando-se algumas de suas aplicações na legislação brasileira e
354
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

enfrentando-se um comparativo entre as determinações normativas e


a teoria original.
Por fim, serão apontados alguns entraves processuais na aplicação
da desconsideração, principalmente no que diz respeito aos princípios
do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, apresentando-se
o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da questão e as
perspectivas trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015.

1.2 A personalidade jurídica e o princípio da autonomia


patrimonial
É conceito basilar ao direito societário que a pessoa jurídica e
seus sócios não se confundem, uma vez que o ordenamento jurídico
pátrio atribui à pessoa jurídica personalidade própria.1 Tal entendi-
mento decorre da previsão dos arts. 45, 985 e 1.150, todos do Código
Civil de 2002.
A partir do registro do ato constitutivo da sociedade no órgão
competente, a pessoa jurídica passa a ser sujeito de direitos, pode
contrair e exigir obrigações, e o seu patrimônio deve ser considerado
de forma dissociada ao patrimônio dos sócios que o compõem. Trata-se
do princípio da autonomia patrimonial, que tem como objetivo dar
maior segurança para a prática da atividade econômica2 no resguardo
patrimonial da sociedade em relação às dividas dos sócios e destes em
relação à sociedade.
A exploração da atividade econômica por intermédio de socie-
dades empresárias, por outro lado, é uma manifestação do direito de
propriedade. Isso quer dizer que as pessoas físicas ou jurídicas que
pretendem explorar uma atividade econômica de maior complexidade
e, por conta disso, precisam organizar os bens de produção têm a
possibilidade de serem titulares de quotas ou ações de uma sociedade
empresária.
A personificação societária possibilita que os interesses indivi-
duais dos sócios sejam buscados a partir de uma estrutura autônoma
e normalmente associada à limitação de responsabilidade, ou seja, tal
situação concede aos sócios as garantias para o exercício da atividade

1
GONÇALVES, Oksandro. A Relativização da Responsabilidade Limitada dos Sócios. Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2011, p. 28.
2
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard
doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 13.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
355

econômica de forma segura, principalmente por conta da separação


patrimonial e pela limitação da responsabilidade, características das
organizações societárias mais usuais no Brasil, as sociedades limitada
e anônima.
O princípio da autonomia patrimonial é fundamental para que
os empresários possam desempenhar a atividade econômica com
segurança e previsibilidade das possíveis perdas associadas aos riscos
inerentes à atividade, já que os prejuízos serão tidos como limitados ao
investimento que é feito para o desempenho da atividade econômica,
investimento consubstanciado na titularidade de participação nas ações
ou nas quotas em que é dividido o capital social.
Marcia Carla Pereira Ribeiro explica que a limitação de responsa-
bilidade do sócio existe para que “se estimule a prática de investimentos
na atividade produtiva e para que esta não seja preterida por outras
formas de investimento que tragam menores riscos (...), mas que não
fomentam de forma direta a atividade produtiva”.3 Não fosse pela
limitação de responsabilidade, os custos de monitoramento do investidor,
em relação às atividades da empresa na qual não exerce diretamente a
administração, superariam em muito a potencialidade de lucratividade
ou, ainda, ficaria inviabilizada qualquer opção pela diversificação dos
investimentos, já que estaria associada a novos custos de monitoramento
por força do porte do risco.
Diante disso, é comum aos diversos ordenamentos jurídicos
dos Estados contemporâneos identificar regras gerais pelas quais não
se pode responsabilizar os sócios por dívidas de uma sociedade (ou o
instituidor da EIRELI pelas dívidas da pessoa jurídica), eis que a pessoa
jurídica possui patrimônio próprio para fazer frente às obrigações por
ela contraídas.
Como visto, ao mesmo tempo em que a distinção patrimonial
pode ser considerada uma exceção ao princípio geral da responsabili-
zação pessoal pelas dívidas contraídas, é também um mecanismo de
estímulo ao exercício da atividade produtiva e fator primordial para que
os agentes econômicos assumam o risco inerente à atividade econômica.
O sistema descrito é compatível com a vocação privada ao exercício da
atividade econômica, assim como essencial para que, no exercício da
empresa, se possam oferecer ao mercado os bens e produtos de que

3
RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A responsabilidade limitada nas sociedades empresárias.
In: RIBEIRO, Marcia Carla; DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinicius (Coords.). Análise
econômica do direito: justiça e desenvolvimento. Curitiba: CRV, 2016.
356
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

necessita, possibilitando ainda a circulação de riqueza e, em última


análise, fomentando o desenvolvimento econômico e social.

1.3 A teoria da desconsideração da personalidade


jurídica: distorções na sua aplicação
Todavia, existem situações nas quais os sócios se utilizam de seu
direito de constituir pessoas jurídicas para praticar atos fraudulentos
ou dissimulados, distorcendo desta forma a função econômica que
justifica a própria aceitação do regime de personificação e sua principal
consequência: a limitação de responsabilidade do sócio/investidor.
Diante da potencialidade de mau uso do tratamento especial
trazido pelo ordenamento jurídico, a doutrina adiantou-se às leis na
concepção de uma teoria a justificar a desconsideração da persona-
lidade jurídica, a disregard doctrine ou piercing the veil. Desconsiderar
a personalidade jurídica consiste em ignorar, em situações pontuais
e específicas, a separação dos patrimônios dos sócios e da sociedade,
podendo-se exigir o pagamento de débitos por intermédio do patrimônio
dos sócios que a compõem4 ou de seus administradores.
O primeiro autor normalmente associado à sistematização da
proposta expressa pela teoria da desconsideração da personalidade
jurídica foi Rolf Serick, ao defendê-la em sua tese de doutorado na
Universidade de Tubigen, em 1953. No Brasil, o primeiro doutrinador
a discorrer de forma importante sobre o tema, precursor à importação
da teoria então já bem sistematizada no exterior, foi Rubens Requião.5
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica consiste
na verificação concreta, por intermédio de provas, de que há abuso na
forma de utilização da pessoa jurídica, com a prática de atos fraudu-
lentos. Sobre isso, importante citar as palavras de Requião:

Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como conces-


são do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se
reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se
o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade
jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo,

4
JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: RT, 1987, p.
55-57. No mesmo sentido, a desconsideração inversa da personalidade jurídica permite
que a pessoa jurídica seja responsabilizada por dívida dos sócios, em caso fraude, abuso
ou desvio de finalidade.
5
GONÇALVES, Oksandro. A Relativização da Responsabilidade Limitada dos Sócios. Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2011, p. 175.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
357

permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos


ou condenar a fraude através do seu uso. 6

A disregard doctrine volta-se à coibição da prática de atos fraudu-


lentos, mitigando, em situações específicas, o princípio da autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas. A desconsideração da personalidade
jurídica não visa acabar com a autonomia do patrimônio das pessoas
jurídicas para todas as relações, mas, sim, preservar o sujeito de direito
constituído para que as sociedades não sejam utilizadas de forma
desvirtuada.
Diante da possibilidade de aplicação da referida teoria, surgem
questionamentos acerca do embasamento legal e dos requisitos para
sua aplicação.
Primeiramente, deve-se ressaltar que a disregard doctrine, na
condição de teoria, não necessita de prescrição legal específica para
ser aplicada. Os efeitos pretendidos pela criação teórica pautam-se
em situação de fraude e abuso de direito, que são institutos jurídicos
presentes em qualquer ordenamento jurídico, pelo fato de estarem
associados a desvios de comportamentos indesejáveis para a coletividade,
de forma geral, e para a segurança da relação negocial, relativamente
à atividade empresarial.
Nada obstante, a teoria de desconsideração da personalidade
jurídica inspirou a ordem jurídica formal em vários diplomas legais
brasileiros, com ênfase, em razão de sua extensão, no art. 28 da Lei
Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do
Consumidor – CDC):

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade


quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso
de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos
ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando
houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica provocados por má administração.
(...) §5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre
que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento
de prejuízos causados aos consumidores.

Analisando-se a prescrição do artigo, pode-se observar que houve


acentuado desvirtuamento da teoria original da desconsideração da

6
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard
doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 1969, n. 410, p. 15.
358
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

personalidade jurídica ao contemplar a aplicação de seus efeitos de


afastamento da delimitação patrimonial, nas lides que versem sobre
relação de consumo, quando houver: (i) abuso de direito; (ii) excesso de
poder; (iii) infração da lei; (iv) fato ou ato ilícito ou violação de estatutos
ou contrato social; (v) falência ou estado de insolvência, encerramento
ou inatividade de pessoa jurídica provocados por má administração;
e (vi) sempre que a personalidade jurídica for obstáculo para ressarci-
mento de prejuízos causados aos consumidores.
Especialmente a sexta hipótese acima amplia o âmbito de
incidência da desconsideração da personalidade jurídica ao admitir que,
em caso de qualquer dívida oriunda de relação consumerista, em que a
pessoa jurídica não tenha condições de arcar com o débito, os sócios e
administradores poderão ser atingidos em seus patrimônios pessoais.
Prescrições legais dessa natureza permitem que a desconside-
ração da personalidade jurídica deixe de ser aplicada apenas quando
há abuso de forma ou fraude na utilização das sociedades, cerne da
teoria original. Com base no referido dispositivo legal, o entendimento
consolidado do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a mera
dificuldade no recebimento de indenizações por parte de consumidores
já enseja a desconsideração da personalidade:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE


INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO – INSCRIÇÃO INDEVIDA – DANO
MORAL – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – INSOLVÊNCIA DA
PESSOA JURÍDICA – DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA –
ART. 28, §5º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR –
POSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ – DECISÃO MONOCRÁTICA
QUE DEU PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. INSURGÊNCIA
DA RÉ. 1. É possível a desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade empresária – acolhida em nosso ordenamento jurídico,
excepcionalmente, no Direito do Consumidor – bastando, para tanto, a
mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obriga-
ções, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão
patrimonial, é o suficiente para se “levantar o véu” da personalidade jurídica
da sociedade empresária.
Precedentes do STJ: REsp 737.000/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, DJe 12.9.2011; (Resp 279.273, Rel. Ministro Ari Pargendler,
Rel. p/ acórdão Ministra Nancy Andrighi, 29.3.2004; REsp 1111153/RJ,
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 04.02.2013; REsp 63981/SP, Rel.
Min. Aldir Passarinho Júnior, Rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira, DJe de 20.11.2000. 2. “No contexto das relações de consumo, em
atenção ao art. 28, §5º, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica
podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
359

doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos


sofridos em face da insolvência da sociedade empresária” (REsp 737.000/MG,
Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 12.9.2011).
3. Agravo regimental desprovido.7 (Destaque nosso)

A despeito de reconhecer as particularidades do microssistema


incidente sobre as relações de consumo, bem como de ser o entendi-
mento consolidado da jurisprudência, não se pode ter como adequada,
do ponto de vista científico, a ampliação demasiada da desconsideração
da personalidade jurídica, uma vez que o CDC criou hipóteses que
não estão associadas a qualquer fraude ou abuso de forma jurídica,
prejudicando demasiadamente a segurança das relações jurídicas e
dos investimentos feitos pelos empresários nas atividades econômicas.
Acredita-se que o adequado seria interpretar o §5º do art. 28 do
CDC, de forma alinhada com a teoria original da desconsideração, no
sentido de permitir o comprometimento do patrimônio dos sócios e
administradores quando houvesse dificuldade para o recebimento de
ressarcimentos por danos ao consumidor nos casos nos quais se verifi-
casse fraude ou abuso de forma, o que, como visto, não é considerado
pela jurisprudência pátria.
Neste sentido, cita-se Fábio Ulhoa Coelho:

No tocante ao §5º do art. 28 do CDC, note-se que uma primeira e rápida


leitura pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial su-
portado pelo consumidor seria suficiente para autorizar a desconsidera-
ção da pessoa jurídica. Essa interpretação meramente literal, no entanto,
não pode prevalecer por três razões. Em primeiro lugar porque contraria
os fundamentos teóricos da desconsideração. Como mencionado, a
disregard doctrine representa um aperfeiçoamento do instituto da pessoa
jurídica, e não a sua negação. Assim, ela só pode ter a sua autonomia
patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito. A
simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração
(...) Em segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o
caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses
autorizadoras do superamento da personalidade jurídica. Em terceiro
lugar, porque essa interpretação equivaleria à eliminação do instituto
da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor e, se tivesse sido
esta a intenção da lei, a norma para operacionaliza-la poderia ser direta,
sem apelo à teoria da desconsideração.8

7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1106072/MS,
da Quarta Turma. Ministro Relator Marco Buzzi. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico
em 18 de setembro de 2014.
8
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53-54.
360
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Consoante acima referido, o CDC trata de hipóteses nas quais


se podem responsabilizar diretamente os sócios ou administradores
de determinada sociedade pela prática de atos ilegais, como nos casos
de abuso de poder e infração da lei, bem como pela prática de ato ou
fato ilícito ou violação ao estatuto ou contrato social, mas igualmente
acrescenta qualquer outra hipótese que tenha interferido na satisfação do
direito do consumidor e também a dissolução por má-gestão, situações
essas que não se confundem com a teoria da desconsideração ora
estudada. Destarte, merece revisão a aplicação no campo consumerista.
A ampliação do âmbito de aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica não ocorre apenas nas relações abrangidas pelo
CDC. O art. 34 da Lei nº 12.529/2011 (Lei Antitruste) e o art. 4º da Lei
nº 9.605/98 (que versa sobre a responsabilidade sobre lesões ao meio
ambiente) também são exemplos de dispositivos legais que ignoram
a doutrina original, relativizando a autonomia patrimonial, mesmo
quando inexistente abuso ou fraude.
Os mencionados dispositivos enquadram-se numa concepção
bastante disseminada da chamada teoria menor da desconsideração da
personalidade, que, de certa forma, não respeita o conceito da teoria
original, que, repita-se, somente autoriza a quebra da autonomia patri-
monial da pessoa jurídica nos casos de abuso e fraude perpetrados.
Com o advento do Código Civil de 2002 (CC/02), também a
codificação civil positivou no ordenamento jurídico brasileiro a teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes da teoria
clássica, chamada de teoria maior, como expresso no art. 50, que dispõe:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.

A disciplina do referido artigo é clara no sentido de que somente


quando houver abuso de personalidade jurídica, por desvio de finalidade
ou confusão patrimonial, é que ela pode ser desconsiderada, atingin-
do-se o patrimônio dos sócios ou administradores da pessoa jurídica.
Tendo em vista o exposto, não se pode falar em desconsideração
da personalidade jurídica, com fundamento no art. 50 do CC/02, caso
haja dissolução irregular da sociedade ou qualquer outra causa que
não se encaixe como abuso de direito, fraude a credores ou confusão
patrimonial, situações estas que sempre devem ser comprovadas.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
361

Nesse sentido é a jurisprudência pátria, dentre outros julgados:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO


CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
INVIABILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 50 DO CC/2002.
APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO
DO DESVIO DE FINALIDADE OU DE CONFUSÃO PATRIMONIAL.
PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Na hipótese em exame,
aplica-se o Enunciado 2 do Plenário do STJ: “Aos recursos interpostos
com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17
de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade
na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.” 2. A Corte de origem
dirimiu a matéria submetida à sua apreciação, manifestando-se
expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide.
Dessa forma, não havendo omissão, contradição ou obscuridade no
aresto recorrido, não se verifica a ofensa ao artigo 535 do Código de
Processo Civil de 1973. 3. No caso, em que se trata de relações jurídicas de
natureza civil-empresarial, o legislador pátrio, no art. 50 do CC de 2002,
adotou a teoria maior da desconsideração, que exige a demonstração da
ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos
previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica,
como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade
(ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da
personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial
(caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação
patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda,
dos haveres de diversas pessoas jurídicas). 4. A mera demonstração
de inexistência de patrimônio da pessoa jurídica ou de dissolução
irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós,
não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes.
5. O Tribunal de origem, com base nos elementos fático-probatórios
constantes nos autos, concluiu que não foi demonstrada a ocorrência
de fraude, abuso de poder ou confusão patrimonial entre a pessoa
jurídica e seu sócio, afastando a desconsideração da personalidade
jurídica requerida nos autos. 6. Desta feita, a convicção formada pelo
Tribunal de origem acerca da ausência dos requisitos necessários
para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa
recorrida decorreu dos elementos existentes nos autos, de forma que
rever o acórdão objurgado, nesse aspecto, importaria necessariamente
o reexame de provas, o que é vedado em sede de recurso especial, nos
termos da Súmula 7 do STJ. 7. Agravo interno não provido.9

9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial
nº 347.476/DF, da Quarta Turma. Ministro Relator Raul Araújo. Publicado no Diário de
Justiça Eletrônico em 17 de maio de 2016.
362
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.


PLEITO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
ALEGAÇÃO DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR E CONFUSÃO PATRIMO-
NIAL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR QUE, POR SI SÓ, NÃO É CAPAZ DE
ENSEJAR A APLICAÇÃO DA TEORIA DA “DISREGARD OF LEGAL
ENTITY”. PRECEDENTES DO STJ. CONFUSÃO PATRIMONIAL NÃO
DEMONSTRADA. RECURSO DESPROVIDO.10

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJU-


DICIAL. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. DEFERIMENTO. MEDIDA EXCEPCIONAL. NECESSIDA-
DE DE DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE ABUSO E GESTÃO
DANOSA DA PESSOA JURÍDICA. CONSTATAÇÕES INOCORREN-
TES. AUSÊNCIA DE PROVAS. DECISÃO REFORMADA. RECURSO
PROVIDO.11

Esses são alguns dos contornos gerais da teoria da desconside-


ração da personalidade jurídica.
Com efeito, existe uma série de requisitos para a aplicação
prática da desconsideração com base no art. 50 do Código Civil, já que
os elementos que a ensejam necessitam de produção de provas, o que
nem sempre está ao alcance do credor. Nada obstante, cabe ao operador
do direito invocar os mecanismos processuais adequados, inclusive a
teoria dinâmica do ônus da prova, visando convencer o julgador acerca
de quem deve ser o responsável por se desincumbir do ônus.
Ao mesmo tempo em que se destaca a importância da preocu-
pação com as provas e eventual dificuldade por parte do credor, não
se pode jamais desrespeitar os princípios constitucionais do devido
processo legal, contraditório e ampla defesa, devendo-se prezar pelas
garantias essenciais de defesa.
Muitas vezes esses postulados constitucionais e princípios básicos
de processo civil eram desrespeitados sob a égide do CPC/1973, sob
a justificativa de uma necessidade de rápida aplicação do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica. O Código de Processo Civil
de 2015 trouxe inovações quanto à matéria, com potencial de, por um

10
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1184986-8, da
Sexta Câmara Cível. Desembargador Relator Clayton de Albuquerque Maranhão. Publicado
no Diário de Justiça de 26 de agosto de 2014.
11
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1056796-1,
da Décima Quarta Câmara Cível. Desembargador Relator Edson Vidal Pinto. Publicado no
Diário de Justiça de 06 de novembro de 2013.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
363

lado, reduzir a insegurança do procedimento, mas, de outro, de tornar


ainda morosa a busca pela satisfação do crédito.

1.4 Devido processo legal, contraditório e ampla defesa


na desconsideração da personalidade jurídica pelo
NCPC
Antes do advento do Código de Processo Civil de 2015 (Lei
Federal nº 13.105/2015 – NCPC), muito se discutia sobre como se
deveriam aplicar, no caso concreto, os procedimentos que ensejam a
desconsideração da personalidade jurídica.
O primeiro problema residia na necessidade de os sócios ou
administradores, que pudessem ter seu patrimônio atingido pela
desconsideração, serem previamente citados na ação respectiva,
oportunizando-se a esses sujeitos de direito a possibilidade de exercer
o contraditório e a ampla defesa. Afinal, conforme prevê o art. 5º, inciso
LIV, da Constituição da República, ninguém será privado de seus bens
ou de sua liberdade sem o devido processo legal.
Também é garantido aos litigantes em processo administrativo
ou judicial o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, inciso LV,
da CR/88). Isso significa que, em tese, deve-se oportunizar obrigatoria-
mente àquele sujeito que poderá ter seu patrimônio pessoal atingido
a apresentação de defesa e a produção de provas, antes que haja uma
efetiva constrição patrimonial. Sobre o contraditório, citam-se Luiz
Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini:

Esse o princípio, guindado à condição de garantia constitucional, signifi-


ca que é preciso dar ao réu possibilidade de saber da existência do pedi-
do, em juízo, contra si, dar ciência dos atos processuais subsequentes, às
partes (autor e réu) e demais sujeitos que participam do processo (p. ex.,
ministério público, assistentes etc.), e garantir a possível reação contra
decisões sempre que desfavoráveis. Esse princípio está visceralmente
ligado a outros, que são o da ampla defesa e do duplo grau de jurisdi-
ção, em respeito ao qual se deve evitar a hipótese de falta de controle
das decisões judiciais, pela parte (por meio dos recursos) e pelo próprio
Poder Judiciário (pelo provimento ou desprovimento de recursos).12

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria
12

geral do processo e processo de conhecimento. 15. ed. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015, p. 81.
364
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O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inicialmente


oscilou quanto à (des)necessidade de garantia de defesa prévia, mas
prevaleceu o entendimento de que poderia ser diferido o contradi-
tório em casos de desconsideração, operando-se de forma incidental
no próprio processo no qual foi requerido pela parte teoricamente
prejudicada.
Vejam-se os seguintes precedentes da Corte Superior:
(...) 5. No âmbito civil, cabe ao magistrado, a teor de diretriz jurispru-
dencial desta Corte, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa
por simples decisão interlocutória nos próprios autos da falência, sendo,
pois, desnecessário o ajuizamento de ação autônoma para esse fim. 6.
Decretada a desconsideração da personalidade jurídica da falida, com
a conseqüente propagação dos seus efeitos aos bens patrimoniais dos
sócios, não ocorre desrespeito aos postulados do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal, nem maltrato a direito líquido e certo
de terceiros prejudicados, quando patente sua legitimidade para defesa
dos seus direitos, mediante a interposição perante o juízo falimentar
dos recursos cabíveis. Precedentes: REsp n. 228.357-SP, Terceira Turma,
relator Ministro Castro Filho, DJ de 2.2.2004; REsp n. 418.385-SP, Quarta
Turma, relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 3.9.2007 (...).13

AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM


RECURSO ESPECIAL. COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. FALÊN-
CIA. FRAUDE E CONFUSÃO PATRIMONIAL ENTRE A EMPRESA
FALIDA E A AGRAVANTE VERIFICADAS PELAS INSTÂNCIAS ORI-
GINÁRIAS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA:
DESNECESSIDADE DE PROCEDIMENTO AUTÔNOMO PARA SUA
DECRETAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Tendo as
instâncias ordinárias detectado a fraude e a confusão patrimonial entre a
empresa falida e a empresa desconsiderada, ora agravante (cujas sócias
são filhas do ex-controlador da primeira), pode ser desconsiderada a
personalidade jurídica como medida incidental, independentemente de
ação autônoma (revocatória). Precedentes. 2. Impossibilidade de revisão
dos aspectos fáticos-probatórios que levaram à conclusão da fraude,
ante o óbice da Súmula nº 7 do Superior Tribunal de Justiça. 3. Não há
falar em ofensa ao devido processo legal, pois a agravante interpôs a
tempo e modo devidos o recurso cabível perante o Tribunal de origem,
o qual, todavia, não foi acolhido. 4. Agravo regimental não provido. 14

13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 881.330/SP, da Quarta Turma.
Ministro Relator João Otávio de Noronha. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 10
de novembro de 2008.
14
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência
em Recurso Especial nº 418.385/SP, da Segunda Seção. Ministro Relator Ricardo Villas Bôas
Cueva. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 16 de março de 2012.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
365

Com efeito, pode-se verificar que o Superior Tribunal de Justiça


entendeu que o contraditório diferido não gerava ofensa ao devido
processo legal e que a parte que eventualmente fosse atingida pela
desconsideração teria o direito de se defender mediante a interposição
de recursos.
A desconsideração poderia ocorrer em processo de conhecimento
ou em processo de execução de título judicial (cumprimento de sentença)
ou extrajudicial. O sistema trazido pelo Código de Processo Civil de
2015 mantém esta mesma orientação.
No primeiro caso, há a possibilidade de constituição de um
litisconsórcio passivo eventual, no qual o autor da demanda insere no
polo passivo da ação tanto a sociedade quanto os seus sócios, que serão
citados para responder à demanda de forma conjunta, hipótese na qual
não há dúvidas sobre o respeito ao contraditório e à ampla defesa. Sob
a vigência do Código de Processo Civil de 1973, Didier Júnior explicava:

O CPC autoriza que se formulem mais de um pedido, em ordem suces-


siva, a fim de que o segundo seja acolhido, em não sendo o primeiro. É a
chamada cumulação eventual ou subsidiária, concretizada o artigo 289
deste diploma legal. Em assim sendo, repita-se a pergunta de CÂNDIDO
RANGEL DINAMARCO: será lícito colocar em juízo, cumulativamente,
duas demandas dirigidas a pessoas diferentes, invocando o art. 289, do
Código de Processo Civil? A resposta é positiva. O litisconsórcio eventual,
aplicado à hipótese em comento, permite atacar o patrimônio pessoal
dos sócios, apenas e tão-somente, se for impossível liquidar o débito por
intermédio do capital social da pessoa jurídica. (...) nada mais razoável,
assim, que sejam citados, ab ovo, os sócios, ou outra sociedade do mesmo
grupo, já que, com a desconsideração, poderão ser tomadas medidas
que acarretem a excussão dos seus patrimônios para a satisfação das
pretensões de direito material postas em juízo.15

Assim, em ações de conhecimento nas quais houvesse o litiscon-


sórcio eventual, não se verificava ofensa aos postulados constitucionais
ora debatidos. Porém, a grande dificuldade se encontrava na descon-
sideração que ocorria em cumprimento de sentença ou em execução
de título extrajudicial, já que geralmente os magistrados concediam a
desconsideração por meio de decisão interlocutória, sem que houvesse
a prévia citação do sócio para apresentar defesa.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica.


15

p. 11-12. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/


aspectos-processuais-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica.pdf>. Acesso em: 13
jul. 2016.
366
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Conforme se observa na jurisprudência do Superior Tribunal de


Justiça já mencionada, vinha se admitindo a desconsideração sem prévia
intimação e possibilidade de defesa à pessoa penalizada, diferindo-se
o exercício do contraditório e da ampla defesa.
Ocorre que muito frequentemente as pessoas atingidas pela
desconsideração interpunham o recurso cabível (em que eram expressas
as matérias de defesa) e apresentavam, simultaneamente, defesa sob
a forma de embargos à execução ou exceção de pré-executividade,
causando um imbróglio processual.
Dentro desse contexto, o Código de Processo Civil de 2015
trouxe inovações que produzem efeitos no âmbito da aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica. Os artigos 133 e seguintes
do código processual trazem regras que devem ser seguidas no
processo de conhecimento, cumprimento de sentença ou execução
de título extrajudicial.
O primeiro problema resolvido foi quanto à necessidade, ou não,
de instauração de incidente processual para processar a desconsideração.
Como se pode observar na prescrição legal dos artigos 133 e 134 do
Código, as regras processuais aplicáveis são as seguintes:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica


será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando
lhe couber intervir no processo.
§1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará
os pressupostos previstos em lei.
§2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração
inversa da personalidade jurídica.16

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do


processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução
fundada em título executivo extrajudicial.
§1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao
distribuidor para as anotações devidas.
§2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da
personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que
será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese
do §2º.
§4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupos-
tos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

16
BRASIL. Lei Federal nº 13.105/2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 14 jul. 2016.
FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
367

É nítido que a nova legislação veio para dar maior segurança


jurídica para as situações de desconsideração da personalidade jurídica,
privilegiando os princípios do contraditório e da ampla defesa. Os
sócios ou a pessoa jurídica serão citados para se manifestar e requerer
as provas cabíveis dentro do prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do
art. 135 do Código, o que evita que a desconsideração ocorra sem prévia
oportunidade de defesa e dilação probatória, situações essas que eram
dispensadas anteriormente em algumas situações.
Por outro lado, como se pode observar na disciplina legal, o
incidente de desconsideração suspende o processo principal, salvo nos
casos de litisconsórcio passivo eventual (art. 134, §§2º e 3º). Logo, ao se
privilegiar o contraditório e a ampla defesa, provavelmente estar-se-á
produzindo como efeito colateral a suspensão do processo principal,
com impactos no tempo de julgamento da demanda.
Trata-se da inesgotável problemática do legislador mensurar os
diferentes interesses em debate e qual deles privilegiar.

1.5 Conclusão
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi incor-
porada pela legislação brasileira de forma não uniforme. Em alguns
casos, compatibiliza-se com a teoria menor (art. 28, caput e §5º, do CDC;
art. 34 da Lei Antitruste; e art. 4º da Lei Federal nº 9.605/98), que, como
visto, está dissociada em parte da teoria original da desconsideração,
já que permite o rompimento da autonomia patrimonial da pessoa
jurídica em situações que não envolvem fraude a credores ou abuso
na utilização da pessoa jurídica.
Apenas na aplicação da teoria maior (art. 50 do CC/02) é que
as bases da teoria da desconsideração são plenamente respeitadas,
privilegiando-se a autonomia das pessoas jurídicas, com o intuito de
coibir apenas aqueles atos tidos como fraudulentos ou dissimulados.
Quanto à aplicação das regras processuais para a desconsideração
da personalidade jurídica, houve avanços com as novas disposições sobre
a matéria no Código de Processo Civil de 2015 (art. 133 e seguintes), que
trarão maior segurança e previsibilidade para a atividade empresária,
tornando menos banalizada a possibilidade de invocação da descon-
sideração da personalidade.
Porém, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica
pode trazer problemas quanto à celeridade processual, eis que ele
suspenderá o processo principal até que a questão seja efetivamente
resolvida.
368
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Somente a prática demonstrará se a opção pelo incidente


processual de desconsideração foi corretamente criada ou se precisará
de adaptações. Com as novas regras processuais, cabe aos operadores
do direito exercer as faculdades processuais com inteligência e equilíbrio
para que a segurança jurídica não atrapalhe a celeridade processual e
vice-versa.

Referências
BRASIL. Lei Federal nº 10.406/2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 14 jul. 2016.
BRASIL. Lei Federal nº 13.105/2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 14 jul. 2016.
BRASIL. Lei Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 03 maio 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial
nº 347.476/DF, da Quarta Turma. Ministro Relator Raul Araújo. Publicado no Diário de
Justiça Eletrônico em 17 de maio de 2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1106072/
MS, da Quarta Turma. Ministro Relator Marco Buzzi. Publicado no Diário de Justiça
Eletrônico em 18 de setembro de 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência
em Recurso Especial nº 418.385/SP, da Segunda Seção. Ministro Relator Ricardo Villas
Bôas Cueva. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 16 de março de 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 881.330/SP, da Quarta Turma.
Ministro Relator João Otávio de Noronha. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em
10 de novembro de 2008.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1184986-8,
da Sexta Câmara Cível. Desembargador Relator Clayton de Albuquerque Maranhão.
Publicado no Diário de Justiça de 26 de agosto de 2014.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1056796-1,
da Décima Quarta Câmara Cível. Desembargador Relator Edson Vidal Pinto. Publicado
no Diário de Justiça de 06 de novembro de 2013.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica.
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FERNANDO SOLÁ SOARES, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, MARCIA CARLA PEREIRA RIBEIRO
OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS...
369

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard


doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard
doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 1969, n. 410.
RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A responsabilidade limitada nas sociedades empresárias.
In: RIBEIRO, Marcia Carla; DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinicius (Coords.).
Análise econômica do direito: justiça e desenvolvimento. Curitiba: CRV, 2016.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria
geral do processo e processo de conhecimento. 15. ed. vol. 1. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; ALVES, Giovani Ribeiro Rodrigues; SOARES,


Fernando Solá. Os problemas na aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica e as perspectivas decorrentes da entrada em vigor
do CPC/2015. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César;
THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo
Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p.
353-369. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 2

INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO
DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Vinícius Jose Marques Gontijo

2.1 Introdução
A entrada em vigor de um novo Código de Processo Civil (Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 – NCPC) implicou alterações substan-
ciais na operacionalização e efetivação do direito como um todo e, em
especial, no que concerne à desconsideração da personalidade jurídica,
uma vez que nosso legislador cuidou, pela primeira vez, da instituição
e regulamentação de um incidente processual em que se postula a
desconsideração da personalidade jurídica. Tratam-se dos artigos 133
a 137 do NCPC.
Inicialmente, é sumamente importante registrar que, no que se
refere à imputação de responsabilidades da pessoa jurídica a terceiros,
o direito societário apresenta três hipóteses, conforme já tivemos a
oportunidade de demonstrar:
De fato, ao se examinar a responsabilização de terceiro por obrigações
contraídas em nome da sociedade, pouco interessando se este terceiro
seja sócio, administrador ou membro de conselho ou outro órgão social,
faz-se necessário compreender que ela poderá se dar, como decorrência
da relação societária, de três maneiras diversas:
Primeira, a responsabilização do terceiro por obrigações da pessoa jurídica
poderá decorrer do tipo societário pelo qual se optou. Assim, os sócios
podem, voluntariamente, optar por um tipo de sociedade em que todos
eles respondam de maneira subsidiária, porém solidária e ilimitada
pelas obrigações da entidade, ou, ainda quem nem todos os sócios da
372
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

sociedade respondam pelas obrigações da pessoa jurídica, haverá um


sócio ou um grupo deles que desta maneira responderá.
Segunda, a responsabilidade do terceiro decorre de ações ou omissões
ilícitas praticadas em órgão da sociedade. Trata-se de responsabilização
civil por dano.

E, finalmente, em terceira, no caso de desconsideração da perso-


nalidade jurídica, com isso atingindo terceiros em relação à sociedade.1
Na primeira hipótese, tem-se uma situação de responsabilidade
exclusivamente patrimonial do terceiro (sócio), sem que, no entanto,
ele se torne réu no processo; ele é parte ilegítima passiva na medida em
que a obrigação foi assumida pela pessoa jurídica, e não por ele mesmo.
A despeito de o sócio não ser parte no processo, seus bens parti-
culares sofrerão execução por obrigações da sociedade, uma vez que
ele escolheu participar de uma sociedade em que há sócio de responsa-
bilidade ilimitada – tais como sociedade em nome coletivo e sociedade
em comandita simples –, tendo ainda optado por pertencer à classe dos
sócios de responsabilidade ilimitada.
Assim, ficam sujeitos à execução os bens do sócio de responsabi-
lidade ilimitada, nos exatos termos prescritos pelo inciso II do art. 790
do NCPC, mas o sócio não é aprisionado no polo passivo da demanda,
no qual, reitere-se, figurará apenas a devedora, qual seja, a sociedade.
Por outro lado, na segunda hipótese dissertada, trata-se de ação
de responsabilidade civil imposta ao terceiro (sócio, administrador,
etc.) por sua atuação ilícita nos órgãos que compõem a pessoa jurídica.

Para realizar a finalidade primordial de restituição do prejudicado à


situação anterior, desfazendo, tanto quanto possível, os efeitos do dano
sofrido, tem-se o direito empenhado extremamente em todos os tempos.
A responsabilidade civil é reflexo da própria evolução do direito, é um
dos seus mais acentuados característicos. É preocupação, no direito civil,
só comparável à que inspira o instituto da pena, outro sinal distintivo
do pregresso jurídico.2

Com efeito, como regra geral aplicável às sociedades, o Código


Civil (Lei nº 10.404, de 10 de janeiro de 2002 – CC) e, como regra específica,
a Lei de Sociedade por Ações (Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 –
LSA) prescrevem a responsabilização não apenas do administrador

1
GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no Direito Societário por terceiro por
obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 854, p. 39.
2
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 12. ed., 2. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012, p. 18.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
373

por ações ou omissões ilícitas (art. 1.016 do CC e art. 158 da LSA), mas
também dos conselheiros fiscais (art. 1.070 do CC e art. 165 da LSA) e
dos sócios (art. 1.080 do CC),3 desde que, obviamente, presentes todos
os elementos necessários para a responsabilização civil, quais sejam:
ação ou omissão voluntária, dano (mesmo que estritamente moral) e
nexo de causalidade.
Nas hipóteses de responsabilização civil do terceiro infrator
pelas obrigações da sociedade,4 exceto se operada uma das excludentes
do parágrafo único do art. 1.015 do CC, a pessoa jurídica responderá
solidariamente com o agente infrator, até por culpa in eligendo. Isso,
processualmente falando, poderá se operar por litisconsórcio passivo
entre a sociedade e o agente infrator.
Evidentemente, o incidente de desconsideração da personalidade
jurídica, que será objeto de nossa análise, somente se aplica a terceira
e última hipótese apresentada.
Neste capítulo, examinaremos e dissertaremos acerca do aspecto
processual da desconsideração da personalidade jurídica como disposto
no Código de Processo Civil de 2015, mesmo porque, naturalmente, os
pressupostos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica
continuam sendo regidos pela legislação não processual, conforme
determinou expressamente o §1º do art. 133 do NCPC.

2.2 Incidente de desconsideração da personalidade


jurídica inversa
Nos idos de 1969, Rubens Requião trouxe para o direito brasi-
leiro o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, quando
afirmou que o:

Mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade


jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro
dos seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que
atrás dela se escondem. É o caso de declaração de ineficácia especial da

3
A responsabilização dos acionistas se dá por abuso de direito de voto e conflito de interesses
(art. 115 da LSA) como regra geral e, especificamente, para o acionista controlador por
violação de seus deveres na forma do art. 117 da LSA.
4
GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no Direito Societário por terceiro por
obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 854, p. 41-46.
374
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia


a mesma incólume para seus outros fins legítimos.5

Assim, já se tinha clareza técnica que não há como se confundir


a despersonificação da pessoa jurídica (ação anulatória de sua consti-
tuição – art. 1.034, I, do CC e art. 206, II, a, da LSA) com a desconsideração
da personalidade jurídica (cuja regra geral está prescrita no art. 50 do
CC), que é caso de ineficácia da personalidade em um caso concreto e
nos seus limites.
Desde a publicação do mencionado artigo doutrinário por Rubens
Requião, o instituto passou a ser utilizado de maneira crescente na juris-
prudência,6 tendo ainda sido desenvolvida a chamada “desconsideração
da personalidade jurídica inversa”, à qual também se aplica o incidente
de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133, §2º, do NCPC).
Karin Kempkes7 esclarece que a desconsideração da personalidade
jurídica inversa seria imputar à pessoa jurídica a responsabilidade por
obrigação de um de seus sócios. Para tanto, o pressuposto seria ter
havido desvio de bens de uma pessoa física para uma pessoa jurídica,
sobre a qual aquela tivesse o controle. Afirma, ainda, que o desvio se
daria por abuso de direito ou fraude.
Legem habemus (art. 133, §2º, do NCPC) agora a dispor acerca da
invenção brasileira: desconsideração da personalidade jurídica inversa.
Todavia, não podemos deixar de anotar que isso é uma impropriedade
técnica, sendo que, no nosso ponto de vista, não andou bem o legislador
processual civil ao introduzir no Brasil a positivação da desconsideração
da personalidade jurídica inversa, instituto que, pelo menos com este
nome e formatação, não é albergado pelo direito material nacional.
Com efeito, atingir a pessoa jurídica por obrigações do sócio jamais
deveria demandar uma desconsideração da personalidade jurídica (ainda
que “inversa”) na medida em que o próprio Código Civil (art. 1.026)
já prescreve a possibilidade de o credor particular de um sócio fazer
recair a execução de seu crédito sobre o lucro que couber a este sócio na
sociedade e, ainda, promover a dissolução parcial da sociedade e fazer

5
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista
dos Tribunais, v. 410, p.14.
6
A questão tomou contornos críticos, a ponto de parte da doutrina se dedicar a investigar o
abuso na aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Neste sentido:
CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
7
KEMPKES, Karin Apud NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de
Processo Civil comentado. 16. ed., São Paulo: Editora RT, 2016, p. 624.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
375

recair a execução de seu crédito sobre os haveres que o sócio-executado


tenha na liquidação da pessoa jurídica.

O dispositivo [art. 1.026, CC] regula a hipótese de o credor particular


do sócio, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer o crédito
recair sobre os lucros da sociedade, o que significa que a execução não
recairá sobre a quota do sócio, mas sobre os lucros à sua disposição na
sociedade (lucros líquidos ou lucros retidos e não os fundos líquidos).
Na liquidação da sociedade caberá ao credor a parcela à disposição do
sócio, depois de pagos os credores sociais (resíduo líquido).
Conforme Parágrafo único, não estando ainda liquidada a sociedade, o
credor promoverá a liquidação da quota pelo valor efetivamente reali-
zado, valor patrimonial da sociedade, ou seja, pelo patrimônio líquido
na data da resolução; para tanto, será levantado balanço a essa época.8

Portanto, pensamos que não há sentido técnico na desconsideração


da personalidade jurídica inversa; trata-se de uma atecnia, talvez por
fragilidade no conhecimento do direito empresarial. Porém, agora, há
lei processual a dar guarida à pretensão, aplicando-se as regras proce-
dimentais do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

2.3 Incidente de desconsideração da personalidade


jurídica
Lamentavelmente, muitas vezes temos observado que o estudo do
processo no Brasil está atrelado exclusivamente aos procedimentos, sem
observância do Modelo Constitucional do Processo como vetor herme-
nêutico de validade da legislação infraconstitucional. Evidentemente,
toda a legislação deve ser investigada e aplicada com a mais estrita
observância dos preceitos constitucionais aplicáveis à espécie, sendo
que, no direito processual, não pode ser e não é diferente. Na precisa
lição de Ítalo Andolina:

Na nova perspectiva pós-constitucional, por isso, o problema do pro-


cesso não leva em consideração apenas o seu ser (isto é: a sua organi-
zação concreta segundo as leis ordinárias vigentes), mas também o seu
dever-ser (isto é: a conformidade de sua ordem positiva à normativa
constitucional sobre o exercício da atividade jurisdicional).

8
PENALVA SANTOS, J. A.; LUCCA, Newton de et al. Comentários ao Código Civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 9, p. 202-203.
376
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O problema da jurisdição, por sua vez, não é mais uma mera questão
de tipo (essencialmente) definitório interessante, sobretudo, a teoria
geral do direito e do Estado, constituindo, ao contrário, um tema de
implicações práticas bastante marcadas, uma vez que somente diante
de um procedimento (positivo) instrumental para o exercício da fun-
ção jurisdicional ocorre controlar se ele efetivamente é como deveria
(segundo a Constituição) ser.9

A despeito do uso recorrente na jurisprudência do instituto da


desconsideração da personalidade jurídica, vínhamos observando,
com perplexidade, muitas vezes o atropelamento dos mais comezinhos
princípios constitucionais, inclusive da ampla defesa e do contraditório
(art. 5º, LV, da Constituição da República), principalmente quando a
aplicação do instituto era deferida nos próprios autos de uma ação de
execução, conforme no exemplo abaixo:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO


DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA – INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO DOS
SÓCIOS – ALEGAÇÃO DE NULIDADE – AUSÊNCIA DE COMPRO-
VAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE
NEGOU SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. IRRESIGNAÇÃO
DO SÓCIO.
1 – Tribunal de origem que adotou entendimento em consonância
com a jurisprudência desta Corte Superior que “a superação da pessoa
jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um pro-
cesso incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos,
dispensando-se também a citação do sócios, em desfavor de quem foi
superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori,
mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou
exceção de pré-executividade” (REsp. 1.096.604/DF, Rel. Min. Luís
Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 02/08/2012, DJe 16/10/2012).
Aplicação da Súmula 83/STJ.
2 – Agravo regimental desprovido.10

9
Tradução do autor: “Nella nuova prospettiva post-costituzionale, quindi, il problema del processo
non riguarda soltanto il suo essere (idest: la sua concreta organizzazione secondo le leggi ordinarie
vigenti), mas anche il suo dover essere (idest: la conformità del suo assetto positivo alla normativa
costituzionale sull’exercizio della’attività giurisdizionale).
Il problema della giurisdizione, a sua volta, non è più una mera questione di tipo (essenzialmente)
definitorio interessante soprattutto la teoria generale del diritto e dello Stato, costituendo invece un
tema dalle implicazioni pratiche assai marcate, poiché soltanto della funzione giurisdizionale occorre
controllare se lo stesso effettivamente é como dovrebbe (secondo la Costituzione) essere”. (ANDOLINA,
Ítalo. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli, 1990, p. 11.)
10
STJ, AgRg no REsp. 1.125.501/PR, 4a T., j. 16.04.2015, v.u., rel. Min. Marco Buzzi, DJe de
24.04.2015.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
377

Assim, não há como deixar de aplaudir a iniciativa do legislador


brasileiro em, finalmente, regulamentar o aspecto processual para
a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica,
criando o incidente processual respectivo.
Registre-se que:

Segundo o art. 1.062 do Novo CPC o incidente de desconsideração


da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos
juizados especiais.
Nos termos do art. 795, §4º do Novo CPC para a desconsideração da
personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto
neste Código. A norma torna o incidente obrigatório, em especial na
aplicação de suas regras procedimentais, mas o art. 134, §2º do Novo
CPC consagra hipótese de dispensa do incidente.11

Naturalmente, o §2º do art. 134 do NCPC prescreveu que fica


dispensada a instauração do incidente processual quando o pedido de
desconsideração da personalidade jurídica se fizer na petição inicial. No
entanto – neste caso, é claro –, serão citados os sócios ou, quando se tratar
de desconsideração inversa, a pessoa jurídica, assegurando-se, destarte,
a ampla defesa e o contraditório, aplicando-se o devido processo legal.

O direito fundamental processual ao contraditório assegura às partes


participação e controle da produção da prova. O contraditório permeia
os meios de prova típicos e atípicos, emprestando-lhes legitimidade
constitucional. A relevância do contraditório se mede pelo fato de o
art. 415 do NCPC português de 2013, proclamá-lo, expressis verbis, não
olvidando a posição do revel. O juiz não proferirá decisão contra uma
das partes, no processo civil brasileiro, sem antes ouvi-la, salvo em
caso de urgência e de evidência (art. 9º, caput, e parágrafo único). E não
conhecerá diretamente das questões, ex officio, sem promover prévido
debate (art. 10). Aqui, no procedimento probatório, interessa evidenciar
a influência intrínseca do contraditório.12

O caput do art. 133 do Código de Processo Civil de 2015 prescreve


que têm legitimidade para instaurar o incidente de desconsideração
da personalidade jurídica a parte ou o Ministério Público, quando lhe
couber intervir no processo.

11
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador:
JusPodivm, 2017, p. 236.
12
ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. 2. ed. v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016,
p. 469.
378
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

De fato, o art. 50 do Código Civil já prescrevia que a disregard of


legal entity é ato privativo do juiz, que, por sua vez, não pode se dar ex
officio, dependendo, portanto, de requerimento da parte ou do Ministério
Público, quando lhe couber intervir no processo.13
Nesse sentido, a “desconsideração da personalidade jurídica é
ato privativo do juiz, que, também, não agirá de ofício, dependendo da
iniciativa da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir
no processo”. 14
Com acerto, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)
editou enunciado dispondo acerca da desnecessidade de intervenção
obrigatória do Ministério Público nos incidentes de desconsideração
da personalidade jurídica, uma vez que, ordinariamente, a questão é
estritamente patrimonial e de interesse exclusivo das partes envolvidas:
Enunciado n. 123 do FPPC. É desnecessária a intervenção do Ministério
Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração
da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obriga-
toriamente, previstos no art. 178 [nCPC].

O Código de Processo Civil prescreveu que o incidente poderá


ser instaurado em todas as fases do processo de conhecimento, no
cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo
extrajudicial (art. 134, caput, NCPC), que deverá ser imediatamente
comunicada ao distribuidor para fins das anotações devidas.
A mera instauração do incidente processual de desconsideração
da personalidade jurídica implicará a suspensão do processo, salvo se
o pedido houver sido formulado na petição inicial do próprio processo
principal.
Também em atenção à boa lógica, não se pode fazer com que o processo
siga enquanto o incidente está sendo instaurado. Isto porque o polo
passivo da relação jurídica será modificado para dele fazer constar os
sócios e administradores. E, evidentemente, é desnecessário cogitar de
suspensão do processo se o pedido é feito já na petição inicial.15

O Código de Processo Civil de 2015 prescreveu que o requeri-


mento de desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar

13
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 321.
14
DUARTE, Nestor; PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado. 3. ed. Barueri: Manole,
2009, p. 60.
15
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 626.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
379

o preenchimento dos pressupostos legais específicos para aplicação da


Teoria da Disregard of Corporate Entity. Naturalmente, para a instauração
do incidente, não se faz necessária a prova pré-constituída, como se
pode imaginar da leitura do dispositivo legal. Ao revés, a lei faculta a
instrução necessária à formação do convencimento do juiz. Portanto:
Na realidade o requerente não deve demonstrar, mas apenas alegar o
preenchimento dos requisitos legais para a desconsideração da perso-
nalidade jurídica, tendo o direito a produção da prova para convencer o
juízo de suas alegações, inclusive conforme expressamente previsto nos
arts. 135 e 136 do Novo CPC ao preverem expressamente a possibilidade
de instrução probatória no incidente ora analisado.16

Com efeito, instaurado o incidente de desconsideração da perso-


nalidade jurídica, o sócio será citado para se manifestar e requerer as
provas cabíveis no prazo de quinze dias; claro que, em se tratando de
incidente de desconsideração inverso, a pessoa jurídica é quem será
citada e terá o direito de se manifestar e requerer as provas com que
pretende comprovar suas alegações (art. 136 do NCPC).
Daniel Amorim Assumpção Neves investiga a legitimidade dos
sócios após a desconsideração da personalidade jurídica, afirmando que:
O Novo Código de Processo Civil perdeu uma excelente oportunidade
de colocar fim a polêmica a respeito da forma processual de defesa dos
sócios na execução após a desconsideração da personalidade jurídica.
O sócio (ou a sociedade na desconsideração inversa) passa a partir da
desconsideração da personalidade jurídica a ser responsável patrimonial
secundário pela dívida da sociedade empresarial. Será o sócio legitimado
a formar um litisconsórcio passivo ulterior, transformando-se em exe-
cutado junto à sociedade empresarial ou continuará com um terceiro no
processo? A resposta a esse questionamento é resultante da definição da
qualidade processual do responsável patrimonial secundário.
O responsável patrimonial secundário, com hipóteses previstas pelo art.
592 do CPC/1973 e art. 790 do Novo CPC, mesmo não sendo devedor,
responde com seus bens pela satisfação da obrigação em juízo. É pre-
ciso atentar que, no tocante a algumas hipóteses de responsabilidade
secundária, a questão da legitimidade passiva era totalmente superada
pelo art. 568 do CPC/1973 e continua a ser pelo art. 779 do Novo CPC. A
questão, entretanto, remanesce relativamente aos demais responsáveis
secundários, em especial àquele indicado pelo art. 790, II do Novo CPC.
Omissis.

16
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador:
JusPodivm, 2017, p. 238.
380
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A importância prática de se definir a qualidade processual do sócio


após a desconsideração da personalidade jurídica é a defesa adequa-
da a apresentar na execução: sendo terceiro, a defesa parece ser mais
adequadamente apresentada por meio de embargos de terceiro; sendo
parte, a defesa será elaborada por meio de embargos à execução (ou
mesmo impugnação, no caso de cumprimento de sentença).
O Superior Tribunal de Justiça adota o segundo entendimento, ao apon-
tar a citação do sócio (STJ, 4a Turma, REsp. 1.096.604/DF, rel. Min. Luís
Felipe Salomão, j. 02/08/2012, DJe 16/10/2012) e sua integração à relação
jurídica processual executiva, bem como a inadmissão dos embargos de
terceiro, apontando para os embargos à execução como via adequada
dos sócios diante da desconsideração da personalidade jurídica (STJ, 4a
Turma, AgRg no Ag 1.378.143/SP, rel. Min. Raul Araújo, j. 13/05/2014,
DJe 06/06/2014).
Entendo que está correto o posicionamento do Superior Tribunal de
Justiça, até porque considero que todos os responsáveis patrimoniais
secundários, ao terem bem de seu patrimônio constrito em processo
alheio, automaticamente passam a ter legitimidade passiva, e, uma vez
sendo citados ou integrando-se voluntariamente ao processo, formarão
um litisconsórcio passivo ulterior com o devedor. E que mesmo sem
previsão legal nesse sentido nada mudará.
Omissis.
Concluo afirmando que, nos embargos à execução, caberá ao sócio alegar
em sede de preliminar de ilegitimidade passiva a eventual incorreção da
desconsideração da personalidade jurídica, até porque se não foi devida
não existe responsabilidade patrimonial secundária e, por consequência,
o sócio é parte ilegítima. O acolhimento dessa defesa, além de excluir o
sócio da execução por ilegitimidade de parte, ainda resultará na imediata
liberação da constrição judicial sobre o seu bem. Além da alegação de
ilegitimidade de parte, o sócio poderá alegar todas as outras defesas
típicas do devedor, firme no princípio da eventualidade.
Registre-se que essa alegação de ilegitimidade vinculada à inadequação
da desconsideração da personalidade jurídica é a única forma de se
preservar o princípio do contraditório, ainda que diferido. Como nessa
forma de contraditório a informação e a reação são posteriores à decisão
judicial, não será legítimo exigir da parte a interposição de agravo de
instrumento contra a decisão que determina a desconsideração, sob
pena de preclusão. Naturalmente, o sócio poderá se valer de tal recurso,
conforme já exposto no item anterior, mas se preferir poderá aguardar
os embargos à execução para se defender. Condicionar a defesa do
sócio ao agravo de instrumento seria suprimir um grau de jurisdição
no exercício de seu contraditório.17

17
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador:
JusPodivm, 2017, p. 241-243.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
381

Ousamos dissentir de tão abalizada doutrina. Com efeito, o


incidente de desconsideração da personalidade jurídica visa à ineficácia
da personalidade jurídica; sendo ineficácia, a personalidade é afastada
em um caso concreto, nos limites do próprio caso concreto.
Assim, não há como se falar em litisconsórcio entre a sociedade
e aqueles que estavam protegidos pelo “manto” da personalidade
jurídica. De fato, sendo a pessoa jurídica ineficaz, ela não tem como
ser considerada nem mesmo para fins processuais; pensar diverso seria
reconhecer que não se desconsiderou a pessoa jurídica, tanto que ela
foi aprisionada no polo passivo da demanda.
Conforme já tivemos a oportunidade de esclarecer neste nosso
capítulo, a responsabilidade patrimonial (= responsabilidade secundária)
do sócio, prescrita no inciso II do art. 740 do NCPC, aplica-se “nos termos
da lei”, ou seja, quando a lei empresarial prescreve a responsabilidade
do sócio por obrigações da sociedade (= escolha do tipo societário,
necessidade de integralização do capital social, etc.) e não na hipótese
de ilícitos que atraiam a desconsideração da personalidade jurídica.
Desconsiderada a personalidade jurídica, sua eficácia é afastada
no caso concreto e, diante disso, transcende-se para aqueles que estavam
protegidos pela personalidade (tais como sócios e administradores) as
obrigações da sociedade. Via de consequência, haverá uma substituição
processual:

Espécie do gênero legitimação extraordinária (Arruda Alvim. Tratado


DPC, I, 516), substituição processual é o fenômeno pela qual alguém,
autorizado por lei, atua em juízo como parte, em nome próprio e no
seu interesse, na defesa de pretensão alheia (Garbagnati. Sostituzione,
212). Como se trata de hipótese excepcional de legitimação para a causa,
somente quando expressa na lei ou decorrer do sistema é que se admite
a substituição processual. O titular do direito de ação (como autor ou
réu) recebe a denominação de substituto processual e, àquele que se afirma
titular do direito material defendido pelo substituto em juízo, dá-se o
nome de substituído.18

Portanto, a defesa será assumida pelos terceiros incluídos em


razão da desconsideração da personalidade jurídica em nome próprio,
não havendo que se falar em litisconsórcio ou embargos de terceiro.
Da mesma maneira, tendo os terceiros sido citados para o
incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ali eles exercerão

18
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 290.
382
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

a ampla defesa e o contraditório a fim de afastarem a pretensão de


desconsideração postulada e, somente após o trânsito em julgado da
decisão que aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica,
haverá a substituição processual; durante a tramitação do incidente, a
ação principal ficará suspensa na forma da lei (art. 134, §3º, do NCPC).
Diante disso, no incidente processual se entabulará e se cumprirá
o Modelo Constitucional do Processo, naturalmente com os recursos
assegurados em lei, sendo que caberá à parte prejudicada interpor os
recursos, sob pena de preclusão e não poder, posteriormente, rediscutir
os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica quando
da apresentação da defesa ou dos embargos do devedor.
Essa afirmação somente poderia ser mitigada se o incidente for
instaurado diretamente no tribunal; aí se poderia dizer de subtração
de grau de jurisdição. Nesse caso, a despeito do parágrafo único do
art. 136 do NCPC, entendemos que o incidente deverá ser volvido à
primeira instância para que ali se faça a instrução e se profira a decisão
de primeiro grau, evitando, assim, a subtração de grau jurisdicional e,
via de consequência, a inconstitucionalidade da decisão.
Encerrada a instrução do incidente processual, o juiz proferirá
decisão interlocutória em que resolverá o incidente. Na forma do inciso
IV do art. 1.015 do NCPC, admite-se agravo de instrumento contra esta
decisão; sendo, porém, a decisão proferida da lavra de um relator no
tribunal, caberá agravo interno contra a decisão, observando-se, neste
caso, o direito ao duplo grau de jurisdição, sob pena de nulidade.
Acolhido o pedido incidental de desconsideração da persona-
lidade jurídica, transitado em julgado, há que se abrir novamente a fase
de defesa (seja ela contestação, embargos do devedor ou impugnação
ao cumprimento de sentença) para que estes terceiros incluídos em
definitivo no processo principal exerçam suas faculdades processuais e
materiais quanto aos fatos e fundamentos constantes da ação principal.
O art. 137 do NCPC prescreve que, se for acolhido o pedido de
desconsideração da personalidade jurídica, a alienação ou a oneração
de bens havida em fraude de execução será ineficaz em relação ao
requerente do incidente processual. Neste contexto, Henrique Cunha
Barbosa escreve com propriedade:

Como mencionado, o art. 137 [nCPC] prescreve que, acolhida a des-


consideração da personalidade jurídica, serão considerados ineficazes
os atos de alienação ou oneração de bens por parte dos codevedores. O
problema, entretanto, é a ressalva de que essa ineficácia abrange apenas
as transações havidas “em fraude de execução”, o que remete via de
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
383

consequência às condicionantes burocráticas ou procedimentais do art.


792 [nCPC], se bem que facilitadas pela previsão do §3º ao estatuir que,
nos casos de desconsideração, a fraude à execução se verifica a partir
da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.19

E o autor, então, arremata:

Em suma, a depender da demora na instauração do incidente e da mo-


rosidade em seu desenrolar, mormente quanto a citação dos pretensos
corresponsáveis, a norma do art. 137 pode representar uma garantia
incompleta, quando não uma pseudo-garantia ao credor. Isso, repise-se,
além da provável necessidade de se precisar aguardar a decisão dos
Embargos de Terceiro para que se integralize a ineficácia.
Lado outro, aos que negociarem bens privados a prudência recomenda
desde logo um cuidado redobrado em suas futuras aquisições, soman-
do-se às certidões negativas ou de ônus de praxe a de inexistência de
incidente de desconsideração movido em desfavor do vendedor, para
que não se surpreenda depois com uma evicção indefensável do bem.20

Portanto, é sumamente importante a diligência do credor para


que a eventual decisão favorável no incidente de desconsideração da
personalidade jurídica tenha a eficácia pretendida. A citação será o ato
processual divisor de águas para a aferição da ineficácia das transações
patrimoniais.

2.4 Conclusões
Evidentemente, a instituição legal do incidente de desconside-
ração da personalidade jurídica pelo Código de Processo Civil de 2015
implicou ganho insofismável na consolidação dos preceitos processuais
constitucionais, em especial a ampla defesa e o contraditório.
O incidente certamente suscitará grandes discussões tanto em
nível doutrinário quanto em nível jurisprudencial, mormente em razão
do fato de que muitos operadores do direito ainda têm muita dificuldade
de visualizar a distinção entre as três hipóteses de terceiros responderem

19
BARBOSA, Henrique Cunha. Usos e desusos do incidente de desconsideração da personalidade
jurídica. In: PERRUCI, Felipe Falconi; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme
Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no Direito Empresarial. Belo Horizonte: D’Plácido,
2017, p. 81.
20
BARBOSA, Henrique Cunha. Usos e desusos do incidente de desconsideração da personalidade
jurídica. In: PERRUCI, Felipe Falconi; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme
Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no Direito Empresarial. Belo Horizonte: D’Plácido,
2017, p. 81.
384
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

por obrigações da pessoa jurídica. Isso se dá principalmente no que


concerne à confusão entre responsabilização dos sócios, administradores
e conselheiros e a desconsideração da personalidade jurídica.
Esperamos que, com o passar do tempo e a consolidação do
instituto tanto em nível doutrinário quanto em nível jurisprudencial, a
segurança jurídica almejada – não apenas pela Constituição da República,
mas também pelos cidadãos – possa se materializar de maneira eficiente.
Naturalmente, ninguém se disporá a investir no país, expondo a
risco o patrimônio pessoal, às vezes, amealhado ao longo de gerações, na
fundamental atividade empresarial se, depois, poderá ser surpreendido
com desconsiderações da personalidade jurídica aplicada de maneira
atabalhoada e não técnica.
Conforme muito bem demonstrado por Osmar Brina Corrêa-
Lima,21 dois são os princípios capitais que orientam a vida das sociedades:
a) as pessoas jurídicas têm existência própria e distinta da dos seus
membros; e b) o patrimônio da sociedade e o de seus membros não
se confundem – isso era expressamente previsto no art. 20 do Código
Civil de 1916.22
Do somatório desses dois princípios surte “o efeito benéfico de
encorajar o aparecimento e estimular o desenvolvimento da empresa
privada nacional”.23
É claro que, presentes os pressupostos de aplicação da teoria do
lifting the corporate veil, ela deve ser aplicada de maneira enérgica a fim de
evitar, inclusive, a concorrência desleal e o mal maior para os credores.

Referências
ANDOLINA, Ítalo. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli,
1990.
ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. 2. ed. v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
BARBOSA, Henrique Cunha. Usos e desusos do incidente de desconsideração da
personalidade jurídica. In: PERRUCI, Felipe Falconi; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro;
LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no Direito Empresarial. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2017.

21
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima.
Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 140.
22
Código de Civil de 1916. Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus
membros.
23
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima.
Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 141.
VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJO
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
385

CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da persona-


lidade jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade
anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 12. ed. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012.
DUARTE, Nestor. Código Civil comentado. 3. ed. Barueri: Manole, 2009. (Coordenador:
PELUSO, Cezar).
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no Direito Societário por terceiro
por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 854, 2006.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
16. ed. São Paulo: Editora RT, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2017.
PENALVA SANTOS, J. A.; LUCCA, Newton et al. v. 9. Comentários ao Código Civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Forense, 2005.
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 410, 1969.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Incidente de desconsideração da persona-


lidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. In: BRAGA NETTO, Felipe
Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito
Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências.
Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 371-385. ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 3

A DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA NO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Luciana de Castro Bastos


Rodrigo Almeida Magalhães

3.1 Introdução
O objeto do presente estudo enfoca um dos temas clássicos do
direito empresarial, a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, expressão nacional da disregard of legal entity ou disregard
doctrine do direito anglo-americano, através da qual se busca impedir
o uso lesivo ou indevido da pessoa jurídica com o intuito de prejudicar
terceiros ou para locupletar-se sem causa aceitável, desconsiderando
especificamente e momentaneamente sua autonomia patrimonial,
atingindo diretamente aqueles que a estão manipulando.
Para compreender fundamentalmente o instituto, cumpre analisar
a sua importância no direito empresarial, primeiramente entendendo
melhor a evolução do direito de empresa e a personalização da empresa,
para, então, passar à análise dos aspectos gerais e específicos que o
caracterizam.
Inicia-se aqui a forma de demostrar a desconsideração da perso-
nalidade jurídica nos limites condizentes com o ordenamento jurídico
brasileiro, demonstrando a fraude como elemento intrínseco à convi-
vência humana, devendo ser combatida pelo direito.

Ao contrário de outras situações, nas quais a limitação de responsabilida-


de patrimonial decorre de imposição da lei, como em certos patrimônios
especiais, aqui ela é arquitetada pelo próprio sujeito que dela pretende
388
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

se beneficiar, a partir da declaração de vontade mais suscetível de ser


dada com intuito fraudulento.1

Logo, são elencados no ordenamento jurídico alguns instrumentos


de combate a esses desvios de conduta e à criatividade humana, que
parece não encontrar limites. Dentre eles, está a teoria do abuso de
direito, atualmente positivado no Código Civil de 2002, em seu art. 187,
que diz: “Art. 187: Também comete ato ilícito o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A desconsideração da personalidade jurídica no direito de
empresas é uma derivação dessa teoria do abuso de direito e tem a
finalidade de conter, reprimir, os “agentes fraudulentos” frente aos
abusos cometidos à limitação de responsabilidade em seus direitos e
deveres, quando tal limitação é utilizada contra as razões que a condi-
cionam, sendo esse instituto o mecanismo pelo qual, judicialmente,
seria possível relativizar a contingência do princípio da autonomia
patrimonial.

3.2 A evolução do direito de empresa


Para melhor compreensão da teoria, primeiramente faz-se neces-
sário demonstrar, de forma sucinta, a evolução do direito comercial ou
empresarial em três etapas.
A primeira etapa foi denominada pela doutrina de sistema
subjetivo corporativo. Considerada como o início do direito comercial,
tratava especificamente das corporações de mercadores, nas quais
somente permanecia matriculada uma determinada classe de pessoas, ou
seja, somente eram consideradas pelo direito comercial as pessoas que
fossem filiadas às corporações de mercadores. Esse período iniciou-se no
século XII, estendendo-se até o século XVII, com um direito extremada-
mente fechado, rígido e principalmente elitista, isto porque os que não
pertenciam às classes de corporações como seus filiados matriculados
não eram beneficiados com as prerrogativas do direito comercial.
A segunda etapa foi titulada de sistema objetivo. Iniciou-se em
1804, com o término do liberalismo econômico e a forte influência do
sistema francês, em que a teoria dos atos de comércio elenca a atividade

PARENTONI, Leonardo Netto. Desconsideração Contemporânea da Personalidade Jurídica:


1

Dogmática e Análise Científica da Jurisprudência Brasileira (Jurimetria/Empirical Legal


Studies). São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 49.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
389

comercial e designa o que é um ato de comércio, com intenção de lucro


e certa regularidade.
Já a terceira etapa foi chamada de sistema subjetivo do direito
comercial, pelo qual o Código Civil de 2002 traz a teoria da empresa
para o direito comercial. Surge, então, o direito empresarial moderno,
que apresenta todas as atividades exercidas com habitualidade e com
o intuito de lucro como atividades empresariais. Sob influência direta
do direito italiano, a teoria da empresa abre um leque de atuação de
atividades consideradas empresariais.
Nos ensinamentos de Eduardo Goulart Pimenta, em sua obra
Direito Societário: “A empresa, categoria essencialmente econômica, passa,
a partir de então, a ser objeto de um corpo organizado e sistematizado
de normas jurídicas especialmente voltadas para a regulação de sua
existência e funcionamento. Trata-se do que hoje se chama de Direito
da Empresa”. E continua: “Se a empresa é uma realidade econômica
o Direito da Empresa é, como regime jurídico daquela, uma realidade
normativa. São as normas que disciplinam o exercício das atividades
de natureza empresária”. 2
Assim, a análise do conceito de empresa no direito comercial
brasileiro, com a vigência do Código Civil de 2002, certo ou não, é que
assumiu a condição de fator de fundamentação científica de todo um
grupo de normas jurídicas apartadas do direito privado comum.
José Maria Rocha Filho afirma que, ‘‘economicamente, a empresa
é um organismo que se forma pela organização dos fatores de produção,
para satisfazer as necessidades das pessoas, para atender às exigências
do mercado”.
O mesmo autor ainda diz que:

[...] quando se fala em empresa, interessa ao Direito: a) regulamentar a


atividade daquele que organizou os fatores de produção para satisfazer
necessidades alheias, ou seja, a atividade do empresário; b) proteger as
ideias inovadoras, criadoras, surgidas com ou em função do exercício
daquela atividade; c) disciplinar a formação e a existência daquele
conjunto de bens que forma o estabelecimento comercial. Interessa ao
Direito, em síntese, a atividade do empresário.3

A teoria da empresa enfatiza o importante papel do ente gerador


de riquezas, considerando-o como agente absolutamente distinto da

2
PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito Societário. Porto Alegre: Editora Fi, 2017, p. 23.
3
ROCHA FILHO. José Maria. Curso de Direito Comercial. v. 1. Parte Geral. Belo Horizonte:
Del Rey, 1994, p. 61-62
390
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

pessoa física do empreendedor e concentrando a segurança jurídica


menos em seus componentes e mais na sociedade empresária, uma vez
que o interesse social passa a prevalecer sobre o individual, direcionando
à sociedade empresária o dever de se voltar para o bem da comunidade
em primeiro lugar e ao Estado como agente arrecadador e distribuidor
de riquezas aos contribuintes.

Essa atividade ganha importância porque prevalece o interesse social


na produção e circulação de bens e serviços. Nessa mudança de foco a
pessoa jurídica, que é o agente da atividade empresária, ganha “status”
de sujeito capaz, autônomo, independente. E tanto é considerado que
seu patrimônio é próprio, distinto dos patrimônios das pessoas físicas
dos sócios, a ponto de aquela poder ser desconsiderada (despersona-
lização da pessoa jurídica) para responsabilização dos sócios por atos
fraudulentos.4

Pelo exposto, ocorre a diferenciação da empresa e do empresário,


sendo o último quem exerce a empresa.

3.3 Personalização da empresa


O ente inteligente, complexo e conhecedor dos seus limites como
ser humano procurou, em toda a sua história, se cercar de instrumentos
facilitadores para o seu desenvolvimento coletivo e individual.
Entretanto, para melhor interpretar o conceito das pessoas
jurídicas, é preciso entender que esse ente, individualmente considerado,
não é capaz de realizar certos atos, necessitando reunir-se com outros
homens, criando um novo ente, dotado de estrutura e personalidade
própria, e buscando superar as dificuldades antes encontradas com o
objetivo de buscar novas metas, antes inatingíveis.
Nesse norte, Sílvio Rodrigues define pessoa jurídica como
“entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que
atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos
que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações
na ordem civil”.5

4
GRANDE, João Teixeira. Antecedentes Legais da Falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente
de (Coord.). Direito Falimentar e a Nova Lei de falências e recuperação de Empresas. São Paulo:
Quartier Latin, 2005, p. 358.
5
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 31. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 64.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
391

De acordo com Fábio Konder Comparato, “a pessoa jurídica


trata-se de um meio prático para se alcançar um fim, qual seja: a limitação
das responsabilidades dos sócios e a autonomia patrimonial”.6
Por sua vez, ensina Orlando Gomes que “as pessoas jurídicas
seriam entidades autorizadas pelo direito a atuar no campo jurídico,
assegurando-lhes a existência e permitindo-as contrair obrigações e
adquirir direitos”.7
Sendo assim, tem-se que as pessoas jurídicas são sujeitos de
direitos e obrigações, criados com o objetivo de atingir determinada
finalidade, contando, para isso, com uma autonomia própria e indepen-
dente de seus sócios.
Entende-se, assim, que a autonomia que ganha a pessoa jurídica,
de maneira individualizada dos membros que a compõem, é uma das
simples razões pela qual as pessoas comprometem uma fatia de seu
patrimônio na atividade empresarial e se aventuram nos “riscos do
negócio”. Assim preceitua Susy Koury:

A função do instituto pessoa jurídica de limitar os riscos empresariais,


através do reconhecimento da sua existência como distinta da existência
de seus membros, que objetiva principalmente estimular o desenvol-
vimento das atividades econômicas e contribuir, assim, para o desen-
volvimento social, não é evidentemente ilegítima; todavia, a utilização
desta situação pode ter, em alguns casos, esse caráter.8

Por conseguinte, ao tratar do perfil corporativo que a empresa


assume, Susy Koury reporta Savatier, que, dotando a empresa do
conceito de instituição, reconhece-a como pessoa jurídica e entende que
“a personalidade jurídica consiste em um ser abstrato tornar-se sujeito
de direito. Os direitos repousam em seu nome, em vez de repousarem
nos indivíduos que o formam”.9
Essa ideia de empresa como instituição é o ponto principal de
caracterização de empresa como pessoa, uma vez que a empresa, ao

6
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de Controle na Sociedade Anônima. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1983, p. 273 e 278.
7
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 191.
8
KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard
doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
9
SAVATIER, René. Les Métamorphoses économiques et sociales du Droit civil d’aujourd’hui.
Paris: Dalloz, 1948, p. 65-72 apud KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da
personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1998, p. 40.
392
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

funcionar em sua complexidade, torna-se subjetiva de tal forma que


se personifica separadamente de seus sócios, estabelecimento e afins.
Assim, a noção de empresa como ente dotado de personalidade,
em que antes era uma tarefa complexa para os primeiros doutrina-
dores do direito comercial, se mostra um exercício fácil nos dias
atuais, pois não é raro desconhecer por completo qualquer pessoa
ou sócio por trás das empresas, tratando-as de forma inteiramente
particularizadas.
Compartilha também dessa ideia Washington Peluso Albino de
Souza, ao expressar que “cada vez mais, portanto, a empresa passa a
ser considerada um organismo, um ente, com capacidade de praticar
a ação econômica, não se confundindo com esta”.10
Cumpre ressaltar, porém, que a discussão doutrinária acerca da
natureza da personalização da empresa, sendo ela fruto da realidade
fática de sua existência no mundo, ou seja, mero reconhecimento
legal, não mudaria de forma significativa sua participação nas relações
jurídicas.
Em conformidade com o exposto, Koury atenta para o fato de
que, “apesar de a empresa nem sempre ter a sua personalidade jurídica
reconhecida no ordenamento, a esta é reconhecida sua existência na
sociedade por meio de sua personalidade moral e social, nos ensina-
mentos dos mestres Despax e Sishes”.11
Ensina-nos Berle Jr., que bem ilustra esse cenário:

Evidencia-se claramente que não é a lei, com sua ficção de personali-


dade jurídica, que fornece o sangue vital e o coração pulsante a esses
engenhos. Se a lei, agindo através de um artificio qualquer, declarasse
os mesmos não existentes, verificar-se-ia que essas entidades não são
fictícias, mas reais. A estrada de ferro continuaria em tráfego (...) os ho-
mens agregados a esses consórcios continuariam a fazer o que estavam
acostumados a fazer. A coletividade continuaria a esperar ser atendida.
Seus fregueses continuariam a pagar as suas contas.12

Desse modo, frente à incontestável personalidade moral e social


adquirida pela empresa em exercício, é de se reconhecer a personalidade

10
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico e Economia Política. v. 2. Belo
Horizonte: [s.e.], 1971, p. 131.
11
KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard
doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 55.
12
BERLE JR., Adolf A.; MEANS, Gardiner C. Societá per azioni e proprietà privata. Trad. Giovanni
Maria Ughi. Torino: Giulio Einaudi, 1996, p. 70.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
393

jurídica à empresa no objetivo de garantir sua permanência. Conforme


observa ainda Suzy Koury:

Apesar de a personalidade jurídica não lhe dar vida, pois já a possui,


tem personalidade moral, é através dela que ficará assegurada a con-
tinuidade e a coesão dessa cédula social fundamental, além do que, ao
reconhecê-la, o direito adequar-se-á a uma ordem de ideias mais racio-
nal, mais verdadeira, indo ao encontro da realidade social. Assim, contra-
riando a afirmação de alguns, no sentido de que ainda não é chegado o
momento de ratificação da personalidade da empresa pelo ordenamento
jurídico, defendemos a imperiosidade de tal reconhecimento explícito,
sob pena de o direito permanecer afastado da realidade.13

Superada, afinal, a controvérsia sobre qual seria o ponto origi-


nário da personalização da empresa, é de se concordar com a doutrina
majoritária ao defender que o aparato legislativo em que está cercada a
pessoa jurídica serve para racionalizar e, ao mesmo tempo, regular por
meio da lei um fato no mundo, que é a existência fática da empresa em
sua complexa organização direcionada para a sua finalidade.
Deve-se ressaltar sempre o valor que a personalização das pessoas
jurídicas tem para o direito, para o desenvolvimento ‒ econômico
principalmente ‒ e para o progresso, obtendo, assim, grande peso.
Portanto, quando esse valor colidir com outros ‒ v.g., a satisfação dos
credores ‒, ter-se-á de escolher pelo mais significativo. Geralmente,
predominam as vantagens trazidas pela existência da pessoa jurídica,
prevalecendo, outrossim, a personificação. Somente quando um valor
maior entrar em ação, com a finalidade social do direito, em descordo
com a personificação, é que esta cederá espaço.

Quando o interesse ameaçado é valorado pelo ordenamento jurídico


como mais desejável e menos sacrificável do que o interesse colimado
através da personificação societária, abre-se oportunidade para a des-
consideração sob pena de alteração da escala de valores.14

Pelo exposto, a desconsideração deve ser adotada como caso


isolado, e não como regra.

13
KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard
doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56.
14
KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária
na Lei do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 13, p. 78-86, jan./mar.
1995, p. 80.
394
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

3.4 A teoria clássica da desconsideração da


personalidade jurídica
Como exposto, as pessoas jurídicas são sujeitos de direito criados
no intuito de atingir determinada finalidade, contando, para isso, com
uma autonomia própria e independente de seus sócios.
Isso significa basicamente que a personalização da empresa
e a integralização de um patrimônio em separado dos bens de seus
membros a elevam a um patamar de determinada segurança, a ponto
de os sócios que a compõem possuírem uma estabilidade tal que os
permita suportar os riscos da atividade que pretendem exercer sem
necessariamente aventurar todo o seu patrimônio pessoal no negócio.
Ante os fatos apontados, entende-se que a união de diversos
recursos econômicos com o intuito de exercer uma atividade como empre-
sário individual possivelmente seria menos viável. Consequentemente,
a associação de tais recursos voltados para um fim específico deve
observar os ditames legais para a prática de fins lícitos e adequados
aos princípios norteadores do ordenamento jurídico.
No entanto, sempre que a pessoa natural usar a pessoa jurídica para
cometer um ilícito, a personalidade jurídica da pessoa jurídica poderá
ser desconsiderada e a pessoa natural punida em seu lugar. É a chamada
Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, ou disregard of
legal entity ou disregard doctrine.15

Tratando-se dessa teoria, sobressaem os estudos de Rubens


Requião, um dos precursores da doutrina no Brasil e que, desde os
primórdios dos anos sessenta, já discutia a questão:
Se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a com-
põem, pois são personalidades radicalmente distintas; se o patrimônio
da sociedade personalizada é autônomo, não se identificando com o dos
sócios, tanto que a cota social de cada um deles não pode ser penhorada
em execução por dívidas pessoais, seria então fácil burlar o direito dos
credores, transferindo previamente para a sociedade comercial todos
os seus bens. Desde que a sociedade permanecesse sob o controle desse
sócio, não haveria inconveniente ou prejuízo para ele que o seu patri-
mônio fosse administrado pela sociedade, que assim, estaria imune às
investidas judiciais de seus credores.16

15
RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas,
2012, p. 218.
16
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude, através da personalidade jurídica. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1969, p. 410.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
395

Assim sendo, a teoria da desconsideração da personalidade


jurídica seria um importante instrumento no intuito de a persona-
lidade jurídica criada por lei não ser um entrave à eficaz solução de
uma demanda, de forma que o direito e a realidade sejam julgados na
resolução de um conflito, garantindo a afetação do patrimônio do sócio
quando necessário e vice-versa. Como diz César Fiuza, “teoria que visa
considerar ineficaz a estrutura da pessoa jurídica quando utilizada
desvirtuadamente”.17
Nessa concepção sobre a desconsideração da personalidade
jurídica, pode se dizer também que essa teoria se mostra como uma
alternativa para solucionar aqueles casos em que o empresário se
utiliza da personalidade jurídica para fins diversos de sua função, ou
seja, quando a personalidade jurídica se torna instrumento para que
a limitação do patrimônio societário fuja aos princípios basilares do
ordenamento jurídico pátrio e seus pilares da probidade e da boa-fé.
Admitindo-se, dessa forma, que todo instituto jurídico existente
é passível de ter desvirtuada sua finalidade, cabe mencionar a tese de
Ascarelli, ao defender que:

A existência de uma sociedade não pode servir para alcançar um escopo


ilícito; a existência de uma sociedade não pode servir para burlar as
normas e as obrigações que dizem respeito aos seus sócios; a existência
de uma coligação de sociedades não pode servir para burlar as normas
e as obrigações que dizem respeito a uma das sociedades coligadas.18

Também observa Ascarelli que:

Existe a possibilidade de utilização indireta das sociedades, como nos


casos em que, levando em conta a existência da pessoa jurídica, os mem-
bros por trás dela executam atos discordantes da intenção do legislador,
visando concretizar uma finalidade atípica daquela premeditada para
a atividade empresarial.19

À vista disto, sob o véu da limitação patrimonial, os sócios


conseguiriam manter a incomunicabilidade entre seu patrimônio e os
bens da pessoa jurídica, valendo-se dessa perspectiva para materializar
fins atípicos, incompatível com a finalidade das sociedades comerciais.

17
FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 153.
18
ASCARELLI, Tullio. Questões a respeito das sociedades coligadas. In: Problemas das Sociedades
Anônimas e Direito Comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 490.
19
Neste sentido: ASCARELLI, Tullio. Le unioni di imprese. Rivista del Diritto Commerciale,
Milano, 1935, p. 173.
396
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O Código Civil de 2002, em seu art. 50, trata da teoria da descon-


sideração da personalidade jurídica e, com ele, a norma da disregard
doctrine ganha aplicação legal no direito privado. Vejamos:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo


desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.

Verifica-se que a autonomia patrimonial da personalidade


jurídica em relação à personalidade dos indivíduos envolvidos nela
continua sendo regra, mesmo não constando, no Código Civil de 2002,
de enunciado semelhante ao do art. 20 da codificação revogada de
1916, que dizia terem as pessoas jurídicas existência distinta da de seus
membros. Tem que se deixar sempre claro que a autonomia da pessoa
jurídica é a regra, e a exceção é a sua desconsideração.

3.4.1 Disregard doctrine contemporânea


Conforme Fiuza:

[...] a Teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao contrário


do que se pode parecer, é uma ratificação do instituto da personalização
da pessoa jurídica, na medida em que não a anula; apenas não a consi-
dera para certos atos praticados com desvio de finalidade.20

A teoria parte de dois importantes pressupostos: a pessoa jurídica


tem personalidade distinta da dos sócios; a responsabilidade destes é
limitada.
Essa doutrina só deve ser aplicada quando não for possível respon-
sabilizar os sócios pessoalmente, por outros meios já previstos em lei.
Walsir Edson Rodrigues Júnior cita, como exemplo, a transferência
de recursos financeiros da sociedade para os sócios ou pessoas ligadas
ao sócio com o objetivo de inviabilizar a satisfação de uma dívida
exequenda. Caracterizado está o desvio de finalidade e, consequente-
mente, a possibilidade de deferimento do pedido de desconsideração
da personalidade jurídica, que pode ser feito incidentalmente na

20
FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 154.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
397

própria ação de execução a fim de que o patrimônio dos sócios possa


ser atingido pela penhora.21
Nesse diapasão, assevera César Fiuza que:

[...] o abuso de personalidade ganhou tipificação aberta, ficando as


hipóteses concretas subsumidas às espécies concebidas como desvio
de finalidade da pessoa jurídica e confusão patrimonial entre os bens
da pessoa jurídica e seus membros. Ocorrerá desvio de finalidade,
sempre que a pessoa jurídica não cumprir a finalidade a que se des-
tina, causando, com isso prejuízos a terceiros. Além disso, é também
desvio de finalidade, ou melhor, de função, o desrespeito ao princípio
da função social da empresa. A confusão patrimonial ocorrerá quando
não for possível estabelecer claramente o que é da sociedade e o que é
dos sócios. Destaque-se que a confusão patrimonial também ocorre nos
casos de dissolução irregular da pessoa jurídica, quando desaparecem
os sócios e os bens, e remanescem débitos a ser pagos.22

E mais: conforme Raquel Nunes Bravo, “para a teoria da descon-


sideração, o abuso ocorre quando o titular de um direito subjetivo
extrapola os limites dados pela lei, ou contraria o fim econômico, a
boa-fé objetiva (conduta esperada) e social”.23

Só comprovado cabalmente o desvio no uso da pessoa jurídica, é que


cabe falar em desconsideração, e consequente sacrifício da respectiva
autonomia patrimonial, olvidando a separação entre sociedade e sócios.24

Nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, é


importante frisar que é apenas em um afastamento pontual e momen-
tâneo da personalidade jurídica para solver crédito em caso concreto,
não podendo se falar em extinção.
Tanto Pablo Stolze Gagliano quanto Rodolfo Pamplona Filho
entendem que:

O afastamento da personalidade jurídica deve ser temporário e tópico,


perdurando, apenas no caso concreto, até que os credores se satisfaçam
no patrimônio pessoal dos sócios infratores, verdadeiros responsáveis

21
RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas,
2012, p. 219.
22
FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 157.
23
BRAVO, Raquel Nunes. Sociedades Afetivas: dissoluções e a desconsideração da personalidade
jurídica inversa. Curitiba: Juruá, 2013, p. 66.
24
SERICK, Rolf. Apariencia Y realidade em las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por
medio de la persona jurídica. Trad. José Puig Brutal. Barcelona: Ariel, 1958, p. 241.
398
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

pelos ilícitos praticados. Ressarcidos os prejuízos, sem de simultânea


responsabilização administrativa e criminal dos envolvidos, a empre-
sa, por força do próprio princípio da continuidade, poderá, desde que
apresente condições jurídicas e estruturais, voltar a funcionar.25

A desconsideração da personalidade jurídica, dessarte, é meio de


adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais foi criada, é mecanismo
para limitar e coibir seu uso indevido.26 Em razão disso, a personalidade
jurídica deve se afastar provisoriamente e em momento determinado.
Nesse sentido, Simone Gomes Rodrigues também defende que
“o desvio da entidade jurídica de seus fins, de modo ilegítimo, abusivo,
danoso, faz com que deixe de existir, ainda que momentaneamente
e apenas para determinados efeitos, razão jurídica para a separação
patrimonial”.27
Deve-se sempre reforçar que a disregard doctrine não extingue a
pessoa jurídica que sobrevive integralmente. Somente em momento
preciso e para fins determinados é descartada a sua autonomia. O
juiz “se limita a confinar a pessoa jurídica precisamente à esfera que o
Direito lhe reservou”.28
Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica:

[...] não visa destruir ou questionar o princípio de separação da persona-


lidade jurídica da sociedade da dos sócios, mas, simplesmente, funciona
como mais um reforço ao instituto da pessoa jurídica, adequando-o a
novas realidades econômicas e sociais, evitando-se que seja utilizado
pelos sócios como forma de encobrir distorções em seu uso.29

3.5 A aplicação da disregard doctrine no Código de


Processo Civil de 2015
Em uma perspectiva temporal, constata-se que o Código de
Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869) foi sancionado e alcançou a sua

25
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume
1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 220.
26
VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella common
law e nella civil law. Milão: Giuffrè, 1964, p. 195.
27
RODRIGUES, Simone Gomes. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de
Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 11, p. 7, jul./set. 1994.
28
SERICK, Rolf. Apariencia Y realidade em las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por
medio de la persona jurídica. Trad. José Puig Brutal. Barcelona: Ariel, 1958, p. 242.
29
SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito
brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 35.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
399

expressão inicial no momento em que o país estava sob o governo


da ditadura militar. Decerto, mitigou diversas garantias e direitos
fundamentais e, consequentemente, deixou várias lacunas no tocante
ao procedimento a ser adotado na aplicação da disregard doctrine,
especialmente em se tratando da discussão a respeito do embate entre
a garantia dos direitos dos credores e o direito ao devido processo legal
e seus pilares do contraditório e da ampla defesa.
Nesse quadro, a Carta Magna de 1988 simbolizou um marco
significativo na conquista de direitos na história do povo brasileiro,
vez que estabeleceu, na República Federativa do Brasil, o Estado
Democrático de Direito.
É notório que, pelo fato de o Código de Processo Civil de 1973
ser anterior à atual conjectura constitucional brasileira, este diploma
permaneceu por anos postulando reformulações, vez que seu teor não
condizia mais com a nova condição legislativa do país.
No que se refere à disregard doctrine em si, a sua aplicação ocorria
amparada por uma jurisprudência oscilante à luz dos princípios gerais
do direito, de modo que, no aspecto processual, a prática corrente da
desconsideração da personalidade jurídica era habitualmente utilizada
na fase de execução e no cumprimento de sentença, podendo ocorrer,
algumas vezes, abusos por sua indiscriminada ação, tornando-se neces-
sária a inserção desse dispositivo no Código de Processo Civil de 2015.
Assim, depois de extenso debate e desenvolvimento, foi aprovado
o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), que passou a
vigorar em 16 de março de 2016.
Como anteriormente demonstrado, a positivação da desconsi-
deração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro deu seus
primeiros passos com o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.
Posteriormente, outros diplomas consagraram essa teoria, a exemplo
da Lei Antitruste, em seu artigo 18, e da Lei nº 9.605/98, referente aos
prejuízos ambientais. Em seguida, em 2002, o então novo Código Civil
postulou a disregard doctrine em seu artigo 50.
Desse modo, nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro
legitimou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em
vários diplomas e hipóteses de aplicação, mas nem sempre de forma
clara e objetiva o suficiente para que a jurisprudência, não obstante,
nos surpreendesse com decisões notavelmente discrepantes.
A partir da edição do Código de Processo Civil de 2015, foi
instituído um procedimento (nos artigos 133 a 137 da lei) que confere
segurança jurídica à aplicação do instituto, afastando o casuísmo e
garantindo previsibilidade.
400
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Ilustra esse cenário Guilherme Rizzo Amaral, o qual ensina que:

A jurisprudência já vinha reconhecendo, sob a égide do CPC revogado,


a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica dar-se
incidentalmente no processo, prescindindo, assim, de ação autônoma
para a sua efetivação. Contudo, a ausência de procedimento específico
previsto em lei gerava insegurança jurídica, na medida em que nem
sempre se observava a também reconhecida necessidade de citação do
sócio para se efetivar a desconsideração. Não raro, a desconsideração
da personalidade jurídica e a penhora de bens dos sócios davam-se
em decisão interlocutória não precedida do contraditório, obrigando o
terceiro atingido em sua esfera jurídica pela decisão a voltar-se contra
ela por meio de agravo de instrumento que não substitui, em hipótese
alguma, a defesa que poderia e deveria ser apresentada em primeiro
grau de jurisdição. Os artigos 133 a 137 do atual CPC, vieram, assim,
trazer segurança jurídica ao tema da desconsideração, transformando
em lei o procedimento que já vinha sendo aplicado pela jurisprudência
do STJ em diversos julgados.30

Dessa forma, pode-se considerar um significativo avanço legis-


lativo, o que ocorreu com o novo diploma processualista de 2015, vez
que foram criadas certas formalidades que permitirão a aplicação da
teoria da disregard doctrine de forma mais razoável e segura.
O Código de Processo Civil de 2015 realça, de forma especial, a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, contando com um
capítulo autônomo destinado à intervenção de terceiros, regulando a
matéria em nível processual como tema incidente e disciplinar à aplicação
do instituto no direito processual pátrio, qual seja, o capítulo IV do
título II, denominado justamente “Do Incidente de Desconsideração
da Personalidade Jurídica”.
Antes, porém, é importante sublinhar que o incidente processado
não versa em autos apartados, uma vez que o Código de Processo Civil
de 2015 dispensou esta técnica, comum no Código de Processo Civil
de 1973, suprimindo-a em conjecturas clássicas, como a exemplo do
incidente de falsidade documental, contido no art. 430. Em tese, o debate
dar-se-á, contudo, no interior do processo, em que, debatida a questão
principal e objetivando a simplificação, nada opõe que, em uma situação
concreta, o magistrado possa decidir pela autuação apartada se houver
justificativa para que o processo prossiga no trato das questões principais
ou se assim recomendar a organização do incidente, principalmente se

30
AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 357.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
401

houver outros pedidos, ocasionalmente cumulados que, com o tema


incidental, não se relacionem.
O art. 133 e seus parágrafos respectivos iniciam apresentando a
disregard doctrine em sua forma incidental e prelecionam que:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica


será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando
lhe couber intervir no processo.
§1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará
os pressupostos previstos em lei.
§2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração
inversa da personalidade jurídica.

A redação do art. 133 do Código de Processo Civil de 2015,


que cuida desse incidente, em definitivo deve enterrar a tese de que
o dispositivo jurídico deve ser aplicado por meio de ação autônoma
na justiça, visto que o texto, em qualquer processo ou procedimento,
permite ao juiz operá-lo.
Primeiramente, fica evidente nesse dispositivo que o magistrado
só atua se as partes forem provocadas e que, se não houver pedido
expresso da parte ou do Ministério Público, o julgador fica impedido
de promover o afastamento da personalidade jurídica.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica não pode


ser instaurado de ofício, dependendo sempre de provocação da parte
interessada ou, quando atue no processo, do Ministério Público. O
dispositivo está em plena consonância com o que dispõe o artigo 50
do CC/2002, que expressamente exige provocação da parte (ou do
Ministério Público) para a desconsideração da personalidade jurídica,
mas vem eliminar o risco de que, nas causas previstas na legislação
consumerista, se desse ao artigo 28 do CDC (que é silente sobre o ponto)
interpretação no sentido de que ali seria possível desconsiderar-se ex
officio a personalidade jurídica. Fica claro, então, que a desconsideração
da personalidade jurídica jamais poderá ser decretada de ofício, depen-
dendo, sempre, de provocação.31

Pode-se constatar com a redação desse dispositivo legal que, sob


a égide do novo diploma, fica extinta a aplicação da desconsideração
da personalidade jurídica ex officio pelo juiz sem que haja a participação
da parte diretamente afetada ou o devido processo legal, porquanto o

31
CÂMARA, Alexandre Freitas. In: WAMBIER, Teresa Arruda et al. (Coords.). Breves comentários
do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 515-516.
402
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

incidente procederá com a citação do polo passivo e, como de hábito,


poderá ser provocada por meio de agravo de instrumento32 ou por
agravo interno, se esta tiver sido prolatada em segunda instância.
Todavia, a vedação à atuação ex officio do magistrado no tocante
à penetração da personalidade jurídica comporta exceções:

Há casos especiais em que a legislação permite adoção de medidas de


ofício pelo juiz em decorrência da desconsideração da personalidade
jurídica, como ocorre no art. 82, parágrafo 2º da Lei 11.101 (Regula a
recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da
sociedade empresária). Trata-se, contudo, de exceção à regra geral
estabelecida no CPC.33

A seguir, percebe-se também que, ao prescrever no §1º do artigo


133, que reza que a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica deve observar “os pressupostos previstos em lei”, o legislador
nos recomenda que o juiz utilize tal teoria sob a luz dos ditames legais
e princípios norteadores do direito brasileiro, com o escopo de evitar
possíveis arbitrariedades.
O inciso II do referido artigo nos chama a atenção, uma vez que
refere a outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica,
em que quem comete a fraude e o desvio de finalidade é o sócio, e não
a administração da empresa em si.
Em tal caso, aplica-se o que se convencionou chamar de descon-
sideração da personalidade jurídica inversa e, diante disso, os bens
do sócio são o alvo da execução, sendo necessário desconsiderar-se a
personalidade jurídica para que estes possam ser atingidos.
O artigo 134 do códex dispõe que:

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do


processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução
fundada em título executivo extrajudicial.
§1º: A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao
distribuidor para as anotações devidas.
§2º: Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da
personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que
será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

32
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem
sobre:
IV – incidente de desconsideração da personalidade jurídica;
33
AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 362.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
403

§3º: A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipó-


tese do §2º.
§4º: O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupos-
tos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Ademais, em homenagem à garantia da duração razoável do


processo e à celeridade processual, percebe-se não se tratar de uma
ação autônoma, e sim de um incidente processual, apresentando-se em
qualquer etapa do processo, quer seja fase de conhecimento, cumpri-
mento de sentença ou mesmo execução de título executivo extrajudicial.

É claro que poderá o órgão julgador julgar inconveniente a instaura-


ção do incidente em determinados casos e, com isso, indeferi-la, sem
prejuízo de renovação de requerimento posterior. Isto porque, se a
desconsideração da personalidade jurídica serve para que ‘os efeitos
de certas e determinadas sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens da empresa
do mesmo grupo econômico’, não haveria interesse processual em se
instaurar o incidente, por exemplo, em grau de apelação contra sentença
que julgou improcedente a demanda, na medida em que nem sequer o
reconhecimento da obrigação do réu verificar-se-ia na hipótese.34

Reforça Guilherme Rizzo Amaral:

O legislador optou pela dispensa de ação própria para o fim da descon-


sideração. Assim, o NCPC, ao reservar o espaço do incidente para o trato
da questão, reafirmou o caráter sumário do debate a ser estabelecido.
Embora não haja restrições na Lei acerca de tipos de prova ou prazos,
o fato é que não se pode imaginar a amplitude do debate peculiar ao de
uma ação própria travestida em incidente, sobretudo quando proposto
no curso do processo de conhecimento.35

O §3º do art. 134 reza sobre a suspensão do processo no momento


da instauração do incidente da desconsideração da personalidade
jurídica, exceto se requerida na petição inicial, momento em que a
sociedade ou o sócio serão citados para responder dentro do prazo para
a defesa. Nesse período de suspensão, fica resguardada ao magistrado
a prerrogativa de estabelecer atos urgentes de acordo com o disposto no

34
AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 364.
35
Nesse sentido, WALBIER, Tereza Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao Novo Código
de Processo Civil. São Paulo: RT, p. 252 e 255.
404
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

art. 314.36 “Frise-se, que independentemente da suspensão, o incidente


deve ser decidido antes do mérito, uma vez que seu resultado pode
inserir novos réus, os quais terão suas garantas processuais violadas
se contra eles incidir decisão prolatada anteriormente.”37
Interessante anotar a consagração dos princípios constitucionais
da ampla defesa e do contraditório nos casos de instauração do incidente
da desconsideração da personalidade jurídica, que determina a citação
do polo passivo ao sócio ou à pessoa jurídica, como já dito, que poderá
se manifestar com o prazo regular de 15 dias e especificar provas, se
entender necessário, conforme determina o art. 135: “Art. 135. Instaurado
o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se
e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”.
O sócio ou a pessoa jurídica são citados com todas as formali-
dades e consequências características do ato citatório que estão contidas
nos arts. 238 a 259, procedendo-se ao registro na distribuição, referido
no art. 134, §1º, e, dependendo do objeto da discussão incidental, o
registro, por extensão, da presença do incidente nos moldes do art.
828,38 que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica
em execução pecuniária ou do art. 167, I, nº 21, da Lei nº 6.216/75,39 que
trata da teoria em demandas de natureza real ou reipersecutória. Esses
registros, sempre que cabíveis, têm por escopo proteger o requerente
contra a alienação de patrimônio pelo terceiro, nos termos do art. 137.40

36
Art. 314. Durante a suspensão é vedado praticar qualquer ato processual, podendo o juiz,
todavia, determinar a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, salvo
no caso de arguição de impedimento e de suspeição.
37
DONIZETTE, Elpídio. Novo Código de Processo Civil Comentado (Lei Nº 13.105 de 16 de março de
2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC /73. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 115.
38
Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com
identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis,
de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.
§1º: No prazo de 10 (dez) dias de sua concretização, o exequente deverá comunicar ao juízo
as averbações efetivadas.
§2º: Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor da dívida, o exequente
providenciará, no prazo de 10 (dez) dias, o cancelamento das averbações relativas àqueles
não penhorados.
§3º: O juiz determinará o cancelamento das averbações, de ofício ou a requerimento, caso
o exequente não o faça no prazo.
§4º: Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a
averbação.
§5º: O exequente que promover averbação manifestamente indevida ou não cancelar as
averbações nos termos do §2º indenizará a parte contrária, processando-se o incidente em
autos apartados.
39
Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:
I – o registro (...) 21) das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis;
40
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida
em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
405

Referindo-se à citação do art. 135, acresce Cassio Scarpilella Bueno:

A citação (e não mera intimação) dos sócios ou terceiros é indispensável,


estabelecendo-se, se maneira incidental no processo em curso, inde-
pendentemente da fase em que ele se encontre, o cabível contraditório
entre a existência, ou não, de fundamento para a desconsideração da
personalidade jurídica pretendida. O prazo para a defesa é de 15 dias.41

A respeito do art. 136, o legislador foi coerente ao estabelecer


o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como uma
decisão interlocutória, visto que, conforme o §1º do art. 20342 deste
diploma processual, é considerado sentença “o pronunciamento por
meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase
cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”.
Assim, como a decisão que resolve este incidente não extingue a fase
cognitiva, nem a executiva do processo, será enquadrada como decisão
interlocutória, como disposto no §2º do art. 203. Nesse contexto, o art.
136 deverá ser interpretado conjuntamente com o art. 1.015, IV,43 que
dispõe sobre a possibilidade de ser questionada por meio de agravo
de instrumento a decisão que resolve o incidente, pois, em tese, são
irrecorríveis as decisões interlocutórias. “Art. 136. Concluída a instrução,
se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.”
Cumpre destacar que, com o provimento do incidente, a pessoa
jurídica ou o sócio passará à condição de litisconsorte, tornando-se
parte no processo, inclusive no processo de execução.
Ante os fatos apontados, levando-se em consideração todas as
inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, no entendi-
mento da doutrina, o incidente da desconsideração da personalidade
jurídica não suprimiu de forma cabal a prerrogativa que possui o juiz,
com base em sua discricionariedade, de atingir os bens dos sócios em
causas, por exemplo, que demandem medidas liminares.

41
BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 134.
42
Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e
despachos.
§1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pro-
nunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase
cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.
§2º Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não
se enquadre no §1º. (...)
43
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem
sobre: (...)
IV – incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (...)
406
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Melhor dizendo, nas demandas que implicam pedido de anteci-


pação dos efeitos de tutela ou pedidos liminares no propósito de
desconsiderar a personalidade jurídica, a tutela de urgência poderá ser
concedida inaudita altera parte, e o contraditório poderá ser deferido na
medida em que estejam presentes requisitos tradicionais para o deferi-
mento da concessão de liminar ou da tutela antecipada.
Esse conjunto de alterações processadas no sentido de garantir o
contraditório no procedimento da disregard doctrine pode dar a impressão
de que este códex se preocupou em excesso com a segurança patrimonial
dos sócios a serem executados.
Desse modo, cumpre ressaltar, no entanto, “que não há elementos
que impeçam o magistrado de, no exercício de seu poder geral de cautela,
conceder tutela que aproxime a aplicação do dispositivo à resolução
útil do processo”.44
Em conformidade, assevera Daniel Amorim Assumpção Neves:

O Novo Código e Processo Civil prevê um incidente processual para


a desconsideração da personalidade jurídica, finalmente regulamen-
tando seu procedimento. Tendo seus requisitos previstos no art. 28 do
Código de Defesa do Consumidor e no art. 50 do Código Civil, faltava
uma previsão processual a respeito do fenômeno jurídico, devendo ser
saudada tal iniciativa. Segundo o art. 1062 do Novo CPC, o incidente
de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de
competência dos juizados especiais. Nos termos do art. 795, §4º, do Novo
CPC, para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a
observância do incidente previsto no Código.
A norma torna o incidente obrigatório, em especial na aplicação de
suas regras procedimentais, mas o art. 134, §2º, do Novo CPC consagra
a hipótese de dispensa do incidente. A criação legal de um incidente
processual afasta dúvida doutrinária a respeito da forma processual
adequada à desconsideração da personalidade jurídica.45

Logo, conclui-se que, em se tratando da muito discutida teoria


da desconsideração da personalidade jurídica, o Código de Processo
Civil de 2015 dedicou-se com prontidão a assegurar o contraditório das
empresas e sócios, protegendo a segurança patrimonial destes, com o
intuito de coibir a aplicação descabida da teoria da disregard doctrine
pelo judiciário.

44
COSTA, Daniel Carnio. Considerações sobre o poder geral de cautela. Revista Científica
Integrada – Unaerp, Campus Guarujá, n. 1, mar. 2012.
45
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Método, 2015,
p. 141.
LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
407

O grande temor dos aplicadores da teoria está no fato de que,


antes, o instituto da disregard doctrine era aplicado com agilidade, mas
de forma insensata em várias situações. Com a nova regularização,
deverá ganhar em plausibilidade, mas poderá perder em celeridade.
Enfim, o que se percebe, em várias oportunidades, é que o ritua-
lismo e o procedimentalismo dificultam em demasia a efetividade.

3.6 Conclusão
O artigo teve por objeto a análise da desconsideração da perso-
nalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015.
O legislador foi cuidadoso ao estabelecer a possibilidade da ampla
defesa e contraditório antes da aplicação do instituto. Isso possibilita a
manifestação da parte antes de ter invadido o seu patrimônio.
Teve ainda a preocupação de acelerar o processo, no sentido
de torná-lo mais efetivo, ao colocá-lo como um incidente processual.
Apesar de todas essas preocupações, o instituto ficou mal estabe-
lecido. A desconsideração da personalidade jurídica é feita para salvar o
patrimônio do empresário e responsabilizar quem efetivamente praticou
o ato. Na forma em que ficou estabelecido no Código de Processo
Civil, o instituto é uma ampliação da responsabilidade para os sócios e
administradores que efetivamente praticaram o ato abusivo, e não uma
efetiva desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar
quem praticou o ato danoso.

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408
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
409

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BASTOS, Luciana de Castro; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. A


desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de
2015. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU,
Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil:
repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 387-409.
ISBN 978-85-450-0456-1.
CAPÍTULO 4

NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO


PARCIAL DE SOCIEDADES1

Pedro D’Angelo Ribeiro


Roberto Henrique Pôrto Nogueira

4.1 Considerações iniciais


A dissolução parcial de sociedades é de suma importância para
viabilização da continuidade e preservação da empresa.
O Código de Processo Civil anterior2 (CPC anterior) manteve a
disciplina de seu antecessor3 no que tocava à dissolução e liquidação
de sociedades. Voltada à dissolução total e liquidação das sociedades,
havia ausência de um rito processual que permitisse resolver a sociedade
apenas em relação a um ou alguns sócios.
Naquele cenário, o direito material que disciplinava a disso-
lução e liquidação das sociedades era proveniente do antigo Código
Comercial,4 que refletia o pensamento individualista da época, que

1
Parte deste trabalho conta com o apoio do Auxílio Pesquisador/UFOP.
2
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial da União: Institui o Código de
Processo Civil. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L5869.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
3
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio
de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/
Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
4
BRASIL. Lei nº 556, de 25 de junho de 1850. Código Comercial. Coleção de leis do Brasil, Rio
de Janeiro, 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0556-1850.
htm>. Acesso em: 25 ago. 2010.
412
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

concebia como causas de dissolução da empresa eventos estritamente


ligados à pessoa do sócio.5
À luz do Código Civil italiano, a jurisprudência passou a
reconhecer a possibilidade de dissolução parcial requerida pelo sócio
dissidente da antiga sociedade por quotas como verdadeiro direito
potestativo, similar à mecânica da sociedade por ações.6 Contudo,
diante da falta de regulamentação pelo direito material e processual,
havia fortes dissensos jurisprudenciais refletindo na fórmula utilizada
de apuração de haveres, no momento da exclusão do sócio dissidente
e, ainda, na aplicação supletiva das leis de dissolução atinentes às
sociedades anônimas.7
A carência de regulamentação legal foi relativizada com o advento
do Código Civil8 (CC), que positivou a disciplina referente à dissolução
parcial das sociedades sob o título de “resolução da sociedade em
relação a um sócio”, denominação que, inclusive, foi alvo de críticas9
da doutrina.
O Código de Processo Civil vigente10 (NCPC) introduziu no
ordenamento pátrio o regime processual próprio da dissolução parcial
de sociedade.
O objetivo do trabalho teórico-dogmático que pretende imple-
mentar investigação jurídico-comparativa é traçar um paralelo entre o
procedimento anterior de dissolução parcial, sobretudo nas sociedades
limitadas, e o novo procedimento especial, buscando identificar em que
medida houve a superação de antigos entraves.

5
COMPARATO, 1990 apud NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Dissolução Parcial de Sociedades.
Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 13-15.
6
COMPARATO, 1990 apud NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Dissolução Parcial de Sociedades.
Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 13-15.
7
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 76-78.
8
BRASIL. Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial
da União, Brasília, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 27 ago. 2012.
9
Fábio Ulhoa Coelho critica a designação legal, asseverando que nem todas as hipóteses
são de resolução; a hipótese contida no art. 1029, que tem por base a retirada imotivada do
sócio, é de resilição do contrato da sociedade (COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução
parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr.
2011. p. 165. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015).
10
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de janeiro de 2015. Diário Oficial da União: Código de Processo
Civil. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/
Lei/L13105.htm>. Acesso em: 12 maio 2015.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
413

4.2 Dissolução parcial das sociedades antes do Código


de Processo Civil de 2015, de acordo com o Código
Civil de 2002
O CC encarregou-se da disciplina material relacionada ao que
se entende genericamente como “dissolução parcial das sociedades”,
tratada como uma ruptura limitada do contrato social.11 Passou a
contemplar as hipóteses já antes observadas pela construção jurispru-
dencial existente, com ligeiras modificações.
Desse modo, numa visão ampla, isso possibilitou o desligamento
do sócio sem haver necessidade de extinguir completamente a sociedade.
Feito isso, algumas das hipóteses elencadas ocorrem sem a necessidade
de um processo de conhecimento para a ruptura do contrato social,
que, no presente trabalho, se define como dissolução extrajudicial ou
de pleno direito.
As modalidades existentes de dissolução parcial são definidas
como: direito de retirada e recesso; exclusão do sócio; dissolução
convencionada no contrato social; dissolução judicialmente decretada;
falência do sócio; retirada do sócio contemplada pelo contrato social;
e, por fim, a morte do sócio.12
O direito de retirada é aquele exercido pelo sócio mediante mera
manifestação de vontade unilateral e que impõe à sociedade a obrigação
de reembolsar o investimento anteriormente feito na forma do valor das
quotas sociais. A retirada, portanto, é direito potestativo irrenunciável
e indivisível que opera sempre ex nunc, ou seja, produz efeitos apenas
depois que efetivamente exercido.13
O direito de retirada divide-se em duas modalidades: a retirada
motivada e imotivada. A retirada motivada, convencionalmente chamada
de direito de recesso, pode decorrer da alteração do contrato social,
que acarreta mudanças na estrutura social, causando a dissidência
do sócio. É cabível em qualquer tipo de sociedade limitada, seja por
prazo determinado ou indeterminado.14 São também elencadas como

11
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 3.
12
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 3.
13
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 11.
14
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 144. Trimestral. Disponível em:
414
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

razões que autorizam a retirada motivada, a incorporação e a fusão.15 A


retirada imotivada geralmente decorre do desinteresse de um dos sócios
em manter-se na empresa, em suas atividades ou no convívio social.
É cabível a retirada imotivada se satisfeitas duas condições: a) seja a
sociedade regida supletivamente pelas regras da sociedade simples; e
b) seja o contrato social vigente por prazo indeterminado.
Para a doutrina, ao menos antes do NCPC, tendia a prevalecer
a posição de que a retirada se efetivava assim que a sociedade fosse
cientificada pelo sócio, produzindo efeitos perante terceiros a partir do
registro no órgão competente.16
A exclusão do sócio remete ao seu afastamento compulsório,
quando haja descumprimento de obrigações sociais. É promovida pelos
sócios remanescentes, que desejam permanecer unidos sob o vínculo
societário. Independentemente de ser promovida judicial ou extrajudi-
cialmente, admite-se apenas a exclusão motivada, em razão de o sócio
incorrer nas causas autorizadoras elencadas em lei, no contrato social,
além de outras não prescritas pelo legislador que possam eventualmente
surgir. A primeira hipótese, prevista no art. 1.004 do CC, permite, no caso
de um dos subscritores do capital, mostrar-se inadimplente quanto à
integralização das quotas, que seja operada a exclusão do sócio remisso,
pagando-se, evidentemente, as prestações por ele saldadas ou reduzindo
o capital social. Salvo disposição em contrário no contrato social, faz-se
necessária a interpelação do sócio devedor para que este seja constituído
em mora. Quando decretada a falência do sócio, também é imposta a
sua exclusão, conforme art. 1.030. A falência do sócio não significa,
por óbvio, que a sociedade se dissolve de pleno direito. Em verdade,
ela acarreta tão somente a exclusão do falido dos quadros sociais,
diante da necessidade de arrecadação de seus ativos naqueles autos de
execução concursal. Procede-se, nesse caso, à apuração de haveres, na
forma do art. 1.031 do CC. Caso a exclusão do sócio falido acarrete ou
evidencie a impossibilidade de continuidade da atividade empresarial
pela sociedade, e esta venha a falir, a arrecadação de sua participação

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
15
Ao revés, pode levar a interpretações restritivas e equivocadas em relação à cisão e à
transformação, já que as referidas operações de incorporação societária não são mencionadas
como hipóteses de retirada no art. 1.077 do CC, induzindo o magistrado ao erro, conforme
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 14.
16
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 11.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
415

no acervo depende do prévio pagamento de todo o passivo social, na


inteligência do art. 123, §1º, da Lei nº 11.101.17 A terceira possibilidade
de exclusão de sócio encontra previsão no art. 1.026, parágrafo único,
segundo o qual: “Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor
requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma
do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até
noventa dias após aquela liquidação” (CC). Trata-se da liquidação de
quota social por credor particular do sócio ante a insuficiência de seus
bens, de modo que o capital social deve sofrer a redução correspondente
à quota liquidada. Em relação aos sócios minoritários na sociedade
limitada, tem lugar, ainda, a exclusão extrajudicial ou administrativa,
estabelecida no art. 1.085 (CC).
O CC, observando a orientação vigente no direito estrangeiro e
a tendência da jurisprudência pátria, positivou, em seu art. 1.028, que,
com algumas exceções, a morte do sócio implica apenas liquidação da
sua quota, e não a dissolução da sociedade.
A dissolução parcial propriamente dita já vinha sendo deferida
em homenagem ao princípio da preservação da empresa, sempre que
houvesse a quebra do vínculo social (affectio societatis) nas sociedades
por prazo indeterminado.18

4.3 Dissolução parcial: aspectos controversos anteriores


ao Código de Processo Civil de 2015
O procedimento da ação de dissolução parcial,19 em aspecto
processual, funcionava socorrendo-se das regras do procedimento
comum ordinário, porém, com características peculiares ao gênero.
Tal carência, conforme leciona Priscila Fonseca,20 levava o intérprete a
socorrer-se ora de normas referentes ao procedimento de dissolução

17
BRASIL. Lei nº 11.101, de 09 de janeiro de 2005. Diário Oficial da União: Regula a recuperação
judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.. Brasília, DF.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>.
Acesso em: 12 jun. 2015.
18
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 62-63.
19
Opta-se, aqui, por diferenciar processualmente a fase de dissolução propriamente dita e a fase
de apuração de haveres, que, conforme exposto, já podia ser deflagrada sem a necessidade
de processo de conhecimento anterior para a alteração do contrato social, que também já
ocorria de pleno direito, com características peculiares.
20
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 75.
416
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

total ainda em vigor e que remete aos arts. 655 usque 674 do Código de
Processo Civil,21 ora do regramento relativo à dissolução, liquidação
e extinção das sociedades por ações, contido na Lei nº 6.404.22 Assim,
tinha lugar sempre que não havia possibilidade de resolução do vínculo
através da via contratual ou extrajudicial, ou havia pretensão resistida
entre o sócio afastado e os demais referente à ruptura do contrato social.
No entanto, a aplicação dessas normas parecia contraditória,
uma vez que as finalidades dos institutos eram opostas na medida em
que a dissolução parcial já objetivava preservar a empresa, enquanto a
dissolução total sempre ocasionou a extinção da sociedade por completo.
Tal panorama era terreno fértil para controvérsias.

4.3.1 Dos atos relativos à liquidação de sociedades na


dissolução parcial
A aplicação das normas relativas à dissolução total e liquidação
societária contidas no Código de Processo Civil23 e na Lei nº 6.404 à disso-
lução parcial ocasionava incongruências normativas. Afinal, neste último
cenário, “(...) não há que se falar em liquidação do ativo e do passivo e,
portanto, sequer em nomeação do liquidante, pois nesta não há lugar
para semelhante função”.24 A rigor, “[e]fetivamente, nada justifica, na
dissolução parcial, a investidura de pessoa diversa do liquidante para
a prática de atos que só a ele são atribuídos”.25 Nessa senda, também
nada explicava que, na ação de dissolução parcial, fosse atribuída pelo
magistrado, a quem quer que seja, prática de atos privativos delegados
ao liquidante em dissoluções de sociedades anônimas, contidos nos
arts. 210 e 211 da lei de regência.26 Porém, não obstante a manifesta

21
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio
de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/
Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
22
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de janeiro de 1976. Diário Oficial da União: Dispõe sobre as
Sociedades por Ações. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.
htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
23
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio
de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/
Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
24
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 76.
25
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 76.
26
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de janeiro de 1976. Diário Oficial da União: Dispõe sobre as
Sociedades por Ações. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.
htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
417

incompatibilidade de funções, não eram poucos os magistrados que,


socorrendo-se da analogia, outorgavam ao liquidante a tarefa de apurar
os haveres correspondentes à participação devida ao sócio retirante.27
Este era o entendimento sedimentado pela Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) até o começo da década passada.28
Em sentido oposto, a Quarta Turma do STJ, em julgado mais
recente,29 ainda naquele contexto anterior ao NCPC, entendeu que apenas
a figura de um perito contador (eventualmente podendo ser assessorado
por outros profissionais especializados em avaliar bens) era concebível,30
de modo que a ele não poderia competir representar a sociedade em juízo
(sociedade que nem mesmo se encontra sob intervenção judicial), alienar
bens pertencentes ao ativo social, pagar o passivo, promover a cobrança
de dívidas e outros atos incompatíveis com sua função.
Ficava, então, instalada a dúvida, pois a mesma Corte Superior
parecia apresentar entendimentos dissonantes em relação ao tema,
demonstrando o equívoco causado pela aplicação analógica de normas
estranhas à finalidade pretendida.

4.3.2 Possibilidade de dissolução parcial nas sociedades


anônimas de capital fechado
A dissolução parcial foi concebida no âmbito das sociedades
limitadas. Porém, indagava-se se era aplicável às sociedades anônimas.
Os argumentos contrários baseavam-se, sobretudo, na impossibi-
lidade jurídica do pedido, eis que a lei que rege as sociedades anônimas
já contemplaria o direito de recesso; e no fato de que não se poderia
aplicar às sociedades anônimas, constituídas com intuitu pecuniae,
normas e critérios próprios das sociedades de pessoas.31

27
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 77.
28
STJ – REsp: 315915 SP 2001/0038521-4, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES
DIREITO, Data de Julgamento: 08.10.2001, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação:
DJ 04.02.2002, p. 352, RNDJ, vol. 28, p. 145.
29
STJ – REsp: 242603 SC 1999/0115786-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de
Julgamento: 04.12.2008, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18.12.2008.
30
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 78.
31
Constam precedentes nesse sentido no STJ (REsp. nº 419.174-SP; REsp nº 171354-SP; AgRg.
no Ag. nº 34.120-8/SP) e nos Tribunais, como os de São Paulo (Ap. nº 26.887-7) e Minas
Gerais (Ap. nº 1.0702.02.036439-5/001), conforme elucida FONSECA, Priscila M. P. Corrêa
da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 87.
418
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A preservação da empresa justificaria a possibilidade jurídica


do pedido, tanto quanto nas sociedades limitadas. Quanto ao segundo
ponto, o foco é o intuitu pecuniae inerente às sociedades anônimas.
Sustenta a autora que a lei das sociedades anônimas compreende
uma pluralidade de tipos societários regulamentados. Dentre eles, em
especial nas companhias fechadas, “[...] podem-se entrever sociedades
tipicamente de pessoas, nas quais o papel dos acionistas não se resume
ao aporte de capital, mas vai mais além, já que a colaboração deles na
administração de tais sociedades pode se denotar fundamental”.32
Na esteira de julgados anteriores,33 que reconheceram a possibi-
lidade da dissolução da sociedade de capital fechado pela quebra de
affectio societatis, o STJ firmou entendimento,34 mantendo-o no decorrer
dos anos seguintes.35
Ainda assim, mesmo com entendimentos doutrinários e juris-
prudências no sentido da possibilidade de dissolução, ainda havia
controvérsias sobre a aplicabilidade prática, pois havia a necessidade
de observar cada caso individualmente pela falta de regulamentação
legal a respeito do tema.

4.3.3 Legitimidade passiva


À sentença proferida em ação de dissolução parcial já era
reconhecida natureza dúplice, por decretar o desligamento do sócio
e a ruptura parcial do contrato social (constitutiva negativa), além de
deflagrar o processo de apuração de haveres (condenatória).
Priscila Fonseca36 já sustentava que “[...] tal decisão, ao referendar
o desligamento do sócio, determinará forçosa alteração do contrato
social, circunstância que exigirá a presença de todos os sócios no polo
passivo da ação”. Lado outro, a decisão que determinava a apuração
do valor e pagamento dos haveres refletiria diretamente no patrimônio
da sociedade, motivo pelo qual, continua a autora, “[...] a sociedade,
obrigatoriamente, deverá integrar a lide, em litisconsórcio necessário,
com todos os demais sócios”.37

32
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 70.
33
TJSP, Terceira Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 324.222-4/0-00, 2004.
34
BRASIL, STJ, – REsp: 651722 PR 2004/0048237-2.
35
BRASIL, STJ, AgRg no REsp: 1079763 SP 2008/0171572-0.
36
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 102.
37
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 102.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
419

Porém, o entendimento exarado pela nobre professora não era


pacificado pela jurisprudência. O STJ tendia à exigência do litisconsórcio
passivo necessário entre a sociedade e os sócios para mitigá-la no caso
concreto.38 Havia julgados39 que consideravam dispensável a citação
da sociedade quando todos os sócios remanescentes já tivessem sido
devidamente cientificados.40

4.3.4 Legitimidade ativa


A questão da legitimidade ad causam sempre foi objeto de
controvérsia em sede de dissolução parcial das sociedades. O dissídio
se instaurava, principalmente, em torno daqueles que, em razão de
partilha, seja esta decorrente de meação, seja decorrente de inventário,
viessem a receber quotas como parte do patrimônio.41
Assim, a jurisprudência sedimentou, em relação aos herdeiros,
que a transmissão da herança não implica a transmissão automática
do estado de sócio.42 Ao contrário, quando se trata de sociedade intuitu
personae, os sócios remanescentes podem impedir a entrada dos herdeiros
caso não haja previsão expressa em contrário no contrato social.
Então, não restavam dúvidas que tanto os herdeiros do sócio
pré-morto quanto a própria sociedade, esta última por ter também
interesse, já possuíam legitimidade ativa para a propositura da ação,
dependendo apenas do contexto e da possibilidade de os herdeiros
ingressarem ou não na sociedade.43
Quanto ao ex-cônjuge, há grande descompasso em relação à
visão pretoriana e ao atual regramento legal pertinente ao tema. O
STJ consolidou o entendimento no sentido de que “[o] cônjuge que
recebeu em partilha a metade das cotas sociais tem legitimidade ativa
para apurar os seus haveres”.44

38
BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 788886 SP 2005/0165148-7. BRASIL, STJ – REsp: 813430
SC 2006/0020520-0.
39
Ver em: BRASIL, STJ – Recurso Especial nº 332650 RJ 2001/0092909-8; BRASIL, STJ – Recurso
Especial nº 735207 BA 2005/0034846-9.
40
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 105.
41
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012.
42
BRASIL, STJ – Recurso Especial nº 537611 MA 2003/0051041-8.
43
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 101.
44
BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 114708 MG 1996/0075143-9.
420
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

A contrario sensu, o art. 1.027 do CC preceitua que os “herdeiros


do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não
podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas
concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”.
Ainda se tratando dos herdeiros do cônjuge do sócio, estes também
suportam a mesma restrição acima elencada, com o direito limitado à
percepção dos lucros. Porém, caso venham a herdar do sócio o restante
das quotas sociais, criam-se duas situações distintas em relação à mesma
sociedade: a) pelas quotas herdadas do cônjuge do sócio, apenas o
direito de auferir lucros; e b) através das quotas herdadas do sócio, a
plena titularidade, podendo, se for o caso, ingressar efetivamente no
quadro social ou requerer a dissolução parcial e apuração dos haveres
com relação apenas a tais quotas.
Não bastasse essa situação iníqua e incômoda,45 o CC, em seu
art. 1.026, parágrafo único, defere ao credor do sócio o direito a liquidar
sua quota.

4.3.5 Ônus decorrentes de sucumbência e pagamento


de verbas honorárias
Caso os sócios ou a sociedade apresentassem resistência à
pretensão do sócio retirante e, ao final, fossem vencidos, haveria a
condenação no pagamento de verbas de sucumbência, incluídas aí as
verbas honorárias. A base de cálculo seria o valor dos haveres apurados
e pagos ao sócio retirante, cumulados com eventuais perdas e danos.46
Em sede jurisprudencial,47 existiam entendimentos divergentes,
partindo do pressuposto que a sentença, por ser constitutiva negativa,
deveria se sobrepor ao caráter condenatório que emerge da decisão.
Assim, asseveravam que a verba honorária deveria ser regulada pelo
art. 20, §4º, do CPC anterior.
Com efeito, se o pedido da ação fosse julgado improcedente, não
haveria condenação do pagamento dos haveres ao sócio dissidente; o
mesmo se aplicaria caso a sociedade, sujeito passivo da ação condenatória
e quem deveria pagar os haveres apurados, tivesse patrimônio líquido

45
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 99.
46
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 134.
47
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº
1.0024.07.754408-8/001. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
Apelação Cível nº 106720311910060011.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
421

negativo, acumulando, portanto, dívidas. Em tais casos, os honorários


seriam fixados de acordo com o valor atribuído à causa.48
Porém, a dissidência doutrinária e jurisprudencial de maior
relevância em relação aos honorários de sucumbência dizia respeito aos
casos nos quais o réu concordasse com a pretensão deduzida pelo autor
e apresentasse, desde logo, um cálculo que satisfizesse o interessado,
sem que houvesse controvérsia no laudo.
Existia, nesse caso em especial, a possibilidade de não se aplicar
o preconizado no §3º do art. 20 do CPC anterior, tendo em vista que
“[...] a ação de dissolução parcial converter-se-ia num feito de natureza
apenas administrativa, pois a sua finalidade passaria a ser de simples
apuração de haveres, o que tornaria inviável a ideia de sucumbência”.49
Ao revés, havia diversos julgados entendendo que, caso reconhecida
a procedência do pedido, deveria suportar os honorários quem deu
causa à demanda. Essa orientação assumia que, mesmo incontroversa a
apuração de haveres ou caso houvesse anuência dos réus em relação ao
pedido, teria havido demanda jurisdicional e, portanto, a movimentação
da máquina judiciária em ação contenciosa resultaria na condenação em
verbas sucumbenciais. Era afastada, então, a ideia de natureza adminis-
trativa relativa à ação, reafirmando a existência da lide.50
De todo modo, fica então evidente que o posicionamento dos
tribunais pátrios e do STJ quanto à questão da sucumbência estava
diretamente ligado à existência de litígio judicial e à consequente
imposição do pagamento de verbas sucumbenciais à parte vencida,
conforme o comando legal contido no CPC anterior.

4.4 A dissolução parcial como procedimento especial no


novo Código de Processo Civil
A análise dos dispositivos criados pela nova lei revela-se neces-
sária não somente para justificar sua existência como procedimento
especial, mas também para demonstrar se os dispositivos surgiram
como superação legislativa de entraves anteriores.

48
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 134.
49
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 135.
50
BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 242603 SC 1999/0115786-2. PARANÁ. Tribunal de Justiça
do Estado do Paraná. Apelação Cível nº 2218662 PR 0221866-2. MINAS GERAIS. Tribunal
de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº 10355130018854001.
422
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Cumpre observar que, sob a égide do NCPC, as ações de disso-


lução de sociedade podem seguir o rito comum ou especial. Prevê o
art. 1.406, em seu §3º, que “os processos mencionados no art. 1.218 da
Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, cujo procedimento ainda não
tenha sido incorporado por lei submetem-se ao procedimento comum
previsto neste Código”. Assim, a ação de dissolução total enquadra-se
no procedimento comum.

4.4.1 Objeto
Observando, então, o procedimento especial em vigor, tem-se
no art. 599 do NCPC a indicação dos objetos da ação de dissolução
parcial. Os incisos do referido artigo definem que a ação de dissolução
parcial pode ter por objeto a resolução da sociedade em relação ao sócio
(inciso I) e a apuração de haveres deste sócio (inciso II). Além disso,
preveem a possibilidade de apenas um desses pedidos ser provido,
alternativamente (inciso III).51
Incluíram-se, aí, as hipóteses nas quais se reputava dissolvida
a sociedade de pleno direito, sendo a ação ajuizada apenas almejando
descobrir, por meio de perícia, o valor devido pela sociedade ao sócio
dissidente.
Em louvável esforço legislativo, foi incluído no texto final do
NCPC o §2º do art. 599, que não estava presente no projeto de lei
original, possibilitando a dissolução parcial das sociedades anônimas de
capital fechado, impondo para tanto o seguinte requisito: “[...] quando
demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por
cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim”.
Conforme já mencionado, a jurisprudência trilhou um longo
caminho até abarcar a ideia da possibilidade de dissolução parcial
das sociedades anônimas de capital fechado. Porém, é de se estranhar
a imposição de requisitos mínimos, pois as cortes vinham deferindo
hodiernamente a dissolução parcial nesses tipos de sociedade quando
verificada a falta de affectio societatis.

51
Erasmo Novaes e França afirma que “[o] projeto confunde, inadmissivelmente, a ação de
dissolução parcial de sociedade – de natureza constitutivo-negativa (ou desconstitutiva, se
se preferir) – com a ação de apuração de haveres – de natureza condenatória”. E prossegue o
autor: “O que a ciência jurídica demorou dezenas de anos para distinguir é misturado numa
sopa só, inclusive quanto à legitimação para agir” (FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e
Novaes. O Antiprojeto de CCom: A praga que se propaga no projeto de CPC. 2013. Disponível
em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI177478,11049-O+Antiprojeto+de+CCom+A
+praga+que+se+propaga+no+>. Acesso em: 12 jun. 2015.).
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
423

Apesar disso, quando se refere à necessidade de demonstração


que a sociedade “não pode preencher seu fim”, o texto legal faz clara
e direta remissão ao art. 206, II, alínea b, da Lei nº 6.404. Dentro das
circunstâncias que inviabilizam e impedem o preenchimento de sua
finalidade, insere-se a incontroversa desarmonia entre os sócios.52 Por
conseguinte, é resultado lógico e razoável que se afaste o sócio dissi-
dente ou descontente.
O requisito referente a um percentual mínimo de capital social
soa, à primeira vista, como uma incongruência, considerando que,
quando comprovada a quebra da affectio societatis, o percentual do
capital social detido pelo acionista ou grupo de acionistas proponentes
da ação torna-se irrelevante frente ao que está em jogo. Afinal, pode
ser também de interesse da sociedade afastar o membro dissidente e
promover a ação de dissolução parcial. Lado outro, tal percentual passa
a ser extremamente relevante caso o próprio acionista dissidente, por
sua insatisfação pessoal e entendendo quebrado o vínculo societário,
decidir retirar-se da sociedade.
Como também anteriormente exposto e consonante com os
ensinamentos de Priscila Fonseca, as hipóteses do direito de retirada
contidas na Lei nº 6.404 não se confundem com a dissolução parcial, uma
vez que o rol apresentado no art. 137 da referida lei é absolutamente
taxativo, não prevendo a possibilidade de retirada pelo rompimento
do affectio societatis.53
A redação do dispositivo vincula o direito do dissidente ao
percentual das ações por este detido, afastando assim a incidência do
princípio da livre associação, contido no art. 5º, XX, da Constituição
Federal,54 na contramão da construção pretoriana.55 De todo modo,
tal percentil é comum para o exercício de uma série de prerrogativas
previstas na Lei nº 6404, o que pode justificar a escolha desse parâmetro
pelo legislador.

52
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 72.
53
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 69.
54
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF, Senado Federal, 1988. Disponível em <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.
55
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 74.
424
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

4.4.2 Legitimidade ativa: sujeitos e condições


O art. 600 do NCPC contém o rol enumerativo daqueles que têm
legitimidade ativa para propor a ação de dissolução parcial. No caso
do espólio do sócio falecido (inciso I), este só se legitima quando todos
os sucessores não ingressarem na sociedade, seja por vontade destes,
seja por deliberação dos sócios remanescentes, quando o contrato
social prevê a necessidade de anuência destes últimos.56 Portanto, o
artigo positivou o entendimento já sufragado pela doutrina e pela
jurisprudência. Afinal, não há, nas sociedades de pessoas, a transmissão
automática do estado de sócio com o falecimento do de cujus, de modo
que é do espólio a atribuição de representar a titularidade das quotas,
até que se proceda à partilha.
Atente-se que esse caso em especial, interpretado conjuntamente
com o inciso III do referido artigo, diz respeito apenas às circunstâncias
nas quais não há concordância de todos os herdeiros em dissolver o
vínculo societário.
Nos casos dos incisos I e II, a legitimidade do espólio e dos suces-
sores é apenas para a apuração de haveres, considerando que, como
dito, não há a transmissão automática do estado de sócio aos herdeiros
nas sociedades em alusão.
O inciso III também confere legitimidade ad causam à sociedade
para requerer a dissolução parcial, porém apenas quando houver
previsão no contrato social de não admissão dos herdeiros do sócio
pré-morto pelos sócios remanescentes.
Essa restrição, estranha à primeira vista, decorre de uma impre-
cisão legislativa. Isso porque esse regramento se aplica apenas aos casos
de sociedades de capital em que tal direito não decorra da lei, mas esteja
previsto no contrato social.
Nas sociedades de pessoas, os sócios sobreviventes detêm o
direito de impedir o ingresso, na sociedade, dos sucessores, observando
o regramento do art. 1.028 do CC.
Daí decorre outro problema causado pela identidade de legiti-
mados ativos e passivos nas ações de dissolução parcial e apuração
de haveres: no caso da sociedade limitada em que o contrato social é
silente sobre o ingresso dos herdeiros do sócio falecido e que utiliza

COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação


56

Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 150-151. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
425

subsidiariamente a disciplina atinente às sociedades simples, seria


negada à sociedade a legitimidade ativa para propor a apuração de
haveres? Afinal, se os sócios deliberam pela não admissão dos herdeiros
na sociedade, quem tem interesse processual em apurar os haveres é
a sociedade, e não os sócios.
No inciso IV, a intenção é de evitar a judicialização do procedi-
mento, conferindo legitimidade ativa ao sócio que exerceu o direito
de recesso ou retirada somente depois de demonstrada a inércia dos
sócios remanescentes e quando infrutífera a tentativa extrajudicial de
resolução do conflito. Óbvio é que, caso não haja concordância do sócio
com a forma de apuração ou os valores apurados, resta-lhe esperar o
prazo legal para intentar a ação correspondente.57
O inciso V confere legitimidade ativa à sociedade nos proce-
dimentos decorrentes de comando legal, em importante inovação
legislativa, levando em conta que a lei admite ser a sociedade parte
legitimada em qualquer procedimento de dissolução parcial judicial.
Interessante notar que a legitimidade inexiste apenas nos casos
de exclusão extrajudicial elencados no CC.
Por fim, uma inovação bem-vinda em relação à legitimidade ativa
é aquela conferida pelo parágrafo único do art. 600 supramencionado
ao “cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável
ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres
na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este
sócio” (NCPC).
Ao possibilitar ao meeiro a legitimidade para liquidar a quota
adquirida por intermédio de partilha de bens, o NCPC corrige a distorção
criada pelo malfadado art. 1.207 do CC, tornando-o sem efeito.
Vale dizer, em consonância com as demandas doutrinárias e a
orientação jurisprudencial, o dispositivo extingue a figura da subso-
ciedade formada pelos meeiros dentro da sociedade, onde uma das
partes tinha direitos extremamente restritos em relação às quotas
ou ações,58 conferindo o direito a esta parte a requerer, desde logo, a
apuração de haveres.

57
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 151. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
58
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 98-99.
426
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Por interpretação extensiva, se o meeiro possui legitimidade para


requerer a apuração de haveres, é certo que seus herdeiros também a
possuem, resolvendo assim essa antinomia criada pelo ultrapassado
dispositivo incluído no CC.

4.4.3 Legitimidade passiva


Quanto à questão da legitimidade passiva, o art. 601 do NCPC
afirma que os sócios e a sociedade serão citados no prazo legal para
concordar com o pedido ou apresentar contestação.
Até aí, funciona de modo idêntico ao procedimento comum
ordinário. Porém, o parágrafo único do referido artigo positiva um
entendimento que já era alvo de severas críticas da doutrina quando
apresentado por alguns julgados,59 preconizando ser dispensável a
citação da sociedade quando todos os sócios se encontrarem devida-
mente citados.
Parece ter andado mal o legislador, pois, sob o argumento de
promoção de economia processual de tempo, ignora o litisconsórcio
passivo necessário, como se a administração da sociedade fosse, sempre,
necessariamente, ocupada por sócios e como se o interesse societário
pudesse ser reconduzido à mera conjuntura de interesses particulares
dos sócios. Da sociedade, assim, é subtraída a oportunidade de parti-
cipar da condução dialética do feito e de articular as provas úteis ou
necessárias à comprovação de seus interesses. Nega-se à sociedade o
reconhecimento de sua personalidade jurídica e efeitos decorrentes,
alijando-a do direito ao contraditório e ampla defesa. A inovação acaba
por possibilitar o absurdo da imposição de efeitos da decisão a quem
não compõe a lide.
O art. 602 do NCPC traz outra regra que atenta contra a própria
ideia da ação de apuração de haveres, que tem por finalidade levantar
o valor devido ao sócio desligado, retirante, falecido ou excluído. Aduz
o texto que “[a] sociedade poderá formular pedido de indenização
compensável com o valor dos haveres a apurar”. Isso infere-se também
em prol da celeridade processual.
De plano, fica ressaltada a imprecisão técnica legislativa que
permeia a redação deste procedimento especial como um todo. A lei
fala claramente em pedido de indenização compensável com os haveres
a serem apurados.

59
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 105.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
427

Entende-se, portanto, fazer referência à compensação tratada no


CC, o que parece incongruente, haja vista que o seu art. 369 permite a
compensação entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.60 Se a
lei pretendia se referir à construção intitulada “compensação judicial”,61
citada por Priscila Fonseca62 como deduzível em sede de reconvenção,
e de construção exclusivamente pretoriana, deveria ter feito referência
direta a essa disciplina bastante específica.
Não parece ser esse o caso, considerando que o teor deste artigo
se apresenta, exatamente, como a possibilidade de um pedido cumulado
de indenização, matéria afeita ao procedimento comum ordinário. Caso
o polo passivo apresente contestação, como se verá adiante, estar-se-á,
também, diante do procedimento comum ordinário.
O referido artigo, com a redação atual, não aparenta ter utilidade
prática. Quando muito, poderá servir como forma de pressão dos sócios
remanescentes para barganhar o valor dos haveres apurados63 visando
a reduzir quantia a ser paga. Logo, a finalidade original, de acelerar os
trâmites processuais e preservar a atividade empresarial e os sócios da
desgastante batalha recursal que consequentemente pode se instaurar,
parece improvável de ser alcançada.

4.4.4 Procedimento
O art. 603 do NCPC dispõe a respeito da hipótese na qual há a
concordância de todos os sócios em relação à dissolução da sociedade.
Preconiza o caput do referido artigo que, “havendo manifestação
expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará,
passando-se imediatamente à fase de liquidação”.

60
RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de
dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível
em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto
+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.
61
Aduz a autora que, “tendo em conta que a liquidação dos haveres resulta da mensuração
econômica do patrimônio social para definição do valor da quota do excluído, tem-se que
os bens que compõem o ativo continuam de propriedade da sociedade, um estado que
autoriza a confecção de um balanço completo, inclusive do prejuízo que fora apurado pela
desídia do sócio, podendo ser deduzido na forma reconvencional” (FONSECA, Priscila M.
P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.
118).
62
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 118.
63
RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de
dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível
em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto
+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.
428
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O que o procedimento prevê aqui é exatamente o que ocorre


sempre que a parte reconhece parte do pedido formulado na inicial,
quando o fato deixa de ser controverso.
Se há concordância unânime entre os sócios, parece configurar
uma hipótese de falta de interesse de agir, sobretudo se ficar eviden-
ciado que as partes jamais tentaram ou resistiram à dissolução parcial
extrajudicial.
A jurisprudência, já apontada, entende majoritariamente que,
quando há demanda jurisdicional, há sucumbência, e que geralmente
as verbas são devidas por quem deu causa à demanda.
Ao apresentar a possibilidade de afastar a sucumbência irrestri-
tamente, condicionando-a apenas à concordância unânime dos sócios a
respeito da dissolução, o legislador assemelha a fase de conhecimento
do procedimento especial a um procedimento de administração pública
dos interesses privados, o que vai de encontro ao entendimento mais
acurado e não coaduna com as construções traçadas pela jurisprudência
até então.
Ainda, o §1º do dispositivo em alusão é obscuro ao não especi-
ficar se são afastadas as condenações em verbas sucumbenciais apenas
durante a fase dissolutiva ou se tal benesse também se estende à fase de
apuração de haveres, quando há sentença de natureza diversa da fase
de dissolução parcial, passível de ser executada em face da sociedade.
A manutenção da natureza dúplice da sentença proferida na
ação de dissolução parcial tende ainda a agravar o problema relativo ao
cálculo das verbas de sucumbência, pois o legislador se omitiu quanto
aos honorários, não prevendo expressamente se estes seriam devidos
ao fim de cada fase ou ao fim da ação, além de negligenciar qual seria
a natureza preponderante da sentença para a fixação do percentual
devido, sempre observando que a ação envolve procedimento pericial
complexo.
De todo modo, a sentença proferida ao final da ação de dissolução
parcial continua a ter natureza constitutivo-negativa em relação aos
sócios, e seus trâmites processuais continuam praticamente inalterados.
Por isso, como ocorre no procedimento em vigor atualmente,
cabe ao magistrado a hercúlea tarefa de definir se utilizará o critério do
§2º ou o critério restritivo do §8º, ambos do art. 85 do NCPC. Perdeu o
legislador a oportunidade de dirimir essa controvérsia de longa data
existente na seara das ações de dissolução parcial de sociedade.
Por fim, o §2º do artigo 603 da lei aduz que, havendo contestação,
o procedimento a ser seguido é o procedimento comum ordinário.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
429

Ganha força a linha de argumentação que questiona a real


utilidade de se criar um procedimento especial de dissolução parcial,
no qual existem poucas ou, de fato, nenhuma especificidade em relação
ao procedimento comum ordinário que justifique sua existência.64
A única singularidade remanescente diz respeito à apuração de
haveres. Os dispositivos analisados até agora se preocupam apenas em
definir quem são os legitimados passivos e ativos, além dos objetos e
hipóteses nas quais é cabível a ação, o que, ao que parece, foi feito com
uma imprecisão técnica significativa, misturando a fase dissolutória e
a fase de apuração de haveres, pouco contribuindo com a intenção de
preservar a empresa.

4.4.5 Apuração de haveres


Prossegue o procedimento especial à fase de apuração de haveres,
considerada por Fábio Ulhoa Coelho65 a mudança mais importante
trazida pela disciplina do procedimento especial. O despacho inaugural
que inicia a fase de liquidação passa a trazer os balizamentos indis-
pensáveis à apuração dos haveres, que são a data da resolução da
sociedade e a forma de apuração de haveres, observando o contrato
social, conforme os incisos I e II do art. 604 do NCPC.
Cumpre ressaltar que o juiz não é livre para fixar tais baliza-
mentos, estando adstrito às datas previstas no rol elencado no art. 605
do NCPC. Essas disposições constituem uma inovação legislativa, tendo
em vista que, malgrado o assunto estar atualmente pacificado, foi fonte
de controvérsias jurisprudenciais durante um tempo considerável.66
Registre-se que críticas são possíveis, contudo, à consideração
da data da resolução da sociedade como sendo, na retirada imotivada,
o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da
notificação do sócio retirante. Isso impõe ao sócio retirante o dever de
prosseguir associado e até mesmo vinculado a atos acerca dos quais
não mais pretende manifestar-se e ainda possibilita que atitudes pouco

64
RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de
dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível
em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto
+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.
65
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
66
FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 185-190.
430
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

colaborativas sejam implementadas pelos remanescentes, de maneira a


prejudicar o valor de sua participação societária a ser apurado.
Em relação ao critério de apuração de haveres, o juiz deve
observar primeiramente o que está contido no contrato social. O acordo
de vontades prevalece nesse sentido, não podendo ser ignorado pelo
magistrado, mesmo que o critério ali descrito careça de maior precisão
técnica em relação ao definido pela lei.67 Em caso de omissão, o valor
deve ser definido, conforme o art. 606 do NCPC, pelo balanço patri-
monial de determinação.
Esse entendimento causa estranheza. Afinal, em um dispositivo, a
lei define critérios objetivos para lastrear a apuração de haveres; depois,
prevê a nomeação de perito altamente especializado da área de avaliação
de sociedades, ignorando que o expert possa a vir a apresentar método
diverso que reputar mais adequado.
Continuando, o art. 607 do NCPC prevê que “data da resolução e
o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido
da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia”. Essa disposição
foi alvo de críticas,68 pois prevê que a data de resolução da sociedade
e o critério para apuração de haveres não transitam em julgado antes
do início da perícia.
A referida crítica, porém, parece não ser a melhor interpretação
do dispositivo. Nesse ponto, o legislador se refere à possibilidade, por
exemplo, “[...] de ter a defeituosa redação do contrato social despertado
inicialmente certa interpretação, que, à vista dos argumentos posterior-
mente aduzidos pela parte, vem a ser descartada pelo juiz”.69
Por isso, não faria sentido que ocorresse o trânsito em julgado
relativo aos elementos supracitados antes de se iniciar a perícia, tendo
em vista que ambos podem ser objeto de disputa pelas partes, e novas
provas podem ser produzidas no intuito de modificar as definições
contidas no despacho inicial que determina a apuração de haveres.

67
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
68
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. O Antiprojeto de CCom: A praga que
se propaga no projeto de CPC. 2013. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/
dePeso/16,MI177478,11049-O+Antiprojeto+de+CCom+A+praga+que+se+propaga+no+>.
Acesso em: 12 jun. 2015.
69
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
431

A preclusão relativa à matéria ocorre logo após iniciada a perícia,


haja vista que suas balizas são fixadas pelo magistrado levando em conta
ambos os elementos mencionados no art. 607 do NCPC, não fazendo
sentido modificá-las durante a realização da complexa atividade contábil.
Claramente, é possível interpretar a referida disposição como mais
uma imprecisão legislativa, pois primeiro a lei determina o método de
apuração de haveres e, logo em seguida, permite que as partes possam
revê-lo antes mesmo que se inicie a perícia.
O art. 607 supramencionado prevê, ainda, que, antes da perícia,
qualquer das partes pode especificar o ramo de atuação do profissional
a ser nomeado, o que poderia ser desastroso, já que o perito é nomeado
pelo despacho inicial que determina a apuração de haveres.
Assim, a mudança de especialista no curso do processo só aumen-
taria as despesas, obtendo-se assim o efeito inverso ao pretendido – a
celeridade processual – e até mesmo prejudicando a preservação da
empresa, diante do aumento eventual significativo dos custos em razão
dessa manobra.
Vale ressaltar também que, ao contrário do que eventualmente
acontecia no procedimento anterior, o perito não tem, nem pode ter,
poderes para praticar qualquer ato em nome da sociedade, ficando
adstrito apenas à avaliação do valor patrimonial das quotas.
O art. 608 do NCPC define qual a natureza do crédito devido
pela sociedade em função da apuração de haveres. Fábio Ulhoa Coelho
parte da premissa que “[...] até a data da resolução, o crédito tem
natureza de participação nos resultados da sociedade, perdendo-a a
partir de então”.70
Porém, o referido autor não apresenta qualquer posicionamento
que referende tal entendimento, tampouco explica o motivo da natureza
creditícia apresentada.
Indiferente a isso, após a data da resolução, os titulares do crédito
têm direito apenas à correção monetária e aos juros contratuais ou
legais, conforme o artigo supracitado.
Por fim, o art. 609 do NCPC é afeito ao cumprimento de sentença
e define como os haveres serão pagos: conforme o contrato social ou,
omisso este, na forma do CC.

COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação


70

Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 154. Trimestral. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 20 abr. 2015.
432
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Neste último artigo do procedimento especial de dissolução


parcial, não houve qualquer inovação frente ao que já vinha sendo
aplicado na normativa processual atualmente em vigor.

4.5 Conclusões
Algumas principais novidades podem destacar-se do procedi-
mento especial do NCPC.
Foi dado tratamento diferenciado aos trâmites das ações de
dissolução parcial, que agora passam a englobar, em sentido amplo,
todas as formas de ruptura do contrato social, independentemente de
tal forma demandar ou não processo de conhecimento anterior para
deflagrar a fase de apuração dos haveres.
Houve êxito em consagrar alguns aspectos processuais da disso-
lução parcial de sociedade. Assim, a partir da vigência do NCPC, ocorreu
a inserção da sociedade anônima de capital fechado como objeto da
ação de dissolução parcial.
Definiu-se que o espólio detém legitimidade ativa para pleitear
a dissolução parcial caso não haja anuência dos sócios supérstites para
a entrada dos herdeiros na sociedade, consagrando assim que o estado
de sócio não se transfere automaticamente.
Admitiu-se também a sociedade como legitimada para promover
os procedimentos de dissolução parcial elencados em lei visando à
defesa de seus interesses. Foi conferida, também, legitimidade ativa
ao cônjuge que recebeu parte das quotas em partilha de bens, excluin-
do-se a figura da subsociedade e tornando sem efeito esse instituto
ultrapassado contido no CC.
No tocante à apuração de haveres, foram estabelecidas por lei
a data da resolução da sociedade em relação ao sócio dissidente e
a forma como deve ser realizada a apuração de haveres, tendo sido
incluída também a necessidade de se nomear um perito especialista e,
principalmente, que todos esses quesitos acima elencados possam ser
questionados a qualquer tempo antes de se iniciar a perícia. Também
foi definida a natureza do crédito devido pela sociedade ao sócio e
também como os valores apurados devem ser pagos.
Foi dirimida a controvérsia relativa aos poderes de liquidante,
por vezes conferidos ao perito pelas Cortes ao longo do tempo e que
não têm cabimento no atual ordenamento jurídico, como também foram
positivados os parâmetros do cumprimento de sentença já estabelecidos
no procedimento vigente.
PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA
NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES
433

Deixou, contudo, o legislador de superar celeumas clássicas,


tais como a natureza da sentença de dissolução parcial e a definição
jurídica da fase de apuração de haveres. Deixou também de diferenciar
os legitimados em relação a cada procedimento, não estabelecendo
as hipóteses em que seria necessário o litisconsórcio passivo entre a
sociedade e os sócios. Desse modo, admitiu-se, explicitamente, a possi-
bilidade pretoriana de se ignorar o litisconsórcio passivo necessário
entre sociedade e sócios. Parece ter havido a pressuposição de que os
interesses particulares de sócios e sociedade são sempre coincidentes
e que pelo menos um dos sócios sempre se ocupa da administração da
sociedade (deixando-a ciente da lide), o que, a rigor, na prática, não se
verifica. Comprometem-se, dessa sorte, expressamente pelo texto da lei,
nuances da personalidade da pessoa jurídica e garantias constitucionais
processuais de base.
O legislador também foi omisso quanto ao problema das
verbas sucumbenciais, preferindo incluir um dispositivo semelhante
à administração pública de interesses particulares, em que não haveria
sucumbência, em vez de positivar o entendimento já consagrado que
prevê que, se houve demanda jurisdicional, a parte que deu causa à
demanda deve pagar as verbas correspondentes.
Também andou mal o legislador quando previu a possibilidade
de compensação de indenizações dentro do procedimento especial,
esbanjando imprecisão técnica e inserindo uma disposição concernente
ao procedimento comum ordinário.
Novamente, caberá ao sistema do direito, a partir do processo
autorreferencial aos elementos de sua própria rede recursiva, construir-se
e reconstruir-se, de maneira que a jurisprudência e a doutrina, na aplicação
da ciência social, poderão colmatar as lacunas subsistentes. Estas, contudo,
subsistem como desafios de processo investigatório futuro.

Referências
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434
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T3 – Terceira Turma. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Brasília, DF, 15 de janeiro de 2009.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; RIBEIRO, Pedro D’Angelo. Novos


horizontes da dissolução parcial de sociedades. In: BRAGA NETTO, Felipe
Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito
Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências.
Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 411-436. ISBN 978-85-450-0456-1.
SOBRE OS AUTORES

André Cordeiro Leal


Doutor e Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. Professor Titular da Universidade FUMEC, onde leciona
nos cursos de Graduação (Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil)
e Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado em Instituições Sociais, Direito e
Democracia). Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil
no curso de Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu do Instituto de Educação Continuada (IEC – PUC Minas). Diretor
de Pesquisa do Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos – INPEJ. Advogado
e Economista.
Bruno de Almeida Lewer Amorim
Mestrando em Direito Privado pela PUC Minas. Pós-Graduado em Direito
Civil Aplicado pela PUC Minas. Pós-Graduado em Direito do Consumidor pela
Faculdade Damásio de Jesus. Professor de Direito Civil na FAMIG. Mediador
de Conflitos com ênfase em Relações de Consumo pelo Centro Brasileiro de
Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ). Membro da Comissão de Defesa do
Consumidor da OAB/MG. Advogado.
Bruno Oliveira de Paula Batista
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Professor do
Centro Universitário CESMAC. Advogado.
César Fiuza
Doutor em Direito pela UFMG. Professor de Direito Civil na UFMG, na PUC
Minas e na Universidade FUMEC. Professor Colaborador na FADIPA. Advogado
e Consultor Jurídico.
Claudia Lima Marques
Doutora pela Universidade de Heidelberg e Mestre em Direito pela Universidade
de Tübingen, Alemanha. Professora Titular da UFRGS. Professora Permanente
e Coordenadora do PPGD UFRGS. Advogada em Porto Alegre (RS).
Cristiano Chaves de Farias
Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica
do Salvador (UCSal). Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito.
Professor de Direito Civil do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS).
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
438
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Elcio Nacur Rezende


Mestre e Doutor em Direito pela PUC Minas. Professor do Curso de Mestrado
em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom
Helder Câmara. Procurador da Fazenda Nacional.
Felipe Peixoto Braga Netto
Doutor em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela UFPE. Professor da
Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Ministério Público Federal
(Procurador da República).
Fernando Solá Soares
Pós-Graduado no L.L.M. de Direito Empresarial Aplicado das Faculdades da
Indústria (IEL/PR). Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro
de Estudos Tributários (IBET). Advogado.
Gabriella de Castro Vieira
Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior
Dom Helder Câmara. Professora do Curso de Direito da Faculdade Pitágoras.
Pesquisadora do CEBID (Centro de Estudos em Biodireito). Membro da Comissão
de Defesa do Consumidor da OAB/MG. Advogada.
Giovani Ribeiro Rodrigues Alves
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor
de Direito Empresarial do Centro Universitário do Brasil (UNIBRASIL). Membro
do Núcleo de Direito Empresarial Comparado da UFPR. Advogado.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Mestre e Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor Associado de Direito Civil
da UERJ (Graduação e Pós-Graduação). Professor Permanente do Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá (RJ).
Ex-Coordenador Geral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
da UERJ. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Desembargador do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ex-Juiz de Direito do Estado de São
Paulo. Ex-Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público
do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do
Instituto Brasileiro de Direito de Família e do Instituto dos Advogados do Brasil.
Humberto Theodoro Júnior
Doutor em Direito. Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da
UFMG. Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da Academia Mineira
de Letras Jurídicas, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de
Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual,
do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, da International Association
of Procedural Law e da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique
Française. Advogado.
Karine Cysne Frota Adjafre
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.
SOBRE OS AUTORES 439

Lucas Magalhães de Oliveira Carvalho


Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.
Luciana de Castro Bastos
Mestranda em Direito na PUC Minas. Especialista em Direito Civil e Processo
Civil pela Universidade Veiga de Almeida/RJ. Professora de Direito. Advogada.
Luis Alberto Reichelt
Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Professor nos cursos de Graduação,
Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS. Procurador da
Fazenda Nacional em Porto Alegre (RS).
Marcelo de Oliveira Milagres
Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto
de Direito Civil na Universidade Federal de Minas Gerais.
Marcia Carla Pereira Ribeiro
Mestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Professora Titular de Direito Empresarial da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUCPR) e Professora Associada da UFPR. Advogada licenciada.
Secretária de Administração do Estado do Paraná. Coordenadora do Núcleo
de Direito Empresarial Comparado da UFPR.
Marcos Boechat Lopes Filho
Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás. Juiz de Direito do Estado de Goiás.
Marcos Ehrhardt Jr.
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor
de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro
Universitário CESMAC. Coordenador da Revista Fórum de Direito Civil
(RFDC). Advogado.
Mariza Rios
Mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Nacional de Brasília
(UnB). Doutoranda em Direito na Universidade Complutense de Madrid/
Espanha. Professora na Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do
Grupo de Pesquisa Pensar a cidade: seus aspectos ambientais, jurídicos e sociais.
Melissa Ourives Veiga
Mestranda em Direito Privado pelo Centro Universitário Sete de Setembro (Fa7).
Professora de Direito Civil da Faculdade São Salvador. Professora de Direito
Civil do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Membro do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogada.
Michael César Silva
Doutor e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Especialista em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Professor
440
FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)
O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

da Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas


Gerais. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor da Escola
de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro da Comissão de
Direito do Consumidor da OAB/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos
da Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado.
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália). Professor
Visitante na Universidade de Oxford (United Kingdom). Professor Investigador
na Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Civil pela
PUC-SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.
Newton Teixeira Carvalho
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutor
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor de
Direito de Família e de Processo Civil na Escola Superior Dom Helder Câmara.
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Membro do Grupo de
Pesquisa Pensar a cidade: seus aspectos ambientais, jurídicos e sociais.
Paulo Nalin
Pós-doutor pela Universidade de Basel, Suíça. Doutor em Direito das Relações
Sociais e Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Paraná.
Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná. Associado
ao Instituto de Direito Privado (IDP), ao Instituto dos Advogados do Paraná
(IAP) e ao Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Advogado e Árbitro
em Curitiba/PR.
Pedro D’Angelo Ribeiro
Pós-Graduando em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Rede de
Ensino Luís Flávio Gomes. Graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto/
Minas Gerais. Advogado. Analista de Planejamento, Orçamento e Logística
junto ao Estado de Minas Gerais.
Renata C. Steiner
Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito das
Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora Visitante
durante Doutorado em Munique/Alemanha. Associada ao Instituto de Direito
Privado (IDP). Professora do FAE Centro Universitário. Advogada e Membro
do Corpo de Árbitros da CAMFIEP em Curitiba/PR.
Renato Campos Andrade
Mestre em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Escola Superior Dom
Helder Câmara. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara.
Advogado.
Roberto Henrique Pôrto Nogueira
Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito
Tributário pela Faculdade Milton Campos. Pesquisador do Núcleo de Estudos
SOBRE OS AUTORES 441

“Novos Direitos Privados” – DEDIR/UFOP. Coordenador do Centro de Mediação


e Cidadania – DEDIR/UFOP. Professor Adjunto do curso de Graduação e Pós-
Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto/
Minas Gerais.
Rodrigo Almeida Magalhães
Doutor e Mestre em Direito na PUC Minas. Professor da PUC Minas e UFMG.
Advogado.
Samuel Vinícius da Silva
Acadêmico do 7º Período do Curso de Direito Integral da Escola Superior Dom
Helder Câmara.
Vinícius Jose Marques Gontijo
Doutor e Mestre em Direito Comercial pela UFMG. Professor nos Cursos de
Mestrado, Pós-Graduação e Graduação da Faculdade de Direito Milton Campos.
Professor no Curso de Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Ex-Professor Substituto na UFMG e UFOP. Conselheiro Federal da
OAB. Advogado.
Vinícius Lott Thibau
Doutor e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Professor de Direito
Processual Civil no Curso de Graduação em Direito da Escola Superior Dom
Helder Câmara, nas modalidades integral e convencional. Professor de Direito
Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Cível
da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção
Minas Gerais. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica do Instituto
de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Presidente da Comissão de Estudos sobre o Novo CPC da Escola Superior
Dom Helder Câmara. Vice-Presidente do Instituto Popperiano de Estudos
Jurídicos. Advogado.
Esta obra foi composta em fonte Palatino Linotype, corpo 10
e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Laser Plus Gráfica, em Belo Horizonte/MG.

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