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OVIDIO DE ABREU
O COMBATE AO JULGAMENTO NO
EMPIRISMO TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE
Rio de Janeiro
2003
OVIDIO DE ABREU
O COMBATE AO JULGAMENTO NO
EMPIRISMO TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE
Rio de Janeiro
O COMBATE AO JULGAMENTO NO EMPIRISMO
TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE
Ovidio de Abreu
_______________________________________
Prof. Dr. Roberto Machado (Orientador)
_______________________________________
Profa. Dra. Karla de Almeida Chediak
_______________________________________
Prof. Dr. Peter Pál Pelbart
_______________________________________
Prof. Dr. Fernando José Fagundes Ribeiro
_______________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco
Rio de Jambeiro
Outubro, 2003
Ficha Catalográfica
ABREU, Ovidio
Introdução 8
Conclusão 319
1
Observe-se que a escrita “subtração: constituição…” repete a estrutura insólita do título do último texto
publicado por Deleuze: “L’immanence: une vie…” As razões desta repetição serão explicitadas capítulo
“O combate e o procedimento”.
Não se deve confundir o conceito de combate com uma idéia de contraposição
puramente negativa. Ao contrário, o combate expressa um pluralismo das forças,
constitui-se como relação de forças e desencadeia um devir de forças no qual se afirma
os movimentos de uma nova posição filosófica: uma filosofia da diferença que se efetua
pela potência de suas afirmações diferenciais e não por negação dialética. O
procedimento de subtração: constituição..., é nele mesmo um combate, faz do
pensamento combate: subtrai do pensamento a autonomia da negação, desfaz a ficção
do pensamento como unidade transcendente (0 Um) que apreende a unidade do mundo
(0 Todo) e expressa a filosofia da diferença constituindo-se como afirmação da
afirmação que institui, no pensamento, um pluralismo radical. Este pluralismo configura
um empirismo transcendental, substitui o ponto de vista do condicionamento pelo ponto
de vista de uma gênese do verdadeiro no pensamento. A filosofia da diferença, como
afirmação de um pluralismo filosófico (empirismo transcendental), exige um novo
conceito de Idéia e um novo conceito de Conceito que tornem pensável a Diferença
como Acontecimento e uma seleção imanente que não incida sobre a pretensão, mas
sobre a potência.
Essas idéias orientam a organização e a distribuição dos capítulos desta tese.
O capítulo “O combate e o procedimento” apresenta a idéia de que a filosofia de
Gilles Deleuze como um combate ao sistema e à doutrina do julgamento organiza-se de
acordo com o procedimento de subtração: constituição…
O capítulo “O dehors e o signo”, a partir da análise dos efeitos no pensamento
das subtrações ao pensamento das idéias do Todo e do Um, investiga a relação do
combate ao julgamento e do procedimento de subtração: constituição... com uma nova
concepção do fragmento e do sistema em filosofia.
O capítulo “Deleuze e a crítica” introduz o sentido crítico e afirmativo do
pensamento de Gilles Deleuze e, a partir da exposição da compreensão deleuziana do
problema crítico em Kant, destaca os principais limites da crítica kantiana.
O capítulo “Gênese e experiência” apresenta, em contraposição à crítica
kantiana, tal como Gilles Deleuze a compreende, o problema da crítica genealógica
como crítica efetivamente imanente.
O capítulo “O dogmático e o problemático” investiga as subtrações dos
postulados da imagem dogmática do pensamento e a constituição de uma teoria
diferencial do pensamento e de uma ontologia da questão e do problema.
O capítulo “Idéia e atualização” prossegue a investigação de uma ontologia da
questão do problema, apresenta a teoria deleuziana da Idéia (diferencial do pensamento)
como multiplicidade virtual inseparável de um processo de atualização se efetua por
diferenciação e criação.
O capítulo “O empirismo transcendental” determina o problema de um
empirismo transcendental como questão fundamental para a análise da concepção
deleuziana da filosofia. Este conceito paradoxal se esclarece na sua relação com a
intenção deleuziana de conquistar, na filosofia, uma teoria imanente da experiência e do
conceito.
A conclusão retoma essas questões e defende que tanto o combate ao
julgamento como o seu procedimento de subtração: constituição... permanecem ativos
na determinação dos problemas que atribuem sentido aos últimos livros de Gilles
Deleuze e Félix Guattari.
Deve-se encerrar esta introdução adiantando que a questão a partir da qual se
organiza esta tese, consistente no combate ao sistema e à doutrina do julgamento e que
se efetua por meio do procedimento de subtração: constituição…, não admite uma
resposta definitiva. Por sua própria natureza (afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade), esta questão tem por destino animar o movimento de sua eterna
repetição. Neste sentido, se esta tese investiga a natureza do movimento desta repetição
e os conceitos por ele suscitados, ela o faz sem pretender o impossível e sem desejar o
intolerável: abolir a questão que não se deixa extingüir. Afirmar o acaso, o devir e a
multiplicidade faz do sistema na filosofia da diferença um sistema de heterogêneos e em
perpétua heterogênese.
CAPÍTULO I
O combate e o procedimento
“O combate não é de modo algum a
guerra. A guerra é somente o combate-
contra, uma vontade de destruição, um
julgamento de Deus que converte a
destruição em algo justo. (…) O combate,
ao contrário, é essa poderosa vitalidade
não-orgânica que completa a força com a
força e enriquece aquilo de que se apossa.
O bebê apresenta essa vitalidade, querer-
viver obstinado, cabeçudo, indomável,
diferente de qualquer vida orgânica: com
uma criancinha já se tem uma relação
pessoal orgânica, mas não com o bebê, que
concentra em sua pequenez a energia para
arrebentar os paralelepípedos.” 2
Gilles Deleuze, desde seu primeiro livro, defende a idéia de que a filosofia deve
ser compreendida como elaboração de questões e desenvolvimento das implicações
necessárias da questão formulada. 3 Como desdobramento desse tema, Deleuze
conquistará, no último livro com Felix Guattari, a idéia de que a filosofia define-se
como arte de construção de um plano de imanência, de constituição de problemas e de
criação de conceitos. 4 Deleuze defende como princípio da boa leitura filosófica a
determinação do problema que, embora animando e dando sentido aos conceitos de um
filósofo, permanece necessariamente implícito. Será que, em sua obra, Deleuze revela
sua questão fundamental?
Paradoxalmente parece que sim. Todavia não de imediato, nem tampouco como
uma evidência. Ela está presente na obra, exprime-se nas seleções e interpretações de
problemas específicos dos filósofos estudados nas monografias que escreveu, suporta
implicitamente o desenvolvimento dos problemas postos pela filosofia da diferença,
mas, também e sobretudo, em alguns ensaios que poderiam passar por acessórios. 5
Os relevantes artigos “Nietzsche et Saint Paul, Lawrence et Jean de Patmos” e
“Pour en finir avec le jugement”, publicados em Critique et clinique, permitem afirmar
que a filosofia de Gilles Deleuze se desenvolve a partir da questão que emerge como um
2
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 167 (151)
3
Gilles Deleuze, Empirisme et subjetivité, pág. 119 (119/120): “De fato, uma teoria filosófica é uma
questão desenvolvida, e nada mais do que isso: por si mesma, em si mesma, ela não consiste em resolver
um problema, mas em desenvolver ao extremo as implicações necessárias de uma questão formulada. Ela
nos mostra o que as coisas são, o que é preciso que elas sejam, supondo que a questão seja boa e rigorosa.
Colocar em questão significa subordinar, submeter as coisas à questão, de tal modo que, nessa submissão
coagida e forçada, as coisas nos revelem uma essência, uma natureza.”
4
“Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser
isolados ou compreendidos na medida de sua solução (…) Deixemos de lado a questão de saber que
diferença há entre um problema na ciência e na filosofia. Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos,
a não ser em função dos problemas que se considera mal vistos ou mal colocados (pedagogia do
conceito).” Gilles Deleuze e Felix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 22 (27 e 28).
5
A rigor, deve-se dizer que, pelo menos uma vez, Gilles Deleuze formulou explicitamente a idéia de que
sua filosofia é um combate ao sistema do julgamento. Isto se deu no L’Abecedaire, com Claire Parnet, na
seção dedicada à Kant.
imperativo, vale dizer, o combate ao sistema e à doutrina do julgamento. 6 O desafio:
pensar sem julgar. A condição crítica dessa filosofia que se opõe à doutrina do
julgamento é, em nome de uma imanência absoluta, que o ser seja unívoco e,
consequentemente, que o conceito filosófico seja uma criação. Esse problema e sua
condição crítica abrem e dão sentido a um conjunto de outros problemas interligados e a
eles subordinados. 7
Assim compreendida, a obra de Gilles Deleuze é uma afirmação da filosofia
contra a ameaça de sua subordinação possível à religião, à metafísica e à ciência, bem
como uma crítica às críticas da metafísica, conjunto que abarca a crítica kantiana da
metafísica, a dialética hegeliana e todas as variantes de uma filosofia do sujeito.
Distinguir-se-ia igualmente da crítica da metafísica realizada pela anti-filosofia, a
psicanálise, por exemplo. Deleuze diferencia a filosofia da ciência. Filosofia e ciência
não possuem comunidade de funcionamento nem de objetivos: uma cria conceitos, a
outra estabelece funções. Contra a metafísica, Deleuze afirma um pensamento da
imanência e do devir, mas, diversamente da anti-filosofia, que também é uma crítica da
metafísica, sustenta que a imanência absoluta exige a univocidade do ser como
construcionismo ontológico
Portanto, se a filosofia da diferença deve ser compreendida como o
desenvolvimento de um conjunto de problemas, postos pela questão imperativa do
combate ao sistema do julgamento, deve-se começar por esclarecer como Deleuze
concebe o que sua filosofia deve combater. Em suma, deve-se responder à questão: em
que consiste o sistema do julgamento?
6
Apesar de Deleuze utilizar aparentemente de modo indistinto as expressões sistema do julgamento e
doutrina do julgamento, esta tese sugere que se estabeleça uma diferença. O sistema do julgamento deve
ser compreendido como um dispositivo histórico-cultural mais abrangente que a filosofia e a doutrina do
julgamento deve ser considerada como um dispositivo noológico que expressa o sistema do julgamento
no campo filosófico.
7
As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são, para Deleuze, as mesmas: "a
destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si própria coincide com a gênese do ato de
tragédia gregas, outros desenvolvem-se nas semióticas despóticas, notadamente no
Egito imperial, outros nas semióticas autoritárias, especialmente no judaísmo antigo,
por fim, mas não menos importante, a doutrina do julgamento configura-se, sobretudo,
com o desenvolvimento do cristianismo. 8 Em seguida, não obstante o sistema do
julgamento ultrapassar em larga medida o domínio filosófico, ele penetra na filosofia
compondo uma doutrina do julgamento, imagem dogmática do pensamento, que orienta
um conjunto de filosofias, aproximadas por Deleuze, pelo conceito de filosofia da
representação. 9
A característica mais geral e evidente do sistema do julgamento é constituir-se
como um dispositivo que, instituindo transcendências, confere um sentido à existência,
julgando-a e condenando-a. Segundo o sistema do julgamento, a existência é criminosa.
Entre os gregos, pré-cristãos, o sofrimento apresentava-se, simultaneamente, como
evidência da injustiça da existência e como meio de fornecer para ela uma justificativa
superior e divina. O mito de Prometeu concebe a existência como decorrência de um
crime divino, dá um sentido ao sofrimento humano sem, no entanto, responsabilizar os
homens pelo crime que eles expiam. Anaximandro, segundo Nietzsche e Deleuze,
elabora filosoficamente esta concepção da existência como culpada: “Os seres se pagam
uns aos outros a dor e a reparação de sua injustiça, segundo a ordem do tempo.” O que
significa: “1º que o devir é uma injustiça (adikia), e a pluralidade das coisas que vêm à
existência, uma soma de injustiças; 2º que elas lutam entre si, e expiam mutuamente sua
injustiça pela phtora; 3º que elas derivam todas de um ser original (“Apeiron”), que cai
num devir, numa pluralidade, numa geração de culpados, cuja injustiça ele redime
eternamente destruindo-os (“Teodiceia”).” 10 Segundo Nietzsche e Deleuze, falta aos
gregos a invenção semítica e cristã, a má consciência, a culpa e a responsabilidade: “em
relação ao cristianismo os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência,
seu ‘niilismo’ não tem a perfeição cristã. Eles consideravam a existência culpada, mas
não inventaram ainda o refinamento que consiste em julgá-la faltosa e responsável.” 11
12
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 50 e 51 (45).
que se consideram sobreviventes. É o livro dos zumbis.” 13
13
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 51 (45 e 46).
14
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 51 (46).
15
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 (47).
16
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 (47).
17
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 e 53 (47).
Apocalipse sonha com um outro poder, fabrica uma nova imagem do poder: a alma
coletiva
“Ele, que não julgava e não queria julgar, será convertido numa peça
essencial do sistema do Julgamento. Pois a vingança dos fracos, ou o
novo poder, é mais precisa quando o julgar, a abominável faculdade
judicativa, torna-se a faculdade mestra da alma. (Sobre a questão
menor de uma filosofia cristã: sim, há uma filosofia cristã, não tanto
em função da crença, mas a partir do momento em que o julgar é
considerado como uma faculdade autônoma, tendo necessidade, por
esse motivo, do sistema e da garantia de Deus.)” 20
18
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 54 (48).
19
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 54 (49).
20
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 55 (49 e 50).
apocalipse é uma programação maníaca da espera do juízo final. Mesmo que exista um
fundo judaico no Apocalipse (o destino diferido, o sistema recompensa-punição,
pecado-remissão, a necessidade do inimigo ter um sofrimento prolongado…) há nele
um
21
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 56 (51).
escombros. Tal é esse estranho desvio, esse estranho viés pelo qual
não se ataca diretamente o inimigo: o Apocalipse precisa de uma
destruição do mundo para assentar seu poder último e sua cidade
celestial, e só o paganismo lhe fornece um mundo, um cosmos. Ele vai
então chamar de volta o cosmos para acabar com ele, para operar a sua
destruição alucinatória.” 22
22
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 60 (54).
23
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 61 e 62 (55 e 56).
“Lawrence esboça alguns traços do símbolo, alternadamente. Trata-se
de um procedimento dinâmico para a ampliação, o aprofundamento, a
extensão da consciência sensível, é um devir cada vez mais
consciente, por oposição ao fechamento da consciência moral na idéia
fixa alegórica. É um método do Afeto, intensivo, uma intensidade
cumulativa que marca unicamente o limiar de uma sensação, o
despertar de um estado de consciência: o símbolo não quer dizer nada,
não é para ser explicado nem para ser interpretado, contrário à
consciência intelectual da alegoria. É um pensamento rotativo, em que
um grupo de imagens gira cada vez mais rápido em torno de um poder
misterioso, por oposição à cadeia linear alegórica. (…) O símbolo é
um turbilhão, ele nos faz voltear até produzir este estado intenso de
onde surge a solução, a decisão. O símbolo é um processo de ação e
de decisão (…) É o contrário do nosso pensamento alegórico; este não
é mais um pensamento ativo, porém um pensamento que não pára de
postergar ou diferir. Substituiu o poder de decisão pelo poder de
julgamento. Por isso exige um ponto final como um juízo final. (…)
Ver é o sentido que nos separa, a alegoria é visual. Ao passo que o
símbolo convoca e reúne todos os outros sentidos. O símbolo é feito
de conexões de disjunções físicas (…) pois o símbolo é o pensamento
dos fluxos, contrariamente ao processo intelectual e linear do
pensamento alegórico. O Apocalipse revela seu próprio objetivo;
desconcertar-nos do mundo e de nós mesmos.” 24
Resta uma última questão. Não mais referente à oposição do Apocalipse com o
mundo pagão, mas a oposição do Apocalipse ao Cristo enquanto pessoa. No entanto, no
que diz respeito a esta oposição, a do Cristo evangélico ao Cristo Apocalíptico, a do
Cristo do Amor ao Cristo do Poder, Deleuze, com Lawrence, diz que talvez eles estejam
mais unidos do que se fossem o mesmo. Deleuze explica que, segundo Lawrence, a
razão da reviravolta deve ser buscada na maneira que Cristo tinha de amar:
24
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 64 e 65 (58 e 59).
pior ainda, um ardor de dar sem nada tomar. Cristo não queria
responder às expectativas de seus discípulos, e mesmo assim não
desejava conservar nada, nem sequer a parte inviolável de si mesmo.
Tinha algo de suicida.” 25
Convém realizar uma pequena pausa para sublinhar o que essa análise permite
destacar, até o momento, como os principais componentes do sistema do julgamento: 1.
A existência julgada como criminosa; 2. Os homens julgados responsáveis pelo crime
da existência; 3. A invenção de um novo tipo de sacerdote que organiza a espera de um
fim anunciado; 4. O deslocamento do centro de gravidade da vida deste mundo para
uma vida após a morte; 5. A política da vingança e a autonomia da faculdade judicativa;
6. Um sistema de poder como poder de um Deus sem apelação; 7. A destruição do
cosmos como meio de destruição de um inimigo qualquer que não está em
conformidade com a ordem de Deus; 8. A destruição dos símbolos vitais em favor das
alegorias fantasmáticas; 9. Consignar o inimigo qualquer como aquele que não está em
conformidade com a ordem de Deus. 10. O Amor de Cristo como possuindo uma
dimensão mortífera que faz da alma individual um Eu, uma imagem, um Sujeito.
Antes de passar à análise do ensaio “Pour en finir avec le jugement”, é
conveniente sublinhar as seguintes conexões. No sistema do julgamento as
25
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 67 (60).
26
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 67 e 68 (61).
transcendências, como peças essenciais para julgar a existência, são acionadas no
sentido da destruição do Cosmos, vale dizer, da Univocidade da Relação em favor da
Analogia e das Categorias que regem o mundo das alegorias e das imagens (a alma
converte-se num Eu, num Sujeito). Essa destruição surge como essencial para a
construção de um novo dispositivo de poder como poder de um Deus sem apelação.
Este ponto é crucial, pois revela que o deslocamento do centro de gravidade da vida
deste mundo para uma vida após a morte não se faz sem a exclusão de toda verdadeira
alteridade num mundo que se quer alegórico (analógico), composto por elementos fixos
e isolados, destituído de devir. Este componente do sistema do julgamento — um
mundo sem alteridade — é desenvolvido em Mille plateaux, especialmente no platô 7.
“Ano zero-rostidade”. Segundo Deleuze e Guattari, o rosto, no seu aspecto de ordenador
de normalidades, é o rosto de Cristo, vale dizer, o Homem branco médio qualquer. Os
desvios de padrão devem ser cristianizados, rostificados. Deleuze e Guattari são claros e
incisivos a este respeito:
27
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille plateaux, pág. 218 (45 e 46).
28
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 159 (144).
destitua sua pretensão.” 29 Seguindo os passos da Genealogia da moral de Nietzsche,
Deleuze assinala ainda um segundo momento do desenvolvimento da doutrina do
julgamento, que é a bifurcação efetuada pelo cristianismo: “não há mais lotes, pois são
nossos julgamentos que compõem nosso único lote, e tampouco há forma, pois é o
julgamento de Deus que constitui a forma infinita. No limite, lotear-se a si mesmo e
punir-se a si mesmo tornam-se as características do novo juízo ou do trágico
moderno.” 30
Apoiada no endividamento com Deus e na imortalidade da alma, a doutrina do
julgamento associa-se a um ambiente que favorece seu florescimento: o mundo apolíneo
do sonho. Segundo Deleuze:
29
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (146).
30
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (146).
31
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (147).
32
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.163 (148).
33
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (151).
À doutrina do julgamento, são opostos por Deleuze a existência e seu sistema da
crueldade, no qual
Esta diferença entre dois regimes da dívida acarreta uma série de contraposições.
Ao elemento do sonho, a existência contrapõe os estados dionisíacos da
embriaguez e da insônia: “esse sono sem sonho onde no entanto não se dorme, essa
insônia que todavia arrasta o sonho até os confins da insônia, tal é o estado de
embriaguez dionisíaca, sua maneira de escapar ao julgamento.” 35 É possível interpretar
essa noção de insônia como a disposição das forças de irem a seu limite, de criarem e
relacionarem-se, pelo seu exercício mesmo, com o seu fora. 36
Face ao corpo orgânico do sistema do julgamento, a existência afirma a vitalidade
de um corpo sem órgãos — corpo insone que se define por uma vitalidade não orgânica,
por seus encontros com outras forças e potências. Trata-se de pensar e definir “um
corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e de ser afetado, isto é, Vontade
de Potência.” 37
Por fim, a existência faz-se como combate-entre forças que se subtraem ao
sistema de julgamento — e não através da guerra. “Porém, mais profundamente, o
próprio combatente é o combate”. 38 Deleuze quer assim, de um lado, sublinhar que a
existência é combate, de outro, acentuar o caráter parcial do combate contra o Outro,
34
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.161 (144 e145).
35
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.163 (148).
36
Não se deve confundir o conceito de Fora com uma exterioridade independente do pensamento. O Fora
do pensamento é criado pelo exercício mesmo do pensamento como seu limite extremo, como aquilo que
não pode ser senão pensado.
37
Gilles Deleuze, Critique et clinique., pág.164 (149).
38
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (150).
afirmando a dimensão ontológica do combate imanente à existência: “o combate-contra
procura destruir ou repelir uma força (...), mas o combate-entre, ao contrário, trata de
apossar-se de uma força para torná-la sua. O combate-entre é o processo pelo qual uma
força se enriquece ao se apossar de outras forças, somando-se a elas num novo conjunto,
num devir.” 39 O combate-entre cria assim um “centro de metamorfose”, no qual o
exercício mesmo da potência como “idiossincrasia de forças” permite pensar e
contrapor “decisão” e julgamento: “a decisão não é um julgamento, nem a conseqüência
orgânica de um julgamento, ela jorra vitalmente de um turbilhão de forças que nos
arrasta no combate. Ela resolve o combate sem suprimi-lo nem encerrá-lo.” 40
Qual é o sentido deste combate ao julgamento? Qual é a sua atualidade e
necessidade filosóficas? A importância do combate ao sistema do julgamento decorre da
necessidade moderna de uma ética que constituía uma nova relação do homem com o
mundo. Pois, como diz Deleuze, “o fato moderno é que já não acreditamos neste
mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como se
nos dissessem respeito apenas pela metade.” 41 Cabe a filosofia da diferença, ao
combater o julgamento, afirmar a potência da imanência à imanência tornando o
pensamento uma potência que afirma o que renasce da vida, o que metamorfoseia e cria.
Conclui-se dessas considerações que Deleuze, assumindo e desenvolvendo a
genealogia da moral nietzschiana, 42 determina dois planos de apreciação, duas
disposições não necessariamente filosóficas — uma que nega, acusa, julga e deprecia a
existência enfraquecendo a potência inventiva da experiência; outra, ao contrário,
criadora, acata, afirma e aprecia a existência —, com as quais a filosofia
necessariamente se relaciona. Compreendida como criação de conceitos, sua filosofia
pretende acolher a existência afirmando-a como experiência, vale dizer, como um
agenciamento prático que mobiliza no pensamento uma crueldade, uma embriaguez,
uma vitalidade, que o constitui como um combate por novos modos de vida. São esses
elementos que compõem e definem uma vontade de imanência.
39
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (150).
40
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.168 (152).
41
Gilles Deleuze, L’image-temps, pág. 223 (207).
42
Além de uma incorporação implícita e explícita da perspectiva da Genealogia da moral nesse artigo, e
em outros, como “Nietzsche e São Paulo, D.H. Lawrence e João de Patmos”, Deleuze dedicou todo um
capítulo à análise desse livro no seu Nietzsche e a filosofia , tendo realizado, conjuntamente com Guattari,
sobretudo no terceiro capítulo do Anti-Édipo, um verdadeiro desenvolvimento de teses da Genealogia da
A afirmação ontológica e o problema da cultura
43
Memória que é distinta de uma memória reativa, feita de traços mnêmicos do passado.
44
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 154 (111).
Mas esta responsabilidade é apenas um meio de adestramento e de
seleção; ela mede progressivamente a aptidão das forças reativas a
serem acionadas. O produto finito da atividade genérica não é o
homem responsável ou o homem moral, mas o homem autônomo e
super-moral, isto é, aquele que aciona efetivamente suas forças
reativas e no qual todas as forças reativas são acionadas. (...) O
produto da cultura não é o homem que obedece à lei, mas o indivíduo
soberano e legislador que se define pelo poder sobre si mesmo, sobre
o destino, sobre a lei: o livre, o ligeiro, o irresponsável.(...) Nietzsche
fala de uma autodestruição da justiça. A cultura é a atividade genérica
do homem; mas sendo seletiva toda essa atividade, ela produz o
indivíduo como seu objetivo final no qual o próprio genérico é
suprimido.” 45
45
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 157 e 158 (114).
46
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie,, pág.153 (111).
47
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 (115).
vista histórico sobre a cultura confunde-se com o desenvolvimento do niilismo, conceito
nietzschiano que corresponde à idéia deleuziana de um sistema do julgamento. Segundo
Deleuze, para Nietzsche, a vida assume o valor de nada desde que negada, depreciada. E
importa, no caso, ressaltar que, segundo Deleuze, para Nietzsche, a depreciação da vida
depende sempre de uma ficção:
48
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
49
Gilles Deleuze Felix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 16 (20).
O procedimento de subtração: constituição…
Deleuze nos autoriza, pois, a pensar sua filosofia como um sistema. Mas como fazê-lo?
Como conceber a noção de sistema prescindindo da noção de um todo fechado? E,
sobretudo, como compreender a lógica da sua construção? Deleuze nos auxilia? Parece
50
Gilles Deleuze, “Lettre-préface”. In: Jean-Clet Martin Variations, la philosophie de Gilles Deleuze.
que sim. Seu pequeno ensaio, Un manifeste de moins, sobre o teatro de Carmelo Bene,
traz, com efeito, esclarecimentos preciosos sobre a lógica da construção do sistema de
sua filosofia. Uma das hipóteses desta tese é que, nesse ensaio, Deleuze fala, através do
teatro de Carmelo Bene, do seu próprio procedimento, ou seja, das operações que
sustentam a experimentação do seu pensamento na filosofia.
No mencionado ensaio, Deleuze busca esclarecer a natureza da relação crítica que
o teatro de Carmelo Bene trava com o teatro e, em particular, com o de Shakespeare.
Não se trata, nesse teatro, de uma crítica que vise ao autor, nem de fazer teatro no teatro,
nem de uma paródia, nem de uma nova versão. Carmelo Bene procede por subtração,
retira de cada peça um elemento, um personagem: a peça afetada movimenta-se, e uma
nova peça surge em decorrência dessa manobra. Mas o que resulta daí? A nova peça se
confunde com a fabricação de um novo personagem que se elabora durante a peça. Esse
teatro crítico é apresentado, assim, como um teatro constituinte. O diretor é definido
como um operador: aquele que realiza o movimento de subtração que se faz
acompanhar da criação de um novo elemento: “amputação de Romeu e
desenvolvimento gigantesco de Mercutio, um no outro.” 51 Mas, se é claro, para
Deleuze, que seu alvo não é Shakespeare, sobre o que incide essa crítica? O que se tem
inicialmente em vista são os elementos subtraídos, são os marcadores de poder do
sistema da representação: o poder que é representado e o poder do próprio teatro.
Deleuze argumenta: “o poder específico do teatro não é separável de uma representação
do poder no teatro, mesmo se é uma representação crítica.”52 Essa subtração é o que
desencadeia uma nova peça, na qual se observa o desenvolvimento de uma nova matéria
e de uma nova forma teatral.
Prosseguindo a análise, Deleuze argumenta que um autor pode ser objeto de dois
tipos de tratamento. Pode-se elevá-lo ao maior: “de um pensamento se faz uma doutrina,
de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História.
Pretende-se assim reconhecer e admirar, mas de fato normaliza-se.” Pode-se, ao
contrário, submeter o autor a um tratamento menor ou de “minoração”: “para extrair
Pág. 7.
51
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 89.
52
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág.93. É importante aqui sublinhar que
Deleuze compreende por poder o mais baixo grau da potência. E a potência no seu mais baixo grau,
segundo Deleuze, caracteriza-se, enquanto poder, pela “potência” de bloquear a efetuação de novas
potências, separando a potência de sua criatividade.
devires contra a História, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina, graças
ou desgraças contra o dogma.” 53 O primeiro tratamento reforça, no sistema do autor, as
estruturas de poder e os marcadores de poder destas; o segundo, ao contrário, extrai do
sistema linhas de variação contínua que constituem regras imanentes de outro tipo. As
linhas de variação decorrem, segundo a análise de Deleuze, da subtração da história,
porque a História é o marcador temporal do poder; da estrutura, porque é o marcador
sincrônico; das constantes, elementos estáveis ou estabilizados; do texto, porque este
significa a dominação da língua sobre a fala; do diálogo, porque o diálogo faz circular
os elementos de poder. Mas o que resta ao fim desse conjunto de subtrações, indaga-se
Deleuze. Resta tudo, diz ele, mas sob uma nova luz, com novos sons e novos gestos.
Deleuze resume do seguinte modo os elementos que constituem o procedimento
da criação no teatro de Carmelo Bene: “1) extração dos elementos estáveis, 2) pôr tudo
em variação contínua, 3) desde então também transpor tudo em termos de ‘menor’.” 54
Desse tratamento imposto a um texto original advirão, segundo Deleuze, a subordinação
da forma ao movimento e a subordinação do sujeito à intensidade dos afetos; tal
tratamento também evitará sobre a cena a representação de conflitos, que aprisionaria o
devir na contradição. Assim se define uma função anti-representativa cujo sentido seria
a criação de uma consciência minoritária. O procedimento de subtração — que
desencadeia o processo de variação contínua — é responsável por essa potência de
transbordar o limiar representativo do padrão majoritário.
Se de um lado, como foi até agora ressaltado, este procedimento pode ser
apreendido segundo uma orientação que vai da subtração à constituição, deve-se
enfatizar, no momento, que a outra orientação, que vai da constituição à subtração é, em
outro nível, mais verdadeira. No primeiro caso, deve-se compreender a subtração como
uma operação que retira algo, um ou mais elementos, de um conjunto. Operação que
força uma redefinição do conjunto, isto é, dos elementos que permanecem e de suas
relações e, em conseqüência, do sentido dos termos assim relacionados. Mas, no
segundo caso, a subtração não sendo primeira, nem apenas a operação de retirar algo de
um conjunto já estabelecido, ela assume outro valor: como conseqüência de uma nova
afirmação, designa, agora, o que não entra e não pode entrar no novo conjunto afirmado,
53
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 97.
54
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 106.
o que não tem mais cabimento em vista de uma outra definição dos seres e das coisas.
São esses os dois sentidos que esclarecem os dois tempos de uma crítica produtiva. A
subtração, no primeiro sentido, abre, apenas abre, a possibilidade da constituição, isto é,
da afirmação do novo; mas é preciso saber que é, finalmente, a afirmação do novo que
pode dar necessidade à subtração: esta deixa, então, de ser um momento contingente da
aventura do pensamento e torna-se o efeito de um novo pensamento que se constitui. 55
É importante ressaltar que a subtração não é uma negação que prepara uma
superação que reintegra, numa nova unidade, o que foi inicialmente subtraído. Neste
sentido, deve-se sublinhar a que escrita “subtração: constituição …” visa evidenciar, na
sua estrutura mesma, o caráter não dialético do procedimento de subtração:
constituição… Por que essa grafia, que repete a estrutura paradoxal do título do último
ensaio de Gilles Deleuze “L’ immanence: une vie…”, evitaria toda confusão com a
oposição dialética? As considerações de Giogio Agamben a propósito de uma filosofia
da pontuação permitem esclarecer essa questão. No que diz respeito ao valor dos dois
pontos: eles evitam o hífen — que pode ser considerado o mais dialético dos sinais de
pontuação, porque une só na medida em que distingue e vice-versa. Além deste aspecto,
ainda de acordo com a reflexão de Giorgio Agamben:
55
A análise do procedimento da obra de Louis Wolfson conduz Deleuze à conclusão: “O procedimento
impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele devasta as designações, as
significações, as traduções, mas para que a linguagem afronte enfim, do outro lado de seu limite, as
figuras de uma vida desconhecida e de um saber esotérico. O procedimento é apenas a condição, por mais
indispensável que seja. Chega às novas figuras quem sabe transpor o limite.” Cf. Gilles Deleuze, Critique
et clinique, pág. 32 (30).
ensaio sobre Foucault, a propósito da relação com o dehors. (…)
Nesse sentido, os dois pontos representam o deslocamento da
imanência em si mesma, a abertura a um outro que porém, permanece
absolutamente imanente. Isto é, aquele movimento que Deleuze,
jogando com a emanação neoplatônica, chama de imanação.” 56
No que diz respeito aos três pontos pode-se dizer que eles fecham e deixam aberto o
título. Desse modo, ainda seguindo a análise de Giorgio Agamben as reticências
acentuam a natureza virtual de uma vida singular. Esta, “uma vida…” só se define
através desta virtualidade que lhe evita toda transcendência.
Não cabe aqui, neste momento, investigar o conceito de imanência na filosofia
de Gilles Deleuze. A retomada das considerações de Giorgio Agamben sobre o sentido
dos sinais de pontuação no título “L’immanance: une vie…” servem para esclarecer o
uso, nesta tese, deste agenciamento sintático paradoxal na expressão do procedimento
de subtração: constituição… No caso em questão, os dois pontos designam tanto o
duplo movimento imanente da subtração à constituição e da constituição à subtração,
quanto o limite que torna esses dois movimentos, não idênticos, indiscerníveis. As
reticências indicam a abertura do procedimento para os movimentos de virtualização e
de atualização que se subtraem a toda transcendência.
Um dos propósitos dessa tese é tomar esse procedimento de “subtração:
constituição...” como operador decisivo das análises concretas e da construção do
sistema da filosofia de Deleuze 57 . A sugestão é a de que sua filosofia se constrói
segundo um duplo movimento: 1) de subtração dos marcadores de poder internos à
filosofia e ao pensamento e 2) construção de novas questões, criação de problemas que
se desenvolvem com a criação de novos conceitos, constituindo nisto a relação original
de Deleuze com a filosofia.
Como “historiador da filosofia” ou como “autor original”, Deleuze estabelece com
a filosofia uma relação que evita a oposição entre o seu pensamento — na posição de
sujeito — e o sistema de um outro filósofo — na posição de objeto. Buscando esclarecer
sua relação com a história da filosofia, ele afirma:
56
Giogio Agamban, “L’ immanence absoute”. In: Éric Alliez (org), Gilles Deleuze: une vie
philosophique, pág. (171)
57
É importante notar que a subtração atua no nível mesmo da concepção de sistema em filosofia: a
“A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva.
É, antes, como a arte do retrato em pintura. São retratos mentais,
conceituais. Como em pintura, é necessário fazer semelhante, mas por
meios que não são semelhantes, por meios diferentes: a semelhança
deve ser produzida, e não meio de reproduzir (...) A história da
filosofia deve, não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele
subentendia necessariamente, aquilo que ele não dizia e que está
entretanto presente no que ele diz”. 58
62
Pondo esse problema na sua generalidade máxima, pode-se dizer que, quando se subtrai do pensamento
as figuras do Mesmo, do Idêntico, do Semelhante, do Análogo, é a Diferença que se constitui como o que
pode e deve ser pensado. Uma filosofia da imanência radical é uma filosofia da Diferença. A diferença
seria, nesse sistema, o conceito que assegura a consistência da imanência, o conceito que abriria o
pensamento para a criação de todos os outros conceitos e que permitiria conceber a filosofia como uma
lógica das multiplicidades.
Não se trata aqui, nesse momento, de estudar, nem mesmo de mencionar todos os
casos do pensamento deleuziano. Desejamos apenas sugerir que uma vontade de
imanência dirige os procedimentos sempre concretos e variados de “subtração:
constituição...” que atualizam os casos de pensamento da filosofia de Deleuze. Esse
procedimento permite ultrapassar a oposição entre um Deleuze “historiador da filosofia”
e um outro Deleuze “autor”, que constrói uma filosofia original. Na realidade, nada na
obra de Deleuze justifica essa distinção. Seus livros de “história da filosofia” não são
livros sobre uma filosofia acabada — os filósofos não são objetos, são antes
intercessores 63 de um pensamento que se constrói. É preciso ressaltar também que se
Deleuze é fascinado por essa experimentação, é porque ela possibilita o trabalho de
criação de conceitos, de criação de novas consistências no pensamento. Desse modo,
deve-se salientar o erro que consistiria em reduzir o alcance do procedimento de
subtração: constituição... a um mero procedimento de leitura de sistemas filosóficos ou
artísticos já estabelecidos. Ao contrário, em certa medida, é este procedimento que
permite a Gilles Deleuze não diferenciar, do ponto de vista da criação filosófica, seu
trabalho em história da filosofia de sua obra filosófica. Não só porque seu procedimento
de subtração: constituição... lhe permitiu uma seleção conceitual imanente à construção
dos retratos filosóficos dos filósofos que estudou, mas, sobretudo, porque esta seleção
teve sempre o sentido de contribuir para a realização de suas próprias peças filosóficas,
nas quais, certos conceitos, migrados de outros sistemas, assumiram novas funções, e,
relativamente ao sistema de partida, um desenvolvimento desmesurado. Além desta
operação de revezamento, cabe sublinhar que o procedimento de subtração:
constituição... anima, também internamente, os livros nos quais Gilles Deleuze elabora
seus problemas e cria seus conceitos próprios.
A reversão do platonismo
Deve-se sublinhar que esta tese sustenta que o sistema do julgamento penetra na
63
Deleuze diz a propósito da relação da filosofia com a ciência e com a arte: “o importante nunca foi
acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer o seu próprio movimento.(...) As interferências não são
mais de troca: tudo se faz por dom ou captura. (...) O que é essencial são os intercessores. A criação são
os intercessores. Sem eles, não há obra. (...) Eu tenho necessidade de meus intercessores para me
exprimir, e eles não se exprimiriam jamais sem mim: trabalha-se sempre com vários, mesmo quando isto
filosofia articulando uma doutrina do julgamento. Como já foi mencionado, é possível
sustentar a hipótese de que a representação é uma expressão filosófica do sistema do
julgamento. Deleuze considera que a representação é incapaz de pensar a diferença nela
mesma, pois por sua estrutura ela subordina o diverso às exigências da identidade e do
conceito, tal como foi definido pela metafísica. Além disso, segundo Deleuze a
representação se define pelo primado da Identidade, e a razão dessa subordinação é a
mesma que dá nascimento à metafísica, definida, segundo Deleuze, pelo platonismo.
É portanto oportuno examinar como o procedimento de subtração dos
marcadores de poder opera na construção da questão da “reversão do platonismo”. A
exposição deste exercício do procedimento é justificável, no seu detalhe, pela hipótese
de que a reversão do platonismo dá a orientação geral da filosofia de Deleuze.
Eis, para Deleuze, o sentido da teoria das Idéias 64 : referir a existência às
essências, aos modelos, como a operação mesma do julgamento. O platonismo se
esclarece sobretudo por essa vontade de selecionar, de “fazer a diferença”. Mas, nesse
sentido, o mais importante não é distinguir o original da cópia, é diferençar a cópia do
simulacro. Temos aí, segundo Deleuze, a razão do método da divisão platônica: o
imperioso desejo de distinguir a cópia — imagem que mantém com o modelo uma
relação de semelhança espiritual — do simulacro — que é imagem sem semelhança,
sem modelo. O método da divisão busca, portanto, determinar um fundamento
originário que permita fazer a diferença entre a cópia e o simulacro. Este fundamento
funcionará como modelo que simultaneamente assegura a unificação de um múltiplo e a
exclusão do que não se deixa unificar.
Segundo a análise de Deleuze, o mito ressurge, na divisão platônica,
desempenhando uma nova função, que é a de assegurar a repetição de uma fundação e
de instituir um fundamento como referência necessária para medir a diferença entre os
diversos pretendentes, sobretudo a diferença entre a pretensão bem fundada e a
pretensão não fundada. O conceito que autoriza a referência do pretendente ao
65
“Que somente a justiça seja justa não é uma simples proposição analítica. É a designação da Idéia como
fundamento que possui em primeiro lugar. E o próprio do fundamento é dar a participar, dar em segundo
lugar. Assim, aquilo que participa, e que participa mais ou menos, em graus diversos, é necessariamente
um pretendente. É o pretendente que pede um fundamento, é a pretensão que deve ser fundada (ou
denunciada como sem fundamento).” Cf. Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 87 (115 e 116).
66
Evitaremos aqui a distinção que Deleuze assinala entre duas tendências de conceber a natureza dos
problemas na filosofia de Platão. Uma esboçada em A república, outra desenvolvida no Teeteto. A
primeira faz o pensamento depender de um encontro com o que o força a pensar, a coexistência dos
contrários; a segunda — aquela que acaba por prevalecer e por domesticar a primeira — apoia-se no
modelo da reminiscência, submetendo o pensamento ao modelo da recognição.
67
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, págs. 88 e 89 (117).
Eis por que o não-ser deveria antes ser escrito (não)-ser, ou, melhor ainda, ?-ser.” 68
Viu-se como Deleuze isolou a motivação do platonismo: fazer a diferença,
distinguir linhagens, o puro e o impuro, a cópia e o simulacro. A reversão do platonismo
depende dessa operação de isolamento do problema platônico, pois é ela que permite
que a reversão não seja uma simples inversão. A reversão do platonismo — modelo,
nesse momento, de todos os outros casos de pensamento da filosofia de Deleuze —
depende: 1) da determinação do problema que dá sentido ao sistema; 2) da subtração de
um (ou de mais de um) dos termos do problema; 3) de que a eficácia dessa operação
altere a natureza do problema e o sentido de todos os outros elementos do antigo
problema. Assim a reversão do platonismo é redefinição das questões e não uma mera
inversão de sinais que manteria a significação dos elementos envolvidos. O que se busca
é problematizar o que significa pensar, isto é, uma mudança não apenas dos termos do
problema mas, sobretudo, da própria concepção do que seja um problema.
De que modo o mecanismo de subtração: constituição... atua redefinindo os
elementos do platonismo? O que é subtraído? É a cópia e, com ela, a imitação e a
semelhança a um modelo ausente. A exclusão desses elementos redefine o sentido da
existência: os entes não são mais pretendentes, não se definem mais pela pretensão a um
fundamento transcendente, que desaparece com o destino do seu pretendente, a cópia.
Nesse novo contexto, observa-se o desenvolvimento do simulacro — a personagem
recalcada no sistema da representação platônica. É a sua afirmação que ilumina com
novas luzes os demais elementos do sistema. Assim, o primeiro ato da reversão do
platonismo é a afirmação do simulacro, a recusa do primado do modelo, do Mesmo
sobre a imagem, ou seja, o Semelhante. A própria coisa é afirmada como simulacro que
prescinde da identidade do modelo e de toda similitude imitativa. Esse simulacro
afirmado difere em natureza do simulacro recalcado. Deixa de ser um falso pretendente
(noção que não possui mais sentido) e se define por uma disparidade, por uma não
similitude interiorizada e afirmada. A diferença é, agora, o simulacro afirmado.
A diferença deleuziana difere, pois, em natureza da diferença platônica: afirmada
como simulacro — como sentido que se distingue do caos (do fundo intenso ou do não-
sentido) que, no entanto, não se separa dele — denuncia a impossibilidade da diferença
como o fundamento das pretensões. Deste modo, o círculo mítico modifica-se e
68
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 89 (118).
desfigura todos os antigos pretendentes. Com a emergência de sua significação latente,
o eterno retorno não exprime mais uma ordem:
“ele não é nada além do que o caos, potência de afirmar o caos. (...) À
coerência da representação, o eterno retorno substitui sua outra coisa,
sua própria cao-errância. É que, entre o eterno retorno e o simulacro,
há um laço tão profundo, que um não pode ser compreendido sem o
outro. O que retorna são as séries divergentes como divergentes, isto
é, cada qual enquanto desloca sua diferença com todas as outras e
todas enquanto complicam a sua diferença no caos sem começo nem
fim. O círculo do eterno retorno é um círculo sempre excêntrico para
um centro sempre descentrado.” 69
69
Gilles Deleuze, Lógique du sens. pág. 305 (269 e 270).
70
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 171 (155).
um problema. Pois ela não se deixa constituir pelos problemas construídos no interior
do quadro da representação nem permite sua determinação como um elemento, da
experiência possível. A reversão do platonismo desemboca num empirismo
transcendental, cujo desafio é pensar as condições da experiência real — condições que
não são mais amplas do que o condicionado, diferindo, portanto, em natureza das
categorias. Os problemas definem o essencial, são provas: “o essencial é que, no seio
dos problemas, faz-se uma gênese da verdade, uma produção do verdadeiro no
pensamento. O problema é o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético
no verdadeiro. Portanto, podemos substituir o simples ponto de vista do
condicionamento pelo ponto de vista da gênese efetiva.” 71
Fica, assim, sugerida a hipótese de que a construção da filosofia de Deleuze
pode ser esclarecida pelo que designamos por procedimento de subtração:
constituição...: subtração das transcendências, seguida da construção de um campo de
imanência e da criação de conceitos. Mas resta a questão: que elementos subtrair, como
determinar, em cada caso, as subtrações necessárias? A partir das considerações sobre a
análise de Deleuze acerca da reversão do platonismo, é legítimo supor que é a
determinação da questão imperativa de escapar da doutrina do julgamento e dos
problemas que esta questão suscita que explicam a seleção, por parte de Deleuze, dos
seus casos de pensamento. E, também, é esse conjunto questão-problemas que é
decisivo para a seleção do que deve ser em cada caso suprimido. Fica a hipótese de que
Deleuze movimenta o pensamento subtraindo os elementos que sustentam os problemas
desenvolvidos pelos sistemas que sua filosofia transforma, por subtração:
constituição..., em elementos de um novo encontro e de novos problemas.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
melhor compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para a
71
Gilles Deleuze, Différence et répétiton. pág. 210 (264).
criação de um sistema aberto de conceitos em consonância com os conceitos de
problema e de afirmação.
Essa postura metodológica — tomar as coisas pelo meio, começar pelo meio — é,
como a análise do sentido do trágico mostrou, também uma posição ontológica: é
afirmação da imanência e da univocidade do Ser, recusa de todo pensamento categorial
ou analógico. A articulação do imperativo metodológico de começar pelo meio e da
ontologia da univocidade ou imanência do Ser 72 é fundamental para a compreensão da
elaboração do pensamento de Deleuze na sua relação com a “história da filosofia”.
Permite também entender que, no intuito de construir uma filosofia da imanência do Ser
unívoco, Deleuze tenha sido levado a um combate-contra a doutrina do julgamento, tal
como ela foi elaborada na filosofia, não apenas por um gosto de distinção, que se
poderia pensar dispensável, mas por força de uma necessidade interna ao seu
pensamento. Pois, para Deleuze, como a análise dos sentidos da cultura mostrou, o
adversário do pensamento não é o real, mas algo interno ao pensamento mesmo: sua
eventual fraqueza, a má consciência, a tolice e a baixeza. E a besteira no pensamento
confunde-se com o sistema do julgamento:
Não cabe nesse texto, com relação a essa idéia, ir além de sugerir que a relação
necessária dos combates-contra e dos combates-entre, tanto externamente quanto
internamente à filosofia, deve-se à compreensão deleuziana do pensamento como
72
Cf. Alain Badiou, "De la Vie comme nom de l’Être". In Rue Descartes n.º 20, pág. 28. Nesse ensaio
Badiou observa que, para Deleuze, o caminho da imanência é o mesmo que o da univocidade: “Deleuze
me escreveu um dia, em letras maiúsculas: Univocidade = Imanência.”
73
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 69 (63).
criação, a qual envolve a necessidade de construir planos de imanência inseparáveis de
uma crítica das submissões do pensamento aos valores superiores que o limitam à busca
dos verdadeiros princípios do julgamento.
As considerações sobre as relações do procedimento de subtração: constituição...
com a vontade de imanência sugerem que a crítica à doutrina do julgamento deve ser
compreendida não como um julgamento derivado de uma outra doutrina já dada e
estabelecida como verdadeira. Ao contrário, um dos intuitos dessa tese é desenvolver a
hipótese de que a filosofia deleuziana constituiu-se como processo de desativação, pelo
procedimento de subtração: constituição..., da doutrina do julgamento. Processo cuja
efetividade, sempre posta à prova pelos encontros suscitados no percurso deleuziano,
dependeu da potência do pensamento de Deleuze de determinar problemas e de criar
conceitos — e sobretudo um novo conceito Idéia e um novo conceito de conceito 74 —
capazes de dar consistência a novos modos de sentir e de pensar fora do campo da razão
e da doutrina do julgamento.
Nesse sentido, a obra de Deleuze pode ser lida como um longo e diversificado
combate-contra o retorno das transcendências e um elaborado e sofisticado combate-
entre as forças do pensamento, no sentido de uma filosofia da pura imanência, cujo
desafio maior é pensar um outro tipo de diferença — o acontecimento, a gênese do ato
de pensar no pensamento — e uma seleção de outra natureza, que não incida sobre a
pretensão, mas sobre a potência:
74
Conceito que foi efetivamente elaborados em Différence et répétition e Qu’est- ce que la Philosophie?,
desconvém, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da
guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização.” 75
CAPÍTULO II
O dehors e o signo
repectivamente.
75
Gilles Deleuze, “Pour en finir avec le jugement”, in Critique et clinique. pág. 168 (153)
afirmação da imanência absoluta do pensamento ao pensamento, e, em conseqüência, da
determinação da univocidade do ser e da definição da filosofia como criação conceitual.
76
Gilles Deleuze, L’Anti-Œdipe, pág. 50.
77
Gilles Deleuze, L’Anti-Œdipe, pág. 51.
78
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 140 (114).
introdutória, que a sensibilidade de Gilles Deleuze a esta tão nova concepção de unidade
que Proust estava criando não é sem relação com sua tese de que A la recherche du
temps perdu é voltada para o futuro e não para o passado e que “nela a memória só
intervém como meio de um aprendizado que a ultrapassa tanto por seus objetivos
quanto por seus princípios.” 79 Neste sentido, deve-se sublinhar, como dois aspectos
relevantes para pensar a unidade de um sistema em heterogênese, tanto a idéia de uma
pesquisa que subordina o saber ao movimento de um aprendizado, quanto a dimensão
temporal desta pesquisa que se volta para o futuro e para o novo.
Evidencia-se, portanto, uma repetição do problema da unidade entre fragmentos
no interior de certas linhagens da produção artística e filosófica 80 , o que permite
compreender como Deleuze pôde elaborar a crítica aos postulados do Todo e do Um e
pensar um novo conceito de sistema em filosofia, tanto ao efetuar diretamente uma
crítica no interior do campo filosófico (trabalho empreendido sobretudo em Difference
et répétition, Logique du sens, Anti-Oedipe e Mille plateaux), quanto de viés, através de
interpretações do desenvolvimento desse mesmo problema nas obras de certos artistas.
Seus livros sobre Proust e Bacon são exemplares a esse respeito.
Deleuze interroga, em Proust et les signes, o novo sentido da obra de arte —
problema cujo interesse, como se viu, está na sua intercessão com a questão: o que é um
sistema filosófico em perpétua heterogênese? — e investiga, sobretudo, o problema da
unidade de uma obra que articula suas partes sem submetê-las ao trabalho do Logos e
sem hierarquizá-las segundo a lei de um Todo. O estudo da obra de Proust relaciona arte
e filosofia e permite, assim, a formulação da hipótese de que a interpretação de Deleuze
a propósito da natureza da unidade de A la Recheche du temps perdu pode ser estendida
à sua própria filosofia, fornecendo elementos para se pensar um novo conceito de
sistema em filosofia, o qual decerto, como já foi assinalado, subtrai-se igualmente aos
postulados do Logos e do Todo.
O estudo de um novo conceito de sistema em filosofia no pensamento de
Deleuze deve iniciar-se retomando as duas questões: 1) qual é o efeito, na filosofia de
Deleuze, da subtração, ao pensamento, dos postulados do Todo e do Um? 2) qual
79
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 10 (4).
80
Será fundamental relacionar essa crise do Um e do Todo com o advento da ciência. E assim
compreender o sentido do desejo de criar uma filosofia à altura da ciência moderna: como criar, no campo
do pensamento, a possibilidade de sistemas de verdades não unificáveis…
afirmação constitui uma nova perspectiva que se subtrai ao postulado do Todo e do
Um? Tais questões devem orientar um conjunto de investigações pertinentes aos
problemas da redefinição do estatuto do fragmento e de um novo conceito de sistema
em filosofia. Essas investigações que partem do estudo de Deleuze sobre Proust se
prolongarão, quando necessário, segundo as exigências da análise, no estudo de outros
conceitos e problemas interligados, tomando em consideração outros trabalhos de
Deleuze.
E ainda, uma definição crítica: “no Logos, há um aspecto, por mais escondido que
esteja, pelo qual a Inteligência vem sempre antes, pelo qual o todo já se encontra
presente, a lei já é conhecida antes daquilo a que se vai aplicá-la: o movimento
ilusionista dialético, em que nada mais se faz do que reencontrar o que já estava dado de
antemão e de onde só se tira as coisas que aí tinham sido colocadas.” 82
Como é compreendido o fragmento no mundo de Atenas? Qual é o seu estatuto,
quando pensado em referência ao Todo? O fragmento ou os signos, como prefere
81
Gilles Deleuze, Proust et les signes, págs. 127 (103).
Deleuze, eram considerados, pela alma grega, como “um sistema mutilado, variável e
enganador, cacos de um Logos que deveriam ser restaurados em uma dialética,
reconciliados por uma philia, harmonizados por uma sophia, governados por uma
inteligência que precede.” 83
Deleuze opõe o mundo dos signos 84 ao mundo do Logos pela “figura das partes
que os signos recortam no mundo, pela natureza das leis que revelam, pelo uso das
faculdades que solicitam, pelo tipo de unidade que deles decorre, e pela estrutura da
linguagem que os traduz e os interpreta.” 85 É a partir desses cinco pontos de vista que
ele apresenta a originalidade do platonismo de Proust: sua reversão do platonismo.
A reminiscência platônica, segundo Deleuze, tem seu ponto de partida num devir
qualitativo que representa um estado de coisas, devir que representa um estado do
mundo e sua precária tentativa de imitar a Idéia — concebida como ponto de chegada
do processo da reminiscência e como essência estável que introduz no todo a justa
medida. “Razão por que a Idéia está sempre 'antes', é sempre pressuposta, mesmo
quando só é descoberta após. O ponto de partida só vale por sua capacidade de já imitar
o ponto de chegada, de tal modo que o uso disjunto das faculdades é, apenas, um
'prelúdio' à dialética que os reúne em um mesmo Logos...” 86
De outro modo, segundo a análise de Deleuze, do ponto de vista de Proust, o
movimento do pensamento tem seu começo num encontro, num devir qualitativo
inscrito num estado de alma, e a reminiscência intervém porque a qualidade é
inseparável de uma cadeia de associação subjetiva que não somos livres de
experimentar. Tais associações devem ser ultrapassadas em direção a uma essência, que
não é mais a essência estável, não é mais algo contemplável, mas um ponto de vista
superior.
82
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 128 (104).
83
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 135 (110).
84
Esta análise deve ser relacionada ao estudo da reversão do platonismo, iniciado no primeiro capítulo
desta tese, à luz da hipótese do procedimento de subtração: constituição.... O que, no momento, nomeia-se
fragmento ou signo lá surgia com o nome de simulacro. Lá como aqui trata-se da mesma questão: como
redefinir o signo ou o simulacro a partir da subtração dos postulados do Todo e do Um? E, também, como
redefinir a idéia quando dela se elimina o postulado de sua identidade?
85
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 131 (106).
86
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 132 (107).
permanece superior àquele que nele se coloca ou garante a identidade
de todos os que o atingem. Não é individual, mas, ao contrário,
princípio de individuação. Eis precisamente a originalidade da
reminiscência proustiana: ela vai de um estado d’alma, e de suas
cadeias associativas, a um ponto de vista criador ou transcendente; e
não mais, à maneira de Platão, de um estado do mundo a objetividades
vistas.” 87
Ainda uma vez deve-se destacar a relação entre esse deslocamento da objetividade em
direção à estrutura da obra, ao estilo, não apenas com a fragmentação do Todo, mas
também, uma vez que não há Todo, com a importância atribuída ao tempo, como síntese
do futuro, por um pensamento que se define como criador e que busca ordenar-se em
um sistema que se quer em heterogênese. Cabe a questão: com o que se relaciona o
pensamento quando dele se subtrai a idéia do Todo? Na ausência do Todo, como se
analisará no capítulo “O dogmático e o problemático”, o pensamento se confronta não
mais com a exterioridade da substância extensa, mas com o tempo como seu limite
interno, sendo assim ativado por signos. Torna-se então urgente a questão: como
Deleuze pensa os signos, que estatuto ele lhes atribui?
87
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 133 e 134 (108 e 109).
88
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 134 (109).
Rigorosamente, Deleuze distingue dois regimes de signos, duas maneiras de
conceber o fragmento ou o signo: ou o fragmento remete ao Todo do qual ele foi
extraído, ou é solitário: sem relação com outra parte que a ele corresponde
necessariamente, sem remissão a uma totalidade ou a uma unidade que o integre. Do
ponto de vista da solidão do fragmento, cabe retomar as questões acima formuladas:
qual afirmação constitui uma nova perspectiva que se subtrai aos postulados do Todo e
do Um? Que novo pensamento furta-se à filosofia da representação e dá,
correlativamente, necessidade à eliminação do Um e do Todo?
Não basta responder que se trata da afirmação do fragmento, pois o que está em
questão não é apenas a necessidade da subtração do Todo, mas também e, sobretudo, a
necessidade da afirmação do fragmento. Pois a afirmação do fragmento solitário que dá
necessidade à exclusão do Todo, encontra, para Deleuze, sua condição em uma obra e
na proposição que faz do tempo instância paradoxal que relaciona os fragmentos, sem,
no entanto, abolir a solidão que os caracteriza:
“uma obra que tem por objeto, ou melhor, por sujeito, o Tempo
envolve, arrasta consigo fragmentos que não se podem mais
reconciliar, é composta de pedaços que não fazem parte do mesmo
puzzle, que não pertencem a uma totalidade prévia, que não emanam
de uma unidade, mesmo que tenha sido perdida. Talvez o tempo seja
isso: a existência última de partes de tamanhos e formas diferentes que
não se deixam adaptar, que não se desenvolvem no mesmo ritmo, e
que a correnteza do estilo não arrasta na mesma velocidade.” 89
Ou seja, o tempo, redefinido por Deleuze como perspectiva imposta pelo pensamento
dos fragmentos solitários e que sustenta um ponto de vista criador, é o que reúne, isto é,
interpreta os fragmentos sem totalizá-los e sem unificá-los. O tempo é, assim, o conceito
que se correlaciona com o pensamento da exterioridade da relação; é instância da
Relação, que desempenha o papel de parte heteróclita num conjunto que, no entanto,
articula transversalmente. O tempo e a exterioridade das relações com respeito aos
termos relacionados (será preciso, mais tarde, mostrar a pressuposição recíproca desses
conceitos na filosofia de Deleuze) mantêm a diferença no signo e entre os signos,
89
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 137 (111).
diferença pensada como constituinte de uma multiplicidade irredutível ao Um. 90
A possibilidade de se pensar na construção paradoxal de uma espécie de todo
que não totaliza os fragmentos depende, segundo Deleuze, deste princípio da filosofia
inglesa, o da exterioridade das relações. Comentando a obra de Whitman, Deleuze
afirma que as relações são postas como devendo ser instauradas, inventadas: “se as
partes são fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao menos inventar entre
elas relações não-preexistentes…” 91 Deve-se evitar o contra-senso de substancializar as
partes e os fragmentos: o princípio da exterioridade das relações não deve fazer crer em
fragmentos já dados como fatos, isto é, como imagens que podem ser apreendidas de
modo independente de qualquer processo de pensamento. Nesse sentido, o princípio da
exterioridade das relações implica um primado das relações sobre os termos: estes são
determinados e as relações determinantes. O princípio da exterioridade das relações não
é contraditório com a idéia de pressuposição recíproca entre relações e termos. Assim,
se os fragmentos não são totalizáveis ou unificáveis, isto não significa que os
fragmentos existam totalmente isolados. A solidão do fragmento se diz em relação ao
Todo e ao Um, não em relação a outros fragmentos.
Deleuze retoma, no capítulo “Les boîtes et les vases” de Proust et les signes, esse
problema da unidade do mundo dos fragmentos determinando dois tipos de relações
entre os signos disparatados: relações continente-conteúdo, de envolvimento ou de
implicação, e relações partes-todo. O primeiro tipo define uma relação de envolvimento
ou de implicação, e com respeito a esta relação a atividade da interpretação consiste em
explicar, em desenvolver o conteúdo sempre incomensurável ao continente. O segundo
tipo é o da complicação, isto é, dá conta da coexistência de partes assimétricas e não
comunicantes. A interpretação consiste, então, em escolher. Segundo Deleuze, em À la
recherche du temps perdu, “a primeira figura é dominada pela imagem das caixas
entreabertas, a segunda por aquela dos vasos fechados. A primeira (continente-
conteúdo) vale pela posição de um conteúdo sem medida comum; a segunda (partes-
todo) vale pela oposição de uma vizinhança sem comunicação. E sem dúvida elas se
90
Para uma apresentação completa e sistemática do problema do tempo na filosofia de Gilles Deleuze,
deve-se destacar o livro de Peter-Pál Pelbart O tempo não-reconciliado. Editora Perspectiva, 1998.
91
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 78 (70).
misturam freqüentemente, passam uma na outra.” 92 É relevante assinalar, para uma
melhor compreensão do significado do conceito de interpretação no pensamento de
Gilles Deleuze, embora esse ponto não seja suficientemente desenvolvido nesse
momento, que a subtração ao pensamento do Um e do Todo faz sistema, nesta filosofia,
com a descoberta, na proposição, da dimensão do sentido; em conseqüência, com a
superação de uma lógica da predicação em favor de uma lógica da expressão; e com a
transição, no plano ontológico, de uma concepção analógica do ser à afirmação da
univocidade do ser. O conjunto desses movimentos forçados pela questão “o que é
pensar, quando pensar não é julgar?” — que se exprime positivamente na afirmação de
que a “questão da filosofia é o ponto singular onde a criação e o conceito remetem um
ao outro” 93 , e desencadeados pela subtração, ao pensamento do Um e do Todo, que esta
questão comanda —, permite integrar o sentido, a expressão e a univocidade numa
temporalidade do acontecimento.
Com estas transformações, a interpretação diz respeito ao domínio do sentido. O
que isto significa? Inicialmente, o privilégio da dimensão do sentido sobre as demais
relações que coexistem na proposição. Isto diz respeito ao problema da gênese da
verdade.
Segundo Deleuze, a relação de designação — que conecta as proposições com
os estados de coisas e que possui como critério e elemento o verdadeiro e o falso —, a
relação de manifestação — que enuncia os desejos e as crenças que correspondem à
proposição, cujos valores lógicos são a veracidade e o engano —, e a significação —
que estabelece a relação da fala com conceitos universais e gerais e das ligações
sintáticas com implicações de conceito, cujo valor lógico é a condição da verdade —,
são impotentes para a apreensão do sentido e da gênese da verdade.
O problema da interpretação quando remetido ao problema da gênese da verdade
conecta a interpretação com uma dimensão incondicionada que põe em questão tanto os
supostos fundamentos transcendentes da verdade, quanto as condições transcendentais
da experiência:
92
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 142 (115).
93
Gilles Deleuze, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 20.
estranho empreendimento, que consiste em nos elevarmos do
condicionado à condição para conceber a condição como simples
possibilidade do condicionado. Eis que nos elevamos a um
fundamento, mas o fundado continua a ser o que era, independente da
operação que o funda, não afetado por ela; assim, a designação
permanece exterior à ordem que a condiciona, o verdadeiro e o falso
permanecem indiferentes ao princípio que não determina a
possibilidade de um deles a não ser deixando-o subsistir na sua antiga
relação com o outro. De tal forma que somos perpetuamente
remetidos do condicionado à condição, mas também da condição ao
condicionado. Para que a condição de verdade escape a este defeito,
será preciso que ela disponha de um elemento próprio distinto da
forma do condicionado, seria preciso que ela tivesse alguma coisa de
incondicionado, capaz de assegurar uma gênese real da designação e
das outras dimensões da proposição: então a condição de verdade seria
definida não mais como forma de possibilidade conceitual, mas como
matéria ou ‘camada’ ideal, isto é, não mais como significação, mas
como sentido.” 94
É fundamental aqui assinalar (o que só será efetivamente desenvolvido nos dois últimos
capítulos) que Deleuze afirmando o sentido, o expresso na proposição, como
acontecimento, contrapõe-se ao ideal de determinar as condições da experiência
possível formulando o desafio de pensar a gênese da experiência real.
Disto isto, o sentido como acontecimento é também o que se exprime na
proposição e, nessa qualidade, é irredutível, seja aos estados de coisas individuais, às
imagens particulares e às crenças pessoais, seja aos conceitos universais e gerais. E, é
num mesmo movimento que se subtrai ao pensamento a designação, a manifestação e a
significação e que constitui-se, no pensamento, o sentido como acontecimento. A
afirmação desse plano de imanência avança, em conjunção com a afirmação da lógica
da expressão, no sentido da univocidade do ser. Neste caso, Deleuze retoma o objetivo
da obra de Espinosa, que põe, segundo ele, sua teoria da expressão a serviço da
univocidade e da imanência. 95 De acordo com a leitura que Deleuze faz de Espinosa, o
94
Gilles Deleuze, Logique du sens, págs. 29 e 30 (19 e 20).
95
Cf, Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, págs. 307 a 311.
essencial, a esse respeito, é que sendo a noção de expressão essencialmente triádica (ela
distingue o que se exprime, a expressão e o expresso) ela , de um lado, é paradoxal (o
expresso não existe fora da expressão, que não se assemelha a ele, mas é essencialmente
relacionado ao que se exprime, como distinto da expressão mesma), suporta um duplo
movimento: envolve o expresso na expressão para reter o par “o que se exprime e a
expressão”, ou bem desenvolve a expressão de modo a restituir o expresso; de outro
lado, sua natureza triádica e paradoxal não deixa que o conceito de expressão se reduza
nem à causa no Ser, nem à representação na Idéia: “o expresso intervém como um
terceiro que transforma os dualismos. Para além da causalidade real, para além da
representação ideal, descobre-se o expresso como o terceiro que torna as distinções
infinitamente mais reais, a identidade infinitamente melhor pensada. O expresso é o
sentido: mais profundo que a relação de causalidade, mais profundo que a relação de
representação.” 96
O problema da unidade do mundo dos fragmentos é posto, portanto, em conjunção
com a questão da interpretação dos signos. Pois a interpretação explica, seleciona,
relaciona e reúne. O problema da interpretação assume a seguinte forma: quem
interpreta, explica, seleciona e reúne, sem totalizar ou unificar? Deleuze recusa a
possibilidade de um sujeito interpretante: “na verdade, existe uma atividade, um puro
interpretar, puro escolher, que não tem sujeito nem objeto, visto que ela escolhe tanto o
intérprete quanto a coisa a interpretar, tanto o signo quanto o eu que o decifra. Tal, é o
'nós' da interpretação.” 97 Deleuze elimina da interpretação, também, toda unidade
hierárquica: “o interpretar só tem uma unidade transversal; ele é a única divindade de
que qualquer coisa é fragmento, mas sua 'forma divina' não recolhe nem recola os
fragmentos: ela os conduz, ao contrário, ao mais alto estado, ao mais agudo, impedindo
que eles formem um conjunto ou sejam destacados.” 98 Assim, o interpretar, ou o
pensamento como ato de fragmentar (desterritorializar) e de criar relações
(territorializar), não apenas se exerce sobre um universo esmigalhado, mas ele deve
constituí-lo e mantê-lo como essencialmente fragmentado. A subtração do Um ao
pensamento é, portanto, por um lado, uma operação do próprio pensamento que
96
Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, págs. 311.
97
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 155 (127 e 128).
98
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 156 (128).
fragmenta a idéia de universo, desfigura a idéia de um Todo, e subtrai ao pensamento o
pressuposto do real como possuindo uma ordem dada qualquer. Todavia, por outro lado,
a interpretação não implica, em contrapartida, a idéia de um caos de fragmentos ou de
imagens totalmente desligadas. Entre um caos de imagens desligadas e uma ordem de
relações já dada, que configuraria um universo no qual as imagens estariam
integralmente ligadas, a interpretação deve, simultaneamente, afirmar-se como múltipla
e afirmar o seu correlato como uma multiplicidade. Por todas as vezes, cada
interpretação, deve, ao criar novas relações entre fragmentos, estabelecer-se, ao mesmo
tempo, desfigurando antigas ordenações e afirmando uma abertura para outras
interpretações que efetuam novas fragmentações e novas relações entre os fragmentos.
Desse modo, o interpretar — que impede que os fragmentos tanto formem um conjunto
quanto sejam destacados — convém ser concebido como síntese disjuntiva que afirma o
Acontecimento da interpretação em suas múltiplas dimensões temporais: a de sua
efetuação concreta num estado de coisas presente, mas, também, a de sua contra-
efetuação, que liberta a interpretação da exclusividade da dimensão presente e que
relaciona as síntese do presente, do passado e do futuro com a superfície temporal do
Acontecimento impessoal e pré-individual.
No entanto, como compreender esse interpretar que não conhece unidade
subjetiva nem totalização objetiva? Ou, em outros termos: o que é esse interpretar que
mantém a incomensurabilidade da relação do conteúdo com o continente e a não
comunicação das partes contíguas? Deleuze diz: o interpretar é temporal, ele é o tempo
compreendido como a impossibilidade do Todo. E, retomando a fórmula bergsoniana,
acrescenta que o tempo significa que o Todo não é dado nem dável. Mas adverte,
distanciando-se tanto de Bergson quanto de Hegel, que isto
“não quer dizer o todo ‘se faz’ em uma outra dimensão que seria
precisamente temporal, como o compreende Bergson, ou como o
compreendem por sua conta os dialéticos partidários de um processo
de totalização; mas que o tempo, último intérprete, último interpretar,
possui o estranho poder de afirmar simultaneamente pedaços que não
formam um todo no espaço, nem formam também uma unidade por
sucessão no tempo. O tempo é exatamente a transversal de todos os
espaços possíveis, inclusive os espaços de tempo.” 99
Contudo, como conceber o tempo como último intérprete? Não haverá nisso uma
estranha identidade do tempo e do pensamento, não será o tempo o nome do
pensamento, quando o pensamento fragmenta a Verdade em verdades, quando o
pensamento se confronta com o Fora, quando se torna pensamento do dehors?
O dehors
Certo, mas isto é ainda pouco se não se souber o que é o dehors. Em outros
termos: a relação do pensamento com o tempo e, sobretudo, a afinidade do tempo com o
pensamento, só será, efetivamente, compreendida com o conhecimento, mais preciso,
do conceito de dehors. De fato, todas as considerações precedentes indicam que o
dehors deve ser entendido como o fora do Todo e como fora do Logos, isto é, como o
conjunto que se subtrai e que não entra nem na unidade objetiva nem na totalização
subjetiva: o dehors como o mundo dos signos ou como mundo de fragmentos, que se
furta ao Logos e que se subtrai ao Todo. Mas, se o dehors, o fora do Todo e como o fora
do Logos, designa, neste sentido, o mundo dos signos, resta precisar o que é um signo.
A identidade do signo e do fragmento não é suficiente. Por um lado, é preciso
repetir e salientar que o fragmento ou o signo não é uma imagem isolada, ele é, como se
verá com mais rigor mais adiante, sempre o efeito de uma contração que se faz no
espírito. Por outro lado, ela apenas diz o que o signo não é: enquanto fragmento o signo
é o que se furta ao Todo, o que não cabe no Logos, o que não se deixa totalizar. E
contudo, nada se sabe, assim, sobre sua positividade. Elemento de um mundo não
totalizável, o signo, diz Deleuze, não se confunde nem com a matéria bruta nem com o
espírito voluntário, nem com as significações explícitas — provenientes de um espírito
99
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 157 (129). Essa reflexão de Deleuze segue de perto a
interpretação de Blanchot a propósito do conceito de devir em Nietzsche: “o devir não é a fluência de
uma duração infinita (bergsoniana) ou a mobilidade de um movimento interminável. O despedaçamento
— a quebra — de Dioniso, eis o primeiro saber, a experiência obscura na qual o devir se descobre em
relação com o descontínuo e como seu jogo. E a fragmentação do deus não é a renúncia ousada à unidade
ou a unidade que permanece una, mesmo se pluralizando. A fragmentação é o deus mesmo, aquilo que
não tem nenhuma relação com um centro, que não suporta nenhuma referência originária e que, por
conseqüência, o pensamento, pensamento do mesmo e do um, aquele da teologia, como de todos os
modos do saber humano (ou dialético), não poderia acolher sem falsear.” L’entretiern infini, pág. 235.
que quer o verdadeiro — nem com a matéria objetiva e não ambígua, submetida às
condições do real. Na seqüência desse desbastamento conceitual, Deleuze conclui: “não
existem coisas nem espíritos, só existem corpos: corpos astrais, corpos vegetais... A
biologia teria razão, se soubesse que os corpos em si mesmos já são linguagem. Os
lingüistas teriam razão se soubessem que a linguagem é sempre a dos corpos.” 100
Assim, o signo (não sendo nem matéria, nem significação) é sentido que se atribui aos
corpos. Cabe, então, a questão: o que é, para Deleuze, um corpo?
Deleuze retoma, quanto ao problema da natureza do corpo, as setas lançadas por
Espinosa (nós não sabemos do que um corpo é capaz) e por Nietzsche (nós estamos na
fase na qual a consciência tornou-se modesta). Destaca, com Nietzsche, no corpo, o
papel secundário da consciência: a consciência é
Deleuze sublinha, por outro lado, que um corpo não é uma realidade, não é um meio ou
um lugar, nem mesmo um campo de forças ou de batalha: “não há quantidade de
realidade, toda realidade já é quantidade de forças.” 102 Se um corpo não é, assim, nem
dominado pela consciência, nem realidade, retorna a questão: o que é um corpo?
Um corpo é força, relação de forças. Faz parte do conceito de força, segundo a
interpretação deleuziana deste conceito de Nietzsche, a idéia de que toda força já é, em
si mesma, relação de forças. Falar de força é, portanto, falar de forças dominantes e de
forças dominadas, de forças que comandam e de forças que obedecem. Na linguagem de
Nietzsche, forças ativas e forças reativas. E é assim que Deleuze, com Nietzsche, define
um corpo: “um corpo é essa relação entre forças dominantes e forças dominadas. Toda
100
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 112 (91).
101
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs 44 e 45 (32).
102
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 45 (33).
relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças
quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação: porque
o corpo é sempre produto do acaso, no sentido nietzschiano, e aparece como a coisa
mais surpreendente, muito mais surpreendente, em verdade, que a consciência e o
espírito.” 103 Eis ao que se chega quando se define o corpo como relação de forças: ele é
multiplicidade de forças em devir, fragmento, efeito do acaso de encontros de forças,
acontecimento, numa temporalidade descontínua. Como elemento que se atribui aos
corpos enquanto diferença de forças, o signo é também fenômeno de dominação e,
como acontecimento, o signo é, nele mesmo, uma presunção, uma interpretação. E,
como interpretação, o signo é o que deflagra, no pensamento, interpretações. Deve-se,
porém sublinhar que, se o signo é corporal, ele o é, como será melhor analisado, sentido
que se atribui aos corpos. Portanto o signo deve ser pensado como operador que
estabelece uma relação de pressuposição recíproca entre dimensões (corpo/sentido) que
diferem em natureza. Se tal como se sugeriu supra, o conceito de tempo articula-se,
necessariamente, com o postulado da exterioridade das relações, e se o signo é que
mantém em pressuposição recíproca corpo e sentido, ele, por sua natureza relacional,
deve possuir uma consistência temporal.
Cabe, então, retomar as questões: como conceber o tempo como último
intérprete? Não haverá nisso uma estranha identidade do tempo e do pensamento, não
será o tempo o nome do pensamento, quando o pensamento se confronta com o Fora,
quando se torna pensamento do dehors? Contudo, a reflexão a partir do conceito de
corpo sem órgãos, nos livros Logique du sens, L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, não
revelou um “dedans” do pensamento — o corpo sem órgãos como centro de perspectiva
impessoal, intensivo e em devir — que também se subtrai aos pressupostos do Todo e
do Um?
O pensamento que afirma o dehors torna-se interpretativo e se torna
temporalizante ao determinar relações temporais entre signos em um mundo
fragmentado. Assim o pensamento confrontado não propriamente com um mundo, mas
com signos, não visa um saber abstrato, mas envolve uma aprendizagem: “aprender é
primeiramente considerar uma matéria, um objeto, um ser como se eles emitissem
103
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 45 (33). Grifo meu.
signos a serem decifrados, interpretados.” Além disso, o pensamento, com a subtração
do Todo e do Um, desfigura a idéia da Verdade, que perde sua identidade e sua
eternidade, e torna-se múltipla e temporal. Sendo assim, o mundo que o pensamento
constrói com signos só pode ser pensado como plural, e o pensamento que o interpreta
deve determinar diferentes mundos, diferentes sistemas de verdades, cada qual
comportando temporalidade própria. Deleuze mostra, em Proust et les signes, que a
heterogeneidade lógica dos signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos
constrange o pensamento a voltar-se para o futuro, faz do pensamento interpretação e
pesquisa das verdades dos signos. Essa aprendizagem é ritmada por uma série de
decepções descontínuas e pelos meios de ultrapassá-las. “Daí a idéia fundamental de
que o tempo forma diversas séries e comporta mais dimensões que o espaço: o que é
ganho em uma não é ganho na outra.” 104 O problema da interpretação não pode, então,
reduzir-se à aprendizagem da lógica de um sistema de signos, mas impõe que a
aprendizagem avance no sentido da produção de um sistema aberto, em perpétua
heterogênese, único capaz de relacionar, no tempo, sem totalizar ou unificar, esses
diferentes sistemas de verdades.
A sensibilidade aos signos, para Deleuze, seria impotente sem a retificação ou
superação de certos complexos de crenças, que constituem os dois pólos da crença
realista.
O primeiro pólo, nomeado objetivismo, confunde o que o signo significa com o
objeto que ele designa. Deleuze explica: “cada signo possui duas metades: designa um
objeto e significa alguma coisa diferente. O lado objetivo é o lado do prazer, do gozo
imediato e da prática: enveredando por essa via, já sacrificamos o lado ‘verdade’.
Reconhecemos as coisas sem jamais as conhecemos. (…) Ao aprofundamento dos
encontros, preferimos a facilidade das recognições…” 105 E acrescenta:
104
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 36 (26).
que se lembra das coisas e não dos signos. É, ainda, a direção do
prazer e da atividade prática, que fazem questão da posse das coisas
ou do consumo dos objetos. E, de outra forma, é a tendência da
inteligência. A inteligência deseja a objetividade, como a percepção,
deseja o objeto.” 106
Entretanto, o que resta no signo quando se subtrai dele sua imagem realista, os
dois pólos de um postulado realista? Ou ainda: o que produz esse longo aprendizado das
verdades de cada tipo de signos e de sua variedade temporal? Para além do subjetivo e
do objetivo, diz Deleuze, insistem as essências: “é a essência que constitui a verdadeira
unidade do signo e do sentido; é ela que constitui o signo como irredutível ao objeto que
o emite; é ela que constitui o sentido como irredutível ao sujeito que o apreende.” 108
Mas, o que pode ser uma essência para um pensamento do dehors, qual a natureza de
uma essência para um pensamento que ignora os postulados realistas?
O signo e a essência
105
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 38 (28).
106
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 39 (29).
107
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 48 (36).
108
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 50 (38).
Em primeiro lugar, se a essência é imaterial e ideal, deve-se indagar em que
sentido ela é ideal. É preciso, nesse sentido, lembrar que Deleuze acompanha a reversão
estóica do platonismo. Segundo sua análise, o estoicismo distingue duas espécies de
coisas. A primeira espécie é a dos corpos, suas relações e os “estados de coisas”
correspondentes. A temporalidade dos corpos é o presente, ele exprime as ações e
paixões dos corpos. E, mais importante para o problema em questão: “não há causas e
efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, causas uns em relação aos outros,
uns para os outros. A unidade das causas entre si chama-se Destino, na extensão do
presente cósmico.” 109 A segunda espécie é a dos incorporais. Como efeitos da
causalidade dos corpos, os incorporais
109
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 13 (5).
110
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 14 (5 e 6).
acidentes. Para os estóicos, ao contrário, os estados de coisas,
quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) que a
substância. Eles fazem parte da substância, e, a esse título, opõem-se a
um extra-ser, que constitui o incorporal como entidade não existente.
O termo mais alto não é pois o Ser, mas Alguma Coisa, aliquid, na
medida em que esta subsume o ser e o não-ser, as existências e as
insistências. Mais ainda, os Estóicos procedem à primeira grande
reviravolta do platonismo, a reviravolta radical. Pois, se os corpos,
com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os
caracteres da substância e da causa, inversamente os caracteres da
Idéia caem do outro lado, neste extra-ser impassível, estéril, ineficaz,
na superfície das coisas: o ideal, o incorporal não pode ser mais do
que um efeito.” 111
Além disso, ao mesmo tempo em que a idéia perde sua originalidade, sua
identidade, sua transcendência, seu estatuto de causa, e se torna efeito, o acontecimento
identifica-se com o devir ilimitado e coextensivo à linguagem. “Os acontecimentos, na
sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto procurados em
profundidade, mas na superfície (…) É seguindo a fronteira, margeando a superfície,
que passamos dos corpos ao incorporal. Paul Valéry chegou a uma expressão profunda:
o mais profundo é a pele. Descoberta estóica, que supõe muita sabedoria e implica toda
uma ética.” 112 Uma ética do sentido como acontecimento, que assegura a unidade do
amor fati com o combate dos homens livres. Uma ética da contra-efetuação do
acontecimento que se subtrai de toda moral, como de todo ressentimento e de toda
resignação, pois que se constitui não na aceitação do que ocorre, mas na afirmação de
alguma coisa no que ocorre, alguma coisa por vir: o Acontecimento. Como explica
Deleuze “o acontecimento não é o que ocorre (acidente), ele é no que ocorre o puro
expresso que nos faz signo e nos espera.” 113
A reversão estóica, com seu novo estatuto do sentido, assumida por Deleuze,
repercute sobre a compreensão da essência: esta não tem mais origem transcendente,
não é mais causa imutável e não podendo mais ser norma de julgamento, nem por isso
111
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 17 (7 e 8).
112
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 20.
113
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 175.
desaparece no nada. Ao contrário, torna-se perspectiva, diferença interna absoluta. Se a
essência não é mais significada na proposição, na ordem do conceito e das implicações
do conceito, se não é mais essência enquanto designada pela proposição nas coisas
particulares em que se empenha, é essência como sentido, a essência expressa na
proposição como acontecimento. Deleuze enfatiza igualmente que, se os
acontecimentos não se confundem com os estados de coisas, eles não existem fora das
proposições que os exprimem. E sublinha de igual modo que os acontecimentos são
atributos dos estados de coisas, acontecem às coisas. “As coisas e as proposições
acham-se menos em uma dualidade radical do que de um lado e de outro de uma
fronteira representada pelo sentido. Essa fronteira não os mistura, não os reúne (não há
monismo tanto quanto não há dualismo), ela é, antes, a articulação de sua diferença:
corpo/linguagem.” 114 O sentido emerge entre as proposições e as coisas. A dualidade
estado de coisas/sentido também recorta cada um dos termos. “Do lado da coisa, há
qualidades físicas e relações reais, constitutivas dos estado de coisas; além disso
atributos lógicos ideais que marcam os acontecimentos incorporais. E, do lado da
proposição, há os nomes e adjetivos que designam os estados de coisas e, além disso, os
verbos que exprimem os acontecimentos ou atributos incorporais.” 115 Entretanto,
Deleuze ainda adverte:
114
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 37.
115
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 37 (26).
somente com os expressos, isto é, com o sentido.” 116
116
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 38 (27).
que distingue o sentido das forças que não se separam dele, revela o tempo como a
diferença de intensidade que constitui o ser do sentido.
Se, na filosofia de Deleuze, a essência é imaterial sem ser causa, se ela se refere
à dimensão do sentido e se o sentido é, do ponto de vista da essência, apreendido não
como eterno, mas como acontecimento, é necessário dizer que isto decorre de uma
mutação na maneira de pensar que possibilita um novo modo de questionar. Nesse
ponto, Deleuze retoma a crítica nietzscheana da questão platônica: “O que é?” —
questão que acarreta as oposições de valores: as distinções entre a essência e a aparência
e entre o ser e o devir. Nietzsche, segundo Deleuze, contrapõe à questão “O que é?” a
questão “Quem?”, como a questão mais adequada para determinar a essência.
“A arte pluralista não nega a essência: ela a faz depender em cada caso
de uma afinidade de fenômenos e de forças, de uma coordenação da
força e da vontade. A essência de uma coisa é descoberta na força que
a toma e que se exprime nela, desenvolvida nas suas forças em
afinidade com ela, comprometida ou destruída pelas forças que a ela
se opõem e que podem submetê-la: a essência é sempre o sentido e o
valor. (…) A questão: ‘Quem?’ encontra sua instância suprema em
Dioniso ou na vontade de potência. (…) Não se perguntará ‘quem
quer?’, ‘quem interpreta?’, ‘quem avalia?’, pois por todo lugar e
sempre a vontade de potência é este quem.” 117 Disto decorre um
procedimento: “relacionar um conceito à vontade de potência, para
fazer dele o sintoma de uma vontade sem a qual ele não poderia nem
mesmo ser pensado (nem o sentimento ser sentido, nem a ação
empreendida).” 118
O estatuto da interpretação
Mas que significa afirmar sua diferença? Significa, como diz Nietzsche, a
propósito do investimento de uma alma afirmativa, a afirmação de não sei qual certeza
fundamental dela mesma, alguma coisa que é impossível de procurar, de encontrar ou
mesmo de perder (a vida, o acaso e o devir). A vontade de potência é, desse modo, uma
operação e, assim, não busca sua diferença em propriedades objetivas: ao contrário, sua
diferença está naquilo que não pode, de direito, ser objetivado. E o que é que, de direito,
não pode ser objetivado, senão a potência interpretante, isto é, uma perspectiva? Mas
uma perspectiva, assim compreendida, é a instância produtora, diferencial e genética119 ,
que assina o que ela interpreta, sem nunca se confundir com seus produtos ou com suas
interpretações, dos quais, no entanto, não se separa. A vontade de potência diz respeito,
portanto, a uma dimensão das forças que, furtando-se a toda e qualquer objetivação,
constitui, no pensamento, uma abertura, a afirmação da vida, do acaso e do devir, que
elimina tanto o Todo quanto o Um.
Nesse sentido, a expressão “corpo sem órgãos”, tomada de A. Artaud e
elaborada conceitualmente em Lógica do sentido, Anti-Édipo e Mil Platôs, pode ser
compreendida como o conceito que estabelece a subtração do conjunto dos pressupostos
que organizam e objetificam os corpos como operação necessária para a constituição de
um corpo vital compreendido como um centro de perspectiva, plano de imanência de
toda interpretação temporalizante e não unificadora.
O conceito de corpo sem órgãos estabelece a necessidade da subtração dos
estratos que são o organismo, a significância e a subjetivação para a constituição de um
campo de imanência e a produção desejante. Contudo, não é inexato concluir que para
Deleuze todo pensamento criador, ao mesmo tempo, constrói e supõe um campo de
imanência ou um corpo sem órgãos, isto é um corpo em devir, liberto de necessidades e
de finalidades que toda organização supõe e impõe. Nesse sentido, a imanência, como
condição da produção desejante e do exercício do pensamento, deve ser pensada como
uma conquista de um corpo imanente que se faz por subtração dos estratos que
imporiam ao corpo uma ordem e um fim. É esse corpo imanente a si e em devir, não um
118
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 88 e 89 (63).
119
Determinando-se diferencial e genético como componentes da instância interpretante aproximam-se os
conceitos de vontade de potência e de tempo como devir. Como se verá infra, essa articulação dá a
originalidade da interpretação deleuziana do eterno retorno.
sujeito, que dá corpo aos sujeitos larvares e aos personagens conceituais que assinam os
conceitos, os perceptos e os afetos que vêm animar e dar consistência ao exercício
imanente do pensamento.
Deve-se, então, dizer que o conceito de corpo sem órgãos se aproxima e se
distingue do conceito de corpo próprio implicado na tese epistemológica que afirma que
120
Robert Blanché, La notion de fait psychique: essai sur les rapports du physique eu du mental, págs. 94
e 95.
conquista, com o conceito de corpo sem órgãos, a idéia de um centro de perspectiva
impessoal. Um corpo vital, um corpo intensivo, um corpo em devir, como potência
impessoal de afetar e ser afetado, como centro de perspectiva que coloca em outros
termos o problema do pensamento, da interpretação.
O essencial é que o conceito de corpo sem órgãos permite a Deleuze ultrapassar
os dualismos do sujeito e objeto e do sujeito de enunciação e sujeito do enunciado.
Neste sentido, Deleuze pode dizer:
“há menos um narrador do que uma máquina da
Rcherche e muito menos um herói do que agenciamentos em
que a máquina funciona com esta ou aquela configuração, de
acordo com esta ou aquela articulação, para este ou aquele uso,
para determinada produção. É apenas neste sentido que podemos
indagar o que é o narrador herói, que não funciona com sujeito.
(…) Na verdade o narrador não possui órgãos, ou pelo menos
aqueles que lhe seriam necessários ou que gostaria de possuir
(…) O narrador é, na realidade, um enorme Corpo sem
órgãos.” 121
Mas o que é um corpo sem órgãos, este corpo em devir, vital e intensivo? Em
Proust et les signes, o corpo sem órgãos é um corpo sensível não às significações
explícitas e convencionais, mas aos signos. Sensibilidade que se adquire com o devir do
narrador, quando este perde sua organização com a subtração do postulado de um senso
comum — acordo voluntário de todas as faculdades. Como diz Deleuze:
121
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 217 e 218 (181 e 182)
involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são
como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos
de diversas naturezas.” 122
122
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 218 (182 e 183).
123
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 176 (145 e 146).
124
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 176 (146).
impressão nem mesmo na lembrança, mas se confunde com o
‘equivalente espiritual’ da lembrança ou da impressão, produzido pela
máquina involuntária da interpretação.” 125
125
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 177 e 178 (147).
da arte. A ressonância não repousa sobre pedaços que lhe seriam
fornecidos pelos objetos parciais, nem totaliza pedaços que viriam de
alhures. Ela extrai seus próprios pedaços e os faz ressoar segundo sua
finalidade específica, mas não os totaliza, uma vez que se trata sempre
de um ‘corpo a corpo’, de uma ‘luta’ ou de um ‘combate’. O que é
produzido pelo processo de ressonância, na máquina de ressoar, é a
essência singular, o Ponto de vista superior aos momentos que
ressoam, em ruptura com a cadeia associativa que vai de um ao outro:
Combray na sua essência, tal como não foi vivida; Combray como
Ponto de vista, tal como não foi nunca vista.” 126
126
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 182 e 183 (151).
127
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 192 (159).
objetos quaisquer e deles extrai uma ‘imagem preciosa’, substituindo
as condições determinadas de um produto natural inconsciente pelas
livres condições de uma produção artística. (…) A Natureza ou a
vida, ainda muito pesadas, encontram na arte seu equivalente
espiritual. E até mesmo a memória involuntária, encontrou seu
equivalente espiritual, puro pensamento produzido e produtor.” 129
Mas sobre o que repousa essa estrutura formal? Deleuze precisa: é a transversalidade:
“assim é o tempo, a dimensão do narrador, que tem a potência de ser o todo dessas
partes sem totalizá-las, a unidade de todas essas partes, sem unificá-las.” 131
Ao fim dessa investigação só aparentemente se chega a um impasse: o que dá
unidade ao mundo do fragmento é o pensamento; mas não era este o trabalho do Logos?
A subtração ao pensamento do Todo (dos pressupostos de uma forma a priori e da
ordem dos fatos do mundo) não reintroduz, na outra ponta, a unidade do pensamento? O
128
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 185 (153).
129
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 186 (154 e 155).
130
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág.201 (168)
131
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 203 (170).
contrasenso a ser evitado é o seguinte: não se deve confundir a unidade produzida pelo
pensamento com o pressuposto de um Logos, isto é, de uma unidade do pensamento.
Assim, a subtração do Todo é apenas um aspecto de um procedimento que só se
completa com a subtração, concomitante, da unidade do pensamento. A afirmação
nietzscheana, retomada inúmeras vezes por Deleuze, de que não existem fatos, apenas
interpretações, deve ser interpretada ela mesma não apenas como uma crítica à crença
na existência de dados objetivos, que se imporiam por si mesmos, mas também como
uma crítica à assimilação dos pensamentos a fenômenos naturais. Eis aí a importância
da distinção estóica corpo/sentido, que retira o pensamento do campo da existência: o
pensamento não existe, apenas insiste. E, como insistência, isto é, como pura atividade,
o pensamento confronta-se com fragmentos, que não são fatos, que não são dados, nem
objetivos nem subjetivos, mas interpretações. É preciso, então, além disso dizer que,
para Deleuze, só um pensamento sem imagem, isto é, sem unidade dada, sem realidade
ou existência posta por pressupostos, tem a potência de relacionar os fragmentos sem
totalizá-los, de ligá-los sem unificá-los.
Retornando ao problema da autenticação do dehors, da sua necessidade: não será
a temporalização do pensamento, a afirmação de seu pluralismo, que redefine a
exterioridade como Dehors? As subtrações do Todo e do Logos, conforme o duplo
sentido do procedimento de subtração: constituição..., não são os efeitos necessários da
afirmação de um novo pensamento? O pensamento do Dehors, isto é, do fora do Logos
e do fora do Todo é, assim, o que faz com que os postulados do Todo e do Logos
percam sentido e se subtraiam ao pensamento. O que o pensamento se torna quando,
como diz Blanchot, “o ser — a unidade, a identidade do ser — retirou-se sem dar lugar
ao nada, esse refúgio excessivamente fácil?”132 Sendo assim, é possível dizer da
filosofia de Deleuze aquilo que Blanchot diz da filosofia de Nietzsche: o que é, para
ambos, o pensamento
132
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
não se diz mais do um e não diz mais o um na sua pluralidade.
Linguagem: afirmação mesma, aquela que não se afirma mais em
razão nem visando da Unidade. Afirmação da diferença, todavia
jamais diferente. Palavra plural.” 133
133
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
134
Cf. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, pág. 18 (20).
presente, passado ou por vir. Mas a filosofia anticultural (e seu sistema) pode ainda ser
atravessada por uma cultura demasiado pesada: dela fará, entretanto um uso ativo de
esquecimento e não de memória, de subdesenvolvimento e não de progresso a ser
desenvolvido, de nomadismo e não de sedentarismo, de mapa e não de decalque. 135
Como foi proposto, deve-se lembrar a hipótese de que há em operação, na filosofia da
diferença, um procedimento que efetua este esquecimento ativo, o procedimento de
subtração–constituição. Procedimento que como se verá, ao subtrair o primado do verbo
“ser” sobre a conjunção “e” promove uma reversão da ontologia, de um lado, subtrai os
princípios, a origem, a teleologia, o fundamento e, de outro lado, constitui uma
afirmação do ser como afirmação, como afirmação do devir.
CAPÍTULO III
Deleuze e a crítica
135
Cf. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, pág. 35 (36).
Introdução ao problema de uma crítica criativa
136
Esse tema complexo, que conjuga crítica e criação como componentes do pensamento, atravessa,
como uma diagonal, toda a obra de Deleuze. Contudo, ele se explicita e se repete, sobretudo, em
Nietzsche et la philosophie, em Proust et les signes e em Difference et répétition, sob um mesmo título:
“A imagem do pensamento”. A rigor, cada uma dessas obras submete esse tema — o que é pensar? — às
questões que lhes são próprias, articulando-o a outros problemas que, contudo, comunicam-se na questão
ontológica, desenvolvida especialmente em Difference et répétition e em Logique du sens.
137
Emmanuel Renault, Marx et l’idée de la critique, págs. 5 a 15.
das técnicas de governo, inicialmente elaboradas pela pastoral cristã. 138 Como reação a
esse movimento de governamentalização, elabora-se uma vontade de não ser governado
desse modo, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais
procedimentos, que, ainda segundo Michel Foucault, sustenta uma indocilidade
refletida, arte da não servidão voluntária, que conduz os sujeitos a questionarem a
verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade.
Pode-se identificar, como efeito dessa atitude crítica, o que E. Renault distingue
como três vertentes de uma filosofia, agora, essencialmente crítica: 1. a filosofia orienta
sua prática a partir de um objetivo crítico — é o caso do iluminismo; 2. ela dá à sua
pesquisa da verdade a forma de um exame crítico — é o caso da filosofia kantiana; 3. a
síntese desses dois projetos de crítica, desejada pelo movimento filosófico dos jovens
hegelianos. Contudo, o que interessa, nesse momento, não é expor as análises de
Renault sobre a crítica em Marx, nem explorar as especificidades dessas vertentes
críticas, mas sublinhar que, do ponto de vista de Deleuze, todas essas tendências
mantêm o essencial do projeto platônico: a pretensão de apoiar a crítica na posse de um
valor superior e, sobretudo, na crença no valor da verdade e da razão.
Na contracorrente desse movimento, a filosofia nietzschiana suspeitou desses
sentidos da crítica: afirmando um pensamento que se propõe como crítico dos valores,
fez reverter o sentido da atitude crítica redefinindo o problema crítico, ao apresentá-lo
como o da avaliação do valor dos valores. Segundo Nietzsche, os valores não se podem
pretender como princípios, pois, mais profundamente, os valores supõem avaliações de
onde derivam seus próprios valores. Os valores transcendentes não resistem a essa
suspeita filosófica: sua eternidade desvanece com a exposição de sua gênese.
Como mostrou Gilles Deleuze, em Nietzsche et la philosophie, “as avaliações,
relacionadas ao seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de
existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios aos
valores”. Esse golpe de misericórdia na pretensão de um fundamento transcendente
retira da crítica todo apoio ou referência meta-situada. Contudo, do ponto de vista de
Deleuze, a ausência de valores transcendentes não afeta apenas a crítica. O sentido
próprio da filosofia modifica-se. Quando a filosofia perde a referência de seus modelos,
138
Cf. Michel Foucault, “Qu’est-ce que la critique?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie,
1978.
torna-se, efetivamente, criação: sua tarefa deixa de ser buscar a perfeição de uma cópia
e sua aventura define-se, simultaneamente, por uma resistência ao já dito e pela
produção do novo. Além disso e em conformidade com isso, quando a materialidade
histórica não fornece mais modelos para um pensamento que resiste às palavras de
ordem que almejam cristalizar regras no presente, nem mais proporciona apoio para um
pensamento que se afirma descentrado em relação ao Eu, ao Mundo e a Deus, e que,
portanto, não se dá referentes subjetivos ou objetivos, é, então, submetendo o já dito a
uma crítica genealógica, que o pensamento, simultaneamente, se expõe como força e se
impõe como força às forças que ele revela na gênese do já dito. As subtrações das
transcendências no pensamento determinam, como será melhor discutido adiante, novas
potências do pensamento: a diferença e a repetição, a interpretação e a afirmação.
Se a interpretação original de Gilles Deleuze da doutrina do eterno retorno
assegura que o espírito da crítica nietzschiana seja incorporado pela filosofia deleuziana,
será proveitoso investigar, com mais detalhe, como Deleuze define esta crítica e de que
modo, através de que conceitos, ele revela, no pensamento de Nietzsche, as condições
de uma crítica verdadeiramente imanente.
No entanto, como Deleuze apresenta a crítica nietzschiana como uma crítica à
crítica kantiana, parece oportuno investigar, neste capítulo, a compreensão que Deleuze
propõe do sistema kantiano.
Nas considerações que fez sobre sua relação com a história da filosofia, em sua
carta-resposta a Michel Cressole, Gilles Deleuze explicita suas simpatias — Lucrécio,
Hume, Espinosa, Nietzsche e todos os que empenharam-se na crítica do negativo, da
interioridade, que valorizaram a exterioridade das forças e das relações e dedicaram-se à
crítica do poder — e suas antipatias: “o que eu detestava sobretudo eram o hegelianismo
e a dialética”. Nesse contexto, Kant ocupa um lugar destacado: “meu livro sobre Kant é
diferente, gosto muito dele e o concebi como um livro sobre um inimigo que tento
mostrar como funciona, quais são as suas engrenagens — tribunal da razão, uso
comedido das faculdades, submissão tanto mais hipócrita quanto nos confere o título de
legisladores.” 139 Contudo, esse tom crítico, que se observa também em outras
referências de Deleuze a Kant, não transparece de modo evidente no único livro em que
Deleuze abordou de modo sistemático a filosofia de Kant. Neste livro, que não deixa de
ser crítico, La philosophie critique de Kant, a crítica permanece implícita e não se
destaca de uma análise que busca revelar o sistema da filosofia transcendental, cuja
investigação é o objetivo central deste capítulo.
139
Gilles Deleuze “Lettre a un critique sévère”, in G. Deleuze, Pourparlers. pág. 15 (14).
140
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 119 (120).
formulada: o sujeito se constitui no dado. Esta questão é relacionada com sua condição
crítica: a exterioridade das relações face às idéias. A partir dessas definições, Deleuze
confronta Hume com a crítica de Kant, o que não pode ser feito sem que a questão da
filosofia de Kant seja explicitada no processo dessa contraposição filosófica.
O dualismo definidor do empirismo — o dos termos e das relações — se esclarece
e se desdobra como dualismo das causas das percepções e das causas das relações, ou
como dualismo dos poderes da natureza e dos poderes da natureza humana, e impõe a
questão da finalidade, que se precisa como o problema do acordo entre a regra da
reprodução dos fenômenos na natureza e a regra da reprodução das representações no
espírito. 141 Segundo Deleuze, Kant critica o associacionismo a partir da questão do
empirismo, isto é, a partir do seu dualismo constitutivo e da finalidade que ele envolve.
A apresentação dessa crítica contém a primeira caracterização, na obra de Deleuze, da
questão kantiana.
Vejamos:
141
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs 120 a 123 (121 a 124).
regra dos fenômenos na própria natureza. Assim, em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como
fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que
aquela das relações. As implicações do problema assim invertido são
as seguintes: há o a priori, isto é, deve-se reconhecer uma imaginação
produtora, uma atividade transcendental. A transcendência era o fato
empírico, o transcendental é o que torna o transcendente imanente ao
objeto = x. Ou, o que é o mesmo, algo no pensamento ultrapassará a
imaginação sem dela poder prescindir: a síntese a priori da
imaginação nos remete a uma unidade sintética da apercepção, que a
fecha.” 142
142
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs. 124 e 125 (124 e 125).
143
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 138 (137).
Natureza, mas em que sentido? (...) Chamamos de finalidade esse
acordo da finalidade intencional com a Natureza. Mas esse acordo só
pode ser pensado; e, sem dúvida, é o pensamento mais pobre e mais
vazio. A filosofia deve constituir-se como teoria do que fazemos, não
como teoria do que é. Aquilo que fazemos possui seus princípios; e o
Ser só pode ser apreendido como objeto de uma relação sintética com
os próprios princípios do que fazemos.” 144
144
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 152 (151).
145
Cf. Imanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, pág. 23.
Ressaltando nessas definições a caracterização da razão como faculdade dos fins
e a equação dos fins superiores da razão com o sistema da cultura, Deleuze mostra como
Kant contrapõe-se ao empirismo e ao racionalismo. Contra o empirismo — que faz da
razão um modo de realizar fins que são postos pela natureza — Kant afirma que há fins
da cultura e que estes são os fins da razão. Contra o racionalismo — que postula que os
fins racionais são transcendentes — defende Kant que a razão, ao colocar seus fins,
toma a si própria como fim.
Assim, a caracterização da questão kantiana tal como formulada em Empirisme et
subjectivité, qual seja, a de que há uma submissão necessária dos fenômenos ao sujeito,
adquire um sentido relativo — está circunscrita ao interesse especulativo da razão — no
interior da questão englobante que subsume e dá sentido a todas as legislações regionais
da razão, vale dizer a questão da afirmação da existência de fins imanentes à razão.
Pode-se mostrar como, para Deleuze, a questão dos fins imanentes à razão
articula-se com o rompimento de Kant com a metafísica em aspectos fundamentais que,
conjuntamente, asseguram a definição do campo da filosofia transcendental: Kant
reverte o primado metafísico do infinito sobre o finito e determina uma finitude
constituinte composta por faculdades heterogêneas, que diferem em natureza.
Lembra Deleuze que o primado do infinito sobre o finito, característico da
metafísica, determinava que as faculdades humanas fossem, de direito, homogêneas.
Nesse esquema, a finitude humana é uma finitude de fato e o infinito, o entendimento de
Deus, desconhece qualquer dado, pois Deus cria do nada. Assim, Deus ignora a
distinção entre receptividade e espontaneidade: é pensado como pura espontaneidade.
Nesse quadro, de direito não há dado para o pensamento. Pode-se pensar apenas na
existência do dado, como fato, para uma criatura finita. A revolução kantiana começa
com a recusa de que a finitude defina-se como um simples fato da criatura, com a
promoção da finitude ao estado de potência constituinte. A finitude deixa de ser um
simples fato derivado de um infinito originário: é ela que se torna originária. Nesse
novo sentido, a finitude compõe-se como uma unidade de faculdades irredutíveis e
heterogêneas, delimitando-se então como um sujeito simultaneamente finito e positivo.
Produz-se assim um novo campo de imanência: o da subjetividade transcendental. 146
146
A propósito do argumento deste parágrafo, ver no site de Deleuze na Internet a aula intitulada
“LEIBNIZ (Foucault-Blanchot-cinema)”, de 1987.
A questão dos fins imanentes da razão conjuga-se naturalmente com o problema
de uma crítica imanente. Se os fins da razão são seus fins imanentes, é a razão que deve
arrogar-se juiz de seus próprios interesses: “uma crítica imanente, a razão como juiz da
razão, eis o princípio essencial do método transcendental. Esse método propõe-se
determinar: 1) a verdadeira natureza dos interesses ou fins da razão; 2) os meios de
realizar esses fins.” 147
Deleuze ressalta que Kant emprega a palavra faculdade em dois sentidos. No
primeiro sentido, ela distingue os tipos de relações que as representações mantêm com o
sujeito e com o objeto: a relação de acordo ou conformidade define o conhecimento
como uma faculdade; a relação de causalidade dá o desejo como faculdade; e a relação
de intensificação ou diminuição da força vital do sujeito toma os sentimentos de prazer
e dor como faculdades.
Ainda nesse primeiro sentido da palavra faculdade, Kant busca definir suas
formas superiores, suas formas autônomas, que se manifestam quando as faculdades
encontram em si mesmas a lei de seu próprio exercício. O que parece importante, nesse
momento, para melhor precisar a hipótese, é enfatizar que, para Kant, as formas
superiores das faculdades constituem-se por suas sínteses a priori, o que lhes assegura a
independência da experiência. Essas formas superiores delineiam, assim, “planos de
imanência” específicos, que pretendem estabelecer, como fundamentais e evidentes,
redes de necessidades cujas validades dependem da dedução de seu caráter universal.
Segundo Deleuze, a tese essencial da Crítica em geral afirma que “há interesses
da razão que diferem em natureza. Esses interesses formam um sistema orgânico e
hierarquizado, que é aquele dos fins do ser racional.(...) A idéia de uma pluralidade (e
de uma hierarquia) sistemática dos interesses, conforme ao primeiro sentido da palavra
‘faculdade’, domina o método kantiano. Esta idéia é um verdadeiro princípio, princípio
de um sistema dos fins.” 148 O problema de Kant parece ser — ao determinar fins ou
interesses superiores da cultura (o interesse especulativo incide sobre os fenômenos, o
interesse prático sobre a forma pura da lei moral e o interesse racional pelo acordo
contingente das produções da natureza como nosso prazer desinteressado, como
princípio genético do senso comum estético, incide sobre as matérias livres da natureza)
147
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 7 e 8 (13).
148
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, Paris, pág. 13 (17).
—, assegurar a possibilidade de universais imanentes à razão e à cultura.
Mas a demonstração da possibilidade de pensar esses fins depende, segundo a
análise de Deleuze, da explicitação do segundo sentido que a palavra faculdade assume
quando designa uma fonte específica de representações. “Nesse segundo sentido, temos
três faculdades ativas e uma receptiva (a sensibilidade): vista em sua atividade, a síntese
remete à imaginação; na sua unidade, ao entendimento; na sua totalidade, à razão.” 149 A
tese de Deleuze sobre o problema da realização dos fins superiores da razão pode,
agora, ser formulada: “a uma faculdade no primeiro sentido da palavra (faculdade de
conhecer, faculdade de desejar, sentimento de prazer ou de dor), deve corresponder uma
certa relação entre as faculdades no segundo sentido da palavra (imaginação,
entendimento e razão). É assim que a doutrina das faculdades forma uma verdadeira
rede, constitutiva do método transcendental.” 150
Deleuze destaca que o senso comum especulativo, como os demais sensos comuns
determinados por Kant, designa um acordo a priori das faculdades, ou, mais
precisamente, o resultado de tal acordo. Cada senso comum é o correlato da instauração
de um estado civil que, como o contrato dos juristas, implica renúncias das faculdades
envolvidas no acordos que elas compõem, cujo efeito positivo é a realização de um
interesse da razão: os acordos singulares entre as faculdades, determinados pelos
interesses específicos da razão, possibilitam, em cada caso, as condições subjetivas de
toda comunicabilidade e de toda pretensão à universalidade.
Mas em que consiste, segundo Deleuze, o problema do conhecimento para Kant?
Sua posição em La philosophie critique de Kant repete o que já se encontra exposto em
Empirisme et subjectivité: o conhecimento é definido por uma ultrapassagem da
experiência. As condições de uma tal ultrapassagem são, de um lado, o fato de
possuirmos representações a priori — as apresentações a priori do espaço e do tempo e
os conceitos a priori do entendimento. Mas, de outro lado, é necessário que nossos
149
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 13 (17).
150
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 17 (20 e 21).
princípios subjetivos possam aplicar-se ao dado, ou seja, é preciso que o dado da
experiência submeta-se aos nossos princípios:
151
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 21 (26 e 27).
152
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 23 (28).
as acompanhe. Ora, as representações não se unem assim em uma
consciência sem que o diverso que sintetizam se relacione, por isso
mesmo, a um objeto qualquer. (...) O objeto qualquer é o correlato do
Eu penso ou da unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua
objetivação formal. Do mesmo modo, a verdadeira fórmula (sintética)
do Cogito é: eu penso e, ao me pensar, penso o objeto qualquer ao
qual relaciono uma diversidade representada.” 153
153
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 25 (29 e 30).
154
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 28 (31).
problema. Uma vez que o entendimento legisla sobre os fenômenos apenas do ponto de
vista da sua forma, é necessário que os fenômenos, do ponto de vista da matéria,
conheçam uma ordenação, pois, caso contrário, sempre que a sua matéria apresentasse
uma diversidade radical, o entendimento tornar-se-ia incapaz de exercer a sua potência
de ordenação formal. Uma harmonia e uma finalidade entre as idéias da razão e a
matéria dos fenômenos são postuladas por Kant: “a razão”, comenta Deleuze,
155
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 30 (33).
156
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 32 (34).
157
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 23 e 24 (28).
mesmos em natureza, e o acordo entre essas duas faculdades ativas não é menos
'misterioso'. (Da mesma forma, o acordo entendimento-razão.)” 158
Desse modo, Deleuze indaga se a recusa de uma harmonia dada entre sujeito e
objeto não remete à idéia de uma harmonia transposta para o nível das faculdades do
sujeito que diferem em natureza? Essa desconfiança conduz Deleuze a questionar o fato
de um acordo harmonioso entre as faculdades e a reivindicar que o projeto kantiano
exige um princípio desse acordo como uma gênese do senso comum. Este não é,
todavia, um problema específico do senso comum especulativo: diz respeito à própria
idéia de um senso comum e remete para todos os acordos que fundamentam os
diferentes sensos comuns revelados por Kant. Entretanto, mesmo permanecendo-se no
plano do fato dos acordos determinados, isto é, sem indagar sobre suas condições
genéticas, resta ainda uma outra dificuldade: “como conciliar a idéia das ilusões internas
da razão ou do uso ilegítimo das faculdades com esta outra idéia, não menos essencial
ao kantismo: a idéia de que nossas faculdades (inclusive a razão) são dotadas de uma
boa natureza e estão de acordo umas com as outras no interesse especulativo?” 159
Analisando os dois principais usos ilegítimos da razão, o uso transcendental —
quando o entendimento pretende conhecer algo independentemente das condições da
sensibilidade e o uso transcendente quando a razão pretende por ela mesma conhecer
algo de determinado —, Deleuze encontra duas determinações dessas ilusões. A
primeira que relaciona as ilusões da razão à permanência da razão em seu estado de
natureza, isto é, quando ela furta-se a concordar com as demais faculdades na
instauração de um estado civil. A segunda, mais rigorosa, relaciona essas ilusões a um
interesse legítimo e natural da razão pelas coisas em si. As ilusões da razão pura
explicam-se como sombras do interesse prático projetadas sobre o acordo determinado
pelo interesse especulativo da razão.
Deleuze considera Kant como o primeiro filósofo a conceber uma crítica total e
158
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 34 (36).
159
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 38 e 39 (39)
positiva da metafísica, retomando o ideal pré-socrático da filosofia como legisladora e
pensando a crítica como imanente à razão. Segundo Deleuze, não apenas Kant deslocou
a questão do conhecimento do campo metafísico organizado pela oposição disjuntiva
essência/aparência para a problemática fenomenológica ordenada pelo par conjuntivo
fenômeno(aparição)-condição da aparição do fenômeno, o que acarretou na redefinição
do estatuto do sujeito do conhecimento. O sujeito transcendental não será mais marcado
por uma deficiência a fazer dele também um obstáculo ao conhecimento, mas pensado
como constituinte das condições de todo conhecimento possível. Mas, além desta
revolução na teoria do conhecimento, a filosofia kantiana retomaria o ideal da pré-
socrático da filosofia como legisladora, também porque libertou a lei moral da idéia do
Bem transcendente, tornando o Bem dependente da lei como forma pura da
universalidade. Esse segundo movimento da crítica kantiana está, contudo, na
dependência de Kant revelar a possibilidade e os mecanismos de um senso comum
prático.
A lei moral, a forma pura de uma legislação universal, pertence à razão: “uma
representação não somente independente de qualquer sentimento, mas de qualquer
matéria e de qualquer condição sensível, é necessariamente racional. Aqui, porém, a
razão não raciocina: a consciência da lei moral é um fato, 'não um fato empírico, mas o
fato único da razão pura que se anuncia como originalmente legisladora'. A razão é,
pois, essa faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar.” 160
Deleuze esclarece que, para Kant, a pressuposição recíproca entre a vontade
determinada pela lei moral e a liberdade não significa que razão prática e liberdade
sejam a mesma coisa. O conceito de liberdade é uma idéia da razão especulativa
relacionado sinteticamente à razão prática. A idéia de liberdade “permaneceria
puramente problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral não nos ensinasse
que somos livres. (...) Na autonomia da vontade encontrarmos, pois, uma síntese a
priori que dá, ao conceito de liberdade, uma realidade objetiva determinada, unindo-o
necessariamente ao de razão prática”. 161
O conceito de liberdade remete não aos fenômenos que são submetidos à lei da
causalidade natural, mas a uma forma de causalidade relacionada a seres livres.
160
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 43 (45).
161
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 43 (46).
Definindo a liberdade como um poder de começar de si mesma um estado, cuja
causalidade não remete, por sua vez (como na lei natural), a uma outra causa que a
determina no tempo, Kant associa o conceito de liberdade ao mundo supra-sensível, ao
mundo noumenal, às inteligências que nós somos: “enquanto seres racionais, devemos
pensar em nós mesmos como membros de um mundo inteligível ou supra-sensível,
dotados de causalidade livre.”
Desse modo, Kant determina a lei moral como a lei de nossa existência inteligível.
Deleuze ressalta, portanto, em Kant, a existência de duas legislações e dois domínios
correspondentes:
Mas a legislação pelo conceito de liberdade tem o mesmo sentido que a legislação
por conceitos naturais? Não, os seres livres não estão sujeitos à razão prática no mesmo
sentido em que os fenômenos submetem-se aos conceitos do entendimento. A razão, no
seu interesse prático, ao contrário do entendimento que, quando determinado pelo
interesse especulativo da razão, legisla sobre os fenômenos, não legisla sobre uma outra
coisa: “o noumeno apresenta ao pensamento a identidade do legislador e do sujeito. (...)
Pertencemos a uma natureza supra-sensível, mas a título de membros legisladores.” 163
Se é pela legislação da lei moral que os seres inteligíveis podem adquirir uma
natureza supra-sensível, Deleuze sublinha o caráter paradoxal do conceito de natureza
supra-sensível, destacando três aspectos: 1) “a natureza supra-sensível jamais é
realizada completamente, já que nada garante a um ser racional que seus semelhantes
comporão suas existências com a dele”; 2) entre a natureza sensível e a natureza supra-
sensível “há apenas uma analogia (existência sob leis)”; 3) em razão da incompletude da
162
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 47 (48).
163
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 47 e 48 (49).
realização da natureza supra-sensível, “não é suficiente dizer que a relação entre as duas
naturezas é de analogia; é preciso acrescentar que o supra-sensível só pode ser pensado
como natureza por analogia com a natureza sensível.” 164
Deleuze argumenta que, como se revela na prova lógica da razão prática,
investiga-se por analogia com a forma das leis teóricas da natureza sensível se uma
máxima pode ser pensada como lei prática de uma natureza supra-sensível. Assim, para
Kant, “a natureza do mundo sensível” aparece como “tipo de uma natureza inteligível”.
Mas, da natureza sensível, só se retém a forma da conformidade à lei fornecida pelo
entendimento legislador. Deste modo, percebe-se uma nova harmonia entre as
faculdades:
164
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 48 e 49 (50).
165
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 50 e 51 (51 e 52).
associação, estabelecida pela razão prática, entre felicidade e virtude. Nesse ponto, a
razão prática cai em uma antinomia: “a felicidade não pode ser causa da virtude (já que
a lei moral é o único princípio determinante da vontade boa), e a virtude tampouco
parece poder ser causa da felicidade (já que as leis do mundo sensível não se regulam
em absoluto pelas intenções de uma boa vontade).” 166
O fundamento dessa ilusão encontra-se na confusão do contentamento, (espécie de
prazer negativo, apenas um análogo do sentimento de respeito à lei moral) que decorre
da aplicação da lei moral e que exprime nossa independência em relação às inclinações
sensíveis, com um sentimento positivo, o que promove a ilusão que torna a felicidade
móvel de nossa vontade. Deleuze sublinha que essa ilusão mais fundamental “é apenas
aparentemente contrária à idéia de uma boa natureza das faculdades: a própria
antinomia prepara uma totalização que, sem dúvida, é incapaz de operar, mas que nos
força a procurar, do ponto de vista da reflexão, como que sua solução própria ou a chave
de seu labirinto.” 167
O sentimento de respeito à lei moral faz abstração da sensibilidade ao negar-lhe
um papel na relação das faculdades. Mas, por outro lado, o respeito serve como regra
para suprimir o abismo entre o mundo supra-sensível e o mundo sensível: o conceito de
liberdade deve realizar, no mundo sensível, o fim imposto por suas leis; a natureza
supra-sensível (o Bem moral) deve ser realizada no mundo sensível.
Deleuze observa que a realização do bem moral supõe “um acordo entre a
natureza sensível (segundo suas leis) e a natureza supra-sensível (segundo sua lei). Este
acordo apresenta-se na idéia de uma proporção entre felicidade e moralidade, isto é, na
idéia do Soberano Bem como 'totalidade do objeto da razão pura prática'.” 168 Contudo, a
antinomia exclui qualquer possibilidade de realização direta e imediata, uma vez que
interdita qualquer causalidade entre felicidade e virtude. A solução kantiana, segundo
Deleuze, está em pensar a conexão entre felicidade e virtude “na perspectiva de um
progresso até o infinito (alma imortal) por intermédio de um autor inteligível da
natureza sensível ou de 'uma causa moral do mundo'(Deus). Vê-se como as idéias de
alma e de Deus são as condições necessárias sob as quais o próprio objeto da razão
166
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 54 (54).
167
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 56 (55).
168
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 60 (58).
prática é colocado como possível e realizável.” 169
Assim, Deleuze ressalta que as três grandes idéias da razão especulativa (Deus,
alma e liberdade) possuem em comum, além do caráter problemático e indeterminado
do ponto de vista do conhecimento, o fato de receberem da lei moral uma determinação
prática; e nesse sentido são objeto de uma crença pura prática. Mas, sob outro ponto de
vista, essas três idéias não são inteiramente homogêneas, pois apenas a idéia de
liberdade é imediatamente determinada pela lei moral: “consequentemente, a liberdade
é mais uma 'matéria de fato' ou objeto de uma proposição categórica do que um
postulado. As duas outras idéias, como 'postulados', são apenas condições do objeto
necessário de uma vontade livre: 'vale dizer que sua possibilidade é provada pelo fato de
que a liberdade é real'.” 170
Antecipando sua análise da Crítica da faculdade do juízo, Deleuze distingue
outras condições de uma realização do supra-sensível no sensível, argumentando que a
natureza sensível apresenta condições imanentes para sua capacidade de simbolizar o
supra-sensível: 1) a finalidade natural na matéria dos fenômenos; 2) a forma da
finalidade da natureza nos objetos belos; 3) o sublime informe da natureza. A
participação da imaginação no senso comum do belo e do sublime revela que “o senso
comum moral não comporta apenas crenças, mas atos de uma imaginação através dos
quais a Natureza sensível aparece como apta ao efeito do supra sensível. A própria
imaginação faz parte, na realidade, do senso comum moral”. 171
Existe, portanto, uma hierarquia na relação entre os interesses da razão. Antes de
investigar com mais detalhes a trama dos interesses e dos fins da razão, Deleuze
apresenta como Kant pensa a subordinação do interesse especulativo ao interesse
prático: “O fato de ser conhecido não pode conferir ao mundo qualquer valor; é preciso
supor para ele um objetivo final que dê algum valor a essa própria observação do
mundo.” 172 Se o objetivo final é um conceito que designa seres que devem ser
considerados como fins em si e que devem dar à natureza sensível um fim último a
realizar, este é um conceito da razão prática:
169
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 61 (59).
170
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 62 (59).
171
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 63 (60).
172
Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, § 86.
“apenas a lei moral determina o ser racional como um fim em si, visto
que constitui um objetivo final no uso da liberdade, mas, ao mesmo
tempo, determina-o como fim último da natureza sensível, já que nos
ordena realizar o supra-sensível unindo a felicidade universal à
moralidade.(...) O interesse especulativo só encontra fins na natureza
sensível porque, mais profundamente, o interesse prático implica o ser
racional como fim em si e também como fim último dessa natureza
sensível” 173
173
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 65 e 66 (62).
ser submetido, mas unicamente condições subjetivas para o exercício
das faculdades.” 174
Esse fundo que se exprime como uma pura operação de julgar — como um juízo
puro que se apresenta primeiramente no juízo estético do tipo “é belo” — e cujo
funcionamento revela uma pura harmonia subjetiva, um acordo livre e indeterminado
entre as faculdades, introduz um novo ponto de vista no sistema da crítica: a perspectiva
de uma gênese transcendental e “a descoberta do que Kant chama de a Alma, isto é, a
unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, 'o ponto de concentração', o
princípio vivificador a partir do qual cada faculdade se vê 'animada', engendrada no seu
livre exercício como no seu livre acordo com as outras.” 175
Em “L'idée de genèse dans l'esthétique de Kant”, Deleuze revela o sistema da
primeira parte da Crítica da faculdade do juízo: inicialmente a analítica do belo como
exposição apresenta uma estética formal do belo em geral do ponto de vista do
espectador; a analítica do sublime, ao mesmo tempo como exposição e como dedução,
expõe a estética informal do sublime, do ponto de vista do espectador; a analítica do
belo como dedução, revela uma meta-estética material do belo na natureza, do ponto de
vista do espectador; a dedução na teoria do gênio: manifesta uma meta-estética ideal do
belo na arte, do ponto de vista do artista criador.
O senso comum estético não representa nenhum acordo objetivo das faculdades.
Nele, a imaginação reflete um objeto singular do ponto de vista de sua forma sem
qualquer relação com um conceito determinado do entendimento. Na sua relação com o
entendimento, a imaginação toma-o como faculdade dos conceitos em geral; “relaciona-
se com um conceito indeterminado do entendimento. Isto é: a imaginação, em sua
liberdade pura, entra em acordo com o entendimento em sua legalidade não
especificada”. 176
Esse acordo entre a imaginação livre e o entendimento indeterminado que define
o senso comum estético é o fundamento de um prazer superior e da sua
comunicabilidade e validade universais. Porém, mais profundamente, Deleuze
argumenta que o senso comum estético, enquanto pura harmonia subjetiva, não é um
174
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 69 e 70 (66 e 67).
175
Gilles Deleuze,"L'idée de genèse dans l'esthétique de Kant", pág. 134.
176
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 71 (68).
complemento, mas antes um fundamento do senso comum especulativo e do senso
comum moral. Desse modo, exatamente por força de sua posição de fundamento, o
senso comum estético não deve ser apenas presumido, mas objeto de uma gênese
transcendental. Essa questão não encontra, contudo, sua solução na analítica do belo.
Entre a analítica do belo e a determinação do seu princípio genético, Kant interpõe a
analítica do sublime, que revela e exibe, como exemplo, uma gênese transcendental do
acordo entre imaginação e razão.
Deleuze ressalta que o senso comum do sublime não é apenas presumido, que
ele é engendrado no desacordo inicial entre a imaginação e a razão. No sublime, não
cabe à imaginação uma reflexão formal. Ela é levada ao seu limite pela exigência da
razão que a força a reunir em um todo a imensidão do mundo sensível: “esse todo é a
Idéia do Sensível, na medida em que o sensível tem por substrato alguma coisa de
inteligível ou de supra-sensível. A imaginação aprende, pois, que é a razão que a
impulsiona até o limite de seu poder, forçando-a a declarar que toda sua potência não é
nada frente a uma Idéia”. 177
Desse desacordo, dessa contradição, dessa dor, nasce um acordo discordante e
emerge um prazer superior quando a imaginação ultrapassa o seu limite e representa a
inacessibilidade da idéia, fazendo-a presente na natureza sensível. “Tal é o acordo
discordante da imaginação e da razão: não somente a razão tem um 'destino supra-
sensível', mas também a imaginação. Nesse acordo, a alma é sentida como unidade
supra-sensível independente de todas as faculdades; nós mesmos somos relacionados a
um foco, como um 'ponto de concentração' no supra-sensível.” 178
A gênese do senso comum do belo coloca um problema de dedução, pois o
acordo subjetivo que o define realiza-se em relação com formas objetivas que se
apresentam. Nesse sentido, diz Deleuze, sua gênese põe um problema mais difícil,
porque pede um princípio cujo alcance seja objetivo.
Além disso, como conciliar a exigência de um princípio genético com o fato de o
belo não ser objeto de um interesse racional? Deleuze argumenta: se para Kant o prazer
ligado ao belo é essencialmente desinteressado, se o belo não está analiticamente
177
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 74 (70).
178
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 74 (70).
relacionado a um interesse racional, ele pode, contudo, estar vinculado sinteticamente a
um interesse da razão que lhe forneça o princípio da gênese da comunicabilidade e da
universalidade do prazer que proporciona.
Existe um interesse racional sinteticamente ligado ao belo que refere-se à
aptidão da natureza para produzir belas formas. Esse interesse não pode incidir sobre as
formas enquanto tais, mas apenas sobre a matéria empregada pela natureza para
produzir objetos capazes de se refletirem formalmente. Deleuze revela a necessidade da
questão: de que espécie é esse interesse, uma vez que não pode incidir, como os outros
interesses da razão, sobre objetos?
Em primeiro lugar, ele não tem o belo por objeto: incide, apenas, sobre a aptidão
que tem a natureza de produzir belas formas. Em segundo lugar, como se viu, não se
referindo à forma enquanto tal, mas à matéria empregada pela natureza para produzir
objetos capazes de se refletirem formalmente, diz respeito à produção do belo na
natureza. Em terceiro lugar e de modo mais fundamental, diz Deleuze:
179
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 78 (73).
180
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 79 (74).
Deleuze sublinha que o simbolismo — que se produz quando as matérias livres
da natureza apresentam as idéias da razão — permite ao entendimento ampliar-se e à
imaginação liberar-se: “o acordo da imaginação como livre e do entendimento como
indeterminado já não é simplesmente presumido: é de alguma forma animado,
vivificado, engendrado pelo interesse pelo belo.” 181 Mais significativo ainda, porém, é
revelar a unidade supra-sensível de todas as faculdades, tornando-se o acordo que dela
deriva fundamento dos acordos ditos determinados entre as faculdades — do acordo
especulativo e do acordo prático ou moral. Além disso, Deleuze enfatiza que esse
acordo livre das faculdades deve conceder à razão uma posição tal que a prepare para
desempenhar sua função determinante no seu interesse prático de tal modo que “a
unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades não constituem somente o mais
profundo da alma, mas preparam o advento do mais elevado, isto é, a supremacia da
faculdade de desejar, e tornam possível a passagem da faculdade de conhecer a essa
faculdade de desejar.” 182
O belo na arte não tem a mesma gênese que o belo na natureza. Deleuze mostra,
contudo, como, para Kant, também a arte é ajuizável segundo uma matéria e uma regra
fornecidas pela natureza, que atua, nesse caso, como uma disposição inata — o gênio
— no sujeito. O gênio é definido como a faculdade das idéias estéticas. Deleuze inicia
seu esclarecimento do sentido do conceito de idéia estética comparando-o com o de
idéia racional: “este é um conceito ao qual nenhuma intuição é adequada; aquela, uma
intuição à qual nenhum conceito é adequado”. Prossegue precisando o significado de
uma idéia da razão: “esta ultrapassa a experiência, seja porque não tem objeto que lhe
corresponda na natureza (por exemplo, seres invisíveis); seja porque faz de um simples
fenômeno da natureza um acontecimento do espírito (a morte, o amor). A idéia da razão
contém, pois, algo de inexprimível.” Conclui mostrando que a idéia estética ao
ultrapassar de outro modo o conceito — ela cria a intuição de uma natureza diferente da
que nos é dada — é “a mesma coisa que a idéia racional: ela exprime o que há nesta de
inexprimível. (...) Por isso mesmo, ela está bastante próxima do simbolismo (o gênio
também procede por ampliação do entendimento e liberação da imaginação). Mas, em
vez de apresentar indiretamente a idéia na natureza. ela a exprime secundariamente, na
181
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 79 (74).
182
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 80 (75).
criação imaginativa de uma outra natureza.” 183
Esse esclarecimento da gênese do senso comum estético além de revelar a alma
como unidade supra-sensível das faculdades, e nela as relações entre os seus planos (a
unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades como o mais profundo e a
supremacia da faculdade de desejar como o mais elevado da alma) discerne três
modalidades das idéias da razão se apresentarem na natureza sensível. “No sublime, a
apresentação é direta mas negativa, e se faz por projeção; no simbolismo natural ou no
interesse do belo, a apresentação é positiva, mas indireta, e se faz por reflexão; no gênio
ou no simbolismo artístico, a apresentação é positiva, mas secundária e se faz por
criação de uma outra natureza.” 184 O estudo do juízo teleológico revelará uma quarta
modalidade — indireta e analógica — de apresentação das idéias da razão.
A investigação da natureza do juízo teleológico é precedida por uma análise do
significado do conceito de juízo. Deleuze retoma a definição kantiana do juízo como
uma operação complexa que consiste em subsumir o particular ao geral, bem como a
distinção que Kant estabelece entre dois tipos de juízos: os juízos determinantes e os
juízos reflexivos. Mas o que interessa a Deleuze é estabelecer duas especificações. A
primeira sublinha que um juízo envolve sempre uma relação entre as faculdades e
exprime um acordo entre elas. Quando o juízo exprime um acordo determinado entre as
faculdades, ele é dito determinante; quando ele exprime um acordo livre indeterminado,
é dito reflexivo. A segunda especificação assinala que esses dois tipos de juízos não
podem ser compreendidos como duas espécies de um mesmo gênero:
183
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 82 (76).
interesses da razão”. 185
“pois não podem conferir uma unidade sistemática aos conceitos sem
conceder uma unidade semelhante aos fenômenos considerados em
sua matéria ou em sua particularidade. Essa unidade, admitida como
inerente aos fenômenos, é a unidade final das coisas (máximo de
unidade na maior variedade possível, sem que se possa dizer até onde
vai essa unidade). Esta unidade final só pode ser concebida segundo
um conceito de fim natural; com efeito, a unidade do diverso exige a
relação da diversidade com um fim determinado, segundo os objetos
que são relacionados a essa unidade. Nesse conceito de fim natural, a
unidade é sempre apenas presumida ou suposta como conciliável com
a diversidade das leis empíricas particulares.” 186
O conceito de unidade final das coisas remete ao conceito de fim natural, ou seja,
a um entendimento capaz de lhe servir de princípio no qual a representação do todo
seria a causa do próprio todo enquanto efeito. Deleuze sublinha a novidade kantiana:
“seria um erro pensar que tal entendimento existe na realidade, ou que os fenômenos
sejam efetivamente produzidos dessa maneira: o entendimento-arquétipo exprime o
caráter próprio do nosso entendimento, isto é, nossa própria impotência de determinar o
particular, nossa impotência para conceber a unidade final dos fenômenos segundo um
184
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 83 (77).
185
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 87 (79 e 80).
186
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 88 e 89 (81).
outro princípio que não o da causalidade intencional de uma causa suprema.” 187
Deleuze mostra como a finalidade da natureza está ligada a um duplo movimento:
de um lado, o conceito de fim natural deriva das idéias da razão ao exprimir a unidade
final dos fenômenos; de outro lado, a partir do conceito de fim natural, determina-se um
objeto da idéia racional. A determinação indireta e analógica da idéia
187
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 90 (81 e 82).
188
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 91 (82 e 83).
189
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 93 e 94 (84 e 85).
formar um conceito de reflexão —; como também, caso se tome em consideração os
interesses da razão que correspondem ao juízo estético e ao juízo teleológico, é “preciso
pensar que o juízo reflexivo em geral torna possível a passagem da faculdade de
conhecer à faculdade de desejar, do interesse especulativo ao interesse prático, e prepara
a subordinação do primeiro ao segundo, ao mesmo tempo que a finalidade torna
possível a passagem da natureza à liberdade ou prepara a realização da liberdade na
natureza.” 190
De todo modo, a Crítica da faculdade do juízo estabelece uma teoria da finalidade
— que corresponde ao ponto de vista transcendental e se concilia com a idéia de
legislação — na qual “a finalidade não possui mais um princípio teológico, mas é antes
a teologia que tem um fundamento 'final' humano. Donde a importância das duas teses
da Crítica da faculdade do juízo: o acordo final das faculdades é objeto de uma gênese
particular; a relação final da Natureza e do homem é o resultado de uma atividade
prática propriamente humana.” 191
Deleuze observa que, no caso do juízo teleológico, o conceito de fim natural exige
regras que determinem as condições sob as quais julga-se uma coisa segundo esse
conceito. A aplicação do conceito de fim natural remete a uma finalidade externa,
quando remete a dois objetos, sendo um pensado como causa e o outro como efeito, de
tal maneira que se introduza a idéia do efeito na causalidade da causa, ou a uma
finalidade interna quando o conceito se refere a uma coisa cujas partes se produzem
reciprocamente. A finalidade externa é relativa e hipotética e deve ser subordinada à
finalidade interna. No entanto, por outro lado, Deleuze observa que a finalidade interna
remete, por sua vez, a uma finalidade externa, levantando a questão de um fim ultimo:
“a partir dos seres organizados, somos remetidos às relações exteriores entre esses seres,
relações que deveriam cobrir o conjunto do universo. Mas, precisamente, a Natureza só
poderia formar um tal sistema (em lugar de um simples agregado) em função de um fim
último”. Contudo, como sublinha mais adiante Deleuze, “só pode ser considerado um
'fim último' um ser tal que o fim de sua existência esteja nele mesmo; a idéia de um fim
último implica portanto a de um objetivo final, que excede todas as nossas
possibilidades de observação na natureza sensível, como todos os recursos de nossa
190
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 95 e 96 (86).
191
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 99 (90).
reflexão.” 192
Deleuze precisa a distinção entre um fim natural e um objetivo final: o primeiro é
um fundamento de possibilidade, o segundo uma razão de existência. E acrescenta:“só o
homem enquanto ser racional pode encontrar em si mesmo o fim de sua existência.” 193
Mas não o homem enquanto procura a felicidade, nem do homem na medida em que
conhece. O objetivo final é um conceito da razão prática:
57
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág.101 (92).
193
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág.102 (92).
194
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant pág. 103 (93).
195
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant pág. 104 (94).
supra-sensível no mundo sensível, inicialmente enquadrado na problemática do senso
comum prático. A questão agora não é apenas a da realização, no mundo sensível, do
fim imposto pela lei do conceito de liberdade, mas a do paradoxo criado pela identidade
do fim último com o objetivo final: como o fim último da natureza sensível é um fim
que ela não basta para realizar? Deleuze argumenta que, para Kant, a efetuação da
liberdade e do soberano bem (“união do maior bem-estar das criaturas racionais no
mundo com a mais elevada condição do Bem moral em si” 196 ) implica a história —
atividade sintética original do homem — que deve instaurar o objetivo final, isto é, “a
formação de uma constituição civil perfeita: esta é o objeto mais elevado da Cultura, o
fim da história ou o Soberano bem propriamente terrestre.” 197
Deleuze mostra que se ultrapassa esse paradoxo quando se observa que a natureza
sensível possui por substrato o supra-sensível, pois é nesse
Mas isto não deve nos levar a imaginar que a história seja uma atualização do supra-
sensível determinada pela razão. Ao contrário, a história, tal como aparece na natureza
sensível, é constituída por puras relações de forças:
“é pelo mecanismo das forças e pelo conflito das tendências (cf. 'a
insociável sociabilidade') que a natureza sensível, no próprio homem,
preside o estabelecimento de uma Sociedade, único meio no qual o
fim último pode ser historicamente realizado. (...) Há, portanto, um
segundo ardil da razão, que não devemos confundir com o primeiro
196
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (95).
197
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (95).
(ambos constituem a história). De acordo com esse segundo ardil, a
Natureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível
procedesse segundo suas próprias leis para ser capaz de receber
finalmente o efeito supra-sensível.” 199
198
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (96).
199
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 107 (96 e 97).
Deleuze mostra como o juízo teleológico busca revelar a existência de uma regularidade
na matéria empírica contingente com relação à regularidade formal assegurada pelas
categorias do entendimento: esse acordo contingente dessas duas ordens de regularidade
permite que Kant postule, através da intervenção das idéias da razão, uma legalidade na
natureza superior à legalidade do entendimento: exprimindo a idéia de uma causa
intencional, de um autor inteligente da natureza e de um fim supremo da Criação; 8.
Deleuze mostra como a contingência em Kant funciona como uma suprema aparência
transcendental, como uma astúcia do supra-sensível que permite a sua realização no
sensível pela ação livre e histórica do homem.; 9. Deleuze revela que a história, em
Kant, como história da espécie humana, adquire assim um fim: a organização de uma
constituição civil perfeita; 10. Deleuze conclui, então, que a finalidade transcendental,
além de conferir à natureza um máximo de unidade na maior diferença possível, garante
também que as idéias da razão assegurem a submissão da diversidade sensível a uma
unidade moral que deverá ser efetivamente realizada, historicamente, como expressão
do soberano bem.
CAPÍTULO IV
Gênese e experiência
Esta reversão se prolonga e afeta, também, as relações da filosofia com a cultura e com
a história: não cabe mais à crítica a tarefa de fundar os valores racionais, de determinar
os fins superiores da cultura, nem o objetivo final da história. A subtração da razão do
sistema da crítica afetará, portanto, a concepção do campo transcendental: os princípios
transcendentais hão de ceder lugar ao conceito de vontade de potência enquanto
princípio plástico e genealógico; a teleologia racional desaparece, o fim último do
homem e o objetivo final da história desfiguram-se em favor da heterogeneidade
imanente ao devir. Assim, a filosofia, abandonando sua pretensão de fundamentação dos
costumes, tornar-se afirmativa e o pensamento assume um novo sentido, o de inventar
novas possibilidade de vida.
Com a subtração da razão do sistema da crítica, como pensar o problema da
cultura e a natureza da histórica?
Cultura e história
200
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (83).
aquilo a que se obedece — “sempre histórico, arbitrário e estúpido” — e que representa
as forças reativas; e o fato de obedecer-se à lei: “toda lei histórica é arbitrária, o que é
genérico e pré-histórico é a lei de obedecer a leis.” 201 Pois bem, o ponto de vista
histórico sobre a cultura define-se pela confusão da lei com seu conteúdo, da forma da
lei com seu conteúdo reativo. O correlato desta confusão — confusão que se apóia
numa ficção, numa aparência de atividade e de justiça — não é o homem livre, mas o
homem domesticado:
201
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág.153 (111).
202
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 9115).
qual ele dá, em compensação, a força para funcionar (...) Foi papel
deplorável da filosofia clássica, como vimos, o de fornecer, a
aparelhos de poder, Igreja ou Estado, o saber que lhes convinha. Será
que se pode dizer hoje que as ciências do homem assumiram esse
mesmo papel: fornecer por seus próprios meios uma máquina abstrata
aos aparelhos de poder modernos, admitindo a possibilidade de
receber deles a promoção desejada?” 203
203
Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 104. É conveniente, ainda, salientar que o
prosseguimento dessa passagem permite esclarecer que a crítica da filosofia da representação se prolonga
no questionamento da psicanálise e das ciências humanas: a despeito das especificidades e das diferenças
entre esses saberes, eles são associados ao exercício de uma mesma função, aquela efetuada pela filosofia
clássica.
204
“A idéia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com todas as suas formas (Deus, a essência,
o bem, o verdadeiro), a idéia de valores superiores à vida não são exemplos entre outros, mas o elemento
constitutivo de toda ficção.” Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
desarticulação das ficções que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear
e articular numa imagem do pensamento que se quer confundir com a própria natureza
do pensamento.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
também compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para que
o pensamento se constitua como pura afirmação.
No entanto, o entendimento do sentido de um pensamento afirmativo exige o
retorno e o aprofundamento da interpretação que Deleuze faz do problema da cultura
em Nietzsche. Isto porque, este problema — o da distinção dos três sentidos da cultura
— se completa, é redefinido e, de certo modo, se transmuta quando integrado no
contexto mais abrangente que o articula com a doutrina do eterno retorno e, por esse
viés, com a crítica à dialética e ao niilismo.
Deleuze observa uma ambivalência nas apreciações de Nietzsche a respeito da
possibilidade de a cultura, como atividade genérica, eliminar o devir reativo das forças
e, efetivamente, possibilitar um devir ativo. Segundo Deleuze, essa ambivalência se
resolve com a investigação da seguinte questão: em que medida o homem é
essencialmente reativo? Ora, a compreensão desse problema deve, para Deleuze, levar
em consideração que, para Nietzsche, mais importante que as forças ou as qualidades
das forças, atuam os devires das forças e das qualidades da vontade de potência. Será,
portanto, do ponto do devir das forças que as questões da natureza da atividade genérica
da cultura e da essência do homem serão avaliadas.
Deleuze esclarece:
205
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 193 (140).
tornariam viável, a empresa do homem superior fracassa não
acidentalmente, mas por princípio e na essência. Em vez de formar um
devir ativo, ela alimenta o devir inverso, o devir reativo. Em vez de
reverter os valores, troca-se de valores, permuta-os, mas mantendo o
ponto de vista niilista do qual eles derivam; em lugar de adestrar as
forças e torná-las ativas, organizam-se associações de forças reativas.
Inversamente, as condições que tornariam viável a empresa do homem
superior são aquelas que mudariam a sua natureza: a afirmação
dionisíaca, não a atividade genérica do homem. O elemento da
afirmação, eis o que falta ao próprio homem e sobretudo ao homem
superior.” 207
206
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 194 (141).
eterno retorno como pensamento crítico e seletivo.
No que diz respeito à crítica da metafísica, Deleuze mostra que Nietzsche parte
da constatação do domínio das forças reativas na filosofia e nas ciências. Por toda a
parte, segundo Nietzsche, encontra-se o predomínio das exigências do ressentimento:
207
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 195 e 196 (142).
208
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 84 (61)
209
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 101 (73).
fragmentos sem totalizá-los ou unificá-los, Deleuze, no seu estudo sobre Nietzsche,
define a metafísica pela questão “O que é?”. E adverte contra a obviedade desta
questão: “é preciso voltar a Platão para ver até que ponto a pergunta ‘O que é?’ supõe
um modo particular de pensar.” 210 É essa questão que distingue o que é segundo a
essência do que é segundo a aparência, e que determina, enquanto oposição de valores,
a distinção do ser e do devir. Deleuze mostra como Nietzsche situa o combate à
metafísica no plano das questões e dos problemas. Se a questão “O que é?” busca
determinar a essência, essa pretensão restará sob suspeita pelo efeito da proposição de
uma nova questão: “Quem?”.
O abandono da questão “O que é?” em proveito da questão “Quem?” não envolve, pois,
um esquecimento da questão da essência, mas a criação de uma outra teoria da essência.
De acordo com a interpretação de Deleuze, “a questão: ‘Quem?’, segundo
Nietzsche, significa isto: uma coisa sendo considerada, quais são as forças que dela se
apropriam, qual é a vontade que a possui? (…) Pois a essência é apenas o sentido e o
valor da coisa; a essência é determinada pelas forças em afinidade com a coisa e pela
210
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 86 (62).
211
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (62 e 63).
vontade em afinidade com essas forças.” 212 A essência, assim definida, diz respeito a
uma perspectiva, supõe uma pluralidade. Cabe ainda sublinhar que, se a questão
“Quem?” redefine desse modo o conceito de essência, é porque ela é uma questão que
exige como resposta um novo tipo de proposição. Ao contrário da questão “O que é?”, a
questão “Quem?” não promove proposições especulativas — que questionam uma idéia
do ponto de vista de sua forma e que fazem da sua coerência critério para sua existência
—, mas proposições dramáticas que operam uma síntese da idéia com o tempo, com o
devir e, um afastamento da perspectiva história sobre a cultura.
Deleuze expõe e exemplifica essa distinção a propósito da análise da proposição
“Deus morreu”.
212
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (63).
213
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 175 (127).
214
O problema da crítica articula-se, por intermédio da questão “Quem?”, com os problemas analisados
supra: o novo tipo de unidade exigida por um pensamento do Dehors e pela nova concepção do sistema
em filosofia, sistema pensado como aberto e em heterogênese. A conexão desses problemas será
retomada no seu devido tempo.
entendimento do conceito de vontade de potência e do significado de Dioniso.
Na interpretação desses conceitos está em jogo a própria visão de Deleuze, e não
apenas sua apreciação da filosofia de Nietzsche. Como se mencionou, a propósito do
estatuto do devir em Deleuze e em Nietzsche, numa referência à Blanchot:
215
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
216
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (39).
seguida, essa doutrina, que não mais opõe o ser e o devir, deve, justamente, ultrapassar
essa oposição de valores definindo o ser do devir. E ela o faz afirmando que retornar é o
ser do devir. Mas como pensar a necessidade de tal afirmação? Deleuze mostra,
primeiramente, que o eterno retorno deve ser pensado como uma resposta ao problema
da passagem do tempo:
“se o presente não passasse por ele mesmo, se fosse preciso esperar
um novo presente para que este se tornasse passado, nunca o passado
em geral se constituiria no tempo, nem esse presente passaria; não
podemos esperar, é preciso que o instante seja ao mesmo tempo
presente e passado, presente e futuro para que ele passe (e passe em
proveito de outros instantes). É preciso que o presente coexista
consigo mesmo como passado e como futuro. É a relação sintética do
instante consigo mesmo como presente, passado e futuro que funda
sua relação com outros instantes.” 217
217
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (40).
218
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 55 (41).
“com efeito, se fazemos a pergunta ‘Quem?’, não podemos dizer que a
força seja aquele que quer. Só a vontade de potência é quem quer, ela
não se deixa delegar nem alienar num outro sujeito, mesmo que esse
seja a força (…) A vontade de potência é o elemento do qual
decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças
postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força.
A vontade de potência revela aqui sua natureza: ela é princípio para a
síntese das forças. É nesta síntese temporal que as forças se
diferenciam e que o diverso se reproduz. A síntese é das forças, de sua
diferença e de sua reprodução; o eterno retorno é a síntese da qual a
vontade de potência é o princípio.” 219
219
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 56 (41).
220
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 57 (41).
desequilíbrio? Mas o que seria um princípio, uma perspectiva que se constitui como
efeito do encontro das forças? Um tal princípio não seria antes uma conseqüência?
Contudo, não há nisto nenhum contra-senso, pois a vontade de potência não é um
princípio que negue o acaso; é, ao contrário, o que o acaso comporta como princípio. A
vontade de potência é um princípio porque, como afirmação do acaso, determina uma
dupla gênese: a gênese recíproca das diferenças de quantidades das forças (dominantes e
dominadas) e a gênese absoluta das qualidades das forças em questão (ativas e a
reativas). É, portanto, uma perspectiva plástica, fluente, inseparável das forças concretas
e imanente às suas diferenças. Mesmo assim, não se pode confundir o querer com as
forças, nem a elas reduzi-lo, sob pena de que, com o desaparecimento de sua diferença,
perca-se a inteligibilidade (o sentido e o valor) das forças em relação. Por outro, porém,
lado, se tal princípio é plástico, é também porque a vontade de potência é qualificada na
experiência na relação das forças que ela determina, seja como afirmativa seja como
negativa.
Como compreender a possibilidade da metamorfose da vontade de potência? É
certo que existe uma dinâmica das forças que torna possível um devir das forças. Mas
como o dinamismo das forças articula-se com a vontade de potência, como pode o
dinamismo das forças afetar o seu princípio? Deleuze explica:
221
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 70 (50 e 51).
Entretanto, resta ainda um outro aspecto da questão: como a vontade de potência pode
tornar-se negativa? Ainda uma vez esta possibilidade depende da dinâmica das forças.
No caso, depende de que esta dinâmica afete as qualidades das forças e constitua um
devir reativo das forças ativas. Deleuze explica essa possibilidade com a seguinte
interpretação:
222
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 63 (45 e 46).
223
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 79 (57).
224
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 80 (58).
225
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 81 e 82 (59).
devir ao ser do devir ativo.
226
A epistemologia francesa caracteriza-se pelo esforço de eliminar todo realismo da concepção do
conhecimento científico. A objetividade científica não é uma objetividade dada, mas uma objetividade
distinção que impede a identificação ou a redução do pensamento do eterno retorno a
uma moral, uma vez que o que retorna não são os valores estabelecidos concebidos
como realidades em si, mas o pensamento enquanto afirmação avaliadora e criadora.
É, portanto a subtração da perspectiva moralista e realista, que se nega enquanto
perspectiva, que dá sentido à equação “ser = seleção”. Pois essa fórmula não significa
apenas que a vida não pode ser avaliada por um valor transcendente e que as maneiras
de viver possuem o valor de suas perspectivas; significa, sobretudo, a afirmação do ser
do pensamento como perspectiva. Desse modo, a seleção do eterno retorno não só se
distingue da moral; é ela que revela que a moral tem um começo e que, na sua origem,
ela é uma perspectiva que se nega e que, ao negar-se enquanto tal, não apenas assume a
negação como princípio como reivindica ser a expressão de um universal abstrato.
A interpretação do devir como fragmento, a identidade de Dioniso com a
fragmentação, assume todo seu valor quando se trata desse problema da seleção. Afinal
o que seria uma seleção que incidisse sobre devir compreendido como uma
continuidade temporal? Somente compreendendo o devir como multiplicidade de
fragmentos e os fragmentos como sistemas de signos e estes como interpretações é que
se pode submeter o devir à prova da doutrina ética do eterno retorno. Isto porque só
pensamentos podem ser avaliados por um pensamento, como no caso da prova ética do
eterno retorno. E, finalmente, o que se seleciona, senão a afirmação da afirmação? E não
envolve esta a afirmação do pluralismo? E não depende a seleção, ela própria, da
consideração de que o devir reativo é contraditório com o ser do devir? Tal contradição
não se explica como a contradição de um pensamento que se nega como perspectiva,
que se compreende pela negação da diferença e do pluralismo? Não será esta a
contradição das forças reativas com o revir: a sua pretensa dissociação de qualquer
perspectiva, o seu compromisso com a conservação dos valores existentes? Assim, não
são as forças reativas e o devir reativo das forças ativas a própria negação da repetição
do devir?
Se o devir ativo se diz das forças ativas e se estas são pensamentos afirmativos,
retorna a questão: o que é um tal pensamento, ou o que é pensar quando o pensamento
perde a referência do todo e a da sua própria unidade? Mais ainda: o que se torna o
pensamento quando ele passa pela prova do seu eterno retorno? Deleuze responde: um
227
Não seria talvez mais rigoroso falar, considerando-se a posição defendida por Deleuze em Qu’est-ce
que la philosophie?, não da condição de um pensamento sem imagens, antes de um pensamento, não sem
pressupostos, mas cujos pressupostos fossem afirmados enquanto tais?
dos seguintes movimentos que se associam ao advento da afirmação como princípio de
avaliação: 1. Uma mudança da imagem do pensamento: “a razão sob a qual a vontade
de potência é conhecida não é a razão sob a qual ela é.” 228 Deleuze sublinha aqui a
seguinte correlação: o pensamento submetido à razão ou à vontade de conhecimento
apreende, necessariamente, a vontade de potência negativa, e, por outro lado, só a
vontade de potência negativa sustenta uma vontade de conhecer. É então a subtração,
pelo pensamento, do ideal de conhecimento que pode facultar a emergência de um
pensamento afirmativo e uma mudança na qualidade da vontade de potência; 2. A
negação, desde então, subordina-se à afirmação e muda de sentido, tornando-se potência
de afirmar: “A negação não é mais a forma sob a qual a vida conserva tudo o que é
reativo nela, mas, ao contrário, a ato pelo qual ela sacrifica todas as sua formas
reativas.” 229 ; 3. Deleuze sublinha ainda um outro aspecto da subordinação da negação à
afirmação: só a afirmação subsiste enquanto potência independente, só a afirmação
produz o que o negativo anuncia.; 4. Desse modo, a negação, como conseqüência da
potência de afirmar, é o aspecto crítico que subtrai, no pensamento da existência, todos
os valores conhecidos; 5. Determinando um novo sentido à negação, a afirmação
produz, então, um devir ativo universal.
No entanto, como foi anunciado, esse devir ativo não se separa de uma condição
e de uma conseqüência negativa. Pode-se dizer que esse novo jogo da afirmação e da
negação se expressa nos dois movimentos do procedimento de “subtração:
constituição...”. O movimento da subtração das transcendências que abre caminho para
a afirmação do novo corresponde à primeira forma da negação: a negação que precede a
afirmação. Contudo, como foi sugerido na análise do procedimento de subtração:
constituição..., essas subtrações só adquirem necessidade como conseqüência de uma
potência afirmativa. Esse outro movimento, o da autentificarão das subtrações,
corresponde ao segundo aspecto ou à segunda manifestação da negação. Entretanto,
mais profundamente, esse jogo da afirmação e da negação fica sem sentido se ele não é
apreendido como decorrência da subtração primeira: a subtração, conseqüência da
afirmação da afirmação, do negativo como potência autônoma de interpretação. Pois a
autonomia da negação ou a negação como princípio é, na interpretação de Deleuze da
228
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
229
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
crítica nietzschiana, o foro genealógico de todas as ficções que depreciam a vida.
Deleuze retoma sua crítica ao negativo analisando o significado, na simbologia
nietzschiana, do sim do Asno. Com esta análise, ele quer destacar a existência, no
pensamento de Nietzsche, de uma diferenciação de dois tipos de afirmação: a primeira
não sabe, efetivamente, nem afirmar nem negar, porque afirma tudo o que a perspectiva
negativa põe como real e verdadeiro; a segunda modalidade de afirmação eleva-se à
potência criadora incorporando a negação, mas redefinida e subordinada à potência da
afirmação pura. Isto significa, para Deleuze, que a afirmação não se opõe à negação,
mas difere desta, libertando a negação da perspectiva negativa, redefinido-a como
negação do negativo na vontade de potência. A primeira afirmação aprova e suporta
todos os valores superiores; a segunda seleciona a diferença e elimina tudo o que pode
ser negado ao afirmar a própria afirmação. A primeira é expressão do niilismo: suporta
e afirma o “ser”, o “verdadeiro” e o “real”; a segunda propõe uma nova ontologia: “O
que é a afirmação em toda sua potência? Nietzsche não suprime o conceito de ser.
Propõe do ser uma nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação,
nem um elemento que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do
ser, ao contrário. A própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua
potência.” 230
Mas o que significa isto, a afirmação como ser? A afirmação da afirmação ou a
afirmação como ser é, por um lado, o exercício do pensamento que decorre da subtração
ao pensamento, dos seus pressupostos realistas, do Todo e do Um. A negação desses
pressupostos traz consigo a subtração de toda uma série de ficções, a começar pela
negação das concepções realistas do ser, do verdadeiro e do real. Por outro lado, a
análise da interpretação deleuziana do eterno retorno esclareceu que a afirmação
primeira, nela mesma, é devir e que a afirmação segunda, afirmação do devir, eleva o
devir à potência do ser. Como diz Deleuze: “É a afirmação primeira (o devir) que é ser,
mas ela só o é como objeto de uma segunda afirmação. As duas afirmações constituem a
potência de afirmar em seu conjunto.” 231 Contudo, é fundamental ainda mostrar que a
lógica do procedimento da subtração: constituição..., que afirma o devir, se articula com
230
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213 (155).
231
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 214 (155).
a lógica da dupla afirmação, que afirma o ser do devir.
232
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 209 e 210 (152 e 153).
teleológica que coordene, de fora e do alto, a atividade do pensamento.
Com esta interpretação do sentido da afirmação, Deleuze se afasta de toda
posição realista na filosofia e propõe uma nova ontologia, um construtivismo que faz da
diferença a essência do afirmativo e que diz que, no pensamento e na vida, só possui
valor de ser a afirmação que se afirma enquanto tal. Do ponto de vista dessa nova
ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é vontade de
potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem realidade do
mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real.” 233
Mas qual é o jogo da diferença nesta afirmação e o que afirma uma tal
afirmação? Deleuze esclarece:
233
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211 e 212 (154).
234
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (157 e 158).
Mas, se esta reduplicação da afirmação é preparada pela diferenciação da
negação que a afirmação promove e exige, podendo-se compreendê-la como a
necessária potencialização da afirmação que distingue a afirmação de uma simples
recognição, resta ainda saber: o que mobiliza a diferença na afirmação? Ou, para falar
em uma linguagem nietzschiana: que vontade deseja a potencialização da afirmação?
Deleuze completa: “É a vontade de potência como elemento diferencial que produz e
desenvolve a diferença na afirmação, que reflete a diferença na afirmação da afirmação,
que a faz retornar na afirmação ela mesma afirmada.” 235 Se, como foi dito, a vontade de
potência é, na interpretação deleuziana de Nietzsche, o princípio de uma crítica
verdadeiramente imanente, então deve-se concluir que esta crítica incide primeiramente
sobre a vontade de potência negativa, afetando a própria qualidade da vontade de
potência, ela promovendo uma transformação na vontade de potência: a supressão da
negação enquanto princípio autônomo de interpretação e de avaliação permite a negação
da vontade de potência negativa e, assim, sua metamorfose em vontade de potência
afirmativa. E, em outra dimensão do mesmo movimento crítico, a dupla afirmação que
constitui a vontade de potência afirmativa introduz a diferença na afirmação e faz da
vontade de potência o princípio plástico de uma crítica imanente, ao mesmo tempo
seletiva e criadora.
A questão do estatuto da negação quando integrada no movimento da afirmação
pura e o problema da identidade da afirmação com a diferença retornam em Différence
et répétition integrados a uma problemática ontológica que Deleuze circunscreve,
precisando e aprofundando sua interpretação do eterno retorno, com a sua tese que
afirma a univocidade do ser. Quanto ao estatuto da negação, Deleuze, ao criticar a
filosofia da representação, diz que a filosofia da diferença recusa a alternativa geral da
representação infinita: “ou o indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então
uma diferença já determinada como negação, implicando e envolvendo o negativo
(assim a filosofia da diferença recusa, também, a alternativa particular: negativo de
limitação ou negativo de oposição). Em sua essência, a diferença é objeto de afirmação,
ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é, ela própria, diferença.” 236 Mas
em que sentido a afirmação já é diferença? E ainda: como uma afirmação diferencial
235
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (158).
236
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 74 (101).
comporta uma potência destrutiva irredutível ao negativo?
Estas questões se articulam de modo necessário. É preciso, aqui, retornar, mais
uma vez, à hipótese de que a filosofia da diferença se constrói procedendo por
subtração: constituição.... Todavia, é fundamental sublinhar que esse procedimento,
imanente à construção desta filosofia, também dá conta do modo de construção do
sentido dos conceitos dessa filosofia. Assim pode-se dizer que os conceito de afirmação
diferencial e o de vontade de potência são conceitos que não decorrem só de retificações
operadas no campo filosófico. Como já foi mencionado, o conceito de vontade de
potência tem como correlatas as subtrações de uma série de componentes conceituais
que acompanham os conceitos metafísicos de vontade. O mesmo pode ser dito da
afirmação diferencial: este conceito supõe e implica a subtração de uma série de
componentes que acompanham o conceito de afirmação quando este é subordinado ao
ideal do conhecimento, quando este é integrado a uma ontologia que supõe a
preexistência do ser e quando este se orienta pela idéia de verdade. É justamente por
esses conceitos — vontade de potência e afirmação diferencial — não se separarem
dessas gêneses subtrativas que eles podem funcionar como princípios críticos que dão
validade e necessidade aos movimentos criadores envolvidos no procedimento de
subtração: constituição....
Uma afirmação pura, diferencial, é um ato que suprime pressupostos e, ao
mesmo tempo, constrói a idéia mesma de perspectiva. Desse modo, o componente
diferencial é que possibilita ao conceito de afirmação implicar uma agressividade e uma
destruição não derivadas da negatividade, não acionadas pelo negativo. A plena
compreensão dessa possibilidade depende da teoria de uma dialética diferencial, objeto
do capítulo “Síntese ideal da diferença” do livro Différence et répétition. Em todo o
caso, ainda a título de introdução, deve-se lembrar, ainda uma vez, que diferencial diz
respeito a um cálculo que procede por subtrações de constantes, cálculo que permite
construir idéias diferenciais e pensar universais que não se opõem ao singular e à
diferença, pois que só se atualizam, concretamente, como diferenças singulares. No que
se refere à questão presente, contudo, é preciso dizer que diferencial diz respeito ao
processo de subtração das ficções que submetem o pensamento ao negativo e que
produzem uma imagem do pensamento cujos pressupostos configuram tanto uma
unidade subjetiva para o pensamento quanto uma ordem objetiva para o mundo. É,
portanto, do ponto de vista de uma afirmação diferencial que Deleuze pode distinguir
237
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 75 (101 e 102).
contrário, endireitada, vista de cima para baixo, a diferença é
afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos; que a diferença é
objeto de afirmação; que a afirmação é ela mesma múltipla; que ela é
criação, mas também que deve ser criada, afirmando a diferença,
sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor. Mais
ainda, há elementos diferenciais positivos que determinam, ao mesmo
tempo, a gênese da afirmação e da diferença afirmada. Que haja uma
gênese da afirmação como tal é o que nos escapa toda vez que
deixamos a afirmação no indeterminado ou toda vez colocamos a
determinação no negativo. A negação resulta da afirmação: isto quer
dizer que a negação surge em conseqüência da afirmação ou ao lado
dela, mas somente como a sombra de um elemento genético mais
profundo — desta potência ou desta ‘vontade’ que engendra a
afirmação e a diferença na afirmação. Os que carregam o negativo não
sabem o que fazem: tomam a sombra pela realidade, nutrem
fantasmas, separam a conseqüência das premissas, dão ao
epifenômeno o valor do fenômeno e da essência.” 238
238
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 78 (104 e 105).
Segundo Deleuze,
Ora, a leitura atenta desta citação revela que a gênese da afirmação se confunde
com a gênese da diferença. Pois, a rigor não há uma diferença dada a ser afirmada: a
diferença é conquistada por uma “deformação da representação”, por um
“esquartejamento da coisa”. Contudo, se, desse modo, não há mais identidade das coisas
(A é A), nem identidade do sujeito (Eu = Eu), o pensamento deve conquistar, por
diferenciação, por subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o
ponto de vista, isto é, um perspectivismo.
Deleuze retoma, assim, através de Nietzsche, duas intenções da crítica kantiana:
239
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.
o projeto de uma crítica imanente e a idéia da filosofia como legisladora enquanto
filosofia. No entanto, Deleuze considera, também com Nietzsche, que a imanência e o
ideal do filósofo legislador, almejados pela crítica kantiana, fracassam, de início, pela
concepção mesma desta crítica:
“Kant não fez senão levar ao extremo uma concepção muito velha da
crítica. Ele concebeu a crítica como uma força que deveria incidir
sobre todas as pretensões ao conhecimento e à verdade, mas não sobre
o próprio conhecimento, não sobre a própria verdade. Como uma
força que deveria incidir sobre todas as pretensões à moralidade, mas
não sobre a própria moral. Desse modo, a crítica total transforma-se
em uma política de compromisso.” 240
240
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 102 (73 e 74).
estruturas psicológicas. Permanece que os princípios em Nietzsche
não são jamais princípios transcendentais; estes são precisamente
substituídos pela genealogia. Só a vontade de potência como princípio
genético e genealógico, como princípio legislativo, está apta para
realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.” 241
241
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104 (75).
242
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 106 (76).
Deleuze destaca cinco pontos que distinguem a crítica nietzschiana da crítica
kantiana:
Capítulo IV
Gênese e experiência
243
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 107 e 108 (77).
da história — processo de atualização do soberano bem, vale dizer, o estabelecimento
de uma constituição civil perfeita.
A leitura de Nietzsche et la philosophie revela, como se observará
detalhadamente mais adiante, como Deleuze sublinha a existência, na filosofia de
Nietzsche, de uma linha que conecta a crítica genealógica com a crítica kantiana. Não é
sem importância perceber, desde logo, que para além da retomada da intenção de uma
crítica imanente e do ideal de uma filosofia legisladora, há, com Nietzsche, segundo
Deleuze, uma ruptura radical com a concepção kantiana da crítica. Esta não é mais
concebida como uma crítica empreendida pela razão, mas como uma crítica da razão
pelo pensamento:
Esta reversão se prolonga e afeta, também, as relações da filosofia com a cultura e com
a história: não cabe mais à crítica a tarefa de fundar os valores racionais, de determinar
244
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (83).
os fins superiores da cultura, nem o objetivo final da história. A subtração da razão do
sistema da crítica afetará, portanto, a concepção do campo transcendental: os princípios
transcendentais hão de ceder lugar ao conceito de vontade de potência enquanto
princípio plástico e genealógico; a teleologia racional desaparece, o fim último do
homem e o objetivo final da história desfiguram-se em favor da heterogeneidade
imanente ao devir. Assim, a filosofia, abandonando sua pretensão de fundamentação dos
costumes, tornar-se afirmativa e o pensamento assume um novo sentido, o de inventar
novas possibilidade de vida.
Com a subtração da razão do sistema da crítica, como pensar o problema da
cultura e a natureza da histórica?
Cultura e história
245
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág.153 (111).
“utilizam-se os procedimentos de adestramento, mas para fazer do
homem o animal gregário, a criatura dócil e domesticada. Faz-se uso
dos procedimentos de seleção, mas para quebrar os fortes, para ficar
com os fracos, os sofredores ou os escravos. A seleção e a hierarquia
são postas de cabeça para baixo. A seleção torna-se o contrário
daquilo que era do ponto de vista da atividade; ela é apenas um meio
de conservar, de organizar e de propagar a vida reativa.” 246
246
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 9115).
247
Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 104. É conveniente, ainda, salientar que o
prosseguimento dessa passagem permite esclarecer que a crítica da filosofia da representação se prolonga
Essas considerações evidenciam, embora as análises de cada filósofo
determinem níveis diversos desse problema, que, para Deleuze, assim como para
Nietzsche, o trabalho da filosofia clássica contribui para o desenvolvimento das ficções
que definem o sentido histórico da cultura. Compreende-se, então, que a crítica
deleuziana da filosofia clássica seja um pensamento concreto e perigoso: como foi
sugerido no primeiro capítulo deste trabalho, a filosofia de Deleuze é inseparável do
desejo de desarticulação das ficções 248 — forças reativas que sustentam o sentido
histórico da cultura — que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear para
o interior da filosofia de modo a articulá-las em uma imagem do pensamento que se
quer confundir com a própria natureza do pensamento. Sendo assim, é sem sentido
distinguir uma crítica interna à filosofia e uma crítica externa da cultura: tanto para
Nietzsche como para Deleuze, o pensamento passa de uma crítica a outra sem solução
de continuidade. A crítica de uma afeta necessariamente a imagem da outra.
Retoma-se, aqui, a hipótese de pensar a doutrina do julgamento como doutrina
que elabora as ficções essenciais para a constituição do ponto de vista histórico sobre a
cultura. Em contrapartida, sendo essa correlação verdadeira, pode-se suspeitar que o
pensamento de Deleuze queira dar consistência filosófica à articulação dos pontos de
vistas pré e pós-históricos sobre a cultura — um projeto que é inseparável da
desarticulação das ficções que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear
e articular numa imagem do pensamento que se quer confundir com a própria natureza
do pensamento.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
também compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças
no questionamento da psicanálise e das ciências humanas: a despeito das especificidades e das diferenças
entre esses saberes, eles são associados ao exercício de uma mesma função, aquela efetuada pela filosofia
clássica.
248
“A idéia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com todas as suas formas (Deus, a essência,
o bem, o verdadeiro), a idéia de valores superiores à vida não são exemplos entre outros, mas o elemento
constitutivo de toda ficção.” Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para que
o pensamento se constitua como pura afirmação.
No entanto, o entendimento do sentido de um pensamento afirmativo exige o
retorno e o aprofundamento da interpretação que Deleuze faz do problema da cultura
em Nietzsche. Isto porque, este problema — o da distinção dos três sentidos da cultura
— se completa, é redefinido e, de certo modo, se transmuta quando integrado no
contexto mais abrangente que o articula com a doutrina do eterno retorno e, por esse
viés, com a crítica à dialética e ao niilismo.
Deleuze observa uma ambivalência nas apreciações de Nietzsche a respeito da
possibilidade de a cultura, como atividade genérica, eliminar o devir reativo das forças
e, efetivamente, possibilitar um devir ativo. Segundo Deleuze, essa ambivalência se
resolve com a investigação da seguinte questão: em que medida o homem é
essencialmente reativo? Ora, a compreensão desse problema deve, para Deleuze, levar
em consideração que, para Nietzsche, mais importante que as forças ou as qualidades
das forças, atuam os devires das forças e das qualidades da vontade de potência. Será,
portanto, do ponto do devir das forças que as questões da natureza da atividade genérica
da cultura e da essência do homem serão avaliadas.
Deleuze esclarece:
249
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 193 (140).
250
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 194 (141).
afirmação, eis o que falta ao próprio homem e sobretudo ao homem
superior.” 251
251
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 195 e 196 (142).
respeito, o espírito objetivo de Hegel não vale mais do que a utilidade,
não menos ‘objetiva’. Ora nessa relação abstrata, qualquer que seja,
sempre se é levado a substituir as atividades reais (criar, falar, amar,
etc...) pelo ponto de vista de um terceiro sobre essas atividades;
confunde-se a essência da atividade com o lucro de um terceiro e
pretende-se que este deva tirar proveito desse lucro ou que tenha
direito de recolher seus efeitos (Deus, o espírito objetivo, a
humanidade, a cultura ou até mesmo o proletariado). 252
252
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 84 (61)
Qual é, pois, o novo modo de pensar que se exprime na questão “Quem?” e a
que visa essa questão? Deleuze responde:
O abandono da questão “O que é?” em proveito da questão “Quem?” não envolve, pois,
um esquecimento da questão da essência, mas a criação de uma outra teoria da essência.
De acordo com a interpretação de Deleuze, “a questão: ‘Quem?’, segundo
Nietzsche, significa isto: uma coisa sendo considerada, quais são as forças que dela se
apropriam, qual é a vontade que a possui? (…) Pois a essência é apenas o sentido e o
valor da coisa; a essência é determinada pelas forças em afinidade com a coisa e pela
vontade em afinidade com essas forças.” 256 A essência, assim definida, diz respeito a
uma perspectiva, supõe uma pluralidade. Cabe ainda sublinhar que, se a questão
“Quem?” redefine desse modo o conceito de essência, é porque ela é uma questão que
exige como resposta um novo tipo de proposição. Ao contrário da questão “O que é?”, a
questão “Quem?” não promove proposições especulativas — que questionam uma idéia
do ponto de vista de sua forma e que fazem da sua coerência critério para sua existência
—, mas proposições dramáticas que operam uma síntese da idéia com o tempo, com o
devir e, um afastamento da perspectiva história sobre a cultura.
Deleuze expõe e exemplifica essa distinção a propósito da análise da proposição
253
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 101 (73).
254
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 86 (62).
255
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (62 e 63).
256
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (63).
“Deus morreu”.
257
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 175 (127).
258
O problema da crítica articula-se, por intermédio da questão “Quem?”, com os problemas analisados
supra: o novo tipo de unidade exigida por um pensamento do Dehors e pela nova concepção do sistema
em filosofia, sistema pensado como aberto e em heterogênese. A conexão desses problemas será
a unidade que permanece una mesmo pluralizando-se. A fragmentação
é o deus mesmo, aquilo que não tem nenhuma relação com um centro,
que não suporta nenhuma referência originária e que, por
consequência, o pensamento, pensamento do mesmo e do um, aquele
da teologia, como de todos os modos do saber humano (ou dialético),
não poderia acolher sem falsear.” 259
“se o presente não passasse por ele mesmo, se fosse preciso esperar
um novo presente para que este se tornasse passado, nunca o passado
em geral se constituiria no tempo, nem esse presente passaria; não
podemos esperar, é preciso que o instante seja ao mesmo tempo
260
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (39).
261
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (40).
262
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 55 (41).
vontade de potência é o princípio.” 263
263
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 56 (41).
representação; e da idéia de vontade sua dependência dos valores dominantes. E, assim,
subtrai, também, da idéia de vontade a necessidade de um conflito entre as vontades, a
concepção da guerra como meio da atribuir à vontade os valores estabelecidos. Em
decorrência dessas subtrações, surge um novo conceito de vontade: a vontade como
potência criadora. Contudo, por outro lado, não se deve esquecer que é esse novo
conceito de vontade, a vontade de potência, que assegura a necessidade das subtrações
desfigurantes: este é um conceito que traz a marca de sua criação e que permite
conceber o pensamento como criação. Deleuze sublinha que o conceito de vontade de
potência, assim constituído, é diferenciador nos seus efeitos: ele é o ato de derivar que
torna impensável um equilíbrio entre as forças em relação. Se, tal como foi dito, na
teoria do cálculo diferencial derivar é subtrair constantes e se a vontade de potência, em
um dos seus aspectos, é vontade de derivar, se seu exercício é diferenciador,
compreende-se que a vontade de potência como princípio não possa ser geral, isto é, ser
mais amplo do que aquilo de que é princípio. Assim, se a vontade de potência não é um
princípio geral é porque ela é um princípio plástico, “que se metamorfoseia com o
condicionado, que em cada caso se determina com o que determina. A vontade de
potência nunca é separável de tais ou quais forças determinadas, de suas quantidades, de
suas qualidades, de suas direções; nunca é superior às determinações que ela opera
numa relação de forças, sempre plástica e em metamorfose.” 264
Se assim é a vontade de potência, como compreendê-la, senão como o conceito
de uma perspectiva imanente, que se constitui na relação das forças de que assegura o
desequilíbrio? Mas o que seria um princípio, uma perspectiva que se constitui como
efeito do encontro das forças? Um tal princípio não seria antes uma conseqüência?
Contudo, não há nisto nenhum contra-senso, pois a vontade de potência não é um
princípio que negue o acaso; é, ao contrário, o que o acaso comporta como princípio. A
vontade de potência é um princípio porque, como afirmação do acaso, determina uma
dupla gênese: a gênese recíproca das diferenças de quantidades das forças (dominantes e
dominadas) e a gênese absoluta das qualidades das forças em questão (ativas e a
reativas). É, portanto, uma perspectiva plástica, fluente, inseparável das forças concretas
e imanente às suas diferenças. Mesmo assim, não se pode confundir o querer com as
264
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 57 (41).
forças, nem a elas reduzi-lo, sob pena de que, com o desaparecimento de sua diferença,
perca-se a inteligibilidade (o sentido e o valor) das forças em relação. Por outro, porém,
lado, se tal princípio é plástico, é também porque a vontade de potência é qualificada na
experiência na relação das forças que ela determina, seja como afirmativa seja como
negativa.
Como compreender a possibilidade da metamorfose da vontade de potência? É
certo que existe uma dinâmica das forças que torna possível um devir das forças. Mas
como o dinamismo das forças articula-se com a vontade de potência, como pode o
dinamismo das forças afetar o seu princípio? Deleuze explica:
Entretanto, resta ainda um outro aspecto da questão: como a vontade de potência pode
tornar-se negativa? Ainda uma vez esta possibilidade depende da dinâmica das forças.
No caso, depende de que esta dinâmica afete as qualidades das forças e constitua um
devir reativo das forças ativas. Deleuze explica essa possibilidade com a seguinte
interpretação:
265
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 70 (50 e 51).
origem comporta uma imagem invertida de si mesma: visto do lado
das forças reativas, o elemento diferencial genealógico aparece ao
contrário, a diferença tornou-se negação, a afirmação tornou-se
contradição.” 266
266
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 63 (45 e 46).
267
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 79 (57).
do ser seletivo, pois o eterno retorno é o ser e o ser é seleção (seleção = hierarquia).” 268
Como compreender essa afirmação de um ser seletivo, essa equação ser =
seleção? A conexão dos dois sentidos do eterno retorno esclarece, em parte, o problema
da seleção. Pois, como doutrina física e cosmológica, o eterno retorno afirma o devir.
Contudo, como ressalta a interpretação de Deleuze, o devir é duplo: há um devir reativo
das forças ativas — quando separadas do que podem pelas ficções reativas — e há um
devir ativo das forças reativas. É exatamente este o problema do eterno retorno, como
pensamento ético e seletivo: o da possibilidade do devir ativo das forças reativas. Ora, a
seleção, nos seus dois aspectos, deve ser compreendida como uma operação de
subtração: constituição.... Em ambos os casos, trata–se de subtrair ficções, as ficções
que separam as forças ativas do que elas podem. A primeira seleção elimina da vontade,
pelo pensamento do eterno retorno, os semi-quereres que a separam de toda sua
potência. O que se constitui com isso? A identidade da vontade com a criação. A
segunda seleção elimina, pelo pensamento do eterno retorno, a perspectiva que instaura
as ficções, o corpo sem órgãos das ficções, isto é, a negação. O que é que com isso se
constitui? A afirmação, a identidade do ser com o devir ativo. “O eterno retorno como
doutrina física afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, afirma o ser do
devir como ‘afirmando-se’ do devir-ativo. (…) A fórmula completa da afirmação é: o
todo, sim, o ser universal, sim, mas o ser universal se diz de um só devir, o todo se diz
de um só momento.” 269 Do primeiro sentido ao segundo sentido do eterno retorno,
passa-se, portanto, da afirmação do devir à seleção do devir ativo; passa-se do ser do
devir ao ser do devir ativo.
268
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 80 (58).
269
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 81 e 82 (59).
pensamento. O ser seletivo resulta de uma doutrina ética que afirma e dá valor de ser
apenas ao devir ativo. Ora, uma ontologia seletiva é ainda um pensamento, o ser
seletivo é um conceito, um pensamento do ser afirmado como devir ativo. Assim, as
duas seleções são operações do pensamento: na primeira, o pensamento retira de si os
pensamentos reativos; na segunda, o pensamento subtrai de si a perspectiva reativa,
elimina a negação como perspectiva de avaliação. O pensamento, tornado pura
afirmação, transmuta a negação em negação das forças reativas. Ou seja, o pensamento
que conquista sua imanência torna-se pura afirmação (afirmação da afirmação). Ele, o
pensamento, torna-se produtor: constitui-se como afirmador do ser, do ser seletivo que
só se diz do devir ativo.
É fundamental aqui compreender que a equação “ser = seleção” faz-se
acompanhar dessa outra equação: “seleção = hierarquia”. Sabendo-se que o conceito de
hierarquia refere-se ao conceito de valor e que este diz respeito não às realidades
objetivas, mas às diferenças de qualidade da vontade, deve-se dizer que é a segunda
equação que encerra o segredo da primeira, isto é, que o ser é perspectiva e que o que
ele, enquanto ato de selecionar, seleciona é o que se afirma como perspectiva e não o
que se pretende realidade. Mas, por outro lado, é fundamental lembrar que as
perspectivas atualizam-se em modos de vida, e, assim, o que o pensamento do eterno
retorno seleciona, ao selecionar o devir ativo, são maneiras de viver. Entretanto, não se
dever confundir modos de vida, valores, com realidades: as primeiras são da ordem da
atividade do pensamento, as segundas são do domínio da objetividade. 270 É esta
distinção que impede a identificação ou a redução do pensamento do eterno retorno a
uma moral, uma vez que o que retorna não são os valores estabelecidos concebidos
como realidades em si, mas o pensamento enquanto afirmação avaliadora e criadora.
É, portanto a subtração da perspectiva moralista e realista, que se nega enquanto
perspectiva, que dá sentido à equação “ser = seleção”. Pois essa fórmula não significa
apenas que a vida não pode ser avaliada por um valor transcendente e que as maneiras
de viver possuem o valor de suas perspectivas; significa, sobretudo, a afirmação do ser
do pensamento como perspectiva. Desse modo, a seleção do eterno retorno não só se
distingue da moral; é ela que revela que a moral tem um começo e que, na sua origem,
270
A epistemologia francesa caracteriza-se pelo esforço de eliminar todo realismo da concepção do
conhecimento científico. A objetividade científica não é uma objetividade dada, mas uma objetividade
ela é uma perspectiva que se nega e que, ao negar-se enquanto tal, não apenas assume a
negação como princípio como reivindica ser a expressão de um universal abstrato.
A interpretação do devir como fragmento, a identidade de Dioniso com a
fragmentação, assume todo seu valor quando se trata desse problema da seleção. Afinal
o que seria uma seleção que incidisse sobre devir compreendido como uma
continuidade temporal? Somente compreendendo o devir como multiplicidade de
fragmentos e os fragmentos como sistemas de signos e estes como interpretações é que
se pode submeter o devir à prova da doutrina ética do eterno retorno. Isto porque só
pensamentos podem ser avaliados por um pensamento, como no caso da prova ética do
eterno retorno. E, finalmente, o que se seleciona, senão a afirmação da afirmação? E não
envolve esta a afirmação do pluralismo? E não depende a seleção, ela própria, da
consideração de que o devir reativo é contraditório com o ser do devir? Tal contradição
não se explica como a contradição de um pensamento que se nega como perspectiva,
que se compreende pela negação da diferença e do pluralismo? Não será esta a
contradição das forças reativas com o revir: a sua pretensa dissociação de qualquer
perspectiva, o seu compromisso com a conservação dos valores existentes? Assim, não
são as forças reativas e o devir reativo das forças ativas a própria negação da repetição
do devir?
Se o devir ativo se diz das forças ativas e se estas são pensamentos afirmativos,
retorna a questão: o que é um tal pensamento, ou o que é pensar quando o pensamento
perde a referência do todo e a da sua própria unidade? Mais ainda: o que se torna o
pensamento quando ele passa pela prova do seu eterno retorno? Deleuze responde: um
pensamento sem imagem.
Mas poderá a crítica conquistar tal imanência? Como já se viu, Deleuze encontra
em Nietzsche, no conceito de vontade de potência, o princípio de uma tal crítica
imanente, a condição de um pensamento sem imagem. 271 O duplo aspecto da seleção no
pensamento do eterno retorno revela um movimento que vai da seleção dos
pensamentos ativos à seleção da vontade de potência afirmativa. Neste sentido, deve-se
sublinhar a dupla função do conceito de vontade de potência: por um lado, como
272
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
negação, desde então, subordina-se à afirmação e muda de sentido, tornando-se potência
de afirmar: “A negação não é mais a forma sob a qual a vida conserva tudo o que é
reativo nela, mas, ao contrário, a ato pelo qual ela sacrifica todas as sua formas
reativas.” 273 ; 3. Deleuze sublinha ainda um outro aspecto da subordinação da negação à
afirmação: só a afirmação subsiste enquanto potência independente, só a afirmação
produz o que o negativo anuncia.; 4. Desse modo, a negação, como conseqüência da
potência de afirmar, é o aspecto crítico que subtrai, no pensamento da existência, todos
os valores conhecidos; 5. Determinando um novo sentido à negação, a afirmação
produz, então, um devir ativo universal.
No entanto, como foi anunciado, esse devir ativo não se separa de uma condição
e de uma conseqüência negativa. Pode-se dizer que esse novo jogo da afirmação e da
negação se expressa nos dois movimentos do procedimento de “subtração:
constituição...”. O movimento da subtração das transcendências que abre caminho para
a afirmação do novo corresponde à primeira forma da negação: a negação que precede a
afirmação. Contudo, como foi sugerido na análise do procedimento de subtração:
constituição..., essas subtrações só adquirem necessidade como conseqüência de uma
potência afirmativa. Esse outro movimento, o da autentificarão das subtrações,
corresponde ao segundo aspecto ou à segunda manifestação da negação. Entretanto,
mais profundamente, esse jogo da afirmação e da negação fica sem sentido se ele não é
apreendido como decorrência da subtração primeira: a subtração, conseqüência da
afirmação da afirmação, do negativo como potência autônoma de interpretação. Pois a
autonomia da negação ou a negação como princípio é, na interpretação de Deleuze da
crítica nietzschiana, o foro genealógico de todas as ficções que depreciam a vida.
Deleuze retoma sua crítica ao negativo analisando o significado, na simbologia
nietzschiana, do sim do Asno. Com esta análise, ele quer destacar a existência, no
pensamento de Nietzsche, de uma diferenciação de dois tipos de afirmação: a primeira
não sabe, efetivamente, nem afirmar nem negar, porque afirma tudo o que a perspectiva
negativa põe como real e verdadeiro; a segunda modalidade de afirmação eleva-se à
potência criadora incorporando a negação, mas redefinida e subordinada à potência da
afirmação pura. Isto significa, para Deleuze, que a afirmação não se opõe à negação,
273
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
mas difere desta, libertando a negação da perspectiva negativa, redefinido-a como
negação do negativo na vontade de potência. A primeira afirmação aprova e suporta
todos os valores superiores; a segunda seleciona a diferença e elimina tudo o que pode
ser negado ao afirmar a própria afirmação. A primeira é expressão do niilismo: suporta
e afirma o “ser”, o “verdadeiro” e o “real”; a segunda propõe uma nova ontologia: “O
que é a afirmação em toda sua potência? Nietzsche não suprime o conceito de ser.
Propõe do ser uma nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação,
nem um elemento que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do
ser, ao contrário. A própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua
potência.” 274
Mas o que significa isto, a afirmação como ser? A afirmação da afirmação ou a
afirmação como ser é, por um lado, o exercício do pensamento que decorre da subtração
ao pensamento, dos seus pressupostos realistas, do Todo e do Um. A negação desses
pressupostos traz consigo a subtração de toda uma série de ficções, a começar pela
negação das concepções realistas do ser, do verdadeiro e do real. Por outro lado, a
análise da interpretação deleuziana do eterno retorno esclareceu que a afirmação
primeira, nela mesma, é devir e que a afirmação segunda, afirmação do devir, eleva o
devir à potência do ser. Como diz Deleuze: “É a afirmação primeira (o devir) que é ser,
mas ela só o é como objeto de uma segunda afirmação. As duas afirmações constituem a
potência de afirmar em seu conjunto.” 275 Contudo, é fundamental ainda mostrar que a
lógica do procedimento da subtração: constituição..., que afirma o devir, se articula com
a lógica da dupla afirmação, que afirma o ser do devir.
274
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213 (155).
275
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 214 (155).
envolve a subtração tanto da unidade do real (o Todo) quanto da unidade do pensamento
(o Um), articula-se a um outro movimento, que afirma o mundo dos fragmentos ou o
devir. Mas por que há a necessidade de uma dupla afirmação para que a potência de
afirmar se institua?
O essencial, neste caso, para uma filosofia, como a de Deleuze, que almeja dar
consistência à idéia de que o pensamento seja criador, é assegurar que a afirmação
primeira não seja uma constatação, no caso a constatação do devir como um dado.
Portanto, pode-se sugerir a hipótese de que a função da afirmação segunda ou
reduplicada seja a de revelar que a afirmação primeira não decorre da intuição de um
dado, ou seja, de uma realidade suposta como independente de um ato da vontade e do
pensamento, isto é, de uma realidade concebida como independente de qualquer
interpretação. A afirmação segunda, enquanto afirmação da afirmação, impede, desse
modo, a ilusão de supor que a afirmação seja compreendida como o reconhecimento de
uma realidade dada, mesmo que esta realidade seja, por contra-senso, o devir. Quanto a
isto, a interpretação de Deleuze é clara: “na crítica da afirmação como assunção (…)
Nietzsche critica toda concepção da afirmação que faria desta uma simples função,
função do ser ou do que é. De qualquer modo que seja concebido esse ser: como
verdadeiro ou como real, como númeno ou como fenômeno. E de qualquer modo como
que seja concebida essa função: como desenvolvimento, exposição, desvelamento,
revelação, realização, tomada de consciência ou conhecimento.” 276 A afirmação
segunda tem, pois, o sentido de eliminar todos os pressupostos: recusa a existência tanto
de um foro originário quanto de um estado de coisas atual, ou mesmo de uma orientação
teleológica que coordene, de fora e do alto, a atividade do pensamento.
Com esta interpretação do sentido da afirmação, Deleuze se afasta de toda
posição realista na filosofia e propõe uma nova ontologia, um construtivismo que faz da
diferença a essência do afirmativo e que diz que, no pensamento e na vida, só possui
valor de ser a afirmação que se afirma enquanto tal. Do ponto de vista dessa nova
ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é vontade de
potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem realidade do
276
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 209 e 210 (152 e 153).
mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real.” 277
Mas qual é o jogo da diferença nesta afirmação e o que afirma uma tal
afirmação? Deleuze esclarece:
277
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211 e 212 (154).
278
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (157 e 158).
que a faz retornar na afirmação ela mesma afirmada.” 279 Se, como foi dito, a vontade de
potência é, na interpretação deleuziana de Nietzsche, o princípio de uma crítica
verdadeiramente imanente, então deve-se concluir que esta crítica incide primeiramente
sobre a vontade de potência negativa, afetando a própria qualidade da vontade de
potência, ela promovendo uma transformação na vontade de potência: a supressão da
negação enquanto princípio autônomo de interpretação e de avaliação permite a negação
da vontade de potência negativa e, assim, sua metamorfose em vontade de potência
afirmativa. E, em outra dimensão do mesmo movimento crítico, a dupla afirmação que
constitui a vontade de potência afirmativa introduz a diferença na afirmação e faz da
vontade de potência o princípio plástico de uma crítica imanente, ao mesmo tempo
seletiva e criadora.
A questão do estatuto da negação quando integrada no movimento da afirmação
pura e o problema da identidade da afirmação com a diferença retornam em Différence
et répétition integrados a uma problemática ontológica que Deleuze circunscreve,
precisando e aprofundando sua interpretação do eterno retorno, com a sua tese que
afirma a univocidade do ser. Quanto ao estatuto da negação, Deleuze, ao criticar a
filosofia da representação, diz que a filosofia da diferença recusa a alternativa geral da
representação infinita: “ou o indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então
uma diferença já determinada como negação, implicando e envolvendo o negativo
(assim a filosofia da diferença recusa, também, a alternativa particular: negativo de
limitação ou negativo de oposição). Em sua essência, a diferença é objeto de afirmação,
ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é, ela própria, diferença.” 280 Mas
em que sentido a afirmação já é diferença? E ainda: como uma afirmação diferencial
comporta uma potência destrutiva irredutível ao negativo?
Estas questões se articulam de modo necessário. É preciso, aqui, retornar, mais
uma vez, à hipótese de que a filosofia da diferença se constrói procedendo por
subtração: constituição.... Todavia, é fundamental sublinhar que esse procedimento,
imanente à construção desta filosofia, também dá conta do modo de construção do
sentido dos conceitos dessa filosofia. Assim pode-se dizer que os conceito de afirmação
diferencial e o de vontade de potência são conceitos que não decorrem só de retificações
279
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (158).
280
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 74 (101).
operadas no campo filosófico. Como já foi mencionado, o conceito de vontade de
potência tem como correlatas as subtrações de uma série de componentes conceituais
que acompanham os conceitos metafísicos de vontade. O mesmo pode ser dito da
afirmação diferencial: este conceito supõe e implica a subtração de uma série de
componentes que acompanham o conceito de afirmação quando este é subordinado ao
ideal do conhecimento, quando este é integrado a uma ontologia que supõe a
preexistência do ser e quando este se orienta pela idéia de verdade. É justamente por
esses conceitos — vontade de potência e afirmação diferencial — não se separarem
dessas gêneses subtrativas que eles podem funcionar como princípios críticos que dão
validade e necessidade aos movimentos criadores envolvidos no procedimento de
subtração: constituição....
Uma afirmação pura, diferencial, é um ato que suprime pressupostos e, ao
mesmo tempo, constrói a idéia mesma de perspectiva. Desse modo, o componente
diferencial é que possibilita ao conceito de afirmação implicar uma agressividade e uma
destruição não derivadas da negatividade, não acionadas pelo negativo. A plena
compreensão dessa possibilidade depende da teoria de uma dialética diferencial, objeto
do capítulo “Síntese ideal da diferença” do livro Différence et répétition. Em todo o
caso, ainda a título de introdução, deve-se lembrar, ainda uma vez, que diferencial diz
respeito a um cálculo que procede por subtrações de constantes, cálculo que permite
construir idéias diferenciais e pensar universais que não se opõem ao singular e à
diferença, pois que só se atualizam, concretamente, como diferenças singulares. No que
se refere à questão presente, contudo, é preciso dizer que diferencial diz respeito ao
processo de subtração das ficções que submetem o pensamento ao negativo e que
produzem uma imagem do pensamento cujos pressupostos configuram tanto uma
unidade subjetiva para o pensamento quanto uma ordem objetiva para o mundo. É,
portanto, do ponto de vista de uma afirmação diferencial que Deleuze pode distinguir
281
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 75 (101 e 102).
deixamos a afirmação no indeterminado ou toda vez colocamos a
determinação no negativo. A negação resulta da afirmação: isto quer
dizer que a negação surge em conseqüência da afirmação ou ao lado
dela, mas somente como a sombra de um elemento genético mais
profundo — desta potência ou desta ‘vontade’ que engendra a
afirmação e a diferença na afirmação. Os que carregam o negativo não
sabem o que fazem: tomam a sombra pela realidade, nutrem
fantasmas, separam a conseqüência das premissas, dão ao
282
epifenômeno o valor do fenômeno e da essência.”
Segundo Deleuze,
282
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 78 (104 e 105).
arrancada de seu centro. É preciso, pois, que cada ponto de vista seja
ele mesmo a coisa ou que a coisa pertença ao ponto de vista. É
preciso, pois, que a coisa nada seja de idêntico, mas que seja
esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade
do objeto visto quanto a do sujeito que vê. É preciso que a diferença
se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras
diferenças que nunca a identificam, mas a diferenciam. É preciso que
cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa
relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries
desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a
divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser
deve ver sua identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só
uma diferença entre diferenças. É preciso mostrar a diferença
diferindo.” 283
Ora, a leitura atenta desta citação revela que a gênese da afirmação se confunde
com a gênese da diferença. Pois, a rigor não há uma diferença dada a ser afirmada: a
diferença é conquistada por uma “deformação da representação”, por um
“esquartejamento da coisa”. Contudo, se, desse modo, não há mais identidade das coisas
(A é A), nem identidade do sujeito (Eu = Eu), o pensamento deve conquistar, por
diferenciação, por subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o
ponto de vista, isto é, um perspectivismo.
Deleuze retoma, assim, através de Nietzsche, duas intenções da crítica kantiana:
o projeto de uma crítica imanente e a idéia da filosofia como legisladora enquanto
filosofia. No entanto, Deleuze considera, também com Nietzsche, que a imanência e o
ideal do filósofo legislador, almejados pela crítica kantiana, fracassam, de início, pela
concepção mesma desta crítica:
“Kant não fez senão levar ao extremo uma concepção muito velha da
crítica. Ele concebeu a crítica como uma força que deveria incidir
sobre todas as pretensões ao conhecimento e à verdade, mas não sobre
o próprio conhecimento, não sobre a própria verdade. Como uma
283
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.
força que deveria incidir sobre todas as pretensões à moralidade, mas
não sobre a própria moral. Desse modo, a crítica total transforma-se
em uma política de compromisso.” 284
284
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 102 (73 e 74).
285
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104 (75).
A crença na Moral e na Verdade faz com que a crítica kantiana, do ponto de
vista de Nietzsche e Deleuze, comprometa a idéia do filósofo legislador. Para Kant o
que é legislador não é o pensamento, mas, como já se disse, uma de nossas faculdades:
quando o interesse da Razão é especulativo, cabe ao entendimento legislar sobre as
demais faculdades (sensibilidade, imaginação e a razão); quando se trata do interesse
prático, é a razão quem ordena o senso comum entre a imaginação e entendimento; etc.
Deleuze se indaga:
286
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 106 (76).
tribunal, um juiz de paz que vigia a distribuição dos domínios e a
repartição dos valores estabelecidos. A inspiração genealógica se opõe
à inspiração judiciária. O genealogista é um pouco advinho, filósofo
do futuro. (…) Para ele, também, pensar é julgar, mas julgar é avaliar
e interpretar, é criar valores. O problema do julgamento se torna o da
justiça e da hierarquia; 4) (…) a instância crítica não é o homem
realizado, nem qualquer forma sublimada do homem, como espírito,
razão, consciência de si. Nem Deus, nem homem. (…) a instância
crítica é a vontade de potência, o ponto de vista crítico é o da vontade
de potência. Mas sob qual forma? (…) O tipo crítico, o homem
enquanto quer ser ultrapassado, superado. (…); 5) O objetivo da
crítica: não os fins do homem ou da razão, mas enfim o super-homem,
o homem superado, ultrapassado. Na crítica, não se trata de justificar,
mas de sentir diferentemente: uma outra sensibilidade.” 287
CAPÍTULO VI
287
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 107 e 108 (77).
Idéia e Atualização
288
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 220 (278).
características extrínsecas (se a Idéia é em si mesma indeterminada,
ela só é determinada em relação aos objetos da experiência e só
contém o ideal de determinação em relação ao conceitos do
entendimento). Ainda mais, Kant encarnava esses momentos em
Idéias distintas: o Eu é sobretudo indeterminado, o Mundo é
determinável e Deus é o ideal da determinação. Talvez seja necessário
procurar aí as verdadeiras razões pelas quais Kant, como os pós-
kantianos o criticaram, se atém ao ponto de vista do condicionamento,
sem atingir o da gênese. E se o erro do dogmatismo é sempre
preencher o que separa, o do empirismo é deixar exterior o separado;
neste sentido, há ainda empirismo demais na Crítica (e dogmatismo
demais nos pós-kantianos). O horizonte ou o foco, o ponto ‘crítico’
em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir ainda
não está assinalado.” 289
Com sua teoria diferencial do pensamento, sobretudo com seu conceito da Idéia
como diferencial do pensamento, Deleuze parece ir além do dogmatismo e do
empirismo ao atingir o ponto crítico em que a diferença exerce a função de reunir. Ele
começa por subtrair o que há de empirismo na concepção kantiana da Idéia — as
características extrínsecas do determinável (sua referência aos objetos da experiência) e
da determinação (sua relação com os conceitos do entendimento). Assim afirma que dx
(o símbolo da diferença) é a própria Idéia:
289
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 221 (278 e 279).
constituição da teoria diferencial da Idéia. Seu ponto de partida é o problema do cálculo
diferencial. Trata-se, para ele, de acompanhar as interpretações matemáticas do cálculo
diferencial no sentido de dar à diferença um estatuto positivo e diferenciado e evitar
remeter o diferencial à forma do negativo. Contudo, a matemática, a avaliação das
interpretações do cálculo diferencial, apesar da sua importância como encontro,
funciona, sobretudo, como um intercessor da filosofia da diferença. Mas Deleuze quer,
com sua teoria da Idéia, determinar a Dialética — como domínio de uma arte dos
problemas — sem reduzi-la às ciências ou teorias, pensadas como campo das soluções.
O conceito de diferencial tem, na sua filosofia, o sentido de pensar a natureza da
diferença como diferença de diferença. Desse modo, como se viu, Deleuze define a
Idéia como pensamento do Cogito ou como diferencial do pensamento. Como
diferencial do pensamento, a Idéia é indeterminada, determinável e realmente
determinada. A cada aspecto corresponde, respectivamente, um princípio: o princípio de
determinabilidade, que define a quantitabilidade, o princípio de determinação recíproca,
que define a qualitabilidade, e o princípio de determinação completa, que define a
potencialidade.
Tal como se analisou a propósito do conceito de força em Nietzsche, toda
quantidade é diferença de quantidade e está em uma relação de determinação recíproca
com outras quantidades. Em Différence et répétition, Deleuze retoma o problema da
gênese da diferença — seu elemento sintético (a relação do diferente com o diferente) e
seu elemento diferenciante (a relação de determinação recíproca constitutiva de cada
diferença) — relacionando-o com a questão do contínuo como elemento da Idéia, vale
dizer, como causa ideal da quantitatibilidade. E precisa: “A continuidade, tomada como
sua causa, forma o elemento puro da quantitatibilidade. Este não se confunde nem com
as quantidades fixas da intuição (quantum), nem com as quantidades variáveis como
conceitos do entendimento (quantitas). Além disso, o símbolo que o exprime é
inteiramente indeterminado: dx nada é em relação a x, como dy em relação a y.” 291
Deleuze define o elemento puro da quantitatibilidade pelas subtrações ao cálculo
tanto do quantum como da quantitas. Essas operações são constituintes da equação
diferencial. Tomando como exemplo a diferença entre a equação algébrica do círculo
290
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 222 (279 e 280).
291
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 222 (280).
(x2 + y2 – R2 = 0) e a equação diferencial da circunferência (ydy + xdx = 0), ele
comenta: “os zeros de dx e de dy exprimem o aniquilamento do quantum e da quantitas,
do geral e do particular, em proveito do universal e de seu aparecimento. É esta a força
da interpretação de Bordas-Demoulin: o que se anula em dy/dx ou 0/0 não são as
quantidades diferenciais, mas somente o individual e as relações do individual na
função (por “individual”, Bordas entende ao mesmo tempo o particular e o geral).” 292
Essas considerações permitem pensar que a teoria da Idéia constitui a razão e a
necessidade do procedimento de subtração: constituição.... A Idéia como diferencial do
pensamento interioriza os movimentos de subtração: constituição.... No caso do
exemplo em questão, as relações diferenciais asseguram ao mesmo tempo as subtrações
do particular e do geral e a constituição do universal que é próprio da idéia da
circunferência. Pode-se, portanto, sustentar a hipótese de que o procedimento de
subtração: constituição... tem sua razão na natureza mesma da Idéia como diferencial do
pensamento. Assim, cabe considerar que, no movimento da obra de Deleuze, o
procedimento de subtração: constituição..., que conforma a construção dos problemas
postos pela filosofia da diferença, se faz de acordo com a definição, nesta filosofia, da
Idéia como diferença e da Dialética como essencialmente problemática.
Fazendo prosseguir a reflexão sobre o universal da Idéia, Deleuze destaca, ainda,
um segundo elemento da relação diferencial: a qualitabilidade pura. O universal que é o
diferencial não é completamente indeterminado, pois se ele não possui quantidades
precisas (particular ou geral), há relações do universal: o universal é determinado pelo
princípio de determinação recíproca. O universal é, assim, diferençado, vale dizer,
constituído por um conjunto de relações recíprocas entre singularidades, sem ser, no
entanto, diferenciado, ou seja, sem ser especificado por valores quantitativos. Deleuze
esclarece:
292
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 222 (280 e 291).
absolutamente em relação com o outro; não é necessário, nem mesmo
possível, indicar uma variável independente. Eis por que, agora, um
princípio de determinação recíproca corresponde à determinabilidade
da relação. É numa síntese recíproca que a Idéia põe e desenvolve sua
função efetivamente sintética.” 293
293
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 223 (282).
294
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 224 (282 e 283).
Idéia. E tais sínteses, ao subtraírem da variação a variabilidade de uma relação suposta
como constante abandonam, o relativismo, que se contenta com o pensamento da
relatividade da verdade, e constitui, com a afirmação da variedade definida como grau
de variação da própria relação, o perspectivismo, que, como já se disse, conquista a
afirmação da verdade do relativo.
A análise efetuada por Deleuze em seu comentário à crítica de Salomom
Maïmom à dualidade kantiana do conceito e da intuição revela que a conquista de
universais concretos — nos quais a compreensão da Idéia vai no mesmo sentido que a
sua extensão — através do procedimento de subtração: constituição..., imposto pela
teoria da Idéia como diferencial, não se separa da instauração de uma perspectiva
genética ou de um combate contra a redução do transcendental a um simples
condicionamento. É do ponto de vista da Idéia como diferencial do pensamento que
Deleuze retoma a crítica de Maïmom:
295
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 225 (283 e 284).
quantitabilidade e a subtração das qualificações constituía o elemento da
qualitabilidade, desta vez é a despontencialização que condiciona a potencialidade pura.
Qual é a natureza do princípio de determinação completa, que corresponde ao elemento
da potencialidade pura? Deleuze distingue assim a determinação completa da
determinação recíproca: “Esta concernia às relações diferenciais e seus graus, suas
variedades na Idéia correspondendo a formas diversas. A determinação completa
concerne aos valores de uma relação, isto é, à composição de uma forma ou à repartição
dos pontos singulares que a caracterizam, por exemplo, quando a relação torna-se nula,
ou infinita, ou 0/0.” 296
A conseqüência do estabelecimento dos princípios de determinabilidade, que
define a quantitabilidade, de determinação recíproca, que estabelece a qualitabilidade, e
de determinação completa, que conquista a potencialidade, é dar à Idéia o estatuto de
um problema inteiramente autônomo, independente de sua solução. Ela é definida
296
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 228 (287).
297
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 228 (287).
o cálculo diferencial, enquanto um dos instrumentos de expressão dos problemas
matemáticos) que designa o problema e a instauração de seu campo de solução. Neste
sentido, ele pode distinguir tantos cálculos quantos os domínios engendrados pelos
problemas dialéticos: “Se a Idéia é a diferencial do pensamento, há um cálculo
correspondente à cada Idéia, alfabeto do que significa pensar. O cálculo diferencial não
é cálculo trivial do utilitarista, o tosco cálculo aritmético que subordina o pensamento a
outra coisa e a outros fins, mas a álgebra do pensamento puro, a ironia superior dos
próprios problemas — o único cálculo ‘para além do bem de do mal’.” 298 De outro lado,
se Deleuze distingue por natureza as instâncias dos problemas e de suas soluções, isto
não significa uma separação abstrata entre os dois domínios. Ao contrário, enfatiza a
existência de uma relação de pressuposição recíproca entre os problemas e suas
soluções. Pois, segundo a teoria da Idéia de Deleuze, se os problemas são recobertos
pelas soluções, eles subsistem na Idéia que os refere às suas condições e organiza a
gênese das próprias soluções. 299
298
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 235 (296).
299
Cf.Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 70 (57).
simulacros — imagens sem semelhança, diferenças não subordinadas ao modelo do
Mesmo. A questão deleuziana do combate à doutrina do julgamento, questão que
também se exprime positivamente como afirmação do ponto singular onde a criação e
o conceito remetem um ao outro, exige e se desenvolve em novos problemas, a começar
pela elaboração do problema da reversão do conceito platônico de Idéia: como pensar a
Idéia, não como essência eterna ou como a Identidade de um modelo, mas como
multiplicidade e como problema?
A definição deleuziana da Idéia como multiplicidade evidencia que, também
neste aspecto, a reversão do platonismo se faz por diferenciação ou por subtração:
constituição.... No reemprego que faz da palavra multiplicidade, Deleuze destaca a sua
forma substantiva. Neste sentido, a multiplicidade subtrai-se às categorias do Um e do
Múltiplo. “O verdadeiro substantivo, a própria substância, é a ‘multiplicidade’, que
torna inútil tanto o uno quanto o múltiplo. A multiplicidade variável é o quanto, o como,
o cada caso. Cada coisa é uma multiplicidade enquanto encarna a Idéia.” 300 Desse ponto
de vista, a Idéia deixa de ser um fundamento que mede as pretensões de pretendentes. A
rigor, ela desfaz a equação platônica da existência com a pretensão. No lugar dos
pretendentes, emergem potências, signos e seus problemas. Cabe à Idéia não mais
fundar o julgamento, mas, como multiplicidade, de um lado problematizar os
acontecimentos humanos e, de outro, desenvolver como acontecimentos humanos as
condições de um problema. 301
A definição da Idéia como multiplicidade prolonga e prossegue o movimento de
subtração: constituição... que a constitui como diferencial (vale dizer, como
deflagradora de subtrações-constituições) do pensamento. As condições que, segundo
Deleuze, permitem falar de multiplicidade são as mesmas que permitem definir a Idéia.
Neste sentido, ele retoma para definir uma multiplicidade as conquistas efetuadas com a
sua análise do indeterminado, do determinável e do determinado, bem como de seus
respectivos princípios de determinabilidade, de determinação recíproca e de
determinação completa, que definem, cada qual, respectivamente, a quantitabilidade, a
qualitabilidade e a potencialidade, enquanto características da Idéia. Como se
evidenciou, estes princípios são subtrativos. Portanto, ainda uma vez, agora com
300
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 236 (297).
301
Cf. Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 70 (58).
respeito à Idéia como multiplicidade, a hipótese do movimento de subtração:
constituição... vem mostrar seu valor heurístico: de um lado, como se revelará na
definição de Deleuze, as condições de emergência de uma Idéia são subtrativas e
genéticas ou constituintes; de outro lado, a Idéia que emerge ou que se constitui, se bem
determinada, autentica suas condições.
Gilles Deleuze apresenta a Idéia como uma multiplicidade definida e contínua
com n dimensões. Por dimensões, entende as coordenadas das quais um fenômeno
depende; por continuidade, compreende o conjunto das relações entre as mudanças
dessas coordenadas; por definição, considera os elementos reciprocamente
determinados por essas relações. Deste modo, assinala três condições que permitem
definir o momento de emergência da Idéia.
Primeira condição:
Segunda condição:
Terceira condição:
302
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (297).
“Uma ligação múltipla ideal, uma relação diferencial, deve se atualizar
em correlações espaço-temporais diversas, ao mesmo tempo que seus
elementos encarnam-se atualmente em termos e formas variadas.
Assim a idéia se define como estrutura. A estrutura, a Idéia , é o ‘tema
complexo’, uma multiplicidade interna, isto é, um sistema de ligação
múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, que se encarna
em relações reais e em termos atuais.” 304
303
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (298).
304
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (298).
305
Sobre a natureza imanente dessas sínteses, ver Gilles Deleuze e Felix Guattari, L’Anti-Œdipe.
é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua potência.” 306 O mesmo raciocínio
vale para a Diferença: a subtração dos pressupostos da imagem dogmática do
pensamento não desnuda a Diferença como realidade dada. Apenas possibilita uma nova
concepção da Diferença, sua afirmação como correlato da Repetição com o
desenvolvimento da teoria da Idéia como multiplicidade virtual.
A segunda condição diz respeito exatamente à constituição de um sistema
imanente de ligações ideais que estabelece a relação do diferente com o diferente. De
um lado, as ligações ideais não se fazem num espaço uniforme e homogêneo que
conteria a multiplicidade, ao contrário, como se verá, a atualização das relações virtuais
constitui blocos espaço-temporais concretos, vale dizer, inseparáveis do processo de
atualização. De outro lado, tais ligações não se fazem a partir da identidade de um Eu
penso. Portanto, a imanência das relações ideais se conquista, por subtração:
constituição..., com a construção de um campo de imanência sub-representativo,
impessoal e pré-individual — a multiplicidade ideal não admite qualquer dependência
em relação ao idêntico no sujeito ou no objeto, nem às idealidades, a priori, do espaço e
do tempo, uniformes e homogêneos.
A terceira condição apresenta uma outra dimensão da constituição. Não mais a
constituição de relações de diferençação, a Idéia como virtualidade, mas a constituição
genética de relações de diferenciação como atualização da multiplicidade virtual em
correlações reais e em termos atuais. Com a terceira condição, Deleuze, num encontro
com o estruturalismo matemático, estabelece um ponto fundamental: o método genético
pode realizar suas ambições desde que se compreenda que
“a gênese não vai de um termo atual, por menor que seja, a um outro
termo atual no tempo, mas vai do virtual a sua atualização, isto é, da
estrutura a sua encarnação, das condições de problemas aos casos de
solução, dos elementos diferenciais e de suas ligações ideais aos
termos atuais e às correlações reais diversas que, a cada momento,
constituem a atualidade do tempo. Gênese sem dinamismo, evoluindo
necessariamente no elemento de uma supra-historicidade; gênese
estática que se compreende como o correlato de uma síntese passiva e
19
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
que, por sua vez, esclarece essa noção.” 307
307
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 238 (298).
308
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 247 (309).
22
Tais subtrações, em Différence et répétition, são inseparáveis da constituição do conceito de Idéia como
multiplicidade virtual em lugar do conceito tal como definido na representação. Em Qu’est-ce que la
philosophie?, Deleuze e Guattari, ao definirem a filosofia como arte de criação de conceitos e o conceito
como a Idéia filosófica, mantêm, como dimensão fundamental da sua definição própria, as subtrações da
designação, da manifestação e da significação como essenciais para a sua conquista filosófica do
conceito.
Idéia e o ‘aprender’ exprimem, ao contrário, a instância problemática,
extra-proposicional ou sub-representativa: a apresentação do
inconsciente, não a representação da consciência.” 310
310
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 248 (310 e 311).
311
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 250 (312).
“O que parecia corresponder à Diferença, que articula ou reúne por si
mesma, era esta Discordância acordante. Portanto, há um ponto em
que pensar, falar, imaginar, sentir, etc., são uma mesma coisa, mas
esta coisa afirma somente a divergência das faculdades em seu
exercício transcendente. Trata-se, portanto, não de um senso comum,
mas, ao contrário, de um “para-senso” (no sentido de que o paradoxo é
também o contrário do bom senso). Este para-senso tem as Idéias
como elementos, precisamente porque as Idéias são multiplicidades
puras que não pressupõem qualquer forma de identidade num senso
comum, mas que, ao contrário, animam e descrevem o exercício
disjunto do ponto de vista transcendente.” 312
312
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 250 (313).
exercício transcendente. As Idéias não são objeto de uma faculdade
particular, mas concernem singularmente a uma faculdade particular, a
tal ponto que se pode dizer: elas saem daí (para constituir o ‘para-
senso’ de todas as faculdades). Mais uma vez: que significa, neste
caso, sair ou encontrar a sua origem? De onde vêm as Idéias, de onde
vêm os problemas, seus elementos e relações ideais?” 313
Admitindo-se que as idéias têm uma relação singular com o pensamento apenas
quando este conquista seu exercício superior, deve-se esclarecer: o que significa esta
distinção entre ser objeto de uma faculdade particular e concernir singularmente a uma
faculdade particular? Sem esclarecer este ponto, como compreender aquele outro que se
refere a uma “origem radical” das idéias?
As idéias não são objeto de uma faculdade particular; isto significa que elas não
são o correlato objetivo de uma potência natural e particular. Ao contrário, elas são
pensadas como multiplicidades diferenciais que violentam o exercício empírico das
faculdades. São assim potências subtrativas e constituintes que dão consistência às
subtrações dos postulados que apresentam as faculdades como potências naturais
votadas por natureza a um senso comum e a um bom senso. Mas, segundo a análise de
Deleuze, o ponto interessante e pertinente, no momento, é mostrar que, embora ser
objeto de uma faculdade não se mostre um destino para as idéias, isto não exclui outras
aventuras e relações de outro tipo das idéias com as faculdades. Ao mesmo tempo que
se subtraem à forma do objeto e violentam o exercício empírico das faculdades
(elevando-as a um exercício superior), as idéias conservam, ainda assim, uma relação
singular com o pensamento no seu exercício superior: encontram aí sua “origem
radical”.
O complexo questão-problema
313
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 251 (314).
pensar? Ou sucumbe a um ceticismo generalizado ou afirma o acaso e torna-se criador.
Se a filosofia de Deleuze afirma o acaso deve-se dizer que o pensamento, no seu
exercício superior, expõe-se ao caos, e, em conseqüência, à prova do seu eterno retorno
como sua origem radical. Todavia, não basta uma aproximação abstrata entre o
pensamento e as idéias. Deve-se buscar a questão que os relaciona e assim torna
concreta a relação das idéias com o pensamento como sua uma origem radical. A obra
de Deleuze explicita esta questão? Différence et répétition, como se verá, contrapõe, à
imagem clássica do pensamento que define o movimento do pensamento como uma
passagem do hipotético ao apodítico, uma outra imagem que, segundo Deleuze, define-
se pelo complexo ontológico questão-problema. É do ponto de vista desta nova imagem
do pensamento, a qual se expressa na teoria diferencial do pensamento, que se pode
relacionar as idéias ao pensamento como sua “origem radical”.
Deleuze esclarece que o complexo questão-problema
Todavia, essas considerações não são suficientes, ainda não dão conta da questão que
torna relevante para o pensamento de Gilles Deleuze o complexo questão-problema:
permanece abstrata a idéia de uma origem radical das idéias.
De acordo com a orientação geral desta tese (que vê a filosofia de Gilles Deleuze
desenvolver-se como combate ao sistema e à doutrina do julgamento) tais problemas
tornam-se concretos, isto é, articulados com a questão que desenvolvem, sempre que se
relacionar o complexo questão-problema e o problema da origem radical das idéias ao
314
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 252 (315).
ponto singular no qual o pensamento filosófico enfrenta a questão do sentido da
existência.
Deleuze encontra-se com esta questão na sua interpretação do sentido da
ontologia nietzschiana. Sua análise sugere que a questão do sentido da existência (ou “O
que é a justiça?”) está na origem da compreensão nietzschiana do sentido trágico da
existência. Afirma mesmo que Nietzsche conquista este sentido quando expõe o seu
pensamento a uma decisão: a existência é culpada ou inocente? Com esta questão,
Nietzsche determina uma dimensão genealógica na qual configura-se uma bifurcação
para o pensamento filosófico: a culpabilização da existência desenvolve-se na doutrina
do julgamento (ou, para usar a terminologia nietzschiana, o julgamento da existência
desenvolve-se no niilismo, que por sua vez, segundo Deleuze, diferencia-se em tipos:
negativo, reativo e passivo) ou a afirmação da inocência da existência desdobra-se, na
filosofia nietzschiana e nas filosofias da imanência, no caso da filosofia da diferença,
com as afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade. A partir desta questão-
decisão ontológica, pode-se compreender não apenas a necessidade do complexo
questão-problema, mas também a necessidade de que as idéias não sejam objeto de
nenhuma faculdade particular e que tenham uma “origem radical” no pensamento. Pois,
assim como a decisão nietzschiana que afirma a inocência da existência conjuga-se, no
desenvolvimento da doutrina do eterno retorno, com a afirmação do ser do devir, as
idéias, no pensamento de Gilles Deleuze, também nascem como decisão e estão, nesta
medida, implicadas na interpretação que sustenta a natureza seletiva do eterno retorno
como eterno retorno da Diferença.
Submetido à prova do seu eterno retorno, o pensamento deleuziano seleciona
(excluindo no seu movimento centrífugo o retorno do negativo e, em conseqüência, a
doutrina do julgamento) o pensar como afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade. Assim, a afirmação da inocência da existência que ressoa no
desenvolvimento da obra deleuziana ressoa também na sua teoria diferencial do
pensamento e na sua teoria das três sínteses do tempo, sobretudo na terceira síntese do
tempo como futuro, que introduz, no pensamento, a forma vazia do tempo e, com ela, a
fissura no Eu bem como o Outro no pensamento. Além disto, a afirmação da inocência
da existência, que se exprime nas afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade
submete todas as questões (O que é pensar?; o que é o Ser?; o que é o tempo?; o que é
falar?; o que é desejar?; o que é a sociabilidade?; o que é a ciência?; o que é a arte?; o
que é a filosofia? etc.) à prova do eterno retorno da Diferença. Neste sentido, é o
pensamento em devir — afetado pela sua afirmação da inocência da existência e
compreendido como repetição que se diz da diferença, vale dizer, rachado pela forma
pura do tempo, constrangido e forçado a desenvolver-se no movimento do complexo
questão-problema, sem outra possibilidade senão a de tornar-se criativo — que se
apresenta como origem radical das idéias. Como diferenciais do pensamento, as idéias
tornam, por sua vez, pensável a gênese do pensar no pensamento e a consistência do
Acontecimento.
O que distingue o movimento que vai do hipotético ao apodítico daquele que vai
do problemático à questão? Em primeiro lugar, o problema difere, por natureza, da
hipótese. Esta última é uma proposição da consciência que se estabelece no campo das
representações do Saber, ao passo que os problemas ou as idéias são construções
imanentes a um apreender infinito e inconsciente. Em seguida, a instância apodítica
difere da instância questão pela natureza dos imperativos que expressam. A primeira é
um ponto de chegada que configura um imperativo moral, a segunda exprime a relação
dos problemas com os imperativos de acontecimentos que se apresentam como questões
(que traduzem o imperativo da afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade), dos
quais eles procedem. Como diz Deleuze:
315
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 256 (319).
aquilo pelo que o pensamento e a arte são reais e perturbam a
realidade, a moralidade e a economia do mundo.” 316
316
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 76 (63).
317
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211/212.
do Ser têm uma relação com o Eu, é com o Eu rachado, cuja rachadura
eles deslocam e reconstituem a cada vez segundo a ordem do tempo.
Portanto, os imperativos formam os cogitanda do pensamento puro, as
diferenciais do pensamento, ao mesmo tempo o que não pode ser
pensado, mas o que deve ser e só pode ser pensado do ponto de vista
do exercício transcendente.” 319
Precisa-se, assim, a relação do ser com o pensamento. De um lado, deve-se dizer que é
um encontro com o ser, como seu dehors, que força o pensamento a pensar, mas, sendo
o ser a afirmação em toda sua potência, é imperativo considerar que, de outro lado, a
afirmação da afirmação como ser é a potência que o pensamento conquista com sua
metamorfose na prova do seu eterno retorno — quando se subtrai ao seu exercício
empírico e constitui-se, no seu exercício transcendente, como repetição que se diz da
diferença. A relação do ser com o pensamento não mais pode ser pensada nem como
acordo do pensamento com o ser, nem configurar para o pensamento um ideal de
adequação ao ser ou um imperativo moral de imitação do ser, pois já não há mais nem
realidade, nem verdade do ser. O pensamento e o ser não são postos como dados, nem
expostos a um face a face, exteriores um ao outro. Ao contrário, o pensamento e o ser
são conquistas de um duplo devir: o pensamento em um devir afirmativo conquista sua
imanência radical e torna-se, no seu exercício transcendente, criador. Com a afirmação
do seu dehors, o pensamento afirma o seu ser; na outra ponta do mesmo movimento, o
ser torna-se afirmação e em toda sua potência de afirmação, afirma o seu devir, vale
dizer, o ser do devir.
O problema da origem das idéias conduziu o pensamento ao problema do
estatuto ontológico das questões e dos seus imperativos. Os imperativos, segundo
Deleuze, se dirigem ao Eu rachado como ao inconsciente do pensamento, a partir do
qual o pensamento pensa, no seu exercício superior, esse inconsciente. Do mesmo
modo, diz Deleuze, “as Idéias que decorrem dos imperativos, em vez de serem as
propriedades ou atributos de uma substância pensante, só fazem entrar e sair por essa
rachadura do Eu, que sempre faz com que outro pense em mim, um outro que deve, ele
318
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
319
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 257 (321).
próprio, ser pensado.” 320 O círculo composto pelas questões imperativas, ontológicas,
os problemas dialéticos que delas decorrem, os campos simbólicos de resolubilidade dos
problemas e as soluções que estes recebem nesses campos não parecem dar conta do
nascimento desses imperativos ontológicos. Deleuze propõe pensar a origem das
questões e de seus imperativos como repetição da diferença: “De que se diz a repetição
no eterno retorno, a não ser da vontade de potência, do mundo da vontade de potência,
de seus imperativos e de seus lances de dados, e dos problemas saídos do lançar?” 321
Mas como compreender a possibilidade de uma tal repetição? O que há nos problemas
que os dispõem à repetição da diferença?
320
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 258 (322).
321
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
322
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
(não)-ser. Deleuze pensa um (não)-ser da questão, mas não admite reduzi-lo a uma
negação ou ao negativo. Por esta razão, talvez, a sua melhor expressão seja ?-ser, como
forma ou abertura de um campo problemático. 323
Do ponto de vista da filosofia da diferença, o negativo é uma ilusão: é a sombra
dos problemas. Segundo Deleuze, o negativo é um correlato da degradação do problema
em uma hipótese, pois cada hipótese, como proposição da consciência, admite uma
hipótese contrária. Portanto, de acordo com a terminologia de Différence et répétition, a
crítica do negativo é ineficaz quando feita do ponto de vista de um conceito, seja
traduzindo a oposição em limitação, seja concebendo o negativo como degradação.
Somente do ponto de vista da Idéia é que a crítica do negativo se torna efetiva:
Mas o negativo é uma ilusão objetiva, isto é, uma ilusão transcendental inseparável dos
processos de atualização da Idéia virtual e da besteira como faculdade dos falsos
problemas.
Deleuze analisa o exemplo da Idéia lingüística. Evidencia que, a despeito dela
ter todas as características de uma estrutura que a define como uma multiplicidade
plenamente positiva, os lingüistas assimilam as relações diferenciais entre os fonemas a
relações de oposição. Deleuze valoriza a obra do lingüista Gustave Guillaume na
medida que ela, de um lado, subtrai da lingüística o princípio da oposição distintiva e,
de outro lado, constitui o princípio de uma posição diferencial. Em consonância com
este princípio, Deleuze argumenta, com Guillaume, que a oposição nada nos ensina
sobre a natureza daquilo que é considerado como estando em oposição e afirma que
323
Contrapondo-se à interpretação que concebe o não-ser como negativo ou expressão de uma negação,
Deleuze busca representar o não-ser problemático escrevendo-o, indiferentemente, ora (não)-ser ora ?-
ser.
324
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 262 (327).
“a seleção dos fonemas, que tem nesta ou naquela língua um valor
pertinente, é inseparável dos morfemas tomados como elementos de
construções gramaticais. Ora, os morfemas, que fazem intervir o
conjunto virtual da língua, são objeto de uma determinação
progressiva que procede por ‘limiares diferenciais’ e implica um
tempo puramente lógico capaz de medir a gênese ou a atualização. A
determinação recíproca formal do fonemas remete a essa
determinação progressiva, que exprime a ação do elemento virtual
sobre a matéria fônica; e somente quando se considera os fonemas
abstratamente, isto é, quando se reduziu o virtual a um simples
possível, é que suas relações têm a forma negativa de uma oposição
vazia, em vez de preencher as posições diferenciais em torno de um
limiar.” 325
325
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 265 (330).
326
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 303 (375).
como a sombra desviante do problemático no conjunto das proposições, ora como a
sombra da instância genética produzida pela própria afirmação. A caracterização do
negativo como sombra do problema o assimila a uma ilusão, mas sua determinação
como sombra da instância genética da própria afirmação faz da ilusão uma ilusão
transcendental. Deleuze afirma assim que como
327
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 268 e 269 (334 e 335).
328
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 269 (335).
A crítica do negativo deve ser articulada à constituição do virtual como
dimensão imanente ao pensamento e à subtração, ao pensamento, da orientação que faz
do real e do conceito a realização do possível. A mera oposição do virtual ao possível,
contudo, mantém abstrata a compreensão do virtual: não acede, por si só, à sua
necessidade, que só advém com a dramatização do conceito de virtual. Que problemas
mobilizam a criação do conceito de virtual? Afinal, quais são o sentido e o valor do
conceito de virtual na filosofia da diferença?
Também o conceito de virtual deve ser correlacionado ao combate deleuziano ao
sistema e à doutrina do julgamento. Ele deve ser compreendido como desafio filosófico
ao sistema do julgamento que postula transcendências que permitem julgar a existência
culpada porque marcada pelo acaso, pelo devir e pela multiplicidade — transcendências
que deslocam o eixo da existência para após a morte e assassinam o Cosmos (o mundo
concebido como multiplicidade de forças em devir) em favor de um sistema de poder de
um Deus único que exclui do mundo e do pensamento toda imanência e alteridade. Tal
sistema do julgamento desdobra-se numa doutrina do julgamento, que, submetendo a
existência à identidade, concebe-a como realização de um possível e, assim, purga-a de
todo acaso, devir e multiplicidade.
Como criações filosóficas, os conceitos de virtual e de atualização são
efetuações do combate à doutrina do julgamento, rompendo tanto com a semelhança
como processo quanto com a identidade como princípio. Neste aspecto, Deleuze retoma
a crítica de Bergson aos falsos problemas do não-ser, da desordem e do possível
(problemas do conhecimento e do ser), e ainda, como se verá, não propriamente a crítica
da intensidade, mas o problema da intensidade, integrando-o ao problema da
individuação e conferindo-lhe novo sentido. Compreende-se melhor, do ponto de vista
deste duplo combate (o combate ao sistema e à doutrina do julgamento), a valorização,
por parte de Deleuze, na obra de Kant, do “momento furtivo fulgurante” que não se
prolonga nem mesmo nela. O ponto de vista do combate ao sistema e à doutrina do
julgamento ressalta outras dimensões do sentido da fissura do Eu pela forma pura do
tempo (o virtual) e o valor da introdução do Outro (a alteridade e o dehors) no
pensamento puro. 329 O pensamento não exprime mais um julgamento, nem a identidade
329
Visto desta perspectiva, o conceito de virtual combate, na filosofia, tanto as semióticas despóticas
significantes e quanto as semióticas autoritárias subjetivas, em favor de um pensamento afirmativo de
de um Eu, nem seu encontro com um sujeito ou um objeto, mas com o Outro, com seu
dehors e com a sua Diferença. Decerto, de um lado, o pensamento é atravessado, no seu
movimento, por uma alteridade que lhe é imanente: o Outro, como sua diferença
imanente, como seu dehors ou seu exercício transcendente. Além disto, o pensamento é
mobilizado por signos portadores de problemas e, por outro lado, o seu exercício
superior expressa seu encontro com Outrem, nem sujeito nem objeto, expressão de um
mundo possível. 330
Afinal o que é o campo do possível que o conceito de virtual combate? Segundo
a análise de Deleuze com Bergson, pensar em termos de possível e de real (perguntar
por que isto e não aquilo) é aprisionar-se num falso problema, ou, como já foi analisado,
num problema inexistente. Em todo o caso, paradoxalmente, o pensamento aprisiona-se
num falso problema, num problema inexistente que concerne a existência: a existência,
enquanto possível, é posta como precedendo o ato de sua criação. Do ponto de vista do
possível, indaga-se Deleuze,
devires minoritários que foge e constrói armas contra o poder que procede por normalização.
330
O conceito de outrem como expressão de um mundo possível, exposto no capítulo “Síntese assimétrica
do sensível” de Différence et répétition e retomado no início de Qu’est-ce que la philosophie?, não se
confunde integralmente com o conceito de virtual, mas é impensável sem ele. O possível tem, neste novo
contexto, outro sentido do possível que o virtual deve subtrair. Pois, para Deleuze os mundos possíveis
existem no mundo real. Neste sentido, o Outrem como expressão de um mundo possível remete à
dimensão virtual imanente aos objetos atuais.
331
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 273 (340).
postulados da imagem dogmática do pensamento. Conseqüência da naturalização do
pensamento, da interiorização da relação do pensamento com a verdade e do modelo da
recognição, a idéia do possível não faz sentido sem as pressuposições da verdade como
adequação da “substância pensante” com a “substância extensa” ou como imposição de
um forma lógica a uma matéria sensível, pressuposições que se atrelam aos postulados
de um sujeito uno e idêntico a si e de uma realidade dada (como númeno ou como
fenômeno) como idêntica a si. A suposição de uma realidade dada ou de mundo
verídico depende do postulado de uma transcendência (Deus) que assegure tanto a
identidade da realidade quanto a natureza do pensamento (a reminiscência das idéias
eternas, o inatismo das idéias claras e distintas ou o a priori das formas da sensibilidade
e das categorias do entendimento).
O possível realizando-se no espaço e no tempo como meios indiferentes faz da
experiência a realização de um possível posto como anterior à experiência. Desse modo,
a existência, concebida como realização do possível. não deixa de constituir-se como
ambiente propício para os julgamentos (sob esse aspecto comparável com o sono e o
sonho, tal como foi analisado na Introdução). Por sua vez os conceitos, tais como
definidos pela representação, não deixam de assemelhar-se às alegorias que ocupam a
existência, compondo-a como uma totalidade abstrata (articulada por falsas conexões,
vale dizer, comportando um agregado de elementos postos como separados, ou seja,
destituídos de suas conexões vitais, e, nesta medida, condenados à condição de
fantasmas ou abstrações). Segundo Deleuze, com a destruição dos símbolos que
povoavam o cosmos pagão, as alegorias induzem a existência ao sono e povoam o seu
sonho judicativo: “nós vivemos no máximo numa lógica das relações (Lawrence e
Russell não se suportavam). Da disjunção, fazemos um ou, ou. Da conexão, fazemos
uma relação de causa e efeito, ou de princípio a conseqüência. Do mundo físico dos
fluxos, abstraímos um reflexo, um duplo exangüe, feito de sujeitos, objetos, predicados,
relações lógicas. Extraímos assim o sistema do julgamento.” 332
Se o par “o possível” e “o real” pode ser percebido como elemento da doutrina
do julgamento que prolonga, na filosofia, o sistema do julgamento, os conceitos de
virtual e de atualização são criações filosóficas que atribuem novo sentido à existência
332
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 69 (63).
(não mais unidade verídica, mas multiplicidade problemática: expressão de dinamismos
espaço-temporais que dramatizam diferenças virtuais, as quais diferenciam-se na
atualização de relações diferenciais e na encarnação de pontos singulares), e aos
existentes (não mais pretendentes a uma orientação moral, mas potências, inseparáveis
dos problemas ou falsos problemas éticos, que exprimem). Conferem, ainda, os
conceitos de virtual e de atualização consistência filosófica à imanência do pensamento
ao pensamento e necessidade à subtração do par “o possível” e “o real”, que
compromete a filosofia com a transcendência.
O virtual não se confunde com o possível. Ele não se opõe ao real, mas ao atual.
Possui a realidade da Idéia (diferencial do pensamento), que é multiplicidade virtual e
seu processo não é a realização, mas a atualização. Em conseqüência, deve-se destacar,
com Deleuze, que enquanto o possível remete à forma de identidade no conceito, o
virtual refere-se a multiplicidade na Idéia, que se subtrai a toda identidade como
condição.
333
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 273 (340).
princípio do claro e do distinto. Princípio que afirma a proporcionalidade do claro e do
distinto e que torna o pensamento possível no exercício empírico das faculdades.
Contudo, o que ocorre se o problema for “retificado”, ou seja, quando se subtrai do
pensamento o par “o possível” e “o real” e, com ele, a perspectiva negativa, que elimina
todo ponto de vista criador?
A Idéia se atualiza por diferenciação em espécies e partes. Assim, toda coisa, diz
Deleuze, está no cruzamento de uma dupla síntese: de qualificação ou especificação, e
de partição, composição ou organização. Nesta medida, Deleuze pode defender que
“toda coisa possui duas ‘metades’ ímpares, não semelhantes e não simétricas, cada uma
delas se dividindo por sua vez em duas: uma metade ideal, que se prolonga no virtual e
constituída ao mesmo tempo por relações diferenciais e singularidades concomitantes;
uma metade atual, constituída, ao mesmo tempo por qualidades que encarnam essas
relações, e por partes que encarnam essas singularidades.” 335 O problema da atualização
consiste, pois, na determinação do agente dessa distinção e dessa complementariedade.
Segundo Deleuze, sob a organização e a especificação atuam dinamismos espaço-
temporais, que supõem um campo intensivo, uma distribuição de diferenças de
intensidade. Tal campo intensivo constitui um meio de individuação. Mas a
individuação exige mais que um meio para efetuar-se: é necessário que um diferenciante
da diferença (“precursor sombrio”) relacione as diferenças de intensidade, produzindo
fenômenos de ressonância interna no sistema. Além dessas condições que determinam
os dinamismos espaço-temporais que por sua vez asseguram as atualizações das
334
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 276 (343 e 344).
335
Gilles Deleuze, L’île déserte et autres textes, pág. 140.
qualidades e das extensões, deve-se dizer que tais dinamismos comportam sujeitos
muito especiais: sujeitos fluentes, larvares, “esboços, ainda não qualificados nem
compostos, antes pacientes que agentes, os únicos capazes de suportar a pressão de uma
ressonância interna ou a amplitude de um movimento forçado.” 336
O virtual e a atualização
336
Gilles Deleuze, L’île déserte et autres textes, pág. 136.
fenômeno remete a uma desigualdade que o condiciona. Toda diversidade e toda
mudança remete a uma diferença que é a sua razão suficiente. Tudo o que se passa e
aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferenças de nível, de temperatura, de
pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade.” 337 No entanto, como as
formas de energia sempre se apresentam no extenso, esse princípio transcendental
parece ser contrariado por uma tendência da diferença a anular-se no extenso. Deleuze
ultrapassa essa dificuldade considerando a diferença como essencialmente implicada
(assim compreendida ela não pode ser pensada anulando-se em si). Ao contrário,
argumenta Deleuze, a diferença de intensidade só se
Segundo Deleuze, neste caso, o fundamental é que o extenso não dá conta das
individuações que nele se fazem. Estas dependem de uma profundidade especial (o sem-
fundo intensivo) que se diz do espaço como quantidade intensiva. A este respeito, vale
dizer, a propósito das atualizações que se fazem no extenso, Deleuze sente necessidade
de correlacionar as sínteses espaciais com as sínteses temporais: “a explicação do
extenso repousa na primeira síntese, a do hábito ou do presente; mas a implicação da
profundidade repousa na segunda síntese, a da Memória e do passado. É preciso ainda
pressentir na profundidade a proximidade e a ebulição da terceira síntese anunciando o
‘afundamento’ universal.” 339 Deste modo, Deleuze aprofunda a idéia de dinamismos
espaço-temporais, pois, por um lado, esclarece que esses dinamismos se fazem na
337
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 286 (355).
338
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 294 (364 e 365).
339
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 296 (367).
articulação de duas séries distintas de sínteses (espaciais e temporais) e, por outro,
integra o problema da atualização da Idéia-vitual com a questão do eterno retorno da
Diferença.
Deleuze distingue o extenso, a grandeza extensiva, como termo de referência de
todas as extensio, da profundidade original, como o espaço inteiro, enquanto quantidade
intensiva. Com esta distinção pode-se retomar a crítica de Deleuze ao esquematismo
kantiano. Tal como se analisou no terceiro capítulo, deste trabalho, retomou-se no
quarto e também no quinto, Deleuze considera que, em Kant, o acordo cognitivo das
faculdades não é nem necessário, nem universal: sendo o transcendental decalcado
sobre o empírico, não pode ele ser o fundamento deste. Esta limitação revela-se no
interior do sistema kantiano, notadamente na questão do esquematismo, que Deleuze
contesta vigorosamente:
340
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 281 (349 e 350).
está em conexão, vale dizer, em condição de pressuposição recíproca com o problema
da gênese da experiência real, nem o tempo e nem o espaço podem ser reduzidos a
grandezas extensivas:
341
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 298 e 299 (370).
342
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 299 (372).
343
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 301 (374).
344
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 302 e 303 (375).
característica toma a forma do negativo (de limitação ou de oposição).” 345 Decorre
dessas considerações uma espécie de “regra prática” própria à ética das diferenças de
intensidade:
Este movimento que vai das oposições qualificadas à profundidade intensiva, e que não
deixa de ser um movimento de subtração: constituição... (subtração das oposições
qualificadas e constituição da profundidade) não é um movimento espontâneo: depende
de uma pedagogia, de uma distorção dos sentidos. Como diz Rimbaud, convocado por
Deleuze: “Chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos (…) um
longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos.” 347 Pedagogia afirmativa:
o acaso do encontro da sensibilidade com o ser do sentido, com a intensidade
independente do extenso e antes da qualidade deve ser afirmada por esse longo, imenso
e pensado desregramento dos sentidos.
Deleuze determina, então, o verdadeiro sentido da intensidade: não antecipação
da percepção, mas limite próprio da sensibilidade, do ponto de vista de um exercício
transcendente. Vê-se, mais uma vez, como o encontro da sensibilidade com seu objeto
próprio, o ser (do sensível), subtrai, ao pensamento, o senso comum, violenta e mobiliza
todas as faculdades num combate, no qual em que cada qual impele a outra ao seu limite
próprio (o seu ser próprio). Assim, cada faculdade conquista o seu objeto próprio (o seu
ser próprio), de modo que, do fundo desta discórdia, neste desregramento, emerge entre
345
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 303 (376).
346
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.. 303 (376).
347
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 47 (42).
elas um acordo-discordante, no qual, finalmente, o pensamento, no seu limite, encontra
o seu objeto próprio: a Diferença (ideal e de intensidade).
A intensidade que compreende o desigual em si afirma a diferença, tem por
última característica a sua imanência: ser uma quantidade implicada, implicada em si
mesma, portanto, devendo ser assim, a um só tempo, implicada e implicante. Deleuze
concebe a implicação como uma forma perfeitamente determinada: “Na intensidade,
chamamos diferença aquilo que é realmente implicante, envolvente; chamamos
distância aquilo que está realmente implicado, envolvido. Eis por que a intensidade nem
é divisível, como a quantidade extensiva, nem indivisível, como a qualidade.” 348
Deleuze pode assim concluir que a diferença, a distância e a desigualdade são as
características positivas da profundidade como spatium intensivo.
A definição deleuziana da intensidade, sua afirmação da intensidade, denuncia a
incompreensão e a ambivalência da crítica de Bergson à intensidade. Segundo a análise
de Deleuze, a inconsistência da crítica de Bergson à intensidade decorre do fato de que
Bergson, considerando as qualidades já estabelecidas e os extensos já constituídos e
buscando liberar a qualidade do movimento que a liga à contrariedade e à contradição,
coloca na qualidade todas as características da intensidade. Retomando a intenção de
Bergson de libertar o movimento e o tempo da contrariedade e da contradição, mas com
o cuidado de não romper a fidelidade de sua filosofia com a imanência e a univocidade,
Deleuze assume a distinção estabelecida por Bergson entre multiplicidades virtuais e
multiplicidades atuais e procura dissociar a crítica do negativo da crítica à intensidade.
Neste sentido, desfaz a falsa oposição entre diferenças de quantidade e de qualidade:
348
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 305 e 306 (379).
qualidade que vem recobri-la nesse extenso. Entre as duas há todos os
graus da diferença, sob todas as duas há toda a natureza da diferença:
o intensivo.” 349
349
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 309 (382 e383).
350
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 310 e 311 (385).
deve ser considerada como constituição do plano de imanência adequado à filosofia da
diferença — um plano de imanência cujo movimento dá ao pensamento uma natureza
seletiva e o orienta no sentido da criação de conceitos que forneçam consistência e
necessidade à seleção imanente da Diferença como Acontecimento que contra-efetua o
sistema e a doutrina do julgamento.
Enquanto princípio transcendental, o eterno retorno é princípio da experiência
real. Como compatibilizar esta idéia com a proposição, desenvolvida em Nietzsche et la
philosophie, de que a vontade de potência, enquanto princípio plástico e fluente, deve
ser concebida como princípio da experiência real? Deleuze não vê dificuldade nisto,
desde que se afirme a natureza intensiva do eterno retorno. Ele considera, por esse viés,
que existe uma relação fundamental entre o eterno retorno e a vontade de potência, uma
relação de pressuposição recíproca que faz com que um não possa ser dito a não ser do
outro: “A diferença é a primeira afirmação, o eterno retorno é a segunda, ‘eterna
afirmação do ser’, ou a enésima potência que se diz da primeira. É sempre a partir de
um sinal, isto é, de uma intensidade primeira, que o pensamento se designa. Através da
cadeia quebrada ou do anel tortuoso, somos violentamente conduzidos dos limites do
sentidos ao limite do pensamento, daquilo que só pode ser sentido àquilo que só pode
ser pensado.” 351 Deve-se sublinhar a imagem do “anel tortuoso”. Ela evidencia como,
para Deleuze, o eterno retorno envolve não apenas uma nova concepção do ser e do
pensamento, mas também uma nova idéia das relações entre o pensamento e o ser. O
eterno retorno determina entre ambas uma relação complexa que faz com que um passe
no outro, no momento mesmo em que a sua distância é afirmada como heterogênese
concomitante do ser e do pensamento e os reúne num acordo discordante. Cabe neste
momento repetir o que já foi, em outro momento, ressaltado: do ponto de vista dessa
nova ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é
vontade de potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem
realidade do mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o
real.” 352
Num mundo assim concebido, o que é a afirmação e o que é o ser? Deleuze
insiste, com Nietzsche: “Nietzsche não suprime o conceito de ser. Propõe do ser uma
351
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 313 (388).
nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação, nem um elemento
que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do ser, ao contrário. A
própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua potência.” 353
Contudo, se o ser é a afirmação, como falar em uma diferença que reúne o ser e o
pensamento num acordo discordante? Assumindo uma posição que dá prosseguimento
ao pensamento de Nietzsche, Deleuze não reconhece o pensamento como realidade,
como uma faculdade, uma natureza. Nem por isto, todavia, suprime ele o conceito de
pensamento. Propõe do pensamento uma nova concepção: o pensamento não é uma
faculdade representativa, mas potência criativa, não é uma natureza, é atividade que
devora a nossa natureza, e não é dado, antes tem sua gênese num acordo discordante
entre faculdades, quando estas conhecem a gênese de seu exercício superior. E neste
acordo tendo as faculdades conquistado o seu limite próprio, o seu ser próprio, reúnem-
se na sua diferença. O pensamento ativado por essa discórdia, afirmando esta
divergência, conquista como as demais faculdades sua imanência e sua potência
afirmativa do acaso (o encontro da sensibilidade com o ser do sensível e de cada
faculdade com seu objeto próprio), da diferença (como diferença de intensidade e da
diferença não apenas entre as faculdades, mas da diferença como objeto próprio que dá
a cada faculdade, no seu limite, o seu ser próprio) e do devir (como gênese do exercício
superior de cada faculdade e da própria gênese do pensar no pensamento como
heterogênese). Como afirmação múltipla, o pensamento conquista seu ser e afirma o ser
como a afirmação da afirmação.
Entretanto, não se deve esquecer que, segundo a interpretação deleuziana do
eterno retorno, a afirmação da afirmação é essencialmente seletiva. O eterno retorno não
diz que tudo retorna. Ao contrário, como pensamento seletivo que é, afirma que não
retorna tudo o que nega o eterno retorno, tudo que sucumbe à sua prova. Deleuze é
explicito e minucioso quanto ao que não retorna: “O que não retorna é a qualidade, é o
extenso — porque a diferença, como condição do eterno retorno, aí se anula. É o
negativo — porque a diferença aí se reverte para anular-se. É o idêntico, o semelhante e
o igual — porque constituem as formas da indiferença. É Deus, e o eu como forma e
garantia da identidade. É tudo o que só aparece sob a lei do “Uma vez por todas”,
352
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211/212.
353
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
estando aí compreendida a repetição quando submetida à condição de identidade de uma
mesma qualidade, de um mesmo corpo extenso, de um mesmo eu (assim a
“ressurreição”) …” 354
Precisando a hipótese inicial do capítulo anterior, segundo a qual a filosofia da
diferença encontra, no pensamento do eterno retorno — melhor, na interpretação
deleuziana do eterno retorno —, a vitalidade necessária e a forma adequada, seja para
interpretar outros sistemas filosóficos, seja para pôr, nos seus próprios termos, o
problema do sentido do pensamento, deve-se considerar o movimento seletivo-
subtrativo do eterno retorno como movimento que alça o plano de imanência da
filosofia da diferença a uma profundidade intensiva. Cabe aqui, a propósito da
existência assim afirmada, a mesma questão posta por Deleuze a propósito das
subtrações acionadas nas peças do teatro de Camelo Bene: mas o que resta ao fim desse
conjunto de subtrações? Resta tudo, diz Deleuze, desde que o pensamento exerça sua
potência constitutiva, povoando este plano de conceitos, perceptos e afetos ou mesmo
funções que apresentem uma outra consistência para a qualidade e a extensão: estas, a
qualidade e a extensão, são afirmadas quando ainda implicadas na ordem envolvente
das diferenças, num estado em que a qualidade fulgura como signo na distância ou no
intervalo de uma diferença de intensidade. 355 Assim, Deleuze pode concluir:
354
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 313 e 314 (389).
355
Convém lembrar aqui o conceito de imagem-cristal, desenvolvido mais tarde, em L’image-temps,
como imagem que apresenta em si uma diferença indiscernível entre o atual e o virtual.
com a reversão do próprio platonismo.” 356
356
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 314 (389 e 390).
as relações diferenciais a se atualizarem, de acordo com linhas de
diferenciação, nas qualidades e nos extensos que ela cria.” 357
Neste sentido, Deleuze pode dizer que o indivíduo precede a espécie, sendo o indivíduo
pensado como embrião, no campo de sua individuação. Se o indivíduo é um embrião, o
mundo (como campo de individuação) é um ovo. Com efeito, diz Deleuze, o ovo
fornece “o modelo da ordem das razões: diferençação-individuação-dramatização-
diferenciação (específica e orgânica).” 359
Não obstante a conquista da ordem das razões, Deleuze sabe que o fundamental
não foi ainda alcançado. Fiel às exigências da univocidade e da imanência, considera
que é preciso pensar o campo de individuação não como constituído por diferenças
portadas pelo indivíduo, mas por diferenças concebidas como individuais. A diferença
individuante deve ser uma diferença individual. Segundo Deleuze, estas condições se
dão na ordem de implicação das intensidades:
357
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 317 (393).
358
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 318 (394 e 395).
359
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 323 (399).
“As intensidades só exprimem e supõem relações diferenciais; os
indivíduos só supõem Idéias. Ora as relações diferenciais não são
ainda espécies (ou gêneros, ou famílias etc.), assim como seus pontos
relevantes não são ainda partes. Eles de modo algum constituem ainda
qualidades e extensões. Ao contrário, todas as Idéias coexistem
conjuntamente, todas as relações, suas relações e seus pontos, se bem
que haja mudança de ordem segundo os elementos considerados: elas
são plenamente determinadas ou diferençadas, mesmo que sejam
totalmente indiferenciadas. Este modo de ‘distinção’ pareceu-nos
corresponder à perplicação da Idéia, isto é, ao seu caráter
problemático e à realidade do virtual que ela representa. Eis por que o
caráter lógico da Idéia era ser ao mesmo tempo distinta-obscura. É
enquanto distinta (omni modo determinata) que ela é obscura
(indiferenciada, coexistindo com as outras idéias, ‘perplicada’ com
elas). Trata-se de saber o que acontece quando as Idéias são
exprimidas pelas intensidades ou pelos indivíduos nesta nova
dimensão que é a da implicação.” 360
360
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 324 e 325 (402).
quanto o distinto e o obscuro são inseparáveis na própria Idéia. Ao
distinto-obscuro, como unidade ideal, corresponde o claro-confuso
como unidade intensiva individuante. O claro-confuso qualifica não a
Idéia, mas o pensador que a pensa ou a exprime, pois o pensador é o
próprio indivíduo.” 361
É claro, deste modo, que o indivíduo percebe apenas um número limitado de fenômenos
claros, mas que a totalidade do mundo lhe aparece de modo obscuro. Deleuze gosta de
repetir o exemplo de Leibniz: uma infinidade de percepções obscuras compõem o
marulho, mas só percebemos claramente alguns barulhos de ondas. Com isto ele não
quer apenas afirmar que cada percepção é composta por micropercepções, mas
sobretudo que a sensação, não sendo dada na intuição como unidade já formada, é o
produto de uma gênese que atualiza uma diferença intensiva. Com efeito, Deleuze
enfatiza:
361
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 325 (402).
362
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 326 (403).
“todo corpo, toda coisa pensa e é um pensamento, na medida em que,
reduzida às suas razões intensivas, exprime uma Idéia cuja atualização
ela determina. Mas o próprio pensador faz de todas as coisas suas
diferenças individuais; é neste sentido que ele é encarregado das
pedras e dos diamantes, das plantas ‘e dos próprios animais’. O
pensador, o pensador do eterno retorno, sem dúvida é o indivíduo, o
universal indivíduo. É ele que se serve de toda a potência do claro e
do confuso, do claro-confuso, para pensar a Idéia em toda a sua
potência como distinta-obscura.” 363
Contudo, é preciso apreender esse dinamismo no seu sentido inverso. Não mais partindo
da Idéia (virtual) e da sua diferenciação ou da Intensidade e de sua explicação nos
extensos e nas qualidades que ela cria , ou seja, não mais no sentido do virtual ao atual,
mas no sentido do atual ao virtual, pois o pensamento não seria possível sem uma
abertura dos extensos atuais, sem a possibilidade do pensamento percorrer, nesse outro
sentido, o movimento criador. Sendo assim, é necessário afirmar que a individualidade
não é o caráter do Eu, mas que dado o caráter implicado da individualidade intensiva,
ela, como diz Deleuze, ao contrário, forma e nutre o sistema do Eu dissolvido. Não é,
portanto, do Eu (Je), nem do Eu (Moi) que se deve partir para percorrer o sentido que
leva o pensamento dos extensos atuais ao fundo intensivo e à Idéia. Como se situar, de
onde partir, ao que se expor?
Estas questões exigem um retorno à distinção proposta por Deleuze entre a
Intensidade como princípio transcendental e os extensos e as qualidades que ela cria e
submete à princípios empíricos. Cabe, agora, retomar e enfatizar os seguinte pontos: por
um lado, a Intensidade não se explica sem anular-se no sistema diferenciado que ela
cria (“qualquer que seja o domínio considerado, a anulação da diferença produtora e o
desaparecimento da diferenciação produzida continuam sendo a lei da explicação, lei
que se manifesta tanto no nivelamento físico, quanto na morte biológica.” 364 ); por outro
lado, não basta dizer que, se o princípio da degradação explica tudo, ele, no entanto, não
dá conta da criação dos extensos diferenciados, é preciso antes afirmar que os sistemas
363
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 327 (404).
364
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 329 (406).
diferenciados comportam valores próprios de implicação. Deleuze diz que esses
“valores próprios de implicação” constituem, nos extensos, centros de envolvimento,
vale dizer, representantes dos fatores intensivos individuantes nos extensos, em vias de
explicação.
Como já foi antecipado, Deleuze considera que, nos sistemas psíquicos, o Eu
(Je) e o Eu (Moi) não pertencem ao domínio da individuação-implicação, mas ao
domínio da diferenciação-explicação:
O pensamento não nasce no Eu, nem no Eu. Ao contrário, sua gênese se faz na
dimensão da individuação. É acionada pela violência do encontro da sensibilidade com
singularidades pré-individuais, e o que o pensamento pensa, no seu exercício superior,
senão as Idéias que racham o Eu e dissolvem o Eu? Neste sentido, se o indivíduo em
intensidade encontra sua imagem no Eu rachado e no Eu dissolvido, não tem cabimento
situar os centros de envolvimento dos sistemas psíquicos, os seus fatores intensivos
individuantes, no sistema Eu-Eu. Ao contrário, segundo Deleuze, estes centros de
envolvimento devem designar a estrutura outrem, na qual, Outrem a priori define-se
365
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 330 e 331 (408 e 409).
pelo seu valor expressivo, implícito e envolvente. Portanto, Outrem se furta tanto à
posição de objeto como a de sujeito e se define como expressão de um mundo possível.
Por expressão, Deleuze entende
366
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 334 (413).
atingir as regiões em que a estrutura-outrem já não funciona, longe
dos objetos e dos sujeitos que ela condiciona, para deixar que as
singularidades se desdobrem, se distribuam na Idéia pura e que os
fatores individuantes se repartam na pura intensidade.” 367
CAPÍTULO VII
O empirismo transcendental
“O plano de imanência é ao
mesmo tempo o que deve ser
pensado, e o que não pode ser
pensado. Ele seria o não-pensado
no pensamento. É a base de todos
os planos, imanente a cada plano
pensável que não chega a pensá-
lo. É o mais íntimo no
pensamento, e todavia o dehors
absoluto. Um dehors mais
longínquo que todo mundo
exterior, porque ele é um dedans
mais profundo que todo mundo
interior: é a imanência…” Gilles
Deleuze e Félix Guattari
367
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 360 e 361 (443).
Sabe-se o que significa, na história da filosofia, o empirismo tout court: uma
reação ao racionalismo que advogava a identidade do conhecimento com um saber a
priori. O racionalismo recusa o saber que se conquista na experiência, pois este jamais
satisfará a dupla exigência do conhecimento que se origina de uma fonte não empírica,
o conhecimento dos princípios primeiros, deduzidos pela razão (fonte auto-suficiente de
verdades eternas, porque lógicas): a necessidade e a universalidade. Contra o
racionalismo que afirma que todo saber verdadeiro é analítico e a priori, o empirismo
defenderá que todo conhecimento se compõe de proposições sintéticas, fundadas na
observação empírica, na experiência. A despeito de sua crítica ao racionalismo, o
empirismo compartilha com ele duas posições: de um lado, reconhece as insuficiências
e os limites do saber experimental (ocorre que, para o empirismo, não há outro saber
possível), de outro lado, acompanha o racionalismo na concepção do conhecimento
como processo intelectual, imanente ao espírito. Trata-se para sempre de relacionar
idéias ou representações, por análise (racionalismo) ou sinteticamente (empirismo).
Segundo Deleuze, o idealismo transcendental kantiano rompe tanto com o
racionalismo quanto com o empirismo. Kant, como foi analisado no capítulo “Deleuze e
a crítica”, caracteriza a razão como faculdade dos fins e equaciona os fins superiores da
razão com o sistema da cultura. Deleuze mostra como Kant afasta-se do empirismo (que
faz da razão um modo de realizar fins que são postos pela natureza) ao afirmar que há
fins da cultura e que estes são os fins da razão. Deleuze assinala também o afastamento
kantiano do racionalismo (que postula que os fins racionais são transcendentes) quando
Kant defende que a razão, ao colocar seus fins, toma a si própria como fim.
O relevante neste momento é salientar que a questão dos fins imanentes da razão
conjuga-se naturalmente com o problema de uma crítica imanente. Segundo Deleuze,
“O gênio de Kant, na Critica da razão pura, foi conceber uma crítica imanente”. 368
Pois, se os fins da razão são seus fins imanentes, a razão é que deve arrogar-se juiz de
seus próprios interesses: “uma crítica imanente, a razão como juiz da razão, eis o
princípio essencial do método transcendental.”369 A questão dos fins imanentes à razão
368
. Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104.
369
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 7 e 8 (13).
exprime o rompimento de Kant com a metafísica em aspectos fundamentais que,
conjuntamente, asseguram a definição do campo da filosofia transcendental kantiana.
Kant reverte o primado metafísico do infinito sobre o finito e determina uma finitude
constituinte composta por faculdades heterogêneas, que diferem em natureza. Esta
reversão manifesta-se na sua teoria do conhecimento, que rompe tanto com o
racionalismo quanto com o empirismo. Kant postula que, sendo o dado não uma coisa
em si, mas um conjunto de fenômenos, deve-se conceber o conhecimento como um
acordo do dado com o sujeito, da natureza com a natureza do ser racional. Deste modo,
como foi apresentado no capítulo “Deleuze e a crítica”, o conjunto dos fenômenos
“só pode ser apresentado como uma natureza por uma síntese a priori,
a qual só torna possível uma regra das representações na imaginação
empírica com a condição de constituir primeiramente uma regra dos
fenômenos na própria natureza. Assim, em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como
fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que
aquela das relações. As implicações do problema assim invertido são
as seguintes: há o a priori, isto é, deve-se reconhecer uma imaginação
produtora, uma atividade transcendental. A transcendência era o fato
empírico, o transcendental é o que torna o transcendente imanente ao
objeto = x. Ou, o que é o mesmo, algo no pensamento ultrapassará a
imaginação sem dela poder prescindir: a síntese a priori da
imaginação nos remete a uma unidade sintética da apercepção, que a
fecha.” 370
370
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs. 124 e 125 (124 e 125).
uma forma superior para cada faculdade, na qual elas encontram em si mesmas a lei do
seu exercício — sua autonomia —, no entanto ele sempre pensou que esta autonomia
dos interesses das faculdades só pode ser realizada num senso comum. Por esta razão,
Deleuze considera que, paradoxalmente, só um empirismo transcendental pode escapar
à tentação, não evitada pelo idealismo transcendental de Kant, de decalcar o
transcendental sobre o empírico. Deste modo, como foi analisado no capítulo “O
dogmático e o problemático”, Deleuze incorpora o conceito de transcendental, na
medida em que o redefine. Subtraindo do transcendental sua dependência ao ideal do
senso comum, ao modelo da recognição e à forma da doxa, Deleuze afirma um
empirismo superior (o encontro das faculdades, no seu exercício superior, com seus
objetos próprios) que lhe permite pensar o transcendental como campo de imanência, no
qual o devir das faculdades em um acordo discordante faz nascer o pensar no
pensamento.
371
Xavier Papaïs, “Puissances de l”artifice”, in. Philophie: Deleuze pág. 85.
reflexos, as sínteses da consciência, as platitudes do senso comum e
da lei, as hierarquias orgânicas e finalistas, as ordens transcendentes:
todas formas de classificação que organizam e legiferam sem exprimir
um conteúdo.” 372
372
Xavier Papaïs, “Puissances de l”artifice”. in. Philosophie, Deleuze pág. 89.
373
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 138 (137).
374
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (89).
O princípio da exterioridade das relações radicaliza-se na filosofia de Deleuze.
Ele significa que uma relação não é uma modificação relativa, mas uma modificação
intrínseca e absoluta, um devir. Desse modo, a afirmação da exterioridade das relações
permite a Deleuze subtrair de sua filosofia a questão da teoria do conhecimento e
constituir o problema da criação em filosofia. Este novo problema o conduz a distinguir,
não somente a partir de Hume (a exterioridade das relações), mas também com Bergson
e Riemann, dois tipos de multiplicidades: as multiplicidades atuais e as multiplicidades
virtuais. As primeiras (efeito do mais baixo grau do pensamento, apóiam a idéia de
experiência possível) organizam-se segundo relações interiores aos seus termos e,
assim, encontram nelas o princípio de sua métrica, constituem-se como um todo que
contém seus elementos como partes; as segundas (características da experiência real)
possuem outro tipo de consistência, afirmam a exterioridade de suas relações com
respeito aos seus termos, portanto, não podem conter suas diferenças como partes, estas
são diferenças de intensidade, concernidas por relações de envolvimento, e se subtraem
a qualquer centro ou parâmetro que permita submetê-las a uma métrica. As
multiplicidades virtuais se constituem de heterogêneos, e seu processo é uma
heterogênese. O problema da criação em filosofia conecta-se, pois, no empirismo
transcendental de Gilles Deleuze, tal como foi analisado no capítulo “O dogmático e o
problemático”, com a subtração ao pensamento de toda transcendência que possa
submetê-lo a qualquer centro ou parâmetro e com a constituição de uma teoria
diferencial do pensamento como multiplicidade virtual em heterogênese.
No que diz respeito à questão do transcendental, pode-se dizer que, da crítica
kantiana, Deleuze retoma este conceito, mas, desta feita, concebido como gênese
imanente do sentido. O empirismo transcendental subtrai do transcendental kantiano o
postulado de que as relações são interiores aos termos — em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como fenômenos, as coisas
supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que aquela das relações — e todos os
postulados da imagem dogmática do pensamento. Desse modo, o conceito de
transcendental conhece um devir quando dele se subtrai o pressuposto de uma
semelhança entre a natureza do objeto e a faculdade de conhecer, de uma
homogeneidade do fundamento e do fundado, e a figura do condicionamento. Adquire
um novo sentido quando se encontra com os problemas da gênese da experiência real e
da gênese do pensar no pensamento. Deleuze subtrai, assim, do transcendental kantiano
sua imanência ao sujeito, dito transcendental, e ao objeto, dito da experiência possível e,
em conseqüência, subtrai também a forma de uma consciência. O transcendental, do
ponto de vista de um empirismo transcendental, não pode ser decalcado das formas
empíricas ordinárias, deve ser conquistado pelo pensamento que se expõe, via o
procedimento de subtração: constituição… , à prova do seu eterno retorno como
heterogênese. Neste sentido, conceito de transcendental tem interesse para Deleuze
apenas na medida em que ele permite ao pensamento se dizer da imanência absoluta,
vale dizer, na medida em que o pensamento não mais se refere a nenhuma
transcendência (como, por exemplo, o sujeito transcendental kantiano). Se o
pensamento não se submete a nenhuma outra instância, ele contudo não pensa a partir
do nada. Do ponto vista de um empirismo transcendental há uma gênese do pensar no
pensamento, acionada por um encontro fortuito com um signo portador de problema.
A propósito da recusa deleuziana do racionalismo, do empirismo e do
transcendental kantiano, deve-se lembrar a advertência de Deleuze: “se o erro do
dogmatismo é sempre preencher o que separa, o do empirismo é deixar exterior o
separado; neste sentido, há ainda empirismo demais na Crítica (e dogmatismo demais
nos pós-kantianos). O horizonte ou o foco, o ponto ‘crítico’ em que a diferença, como
diferença, exerce a função de reunir ainda não é assinalado.” 375
Como se pode depreender desta passagem, o empirismo transcendental deve
conquistar esse ponto crítico em que a diferença como diferença exerce a função de
reunir. Como está escrito no capítulo “O dogmático e o problemático”, a teoria
diferencial do pensamento (componente do conceito de empirismo transcendental)
recusa o pensamento como cogitatio natura universalis e concebe a sua gênese (a
gênese do pensar no pensamento) como o efeito de um encontro da sensibilidade não
com a sensação, mas com um signo portador de problema, signo cuja violência mobiliza
a sensibilidade no sentido de um exercício transcendente, no qual a sensibilidade afirma
o seu devir e o seu objeto próprio: o ser do sensível. O devir da sensibilidade afeta as
demais faculdades que, conquistando também o seu devir, o seu exercício superior,
entram num combate, num jogo discordante que determina a gênese do pensamento
como heterogênese, vale dizer, como efeito de relações entre diferenças (as faculdades,
em seu exercício superior) que se reúnem em um acordo-discordante.
A teoria da Idéia virtual como diferencial do pensamento (outro componente do
empirismo transcendental) dá sentido e consistência à diferença na sua função de reunir
o que diferencia. Com ela se aprende que o virtual não é um outro mundo. Ao contrário,
é o conceito que abre os conjuntos deste mundo. Responde ao imperativo do combate
ao sistema e à doutrina do julgamento, deslocando o centro de gravidade da existência,
não mais referida nem a um além divino, nem a um possível lógico: o virtual é o
conceito que abre a existência, isto é, a experiência, às forças da imanência, ao seu
dehors. Mais amplamente: o virtual se constitui como fidelidade à imanência. Um
desejo imanente anima o combate ao julgamento que aciona o procedimento de
subtração: constituição... Assim mobilizado, o pensamento suprime os universais
abstratos em prol do devir como razão das multiplicidades virtuais. Mais concretamente:
as subtrações da manifestação, da designação e da significação constituem o virtual
como superfície do sentido, sendo o sentido afirmado como efeito do não-sentido e
regido por uma quase-causalidade ideal que escapa a toda necessidade causal. Deleuze,
ainda uma vez, retoma os estóicos para com eles afirmar que “as relações dos
acontecimentos entre si, do ponto de vista da quase-causalidade ideal ou noemática,
exprimem, em primeiro lugar, conseqüências não–causais, compatibilidades e
incompatibilidades alógicas”. 376 Assim, por esse viés, Deleuze constitui o virtual como
instância na qual se afirmam a divergência e a disjunção dos acontecimentos enquanto
tais.
Como compreender a possibilidade desta afirmação? Como pode a disjunção
analítica tornar-se sintética? Em primeiro lugar, a compatibilidade e a incompatibilidade
dos acontecimentos devem ser pensadas como compatibilidade e incompatibilidade
entre séries de singularidades de acontecimentos pré-individuais. Em segundo lugar, é
preciso saber que os acontecimentos, que resultam da subtração da manifestação, da
designação e da significação, não se reportam a um Eu (não supõem a inerência de um
predicado a um sujeito individual), não se referem ao mundo (compreendido como
conjunto de multiplicidades atuais) e não se confundem com conceitos (compreendidos
375
Gilles Deleuze, Différence et répétition , pág. 221 (278 e 279).
376
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. (177)
como significação). Os acontecimentos são virtuais. Na medida em que virtuais, os
acontecimentos devem afirmar suas divergências e suas disjunções. Mas o que quer
dizer isto, a afirmação da divergência e da disjunção? Deleuze esclarece:
377
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 202 (178 e 179).
afirma: é uma outra cidade, as cidades sendo somente unidas por sua
distância e ressoando só pela divergência de suas séries, de suas casas
e de suas ruas. E sempre uma outra cidade na cidade. Cada termo
torna-se um meio de ir até o fim do outro, seguindo toda sua distância.
A perspectiva — o perspectivismo — de Nietzsche é uma arte mais
profunda que o ponto de vista de Leibniz; pois a divergência cessa de
ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de ser um meio de
separação, o incompossível é agora um meio de comunicação”. 378
378
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 203 (179 e 180).
379
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 206 (182).
380
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 206 (182).
comunica consigo por sua própria distância, ressoando através de todas suas
disjunções”. 381
A teoria da atualização da Idéia virtual como diferenciação, a determinação do
campo de individuação como domínio de diferenças de intensidades que se
desenvolvem em extensos e nas qualidades, bem como a afirmação da “estrutura
outrem” que determina outrem como um centro de envolvimento de intensidades nos
extensos (outros tantos componentes do conceito de empirismo transcendental),
asseguram consistência à síntese assimétrica do sensível e exprimem, também, na
atualização, a diferença na sua função de reunir o que diferencia.
A teoria da Idéia e da atualização conduz à afirmação de que não há objeto
puramente atual. Pois, segundo Deleuze, quando um atual rodeia-se de virtualizações, a
atualização pertence ao virtual, o plano de imanência compreende o virtual e sua
atualização: “a atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o próprio atual é a
individualidade constituída. O atual cai para fora do plano [de imanência] como fruto,
ao passo que a atualização o reporta ao plano como àquilo que converte o objeto em
sujeito”. 382 Além deste primeiro movimento, Deleuze considera ainda um movimento
inverso: não mais o movimento que vai do atual ao virtual, mas o movimento do virtual
que se aproxima de um atual. Neste caso, no plano de imanência aparecem cristais, nos
quais o atual e o virtual coexistem. “Não é mais uma atualização, mas uma cristalização.
A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente
correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito. Não há mais inassinalabilidade
do atual e do virtual, mas indiscernibilidade entre os dois termos que se
intercambiam.” 383
Deleuze considera que, em todos os casos, a distinção entre o virtual e o atual
corresponde à cisão temporal entre fazer o tempo passar e conservar o passado. Deste
modo, correlaciona sua teoria do virtual e do atual com sua teoria das três sínteses do
tempo que culmina com a terceira síntese do tempo como futuro, vale dizer, como devir
que se afirma na repetição do eterno retorno da diferença. Mas como compatibilizar a
afirmação do virtual e de sua atualização com a idéia de que o eterno retorno expulsa,
381
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 207 (182).
382
Gilles Deleuze, “O atual e o virtual”, in. Eric Alliez, Deleuze, filosofia virtual, pág. 51.
383
Gilles Deleuze, “O atual e o virtual”, in. Eric Alliez, Deleuze, filosofia virtual, pág. 54.
no seu movimento, as sínteses do presente (síntese do hábito) e do passado (síntese da
memória)? Como já se viu, segundo a interpretação deleuziana de Nietzsche, o eterno
retorno afeta apenas o novo, o acontecimento. Para Deleuze, mesmo que o novo seja
produzido sob a condição da falta (a tarefa excessiva) e da metamorfose (o devir do
agente que o torna à altura da tarefa a realizar), a sua repetição exclui o retorno da
condição (o tempo como passado) e do agente (o tempo como presente), fazendo
retornar apenas o terceiro tempo da série, o tempo como futuro, repetição que subtrai o
suposto poder do passado e do presente. Mas o eterno retorno não submete o próprio
passado e o próprio presente à sua prova? Não saem passado e presente do eterno
retorno tão desmembrados como a Verdade e Dioniso? Neste sentido, é possível pensar
um passado e um presente do tempo como futuro. Um passado e um presente
descentrados, um passado — não mais como um antigo presente —, mas como
multiplicidade de coexistência virtual, e um presente — não mais ordenado por
esquemas sensórios motores — que, sempre cindido em passado e futuro, furta-se ao
atual e se abre para a forma pura e vazia do tempo.
Deve-se, neste sentido, salientar que a filosofia da diferença de Gilles Deleuze,
ao afirmar um empirismo transcendental, afasta-se da problemática que animou na
filosofia o desejo de uma teoria do conhecimento. Não se trata mais de estabelecer as
condições do conhecimento e do julgamento, pois este pensamento não mais deseja
julgar, nem conhecer. O empirismo transcendental expressa esse novo desejo filosófico,
desejo imanente como criação de imanência. O seu problema é então sustentar, na
filosofia, a vertigem filosófica: a imanência. Sua condição crítica: que a univocidade do
ser determine o transcendental como imanência da imanência. Nessa nova configuração
noológica, o ser não se diz mais do sujeito ou do objeto, mas para além da moral e de
suas oposições metafísicas — o Bem e o Mal, o Um e o Múltiplo, o Indeterminado e a
Ordem, o Histórico e o Eterno, a Origem e o Telos… Diz-se da afirmação como
afirmação da afirmação e da vida como uma vida. A vida como uma vida… se
conquista por subtração: constituição… — subtração de toda identidade pessoal e de
toda classificação categorial: constituição de uma potência impessoal…
A despeito das manifestações da diferença na sua potência de reunir o que
diferencia, fica ainda a questão: como Deleuze compreende o horizonte ou o foco, o
ponto “crítico” em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir? De
acordo com a terminologia do último ensaio de Deleuze (“L’immanence: une vie…”),
esse ponto crítico deve situar-se num campo transcendental pensado como um campo de
imanência absoluta. 384
O que é uma imanência absoluta? Segundo Deleuze ela é em si mesma, subtrai-
se de toda transcendência (objeto ou sujeito) à qual seria atribuída:
Deleuze afirma assim que a imanência absoluta, como potência completa, é uma
vida. Deste modo, define o campo transcendental por um plano de imanência e o plano
de imanência por uma vida. Neste sentido, ao elevar o artigo indefinido ao estatuto de
índice do transcendental, faz do empirismo superior um empirismo transcendental que
articula a Idéia — que, como diferencial do pensamento, constitui universais concretos
—, com uma ética do impessoal. Como foi analisado, a Idéia (como diferencial do
pensamento) subtrai constantes, dissolve os universais abstratos (padrões majoritários)
ao mesmo tempo em que se constitui como multiplicidade virtual. Há em Deleuze uma
Idéia da vida como uma vida… Ora, esta Idéia, como toda idéia, constitui-se por
subtrações, por derivações que compõem um movimento que, por sua vez, libera a vida
384
Neste ensaio, Deleuze define o que é um campo transcendental: “Ele se distingue da experiência, na
medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se
apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal,
duração qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o transcendental se defina
por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do
sujeito e do objeto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não se
trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação não é mais que um corte
na corrente da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da
passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será
necessário, como conseqüência, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem
objeto nem eu [moi], enquanto movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção
espinosista dessa passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).”
385
Gilles Deleuze, “L’immmance: une vie…”, in: Philosophie numéro 47, Gilles Deleuze, pág. 4.
de todas as ficções que a aprisionam no Eu da manifestação, no Mundo da designação e
no Deus da significação. Uma vida como correlato de um devir minoritário revela que o
empirismo transcendental de Gilles Deleuze não se separa de uma ética do
acontecimento que efetua uma afirmação da afirmação, vale dizer, afirmação da
imanência absoluta — imanência ela própria uma contra-efetuação do sistema e da
doutrina do julgamento que se repete na prova ontológica do eterno retorno, na qual,
como se viu, o mais alto pensamento afirma o ser como seleção que, por sua vez, afirma
o ser do devir. Deleuze nomeia o ser do devir: uma vida… Uma vida como
multiplicidade virtual anima um perspectivismo descentrado de toda transcendência,
uma imanência absoluta cuja consistência se faz como síntese disjuntiva de
virtualidades, acontecimentos e singularidades. Este perspectivismo integral faz da
filosofia uma arte da contra-efetuação das transcendências que se erguem no interior do
plano de imanência.
O empirismo transcendental não é uma teoria do conhecimento. Ele é um devir
do empirismo quando dele se subtrai a eminência do problema do conhecimento. Se ele
se afasta, como o empirismo, do racionalismo, ao subtrair a razão como fonte auto-
suficiente dos princípios, ele também recusa o elemento da sensação (empirismo
simples), pois, segundo Deleuze, a sensação não é mais do que um corte na corrente da
consciência absoluta. Desse modo, se o pensamento não começa pela razão nem pela
sensação, como compreender o seu movimento? Se o empirismo transcendental subtrai
do campo transcendental o sujeito e o objeto, não resta opção ao pensamento senão a
afirmação do devir das sensações. Mas o que isto significa? Como se viu, Deleuze
assim esclarece: “Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da
passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência
(quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo
transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto
movimento que não começa nem termina?” 386 Evidencia-se, assim, a máxima metódica
do empirismo transcendental: tomar as coisas pelo meio.
386
Gilles Deleuze, “L’immanance; une vie …
Univocidade e imanência
387
Cf. Alain Badiou, "De la Vie comme nom de l’Être", in Rue Descartes n.º 20, pág. 28. Nesse ensaio,
Badiou, observa que, para Deleuze, o caminho da imanência é o mesmo que o da univocidade: “Deleuze
me escreveu um dia, em letras maiúsculas: Univocidade = Imanência.”
388
Para maiores esclarecimentos sobre esta questão refira-se, além de Logique du sens e Différence et
répétition e Mille plateaux, à aula de Deleuze em Vincennes 14 de janeiro de 1974, disponível da
Internet.
proporcionalidade, tem uma afinidade com a analogia matemática. A primeira é serial e
a segunda é estrutural. Contudo, segundo Deleuze e Guattari:
O fundamental para Deleuze é que todo o conjunto das noções da analogia está
necessariamente ligado com a noção de categoria. Em que sentido as categorias fazem
parte da concepção analógica? Como se viu, as categorias são conceitos que se dizem de
todos os objetos da experiência possível (Kant) ou conceitos que se apresentam como os
diferentes sentidos da palavra ser (Aristóteles). Segundo Deleuze, só é possível para um
pensamento proceder por categorias se ele pressupuser a idéia de que o ser é análogo,
vale dizer, de que o ser se diz de tudo aquilo que ele se diz de um modo analógico. Mais
ainda:
389
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, pág. 287 (vol. 4, pág. 14).
390
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 386 (473).
No que diz respeito à univocidade, Deleuze remonta a Duns Scot, que foi o
primeiro, segundo ele, a afirmar que o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo
aquilo que ele se diz. Contudo, ainda segundo Deleuze, Duns Scot concebeu o ser
unívoco como neutro, indiferente ao infinito e ao finito, ao singular e ao universal, ao
criado e ao incriado, ou seja, concedeu à univocidade somente um sentido metafísico.
“Duns Scot merece, pois, o nome de ‘doutor sutil’, porque seu olhar discerne o ser
aquém do cruzamento do universal e do singular. Para neutralizar as forças da analogia
no juízo, ele toma a dianteira e neutraliza antes de tudo o ser num conceito abstrato.” 391
Na verdade, a univocidade integral deve excluir toda diferença categorial entre os
supostos sentidos do ser. Assim, rigorosamente, se o ser unívoco se diz no mesmo
sentido de tudo o que é, a univocidade (como pensamento ontológico) subtrai do ser
toda diferença de substância, toda diferença de forma. Ainda uma vez, dada a
radicalidade da potência subtrativa da univocidade, que, na sua dimensão seletiva,
exclui do ser as diferenças de categorias, de formas, de gênero e de espécie, impõe-se a
questão: o que resta, que diferenças pode haver entre os entes para um pensamento que
se afirma como pensamento do informe, do não específico, do não genérico? Ora, se a
univocidade subtrai do ser as diferenças que exprimem uma analogia entre os supostos
sentidos do ser, ela não o faz sem constituir-se como pensamento que afirma que o ser
unívoco (que se diz em um só e mesmo sentido de tudo o que se diz) se diferencia em
graus de potência, só admite diferenças de grau: tudo o que é remete a um grau de
potência.
A univocidade do ser só pode admitir no ser, entre os entes, diferenças de grau
(de graus de potência). Deste ponto de vista, deve-se considerar as diferenças de forma,
de gênero e de espécie como falsas-diferenças, vale dizer, como ilusões decorrentes de
falsos-problemas e, assim, como secundárias (do mesmo modo, a analogia deve ser
compreendida como expressão de um falso-problema ontológico). 392 De acordo com
Deleuze, o pensamento dos graus de potência evita as classificações em gêneros e
espécies e diferencia os existentes segundo os agenciamentos em que cada qual é capaz
de entrar.
391
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. (81)
392
Em Différence et répétition, Deleuze mostra como a representação e suas figuras, a analogia entre elas,
devem ser compreendidas como ilusões (que se convertem em erros) geradas pelo movimento do eterno
Deleuze considera Espinosa como o filósofo que soube afirmar a univocidade:
“em vez de pensar o ser unívoco como neutro ou indiferente, fez dele um objeto de
afirmação pura. O ser unívoco se confunde com a substância única, universal e infinita:
é posto como Deus sive Natura.” 393 Neste sentido, em Espinosa, a afirmação culmina
em contemplação, na contemplação da necessidade da natureza.
Deleuze gosta de imaginar Espinosa contemplando os seres e as coisas (sem a
mediação das categorias) não como órgãos, formas, gêneros e espécies, mas como
diferenças de graus de potência. Espinosa afirmou a univocidade integral, vale dizer,
considerou que o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo o que ele se diz. Em
conseqüência, concluiu que os seres, não podendo se distinguir por sua forma, seu
gênero ou sua espécie, se diferenciam por graus de potência. Graus de potência que,
segundo Espinosa, remetem ao poder do corpo de ser afetado, aos afetos ou intensidades
de que um ser é capaz. É relevante salientar que, segundo Deleuze, potência e grau de
potência não se referem mais ao mundo da analogia. A potência não se distingue mais
do ato: o poder de ser afetado é sempre necessariamente preenchido. Mas se ele está
sempre preenchido, preenche-se de maneiras diferentes. Não em decorrência de uma
suposta natureza dos seres, mas em função dos agenciamentos em que se situam, dos
encontros que efetuam. Na dependência de seus encontros, um grau de potência é
afetado de modo que sua potência de agir e de existir aumenta (alegria) ou diminui
(tristeza). Deleuze sublinha, a partir de Espinosa, a diferença ética entre alegria e
tristeza e sua correlação com a diferença entre potência e poder. A efetuação de uma
potência (alegria) distingue-se do poder como limitação da potência de efetuar-se
(tristeza).
Apesar de Deleuze considerar Espinosa como o filósofo que soube afirmar a
univocidade integral, isto não o impede de assinalar um limite do espinosismo: nele, o
unívoco não foi objeto de uma afirmação pura. Para isto, segundo Deleuze,
retorno. Cf. Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 384 a 386 (470 a 473).
393
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 82.
um pelo qual o ser se diz em vários sentidos, mas outro pelo qual ele
se diz de algo fixo e bem determinado, a univocidade, por sua vez,
tem dois aspectos totalmente opostos, segundo os quais o ser se diz
‘de todas as maneiras’ num mesmo sentido, mas se diz assim daquilo
que difere, se diz da própria diferença, sempre móvel e deslocada no
ser. A univocidade do ser e a diferença individuante têm um liame,
fora da representação, tão profundo quanto o da diferença genérica e
da diferença específica na representação do ponto de vista da analogia.
A univocidade significa : o que é unívoco é o próprio ser e o que é
equívoco é aquilo de que ele se diz. Justamente o contrário da
analogia. O ser se diz segundo formas que não rompem a unidade de
seu sentido; ele se diz num mesmo sentido através de todas as suas
formas — eis porque opusemos às categorias noções de outra
natureza. Mas aquilo de que ele se diz difere, aquilo de que ele se diz é
a própria diferença. Não é o ser análogo que se distribui nas categorias
e reparte um lote fixo aos entes, mas os entes que se repartem no
espaço do ser unívoco aberto por todas as formas. A abertura pertence
essencialmente à univocidade.” 394
394
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 388 (474 e 475).
por todas. A seleção se faz entre repetições: aqueles que repetem
negativamente, aqueles que repetem identicamente serão eliminados.
Eles só repetem uma vez. O eterno retorno só existe para o terceiro
tempo. (…) O eterno retorno só existe para a terceira repetição, na
terceira repetição.” 395
Segundo a teoria deleuziana das três sínteses temporais, a terceira repetição diz
respeito à terceira síntese do tempo, significa a repetição como síntese do tempo como
futuro. Na temporalidade constituída pela terceira síntese do tempo, só a afirmação
seletiva retorna: dela estão excluídos o negativo, o idêntico, o mesmo e o semelhante, o
análogo e o oposto. Qual é o conteúdo deste terceiro tempo? Deleuze responde que o
que se repete são individualidades impessoais e singularidades pré-individuais e que,
neste sentido, o conteúdo afetado pelo eterno retorno é o sistema do simulacro. Sendo
assim, cabe ressaltar a novidade da relação entre a ontologia da univocidade do ser e a
filosofia da natureza: a prova do eterno retorno, ao selecionar o que se subtrai ao
sistema e à doutrina do julgamento, reintroduz na natureza a abertura e a vitalidade da
repetição que se diz da diferença. Não havendo mais transcendências a serem imitadas,
modelos a serem copiados, torna-se impossível postular quaisquer relações de analogias
entre os entes. Os existentes são então selecionados como potências e, nesta medida,
distribuem-se no campo aberto da vontade de potência de tal modo que suas relações só
podem ser relações de devir. Deve-se destacar ainda uma outra dimensão desta filosofia
da natureza. Esta define-se como sistema do simulacro que, do ponto de vista da
hipótese central desta tese, deve ser compreendido como contra-efetuação filosófica do
sistema do julgamento. Além deste aspecto, a filosofia da natureza tem o estatuto de
uma construção, é constituída como efeito da repetição no eterno retorno, ou seja, como
expressão de uma decisão ética. Constitui-se como sentido que se atribui à natureza,
como contra-efetuação do sistema do julgamento, como criação conceitual e não como
reconhecimento de uma ordem previamente já dada.
Como se vê, no empirismo transcendental de Deleuze, a univocidade do ser se
conquista efetivamente no movimento seletivo do eterno retorno. E, como se dá no
pensamento de Deleuze este encontro da univocidade com a imanência? Esse encontro,
395
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 381 (467 e 468).
essa identidade é produzida pelo movimento da filosofia deleuziana que, de um lado,
seleciona o singular na afirmação do universal e, de outro lado, afirma que o universal
concreto (a Idéia como diferencial do pensamento) se conquista, como se viu no
capítulo “Idéia e atualização”, por derivação, vale dizer, por subtração de constantes
(das ficções da universalidade abstrata e da generalidade): constituição de
singularidades, diferenças pré-individuais e impessoais. Não é este, aliás, o sentido da
seleção no eterno retorno? O que significa fazer a substância girar em torno dos modos
senão afirmar, quando a repetição se diz da diferença, que o universal se diz no e do
singular?
396
Cf. Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 23 (24).
397
“O signo é a presença/ausência da coisa. O que é também a definição hegeliana do desejo. O desejo
como o signo é a presença no sujeito da coisa ausente (e desejada). O ‘significante’ do desejo, dir-se-á,
será, então, o significante da falta (= a marca da falta…) e este último será o significante do significante.
O destino do desejo e aquele do significante estão ligados no destino da representação, com seu dualismo
e sua dimensão de ausência. Eis porque L’Anti-Œdipe, que exibe, no centro de sua orientação, a crítica de
uma tal concepção do desejo, será necessariamente conduzido àquela do significante e da linguagem,
problemática que só se concluirá em Mille plateaux.” Philipe Mengue, Gilles Deleuze ou le sistème du
multiple, pág. 54.
como elemento do sistema do julgamento, 398 resulta em L’Anti-Œdipe, mais do que
simplesmente numa crítica à psicanálise, na criação do conceito de desejo como
imanente a si próprio. Tanto esta crítica quanto esta criação operam por subtração:
constituição... e se fazem determinando uma nova série de problemas que mobilizam a
criação de novos conceitos: o que são o inconsciente, o corpo do desejo, a história
universal, para um pensamento que afirma o acaso, o devir e multiplicidade, fiel à
construção de uma imanência radical do pensamento ao pensamento? A subtração do
pressuposto da representação, da falta, articula-se com a criação dos conceitos de desejo
maquínico (o delírio, o desejo, é histórico-mundial e não familiar), e com a
determinação do inconsciente como fábrica e não como teatro (questão de produção e
não de representação). Também o conceito de corpo do desejo deve ser construído
(questão de produção) com as subtrações dos estratos que constituem o organismo. A
história universal torna-se contingente, recorrente, crítica e irônica. Os fluxos, que são
objeto da história, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas e
descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos
independentes. Contudo, conforme Philipe Mengue, a observação final de Jean-François
Lyotard, 399 em “Capitalisme énergumène”, teria sensibilizado Deleuze e Guattari, que
buscaram, então, escapar, em Mille plateaux, do mais difícil: da tripartição metafísica
entre o mundo (como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância
representativa), e o sujeito (como estrutura enunciativa).
Mille plateaux radicaliza o movimento pela imanência, põe novos problemas e
398
No L’abcderaire Deleuze refere-se à importância do conceito nietzschiano de sacerdote como conceito
fundamental para o esclarecimento de um aspecto importante do sistema do julgamento, a saber, o poder
sacerdotal. Ele assinala que este conceito retorna, na obra de Foucault, a propósito de sua teoria do poder
pastoral. Considera que ele próprio retoma este conceito, à sua maneira, na crítica feita à psicanálise no
L’Anti-Œdipe.
399
“Um pensamento é aquilo em que a posição energética se esquece representando-se. A teatralidade é
tudo o que o pensamento pode denunciar no pensamento, pode criticar. Um pensamento poderá sempre
criticar um pensamento, poderá sempre exibir a teatralidade de um pensamento, repetir o desvio. Mas no
entanto passa-se qualquer coisa, porque os pensadores não podem criticar enquanto essa qualquer coisa
não tiver entrado no pensamento teatralizável. O que se passa é um deslocamento. (…) O que é
importante não é o discurso sobre a metafísica que é o discurso da metafísica. A metafísica é a potência
do discurso em potência em qualquer discurso. O que interessa é que ele muda de cena, de dramaturgia,
de lugar, de modalidade de inscrição, de filtro, portanto de posição libidinal. Os pensadores pensam a
teatralidade metafísica, no entanto a posição do desejo desloca-se, o desejo trabalha, começam a trabalhar
novas máquinas (…) Esse transporte da força não pertence ao pensamento nem à metafísica. O livro de
Deleuze e Guattari representa no discurso esse transporte. Se só entendermos a sua representação,
perdemos: teremos razão no interior dessa figura, segundo os critérios desse dispositivo.” J.F. Lyotard in
Carrilho, Manuel Maria (org.). Capitalismo e esquizofrenia. Dossier Anti-Édipo, págs 133 e 134.
repete diferentemente, inovando portanto, problemas já esboçados nos livros
precedentes e fazendo avançar o trabalho de criação de uma nova imagem do
pensamento e de uma escrita construtivista.
Deste modo, Mille plateaux, que compartilha com L’Anti-Œdipe o sub-título
Capitalisme e schizofrénie, não é uma continuação linear das teses propostas no livro
de 1972: de um volume a outro há mudança de tom e avanços da criação. Mesmo que se
pudesse imaginar que o Anti-Oedipe tivesse como subtítulo Pela filosofia, nele a
construção ético-filosófica se faz através de uma crítica. Mille plateaux, ao contrário, é
um livro fundamentalmente positivo: não se está mais diante de uma crítica do Édipo, e
sim da construção do conceito de multiplicidade, para além da oposição do Um e do
Múltiplo, dos dualismos da consciência e do inconsciente, da natureza e da história, do
corpo e da alma.
Como dizem seus autores no Prefácio para a edição italiana de Mille plateaux,
reproduzido na edição brasileira:
400
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs, vol. 1, pág. 8.
a noção de desejo como falta; e não aceita qualquer transcendência — seja na origem,
como idéia ou modelo, seja no destino, como sentido historicamente desenvolvido. A
perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade fazem do pensamento uma
atividade ética — sem modelos e finalidades transcendentes — avessa a qualquer
conforto moral ou orientação histórica.
Mille plateaux pode ser aqui tomado como exemplo de funcionamento do
empirismo transcendental, do pensamento como combate e experimentação. É que a
forma de sua composição deixa evidente a característica fundamental do sistema da
filosofia da diferença como multiplicidade em perpétua heterogeneidade e em
heterogênese. Cada platô remete a um ou mais problemas que se desenvolvem nos
conceitos que nele se criam mediante o procedimento de subtração: constituição... Além
disto, os platôs, aparentemente independentes, constituem um sistema de múltiplas
ressonâncias uma vez que seus problemas são postos pela questão maior do combate ao
julgamento e que os conceitos que desenvolvem estes problemas buscam dar
consistência ao combate pela imanência absoluta. Os conceitos tornam-se concretos
quando articulados aos problemas que desenvolvem e os problemas, por sua vez, se
precisam quanto relacionados à questão imperativa do combate ao sistema e à doutrina
do julgamento. Neste sentido, cada platô pode ser compreendido como uma contra-
efetuação filosófica do sistema e da doutrina do julgamento.
Os conceitos, para Deleuze e Guattari, devem determinar não o que é uma coisa,
sua essência, mas antes suas circunstâncias. Explica-se, assim, que cada platô —
conceito tomado de empréstimo a Bateson, que designa uma estabilização intensiva e,
no caso, uma multiplicidade conceitual — possua um título relacionado a uma data. Os
títulos enunciam um campo de problemas, e as datas indicam que se pretende
determinar a potência e os modos de individuação de um acontecimento. Apesar de cada
platô pôr seu problema próprio, observa-se uma característica comum a todos:
constituem-se como um mapeamento, cujos movimentos descrevem um percurso: parte-
se do interior de um ou mais estratos e de seus dualismos na direção de suas condições
de existência, das “máquinas abstratas” que os efetuam e os determinam como
atualizações; simultaneamente, os estratos são associados aos agenciamentos de poder
que lhes são anexos e primeiros; por fim, num outro giro, o pensamento contorna as
máquinas abstratas e as relaciona com um plano de consistência, ao qual se acede por
desestratificação: revelam-se, assim, nesse percurso, a heterogeneidade, a coexistência,
as imbricações e a importância relativa das diferentes linhas que compõem uma
multiplicidade. No entanto, o fundamental é salientar que os problemas colocados e os
conceitos desenvolvidos têm o sentido de dar consistência ao prolongamento do
combate pela imanência.
Como pensar a unidade e a abertura de um sistema filosófico (rizoma) que se
afirma como pensamento da multiplicidade? Na Introdução: Rizoma, os autores
recusam o pensamento como representação, sua lei da reflexão e da unificação, e
apresentam Mille plateaux como livro-rizoma que, abolindo a tripartição entre o mundo
(como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância representativa), e
o sujeito (como estrutura enunciativa), é capaz de conectar-se com as multiplicidades. A
escrita rizomática define-se pela operação de subtração dos pontos de unificação do
pensamento e do real, realiza um mapeamento e uma experimentação no real, que
contribui para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das
multiplicidades sobre um plano de consistência.
O platô seguinte, 1914 — Um ou vários lobos?, consiste em uma crítica da
psicanálise que aprofunda as reflexões iniciais sobre o conceito de multiplicidade. O
terceiro platô, 10.000 A.C. — A geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?),
retoma a questão de uma ontologia que se subtrai à imagem de um mundo verídico,
concebido como um Todo ordenado pelo Um. Apresenta a ontologia como geologia das
multiplicidades constituídas por movimentos de estratificação e desestratificação que se
conjugam com movimentos de territorialização e desterritorialização traçados por
máquinas abstratas que operam sobre diversos planos de consistência.
A questão sobre o que deve ser a linguagem para uma filosofia da imanência cujo
intuito é subtrair os postulados da imagem dogmática do pensamento que domina a
filosofia da representação organiza dois platôs fundamentais: 20 de novembro 1923 —
Postulados da linguística; 587 A.C. — Sobre alguns regimes de signos. Evitando
pressupor qualquer relação de representação e de causalidade — material ou simbólica
— entre os sistemas de signos e os sistemas maquínicos dos corpos, Deleuze e Guattari
criticam os postulados de base do estruturalismo e da teoria marxista da ideologia.
Atacam os pressupostos da semiologia, questionando o primado da comunicação e
propondo a “palavra de ordem” como função primeira da linguagem; criticam a
distinção langue/parole e destronam a independência e autonomia da langue com os
conceitos de agenciamento coletivo de enunciação e regimes de signos; finalmente, não
admitem uma semiologia geral, negando qualquer privilégio de um regime de signos
sobre os outros.
28 novembro 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos retoma e
desenvolve o conceito de Corpo sem Órgãos, proposto em Logique du sens e reativado
em L’Anti-Œdipe, conceito que permite pensar o desejo como processo que produz o
campo de imanência de seus agenciamentos, evitando a dependência da idéia do corpo
como origem das necessidades e lugar dos prazeres, ao mesmo tempo em que define um
centro de perspectiva impessoal, pré-individual (como idiossincrasia das forças em
metamorfose) adequado à idéia do perspectivismo (como verdade do relativo) que a
filosofia da diferença quer conquistar.
A questão que dá sentido ao platô Ano Zero – Rostidade é a questão do combate
ao sistema do julgamento, especialmente o combate ao assassinato do cosmos, vale
dizer, à supressão da Relação ou do Devir (relações de forças) imanente à existência, em
favor de uma transcendência que projeta a existência numa historia teleológica, faz dos
existentes alegorias e, dos seus afetos, sentimentos. Este platô faz o mapa de uma
semiótica mista, combinando significância e subjetivação como procedimentos de
comparação e de apropriação, os quais asseguram uma política de inclusão diferencial
que ignora a alteridade e define, segundo os autores, o racismo europeu. Desse modo,
neste platô, Deleuze e Guattari criam os conceitos de rostidade, muro branco e buraco
negro, etc, que se articulam com os conceitos de semióticas despóticas e autoritárias, os
conceitos (antipáticos, no caso) adequados para uma contra-efetuação filosófica das
semióticas que compõem o sistema e a doutrina do julgamento.
A questão-imperativa do acaso e da imanência da existência retoma, em outro
registro, o problema precedente e desenvolve-se num novo problema (problema de
micropolítica) que organiza a investigação do que pode ser, do ponto de vista de uma
ontologia do social, a consistência imanente do socius. Neste sentido, os platôs 1874 —
Três novelas ou “o que se passou?” e 1933 — Micropolítica e segmentaridade,
ensinam que o real é feito de linhas, isto é, de movimentos heterogêneos que operam
segmentações (binárias, circulares e lineares), duras ou flexíveis, constituindo
dimensões molares ou moleculares, e fugas criadoras, tudo em perpétua coexistência e
interpenetração. A diferença de natureza dos planos molares e moleculares — referem-
se a sistemas de referência distintos, linhas sobrecodificadas de segmentos e fluxos
mutantes — não impede, pelo contrário, sua pressuposição recíproca. Os autores
propõem uma visão original do que denominam centros de poder, definidos por suas
operações de conversão dos fluxos moleculares em segmentos molares, e sobre o
Estado, pensado como agenciamento de reterritorialização ou movimento de
sobrecodificação, que organiza a ressonância dos centros de poder.
Os platôs 1730 — Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível e 1837 —
Acerca do Ritornelo) dedicam-se a contornar a visão mimética da natureza, que se
sustenta em uma ontologia onde o ser se diz de modo análogo segundo suas
distribuições categoriais. Contrapõem a univocidade à equivocidade e à analogia do ser,
afirmando o ser como potência diferenciadora irredutível às idéias de modelo e de
imitação. Como pensar, então, os entes concretos e suas relações? Os autores
respondem que os entes são diferenças e suas relações devires, afetos ou modificações,
que devem ser pensados independentemente das idéias de forma, de função, de espécie
e de gênero. O conceito de devir que acompanha o abandono das concepções
substancialistas e da perspectiva hilemorfista da individuação (simples encontro de
forma e matéria), permite pensar os corpos como singularidades, como processos
irredutíveis às sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito. Nesse
sentido, os devires são moleculares e minoritários: imperceptíveis (anorgânicos),
indiscerníveis (assignificantes) e impessoais (assubjetivos). Nesse universo de
intensidades, o conceito de ritornelo enfrenta o problema da consistência ou da
consolidação de agenciamentos heterogêneos e permite pensar a arte
independentemente de qualquer modelo mimético.
Os platôs 1227 — Tratado de nomadologia: a máquina de guerra, 7000 a.C. —
Aparelho de captura e 1440 — O liso e o estriado deslocam a questão política do direito
e da liberdade civil para o problema do domínio dos fluxos. Deleuze e Guattari
afirmam, contra o racionalismo liberal, que o direito é impotente para controlar o
Estado, uma vez que lhe é interior e representa uma forma específica de violência;
contra o marxismo, questionam a dialética (a idéia de que uma sociedade se define por
um modo de produção e por suas contradições), o evolucionismo e toda idéia de
progresso histórico. O problema político é recolocado a partir da distinção de dois
grandes tipos de agenciamentos, que diferem em natureza mas se pressupõem, e são
coextensivos a toda história humana: a máquina de guerra e o aparelho de Estado. A
criação desses conceitos, a análise de suas transformações e de suas relações, e a
distinção de duas modalidades de temporalização e de espacialização configuram novas
direções para a compreensão das sociedades: não definir as sociedades por suas
contradições, mas por suas linhas de fuga; considerar não as classes e sim as minorias
como potências revolucionárias; definir as máquinas de guerra não pela guerra, mas,
antes, por um certo modo de inventar novos blocos espaço-temporais.
A imanência e o conceito
401
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 49 (65 e 66).
estão sempre em pressuposição recíproca: o plano de imanência absoluto, que a filosofia
não pode pensar, mas apenas mostrar que ele está lá, não pensado em cada plano, o
Uno-Todo ilimitado como plano que comporta infinitas variações, e suas variações
efetivas, que configuram imagens concretas do pensamento, outros tantos Uno-Todo
ilimitados, desta feita como orientações singulares do pensamento. Torna-se crucial
pensar as diferenças nas modalidades de relações de cada plano singular com a
imanência absoluta, o plano de imanência que banha todos os demais. É neste ponto, na
relação entre essas dimensões da imanência que talvez se possa pensar uma diferença
entre os planos, sua maior ou menor disponibilidade para gerar ilusões. Mas, convém
aguardar um pouco para retornar à questão das ilusões que a imanência suscita.
De todo modo, na filosofia da diferença, o combate ao julgamento conduz a uma
imagem do pensamento que faz da filosofia um combate imanente que se efetua na
construção de um plano de imanência e na criação dos conceitos que o ocupam e,
assim, lhe asseguram consistência. O conceito de conceito se diz dos conceitos criados
para dar consistência a uma nova imagem do pensamento, que orienta a criação
deleuziana e que ele denomina de imagem moderna do pensamento. Essa imagem
postula primeiramente:
O que é esse conceito que se diz da criação? Como pensar sua gênese? Não é
possível avançar na compreensão dessas questões sem esclarecer como Deleuze e
Guattari determinam o problema da filosofia. Este se configura na confluência de novas
questões: O que é um plano de imanência e, o que é o caos? O plano de imanência é
definido como um corte do caos e o caos é caracterizado não pela ausência de
determinações, mas pela velocidade infinita com que estas se esboçam e se apagam.
Sendo o caos pensado como caotização que desfaz, no infinito, toda consistência,
compreende-se que Deleuze e Guattari definam assim o problema da filosofia:
402
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 55 (73 e 74).
403
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 45 (59 e 60).
Contudo, apesar do plano fazer apelo a criação de conceitos, o plano não é um conceito.
“O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos
são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus
próprios componentes. (…) O problema do pensamento é a velocidade infinita, mas esta
precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente, o plano, o vazio, o
horizonte.” 404 Feito este esclarecimento, pode-se indagar: quais são os componentes
desses movimentos finitos em velocidades infinitas? Quais são os componentes do
conceito, como eles são determinados?
Um conceito, como multiplicidade, é uma multiplicidade que comporta
componentes e define-se pelo seu regime de co-funcionamento. A esse respeito,
Deleuze e Guattari assinalam que não há conceito de um só componente, nem conceito
que contenha todos os componentes. O conceito não pode reduzir-se a um fato, nem
sucumbir no caos. Advertem, ainda, que o conceito, abstraído do problema que orienta a
sua constituição (a articulação, o corte e as superposições de seus componentes), perde
o seu sentido — que só pode ser compreendido como solução.
A respeito da definição do conceito, Deleuze e Guattari destacam os seguintes
aspectos dos conceitos: 1) Cada conceito remete a outros conceitos; 2) o conceito torna
seus componentes inseparáveis nele:
404
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 38 (51).
405
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 25 (31).
componentes. Neste sentido, um conceito é uma heterogênese. Ele “é ordinal, é uma
intensão presente em todos os traços que o compõem. Não cessando de percorrê-los
segundo uma ordem sem distância, o conceito está em estado de sobrevoo com relação a
seus componentes” 406 ; 4) o conceito é um incorporal que não se confunde com o estado
de coisas no qual se efetua, ele é um ato do pensamento, o pensamento operando em
velocidade infinita; 5) o conceito é “relativo a seus componentes, aos outros conceitos,
ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas
absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas
condições que impõe ao problema.” 407 Porém, mais profundamente, o conceito sendo
criado, ele é, ainda, autopoético. “O conceito define-se por sua consistência, endo-
consistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é auto-referencial, põe-se a
si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado. O construtivismo une o
relativo e o absoluto” 408 ; 6) o conceito sendo auto-referencial não pode ser discursivo
nem a filosofia uma formação discursiva. Desse modo,
406
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 26 (32 e 33).
407
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 26 (33 e 34).
408
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 27 (34)
409
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 28 (35).
constitui sua consistência. 410
Observando as características que definem o conceito deleuziano de conceito,
percebe-se como Deleuze e Guattari prosseguem, no campo conceitual, o movimento da
subtração: constituição… que animou o combate pela imanência na teoria diferencial
do pensamento, na teoria da Idéia e da atualização e na ontologia da univocidade do ser.
No caso do conceito de conceito, trata-se de subtrair do pensamento a transcendência e
o universal abstrato e a operação de generalização que definem o conceito da filosofia
da representação. A subtração do universal como Um ou como Mesmo transcendente é
o que desencadeia a constituição do novo conceito de conceito, como variação intensiva
e a sua nova concepção da unidade, como co-funcionamento ou síntese disjuntiva. O
novo problema, que estimula um novo conceito de conceito é: como pensar a unidade
conceitual sem introduzir no conceito uma transcendência, nem uma subjetividade
constituinte? Deleuze e Guattari respondem: a unidade dos componentes do conceito
depende de um sobrevoo imanente do ponto conceitual e de uma velocidade infinita do
pensamento. Desse modo, afirma-se a imanência e evita-se toda distância representativa
na teoria do conceito.
O procedimento de subtração: constituição… opera na construção da imanência
e na criação do conceito: subtração das transcendências: constituição da imanência e
criação do conceito de conceito como criação. Contudo, a conquista da perspectiva da
imanência absoluta e dos conceitos que lhe asseguram consistência não apenas se
subtrai das transcendências e dos universais. A imanência deve, por sua vez, iluminar a
gênese das transcendências e dos universais. Como compreender, do ponto de vista da
imanência, a gênese das transcendências? É claro que elas devem ter uma gênese na
própria imanência, na experiência. Mas qual é o estatuto dessa gênese, que se nega
enquanto tal? Deleuze e Guattari falam de ilusões, ilusões que envolvem o plano de
imanência e que se erguem no interior do plano. Neste sentido, eles destacam as
seguintes ilusões:
410
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 28 (36).
dos universais, quando se confunde os conceitos com o plano; mas
esta confusão se faz quando se coloca uma imanência em algo, já que
este algo é necessariamente conceito:crê-se que o universal explique,
enquanto é ele que deve ser explicado, e cai-se numa tripla ilusão, a da
contemplação, da reflexão, ou da comunicação. Depois, ainda, a ilusão
do eterno, quando esquecemos que os conceitos devem ser criados.
Depois a ilusão da discursividade, quando confundimos as
proposições com os conceitos…Precisamente, não convém acreditar
que todas essas ilusões se encadeiem logicamente como proposições;
elas ressoam ou reverberam, e formam uma névoa espessa em torno
do plano.” 411
411
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, págs. 50 e 51 (67 e 68).
de tudo o que retorna, eles se confundem absolutamente com o seu
retorno. Não é o mesmo que retorna, não é o semelhante que retorna,
mas o Mesmo é o retorno daquilo que retorna, isto é, do Diferente; o
semelhante é o retornar daquilo que retorna, isto é, do Dissimilar. A
repetição no eterno retorno é o mesmo, mas enquanto ele se diz
unicamente da diferença e do diferente. Há aí uma reversão completa
do mundo da representação e do sentido que tinham “idêntico” e
“semelhante” nesse mundo. (…) A verdadeira distinção não é entre o
idêntico e o mesmo, mas entre o idêntico e o mesmo ou o semelhante
— pouco importa desde que sejam postos como primeiros —, e o
idêntico, o mesmo ou o semelhante expostos como segunda potência.
Tanto mais potentes por isso, girando, então, em torno da diferença,
dizendo-se da diferença em si mesma. Então, tudo muda efetivamente.
Para sempre descentrado, o Mesmo só gira efetivamente em torno da
diferença quando, assumindo todo o Ser, ele se aplica apenas aos
simulacros, assumindo todo ‘o ente’” 412
412
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 384 (470 e 471)
413
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 385 (472).
permanece sempre sem autonomia e sem espontaneidade, mera conseqüência da
afirmação ontológica. O negativo do pensamento, o “erro”, ou melhor, a besteira,
consiste antes em conceder aos produtos do funcionamento do sistema do simulacro
uma autonomia que os desvirtua.
Terá a ilusão, no texto de Qu’est-ce que la philosophie?, esse mesmo sentido,
senão positivo, ao menos ambíguo? Parece que não: elas não afirmam a imanência
absoluta, afastam o pensamento do seu limite e limitam a experimentação. Por isto, as
ilusões da transcendência, dos universais de contemplação, reflexão e comunicação, do
eterno e da discursividade devem, antes, ser aproximadas do “erro”, ou melhor, da
besteira como “faculdade” dos falsos problemas — virtualidade imanente ao
pensamento mesmo. Neste sentido, o pensamento está sempre ameaçado, ameaçado no
seu movimento mesmo: seu inimigo é sua impotência, ou sua baixeza, seu esgotamento
mesmo. Por isto, o pensamento é radicalmente combate, combate imanente. Este ponto
é essencial, ele dá sentido à idéia de que a imanência deve ser construída. Sempre se
fazendo, como o devir, o pensamento e a imanência não têm nem começo nem fim.
Sempre se fazendo, por subtração: constituição… , a imanência solicita a criação de
conceitos e com eles consistência.
Deste modo, a filosofia é combate, combate ao julgamento e combate pela
imanência, e, nesta medida, um empreendimento de contra-efetuação: construção do
plano de imanência e criação de conceitos, que possuem a realidade de um virtual. 414
Deleuze e Guattari esclarecem:
414
“Um conceito apreende o acontecimento, seu devir, suas variações inseparáveis.” Cf. Gilles Deleuze e
Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 150 (204).
se queixa e se defende, e se perde em mímica, mas levar a queixa e o
furor ao ponto em que eles se voltam contra o que acontece, para
erigir o acontecimento, depurá-lo, extraí-lo no conceito vivo. A
filosofia não tem outro objetivo além de tornar-se digna do
acontecimento. …(…) Querer a guerra contra as guerras por vir e
passadas, a agonia contra todas as mortes, e o ferimento contra todas
as cicatrizes, em nome do devir e não do eterno: é neste sentido
somente que o conceito reúne.” 415
CONCLUSÃO
415
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 150 e151 (205 e 206).
cristalização. Nos acontecimentos, encontram-se
até mesmo estes estados de superfusão que não se
precipitam, que não se cristalizam, que não se
determinam a não ser pela introdução de um
fragmento do acontecimento futuro.” Charles
Péguy.
416
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 256 (320).
417
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 359 (441).
problema enquanto problema, mas, também, a diferenciação e articulação de problemas,
a constituição de uma relação (síntese disjuntiva ou acordo-discordante) dos problemas
entre si. Deste modo, enquanto combate à doutrina do julgamento, a filosofia da
diferença rompe com a imagem dogmática do pensamento e elabora uma imagem do
pensamento não mais como movimento do hipotético ao apodítico (expressão do Saber),
mas como movimento que vai dos complexos questões-problemas às Idéias e aos
conceitos que os desenvolvem (expressão de uma aprendizagem transcendental). A
progressividade na determinação dos problemas se faz em uma temporalidade na qual,
como foi analisado no capítulo “Idéia e atualização”, as repetições afirmam um campo
de imanência, dimensão de ressonâncias, que comporta e relaciona a perplicação das
Idéias, a complicação das séries intensivas atuais (correspondentes às séries ideais), a
implicação das séries intensivas (formando campos de individuação), a explicação das
qualidades e dos extensos, os centros de envolvimento onde persistem os problemas e os
valores de implicação no movimento que os explica e os resolve (replicação).
Neste jogo do pensamento, os problemas ressoam na medida em que, em cada
caso, em cada complexo questão-problema, todo o acaso é afirmado. Assim, todos os
problemas ressoam uns nos outros e, sobretudo, na questão imperativa que os exigiu e
os relacionou. A unidade da questão imperativa por sua natureza problemática não
impõe ao movimento da obra a monotonia de uma sucessão de repetições do mesmo,
antes diferencia a obra em problemas e impõe ao seu movimento um regime de
variações contínuas, que acompanham as repetições de uma questão que se diz da
diferença. A cada repetição da questão fundamental, o pensamento repete não o mesmo,
mas as diferenças que ele foi capaz de criar, afirmando-se como heterogênese sempre
que forçado, por novos encontros, a determinar novos problemas que repercutem sobre
os demais e sobre a questão que os reúne. A própria questão, desse modo, se transforma
e se precisa com o desenvolvimento da obra que, finalmente, sustenta-se e apóia-se não
na transcendência de um fundamento, mas, ao contrário, na afirmação do acaso, do
devir, da multiplicidade, vale dizer, na potência da imanência que torna, já se disse, o
fundar um metamorfosear.
Como foi ressaltado no capítulo “O combate e o procedimento”, a filosofia de
Gilles Deleuze tem como questão fundamental o combate ao sistema e à doutrina do
julgamento. Este combate, que é, sobretudo, um combate (criativo) pela imanência, faz-
se, no interior da filosofia, como processo de constituição da filosofia da diferença, cuja
potência criativa subtrai do pensamento as transcendências contrabandeadas, para o
interior do campo filosófico, pela doutrina do julgamento que se exprime na filosofia da
representação e na sua imagem dogmática do pensamento. Deve-se sublinhar que esse
combate não pode ser separado (sob pena de tornar-se abstrato) de um combate mais
abrangente, do combate ao sistema do julgamento. Isto explica que a filosofia de Gilles
Deleuze, ao enfrentar as questões estritas da filosofia, neste momento mesmo, se abra
para um questionamento mais abrangente. A filosofia da diferença multiplica seus
combates questionando, a partir da filosofia, a cultura e a história.
A subtração das transcendências ou das ficções que constituem o sistema e a
doutrina do julgamento não é uma operação simples. A subtração é apenas um
momento do procedimento de subtração: constituição.... Pois, como já foi dito, além do
movimento que vai da subtração à constituição, deve-se sublinhar que a outra
orientação, que vai da constituição à subtração é, em outro nível, mais verdadeira. No
primeiro caso, deve-se compreender a subtração como uma operação que retira algo, um
ou mais elementos, de um conjunto, como uma operação que força uma redefinição do
conjunto, isto é, dos elementos que permanecem e de suas relações e, em conseqüência,
do sentido dos termos assim relacionados. Mas, no segundo caso, a subtração não sendo
primeira, nem apenas a operação de retirar algo de um conjunto já estabelecido, assume
outro valor: como conseqüência de uma nova afirmação, designa, agora, o que não entra
e não pode entrar no novo conjunto afirmado, o que não tem mais cabimento em vista
de uma outra definição dos seres e das coisas. São esses os dois sentidos que esclarecem
os dois tempos dos movimentos, distintos porém indiscerníveis, de uma crítica criativa.
A subtração, no primeiro sentido, abre, apenas abre, a possibilidade da constituição, isto
é, da afirmação do novo; mas é preciso saber que é, finalmente, a afirmação do novo
que pode dar necessidade à subtração: esta, então, muda de natureza — deixando de ser
um momento contingente da aventura do pensamento, torna-se o efeito de um novo
pensamento que se constitui.
Assim, como sugere uma das hipóteses desta tese, escrever a n-1 como escrita
adequada à conquista da multiplicidade como substantivo atualiza-se concretamente no
procedimento da subtração: constituição.... Contudo, de que modo se há de
compatibilizar este procedimento com o procedimento da vice-dicção e com o método
de dramatização? A rigor, é possível sustentar que não há nenhuma incompatibilidade
entre a escrita a n-1, o procedimento da vice-dicção, o método de dramatização e o
procedimento de subtração: constituição.... Isto porque, pode-se conceber o
procedimento da subtração: constituição... como procedimento cujo sentido é articular
(sem unificar) os demais. De um lado, a escrita a n-1 é, obviamente, subtrativa do Todo
e do Um. Deste modo, ela compõe-se com os momentos do procedimento de subtração:
constituição.... Decerto, a subtração é sempre desterritorializante: seu sentido é abrir um
conjunto e, conjugando-se com uma linha abstrata (linha de fuga), promover um
movimento de virtualização. Desse modo, ela prepara o mapeamento das
multiplicidades pelo procedimento da vice-dicção, que assim, de um lado, confere
consistência às multiplicidades ideais e, de outro, por retroação, dá necessidade às
mencionadas subtrações virtualizantes. O método de dramatização supõe a subtração da
posição eminente conferida à questão da essência (O que é?), abre o campo das
questões, tornando-o uma multiplicidade problemática que comporta n questões —
Onde?, Como?, Quando?, etc.. Iluminando o processo de atualização do virtual, a
dramatização institui uma relação fundamental das verdades com o tempo (como síntese
do futuro) e confere assim uma nova consistência e um novo sentido à existência atual:
efeito de um processo de atualização, constitui-se como solução inseparável do
problema virtual do qual procede. A vice-dicção e a dramatização conjugam-se,
portanto, como dois momentos da dimensão da constituição do procedimento de
subtração: constituição....
Feito este esclarecimento, deve-se dizer que uma nova escrita (construtivista)
resulta do procedimento de subtração: constituição... como escrita adequada à idéia de
um cálculo dialético que compõe uma nova filosofia, a qual, por sua vez, define a
filosofia pela atividade de criação de conceitos. O construtivismo, em filosofia,
conquista um perspectivismo (a verdade do relativo) que afeta todo o campo filosófico.
Deleuze não diz que a sua filosofia é a única a criar conceitos. Diz que toda filosofia
(mesmo aquelas que isto não admitem e que reintroduzem, na imanência,
transcendências) ergue um campo de imanência e cria conceitos. O que diferencia a
filosofia da diferença não é, portanto, a criação conceitual, mas a sua afirmação da
afirmação, vale dizer, a sua afirmação da criação.
Na obra de Gilles Deleuze, o imperativo de afirmar o acaso, o devir e a
multiplicidade, exprime-se num combate, sempre renovado, contra o sistema e a
doutrina do julgamento. Afirmar o acaso significa romper com o postulado de um
fundamento (comum ao pensamento e ao mundo) que assegura ao pensamento sua
veracidade e sua necessidade, como adequação com uma realidade dada. Assim a
afirmação do acaso subtrai do pensamento o postulado de uma transcendência que se
apresenta como fundamento. A subtração da transcendência assegura a subtração dos
elementos e das operações que a transcendência garante: os universais, os princípios a
priori, dos quais dependem a coerência do pensamento (posto como cogitatio natura
universalis) e a identidade e a unidade de um sujeito do conhecimento, a função
representativa da linguagem, bem como a identidade, homogeneidade e permanência do
mundo (posto como verídico).
O problema da construção da imanência é o fio condutor que desenvolve, nesta
tese, a questão do combate ao julgamento, a qual, conforme foi repetidamente
sublinhado, é indissociável do seu desdobramento nas afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade. A obra de Gilles Deleuze faz ressoarem essas afirmações, e esse sistema
de ressonâncias cria, através do procedimento de subtração: constituição…, um centro
de metamorfose: a afirmação do acaso não se faz sem estender-se na afirmação do devir
e da multiplicidade, em um movimento no qual o pensamento se subtrai às ficções das
transcendências. E, tal movimento arrasta o próprio pensamento e, com ele, o mundo no
devir da imanência.
A questão da imanência do pensamento ao pensamento repete-se, nos capítulos
desta tese, diferenciando-se em séries de problemas. Os capítulos se prolongam na
medida em que suas séries ressoam nos imperativos do combate ao julgamente e do
combate pela imanência.
O capítulo “O dehors e o signo” formula essa questão em toda a sua amplitude:
de que modo, na elaboração filosófica de Gilles Deleuze, a operação de subtração das
categorias do Todo e do Um, que organizam a filosofia clássica, permite uma crítica às
pretensões de qualquer transcendência no pensamento, no sentido da afirmação da
imanência absoluta do pensamento ao pensamento? Esta indagação não se desenvolve
sem diferenciar-se em uma série de problemas: 1) o problema de uma nova concepção
de sistema em filosofia (sistema em perpétua heterogenidade e em heterogênese),
adequada a um pensamento que quer conquistar uma nova imagem do pensamento sem
perder a relação com um plano de imanência absoluto, sem se afastar da vertigem de um
pensamento sem imagem; 2) a subtração do Todo e do Um impõe como problema
pensar uma nova idéia da unidade e do fragmento: uma unidade que reúna sem unificar
fragmentos afirmados enquanto tais e não como partes de um todo perdido ou por vir; 3)
se o pensamento perde sua unidade natural e o mundo sua totalidade, sua ordem posta
como dada, vê-se forçado a repensar o estatuto da exterioridade, da interioridade e do
seu limite: uma nova filosofia do tempo se articula com a idéia da imanência como o
dehors e o dedans do pensamento; 4) um pensamento que se subtrai de uma pretendida
natureza enfrenta o problema do nascimento do pensar no pensamento, problema que se
desenvolve em uma nova concepção do que o pensamento pensa, quando forçado por
um signo e por não um objeto: define-se assim o sentido dos novos conceitos do signo,
do sentido e da essência; 5) finalmente, o problema da interpretação como criação
articula-se com a necessidade de pensar uma nova escrita que se furte à dualidade e à
distância representativa.
O capítulo “Deleuze e a crítica” atualiza a questão do combate à doutrina do
julgamento e as afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade, introduzindo o
problema de uma crítica adequada à afirmação da imanência, o paradoxo de uma crítica
imanente e criativa. Mal esse problema se precisa, todavia, ele dá lugar a um desvio,
necessário na medida em que permite esclarecer a diferença entre a idéia deleuziana da
crítica imanente e a concepção kantiana da crítica imanente como crítica da razão pela
razão. Neste sentido, o capítulo expõe, em linhas gerais, a leitura que faz Deleuze do
sistema da crítica kantiana. Ao revelar, do ponto de vista de Deleuze, as articulações do
sistema kantiano, esta exposição facilita a compreensão das articulações do pensamento
de Gilles Deleuze, na medida em que este se elabora, em parte, como retomada do
projeto kantiano de uma críitica imanente, mas, sobretudo, como um afastamento da
problemática kantiana que ainda quer fundar a possibilidade do conhecimento e do
julgamento não mais em Deus como fundamento da adequação do pensamento com o
mundo, mas na finitude do Homem e nas determinações do sujeito transcendental.
O capítulo “Gênese e experiência” investiga a passagem de uma crítica que tem
por intenção determinar as condições de possibilidade do conhecimento (do juízo
sintético a priori), da moralidade (da universalidade da lei moral: o imperativo
categórico), do belo (da presunção de universalidade do juízo de beleza), etc. a uma
crítica que se subtrai à problemática do condicionamento, congruente com as
afirmações, no pensamento, do acaso, do devir e da multiplicidade. Sua questão é a
determinação de um príncipio imanente da gênese da experiência real. Esta questão se
desenvolve em novos problemas: 1) a crítica genealógica apresenta-se como crítica ao
ideal do conhecimento. Mas então a crítica, concebida como crítica do conhecimento,
exprime outras forças capazes de dar uma nova orientação ao pensamento. Ela deve,
segundo Deleuze e Nietzsche, conduzir o pensamento até o limite do que pode a vida,
levar a vida até o limite do que ela pode. Deste modo, ao mesmo tempo, afirmar a vida
como a força ativa do pensamento e fazer do pensamento potência afirmativa da vida; 2)
assim concebida a crítica genealógica desbobra-se no combate à cultura e à história,
mais precisamente, ao sentido histórico da cultura, e este combate revela o problema do
devir reativo das forças ativas: como fazer reverter esse devir, como subtrair a negação
da posição de princípio de avaliação; 3) constituem-se novos problemas: como pode a
negação ser subtraída; em que sentido as afirmações da vida, do acaso e do devir dizem
respeito a um pensamento da pura afirmação? O desenvolvimento dessas questões
conduz o pensamento à investigação da interpretação deleuziana da doutrina do eterno
retorno como pensamento crítico e seletivo, que, paradoxalmente, afirma um
pensamento seletivo o qual, por sua vez, afirma um ser seletivo, pois, segundo esta
interpretação, o eterno retorno é o ser e o ser é seleção; 4) a questão ontológica
expressa-se no problema seguinte: como pensar a diferença estabelecida entre as duas
seleções, entre um pensamento seletivo e um ser seletivo? O fundamental é destacar que
as duas seleções são operações do pensamento: na primeira, o pensamento retira de si os
pensamentos reativos; na segunda, o pensamento subtrai de si a perspectiva reativa,
elimina a negação como perspectiva de avaliação. Tornado pura afirmação, o
pensamento transmuta a negação em negação das forças reativas. Compreende-se
portanto que, segundo Deleuze, a equação “ser = seleção” faz-se acompanhar dessa
outra equação: “seleção = hierarquia”. Como se analisou, o conceito de hierarquia
refere-se ao conceito de valor. Como o conceito de valor diz respeito não às realidades
objetivas, mas às diferenças de qualidade da vontade, deve-se dizer que é a segunda
equação que encerra o segredo da primeira, isto é, o ser é perspectiva e o que ele,
enquanto ato de selecionar, seleciona é o que se afirma como perspectiva e não o que se
pretende realidade; 5) configura-se o problema do perspectivismo: há elementos
diferenciais positivos que determinem, ao mesmo tempo, a gênese da afirmação e da
diferença afirmada? Tal problema conduz Deleuze a aprofundar a investigação sobre o
movimento da afirmação. A afirmação é posta uma primeira vez como o múltiplo
(diferença entre o um e o outro), o devir (a diferença consigo mesmo) e o acaso (a
diferença entre todos ou distributiva). Em seguida, a análise destaca que, para Deleuze,
a afirmação se duplica como afirmação ela própria afirmada, a afirmação reduplicada, a
diferença elevada à sua mais elevada potência. O devir é o ser, o múltiplo é o um, o
acaso é a necessidade. Assim, a gênese da afirmação remete ao movimento do eterno
retorno que seleciona a vontade de potência afirmativa enquanto princípio, plástico e
fluente, da experiência real. Neste ponto, o problema da gênese da afirmação e da
diferença soluciona-se na afirmação de um perspectivismo que se esclarece com a
seguinte hipótese: a afirmação da vontade de potência afirmativa é subtrativa e
constitutiva, pois subtrai a identidade das coisas (A é A), e a identidade do sujeito (Eu
= Eu), forçando o próprio pensamento a conquistar, por diferenciação, vale dizer, por
subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o ponto de vista, isto
é, um perspectivismo.
O capítulo “O dogmático e o problemático” retoma o problema da imanência, a
imanência do pensamento ao pensamento, investigando o problema da gênese da
experiência real, desta vez, a partir de uma crítica da imagem dogmática do pensamento.
Neste sentido, com apoio na exposição, realizada no capítulo anterior, da interpretação
deleuziana do eterno retorno, o capítulo sustenta sua organização na hipótese de que a
filosofia da diferença encontra, no pensamento do eterno retorno — melhor, na
interpretação deleuziana do eterno retorno —, a vitalidade necessária e a forma
adequada, seja para interpretar outros sistemas filosóficos, seja para pôr, nos seus
próprios termos, o problema do sentido do pensamento. Mas o problema sentido do
pensamento desbobra-se em uma série de novos problemas.
O primeiro deles é o problema da relação da filosofia de Gilles Deleuze com o
advento da ciência moderna. Deleuze diz que se interessa pela metafísica que a ciência
moderna não teria ainda encontrado. Como compreender tal interesse? Tal como se
buscou demonstrar, procurando esclarecer a posição de Deleuze com repeito à
epistemologia francesa, esse interesse pela ciência moderna significa, efetivamente,
repetir o ato construtivista que caracteriza a ciência moderna e, ao mesmo tempo,
afirmar uma diferença: a decisão construtivista repete-se, em Deleuze, como ato do
pensamento que afirma uma nova concepção do que é a filosofia, definida como
atividade que torna inseparáveis a construção de problemas e a criação de conceitos.
Esta decisão construtivista desenvolve-se na filosofia da diferença, via o
procedimento de subtração: constiuição…, inicialmente como crítica da imagem
dogmática do pensamento. Esta crítica se esclarece quando ela é relacionada ao
problema que lhe dá sentido: o que significa, para a filosofia da diferença, começar? O
que pode ser um começo para uma filosofia, cujo combate ao sistema e à doutrina do
julgamente se faz pela afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade? Como se
assinalou, Deleuze considera que uma Filosofia isenta de pressupostos de qualquer
espécie, em vez de se apoiar na imagem moral do pensamento, deve partir de uma
crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica. Assim, o começar é um
recomeçar: o pensamento só pode começar a pensar, e sempre recomeçar, ao afastar-se
da Imagem e dos postulados. Fica reforçada a postulação de que Deleuze encontra, no
pensamento do eterno retorno, a forma de sua crítica filosófica: o eterno retorno do
pensamento, sua afirmação enquanto diferença e repetição, sua crítica à doutrina da
verdade e do julgamento, devem, portanto, exercer seu poder seletivo, subtraindo, ao
pensamento, os postulados que sustentam a imagem dogmática do pensamento.
Com essa orientação, como se ressaltou, Deleuze discute e questiona a validade
de oito postulados fundamentais: o postulado da Cogitatio natura universalis, o
postulado do ideal ou do senso comum, o postulado da recognição, o postulado da
representação, o postulado do negativo ou do erro, o postulado da função lógica ou da
proposição, o postulado da modalidade ou das soluções, o postulado do saber. Mas,
nesse movimento de subtrações, a crítica constitui, concomitantemente, uma nova
concepção do pensamento, um outro conceito de experiência (um empirismo
transcendental), uma teoria diferencial da idéia e uma nova ontologia que reinterpreta a
univocidade do ser.
O movimento desta crítica conduz ao problema de qual é o novo sentido que o
conceito de transcendental assume na filosofia da diferença? Subtraindo ao sistema
kantiano a identidade sintética das categorias e a moralidade da razão prática
responsáveis pela restauração do eu, do mundo e de Deus, Deleuze isola, em Kant, o
momento furtivo fulgurante no qual o Eu é rachado pela forma do tempo. Este
isolamento, a afirmação da fissura do Eu pela forma pura do tempo como linha reta,
desencadeando uma coerência que articula o Deus morto, o Eu rachado e o eu passivo,
faz ruir toda a concepção kantiana do campo transcendental.
A fissura do Eu pela forma pura do tempo conduz Deleuze a um novo
problema: como pensar o tempo de forma a dar consistência à diferença transcendental,
que, em Kant, se dissolve no momento mesmo em que se esboça, neste momento que
Deleuze denuncia como furtivo e fulgurante? Este novo problema se desenvolve numa
teoria das três sínteses do tempo — a síntese do tempo como presente, a síntese do
tempo como passado e a síntese do tempo como futuro — que, ao afirmar a repetição
como repetição da diferença, denunciar a insuficiência da questão do fundamento e
aprimorar a crítica ao modelo do transcendental implicado na crítica kantiana tem o
sentido de preparar uma teoria diferencial da experiência e do pensamento.
A afirmação, no pensamento, do acaso, do devir e multiplicidade dá sentido à
teoria diferencial da experiência e do pensamento, que constitui-se e desenvolve-se na
interseção de dois temas destacados e isolados do sistema kantiano: o tema da fissura
temporal do sujeito e o da idéia de um acordo discordante das faculdades. Com as
subtrações dos postulados da imagem dogmática do pensamento, a experiência deve ser
pensada como uma prova: cada faculdade deve ir ao seu limite próprio para, aí, no seu
limite extremo, poder afirmar, nesta prova que é aquela de sua própria experiência, a
sua diferença e imanência radical. Essa experiência é a experiência de uma heterogênese
num duplo sentido: primeiro como metamorfose ou gênese da diferença interna de cada
faculdade; em seguida, como gênese das diferenças entre as faculdades que se afirmam
dissolvendo o senso comum; por fim, gênese de um acordo discordante, que reúne as
faculdades, sem unificá-las. Neste processo, se a experiência leva o pensamento a
conquistar o seu limite, o pensamento só o faz no curso de uma discórdia, no seio de
uma relação discordante entre as faculdades, que se prolonga num acordo-discordante,
mas que começa pela metamorfose da sensibilidade, a experiência não decorre de uma
decisão consciente, nem é regulada por uma consciência. A experiência, já se assinalou,
depende do acaso de um encontro e sempre começa por ser a experiência de uma
violência. A violência do acaso de um encontro é sua condição primeira, é ela que
deflagra o pensamento no pensamento.
A teoria diferencial do pensamento e da experiência põe em novos termos o
problema da instância negativa, que já não pode ser pensada pelo conceito de erro como
efeito, no pensamento, de forças exteriores ao pensamento. Às subtrações dos
postulados da Cogitatio natura universalis, do modelo da recognição, da representação,
do senso comum e do bom senso, sucede a constituição da teoria diferencial do
pensamento, que se articula com a reversão da relação do tempo com o movimento e
com o pensamento das três sínteses do tempo que introduzem uma fissura no Eu.
Sobretudo, ao articular-se com a terceira síntese do tempo, na qual o tempo se constitui
como futuro e se introduz no pensamento como seu Outro, seu limite interno, o
pensamento não pode mais ser poupado de uma instância negativa interna ao seu
funcionamento: a besteira, que se constitui como “faculdade dos falsos-problemas”,
fonte das ficções que sustentam o julgamento, o sentido histórico da cultura. Sua
possibilidade se esclarece no processo da individuação, na relação que se estabelece
entre o Eu e o fundo intensivo, como possibilidade inscrita no movimento mesmo da
gênese do pensamento enquanto tal. O pensamento, em seu exercício empírico, estúpido
e integralmente mobilizado em não pensar, confunde-se com a besteira; ou então
incomoda-a, violenta-a e dela se afasta em um combate interno que o eleva ao seu
exercício superior.
Deleuze conquista, com o conceito de besteira, um novo problema: como
escapar da falsa-alternativa — ou um fundo indiferenciado, sem fundo, não-ser informe,
abismo sem diferenças e sem propriedades ou, então, um Ser soberanamente
individuado, uma forma fortemente personalizada —, posta, ao pensamento, tanto pela
metafísica quanto pela filosofia transcendental? A subtração desta falsa-alternativada,
besteira propriamente filosófica, depende da subtração da vontade de potência negativa,
fonte de uma falsa concepção do que é um problema. Só uma apreciação da natureza
positiva dos problemas permite dissolver esta falsa alternativa comum à metafísica e à
filosofia transcendental e, assim, ultrapassar tanto a ambigüidade essencial ao
fundamento — sua oscilação entre o apoio no fundado e o abismar-se no sem fundo —,
quanto as perspectivas substancialista e hilemórfica da individuação em favor da
afirmação de uma determinação que nem se opõe ao sem-fundo nem o limita.
Igualmente Deleuze conquista o perspectivismo ou o problemático por
subtração: constituição… — tanto pela subtração da ilusão natural que consiste em
decalcar os problemas sobre proposições que se supõem preexistentes, quanto da ilusão
filosófica que consiste em avaliar os problema a partir de sua resolubilidade e da ilusão
que faz do fundamento um condicionamento exterior ao sentido que ele pretende
fundar. A constituição é a do diferencial, como elemento imperativo interior aos
problemas, que faz dos problemas o elemento diferencial do pensamento, o elemento
genético do verdadeiro. A constituição dos problemas como provas e seleções torna o
verdadeiro e o falso imanentes aos próprios problemas. Assim, as noções verdadeiros e
falsos problemas adquirem sentido e impedem que se mantenha, no pensamento, o
postulado do condicionamento exterior que concebe a condição como indiferente ao
que ela tornaria possível.
O capítulo “Idéia e atualização” retoma a questão deleuziana do combate à
doutrina do julgamento, a qual desenvolve-se tal como se argumenta naquele capítulo,
com a reversão do conceito platônico de Idéia: como pensar a Idéia, não como essência
eterna ou como a Identidade de um modelo, mas como multiplicidade e como
problema? Inicialmente, como se sublinhou, Deleuze considera que o problema é o
objeto da Idéia, sendo, portanto, a Idéia essencialmente problemática. E assim a teoria
diferencial da Idéia subtrai a dependência das idéias ao primado de uma faculdade
(razão ou entendimento) como sua fonte ou origem. Tal teoria desenvolve e apóia a
teoria diferencial do pensamento, dando consistência a um “para-senso” (ou acordo-
discordante das faculdades em seu exercício superior) constituinte do exercício superior
das faculdades. Conseqüentemente, as idéias, como multiplicidades diferenciais, são
objetos de um aprender paradoxal (não de um Saber) que se nutre de um movimento
criativo inconsciente, de um movimento extra-proposicional e não atual das idéias no
para-senso que se conjuga como o exercício não empírico e paradoxal das faculdades.
O movimento da reversão do conceito platônico de idéia configura um novo
problema: o do estatuto epistemológico e ontológico do complexo questão-problema. A
compreensão deste problema exige um esclarecimento: o que distingue o movimento
que vai do hipotético ao apodítico daquele que vai do problemático à questão? Em
primeiro lugar, como se enfatizou, repetidas vezes, o problema difere, por natureza, da
hipótese. Esta é uma proposição da consciência que se estabelece no campo das
representações do Saber, ao passo que os problemas ou as idéias são construções
imanentes a um apreender infinito e inconsciente. Em seguida, como se assinalou, a
instância apodítica difere da instância questão pela natureza dos imperativos que
expressam. A primeira é um ponto de chegada que configura um imperativo moral, a
segunda exprime a relação dos problemas com os imperativos de acontecimentos que se
apresentam como questões (que traduzem o imperativo da afirmação do acaso, do devir
e da multiplicidade), dos quais eles procedem.
Contudo, como também se observou, naquele capítulo, o círculo composto pelas
questões imperativas, ontológicas, os problemas dialéticos que delas decorrem, os
campos simbólicos de resolubilidade dos problemas e as soluções que estes recebem
nesses campos não parecem dar conta do nascimento desses imperativos ontológicos.
Deleuze propõe, então, pensar a origem das questões e de seus imperativos como
repetição da diferença: “De que se diz a repetição no eterno retorno, a não ser da
vontade de potência, do mundo da vontade de potência, de seus imperativos e de seus
lances de dados, e dos problemas saídos do lançar?” 418 Assim, a análise desta questão,
conduziu ao problema: como compreender a possibilidade de uma tal repetição? Ou, o
que há nos problemas que os dispõem à repetição da diferença?
Tal como se buscou evidenciar, um pensamento que afirma o acaso, o devir e a
multiplicidade só admite a repetição da afirmação como origem, e a repetição afirma a
virtualidade que todo problema exprime. Por esta razão, como se esclareceu, Deleuze
destaca, ainda, uma outra dimensão do complexo questão-problema que o dispõe à
repetição: há um (não)-ser do problemático que designa a diferença e sua repetição,
dimensão, que apresenta, como se assinalou, um novo problema: como compreender o
estatuto da negação contida na escrita (não)-ser?
Deleuze pensa um (não)-ser da questão, mas não admite reduzi-lo a uma
negação ou ao negativo. Por esta razão, como se sugeriu talvez a sua melhor expressão
seja ?-ser, como forma ou abertura de um campo problemático. Desfeita a suposta
relação do ?-ser com o negativo, afirmadas a potencialidade da Idéia e a virtualidade
dos problemas, compreendeu-se melhor que a origem e o destino da questão imperativa
seja repetir-se como diferença.
O destino da Idéia é atualizar-se. Retorna, nesse novo registro, o problema da
gênese da experiência real e do pensar no pensamento: como se dá a relação da síntese
ideal da diferença com a síntese assimétrica do sensível? Como se faz a passagem da
dialética das relações diferenciais à estética das diferenciações? Do ponto de vista do
virtual, a gênese da experiência real é pensada como atualização-criação, como processo
do virtual. Assim, segundo Deleuze, a Diferença tem dois aspectos: ela se diz como
realidade virtual e dialética e como realidade dinâmica e estética, como força de
atualização e de diferenciação. Como se diferenciam e se articulam esses dois aspectos?
Trata-se de um conjunto de determinações — campo de individuação, séries de
diferenças intensivas, precursor sombrio, sujeitos larvares, dinamismos espaço-
temporais — que permite pensar a passagem da dialética das relações ideais à estética
das relações sensíveis e atuais.
O problema da atualização não pode, todavia, ser separado de uma virtualização
prévia, de uma conquista do virtual que é correlata à conquista do exercício superior do
pensamento, em que, num acordo disjuntivo, as faculdades se comunicam pela violência
do exercício de suas diferenças. Deste modo, como se enfatizou, a atualização do virtual
depende de dois movimentos que se encadeiam: um movimento de virtualização,
acionado pelo encontro da sensibilidade com o signo-portador de problema, e um
movimento de atualização, também forçado pelo encontro da sensibilidade com o signo-
intensidade. No entanto, é sobretudo o encontro com a Intensidade (diferenças de
intensidade) que desencadeia o processo, aciona todo esse conjunto de determinações e
torna a atualização possível. Se para Deleuze a Idéia como multiplicidade real não é
uma forma, não existe nem no mundo supra-sensível, nem na alma do sujeito
cognoscente, nem nas convenções da linguagem, é porque, enquanto distinta do corpo,
ela, no entanto, não se constitui como uma ordem de existência separada ou
independente dos corpos: ela é o acontecimento ideal que se exprime nos corpos — para
Deleuze todo objeto é duplo, constituído de duas metades ímpares: virtual e atual.
Sendo a Idéia uma multiplicidade diferençada (no virtual), cuja atualização se
faz por criação e diferenciação, resta um último problema: como a Intensidade
desencadeia o processo da atualização e articula a Idéia–virtual com o atual
diferenciado? A resposta de Deleuze é clara: é a Intensidade que impele a Idéia a
diferenciar-se, uma vez que ela resolve suas diferenças num processo de individuação.
Deleuze conquista, então, a ordem das razões: diferençação-individuação-dramatização-
diferenciação, específica e orgânica.
A teoria da Idéia e da atualização permite Deleuze propor, em Différence et
418
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
répétition, uma primeira versão de uma filosofia vitalista da natureza, o sistema do
simulacro:
419
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 355 e 356 (457 e 458).
questão-imperativa que confere necessidade ao combate ao sistema e à doutrina do
julgamento. Contudo esta questão não se esgota nela mesma, antes se desenvolve em
uma série de problemas que nela ressoam. Nascem assim, como se viu, os problemas,
que não cessaram de retornar na obra de Gilles Deleuze: o que é pensar, o que é o ser,
para um pensamento que afirma o acaso, o devir e a multiplicidade?
420
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (89).
421
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 203 (179 e 180).
O empirismo transcendental deve sustentar, na filosofia, a imanência como
vertigem filosófica. Para tanto, como se enfatizou, é preciso que a univocidade do ser
determine o transcendental como imanência da imanência. Retorna o problema da
univocidade do ser como pensamento que, ao subtrair-se a toda diferença categorial,
concebe a diferença como diferença de grau de potências: a imanência exige que a
diferença seja concebida como diferença de potência.
O combate pela imanência desenvolve-se, também, nos escritos de Deleuze
com Félix Guattari, sobretudo, em L’Anti-Œdipe, Mille plateaux e Qu’est-ce que la
philosophie? A esse respeito, destaca-se a questão: como evitar a tripartição metafísica
entre o mundo (como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância
representativa), e o sujeito (como estrutura enunciativa)? Esta questão orientou as
considerações sobre L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, sendo este último tomado como
exemplo de combatividade do empirismo transcendental, do pensamento como combate
e experimentação. Como se procurou argumentar, com um levantamento de suas
questões e problemas, a forma de composição do texto deixa evidente a característica
fundamental do sistema da filosofia da diferença como multiplicidade em perpétua
heterogeneidade e heterogênese. Cada platô remete a um ou mais problemas que se
desenvolvem nos conceitos que nele se criam mediante o procedimento de subtração:
constituição... Além disto, os platôs, aparentemente independentes, constituem um
sistema de múltiplas ressonâncias, uma vez que seus problemas são postos pela questão
maior do combate ao julgamento e que os conceitos que desenvolvem estes problemas
buscam dar consistência ao combate pela imanência absoluta.
Em Qu’est-ce que la philosophie? Deleuze e Guattari prolongam o combate ao
sistema e à doutrina do julgamento de uma maneira singularmente diferente. É
importante ressaltar que, neste livro, Deleuze, juntamente com Guattari, finalmente faz
explícita a questão que anima toda sua obra. Desta vez, não se trata de pensar, como em
L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, as atualizações extra-filosóficas do sistema do
julgamento, mas de definir a própria filosofia como atividade de criação de conceitos.
Mas este problema não pode ser posto isoladamente. Ele exigiu a abertura de um
conjunto de problemas conexos: O que é a opinião? O que é a religião (figuras)? O que
é ciência (funções)? O que é a arte (afetos e peceptos)? Mais uma vez se observa a
criação produzir-se no heterogêneo, que se faz centro de metamorfose (idiossincrasia de
forças), como heterogênese. No caso, ressalta a relação da filosofia com a ciência e a
arte, também definidas como atividades criativas, intercessoras privilegiadas da filosofia
numa comum resistência ao sistema e à doutrina do julgamento. Mesmo assim, Qu’est-
ce que la philosophie não pode ser compreendido como um livro que, finalmente, fecha
o sistema da filosofia da diferença como se lhe conferisse o seu sentido supremo.
Melhor será compreendido como mais um momento do movimento da heterogênese.
A hipótese que move esta tese tornou-se idéia no movimento de sua elaboração.
Deve-se advertir, contudo, que a idéia de que a filosofia da diferença desenvolve-se em
torno de uma questão central, o combate ao sistema e à doutrina do julgamento, não
envolve a presunção de que esta questão tenha uma resposta definitiva: pela própria
natureza da afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade, tal combate tem por
destino animar sua eterna repetição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I. De Gilles Deleuze: