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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

OVIDIO DE ABREU

O COMBATE AO JULGAMENTO NO
EMPIRISMO TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE

Rio de Janeiro
2003
OVIDIO DE ABREU

O COMBATE AO JULGAMENTO NO
EMPIRISMO TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Filosofia do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro
O COMBATE AO JULGAMENTO NO EMPIRISMO
TRANSCENDENTAL DE
DELEUZE

Ovidio de Abreu

Tese apresentada à Coordenaçåo de Pós-Graduaçåo de Filosofia da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtençåo do título de Doutor em
Filosofia,
Aprovada por:

_______________________________________
Prof. Dr. Roberto Machado (Orientador)

_______________________________________
Profa. Dra. Karla de Almeida Chediak

_______________________________________
Prof. Dr. Peter Pál Pelbart

_______________________________________
Prof. Dr. Fernando José Fagundes Ribeiro

_______________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco

Rio de Jambeiro
Outubro, 2003
Ficha Catalográfica

ABREU, Ovidio

O combate ao julgamento no empirismo transcendental de Deleuze. Rio de Janeiro:


UFRJ/IFCS. VII, 340 p.

Tese de Doutorado em Filosofia.

1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2 Filosofia francesa – séc. XX. 3. Doutrina do julgamento. 4.


Filosofia da diferença.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.


Departamento de Filosofia.
Agradecimentos

Agradeço ao Professor Roberto Machado, cuja presença e obra sempre


afirmaram a relevância da vida no pensamento, pela confiança e generosidade com que
me orientou.
Ao Departamento de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
da Universidade Federal Fluminense por ter concedido o meu afastamento, pelo prazo
de um ano, das atividades docentes para efeito de conclusão desta tese de doutoramento.
Ao Programa de pós-graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro por acolher a
idéia deste estudo e pela concessão de prorrogação do prazo para a defesa desta tese.
Aos amigos Aurélio Guerra e Bruno Lara Resende por suas inúmeras sugestões
e pelo inestimável espírito de livre camaradagem intelectual com que acompanharam e
favoreceram o desenvolvimento deste trabalho.
Ao Antônio Monteiro Guimarães pela amizade expressa na qualidade da sua
leitura e no interesse com que acompanhou a redação desta tese.
Ao Marcio Goldman, companheiro desde sempre, pelo permanente apoio com
que, de diferentes maneiras, estimulou o processo do qual resultou esta tese.
À Tânia Soltze Lima pela delicadeza com que acolheu e discutiu os problemas
que concerniam ao meu trabalho.
Ao José Carlos Rodrigues pela presença alegre e sincera com que sempre apoiou
e estimulou o meu trabalho.
Ao Marcelo Dreyfus Cattan pela amizade e cumplicidade no interesse por Gilles
Deleuze e também pela iniciativa de organizar, com o apoio do Departamento de Letras
da PUC-RJ, um grupo de trabalho em torno do Abecedaire.
Ao Clauze R. de Abreu pela inquieta e indócil hospitalidade com que manteve
sempre desperto, nas suas relações, o interesse do pensamento.
Aos amigos Ana, Cabral, Fernando, Lia e Patrícia, com quem compartilhei a
alegria do estudo em grupo.
Ao Orlando Bezerra e ao Jorge Guimarães, meus companheiros de doutorado.
Aos amigos Pedro de Lamare e José Júlio Monteiro Sabugosa, pela
generosidade do seu apoio.
À Joana, Maria Clara e Patrícia
Resumo

A hipótese fundamental desta tese é de que a filosofia da diferença, o empirismo


transcendental de Gilles Deleuze, constitui-se como combate ao sistema e doutrina do
julgamento, e de que este combate efetuou-se através de um procedimento de subtração:
constituição… — subtração de transcendências, ficções e universais e constituição de
um plano de imanência e de conceitos que dão consistência a este plano.
Este procedimento é adequado à constituição de uma nova concepção de sistema
em filosofia — multiplicidade problemática e aberta, em perpétua heterogeneidade e em
heterogênese —, vale dizer, de uma nova concepção do pensamento e da sua unidade,
como síntese disjuntiva ou como acordo-discordante.

Palavras Chaves: combate, julgamento, procedimento de subtraçåo:


constituiçåo…, diferença, repetição, problemático, empirismo transcendental.
Resumé

L’hypothèse fondamentale de cette thèse affirme que la philosophie de la


différence, l’empirisme transcendantal de Gilles Deleuze, s’est constituée comme un
combat contre le système et contre la doctrine du jugement, combat effectué à travers le
procédé de subtration: constitution… — subtration des transcendences, fictions et
universels et constituition d’un plan d’immanence et de concpts qui donnent consistance
à ce même plan.
Ce procédé traduit la constitution d’une nouvelle conception de système en
philosophie — multiplicité problématique et ouverte, en perpetuèlle heterogeneité et
heterogenèse —, c’est à dire, une nouvelle concéption de la pensée et de son unité,
comme synthèse disjonctive ou comme accord-discordant.

Mots clés: combat, jugement, procédé de subtration: constitution…, différence,


répétition, problematique, empirisme trancendental.
Sumário

Introdução 8

Capítulo I – O combate e o procedimento 12

Capítulo II - O dehors e o signo 49

Capítulo III – Deleuze e a crítica 82

Capítulo IV – Gênese e experiência 117

Capítulo V - O dogmático e o problemático 151

Capítulo VI – Idéia e atualização 229

Capítulo VII – O empirismo transcendental 281

Conclusão 319

Referências bibliográficas 337


Introdução

“Um julgamento impede a


chegada de qualquer novo modo
de existência. Pois este se cria por
suas próprias forças, isto é, pelas
forças que sabe captar, e vale por
si mesmo, na medida em que faz
existir uma nova combinação.
Talvez esteja aí o segredo: fazer
existir, não julgar. Se julgar é tão
repugnante, não é porque tudo se
equivale, mas ao contrário porque
tudo o que vale só pode fazer-se e
distinguir-se desafiando o
julgamento.” Deleuze.

A intenção fundamental desta tese consiste em sugerir um caminho para a


compreensão da lógica de construção do sistema da filosofia de Gilles Deleuze.
Deleuze, cuja filosofia desenvolveu-se em múltiplas direções, escreveu livros
sobre Hume, Bergson, Nietzsche, Kant, Spinoza. Monografias, aparentemente estudos
em história da filosofia. Em seguida, escreveu Différence et répétition e Logique du
sens, duas obras que apresentam, pela primeira vez e de modo sistemático, as questões
filosóficas que se desdobrarão em seus livros subseqüentes. Com Félix Guattari propôs,
em L’anti-Œdipe, uma nova abordagem do inconsciente e do desejo. A literatura o
instigou filosoficamente: publicou Proust et les signes e, com Guattari, Kafka – pour
une littérature mineure. Investigou a criação na pintura: Francis Bacon, logique de la
sensation. Mille plateaux é, em si mesmo, um livro múltiplo: encerra reflexões sobre a
psicanálise, a natureza do pensamento e da linguagem, os sistemas de signos, o Estado,
o nomadismo, a ciência, o devir, a moral, a música, etc. Depois, escreveu duas obras
sobre cinema que retomam suas reflexões sobre o movimento e o tempo. Retornou à
história da filosofia com livros sobre Foucault e Leibniz. Publicou ensaios diversos
sobre filosofia e literatura em Critique et clinique. Elaborou, novamente com Guattari,
Qu’est-ce que la philosophie?, propondo uma nova imagem do pensamento, segundo a
qual a criação de conceitos constitui a originalidade da atividade filosófica.
Esse levantamento, que não é exaustivo (não menciona tudo o que Deleuze
escreveu, nem todos os problemas elaborados por essa filosofia que buscou reverter o
platonismo), é suficiente, contudo, para justificar a questão: pode-se encontrar uma
orientação nessa aparente dispersão desenvolta? Seria possível encontrar um princípio
subjacente a essa produção à primeira vista tão variada?
A hipótese central desta tese é a de que a obra de Gilles Deleuze deve ser
compreendida como desenvolvimento de uma questão imperativa: o combate filosófico
ao sistema e à doutrina do julgamento. O desenvolvimento desta questão desbodra-se
em uma série de problemas desencadeados pela questão “o que é pensar?”, quando
pensar não é julgar. A hipótese de que a filosofia da diferença se constitui como
combate ao julgamento se conjuga com a hipótese de que este combate atualiza-se
mediante um procedimento singular: procedimento de subtração: constituição... que
decorre necessariamente, em Deleuze, da Diferença como único ponto de partida não
arbitrário da filosofia. 1
O procedimento de "subtração: constituição..." movimenta diferentes dimensões
do pensamento de Gilles Deleuze; organiza suas interpretações em história da filosofia,
orienta sua crítica da representação e da imagem dogmática do pensamento, sua criação
conceitual, a nova concepção de sistema em filosofia — sistema em perpétua
heterogeneidade e como heterogênese — e sua própria orientação filosófica expressa na
idéia paradoxal de um empirismo transcendental. Este procedimento ao subtrair do
pensamento as transcendências (o Deus, o Eu e o Mundo) e seus efeitos (as
significações, as manifestações e as designações) constitui um plano de imanência no
qual o pensamento, confrontando seu limite em conexão com o seu dehors, cria os
conceitos que lhe conferem consistência.
Deste modo, pode-se dizer que os conceitos que compõem o sistema da filosofia
da diferença emergem como combate ao sistema e à doutrina do julgamento, forçados
por dois problemas abrangentes e interligados: o que é pensar, quando evita-se toda
transcendência? e como pensar conceitualmente uma imanência absoluta? Esses
problemas, desencadeados pela afirmação trágica do Acaso, da Multiplicidade e do
Devir, já nascem, eles mesmos, como centros de metamorfose e como um combate ao
julgamento.

1
Observe-se que a escrita “subtração: constituição…” repete a estrutura insólita do título do último texto
publicado por Deleuze: “L’immanence: une vie…” As razões desta repetição serão explicitadas capítulo
“O combate e o procedimento”.
Não se deve confundir o conceito de combate com uma idéia de contraposição
puramente negativa. Ao contrário, o combate expressa um pluralismo das forças,
constitui-se como relação de forças e desencadeia um devir de forças no qual se afirma
os movimentos de uma nova posição filosófica: uma filosofia da diferença que se efetua
pela potência de suas afirmações diferenciais e não por negação dialética. O
procedimento de subtração: constituição..., é nele mesmo um combate, faz do
pensamento combate: subtrai do pensamento a autonomia da negação, desfaz a ficção
do pensamento como unidade transcendente (0 Um) que apreende a unidade do mundo
(0 Todo) e expressa a filosofia da diferença constituindo-se como afirmação da
afirmação que institui, no pensamento, um pluralismo radical. Este pluralismo configura
um empirismo transcendental, substitui o ponto de vista do condicionamento pelo ponto
de vista de uma gênese do verdadeiro no pensamento. A filosofia da diferença, como
afirmação de um pluralismo filosófico (empirismo transcendental), exige um novo
conceito de Idéia e um novo conceito de Conceito que tornem pensável a Diferença
como Acontecimento e uma seleção imanente que não incida sobre a pretensão, mas
sobre a potência.
Essas idéias orientam a organização e a distribuição dos capítulos desta tese.
O capítulo “O combate e o procedimento” apresenta a idéia de que a filosofia de
Gilles Deleuze como um combate ao sistema e à doutrina do julgamento organiza-se de
acordo com o procedimento de subtração: constituição…
O capítulo “O dehors e o signo”, a partir da análise dos efeitos no pensamento
das subtrações ao pensamento das idéias do Todo e do Um, investiga a relação do
combate ao julgamento e do procedimento de subtração: constituição... com uma nova
concepção do fragmento e do sistema em filosofia.
O capítulo “Deleuze e a crítica” introduz o sentido crítico e afirmativo do
pensamento de Gilles Deleuze e, a partir da exposição da compreensão deleuziana do
problema crítico em Kant, destaca os principais limites da crítica kantiana.
O capítulo “Gênese e experiência” apresenta, em contraposição à crítica
kantiana, tal como Gilles Deleuze a compreende, o problema da crítica genealógica
como crítica efetivamente imanente.
O capítulo “O dogmático e o problemático” investiga as subtrações dos
postulados da imagem dogmática do pensamento e a constituição de uma teoria
diferencial do pensamento e de uma ontologia da questão e do problema.
O capítulo “Idéia e atualização” prossegue a investigação de uma ontologia da
questão do problema, apresenta a teoria deleuziana da Idéia (diferencial do pensamento)
como multiplicidade virtual inseparável de um processo de atualização se efetua por
diferenciação e criação.
O capítulo “O empirismo transcendental” determina o problema de um
empirismo transcendental como questão fundamental para a análise da concepção
deleuziana da filosofia. Este conceito paradoxal se esclarece na sua relação com a
intenção deleuziana de conquistar, na filosofia, uma teoria imanente da experiência e do
conceito.
A conclusão retoma essas questões e defende que tanto o combate ao
julgamento como o seu procedimento de subtração: constituição... permanecem ativos
na determinação dos problemas que atribuem sentido aos últimos livros de Gilles
Deleuze e Félix Guattari.
Deve-se encerrar esta introdução adiantando que a questão a partir da qual se
organiza esta tese, consistente no combate ao sistema e à doutrina do julgamento e que
se efetua por meio do procedimento de subtração: constituição…, não admite uma
resposta definitiva. Por sua própria natureza (afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade), esta questão tem por destino animar o movimento de sua eterna
repetição. Neste sentido, se esta tese investiga a natureza do movimento desta repetição
e os conceitos por ele suscitados, ela o faz sem pretender o impossível e sem desejar o
intolerável: abolir a questão que não se deixa extingüir. Afirmar o acaso, o devir e a
multiplicidade faz do sistema na filosofia da diferença um sistema de heterogêneos e em
perpétua heterogênese.

CAPÍTULO I
O combate e o procedimento
“O combate não é de modo algum a
guerra. A guerra é somente o combate-
contra, uma vontade de destruição, um
julgamento de Deus que converte a
destruição em algo justo. (…) O combate,
ao contrário, é essa poderosa vitalidade
não-orgânica que completa a força com a
força e enriquece aquilo de que se apossa.
O bebê apresenta essa vitalidade, querer-
viver obstinado, cabeçudo, indomável,
diferente de qualquer vida orgânica: com
uma criancinha já se tem uma relação
pessoal orgânica, mas não com o bebê, que
concentra em sua pequenez a energia para
arrebentar os paralelepípedos.” 2

Gilles Deleuze, desde seu primeiro livro, defende a idéia de que a filosofia deve
ser compreendida como elaboração de questões e desenvolvimento das implicações
necessárias da questão formulada. 3 Como desdobramento desse tema, Deleuze
conquistará, no último livro com Felix Guattari, a idéia de que a filosofia define-se
como arte de construção de um plano de imanência, de constituição de problemas e de
criação de conceitos. 4 Deleuze defende como princípio da boa leitura filosófica a
determinação do problema que, embora animando e dando sentido aos conceitos de um
filósofo, permanece necessariamente implícito. Será que, em sua obra, Deleuze revela
sua questão fundamental?
Paradoxalmente parece que sim. Todavia não de imediato, nem tampouco como
uma evidência. Ela está presente na obra, exprime-se nas seleções e interpretações de
problemas específicos dos filósofos estudados nas monografias que escreveu, suporta
implicitamente o desenvolvimento dos problemas postos pela filosofia da diferença,
mas, também e sobretudo, em alguns ensaios que poderiam passar por acessórios. 5
Os relevantes artigos “Nietzsche et Saint Paul, Lawrence et Jean de Patmos” e
“Pour en finir avec le jugement”, publicados em Critique et clinique, permitem afirmar
que a filosofia de Gilles Deleuze se desenvolve a partir da questão que emerge como um

2
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 167 (151)
3
Gilles Deleuze, Empirisme et subjetivité, pág. 119 (119/120): “De fato, uma teoria filosófica é uma
questão desenvolvida, e nada mais do que isso: por si mesma, em si mesma, ela não consiste em resolver
um problema, mas em desenvolver ao extremo as implicações necessárias de uma questão formulada. Ela
nos mostra o que as coisas são, o que é preciso que elas sejam, supondo que a questão seja boa e rigorosa.
Colocar em questão significa subordinar, submeter as coisas à questão, de tal modo que, nessa submissão
coagida e forçada, as coisas nos revelem uma essência, uma natureza.”
4
“Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser
isolados ou compreendidos na medida de sua solução (…) Deixemos de lado a questão de saber que
diferença há entre um problema na ciência e na filosofia. Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos,
a não ser em função dos problemas que se considera mal vistos ou mal colocados (pedagogia do
conceito).” Gilles Deleuze e Felix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 22 (27 e 28).
5
A rigor, deve-se dizer que, pelo menos uma vez, Gilles Deleuze formulou explicitamente a idéia de que
sua filosofia é um combate ao sistema do julgamento. Isto se deu no L’Abecedaire, com Claire Parnet, na
seção dedicada à Kant.
imperativo, vale dizer, o combate ao sistema e à doutrina do julgamento. 6 O desafio:
pensar sem julgar. A condição crítica dessa filosofia que se opõe à doutrina do
julgamento é, em nome de uma imanência absoluta, que o ser seja unívoco e,
consequentemente, que o conceito filosófico seja uma criação. Esse problema e sua
condição crítica abrem e dão sentido a um conjunto de outros problemas interligados e a
eles subordinados. 7
Assim compreendida, a obra de Gilles Deleuze é uma afirmação da filosofia
contra a ameaça de sua subordinação possível à religião, à metafísica e à ciência, bem
como uma crítica às críticas da metafísica, conjunto que abarca a crítica kantiana da
metafísica, a dialética hegeliana e todas as variantes de uma filosofia do sujeito.
Distinguir-se-ia igualmente da crítica da metafísica realizada pela anti-filosofia, a
psicanálise, por exemplo. Deleuze diferencia a filosofia da ciência. Filosofia e ciência
não possuem comunidade de funcionamento nem de objetivos: uma cria conceitos, a
outra estabelece funções. Contra a metafísica, Deleuze afirma um pensamento da
imanência e do devir, mas, diversamente da anti-filosofia, que também é uma crítica da
metafísica, sustenta que a imanência absoluta exige a univocidade do ser como
construcionismo ontológico
Portanto, se a filosofia da diferença deve ser compreendida como o
desenvolvimento de um conjunto de problemas, postos pela questão imperativa do
combate ao sistema do julgamento, deve-se começar por esclarecer como Deleuze
concebe o que sua filosofia deve combater. Em suma, deve-se responder à questão: em
que consiste o sistema do julgamento?

O sistema e a doutrina do julgamento

O sistema do julgamento ultrapassa o âmbito estrito da filosofia. Deleuze


assinala diversas proveniências. Alguns de seus aspectos emergem na mitologia e na

6
Apesar de Deleuze utilizar aparentemente de modo indistinto as expressões sistema do julgamento e
doutrina do julgamento, esta tese sugere que se estabeleça uma diferença. O sistema do julgamento deve
ser compreendido como um dispositivo histórico-cultural mais abrangente que a filosofia e a doutrina do
julgamento deve ser considerada como um dispositivo noológico que expressa o sistema do julgamento
no campo filosófico.
7
As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são, para Deleuze, as mesmas: "a
destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si própria coincide com a gênese do ato de
tragédia gregas, outros desenvolvem-se nas semióticas despóticas, notadamente no
Egito imperial, outros nas semióticas autoritárias, especialmente no judaísmo antigo,
por fim, mas não menos importante, a doutrina do julgamento configura-se, sobretudo,
com o desenvolvimento do cristianismo. 8 Em seguida, não obstante o sistema do
julgamento ultrapassar em larga medida o domínio filosófico, ele penetra na filosofia
compondo uma doutrina do julgamento, imagem dogmática do pensamento, que orienta
um conjunto de filosofias, aproximadas por Deleuze, pelo conceito de filosofia da
representação. 9
A característica mais geral e evidente do sistema do julgamento é constituir-se
como um dispositivo que, instituindo transcendências, confere um sentido à existência,
julgando-a e condenando-a. Segundo o sistema do julgamento, a existência é criminosa.
Entre os gregos, pré-cristãos, o sofrimento apresentava-se, simultaneamente, como
evidência da injustiça da existência e como meio de fornecer para ela uma justificativa
superior e divina. O mito de Prometeu concebe a existência como decorrência de um
crime divino, dá um sentido ao sofrimento humano sem, no entanto, responsabilizar os
homens pelo crime que eles expiam. Anaximandro, segundo Nietzsche e Deleuze,
elabora filosoficamente esta concepção da existência como culpada: “Os seres se pagam
uns aos outros a dor e a reparação de sua injustiça, segundo a ordem do tempo.” O que
significa: “1º que o devir é uma injustiça (adikia), e a pluralidade das coisas que vêm à
existência, uma soma de injustiças; 2º que elas lutam entre si, e expiam mutuamente sua
injustiça pela phtora; 3º que elas derivam todas de um ser original (“Apeiron”), que cai
num devir, numa pluralidade, numa geração de culpados, cuja injustiça ele redime
eternamente destruindo-os (“Teodiceia”).” 10 Segundo Nietzsche e Deleuze, falta aos
gregos a invenção semítica e cristã, a má consciência, a culpa e a responsabilidade: “em
relação ao cristianismo os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência,
seu ‘niilismo’ não tem a perfeição cristã. Eles consideravam a existência culpada, mas
não inventaram ainda o refinamento que consiste em julgá-la faltosa e responsável.” 11

pensar no próprio pensamento." Différence et répétition, págs. 182 (230 e 231).


8
Sobre os conceitos de semióticas despóticas e autoritárias ver Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille
plateaux, platô 5. “Sur quelques régimes de signes” e platô 7. “Anné zéro –Visagéité”.
9
Os livros Deleuze e a filosofia de Roberto Machado e Introdução à filosofia de Deleuze de Karla de
Almeida Chediak, apresentam, como elemento de seus estudos sobre a filosofia de Gilles Deleuze,
excelentes análises do conceito deleuziano de filosofia da representação.
10
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie. pág. 23 (16).
11
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie. pág. 25 (18).
Erguer transcendências, julgar a existência culpada, fazer do sofrimento a
expressão e evidência de sua culpa, e ao mesmo tempo o meio de sua redenção, são
determinações do sistema do julgamento, mas não as únicas, nem as mais importantes.
Em “Nietzsche et Saint Paul, Lawrence et Jean de Patmos”, Deleuze destaca
outros aspectos importantes do sistema do julgamento. A tese central, não propriamente
deste ensaio de Deleuze, mas a de Lawrence a propósito do Apocalipse, pressupõe que
João de Patmos não é o mesmo João que escreveu um evangelho e afirma que João de
Patmos inventa uma nova máscara que não se confunde com a de Cristo nem com a de
João, o evangelista. De acordo com Deleuze, Lawrence considera que João de Patmos
“fabrica uma máscara diferente que, conforme a nossa escolha, desmascara Cristo ou
então superpõe-se à dele. João de Patmos trabalha no terror e na morte cósmicas, ao
passo que o Evangelho e Cristo trabalham o amor humano, espiritual. Cristo inventava
uma religião do amor (uma prática, uma maneira de viver, e não uma crença), o
Apocalipse traz uma religião do Poder — uma crença, uma maneira terrível de julgar.
Ao invés do dom de Cristo, uma dívida infinita.” 12 Na realidade, a leitura atenta deste
ensaio revela uma complementariedade, a partir do encontro no empreendimento
comum de morte cósmica, entre a religião do Poder e a religião do Amor, que
configuram duas outras dimensões da doutrina do julgamento.
Contudo, antes de apresentar como os ensaios “Nietzsche et Saint Paul,
Lawrence et Jean de Patmos” e “Pour en finir avec le jugement” permitem compreender
as nuances do sistema do julgamento que a filosofia deleuziana se dá como questão
combater, convém, inicialmente, salientar o sentido da leitura e do diagnóstico de
Deleuze:

“Compreende-se de imediato a atualidade do Apocalipse e a de


Lawrence, que a denuncia. Tal atualidade não consiste em
correspondências históricas do tipo Nero = Hitler = Anticristo. Tampouco
no sentimento supra-histórico do fim do mundo e dos milenaristas, com
seu pânico atômico, econômico, ecológico e de ficção científica. Se
estamos imersos no Apocalipse, é antes porque este inspira em cada um
de nós maneiras de viver, de sobreviver e de julgar. É o livro de todos os

12
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 50 e 51 (45).
que se consideram sobreviventes. É o livro dos zumbis.” 13

Em que medida o ensaio “Nietzsche et Saint Paul, Lawrence et Jean de Patmos”


permite avançar na compreensão da sistema do julgamento? Na verdade, neste texto,
Deleuze faz mais do que, simplesmente, expor ou comentar o texto de Lawrence. Uma
vez que aproxima o Apocalipse de Lawrence do Anticristo de Nietzsche, Deleuze
produz um encontro, do qual participa ativamente, ao correlacionar as apreciações de
Lawrence e de Nietzsche sobre as interpretações de João de Patmos e de São Paulo, do
Cristo e do cristianismo. Na apreciação de Nietzsche, a oposição pertinente é entre
Cristo e São Paulo, na compreensão de Lawrence a oposição fundamental se estabelece
entre Cristo e João de Patmos. Segundo Deleuze, para Nietzsche, “Cristo é o mais
amoroso dos decadentes, uma espécie de Buda que nos libertava da dominação dos
sacerdotes e de toda idéia de culpa, punição, recompensa, juízo, morte e o que vem
depois da morte” 14 ; enquanto que para Lawrence, “o empreendimento de Cristo é
individual e seu problema era desfazer o sistema coletivo do sacerdócio-Antigo
Testamento, do sacerdócio judaico e de seu poder, mas só para libertar a alma individual
desta ganga” 15 . Na visão de Nietzsche, “São Paulo manteve Cristo na cruz, reconduziu-
o a ela incessantemente, fazendo-o ressuscitar, deslocando todo o centro de gravidade
para a vida eterna, inventando um novo tipo de sacerdote ainda mais terrível que os
anteriores, ‘sua técnica de tirania sacerdotal, sua técnica de aglomeração: a crença na
imortalidade, ou seja, a doutrina do julgamento’.” 16 De acordo com Lawrence o
personagem principal do cristianismo é Judas, depois João de Patmos e depois São
Paulo. “O que manifestam é o protesto da alma coletiva, a parte negligenciada por
Cristo. O Apocalipse faz valer a reivindicação dos ‘pobres’ ou dos ‘fracos’, pois estes
não são o que se crê, os humildes ou os infelizes, e sim esses homens muito temíveis
que só possuem alma coletiva.” 17
O Apocalipse reivindica a alma coletiva e a alma coletiva quer o Poder. Mas
qual é, segundo a análise de Lawrence, o sentido deste querer? De um lado, o João de
Patmos odeia Roma e quer destruir o poder do Império romano. De outro lado, o

13
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 51 (45 e 46).
14
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 51 (46).
15
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 (47).
16
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 (47).
17
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 52 e 53 (47).
Apocalipse sonha com um outro poder, fabrica uma nova imagem do poder: a alma
coletiva

“quer um poder cosmopolita, mas não às claras, como o do Império, e


sim em cada canto e recanto, em cada rincão escuro, em cada redobra
da alma coletiva. Enfim e sobretudo, ela deseja um poder último, que
não apele para os deuses, mas que seja o poder de um Deus sem
apelação e que julgue todos os demais poderes. O cristianismo não
pactua com o Império romano, ele o transmuda. É uma imagem do
poder inteiramente nova que o cristianismo vai inventar com o
Apocalipse: o sistema do Julgamento.” 18

Deleuze ressalta com Lawrence que este empreendimento da alma coletiva


inventará um novo tipo de sacerdote, para além do sacerdote judeu.

“Este ainda não possuía nem a universalidade nem a qualidade do


derradeiro, era demasiado local e ainda esperava alguma coisa. (…)
Submeterão Cristo à pior das próteses: farão dele o herói da alma
coletiva e o obrigarão a devolver à alma coletiva aquilo que ele jamais
quis dar. Ou melhor, o cristianismo vai dar-lhe aquilo que ele sempre
odiou, um Eu coletivo, uma alma coletiva. O Apocalipse é um Eu
monstruoso enxertado em Cristo.” 19

O Cristo do Apocalipse será sempre o conquistador, o destruidor.

“Ele, que não julgava e não queria julgar, será convertido numa peça
essencial do sistema do Julgamento. Pois a vingança dos fracos, ou o
novo poder, é mais precisa quando o julgar, a abominável faculdade
judicativa, torna-se a faculdade mestra da alma. (Sobre a questão
menor de uma filosofia cristã: sim, há uma filosofia cristã, não tanto
em função da crença, mas a partir do momento em que o julgar é
considerado como uma faculdade autônoma, tendo necessidade, por
esse motivo, do sistema e da garantia de Deus.)” 20

Com respeito à autonomia e à hegemonia da faculdade de julgar, a novidade do

18
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 54 (48).
19
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 54 (49).
20
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 55 (49 e 50).
apocalipse é uma programação maníaca da espera do juízo final. Mesmo que exista um
fundo judaico no Apocalipse (o destino diferido, o sistema recompensa-punição,
pecado-remissão, a necessidade do inimigo ter um sofrimento prolongado…) há nele
um

“elemento que não pertence enquanto tal ao Antigo Testamento, mas à


alma coletiva cristã, e que opõe a visão apocalíptica e a palavra
profética, o programa apocalíptico e o projeto profético. Pois, se o
profeta espera, já cheio de ressentimento, nem por isto deixa de estar
no tempo, na vida e espera um advento. E espera um advento como
algo imprevisível e novo, cuja presença ou gestação só conhece no
plano de Deus. Ao passo que o cristianismo só pode esperar um
retorno, e o retorno de algo programado nos mínimos detalhes. Com
efeito, se Cristo morreu, o centro de gravidade se deslocou, já não é a
vida, mas passou para além da vida, num pós-vida. O destino diferido
muda de sentido com o cristianismo, visto que não é só diferido mas
protelado, colocado depois da morte, depois da morte de Cristo e de
cada um.” 21

A este respeito, Deleuze conclui que o Apocalipse rompe a um só tempo com o


profetismo judeu (substitui a palavra profética pela visão apocalíptica, a ação pela
programação) e com a imanência de Cristo, para quem a eternidade era uma experiência
conquistada nesta vida, “sentir-se no céu”.
Ao contrário de São Paulo, culto demais para tolerar a emergência de elementos
do paganismo, João de Patmos aciona e revive, no Apocalipse, o mundo pagão. Deleuze
destaca e valoriza a análise de Lawrence sobre esta reativação de um fundo pagão no
Apocalipse. A este respeito, que artimanha Lawrence revela e decifra? O paganismo
ressurge, no Apocalipse, para destruir e ser destruído. Ele está a serviço do ódio aos
romanos e deve morrer para assegurar a morte do Império. Deleuze ressalta com
Lawrence que João de Patmos sente que para

“assegurar em visão a queda do Império romano é preciso juntar,


convocar, ressuscitar o Cosmos inteiro, é preciso destruí-lo a fim de
que ele mesmo arraste e sepulte o Império romano sob seus

21
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 56 (51).
escombros. Tal é esse estranho desvio, esse estranho viés pelo qual
não se ataca diretamente o inimigo: o Apocalipse precisa de uma
destruição do mundo para assentar seu poder último e sua cidade
celestial, e só o paganismo lhe fornece um mundo, um cosmos. Ele vai
então chamar de volta o cosmos para acabar com ele, para operar a sua
destruição alucinatória.” 22

Deve-se destacar a introdução da morte do mundo, a destruição do cosmos como um


componente do sistema do julgamento. Deleuze gosta da definição de Lawrence do
cosmos como o lugar dos grandes símbolos vitais e das conexões vivas, que Deleuze
compreende como a vida-mais-que-pessoal. Com a destruição do cosmos, de um lado,
consuma-se a substituição dos símbolos pelas alegorias, de outro lado, substitui-se o
interesse pelos começos pela idéia fixa com o fim, o fim do mundo e o juízo final. Com
isto a destruição deixa de ser concebida como injusta e torna-se justa:

“Destruir, e destruir um inimigo anônimo, intercambiável, um inimigo


qualquer, tornou-se o ato mais essencial da nova justiça. Consignar o
inimigo qualquer como aquele que não está em conformidade com a
ordem de Deus. (…) Talvez não haja muitas semelhanças entre Hitler
e o Anticristo, mas muita semelhança, em contrapartida, entre a Nova
Jerusalém e o futuro que nos prometem, não só na ficção científica
mas antes na planificação militar-industrial do Estado mundial
absoluto. O Apocalipse não é o campo de concentração (Anticristo), e
sim a grande segurança militar, policial e civil de um Estado novo
(Jerusalém celestial). A modernidade do Apocalipse não está nas
catástrofes anunciadas, mas na autoglorificação programada, na
instituição da gloria da Nova Jerusalém, na instauração demente de
um poder último, judiciário e moral.” 23

Deleuze sublinha com Lawrence a importância deste evento: a supressão do


símbolo, sua substituição pela alegoria. Qual é o sentido desta passagem? Como eles se
distinguem, o símbolo e a alegoria? Sobretudo, eles se opõem como uma potência
cósmica se diferencia de um poder último.

22
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 60 (54).
23
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 61 e 62 (55 e 56).
“Lawrence esboça alguns traços do símbolo, alternadamente. Trata-se
de um procedimento dinâmico para a ampliação, o aprofundamento, a
extensão da consciência sensível, é um devir cada vez mais
consciente, por oposição ao fechamento da consciência moral na idéia
fixa alegórica. É um método do Afeto, intensivo, uma intensidade
cumulativa que marca unicamente o limiar de uma sensação, o
despertar de um estado de consciência: o símbolo não quer dizer nada,
não é para ser explicado nem para ser interpretado, contrário à
consciência intelectual da alegoria. É um pensamento rotativo, em que
um grupo de imagens gira cada vez mais rápido em torno de um poder
misterioso, por oposição à cadeia linear alegórica. (…) O símbolo é
um turbilhão, ele nos faz voltear até produzir este estado intenso de
onde surge a solução, a decisão. O símbolo é um processo de ação e
de decisão (…) É o contrário do nosso pensamento alegórico; este não
é mais um pensamento ativo, porém um pensamento que não pára de
postergar ou diferir. Substituiu o poder de decisão pelo poder de
julgamento. Por isso exige um ponto final como um juízo final. (…)
Ver é o sentido que nos separa, a alegoria é visual. Ao passo que o
símbolo convoca e reúne todos os outros sentidos. O símbolo é feito
de conexões de disjunções físicas (…) pois o símbolo é o pensamento
dos fluxos, contrariamente ao processo intelectual e linear do
pensamento alegórico. O Apocalipse revela seu próprio objetivo;
desconcertar-nos do mundo e de nós mesmos.” 24

Resta uma última questão. Não mais referente à oposição do Apocalipse com o
mundo pagão, mas a oposição do Apocalipse ao Cristo enquanto pessoa. No entanto, no
que diz respeito a esta oposição, a do Cristo evangélico ao Cristo Apocalíptico, a do
Cristo do Amor ao Cristo do Poder, Deleuze, com Lawrence, diz que talvez eles estejam
mais unidos do que se fossem o mesmo. Deleuze explica que, segundo Lawrence, a
razão da reviravolta deve ser buscada na maneira que Cristo tinha de amar:

“O modo como amava já era horrível. É o que permitia uma


substituição de uma religião de Amor por uma religião de Poder.
Havia no amor de Cristo uma espécie de identificação abstrata, ou,

24
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 64 e 65 (58 e 59).
pior ainda, um ardor de dar sem nada tomar. Cristo não queria
responder às expectativas de seus discípulos, e mesmo assim não
desejava conservar nada, nem sequer a parte inviolável de si mesmo.
Tinha algo de suicida.” 25

A esse respeito Deleuze conclui:

“Entre Cristo, São Paulo e João de Patmos, o círculo se fecha: Cristo,


aristocrata, artista da alma individual e que desejava dar essa alma;
João de Patmos, o operário, o mineiro, que reivindica a alma coletiva
e quer tomar tudo; e São Paulo para arrematar, uma espécie de
aristocrata indo em direção ao povo, uma espécie de Lenin que dará à
alma coletiva uma organização, criará ‘uma oligarquia de mártires’,
dará a Cristo objetivos, e meios ao apocalipse. Não era preciso tudo
isso para formar o sistema do julgamento? Suicídio individual e
suicídio de massa, com auto glorificação por todos os lados. Morte,
morte, tal é o único julgamento.” 26

Convém realizar uma pequena pausa para sublinhar o que essa análise permite
destacar, até o momento, como os principais componentes do sistema do julgamento: 1.
A existência julgada como criminosa; 2. Os homens julgados responsáveis pelo crime
da existência; 3. A invenção de um novo tipo de sacerdote que organiza a espera de um
fim anunciado; 4. O deslocamento do centro de gravidade da vida deste mundo para
uma vida após a morte; 5. A política da vingança e a autonomia da faculdade judicativa;
6. Um sistema de poder como poder de um Deus sem apelação; 7. A destruição do
cosmos como meio de destruição de um inimigo qualquer que não está em
conformidade com a ordem de Deus; 8. A destruição dos símbolos vitais em favor das
alegorias fantasmáticas; 9. Consignar o inimigo qualquer como aquele que não está em
conformidade com a ordem de Deus. 10. O Amor de Cristo como possuindo uma
dimensão mortífera que faz da alma individual um Eu, uma imagem, um Sujeito.
Antes de passar à análise do ensaio “Pour en finir avec le jugement”, é
conveniente sublinhar as seguintes conexões. No sistema do julgamento as

25
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 67 (60).
26
Gilles Deleuze, Critique et clinique, págs. 67 e 68 (61).
transcendências, como peças essenciais para julgar a existência, são acionadas no
sentido da destruição do Cosmos, vale dizer, da Univocidade da Relação em favor da
Analogia e das Categorias que regem o mundo das alegorias e das imagens (a alma
converte-se num Eu, num Sujeito). Essa destruição surge como essencial para a
construção de um novo dispositivo de poder como poder de um Deus sem apelação.
Este ponto é crucial, pois revela que o deslocamento do centro de gravidade da vida
deste mundo para uma vida após a morte não se faz sem a exclusão de toda verdadeira
alteridade num mundo que se quer alegórico (analógico), composto por elementos fixos
e isolados, destituído de devir. Este componente do sistema do julgamento — um
mundo sem alteridade — é desenvolvido em Mille plateaux, especialmente no platô 7.
“Ano zero-rostidade”. Segundo Deleuze e Guattari, o rosto, no seu aspecto de ordenador
de normalidades, é o rosto de Cristo, vale dizer, o Homem branco médio qualquer. Os
desvios de padrão devem ser cristianizados, rostificados. Deleuze e Guattari são claros e
incisivos a este respeito:

“O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca


procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como
outro: seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o
estrangeiro como um “outro”. O racismo procede por determinação
das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que
pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os
traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado
lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los
no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é
um negro, é um louco…., etc). Do ponto de vista do racismo, não
existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem as pessoas
que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. A cisão não
passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das cadeias
significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O
racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas do
mesmo até a extinção daquilo que não se deixa identificar (ou só se
deixa identificar a partir de tal ou qual desvio). Sua crueldade só se
iguala a sua incompetência ou a sua ingenuidade.” 27

Percebe-se como esse componente que se exprime na atualidade no racismo europeu,


conecta-se com o outro componente que consigna o inimigo qualquer como aquele que
não está em conformidade com a ordem de Deus.
O combate ao sistema do julgamento não envolve, evidentemente, nenhum
desejo de retorno ao Cosmos pagão, à semiótica polívoca primitiva ou a qualquer outra
experiência histórica, apresenta-se antes como um desafio filosófico, um
empreendimento de afirmação da existência como acaso, devir e diferença e de
afirmação da filosofia da diferença como criação de conceitos que desenvolvam este
combate como combate que desfigura a representação, a doutrina do julgamento.
No ensaio “Pour en finir avec le jugement”, Deleuze expõe o sistema do
julgamento através de uma genealogia que revela, como pressupostos desta doutrina, o
endividamento dos existentes com os deuses, esta dívida convertida em dívida com um
Deus único e a imortalidade da existência. Evidencia-se que os juízos cognitivos
supõem, assim, como solo que os apoia, uma forma moral e religiosa:

“ é o ato de diferir, de levar ao infinito, que torna o julgamento


possível: este recebe sua condição de uma relação suposta entre a
existência e o infinito na ordem do tempo. (...) Mesmo o juízo (como
proposição) de conhecimento envolve um infinito do espaço, do
tempo e da experiência que determina a existência dos fenômenos no
espaço e no tempo (‘toda a vez que...’). Mas o juízo de conhecimento,
nesse sentido, implica uma forma moral e teológica primeira, segundo
a qual a existência está relacionada com o infinito conforme a uma
ordem do tempo: o existente como tendo uma dívida com Deus.” 28

Em que consiste esta dívida? O que se deve à divindade? Inicialmente os deuses


concedem aos existentes lotes que os obrigam a uma forma e a um fim orgânico: “eis o
essencial da doutrina do julgamento: a existência recortada em lotes, os afetos
distribuídos em lotes são referidos a formas superiores. (...) Os homens julgam à medida
que avaliam seu próprio lote e são julgados na medida em que uma forma confirme ou

27
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille plateaux, pág. 218 (45 e 46).
28
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 159 (144).
destitua sua pretensão.” 29 Seguindo os passos da Genealogia da moral de Nietzsche,
Deleuze assinala ainda um segundo momento do desenvolvimento da doutrina do
julgamento, que é a bifurcação efetuada pelo cristianismo: “não há mais lotes, pois são
nossos julgamentos que compõem nosso único lote, e tampouco há forma, pois é o
julgamento de Deus que constitui a forma infinita. No limite, lotear-se a si mesmo e
punir-se a si mesmo tornam-se as características do novo juízo ou do trágico
moderno.” 30
Apoiada no endividamento com Deus e na imortalidade da alma, a doutrina do
julgamento associa-se a um ambiente que favorece seu florescimento: o mundo apolíneo
do sonho. Segundo Deleuze:

“no sonho, os julgamentos se arremessam como no vazio, sem


enfrentar as resistências de um meio que os submeteria às exigências
do conhecimento e da experiência; eis por que a questão do
julgamento é primeiramente de saber se estamos sonhando. Por isso
Apolo é ao mesmo tempo Deus do julgamento e Deus do sonho: é
Apolo quem julga, impõe limites e nos encerra na forma orgânica; é o
sonho que encerra a vida nessas formas em nome das quais a
julgamos.” 31

A forma orgânica, a organização dos corpos, é o terceiro aspecto da doutrina


teológica do julgamento: “é que o julgamento implica uma verdadeira organização dos
corpos, através da qual ele age: os órgãos são juizes e julgados, e o julgamento de deus
é o poder de organizar ao infinito. Donde a relação dos julgamentos com os órgãos dos
sentidos.” 32
O último aspecto da doutrina do julgamento, tal como é exposta no ensaio
mencionado, é a guerra: “a guerra é somente o combate-contra, uma vontade de
destruição, um julgamento de Deus que converte a destruição em algo ‘justo’. (...) Na
guerra, a vontade de potência significa apenas que a vontade quer a potência como um
máximo de poder ou de dominação.” 33

29
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (146).
30
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (146).
31
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 162 (147).
32
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.163 (148).
33
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (151).
À doutrina do julgamento, são opostos por Deleuze a existência e seu sistema da
crueldade, no qual

“os existentes se enfrentam e se dão reparação segundo relações


finitas que só constituem o curso do tempo. (...) Começa-se
prometendo, e a dívida não é contraída em relação a um deus, mas
relativamente a um parceiro segundo forças que passam entre as
partes, provocam uma mudança de estado e nelas criam alguma coisa:
o afeto. (...) O sistema da crueldade enuncia as relações finitas do
corpo existente com as forças que o afetam, ao passo que a doutrina da
dívida infinita determina relações da alma imortal com os
julgamentos.” 34

Esta diferença entre dois regimes da dívida acarreta uma série de contraposições.
Ao elemento do sonho, a existência contrapõe os estados dionisíacos da
embriaguez e da insônia: “esse sono sem sonho onde no entanto não se dorme, essa
insônia que todavia arrasta o sonho até os confins da insônia, tal é o estado de
embriaguez dionisíaca, sua maneira de escapar ao julgamento.” 35 É possível interpretar
essa noção de insônia como a disposição das forças de irem a seu limite, de criarem e
relacionarem-se, pelo seu exercício mesmo, com o seu fora. 36
Face ao corpo orgânico do sistema do julgamento, a existência afirma a vitalidade
de um corpo sem órgãos — corpo insone que se define por uma vitalidade não orgânica,
por seus encontros com outras forças e potências. Trata-se de pensar e definir “um
corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e de ser afetado, isto é, Vontade
de Potência.” 37
Por fim, a existência faz-se como combate-entre forças que se subtraem ao
sistema de julgamento — e não através da guerra. “Porém, mais profundamente, o
próprio combatente é o combate”. 38 Deleuze quer assim, de um lado, sublinhar que a
existência é combate, de outro, acentuar o caráter parcial do combate contra o Outro,

34
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.161 (144 e145).
35
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.163 (148).
36
Não se deve confundir o conceito de Fora com uma exterioridade independente do pensamento. O Fora
do pensamento é criado pelo exercício mesmo do pensamento como seu limite extremo, como aquilo que
não pode ser senão pensado.
37
Gilles Deleuze, Critique et clinique., pág.164 (149).
38
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (150).
afirmando a dimensão ontológica do combate imanente à existência: “o combate-contra
procura destruir ou repelir uma força (...), mas o combate-entre, ao contrário, trata de
apossar-se de uma força para torná-la sua. O combate-entre é o processo pelo qual uma
força se enriquece ao se apossar de outras forças, somando-se a elas num novo conjunto,
num devir.” 39 O combate-entre cria assim um “centro de metamorfose”, no qual o
exercício mesmo da potência como “idiossincrasia de forças” permite pensar e
contrapor “decisão” e julgamento: “a decisão não é um julgamento, nem a conseqüência
orgânica de um julgamento, ela jorra vitalmente de um turbilhão de forças que nos
arrasta no combate. Ela resolve o combate sem suprimi-lo nem encerrá-lo.” 40
Qual é o sentido deste combate ao julgamento? Qual é a sua atualidade e
necessidade filosóficas? A importância do combate ao sistema do julgamento decorre da
necessidade moderna de uma ética que constituía uma nova relação do homem com o
mundo. Pois, como diz Deleuze, “o fato moderno é que já não acreditamos neste
mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como se
nos dissessem respeito apenas pela metade.” 41 Cabe a filosofia da diferença, ao
combater o julgamento, afirmar a potência da imanência à imanência tornando o
pensamento uma potência que afirma o que renasce da vida, o que metamorfoseia e cria.
Conclui-se dessas considerações que Deleuze, assumindo e desenvolvendo a
genealogia da moral nietzschiana, 42 determina dois planos de apreciação, duas
disposições não necessariamente filosóficas — uma que nega, acusa, julga e deprecia a
existência enfraquecendo a potência inventiva da experiência; outra, ao contrário,
criadora, acata, afirma e aprecia a existência —, com as quais a filosofia
necessariamente se relaciona. Compreendida como criação de conceitos, sua filosofia
pretende acolher a existência afirmando-a como experiência, vale dizer, como um
agenciamento prático que mobiliza no pensamento uma crueldade, uma embriaguez,
uma vitalidade, que o constitui como um combate por novos modos de vida. São esses
elementos que compõem e definem uma vontade de imanência.

39
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.165 (150).
40
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.168 (152).
41
Gilles Deleuze, L’image-temps, pág. 223 (207).
42
Além de uma incorporação implícita e explícita da perspectiva da Genealogia da moral nesse artigo, e
em outros, como “Nietzsche e São Paulo, D.H. Lawrence e João de Patmos”, Deleuze dedicou todo um
capítulo à análise desse livro no seu Nietzsche e a filosofia , tendo realizado, conjuntamente com Guattari,
sobretudo no terceiro capítulo do Anti-Édipo, um verdadeiro desenvolvimento de teses da Genealogia da
A afirmação ontológica e o problema da cultura

Compreende-se a importância que ocupa na filosofia de Gilles Deleuze a


construção de um plano de imanência, como um componente essencial do pensamento
que deseja combater o sistema do julgamento. A percepção da importância da fidelidade
à imanência, que direciona as análises e criações de Deleuze, pode ser ainda enriquecida
se ela for associada ao problema da afirmação ontológica.
No primeiro capítulo de Nietzsche et la philosophie , "Le tragique", Deleuze
interpreta o sentido do trágico na filosofia de Nietzsche. Após sublinhar os limites da
compreensão do trágico no Nascimento da tragédia, Deleuze argumenta que Nietzsche
acede ao sentido do trágico quando substitui a pergunta "a existência culpada é
responsável ou não?" por esta outra questão — "a existência é culpada ou inocente?"—,
que encontra como sua solução a afirmação da inocência do devir e de tudo o que é. A
fidelidade à imanência, pensada como afirmação trágica da inocência da existência,
sustenta-se, de acordo com a análise de Deleuze, sobretudo, por essas afirmações de
Nietzsche: "nada existe fora do todo" e "não há todo: é necessário esfarelar o universo,
perder o respeito pelo todo." A primeira afirmação proíbe toda pretensão, toda
transcendência e portanto retira toda possibilidade de julgar a existência. A segunda
afirmação assegura o mesmo, por outros meios: nesse caso, a inocência da existência
decorre da abertura do todo, isto é, da afirmação do acaso, da multiplicidade e do devir,
vale dizer, da ausência de começo e de término do devir.
Pode-se ainda associar a fidelidade à imanência e a filosofia da diferença com o
problema da cultura tal como ele é formulado por Deleuze, em Nietzsche et la
philosophie, no contexto da análise do ressentimento e da má-consciência. Deleuze
distingue três pontos de vista sobre a cultura: o ponto de vista pré-histórico, o histórico e
o pós-histórico. Reencontra-se o tema da seleção e de seus tipos no centro do
questionamento filosófico da vida e da cultura.
É sobretudo a questão da origem da má-consciência que comanda a análise do
problema da cultura, mas é o esclarecimento do problema dos tipos de adestramento e

moral , e com isso uma nova atualização do espírito desse livro.


de seleção, como funções essenciais da cultura, que permite o entendimento do sentido
da distinção de três pontos de vista sobre a cultura e que põe sob nova ótica o problema
da criação e da seleção ontológica: a seleção não mais como seleção transcendente de
pretendentes, mas como seleção imanente de potências.
A cultura é definida pelas atividades de adestramento e de seleção, inseparáveis de
um sistema de crueldade: trata-se, seja de que ponto de vista for, da formação, da
constituição de um indivíduo, de um processo de individuação que se faz por inscrições
sobre o corpo. Para Nietzsche, tal como faz ressaltar a análise de Deleuze, o homem é
um animal esquecido, um animal marcado por uma faculdade ativa de esquecimento.
Portanto imprevisível, incoerente, inconstante e irresponsável. A cultura do ponto de
vista pré-histórico visa a adestrar o homem, dotando-o de uma memória da palavra, do
futuro, do engajamento 43 e, assim, produzir um homem capaz de prometer. “Só um tal
homem é ativo; ele aciona as suas reações, nele tudo é ativo ou acionado. A faculdade
de prometer é o efeito da cultura como atividade do homem sobre o homem; o homem
que sabe prometer é o produto da cultura como atividade genérica.” 44 Esse produto é o
efeito ou correlato do funcionamento de um sistema de crueldade que faz da dor um
equivalente de um esquecimento, de uma promessa não sustentada. “A cultura
relacionada a esse meio chama-se justiça; esse meio ele mesmo chama-se castigo (...).
Nietzsche nos apresenta a linhagem genética seguinte: 1º) a cultura como atividade pré-
histórica ou genérica, empresa de adestramento e seleção; 2º) o meio acionado por essa
atividade, a equação do castigo, a relação da dívida, o homem responsável; 3º) o
produto dessa atividade: o homem ativo, livre e potente, o homem que pode prometer.”
Essa análise permite compreender a incompatibilidade e a exterioridade do
ressentimento e da má-consciência com respeito aos processos da cultura. Nem a justiça
tem origem no espírito de vingança ou no ressentimento; nem a má-consciência decorre
do castigo. A cultura do ponto de vista pré-histórico remete, no seu produto, à cultura do
ponto de vista pós-histórico:

“Nietzsche nos ensina aqui que não se deve confundir o produto da


cultura com seu meio. A atividade genérica do homem o constitui
como responsável por suas forças reativas: a responsabilidade-dívida.

43
Memória que é distinta de uma memória reativa, feita de traços mnêmicos do passado.
44
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 154 (111).
Mas esta responsabilidade é apenas um meio de adestramento e de
seleção; ela mede progressivamente a aptidão das forças reativas a
serem acionadas. O produto finito da atividade genérica não é o
homem responsável ou o homem moral, mas o homem autônomo e
super-moral, isto é, aquele que aciona efetivamente suas forças
reativas e no qual todas as forças reativas são acionadas. (...) O
produto da cultura não é o homem que obedece à lei, mas o indivíduo
soberano e legislador que se define pelo poder sobre si mesmo, sobre
o destino, sobre a lei: o livre, o ligeiro, o irresponsável.(...) Nietzsche
fala de uma autodestruição da justiça. A cultura é a atividade genérica
do homem; mas sendo seletiva toda essa atividade, ela produz o
indivíduo como seu objetivo final no qual o próprio genérico é
suprimido.” 45

Deleuze distingue no adestramento dois elementos: aquilo a que se obedece —


“sempre histórico, arbitrário e estúpido” — e que representa as forças reativas; e o fato
de obedecer-se à lei: “toda lei histórica é arbitrária, o que é genérico e pré-histórico é a
lei de obedecer a leis.” 46 Pois bem, o ponto de vista histórico sobre a cultura define-se
pela confusão da lei com seu conteúdo, da forma da lei com seu conteúdo reativo. O
correlato desta confusão — confusão que se apoia numa ficção, numa aparência de
atividade e de justiça — não é o homem livre, mas o homem domesticado: “utilizam-se
os procedimentos de adestramento, mas para fazer do homem o animal gregário, a
criatura dócil e domesticada. Faz-se uso dos procedimentos de seleção, mas para
quebrar os fortes, para ficar com os fracos, os sofredores ou os escravos. A seleção e a
hierarquia são postas de cabeça para baixo. A seleção torna-se o contrário daquilo que
era do ponto de vista da atividade; ela é apenas um meio de conservar, de organizar e de
propagar a vida reativa.” 47
Adianta-se, aqui, a hipótese de pensar a doutrina do julgamento como doutrina
que elabora as ficções essenciais para a constituição do ponto de vista histórico sobre a
cultura. Sabe-se que, de acordo com a interpretação deleuziana de Nietzsche, o ponto de

45
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 157 e 158 (114).
46
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie,, pág.153 (111).
47
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 (115).
vista histórico sobre a cultura confunde-se com o desenvolvimento do niilismo, conceito
nietzschiano que corresponde à idéia deleuziana de um sistema do julgamento. Segundo
Deleuze, para Nietzsche, a vida assume o valor de nada desde que negada, depreciada. E
importa, no caso, ressaltar que, segundo Deleuze, para Nietzsche, a depreciação da vida
depende sempre de uma ficção:

“é por ficção que se falseia e se deprecia, é por ficção que se opõe


alguma coisa à vida. A vida inteira torna-se então irreal, é
representada como aparência, assume em seu conjunto um valor de
nada. A idéia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com
todas as suas formas (Deus, a essência, o bem, o verdadeiro), a idéia
de valores superiores à vida não é um exemplo entre outros, mas o
elemento constitutivo de qualquer ficção. Os valores superiores à vida
não se separam de seu efeito: a depreciação da vida, a negação deste
mundo. E se não se separam desse efeito é porque têm por princípio
uma vontade de negar, de depreciar.” 48

Em contrapartida, sendo essa correlação verdadeira, pode-se sustentar que o pensamento


de Deleuze busca dar consistência filosófica à articulação dos pontos de vistas pré e
pós-históricos sobre a cultura — um projeto que é inseparável da desarticulação das
ficções que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear e articular numa
imagem do pensamento que se quer confundir com a própria natureza do pensamento.
Em consonância com esta compreensão, a hipótese central desta tese propõe que
a questão “o que é pensar, quando pensar não é julgar” é a matriz dos problemas
construídos pelo pensamento de Gilles Deleuze. Esta questão que também pode ser
expressa positivamente — “a questão da filosofia é o ponto singular onde a criação e o
conceito remetem um ao outro” 49 —, conforma um novo sentido à noção de sistema
filosófico, sistema aberto e em heterogênese, e, como se demonstrará, exige um novo
processo crítico: o procedimento de “subtração: constituição...” como procedimento
adequado e necessário para o desenvolvimento desta aventura filosófica que é a filosofia
da diferença.

48
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
49
Gilles Deleuze Felix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 16 (20).
O procedimento de subtração: constituição…

É importante evidenciar que as noções de questão e problema são conceitos


criados por Gilles Deleuze, justamente para determinar o estatuto do pensamento e do
ser na filosofia da diferença. Sendo assim, deve-se destacar, desde logo, um
procedimento fundamental deste trabalho: dobrar a obra deleuziana, não para fechá-la
sobre si mesma, mas, submetê-la à sua própria prova, na expectativa de conquistar dela
uma leitura imanente, que não ignore sua lógica e seu caráter sistemático. Nesse sentido,
a partir da hipótese de que esta filosofia elaborou-se em torno da questão imperativa “o
que é pensar, quando pensar não é julgar”, torna-se fundamental, complementando esta
hipótese, determinar sua condição crítica. Chega-se assim a esta outra hipótese: a
questão que pretende combater a doutrina do julgamento exige, em nome de uma
imanência absoluta, que o ser seja unívoco e que o conceito filosófico seja uma criação.
Como vimos, esta questão e sua condição crítica determinam um novo procedimento
crítico, que se articula com uma nova compreensão de sistema em filosofia.
Deleuze pronuncia-se acerca do caráter de sistema da filosofia? Na carta-
prefácio ao livro de Jean-Clet Martin (Variations, la philosophie de Gilles Deleuze),
Deleuze afirma:

“Creio na filosofia como sistema. A noção de sistema me desagrada


quando ela é relacionada às coordenadas do Idêntico, do Semelhante,
do Análogo. Foi Leibniz, creio, quem primeiro identificou sistema e
filosofia. No sentido em que ele o faz, eu me associo a ele. As
questões ‘ultrapassar a filosofia’, ‘morte da filosofia’, jamais me
tocaram. Sinto-me um filósofo clássico. Para mim, o sistema não deve
estar somente em perpétua heterogeneidade, deve ser uma
heterogênese, o que, parece-me, jamais foi tentado.” 50

Deleuze nos autoriza, pois, a pensar sua filosofia como um sistema. Mas como fazê-lo?
Como conceber a noção de sistema prescindindo da noção de um todo fechado? E,
sobretudo, como compreender a lógica da sua construção? Deleuze nos auxilia? Parece

50
Gilles Deleuze, “Lettre-préface”. In: Jean-Clet Martin Variations, la philosophie de Gilles Deleuze.
que sim. Seu pequeno ensaio, Un manifeste de moins, sobre o teatro de Carmelo Bene,
traz, com efeito, esclarecimentos preciosos sobre a lógica da construção do sistema de
sua filosofia. Uma das hipóteses desta tese é que, nesse ensaio, Deleuze fala, através do
teatro de Carmelo Bene, do seu próprio procedimento, ou seja, das operações que
sustentam a experimentação do seu pensamento na filosofia.
No mencionado ensaio, Deleuze busca esclarecer a natureza da relação crítica que
o teatro de Carmelo Bene trava com o teatro e, em particular, com o de Shakespeare.
Não se trata, nesse teatro, de uma crítica que vise ao autor, nem de fazer teatro no teatro,
nem de uma paródia, nem de uma nova versão. Carmelo Bene procede por subtração,
retira de cada peça um elemento, um personagem: a peça afetada movimenta-se, e uma
nova peça surge em decorrência dessa manobra. Mas o que resulta daí? A nova peça se
confunde com a fabricação de um novo personagem que se elabora durante a peça. Esse
teatro crítico é apresentado, assim, como um teatro constituinte. O diretor é definido
como um operador: aquele que realiza o movimento de subtração que se faz
acompanhar da criação de um novo elemento: “amputação de Romeu e
desenvolvimento gigantesco de Mercutio, um no outro.” 51 Mas, se é claro, para
Deleuze, que seu alvo não é Shakespeare, sobre o que incide essa crítica? O que se tem
inicialmente em vista são os elementos subtraídos, são os marcadores de poder do
sistema da representação: o poder que é representado e o poder do próprio teatro.
Deleuze argumenta: “o poder específico do teatro não é separável de uma representação
do poder no teatro, mesmo se é uma representação crítica.”52 Essa subtração é o que
desencadeia uma nova peça, na qual se observa o desenvolvimento de uma nova matéria
e de uma nova forma teatral.
Prosseguindo a análise, Deleuze argumenta que um autor pode ser objeto de dois
tipos de tratamento. Pode-se elevá-lo ao maior: “de um pensamento se faz uma doutrina,
de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História.
Pretende-se assim reconhecer e admirar, mas de fato normaliza-se.” Pode-se, ao
contrário, submeter o autor a um tratamento menor ou de “minoração”: “para extrair

Pág. 7.
51
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 89.
52
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág.93. É importante aqui sublinhar que
Deleuze compreende por poder o mais baixo grau da potência. E a potência no seu mais baixo grau,
segundo Deleuze, caracteriza-se, enquanto poder, pela “potência” de bloquear a efetuação de novas
potências, separando a potência de sua criatividade.
devires contra a História, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina, graças
ou desgraças contra o dogma.” 53 O primeiro tratamento reforça, no sistema do autor, as
estruturas de poder e os marcadores de poder destas; o segundo, ao contrário, extrai do
sistema linhas de variação contínua que constituem regras imanentes de outro tipo. As
linhas de variação decorrem, segundo a análise de Deleuze, da subtração da história,
porque a História é o marcador temporal do poder; da estrutura, porque é o marcador
sincrônico; das constantes, elementos estáveis ou estabilizados; do texto, porque este
significa a dominação da língua sobre a fala; do diálogo, porque o diálogo faz circular
os elementos de poder. Mas o que resta ao fim desse conjunto de subtrações, indaga-se
Deleuze. Resta tudo, diz ele, mas sob uma nova luz, com novos sons e novos gestos.
Deleuze resume do seguinte modo os elementos que constituem o procedimento
da criação no teatro de Carmelo Bene: “1) extração dos elementos estáveis, 2) pôr tudo
em variação contínua, 3) desde então também transpor tudo em termos de ‘menor’.” 54
Desse tratamento imposto a um texto original advirão, segundo Deleuze, a subordinação
da forma ao movimento e a subordinação do sujeito à intensidade dos afetos; tal
tratamento também evitará sobre a cena a representação de conflitos, que aprisionaria o
devir na contradição. Assim se define uma função anti-representativa cujo sentido seria
a criação de uma consciência minoritária. O procedimento de subtração — que
desencadeia o processo de variação contínua — é responsável por essa potência de
transbordar o limiar representativo do padrão majoritário.
Se de um lado, como foi até agora ressaltado, este procedimento pode ser
apreendido segundo uma orientação que vai da subtração à constituição, deve-se
enfatizar, no momento, que a outra orientação, que vai da constituição à subtração é, em
outro nível, mais verdadeira. No primeiro caso, deve-se compreender a subtração como
uma operação que retira algo, um ou mais elementos, de um conjunto. Operação que
força uma redefinição do conjunto, isto é, dos elementos que permanecem e de suas
relações e, em conseqüência, do sentido dos termos assim relacionados. Mas, no
segundo caso, a subtração não sendo primeira, nem apenas a operação de retirar algo de
um conjunto já estabelecido, ela assume outro valor: como conseqüência de uma nova
afirmação, designa, agora, o que não entra e não pode entrar no novo conjunto afirmado,

53
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 97.
54
Gilles Deleuze, Superpositions. Les Éditions de minuit, pág. 106.
o que não tem mais cabimento em vista de uma outra definição dos seres e das coisas.
São esses os dois sentidos que esclarecem os dois tempos de uma crítica produtiva. A
subtração, no primeiro sentido, abre, apenas abre, a possibilidade da constituição, isto é,
da afirmação do novo; mas é preciso saber que é, finalmente, a afirmação do novo que
pode dar necessidade à subtração: esta deixa, então, de ser um momento contingente da
aventura do pensamento e torna-se o efeito de um novo pensamento que se constitui. 55
É importante ressaltar que a subtração não é uma negação que prepara uma
superação que reintegra, numa nova unidade, o que foi inicialmente subtraído. Neste
sentido, deve-se sublinhar a que escrita “subtração: constituição …” visa evidenciar, na
sua estrutura mesma, o caráter não dialético do procedimento de subtração:
constituição… Por que essa grafia, que repete a estrutura paradoxal do título do último
ensaio de Gilles Deleuze “L’ immanence: une vie…”, evitaria toda confusão com a
oposição dialética? As considerações de Giogio Agamben a propósito de uma filosofia
da pontuação permitem esclarecer essa questão. No que diz respeito ao valor dos dois
pontos: eles evitam o hífen — que pode ser considerado o mais dialético dos sinais de
pontuação, porque une só na medida em que distingue e vice-versa. Além deste aspecto,
ainda de acordo com a reflexão de Giorgio Agamben:

“Na série que vai do sinal = (identidade de sentido) ao hífen (a


dialética da unidade e da separação), aos dois pontos cabe, assim, uma
função intermediária. Deleuze poderia ter escrito ‘A imanência é uma
vida”. Se, em vez disso, usou os dois pontos, é porque evidentemente
não mirava nem a uma simples identidade nem somente a uma
conexão lógica. (…) Entre a imanência e uma vida, os dois pontos
introduzem algo menos que uma identidade e mais que um
agenciamento, ou melhor, um agenciamento de espécie particular,
algo como um agenciamento absoluto, que inclui também a ‘não-
relação’, ou a relação que deriva da não-relação, de que ele fala no

55
A análise do procedimento da obra de Louis Wolfson conduz Deleuze à conclusão: “O procedimento
impele a linguagem a um limite, mas nem por isso o transpõe. Ele devasta as designações, as
significações, as traduções, mas para que a linguagem afronte enfim, do outro lado de seu limite, as
figuras de uma vida desconhecida e de um saber esotérico. O procedimento é apenas a condição, por mais
indispensável que seja. Chega às novas figuras quem sabe transpor o limite.” Cf. Gilles Deleuze, Critique
et clinique, pág. 32 (30).
ensaio sobre Foucault, a propósito da relação com o dehors. (…)
Nesse sentido, os dois pontos representam o deslocamento da
imanência em si mesma, a abertura a um outro que porém, permanece
absolutamente imanente. Isto é, aquele movimento que Deleuze,
jogando com a emanação neoplatônica, chama de imanação.” 56

No que diz respeito aos três pontos pode-se dizer que eles fecham e deixam aberto o
título. Desse modo, ainda seguindo a análise de Giorgio Agamben as reticências
acentuam a natureza virtual de uma vida singular. Esta, “uma vida…” só se define
através desta virtualidade que lhe evita toda transcendência.
Não cabe aqui, neste momento, investigar o conceito de imanência na filosofia
de Gilles Deleuze. A retomada das considerações de Giorgio Agamben sobre o sentido
dos sinais de pontuação no título “L’immanance: une vie…” servem para esclarecer o
uso, nesta tese, deste agenciamento sintático paradoxal na expressão do procedimento
de subtração: constituição… No caso em questão, os dois pontos designam tanto o
duplo movimento imanente da subtração à constituição e da constituição à subtração,
quanto o limite que torna esses dois movimentos, não idênticos, indiscerníveis. As
reticências indicam a abertura do procedimento para os movimentos de virtualização e
de atualização que se subtraem a toda transcendência.
Um dos propósitos dessa tese é tomar esse procedimento de “subtração:
constituição...” como operador decisivo das análises concretas e da construção do
sistema da filosofia de Deleuze 57 . A sugestão é a de que sua filosofia se constrói
segundo um duplo movimento: 1) de subtração dos marcadores de poder internos à
filosofia e ao pensamento e 2) construção de novas questões, criação de problemas que
se desenvolvem com a criação de novos conceitos, constituindo nisto a relação original
de Deleuze com a filosofia.
Como “historiador da filosofia” ou como “autor original”, Deleuze estabelece com
a filosofia uma relação que evita a oposição entre o seu pensamento — na posição de
sujeito — e o sistema de um outro filósofo — na posição de objeto. Buscando esclarecer
sua relação com a história da filosofia, ele afirma:

56
Giogio Agamban, “L’ immanence absoute”. In: Éric Alliez (org), Gilles Deleuze: une vie
philosophique, pág. (171)
57
É importante notar que a subtração atua no nível mesmo da concepção de sistema em filosofia: a
“A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva.
É, antes, como a arte do retrato em pintura. São retratos mentais,
conceituais. Como em pintura, é necessário fazer semelhante, mas por
meios que não são semelhantes, por meios diferentes: a semelhança
deve ser produzida, e não meio de reproduzir (...) A história da
filosofia deve, não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele
subentendia necessariamente, aquilo que ele não dizia e que está
entretanto presente no que ele diz”. 58

Como entender essa declaração? Não se trata apenas de revelar os problemas


subentendidos, problemas cuja emergência deixaria inalterado o sistema a que dão
sentido quando mantidos implícitos. Essa “arte do retrato” deve ser aproximada dos
procedimentos de subtração: constituição... e do conceito de figural, proposto por
Lyotard e retomado por Deleuze no seu estudo sobre a pintura de Francis Bacon. O
figural 59 opõe-se à figura e implica um tratamento distinto da arte figurativa, do
abstracionismo e do expressionismo abstrato. Sua principal característica é pretender
ultrapassar a representação, pintando as forças que emergem de uma figura quando esta
se desfigura (o figural) em decorrência da subtração dos elementos que a submetiam ao
sistema da representação. O figural expõe as forças e os devires que se mantinham
aprisionados na figura. Resulta do cuidado de, a um só tempo, fazer fugir o modelo e
evitar que o pensamento se perca na pura abstração espiritual ou no puro caos informal.
Assim são os retratos mentais que Deleuze cria ao revelar aquilo que o filósofo não diz,
e que está, todavia, presente no que ele diz.
Eis uma das conseqüências da afirmação de Deleuze que diz que sua filosofia
começa pelo meio 60 : algo nela emerge na fissura criada pelas subtrações efetuadas sobre

afirmação de um sistema em heterogênese decorre da subtração das idéias do Todo e do Um.


58
Gilles Deleuze, Pourparlers. Les éditions de minuit, pág. 186.
59
Cf. Deleuze, La Lógique de la Sensation, Éditions de la Différence, pág. 9: “A pintura não tem nem
modelo para representar, nem história para contar. Assim ela tem duas vias possíveis para escapar ao
figurativo: uma em direção da forma pura, por abstração; outra em direção ao puro figural, por extração
ou isolamento. Se o pintor faz questão da Figura, se toma a segunda via, será para opor o “figural” ao
figurativo.”
60
Pode-se dizer da filosofia de Deleuze o que Bachelard disse da ciência, no livro Le racionalisme
appliqué:, pág. 54: ela continua mais do que começa. E, se daí decorre uma ontologia, “é necessário que
seja a ontologia de um devir psíquico que provoca uma ontogenia de pensamentos.” Temos aqui uma
indicação, uma pista, para compreender o que pode ser um sistema heterogêneo e em perpétua
heterogênese: um sistema que se alimenta com a determinação de problemas e que encontra sua gênese na
articulação das subtrações dos marcadores filosóficos de poder com a constituição de linhas ou processos
um outro pensamento que, privado de suas constantes e de seus elementos de
estabilização, expõe-se a determinações virtuais. Como sua filosofia não tem a forma de
um pensamento já dado, aparece sempre se repetindo, Deleuze aciona experiências de
pensamento e ativa problemas (e não dados) que tornam indiscerníveis as fronteiras
entre o seu próprio pensamento e o do sistema que ele revela no pensamento de outro
filósofo.
Esse procedimento de subtração: constituição... pode ser concebido como meio
de ativar uma jurisprudência propriamente filosófica e relacionado ao que Badiou
concebe, no seu livro Deleuze: la clameur de l’Etre, como uma ética que exige a
conquista de uma consistência impessoal e a ascese do pensamento. Segundo Badiou, o
método de Deleuze exige que se parta de um caso, que o pensamento se instale onde ele
já começou, no seu movimento mesmo. Segundo uma das hipóteses desta tese, o
procedimento de subtração: constituição... designa o próprio modo como isso se faz, a
maneira como Deleuze movimenta o pensamento e a filosofia. As análises concretas de
Deleuze, os seus casos de pensamento, se impõem como problemas acionados por
encontros suscitados pelo desenvolvimento da questão imperativa. Neste sentido,
constituem-se como uma prova para o pensamento ativado por esse procedimento,
variável de subtração ativa.
Cada caso se impõe ao pensamento como um desafio: trata-se sempre de
construir uma multiplicidade, de escapar dos impasses da representação e da oposição
do Um e do Múltiplo. Para esse pensamento que se define como um construtivismo, o
múltiplo jamais se alcança por acréscimo, faz-se antes por subtração 61 . Contudo, não se
pode qualificar de monótonas essas repetições. Pois, uma vez que se trata sempre de
escapar da doutrina do julgamento, erguendo uma multiplicidade e evitando os impasses
da representação e da oposição do Um e do Múltiplo, deve-se considerar que em cada
livro Deleuze elabora novos problemas que se interligam na dependência da questão
maior de construir uma filosofia que se afirma como criação de conceitos.
Deleuze demarcou o campo de seus problemas com essas questões: o que é

de vitualização, e cuja consistência depende da criação dos conceitos correspondentes.


61
“É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da
maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é
somente assim que o uno faz o múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o uno da multiplicidade
a ser construída: escrever a n-1”. Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, pág. 13 (15)
pensar, quando pensar não é julgar? Como pensar uma imanência absoluta? 62 São essas
as faces de uma questão que dirige e dá um sentido propriamente filosófico ao
procedimento de “subtração: constituição...”: é a partir desta questão imperativa que se
instituem os problemas, constitutivos do movimento da filosofia deleuziana, e os
conceitos que, desenvolvendo esses problemas, tecem e dão consistência a esta nova
perspectiva filosófica.
Pode-se estudar em cada um dos “casos de pensamento” de Deleuze o que é
subtraído e o que se desenvolve. O “caso Hume”, por exemplo, pode ser assim
formulado: como pensar o sujeito e a experiência se não se enfatiza no empirismo o
atomismo e acentua-se o associacionismo? Ressaltam dessa investigação a afirmação da
exterioridade das relações sobre os termos e a afirmação da potência constituinte do “e”
contra o poder atributivo do “é”. O “caso Bergson” minimiza a distinção matéria e
espírito e acentua os conceitos de virtual e de atualização, fazendo do pensamento uma
teoria das multiplicidades intensivas. O “caso Édipo” retira a falta do inconsciente e do
desejo e elabora um pensamento das sínteses imanentes do inconsciente, também
pensado como multiplicidade intensiva. O “caso Espinosa” buscou pensar um
espinosismo onde os modos se liberassem da substância, operando a conversão pela
qual o ser unívoco deve se dizer da diferença, fazendo neste sentido a substância girar
em torno dos modos; e desenvolvem-se assim uma teoria da expressão e uma ética da
potência. Pode-se, ainda, sem pretender concluir um levantamento exaustivo, observar
uma série de outras subtrações ativas: Como pensar a linguagem sem os pressupostos da
linguística e da comunicação? Que resultaria do platonismo se dele subtraíssemos as
figuras do Mesmo e do Idêntico? Como compreender a sociabilidade se dela
subtraíssemos o “Estado” como processo de captura? O que pensar do corpo se dele
subtrairmos o organismo, a subjetivação e a significação? ou “Como fazer um Corpo
sem Órgãos?” Como pensar o pensamento se excluirmos a unidade do sujeito e a
unidade do objeto que garantem um acordo entre suas faculdades?

62
Pondo esse problema na sua generalidade máxima, pode-se dizer que, quando se subtrai do pensamento
as figuras do Mesmo, do Idêntico, do Semelhante, do Análogo, é a Diferença que se constitui como o que
pode e deve ser pensado. Uma filosofia da imanência radical é uma filosofia da Diferença. A diferença
seria, nesse sistema, o conceito que assegura a consistência da imanência, o conceito que abriria o
pensamento para a criação de todos os outros conceitos e que permitiria conceber a filosofia como uma
lógica das multiplicidades.
Não se trata aqui, nesse momento, de estudar, nem mesmo de mencionar todos os
casos do pensamento deleuziano. Desejamos apenas sugerir que uma vontade de
imanência dirige os procedimentos sempre concretos e variados de “subtração:
constituição...” que atualizam os casos de pensamento da filosofia de Deleuze. Esse
procedimento permite ultrapassar a oposição entre um Deleuze “historiador da filosofia”
e um outro Deleuze “autor”, que constrói uma filosofia original. Na realidade, nada na
obra de Deleuze justifica essa distinção. Seus livros de “história da filosofia” não são
livros sobre uma filosofia acabada — os filósofos não são objetos, são antes
intercessores 63 de um pensamento que se constrói. É preciso ressaltar também que se
Deleuze é fascinado por essa experimentação, é porque ela possibilita o trabalho de
criação de conceitos, de criação de novas consistências no pensamento. Desse modo,
deve-se salientar o erro que consistiria em reduzir o alcance do procedimento de
subtração: constituição... a um mero procedimento de leitura de sistemas filosóficos ou
artísticos já estabelecidos. Ao contrário, em certa medida, é este procedimento que
permite a Gilles Deleuze não diferenciar, do ponto de vista da criação filosófica, seu
trabalho em história da filosofia de sua obra filosófica. Não só porque seu procedimento
de subtração: constituição... lhe permitiu uma seleção conceitual imanente à construção
dos retratos filosóficos dos filósofos que estudou, mas, sobretudo, porque esta seleção
teve sempre o sentido de contribuir para a realização de suas próprias peças filosóficas,
nas quais, certos conceitos, migrados de outros sistemas, assumiram novas funções, e,
relativamente ao sistema de partida, um desenvolvimento desmesurado. Além desta
operação de revezamento, cabe sublinhar que o procedimento de subtração:
constituição... anima, também internamente, os livros nos quais Gilles Deleuze elabora
seus problemas e cria seus conceitos próprios.

A reversão do platonismo

Deve-se sublinhar que esta tese sustenta que o sistema do julgamento penetra na

63
Deleuze diz a propósito da relação da filosofia com a ciência e com a arte: “o importante nunca foi
acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer o seu próprio movimento.(...) As interferências não são
mais de troca: tudo se faz por dom ou captura. (...) O que é essencial são os intercessores. A criação são
os intercessores. Sem eles, não há obra. (...) Eu tenho necessidade de meus intercessores para me
exprimir, e eles não se exprimiriam jamais sem mim: trabalha-se sempre com vários, mesmo quando isto
filosofia articulando uma doutrina do julgamento. Como já foi mencionado, é possível
sustentar a hipótese de que a representação é uma expressão filosófica do sistema do
julgamento. Deleuze considera que a representação é incapaz de pensar a diferença nela
mesma, pois por sua estrutura ela subordina o diverso às exigências da identidade e do
conceito, tal como foi definido pela metafísica. Além disso, segundo Deleuze a
representação se define pelo primado da Identidade, e a razão dessa subordinação é a
mesma que dá nascimento à metafísica, definida, segundo Deleuze, pelo platonismo.
É portanto oportuno examinar como o procedimento de subtração dos
marcadores de poder opera na construção da questão da “reversão do platonismo”. A
exposição deste exercício do procedimento é justificável, no seu detalhe, pela hipótese
de que a reversão do platonismo dá a orientação geral da filosofia de Deleuze.
Eis, para Deleuze, o sentido da teoria das Idéias 64 : referir a existência às
essências, aos modelos, como a operação mesma do julgamento. O platonismo se
esclarece sobretudo por essa vontade de selecionar, de “fazer a diferença”. Mas, nesse
sentido, o mais importante não é distinguir o original da cópia, é diferençar a cópia do
simulacro. Temos aí, segundo Deleuze, a razão do método da divisão platônica: o
imperioso desejo de distinguir a cópia — imagem que mantém com o modelo uma
relação de semelhança espiritual — do simulacro — que é imagem sem semelhança,
sem modelo. O método da divisão busca, portanto, determinar um fundamento
originário que permita fazer a diferença entre a cópia e o simulacro. Este fundamento
funcionará como modelo que simultaneamente assegura a unificação de um múltiplo e a
exclusão do que não se deixa unificar.
Segundo a análise de Deleuze, o mito ressurge, na divisão platônica,
desempenhando uma nova função, que é a de assegurar a repetição de uma fundação e
de instituir um fundamento como referência necessária para medir a diferença entre os
diversos pretendentes, sobretudo a diferença entre a pretensão bem fundada e a
pretensão não fundada. O conceito que autoriza a referência do pretendente ao

não se vê.” Cf. Gilles Deleuze, Pourparlers, pág. 171 (156).


64
“Cabia-lhe erigir um novo tipo de transcendência, diferente da transcendência imperial ou mítica (se
bem que Platão se serve do mito reservando-lhe uma função especial). Cabia-lhe inventar uma
transcendência que se exerça e se encontre no próprio campo de imanência: tal é o sentido da teoria das
Idéias. E a filosofia moderna não cessou de seguir Platão a esse respeito: reencontrar uma transcendência
no seio da imanência enquanto tal. O presente envenenado do platonismo foi ter introduzido a
transcendência na filosofia, ter dado à transcendência um sentido filosoficamente plausível (triunfo do
julgamento de Deus)”. Cf. Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág.171 (155).
fundamento é o de participação — é pela participação que a diferença é submetida ao
Um. Assim o círculo se fecha: o pretendente é aquele que pede um fundamento, e o
fundamento é o que mede a participação efetiva dos pretendentes.
Deleuze mostra como o platonismo faz da “pretensão não um fenômeno entre
outros, mas a natureza de todo fenômeno”. O ser da cópia é pretender, pretender é
pretender participar de uma transcendência, é submeter-se ao julgamento da
participação. 65 O que a prova do fundamento permite excluir é o simulacro, denunciado
como falso pretendente. A análise de Deleuze determina o platonismo como um sistema
que busca unificar a diferença, submeter o múltiplo à unidade de um modelo e assegurar
uma seleção entre a cópia e o simulacro. Essa intenção exige a invenção de novas
transcendências — as Idéias — que farão da existência uma pretensão. O pensamento
das Idéias — irônico e dialético — se dá como uma arte da problematização que
“consiste em tratar as coisas e os seres como respostas a questões ocultas, em tratá-los
como casos de problemas a serem resolvidos”. Mas como compreender a natureza dos
problemas? 66 Deleuze propõe a seguinte interpretação: a fonte dos problemas é, para
Platão, o próprio Ser, isto é, a Idéia. Mas o ser é também não-ser. Toca assim a Deleuze
esclarecer o sentido do não-ser, se quiser dar conta da natureza do problema. Sua
interpretação recusa a alternativa: “ou não há não-ser, e a negação é ilusória e não
fundada; ou há não-ser, o que põe o negativo no ser e funda a negação.” Afirma que há
razões para se dizer que “há não ser e que o negativo é ilusório” 67 , argumentando pela
existência de uma “dobra ontológica” que conecta o ser e o problema. Segundo
Deleuze: “nessa relação o não-ser é a própria Diferença. O ser é também não-ser, mas o
não-ser não é o ser do negativo, é o ser do problemático, o ser do problema e da
questão. A Diferença não é o negativo; ao contrário, o não-ser é que é a Diferença.(...)

65
“Que somente a justiça seja justa não é uma simples proposição analítica. É a designação da Idéia como
fundamento que possui em primeiro lugar. E o próprio do fundamento é dar a participar, dar em segundo
lugar. Assim, aquilo que participa, e que participa mais ou menos, em graus diversos, é necessariamente
um pretendente. É o pretendente que pede um fundamento, é a pretensão que deve ser fundada (ou
denunciada como sem fundamento).” Cf. Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 87 (115 e 116).
66
Evitaremos aqui a distinção que Deleuze assinala entre duas tendências de conceber a natureza dos
problemas na filosofia de Platão. Uma esboçada em A república, outra desenvolvida no Teeteto. A
primeira faz o pensamento depender de um encontro com o que o força a pensar, a coexistência dos
contrários; a segunda — aquela que acaba por prevalecer e por domesticar a primeira — apoia-se no
modelo da reminiscência, submetendo o pensamento ao modelo da recognição.
67
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, págs. 88 e 89 (117).
Eis por que o não-ser deveria antes ser escrito (não)-ser, ou, melhor ainda, ?-ser.” 68
Viu-se como Deleuze isolou a motivação do platonismo: fazer a diferença,
distinguir linhagens, o puro e o impuro, a cópia e o simulacro. A reversão do platonismo
depende dessa operação de isolamento do problema platônico, pois é ela que permite
que a reversão não seja uma simples inversão. A reversão do platonismo — modelo,
nesse momento, de todos os outros casos de pensamento da filosofia de Deleuze —
depende: 1) da determinação do problema que dá sentido ao sistema; 2) da subtração de
um (ou de mais de um) dos termos do problema; 3) de que a eficácia dessa operação
altere a natureza do problema e o sentido de todos os outros elementos do antigo
problema. Assim a reversão do platonismo é redefinição das questões e não uma mera
inversão de sinais que manteria a significação dos elementos envolvidos. O que se busca
é problematizar o que significa pensar, isto é, uma mudança não apenas dos termos do
problema mas, sobretudo, da própria concepção do que seja um problema.
De que modo o mecanismo de subtração: constituição... atua redefinindo os
elementos do platonismo? O que é subtraído? É a cópia e, com ela, a imitação e a
semelhança a um modelo ausente. A exclusão desses elementos redefine o sentido da
existência: os entes não são mais pretendentes, não se definem mais pela pretensão a um
fundamento transcendente, que desaparece com o destino do seu pretendente, a cópia.
Nesse novo contexto, observa-se o desenvolvimento do simulacro — a personagem
recalcada no sistema da representação platônica. É a sua afirmação que ilumina com
novas luzes os demais elementos do sistema. Assim, o primeiro ato da reversão do
platonismo é a afirmação do simulacro, a recusa do primado do modelo, do Mesmo
sobre a imagem, ou seja, o Semelhante. A própria coisa é afirmada como simulacro que
prescinde da identidade do modelo e de toda similitude imitativa. Esse simulacro
afirmado difere em natureza do simulacro recalcado. Deixa de ser um falso pretendente
(noção que não possui mais sentido) e se define por uma disparidade, por uma não
similitude interiorizada e afirmada. A diferença é, agora, o simulacro afirmado.
A diferença deleuziana difere, pois, em natureza da diferença platônica: afirmada
como simulacro — como sentido que se distingue do caos (do fundo intenso ou do não-
sentido) que, no entanto, não se separa dele — denuncia a impossibilidade da diferença
como o fundamento das pretensões. Deste modo, o círculo mítico modifica-se e

68
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 89 (118).
desfigura todos os antigos pretendentes. Com a emergência de sua significação latente,
o eterno retorno não exprime mais uma ordem:

“ele não é nada além do que o caos, potência de afirmar o caos. (...) À
coerência da representação, o eterno retorno substitui sua outra coisa,
sua própria cao-errância. É que, entre o eterno retorno e o simulacro,
há um laço tão profundo, que um não pode ser compreendido sem o
outro. O que retorna são as séries divergentes como divergentes, isto
é, cada qual enquanto desloca sua diferença com todas as outras e
todas enquanto complicam a sua diferença no caos sem começo nem
fim. O círculo do eterno retorno é um círculo sempre excêntrico para
um centro sempre descentrado.” 69

O segundo ato da reversão do platonismo é então a afirmação de uma seleção


imanente: a diferença implica uma crítica radical do julgamento como forma da moral e
do conhecimento — este tomado como um caso da forma do juízo moral. Contra a
seleção dos pretendentes a partir de princípios transcendentes, emerge o pensamento de
uma seleção imanente que avalia a “maneira pela qual o existente se enche de imanência
(o Eterno Retorno, como capacidade de alguma coisa ou de alguém de retornar
eternamente). A seleção não recai sobre a pretensão, mas sobre a potência. A potência é
modesta, contrariamente à pretensão. Na verdade, só escapam ao platonismo as
filosofias da imanência pura: dos estóicos a Espinosa ou Nietzsche” 70 . Às subtrações
das figuras da transcendência e do juízo correspondem a extensão da imanência, a
afirmação da diferença como diferenciação e a construção de uma ética da potência.
Finalmente, o terceiro ato da reversão do platonismo é a redefinição da idéia-
problema: quando a diferença não se situa mais entre a coisa e o modelo, mas entre a
cópia e o simulacro, o problema não consiste mais em fundar, mas nas operações de
pensamento que determinam os entes como simulacros, permitindo destacá-los do fundo
intensivo que, entretanto, não se separa deles. Neste caso, o simulacro é a diferença, e
pensar é pensar a diferença. É então que a diferença redefine a natureza mesma do que é

69
Gilles Deleuze, Lógique du sens. pág. 305 (269 e 270).
70
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 171 (155).
um problema. Pois ela não se deixa constituir pelos problemas construídos no interior
do quadro da representação nem permite sua determinação como um elemento, da
experiência possível. A reversão do platonismo desemboca num empirismo
transcendental, cujo desafio é pensar as condições da experiência real — condições que
não são mais amplas do que o condicionado, diferindo, portanto, em natureza das
categorias. Os problemas definem o essencial, são provas: “o essencial é que, no seio
dos problemas, faz-se uma gênese da verdade, uma produção do verdadeiro no
pensamento. O problema é o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético
no verdadeiro. Portanto, podemos substituir o simples ponto de vista do
condicionamento pelo ponto de vista da gênese efetiva.” 71
Fica, assim, sugerida a hipótese de que a construção da filosofia de Deleuze
pode ser esclarecida pelo que designamos por procedimento de subtração:
constituição...: subtração das transcendências, seguida da construção de um campo de
imanência e da criação de conceitos. Mas resta a questão: que elementos subtrair, como
determinar, em cada caso, as subtrações necessárias? A partir das considerações sobre a
análise de Deleuze acerca da reversão do platonismo, é legítimo supor que é a
determinação da questão imperativa de escapar da doutrina do julgamento e dos
problemas que esta questão suscita que explicam a seleção, por parte de Deleuze, dos
seus casos de pensamento. E, também, é esse conjunto questão-problemas que é
decisivo para a seleção do que deve ser em cada caso suprimido. Fica a hipótese de que
Deleuze movimenta o pensamento subtraindo os elementos que sustentam os problemas
desenvolvidos pelos sistemas que sua filosofia transforma, por subtração:
constituição..., em elementos de um novo encontro e de novos problemas.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
melhor compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para a

71
Gilles Deleuze, Différence et répétiton. pág. 210 (264).
criação de um sistema aberto de conceitos em consonância com os conceitos de
problema e de afirmação.
Essa postura metodológica — tomar as coisas pelo meio, começar pelo meio — é,
como a análise do sentido do trágico mostrou, também uma posição ontológica: é
afirmação da imanência e da univocidade do Ser, recusa de todo pensamento categorial
ou analógico. A articulação do imperativo metodológico de começar pelo meio e da
ontologia da univocidade ou imanência do Ser 72 é fundamental para a compreensão da
elaboração do pensamento de Deleuze na sua relação com a “história da filosofia”.
Permite também entender que, no intuito de construir uma filosofia da imanência do Ser
unívoco, Deleuze tenha sido levado a um combate-contra a doutrina do julgamento, tal
como ela foi elaborada na filosofia, não apenas por um gosto de distinção, que se
poderia pensar dispensável, mas por força de uma necessidade interna ao seu
pensamento. Pois, para Deleuze, como a análise dos sentidos da cultura mostrou, o
adversário do pensamento não é o real, mas algo interno ao pensamento mesmo: sua
eventual fraqueza, a má consciência, a tolice e a baixeza. E a besteira no pensamento
confunde-se com o sistema do julgamento:

“o problema coletivo, então, consiste em instaurar, encontrar ou


reencontrar um máximo de conexões. Pois as conexões (e as
disjunções) são precisamente a física das relações, o cosmos. Mesmo a
disjunção é física, ela só existe como as duas margens, para permitir a
passagem dos fluxos ou sua alternância. Porém nós, nós vivemos no
máximo numa lógica das relações (...). Da disjunção fazemos um "ou,
ou". Da conexão fazemos uma relação de causa e efeito, ou de
princípio a conseqüência. Do mundo físico dos fluxos abstraímos um
reflexo, um duplo exangue, feito de sujeitos, objetos, predicados,
relações lógicas. Extraímos assim o sistema do julgamento.” 73

Não cabe nesse texto, com relação a essa idéia, ir além de sugerir que a relação
necessária dos combates-contra e dos combates-entre, tanto externamente quanto
internamente à filosofia, deve-se à compreensão deleuziana do pensamento como

72
Cf. Alain Badiou, "De la Vie comme nom de l’Être". In Rue Descartes n.º 20, pág. 28. Nesse ensaio
Badiou observa que, para Deleuze, o caminho da imanência é o mesmo que o da univocidade: “Deleuze
me escreveu um dia, em letras maiúsculas: Univocidade = Imanência.”
73
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 69 (63).
criação, a qual envolve a necessidade de construir planos de imanência inseparáveis de
uma crítica das submissões do pensamento aos valores superiores que o limitam à busca
dos verdadeiros princípios do julgamento.
As considerações sobre as relações do procedimento de subtração: constituição...
com a vontade de imanência sugerem que a crítica à doutrina do julgamento deve ser
compreendida não como um julgamento derivado de uma outra doutrina já dada e
estabelecida como verdadeira. Ao contrário, um dos intuitos dessa tese é desenvolver a
hipótese de que a filosofia deleuziana constituiu-se como processo de desativação, pelo
procedimento de subtração: constituição..., da doutrina do julgamento. Processo cuja
efetividade, sempre posta à prova pelos encontros suscitados no percurso deleuziano,
dependeu da potência do pensamento de Deleuze de determinar problemas e de criar
conceitos — e sobretudo um novo conceito Idéia e um novo conceito de conceito 74 —
capazes de dar consistência a novos modos de sentir e de pensar fora do campo da razão
e da doutrina do julgamento.
Nesse sentido, a obra de Deleuze pode ser lida como um longo e diversificado
combate-contra o retorno das transcendências e um elaborado e sofisticado combate-
entre as forças do pensamento, no sentido de uma filosofia da pura imanência, cujo
desafio maior é pensar um outro tipo de diferença — o acontecimento, a gênese do ato
de pensar no pensamento — e uma seleção de outra natureza, que não incida sobre a
pretensão, mas sobre a potência:

“o que nos incomodava é que, renunciando ao julgamento, tínhamos a


impressão de nos privar de qualquer meio de estabelecer diferenças
entre existentes, entre modos de existência, como se, a partir daí, tudo
se equivalesse. Mas não será antes o julgamento que supõe critérios
preexistentes (valores superiores), e preexistentes desde sempre (no
infinito do tempo), de tal maneira que não se consegue apreender o
que há de novo num existente, nem sequer pressentir a criação de um
modo de existência? Um tal modo se cria vitalmente, através de um
combate, na insônia do sono, não sem certa crueldade contra si
mesmo: nada de tudo isto resulta do julgamento. (…) Não temos
porque julgar os demais existentes, mas sentir se eles nos convém ou

74
Conceito que foi efetivamente elaborados em Différence et répétition e Qu’est- ce que la Philosophie?,
desconvém, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da
guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização.” 75

Pondo em termos de força, e não em termos de representação e de recognição o problema


do pensamento e da sua seleção, Deleuze subtrai ao pensamento, como se analisará no próximo
capítulo, as ficções do Todo e do Um e também as ilusões subjetivistas e objetivistas, que lhes
são correlatas, no sentido da constituição um perspectivismo em filosofia.

CAPÍTULO II
O dehors e o signo

“O que nos força a pensar é o signo. O


signo é o objeto de um encontro; mas é
precisamente a contingência do encontro
que garante a necessidade daquilo que ele
faz pensar. O ato de pensar não decorre de
uma simples possibilidade natural; é ao
contrário a única criação verdadeira. A
criação é a gênese do ato de pensar no
próprio pensamento. (…) Pensar é sempre
interpretar, isto é, explicar, desenvolver,
decifrar, traduzir um signo.”

A hipótese da relevância do procedimento de subtração: constituição... para a


compreensão da lógica da construção do sistema da filosofia de Gilles Deleuze deixou
sugerido, embora não devidamente analisado, que este procedimento de subtração:
constituição... exprime uma fidelidade à imanência, concebida por Deleuze como
vocação da filosofia, que faz da filosofia da diferença uma filosofia da pura imanência.
Esta hipótese orientará, neste capítulo, uma pesquisa preliminar: como, na
elaboração filosófica de Gilles Deleuze, a operação de subtração das categorias do Todo
e do Um, que organizam a filosofia clássica (eliminação que afetará tanto a
compreensão do pensamento quanto do ser, bem como de sua relações), permite uma
crítica às pretensões de qualquer transcendência no pensamento, no sentido da

repectivamente.
75
Gilles Deleuze, “Pour en finir avec le jugement”, in Critique et clinique. pág. 168 (153)
afirmação da imanência absoluta do pensamento ao pensamento, e, em conseqüência, da
determinação da univocidade do ser e da definição da filosofia como criação conceitual.

O problema do sistema em heterogênese

Assim, em consonância com as considerações, desenvolvidas no primeiro


capítulo, sobre o duplo movimento ou os dois sentidos do procedimento de subtração:
constituição... que esclarecem os dois tempos de uma crítica produtiva, levantam-se as
questões preliminares: qual é o efeito, na filosofia de Gilles Deleuze, da subtração, ao
pensamento, dos postulados do Todo e do Um? E ainda: qual afirmação constitui uma
nova perspectiva que se subtrai ao postulado do Todo e do Um? Que novo pensamento
furta-se à filosofia da representação e dá, correlativamente, necessidade à eliminação do
Um e do Todo?
A conseqüência primeira da subtração dos postulados do Todo e do Um é a
redefinição da idéia do ser — dissociada da idéia do todo —, da idéia do fragmento —
sem referência a uma unidade totalizadora — e da prática do pensamento — não mais
regido pelo senso comum e pelo bom senso. Estas redefinições se fazem, na filosofia de
Deleuze, em conjunção com a criação de um novo conceito de sistema em filosofia.
Conforme se mencionou no capítulo “Ocombate e o procediemnto”, Deleuze define, a
partir da subtração das coordenadas do Idêntico, do Semelhante, do Análogo um sistema
que em perpétua heterogeneidade, deve ser uma heterogênese. Pode-se, então,
acrescentar que as subtrações dos postulados do Todo e do Um, não apenas afetam a
compreensão do ser e do pensamento, mas, ao tornarem sem sentido as coordenadas do
Idêntico, do Semelhante e do Análogo, exigem uma nova concepção do sistema em
filosofia.
O que significa e como funciona um sistema em perpétua heterogênese? Deleuze
e Guattari, no Anti-Oedipe, a propósito de um problema conexo, afirmam: “Foi Maurice
Blanchot quem soube pôr o problema em todo seu rigor, ao nível de uma máquina
literária: como produzir e pensar fragmentos que tenham entre eles relações de diferença
enquanto tal, que apenas a diferença os relacione, sem referência a uma totalidade
originária mesmo perdida, nem a uma totalidade resultante mesmo por vir?”76 A
questão ganha resposta com o conceito de multiplicidade:

“Só a categoria de multiplicidade, utilizada como substantivo e


ultrapassando o múltiplo não menos que o Um, ultrapassando a
relação predicativa do Um e do múltiplo, é capaz de dar conta da
produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura, isto é,
afirmação irredutível à unidade. (…) Nós só acreditamos em
totalidades ao lado. E se nós encontramos uma tal totalidade ao lado
das partes, é um todo dessas partes aí, mas que não as totaliza, uma
unidade de todas essa partes aí, mas que não as unifica, e que se
acrescenta a elas como uma nova parte composta à parte.” 77

Não é impróprio, do ponto de vista da filosofia deleuziana, aproximar a


produção desejante da produção artística e da produção filosófica e, deste modo, dizer
que o sistema filosófico deve ser construído e pensado como uma multiplicidade. A
investigação dos componentes do conceito de multiplicidade se ilumina quando este
conceito é percebido pela questão: “como escapar da doutrina do julgamento?”, que o
exige; e com o problema, posto pelas subtrações referidas, de pensar a unidade afastada
de toda transcendência e capaz de afirmar o fragmento. Deleuze enfrentou essa questão,
por exemplo, na sua análise da obra de Proust:

“Pretender que Proust tivesse uma idéia, ainda que confusa, da


unidade prévia da Recherche, ou então que ele a tivesse encontrado
após, mas como animando desde o começo o conjunto, é lê-lo com um
mau olho, aplicar-lhe critérios já prontos da totalidade orgânica que
ele precisamente recusa, é fechar-se à concepção tão nova da unidade
que ele estava criando. Pois é disso justamente que é necessário partir:
a disparidade, a incomensurabilidade, o esmigalhamento das partes da
Recherche, com as rupturas, os hiatos, as lacunas, as intermitências
que lhe garantem a última diversidade.” 78

É importante assinalar, ainda, nesse momento, apenas na forma de uma menção

76
Gilles Deleuze, L’Anti-Œdipe, pág. 50.
77
Gilles Deleuze, L’Anti-Œdipe, pág. 51.
78
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 140 (114).
introdutória, que a sensibilidade de Gilles Deleuze a esta tão nova concepção de unidade
que Proust estava criando não é sem relação com sua tese de que A la recherche du
temps perdu é voltada para o futuro e não para o passado e que “nela a memória só
intervém como meio de um aprendizado que a ultrapassa tanto por seus objetivos
quanto por seus princípios.” 79 Neste sentido, deve-se sublinhar, como dois aspectos
relevantes para pensar a unidade de um sistema em heterogênese, tanto a idéia de uma
pesquisa que subordina o saber ao movimento de um aprendizado, quanto a dimensão
temporal desta pesquisa que se volta para o futuro e para o novo.
Evidencia-se, portanto, uma repetição do problema da unidade entre fragmentos
no interior de certas linhagens da produção artística e filosófica 80 , o que permite
compreender como Deleuze pôde elaborar a crítica aos postulados do Todo e do Um e
pensar um novo conceito de sistema em filosofia, tanto ao efetuar diretamente uma
crítica no interior do campo filosófico (trabalho empreendido sobretudo em Difference
et répétition, Logique du sens, Anti-Oedipe e Mille plateaux), quanto de viés, através de
interpretações do desenvolvimento desse mesmo problema nas obras de certos artistas.
Seus livros sobre Proust e Bacon são exemplares a esse respeito.
Deleuze interroga, em Proust et les signes, o novo sentido da obra de arte —
problema cujo interesse, como se viu, está na sua intercessão com a questão: o que é um
sistema filosófico em perpétua heterogênese? — e investiga, sobretudo, o problema da
unidade de uma obra que articula suas partes sem submetê-las ao trabalho do Logos e
sem hierarquizá-las segundo a lei de um Todo. O estudo da obra de Proust relaciona arte
e filosofia e permite, assim, a formulação da hipótese de que a interpretação de Deleuze
a propósito da natureza da unidade de A la Recheche du temps perdu pode ser estendida
à sua própria filosofia, fornecendo elementos para se pensar um novo conceito de
sistema em filosofia, o qual decerto, como já foi assinalado, subtrai-se igualmente aos
postulados do Logos e do Todo.
O estudo de um novo conceito de sistema em filosofia no pensamento de
Deleuze deve iniciar-se retomando as duas questões: 1) qual é o efeito, na filosofia de
Deleuze, da subtração, ao pensamento, dos postulados do Todo e do Um? 2) qual

79
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 10 (4).
80
Será fundamental relacionar essa crise do Um e do Todo com o advento da ciência. E assim
compreender o sentido do desejo de criar uma filosofia à altura da ciência moderna: como criar, no campo
do pensamento, a possibilidade de sistemas de verdades não unificáveis…
afirmação constitui uma nova perspectiva que se subtrai ao postulado do Todo e do
Um? Tais questões devem orientar um conjunto de investigações pertinentes aos
problemas da redefinição do estatuto do fragmento e de um novo conceito de sistema
em filosofia. Essas investigações que partem do estudo de Deleuze sobre Proust se
prolongarão, quando necessário, segundo as exigências da análise, no estudo de outros
conceitos e problemas interligados, tomando em consideração outros trabalhos de
Deleuze.

O novo estatuto da unidade e do fragmento

O problema de um novo estatuto do fragmento em Proust et les signes é


abordado, sobretudo, no capítulo “Anti-logos”, a partir da contraposição feita por Proust
de Atenas a Jerusalém, destacando o aspecto filosófico da crítica de Proust ao Logos e
ao Todo.
O Logos é descrito por Deleuze como a dialética na qual

“as faculdades se exercem voluntariamente e colaboram, sob a


presidência da inteligência, para ligar conjuntamente a observação
das Coisas, a descoberta das Leis, a formação das Palavras, a análise
das Idéias, e tecer perpetuamente essa ligação da Parte ao Todo e do
Todo à Parte. Observar cada coisa como um todo, em seguida pensá-la
por sua lei como a parte de um todo, ele próprio presente por sua Idéia
em cada uma de suas partes: não é o universal Logos, esse gosto de
totalização...?” 81

E ainda, uma definição crítica: “no Logos, há um aspecto, por mais escondido que
esteja, pelo qual a Inteligência vem sempre antes, pelo qual o todo já se encontra
presente, a lei já é conhecida antes daquilo a que se vai aplicá-la: o movimento
ilusionista dialético, em que nada mais se faz do que reencontrar o que já estava dado de
antemão e de onde só se tira as coisas que aí tinham sido colocadas.” 82
Como é compreendido o fragmento no mundo de Atenas? Qual é o seu estatuto,
quando pensado em referência ao Todo? O fragmento ou os signos, como prefere

81
Gilles Deleuze, Proust et les signes, págs. 127 (103).
Deleuze, eram considerados, pela alma grega, como “um sistema mutilado, variável e
enganador, cacos de um Logos que deveriam ser restaurados em uma dialética,
reconciliados por uma philia, harmonizados por uma sophia, governados por uma
inteligência que precede.” 83
Deleuze opõe o mundo dos signos 84 ao mundo do Logos pela “figura das partes
que os signos recortam no mundo, pela natureza das leis que revelam, pelo uso das
faculdades que solicitam, pelo tipo de unidade que deles decorre, e pela estrutura da
linguagem que os traduz e os interpreta.” 85 É a partir desses cinco pontos de vista que
ele apresenta a originalidade do platonismo de Proust: sua reversão do platonismo.
A reminiscência platônica, segundo Deleuze, tem seu ponto de partida num devir
qualitativo que representa um estado de coisas, devir que representa um estado do
mundo e sua precária tentativa de imitar a Idéia — concebida como ponto de chegada
do processo da reminiscência e como essência estável que introduz no todo a justa
medida. “Razão por que a Idéia está sempre 'antes', é sempre pressuposta, mesmo
quando só é descoberta após. O ponto de partida só vale por sua capacidade de já imitar
o ponto de chegada, de tal modo que o uso disjunto das faculdades é, apenas, um
'prelúdio' à dialética que os reúne em um mesmo Logos...” 86
De outro modo, segundo a análise de Deleuze, do ponto de vista de Proust, o
movimento do pensamento tem seu começo num encontro, num devir qualitativo
inscrito num estado de alma, e a reminiscência intervém porque a qualidade é
inseparável de uma cadeia de associação subjetiva que não somos livres de
experimentar. Tais associações devem ser ultrapassadas em direção a uma essência, que
não é mais a essência estável, não é mais algo contemplável, mas um ponto de vista
superior.

“O importante é que o ponto de vista ultrapassa o indivíduo, tanto


quanto a essência ultrapassa o estado d’alma: o ponto de vista

82
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 128 (104).
83
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 135 (110).
84
Esta análise deve ser relacionada ao estudo da reversão do platonismo, iniciado no primeiro capítulo
desta tese, à luz da hipótese do procedimento de subtração: constituição.... O que, no momento, nomeia-se
fragmento ou signo lá surgia com o nome de simulacro. Lá como aqui trata-se da mesma questão: como
redefinir o signo ou o simulacro a partir da subtração dos postulados do Todo e do Um? E, também, como
redefinir a idéia quando dela se elimina o postulado de sua identidade?
85
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 131 (106).
86
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 132 (107).
permanece superior àquele que nele se coloca ou garante a identidade
de todos os que o atingem. Não é individual, mas, ao contrário,
princípio de individuação. Eis precisamente a originalidade da
reminiscência proustiana: ela vai de um estado d’alma, e de suas
cadeias associativas, a um ponto de vista criador ou transcendente; e
não mais, à maneira de Platão, de um estado do mundo a objetividades
vistas.” 87

Esse deslocamento, que decorre da subtração do Todo (aqui representado pela


redefinição da essência platônica), modifica o problema da objetividade e da unidade.

“O mundo ficou reduzido a migalhas e caos. Precisamente porque a


reminiscência vai das associações subjetivas a um ponto de vista
originário, a objetividade só pode se encontrar na obra de arte: não
existe mais nos conteúdos significativos como estados do mundo, nem
nas significações ideais como essências estáveis, mas unicamente na
estrutura formal significante da obra, isto é, no estilo. Não se trata
mais de dizer: criar é relembra; mas, relembrar é criar, é ir até o ponto
em que a cadeia associativa se rompe, salta fora do indivíduo
constituído, se transfere para o nascimento de um mundo
individuante. E não se trata mais de dizer : criar é pensar, mas, pensar
é criar e primeiramente criar no pensamento o ato de pensar.” 88

Ainda uma vez deve-se destacar a relação entre esse deslocamento da objetividade em
direção à estrutura da obra, ao estilo, não apenas com a fragmentação do Todo, mas
também, uma vez que não há Todo, com a importância atribuída ao tempo, como síntese
do futuro, por um pensamento que se define como criador e que busca ordenar-se em
um sistema que se quer em heterogênese. Cabe a questão: com o que se relaciona o
pensamento quando dele se subtrai a idéia do Todo? Na ausência do Todo, como se
analisará no capítulo “O dogmático e o problemático”, o pensamento se confronta não
mais com a exterioridade da substância extensa, mas com o tempo como seu limite
interno, sendo assim ativado por signos. Torna-se então urgente a questão: como
Deleuze pensa os signos, que estatuto ele lhes atribui?

87
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 133 e 134 (108 e 109).
88
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 134 (109).
Rigorosamente, Deleuze distingue dois regimes de signos, duas maneiras de
conceber o fragmento ou o signo: ou o fragmento remete ao Todo do qual ele foi
extraído, ou é solitário: sem relação com outra parte que a ele corresponde
necessariamente, sem remissão a uma totalidade ou a uma unidade que o integre. Do
ponto de vista da solidão do fragmento, cabe retomar as questões acima formuladas:
qual afirmação constitui uma nova perspectiva que se subtrai aos postulados do Todo e
do Um? Que novo pensamento furta-se à filosofia da representação e dá,
correlativamente, necessidade à eliminação do Um e do Todo?
Não basta responder que se trata da afirmação do fragmento, pois o que está em
questão não é apenas a necessidade da subtração do Todo, mas também e, sobretudo, a
necessidade da afirmação do fragmento. Pois a afirmação do fragmento solitário que dá
necessidade à exclusão do Todo, encontra, para Deleuze, sua condição em uma obra e
na proposição que faz do tempo instância paradoxal que relaciona os fragmentos, sem,
no entanto, abolir a solidão que os caracteriza:

“uma obra que tem por objeto, ou melhor, por sujeito, o Tempo
envolve, arrasta consigo fragmentos que não se podem mais
reconciliar, é composta de pedaços que não fazem parte do mesmo
puzzle, que não pertencem a uma totalidade prévia, que não emanam
de uma unidade, mesmo que tenha sido perdida. Talvez o tempo seja
isso: a existência última de partes de tamanhos e formas diferentes que
não se deixam adaptar, que não se desenvolvem no mesmo ritmo, e
que a correnteza do estilo não arrasta na mesma velocidade.” 89

Ou seja, o tempo, redefinido por Deleuze como perspectiva imposta pelo pensamento
dos fragmentos solitários e que sustenta um ponto de vista criador, é o que reúne, isto é,
interpreta os fragmentos sem totalizá-los e sem unificá-los. O tempo é, assim, o conceito
que se correlaciona com o pensamento da exterioridade da relação; é instância da
Relação, que desempenha o papel de parte heteróclita num conjunto que, no entanto,
articula transversalmente. O tempo e a exterioridade das relações com respeito aos
termos relacionados (será preciso, mais tarde, mostrar a pressuposição recíproca desses
conceitos na filosofia de Deleuze) mantêm a diferença no signo e entre os signos,

89
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 137 (111).
diferença pensada como constituinte de uma multiplicidade irredutível ao Um. 90
A possibilidade de se pensar na construção paradoxal de uma espécie de todo
que não totaliza os fragmentos depende, segundo Deleuze, deste princípio da filosofia
inglesa, o da exterioridade das relações. Comentando a obra de Whitman, Deleuze
afirma que as relações são postas como devendo ser instauradas, inventadas: “se as
partes são fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao menos inventar entre
elas relações não-preexistentes…” 91 Deve-se evitar o contra-senso de substancializar as
partes e os fragmentos: o princípio da exterioridade das relações não deve fazer crer em
fragmentos já dados como fatos, isto é, como imagens que podem ser apreendidas de
modo independente de qualquer processo de pensamento. Nesse sentido, o princípio da
exterioridade das relações implica um primado das relações sobre os termos: estes são
determinados e as relações determinantes. O princípio da exterioridade das relações não
é contraditório com a idéia de pressuposição recíproca entre relações e termos. Assim,
se os fragmentos não são totalizáveis ou unificáveis, isto não significa que os
fragmentos existam totalmente isolados. A solidão do fragmento se diz em relação ao
Todo e ao Um, não em relação a outros fragmentos.
Deleuze retoma, no capítulo “Les boîtes et les vases” de Proust et les signes, esse
problema da unidade do mundo dos fragmentos determinando dois tipos de relações
entre os signos disparatados: relações continente-conteúdo, de envolvimento ou de
implicação, e relações partes-todo. O primeiro tipo define uma relação de envolvimento
ou de implicação, e com respeito a esta relação a atividade da interpretação consiste em
explicar, em desenvolver o conteúdo sempre incomensurável ao continente. O segundo
tipo é o da complicação, isto é, dá conta da coexistência de partes assimétricas e não
comunicantes. A interpretação consiste, então, em escolher. Segundo Deleuze, em À la
recherche du temps perdu, “a primeira figura é dominada pela imagem das caixas
entreabertas, a segunda por aquela dos vasos fechados. A primeira (continente-
conteúdo) vale pela posição de um conteúdo sem medida comum; a segunda (partes-
todo) vale pela oposição de uma vizinhança sem comunicação. E sem dúvida elas se

90
Para uma apresentação completa e sistemática do problema do tempo na filosofia de Gilles Deleuze,
deve-se destacar o livro de Peter-Pál Pelbart O tempo não-reconciliado. Editora Perspectiva, 1998.
91
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 78 (70).
misturam freqüentemente, passam uma na outra.” 92 É relevante assinalar, para uma
melhor compreensão do significado do conceito de interpretação no pensamento de
Gilles Deleuze, embora esse ponto não seja suficientemente desenvolvido nesse
momento, que a subtração ao pensamento do Um e do Todo faz sistema, nesta filosofia,
com a descoberta, na proposição, da dimensão do sentido; em conseqüência, com a
superação de uma lógica da predicação em favor de uma lógica da expressão; e com a
transição, no plano ontológico, de uma concepção analógica do ser à afirmação da
univocidade do ser. O conjunto desses movimentos forçados pela questão “o que é
pensar, quando pensar não é julgar?” — que se exprime positivamente na afirmação de
que a “questão da filosofia é o ponto singular onde a criação e o conceito remetem um
ao outro” 93 , e desencadeados pela subtração, ao pensamento do Um e do Todo, que esta
questão comanda —, permite integrar o sentido, a expressão e a univocidade numa
temporalidade do acontecimento.
Com estas transformações, a interpretação diz respeito ao domínio do sentido. O
que isto significa? Inicialmente, o privilégio da dimensão do sentido sobre as demais
relações que coexistem na proposição. Isto diz respeito ao problema da gênese da
verdade.
Segundo Deleuze, a relação de designação — que conecta as proposições com
os estados de coisas e que possui como critério e elemento o verdadeiro e o falso —, a
relação de manifestação — que enuncia os desejos e as crenças que correspondem à
proposição, cujos valores lógicos são a veracidade e o engano —, e a significação —
que estabelece a relação da fala com conceitos universais e gerais e das ligações
sintáticas com implicações de conceito, cujo valor lógico é a condição da verdade —,
são impotentes para a apreensão do sentido e da gênese da verdade.
O problema da interpretação quando remetido ao problema da gênese da verdade
conecta a interpretação com uma dimensão incondicionada que põe em questão tanto os
supostos fundamentos transcendentes da verdade, quanto as condições transcendentais
da experiência:

“Há muitas formas de possibilidade de proposições (…). Mas, seja


qual for a maneira pela qual definimos a forma, trata-se de um

92
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 142 (115).
93
Gilles Deleuze, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 20.
estranho empreendimento, que consiste em nos elevarmos do
condicionado à condição para conceber a condição como simples
possibilidade do condicionado. Eis que nos elevamos a um
fundamento, mas o fundado continua a ser o que era, independente da
operação que o funda, não afetado por ela; assim, a designação
permanece exterior à ordem que a condiciona, o verdadeiro e o falso
permanecem indiferentes ao princípio que não determina a
possibilidade de um deles a não ser deixando-o subsistir na sua antiga
relação com o outro. De tal forma que somos perpetuamente
remetidos do condicionado à condição, mas também da condição ao
condicionado. Para que a condição de verdade escape a este defeito,
será preciso que ela disponha de um elemento próprio distinto da
forma do condicionado, seria preciso que ela tivesse alguma coisa de
incondicionado, capaz de assegurar uma gênese real da designação e
das outras dimensões da proposição: então a condição de verdade seria
definida não mais como forma de possibilidade conceitual, mas como
matéria ou ‘camada’ ideal, isto é, não mais como significação, mas
como sentido.” 94

É fundamental aqui assinalar (o que só será efetivamente desenvolvido nos dois últimos
capítulos) que Deleuze afirmando o sentido, o expresso na proposição, como
acontecimento, contrapõe-se ao ideal de determinar as condições da experiência
possível formulando o desafio de pensar a gênese da experiência real.
Disto isto, o sentido como acontecimento é também o que se exprime na
proposição e, nessa qualidade, é irredutível, seja aos estados de coisas individuais, às
imagens particulares e às crenças pessoais, seja aos conceitos universais e gerais. E, é
num mesmo movimento que se subtrai ao pensamento a designação, a manifestação e a
significação e que constitui-se, no pensamento, o sentido como acontecimento. A
afirmação desse plano de imanência avança, em conjunção com a afirmação da lógica
da expressão, no sentido da univocidade do ser. Neste caso, Deleuze retoma o objetivo
da obra de Espinosa, que põe, segundo ele, sua teoria da expressão a serviço da
univocidade e da imanência. 95 De acordo com a leitura que Deleuze faz de Espinosa, o

94
Gilles Deleuze, Logique du sens, págs. 29 e 30 (19 e 20).
95
Cf, Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, págs. 307 a 311.
essencial, a esse respeito, é que sendo a noção de expressão essencialmente triádica (ela
distingue o que se exprime, a expressão e o expresso) ela , de um lado, é paradoxal (o
expresso não existe fora da expressão, que não se assemelha a ele, mas é essencialmente
relacionado ao que se exprime, como distinto da expressão mesma), suporta um duplo
movimento: envolve o expresso na expressão para reter o par “o que se exprime e a
expressão”, ou bem desenvolve a expressão de modo a restituir o expresso; de outro
lado, sua natureza triádica e paradoxal não deixa que o conceito de expressão se reduza
nem à causa no Ser, nem à representação na Idéia: “o expresso intervém como um
terceiro que transforma os dualismos. Para além da causalidade real, para além da
representação ideal, descobre-se o expresso como o terceiro que torna as distinções
infinitamente mais reais, a identidade infinitamente melhor pensada. O expresso é o
sentido: mais profundo que a relação de causalidade, mais profundo que a relação de
representação.” 96
O problema da unidade do mundo dos fragmentos é posto, portanto, em conjunção
com a questão da interpretação dos signos. Pois a interpretação explica, seleciona,
relaciona e reúne. O problema da interpretação assume a seguinte forma: quem
interpreta, explica, seleciona e reúne, sem totalizar ou unificar? Deleuze recusa a
possibilidade de um sujeito interpretante: “na verdade, existe uma atividade, um puro
interpretar, puro escolher, que não tem sujeito nem objeto, visto que ela escolhe tanto o
intérprete quanto a coisa a interpretar, tanto o signo quanto o eu que o decifra. Tal, é o
'nós' da interpretação.” 97 Deleuze elimina da interpretação, também, toda unidade
hierárquica: “o interpretar só tem uma unidade transversal; ele é a única divindade de
que qualquer coisa é fragmento, mas sua 'forma divina' não recolhe nem recola os
fragmentos: ela os conduz, ao contrário, ao mais alto estado, ao mais agudo, impedindo
que eles formem um conjunto ou sejam destacados.” 98 Assim, o interpretar, ou o
pensamento como ato de fragmentar (desterritorializar) e de criar relações
(territorializar), não apenas se exerce sobre um universo esmigalhado, mas ele deve
constituí-lo e mantê-lo como essencialmente fragmentado. A subtração do Um ao
pensamento é, portanto, por um lado, uma operação do próprio pensamento que

96
Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, págs. 311.
97
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 155 (127 e 128).
98
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 156 (128).
fragmenta a idéia de universo, desfigura a idéia de um Todo, e subtrai ao pensamento o
pressuposto do real como possuindo uma ordem dada qualquer. Todavia, por outro lado,
a interpretação não implica, em contrapartida, a idéia de um caos de fragmentos ou de
imagens totalmente desligadas. Entre um caos de imagens desligadas e uma ordem de
relações já dada, que configuraria um universo no qual as imagens estariam
integralmente ligadas, a interpretação deve, simultaneamente, afirmar-se como múltipla
e afirmar o seu correlato como uma multiplicidade. Por todas as vezes, cada
interpretação, deve, ao criar novas relações entre fragmentos, estabelecer-se, ao mesmo
tempo, desfigurando antigas ordenações e afirmando uma abertura para outras
interpretações que efetuam novas fragmentações e novas relações entre os fragmentos.
Desse modo, o interpretar — que impede que os fragmentos tanto formem um conjunto
quanto sejam destacados — convém ser concebido como síntese disjuntiva que afirma o
Acontecimento da interpretação em suas múltiplas dimensões temporais: a de sua
efetuação concreta num estado de coisas presente, mas, também, a de sua contra-
efetuação, que liberta a interpretação da exclusividade da dimensão presente e que
relaciona as síntese do presente, do passado e do futuro com a superfície temporal do
Acontecimento impessoal e pré-individual.
No entanto, como compreender esse interpretar que não conhece unidade
subjetiva nem totalização objetiva? Ou, em outros termos: o que é esse interpretar que
mantém a incomensurabilidade da relação do conteúdo com o continente e a não
comunicação das partes contíguas? Deleuze diz: o interpretar é temporal, ele é o tempo
compreendido como a impossibilidade do Todo. E, retomando a fórmula bergsoniana,
acrescenta que o tempo significa que o Todo não é dado nem dável. Mas adverte,
distanciando-se tanto de Bergson quanto de Hegel, que isto

“não quer dizer o todo ‘se faz’ em uma outra dimensão que seria
precisamente temporal, como o compreende Bergson, ou como o
compreendem por sua conta os dialéticos partidários de um processo
de totalização; mas que o tempo, último intérprete, último interpretar,
possui o estranho poder de afirmar simultaneamente pedaços que não
formam um todo no espaço, nem formam também uma unidade por
sucessão no tempo. O tempo é exatamente a transversal de todos os
espaços possíveis, inclusive os espaços de tempo.” 99

Contudo, como conceber o tempo como último intérprete? Não haverá nisso uma
estranha identidade do tempo e do pensamento, não será o tempo o nome do
pensamento, quando o pensamento fragmenta a Verdade em verdades, quando o
pensamento se confronta com o Fora, quando se torna pensamento do dehors?

O dehors

Certo, mas isto é ainda pouco se não se souber o que é o dehors. Em outros
termos: a relação do pensamento com o tempo e, sobretudo, a afinidade do tempo com o
pensamento, só será, efetivamente, compreendida com o conhecimento, mais preciso,
do conceito de dehors. De fato, todas as considerações precedentes indicam que o
dehors deve ser entendido como o fora do Todo e como fora do Logos, isto é, como o
conjunto que se subtrai e que não entra nem na unidade objetiva nem na totalização
subjetiva: o dehors como o mundo dos signos ou como mundo de fragmentos, que se
furta ao Logos e que se subtrai ao Todo. Mas, se o dehors, o fora do Todo e como o fora
do Logos, designa, neste sentido, o mundo dos signos, resta precisar o que é um signo.
A identidade do signo e do fragmento não é suficiente. Por um lado, é preciso
repetir e salientar que o fragmento ou o signo não é uma imagem isolada, ele é, como se
verá com mais rigor mais adiante, sempre o efeito de uma contração que se faz no
espírito. Por outro lado, ela apenas diz o que o signo não é: enquanto fragmento o signo
é o que se furta ao Todo, o que não cabe no Logos, o que não se deixa totalizar. E
contudo, nada se sabe, assim, sobre sua positividade. Elemento de um mundo não
totalizável, o signo, diz Deleuze, não se confunde nem com a matéria bruta nem com o
espírito voluntário, nem com as significações explícitas — provenientes de um espírito

99
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 157 (129). Essa reflexão de Deleuze segue de perto a
interpretação de Blanchot a propósito do conceito de devir em Nietzsche: “o devir não é a fluência de
uma duração infinita (bergsoniana) ou a mobilidade de um movimento interminável. O despedaçamento
— a quebra — de Dioniso, eis o primeiro saber, a experiência obscura na qual o devir se descobre em
relação com o descontínuo e como seu jogo. E a fragmentação do deus não é a renúncia ousada à unidade
ou a unidade que permanece una, mesmo se pluralizando. A fragmentação é o deus mesmo, aquilo que
não tem nenhuma relação com um centro, que não suporta nenhuma referência originária e que, por
conseqüência, o pensamento, pensamento do mesmo e do um, aquele da teologia, como de todos os
modos do saber humano (ou dialético), não poderia acolher sem falsear.” L’entretiern infini, pág. 235.
que quer o verdadeiro — nem com a matéria objetiva e não ambígua, submetida às
condições do real. Na seqüência desse desbastamento conceitual, Deleuze conclui: “não
existem coisas nem espíritos, só existem corpos: corpos astrais, corpos vegetais... A
biologia teria razão, se soubesse que os corpos em si mesmos já são linguagem. Os
lingüistas teriam razão se soubessem que a linguagem é sempre a dos corpos.” 100
Assim, o signo (não sendo nem matéria, nem significação) é sentido que se atribui aos
corpos. Cabe, então, a questão: o que é, para Deleuze, um corpo?
Deleuze retoma, quanto ao problema da natureza do corpo, as setas lançadas por
Espinosa (nós não sabemos do que um corpo é capaz) e por Nietzsche (nós estamos na
fase na qual a consciência tornou-se modesta). Destaca, com Nietzsche, no corpo, o
papel secundário da consciência: a consciência é

“um sintoma, nada mais que um sintoma de uma transformação mais


profunda e de atividades de forças que nada têm de espiritual. (...) Em
Nietzsche, a consciência é sempre consciência de um inferior com
relação a um superior ao qual ele se subordina ou se 'incorpora'. A
consciência jamais é consciência de si, mas consciência de um eu por
relação ao si que, ele, não é consciente. (...) Tal é a servidão da
consciência: ela testemunha apenas da 'formação de um corpo
superior'.” 101

Deleuze sublinha, por outro lado, que um corpo não é uma realidade, não é um meio ou
um lugar, nem mesmo um campo de forças ou de batalha: “não há quantidade de
realidade, toda realidade já é quantidade de forças.” 102 Se um corpo não é, assim, nem
dominado pela consciência, nem realidade, retorna a questão: o que é um corpo?
Um corpo é força, relação de forças. Faz parte do conceito de força, segundo a
interpretação deleuziana deste conceito de Nietzsche, a idéia de que toda força já é, em
si mesma, relação de forças. Falar de força é, portanto, falar de forças dominantes e de
forças dominadas, de forças que comandam e de forças que obedecem. Na linguagem de
Nietzsche, forças ativas e forças reativas. E é assim que Deleuze, com Nietzsche, define
um corpo: “um corpo é essa relação entre forças dominantes e forças dominadas. Toda

100
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 112 (91).
101
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs 44 e 45 (32).
102
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 45 (33).
relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças
quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação: porque
o corpo é sempre produto do acaso, no sentido nietzschiano, e aparece como a coisa
mais surpreendente, muito mais surpreendente, em verdade, que a consciência e o
espírito.” 103 Eis ao que se chega quando se define o corpo como relação de forças: ele é
multiplicidade de forças em devir, fragmento, efeito do acaso de encontros de forças,
acontecimento, numa temporalidade descontínua. Como elemento que se atribui aos
corpos enquanto diferença de forças, o signo é também fenômeno de dominação e,
como acontecimento, o signo é, nele mesmo, uma presunção, uma interpretação. E,
como interpretação, o signo é o que deflagra, no pensamento, interpretações. Deve-se,
porém sublinhar que, se o signo é corporal, ele o é, como será melhor analisado, sentido
que se atribui aos corpos. Portanto o signo deve ser pensado como operador que
estabelece uma relação de pressuposição recíproca entre dimensões (corpo/sentido) que
diferem em natureza. Se tal como se sugeriu supra, o conceito de tempo articula-se,
necessariamente, com o postulado da exterioridade das relações, e se o signo é que
mantém em pressuposição recíproca corpo e sentido, ele, por sua natureza relacional,
deve possuir uma consistência temporal.
Cabe, então, retomar as questões: como conceber o tempo como último
intérprete? Não haverá nisso uma estranha identidade do tempo e do pensamento, não
será o tempo o nome do pensamento, quando o pensamento se confronta com o Fora,
quando se torna pensamento do dehors? Contudo, a reflexão a partir do conceito de
corpo sem órgãos, nos livros Logique du sens, L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, não
revelou um “dedans” do pensamento — o corpo sem órgãos como centro de perspectiva
impessoal, intensivo e em devir — que também se subtrai aos pressupostos do Todo e
do Um?
O pensamento que afirma o dehors torna-se interpretativo e se torna
temporalizante ao determinar relações temporais entre signos em um mundo
fragmentado. Assim o pensamento confrontado não propriamente com um mundo, mas
com signos, não visa um saber abstrato, mas envolve uma aprendizagem: “aprender é
primeiramente considerar uma matéria, um objeto, um ser como se eles emitissem

103
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 45 (33). Grifo meu.
signos a serem decifrados, interpretados.” Além disso, o pensamento, com a subtração
do Todo e do Um, desfigura a idéia da Verdade, que perde sua identidade e sua
eternidade, e torna-se múltipla e temporal. Sendo assim, o mundo que o pensamento
constrói com signos só pode ser pensado como plural, e o pensamento que o interpreta
deve determinar diferentes mundos, diferentes sistemas de verdades, cada qual
comportando temporalidade própria. Deleuze mostra, em Proust et les signes, que a
heterogeneidade lógica dos signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos
constrange o pensamento a voltar-se para o futuro, faz do pensamento interpretação e
pesquisa das verdades dos signos. Essa aprendizagem é ritmada por uma série de
decepções descontínuas e pelos meios de ultrapassá-las. “Daí a idéia fundamental de
que o tempo forma diversas séries e comporta mais dimensões que o espaço: o que é
ganho em uma não é ganho na outra.” 104 O problema da interpretação não pode, então,
reduzir-se à aprendizagem da lógica de um sistema de signos, mas impõe que a
aprendizagem avance no sentido da produção de um sistema aberto, em perpétua
heterogênese, único capaz de relacionar, no tempo, sem totalizar ou unificar, esses
diferentes sistemas de verdades.
A sensibilidade aos signos, para Deleuze, seria impotente sem a retificação ou
superação de certos complexos de crenças, que constituem os dois pólos da crença
realista.
O primeiro pólo, nomeado objetivismo, confunde o que o signo significa com o
objeto que ele designa. Deleuze explica: “cada signo possui duas metades: designa um
objeto e significa alguma coisa diferente. O lado objetivo é o lado do prazer, do gozo
imediato e da prática: enveredando por essa via, já sacrificamos o lado ‘verdade’.
Reconhecemos as coisas sem jamais as conhecemos. (…) Ao aprofundamento dos
encontros, preferimos a facilidade das recognições…” 105 E acrescenta:

“O ‘objetivismo’ não poupa nenhuma espécie de signos. Ele não


resulta de uma única tendência, mas da reunião de um complexo de
tendências. Relacionar um signo ao objeto que o emite, atribuir ao
objeto o benefício do signo, é de saída a direção natural da percepção
e da representação. Mas é também a direção da memória voluntária,

104
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 36 (26).
que se lembra das coisas e não dos signos. É, ainda, a direção do
prazer e da atividade prática, que fazem questão da posse das coisas
ou do consumo dos objetos. E, de outra forma, é a tendência da
inteligência. A inteligência deseja a objetividade, como a percepção,
deseja o objeto.” 106

O segundo pólo do realismo, nomeado subjetivismo, resulta, no decurso do


processo de aprendizagem, da decepção com o objetivismo, quando o objeto não
fornece o segredo que dele se espera.

“Cada linha de aprendizagem passa por esses dois momentos: a


decepção provocada por uma tentativa de interpretação objetiva, e a
tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva,
em que reconstruímos conjuntos associativos. (…) É fácil
compreender a razão: o signo decerto é mais profundo do que o
objeto que o emite, mas ainda se liga a esse objeto, ainda está semi-
encoberto. O sentido do signo é decerto mais profundo que o sujeito
que o interpreta, mas se liga a esse sujeito, se incarna nele pela metade
em uma série de associações subjetivas” 107

Entretanto, o que resta no signo quando se subtrai dele sua imagem realista, os
dois pólos de um postulado realista? Ou ainda: o que produz esse longo aprendizado das
verdades de cada tipo de signos e de sua variedade temporal? Para além do subjetivo e
do objetivo, diz Deleuze, insistem as essências: “é a essência que constitui a verdadeira
unidade do signo e do sentido; é ela que constitui o signo como irredutível ao objeto que
o emite; é ela que constitui o sentido como irredutível ao sujeito que o apreende.” 108
Mas, o que pode ser uma essência para um pensamento do dehors, qual a natureza de
uma essência para um pensamento que ignora os postulados realistas?

O signo e a essência

105
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 38 (28).
106
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 39 (29).
107
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 48 (36).
108
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 50 (38).
Em primeiro lugar, se a essência é imaterial e ideal, deve-se indagar em que
sentido ela é ideal. É preciso, nesse sentido, lembrar que Deleuze acompanha a reversão
estóica do platonismo. Segundo sua análise, o estoicismo distingue duas espécies de
coisas. A primeira espécie é a dos corpos, suas relações e os “estados de coisas”
correspondentes. A temporalidade dos corpos é o presente, ele exprime as ações e
paixões dos corpos. E, mais importante para o problema em questão: “não há causas e
efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, causas uns em relação aos outros,
uns para os outros. A unidade das causas entre si chama-se Destino, na extensão do
presente cósmico.” 109 A segunda espécie é a dos incorporais. Como efeitos da
causalidade dos corpos, os incorporais

“não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou


dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos.
Não se pode dizer que existam, mas, antes que subsistem ou insistem,
dotados desse mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa,
entidade não existente. (…) Não são presentes vivos, mas infinitivos:
Aion ilimitado, devir que se divide ao infinito em passado e em futuro,
sempre se esquivando do presente.” 110

Qual a importância dessa distinção? Com ela, os estóicos distinguem o domínio


da existência, aquele dos corpos — da causalidade e do presente —, do domínio do
pensamento, do sentido, isto é, dos efeitos incorporais, que não existem fora das
proposições que os exprimem e que dividem o presente em passado e futuro. Essa
distinção que dissocia a relação causal, ao invés de distinguir tipos de causalidade, retira
a causalidade do domínio do pensamento, pois entre os efeitos incorporais não há
causas, só há conjugações: o plano do sentido só conhece relações de “quase-causas”,
sempre reversíveis.

“Esta dualidade nova entre os corpos ou estados de coisas e os efeitos


ou acontecimentos incorporais conduz a uma subversão da filosofia.
Por exemplo, em Aristóteles. Todas as categorias se dizem em função
do Ser; e a diferença se passa no Ser entre a substância como sentido
primeiro e as outras categorias que a ela são relacionadas como

109
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 13 (5).
110
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 14 (5 e 6).
acidentes. Para os estóicos, ao contrário, os estados de coisas,
quantidades e qualidades, não são menos seres (ou corpos) que a
substância. Eles fazem parte da substância, e, a esse título, opõem-se a
um extra-ser, que constitui o incorporal como entidade não existente.
O termo mais alto não é pois o Ser, mas Alguma Coisa, aliquid, na
medida em que esta subsume o ser e o não-ser, as existências e as
insistências. Mais ainda, os Estóicos procedem à primeira grande
reviravolta do platonismo, a reviravolta radical. Pois, se os corpos,
com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os
caracteres da substância e da causa, inversamente os caracteres da
Idéia caem do outro lado, neste extra-ser impassível, estéril, ineficaz,
na superfície das coisas: o ideal, o incorporal não pode ser mais do
que um efeito.” 111

Além disso, ao mesmo tempo em que a idéia perde sua originalidade, sua
identidade, sua transcendência, seu estatuto de causa, e se torna efeito, o acontecimento
identifica-se com o devir ilimitado e coextensivo à linguagem. “Os acontecimentos, na
sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto procurados em
profundidade, mas na superfície (…) É seguindo a fronteira, margeando a superfície,
que passamos dos corpos ao incorporal. Paul Valéry chegou a uma expressão profunda:
o mais profundo é a pele. Descoberta estóica, que supõe muita sabedoria e implica toda
uma ética.” 112 Uma ética do sentido como acontecimento, que assegura a unidade do
amor fati com o combate dos homens livres. Uma ética da contra-efetuação do
acontecimento que se subtrai de toda moral, como de todo ressentimento e de toda
resignação, pois que se constitui não na aceitação do que ocorre, mas na afirmação de
alguma coisa no que ocorre, alguma coisa por vir: o Acontecimento. Como explica
Deleuze “o acontecimento não é o que ocorre (acidente), ele é no que ocorre o puro
expresso que nos faz signo e nos espera.” 113
A reversão estóica, com seu novo estatuto do sentido, assumida por Deleuze,
repercute sobre a compreensão da essência: esta não tem mais origem transcendente,
não é mais causa imutável e não podendo mais ser norma de julgamento, nem por isso

111
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 17 (7 e 8).
112
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 20.
113
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 175.
desaparece no nada. Ao contrário, torna-se perspectiva, diferença interna absoluta. Se a
essência não é mais significada na proposição, na ordem do conceito e das implicações
do conceito, se não é mais essência enquanto designada pela proposição nas coisas
particulares em que se empenha, é essência como sentido, a essência expressa na
proposição como acontecimento. Deleuze enfatiza igualmente que, se os
acontecimentos não se confundem com os estados de coisas, eles não existem fora das
proposições que os exprimem. E sublinha de igual modo que os acontecimentos são
atributos dos estados de coisas, acontecem às coisas. “As coisas e as proposições
acham-se menos em uma dualidade radical do que de um lado e de outro de uma
fronteira representada pelo sentido. Essa fronteira não os mistura, não os reúne (não há
monismo tanto quanto não há dualismo), ela é, antes, a articulação de sua diferença:
corpo/linguagem.” 114 O sentido emerge entre as proposições e as coisas. A dualidade
estado de coisas/sentido também recorta cada um dos termos. “Do lado da coisa, há
qualidades físicas e relações reais, constitutivas dos estado de coisas; além disso
atributos lógicos ideais que marcam os acontecimentos incorporais. E, do lado da
proposição, há os nomes e adjetivos que designam os estados de coisas e, além disso, os
verbos que exprimem os acontecimentos ou atributos incorporais.” 115 Entretanto,
Deleuze ainda adverte:

“a última palavra da dualidade não se acha nesse retorno à hipótese do


Crátilo. A dualidade na proposição não é entre duas espécies de
nomes, nomes de repouso e nomes de vir-a-ser, nomes de substâncias
ou qualidades e nomes de acontecimentos, mas entre duas dimensões
da própria proposição: a designação e a expressão, a designação das
coisas e a expressão do sentido. É como se fossem dois lados de um
espelho: mas o que se acha de um lado não se parece com o que se
acha do outro (…) Passar do outro lado do espelho é passar da relação
de designação à relação de expressão — sem se deter nos
intermediários, manifestação, significação. É chegar a uma dimensão
em que a linguagem não tem mais relação com os designados, mas

114
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 37.
115
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 37 (26).
somente com os expressos, isto é, com o sentido.” 116

Vê-se bem que a subtração, no pensamento, do Todo e do Um, arrasta consigo, no


domínio da linguagem, a subtração da “manifestação” do sujeito, da “significação”
conceitual e da “designação” do objeto. O que resta, senão o sentido como “quarta
dimensão” da linguagem? Como fronteira entre as proposições e as coisas é
simultaneamente o expresso das proposições e, enquanto tal, o que se atribui às coisas.
Assim, à temporalização do pensamento, que assegura sua imanência a si mesmo,
corresponde uma temporalização do sentido (o sentido como acontecimento), que
também o torna imanente a si mesmo.
Se o sentido emerge entre as proposições e as coisas, não será o signo o que
interioriza essa fronteira? Mais ainda: não será o tempo a própria fronteira? Fronteira
paradoxal, ela mesma heterogênea, que se apresenta, numa face, como presente e, na
outra face, como cisão entre passado e futuro, que divide e corrói todo presente. Mas o
que é esse trabalho do tempo senão aquele que, revelando a dimensão própria do
sentido, permite a distinção entre história — como sucessão de estados de coisas —, e
devir — como tempo da contra-efetuação? E não será a aprendizagem, um combate do
pensamento contra seus pressupostos, o movimento fundamental das contra-efetuações
internas ao pensamento que, eliminando seus pressupostos realistas, o transforma e
impulsiona para o outro lado do espelho, onde, ele, o pensamento, se redefine sem
referência a uma totalidade objetiva e a uma unidade subjetiva? Não é este combate,
esta aprendizagem, que garante a imanência do sentido, quando, paradoxalmente este é
pensado como efeito, mas como efeito do não-sentido? Não é também esse combate
que, subtraindo ao campo do sentido as idéias de uma causa originária e de um telos
ordenador, temporaliza o sentido tornando-o acontecimento? E não confluem todos
esses aspectos da aprendizagem para dar à unidade, que o dehors comporta, o estatuto
de efeito de um ato de contra-efetuação, que ressoa entre e nos sistemas de signos? Um
sistema em perpétua heterogênese não será um sistema de contra-efetuações, um
sistema em movimento, isto é, um sistema de supressões de pressupostos, que se
transforma na medida de sua potência criadora? A essência, num tal sistema, é a
perspectiva que revela a unidade do signo e do sentido: fazendo do tempo a fronteira

116
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 38 (27).
que distingue o sentido das forças que não se separam dele, revela o tempo como a
diferença de intensidade que constitui o ser do sentido.
Se, na filosofia de Deleuze, a essência é imaterial sem ser causa, se ela se refere
à dimensão do sentido e se o sentido é, do ponto de vista da essência, apreendido não
como eterno, mas como acontecimento, é necessário dizer que isto decorre de uma
mutação na maneira de pensar que possibilita um novo modo de questionar. Nesse
ponto, Deleuze retoma a crítica nietzscheana da questão platônica: “O que é?” —
questão que acarreta as oposições de valores: as distinções entre a essência e a aparência
e entre o ser e o devir. Nietzsche, segundo Deleuze, contrapõe à questão “O que é?” a
questão “Quem?”, como a questão mais adequada para determinar a essência.

“A arte pluralista não nega a essência: ela a faz depender em cada caso
de uma afinidade de fenômenos e de forças, de uma coordenação da
força e da vontade. A essência de uma coisa é descoberta na força que
a toma e que se exprime nela, desenvolvida nas suas forças em
afinidade com ela, comprometida ou destruída pelas forças que a ela
se opõem e que podem submetê-la: a essência é sempre o sentido e o
valor. (…) A questão: ‘Quem?’ encontra sua instância suprema em
Dioniso ou na vontade de potência. (…) Não se perguntará ‘quem
quer?’, ‘quem interpreta?’, ‘quem avalia?’, pois por todo lugar e
sempre a vontade de potência é este quem.” 117 Disto decorre um
procedimento: “relacionar um conceito à vontade de potência, para
fazer dele o sintoma de uma vontade sem a qual ele não poderia nem
mesmo ser pensado (nem o sentimento ser sentido, nem a ação
empreendida).” 118

Mas qual é o estatuto dessa instância genética e crítica que é a vontade de


potência? Qual é o seu estatuto como interprete? Deleuze é claro: o que quer uma
vontade não é um objeto (ilusão objetivista), não é um fim (ilusão teleológica), o que
quer uma vontade é afirmar sua diferença.

O estatuto da interpretação
Mas que significa afirmar sua diferença? Significa, como diz Nietzsche, a
propósito do investimento de uma alma afirmativa, a afirmação de não sei qual certeza
fundamental dela mesma, alguma coisa que é impossível de procurar, de encontrar ou
mesmo de perder (a vida, o acaso e o devir). A vontade de potência é, desse modo, uma
operação e, assim, não busca sua diferença em propriedades objetivas: ao contrário, sua
diferença está naquilo que não pode, de direito, ser objetivado. E o que é que, de direito,
não pode ser objetivado, senão a potência interpretante, isto é, uma perspectiva? Mas
uma perspectiva, assim compreendida, é a instância produtora, diferencial e genética119 ,
que assina o que ela interpreta, sem nunca se confundir com seus produtos ou com suas
interpretações, dos quais, no entanto, não se separa. A vontade de potência diz respeito,
portanto, a uma dimensão das forças que, furtando-se a toda e qualquer objetivação,
constitui, no pensamento, uma abertura, a afirmação da vida, do acaso e do devir, que
elimina tanto o Todo quanto o Um.
Nesse sentido, a expressão “corpo sem órgãos”, tomada de A. Artaud e
elaborada conceitualmente em Lógica do sentido, Anti-Édipo e Mil Platôs, pode ser
compreendida como o conceito que estabelece a subtração do conjunto dos pressupostos
que organizam e objetificam os corpos como operação necessária para a constituição de
um corpo vital compreendido como um centro de perspectiva, plano de imanência de
toda interpretação temporalizante e não unificadora.
O conceito de corpo sem órgãos estabelece a necessidade da subtração dos
estratos que são o organismo, a significância e a subjetivação para a constituição de um
campo de imanência e a produção desejante. Contudo, não é inexato concluir que para
Deleuze todo pensamento criador, ao mesmo tempo, constrói e supõe um campo de
imanência ou um corpo sem órgãos, isto é um corpo em devir, liberto de necessidades e
de finalidades que toda organização supõe e impõe. Nesse sentido, a imanência, como
condição da produção desejante e do exercício do pensamento, deve ser pensada como
uma conquista de um corpo imanente que se faz por subtração dos estratos que
imporiam ao corpo uma ordem e um fim. É esse corpo imanente a si e em devir, não um

118
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 88 e 89 (63).
119
Determinando-se diferencial e genético como componentes da instância interpretante aproximam-se os
conceitos de vontade de potência e de tempo como devir. Como se verá infra, essa articulação dá a
originalidade da interpretação deleuziana do eterno retorno.
sujeito, que dá corpo aos sujeitos larvares e aos personagens conceituais que assinam os
conceitos, os perceptos e os afetos que vêm animar e dar consistência ao exercício
imanente do pensamento.
Deve-se, então, dizer que o conceito de corpo sem órgãos se aproxima e se
distingue do conceito de corpo próprio implicado na tese epistemológica que afirma que

“as imagens internas não se deixam organizar em um determinismo


que se poderia apoiar sobre aquele que define a realidade objetiva,
pois não há objetividade do real nem determinismo da natureza sem o
trabalho de um pensamento que liga as imagens externas num sistema
pela afirmação de relações necessárias, esse trabalho requer a
presença, atestada ao pensamento por sensações originais, de um
centro de perspectiva situado por seu lado aquém do determinismo e
da realidade. A correspondência que se estabelece para cada um de
nós entre seu corpo como parte da realidade que ele percebe, e ele
mesmo como centro de percepção sobre o real, não é então assimilável
àquela que une dois aspectos de uma mesma realidade. Não é justo
falar de um aspecto objetivo e de um aspecto subjetivo de uma
realidade psicofísica, mas dever-se-á pelo menos, quando a questão
for o corpo, distinguir entre o corpo concebido como real, logo,
impessoal, e o corpo concebido como meu, consequentemente,
estranho à realidade.” 120

Com o conceito de corpo sem órgãos, Deleuze também visa a ultrapassar a


oposição entre duas dimensões do corpo: corpo subjetivo e corpo objetivo. Com este
conceito Deleuze além de afirmar, como o faz Robert Blanché, a idéia de um centro de
perspectiva situado por seu lado aquém do determinismo e da realidade, Deleuze deseja,
ainda, ao subtrair do conceito de corpo próprio seu aspecto pessoal, pensar um ponto de
vista criador, singular e impessoal. Desfaz, assim, a identidade pressuposta entre a
objetividade e a impessoalidade que afetaria o centro de perspectiva como
necessariamente pessoal — o corpo concebido como meu. Subtraindo da idéia do corpo
próprio os pressupostos do organismo, da significância e da subjetivação, Deleuze

120
Robert Blanché, La notion de fait psychique: essai sur les rapports du physique eu du mental, págs. 94
e 95.
conquista, com o conceito de corpo sem órgãos, a idéia de um centro de perspectiva
impessoal. Um corpo vital, um corpo intensivo, um corpo em devir, como potência
impessoal de afetar e ser afetado, como centro de perspectiva que coloca em outros
termos o problema do pensamento, da interpretação.
O essencial é que o conceito de corpo sem órgãos permite a Deleuze ultrapassar
os dualismos do sujeito e objeto e do sujeito de enunciação e sujeito do enunciado.
Neste sentido, Deleuze pode dizer:
“há menos um narrador do que uma máquina da
Rcherche e muito menos um herói do que agenciamentos em
que a máquina funciona com esta ou aquela configuração, de
acordo com esta ou aquela articulação, para este ou aquele uso,
para determinada produção. É apenas neste sentido que podemos
indagar o que é o narrador herói, que não funciona com sujeito.
(…) Na verdade o narrador não possui órgãos, ou pelo menos
aqueles que lhe seriam necessários ou que gostaria de possuir
(…) O narrador é, na realidade, um enorme Corpo sem
órgãos.” 121
Mas o que é um corpo sem órgãos, este corpo em devir, vital e intensivo? Em
Proust et les signes, o corpo sem órgãos é um corpo sensível não às significações
explícitas e convencionais, mas aos signos. Sensibilidade que se adquire com o devir do
narrador, quando este perde sua organização com a subtração do postulado de um senso
comum — acordo voluntário de todas as faculdades. Como diz Deleuze:

“O narrador pode ser dotado de uma extrema sensibilidade, de


uma prodigiosa memória: ele não possui órgãos no sentido em
que é privado de todo uso voluntário e organizado de suas
faculdades. Em contrapartida, uma faculdade se exerce nele
quando é coagida e forçada a fazê-lo; e o órgão correspondente
vem situar-se nele, mas como um esboço intensivo despertado
pelas ondas que lhe provocam o uso involuntário. Sensibilidade

121
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 217 e 218 (181 e 182)
involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são
como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos
de diversas naturezas.” 122

É o momento de retomar o problema da interpretação em conexão com a questão


da obra como interpretante que sistematiza processos de produção de sentido. Deleuze
questiona a obra como objeto e propõe, com Proust, pensá-la como instrumento. “Ao
logos, órgão e organon, cujo sentido é necessário descobrir no todo a que ele pertence,
se opõe o anti-logos, máquina e maquinaria cujo sentido (tudo o que se quiser) depende
unicamente do funcionamento, e este das peças destacadas. A obra de arte moderna não
tem problema de sentido, ela só tem problema de uso.” 123 Mas por que a obra de arte (e,
por extensão, a obra filosófica, ou qualquer obra) deve ser pensada como máquina?
Deleuze responde: “pelo simples fato de que a obra de arte, assim compreendida, é
essencialmente produtora: produtora de certas verdades. Ninguém mais do que Proust
insistiu no seguinte ponto: a verdade é produzida e produzida por ordens de máquinas
que funcionam em nós, extraídas a partir de nossas impressões, aprofundada em nossa
vida, manifestada em uma obra.” 124 A idéia de produção de verdades critica a crença na
Verdade como algo a ser descoberto, bem como a idéia de um logos que se pressupõe a
si mesmo, e faz do interpretar um processo de produção:

“mesmo o pensar deve ser produzido no pensamento. Toda produção


parte da impressão, porque apenas ela reúne em si o acaso do encontro
e a necessidade do efeito, violência que ela nos faz sofre. Toda
produção parte portanto de um signo e supõe a profundidade e a
obscuridade do involuntário. (…) Então, como vimos, o signo, por
sua natureza, aciona esta ou aquela faculdade, embora jamais todas ao
mesmo tempo, impulsionado-a até o limite do seu exercício
involuntário e disjunto pelo qual ela produz o sentido. (…) Em todo o
caso, a faculdade eleita sob a coação do signo constitui o interpretar; e
o interpretar constitui o sentido, a lei ou a essência segundo o caso,
que é sempre um produto. Porque o sentido (verdade) nunca está na

122
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 218 (182 e 183).
123
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 176 (145 e 146).
124
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 176 (146).
impressão nem mesmo na lembrança, mas se confunde com o
‘equivalente espiritual’ da lembrança ou da impressão, produzido pela
máquina involuntária da interpretação.” 125

É importante enfatizar o aspecto involuntário da interpretação, pois é ele que dá


à interpretação sua necessidade. Uma necessidade que se contrapõe à verdade
puramente lógica, descoberta pelo uso voluntário das faculdades postas de acordo num
senso comum, no logos. Não que a necessidade da produção seja destituída de lógica,
mas antes sua lógica não é um possível abstrato, mas o efeito, ou melhor, o processo
mesmo da produção do sentido. Além disso, deve-se sublinhar que a idéia de produção
pluraliza a verdade. Existem ordens de verdades como ordens de produção. É, então, do
ponto de vista da produção do sentido que o problema da relação, que não totaliza e não
unifica, deve ser elucidado.
Deleuze discerne, em À la recherche du temps perdu, três espécies de máquinas:
uma máquina de produção de objetos parciais, uma máquina de ressonância e outra de
movimentos forçados. A primeira produz a verdade do tempo perdido, por
fragmentação dos objetos parciais, a segunda produz a verdade do tempo redescoberto,
por ressonância, e a terceira produz a verdade do tempo perdido pela amplitude dos
movimentos forçados.
A produção de objetos parciais os produz como fragmentos sem totalidade,
partes quebradas, vasos sem comunicação, cenas fechadas — e produz leis gerais —
que não reúnem os fragmentos em um todo, mas que, ao contrário, regulam suas
distâncias, seus afastamentos, seus fechamentos. Ela produz a verdade como um efeito
do tempo perdido, por fragmentação dos objetos parciais.
A máquina de efeitos de ressonância não supõe a produção precedente dos
objetos parciais:

“a ordem da ressonância se distingue pelas faculdades de extração ou


de interpretação que ela aciona e pela qualidade de seu produto que é
também modo de produção: não mais uma lei geral, de grupo ou de
série, mas uma essência singular, essência local ou localizante no caso
dos signos de reminiscência, essência individuante no caso dos signos

125
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 177 e 178 (147).
da arte. A ressonância não repousa sobre pedaços que lhe seriam
fornecidos pelos objetos parciais, nem totaliza pedaços que viriam de
alhures. Ela extrai seus próprios pedaços e os faz ressoar segundo sua
finalidade específica, mas não os totaliza, uma vez que se trata sempre
de um ‘corpo a corpo’, de uma ‘luta’ ou de um ‘combate’. O que é
produzido pelo processo de ressonância, na máquina de ressoar, é a
essência singular, o Ponto de vista superior aos momentos que
ressoam, em ruptura com a cadeia associativa que vai de um ao outro:
Combray na sua essência, tal como não foi vivida; Combray como
Ponto de vista, tal como não foi nunca vista.” 126

Ela, a máquina de ressoar produz a verdade do tempo redescoberto, por ressonância.


A máquina que produz a verdade do tempo perdido pela amplitude dos
movimentos forçados ultrapassa a oposição que a morte faz à vida. Ela opera sobre a
passagem do tempo dilatando-a ao máximo, fazendo com que a morte apareça menos
como um corte do que como um efeito de mistura ou de confusão. “A idéia de morte
cessa de ser uma ‘objeção’ desde que se possa ligá-la a uma ordem de produção,
concedendo-lhe portanto um lugar na obra de arte. O movimento forçado de grande
amplitude é uma máquina que produz o efeito de recuo ou a idéia de morte; e, nesse
efeito, e o próprio tempo que se torna sensível.” 127
A determinação dessas três máquinas de produção de sentido permite a Deleuze
iluminar o problema das relações da arte com a vida, tal como ele emerge em À la
recherche du temps perdu. Se a arte aparece, em Proust, como o objetivo final da vida é
porque a obra de arte é pensada como máquina, isto é, como processo de produção. Isto
significa não apenas que a obra produz efeitos sobre os outros — leitores, espectadores,
etc. —, mas, sobretudo, “que ela produz em si mesma e sobre si mesma seus próprios
efeitos, e deles se sacia, a deles se nutre: ela se alimenta das verdades que engendra.” 128
Paradoxalmente, a obra de arte pode só ser pensada como objetivo final da vida se for
pensada como imanente a si mesma.

“Mas, no final, vê-se o que a arte é capaz de acrescentar à natureza:


ela produz as próprias ressonâncias, porque o estilo faz ressoar dois

126
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 182 e 183 (151).
127
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 192 (159).
objetos quaisquer e deles extrai uma ‘imagem preciosa’, substituindo
as condições determinadas de um produto natural inconsciente pelas
livres condições de uma produção artística. (…) A Natureza ou a
vida, ainda muito pesadas, encontram na arte seu equivalente
espiritual. E até mesmo a memória involuntária, encontrou seu
equivalente espiritual, puro pensamento produzido e produtor.” 129

A arte, como puro pensamento ou como aprendizagem, é pensada, paradoxalmente,


como parte da vida, mas parte adjacente à vida, que permite uma organização das
ordens de produção sem unificá-las ou totalizá-las.
Mas o que garante a unidade da obra de arte? Deleuze assegura:
“não é o estilo, pois ele é que deve receber de outra parte a sua
unidade: nem tampouco a essência, visto que esta, como ponto de
vista, está perpetuamente fragmentando e sendo fragmentada. Qual é,
então, essa modalidade tão especial de unidade irredutível a qualquer
‘unificação’, unidade tão especial que só surge posteriormente, que
assegura a troca dos pontos de vista e a comunicação das essências, e
que surge, segundo a lei da essência, como uma parte ao lado das
outras, pincelada final ou fragmento localizado? Eis a resposta: em um
mundo reduzido a uma multiplicidade de caos, somente a estrutura
formal da obra de arte, na medida em que não remete a outra coisa,
pode servir de unidade — posterior.” 130

Mas sobre o que repousa essa estrutura formal? Deleuze precisa: é a transversalidade:
“assim é o tempo, a dimensão do narrador, que tem a potência de ser o todo dessas
partes sem totalizá-las, a unidade de todas essas partes, sem unificá-las.” 131
Ao fim dessa investigação só aparentemente se chega a um impasse: o que dá
unidade ao mundo do fragmento é o pensamento; mas não era este o trabalho do Logos?
A subtração ao pensamento do Todo (dos pressupostos de uma forma a priori e da
ordem dos fatos do mundo) não reintroduz, na outra ponta, a unidade do pensamento? O

128
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 185 (153).
129
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 186 (154 e 155).
130
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág.201 (168)
131
Gilles Deleuze, Proust et les signes, pág. 203 (170).
contrasenso a ser evitado é o seguinte: não se deve confundir a unidade produzida pelo
pensamento com o pressuposto de um Logos, isto é, de uma unidade do pensamento.
Assim, a subtração do Todo é apenas um aspecto de um procedimento que só se
completa com a subtração, concomitante, da unidade do pensamento. A afirmação
nietzscheana, retomada inúmeras vezes por Deleuze, de que não existem fatos, apenas
interpretações, deve ser interpretada ela mesma não apenas como uma crítica à crença
na existência de dados objetivos, que se imporiam por si mesmos, mas também como
uma crítica à assimilação dos pensamentos a fenômenos naturais. Eis aí a importância
da distinção estóica corpo/sentido, que retira o pensamento do campo da existência: o
pensamento não existe, apenas insiste. E, como insistência, isto é, como pura atividade,
o pensamento confronta-se com fragmentos, que não são fatos, que não são dados, nem
objetivos nem subjetivos, mas interpretações. É preciso, então, além disso dizer que,
para Deleuze, só um pensamento sem imagem, isto é, sem unidade dada, sem realidade
ou existência posta por pressupostos, tem a potência de relacionar os fragmentos sem
totalizá-los, de ligá-los sem unificá-los.
Retornando ao problema da autenticação do dehors, da sua necessidade: não será
a temporalização do pensamento, a afirmação de seu pluralismo, que redefine a
exterioridade como Dehors? As subtrações do Todo e do Logos, conforme o duplo
sentido do procedimento de subtração: constituição..., não são os efeitos necessários da
afirmação de um novo pensamento? O pensamento do Dehors, isto é, do fora do Logos
e do fora do Todo é, assim, o que faz com que os postulados do Todo e do Logos
percam sentido e se subtraiam ao pensamento. O que o pensamento se torna quando,
como diz Blanchot, “o ser — a unidade, a identidade do ser — retirou-se sem dar lugar
ao nada, esse refúgio excessivamente fácil?”132 Sendo assim, é possível dizer da
filosofia de Deleuze aquilo que Blanchot diz da filosofia de Nietzsche: o que é, para
ambos, o pensamento

“quando o Mesmo não é mais o sentido último do Outro e a Unidade


não é isto em relação ao que se enuncia o múltiplo? Quando a
pluralidade se diz, sem se relacionar ao Um? Então, talvez então,
deixe-se pressentir, não como paradoxo, mas como decisão, a
exigência da palavra fragmentar, essa palavra que, longe de ser única,

132
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
não se diz mais do um e não diz mais o um na sua pluralidade.
Linguagem: afirmação mesma, aquela que não se afirma mais em
razão nem visando da Unidade. Afirmação da diferença, todavia
jamais diferente. Palavra plural.” 133

Essa citação faz retornar, em novos termos, o problema do sentido e do valor de


um sistema em perpétua heterogênese: como conceber essa palavra plural? A introdução
ao Mille plateaux, “Rizome”, permite defini-la como um agenciamento ou uma
multiplicidade. Enquanto agenciamento ou multiplicidade, a palavra plural não é
discurso de um sujeito nem possui um objeto, ela está em conexão com outros
agenciamentos e só existe pelo dehors e no dehors. Desse ponto de vista, a filosofia da
diferença constitui-se em sistema que, ao recusar-se como uma imagem do mundo, faz
rizoma com o mundo. Decerto, neste caso, deve-se parafrasear o que dizem Deleuze e
Guattari a propósito do livro: O pensamento (o sistema da filosofia da diferença) faz
rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do pensamento e do mundo, o pensamento
assegura a desterritorialização do mundo, mas também o mundo opera uma
reterritorialização do pensamento, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no
mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). 134 Pode-se dizer de um sistema em perpétua
heterogeneidade e que se afirma como heterogênese, que, de um lado que ele se subtrai
à tripartição entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representação, a obra
e seu sistema, e um campo de subjetividade, o filósofo; e, de outro lado, que ele
constitui-se sempre em conexão com um Dehors que não possui imagem, nem
significação, nem subjetividade.
Esse pensamento elabora-se como sistema que se pretende nômade e aspira
agenciar com seu dehors. No entanto, seguindo ainda a reflexão de Deleuze e Guattari a
propósito do livro-rizoma (em contraposição ao livro-Estado), deve-se, ainda
parodiando-os, indagar: como a filosofia encontrará um dehors suficiente com o qual
ela possa agenciar no heterogêneo, em vez de reproduzir um mundo? Uma filosofia
cultural é forçosamente um decalque: de antemão, decalque dela mesma, decalque de
seu livro precedente, decalque de outros livros sejam quais forem as diferenças,
decalque interminável de conceitos e de palavras bem situados, reprodução do mundo

133
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
134
Cf. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, pág. 18 (20).
presente, passado ou por vir. Mas a filosofia anticultural (e seu sistema) pode ainda ser
atravessada por uma cultura demasiado pesada: dela fará, entretanto um uso ativo de
esquecimento e não de memória, de subdesenvolvimento e não de progresso a ser
desenvolvido, de nomadismo e não de sedentarismo, de mapa e não de decalque. 135
Como foi proposto, deve-se lembrar a hipótese de que há em operação, na filosofia da
diferença, um procedimento que efetua este esquecimento ativo, o procedimento de
subtração–constituição. Procedimento que como se verá, ao subtrair o primado do verbo
“ser” sobre a conjunção “e” promove uma reversão da ontologia, de um lado, subtrai os
princípios, a origem, a teleologia, o fundamento e, de outro lado, constitui uma
afirmação do ser como afirmação, como afirmação do devir.

CAPÍTULO III
Deleuze e a crítica

“Mesmo a história da filosofia é


inteiramente desinteressante, se não se
propuser a despertar um conceito
adormecido, a relança-lo numa nova cena,
mesmo que a preço de voltá-lo contra ele
mesmo.” Gilles Deleuze e Felix Guattari.

Se o pensamento de Deleuze não é apenas o pensamento que se expõe, ao cabo


de uma série de subtrações, ao acaso das relações de forças, ao fragmento e ao signo, é
porque ele é, sobretudo, a partir dessa aparente passividade, aquele que repete e afirma a
diferença. Se ele não se aniquila quando não mais reúne todos os fragmentos, quando
não mais detém a lei que os unifique em um Todo, é porque ele é um pensamento crítico
e criador. Eis, portanto, questões que se impõem: o que é um tal pensamento,
simultaneamente crítico e criador? Sobre o que incide sua crítica? E ainda: como esse
pensamento redefine a problemática ontológica?

135
Cf. Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, pág. 35 (36).
Introdução ao problema de uma crítica criativa

A filosofia, tal como a concebe Deleuze, é um pensamento crítico e criador. Sua


crítica incide sobre as mistificações que compõem, no pensamento, a vitória das forças
reativas sobre as forças ativas. Desse modo, a crítica filosófica interpela a vontade que
se exprime nas forças que compõem uma imagem do que é o pensamento. Assim, ela se
expressa na questão: o que é pensar? 136
Como Deleuze concebe a crítica? Como sua concepção da crítica articula-se com
o seu procedimento de subtração: constituição...? Pois certamente, ele não compartilha
das concepções que a opinião e a tradição filosófica apresentam com respeito à crítica.
Crítica, no seu sentido comum, é, como se pode ler nos dicionários, a arte ou a
faculdade de examinar e/ou julgar as obras do espírito: implica apreciação minuciosa,
julgamento e possível censura.
A filosofia também concebeu a crítica como o exame de um fenômeno, que visa
a estabelecer seu valor: esta tarefa supõe a capacidade de determinar a norma, isto é, o
valor ao qual o objeto pode pretender. Nesse ponto, opinião e filosofia concordam, pois,
em ambos os casos, a crítica supõe a posse de uma norma válida como condição do
juízo crítico. Contudo esse acordo entre a opinião e a metafísica é limitado: a metafísica
separa-se da opinião por sua pretensão de ser o único discurso que se dá por objetivo o
estudo da essência de cada tipo de normatividade — a do verdadeiro para o discurso, a
do justo para as práticas e a do belo para as obras.
No entanto, assim definida, a metafísica só é crítica secundariamente: seu
objetivo primeiro seria a pesquisa da verdade do verdadeiro, do justo e do belo. Foi
preciso, segundo a análise de Emmanuel Renault, 137 que essa relação tradicional da
metafísica e da crítica se modificasse para que a filosofia como crítica aparecesse.
O filósofo Michel Foucault sugere que o Ocidente conheceu, a partir dos séculos
XV e XVI, o desenvolvimento de uma atitude crítica que se contrapôs à generalização

136
Esse tema complexo, que conjuga crítica e criação como componentes do pensamento, atravessa,
como uma diagonal, toda a obra de Deleuze. Contudo, ele se explicita e se repete, sobretudo, em
Nietzsche et la philosophie, em Proust et les signes e em Difference et répétition, sob um mesmo título:
“A imagem do pensamento”. A rigor, cada uma dessas obras submete esse tema — o que é pensar? — às
questões que lhes são próprias, articulando-o a outros problemas que, contudo, comunicam-se na questão
ontológica, desenvolvida especialmente em Difference et répétition e em Logique du sens.
137
Emmanuel Renault, Marx et l’idée de la critique, págs. 5 a 15.
das técnicas de governo, inicialmente elaboradas pela pastoral cristã. 138 Como reação a
esse movimento de governamentalização, elabora-se uma vontade de não ser governado
desse modo, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais
procedimentos, que, ainda segundo Michel Foucault, sustenta uma indocilidade
refletida, arte da não servidão voluntária, que conduz os sujeitos a questionarem a
verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade.
Pode-se identificar, como efeito dessa atitude crítica, o que E. Renault distingue
como três vertentes de uma filosofia, agora, essencialmente crítica: 1. a filosofia orienta
sua prática a partir de um objetivo crítico — é o caso do iluminismo; 2. ela dá à sua
pesquisa da verdade a forma de um exame crítico — é o caso da filosofia kantiana; 3. a
síntese desses dois projetos de crítica, desejada pelo movimento filosófico dos jovens
hegelianos. Contudo, o que interessa, nesse momento, não é expor as análises de
Renault sobre a crítica em Marx, nem explorar as especificidades dessas vertentes
críticas, mas sublinhar que, do ponto de vista de Deleuze, todas essas tendências
mantêm o essencial do projeto platônico: a pretensão de apoiar a crítica na posse de um
valor superior e, sobretudo, na crença no valor da verdade e da razão.
Na contracorrente desse movimento, a filosofia nietzschiana suspeitou desses
sentidos da crítica: afirmando um pensamento que se propõe como crítico dos valores,
fez reverter o sentido da atitude crítica redefinindo o problema crítico, ao apresentá-lo
como o da avaliação do valor dos valores. Segundo Nietzsche, os valores não se podem
pretender como princípios, pois, mais profundamente, os valores supõem avaliações de
onde derivam seus próprios valores. Os valores transcendentes não resistem a essa
suspeita filosófica: sua eternidade desvanece com a exposição de sua gênese.
Como mostrou Gilles Deleuze, em Nietzsche et la philosophie, “as avaliações,
relacionadas ao seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de
existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios aos
valores”. Esse golpe de misericórdia na pretensão de um fundamento transcendente
retira da crítica todo apoio ou referência meta-situada. Contudo, do ponto de vista de
Deleuze, a ausência de valores transcendentes não afeta apenas a crítica. O sentido
próprio da filosofia modifica-se. Quando a filosofia perde a referência de seus modelos,

138
Cf. Michel Foucault, “Qu’est-ce que la critique?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie,
1978.
torna-se, efetivamente, criação: sua tarefa deixa de ser buscar a perfeição de uma cópia
e sua aventura define-se, simultaneamente, por uma resistência ao já dito e pela
produção do novo. Além disso e em conformidade com isso, quando a materialidade
histórica não fornece mais modelos para um pensamento que resiste às palavras de
ordem que almejam cristalizar regras no presente, nem mais proporciona apoio para um
pensamento que se afirma descentrado em relação ao Eu, ao Mundo e a Deus, e que,
portanto, não se dá referentes subjetivos ou objetivos, é, então, submetendo o já dito a
uma crítica genealógica, que o pensamento, simultaneamente, se expõe como força e se
impõe como força às forças que ele revela na gênese do já dito. As subtrações das
transcendências no pensamento determinam, como será melhor discutido adiante, novas
potências do pensamento: a diferença e a repetição, a interpretação e a afirmação.
Se a interpretação original de Gilles Deleuze da doutrina do eterno retorno
assegura que o espírito da crítica nietzschiana seja incorporado pela filosofia deleuziana,
será proveitoso investigar, com mais detalhe, como Deleuze define esta crítica e de que
modo, através de que conceitos, ele revela, no pensamento de Nietzsche, as condições
de uma crítica verdadeiramente imanente.
No entanto, como Deleuze apresenta a crítica nietzschiana como uma crítica à
crítica kantiana, parece oportuno investigar, neste capítulo, a compreensão que Deleuze
propõe do sistema kantiano.

A leitura deleuziana do sistema kantiano

Nas considerações que fez sobre sua relação com a história da filosofia, em sua
carta-resposta a Michel Cressole, Gilles Deleuze explicita suas simpatias — Lucrécio,
Hume, Espinosa, Nietzsche e todos os que empenharam-se na crítica do negativo, da
interioridade, que valorizaram a exterioridade das forças e das relações e dedicaram-se à
crítica do poder — e suas antipatias: “o que eu detestava sobretudo eram o hegelianismo
e a dialética”. Nesse contexto, Kant ocupa um lugar destacado: “meu livro sobre Kant é
diferente, gosto muito dele e o concebi como um livro sobre um inimigo que tento
mostrar como funciona, quais são as suas engrenagens — tribunal da razão, uso
comedido das faculdades, submissão tanto mais hipócrita quanto nos confere o título de
legisladores.” 139 Contudo, esse tom crítico, que se observa também em outras
referências de Deleuze a Kant, não transparece de modo evidente no único livro em que
Deleuze abordou de modo sistemático a filosofia de Kant. Neste livro, que não deixa de
ser crítico, La philosophie critique de Kant, a crítica permanece implícita e não se
destaca de uma análise que busca revelar o sistema da filosofia transcendental, cuja
investigação é o objetivo central deste capítulo.

A questão kantiana formulada em Empirisme et subjectivité

Em Empirisme et subjectivité, Deleuze faz sua primeira apresentação da questão


kantiana. Subordinada ao projeto do livro, essa caracterização revela, entretanto,
interesse para uma investigação das relações entre Deleuze e Kant: permite
compreender como Deleuze enquadra a contraposição empirismo e criticismo do ponto
de vista de suas questões.
Confrontando sua interpretação do empirismo com certas objeções à filosofia de
Hume, Deleuze é levado a precisar o estatuto da crítica filosófica. Este problema o
conduz a um outro, mais fundamental — o da natureza da teoria em filosofia — que se
articula com o primeiro, que confere ao primeiro seu sentido rigoroso:

“uma teoria filosófica é uma questão desenvolvida, e nada mais: por


ela mesma, nela mesma, consiste não em resolver um problema, mas
em desenvolver até o fim as implicações necessárias de uma questão
formulada. Mostra-nos o que as coisas são, o que é necessário que as
coisas sejam, supondo que a questão seja boa e rigorosa. (...) Conhecer
a questão significa mostrar que condições a tornam possível e bem
posta, isto é, como as coisas não seriam o que elas são se a questão
não fosse esta. (...) Em filosofia, a questão e a crítica da questão são
uma unidade; ou caso se prefira, não há crítica das soluções, apenas
crítica dos problemas.” 140

Deleuze define o empirismo de Hume pela questão da subjetividade assim

139
Gilles Deleuze “Lettre a un critique sévère”, in G. Deleuze, Pourparlers. pág. 15 (14).
140
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 119 (120).
formulada: o sujeito se constitui no dado. Esta questão é relacionada com sua condição
crítica: a exterioridade das relações face às idéias. A partir dessas definições, Deleuze
confronta Hume com a crítica de Kant, o que não pode ser feito sem que a questão da
filosofia de Kant seja explicitada no processo dessa contraposição filosófica.
O dualismo definidor do empirismo — o dos termos e das relações — se esclarece
e se desdobra como dualismo das causas das percepções e das causas das relações, ou
como dualismo dos poderes da natureza e dos poderes da natureza humana, e impõe a
questão da finalidade, que se precisa como o problema do acordo entre a regra da
reprodução dos fenômenos na natureza e a regra da reprodução das representações no
espírito. 141 Segundo Deleuze, Kant critica o associacionismo a partir da questão do
empirismo, isto é, a partir do seu dualismo constitutivo e da finalidade que ele envolve.
A apresentação dessa crítica contém a primeira caracterização, na obra de Deleuze, da
questão kantiana.
Vejamos:

“Kant reprova a Hume ter posto mal, no bom terreno da imaginação, o


problema do conhecimento: o modo como Hume pôs a questão, isto é,
seu dualismo, obrigava-o a conceber a relação entre o dado e o sujeito
como um acordo do sujeito com o dado, da natureza humana com a
natureza. Mas, se o dado não fosse submetido ele próprio, e
primeiramente, a princípios do mesmo gênero que aqueles que
regulam a ligação das representações para um sujeito empírico, o
sujeito não poderia jamais reencontrar esse acordo, senão de um modo
absolutamente acidental, e não teria mesmo a oportunidade de ligar
suas representações segundo regras que ele teria, entretanto, a
faculdade. Para Kant, é necessário inverter o problema: relacionar o
dado ao sujeito e conceber o acordo como um acordo do dado com o
sujeito, da natureza com a natureza do ser racional. Por quê? Porque o
dado não é uma coisa em si, mas um conjunto de fenômenos, conjunto
que só pode ser apresentado como uma natureza por uma síntese a
priori, a qual só torna possível uma regra das representações na
imaginação empírica com a condição de constituir primeiramente uma

141
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs 120 a 123 (121 a 124).
regra dos fenômenos na própria natureza. Assim, em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como
fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que
aquela das relações. As implicações do problema assim invertido são
as seguintes: há o a priori, isto é, deve-se reconhecer uma imaginação
produtora, uma atividade transcendental. A transcendência era o fato
empírico, o transcendental é o que torna o transcendente imanente ao
objeto = x. Ou, o que é o mesmo, algo no pensamento ultrapassará a
imaginação sem dela poder prescindir: a síntese a priori da
imaginação nos remete a uma unidade sintética da apercepção, que a
fecha.” 142

Essa contraposição é feita com a máscara do historiador. Deleuze não interrogará,


ao menos na aparência, criticamente nenhuma das duas questões. A crítica de Kant a
Hume serve-lhe para melhor caracterizar a solução empirista do problema da finalidade:
nesta, o acordo cognitivo é subordinado ao problema prático da ligação dos diversos
momentos da subjetividade, a finalidade tem uma condição prática. Deleuze sublinha o
primado dos princípios da paixão sobre os princípios de associação — “a associação dá
ao sujeito uma estrutura possível, só a paixão lhe dá um ser, uma existência” — com o
propósito de mostrar que a verdadeira crítica de Hume incide sobre a representação,
uma vez que ele “nos mostra que ela não pode ser um critério para as próprias relações.
As relações não são o objeto de uma representação, mas os meios de uma atividade. O
que é denunciado, criticado, é a idéia de que o sujeito possa ser um sujeito
cognoscente.” 143
A ultrapassagem do dado pelo sujeito, que aparece no dado sob os efeitos dos
princípios — Deleuze designa de finalidade intencional a unidade do sujeito decorrente
do acordo dos princípios de associação com os princípios da paixão —, tem, na crença e
na invenção, suas duas modalidades. Crendo e inventando, o sujeito faz do dado uma
natureza.

“Eis onde a filosofia de Hume encontra seu ponto último: essa


Natureza é conforme ao Ser; a natureza humana é conforme à

142
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs. 124 e 125 (124 e 125).
143
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 138 (137).
Natureza, mas em que sentido? (...) Chamamos de finalidade esse
acordo da finalidade intencional com a Natureza. Mas esse acordo só
pode ser pensado; e, sem dúvida, é o pensamento mais pobre e mais
vazio. A filosofia deve constituir-se como teoria do que fazemos, não
como teoria do que é. Aquilo que fazemos possui seus princípios; e o
Ser só pode ser apreendido como objeto de uma relação sintética com
os próprios princípios do que fazemos.” 144

A questão kantiana segundo La philosophie critique de Kant

Kant define a faculdade do juízo em geral como a faculdade de pensar o


particular como contido no universal. 145 A possibilidade, os mecanismos e os
pressupostos dessa subsunsão constituem o objeto de La philosophie critique de Kant.
O livro de Deleuze é composto segundo um esquema que repete, de certo modo,
a estrutura da contraposição Hume/Kant efetuada em Empirisme et subjectivité. A partir
da definição da questão kantiana, Deleuze apresenta as operações que sustentam a
chamada revolução copernicana, buscando, em seguida, mostrar como a Crítica da
faculdade do juízo desempenha uma função de fundamentação da Crítica da razão pura
e da Crítica da razão prática, ao determinar o senso comum estético como condição de
possibilidade do senso comum especulativo e do senso comum prático. Revela também,
na sua leitura da Crítica da faculdade do juízo, como Kant, ao determinar o interesse da
razão pelo acordo contingente da matéria da natureza com as nossas faculdades como
princípio genético do senso comum do belo, estabelece um encadeamento genético entre
os interesses da razão articulando-os a uma trama complexa dos fins da razão, para
concluir o livro esclarecendo o sentido do finalismo na filosofia transcendental.
Deleuze introduz a questão da filosofia transcendental a partir de duas definições
da filosofia propostas por Kant: “a ciência da relação de todos os conhecimentos com os
fins essenciais da razão humana”; ou “o amor que o ser racional experimenta pelos fins
supremos da razão humana”.

144
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 152 (151).
145
Cf. Imanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, pág. 23.
Ressaltando nessas definições a caracterização da razão como faculdade dos fins
e a equação dos fins superiores da razão com o sistema da cultura, Deleuze mostra como
Kant contrapõe-se ao empirismo e ao racionalismo. Contra o empirismo — que faz da
razão um modo de realizar fins que são postos pela natureza — Kant afirma que há fins
da cultura e que estes são os fins da razão. Contra o racionalismo — que postula que os
fins racionais são transcendentes — defende Kant que a razão, ao colocar seus fins,
toma a si própria como fim.
Assim, a caracterização da questão kantiana tal como formulada em Empirisme et
subjectivité, qual seja, a de que há uma submissão necessária dos fenômenos ao sujeito,
adquire um sentido relativo — está circunscrita ao interesse especulativo da razão — no
interior da questão englobante que subsume e dá sentido a todas as legislações regionais
da razão, vale dizer a questão da afirmação da existência de fins imanentes à razão.
Pode-se mostrar como, para Deleuze, a questão dos fins imanentes à razão
articula-se com o rompimento de Kant com a metafísica em aspectos fundamentais que,
conjuntamente, asseguram a definição do campo da filosofia transcendental: Kant
reverte o primado metafísico do infinito sobre o finito e determina uma finitude
constituinte composta por faculdades heterogêneas, que diferem em natureza.
Lembra Deleuze que o primado do infinito sobre o finito, característico da
metafísica, determinava que as faculdades humanas fossem, de direito, homogêneas.
Nesse esquema, a finitude humana é uma finitude de fato e o infinito, o entendimento de
Deus, desconhece qualquer dado, pois Deus cria do nada. Assim, Deus ignora a
distinção entre receptividade e espontaneidade: é pensado como pura espontaneidade.
Nesse quadro, de direito não há dado para o pensamento. Pode-se pensar apenas na
existência do dado, como fato, para uma criatura finita. A revolução kantiana começa
com a recusa de que a finitude defina-se como um simples fato da criatura, com a
promoção da finitude ao estado de potência constituinte. A finitude deixa de ser um
simples fato derivado de um infinito originário: é ela que se torna originária. Nesse
novo sentido, a finitude compõe-se como uma unidade de faculdades irredutíveis e
heterogêneas, delimitando-se então como um sujeito simultaneamente finito e positivo.
Produz-se assim um novo campo de imanência: o da subjetividade transcendental. 146

146
A propósito do argumento deste parágrafo, ver no site de Deleuze na Internet a aula intitulada
“LEIBNIZ (Foucault-Blanchot-cinema)”, de 1987.
A questão dos fins imanentes da razão conjuga-se naturalmente com o problema
de uma crítica imanente. Se os fins da razão são seus fins imanentes, é a razão que deve
arrogar-se juiz de seus próprios interesses: “uma crítica imanente, a razão como juiz da
razão, eis o princípio essencial do método transcendental. Esse método propõe-se
determinar: 1) a verdadeira natureza dos interesses ou fins da razão; 2) os meios de
realizar esses fins.” 147
Deleuze ressalta que Kant emprega a palavra faculdade em dois sentidos. No
primeiro sentido, ela distingue os tipos de relações que as representações mantêm com o
sujeito e com o objeto: a relação de acordo ou conformidade define o conhecimento
como uma faculdade; a relação de causalidade dá o desejo como faculdade; e a relação
de intensificação ou diminuição da força vital do sujeito toma os sentimentos de prazer
e dor como faculdades.
Ainda nesse primeiro sentido da palavra faculdade, Kant busca definir suas
formas superiores, suas formas autônomas, que se manifestam quando as faculdades
encontram em si mesmas a lei de seu próprio exercício. O que parece importante, nesse
momento, para melhor precisar a hipótese, é enfatizar que, para Kant, as formas
superiores das faculdades constituem-se por suas sínteses a priori, o que lhes assegura a
independência da experiência. Essas formas superiores delineiam, assim, “planos de
imanência” específicos, que pretendem estabelecer, como fundamentais e evidentes,
redes de necessidades cujas validades dependem da dedução de seu caráter universal.
Segundo Deleuze, a tese essencial da Crítica em geral afirma que “há interesses
da razão que diferem em natureza. Esses interesses formam um sistema orgânico e
hierarquizado, que é aquele dos fins do ser racional.(...) A idéia de uma pluralidade (e
de uma hierarquia) sistemática dos interesses, conforme ao primeiro sentido da palavra
‘faculdade’, domina o método kantiano. Esta idéia é um verdadeiro princípio, princípio
de um sistema dos fins.” 148 O problema de Kant parece ser — ao determinar fins ou
interesses superiores da cultura (o interesse especulativo incide sobre os fenômenos, o
interesse prático sobre a forma pura da lei moral e o interesse racional pelo acordo
contingente das produções da natureza como nosso prazer desinteressado, como
princípio genético do senso comum estético, incide sobre as matérias livres da natureza)

147
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 7 e 8 (13).
148
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, Paris, pág. 13 (17).
—, assegurar a possibilidade de universais imanentes à razão e à cultura.
Mas a demonstração da possibilidade de pensar esses fins depende, segundo a
análise de Deleuze, da explicitação do segundo sentido que a palavra faculdade assume
quando designa uma fonte específica de representações. “Nesse segundo sentido, temos
três faculdades ativas e uma receptiva (a sensibilidade): vista em sua atividade, a síntese
remete à imaginação; na sua unidade, ao entendimento; na sua totalidade, à razão.” 149 A
tese de Deleuze sobre o problema da realização dos fins superiores da razão pode,
agora, ser formulada: “a uma faculdade no primeiro sentido da palavra (faculdade de
conhecer, faculdade de desejar, sentimento de prazer ou de dor), deve corresponder uma
certa relação entre as faculdades no segundo sentido da palavra (imaginação,
entendimento e razão). É assim que a doutrina das faculdades forma uma verdadeira
rede, constitutiva do método transcendental.” 150

O senso comum especulativo

Deleuze destaca que o senso comum especulativo, como os demais sensos comuns
determinados por Kant, designa um acordo a priori das faculdades, ou, mais
precisamente, o resultado de tal acordo. Cada senso comum é o correlato da instauração
de um estado civil que, como o contrato dos juristas, implica renúncias das faculdades
envolvidas no acordos que elas compõem, cujo efeito positivo é a realização de um
interesse da razão: os acordos singulares entre as faculdades, determinados pelos
interesses específicos da razão, possibilitam, em cada caso, as condições subjetivas de
toda comunicabilidade e de toda pretensão à universalidade.
Mas em que consiste, segundo Deleuze, o problema do conhecimento para Kant?
Sua posição em La philosophie critique de Kant repete o que já se encontra exposto em
Empirisme et subjectivité: o conhecimento é definido por uma ultrapassagem da
experiência. As condições de uma tal ultrapassagem são, de um lado, o fato de
possuirmos representações a priori — as apresentações a priori do espaço e do tempo e
os conceitos a priori do entendimento. Mas, de outro lado, é necessário que nossos

149
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 13 (17).
150
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 17 (20 e 21).
princípios subjetivos possam aplicar-se ao dado, ou seja, é preciso que o dado da
experiência submeta-se aos nossos princípios:

“o que nos é apresentado de modo a formar uma natureza deve


obedecer necessariamente a princípios do mesmo gênero (e mais: aos
mesmos princípios) que regulam o curso de nossas representações.
São os mesmos princípios que devem explicar nossas démarches
subjetivas e também o fato de que o dado se submete às nossas
representações. O que significa dizer que a subjetividade dos
princípios não é uma subjetividade empírica ou psicológica, mas uma
subjetividade transcendental.” 151

Com essa posição, Kant afirma a sua revolução copernicana: a substituição do


ponto de vista de uma harmonia entre o sujeito e o objeto pelo princípio de uma
submissão necessária do objeto ao sujeito. No entanto, ao ressaltar que o realismo
empírico acompanha a filosofia crítica, Deleuze aponta para uma dificuldade decorrente
da diferença de natureza entre a sensibilidade e o entendimento, mostrando como em
Kant o problema da relação entre o sujeito e o objeto tende a interiorizar-se: “como um
sujeito passivo pode ter, por um lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afecções
que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a essa faculdade?” 152
Deleuze retoma o problema do conhecimento destacando, em Kant, o papel
mediador da imaginação: as atividades da imaginação de produzem as sínteses da
apreensão e da reprodução pelas quais o diverso é representado como ocupando um
certo espaço e um certo tempo, além de assegurarem a representação da diversidade do
próprio espaço e do próprio tempo; é sua função mediar, através de seus esquemas, as
relações do entendimento com a sensibilidade de modo que o entendimento possa
formular juízos com suas categorias. Mas o conhecimento exige mais do que sínteses e
esquemas: implica, de um lado, que as representações pertençam a uma mesma
consciência, na qual devem estar ligadas, e, de outro lado, impõe uma relação necessária
com um objeto. Deleuze argumenta que, para Kant,

“as minhas representações são minhas, na medida em que estão


ligadas na unidade de uma consciência, de tal modo que o 'Eu penso'

151
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 21 (26 e 27).
152
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 23 (28).
as acompanhe. Ora, as representações não se unem assim em uma
consciência sem que o diverso que sintetizam se relacione, por isso
mesmo, a um objeto qualquer. (...) O objeto qualquer é o correlato do
Eu penso ou da unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua
objetivação formal. Do mesmo modo, a verdadeira fórmula (sintética)
do Cogito é: eu penso e, ao me pensar, penso o objeto qualquer ao
qual relaciono uma diversidade representada.” 153

A forma do objeto remete ao entendimento e às categorias, que são representações da


unidade da consciência e, como tais, predicados de um objeto qualquer.
Deleuze sintetiza assim a solução kantiana do conhecimento:

“1) todos os fenômenos se dão no espaço e no tempo; 2) a síntese a


priori da imaginação refere-se a priori ao espaço e ao tempo; 3) os
fenômenos são, pois necessariamente submetidos à unidade
transcendental dessa síntese e às categorias que as representam a
priori. É nesse sentido que o entendimento é legislador: não nos diz,
certamente, a que leis estes ou aqueles fenômenos obedecem do ponto
de vista da sua matéria, mas constitui as leis a que todos os fenômenos
submetem-se do ponto de vista de sua forma, de tal modo 'formam'
uma Natureza sensível em geral.” 154

Vimos que, sob a legislação do entendimento, a imaginação sintetiza e


esquematiza. Contudo, o que faz a razão quando dirigida pelo entendimento? Se o
entendimento julga, a razão raciocina e simboliza, pois, como as categorias referem-se a
todos os objetos da experiência possível, diz Deleuze: “para encontrar um termo médio
que fundamente a aplicação do conceito a priori a todos os objetos, a razão não pode
mais dirigir-se a um outro conceito (mesmo a priori), mas deve formar idéias que
ultrapassem a possibilidade da experiência. Estas representam a totalidade das
condições sob as quais atribui-se uma categoria de relação aos objetos da experiência
possível.” 155
Subjetivamente, as idéias conferem aos conceitos do entendimento um máximo de
unidade e extensão sistemáticas. Mas, objetivamente, as idéias resolvem um outro

153
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 25 (29 e 30).
154
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 28 (31).
problema. Uma vez que o entendimento legisla sobre os fenômenos apenas do ponto de
vista da sua forma, é necessário que os fenômenos, do ponto de vista da matéria,
conheçam uma ordenação, pois, caso contrário, sempre que a sua matéria apresentasse
uma diversidade radical, o entendimento tornar-se-ia incapaz de exercer a sua potência
de ordenação formal. Uma harmonia e uma finalidade entre as idéias da razão e a
matéria dos fenômenos são postuladas por Kant: “a razão”, comenta Deleuze,

“deve supor uma unidade sistemática da Natureza, deve colocar essa


unidade como problema ou como limite, e regular todas as suas
démarches sobre a idéia deste limite até o infinito. A razão é, pois, a
faculdade que diz: tudo se passa como se... Ela não afirma em
absoluto que a totalidade e a unidade das condições sejam dadas no
objeto, mas somente que os objetos nos permitem tender para essa
unidade sistemática como para o seu mais elevado grau de
conhecimento. (...) Assim os fenômenos em sua matéria correspondem
às idéias e as idéias às matérias dos fenômenos; mas, em lugar de uma
submissão necessária e determinada, temos aqui apenas uma
correspondência, um acordo indeterminado.” 156

Após a exposição da contribuição de cada faculdade para a produção do senso


comum especulativo sob a legislação do entendimento, pode-se destacar as dificuldades,
inerentes à questão kantiana, que Deleuze observa na elaboração kantiana do problema
do conhecimento.
A perspectiva da submissão do objeto ao sujeito, se evita os embaraços do
finalismo metafísico e de seu fundamento teológico, cria os seus próprios embaraços:
“em Kant, o problema da relação entre sujeito e objeto tende, pois, a interiorizar-se:
torna-se o problema de uma relação entre faculdades subjetivas que diferem em
natureza (sensibilidade receptiva e entendimento ativo)”. 157 A formulação kantiana que
faz da imaginação — com suas sínteses e seus esquemas — uma atividade de mediação
entre a sensibilidade e o entendimento, é para Deleuze, não uma verdadeira solução do
problema, mas seu deslocamento: “pois a imaginação e o entendimento diferem eles

155
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 30 (33).
156
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 32 (34).
157
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 23 e 24 (28).
mesmos em natureza, e o acordo entre essas duas faculdades ativas não é menos
'misterioso'. (Da mesma forma, o acordo entendimento-razão.)” 158
Desse modo, Deleuze indaga se a recusa de uma harmonia dada entre sujeito e
objeto não remete à idéia de uma harmonia transposta para o nível das faculdades do
sujeito que diferem em natureza? Essa desconfiança conduz Deleuze a questionar o fato
de um acordo harmonioso entre as faculdades e a reivindicar que o projeto kantiano
exige um princípio desse acordo como uma gênese do senso comum. Este não é,
todavia, um problema específico do senso comum especulativo: diz respeito à própria
idéia de um senso comum e remete para todos os acordos que fundamentam os
diferentes sensos comuns revelados por Kant. Entretanto, mesmo permanecendo-se no
plano do fato dos acordos determinados, isto é, sem indagar sobre suas condições
genéticas, resta ainda uma outra dificuldade: “como conciliar a idéia das ilusões internas
da razão ou do uso ilegítimo das faculdades com esta outra idéia, não menos essencial
ao kantismo: a idéia de que nossas faculdades (inclusive a razão) são dotadas de uma
boa natureza e estão de acordo umas com as outras no interesse especulativo?” 159
Analisando os dois principais usos ilegítimos da razão, o uso transcendental —
quando o entendimento pretende conhecer algo independentemente das condições da
sensibilidade e o uso transcendente quando a razão pretende por ela mesma conhecer
algo de determinado —, Deleuze encontra duas determinações dessas ilusões. A
primeira que relaciona as ilusões da razão à permanência da razão em seu estado de
natureza, isto é, quando ela furta-se a concordar com as demais faculdades na
instauração de um estado civil. A segunda, mais rigorosa, relaciona essas ilusões a um
interesse legítimo e natural da razão pelas coisas em si. As ilusões da razão pura
explicam-se como sombras do interesse prático projetadas sobre o acordo determinado
pelo interesse especulativo da razão.

O senso comum prático

Deleuze considera Kant como o primeiro filósofo a conceber uma crítica total e

158
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 34 (36).
159
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 38 e 39 (39)
positiva da metafísica, retomando o ideal pré-socrático da filosofia como legisladora e
pensando a crítica como imanente à razão. Segundo Deleuze, não apenas Kant deslocou
a questão do conhecimento do campo metafísico organizado pela oposição disjuntiva
essência/aparência para a problemática fenomenológica ordenada pelo par conjuntivo
fenômeno(aparição)-condição da aparição do fenômeno, o que acarretou na redefinição
do estatuto do sujeito do conhecimento. O sujeito transcendental não será mais marcado
por uma deficiência a fazer dele também um obstáculo ao conhecimento, mas pensado
como constituinte das condições de todo conhecimento possível. Mas, além desta
revolução na teoria do conhecimento, a filosofia kantiana retomaria o ideal da pré-
socrático da filosofia como legisladora, também porque libertou a lei moral da idéia do
Bem transcendente, tornando o Bem dependente da lei como forma pura da
universalidade. Esse segundo movimento da crítica kantiana está, contudo, na
dependência de Kant revelar a possibilidade e os mecanismos de um senso comum
prático.
A lei moral, a forma pura de uma legislação universal, pertence à razão: “uma
representação não somente independente de qualquer sentimento, mas de qualquer
matéria e de qualquer condição sensível, é necessariamente racional. Aqui, porém, a
razão não raciocina: a consciência da lei moral é um fato, 'não um fato empírico, mas o
fato único da razão pura que se anuncia como originalmente legisladora'. A razão é,
pois, essa faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar.” 160
Deleuze esclarece que, para Kant, a pressuposição recíproca entre a vontade
determinada pela lei moral e a liberdade não significa que razão prática e liberdade
sejam a mesma coisa. O conceito de liberdade é uma idéia da razão especulativa
relacionado sinteticamente à razão prática. A idéia de liberdade “permaneceria
puramente problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral não nos ensinasse
que somos livres. (...) Na autonomia da vontade encontrarmos, pois, uma síntese a
priori que dá, ao conceito de liberdade, uma realidade objetiva determinada, unindo-o
necessariamente ao de razão prática”. 161
O conceito de liberdade remete não aos fenômenos que são submetidos à lei da
causalidade natural, mas a uma forma de causalidade relacionada a seres livres.

160
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 43 (45).
161
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 43 (46).
Definindo a liberdade como um poder de começar de si mesma um estado, cuja
causalidade não remete, por sua vez (como na lei natural), a uma outra causa que a
determina no tempo, Kant associa o conceito de liberdade ao mundo supra-sensível, ao
mundo noumenal, às inteligências que nós somos: “enquanto seres racionais, devemos
pensar em nós mesmos como membros de um mundo inteligível ou supra-sensível,
dotados de causalidade livre.”
Desse modo, Kant determina a lei moral como a lei de nossa existência inteligível.
Deleuze ressalta, portanto, em Kant, a existência de duas legislações e dois domínios
correspondentes:

“a legislação por conceitos naturais é aquela em que o entendimento,


determinando esses conceitos, legisla na faculdade de conhecer; seu
domínio é o dos fenômenos como objetos de toda a experiência
possível, enquanto formam uma natureza sensível. A legislação pelo
conceito de liberdade é aquela em que a razão, determinando esse
conceito, legisla na faculdade de desejar, isto é, em seu próprio
interesse prático; seu domínio é o das coisas em si pensadas como
noumenos, enquanto formam uma natureza supra-sensível.” 162

Mas a legislação pelo conceito de liberdade tem o mesmo sentido que a legislação
por conceitos naturais? Não, os seres livres não estão sujeitos à razão prática no mesmo
sentido em que os fenômenos submetem-se aos conceitos do entendimento. A razão, no
seu interesse prático, ao contrário do entendimento que, quando determinado pelo
interesse especulativo da razão, legisla sobre os fenômenos, não legisla sobre uma outra
coisa: “o noumeno apresenta ao pensamento a identidade do legislador e do sujeito. (...)
Pertencemos a uma natureza supra-sensível, mas a título de membros legisladores.” 163
Se é pela legislação da lei moral que os seres inteligíveis podem adquirir uma
natureza supra-sensível, Deleuze sublinha o caráter paradoxal do conceito de natureza
supra-sensível, destacando três aspectos: 1) “a natureza supra-sensível jamais é
realizada completamente, já que nada garante a um ser racional que seus semelhantes
comporão suas existências com a dele”; 2) entre a natureza sensível e a natureza supra-
sensível “há apenas uma analogia (existência sob leis)”; 3) em razão da incompletude da

162
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 47 (48).
163
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 47 e 48 (49).
realização da natureza supra-sensível, “não é suficiente dizer que a relação entre as duas
naturezas é de analogia; é preciso acrescentar que o supra-sensível só pode ser pensado
como natureza por analogia com a natureza sensível.” 164
Deleuze argumenta que, como se revela na prova lógica da razão prática,
investiga-se por analogia com a forma das leis teóricas da natureza sensível se uma
máxima pode ser pensada como lei prática de uma natureza supra-sensível. Assim, para
Kant, “a natureza do mundo sensível” aparece como “tipo de uma natureza inteligível”.
Mas, da natureza sensível, só se retém a forma da conformidade à lei fornecida pelo
entendimento legislador. Deste modo, percebe-se uma nova harmonia entre as
faculdades:

“Segundo o interesse prático da razão, é a própria razão que legisla; o


entendimento julga ou mesmo raciocina (ainda que esse raciocínio
seja muito simples e consista numa simples comparação) e simboliza
(extrai da lei natural sensível um tipo para a natureza supra-sensível)
(...) Determinando a faculdade de desejar sob a sua forma superior, a
razão une o conceito de causalidade ao de liberdade, isto é, dá à
categoria de causalidade um objeto supra-sensível (o ser livre como
causa produtora originária).” 165

Determinado o senso comum prático, Deleuze recoloca a questão de como


conciliar, também nesse caso, os temas da harmonia natural (senso comum) e o dos
exercícios discordantes (não senso). Inicialmente, expõe a posição de Kant sobre a
diferença entre o sentido da crítica na Crítica da razão pura e na Crítica da razão
prática. Com efeito, na Crítica da razão pura é a razão a fonte das ilusões internas,
pois, mesmo delegando ao entendimento o papel de legislar no seu interesse ela é
tentada a usurpar a função legisladora. Ora, na Crítica da razão prática, em que a razão
assume o papel de legislar no seu interesse prático, uma vez demonstrada a sua
existência, ela não tem necessidade de crítica. A crítica incide não sobre a razão prática,
mas sobre os interesses empíricos que nela se refletem.
Desse modo, argumenta Deleuze que Kant emprega o termo dialética em dois
sentidos diferentes para distinguir uma ilusão mais fundamental, relacionada com a

164
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 48 e 49 (50).
165
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 50 e 51 (51 e 52).
associação, estabelecida pela razão prática, entre felicidade e virtude. Nesse ponto, a
razão prática cai em uma antinomia: “a felicidade não pode ser causa da virtude (já que
a lei moral é o único princípio determinante da vontade boa), e a virtude tampouco
parece poder ser causa da felicidade (já que as leis do mundo sensível não se regulam
em absoluto pelas intenções de uma boa vontade).” 166
O fundamento dessa ilusão encontra-se na confusão do contentamento, (espécie de
prazer negativo, apenas um análogo do sentimento de respeito à lei moral) que decorre
da aplicação da lei moral e que exprime nossa independência em relação às inclinações
sensíveis, com um sentimento positivo, o que promove a ilusão que torna a felicidade
móvel de nossa vontade. Deleuze sublinha que essa ilusão mais fundamental “é apenas
aparentemente contrária à idéia de uma boa natureza das faculdades: a própria
antinomia prepara uma totalização que, sem dúvida, é incapaz de operar, mas que nos
força a procurar, do ponto de vista da reflexão, como que sua solução própria ou a chave
de seu labirinto.” 167
O sentimento de respeito à lei moral faz abstração da sensibilidade ao negar-lhe
um papel na relação das faculdades. Mas, por outro lado, o respeito serve como regra
para suprimir o abismo entre o mundo supra-sensível e o mundo sensível: o conceito de
liberdade deve realizar, no mundo sensível, o fim imposto por suas leis; a natureza
supra-sensível (o Bem moral) deve ser realizada no mundo sensível.
Deleuze observa que a realização do bem moral supõe “um acordo entre a
natureza sensível (segundo suas leis) e a natureza supra-sensível (segundo sua lei). Este
acordo apresenta-se na idéia de uma proporção entre felicidade e moralidade, isto é, na
idéia do Soberano Bem como 'totalidade do objeto da razão pura prática'.” 168 Contudo, a
antinomia exclui qualquer possibilidade de realização direta e imediata, uma vez que
interdita qualquer causalidade entre felicidade e virtude. A solução kantiana, segundo
Deleuze, está em pensar a conexão entre felicidade e virtude “na perspectiva de um
progresso até o infinito (alma imortal) por intermédio de um autor inteligível da
natureza sensível ou de 'uma causa moral do mundo'(Deus). Vê-se como as idéias de
alma e de Deus são as condições necessárias sob as quais o próprio objeto da razão

166
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 54 (54).
167
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 56 (55).
168
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 60 (58).
prática é colocado como possível e realizável.” 169
Assim, Deleuze ressalta que as três grandes idéias da razão especulativa (Deus,
alma e liberdade) possuem em comum, além do caráter problemático e indeterminado
do ponto de vista do conhecimento, o fato de receberem da lei moral uma determinação
prática; e nesse sentido são objeto de uma crença pura prática. Mas, sob outro ponto de
vista, essas três idéias não são inteiramente homogêneas, pois apenas a idéia de
liberdade é imediatamente determinada pela lei moral: “consequentemente, a liberdade
é mais uma 'matéria de fato' ou objeto de uma proposição categórica do que um
postulado. As duas outras idéias, como 'postulados', são apenas condições do objeto
necessário de uma vontade livre: 'vale dizer que sua possibilidade é provada pelo fato de
que a liberdade é real'.” 170
Antecipando sua análise da Crítica da faculdade do juízo, Deleuze distingue
outras condições de uma realização do supra-sensível no sensível, argumentando que a
natureza sensível apresenta condições imanentes para sua capacidade de simbolizar o
supra-sensível: 1) a finalidade natural na matéria dos fenômenos; 2) a forma da
finalidade da natureza nos objetos belos; 3) o sublime informe da natureza. A
participação da imaginação no senso comum do belo e do sublime revela que “o senso
comum moral não comporta apenas crenças, mas atos de uma imaginação através dos
quais a Natureza sensível aparece como apta ao efeito do supra sensível. A própria
imaginação faz parte, na realidade, do senso comum moral”. 171
Existe, portanto, uma hierarquia na relação entre os interesses da razão. Antes de
investigar com mais detalhes a trama dos interesses e dos fins da razão, Deleuze
apresenta como Kant pensa a subordinação do interesse especulativo ao interesse
prático: “O fato de ser conhecido não pode conferir ao mundo qualquer valor; é preciso
supor para ele um objetivo final que dê algum valor a essa própria observação do
mundo.” 172 Se o objetivo final é um conceito que designa seres que devem ser
considerados como fins em si e que devem dar à natureza sensível um fim último a
realizar, este é um conceito da razão prática:

169
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 61 (59).
170
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 62 (59).
171
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 63 (60).
172
Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, § 86.
“apenas a lei moral determina o ser racional como um fim em si, visto
que constitui um objetivo final no uso da liberdade, mas, ao mesmo
tempo, determina-o como fim último da natureza sensível, já que nos
ordena realizar o supra-sensível unindo a felicidade universal à
moralidade.(...) O interesse especulativo só encontra fins na natureza
sensível porque, mais profundamente, o interesse prático implica o ser
racional como fim em si e também como fim último dessa natureza
sensível” 173

O senso comum na crítica da faculdade do juízo

A posição de Deleuze com respeito ao estatuto da Crítica da faculdade do juízo


no sistema geral da crítica kantiana é clara: sua relação com as demais Críticas não é
meramente suplementar, seu sentido profundo não é o de um complemento, mas de uma
fundamentação. Apesar de Kant afirmar que a novidade da Crítica da faculdade do
juízo está em assegurar, em um só tempo, a passagem do interesse especulativo ao
interesse prático e a subordinação de primeiro ao segundo, Deleuze sublinha que essa
passagem e essa subordinação só são possíveis porque, nesse livro, Kant desvela um
fundo que permanecia oculto na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática.
Esclarecendo que o estado superior da faculdade de sentir apresenta dois
caracteres paradoxais, Deleuze distingue:

“De um lado, contrariamente ao que se passava no caso das outras


faculdades, a forma superior não se define por nenhum interesse da
razão — o prazer estético é tanto independente do interesse
especulativo quanto do interesse prático e se define como um interesse
desinteressado. De outro lado, a faculdade de sentir sob sua forma
superior não é legisladora (...) — impotente para legislar sobre
objetos, o juízo só pode ser heautonomo, isto é, legisla sobre si. A
faculdade de sentir não possui domínio (nem fenômenos, nem coisa
em si); ela não exprime condições a que um gênero de objetos deve

173
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 65 e 66 (62).
ser submetido, mas unicamente condições subjetivas para o exercício
das faculdades.” 174

Esse fundo que se exprime como uma pura operação de julgar — como um juízo
puro que se apresenta primeiramente no juízo estético do tipo “é belo” — e cujo
funcionamento revela uma pura harmonia subjetiva, um acordo livre e indeterminado
entre as faculdades, introduz um novo ponto de vista no sistema da crítica: a perspectiva
de uma gênese transcendental e “a descoberta do que Kant chama de a Alma, isto é, a
unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, 'o ponto de concentração', o
princípio vivificador a partir do qual cada faculdade se vê 'animada', engendrada no seu
livre exercício como no seu livre acordo com as outras.” 175
Em “L'idée de genèse dans l'esthétique de Kant”, Deleuze revela o sistema da
primeira parte da Crítica da faculdade do juízo: inicialmente a analítica do belo como
exposição apresenta uma estética formal do belo em geral do ponto de vista do
espectador; a analítica do sublime, ao mesmo tempo como exposição e como dedução,
expõe a estética informal do sublime, do ponto de vista do espectador; a analítica do
belo como dedução, revela uma meta-estética material do belo na natureza, do ponto de
vista do espectador; a dedução na teoria do gênio: manifesta uma meta-estética ideal do
belo na arte, do ponto de vista do artista criador.
O senso comum estético não representa nenhum acordo objetivo das faculdades.
Nele, a imaginação reflete um objeto singular do ponto de vista de sua forma sem
qualquer relação com um conceito determinado do entendimento. Na sua relação com o
entendimento, a imaginação toma-o como faculdade dos conceitos em geral; “relaciona-
se com um conceito indeterminado do entendimento. Isto é: a imaginação, em sua
liberdade pura, entra em acordo com o entendimento em sua legalidade não
especificada”. 176
Esse acordo entre a imaginação livre e o entendimento indeterminado que define
o senso comum estético é o fundamento de um prazer superior e da sua
comunicabilidade e validade universais. Porém, mais profundamente, Deleuze
argumenta que o senso comum estético, enquanto pura harmonia subjetiva, não é um

174
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 69 e 70 (66 e 67).
175
Gilles Deleuze,"L'idée de genèse dans l'esthétique de Kant", pág. 134.
176
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 71 (68).
complemento, mas antes um fundamento do senso comum especulativo e do senso
comum moral. Desse modo, exatamente por força de sua posição de fundamento, o
senso comum estético não deve ser apenas presumido, mas objeto de uma gênese
transcendental. Essa questão não encontra, contudo, sua solução na analítica do belo.
Entre a analítica do belo e a determinação do seu princípio genético, Kant interpõe a
analítica do sublime, que revela e exibe, como exemplo, uma gênese transcendental do
acordo entre imaginação e razão.
Deleuze ressalta que o senso comum do sublime não é apenas presumido, que
ele é engendrado no desacordo inicial entre a imaginação e a razão. No sublime, não
cabe à imaginação uma reflexão formal. Ela é levada ao seu limite pela exigência da
razão que a força a reunir em um todo a imensidão do mundo sensível: “esse todo é a
Idéia do Sensível, na medida em que o sensível tem por substrato alguma coisa de
inteligível ou de supra-sensível. A imaginação aprende, pois, que é a razão que a
impulsiona até o limite de seu poder, forçando-a a declarar que toda sua potência não é
nada frente a uma Idéia”. 177
Desse desacordo, dessa contradição, dessa dor, nasce um acordo discordante e
emerge um prazer superior quando a imaginação ultrapassa o seu limite e representa a
inacessibilidade da idéia, fazendo-a presente na natureza sensível. “Tal é o acordo
discordante da imaginação e da razão: não somente a razão tem um 'destino supra-
sensível', mas também a imaginação. Nesse acordo, a alma é sentida como unidade
supra-sensível independente de todas as faculdades; nós mesmos somos relacionados a
um foco, como um 'ponto de concentração' no supra-sensível.” 178
A gênese do senso comum do belo coloca um problema de dedução, pois o
acordo subjetivo que o define realiza-se em relação com formas objetivas que se
apresentam. Nesse sentido, diz Deleuze, sua gênese põe um problema mais difícil,
porque pede um princípio cujo alcance seja objetivo.
Além disso, como conciliar a exigência de um princípio genético com o fato de o
belo não ser objeto de um interesse racional? Deleuze argumenta: se para Kant o prazer
ligado ao belo é essencialmente desinteressado, se o belo não está analiticamente

177
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 74 (70).
178
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 74 (70).
relacionado a um interesse racional, ele pode, contudo, estar vinculado sinteticamente a
um interesse da razão que lhe forneça o princípio da gênese da comunicabilidade e da
universalidade do prazer que proporciona.
Existe um interesse racional sinteticamente ligado ao belo que refere-se à
aptidão da natureza para produzir belas formas. Esse interesse não pode incidir sobre as
formas enquanto tais, mas apenas sobre a matéria empregada pela natureza para
produzir objetos capazes de se refletirem formalmente. Deleuze revela a necessidade da
questão: de que espécie é esse interesse, uma vez que não pode incidir, como os outros
interesses da razão, sobre objetos?
Em primeiro lugar, ele não tem o belo por objeto: incide, apenas, sobre a aptidão
que tem a natureza de produzir belas formas. Em segundo lugar, como se viu, não se
referindo à forma enquanto tal, mas à matéria empregada pela natureza para produzir
objetos capazes de se refletirem formalmente, diz respeito à produção do belo na
natureza. Em terceiro lugar e de modo mais fundamental, diz Deleuze:

“quando consideramos a aptidão material da natureza para produzir


belas formas, não podemos concluir daí a submissão necessária dessa
natureza a uma de nossas faculdades, mas somente seu acordo
contingente com todas as nossas faculdades em seu conjunto.(...) A
aptidão da natureza apresenta-se pois como um poder sem finalidade,
apropriado por acaso ao exercício harmonioso de nossas faculdades. O
prazer desse exercício é ele próprio desinteressado; conclui-se que
experimentamos um interesse racional pelo acordo contingente das
produções da natureza com nosso prazer desinteressado." 179

Nesse acordo contingente, as matérias livres da natureza “ultrapassam o


entendimento, 'levam a pensar' muito mais do que aquilo que está contido no conceito.”
As matérias livres da natureza não estão apenas relacionadas com seus conceitos, mas
também com idéias da razão — semelhantes aos conceitos apenas do ponto de vista da
reflexão — que apresentam seus objetos em analogia com os objetos da intuição. “Eis
que as idéias são objeto de uma apresentação indireta nas matérias livres da natureza.
Essa apresentação indireta chama-se simbolismo e tem por regra o interesse do belo.” 180

179
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 78 (73).
180
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 79 (74).
Deleuze sublinha que o simbolismo — que se produz quando as matérias livres
da natureza apresentam as idéias da razão — permite ao entendimento ampliar-se e à
imaginação liberar-se: “o acordo da imaginação como livre e do entendimento como
indeterminado já não é simplesmente presumido: é de alguma forma animado,
vivificado, engendrado pelo interesse pelo belo.” 181 Mais significativo ainda, porém, é
revelar a unidade supra-sensível de todas as faculdades, tornando-se o acordo que dela
deriva fundamento dos acordos ditos determinados entre as faculdades — do acordo
especulativo e do acordo prático ou moral. Além disso, Deleuze enfatiza que esse
acordo livre das faculdades deve conceder à razão uma posição tal que a prepare para
desempenhar sua função determinante no seu interesse prático de tal modo que “a
unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades não constituem somente o mais
profundo da alma, mas preparam o advento do mais elevado, isto é, a supremacia da
faculdade de desejar, e tornam possível a passagem da faculdade de conhecer a essa
faculdade de desejar.” 182
O belo na arte não tem a mesma gênese que o belo na natureza. Deleuze mostra,
contudo, como, para Kant, também a arte é ajuizável segundo uma matéria e uma regra
fornecidas pela natureza, que atua, nesse caso, como uma disposição inata — o gênio
— no sujeito. O gênio é definido como a faculdade das idéias estéticas. Deleuze inicia
seu esclarecimento do sentido do conceito de idéia estética comparando-o com o de
idéia racional: “este é um conceito ao qual nenhuma intuição é adequada; aquela, uma
intuição à qual nenhum conceito é adequado”. Prossegue precisando o significado de
uma idéia da razão: “esta ultrapassa a experiência, seja porque não tem objeto que lhe
corresponda na natureza (por exemplo, seres invisíveis); seja porque faz de um simples
fenômeno da natureza um acontecimento do espírito (a morte, o amor). A idéia da razão
contém, pois, algo de inexprimível.” Conclui mostrando que a idéia estética ao
ultrapassar de outro modo o conceito — ela cria a intuição de uma natureza diferente da
que nos é dada — é “a mesma coisa que a idéia racional: ela exprime o que há nesta de
inexprimível. (...) Por isso mesmo, ela está bastante próxima do simbolismo (o gênio
também procede por ampliação do entendimento e liberação da imaginação). Mas, em
vez de apresentar indiretamente a idéia na natureza. ela a exprime secundariamente, na

181
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 79 (74).
182
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 80 (75).
criação imaginativa de uma outra natureza.” 183
Esse esclarecimento da gênese do senso comum estético além de revelar a alma
como unidade supra-sensível das faculdades, e nela as relações entre os seus planos (a
unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades como o mais profundo e a
supremacia da faculdade de desejar como o mais elevado da alma) discerne três
modalidades das idéias da razão se apresentarem na natureza sensível. “No sublime, a
apresentação é direta mas negativa, e se faz por projeção; no simbolismo natural ou no
interesse do belo, a apresentação é positiva, mas indireta, e se faz por reflexão; no gênio
ou no simbolismo artístico, a apresentação é positiva, mas secundária e se faz por
criação de uma outra natureza.” 184 O estudo do juízo teleológico revelará uma quarta
modalidade — indireta e analógica — de apresentação das idéias da razão.
A investigação da natureza do juízo teleológico é precedida por uma análise do
significado do conceito de juízo. Deleuze retoma a definição kantiana do juízo como
uma operação complexa que consiste em subsumir o particular ao geral, bem como a
distinção que Kant estabelece entre dois tipos de juízos: os juízos determinantes e os
juízos reflexivos. Mas o que interessa a Deleuze é estabelecer duas especificações. A
primeira sublinha que um juízo envolve sempre uma relação entre as faculdades e
exprime um acordo entre elas. Quando o juízo exprime um acordo determinado entre as
faculdades, ele é dito determinante; quando ele exprime um acordo livre indeterminado,
é dito reflexivo. A segunda especificação assinala que esses dois tipos de juízos não
podem ser compreendidos como duas espécies de um mesmo gênero:

“o juízo reflexivo manifesta e libera um fundo que permanecia oculto


no outro. Mas o outro só era juízo por conta desse fundo vivo.(...) É
que todo acordo determinado das faculdades, sob uma faculdade
determinante e legisladora, supõe a existência e a possibilidade de
uma acordo livre indeterminado. É nesse acordo livre que o juízo não
somente é original (o que já havia no caso do juízo determinante),
como manifesta o princípio de sua originalidade. Segundo esse
princípio, nossas faculdades diferem em natureza, mas não deixam de
experimentar um acordo livre e espontâneo que torna possível seu
exercício sob a presidência de uma dentre elas, segundo uma lei dos

183
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 82 (76).
interesses da razão”. 185

Os juízos reflexivos distinguem-se em juízos estéticos e juízos teleológicos. Toca


a Deleuze enunciar as diferenças e as relações existentes entre esses dois tipos de juízos
reflexivos. Como os juízos estéticos já foram analisados, a simples apresentação da
natureza do juízo teleológico permitirá uma contraposição que distinguirá sua
especificidade e a originalidade dos seus efeitos.
Deleuze introduz a caracterização do juízo teleológico a partir do conceito de
unidade final das coisas. A suposição dessa unidade é função das idéias reguladoras da
razão, que fornecem aos conceitos do entendimento um máximo de unidade sistemática
quando a razão se submete ao entendimento no seu interesse especulativo. Tais idéias
possuem um valor objetivo ainda que indeterminado;

“pois não podem conferir uma unidade sistemática aos conceitos sem
conceder uma unidade semelhante aos fenômenos considerados em
sua matéria ou em sua particularidade. Essa unidade, admitida como
inerente aos fenômenos, é a unidade final das coisas (máximo de
unidade na maior variedade possível, sem que se possa dizer até onde
vai essa unidade). Esta unidade final só pode ser concebida segundo
um conceito de fim natural; com efeito, a unidade do diverso exige a
relação da diversidade com um fim determinado, segundo os objetos
que são relacionados a essa unidade. Nesse conceito de fim natural, a
unidade é sempre apenas presumida ou suposta como conciliável com
a diversidade das leis empíricas particulares.” 186

O conceito de unidade final das coisas remete ao conceito de fim natural, ou seja,
a um entendimento capaz de lhe servir de princípio no qual a representação do todo
seria a causa do próprio todo enquanto efeito. Deleuze sublinha a novidade kantiana:
“seria um erro pensar que tal entendimento existe na realidade, ou que os fenômenos
sejam efetivamente produzidos dessa maneira: o entendimento-arquétipo exprime o
caráter próprio do nosso entendimento, isto é, nossa própria impotência de determinar o
particular, nossa impotência para conceber a unidade final dos fenômenos segundo um

184
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 83 (77).
185
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 87 (79 e 80).
186
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 88 e 89 (81).
outro princípio que não o da causalidade intencional de uma causa suprema.” 187
Deleuze mostra como a finalidade da natureza está ligada a um duplo movimento:
de um lado, o conceito de fim natural deriva das idéias da razão ao exprimir a unidade
final dos fenômenos; de outro lado, a partir do conceito de fim natural, determina-se um
objeto da idéia racional. A determinação indireta e analógica da idéia

“só é possível na medida em que os próprios objetos da experiência


apresentam essa unidade final natural, em relação à qual o objeto da
Idéia deve servir de princípio ou substrato. Também é o conceito de
unidade final ou de fim natural que nos obriga a determinar Deus
como causa suprema intencional agindo ao modo de um
entendimento. (...) Não impomos fins à natureza 'violenta e
ditatorialmente'; ao contrário, refletimos sobre a unidade final natural,
empiricamente conhecida na diversidade, para nos elevarmos até a
Idéia de uma causa suprema determinada por analogia.” 188

Em contraposição ao juízo estético, que exprime uma finalidade subjetiva, formal


excluindo todo fim e ao qual “a natureza fornece somente a ocasião exterior de
apreender a finalidade interna da relação de nossas faculdades subjetivas”, o juízo
teleológico apresenta uma finalidade objetiva, material, implicando fins.

“A reflexão muda, pois, de sentido: não mais reflexão formal do


objeto sem conceito, mas conceito de reflexão pelo qual se reflete
sobre a matéria do objeto. (...) A diferença entre os dois juízos
consiste no seguinte: o juízo teleológico não remete a princípios
particulares (...). e implica sem dúvida o acordo da razão, da
imaginação e do entendimento, sem que este legisle; mas esse ponto,
onde o entendimento abandona suas pretensões legisladoras, é parte
integrante do interesse especulativo e permanece compreendido no
domínio da faculdade de conhecer.” 189

Deleuze retorna ao tema da preparação, considerando que não só o juízo


teleológico é preparado pelo juízo estético — a reflexão sem conceito nos prepara para

187
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 90 (81 e 82).
188
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 91 (82 e 83).
189
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, págs. 93 e 94 (84 e 85).
formar um conceito de reflexão —; como também, caso se tome em consideração os
interesses da razão que correspondem ao juízo estético e ao juízo teleológico, é “preciso
pensar que o juízo reflexivo em geral torna possível a passagem da faculdade de
conhecer à faculdade de desejar, do interesse especulativo ao interesse prático, e prepara
a subordinação do primeiro ao segundo, ao mesmo tempo que a finalidade torna
possível a passagem da natureza à liberdade ou prepara a realização da liberdade na
natureza.” 190
De todo modo, a Crítica da faculdade do juízo estabelece uma teoria da finalidade
— que corresponde ao ponto de vista transcendental e se concilia com a idéia de
legislação — na qual “a finalidade não possui mais um princípio teológico, mas é antes
a teologia que tem um fundamento 'final' humano. Donde a importância das duas teses
da Crítica da faculdade do juízo: o acordo final das faculdades é objeto de uma gênese
particular; a relação final da Natureza e do homem é o resultado de uma atividade
prática propriamente humana.” 191
Deleuze observa que, no caso do juízo teleológico, o conceito de fim natural exige
regras que determinem as condições sob as quais julga-se uma coisa segundo esse
conceito. A aplicação do conceito de fim natural remete a uma finalidade externa,
quando remete a dois objetos, sendo um pensado como causa e o outro como efeito, de
tal maneira que se introduza a idéia do efeito na causalidade da causa, ou a uma
finalidade interna quando o conceito se refere a uma coisa cujas partes se produzem
reciprocamente. A finalidade externa é relativa e hipotética e deve ser subordinada à
finalidade interna. No entanto, por outro lado, Deleuze observa que a finalidade interna
remete, por sua vez, a uma finalidade externa, levantando a questão de um fim ultimo:
“a partir dos seres organizados, somos remetidos às relações exteriores entre esses seres,
relações que deveriam cobrir o conjunto do universo. Mas, precisamente, a Natureza só
poderia formar um tal sistema (em lugar de um simples agregado) em função de um fim
último”. Contudo, como sublinha mais adiante Deleuze, “só pode ser considerado um
'fim último' um ser tal que o fim de sua existência esteja nele mesmo; a idéia de um fim
último implica portanto a de um objetivo final, que excede todas as nossas
possibilidades de observação na natureza sensível, como todos os recursos de nossa

190
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 95 e 96 (86).
191
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 99 (90).
reflexão.” 192
Deleuze precisa a distinção entre um fim natural e um objetivo final: o primeiro é
um fundamento de possibilidade, o segundo uma razão de existência. E acrescenta:“só o
homem enquanto ser racional pode encontrar em si mesmo o fim de sua existência.” 193
Mas não o homem enquanto procura a felicidade, nem do homem na medida em que
conhece. O objetivo final é um conceito da razão prática:

“à questão 'o que é um objetivo final?' devemos responder: o homem,


mas o homem como noumeno e existência supra-sensível, o homem
como ser moral. (...) esse fim supremo é a organização dos seres
racionais sob a lei moral, ou a liberdade como razão de existência
contida em si no ser racional. Surge aqui a unidade absoluta da
finalidade prática e de uma legislação incondicionada.” 194

Existem, então, elementos que permitem distinguir dois movimentos que


constituem duas passagens da teleologia à teologia. Um primeiro movimento parte de
uma teleologia natural (conceito de reflexão) em direção a uma teologia física (Deus
como autor inteligente), permanece condicionado empiricamente e nada diz sobre o
objetivo final da criação; o segundo “parte a priori de uma teleologia prática (conceito
praticamente determinante do objetivo final) para uma teologia moral (determinação
prática suficiente da idéia de um Deus moral como objeto de crença).” 195 Deleuze
conclui mostrando como, no sistema kantiano, o interesse especulativo da razão supõe e
compõe-se com uma teleologia natural que nos prepara uma teologia, mas é o interesse
prático da razão que, efetivamente, fornece uma teologia capaz de determinar o homem
como objetivo final da criação divina.
Deleuze conclui seu livro sobre Kant discutindo a questão kantiana: como o
objetivo final é também fim último da natureza? Isto é: como o homem, que só é
objetivo final em sua existência supra-sensível e como noumeno, pode ser fim último da
natureza sensível? Retoma, assim, sob um novo ângulo, o problema da realização do

57
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág.101 (92).
193
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág.102 (92).
194
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant pág. 103 (93).
195
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant pág. 104 (94).
supra-sensível no mundo sensível, inicialmente enquadrado na problemática do senso
comum prático. A questão agora não é apenas a da realização, no mundo sensível, do
fim imposto pela lei do conceito de liberdade, mas a do paradoxo criado pela identidade
do fim último com o objetivo final: como o fim último da natureza sensível é um fim
que ela não basta para realizar? Deleuze argumenta que, para Kant, a efetuação da
liberdade e do soberano bem (“união do maior bem-estar das criaturas racionais no
mundo com a mais elevada condição do Bem moral em si” 196 ) implica a história —
atividade sintética original do homem — que deve instaurar o objetivo final, isto é, “a
formação de uma constituição civil perfeita: esta é o objeto mais elevado da Cultura, o
fim da história ou o Soberano bem propriamente terrestre.” 197
Deleuze mostra que se ultrapassa esse paradoxo quando se observa que a natureza
sensível possui por substrato o supra-sensível, pois é nesse

“substrato que se conciliam o mecanismo e a finalidade da natureza


sensível, um referente ao que é necessário nela como objeto dos
sentidos, o outro, ao que é contingente nela como objeto da razão. É
portanto um ardil da natureza supra-sensível que a natureza sensível
não seja suficiente para realizar o que é, no entanto, 'seu' fim último;
pois esse fim é o próprio supra-sensível, na medida em que este deve
ser efetuado (isto é, ter um efeito no sensível). (...) Assim, o que há de
contingente no acordo da natureza sensível com as faculdades do
homem é uma suprema aparência transcendental, que esconde um
ardil do supra-sensível.” 198

Mas isto não deve nos levar a imaginar que a história seja uma atualização do supra-
sensível determinada pela razão. Ao contrário, a história, tal como aparece na natureza
sensível, é constituída por puras relações de forças:

“é pelo mecanismo das forças e pelo conflito das tendências (cf. 'a
insociável sociabilidade') que a natureza sensível, no próprio homem,
preside o estabelecimento de uma Sociedade, único meio no qual o
fim último pode ser historicamente realizado. (...) Há, portanto, um
segundo ardil da razão, que não devemos confundir com o primeiro

196
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (95).
197
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (95).
(ambos constituem a história). De acordo com esse segundo ardil, a
Natureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível
procedesse segundo suas próprias leis para ser capaz de receber
finalmente o efeito supra-sensível.” 199

Essa apresentação da leitura deleuziana do sistema kantiano permite as seguintes


observações: 1. Deleuze considera a doutrina das faculdades — enquanto teoria dos
sensos comuns — como o centro do sistema kantiano; 2. Deleuze sublinha que, em
Kant, o problema da harmonia entre sujeito e objeto interioriza-se no sujeito e que a
teoria das faculdades deve apresentar as condições transcendentais da determinação dos
interesses superiores da cultura; 3. Deleuze toma a Crítica da faculdade do juízo como
essencial para a compreensão da teoria das faculdades, pois nela Kant encontra o
fundamento subjetivo dos sensos comuns especulativo e prático; 4. Deleuze enfatiza que
a interiorização do acordo entre sujeito e objeto manifesta-se, sobretudo, no que ele
definiu como o milagre do esquematismo transcendental — dada a diferença de
natureza das faculdades, como a imaginação e o entendimento podem conhecer um
acordo e como esse acordo misterioso pode mediar efetivamente as relações do
entendimento ativo com a sensibilidade receptiva?; 5. Deleuze afirma que a Crítica da
faculdade do juízo, além de ter a importância já mencionada, introduz, com o juízo
teleológico, um finalismo transcendental que visa justificar o acordo do entendimento
com a sensibilidade. Segundo sua análise, porém, esse finalismo assinala os limites da
explicação especulativa, indicando um além supra-sensível: são as idéias da razão que
se exprimem simbolicamente não apenas na teleologia, mas também na arte, no sublime
e no interesse racional pelo acordo contingente da matéria da natureza com nossas
faculdades; 6. Deleuze considera, então, que as idéias da razão — especulativamente
indeterminadas — surgem, portanto, na Crítica da faculdade de julgar como
determináveis, por analogia, com os fenômenos que elas se aplicam por reflexão; 7.

198
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 106 (96).
199
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 107 (96 e 97).
Deleuze mostra como o juízo teleológico busca revelar a existência de uma regularidade
na matéria empírica contingente com relação à regularidade formal assegurada pelas
categorias do entendimento: esse acordo contingente dessas duas ordens de regularidade
permite que Kant postule, através da intervenção das idéias da razão, uma legalidade na
natureza superior à legalidade do entendimento: exprimindo a idéia de uma causa
intencional, de um autor inteligente da natureza e de um fim supremo da Criação; 8.
Deleuze mostra como a contingência em Kant funciona como uma suprema aparência
transcendental, como uma astúcia do supra-sensível que permite a sua realização no
sensível pela ação livre e histórica do homem.; 9. Deleuze revela que a história, em
Kant, como história da espécie humana, adquire assim um fim: a organização de uma
constituição civil perfeita; 10. Deleuze conclui, então, que a finalidade transcendental,
além de conferir à natureza um máximo de unidade na maior diferença possível, garante
também que as idéias da razão assegurem a submissão da diversidade sensível a uma
unidade moral que deverá ser efetivamente realizada, historicamente, como expressão
do soberano bem.

CAPÍTULO IV
Gênese e experiência

Dado que a razão herda e exprime os


direitos daquilo que submete o
pensamento, o pensamento reconquista
seus direitos e se faz legislador contra a
razão: o lance de dados, esse era o sentido
do lance de dados. (G. Deleuze)

Cabe ressaltar, para a compreensão da relação da crítica deleuziana com a crítica


kantiana, a caracterização, na exposição do sistema kantiano, da razão como faculdade
dos fins e a equação dos fins superiores da razão com o sistema da cultura: Kant não só
afirma que há fins da cultura e que estes são os fins da razão, como também defende que
a razão, ao definir seus fins, toma a si própria como fim. É importante destacar ainda o
duplo papel da história no estabelecimento do sistema da cultura: a formação de uma
constituição civil perfeita (o objeto mais elevado da cultura, o fim da história ou o
soberano bem propriamente terrestre); no entanto, a história, tal como aparece na
natureza sensível, é constituída por puras relações de forças: é pelo mecanismo das
forças e pelo conflito das tendências (cf. 'a insociável sociabilidade') que a natureza
sensível, no próprio homem, preside o estabelecimento de uma sociedade, único meio
no qual o fim último pode ser historicamente realizado. Como foi dito, Kant supõe que a
Natureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível procedesse segundo
suas próprias leis para ser capaz de receber finalmente o efeito supra-sensível. Deste
modo, Deleuze esclarece que a crítica em Kant visa conectar os interesses da Razão
com o sentido da sociedade — meio de atualização do soberano bem — e com o sentido
da história — processo de atualização do soberano bem, vale dizer, o estabelecimento
de uma constituição civil perfeita.
A leitura de Nietzsche et la philosophie revela, como se observará
detalhadamente mais adiante, como Deleuze sublinha a existência, na filosofia de
Nietzsche, de uma linha que conecta a crítica genealógica com a crítica kantiana. Não é
sem importância perceber, desde logo, que para além da retomada da intenção de uma
crítica imanente e do ideal de uma filosofia legisladora, há, com Nietzsche, segundo
Deleuze, uma ruptura radical com a concepção kantiana da crítica. Esta não é mais
concebida como uma crítica empreendida pela razão, mas como uma crítica da razão
pelo pensamento:

“quando o conhecimento se faz legislador, é o pensamento que é o


grande submetido. O conhecimento é o próprio pensamento, mas o
conhecimento submetido à razão como a tudo o que se exprime na
razão. O instinto do conhecimento é, então, o pensamento, mas o
pensamento na sua relação com as forças reativas que dele se
apropriam e o conquistam. Pois são os mesmos limites que o
conhecimento racional fixa à vida, mas também que a vida racional
fixa ao pensamento; é ao mesmo tempo que a vida é submetida ao
conhecimento, mas também que o pensamento é submetido à vida.
(…) Mas então a crítica, concebida como crítica do conhecimento, não
exprime outras forças capazes de dar outro sentido ao pensamento?
Um pensamento que iria até o limite do que pode a vida, um
pensamento que levaria a vida até o limite do que ela pode. Ao invés
de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que
afirmaria a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, nas o
pensamento, a potência afirmativa da vida.” 200

Esta reversão se prolonga e afeta, também, as relações da filosofia com a cultura e com
a história: não cabe mais à crítica a tarefa de fundar os valores racionais, de determinar
os fins superiores da cultura, nem o objetivo final da história. A subtração da razão do
sistema da crítica afetará, portanto, a concepção do campo transcendental: os princípios
transcendentais hão de ceder lugar ao conceito de vontade de potência enquanto
princípio plástico e genealógico; a teleologia racional desaparece, o fim último do
homem e o objetivo final da história desfiguram-se em favor da heterogeneidade
imanente ao devir. Assim, a filosofia, abandonando sua pretensão de fundamentação dos
costumes, tornar-se afirmativa e o pensamento assume um novo sentido, o de inventar
novas possibilidade de vida.
Com a subtração da razão do sistema da crítica, como pensar o problema da
cultura e a natureza da histórica?

Cultura e história

Como foi analisado no capítulo “O combate e o procedimento” é sobretudo o


esclarecimento do problema dos tipos de adestramento e de seleção, como funções
essenciais da cultura, que permite o entendimento do sentido da distinção de três pontos
de vista sobre a cultura e que põe sob nova ótica o problema da criação e da seleção
ontológica: a seleção não mais como seleção transcendente de pretendentes, mas como
seleção imanente de potências.
A cultura é definida pelas atividades de adestramento e de seleção, inseparáveis
de um sistema de crueldade: trata-se, seja de que ponto de vista for, da formação, da
constituição de um indivíduo, de um processo de individuação que se faz por inscrições
sobre o corpo. Como foi analisado, Deleuze distingue, no adestramento, dois elementos:

200
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (83).
aquilo a que se obedece — “sempre histórico, arbitrário e estúpido” — e que representa
as forças reativas; e o fato de obedecer-se à lei: “toda lei histórica é arbitrária, o que é
genérico e pré-histórico é a lei de obedecer a leis.” 201 Pois bem, o ponto de vista
histórico sobre a cultura define-se pela confusão da lei com seu conteúdo, da forma da
lei com seu conteúdo reativo. O correlato desta confusão — confusão que se apóia
numa ficção, numa aparência de atividade e de justiça — não é o homem livre, mas o
homem domesticado:

“utilizam-se os procedimentos de adestramento, mas para fazer do


homem o animal gregário, a criatura dócil e domesticada. Faz-se uso
dos procedimentos de seleção, mas para quebrar os fortes, para ficar
com os fracos, os sofredores ou os escravos. A seleção e a hierarquia
são postas de cabeça para baixo. A seleção torna-se o contrário
daquilo que era do ponto de vista da atividade; ela é apenas um meio
de conservar, de organizar e de propagar a vida reativa.” 202

Deleuze sublinha o papel da metafísica na elaboração do sentido histórico da


cultura. O destaque desta função da filosofia clássica é reafirmado, anos depois no seu
livro Dialogues, na seguinte observação:

“o que diz Foucault é verdade: que toda formação de poder tem


necessidade de um saber, do qual, no entanto, não depende, mas que
sem ele não teria eficácia. Ora, esse saber utilizável pode ter duas
figuras: ou uma forma oficiosa, tal como se instala nos poros, para
fechar determinados buracos na ordem estabelecida; ou então uma
forma oficial, quando constitui por si mesmo uma ordem simbólica
que dá aos poderes estabelecidos uma axiomática generalizada. (...)
Não há Estado que não tenha necessidade de uma imagem do
pensamento que lhe servirá de axiomática ou de máquina abstrata, e à

201
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág.153 (111).
202
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 9115).
qual ele dá, em compensação, a força para funcionar (...) Foi papel
deplorável da filosofia clássica, como vimos, o de fornecer, a
aparelhos de poder, Igreja ou Estado, o saber que lhes convinha. Será
que se pode dizer hoje que as ciências do homem assumiram esse
mesmo papel: fornecer por seus próprios meios uma máquina abstrata
aos aparelhos de poder modernos, admitindo a possibilidade de
receber deles a promoção desejada?” 203

Essas considerações evidenciam, embora as análises de cada filósofo


determinem níveis diversos desse problema, que, para Deleuze, assim como para
Nietzsche, o trabalho da filosofia clássica contribui para o desenvolvimento das ficções
que definem o sentido histórico da cultura. Compreende-se, então, que a crítica
deleuziana da filosofia clássica seja um pensamento concreto e perigoso: como foi
sugerido no primeiro capítulo deste trabalho, a filosofia de Deleuze é inseparável do
desejo de desarticulação das ficções 204 — forças reativas que sustentam o sentido
histórico da cultura — que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear para
o interior da filosofia de modo a articulá-las em uma imagem do pensamento que se
quer confundir com a própria natureza do pensamento. Sendo assim, é sem sentido
distinguir uma crítica interna à filosofia e uma crítica externa da cultura: tanto para
Nietzsche como para Deleuze, o pensamento passa de uma crítica a outra sem solução
de continuidade. A crítica de uma afeta necessariamente a imagem da outra.
Retoma-se, aqui, a hipótese de pensar a doutrina do julgamento como doutrina
que elabora as ficções essenciais para a constituição do ponto de vista histórico sobre a
cultura. Em contrapartida, sendo essa correlação verdadeira, pode-se suspeitar que o
pensamento de Deleuze queira dar consistência filosófica à articulação dos pontos de
vistas pré e pós-históricos sobre a cultura — um projeto que é inseparável da

203
Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 104. É conveniente, ainda, salientar que o
prosseguimento dessa passagem permite esclarecer que a crítica da filosofia da representação se prolonga
no questionamento da psicanálise e das ciências humanas: a despeito das especificidades e das diferenças
entre esses saberes, eles são associados ao exercício de uma mesma função, aquela efetuada pela filosofia
clássica.
204
“A idéia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com todas as suas formas (Deus, a essência,
o bem, o verdadeiro), a idéia de valores superiores à vida não são exemplos entre outros, mas o elemento
constitutivo de toda ficção.” Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
desarticulação das ficções que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear
e articular numa imagem do pensamento que se quer confundir com a própria natureza
do pensamento.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
também compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para que
o pensamento se constitua como pura afirmação.
No entanto, o entendimento do sentido de um pensamento afirmativo exige o
retorno e o aprofundamento da interpretação que Deleuze faz do problema da cultura
em Nietzsche. Isto porque, este problema — o da distinção dos três sentidos da cultura
— se completa, é redefinido e, de certo modo, se transmuta quando integrado no
contexto mais abrangente que o articula com a doutrina do eterno retorno e, por esse
viés, com a crítica à dialética e ao niilismo.
Deleuze observa uma ambivalência nas apreciações de Nietzsche a respeito da
possibilidade de a cultura, como atividade genérica, eliminar o devir reativo das forças
e, efetivamente, possibilitar um devir ativo. Segundo Deleuze, essa ambivalência se
resolve com a investigação da seguinte questão: em que medida o homem é
essencialmente reativo? Ora, a compreensão desse problema deve, para Deleuze, levar
em consideração que, para Nietzsche, mais importante que as forças ou as qualidades
das forças, atuam os devires das forças e das qualidades da vontade de potência. Será,
portanto, do ponto do devir das forças que as questões da natureza da atividade genérica
da cultura e da essência do homem serão avaliadas.
Deleuze esclarece:

“Há efetivamente uma atividade humana, há efetivamente forças


ativas do homem; mas essas forças particulares são apenas o alimento
de um devir universal das forças, de um devir reativo de todas as
forças, que definem o homem e o mundo humano. É assim que se
conciliam em Nietzsche os dois aspectos do homem superior: seu
caráter reativo e seu caráter ativo. À primeira vista, a atividade do
homem aparece como genérica; forças reativas se enxertam sobre ela,
desnaturam-na e a desviam de seu sentido. Porém, num plano mais
profundo, o verdadeiro genérico é o devir reativo de todas as forças, e
a atividade é apenas o termo particular suposto por esse devir.” 205

Assim compreendidas, as críticas nietzschianas da cultura e do humanismo relacionam-


se constituindo uma crítica radical; que não incide sobre os meios da atividade cultural,
denunciados como inoperantes ou insuficientes, mas questiona os próprios fins da
cultura, em virtude de sua natureza mesma, e ataca, não um acidente, mas a própria
essência do homem. Deleuze insiste neste ponto sublinhando a diferença de natureza
que distingue o super-homem do homem superior. “O homem tem por essência o devir
reativo das forças. Mais ainda, ele dá ao mundo uma essência, esse devir como devir
universal. A essência do homem, e do mundo ocupado pelo homem, é o devir reativo de
todas as forças, o niilismo e nada mais que o niilismo. O homem e sua atividade
genérica, eis as duas doenças de pele da terra.” 206
O que autoriza essa interpretação? Por que as forças ativas da cultura são
definidas como o alimento de um devir universal das forças? Ou ainda: por que a
essência do homem é o niilismo? Deleuze é claro: o que falta à cultura e à sua atividade
genérica é a potência de afirmar. Assim, esclarece:

“O homem superior permanece no elemento abstrato da atividade; ele


jamais se eleva, mesmo em pensamento, até ao elemento da
afirmação. O homem superior pretende inverter os valores, converter a
reação em ação. Zaratustra fala de outra coisa: transmutar os valores,
converter a negação em afirmação. Ora, jamais a reação se tornará
ação sem essa conversão mais profunda: é necessário primeiro que a
negação se torne potência de afirmar. Separada das condições que a

205
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 193 (140).
tornariam viável, a empresa do homem superior fracassa não
acidentalmente, mas por princípio e na essência. Em vez de formar um
devir ativo, ela alimenta o devir inverso, o devir reativo. Em vez de
reverter os valores, troca-se de valores, permuta-os, mas mantendo o
ponto de vista niilista do qual eles derivam; em lugar de adestrar as
forças e torná-las ativas, organizam-se associações de forças reativas.
Inversamente, as condições que tornariam viável a empresa do homem
superior são aquelas que mudariam a sua natureza: a afirmação
dionisíaca, não a atividade genérica do homem. O elemento da
afirmação, eis o que falta ao próprio homem e sobretudo ao homem
superior.” 207

Em que esse retorno à interpretação deleuziana do problema da cultura, em


Nietzsche pode contribuir para a compreensão do pensamento como pura afirmação?
Ao esclarecer o vínculo essencial entre a negação como qualidade da vontade de
potência e o devir reativo das forças, Deleuze revela que só a subtração da negação
como princípio de avaliação torna possível a crítica da cultura e do homem como seu
produto. Só a subtração da negação como perspectiva que constitui o homem e o seu
mundo torna pensáveis o super-homem e a transvaloração dos valores. Mas a subtração
da negação só é eficaz se ela permite uma mudança na qualidade da vontade de
potência, se ela se articula com a constituição da afirmação como nova qualidade da
vontade de potência. Apenas essa mutação profunda assegura a tripla afirmação:
afirmação da vida, e, na própria vida, o sofrimento; afirmação do acaso e da necessidade
do acaso; afirmação do devir e do o ser do devir.

O eterno retorno e sua seleção

Mas como pode a negação ser subtraída? E em que sentido as afirmações da


vida, do acaso e do devir dizem respeito a um pensamento da pura afirmação? O
desenvolvimento dessas questões conduz o pensamento à investigação da doutrina do

206
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 194 (141).
eterno retorno como pensamento crítico e seletivo.
No que diz respeito à crítica da metafísica, Deleuze mostra que Nietzsche parte
da constatação do domínio das forças reativas na filosofia e nas ciências. Por toda a
parte, segundo Nietzsche, encontra-se o predomínio das exigências do ressentimento:

“o que parece, de todo modo, pertencer à ciência e também à filosofia


é o gosto por substituir as relações reais de forças por uma relação
abstrata que se supõe exprimir todas elas, como uma ‘medida’. A este
respeito, o espírito objetivo de Hegel não vale mais do que a utilidade,
não menos ‘objetiva’. Ora nessa relação abstrata, qualquer que seja,
sempre se é levado a substituir as atividades reais (criar, falar, amar,
etc...) pelo ponto de vista de um terceiro sobre essas atividades;
confunde-se a essência da atividade com o lucro de um terceiro e
pretende-se que este deva tirar proveito desse lucro ou que tenha
direito de recolher seus efeitos (Deus, o espírito objetivo, a
humanidade, a cultura ou até mesmo o proletariado). 208

A constatação da vitória das forças reativas não se esgota em si mesma; ao


contrário, estimula a investigação da perspectiva que lhe favorece. Neste sentido, esta
constatação compromete as demais críticas à metafísica. Deleuze interpreta a crítica
nietzschiana como uma crítica à crítica kantiana e à dialética hegeliana, compreendida
como oriunda do espírito da crítica kantiana: “a crítica em Kant não soube descobrir a
instância realmente ativa, capaz de conduzi-la. Esgota-se em compromissos: nunca nos
faz superar as forças reativas que se exprimem no homem, na consciência de si, na
moral e na religião. Tem ainda um resultado inverso: faz dessas forças algo ainda um
pouco mais ‘nosso’.” 209

Como já se disse a respeito do problema da instância que interpreta e liga os

207
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 195 e 196 (142).
208
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 84 (61)
209
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 101 (73).
fragmentos sem totalizá-los ou unificá-los, Deleuze, no seu estudo sobre Nietzsche,
define a metafísica pela questão “O que é?”. E adverte contra a obviedade desta
questão: “é preciso voltar a Platão para ver até que ponto a pergunta ‘O que é?’ supõe
um modo particular de pensar.” 210 É essa questão que distingue o que é segundo a
essência do que é segundo a aparência, e que determina, enquanto oposição de valores,
a distinção do ser e do devir. Deleuze mostra como Nietzsche situa o combate à
metafísica no plano das questões e dos problemas. Se a questão “O que é?” busca
determinar a essência, essa pretensão restará sob suspeita pelo efeito da proposição de
uma nova questão: “Quem?”.

Qual é, pois, o novo modo de pensar que se exprime na questão “Quem?” e a


que visa essa questão? Deleuze responde:

“O sofista Hípias não era uma criança que se contentava em responder


“o quê?” quando se lhe perguntava “quê?’. Ele pensava que a questão
‘Quem?’ era melhor como questão, a mais apta a determinar a
essência. Ela não remetia, como acreditava Sócrates, a exemplos
isolados e sim à continuidade dos objetos concretos tomados em seu
devir.(…) Perguntar quem é belo, quem é justo, e não o que é o belo,
o que é o justo, era então o fruto de um método elaborado, implicando
uma concepção da essência original e toda uma arte sofística que se
opunha à dialética. Uma arte empirista e pluralista.” 211

O abandono da questão “O que é?” em proveito da questão “Quem?” não envolve, pois,
um esquecimento da questão da essência, mas a criação de uma outra teoria da essência.
De acordo com a interpretação de Deleuze, “a questão: ‘Quem?’, segundo
Nietzsche, significa isto: uma coisa sendo considerada, quais são as forças que dela se
apropriam, qual é a vontade que a possui? (…) Pois a essência é apenas o sentido e o
valor da coisa; a essência é determinada pelas forças em afinidade com a coisa e pela

210
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 86 (62).
211
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (62 e 63).
vontade em afinidade com essas forças.” 212 A essência, assim definida, diz respeito a
uma perspectiva, supõe uma pluralidade. Cabe ainda sublinhar que, se a questão
“Quem?” redefine desse modo o conceito de essência, é porque ela é uma questão que
exige como resposta um novo tipo de proposição. Ao contrário da questão “O que é?”, a
questão “Quem?” não promove proposições especulativas — que questionam uma idéia
do ponto de vista de sua forma e que fazem da sua coerência critério para sua existência
—, mas proposições dramáticas que operam uma síntese da idéia com o tempo, com o
devir e, um afastamento da perspectiva história sobre a cultura.
Deleuze expõe e exemplifica essa distinção a propósito da análise da proposição
“Deus morreu”.

“A fórmula ‘Deus morreu’ (…) é a proposição dramática por


excelência. Não se pode fazer de Deus o objeto de um conhecimento
sintético sem nele colocar a morte. A existência ou não existência
deixam de ser determinações absolutas que decorrem da idéia de
Deus, mas a vida e a morte se tornam determinações relativas que
correspondem às forças que entram em síntese com a idéia de Deus ou
na idéia de Deus. A proposição dramática é sintética, portanto
essencialmente pluralista, tipológica e diferencial.” 213

Em congruência com a questão que orientou a primeira parte desse capítulo —


“Quem interpreta?” — cabem, agora, essas outras questões, que orientam a investigação
do problema de um pensamento sem imagem: “Quem avalia?”, “Quem diferencia?”,
“Quem repete?” Quem afirma?”, em suma “Quem critica?” A resposta dada por
Nietzsche e Deleuze é clara: Dioniso — o um que afirma o múltiplo — , a vontade de
potência — princípio fluente, elemento genético da força —, é esse “quem” plural. 214
Sendo assim, não se pode avançar na compreensão da crítica nietzschiana sem o

212
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (63).
213
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 175 (127).
214
O problema da crítica articula-se, por intermédio da questão “Quem?”, com os problemas analisados
supra: o novo tipo de unidade exigida por um pensamento do Dehors e pela nova concepção do sistema
em filosofia, sistema pensado como aberto e em heterogênese. A conexão desses problemas será
retomada no seu devido tempo.
entendimento do conceito de vontade de potência e do significado de Dioniso.
Na interpretação desses conceitos está em jogo a própria visão de Deleuze, e não
apenas sua apreciação da filosofia de Nietzsche. Como se mencionou, a propósito do
estatuto do devir em Deleuze e em Nietzsche, numa referência à Blanchot:

“o devir não é a fluência de uma duração infinita (bergsoniana) ou a


mobilidade de um movimento interminável. O despedaçamento — a
quebra — de Dioniso, eis o primeiro saber, a experiência obscura na
qual o devir se descobre em relação com o descontínuo e como seu
jogo. E a fragmentação do deus não é a renúncia ousada à unidade ou
a unidade que permanece una mesmo pluralizando-se. A fragmentação
é o deus mesmo, aquilo que não tem nenhuma relação com um centro,
que não suporta nenhuma referência originária e que, por
consequência, o pensamento, pensamento do mesmo e do um, aquele
da teologia, como de todos os modos do saber humano (ou dialético),
não poderia acolher sem falsear.” 215

Dioniso é, desse modo, definido como a incarnação e a afirmação do fragmento, neste


sentido, expressa o ser do devir. E a vontade de potência, qual é sua relação com
Dioniso?
Eis que essas questões circunscrevem o coração da interpretação deleuziana da
doutrina do eterno retorno. Deleuze distingue dois aspectos do problema do eterno
retorno: o eterno retorno como doutrina cosmológica e física e o eterno retorno como
pensamento ético e seletivo.
A doutrina cosmológica e física do eterno retorno constitui, inicialmente, uma
afirmação do devir. Este pensamento exige que o devir não tenha começo nem fim:
“que o instante atual não seja um instante de ser ou de presente ‘no sentido estrito’, que
ele seja um instante que passa, nos força a pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente
como o que não pode começar e como aquilo que não pode parar de devir.” 216 Em

215
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
216
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (39).
seguida, essa doutrina, que não mais opõe o ser e o devir, deve, justamente, ultrapassar
essa oposição de valores definindo o ser do devir. E ela o faz afirmando que retornar é o
ser do devir. Mas como pensar a necessidade de tal afirmação? Deleuze mostra,
primeiramente, que o eterno retorno deve ser pensado como uma resposta ao problema
da passagem do tempo:

“se o presente não passasse por ele mesmo, se fosse preciso esperar
um novo presente para que este se tornasse passado, nunca o passado
em geral se constituiria no tempo, nem esse presente passaria; não
podemos esperar, é preciso que o instante seja ao mesmo tempo
presente e passado, presente e futuro para que ele passe (e passe em
proveito de outros instantes). É preciso que o presente coexista
consigo mesmo como passado e como futuro. É a relação sintética do
instante consigo mesmo como presente, passado e futuro que funda
sua relação com outros instantes.” 217

Após estabelecer essa correlação do eterno retorno com o problema da passagem do


tempo, Deleuze demonstra que, em função desse seu aspecto sintético, o eterno retorno
não pode ser compreendido como eterno retorno do mesmo: o um que retorna se diz do
devir, da diferença. E, assim, a diferença retorna como síntese: “síntese do tempo e de
suas dimensões, síntese do diverso e de sua reprodução, síntese do devir e do ser
afirmado do devir, síntese da dupla afirmação.” 218 Finalmente, Deleuze conclui que,
desse modo, o eterno retorno exige um outro princípio que não o da identidade. Esse
novo princípio, apresentado como a razão suficiente do diverso e de sua reprodução, da
diferença e de sua repetição, segundo a análise de Deleuze, é definido por Nietzsche
com o conceito de vontade de potência.
O conceito de vontade de potência diz respeito ao conceito de força, mostrando-
se, simultaneamente, um complemento da força e algo interno à força:

217
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (40).
218
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 55 (41).
“com efeito, se fazemos a pergunta ‘Quem?’, não podemos dizer que a
força seja aquele que quer. Só a vontade de potência é quem quer, ela
não se deixa delegar nem alienar num outro sujeito, mesmo que esse
seja a força (…) A vontade de potência é o elemento do qual
decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças
postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força.
A vontade de potência revela aqui sua natureza: ela é princípio para a
síntese das forças. É nesta síntese temporal que as forças se
diferenciam e que o diverso se reproduz. A síntese é das forças, de sua
diferença e de sua reprodução; o eterno retorno é a síntese da qual a
vontade de potência é o princípio.” 219

Deleuze encontra aqui, no conceito de vontade de potência, a possibilidade de


pensar um princípio diferencial e genético. O que significa isto? Em primeiro lugar,
deve-se compreender os adjetivos diferencial e genético como referidos a um cálculo
dialético que se exprime e se desenvolve, exemplar e problematicamente, na
matemática, no campo do cálculo diferencial. A idéia de um cálculo propriamente
dialético é amplamente desenvolvida em Différence et répétition, sobretudo no capítulo
a “Synthèse idéelle de la différence”. Tal idéia permite, como se verá, correlacionar o
procedimento deleuziano da subtração: constituição... com o conceito nietzschiano de
vontade de potência. É que o cálculo diferencial envolve as operações das derivadas e
das integrais. A primeira, a derivada, é a operação pela qual o pensamento constrói a
idéia, o domínio no qual as relações são diferençadas; a segunda, a integral, responde
pelo processo de atualização da idéia, processo pelo qual as relações se diferenciam. O
primeiro movimento, o da derivação, define-se pela extração de constantes. Por
exemplo, é por derivação, pela subtração da constante “raio”, que se produz a equação
do círculo, a idéia do círculo, o universal do círculo precisamente determinado por
relações diferenciais. O segundo movimento dá conta, a partir da idéia ou do universal
do círculo, da atualização-constituição dos círculos singulares, aqueles que possuem um
raio determinado. Não se trata agora de apresentar a teoria da idéia, tal como ela é
elaborada em Différence et répétition, mas apenas de indicar o significado que ganham,
na filosofia de Deleuze, os termos diferencial e genético, que qualificam a vontade de
potência como princípio.
Como compreender a vontade de potência como princípio? Como o conceito de
vontade de potência afeta e redefine o conceito de princípio?
Em primeiro lugar, observa-se que a ênfase na novidade do conceito
nietzschiano de vontade de potência faz Deleuze ressaltar que ele se constitui por uma
série de subtrações que desfiguram a antiga metafísica da vontade: o conceito de
vontade de potência subtrai da idéia de potência seu destino de ser de objeto de uma
representação; e da idéia de vontade sua dependência dos valores dominantes. E, assim,
subtrai, também, da idéia de vontade a necessidade de um conflito entre as vontades, a
concepção da guerra como meio da atribuir à vontade os valores estabelecidos. Em
decorrência dessas subtrações, surge um novo conceito de vontade: a vontade como
potência criadora. Contudo, por outro lado, não se deve esquecer que é esse novo
conceito de vontade, a vontade de potência, que assegura a necessidade das subtrações
desfigurantes: este é um conceito que traz a marca de sua criação e que permite
conceber o pensamento como criação. Deleuze sublinha que o conceito de vontade de
potência, assim constituído, é diferenciador nos seus efeitos: ele é o ato de derivar que
torna impensável um equilíbrio entre as forças em relação. Se, tal como foi dito, na
teoria do cálculo diferencial derivar é subtrair constantes e se a vontade de potência, em
um dos seus aspectos, é vontade de derivar, se seu exercício é diferenciador,
compreende-se que a vontade de potência como princípio não possa ser geral, isto é, ser
mais amplo do que aquilo de que é princípio. Assim, se a vontade de potência não é um
princípio geral é porque ela é um princípio plástico, “que se metamorfoseia com o
condicionado, que em cada caso se determina com o que determina. A vontade de
potência nunca é separável de tais ou quais forças determinadas, de suas quantidades, de
suas qualidades, de suas direções; nunca é superior às determinações que ela opera
numa relação de forças, sempre plástica e em metamorfose.” 220
Se assim é a vontade de potência, como compreendê-la, senão como o conceito
de uma perspectiva imanente, que se constitui na relação das forças de que assegura o

219
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 56 (41).
220
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 57 (41).
desequilíbrio? Mas o que seria um princípio, uma perspectiva que se constitui como
efeito do encontro das forças? Um tal princípio não seria antes uma conseqüência?
Contudo, não há nisto nenhum contra-senso, pois a vontade de potência não é um
princípio que negue o acaso; é, ao contrário, o que o acaso comporta como princípio. A
vontade de potência é um princípio porque, como afirmação do acaso, determina uma
dupla gênese: a gênese recíproca das diferenças de quantidades das forças (dominantes e
dominadas) e a gênese absoluta das qualidades das forças em questão (ativas e a
reativas). É, portanto, uma perspectiva plástica, fluente, inseparável das forças concretas
e imanente às suas diferenças. Mesmo assim, não se pode confundir o querer com as
forças, nem a elas reduzi-lo, sob pena de que, com o desaparecimento de sua diferença,
perca-se a inteligibilidade (o sentido e o valor) das forças em relação. Por outro, porém,
lado, se tal princípio é plástico, é também porque a vontade de potência é qualificada na
experiência na relação das forças que ela determina, seja como afirmativa seja como
negativa.
Como compreender a possibilidade da metamorfose da vontade de potência? É
certo que existe uma dinâmica das forças que torna possível um devir das forças. Mas
como o dinamismo das forças articula-se com a vontade de potência, como pode o
dinamismo das forças afetar o seu princípio? Deleuze explica:

“a relação das forças é determinada em cada caso na medida em que


uma força é afetada por outras, inferiores ou superiores. Daí a vontade
de potência manifestar-se como um poder de ser afetado. Esse poder
não é uma possibilidade abstrata; é preenchido e efetuado a cada
instante pelas outras forças com as quais está em relação. Não nos
espantaremos com o duplo aspecto da vontade de potência: ela
determina a relação das forças entre si, do ponto de vista da gênese e
da produção das forças, mas é determinada pelas forças em relação, do
ponto de vista de sua própria manifestação.” 221

221
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 70 (50 e 51).
Entretanto, resta ainda um outro aspecto da questão: como a vontade de potência pode
tornar-se negativa? Ainda uma vez esta possibilidade depende da dinâmica das forças.
No caso, depende de que esta dinâmica afete as qualidades das forças e constitua um
devir reativo das forças ativas. Deleuze explica essa possibilidade com a seguinte
interpretação:

“a ação e reação não estão numa relação de sucessão, mas de


coexistência na própria origem. (…) A força reativa, mesmo quando
obedece, limita a força ativa, impõe-lhe limitações e restrições
parciais, já está possuída pelo espírito do negativo. Por isso a própria
origem comporta uma imagem invertida de si mesma: visto do lado
das forças reativas, o elemento diferencial genealógico aparece ao
contrário, a diferença tornou-se negação, a afirmação tornou-se
contradição.” 222

E Deleuze acrescenta que, se com a ajuda de circunstâncias internas ou externas, as


forças reativas neutralizam as forças ativas, haverá o triunfo efetivo das forças reativas.
Com esse triunfo, não se trata mais de uma imagem invertida, mas de uma efetiva
inversão dos valores.
É a efetiva vitória das forças reativas, o desenvolvimento do niilismo, que, como
se viu, define, segundo a interpretação deleuziana de Nietzsche, o sentido histórico da
cultura. E é a partir desta avaliação, como crítica ao niilismo, que a definição do
segundo aspecto do eterno retorno — como pensamento ético e seletivo — assume, na
interpretação de Deleuze, sua importância fundamental. Pois o que está em questão
nesta interpretação é a possibilidade de um pensamento afirmativo e seletivo que
assegure a atividade da força e a afirmação da vontade.
Deleuze distingue, portanto, no pensamento do eterno retorno, dois sentidos da
seleção: por um lado, o pensamento do eterno retorno formula uma regra prática para a
vontade (“o que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras o seu eterno
retorno”) que elimina do querer tudo o que cai fora do eterno retorno e que faz da
vontade uma criação; por outro lado, o pensamento do eterno retorno reverte o niilismo,
porque faz da negação a negação das forças reativas. Deleuze esclarece: “não se
confundirá o voltar-se contra si mesmo com esta destruição de si, esta autodestruição.
No voltar-se contra si, processo da reação, a força ativa torna-se reativa. Na
autodestruição as próprias forças reativas são negadas e conduzidas ao nada. Por isso
diz-se que a autodestruição é uma operação ativa, uma ‘destruição ativa'.” 223 Há, então,
segundo a interpretação de Deleuze, uma dupla seleção no eterno o retorno: a primeira
elimina da vontade o que não suporta a prova do pensamento do eterno retorno; a
segunda faz entrar no ser, pelo pensamento do eterno retorno, o que nele não pode
entrar sem mudar de natureza. “Não se trata mais de um pensamento seletivo, mas sim
do ser seletivo, pois o eterno retorno é o ser e o ser é seleção (seleção = hierarquia).” 224
Como compreender essa afirmação de um ser seletivo, essa equação ser =
seleção? A conexão dos dois sentidos do eterno retorno esclarece, em parte, o problema
da seleção. Pois, como doutrina física e cosmológica, o eterno retorno afirma o devir.
Contudo, como ressalta a interpretação de Deleuze, o devir é duplo: há um devir reativo
das forças ativas — quando separadas do que podem pelas ficções reativas — e há um
devir ativo das forças reativas. É exatamente este o problema do eterno retorno, como
pensamento ético e seletivo: o da possibilidade do devir ativo das forças reativas. Ora, a
seleção, nos seus dois aspectos, deve ser compreendida como uma operação de
subtração: constituição.... Em ambos os casos, trata–se de subtrair ficções, as ficções
que separam as forças ativas do que elas podem. A primeira seleção elimina da vontade,
pelo pensamento do eterno retorno, os semi-quereres que a separam de toda sua
potência. O que se constitui com isso? A identidade da vontade com a criação. A
segunda seleção elimina, pelo pensamento do eterno retorno, a perspectiva que instaura
as ficções, o corpo sem órgãos das ficções, isto é, a negação. O que é que com isso se
constitui? A afirmação, a identidade do ser com o devir ativo. “O eterno retorno como
doutrina física afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, afirma o ser do
devir como ‘afirmando-se’ do devir-ativo. (…) A fórmula completa da afirmação é: o
todo, sim, o ser universal, sim, mas o ser universal se diz de um só devir, o todo se diz
de um só momento.” 225 Do primeiro sentido ao segundo sentido do eterno retorno,
passa-se, portanto, da afirmação do devir à seleção do devir ativo; passa-se do ser do

222
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 63 (45 e 46).
223
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 79 (57).
224
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 80 (58).
225
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 81 e 82 (59).
devir ao ser do devir ativo.

O problema ontológico na interpretação do eterno retorno

Permanece ainda uma dificuldade: como pensar a diferença estabelecida entre as


duas seleções, entre um pensamento seletivo e um ser seletivo? O fundamental, nesta
questão, é não substancializar o ser, não pensá-lo como um fato, isto é, como ordem
dada ou mesmo como princípio de ordenação de um todo dado como independente do
pensamento. O ser seletivo resulta de uma doutrina ética que afirma e dá valor de ser
apenas ao devir ativo. Ora, uma ontologia seletiva é ainda um pensamento, o ser
seletivo é um conceito, um pensamento do ser afirmado como devir ativo. Assim, as
duas seleções são operações do pensamento: na primeira, o pensamento retira de si os
pensamentos reativos; na segunda, o pensamento subtrai de si a perspectiva reativa,
elimina a negação como perspectiva de avaliação. O pensamento, tornado pura
afirmação, transmuta a negação em negação das forças reativas. Ou seja, o pensamento
que conquista sua imanência torna-se pura afirmação (afirmação da afirmação). Ele, o
pensamento, torna-se produtor: constitui-se como afirmador do ser, do ser seletivo que
só se diz do devir ativo.
É fundamental aqui compreender que a equação “ser = seleção” faz-se
acompanhar dessa outra equação: “seleção = hierarquia”. Sabendo-se que o conceito de
hierarquia refere-se ao conceito de valor e que este diz respeito não às realidades
objetivas, mas às diferenças de qualidade da vontade, deve-se dizer que é a segunda
equação que encerra o segredo da primeira, isto é, que o ser é perspectiva e que o que
ele, enquanto ato de selecionar, seleciona é o que se afirma como perspectiva e não o
que se pretende realidade. Mas, por outro lado, é fundamental lembrar que as
perspectivas atualizam-se em modos de vida, e, assim, o que o pensamento do eterno
retorno seleciona, ao selecionar o devir ativo, são maneiras de viver. Entretanto, não se
dever confundir modos de vida, valores, com realidades: as primeiras são da ordem da
atividade do pensamento, as segundas são do domínio da objetividade. 226 É esta

226
A epistemologia francesa caracteriza-se pelo esforço de eliminar todo realismo da concepção do
conhecimento científico. A objetividade científica não é uma objetividade dada, mas uma objetividade
distinção que impede a identificação ou a redução do pensamento do eterno retorno a
uma moral, uma vez que o que retorna não são os valores estabelecidos concebidos
como realidades em si, mas o pensamento enquanto afirmação avaliadora e criadora.
É, portanto a subtração da perspectiva moralista e realista, que se nega enquanto
perspectiva, que dá sentido à equação “ser = seleção”. Pois essa fórmula não significa
apenas que a vida não pode ser avaliada por um valor transcendente e que as maneiras
de viver possuem o valor de suas perspectivas; significa, sobretudo, a afirmação do ser
do pensamento como perspectiva. Desse modo, a seleção do eterno retorno não só se
distingue da moral; é ela que revela que a moral tem um começo e que, na sua origem,
ela é uma perspectiva que se nega e que, ao negar-se enquanto tal, não apenas assume a
negação como princípio como reivindica ser a expressão de um universal abstrato.
A interpretação do devir como fragmento, a identidade de Dioniso com a
fragmentação, assume todo seu valor quando se trata desse problema da seleção. Afinal
o que seria uma seleção que incidisse sobre devir compreendido como uma
continuidade temporal? Somente compreendendo o devir como multiplicidade de
fragmentos e os fragmentos como sistemas de signos e estes como interpretações é que
se pode submeter o devir à prova da doutrina ética do eterno retorno. Isto porque só
pensamentos podem ser avaliados por um pensamento, como no caso da prova ética do
eterno retorno. E, finalmente, o que se seleciona, senão a afirmação da afirmação? E não
envolve esta a afirmação do pluralismo? E não depende a seleção, ela própria, da
consideração de que o devir reativo é contraditório com o ser do devir? Tal contradição
não se explica como a contradição de um pensamento que se nega como perspectiva,
que se compreende pela negação da diferença e do pluralismo? Não será esta a
contradição das forças reativas com o revir: a sua pretensa dissociação de qualquer
perspectiva, o seu compromisso com a conservação dos valores existentes? Assim, não
são as forças reativas e o devir reativo das forças ativas a própria negação da repetição
do devir?
Se o devir ativo se diz das forças ativas e se estas são pensamentos afirmativos,
retorna a questão: o que é um tal pensamento, ou o que é pensar quando o pensamento
perde a referência do todo e a da sua própria unidade? Mais ainda: o que se torna o
pensamento quando ele passa pela prova do seu eterno retorno? Deleuze responde: um

construída, é uma objetivação teórica.


pensamento sem imagem.
Mas poderá a crítica conquistar tal imanência? Como já se viu, Deleuze encontra
em Nietzsche, no conceito de vontade de potência, o princípio de uma tal crítica
imanente, a condição de um pensamento sem imagem. 227 O duplo aspecto da seleção no
pensamento do eterno retorno revela um movimento que vai da seleção dos
pensamentos ativos à seleção da vontade de potência afirmativa. Neste sentido, deve-se
sublinhar a dupla função do conceito de vontade de potência: por um lado, como
princípio da diferença e de sua repetição, a vontade de potência é apresentada, por
Deleuze, como princípio do qual depende o eterno retorno como doutrina cosmológica e
física; por outro lado, o eterno retorno, como pensamento ético e seletivo, ao selecionar
a vontade de potência afirmativa como ser do devir a institui como princípio de uma
crítica imanente ao pensamento. Assim, à questão crítica “Quem?” corresponde, como
princípio crítico, o conceito de vontade de potência e, como movimento crítico, o eterno
retorno como pensamento ético e seletivo. Que operações as afirmações de tal princípio
e de tal movimento tornam possíveis no domínio do pensamento?
Antes de desenvolver essa discussão, é necessário voltar, após essa investigação
da interpretação deleuziana da doutrina do eterno retorno, à questão: o que uma pura
afirmação envolve? Se uma afirmação pura é produção e criação, é preciso, contudo,
salientar que, desse novo ponto de vista, se ela exclui a negação como potência
autônoma ou como qualidade primeira, nem por isso separa-se de uma agressividade
que resulta da redefinição da negação — agora subordinada ao elemento da afirmação
— e de sua função crítica.
A afirmação pura é a transvaloração que a doutrina do eterno retorno conquista.
Ela é a nova qualidade da vontade de potência, efeito da subtração da negação como
princípio de avaliação dos valores. Assim, a transvaloração significa que os valores não
derivam mais do negativo, que estes, não sendo postos como superiores à vida, não mais
a depreciam. No entanto, como já foi dito, se a negação deixa de ser princípio de
avaliação, ela, contudo, não sucumbe no vazio e desaparece do pensamento. Ao
contrário, Deleuze enfatiza, na sua análise da transvaloração nietzschiana, a interligação

227
Não seria talvez mais rigoroso falar, considerando-se a posição defendida por Deleuze em Qu’est-ce
que la philosophie?, não da condição de um pensamento sem imagens, antes de um pensamento, não sem
pressupostos, mas cujos pressupostos fossem afirmados enquanto tais?
dos seguintes movimentos que se associam ao advento da afirmação como princípio de
avaliação: 1. Uma mudança da imagem do pensamento: “a razão sob a qual a vontade
de potência é conhecida não é a razão sob a qual ela é.” 228 Deleuze sublinha aqui a
seguinte correlação: o pensamento submetido à razão ou à vontade de conhecimento
apreende, necessariamente, a vontade de potência negativa, e, por outro lado, só a
vontade de potência negativa sustenta uma vontade de conhecer. É então a subtração,
pelo pensamento, do ideal de conhecimento que pode facultar a emergência de um
pensamento afirmativo e uma mudança na qualidade da vontade de potência; 2. A
negação, desde então, subordina-se à afirmação e muda de sentido, tornando-se potência
de afirmar: “A negação não é mais a forma sob a qual a vida conserva tudo o que é
reativo nela, mas, ao contrário, a ato pelo qual ela sacrifica todas as sua formas
reativas.” 229 ; 3. Deleuze sublinha ainda um outro aspecto da subordinação da negação à
afirmação: só a afirmação subsiste enquanto potência independente, só a afirmação
produz o que o negativo anuncia.; 4. Desse modo, a negação, como conseqüência da
potência de afirmar, é o aspecto crítico que subtrai, no pensamento da existência, todos
os valores conhecidos; 5. Determinando um novo sentido à negação, a afirmação
produz, então, um devir ativo universal.
No entanto, como foi anunciado, esse devir ativo não se separa de uma condição
e de uma conseqüência negativa. Pode-se dizer que esse novo jogo da afirmação e da
negação se expressa nos dois movimentos do procedimento de “subtração:
constituição...”. O movimento da subtração das transcendências que abre caminho para
a afirmação do novo corresponde à primeira forma da negação: a negação que precede a
afirmação. Contudo, como foi sugerido na análise do procedimento de subtração:
constituição..., essas subtrações só adquirem necessidade como conseqüência de uma
potência afirmativa. Esse outro movimento, o da autentificarão das subtrações,
corresponde ao segundo aspecto ou à segunda manifestação da negação. Entretanto,
mais profundamente, esse jogo da afirmação e da negação fica sem sentido se ele não é
apreendido como decorrência da subtração primeira: a subtração, conseqüência da
afirmação da afirmação, do negativo como potência autônoma de interpretação. Pois a
autonomia da negação ou a negação como princípio é, na interpretação de Deleuze da

228
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
229
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
crítica nietzschiana, o foro genealógico de todas as ficções que depreciam a vida.
Deleuze retoma sua crítica ao negativo analisando o significado, na simbologia
nietzschiana, do sim do Asno. Com esta análise, ele quer destacar a existência, no
pensamento de Nietzsche, de uma diferenciação de dois tipos de afirmação: a primeira
não sabe, efetivamente, nem afirmar nem negar, porque afirma tudo o que a perspectiva
negativa põe como real e verdadeiro; a segunda modalidade de afirmação eleva-se à
potência criadora incorporando a negação, mas redefinida e subordinada à potência da
afirmação pura. Isto significa, para Deleuze, que a afirmação não se opõe à negação,
mas difere desta, libertando a negação da perspectiva negativa, redefinido-a como
negação do negativo na vontade de potência. A primeira afirmação aprova e suporta
todos os valores superiores; a segunda seleciona a diferença e elimina tudo o que pode
ser negado ao afirmar a própria afirmação. A primeira é expressão do niilismo: suporta
e afirma o “ser”, o “verdadeiro” e o “real”; a segunda propõe uma nova ontologia: “O
que é a afirmação em toda sua potência? Nietzsche não suprime o conceito de ser.
Propõe do ser uma nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação,
nem um elemento que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do
ser, ao contrário. A própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua
potência.” 230
Mas o que significa isto, a afirmação como ser? A afirmação da afirmação ou a
afirmação como ser é, por um lado, o exercício do pensamento que decorre da subtração
ao pensamento, dos seus pressupostos realistas, do Todo e do Um. A negação desses
pressupostos traz consigo a subtração de toda uma série de ficções, a começar pela
negação das concepções realistas do ser, do verdadeiro e do real. Por outro lado, a
análise da interpretação deleuziana do eterno retorno esclareceu que a afirmação
primeira, nela mesma, é devir e que a afirmação segunda, afirmação do devir, eleva o
devir à potência do ser. Como diz Deleuze: “É a afirmação primeira (o devir) que é ser,
mas ela só o é como objeto de uma segunda afirmação. As duas afirmações constituem a
potência de afirmar em seu conjunto.” 231 Contudo, é fundamental ainda mostrar que a
lógica do procedimento da subtração: constituição..., que afirma o devir, se articula com

230
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213 (155).
231
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 214 (155).
a lógica da dupla afirmação, que afirma o ser do devir.

O estatuto da afirmação ontológica

Como já foi visto, o movimento da subtração significa a eliminação das


transcendências pressupostas pelo pensamento quando este é constituído por uma
vontade de potência negativa. Como já foi observado, e como será retomado e sua
análise aprofundada mais adiante, o movimento da subtração: constituição..., que
envolve a subtração tanto da unidade do real (o Todo) quanto da unidade do pensamento
(o Um), articula-se a um outro movimento, que afirma o mundo dos fragmentos ou o
devir. Mas por que há a necessidade de uma dupla afirmação para que a potência de
afirmar se institua?
O essencial, neste caso, para uma filosofia, como a de Deleuze, que almeja dar
consistência à idéia de que o pensamento seja criador, é assegurar que a afirmação
primeira não seja uma constatação, no caso a constatação do devir como um dado.
Portanto, pode-se sugerir a hipótese de que a função da afirmação segunda ou
reduplicada seja a de revelar que a afirmação primeira não decorre da intuição de um
dado, ou seja, de uma realidade suposta como independente de um ato da vontade e do
pensamento, isto é, de uma realidade concebida como independente de qualquer
interpretação. A afirmação segunda, enquanto afirmação da afirmação, impede, desse
modo, a ilusão de supor que a afirmação seja compreendida como o reconhecimento de
uma realidade dada, mesmo que esta realidade seja, por contra-senso, o devir. Quanto a
isto, a interpretação de Deleuze é clara: “na crítica da afirmação como assunção (…)
Nietzsche critica toda concepção da afirmação que faria desta uma simples função,
função do ser ou do que é. De qualquer modo que seja concebido esse ser: como
verdadeiro ou como real, como númeno ou como fenômeno. E de qualquer modo como
que seja concebida essa função: como desenvolvimento, exposição, desvelamento,
revelação, realização, tomada de consciência ou conhecimento.” 232 A afirmação
segunda tem, pois, o sentido de eliminar todos os pressupostos: recusa a existência tanto
de um foro originário quanto de um estado de coisas atual, ou mesmo de uma orientação

232
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 209 e 210 (152 e 153).
teleológica que coordene, de fora e do alto, a atividade do pensamento.
Com esta interpretação do sentido da afirmação, Deleuze se afasta de toda
posição realista na filosofia e propõe uma nova ontologia, um construtivismo que faz da
diferença a essência do afirmativo e que diz que, no pensamento e na vida, só possui
valor de ser a afirmação que se afirma enquanto tal. Do ponto de vista dessa nova
ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é vontade de
potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem realidade do
mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real.” 233
Mas qual é o jogo da diferença nesta afirmação e o que afirma uma tal
afirmação? Deleuze esclarece:

“A afirmação é posta uma primeira vez como o múltiplo, o devir e o


acaso. Pois o múltiplo é a diferença entre o um e o outro, o devir é a
diferença consigo mesmo, o acaso é a diferença ‘entre todos’ ou
distributiva. Em seguida a afirmação se desdobra, a diferença é
refletida na afirmação da afirmação: momento da reflexão no qual
uma segunda afirmação toma por objeto a primeira. Mas assim a
afirmação se duplica: como objeto da segunda afirmação, ela é a
afirmação ela própria afirmada, a afirmação reduplicada, a diferença
elevada à sua mais elevada potência. O devir é o ser, o múltiplo é o
um, o acaso é a necessidade. (…) Assim, é próprio da afirmação
retornar, da diferença reproduzir-se. Retornar é o ser do devir, o um do
múltiplo, a necessidade do acaso: o ser da diferença enquanto tal, ou o
eterno retorno. Se considerarmos a afirmação no seu conjunto, nós não
devemos confundir, exceto por comodidade de expressão, a existência
de duas potência de afirmar com a existência de duas afirmações
distintas. O devir e o ser são uma mesma afirmação, que apenas passa
de uma potência à outra sempre que ela é objeto de uma segunda
afirmação.” 234

233
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211 e 212 (154).
234
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (157 e 158).
Mas, se esta reduplicação da afirmação é preparada pela diferenciação da
negação que a afirmação promove e exige, podendo-se compreendê-la como a
necessária potencialização da afirmação que distingue a afirmação de uma simples
recognição, resta ainda saber: o que mobiliza a diferença na afirmação? Ou, para falar
em uma linguagem nietzschiana: que vontade deseja a potencialização da afirmação?
Deleuze completa: “É a vontade de potência como elemento diferencial que produz e
desenvolve a diferença na afirmação, que reflete a diferença na afirmação da afirmação,
que a faz retornar na afirmação ela mesma afirmada.” 235 Se, como foi dito, a vontade de
potência é, na interpretação deleuziana de Nietzsche, o princípio de uma crítica
verdadeiramente imanente, então deve-se concluir que esta crítica incide primeiramente
sobre a vontade de potência negativa, afetando a própria qualidade da vontade de
potência, ela promovendo uma transformação na vontade de potência: a supressão da
negação enquanto princípio autônomo de interpretação e de avaliação permite a negação
da vontade de potência negativa e, assim, sua metamorfose em vontade de potência
afirmativa. E, em outra dimensão do mesmo movimento crítico, a dupla afirmação que
constitui a vontade de potência afirmativa introduz a diferença na afirmação e faz da
vontade de potência o princípio plástico de uma crítica imanente, ao mesmo tempo
seletiva e criadora.
A questão do estatuto da negação quando integrada no movimento da afirmação
pura e o problema da identidade da afirmação com a diferença retornam em Différence
et répétition integrados a uma problemática ontológica que Deleuze circunscreve,
precisando e aprofundando sua interpretação do eterno retorno, com a sua tese que
afirma a univocidade do ser. Quanto ao estatuto da negação, Deleuze, ao criticar a
filosofia da representação, diz que a filosofia da diferença recusa a alternativa geral da
representação infinita: “ou o indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então
uma diferença já determinada como negação, implicando e envolvendo o negativo
(assim a filosofia da diferença recusa, também, a alternativa particular: negativo de
limitação ou negativo de oposição). Em sua essência, a diferença é objeto de afirmação,
ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é, ela própria, diferença.” 236 Mas
em que sentido a afirmação já é diferença? E ainda: como uma afirmação diferencial

235
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (158).
236
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 74 (101).
comporta uma potência destrutiva irredutível ao negativo?
Estas questões se articulam de modo necessário. É preciso, aqui, retornar, mais
uma vez, à hipótese de que a filosofia da diferença se constrói procedendo por
subtração: constituição.... Todavia, é fundamental sublinhar que esse procedimento,
imanente à construção desta filosofia, também dá conta do modo de construção do
sentido dos conceitos dessa filosofia. Assim pode-se dizer que os conceito de afirmação
diferencial e o de vontade de potência são conceitos que não decorrem só de retificações
operadas no campo filosófico. Como já foi mencionado, o conceito de vontade de
potência tem como correlatas as subtrações de uma série de componentes conceituais
que acompanham os conceitos metafísicos de vontade. O mesmo pode ser dito da
afirmação diferencial: este conceito supõe e implica a subtração de uma série de
componentes que acompanham o conceito de afirmação quando este é subordinado ao
ideal do conhecimento, quando este é integrado a uma ontologia que supõe a
preexistência do ser e quando este se orienta pela idéia de verdade. É justamente por
esses conceitos — vontade de potência e afirmação diferencial — não se separarem
dessas gêneses subtrativas que eles podem funcionar como princípios críticos que dão
validade e necessidade aos movimentos criadores envolvidos no procedimento de
subtração: constituição....
Uma afirmação pura, diferencial, é um ato que suprime pressupostos e, ao
mesmo tempo, constrói a idéia mesma de perspectiva. Desse modo, o componente
diferencial é que possibilita ao conceito de afirmação implicar uma agressividade e uma
destruição não derivadas da negatividade, não acionadas pelo negativo. A plena
compreensão dessa possibilidade depende da teoria de uma dialética diferencial, objeto
do capítulo “Síntese ideal da diferença” do livro Différence et répétition. Em todo o
caso, ainda a título de introdução, deve-se lembrar, ainda uma vez, que diferencial diz
respeito a um cálculo que procede por subtrações de constantes, cálculo que permite
construir idéias diferenciais e pensar universais que não se opõem ao singular e à
diferença, pois que só se atualizam, concretamente, como diferenças singulares. No que
se refere à questão presente, contudo, é preciso dizer que diferencial diz respeito ao
processo de subtração das ficções que submetem o pensamento ao negativo e que
produzem uma imagem do pensamento cujos pressupostos configuram tanto uma
unidade subjetiva para o pensamento quanto uma ordem objetiva para o mundo. É,
portanto, do ponto de vista de uma afirmação diferencial que Deleuze pode distinguir

“duas maneiras de invocar ‘destruições necessárias’: a do poeta que


fala em nome de uma potência criadora, apto a reverter todas as
ordens e todas as representações, para afirmar a Diferença no estado
de revolução permanente do eterno retorno; e a do político, que se
preocupa, antes de tudo, em negar o que ‘difere’ para conservar,
prolongar, uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer
uma ordem histórica que já solicita no mundo as forma de sua
representação.” 237

Esta distinção repercute na distinção de dois tipos de seleção: uma derivada de


um começo na negação, dirigida por um não inicial, e outra derivada de uma afirmação,
orientada por um sim inicial. O primeiro tipo de seleção começa por um não e só é
capaz de produzir um fantasma de afirmação. O segundo tipo se constitui a partir de
uma afirmação primeira, sendo sua agressividade o resultado desta afirmação e sua
negação um epifenômeno do sim. Deleuze reafirma esse pensamento ao retomar, em
Différence et répétition, a sua interpretação do eterno retorno:

“Cabe ao eterno retorno operar a verdadeira seleção, porque ele


elimina as formas médias e extrai ‘a forma superior de tudo o que é’.
O extremo não é a identidade dos contrários, mas, antes, a
univocidade do diferente: a forma superior não é a forma infinita, mas,
antes, o eterno informal do eterno retorno através das metamorfoses e
das transformações. O eterno retorno ‘estabelece’ a diferença, porque
cria a forma superior. O eterno retorno serve-se da negação como
nachfolge e inventa uma nova fórmula da negação da negação: é
negado, deve ser negado tudo o que pode ser negado. (…) A negação
é a diferença, mas a diferença vista do menor lado, vista de baixo. Ao

237
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 75 (101 e 102).
contrário, endireitada, vista de cima para baixo, a diferença é
afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos; que a diferença é
objeto de afirmação; que a afirmação é ela mesma múltipla; que ela é
criação, mas também que deve ser criada, afirmando a diferença,
sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor. Mais
ainda, há elementos diferenciais positivos que determinam, ao mesmo
tempo, a gênese da afirmação e da diferença afirmada. Que haja uma
gênese da afirmação como tal é o que nos escapa toda vez que
deixamos a afirmação no indeterminado ou toda vez colocamos a
determinação no negativo. A negação resulta da afirmação: isto quer
dizer que a negação surge em conseqüência da afirmação ou ao lado
dela, mas somente como a sombra de um elemento genético mais
profundo — desta potência ou desta ‘vontade’ que engendra a
afirmação e a diferença na afirmação. Os que carregam o negativo não
sabem o que fazem: tomam a sombra pela realidade, nutrem
fantasmas, separam a conseqüência das premissas, dão ao
epifenômeno o valor do fenômeno e da essência.” 238

Esta citação põe um problema fundamental: o da necessidade da afirmação


comportar uma gênese. Ora a gênese da afirmação remete ao movimento do eterno
retorno que seleciona a vontade de potência afirmativa enquanto princípio da
experiência real. Como se verá a gênese da experiência real se confunde com a
subtração do conjunto dos pressupostos que organizam a filosofia da representação. No
momento, para melhor compreender a lógica que comanda essas subtrações, é preciso
esclarecer o sentido do conceito de diferença que se compõe com o conceito de
afirmação. É preciso, de início, ressaltar que, também o conceito de diferença decorre
de um procedimento de subtração: constituição..., no caso de um conjunto de subtrações
que desfiguram a filosofia da representação.

Gênese da afirmação e gênese da diferença

238
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 78 (104 e 105).
Segundo Deleuze,

“uma vez que o prefixo Re, na palavra representação, significa a


forma conceitual do idêntico que subordina as diferenças, não é,
portanto, multiplicando as representações e os pontos de vista que se
atinge o imediato definido como ‘sub-representativo’. Ao contrário,
cada representação componente é que deve ser deformada, desviada,
arrancada de seu centro. É preciso, pois, que cada ponto de vista seja
ele mesmo a coisa ou que a coisa pertença ao ponto de vista. É
preciso, pois, que a coisa nada seja de idêntico, mas que seja
esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade
do objeto visto quanto a do sujeito que vê. É preciso que a diferença
se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras
diferenças que nunca a identificam, mas a diferenciam. É preciso que
cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa
relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries
desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a
divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser
deve ver sua identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só
uma diferença entre diferenças. É preciso mostrar a diferença
diferindo.” 239

Ora, a leitura atenta desta citação revela que a gênese da afirmação se confunde
com a gênese da diferença. Pois, a rigor não há uma diferença dada a ser afirmada: a
diferença é conquistada por uma “deformação da representação”, por um
“esquartejamento da coisa”. Contudo, se, desse modo, não há mais identidade das coisas
(A é A), nem identidade do sujeito (Eu = Eu), o pensamento deve conquistar, por
diferenciação, por subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o
ponto de vista, isto é, um perspectivismo.
Deleuze retoma, assim, através de Nietzsche, duas intenções da crítica kantiana:

239
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.
o projeto de uma crítica imanente e a idéia da filosofia como legisladora enquanto
filosofia. No entanto, Deleuze considera, também com Nietzsche, que a imanência e o
ideal do filósofo legislador, almejados pela crítica kantiana, fracassam, de início, pela
concepção mesma desta crítica:

“Kant não fez senão levar ao extremo uma concepção muito velha da
crítica. Ele concebeu a crítica como uma força que deveria incidir
sobre todas as pretensões ao conhecimento e à verdade, mas não sobre
o próprio conhecimento, não sobre a própria verdade. Como uma
força que deveria incidir sobre todas as pretensões à moralidade, mas
não sobre a própria moral. Desse modo, a crítica total transforma-se
em uma política de compromisso.” 240

A transcendência da Verdade e da Moral, evidentemente, compromete, como se


verá, a intenção de uma legislação filosófica imanente. Mais ainda: a imanência fica,
também, corrompida pela incapacidade da crítica kantiana manter-se interna à razão
sem evitar o peculiar contrasenso de instituir um tribunal no qual a razão figura como
juiz e como réu. Deleuze observa:

“Faltava a Kant um método que permitisse julgar a razão de dentro,


sem lhe confiar, no entanto, o cuidado de ser juiz de si mesma. E, de
fato, Kant não realiza seu projeto de crítica imanente. A filosofia
transcendental descobre condições que permanecem exteriores ao
condicionado. Os princípios transcendentais são princípios de
condicionamento, não de gênese interna. Nós pedimos uma gênese da
própria razão e também uma gênese do entendimento e de suas
categorias: quais são as forças da razão e do entendimento? Qual é a
vontade que se esconde e se exprime na razão? Quando comparamos a
vontade de potência a um princípio transcendental, quando
comparamos o niilismo na vontade de potência a uma estrutura a
priori, desejávamos antes de tudo marcar sua diferença com as

240
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 102 (73 e 74).
estruturas psicológicas. Permanece que os princípios em Nietzsche
não são jamais princípios transcendentais; estes são precisamente
substituídos pela genealogia. Só a vontade de potência como princípio
genético e genealógico, como princípio legislativo, está apta para
realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.” 241

A crença na Moral e na Verdade faz com que a crítica kantiana, do ponto de


vista de Nietzsche e Deleuze, comprometa a idéia do filósofo legislador. Para Kant o
que é legislador não é o pensamento, mas, como já se disse, uma de nossas faculdades:
quando o interesse da Razão é especulativo, cabe ao entendimento legislar sobre as
demais faculdades (sensibilidade, imaginação e a razão); quando se trata do interesse
prático, é a razão quem ordena o senso comum entre a imaginação e entendimento; etc.
Deleuze se indaga:

“o que finalmente se esconde na famosa unidade kantiana do


legislador e do sujeito? Nada senão uma teologia renovada, a teologia
ao gosto protestante: somos encarregados da dupla tarefa do padre e
do fiel, do legislador e do sujeito. O sonho de Kant: não suprimir a
distinção dos dois mundos, sensível e supra-sensível, mas assegurar a
unidade do pessoal nos dois mundos. A mesma pessoa como
legislador e sujeito, como sujeito e como objeto, como númeno e
como fenômeno, como padre e como fiel. (…) Esse legislador e esse
padre exercem o ministério, a legislação, a representação dos valores
estabelecidos; não fazem senão interiorizar os valores em curso.” 242

A contraposição entre a crítica transcendental e a crítica genealógica permite


acompanhar as conclusões de Deleuze e precisar o sentido de uma crítica
verdadeiramente imanente.

241
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104 (75).
242
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 106 (76).
Deleuze destaca cinco pontos que distinguem a crítica nietzschiana da crítica
kantiana:

1) “não princípios transcendentais, que são simples condições para


pretensos fatos, mas princípios genéticos e plásticos, que dão conta do
sentido e do valor das crenças, das interpretações e das avaliações; 2)
não um pensamento que se crê legislador, porque só obedece à razão,
mas um pensamento que pensa contra a razão (…); 3) não o legislador
kantiano, mas o genealogista. O legislador de Kant é um juiz de
tribunal, um juiz de paz que vigia a distribuição dos domínios e a
repartição dos valores estabelecidos. A inspiração genealógica se opõe
à inspiração judiciária. O genealogista é um pouco advinho, filósofo
do futuro. (…) Para ele, também, pensar é julgar, mas julgar é avaliar
e interpretar, é criar valores. O problema do julgamento se torna o da
justiça e da hierarquia; 4) (…) a instância crítica não é o homem
realizado, nem qualquer forma sublimada do homem, como espírito,
razão, consciência de si. Nem Deus, nem homem. (…) a instância
crítica é a vontade de potência, o ponto de vista crítico é o da vontade
de potência. Mas sob qual forma? (…) O tipo crítico, o homem
enquanto quer ser ultrapassado, superado. (…); 5) O objetivo da
crítica: não os fins do homem ou da razão, mas enfim o super-homem,
o homem superado, ultrapassado. Na crítica, não se trata de justificar,
mas de sentir diferentemente: uma outra sensibilidade.” 243

Uma nova concepção da crítica envolve portanto uma nova imagem do


pensamento, uma nova ontologia e uma nova concepção da experiência: a passagem da
crítica transcendental à crítica genealógica tem como conseqüência o abandono da
imagem dogmática do pensamento em proveito de um pensamento sem imagem, do
realismo ontológico em favor da univocidade da afirmação ontológica e da questão das
condições da experiência possível em favor do problema da gênese da experiência real.
Toda uma imagem do pensamento e do ser se desfigura com a modificação do sentido
que se dá às condições nas quais o pensamento faz uma experiência: a subtração da
idéia de que a experiência depende de condições a priori, que prolonga as subtrações
dos pressupostos do Todo e do Um, e a afirmação da univocidade da diferença facultam
a Deleuze pôr o problema da gênese da experiência real e elaborar a idéia de um
empirismo transcendental, como conquista de uma afirmação diferencial.

Capítulo IV
Gênese e experiência

Dado que a razão herda e exprime os


direitos daquilo que submete o
pensamento, o pensamento reconquista
seus direitos e se faz legislador contra a
razão: o lance de dados, esse era o sentido
do lance de dados. (G. Deleuze)

Cabe ressaltar, para a compreensão da relação da crítica deleuziana com a crítica


kantiana, a caracterização, na exposição do sistema kantiano, da razão como faculdade
dos fins e a equação dos fins superiores da razão com o sistema da cultura: Kant não só
afirma que há fins da cultura e que estes são os fins da razão, como também defende que
a razão, ao definir seus fins, toma a si própria como fim. É importante destacar ainda o
duplo papel da história no estabelecimento do sistema da cultura: a formação de uma
constituição civil perfeita (o objeto mais elevado da cultura, o fim da história ou o
soberano bem propriamente terrestre); no entanto, a história, tal como aparece na
natureza sensível, é constituída por puras relações de forças: é pelo mecanismo das
forças e pelo conflito das tendências (cf. 'a insociável sociabilidade') que a natureza
sensível, no próprio homem, preside o estabelecimento de uma sociedade, único meio
no qual o fim último pode ser historicamente realizado. Como foi dito, Kant supõe que a
Natureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível procedesse segundo
suas próprias leis para ser capaz de receber finalmente o efeito supra-sensível. Deste
modo, Deleuze esclarece que a crítica em Kant visa conectar os interesses da Razão
com o sentido da sociedade — meio de atualização do soberano bem — e com o sentido

243
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 107 e 108 (77).
da história — processo de atualização do soberano bem, vale dizer, o estabelecimento
de uma constituição civil perfeita.
A leitura de Nietzsche et la philosophie revela, como se observará
detalhadamente mais adiante, como Deleuze sublinha a existência, na filosofia de
Nietzsche, de uma linha que conecta a crítica genealógica com a crítica kantiana. Não é
sem importância perceber, desde logo, que para além da retomada da intenção de uma
crítica imanente e do ideal de uma filosofia legisladora, há, com Nietzsche, segundo
Deleuze, uma ruptura radical com a concepção kantiana da crítica. Esta não é mais
concebida como uma crítica empreendida pela razão, mas como uma crítica da razão
pelo pensamento:

“quando o conhecimento se faz legislador, é o pensamento que é o


grande submetido. O conhecimento é o próprio pensamento, mas o
conhecimento submetido à razão como a tudo o que se exprime na
razão. O instinto do conhecimento é, então, o pensamento, mas o
pensamento na sua relação com as forças reativas que dele se
apropriam e o conquistam. Pois são os mesmos limites que o
conhecimento racional fixa à vida, mas também que a vida racional
fixa ao pensamento; é ao mesmo tempo que a vida é submetida ao
conhecimento, mas também que o pensamento é submetido à vida.
(…) Mas então a crítica, concebida como crítica do conhecimento, não
exprime outras forças capazes de dar outro sentido ao pensamento?
Um pensamento que iria até o limite do que pode a vida, um
pensamento que levaria a vida até o limite do que ela pode. Ao invés
de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que
afirmaria a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, nas o
pensamento, a potência afirmativa da vida.” 244

Esta reversão se prolonga e afeta, também, as relações da filosofia com a cultura e com
a história: não cabe mais à crítica a tarefa de fundar os valores racionais, de determinar

244
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (83).
os fins superiores da cultura, nem o objetivo final da história. A subtração da razão do
sistema da crítica afetará, portanto, a concepção do campo transcendental: os princípios
transcendentais hão de ceder lugar ao conceito de vontade de potência enquanto
princípio plástico e genealógico; a teleologia racional desaparece, o fim último do
homem e o objetivo final da história desfiguram-se em favor da heterogeneidade
imanente ao devir. Assim, a filosofia, abandonando sua pretensão de fundamentação dos
costumes, tornar-se afirmativa e o pensamento assume um novo sentido, o de inventar
novas possibilidade de vida.
Com a subtração da razão do sistema da crítica, como pensar o problema da
cultura e a natureza da histórica?

Cultura e história

Como foi analisado no capítulo “O combate e o procedimento” é sobretudo o


esclarecimento do problema dos tipos de adestramento e de seleção, como funções
essenciais da cultura, que permite o entendimento do sentido da distinção de três pontos
de vista sobre a cultura e que põe sob nova ótica o problema da criação e da seleção
ontológica: a seleção não mais como seleção transcendente de pretendentes, mas como
seleção imanente de potências.
A cultura é definida pelas atividades de adestramento e de seleção, inseparáveis
de um sistema de crueldade: trata-se, seja de que ponto de vista for, da formação, da
constituição de um indivíduo, de um processo de individuação que se faz por inscrições
sobre o corpo. Como foi analisado, Deleuze distingue, no adestramento, dois elementos:
aquilo a que se obedece — “sempre histórico, arbitrário e estúpido” — e que representa
as forças reativas; e o fato de obedecer-se à lei: “toda lei histórica é arbitrária, o que é
genérico e pré-histórico é a lei de obedecer a leis.” 245 Pois bem, o ponto de vista
histórico sobre a cultura define-se pela confusão da lei com seu conteúdo, da forma da
lei com seu conteúdo reativo. O correlato desta confusão — confusão que se apóia
numa ficção, numa aparência de atividade e de justiça — não é o homem livre, mas o
homem domesticado:

245
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág.153 (111).
“utilizam-se os procedimentos de adestramento, mas para fazer do
homem o animal gregário, a criatura dócil e domesticada. Faz-se uso
dos procedimentos de seleção, mas para quebrar os fortes, para ficar
com os fracos, os sofredores ou os escravos. A seleção e a hierarquia
são postas de cabeça para baixo. A seleção torna-se o contrário
daquilo que era do ponto de vista da atividade; ela é apenas um meio
de conservar, de organizar e de propagar a vida reativa.” 246

Deleuze sublinha o papel da metafísica na elaboração do sentido histórico da


cultura. O destaque desta função da filosofia clássica é reafirmado, anos depois no seu
livro Dialogues, na seguinte observação:

“o que diz Foucault é verdade: que toda formação de poder tem


necessidade de um saber, do qual, no entanto, não depende, mas que
sem ele não teria eficácia. Ora, esse saber utilizável pode ter duas
figuras: ou uma forma oficiosa, tal como se instala nos poros, para
fechar determinados buracos na ordem estabelecida; ou então uma
forma oficial, quando constitui por si mesmo uma ordem simbólica
que dá aos poderes estabelecidos uma axiomática generalizada. (...)
Não há Estado que não tenha necessidade de uma imagem do
pensamento que lhe servirá de axiomática ou de máquina abstrata, e à
qual ele dá, em compensação, a força para funcionar (...) Foi papel
deplorável da filosofia clássica, como vimos, o de fornecer, a
aparelhos de poder, Igreja ou Estado, o saber que lhes convinha. Será
que se pode dizer hoje que as ciências do homem assumiram esse
mesmo papel: fornecer por seus próprios meios uma máquina abstrata
aos aparelhos de poder modernos, admitindo a possibilidade de
receber deles a promoção desejada?” 247

246
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 159 9115).
247
Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 104. É conveniente, ainda, salientar que o
prosseguimento dessa passagem permite esclarecer que a crítica da filosofia da representação se prolonga
Essas considerações evidenciam, embora as análises de cada filósofo
determinem níveis diversos desse problema, que, para Deleuze, assim como para
Nietzsche, o trabalho da filosofia clássica contribui para o desenvolvimento das ficções
que definem o sentido histórico da cultura. Compreende-se, então, que a crítica
deleuziana da filosofia clássica seja um pensamento concreto e perigoso: como foi
sugerido no primeiro capítulo deste trabalho, a filosofia de Deleuze é inseparável do
desejo de desarticulação das ficções 248 — forças reativas que sustentam o sentido
histórico da cultura — que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear para
o interior da filosofia de modo a articulá-las em uma imagem do pensamento que se
quer confundir com a própria natureza do pensamento. Sendo assim, é sem sentido
distinguir uma crítica interna à filosofia e uma crítica externa da cultura: tanto para
Nietzsche como para Deleuze, o pensamento passa de uma crítica a outra sem solução
de continuidade. A crítica de uma afeta necessariamente a imagem da outra.
Retoma-se, aqui, a hipótese de pensar a doutrina do julgamento como doutrina
que elabora as ficções essenciais para a constituição do ponto de vista histórico sobre a
cultura. Em contrapartida, sendo essa correlação verdadeira, pode-se suspeitar que o
pensamento de Deleuze queira dar consistência filosófica à articulação dos pontos de
vistas pré e pós-históricos sobre a cultura — um projeto que é inseparável da
desarticulação das ficções que a doutrina do julgamento empenha-se em contrabandear
e articular numa imagem do pensamento que se quer confundir com a própria natureza
do pensamento.
Após essas considerações, o procedimento de subtração: constituição... pode ser
também compreendido como a expressão de um combate propriamente filosófico que
possui duas faces: de um lado, é combate-contra as transcendências erguidas no interior
do campo filosófico que asseguram a elaboração de uma filosofia do julgamento como
teoria do conhecimento e como doutrina moral; de outro lado, é combate-entre as forças

no questionamento da psicanálise e das ciências humanas: a despeito das especificidades e das diferenças
entre esses saberes, eles são associados ao exercício de uma mesma função, aquela efetuada pela filosofia
clássica.
248
“A idéia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com todas as suas formas (Deus, a essência,
o bem, o verdadeiro), a idéia de valores superiores à vida não são exemplos entre outros, mas o elemento
constitutivo de toda ficção.” Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 169 (123).
filosóficas que são apropriadas, reunidas, redefinidas, submetidas a torções, de modo a
comporem um “centro de metamorfose” e despertarem a vitalidade necessária para que
o pensamento se constitua como pura afirmação.
No entanto, o entendimento do sentido de um pensamento afirmativo exige o
retorno e o aprofundamento da interpretação que Deleuze faz do problema da cultura
em Nietzsche. Isto porque, este problema — o da distinção dos três sentidos da cultura
— se completa, é redefinido e, de certo modo, se transmuta quando integrado no
contexto mais abrangente que o articula com a doutrina do eterno retorno e, por esse
viés, com a crítica à dialética e ao niilismo.
Deleuze observa uma ambivalência nas apreciações de Nietzsche a respeito da
possibilidade de a cultura, como atividade genérica, eliminar o devir reativo das forças
e, efetivamente, possibilitar um devir ativo. Segundo Deleuze, essa ambivalência se
resolve com a investigação da seguinte questão: em que medida o homem é
essencialmente reativo? Ora, a compreensão desse problema deve, para Deleuze, levar
em consideração que, para Nietzsche, mais importante que as forças ou as qualidades
das forças, atuam os devires das forças e das qualidades da vontade de potência. Será,
portanto, do ponto do devir das forças que as questões da natureza da atividade genérica
da cultura e da essência do homem serão avaliadas.
Deleuze esclarece:

“Há efetivamente uma atividade humana, há efetivamente forças


ativas do homem; mas essas forças particulares são apenas o alimento
de um devir universal das forças, de um devir reativo de todas as
forças, que definem o homem e o mundo humano. É assim que se
conciliam em Nietzsche os dois aspectos do homem superior: seu
caráter reativo e seu caráter ativo. À primeira vista, a atividade do
homem aparece como genérica; forças reativas se enxertam sobre ela,
desnaturam-na e a desviam de seu sentido. Porém, num plano mais
profundo, o verdadeiro genérico é o devir reativo de todas as forças, e
a atividade é apenas o termo particular suposto por esse devir.” 249
Assim compreendidas, as críticas nietzschianas da cultura e do humanismo relacionam-
se constituindo uma crítica radical; que não incide sobre os meios da atividade cultural,
denunciados como inoperantes ou insuficientes, mas questiona os próprios fins da
cultura, em virtude de sua natureza mesma, e ataca, não um acidente, mas a própria
essência do homem. Deleuze insiste neste ponto sublinhando a diferença de natureza
que distingue o super-homem do homem superior. “O homem tem por essência o devir
reativo das forças. Mais ainda, ele dá ao mundo uma essência, esse devir como devir
universal. A essência do homem, e do mundo ocupado pelo homem, é o devir reativo de
todas as forças, o niilismo e nada mais que o niilismo. O homem e sua atividade
genérica, eis as duas doenças de pele da terra.” 250
O que autoriza essa interpretação? Por que as forças ativas da cultura são
definidas como o alimento de um devir universal das forças? Ou ainda: por que a
essência do homem é o niilismo? Deleuze é claro: o que falta à cultura e à sua atividade
genérica é a potência de afirmar. Assim, esclarece:

“O homem superior permanece no elemento abstrato da atividade; ele


jamais se eleva, mesmo em pensamento, até ao elemento da
afirmação. O homem superior pretende inverter os valores, converter a
reação em ação. Zaratustra fala de outra coisa: transmutar os valores,
converter a negação em afirmação. Ora, jamais a reação se tornará
ação sem essa conversão mais profunda: é necessário primeiro que a
negação se torne potência de afirmar. Separada das condições que a
tornariam viável, a empresa do homem superior fracassa não
acidentalmente, mas por princípio e na essência. Em vez de formar um
devir ativo, ela alimenta o devir inverso, o devir reativo. Em vez de
reverter os valores, troca-se de valores, permuta-os, mas mantendo o
ponto de vista niilista do qual eles derivam; em lugar de adestrar as
forças e torná-las ativas, organizam-se associações de forças reativas.
Inversamente, as condições que tornariam viável a empresa do homem
superior são aquelas que mudariam a sua natureza: a afirmação
dionisíaca, não a atividade genérica do homem. O elemento da

249
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 193 (140).
250
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 194 (141).
afirmação, eis o que falta ao próprio homem e sobretudo ao homem
superior.” 251

Em que esse retorno à interpretação deleuziana do problema da cultura, em


Nietzsche pode contribuir para a compreensão do pensamento como pura afirmação?
Ao esclarecer o vínculo essencial entre a negação como qualidade da vontade de
potência e o devir reativo das forças, Deleuze revela que só a subtração da negação
como princípio de avaliação torna possível a crítica da cultura e do homem como seu
produto. Só a subtração da negação como perspectiva que constitui o homem e o seu
mundo torna pensáveis o super-homem e a transvaloração dos valores. Mas a subtração
da negação só é eficaz se ela permite uma mudança na qualidade da vontade de
potência, se ela se articula com a constituição da afirmação como nova qualidade da
vontade de potência. Apenas essa mutação profunda assegura a tripla afirmação:
afirmação da vida, e, na própria vida, o sofrimento; afirmação do acaso e da necessidade
do acaso; afirmação do devir e do o ser do devir.

O eterno retorno e sua seleção

Mas como pode a negação ser subtraída? E em que sentido as afirmações da


vida, do acaso e do devir dizem respeito a um pensamento da pura afirmação? O
desenvolvimento dessas questões conduz o pensamento à investigação da doutrina do
eterno retorno como pensamento crítico e seletivo.
No que diz respeito à crítica da metafísica, Deleuze mostra que Nietzsche parte
da constatação do domínio das forças reativas na filosofia e nas ciências. Por toda a
parte, segundo Nietzsche, encontra-se o predomínio das exigências do ressentimento:

“o que parece, de todo modo, pertencer à ciência e também à filosofia


é o gosto por substituir as relações reais de forças por uma relação
abstrata que se supõe exprimir todas elas, como uma ‘medida’. A este

251
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 195 e 196 (142).
respeito, o espírito objetivo de Hegel não vale mais do que a utilidade,
não menos ‘objetiva’. Ora nessa relação abstrata, qualquer que seja,
sempre se é levado a substituir as atividades reais (criar, falar, amar,
etc...) pelo ponto de vista de um terceiro sobre essas atividades;
confunde-se a essência da atividade com o lucro de um terceiro e
pretende-se que este deva tirar proveito desse lucro ou que tenha
direito de recolher seus efeitos (Deus, o espírito objetivo, a
humanidade, a cultura ou até mesmo o proletariado). 252

A constatação da vitória das forças reativas não se esgota em si mesma; ao


contrário, estimula a investigação da perspectiva que lhe favorece. Neste sentido, esta
constatação compromete as demais críticas à metafísica. Deleuze interpreta a crítica
nietzschiana como uma crítica à crítica kantiana e à dialética hegeliana, compreendida
como oriunda do espírito da crítica kantiana: “a crítica em Kant não soube descobrir a
instância realmente ativa, capaz de conduzi-la. Esgota-se em compromissos: nunca nos
faz superar as forças reativas que se exprimem no homem, na consciência de si, na
moral e na religião. Tem ainda um resultado inverso: faz dessas forças algo ainda um
pouco mais ‘nosso’.” 253

Como já se disse a respeito do problema da instância que interpreta e liga os


fragmentos sem totalizá-los ou unificá-los, Deleuze, no seu estudo sobre Nietzsche,
define a metafísica pela questão “O que é?”. E adverte contra a obviedade desta
questão: “é preciso voltar a Platão para ver até que ponto a pergunta ‘O que é?’ supõe
um modo particular de pensar.” 254 É essa questão que distingue o que é segundo a
essência do que é segundo a aparência, e que determina, enquanto oposição de valores,
a distinção do ser e do devir. Deleuze mostra como Nietzsche situa o combate à
metafísica no plano das questões e dos problemas. Se a questão “O que é?” busca
determinar a essência, essa pretensão restará sob suspeita pelo efeito da proposição de
uma nova questão: “Quem?”.

252
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 84 (61)
Qual é, pois, o novo modo de pensar que se exprime na questão “Quem?” e a
que visa essa questão? Deleuze responde:

“O sofista Hípias não era uma criança que se contentava em responder


“o quê?” quando se lhe perguntava “quê?’. Ele pensava que a questão
‘Quem?’ era melhor como questão, a mais apta a determinar a
essência. Ela não remetia, como acreditava Sócrates, a exemplos
isolados e sim à continuidade dos objetos concretos tomados em seu
devir.(…) Perguntar quem é belo, quem é justo, e não o que é o belo,
o que é o justo, era então o fruto de um método elaborado, implicando
uma concepção da essência original e toda uma arte sofística que se
opunha à dialética. Uma arte empirista e pluralista.” 255

O abandono da questão “O que é?” em proveito da questão “Quem?” não envolve, pois,
um esquecimento da questão da essência, mas a criação de uma outra teoria da essência.
De acordo com a interpretação de Deleuze, “a questão: ‘Quem?’, segundo
Nietzsche, significa isto: uma coisa sendo considerada, quais são as forças que dela se
apropriam, qual é a vontade que a possui? (…) Pois a essência é apenas o sentido e o
valor da coisa; a essência é determinada pelas forças em afinidade com a coisa e pela
vontade em afinidade com essas forças.” 256 A essência, assim definida, diz respeito a
uma perspectiva, supõe uma pluralidade. Cabe ainda sublinhar que, se a questão
“Quem?” redefine desse modo o conceito de essência, é porque ela é uma questão que
exige como resposta um novo tipo de proposição. Ao contrário da questão “O que é?”, a
questão “Quem?” não promove proposições especulativas — que questionam uma idéia
do ponto de vista de sua forma e que fazem da sua coerência critério para sua existência
—, mas proposições dramáticas que operam uma síntese da idéia com o tempo, com o
devir e, um afastamento da perspectiva história sobre a cultura.
Deleuze expõe e exemplifica essa distinção a propósito da análise da proposição

253
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 101 (73).
254
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 86 (62).
255
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (62 e 63).
256
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 87 (63).
“Deus morreu”.

“A fórmula ‘Deus morreu’ (…) é a proposição dramática por


excelência. Não se pode fazer de Deus o objeto de um conhecimento
sintético sem nele colocar a morte. A existência ou não existência
deixam de ser determinações absolutas que decorrem da idéia de
Deus, mas a vida e a morte se tornam determinações relativas que
correspondem às forças que entram em síntese com a idéia de Deus ou
na idéia de Deus. A proposição dramática é sintética, portanto
essencialmente pluralista, tipológica e diferencial.” 257

Em congruência com a questão que orientou a primeira parte desse capítulo —


“Quem interpreta?” — cabem, agora, essas outras questões, que orientam a investigação
do problema de um pensamento sem imagem: “Quem avalia?”, “Quem diferencia?”,
“Quem repete?” Quem afirma?”, em suma “Quem critica?” A resposta dada por
Nietzsche e Deleuze é clara: Dioniso — o um que afirma o múltiplo — , a vontade de
potência — princípio fluente, elemento genético da força —, é esse “quem” plural. 258
Sendo assim, não se pode avançar na compreensão da crítica nietzschiana sem o
entendimento do conceito de vontade de potência e do significado de Dioniso.
Na interpretação desses conceitos está em jogo a própria visão de Deleuze, e não
apenas sua apreciação da filosofia de Nietzsche. Como se mencionou, a propósito do
estatuto do devir em Deleuze e em Nietzsche, numa referência à Blanchot:

“o devir não é a fluência de uma duração infinita (bergsoniana) ou a


mobilidade de um movimento interminável. O despedaçamento — a
quebra — de Dioniso, eis o primeiro saber, a experiência obscura na
qual o devir se descobre em relação com o descontínuo e como seu
jogo. E a fragmentação do deus não é a renúncia ousada à unidade ou

257
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 175 (127).
258
O problema da crítica articula-se, por intermédio da questão “Quem?”, com os problemas analisados
supra: o novo tipo de unidade exigida por um pensamento do Dehors e pela nova concepção do sistema
em filosofia, sistema pensado como aberto e em heterogênese. A conexão desses problemas será
a unidade que permanece una mesmo pluralizando-se. A fragmentação
é o deus mesmo, aquilo que não tem nenhuma relação com um centro,
que não suporta nenhuma referência originária e que, por
consequência, o pensamento, pensamento do mesmo e do um, aquele
da teologia, como de todos os modos do saber humano (ou dialético),
não poderia acolher sem falsear.” 259

Dioniso é, desse modo, definido como a incarnação e a afirmação do fragmento, neste


sentido, expressa o ser do devir. E a vontade de potência, qual é sua relação com
Dioniso?
Eis que essas questões circunscrevem o coração da interpretação deleuziana da
doutrina do eterno retorno. Deleuze distingue dois aspectos do problema do eterno
retorno: o eterno retorno como doutrina cosmológica e física e o eterno retorno como
pensamento ético e seletivo.
A doutrina cosmológica e física do eterno retorno constitui, inicialmente, uma
afirmação do devir. Este pensamento exige que o devir não tenha começo nem fim:
“que o instante atual não seja um instante de ser ou de presente ‘no sentido estrito’, que
ele seja um instante que passa, nos força a pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente
como o que não pode começar e como aquilo que não pode parar de devir.” 260 Em
seguida, essa doutrina, que não mais opõe o ser e o devir, deve, justamente, ultrapassar
essa oposição de valores definindo o ser do devir. E ela o faz afirmando que retornar é o
ser do devir. Mas como pensar a necessidade de tal afirmação? Deleuze mostra,
primeiramente, que o eterno retorno deve ser pensado como uma resposta ao problema
da passagem do tempo:

“se o presente não passasse por ele mesmo, se fosse preciso esperar
um novo presente para que este se tornasse passado, nunca o passado
em geral se constituiria no tempo, nem esse presente passaria; não
podemos esperar, é preciso que o instante seja ao mesmo tempo

retomada no seu devido tempo.


259
Maurice Blanchot, L’entretien infini, pág. 234.
presente e passado, presente e futuro para que ele passe (e passe em
proveito de outros instantes). É preciso que o presente coexista
consigo mesmo como passado e como futuro. É a relação sintética do
instante consigo mesmo como presente, passado e futuro que funda
sua relação com outros instantes.” 261

Após estabelecer essa correlação do eterno retorno com o problema da passagem do


tempo, Deleuze demonstra que, em função desse seu aspecto sintético, o eterno retorno
não pode ser compreendido como eterno retorno do mesmo: o um que retorna se diz do
devir, da diferença. E, assim, a diferença retorna como síntese: “síntese do tempo e de
suas dimensões, síntese do diverso e de sua reprodução, síntese do devir e do ser
afirmado do devir, síntese da dupla afirmação.” 262 Finalmente, Deleuze conclui que,
desse modo, o eterno retorno exige um outro princípio que não o da identidade. Esse
novo princípio, apresentado como a razão suficiente do diverso e de sua reprodução, da
diferença e de sua repetição, segundo a análise de Deleuze, é definido por Nietzsche
com o conceito de vontade de potência.
O conceito de vontade de potência diz respeito ao conceito de força, mostrando-
se, simultaneamente, um complemento da força e algo interno à força:

“com efeito, se fazemos a pergunta ‘Quem?’, não podemos dizer que a


força seja aquele que quer. Só a vontade de potência é quem quer, ela
não se deixa delegar nem alienar num outro sujeito, mesmo que esse
seja a força (…) A vontade de potência é o elemento do qual
decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças
postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força.
A vontade de potência revela aqui sua natureza: ela é princípio para a
síntese das forças. É nesta síntese temporal que as forças se
diferenciam e que o diverso se reproduz. A síntese é das forças, de sua
diferença e de sua reprodução; o eterno retorno é a síntese da qual a

260
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (39).
261
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 54 (40).
262
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 55 (41).
vontade de potência é o princípio.” 263

Deleuze encontra aqui, no conceito de vontade de potência, a possibilidade de


pensar um princípio diferencial e genético. O que significa isto? Em primeiro lugar,
deve-se compreender os adjetivos diferencial e genético como referidos a um cálculo
dialético que se exprime e se desenvolve, exemplar e problematicamente, na
matemática, no campo do cálculo diferencial. A idéia de um cálculo propriamente
dialético é amplamente desenvolvida em Différence et répétition, sobretudo no capítulo
a “Synthèse idéelle de la différence”. Tal idéia permite, como se verá, correlacionar o
procedimento deleuziano da subtração: constituição... com o conceito nietzschiano de
vontade de potência. É que o cálculo diferencial envolve as operações das derivadas e
das integrais. A primeira, a derivada, é a operação pela qual o pensamento constrói a
idéia, o domínio no qual as relações são diferençadas; a segunda, a integral, responde
pelo processo de atualização da idéia, processo pelo qual as relações se diferenciam. O
primeiro movimento, o da derivação, define-se pela extração de constantes. Por
exemplo, é por derivação, pela subtração da constante “raio”, que se produz a equação
do círculo, a idéia do círculo, o universal do círculo precisamente determinado por
relações diferenciais. O segundo movimento dá conta, a partir da idéia ou do universal
do círculo, da atualização-constituição dos círculos singulares, aqueles que possuem um
raio determinado. Não se trata agora de apresentar a teoria da idéia, tal como ela é
elaborada em Différence et répétition, mas apenas de indicar o significado que ganham,
na filosofia de Deleuze, os termos diferencial e genético, que qualificam a vontade de
potência como princípio.
Como compreender a vontade de potência como princípio? Como o conceito de
vontade de potência afeta e redefine o conceito de princípio?
Em primeiro lugar, observa-se que a ênfase na novidade do conceito
nietzschiano de vontade de potência faz Deleuze ressaltar que ele se constitui por uma
série de subtrações que desfiguram a antiga metafísica da vontade: o conceito de
vontade de potência subtrai da idéia de potência seu destino de ser de objeto de uma

263
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 56 (41).
representação; e da idéia de vontade sua dependência dos valores dominantes. E, assim,
subtrai, também, da idéia de vontade a necessidade de um conflito entre as vontades, a
concepção da guerra como meio da atribuir à vontade os valores estabelecidos. Em
decorrência dessas subtrações, surge um novo conceito de vontade: a vontade como
potência criadora. Contudo, por outro lado, não se deve esquecer que é esse novo
conceito de vontade, a vontade de potência, que assegura a necessidade das subtrações
desfigurantes: este é um conceito que traz a marca de sua criação e que permite
conceber o pensamento como criação. Deleuze sublinha que o conceito de vontade de
potência, assim constituído, é diferenciador nos seus efeitos: ele é o ato de derivar que
torna impensável um equilíbrio entre as forças em relação. Se, tal como foi dito, na
teoria do cálculo diferencial derivar é subtrair constantes e se a vontade de potência, em
um dos seus aspectos, é vontade de derivar, se seu exercício é diferenciador,
compreende-se que a vontade de potência como princípio não possa ser geral, isto é, ser
mais amplo do que aquilo de que é princípio. Assim, se a vontade de potência não é um
princípio geral é porque ela é um princípio plástico, “que se metamorfoseia com o
condicionado, que em cada caso se determina com o que determina. A vontade de
potência nunca é separável de tais ou quais forças determinadas, de suas quantidades, de
suas qualidades, de suas direções; nunca é superior às determinações que ela opera
numa relação de forças, sempre plástica e em metamorfose.” 264
Se assim é a vontade de potência, como compreendê-la, senão como o conceito
de uma perspectiva imanente, que se constitui na relação das forças de que assegura o
desequilíbrio? Mas o que seria um princípio, uma perspectiva que se constitui como
efeito do encontro das forças? Um tal princípio não seria antes uma conseqüência?
Contudo, não há nisto nenhum contra-senso, pois a vontade de potência não é um
princípio que negue o acaso; é, ao contrário, o que o acaso comporta como princípio. A
vontade de potência é um princípio porque, como afirmação do acaso, determina uma
dupla gênese: a gênese recíproca das diferenças de quantidades das forças (dominantes e
dominadas) e a gênese absoluta das qualidades das forças em questão (ativas e a
reativas). É, portanto, uma perspectiva plástica, fluente, inseparável das forças concretas
e imanente às suas diferenças. Mesmo assim, não se pode confundir o querer com as

264
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 57 (41).
forças, nem a elas reduzi-lo, sob pena de que, com o desaparecimento de sua diferença,
perca-se a inteligibilidade (o sentido e o valor) das forças em relação. Por outro, porém,
lado, se tal princípio é plástico, é também porque a vontade de potência é qualificada na
experiência na relação das forças que ela determina, seja como afirmativa seja como
negativa.
Como compreender a possibilidade da metamorfose da vontade de potência? É
certo que existe uma dinâmica das forças que torna possível um devir das forças. Mas
como o dinamismo das forças articula-se com a vontade de potência, como pode o
dinamismo das forças afetar o seu princípio? Deleuze explica:

“a relação das forças é determinada em cada caso na medida em que


uma força é afetada por outras, inferiores ou superiores. Daí a vontade
de potência manifestar-se como um poder de ser afetado. Esse poder
não é uma possibilidade abstrata; é preenchido e efetuado a cada
instante pelas outras forças com as quais está em relação. Não nos
espantaremos com o duplo aspecto da vontade de potência: ela
determina a relação das forças entre si, do ponto de vista da gênese e
da produção das forças, mas é determinada pelas forças em relação, do
ponto de vista de sua própria manifestação.” 265

Entretanto, resta ainda um outro aspecto da questão: como a vontade de potência pode
tornar-se negativa? Ainda uma vez esta possibilidade depende da dinâmica das forças.
No caso, depende de que esta dinâmica afete as qualidades das forças e constitua um
devir reativo das forças ativas. Deleuze explica essa possibilidade com a seguinte
interpretação:

“a ação e reação não estão numa relação de sucessão, mas de


coexistência na própria origem. (…) A força reativa, mesmo quando
obedece, limita a força ativa, impõe-lhe limitações e restrições
parciais, já está possuída pelo espírito do negativo. Por isso a própria

265
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 70 (50 e 51).
origem comporta uma imagem invertida de si mesma: visto do lado
das forças reativas, o elemento diferencial genealógico aparece ao
contrário, a diferença tornou-se negação, a afirmação tornou-se
contradição.” 266

E Deleuze acrescenta que, se com a ajuda de circunstâncias internas ou externas, as


forças reativas neutralizam as forças ativas, haverá o triunfo efetivo das forças reativas.
Com esse triunfo, não se trata mais de uma imagem invertida, mas de uma efetiva
inversão dos valores.
É a efetiva vitória das forças reativas, o desenvolvimento do niilismo, que, como
se viu, define, segundo a interpretação deleuziana de Nietzsche, o sentido histórico da
cultura. E é a partir desta avaliação, como crítica ao niilismo, que a definição do
segundo aspecto do eterno retorno — como pensamento ético e seletivo — assume, na
interpretação de Deleuze, sua importância fundamental. Pois o que está em questão
nesta interpretação é a possibilidade de um pensamento afirmativo e seletivo que
assegure a atividade da força e a afirmação da vontade.
Deleuze distingue, portanto, no pensamento do eterno retorno, dois sentidos da
seleção: por um lado, o pensamento do eterno retorno formula uma regra prática para a
vontade (“o que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras o seu eterno
retorno”) que elimina do querer tudo o que cai fora do eterno retorno e que faz da
vontade uma criação; por outro lado, o pensamento do eterno retorno reverte o niilismo,
porque faz da negação a negação das forças reativas. Deleuze esclarece: “não se
confundirá o voltar-se contra si mesmo com esta destruição de si, esta autodestruição.
No voltar-se contra si, processo da reação, a força ativa torna-se reativa. Na
autodestruição as próprias forças reativas são negadas e conduzidas ao nada. Por isso
diz-se que a autodestruição é uma operação ativa, uma ‘destruição ativa'.” 267 Há, então,
segundo a interpretação de Deleuze, uma dupla seleção no eterno o retorno: a primeira
elimina da vontade o que não suporta a prova do pensamento do eterno retorno; a
segunda faz entrar no ser, pelo pensamento do eterno retorno, o que nele não pode
entrar sem mudar de natureza. “Não se trata mais de um pensamento seletivo, mas sim

266
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 63 (45 e 46).
267
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 79 (57).
do ser seletivo, pois o eterno retorno é o ser e o ser é seleção (seleção = hierarquia).” 268
Como compreender essa afirmação de um ser seletivo, essa equação ser =
seleção? A conexão dos dois sentidos do eterno retorno esclarece, em parte, o problema
da seleção. Pois, como doutrina física e cosmológica, o eterno retorno afirma o devir.
Contudo, como ressalta a interpretação de Deleuze, o devir é duplo: há um devir reativo
das forças ativas — quando separadas do que podem pelas ficções reativas — e há um
devir ativo das forças reativas. É exatamente este o problema do eterno retorno, como
pensamento ético e seletivo: o da possibilidade do devir ativo das forças reativas. Ora, a
seleção, nos seus dois aspectos, deve ser compreendida como uma operação de
subtração: constituição.... Em ambos os casos, trata–se de subtrair ficções, as ficções
que separam as forças ativas do que elas podem. A primeira seleção elimina da vontade,
pelo pensamento do eterno retorno, os semi-quereres que a separam de toda sua
potência. O que se constitui com isso? A identidade da vontade com a criação. A
segunda seleção elimina, pelo pensamento do eterno retorno, a perspectiva que instaura
as ficções, o corpo sem órgãos das ficções, isto é, a negação. O que é que com isso se
constitui? A afirmação, a identidade do ser com o devir ativo. “O eterno retorno como
doutrina física afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, afirma o ser do
devir como ‘afirmando-se’ do devir-ativo. (…) A fórmula completa da afirmação é: o
todo, sim, o ser universal, sim, mas o ser universal se diz de um só devir, o todo se diz
de um só momento.” 269 Do primeiro sentido ao segundo sentido do eterno retorno,
passa-se, portanto, da afirmação do devir à seleção do devir ativo; passa-se do ser do
devir ao ser do devir ativo.

O problema ontológico na interpretação do eterno retorno

Permanece ainda uma dificuldade: como pensar a diferença estabelecida entre as


duas seleções, entre um pensamento seletivo e um ser seletivo? O fundamental, nesta
questão, é não substancializar o ser, não pensá-lo como um fato, isto é, como ordem
dada ou mesmo como princípio de ordenação de um todo dado como independente do

268
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 80 (58).
269
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 81 e 82 (59).
pensamento. O ser seletivo resulta de uma doutrina ética que afirma e dá valor de ser
apenas ao devir ativo. Ora, uma ontologia seletiva é ainda um pensamento, o ser
seletivo é um conceito, um pensamento do ser afirmado como devir ativo. Assim, as
duas seleções são operações do pensamento: na primeira, o pensamento retira de si os
pensamentos reativos; na segunda, o pensamento subtrai de si a perspectiva reativa,
elimina a negação como perspectiva de avaliação. O pensamento, tornado pura
afirmação, transmuta a negação em negação das forças reativas. Ou seja, o pensamento
que conquista sua imanência torna-se pura afirmação (afirmação da afirmação). Ele, o
pensamento, torna-se produtor: constitui-se como afirmador do ser, do ser seletivo que
só se diz do devir ativo.
É fundamental aqui compreender que a equação “ser = seleção” faz-se
acompanhar dessa outra equação: “seleção = hierarquia”. Sabendo-se que o conceito de
hierarquia refere-se ao conceito de valor e que este diz respeito não às realidades
objetivas, mas às diferenças de qualidade da vontade, deve-se dizer que é a segunda
equação que encerra o segredo da primeira, isto é, que o ser é perspectiva e que o que
ele, enquanto ato de selecionar, seleciona é o que se afirma como perspectiva e não o
que se pretende realidade. Mas, por outro lado, é fundamental lembrar que as
perspectivas atualizam-se em modos de vida, e, assim, o que o pensamento do eterno
retorno seleciona, ao selecionar o devir ativo, são maneiras de viver. Entretanto, não se
dever confundir modos de vida, valores, com realidades: as primeiras são da ordem da
atividade do pensamento, as segundas são do domínio da objetividade. 270 É esta
distinção que impede a identificação ou a redução do pensamento do eterno retorno a
uma moral, uma vez que o que retorna não são os valores estabelecidos concebidos
como realidades em si, mas o pensamento enquanto afirmação avaliadora e criadora.
É, portanto a subtração da perspectiva moralista e realista, que se nega enquanto
perspectiva, que dá sentido à equação “ser = seleção”. Pois essa fórmula não significa
apenas que a vida não pode ser avaliada por um valor transcendente e que as maneiras
de viver possuem o valor de suas perspectivas; significa, sobretudo, a afirmação do ser
do pensamento como perspectiva. Desse modo, a seleção do eterno retorno não só se
distingue da moral; é ela que revela que a moral tem um começo e que, na sua origem,

270
A epistemologia francesa caracteriza-se pelo esforço de eliminar todo realismo da concepção do
conhecimento científico. A objetividade científica não é uma objetividade dada, mas uma objetividade
ela é uma perspectiva que se nega e que, ao negar-se enquanto tal, não apenas assume a
negação como princípio como reivindica ser a expressão de um universal abstrato.
A interpretação do devir como fragmento, a identidade de Dioniso com a
fragmentação, assume todo seu valor quando se trata desse problema da seleção. Afinal
o que seria uma seleção que incidisse sobre devir compreendido como uma
continuidade temporal? Somente compreendendo o devir como multiplicidade de
fragmentos e os fragmentos como sistemas de signos e estes como interpretações é que
se pode submeter o devir à prova da doutrina ética do eterno retorno. Isto porque só
pensamentos podem ser avaliados por um pensamento, como no caso da prova ética do
eterno retorno. E, finalmente, o que se seleciona, senão a afirmação da afirmação? E não
envolve esta a afirmação do pluralismo? E não depende a seleção, ela própria, da
consideração de que o devir reativo é contraditório com o ser do devir? Tal contradição
não se explica como a contradição de um pensamento que se nega como perspectiva,
que se compreende pela negação da diferença e do pluralismo? Não será esta a
contradição das forças reativas com o revir: a sua pretensa dissociação de qualquer
perspectiva, o seu compromisso com a conservação dos valores existentes? Assim, não
são as forças reativas e o devir reativo das forças ativas a própria negação da repetição
do devir?
Se o devir ativo se diz das forças ativas e se estas são pensamentos afirmativos,
retorna a questão: o que é um tal pensamento, ou o que é pensar quando o pensamento
perde a referência do todo e a da sua própria unidade? Mais ainda: o que se torna o
pensamento quando ele passa pela prova do seu eterno retorno? Deleuze responde: um
pensamento sem imagem.
Mas poderá a crítica conquistar tal imanência? Como já se viu, Deleuze encontra
em Nietzsche, no conceito de vontade de potência, o princípio de uma tal crítica
imanente, a condição de um pensamento sem imagem. 271 O duplo aspecto da seleção no
pensamento do eterno retorno revela um movimento que vai da seleção dos
pensamentos ativos à seleção da vontade de potência afirmativa. Neste sentido, deve-se
sublinhar a dupla função do conceito de vontade de potência: por um lado, como

construída, é uma objetivação teórica.


271
Não seria talvez mais rigoroso falar, considerando-se a posição defendida por Deleuze em Qu’est-ce
que la philosophie?, não da condição de um pensamento sem imagens, antes de um pensamento, não sem
pressupostos, mas cujos pressupostos fossem afirmados enquanto tais?
princípio da diferença e de sua repetição, a vontade de potência é apresentada, por
Deleuze, como princípio do qual depende o eterno retorno como doutrina cosmológica e
física; por outro lado, o eterno retorno, como pensamento ético e seletivo, ao selecionar
a vontade de potência afirmativa como ser do devir a institui como princípio de uma
crítica imanente ao pensamento. Assim, à questão crítica “Quem?” corresponde, como
princípio crítico, o conceito de vontade de potência e, como movimento crítico, o eterno
retorno como pensamento ético e seletivo. Que operações as afirmações de tal princípio
e de tal movimento tornam possíveis no domínio do pensamento?
Antes de desenvolver essa discussão, é necessário voltar, após essa investigação
da interpretação deleuziana da doutrina do eterno retorno, à questão: o que uma pura
afirmação envolve? Se uma afirmação pura é produção e criação, é preciso, contudo,
salientar que, desse novo ponto de vista, se ela exclui a negação como potência
autônoma ou como qualidade primeira, nem por isso separa-se de uma agressividade
que resulta da redefinição da negação — agora subordinada ao elemento da afirmação
— e de sua função crítica.
A afirmação pura é a transvaloração que a doutrina do eterno retorno conquista.
Ela é a nova qualidade da vontade de potência, efeito da subtração da negação como
princípio de avaliação dos valores. Assim, a transvaloração significa que os valores não
derivam mais do negativo, que estes, não sendo postos como superiores à vida, não mais
a depreciam. No entanto, como já foi dito, se a negação deixa de ser princípio de
avaliação, ela, contudo, não sucumbe no vazio e desaparece do pensamento. Ao
contrário, Deleuze enfatiza, na sua análise da transvaloração nietzschiana, a interligação
dos seguintes movimentos que se associam ao advento da afirmação como princípio de
avaliação: 1. Uma mudança da imagem do pensamento: “a razão sob a qual a vontade
de potência é conhecida não é a razão sob a qual ela é.” 272 Deleuze sublinha aqui a
seguinte correlação: o pensamento submetido à razão ou à vontade de conhecimento
apreende, necessariamente, a vontade de potência negativa, e, por outro lado, só a
vontade de potência negativa sustenta uma vontade de conhecer. É então a subtração,
pelo pensamento, do ideal de conhecimento que pode facultar a emergência de um
pensamento afirmativo e uma mudança na qualidade da vontade de potência; 2. A

272
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
negação, desde então, subordina-se à afirmação e muda de sentido, tornando-se potência
de afirmar: “A negação não é mais a forma sob a qual a vida conserva tudo o que é
reativo nela, mas, ao contrário, a ato pelo qual ela sacrifica todas as sua formas
reativas.” 273 ; 3. Deleuze sublinha ainda um outro aspecto da subordinação da negação à
afirmação: só a afirmação subsiste enquanto potência independente, só a afirmação
produz o que o negativo anuncia.; 4. Desse modo, a negação, como conseqüência da
potência de afirmar, é o aspecto crítico que subtrai, no pensamento da existência, todos
os valores conhecidos; 5. Determinando um novo sentido à negação, a afirmação
produz, então, um devir ativo universal.
No entanto, como foi anunciado, esse devir ativo não se separa de uma condição
e de uma conseqüência negativa. Pode-se dizer que esse novo jogo da afirmação e da
negação se expressa nos dois movimentos do procedimento de “subtração:
constituição...”. O movimento da subtração das transcendências que abre caminho para
a afirmação do novo corresponde à primeira forma da negação: a negação que precede a
afirmação. Contudo, como foi sugerido na análise do procedimento de subtração:
constituição..., essas subtrações só adquirem necessidade como conseqüência de uma
potência afirmativa. Esse outro movimento, o da autentificarão das subtrações,
corresponde ao segundo aspecto ou à segunda manifestação da negação. Entretanto,
mais profundamente, esse jogo da afirmação e da negação fica sem sentido se ele não é
apreendido como decorrência da subtração primeira: a subtração, conseqüência da
afirmação da afirmação, do negativo como potência autônoma de interpretação. Pois a
autonomia da negação ou a negação como princípio é, na interpretação de Deleuze da
crítica nietzschiana, o foro genealógico de todas as ficções que depreciam a vida.
Deleuze retoma sua crítica ao negativo analisando o significado, na simbologia
nietzschiana, do sim do Asno. Com esta análise, ele quer destacar a existência, no
pensamento de Nietzsche, de uma diferenciação de dois tipos de afirmação: a primeira
não sabe, efetivamente, nem afirmar nem negar, porque afirma tudo o que a perspectiva
negativa põe como real e verdadeiro; a segunda modalidade de afirmação eleva-se à
potência criadora incorporando a negação, mas redefinida e subordinada à potência da
afirmação pura. Isto significa, para Deleuze, que a afirmação não se opõe à negação,

273
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 202 (147).
mas difere desta, libertando a negação da perspectiva negativa, redefinido-a como
negação do negativo na vontade de potência. A primeira afirmação aprova e suporta
todos os valores superiores; a segunda seleciona a diferença e elimina tudo o que pode
ser negado ao afirmar a própria afirmação. A primeira é expressão do niilismo: suporta
e afirma o “ser”, o “verdadeiro” e o “real”; a segunda propõe uma nova ontologia: “O
que é a afirmação em toda sua potência? Nietzsche não suprime o conceito de ser.
Propõe do ser uma nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação,
nem um elemento que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do
ser, ao contrário. A própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua
potência.” 274
Mas o que significa isto, a afirmação como ser? A afirmação da afirmação ou a
afirmação como ser é, por um lado, o exercício do pensamento que decorre da subtração
ao pensamento, dos seus pressupostos realistas, do Todo e do Um. A negação desses
pressupostos traz consigo a subtração de toda uma série de ficções, a começar pela
negação das concepções realistas do ser, do verdadeiro e do real. Por outro lado, a
análise da interpretação deleuziana do eterno retorno esclareceu que a afirmação
primeira, nela mesma, é devir e que a afirmação segunda, afirmação do devir, eleva o
devir à potência do ser. Como diz Deleuze: “É a afirmação primeira (o devir) que é ser,
mas ela só o é como objeto de uma segunda afirmação. As duas afirmações constituem a
potência de afirmar em seu conjunto.” 275 Contudo, é fundamental ainda mostrar que a
lógica do procedimento da subtração: constituição..., que afirma o devir, se articula com
a lógica da dupla afirmação, que afirma o ser do devir.

O estatuto da afirmação ontológica

Como já foi visto, o movimento da subtração significa a eliminação das


transcendências pressupostas pelo pensamento quando este é constituído por uma
vontade de potência negativa. Como já foi observado, e como será retomado e sua
análise aprofundada mais adiante, o movimento da subtração: constituição..., que

274
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213 (155).
275
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 214 (155).
envolve a subtração tanto da unidade do real (o Todo) quanto da unidade do pensamento
(o Um), articula-se a um outro movimento, que afirma o mundo dos fragmentos ou o
devir. Mas por que há a necessidade de uma dupla afirmação para que a potência de
afirmar se institua?
O essencial, neste caso, para uma filosofia, como a de Deleuze, que almeja dar
consistência à idéia de que o pensamento seja criador, é assegurar que a afirmação
primeira não seja uma constatação, no caso a constatação do devir como um dado.
Portanto, pode-se sugerir a hipótese de que a função da afirmação segunda ou
reduplicada seja a de revelar que a afirmação primeira não decorre da intuição de um
dado, ou seja, de uma realidade suposta como independente de um ato da vontade e do
pensamento, isto é, de uma realidade concebida como independente de qualquer
interpretação. A afirmação segunda, enquanto afirmação da afirmação, impede, desse
modo, a ilusão de supor que a afirmação seja compreendida como o reconhecimento de
uma realidade dada, mesmo que esta realidade seja, por contra-senso, o devir. Quanto a
isto, a interpretação de Deleuze é clara: “na crítica da afirmação como assunção (…)
Nietzsche critica toda concepção da afirmação que faria desta uma simples função,
função do ser ou do que é. De qualquer modo que seja concebido esse ser: como
verdadeiro ou como real, como númeno ou como fenômeno. E de qualquer modo como
que seja concebida essa função: como desenvolvimento, exposição, desvelamento,
revelação, realização, tomada de consciência ou conhecimento.” 276 A afirmação
segunda tem, pois, o sentido de eliminar todos os pressupostos: recusa a existência tanto
de um foro originário quanto de um estado de coisas atual, ou mesmo de uma orientação
teleológica que coordene, de fora e do alto, a atividade do pensamento.
Com esta interpretação do sentido da afirmação, Deleuze se afasta de toda
posição realista na filosofia e propõe uma nova ontologia, um construtivismo que faz da
diferença a essência do afirmativo e que diz que, no pensamento e na vida, só possui
valor de ser a afirmação que se afirma enquanto tal. Do ponto de vista dessa nova
ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é vontade de
potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem realidade do

276
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 209 e 210 (152 e 153).
mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real.” 277
Mas qual é o jogo da diferença nesta afirmação e o que afirma uma tal
afirmação? Deleuze esclarece:

“A afirmação é posta uma primeira vez como o múltiplo, o devir e o


acaso. Pois o múltiplo é a diferença entre o um e o outro, o devir é a
diferença consigo mesmo, o acaso é a diferença ‘entre todos’ ou
distributiva. Em seguida a afirmação se desdobra, a diferença é
refletida na afirmação da afirmação: momento da reflexão no qual
uma segunda afirmação toma por objeto a primeira. Mas assim a
afirmação se duplica: como objeto da segunda afirmação, ela é a
afirmação ela própria afirmada, a afirmação reduplicada, a diferença
elevada à sua mais elevada potência. O devir é o ser, o múltiplo é o
um, o acaso é a necessidade. (…) Assim, é próprio da afirmação
retornar, da diferença reproduzir-se. Retornar é o ser do devir, o um do
múltiplo, a necessidade do acaso: o ser da diferença enquanto tal, ou o
eterno retorno. Se considerarmos a afirmação no seu conjunto, nós não
devemos confundir, exceto por comodidade de expressão, a existência
de duas potência de afirmar com a existência de duas afirmações
distintas. O devir e o ser são uma mesma afirmação, que apenas passa
de uma potência à outra sempre que ela é objeto de uma segunda
afirmação.” 278

Mas, se esta reduplicação da afirmação é preparada pela diferenciação da


negação que a afirmação promove e exige, podendo-se compreendê-la como a
necessária potencialização da afirmação que distingue a afirmação de uma simples
recognição, resta ainda saber: o que mobiliza a diferença na afirmação? Ou, para falar
em uma linguagem nietzschiana: que vontade deseja a potencialização da afirmação?
Deleuze completa: “É a vontade de potência como elemento diferencial que produz e
desenvolve a diferença na afirmação, que reflete a diferença na afirmação da afirmação,

277
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211 e 212 (154).
278
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (157 e 158).
que a faz retornar na afirmação ela mesma afirmada.” 279 Se, como foi dito, a vontade de
potência é, na interpretação deleuziana de Nietzsche, o princípio de uma crítica
verdadeiramente imanente, então deve-se concluir que esta crítica incide primeiramente
sobre a vontade de potência negativa, afetando a própria qualidade da vontade de
potência, ela promovendo uma transformação na vontade de potência: a supressão da
negação enquanto princípio autônomo de interpretação e de avaliação permite a negação
da vontade de potência negativa e, assim, sua metamorfose em vontade de potência
afirmativa. E, em outra dimensão do mesmo movimento crítico, a dupla afirmação que
constitui a vontade de potência afirmativa introduz a diferença na afirmação e faz da
vontade de potência o princípio plástico de uma crítica imanente, ao mesmo tempo
seletiva e criadora.
A questão do estatuto da negação quando integrada no movimento da afirmação
pura e o problema da identidade da afirmação com a diferença retornam em Différence
et répétition integrados a uma problemática ontológica que Deleuze circunscreve,
precisando e aprofundando sua interpretação do eterno retorno, com a sua tese que
afirma a univocidade do ser. Quanto ao estatuto da negação, Deleuze, ao criticar a
filosofia da representação, diz que a filosofia da diferença recusa a alternativa geral da
representação infinita: “ou o indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então
uma diferença já determinada como negação, implicando e envolvendo o negativo
(assim a filosofia da diferença recusa, também, a alternativa particular: negativo de
limitação ou negativo de oposição). Em sua essência, a diferença é objeto de afirmação,
ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é, ela própria, diferença.” 280 Mas
em que sentido a afirmação já é diferença? E ainda: como uma afirmação diferencial
comporta uma potência destrutiva irredutível ao negativo?
Estas questões se articulam de modo necessário. É preciso, aqui, retornar, mais
uma vez, à hipótese de que a filosofia da diferença se constrói procedendo por
subtração: constituição.... Todavia, é fundamental sublinhar que esse procedimento,
imanente à construção desta filosofia, também dá conta do modo de construção do
sentido dos conceitos dessa filosofia. Assim pode-se dizer que os conceito de afirmação
diferencial e o de vontade de potência são conceitos que não decorrem só de retificações

279
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 217 (158).
280
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 74 (101).
operadas no campo filosófico. Como já foi mencionado, o conceito de vontade de
potência tem como correlatas as subtrações de uma série de componentes conceituais
que acompanham os conceitos metafísicos de vontade. O mesmo pode ser dito da
afirmação diferencial: este conceito supõe e implica a subtração de uma série de
componentes que acompanham o conceito de afirmação quando este é subordinado ao
ideal do conhecimento, quando este é integrado a uma ontologia que supõe a
preexistência do ser e quando este se orienta pela idéia de verdade. É justamente por
esses conceitos — vontade de potência e afirmação diferencial — não se separarem
dessas gêneses subtrativas que eles podem funcionar como princípios críticos que dão
validade e necessidade aos movimentos criadores envolvidos no procedimento de
subtração: constituição....
Uma afirmação pura, diferencial, é um ato que suprime pressupostos e, ao
mesmo tempo, constrói a idéia mesma de perspectiva. Desse modo, o componente
diferencial é que possibilita ao conceito de afirmação implicar uma agressividade e uma
destruição não derivadas da negatividade, não acionadas pelo negativo. A plena
compreensão dessa possibilidade depende da teoria de uma dialética diferencial, objeto
do capítulo “Síntese ideal da diferença” do livro Différence et répétition. Em todo o
caso, ainda a título de introdução, deve-se lembrar, ainda uma vez, que diferencial diz
respeito a um cálculo que procede por subtrações de constantes, cálculo que permite
construir idéias diferenciais e pensar universais que não se opõem ao singular e à
diferença, pois que só se atualizam, concretamente, como diferenças singulares. No que
se refere à questão presente, contudo, é preciso dizer que diferencial diz respeito ao
processo de subtração das ficções que submetem o pensamento ao negativo e que
produzem uma imagem do pensamento cujos pressupostos configuram tanto uma
unidade subjetiva para o pensamento quanto uma ordem objetiva para o mundo. É,
portanto, do ponto de vista de uma afirmação diferencial que Deleuze pode distinguir

“duas maneiras de invocar ‘destruições necessárias’: a do poeta que


fala em nome de uma potência criadora, apto a reverter todas as
ordens e todas as representações, para afirmar a Diferença no estado
de revolução permanente do eterno retorno; e a do político, que se
preocupa, antes de tudo, em negar o que ‘difere’ para conservar,
prolongar, uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer
uma ordem histórica que já solicita no mundo as forma de sua
representação.” 281

Esta distinção repercute na distinção de dois tipos de seleção: uma derivada de


um começo na negação, dirigida por um não inicial, e outra derivada de uma afirmação,
orientada por um sim inicial. O primeiro tipo de seleção começa por um não e só é
capaz de produzir um fantasma de afirmação. O segundo tipo se constitui a partir de
uma afirmação primeira, sendo sua agressividade o resultado desta afirmação e sua
negação um epifenômeno do sim. Deleuze reafirma esse pensamento ao retomar, em
Différence et répétition, a sua interpretação do eterno retorno:

“Cabe ao eterno retorno operar a verdadeira seleção, porque ele


elimina as formas médias e extrai ‘a forma superior de tudo o que é’.
O extremo não é a identidade dos contrários, mas, antes, a
univocidade do diferente: a forma superior não é a forma infinita, mas,
antes, o eterno informal do eterno retorno através das metamorfoses e
das transformações. O eterno retorno ‘estabelece’ a diferença, porque
cria a forma superior. O eterno retorno serve-se da negação como
nachfolge e inventa uma nova fórmula da negação da negação: é
negado, deve ser negado tudo o que pode ser negado. (…) A negação
é a diferença, mas a diferença vista do menor lado, vista de baixo. Ao
contrário, endireitada, vista de cima para baixo, a diferença é
afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos; que a diferença é
objeto de afirmação; que a afirmação é ela mesma múltipla; que ela é
criação, mas também que deve ser criada, afirmando a diferença,
sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor. Mais
ainda, há elementos diferenciais positivos que determinam, ao mesmo
tempo, a gênese da afirmação e da diferença afirmada. Que haja uma
gênese da afirmação como tal é o que nos escapa toda vez que

281
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 75 (101 e 102).
deixamos a afirmação no indeterminado ou toda vez colocamos a
determinação no negativo. A negação resulta da afirmação: isto quer
dizer que a negação surge em conseqüência da afirmação ou ao lado
dela, mas somente como a sombra de um elemento genético mais
profundo — desta potência ou desta ‘vontade’ que engendra a
afirmação e a diferença na afirmação. Os que carregam o negativo não
sabem o que fazem: tomam a sombra pela realidade, nutrem
fantasmas, separam a conseqüência das premissas, dão ao
282
epifenômeno o valor do fenômeno e da essência.”

Esta citação põe um problema fundamental: o da necessidade da afirmação


comportar uma gênese. Ora a gênese da afirmação remete ao movimento do eterno
retorno que seleciona a vontade de potência afirmativa enquanto princípio da
experiência real. Como se verá a gênese da experiência real se confunde com a
subtração do conjunto dos pressupostos que organizam a filosofia da representação. No
momento, para melhor compreender a lógica que comanda essas subtrações, é preciso
esclarecer o sentido do conceito de diferença que se compõe com o conceito de
afirmação. É preciso, de início, ressaltar que, também o conceito de diferença decorre
de um procedimento de subtração: constituição..., no caso de um conjunto de subtrações
que desfiguram a filosofia da representação.

Gênese da afirmação e gênese da diferença

Segundo Deleuze,

“uma vez que o prefixo Re, na palavra representação, significa a


forma conceitual do idêntico que subordina as diferenças, não é,
portanto, multiplicando as representações e os pontos de vista que se
atinge o imediato definido como ‘sub-representativo’. Ao contrário,
cada representação componente é que deve ser deformada, desviada,

282
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 78 (104 e 105).
arrancada de seu centro. É preciso, pois, que cada ponto de vista seja
ele mesmo a coisa ou que a coisa pertença ao ponto de vista. É
preciso, pois, que a coisa nada seja de idêntico, mas que seja
esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade
do objeto visto quanto a do sujeito que vê. É preciso que a diferença
se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras
diferenças que nunca a identificam, mas a diferenciam. É preciso que
cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa
relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries
desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a
divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser
deve ver sua identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só
uma diferença entre diferenças. É preciso mostrar a diferença
diferindo.” 283

Ora, a leitura atenta desta citação revela que a gênese da afirmação se confunde
com a gênese da diferença. Pois, a rigor não há uma diferença dada a ser afirmada: a
diferença é conquistada por uma “deformação da representação”, por um
“esquartejamento da coisa”. Contudo, se, desse modo, não há mais identidade das coisas
(A é A), nem identidade do sujeito (Eu = Eu), o pensamento deve conquistar, por
diferenciação, por subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o
ponto de vista, isto é, um perspectivismo.
Deleuze retoma, assim, através de Nietzsche, duas intenções da crítica kantiana:
o projeto de uma crítica imanente e a idéia da filosofia como legisladora enquanto
filosofia. No entanto, Deleuze considera, também com Nietzsche, que a imanência e o
ideal do filósofo legislador, almejados pela crítica kantiana, fracassam, de início, pela
concepção mesma desta crítica:

“Kant não fez senão levar ao extremo uma concepção muito velha da
crítica. Ele concebeu a crítica como uma força que deveria incidir
sobre todas as pretensões ao conhecimento e à verdade, mas não sobre
o próprio conhecimento, não sobre a própria verdade. Como uma

283
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.
força que deveria incidir sobre todas as pretensões à moralidade, mas
não sobre a própria moral. Desse modo, a crítica total transforma-se
em uma política de compromisso.” 284

A transcendência da Verdade e da Moral, evidentemente, compromete, como se


verá, a intenção de uma legislação filosófica imanente. Mais ainda: a imanência fica,
também, corrompida pela incapacidade da crítica kantiana manter-se interna à razão
sem evitar o peculiar contrasenso de instituir um tribunal no qual a razão figura como
juiz e como réu. Deleuze observa:

“Faltava a Kant um método que permitisse julgar a razão de dentro,


sem lhe confiar, no entanto, o cuidado de ser juiz de si mesma. E, de
fato, Kant não realiza seu projeto de crítica imanente. A filosofia
transcendental descobre condições que permanecem exteriores ao
condicionado. Os princípios transcendentais são princípios de
condicionamento, não de gênese interna. Nós pedimos uma gênese da
própria razão e também uma gênese do entendimento e de suas
categorias: quais são as forças da razão e do entendimento? Qual é a
vontade que se esconde e se exprime na razão? Quando comparamos a
vontade de potência a um princípio transcendental, quando
comparamos o niilismo na vontade de potência a uma estrutura a
priori, desejávamos antes de tudo marcar sua diferença com as
estruturas psicológicas. Permanece que os princípios em Nietzsche
não são jamais princípios transcendentais; estes são precisamente
substituídos pela genealogia. Só a vontade de potência como princípio
genético e genealógico, como princípio legislativo, está apta para
realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.” 285

284
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 102 (73 e 74).
285
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104 (75).
A crença na Moral e na Verdade faz com que a crítica kantiana, do ponto de
vista de Nietzsche e Deleuze, comprometa a idéia do filósofo legislador. Para Kant o
que é legislador não é o pensamento, mas, como já se disse, uma de nossas faculdades:
quando o interesse da Razão é especulativo, cabe ao entendimento legislar sobre as
demais faculdades (sensibilidade, imaginação e a razão); quando se trata do interesse
prático, é a razão quem ordena o senso comum entre a imaginação e entendimento; etc.
Deleuze se indaga:

“o que finalmente se esconde na famosa unidade kantiana do


legislador e do sujeito? Nada senão uma teologia renovada, a teologia
ao gosto protestante: somos encarregados da dupla tarefa do padre e
do fiel, do legislador e do sujeito. O sonho de Kant: não suprimir a
distinção dos dois mundos, sensível e supra-sensível, mas assegurar a
unidade do pessoal nos dois mundos. A mesma pessoa como
legislador e sujeito, como sujeito e como objeto, como númeno e
como fenômeno, como padre e como fiel. (…) Esse legislador e esse
padre exercem o ministério, a legislação, a representação dos valores
estabelecidos; não fazem senão interiorizar os valores em curso.” 286

A contraposição entre a crítica transcendental e a crítica genealógica permite


acompanhar as conclusões de Deleuze e precisar o sentido de uma crítica
verdadeiramente imanente.
Deleuze destaca cinco pontos que distinguem a crítica nietzschiana da crítica
kantiana:

1) “não princípios transcendentais, que são simples condições para


pretensos fatos, mas princípios genéticos e plásticos, que dão conta do
sentido e do valor das crenças, das interpretações e das avaliações; 2)
não um pensamento que se crê legislador, porque só obedece à razão,
mas um pensamento que pensa contra a razão (…); 3) não o legislador
kantiano, mas o genealogista. O legislador de Kant é um juiz de

286
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 106 (76).
tribunal, um juiz de paz que vigia a distribuição dos domínios e a
repartição dos valores estabelecidos. A inspiração genealógica se opõe
à inspiração judiciária. O genealogista é um pouco advinho, filósofo
do futuro. (…) Para ele, também, pensar é julgar, mas julgar é avaliar
e interpretar, é criar valores. O problema do julgamento se torna o da
justiça e da hierarquia; 4) (…) a instância crítica não é o homem
realizado, nem qualquer forma sublimada do homem, como espírito,
razão, consciência de si. Nem Deus, nem homem. (…) a instância
crítica é a vontade de potência, o ponto de vista crítico é o da vontade
de potência. Mas sob qual forma? (…) O tipo crítico, o homem
enquanto quer ser ultrapassado, superado. (…); 5) O objetivo da
crítica: não os fins do homem ou da razão, mas enfim o super-homem,
o homem superado, ultrapassado. Na crítica, não se trata de justificar,
mas de sentir diferentemente: uma outra sensibilidade.” 287

Uma nova concepção da crítica envolve portanto uma nova imagem do


pensamento, uma nova ontologia e uma nova concepção da experiência: a passagem da
crítica transcendental à crítica genealógica tem como conseqüência o abandono da
imagem dogmática do pensamento em proveito de um pensamento sem imagem, do
realismo ontológico em favor da univocidade da afirmação ontológica e da questão das
condições da experiência possível em favor do problema da gênese da experiência real.
Toda uma imagem do pensamento e do ser se desfigura com a modificação do sentido
que se dá às condições nas quais o pensamento faz uma experiência: a subtração da
idéia de que a experiência depende de condições a priori, que prolonga as subtrações
dos pressupostos do Todo e do Um, e a afirmação da univocidade da diferença facultam
a Deleuze pôr o problema da gênese da experiência real e elaborar a idéia de um
empirismo transcendental, como conquista de uma afirmação diferencial.

CAPÍTULO VI

287
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 107 e 108 (77).
Idéia e Atualização

“E qual é a melhor maneira de seguir os


grandes filósofos, repetir o que eles dis-
seram, ou então fazer o que eles fizeram,
isto é, criar conceitos para problemas que
mudam necessariamente?” Gilles Deleuze
e Felix Guattari.

Deleuze considera que problema é o objeto da Idéia, sendo, portanto, a Idéia


essencialmente problemática. Aparentemente, neste ponto, retoma a definição kantiana
da Idéia. Pois, parece que, como Kant, atribui à Idéia um valor ao mesmo tempo
objetivo e indeterminado, que faz do indeterminado um momento objetivo dela, uma
vez que o objeto problemático da Idéia pode ser indiretamente determinável, e que,
finalmente, atribui-lhe um ideal de determinação completa infinita. Entretanto, não se
trata disto, Deleuze começa por subtrair da Idéia (kantiana) seu vínculo com a Razão:
ela não é mais posta como tendo nela uma origem. Se Deleuze conserva o
indeterminado, o determinável e a determinação como momentos da Idéia, é necessário
dizer que esses elementos mudam de natureza, assim como a Idéia quando separada da
Razão. A objetividade da Idéia não pode mais ser dependente dos objetos do
entendimento, nem pensada por analogia com a forma destes; perde sua função
reguladora de acompanhar os passos do entendimento para impulsioná-lo a totalizar
seus conceitos e a perseguir o ideal de uma unidade sistemática. Desvinculadas de
qualquer ideal da Razão, as idéias circulam entre as faculdades, comunicando a cada
uma delas a violência de um problema que as desperta do seu exercício empírico (sob a
forma do senso comum) e as eleva ao seu exercício superior.

A Idéia como diferencial do pensamento

Assim, se Deleuze considera evidente que a Idéia retoma os três aspectos do


Cogito (o Eu sou, como existência indeterminada; o tempo, como a forma sob a qual
esta existência é determinável; o Eu penso, como determinação) e se define as idéias
como diferenciais do pensamento, ele o faz do ponto de vista do “momento furtivo
fulgurante” no qual a forma pura do tempo cinde o Eu:
“As Idéias são exatamente os pensamentos do Cogito, as diferenciais
do pensamento. E assim como o Cogito remete a um Eu rachado —
rachado de um extremo ao outro pela forma do tempo que o atravessa
—, é preciso dizer das Idéias que elas formigam na rachadura, que
elas emergem constantemente nas bordas dessa rachadura, saindo e
entrando sem parar, compondo-se de mil maneiras. Além disso não se
trata de preencher o que não pode ser preenchido. Mas, assim como a
diferença reúne e articula imediatamente o que ela distingue, a
rachadura retém o que ela racha, as Idéias também contêm seus
elementos dilacerados. É próprio da Idéia interiorizar rachaduras e
seus habitantes.” 288

Deleuze define, nesta bela e difícil passagem, as idéias como diferenciais do


pensamento e, ao mesmo tempo, atribui sua fonte ou origem não a uma faculdade (a um
poder do espírito como, em Kant, a razão), mas à fissura onde o pensamento confronta-
se como a sua impotência essencial, à rachadura do Eu. Mais importante: não confere às
idéias o poder de cicatrizar ou preencher a rachadura. Ao contrário, tomando-a como
diferença que reúne e articula imediatamente o que distingue, considera que compete à
Idéia interiorizar a fissura e seus elementos, vale dizer, afirmar a fissura do Eu ao
constituir-se como síntese ideal da diferença. Mais ainda: como diferenciais do
pensamento, as idéias prolongam os efeitos da forma pura e vazia do tempo, enquanto
multiplicidades, que nascem na rachadura do Eu. Dissolvem, ao constituírem-se
enquanto tais, as unidades e seus múltiplos: enquanto diferenciais do pensamento,
subtraem-lhe os pressupostos do Um e do Todo. Não é outro, aliás, o efeito de sua
circulação entre as faculdades. No encontro com as idéias, as faculdades despertam de
seu sonho com a concórdia de um senso comum e com a unidade do todo da experiência
possível.
Pelo menos é o que indica a importante seqüência do texto comentado:

“Não há na Idéia qualquer identificação ou confusão, mas uma


unidade objetiva problemática interna do indeterminado, do
determinável e da determinação. É o que talvez não apareça
suficientemente em Kant: dois dos três momentos, segundo ele, têm

288
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 220 (278).
características extrínsecas (se a Idéia é em si mesma indeterminada,
ela só é determinada em relação aos objetos da experiência e só
contém o ideal de determinação em relação ao conceitos do
entendimento). Ainda mais, Kant encarnava esses momentos em
Idéias distintas: o Eu é sobretudo indeterminado, o Mundo é
determinável e Deus é o ideal da determinação. Talvez seja necessário
procurar aí as verdadeiras razões pelas quais Kant, como os pós-
kantianos o criticaram, se atém ao ponto de vista do condicionamento,
sem atingir o da gênese. E se o erro do dogmatismo é sempre
preencher o que separa, o do empirismo é deixar exterior o separado;
neste sentido, há ainda empirismo demais na Crítica (e dogmatismo
demais nos pós-kantianos). O horizonte ou o foco, o ponto ‘crítico’
em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir ainda
não está assinalado.” 289

Com sua teoria diferencial do pensamento, sobretudo com seu conceito da Idéia
como diferencial do pensamento, Deleuze parece ir além do dogmatismo e do
empirismo ao atingir o ponto crítico em que a diferença exerce a função de reunir. Ele
começa por subtrair o que há de empirismo na concepção kantiana da Idéia — as
características extrínsecas do determinável (sua referência aos objetos da experiência) e
da determinação (sua relação com os conceitos do entendimento). Assim afirma que dx
(o símbolo da diferença) é a própria Idéia:

“O símbolo dx aparece ao mesmo tempo como indeterminado, como


determinável e como determinação. A estes três aspectos
correspondem três princípios que formam a razão suficiente: ao
indeterminado como tal (dx, dy) corresponde um princípio de
determinabilidade; ao realmente determinável (dy/dx), corresponde um
princípio de determinação recíproca; ao efetivamente determinado
(valores de dy/dx), corresponde um princípio de determinação
completa. Em suma, dx é a Idéia — a Idéia platônica, leibniziana ou
kantiana, o ‘problema’ e seu ser.” 290

Deleuze leva ainda adiante o movimento das subtrações necessárias para a

289
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 221 (278 e 279).
constituição da teoria diferencial da Idéia. Seu ponto de partida é o problema do cálculo
diferencial. Trata-se, para ele, de acompanhar as interpretações matemáticas do cálculo
diferencial no sentido de dar à diferença um estatuto positivo e diferenciado e evitar
remeter o diferencial à forma do negativo. Contudo, a matemática, a avaliação das
interpretações do cálculo diferencial, apesar da sua importância como encontro,
funciona, sobretudo, como um intercessor da filosofia da diferença. Mas Deleuze quer,
com sua teoria da Idéia, determinar a Dialética — como domínio de uma arte dos
problemas — sem reduzi-la às ciências ou teorias, pensadas como campo das soluções.
O conceito de diferencial tem, na sua filosofia, o sentido de pensar a natureza da
diferença como diferença de diferença. Desse modo, como se viu, Deleuze define a
Idéia como pensamento do Cogito ou como diferencial do pensamento. Como
diferencial do pensamento, a Idéia é indeterminada, determinável e realmente
determinada. A cada aspecto corresponde, respectivamente, um princípio: o princípio de
determinabilidade, que define a quantitabilidade, o princípio de determinação recíproca,
que define a qualitabilidade, e o princípio de determinação completa, que define a
potencialidade.
Tal como se analisou a propósito do conceito de força em Nietzsche, toda
quantidade é diferença de quantidade e está em uma relação de determinação recíproca
com outras quantidades. Em Différence et répétition, Deleuze retoma o problema da
gênese da diferença — seu elemento sintético (a relação do diferente com o diferente) e
seu elemento diferenciante (a relação de determinação recíproca constitutiva de cada
diferença) — relacionando-o com a questão do contínuo como elemento da Idéia, vale
dizer, como causa ideal da quantitatibilidade. E precisa: “A continuidade, tomada como
sua causa, forma o elemento puro da quantitatibilidade. Este não se confunde nem com
as quantidades fixas da intuição (quantum), nem com as quantidades variáveis como
conceitos do entendimento (quantitas). Além disso, o símbolo que o exprime é
inteiramente indeterminado: dx nada é em relação a x, como dy em relação a y.” 291
Deleuze define o elemento puro da quantitatibilidade pelas subtrações ao cálculo
tanto do quantum como da quantitas. Essas operações são constituintes da equação
diferencial. Tomando como exemplo a diferença entre a equação algébrica do círculo

290
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 222 (279 e 280).
291
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 222 (280).
(x2 + y2 – R2 = 0) e a equação diferencial da circunferência (ydy + xdx = 0), ele
comenta: “os zeros de dx e de dy exprimem o aniquilamento do quantum e da quantitas,
do geral e do particular, em proveito do universal e de seu aparecimento. É esta a força
da interpretação de Bordas-Demoulin: o que se anula em dy/dx ou 0/0 não são as
quantidades diferenciais, mas somente o individual e as relações do individual na
função (por “individual”, Bordas entende ao mesmo tempo o particular e o geral).” 292
Essas considerações permitem pensar que a teoria da Idéia constitui a razão e a
necessidade do procedimento de subtração: constituição.... A Idéia como diferencial do
pensamento interioriza os movimentos de subtração: constituição.... No caso do
exemplo em questão, as relações diferenciais asseguram ao mesmo tempo as subtrações
do particular e do geral e a constituição do universal que é próprio da idéia da
circunferência. Pode-se, portanto, sustentar a hipótese de que o procedimento de
subtração: constituição... tem sua razão na natureza mesma da Idéia como diferencial do
pensamento. Assim, cabe considerar que, no movimento da obra de Deleuze, o
procedimento de subtração: constituição..., que conforma a construção dos problemas
postos pela filosofia da diferença, se faz de acordo com a definição, nesta filosofia, da
Idéia como diferença e da Dialética como essencialmente problemática.
Fazendo prosseguir a reflexão sobre o universal da Idéia, Deleuze destaca, ainda,
um segundo elemento da relação diferencial: a qualitabilidade pura. O universal que é o
diferencial não é completamente indeterminado, pois se ele não possui quantidades
precisas (particular ou geral), há relações do universal: o universal é determinado pelo
princípio de determinação recíproca. O universal é, assim, diferençado, vale dizer,
constituído por um conjunto de relações recíprocas entre singularidades, sem ser, no
entanto, diferenciado, ou seja, sem ser especificado por valores quantitativos. Deleuze
esclarece:

“Dx e dy são completamente indiferenciados no particular como no


geral, mas são completamente diferençados no universal e por ele. A
relação dy/dx não é uma fração que se estabelece entre quanta
particulares na intuição, nem mesmo uma relação geral entre
grandezas variáveis ou quantidades algébricas. Cada termo só existe

292
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 222 (280 e 291).
absolutamente em relação com o outro; não é necessário, nem mesmo
possível, indicar uma variável independente. Eis por que, agora, um
princípio de determinação recíproca corresponde à determinabilidade
da relação. É numa síntese recíproca que a Idéia põe e desenvolve sua
função efetivamente sintética.” 293

Segundo a análise de Deleuze, a relação diferencial é determinável sob forma


qualitativa. A natureza do universal é analisada também do ponto de vista da qualidade:

“O universal em relação a uma qualidade não deve, pois, ser


confundido como os valores individuais que ele ainda possui em
relação a uma outra qualidade. Em sua função de universal, ele não
exprime simplesmente esta outra qualidade, mas um elemento puro da
qualitabilidade. É neste sentido que a Idéia tem como objeto a relação
diferencial: ela integra, então, a variação, de modo algum como
determinação variável de uma relação supostamente constante
(‘variabilidade’), mas, ao contrário, como grau de variação da própria
relação (‘variedade’), a que correspondem, por exemplo, as séries
qualificadas das curvas. Se a Idéia elimina a variabilidade, é em
proveito do que se deve chamar de variedade ou multiplicidade. Como
universal concreto, a Idéia opõe-se ao conceito do entendimento e
possui uma compreensão tanto mais vasta quanto é grande a sua
extensão. A dependência recíproca dos graus da relação e, em última
análise, a dependência recíproca das relações entre si, eis o que define
a síntese universal da Idéia (Idéia da Idéia, etc.).” 294

Ainda uma vez pode-se compreender a determinação do universal a partir do


procedimento de subtração: constituição..., agora compreendido como operação mesma
da diferençação. Assim como a subtração dos quanta e da quantitas é essencial para a
constituição do universal da quantidade, a quantitabilidade, agora é através da subtração
da variabilidade que se constitui a multiplicidade como universal concreto da qualidade,
a qualitabilidade. A subtração de constantes e de variáveis de uma relação supostamente
constante é agente de virtualização, ou seja, de determinação das sínteses universais da

293
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 223 (282).
294
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 224 (282 e 283).
Idéia. E tais sínteses, ao subtraírem da variação a variabilidade de uma relação suposta
como constante abandonam, o relativismo, que se contenta com o pensamento da
relatividade da verdade, e constitui, com a afirmação da variedade definida como grau
de variação da própria relação, o perspectivismo, que, como já se disse, conquista a
afirmação da verdade do relativo.
A análise efetuada por Deleuze em seu comentário à crítica de Salomom
Maïmom à dualidade kantiana do conceito e da intuição revela que a conquista de
universais concretos — nos quais a compreensão da Idéia vai no mesmo sentido que a
sua extensão — através do procedimento de subtração: constituição..., imposto pela
teoria da Idéia como diferencial, não se separa da instauração de uma perspectiva
genética ou de um combate contra a redução do transcendental a um simples
condicionamento. É do ponto de vista da Idéia como diferencial do pensamento que
Deleuze retoma a crítica de Maïmom:

“O gênio de Maïmom consiste em mostrar quanto o ponto de vista do


condicionamento é insuficiente para uma filosofia transcendental: os
dois termos da diferença devem ser igualmente pensados — isto é, a
determinabilidade deve ela própria ser pensada como ultrapassando-se
na direção de um princípio de determinação recíproca. Os conceitos
do entendimento conhecem bem a determinação recíproca, por
exemplo, na causalidade ou na ação mútua, mas só de um modo
totalmente formal e reflexivo. A síntese recíproca das relações
diferenciais, como fonte da produção dos objetos reais, tal é a matéria
da Idéia no elemento pensado da qualitabilidade em que ela se insere.
Disso deriva uma tríplice gênese: a das qualidades produzidas como as
diferenças de objetos reais de conhecimento; a do espaço e do tempo
como condições do conhecimento das diferenças; a dos conceitos
como condições para a diferença ou distinção dos próprios
conhecimentos.” 295

Deleuze, finalmente, apresenta o terceiro momento da Idéia como relação


diferencial: a potencialidade pura e o princípio de determinação completa. Assim como
a subtração do quantum e da quantitas tornava possível a determinação da

295
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 225 (283 e 284).
quantitabilidade e a subtração das qualificações constituía o elemento da
qualitabilidade, desta vez é a despontencialização que condiciona a potencialidade pura.
Qual é a natureza do princípio de determinação completa, que corresponde ao elemento
da potencialidade pura? Deleuze distingue assim a determinação completa da
determinação recíproca: “Esta concernia às relações diferenciais e seus graus, suas
variedades na Idéia correspondendo a formas diversas. A determinação completa
concerne aos valores de uma relação, isto é, à composição de uma forma ou à repartição
dos pontos singulares que a caracterizam, por exemplo, quando a relação torna-se nula,
ou infinita, ou 0/0.” 296
A conseqüência do estabelecimento dos princípios de determinabilidade, que
define a quantitabilidade, de determinação recíproca, que estabelece a qualitabilidade, e
de determinação completa, que conquista a potencialidade, é dar à Idéia o estatuto de
um problema inteiramente autônomo, independente de sua solução. Ela é definida

“como um universal concreto em que a extensão e a compreensão


caminham juntas, não só porque ela compreende em si a variedade ou
a multiplicidade, mas porque compreende a singularidade em cada
uma de suas variedades. Ela subsume a distribuição dos pontos
relevantes ou singulares; toda sua distinção, isto é, o distinto como
característica da Idéia, consiste precisamente em repartir o ordinário e
o relevante, o singular e o regular, e em prolongar o singular sobre os
pontos regulares até a vizinhança de outra singularidade. Para além do
individual, para além do particular, assim como do geral, não há um
universal abstrato: o que é pré-individual é a própria singularidade.” 297

A despeito da linguagem, ou melhor, da terminologia matemática, como já foi


mencionado, as considerações sobre o cálculo diferencial e suas diferentes
interpretações no devir da matemática têm o sentido de conquistar a positividade da
Idéia como problema e de estabelecer a Dialética como domínio positivo e autônomo:
independente com relação às matemáticas e às demais ciências definidas como campos
de resolubilidade de problemas, estes pensados como essencialmente dialéticos.
De um lado, Deleuze atribui um sentido amplo ao cálculo (mais abrangente que

296
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 228 (287).
297
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 228 (287).
o cálculo diferencial, enquanto um dos instrumentos de expressão dos problemas
matemáticos) que designa o problema e a instauração de seu campo de solução. Neste
sentido, ele pode distinguir tantos cálculos quantos os domínios engendrados pelos
problemas dialéticos: “Se a Idéia é a diferencial do pensamento, há um cálculo
correspondente à cada Idéia, alfabeto do que significa pensar. O cálculo diferencial não
é cálculo trivial do utilitarista, o tosco cálculo aritmético que subordina o pensamento a
outra coisa e a outros fins, mas a álgebra do pensamento puro, a ironia superior dos
próprios problemas — o único cálculo ‘para além do bem de do mal’.” 298 De outro lado,
se Deleuze distingue por natureza as instâncias dos problemas e de suas soluções, isto
não significa uma separação abstrata entre os dois domínios. Ao contrário, enfatiza a
existência de uma relação de pressuposição recíproca entre os problemas e suas
soluções. Pois, segundo a teoria da Idéia de Deleuze, se os problemas são recobertos
pelas soluções, eles subsistem na Idéia que os refere às suas condições e organiza a
gênese das próprias soluções. 299

A Idéia como multiplicidade

Mesmo que, em Différence et répétition, Deleuze afirme uma autonomia da


Dialética face às ciências, a concepção desta autonomia e a sua definição da Dialética só
o aproximam de Platão na justa medida que lhe permitem dele diferenciar-se.
Rigorosamente, o conceito deleuziano de Idéia pretende reverter o conceito platônico de
Idéia, do mesmo modo que, como se verá, o conceito deleuziano de conceito reverte o
conceito aristotélico de conceito.
Como se observou na introdução, segundo Deleuze o conceito platônico de Idéia
envolve e desenvolve o problema da seleção dos pretendentes, problema que exige,
como diz Deleuze, a introdução da transcendência da Idéia no campo da imanência e,
assim, confere sentido à Idéia como fundamento (que possui a qualidade em primeiro
lugar e dá a participar) que assegura a distinção entre a cópia — imagem dotada de
semelhança, que mantém uma relação de semelhança espiritual com o modelo — e os

298
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 235 (296).
299
Cf.Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 70 (57).
simulacros — imagens sem semelhança, diferenças não subordinadas ao modelo do
Mesmo. A questão deleuziana do combate à doutrina do julgamento, questão que
também se exprime positivamente como afirmação do ponto singular onde a criação e
o conceito remetem um ao outro, exige e se desenvolve em novos problemas, a começar
pela elaboração do problema da reversão do conceito platônico de Idéia: como pensar a
Idéia, não como essência eterna ou como a Identidade de um modelo, mas como
multiplicidade e como problema?
A definição deleuziana da Idéia como multiplicidade evidencia que, também
neste aspecto, a reversão do platonismo se faz por diferenciação ou por subtração:
constituição.... No reemprego que faz da palavra multiplicidade, Deleuze destaca a sua
forma substantiva. Neste sentido, a multiplicidade subtrai-se às categorias do Um e do
Múltiplo. “O verdadeiro substantivo, a própria substância, é a ‘multiplicidade’, que
torna inútil tanto o uno quanto o múltiplo. A multiplicidade variável é o quanto, o como,
o cada caso. Cada coisa é uma multiplicidade enquanto encarna a Idéia.” 300 Desse ponto
de vista, a Idéia deixa de ser um fundamento que mede as pretensões de pretendentes. A
rigor, ela desfaz a equação platônica da existência com a pretensão. No lugar dos
pretendentes, emergem potências, signos e seus problemas. Cabe à Idéia não mais
fundar o julgamento, mas, como multiplicidade, de um lado problematizar os
acontecimentos humanos e, de outro, desenvolver como acontecimentos humanos as
condições de um problema. 301
A definição da Idéia como multiplicidade prolonga e prossegue o movimento de
subtração: constituição... que a constitui como diferencial (vale dizer, como
deflagradora de subtrações-constituições) do pensamento. As condições que, segundo
Deleuze, permitem falar de multiplicidade são as mesmas que permitem definir a Idéia.
Neste sentido, ele retoma para definir uma multiplicidade as conquistas efetuadas com a
sua análise do indeterminado, do determinável e do determinado, bem como de seus
respectivos princípios de determinabilidade, de determinação recíproca e de
determinação completa, que definem, cada qual, respectivamente, a quantitabilidade, a
qualitabilidade e a potencialidade, enquanto características da Idéia. Como se
evidenciou, estes princípios são subtrativos. Portanto, ainda uma vez, agora com

300
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 236 (297).
301
Cf. Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 70 (58).
respeito à Idéia como multiplicidade, a hipótese do movimento de subtração:
constituição... vem mostrar seu valor heurístico: de um lado, como se revelará na
definição de Deleuze, as condições de emergência de uma Idéia são subtrativas e
genéticas ou constituintes; de outro lado, a Idéia que emerge ou que se constitui, se bem
determinada, autentica suas condições.
Gilles Deleuze apresenta a Idéia como uma multiplicidade definida e contínua
com n dimensões. Por dimensões, entende as coordenadas das quais um fenômeno
depende; por continuidade, compreende o conjunto das relações entre as mudanças
dessas coordenadas; por definição, considera os elementos reciprocamente
determinados por essas relações. Deste modo, assinala três condições que permitem
definir o momento de emergência da Idéia.
Primeira condição:

“É preciso que os elementos da multiplicidade não tenham forma


sensível, nem significação conceitual, nem, desde então, função
assinalável. Eles não têm existência atual e são inseparáveis de um
potencial ou de uma virtualidade. É neste sentido que eles não
implicam qualquer identidade prévia, nenhuma posição de algo que se
poderia dizer uno ou o mesmo; mas, ao contrário, sua indeterminação
torna possível a manifestação da diferença enquanto liberada de toda
subordinação.” 302

Segunda condição:

“É preciso, com efeito, que estes elementos sejam determinados, mas


reciprocamente, por relações recíprocas que não deixem subsistir
qualquer independência. Tais relações são precisamente ligações
ideais, não localizáveis, seja porque caracterizam a multiplicidade
globalmente, seja porque procedem por justaposição de vizinhanças.
Mas a multiplicidade é sempre definida de maneira intrínseca, sem
que dela se saia e sem que se recorra a um espaço uniforme em que ela
estaria mergulhada.” 303

Terceira condição:

302
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (297).
“Uma ligação múltipla ideal, uma relação diferencial, deve se atualizar
em correlações espaço-temporais diversas, ao mesmo tempo que seus
elementos encarnam-se atualmente em termos e formas variadas.
Assim a idéia se define como estrutura. A estrutura, a Idéia , é o ‘tema
complexo’, uma multiplicidade interna, isto é, um sistema de ligação
múltipla não-localizável entre elementos diferenciais, que se encarna
em relações reais e em termos atuais.” 304

A primeira condição é, evidentemente, subtrativa: os elementos de uma


multiplicidade se subtraem a toda forma sensível, significação conceitual ou função
assinalável. Contudo, esta condição também é constituinte. Ela constitui a Diferença
como liberta de toda subordinação. Mas aqui a operação de constituição pode tornar-se
desapercebida, basta que se considere a Diferença como um dado e não como um
conceito que constitui o diverso (o dado) como Diferença. Pois não se deve esquecer
jamais que o conceito de Diferença deve tornar pensável uma relação (sínteses
conectivas, conjuntivas e disjuntivas 305 ) do diferente com o diferente, ou seja, a
Diferença como relação que reúne e articula imediatamente o que ela distingue
enquanto tal. Assim, a subtração das formas sensíveis, das significações conceituais e
das funções assinaláveis não revela por si só a Diferença, pois a Diferença não é, na
filosofia da diferença, um dado apenas recoberto ou obscurecido por pressupostos
dogmáticos: a diferença, suposta pela representação como um dado, deve ser subtraída
do pensamento para que o conceito de Diferença possa ser criado ou afirmado. Pode-se
associar, a respeito deste aspecto do problema da diferença, a interpretação deleuziana
da ontologia nietzchiana: se não há verdade do mundo pensado nem realidade do mundo
sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real. Neste sentido, a
subtração do pressuposto do ser como um dado desencadeia no pensamento de
Nietzsche, como foi sublinhado no capítulo “gênese e experiência”, não a supressão do
conceito de ser, mas uma nova concepção do ser. Como interpreta Deleuze: “a
afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação, nem um elemento que se daria em
apoio à afirmação. A afirmação não é potência do ser, ao contrário. A própria afirmação

303
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (298).
304
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 237 (298).
305
Sobre a natureza imanente dessas sínteses, ver Gilles Deleuze e Felix Guattari, L’Anti-Œdipe.
é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua potência.” 306 O mesmo raciocínio
vale para a Diferença: a subtração dos pressupostos da imagem dogmática do
pensamento não desnuda a Diferença como realidade dada. Apenas possibilita uma nova
concepção da Diferença, sua afirmação como correlato da Repetição com o
desenvolvimento da teoria da Idéia como multiplicidade virtual.
A segunda condição diz respeito exatamente à constituição de um sistema
imanente de ligações ideais que estabelece a relação do diferente com o diferente. De
um lado, as ligações ideais não se fazem num espaço uniforme e homogêneo que
conteria a multiplicidade, ao contrário, como se verá, a atualização das relações virtuais
constitui blocos espaço-temporais concretos, vale dizer, inseparáveis do processo de
atualização. De outro lado, tais ligações não se fazem a partir da identidade de um Eu
penso. Portanto, a imanência das relações ideais se conquista, por subtração:
constituição..., com a construção de um campo de imanência sub-representativo,
impessoal e pré-individual — a multiplicidade ideal não admite qualquer dependência
em relação ao idêntico no sujeito ou no objeto, nem às idealidades, a priori, do espaço e
do tempo, uniformes e homogêneos.
A terceira condição apresenta uma outra dimensão da constituição. Não mais a
constituição de relações de diferençação, a Idéia como virtualidade, mas a constituição
genética de relações de diferenciação como atualização da multiplicidade virtual em
correlações reais e em termos atuais. Com a terceira condição, Deleuze, num encontro
com o estruturalismo matemático, estabelece um ponto fundamental: o método genético
pode realizar suas ambições desde que se compreenda que

“a gênese não vai de um termo atual, por menor que seja, a um outro
termo atual no tempo, mas vai do virtual a sua atualização, isto é, da
estrutura a sua encarnação, das condições de problemas aos casos de
solução, dos elementos diferenciais e de suas ligações ideais aos
termos atuais e às correlações reais diversas que, a cada momento,
constituem a atualidade do tempo. Gênese sem dinamismo, evoluindo
necessariamente no elemento de uma supra-historicidade; gênese
estática que se compreende como o correlato de uma síntese passiva e

19
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
que, por sua vez, esclarece essa noção.” 307

Esta criação conceitual (o conceito de Idéia como uma multiplicidade), ao se


furtar à oposição estrutura/gênese, aproxima a estrutura do acontecimento, bem como a
estrutura do sentido, e faz desses termos componentes do conceito de Idéia: “O que se
chama estrutura, sistema de relações e de elementos diferenciais, é igualmente, do ponto
de vista genético, sentido, em função das relações e dos termos atuais em que se
encarna. A verdadeira oposição é entre a Idéia (estrutura-acontecimento-sentido) e a
representação.” 308 Convém destacar que, deste ponto de vista, a Idéia (a diferencial do
pensamento) como multiplicidade virtual, subtrai-se ao campo do Saber, torna-se o
elemento de um aprender infinito e se constitui, necessariamente, como inconsciente.
Conforme resulta das análises precedentes, é a crítica da representação, a
subtração dos postulados de sua imagem dogmática do pensamento, que se prolonga na
subtração ao conceito da designação, da manifestação e da significação e que direciona
o pensamento deleuziano no sentido da afirmação da virtualidade da Idéia, que, por sua
vez, assegura necessidade à subtracção da possibilidade do conceito. 309 Pois é o
conceito de Idéia que dá necessidade à subtração do postulado do Saber e nada tem a
ver com uma possibilidade. Como diz Deleuze:

“Na verdade, a Idéia não é o elemento do saber, mas de um ‘aprender’


infinito que, por natureza, difere do saber, pois aprender evolui
inteiramente na compreensão dos problemas enquanto tais, na
apreensão e condensação das singularidades, na composição dos
corpos e acontecimentos ideais. (…) Em suma, a representação e o
saber modelam-se inteiramente sobre as proposições da consciência
que designam os casos de solução; mas, por si mesmas, estas
proposições dão uma noção totalmente inexata da instância que elas
resolvem ou esclarecem, instância que as engendra como casos. A

307
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 238 (298).
308
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 247 (309).
22
Tais subtrações, em Différence et répétition, são inseparáveis da constituição do conceito de Idéia como
multiplicidade virtual em lugar do conceito tal como definido na representação. Em Qu’est-ce que la
philosophie?, Deleuze e Guattari, ao definirem a filosofia como arte de criação de conceitos e o conceito
como a Idéia filosófica, mantêm, como dimensão fundamental da sua definição própria, as subtrações da
designação, da manifestação e da significação como essenciais para a sua conquista filosófica do
conceito.
Idéia e o ‘aprender’ exprimem, ao contrário, a instância problemática,
extra-proposicional ou sub-representativa: a apresentação do
inconsciente, não a representação da consciência.” 310

Como compreender esta distinção entre apresentação do inconsciente e


representação da consciência? Ou melhor: em que medida as idéias são, para Deleuze,
necessariamente inconscientes? Estas questões remetem a uma série de problemas.
Inicialmente, no âmbito da teoria diferencial do pensamento, aos problemas da
“origem” das idéias e de suas relações com as faculdades, em seu exercício superior e
disjunto. A seguir, este problema articula-se a outro: como o pensamento pode encontrar
em si algo que ele não pode pensar e que, entretanto, é o que ele deve pensar?
Como já se viu, Deleuze enfrenta o primeiro problema subtraindo toda relação
originária da Idéia com o exercício empírico de qualquer faculdade em particular. A
Idéia deixa de ser pensada tanto como objeto da razão quanto como objeto do
entendimento, como o fora, respectivamente, definida por Kant e por Mäimon. Mesmo
se a Idéia não é objeto de qualquer faculdade, seja no seu exercício empírico, seja no
seu exercício superior, ainda assim ela percorre e concerne a todas as faculdades em seu
exercício transcendente. E ela o faz não do ponto de vista de faculdades já constituídas,
pois, segundo Deleuze, é a Idéia que, no seu percurso, dá conta simultaneamente da
gênese de uma faculdade como tal e do seu exercício superior. Deleuze mostra esse
poder de gênese em uma série de curtas análises que assumem o papel de exemplos.
Que se destaque, ao acaso, uma: “Considere-se a multiplicidade social: ela determina a
sociabilidade como faculdade, mas também o objeto transcendente da sociabilidade, que
não pode ser vivido nas sociedades atuais em que a multiplicidade se encarna, mas que
deve ser vivido e só pode ser vivido no elemento da agitação das sociedades (a saber,
simplesmente, a liberdade, sempre recoberta pelos restos de uma antiga ordem e pelas
premissas de uma nova).” 311
O ponto fundamental, para o pensamento da Diferença, é que a teoria da Idéia,
ao possibilitar pensar a atividade do pensamento como resultante de um acordo-
discordante das faculdades em seu exercício superior, não reintroduz de nenhum modo,
no pensamento, a forma do senso comum. Deleuze enfatiza:

310
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 248 (310 e 311).
311
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 250 (312).
“O que parecia corresponder à Diferença, que articula ou reúne por si
mesma, era esta Discordância acordante. Portanto, há um ponto em
que pensar, falar, imaginar, sentir, etc., são uma mesma coisa, mas
esta coisa afirma somente a divergência das faculdades em seu
exercício transcendente. Trata-se, portanto, não de um senso comum,
mas, ao contrário, de um “para-senso” (no sentido de que o paradoxo é
também o contrário do bom senso). Este para-senso tem as Idéias
como elementos, precisamente porque as Idéias são multiplicidades
puras que não pressupõem qualquer forma de identidade num senso
comum, mas que, ao contrário, animam e descrevem o exercício
disjunto do ponto de vista transcendente.” 312

A teoria diferencial da Idéia subtrai a dependência das idéias ao primado de uma


faculdade (razão ou entendimento) como sua fonte ou origem. Ela desenvolve e apóia a
teoria diferencial do pensamento, dando consistência a um “para-senso” (ou acordo-
discordante das faculdades em seu exercício superior) constituinte do exercício superior
das faculdades. Conseqüentemente, as idéias, como multiplicidades diferenciais, são
objetos de um aprender paradoxal (não de um Saber) que se nutre de um movimento
criativo inconsciente, de um movimento extra-proposicional e não atual das idéias no
para-senso que se conjuga como o exercício não empírico e paradoxal das faculdades.
Deleuze recusa, como já se sabe, o postulado que faz do pensamento a unidade
ou a forma da identidade de todas as faculdades. O pensamento torna-se, na filosofia da
diferença, uma faculdade entre as outras. Definido, como as outras, por seu objeto
próprio no seu exercício superior, ele é, no entanto, considerado como a “origem
radical” das idéias, definidas como diferenciais do pensamento. Como conciliar estas
duas formulações contrárias: as idéias não são o objeto de nenhuma faculdade particular
e as idéias têm, no pensamento, a sua “origem radical”. Deleuze relaciona estas
proposições aparentemente contraditórias considerando, inicialmente, que

“não é de modo algum a um Cogito, entendido como proposição da


consciência ou como fundamento, que as Idéias se reportam, mas ao
Eu rachado de um cogito dissolvido, isto é, ao universal a-
fundamento, que caracteriza o pensamento como faculdade em seu

312
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 250 (313).
exercício transcendente. As Idéias não são objeto de uma faculdade
particular, mas concernem singularmente a uma faculdade particular, a
tal ponto que se pode dizer: elas saem daí (para constituir o ‘para-
senso’ de todas as faculdades). Mais uma vez: que significa, neste
caso, sair ou encontrar a sua origem? De onde vêm as Idéias, de onde
vêm os problemas, seus elementos e relações ideais?” 313

Admitindo-se que as idéias têm uma relação singular com o pensamento apenas
quando este conquista seu exercício superior, deve-se esclarecer: o que significa esta
distinção entre ser objeto de uma faculdade particular e concernir singularmente a uma
faculdade particular? Sem esclarecer este ponto, como compreender aquele outro que se
refere a uma “origem radical” das idéias?
As idéias não são objeto de uma faculdade particular; isto significa que elas não
são o correlato objetivo de uma potência natural e particular. Ao contrário, elas são
pensadas como multiplicidades diferenciais que violentam o exercício empírico das
faculdades. São assim potências subtrativas e constituintes que dão consistência às
subtrações dos postulados que apresentam as faculdades como potências naturais
votadas por natureza a um senso comum e a um bom senso. Mas, segundo a análise de
Deleuze, o ponto interessante e pertinente, no momento, é mostrar que, embora ser
objeto de uma faculdade não se mostre um destino para as idéias, isto não exclui outras
aventuras e relações de outro tipo das idéias com as faculdades. Ao mesmo tempo que
se subtraem à forma do objeto e violentam o exercício empírico das faculdades
(elevando-as a um exercício superior), as idéias conservam, ainda assim, uma relação
singular com o pensamento no seu exercício superior: encontram aí sua “origem
radical”.
O complexo questão-problema

O pensamento no seu exercício superior encontra seu objeto próprio — o


cogitandum ou o impensável que é, entretanto, o que deve ser pensado — e é, nesta
medida, remetido ao Eu rachado de um Cogito dissolvido, isto é, ao seu universal a-
fundamento. Um pensamento sem fundamentos subjetivos ou objetivos, como pode ele

313
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 251 (314).
pensar? Ou sucumbe a um ceticismo generalizado ou afirma o acaso e torna-se criador.
Se a filosofia de Deleuze afirma o acaso deve-se dizer que o pensamento, no seu
exercício superior, expõe-se ao caos, e, em conseqüência, à prova do seu eterno retorno
como sua origem radical. Todavia, não basta uma aproximação abstrata entre o
pensamento e as idéias. Deve-se buscar a questão que os relaciona e assim torna
concreta a relação das idéias com o pensamento como sua uma origem radical. A obra
de Deleuze explicita esta questão? Différence et répétition, como se verá, contrapõe, à
imagem clássica do pensamento que define o movimento do pensamento como uma
passagem do hipotético ao apodítico, uma outra imagem que, segundo Deleuze, define-
se pelo complexo ontológico questão-problema. É do ponto de vista desta nova imagem
do pensamento, a qual se expressa na teoria diferencial do pensamento, que se pode
relacionar as idéias ao pensamento como sua “origem radical”.
Deleuze esclarece que o complexo questão-problema

“deixou de ser considerado como algo que exprime um estado


provisório e subjetivo na representação do saber, para tornar-se a
intencionalidade do Ser por excelência ou a única instância a que o
Ser, propriamente falando, responde, sem que por isso a questão seja
suprimida ou ultrapassada, pois, só ela tem uma abertura coextensiva
àquilo que deve responder-lhe e que só pode responder-lhe mantendo-
a, repassando-a, repetindo-a. Esta concepção da questão como algo de
alcance ontológico anima tanto a obra de arte quanto o pensamento
filosófico. A obra desenvolve-se a partir, em torno de uma rachadura
que ela nunca vem preencher.” 314

Todavia, essas considerações não são suficientes, ainda não dão conta da questão que
torna relevante para o pensamento de Gilles Deleuze o complexo questão-problema:
permanece abstrata a idéia de uma origem radical das idéias.
De acordo com a orientação geral desta tese (que vê a filosofia de Gilles Deleuze
desenvolver-se como combate ao sistema e à doutrina do julgamento) tais problemas
tornam-se concretos, isto é, articulados com a questão que desenvolvem, sempre que se
relacionar o complexo questão-problema e o problema da origem radical das idéias ao

314
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 252 (315).
ponto singular no qual o pensamento filosófico enfrenta a questão do sentido da
existência.
Deleuze encontra-se com esta questão na sua interpretação do sentido da
ontologia nietzschiana. Sua análise sugere que a questão do sentido da existência (ou “O
que é a justiça?”) está na origem da compreensão nietzschiana do sentido trágico da
existência. Afirma mesmo que Nietzsche conquista este sentido quando expõe o seu
pensamento a uma decisão: a existência é culpada ou inocente? Com esta questão,
Nietzsche determina uma dimensão genealógica na qual configura-se uma bifurcação
para o pensamento filosófico: a culpabilização da existência desenvolve-se na doutrina
do julgamento (ou, para usar a terminologia nietzschiana, o julgamento da existência
desenvolve-se no niilismo, que por sua vez, segundo Deleuze, diferencia-se em tipos:
negativo, reativo e passivo) ou a afirmação da inocência da existência desdobra-se, na
filosofia nietzschiana e nas filosofias da imanência, no caso da filosofia da diferença,
com as afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade. A partir desta questão-
decisão ontológica, pode-se compreender não apenas a necessidade do complexo
questão-problema, mas também a necessidade de que as idéias não sejam objeto de
nenhuma faculdade particular e que tenham uma “origem radical” no pensamento. Pois,
assim como a decisão nietzschiana que afirma a inocência da existência conjuga-se, no
desenvolvimento da doutrina do eterno retorno, com a afirmação do ser do devir, as
idéias, no pensamento de Gilles Deleuze, também nascem como decisão e estão, nesta
medida, implicadas na interpretação que sustenta a natureza seletiva do eterno retorno
como eterno retorno da Diferença.
Submetido à prova do seu eterno retorno, o pensamento deleuziano seleciona
(excluindo no seu movimento centrífugo o retorno do negativo e, em conseqüência, a
doutrina do julgamento) o pensar como afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade. Assim, a afirmação da inocência da existência que ressoa no
desenvolvimento da obra deleuziana ressoa também na sua teoria diferencial do
pensamento e na sua teoria das três sínteses do tempo, sobretudo na terceira síntese do
tempo como futuro, que introduz, no pensamento, a forma vazia do tempo e, com ela, a
fissura no Eu bem como o Outro no pensamento. Além disto, a afirmação da inocência
da existência, que se exprime nas afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade
submete todas as questões (O que é pensar?; o que é o Ser?; o que é o tempo?; o que é
falar?; o que é desejar?; o que é a sociabilidade?; o que é a ciência?; o que é a arte?; o
que é a filosofia? etc.) à prova do eterno retorno da Diferença. Neste sentido, é o
pensamento em devir — afetado pela sua afirmação da inocência da existência e
compreendido como repetição que se diz da diferença, vale dizer, rachado pela forma
pura do tempo, constrangido e forçado a desenvolver-se no movimento do complexo
questão-problema, sem outra possibilidade senão a de tornar-se criativo — que se
apresenta como origem radical das idéias. Como diferenciais do pensamento, as idéias
tornam, por sua vez, pensável a gênese do pensar no pensamento e a consistência do
Acontecimento.
O que distingue o movimento que vai do hipotético ao apodítico daquele que vai
do problemático à questão? Em primeiro lugar, o problema difere, por natureza, da
hipótese. Esta última é uma proposição da consciência que se estabelece no campo das
representações do Saber, ao passo que os problemas ou as idéias são construções
imanentes a um apreender infinito e inconsciente. Em seguida, a instância apodítica
difere da instância questão pela natureza dos imperativos que expressam. A primeira é
um ponto de chegada que configura um imperativo moral, a segunda exprime a relação
dos problemas com os imperativos de acontecimentos que se apresentam como questões
(que traduzem o imperativo da afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade), dos
quais eles procedem. Como diz Deleuze:

“já não se trata de um jogo à maneira de Leibniz, em que um


imperativo moral de regras predeterminadas combina-se com a
condição de um espaço dado, que é preciso determinar ex hypothesi;
trata-se antes de um lace de dados, de todo o céu como espaço aberto e
do lançar como única regra. Os pontos singulares estão sobre o dado;
as questões são os próprios dados; o imperativo é o lançar. As Idéias
são as combinações problemáticas que resultam dos lances. É que o
lance de dados nunca se propõe abolir o acaso (o céu-acaso). (…)
Fazer do acaso um objeto de afirmação é o mais difícil, mas é o
sentido do imperativo e das questões que ele lança. As Idéias emanam
dele como as singularidades emanam deste ponto aleatório que, a cada
vez, condensa o acaso em uma vez.” 315

Em Logique du sens, Deleuze retoma a caracterização desta nova imagem do


pensamento (a de um pensamento sem imagem) apresentando as características do que
ele nomeia de jogo ideal e que se confunde com a atividade do pensamento puro. Ele
define este jogo puro do pensamento a partir de quatro princípios fundamentais:

“1º) Não há regras preexistentes, cada lance inventa suas regras,


carrega consigo sua própria regra. 2º) Longe de dividir o acaso em um
número de jogadas realmente distintas, o conjunto das jogadas afirma
todo o acaso e não cessa de ramificá-lo em cada jogada. 3º) As
jogadas não são pois, realmente, numericamente distintas. São
qualitativamente distintas, mas todas são formas qualitativas de um só
e mesmo lançar, ontologicamente uno. (…) O único lançar é um caos,
de que cada lance é um fragmento. Cada lance opera uma distribuição
de singularidades, constelação. Mas, ao invés de repartir um espaço
fechado entre resultados fixos conforme hipóteses, são os resultados
móveis que se repartem no espaço aberto do lançar único e não
repartido: distribuição nômade e não sedentária, em que cada sistema
de singularidades comunica e ressoa com os outros, ao mesmo tempo
implicados pelos outros e implicando-os no maior lançar. É o jogo dos
problemas e da questão, não mais do categórico e do hipotético. 4º)
(…) O jogo ideal de que falamos não pode ser realizado por um
homem ou por um deus. Ele só pode ser pensado e, mais ainda,
pensado como não senso. Mas, precisamente: ele é a realidade do
próprio pensamento. É o inconsciente do pensamento puro. (…) Pois
só o pensamento pode afirmar todo o acaso, fazer do acaso objeto de
afirmação. E se tentarmos jogar esse jogo fora do pensamento, nada
acontece e, se tentarmos produzir um resultado diferente da obra de
arte, nada se produz. É pois o jogo reservado ao pensamento e à arte,
lá onde não há vitórias para aqueles que não souberam jogar, isto é,
afirmar e ramificar o acaso, ao invés de dividi-lo para dominá-lo, para
apostar, para ganhar. Este jogo que não existe a não ser no
pensamento, e que não tem outro resultado além da obra de arte, é

315
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 256 (319).
aquilo pelo que o pensamento e a arte são reais e perturbam a
realidade, a moralidade e a economia do mundo.” 316

Deleuze insiste em que a afirmação do acaso não deixa subsistir qualquer


arbitrariedade. Pois a afirmação avalia-se pela ressonância das singularidades que
emanam do seu lance e que, sob esta condição, formam um problema. Assim, se são os
problemas que asseguram a necessidade da questão, é ressonância destes com a questão
que constitui a verdade dos problemas no movimento de uma obra que os determina,
progressivamente, enquanto tais. A afirmação não só ultrapassa toda arbitrariedade ao
desenvolver-se nos problemas que ela suscita, como também escapa a todo solipicismo
ao constituir-se como ser. Neste ponto, Deleuze é fiel à sua interpretação da ontologia
nietzschiana que, segundo ele, concebe a imanência da afirmação como ser. Conforme a
análise de Deleuze, Nietzsche, ao subtrair do mundo a realidade e a verdade, o constitui
como vivo, vale dizer, como vontade de potência. Deleuze pode, então, concluir que,
para Nietzsche, viver é avaliar: “não há verdade do mundo pensado nem realidade do
mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o real.” 317 A
afirmação conquista, deste modo, toda sua potência e torna-se com Nietzsche, de acordo
com Deleuze, ontológica: “O ser não é objeto de afirmação, nem um elemento que se
daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do ser, ao contrário. A própria
afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua potência.” 318
Neste ponto preciso, conectam-se a questão do pensamento e a questão do ser, e
ressoam, na afirmação imperativa da inocência da existência, os problemas “o que
significa pensar? e “qual é o sentido do ser?”. Estes problemas se desenvolvem na
filosofia deleuziana com a teoria diferencial do pensamento e com a ontologia da
univocidade do ser. Pode-se observar a articulação dessas repetições nessa formulação
de Deleuze:

“Os imperativos e as questões que nos atravessam não emanam do Eu,


que nem está aí para ouvi-los. Os imperativos são ser, toda questão é
ontológica e distribui ‘aquilo que é’ nos problemas. A ontologia é o
lance de dados — caosmos de onde o cosmos sai. Se os imperativos

316
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 76 (63).
317
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211/212.
do Ser têm uma relação com o Eu, é com o Eu rachado, cuja rachadura
eles deslocam e reconstituem a cada vez segundo a ordem do tempo.
Portanto, os imperativos formam os cogitanda do pensamento puro, as
diferenciais do pensamento, ao mesmo tempo o que não pode ser
pensado, mas o que deve ser e só pode ser pensado do ponto de vista
do exercício transcendente.” 319

Precisa-se, assim, a relação do ser com o pensamento. De um lado, deve-se dizer que é
um encontro com o ser, como seu dehors, que força o pensamento a pensar, mas, sendo
o ser a afirmação em toda sua potência, é imperativo considerar que, de outro lado, a
afirmação da afirmação como ser é a potência que o pensamento conquista com sua
metamorfose na prova do seu eterno retorno — quando se subtrai ao seu exercício
empírico e constitui-se, no seu exercício transcendente, como repetição que se diz da
diferença. A relação do ser com o pensamento não mais pode ser pensada nem como
acordo do pensamento com o ser, nem configurar para o pensamento um ideal de
adequação ao ser ou um imperativo moral de imitação do ser, pois já não há mais nem
realidade, nem verdade do ser. O pensamento e o ser não são postos como dados, nem
expostos a um face a face, exteriores um ao outro. Ao contrário, o pensamento e o ser
são conquistas de um duplo devir: o pensamento em um devir afirmativo conquista sua
imanência radical e torna-se, no seu exercício transcendente, criador. Com a afirmação
do seu dehors, o pensamento afirma o seu ser; na outra ponta do mesmo movimento, o
ser torna-se afirmação e em toda sua potência de afirmação, afirma o seu devir, vale
dizer, o ser do devir.
O problema da origem das idéias conduziu o pensamento ao problema do
estatuto ontológico das questões e dos seus imperativos. Os imperativos, segundo
Deleuze, se dirigem ao Eu rachado como ao inconsciente do pensamento, a partir do
qual o pensamento pensa, no seu exercício superior, esse inconsciente. Do mesmo
modo, diz Deleuze, “as Idéias que decorrem dos imperativos, em vez de serem as
propriedades ou atributos de uma substância pensante, só fazem entrar e sair por essa
rachadura do Eu, que sempre faz com que outro pense em mim, um outro que deve, ele

318
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
319
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 257 (321).
próprio, ser pensado.” 320 O círculo composto pelas questões imperativas, ontológicas,
os problemas dialéticos que delas decorrem, os campos simbólicos de resolubilidade dos
problemas e as soluções que estes recebem nesses campos não parecem dar conta do
nascimento desses imperativos ontológicos. Deleuze propõe pensar a origem das
questões e de seus imperativos como repetição da diferença: “De que se diz a repetição
no eterno retorno, a não ser da vontade de potência, do mundo da vontade de potência,
de seus imperativos e de seus lances de dados, e dos problemas saídos do lançar?” 321
Mas como compreender a possibilidade de uma tal repetição? O que há nos problemas
que os dispõem à repetição da diferença?

O virtual e a crítica do negativo

Segundo Deleuze, os problemas não se separam de uma virtualidade


determinável. É esta virtualidade que se repete como retomada de singularidades pré-
individuais:

“Toda origem é uma singularidade, toda singularidade é um começo


sobre uma linha horizontal, a linha dos pontos ordinários em que ela
se prolonga, como em reproduções ou cópias que formam os
elementos de uma repetição nua. Mas ela é recomeço sobre a linha
vertical, que condensa as singularidades e onde se tece a outra
repetição, a linha da afirmação do acaso. (…) A repetição é o
‘contanto que’ da condição que autentica os imperativos do ser.” 322

Assim, os imperativos, num mundo já precipitado no universal a-fundamento, só


admitem a repetição da afirmação como origem, e a repetição afirma a virtualidade que
todo problema exprime.
Deleuze destaca, ainda, uma outra dimensão do complexo questão-problema que
o dispõe à repetição: há um (não)-ser do problemático que designa a diferença e sua
repetição. Torna-se fundamental compreender o estatuto da negação contida na escrita

320
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 258 (322).
321
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
322
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
(não)-ser. Deleuze pensa um (não)-ser da questão, mas não admite reduzi-lo a uma
negação ou ao negativo. Por esta razão, talvez, a sua melhor expressão seja ?-ser, como
forma ou abertura de um campo problemático. 323
Do ponto de vista da filosofia da diferença, o negativo é uma ilusão: é a sombra
dos problemas. Segundo Deleuze, o negativo é um correlato da degradação do problema
em uma hipótese, pois cada hipótese, como proposição da consciência, admite uma
hipótese contrária. Portanto, de acordo com a terminologia de Différence et répétition, a
crítica do negativo é ineficaz quando feita do ponto de vista de um conceito, seja
traduzindo a oposição em limitação, seja concebendo o negativo como degradação.
Somente do ponto de vista da Idéia é que a crítica do negativo se torna efetiva:

“É a noção de multiplicidade que denuncia, ao mesmo tempo, o Uno e


o múltiplo, a limitação do Uno pelo múltiplo e a oposição do múltiplo
ao Uno. É a variedade que denuncia, ao mesmo tempo, a ordem e a
desordem, é o (não)-ser, o ?-ser, que denuncia, ao mesmo tempo, o ser
e o não-ser. Em toda a parte, a cumplicidade do negativo e do
hipotético deve ser desfeita em proveito de um liame mais profundo
do problemático com a diferença.” 324

Mas o negativo é uma ilusão objetiva, isto é, uma ilusão transcendental inseparável dos
processos de atualização da Idéia virtual e da besteira como faculdade dos falsos
problemas.
Deleuze analisa o exemplo da Idéia lingüística. Evidencia que, a despeito dela
ter todas as características de uma estrutura que a define como uma multiplicidade
plenamente positiva, os lingüistas assimilam as relações diferenciais entre os fonemas a
relações de oposição. Deleuze valoriza a obra do lingüista Gustave Guillaume na
medida que ela, de um lado, subtrai da lingüística o princípio da oposição distintiva e,
de outro lado, constitui o princípio de uma posição diferencial. Em consonância com
este princípio, Deleuze argumenta, com Guillaume, que a oposição nada nos ensina
sobre a natureza daquilo que é considerado como estando em oposição e afirma que

323
Contrapondo-se à interpretação que concebe o não-ser como negativo ou expressão de uma negação,
Deleuze busca representar o não-ser problemático escrevendo-o, indiferentemente, ora (não)-ser ora ?-
ser.
324
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 262 (327).
“a seleção dos fonemas, que tem nesta ou naquela língua um valor
pertinente, é inseparável dos morfemas tomados como elementos de
construções gramaticais. Ora, os morfemas, que fazem intervir o
conjunto virtual da língua, são objeto de uma determinação
progressiva que procede por ‘limiares diferenciais’ e implica um
tempo puramente lógico capaz de medir a gênese ou a atualização. A
determinação recíproca formal do fonemas remete a essa
determinação progressiva, que exprime a ação do elemento virtual
sobre a matéria fônica; e somente quando se considera os fonemas
abstratamente, isto é, quando se reduziu o virtual a um simples
possível, é que suas relações têm a forma negativa de uma oposição
vazia, em vez de preencher as posições diferenciais em torno de um
limiar.” 325

Desfeita a suposta relação do ?-ser com o negativo, afirmada a potencialidade da


Idéia, a virtualidade dos problemas, compreende-se melhor que a origem e o destino da
questão imperativa seja repetir-se como diferença. Na verdade todas essas dimensões se
articulam. A Idéia é positiva, ela desconhece a negação: tanto como virtualidade
diferençada (na variedade das relações diferenciais e na distribuição das singularidades
correlativas), quanto como diferenciada (na especificação e na composição) nas
atualizações das relações diferenciais e das singularidades. Todas as características
mencionadas traduzem a afirmação que subtrai o conceito de Idéia do domínio da
representação (domínio, no qual, se desenvolvem e articulam- se o ponto de vista da
negação, o postulado que faz do movimento do pensamento uma passagem do
hipotético ao apodítico e o ideal do Saber). Elas características expressam ainda uma
outra potência do conceito de Idéia: ela não só confere necessidade a estas subtrações,
como faz do pensamento o movimento de um aprender transcendental (a construção de
complexos de questões-problemas): pesquisa que começa com o encontro com um
signo-portador de problema, vale dizer, um signo que envolve uma diferença, uma
perspectiva.
O pensamento como experimentação ou como aprendizagem deve afirmar, a um
só tempo, o pluralismo (a verdade como relativa aos pontos de vista) e avaliar, efetuar
uma hierarquia (os pontos de vista não possuem o mesmo valor). Avaliação e não
julgamento, pois em última análise, como ressalta da interpretação deleuziana de
Nietzsche, a diferença entre os pontos de vistas resulta da posição respectiva da
afirmação e da negação. A rigor, deve-se compreender que a perspectiva afirmativa, que
se apresenta como afirmação, vale dizer, como perspectiva (avaliação) difere por
natureza da “perspectiva” que, resultando de uma negação primeira, não se afirma como
perspectiva, mas como adequação a normas transcendentes (julgamento). Neste caso,
deve-se falar de uma falsa-perspectiva, no mesmo sentido em que Deleuze,
acompanhando Bergson, diz que os falsos-problemas (problemas mal colocados) são,
em última análise, problemas inexistentes.
O perspectivismo resiste ao julgamento, ao subtrair o postulado da
transcendência dos valores dominantes, os postulados realistas e o primado concedido
ao negativo. Neste sentido, o perspectivismo não se confunde com um relativismo
(variante do realismo que admite diferentes perspectivas sobre um objeto suposto o
mesmo), é antes afirmação da perspectiva como potência constituinte do sujeito e do
objeto, afirmação que questiona o pressuposto de um mundo verdadeiro, independente
do pensamento e povoado de objetos dados como exteriores uns aos outros e exteriores
à sujeitos idênticos a si. Segundo Deleuze, ao afirmar a verdade do relativo e não a
relatividade da verdade, o perspectivismo, constitui-se como avaliação que afirma a
diferença de perspectivas: diferencia a perspectiva, essencialmente, afirmativa da
diferença (repetição que se diz da diferença), do julgamento, cuja aparência de atividade
não se separa de uma negação primeira da diferença: “a negação é a imagem revertida
da diferença, isto é, a imagem da intensidade vista de baixo. Com efeito, tudo se reverte.
Aquilo que, no alto, é afirmação da diferença, torna-se em baixo negação daquilo que
difere.” 326
Se a Idéia ignora a negação, como compreender a emergência do negativo?
Segundo Deleuze, o negativo não diz respeito nem ao virtual nem ao atual, mas se
desenvolve como ilusão com a separação dos termos e relações atuais da virtualidade de
que procedem, bem como da abstração do seu processo de atualização. Nesta medida, o
negativo é apresentado ora como a sombra dos problemas no domínio das soluções, ora

325
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 265 (330).
326
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 303 (375).
como a sombra desviante do problemático no conjunto das proposições, ora como a
sombra da instância genética produzida pela própria afirmação. A caracterização do
negativo como sombra do problema o assimila a uma ilusão, mas sua determinação
como sombra da instância genética da própria afirmação faz da ilusão uma ilusão
transcendental. Deleuze afirma assim que como

“a sombra do problema persiste no conjunto dos casos diferenciados


que forma a solução, estes remetem a uma imagem falsificada do
próprio problema. Não se pode mesmo dizer que a falsificação venha
depois; ela acompanha, ela duplica a atualização. O problema sempre
se reflete em falsos problemas, ao mesmo tempo que ele se resolve, se
bem que a solução encontre-se geralmente pervertida por uma
inseparável falsidade. (…) No corpo objetivo do falso problema
aparecem todas as figuras do não-sentido: isto é, as contrafações, as
má-formações dos elementos e das relações, as confusões entre o
relevante e o ordinário. Eis por que a história é tanto o lugar do não-
sentido e da besteira quanto o processo do sentido. Por natureza, os
problemas escapam à consciência; é próprio da consciência ser uma
falsa consciência.” 327

Se é assim, o acesso aos problemas depende de uma retificação, vale dizer, da


quebra da unidade do senso comum e da conquista, por cada faculdade (linguagem,
sociabilidade, etc.), do seu exercício superior e do seu objeto transcendente. A
retificação dos falsos-problemas, condição de acesso aos problemas, deve ser assimilada
ao procedimento de subtração: constituição..., sobretudo à subtração do negativo,
concebido por Deleuze como corpo objetivo do falso problema: “sombra do problema, o
negativo é também o falso problema por excelência.” 328 A crítica do negativo, a
subtração dos postulados da representação que toma o negativo como originário e não
como derivado, é inseparável da conquista de um poder de decidir sobre os problemas
que exprime a conquista, pelo pensamento, de nova potência de aceder, no seu exercício
superior, aos imperativos que o mobilizam: ao ?-ser das questões que submete todos os
problemas à prova do seu eterno retorno.

327
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 268 e 269 (334 e 335).
328
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 269 (335).
A crítica do negativo deve ser articulada à constituição do virtual como
dimensão imanente ao pensamento e à subtração, ao pensamento, da orientação que faz
do real e do conceito a realização do possível. A mera oposição do virtual ao possível,
contudo, mantém abstrata a compreensão do virtual: não acede, por si só, à sua
necessidade, que só advém com a dramatização do conceito de virtual. Que problemas
mobilizam a criação do conceito de virtual? Afinal, quais são o sentido e o valor do
conceito de virtual na filosofia da diferença?
Também o conceito de virtual deve ser correlacionado ao combate deleuziano ao
sistema e à doutrina do julgamento. Ele deve ser compreendido como desafio filosófico
ao sistema do julgamento que postula transcendências que permitem julgar a existência
culpada porque marcada pelo acaso, pelo devir e pela multiplicidade — transcendências
que deslocam o eixo da existência para após a morte e assassinam o Cosmos (o mundo
concebido como multiplicidade de forças em devir) em favor de um sistema de poder de
um Deus único que exclui do mundo e do pensamento toda imanência e alteridade. Tal
sistema do julgamento desdobra-se numa doutrina do julgamento, que, submetendo a
existência à identidade, concebe-a como realização de um possível e, assim, purga-a de
todo acaso, devir e multiplicidade.
Como criações filosóficas, os conceitos de virtual e de atualização são
efetuações do combate à doutrina do julgamento, rompendo tanto com a semelhança
como processo quanto com a identidade como princípio. Neste aspecto, Deleuze retoma
a crítica de Bergson aos falsos problemas do não-ser, da desordem e do possível
(problemas do conhecimento e do ser), e ainda, como se verá, não propriamente a crítica
da intensidade, mas o problema da intensidade, integrando-o ao problema da
individuação e conferindo-lhe novo sentido. Compreende-se melhor, do ponto de vista
deste duplo combate (o combate ao sistema e à doutrina do julgamento), a valorização,
por parte de Deleuze, na obra de Kant, do “momento furtivo fulgurante” que não se
prolonga nem mesmo nela. O ponto de vista do combate ao sistema e à doutrina do
julgamento ressalta outras dimensões do sentido da fissura do Eu pela forma pura do
tempo (o virtual) e o valor da introdução do Outro (a alteridade e o dehors) no
pensamento puro. 329 O pensamento não exprime mais um julgamento, nem a identidade

329
Visto desta perspectiva, o conceito de virtual combate, na filosofia, tanto as semióticas despóticas
significantes e quanto as semióticas autoritárias subjetivas, em favor de um pensamento afirmativo de
de um Eu, nem seu encontro com um sujeito ou um objeto, mas com o Outro, com seu
dehors e com a sua Diferença. Decerto, de um lado, o pensamento é atravessado, no seu
movimento, por uma alteridade que lhe é imanente: o Outro, como sua diferença
imanente, como seu dehors ou seu exercício transcendente. Além disto, o pensamento é
mobilizado por signos portadores de problemas e, por outro lado, o seu exercício
superior expressa seu encontro com Outrem, nem sujeito nem objeto, expressão de um
mundo possível. 330
Afinal o que é o campo do possível que o conceito de virtual combate? Segundo
a análise de Deleuze com Bergson, pensar em termos de possível e de real (perguntar
por que isto e não aquilo) é aprisionar-se num falso problema, ou, como já foi analisado,
num problema inexistente. Em todo o caso, paradoxalmente, o pensamento aprisiona-se
num falso problema, num problema inexistente que concerne a existência: a existência,
enquanto possível, é posta como precedendo o ato de sua criação. Do ponto de vista do
possível, indaga-se Deleuze,

“que diferença pode haver entre o existente e o não existente, se o


existente já é possível, recolhido no conceito, tendo todas as
características que o conceito lhe confere como possibilidade? A
existência é a mesma que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se,
portanto, a existência no espaço e no tempo, mas como meios
indiferentes, sem que a produção da existência se faça num espaço e
num tempo característicos. A diferença só pode ser então o negativo
determinado pelo conceito: seja a limitação dos possíveis entre si para
se realizarem, seja a oposição entre o possível e a realidade do real. O
virtual, ao contrário, é a característica da Idéia; é a partir de sua
realidade que a existência é produzida, e produzida em conformidade
com um tempo e um espaço imanentes à Idéia.” 331

Assim, a idéia de que o pensamento é a realização do possível encadeia-se aos

devires minoritários que foge e constrói armas contra o poder que procede por normalização.
330
O conceito de outrem como expressão de um mundo possível, exposto no capítulo “Síntese assimétrica
do sensível” de Différence et répétition e retomado no início de Qu’est-ce que la philosophie?, não se
confunde integralmente com o conceito de virtual, mas é impensável sem ele. O possível tem, neste novo
contexto, outro sentido do possível que o virtual deve subtrair. Pois, para Deleuze os mundos possíveis
existem no mundo real. Neste sentido, o Outrem como expressão de um mundo possível remete à
dimensão virtual imanente aos objetos atuais.
331
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 273 (340).
postulados da imagem dogmática do pensamento. Conseqüência da naturalização do
pensamento, da interiorização da relação do pensamento com a verdade e do modelo da
recognição, a idéia do possível não faz sentido sem as pressuposições da verdade como
adequação da “substância pensante” com a “substância extensa” ou como imposição de
um forma lógica a uma matéria sensível, pressuposições que se atrelam aos postulados
de um sujeito uno e idêntico a si e de uma realidade dada (como númeno ou como
fenômeno) como idêntica a si. A suposição de uma realidade dada ou de mundo
verídico depende do postulado de uma transcendência (Deus) que assegure tanto a
identidade da realidade quanto a natureza do pensamento (a reminiscência das idéias
eternas, o inatismo das idéias claras e distintas ou o a priori das formas da sensibilidade
e das categorias do entendimento).
O possível realizando-se no espaço e no tempo como meios indiferentes faz da
experiência a realização de um possível posto como anterior à experiência. Desse modo,
a existência, concebida como realização do possível. não deixa de constituir-se como
ambiente propício para os julgamentos (sob esse aspecto comparável com o sono e o
sonho, tal como foi analisado na Introdução). Por sua vez os conceitos, tais como
definidos pela representação, não deixam de assemelhar-se às alegorias que ocupam a
existência, compondo-a como uma totalidade abstrata (articulada por falsas conexões,
vale dizer, comportando um agregado de elementos postos como separados, ou seja,
destituídos de suas conexões vitais, e, nesta medida, condenados à condição de
fantasmas ou abstrações). Segundo Deleuze, com a destruição dos símbolos que
povoavam o cosmos pagão, as alegorias induzem a existência ao sono e povoam o seu
sonho judicativo: “nós vivemos no máximo numa lógica das relações (Lawrence e
Russell não se suportavam). Da disjunção, fazemos um ou, ou. Da conexão, fazemos
uma relação de causa e efeito, ou de princípio a conseqüência. Do mundo físico dos
fluxos, abstraímos um reflexo, um duplo exangüe, feito de sujeitos, objetos, predicados,
relações lógicas. Extraímos assim o sistema do julgamento.” 332
Se o par “o possível” e “o real” pode ser percebido como elemento da doutrina
do julgamento que prolonga, na filosofia, o sistema do julgamento, os conceitos de
virtual e de atualização são criações filosóficas que atribuem novo sentido à existência

332
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 69 (63).
(não mais unidade verídica, mas multiplicidade problemática: expressão de dinamismos
espaço-temporais que dramatizam diferenças virtuais, as quais diferenciam-se na
atualização de relações diferenciais e na encarnação de pontos singulares), e aos
existentes (não mais pretendentes a uma orientação moral, mas potências, inseparáveis
dos problemas ou falsos problemas éticos, que exprimem). Conferem, ainda, os
conceitos de virtual e de atualização consistência filosófica à imanência do pensamento
ao pensamento e necessidade à subtração do par “o possível” e “o real”, que
compromete a filosofia com a transcendência.
O virtual não se confunde com o possível. Ele não se opõe ao real, mas ao atual.
Possui a realidade da Idéia (diferencial do pensamento), que é multiplicidade virtual e
seu processo não é a realização, mas a atualização. Em conseqüência, deve-se destacar,
com Deleuze, que enquanto o possível remete à forma de identidade no conceito, o
virtual refere-se a multiplicidade na Idéia, que se subtrai a toda identidade como
condição.

“Enfim, na medida em que o possível se propõe à “realização”, ele


próprio é concebido como imagem do real, e o real como a
semelhança do possível. Eis por que se compreende tão pouco o que a
existência acrescenta ao conceito, duplicando o semelhante pelo
semelhante. (…) A atualização do virtual, ao contrário, sempre se faz
por diferença, divergência ou diferenciação. A atualização rompe
tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como
princípio. Nunca os termos atuais se assemelham à virtualidade que
eles atualizam: as qualidades e as espécies não se assemelham às
relações diferenciais que elas encarnam; as partes não se assemelham
às singularidades que elas encarnam. A atualização, a diferenciação,
neste sentido, é sempre uma verdadeira criação.” 333

Deleuze adverte quanto ao risco de confusão do virtual com o possível,


confusão, segundo ele, efetivamente presente na obra de Leibniz. Como Deleuze ainda
não havia conquistado o seu conceito de conceito, ele contrapõe, em Différence et
répétition, a ordem da Idéia-virtual à ordem do conceito ou do possível. Neste sentido,
questionando o conceito de idéia da representação, Deleuze recusa o que denomina de

333
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 273 (340).
princípio do claro e do distinto. Princípio que afirma a proporcionalidade do claro e do
distinto e que torna o pensamento possível no exercício empírico das faculdades.
Contudo, o que ocorre se o problema for “retificado”, ou seja, quando se subtrai do
pensamento o par “o possível” e “o real” e, com ele, a perspectiva negativa, que elimina
todo ponto de vista criador?

“Então o problema não se coloca em termos de partes-todo (do ponto


de vista de uma possibilidade lógica), mas em termos de virtual-atual
(atualização de relações diferenciais, encarnação de pontos
singulares). Eis que o valor da representação no senso comum se parte
em dois valores irredutíveis no para-senso: um, distinto, que só pode
ser obscuro, tanto mais obscuro quanto mais for distinto, e um, claro-
confuso, que só pode ser confuso. É próprio da Idéia ser distinta e
obscura. Isto quer dizer, precisamente, que a Idéia é real sem ser
atual, diferençada sem ser diferenciada, completa sem ser inteira.” 334

A Idéia se atualiza por diferenciação em espécies e partes. Assim, toda coisa, diz
Deleuze, está no cruzamento de uma dupla síntese: de qualificação ou especificação, e
de partição, composição ou organização. Nesta medida, Deleuze pode defender que
“toda coisa possui duas ‘metades’ ímpares, não semelhantes e não simétricas, cada uma
delas se dividindo por sua vez em duas: uma metade ideal, que se prolonga no virtual e
constituída ao mesmo tempo por relações diferenciais e singularidades concomitantes;
uma metade atual, constituída, ao mesmo tempo por qualidades que encarnam essas
relações, e por partes que encarnam essas singularidades.” 335 O problema da atualização
consiste, pois, na determinação do agente dessa distinção e dessa complementariedade.
Segundo Deleuze, sob a organização e a especificação atuam dinamismos espaço-
temporais, que supõem um campo intensivo, uma distribuição de diferenças de
intensidade. Tal campo intensivo constitui um meio de individuação. Mas a
individuação exige mais que um meio para efetuar-se: é necessário que um diferenciante
da diferença (“precursor sombrio”) relacione as diferenças de intensidade, produzindo
fenômenos de ressonância interna no sistema. Além dessas condições que determinam
os dinamismos espaço-temporais que por sua vez asseguram as atualizações das

334
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 276 (343 e 344).
335
Gilles Deleuze, L’île déserte et autres textes, pág. 140.
qualidades e das extensões, deve-se dizer que tais dinamismos comportam sujeitos
muito especiais: sujeitos fluentes, larvares, “esboços, ainda não qualificados nem
compostos, antes pacientes que agentes, os únicos capazes de suportar a pressão de uma
ressonância interna ou a amplitude de um movimento forçado.” 336

O virtual e a atualização

Retorna, num novo registro, o problema da gênese da experiência real e do


pensar no pensamento: como se dá a relação da síntese ideal da diferença com a síntese
assimétrica do sensível? Como se faz a passagem da dialética das relações diferenciais à
estética das diferenciações? Do ponto de vista do virtual, a gênese da experiência real é
pensada como atualização-criação, como processo do virtual. Assim, segundo Deleuze,
a Diferença tem dois aspectos: ela se diz como realidade virtual e dialética e como
realidade dinâmica e estética, como força de atualização e de diferenciação. Como se
diferenciam e se articulam esses dois aspectos? Como já foi indicado, é um conjunto de
determinações — campo de individuação, séries de diferenças intensivas, precursor
sombrio, sujeitos larvares, dinamismos espaço-temporais — que permite pensar a
passagem da dialética das relações ideais à estética das relações sensíveis e atuais. O
problema da atualização não pode, todavia, ser separado de uma virtualização prévia, de
uma conquista do virtual que é correlata à conquista do exercício superior do
pensamento, em que, num acordo disjuntivo, as faculdades se comunicam pela violência
do exercício de suas diferenças. Deste modo, a atualização do virtual depende de dois
movimentos que se encadeiam: um movimento de virtualização, acionado pelo encontro
da sensibilidade com o signo-portador de problema, e um movimento de atualização,
também forçado pelo encontro da sensibilidade com o signo-intensidade. No entanto, é
sobretudo o encontro com a Intensidade (diferenças de intensidade) que desencadeia o
processo, aciona todo esse conjunto de determinações e torna a atualização possível.
Como Deleuze compreende a intensidade? Em que medida a intensidade tem o
poder de desencadear o processo individuação-diferençação/diferenciação?
A tese essencial diz que a diferença de intensidade é a razão do diverso: “Todo

336
Gilles Deleuze, L’île déserte et autres textes, pág. 136.
fenômeno remete a uma desigualdade que o condiciona. Toda diversidade e toda
mudança remete a uma diferença que é a sua razão suficiente. Tudo o que se passa e
aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferenças de nível, de temperatura, de
pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade.” 337 No entanto, como as
formas de energia sempre se apresentam no extenso, esse princípio transcendental
parece ser contrariado por uma tendência da diferença a anular-se no extenso. Deleuze
ultrapassa essa dificuldade considerando a diferença como essencialmente implicada
(assim compreendida ela não pode ser pensada anulando-se em si). Ao contrário,
argumenta Deleuze, a diferença de intensidade só se

“anula na medida em que é posta fora de si, no extenso e na qualidade


que preenche esse extenso. Mas é a diferença que cria tanto essa
qualidade quanto esse extenso. A intensidade se explica, desenvolve-
se numa extensão (extensio). É essa extensão que a refere ao extenso
(extensum), onde ela aparece fora de si, recoberta pela qualidade. A
diferença de intensidade anula-se ou tende a anular-se nesse sistema;
mas é ela que, explicando-se, cria esse sistema. Daí decorre o duplo
aspecto da qualidade como signo: remeter diferenças constituintes a
uma ordem implicada, tender a anular essas diferenças na ordem
extensa que as explica.” 338

Segundo Deleuze, neste caso, o fundamental é que o extenso não dá conta das
individuações que nele se fazem. Estas dependem de uma profundidade especial (o sem-
fundo intensivo) que se diz do espaço como quantidade intensiva. A este respeito, vale
dizer, a propósito das atualizações que se fazem no extenso, Deleuze sente necessidade
de correlacionar as sínteses espaciais com as sínteses temporais: “a explicação do
extenso repousa na primeira síntese, a do hábito ou do presente; mas a implicação da
profundidade repousa na segunda síntese, a da Memória e do passado. É preciso ainda
pressentir na profundidade a proximidade e a ebulição da terceira síntese anunciando o
‘afundamento’ universal.” 339 Deste modo, Deleuze aprofunda a idéia de dinamismos
espaço-temporais, pois, por um lado, esclarece que esses dinamismos se fazem na

337
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 286 (355).
338
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 294 (364 e 365).
339
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 296 (367).
articulação de duas séries distintas de sínteses (espaciais e temporais) e, por outro,
integra o problema da atualização da Idéia-vitual com a questão do eterno retorno da
Diferença.
Deleuze distingue o extenso, a grandeza extensiva, como termo de referência de
todas as extensio, da profundidade original, como o espaço inteiro, enquanto quantidade
intensiva. Com esta distinção pode-se retomar a crítica de Deleuze ao esquematismo
kantiano. Tal como se analisou no terceiro capítulo, deste trabalho, retomou-se no
quarto e também no quinto, Deleuze considera que, em Kant, o acordo cognitivo das
faculdades não é nem necessário, nem universal: sendo o transcendental decalcado
sobre o empírico, não pode ele ser o fundamento deste. Esta limitação revela-se no
interior do sistema kantiano, notadamente na questão do esquematismo, que Deleuze
contesta vigorosamente:

“O esquema é uma regra de determinação do tempo e de construção


do espaço, mas ele é pensado e acionado em relação ao conceito como
possibilidade lógica; esta referência está presente em sua própria
natureza, a tal ponto que ele só converte a possibilidade lógica em
possibilidade transcendental. Ele faz que as condições espaço-
temporais correspondam às correlações lógicas do conceito. Exterior
ao conceito, entretanto, não se vê como ele poderia assegurar a
harmonia do entendimento e da sensibilidade, pois ele mesmo não tem
com assegurar sua própria harmonia como o conceito do
entendimento, sem apelar para um milagre.” 340

Além desta exterioridade do esquema com relação ao conceito do entendimento,


Deleuze assinala um outro impasse do esquematismo kantiano: considera que é apenas
concebendo o tempo a partir de uma analogia com o espaço que Kant pode reduzir o
tempo a uma grandeza extensiva, assimilável ao tempo do conceito. Deste modo, de
acordo com Deleuze, Kant fica prisioneiro das dificuldades inerentes a sua tentativa de
determinar as condições da experiência possível sequer vislumbra o problema da gênese
da experiência real.
Segundo Deleuze, para quem o problema da gênese do pensar no pensamento

340
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 281 (349 e 350).
está em conexão, vale dizer, em condição de pressuposição recíproca com o problema
da gênese da experiência real, nem o tempo e nem o espaço podem ser reduzidos a
grandezas extensivas:

“Kant define todas as intuições como quantidades extensivas, isto é,


tais que a representação das partes torna possível e precede a
representação do todo. Mas o espaço e o tempo não se apresentam
como são representados. Ao contrário, é a apresentação do todo que
funda a possibilidade das partes, sendo que estas são apenas virtuais e
só se atualizam nos valores determinados da intuição empírica. O erro
de Kant, no momento que recusa ao espaço e ao tempo uma extensão
lógica, é manter, a propósito deles, uma extensão geométrica e
reservar a quantidade intensiva para uma matéria que preenche um
extenso em determinado grau. (…) O espaço, como intuição pura,
spatium, é quantidade intensiva; e a intensidade, como princípio
transcendental, não é simplesmente a antecipação da percepção, mas a
fonte de uma quádrupla gênese, a das extensio como esquemas, a do
extenso como grandeza extensiva, a da qualitas como matéria
ocupante do extenso e a do quale como designação de objeto. (…) Se
é verdade que o espaço é irredutível ao conceito, nem por isso é
possível negar a sua afinidade com a Idéia, isto é, sua capacidade
(como spatium intensivo) de determinar no extenso a atualização das
ligações ideais (como relações diferenciais contidas na idéia). E se é
verdade que as condições da experiência possível se referem à
extensão, não deixa de haver condições da experiência real que,
subjacentes, se confundem com a intensidade como tal.” 341

O que define, como princípio transcendental, a intensidade? Quais são, segundo


Deleuze, as suas características? Observe-se o paralelismo entre a definição que nos dá
Deleuze da intensidade (compreende o desigual em si, afirma a diferença e é uma
quantidade implica em si mesma, logo implicante e implicada) e sua interpretação do
conceito de força em Nietzsche.
Em primeiro lugar, diz Deleuze, “a quantidade intensiva compreende o desigual
em si. Ela representa a diferença na quantidade, aquilo que há de não anulável na
diferença de quantidade, de não igualável na própria quantidade: ela é, portanto, a
qualidade própria da quantidade.” 342 Neste primeiro sentido, a Intensidade é uma
Diferença que subsiste em si, mesmo que se anule fora de si (no extenso).
Segundo Deleuze, como decorrência desta primeira característica (sendo o
desigual em si, a diferença em si), a intensidade afirma a diferença. “Ela faz da
diferença um objeto de afirmação.” 343 Com esta segunda característica da intensidade,
Deleuze conquista uma ética das qualidades intensivas que se subtrai a toda
negatividade:

“construída sobre duas séries, pelo menos, superior e inferior, sendo


que cada série por sua vez, remete a outras séries implicadas, a
intensidade afirma até o mais baixo, faz do mais baixo um objeto de
afirmação. (…) Tudo vai de cima para baixo e, com este movimento,
afirma o mais baixo — síntese assimétrica. Aliás, alto e baixo são
apenas maneiras de dizer. Trata-se da profundidade e do bas-fond que
lhe pertence essencialmente. Não há profundidade que não ‘vasculhe’
um bas-fond: é aí que a distância se elabora, mas a distância como
afirmação daquilo que ela distancia, a diferença como sublimação do
baixo.” 344

Assim como a Idéia, a Intensidade suporta o desenvolvimento de uma ética das


diferenças de intensidade que, como pura afirmação, desconhece o negativo.
Mais uma vez, neste caso, do ponto de vista da Intensidade, Deleuze prossegue
na sua obstinada tarefa de distinguir a diferença do negativo, buscando sempre, de
acordo com o desenvolvimento de sua análise, acrescentar novas dimensões da gênese
do negativo, e precisando as determinações desta ilusão. Ao afirmar que o negativo é a
diferença vista de baixo, Deleuze considera que: “A diferença é revertida,
primeiramente, pelas exigência da representação que a subordina à Identidade; em
seguida, pela sombra dos ‘problemas’, que suscita a ilusão do negativo; finalmente, pelo
extenso e pela qualidade que vêm recobrir ou explicar a intensidade. É sob a qualidade,
é no extenso que a intensidade aparece de cabeça para baixo e que sua diferença

341
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 298 e 299 (370).
342
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 299 (372).
343
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 301 (374).
344
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 302 e 303 (375).
característica toma a forma do negativo (de limitação ou de oposição).” 345 Decorre
dessas considerações uma espécie de “regra prática” própria à ética das diferenças de
intensidade:

“Toda vez que nos encontramos diante de oposições qualificadas, e


num extenso em que elas se repartem, não devemos, para resolvê-las,
contar com uma síntese extensiva que as ultrapassaria. Ao contrário, é
na profundidade intensiva que vivem as disparidades constituintes, as
distâncias envolvidas, que estão na origem da ilusão do negativo, mas
que são também o princípio de denúncia dessa ilusão. Só a
profundidade resolve, porque só a diferença constitui problema. Não é
a síntese dos diferentes que nos leva a sua reconciliação no extenso
(pseudo-afirmação), mas, ao contrário, é a diferenciação de sua
diferença que os afirma em intensidade.” 346

Este movimento que vai das oposições qualificadas à profundidade intensiva, e que não
deixa de ser um movimento de subtração: constituição... (subtração das oposições
qualificadas e constituição da profundidade) não é um movimento espontâneo: depende
de uma pedagogia, de uma distorção dos sentidos. Como diz Rimbaud, convocado por
Deleuze: “Chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos (…) um
longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos.” 347 Pedagogia afirmativa:
o acaso do encontro da sensibilidade com o ser do sentido, com a intensidade
independente do extenso e antes da qualidade deve ser afirmada por esse longo, imenso
e pensado desregramento dos sentidos.
Deleuze determina, então, o verdadeiro sentido da intensidade: não antecipação
da percepção, mas limite próprio da sensibilidade, do ponto de vista de um exercício
transcendente. Vê-se, mais uma vez, como o encontro da sensibilidade com seu objeto
próprio, o ser (do sensível), subtrai, ao pensamento, o senso comum, violenta e mobiliza
todas as faculdades num combate, no qual em que cada qual impele a outra ao seu limite
próprio (o seu ser próprio). Assim, cada faculdade conquista o seu objeto próprio (o seu
ser próprio), de modo que, do fundo desta discórdia, neste desregramento, emerge entre

345
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 303 (376).
346
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág.. 303 (376).
347
Gilles Deleuze, Critique et clinique, pág. 47 (42).
elas um acordo-discordante, no qual, finalmente, o pensamento, no seu limite, encontra
o seu objeto próprio: a Diferença (ideal e de intensidade).
A intensidade que compreende o desigual em si afirma a diferença, tem por
última característica a sua imanência: ser uma quantidade implicada, implicada em si
mesma, portanto, devendo ser assim, a um só tempo, implicada e implicante. Deleuze
concebe a implicação como uma forma perfeitamente determinada: “Na intensidade,
chamamos diferença aquilo que é realmente implicante, envolvente; chamamos
distância aquilo que está realmente implicado, envolvido. Eis por que a intensidade nem
é divisível, como a quantidade extensiva, nem indivisível, como a qualidade.” 348
Deleuze pode assim concluir que a diferença, a distância e a desigualdade são as
características positivas da profundidade como spatium intensivo.
A definição deleuziana da intensidade, sua afirmação da intensidade, denuncia a
incompreensão e a ambivalência da crítica de Bergson à intensidade. Segundo a análise
de Deleuze, a inconsistência da crítica de Bergson à intensidade decorre do fato de que
Bergson, considerando as qualidades já estabelecidas e os extensos já constituídos e
buscando liberar a qualidade do movimento que a liga à contrariedade e à contradição,
coloca na qualidade todas as características da intensidade. Retomando a intenção de
Bergson de libertar o movimento e o tempo da contrariedade e da contradição, mas com
o cuidado de não romper a fidelidade de sua filosofia com a imanência e a univocidade,
Deleuze assume a distinção estabelecida por Bergson entre multiplicidades virtuais e
multiplicidades atuais e procura dissociar a crítica do negativo da crítica à intensidade.
Neste sentido, desfaz a falsa oposição entre diferenças de quantidade e de qualidade:

“De fato, as diferenças de grau e o extenso que as representa


mecanicamente não têm sua razão em si mesmas; mas as diferenças de
natureza e a duração, que as representa na qualidade, tampouco o têm.
A alma do mecanismo diz: tudo é diferença de grau. A alma da
qualidade responde: em toda a parte há diferenças de natureza. Mas
são falsas almas, e almas cúmplices. Tomemos a sério a célebre
questão: há uma diferença de natureza ou de grau entre as diferenças
de grau e as diferenças de natureza? Nem uma, nem outra. A diferença
só é de grau no extenso que ela explica; só é de natureza sob a

348
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 305 e 306 (379).
qualidade que vem recobri-la nesse extenso. Entre as duas há todos os
graus da diferença, sob todas as duas há toda a natureza da diferença:
o intensivo.” 349

Desse modo, ao distinguir a profundidade e suas diferenças intensivas do extenso e as


diferenças de grau e de natureza que aí se desenvolvem, Deleuze prepara-se para
afirmar a repetição, no eterno retorno enquanto princípio transcendental, como
intensiva.
Deleuze considera crucial conceber a energia pura, a quantidade intensiva, como
um princípio transcendental e não como um limite ou uma função científica. Nesse
sentido, ele distingue os princípios empíricos (a instância que rege um domínio) e o
princípio transcendental (a instância que dá ao princípio empírico o domínio a ser
regido). Assim, esclarece:

“Todo domínio é um sistema parcial extenso qualificado que se


encontra regido de tal maneira que a diferença de intensidade que o
cria tende a anular-se nele (lei da natureza). Mas os domínios são
distributivos e não se adicionam; não há extenso em geral nem energia
em geral no extenso. Em compensação, há um espaço intensivo, sem
outra qualificação, e há nesse espaço uma energia pura. (…) É a
diferença de intensidade que cria o domínio e o entrega ao princípio
empírico de acorde com o qual essa diferença (aí) se anula. É ela,
principio transcendental, que se conserva em si fora do alcance do
princípio empírico. Ao mesmo tempo que as leis da natureza regem a
superfície do mundo, o eterno retorno não pára de fremir nessa outra
dimensão, a do transcendental ou do espaço vulcânico.” 350

A afirmação do eterno retorno como princípio transcendental deve ser


compreendida, sob um dos seus aspectos, como uma conquista feita na seqüência de
uma série de subtrações (dos pressupostos da imagem dogmática do pensamento, de
toda forma e matéria do domínio das idéias virtuais, e das determinações extensivas no
que se refere à compreensão da intensidade); contudo, segundo seu outro aspecto, ela

349
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 309 (382 e383).
350
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 310 e 311 (385).
deve ser considerada como constituição do plano de imanência adequado à filosofia da
diferença — um plano de imanência cujo movimento dá ao pensamento uma natureza
seletiva e o orienta no sentido da criação de conceitos que forneçam consistência e
necessidade à seleção imanente da Diferença como Acontecimento que contra-efetua o
sistema e a doutrina do julgamento.
Enquanto princípio transcendental, o eterno retorno é princípio da experiência
real. Como compatibilizar esta idéia com a proposição, desenvolvida em Nietzsche et la
philosophie, de que a vontade de potência, enquanto princípio plástico e fluente, deve
ser concebida como princípio da experiência real? Deleuze não vê dificuldade nisto,
desde que se afirme a natureza intensiva do eterno retorno. Ele considera, por esse viés,
que existe uma relação fundamental entre o eterno retorno e a vontade de potência, uma
relação de pressuposição recíproca que faz com que um não possa ser dito a não ser do
outro: “A diferença é a primeira afirmação, o eterno retorno é a segunda, ‘eterna
afirmação do ser’, ou a enésima potência que se diz da primeira. É sempre a partir de
um sinal, isto é, de uma intensidade primeira, que o pensamento se designa. Através da
cadeia quebrada ou do anel tortuoso, somos violentamente conduzidos dos limites do
sentidos ao limite do pensamento, daquilo que só pode ser sentido àquilo que só pode
ser pensado.” 351 Deve-se sublinhar a imagem do “anel tortuoso”. Ela evidencia como,
para Deleuze, o eterno retorno envolve não apenas uma nova concepção do ser e do
pensamento, mas também uma nova idéia das relações entre o pensamento e o ser. O
eterno retorno determina entre ambas uma relação complexa que faz com que um passe
no outro, no momento mesmo em que a sua distância é afirmada como heterogênese
concomitante do ser e do pensamento e os reúne num acordo discordante. Cabe neste
momento repetir o que já foi, em outro momento, ressaltado: do ponto de vista dessa
nova ontologia “o mundo não é verdadeiro nem real, mas vivo. E o mundo vivo é
vontade de potência. (…) Viver é avaliar. Não há verdade do mundo pensado nem
realidade do mundo sensível, tudo é avaliação, mesmo e sobretudo o sensível e o
real.” 352
Num mundo assim concebido, o que é a afirmação e o que é o ser? Deleuze
insiste, com Nietzsche: “Nietzsche não suprime o conceito de ser. Propõe do ser uma

351
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 313 (388).
nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é objeto de afirmação, nem um elemento
que se daria em apoio à afirmação. A afirmação não é potência do ser, ao contrário. A
própria afirmação é o ser; o ser é somente a afirmação em toda a sua potência.” 353
Contudo, se o ser é a afirmação, como falar em uma diferença que reúne o ser e o
pensamento num acordo discordante? Assumindo uma posição que dá prosseguimento
ao pensamento de Nietzsche, Deleuze não reconhece o pensamento como realidade,
como uma faculdade, uma natureza. Nem por isto, todavia, suprime ele o conceito de
pensamento. Propõe do pensamento uma nova concepção: o pensamento não é uma
faculdade representativa, mas potência criativa, não é uma natureza, é atividade que
devora a nossa natureza, e não é dado, antes tem sua gênese num acordo discordante
entre faculdades, quando estas conhecem a gênese de seu exercício superior. E neste
acordo tendo as faculdades conquistado o seu limite próprio, o seu ser próprio, reúnem-
se na sua diferença. O pensamento ativado por essa discórdia, afirmando esta
divergência, conquista como as demais faculdades sua imanência e sua potência
afirmativa do acaso (o encontro da sensibilidade com o ser do sensível e de cada
faculdade com seu objeto próprio), da diferença (como diferença de intensidade e da
diferença não apenas entre as faculdades, mas da diferença como objeto próprio que dá
a cada faculdade, no seu limite, o seu ser próprio) e do devir (como gênese do exercício
superior de cada faculdade e da própria gênese do pensar no pensamento como
heterogênese). Como afirmação múltipla, o pensamento conquista seu ser e afirma o ser
como a afirmação da afirmação.
Entretanto, não se deve esquecer que, segundo a interpretação deleuziana do
eterno retorno, a afirmação da afirmação é essencialmente seletiva. O eterno retorno não
diz que tudo retorna. Ao contrário, como pensamento seletivo que é, afirma que não
retorna tudo o que nega o eterno retorno, tudo que sucumbe à sua prova. Deleuze é
explicito e minucioso quanto ao que não retorna: “O que não retorna é a qualidade, é o
extenso — porque a diferença, como condição do eterno retorno, aí se anula. É o
negativo — porque a diferença aí se reverte para anular-se. É o idêntico, o semelhante e
o igual — porque constituem as formas da indiferença. É Deus, e o eu como forma e
garantia da identidade. É tudo o que só aparece sob a lei do “Uma vez por todas”,

352
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, págs. 211/212.
353
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 213.
estando aí compreendida a repetição quando submetida à condição de identidade de uma
mesma qualidade, de um mesmo corpo extenso, de um mesmo eu (assim a
“ressurreição”) …” 354
Precisando a hipótese inicial do capítulo anterior, segundo a qual a filosofia da
diferença encontra, no pensamento do eterno retorno — melhor, na interpretação
deleuziana do eterno retorno —, a vitalidade necessária e a forma adequada, seja para
interpretar outros sistemas filosóficos, seja para pôr, nos seus próprios termos, o
problema do sentido do pensamento, deve-se considerar o movimento seletivo-
subtrativo do eterno retorno como movimento que alça o plano de imanência da
filosofia da diferença a uma profundidade intensiva. Cabe aqui, a propósito da
existência assim afirmada, a mesma questão posta por Deleuze a propósito das
subtrações acionadas nas peças do teatro de Camelo Bene: mas o que resta ao fim desse
conjunto de subtrações? Resta tudo, diz Deleuze, desde que o pensamento exerça sua
potência constitutiva, povoando este plano de conceitos, perceptos e afetos ou mesmo
funções que apresentem uma outra consistência para a qualidade e a extensão: estas, a
qualidade e a extensão, são afirmadas quando ainda implicadas na ordem envolvente
das diferenças, num estado em que a qualidade fulgura como signo na distância ou no
intervalo de uma diferença de intensidade. 355 Assim, Deleuze pode concluir:

“se o eterno retorno, mesmo à custa de nossa coerência e em proveito


de uma coerência superior, reduz as qualidades a estados de puros
signos e só retém dos extenso aquilo que se combina com a
profundidade original, aparecerão então qualidades mais belas, cores
mais brilhantes, pedras mais preciosas, extensões mais vibrantes, pois,
reduzidas às suas razões seminais, tendo rompido toda relação com o
negativo, elas permanecerão para sempre agarradas ao espaço
intensivo das diferenças positivas — realizando-se então, por sua vez,
a predição final do Fédon, quando Platão promete à sensibilidade livre
de seu exercício empírico templos, astros e deuses como nunca se viu,
afirmações inauditas. A predição não se realiza, é verdade, a não ser

354
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 313 e 314 (389).
355
Convém lembrar aqui o conceito de imagem-cristal, desenvolvido mais tarde, em L’image-temps,
como imagem que apresenta em si uma diferença indiscernível entre o atual e o virtual.
com a reversão do próprio platonismo.” 356

Esta conquista, anunciada aqui num tom poético, é conceituada, em Qu’est-ce


que la philosophie?, como efeito das criações do conceito na filosofia, do afeto e do
percepto na arte e da função na ciência.
Se para Deleuze a Idéia como multiplicidade real não é uma forma, não existe
nem no mundo supra-sensível, nem na alma do sujeito cognoscente, nem nas
convenções da linguagem, é porque, enquanto distinta do corpo, ela, no entanto, não se
constitui como uma ordem de existência separada ou independente dos corpos: ela é o
acontecimento ideal que se exprime nos corpos (tal como já foi analisado anteriormente,
para Deleuze todo objeto é duplo, constituído de duas metades ímpares: virtual e atual).
Sendo a Idéia uma multiplicidade diferençada (no virtual), cuja atualização se faz por
criação e diferenciação, resta um último problema: como a Intensidade desencadeia o
processo da atualização e articula a Idéia–virtual com o atual diferenciado? A resposta
de Deleuze é clara: é a Intensidade que impele a Idéia a diferenciar-se, uma vez que ela
resolve suas diferenças num processo de individuação.
Acompanhando a teoria de Gilbert Simondon, Deleuze concebe toda
individualidade como intensiva e a individuação como processo que se dá num estado
pré-individual e meta-estável, num campo problemático, determinado pela distância
entre ordens heterogêneas. A individuação é, então, pensada como ato que integra os
elementos heterogêneos, que atualiza o potencial do sistema meta-estável e que, desse
modo, estabelece a comunicação entre as escalas de realidades heterogêneas.

“O ato de individuação não consiste em suprimir o problema, mas em


integrar os elementos da disparição num estado de acoplamento que
lhe assegura a ressonância interna. O indivíduo encontra-se, pois,
reunido a uma metade pré-individual, que não é o impessoal, mas
antes o reservatório de suas singularidades. Sob todos esses aspectos,
acreditamos que a individuação é essencialmente intensiva e que o
campo pré-individual é ideal-virtual, constituído de relações
diferencias. É a individuação que responde à questão Quem?, assim
como a Idéia respondia às questões quanto?, como? Quem? É sempre
a intensidade… A individuação é o ato da intensidade que determina

356
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 314 (389 e 390).
as relações diferenciais a se atualizarem, de acordo com linhas de
diferenciação, nas qualidades e nos extensos que ela cria.” 357

Deleuze, de um lado, distingue o indivíduo de uma qualidade e de uma extensão.


De outro lado, evita toda identificação da individuação com uma qualificação ou com
uma organização. Afirma, desse modo, o primado da individuação sobre a especificação
e a organização:

“não basta assinalar uma diferença de natureza entre a individuação e


a diferenciação em geral. Essa diferença de natureza permanece
ininteligível enquanto não aceitarmos a sua conseqüência necessária: a
de que a individuação precede, de direito, a diferenciação, a de que
toda diferenciação supõe um campo intenso de individuação prévia.
(…) A individuação não supõe qualquer diferenciação, mas provoca-a.
As qualidades e os extensos, as formas e as matérias, as espécies e as
partes não são primeiras; elas estão aprisionadas nos indivíduos como
em cristais. E é o mundo inteiro, como numa bola de cristal, que é lido
na profundidade movente das diferenças individuantes ou diferenças
de intensidade.” 358

Neste sentido, Deleuze pode dizer que o indivíduo precede a espécie, sendo o indivíduo
pensado como embrião, no campo de sua individuação. Se o indivíduo é um embrião, o
mundo (como campo de individuação) é um ovo. Com efeito, diz Deleuze, o ovo
fornece “o modelo da ordem das razões: diferençação-individuação-dramatização-
diferenciação (específica e orgânica).” 359
Não obstante a conquista da ordem das razões, Deleuze sabe que o fundamental
não foi ainda alcançado. Fiel às exigências da univocidade e da imanência, considera
que é preciso pensar o campo de individuação não como constituído por diferenças
portadas pelo indivíduo, mas por diferenças concebidas como individuais. A diferença
individuante deve ser uma diferença individual. Segundo Deleuze, estas condições se
dão na ordem de implicação das intensidades:

357
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 317 (393).
358
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 318 (394 e 395).
359
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 323 (399).
“As intensidades só exprimem e supõem relações diferenciais; os
indivíduos só supõem Idéias. Ora as relações diferenciais não são
ainda espécies (ou gêneros, ou famílias etc.), assim como seus pontos
relevantes não são ainda partes. Eles de modo algum constituem ainda
qualidades e extensões. Ao contrário, todas as Idéias coexistem
conjuntamente, todas as relações, suas relações e seus pontos, se bem
que haja mudança de ordem segundo os elementos considerados: elas
são plenamente determinadas ou diferençadas, mesmo que sejam
totalmente indiferenciadas. Este modo de ‘distinção’ pareceu-nos
corresponder à perplicação da Idéia, isto é, ao seu caráter
problemático e à realidade do virtual que ela representa. Eis por que o
caráter lógico da Idéia era ser ao mesmo tempo distinta-obscura. É
enquanto distinta (omni modo determinata) que ela é obscura
(indiferenciada, coexistindo com as outras idéias, ‘perplicada’ com
elas). Trata-se de saber o que acontece quando as Idéias são
exprimidas pelas intensidades ou pelos indivíduos nesta nova
dimensão que é a da implicação.” 360

A investigação desta questão conduzirá Deleuze a retornar a sua teoria


diferencial da percepção e do pensamento. Ocorre que, se a intensidade exprime a Idéia
(relações diferencias e pontos relevantes correspondentes), ela não o faz sem introduzir
um novo tipo de distinção. Isto porque, se as intensidades estão implicadas umas nas
outras (como envolventes e como envolvidas), se exprimem ainda a totalidade
perplicada das Idéias, elas só exprimem claramente, do conjunto variável das relações
diferenciais, algumas relações e certos gruas de variação.

“Aqueles que ela (a intensidade) exprime claramente são precisamente


aqueles a que ela visa diretamente quando tem a função de
envolvente. Ela não deixa de exprimir todas as relações, todos os
graus, todos os pontos, mas confusamente, em sua função envolvida.
Como as duas funções estão em reciprocidade, como a intensidade é
primeiramente envolvida em si mesma, é preciso dizer que o claro e o
confuso são tão inseparáveis, confirmando um caráter lógico na
intensidade que exprime a Idéia, isto é, no indivíduo que a pensa,

360
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 324 e 325 (402).
quanto o distinto e o obscuro são inseparáveis na própria Idéia. Ao
distinto-obscuro, como unidade ideal, corresponde o claro-confuso
como unidade intensiva individuante. O claro-confuso qualifica não a
Idéia, mas o pensador que a pensa ou a exprime, pois o pensador é o
próprio indivíduo.” 361

É claro, deste modo, que o indivíduo percebe apenas um número limitado de fenômenos
claros, mas que a totalidade do mundo lhe aparece de modo obscuro. Deleuze gosta de
repetir o exemplo de Leibniz: uma infinidade de percepções obscuras compõem o
marulho, mas só percebemos claramente alguns barulhos de ondas. Com isto ele não
quer apenas afirmar que cada percepção é composta por micropercepções, mas
sobretudo que a sensação, não sendo dada na intuição como unidade já formada, é o
produto de uma gênese que atualiza uma diferença intensiva. Com efeito, Deleuze
enfatiza:

“o expresso (o contínuo das relações diferenciais ou a Idéia virtual


inconsciente) é em si mesmo distinto-obscuro: todas as gotas d’água
do mar como elementos genéticos com suas relações diferenciais, as
variações dessas relações e os pontos relevantes que elas
compreendem; e parece também que o expressante (o indivíduo que
percebe, imagina ou pensa) é, por natureza, claro e confuso: nossa
percepção do barulho do mar, que compreende confusamente o todo,
mas que só exprime claramente certas relações e certos pontos em
função de nosso corpo e de um limiar de consciência que este
determina.” 362

É importante ressaltar, de um lado, que a ordem das razões (diferençação-


individuação-dramatização-diferenciação, específica e orgânica) revela que a
correspondência do distinto–obscuro da Idéia com o claro-confuso da intensidade é
dinâmica (a Idéia diferencia-se atualizando-se, e a intensidade explica-se
desenvolvendo-se), e que ela força o Ser a se dizer da Diferença e do Devir. Assim, de
outro lado, Deleuze é levado a concluir que

361
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 325 (402).
362
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 326 (403).
“todo corpo, toda coisa pensa e é um pensamento, na medida em que,
reduzida às suas razões intensivas, exprime uma Idéia cuja atualização
ela determina. Mas o próprio pensador faz de todas as coisas suas
diferenças individuais; é neste sentido que ele é encarregado das
pedras e dos diamantes, das plantas ‘e dos próprios animais’. O
pensador, o pensador do eterno retorno, sem dúvida é o indivíduo, o
universal indivíduo. É ele que se serve de toda a potência do claro e
do confuso, do claro-confuso, para pensar a Idéia em toda a sua
potência como distinta-obscura.” 363

Contudo, é preciso apreender esse dinamismo no seu sentido inverso. Não mais partindo
da Idéia (virtual) e da sua diferenciação ou da Intensidade e de sua explicação nos
extensos e nas qualidades que ela cria , ou seja, não mais no sentido do virtual ao atual,
mas no sentido do atual ao virtual, pois o pensamento não seria possível sem uma
abertura dos extensos atuais, sem a possibilidade do pensamento percorrer, nesse outro
sentido, o movimento criador. Sendo assim, é necessário afirmar que a individualidade
não é o caráter do Eu, mas que dado o caráter implicado da individualidade intensiva,
ela, como diz Deleuze, ao contrário, forma e nutre o sistema do Eu dissolvido. Não é,
portanto, do Eu (Je), nem do Eu (Moi) que se deve partir para percorrer o sentido que
leva o pensamento dos extensos atuais ao fundo intensivo e à Idéia. Como se situar, de
onde partir, ao que se expor?
Estas questões exigem um retorno à distinção proposta por Deleuze entre a
Intensidade como princípio transcendental e os extensos e as qualidades que ela cria e
submete à princípios empíricos. Cabe, agora, retomar e enfatizar os seguinte pontos: por
um lado, a Intensidade não se explica sem anular-se no sistema diferenciado que ela
cria (“qualquer que seja o domínio considerado, a anulação da diferença produtora e o
desaparecimento da diferenciação produzida continuam sendo a lei da explicação, lei
que se manifesta tanto no nivelamento físico, quanto na morte biológica.” 364 ); por outro
lado, não basta dizer que, se o princípio da degradação explica tudo, ele, no entanto, não
dá conta da criação dos extensos diferenciados, é preciso antes afirmar que os sistemas

363
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 327 (404).
364
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 329 (406).
diferenciados comportam valores próprios de implicação. Deleuze diz que esses
“valores próprios de implicação” constituem, nos extensos, centros de envolvimento,
vale dizer, representantes dos fatores intensivos individuantes nos extensos, em vias de
explicação.
Como já foi antecipado, Deleuze considera que, nos sistemas psíquicos, o Eu
(Je) e o Eu (Moi) não pertencem ao domínio da individuação-implicação, mas ao
domínio da diferenciação-explicação:

“O Eu forma a especificação propriamente psíquica, ao passo que o


Eu forma a organização psíquica. O Eu é a qualidade do homem como
espécie. (…) em correlação com o Eu, o Eu deve ser compreendido
em extensão: o Eu designa o organismo propriamente psíquico, com
seus pontos relevantes representados pelas diversas faculdades que
entram na composição do Eu. Deste modo, a correlação psíquica
fundamental exprime-se na fórmula EU ME penso, assim como a
correlação biológica exprime-se na complementariedade da espécie e
das partes, da qualidade e da extensão. Eis por que o Eu e o Eu
começam por diferenças, mas estas diferenças são, desde o início,
distribuídas de maneira a se anularem, em conformidade com as
exigências do bom senso e do senso comum. Portanto, o Eu também
aparece no fim como a forma universal da vida psíquica sem
diferenças, e o Eu aparece como matéria universal dessa forma. O Eu
e o Eu explicam-se e não param de se explicar através de toda a
história do Cogito.” 365

O pensamento não nasce no Eu, nem no Eu. Ao contrário, sua gênese se faz na
dimensão da individuação. É acionada pela violência do encontro da sensibilidade com
singularidades pré-individuais, e o que o pensamento pensa, no seu exercício superior,
senão as Idéias que racham o Eu e dissolvem o Eu? Neste sentido, se o indivíduo em
intensidade encontra sua imagem no Eu rachado e no Eu dissolvido, não tem cabimento
situar os centros de envolvimento dos sistemas psíquicos, os seus fatores intensivos
individuantes, no sistema Eu-Eu. Ao contrário, segundo Deleuze, estes centros de
envolvimento devem designar a estrutura outrem, na qual, Outrem a priori define-se

365
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 330 e 331 (408 e 409).
pelo seu valor expressivo, implícito e envolvente. Portanto, Outrem se furta tanto à
posição de objeto como a de sujeito e se define como expressão de um mundo possível.
Por expressão, Deleuze entende

“como sempre a relação, que comporta essencialmente uma torção,


entre um expressante e um expresso, de tal modo que o expresso não
existe fora do expressante, se bem que o expressante se relacione com
ele como a alguma coisa de totalmente distinta. Por possível, não
entendemos, pois, qualquer semelhança, mas o estado do implicado,
do envolvido, em sua própria heterogeneidade em relação àquilo que o
envolve: o rosto aterrorizado não se assemelha àquilo que o aterroriza,
mas o envolve em estado de mundo aterrorizante.” 366

Neste sentido, Outrem integra os fatores individuantes e as singularidades pré-


individuais nos limites de objetos e de sujeitos que se oferecem à representação como
percebidos ou perceptíveis.
Após o longo percurso da ordem da razão suficiente (diferençação-individuação-
dramatização-diferenciação, específica e orgânica), Deleuze reintroduz nos extensos os
centros de envolvimento que permitem ao pensamento fazer o percurso em sentido
inverso: dos centros de envolvimento à diferençação. A possibilidade deste outro
sentido é fundamental para a filosofia que quer, segundo sua definição em Qu’est-ce
que la philosophie?, escapar dos estados de coisas atuais criando conceitos que
assegurem o reencontro do pensamento com a virtualidade, tornada filosoficamente
consistente. Em Différence et répétition, Deleuze, que ainda não havia conquistado o
seu conceito de conceito, descreve assim este outro percurso, que não é outro senão o do
pensamento:

“para redescobrir os fatores individuantes, tais como eles são nas


séries intensivas, e as singularidade pré-individuais, tais como elas são
na Idéia, é preciso seguir ao inverso esse caminho e, partindo dos
sujeitos que efetuam a estrutura-outrem, remontar até esta estrutura
em si mesma; portanto aprender Outrem como sendo Ninguém e,
depois, ir ainda mais longe, seguindo a dobra da razão suficiente,

366
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 334 (413).
atingir as regiões em que a estrutura-outrem já não funciona, longe
dos objetos e dos sujeitos que ela condiciona, para deixar que as
singularidades se desdobrem, se distribuam na Idéia pura e que os
fatores individuantes se repartam na pura intensidade.” 367

Como designar esse outro percurso do pensamento, no qual o pensamento parte


dos sujeitos que efetuam a estrutura outrem num estado de coisas para conquistar a
imanência das singularidades intensivas que se distribuem na Idéia, senão como o
movimento da contra-efetuação. Mas, para isto é preciso uma contra-efetuação
filosófica que desfigure o idealismo transcendental em favor um empirismo
transcendental, no qual o conceito, como criação, confere consistência ao
acontecimento que ele contra-efetua na imanência de um plano de imanência absoluto.

CAPÍTULO VII

O empirismo transcendental

“O plano de imanência é ao
mesmo tempo o que deve ser
pensado, e o que não pode ser
pensado. Ele seria o não-pensado
no pensamento. É a base de todos
os planos, imanente a cada plano
pensável que não chega a pensá-
lo. É o mais íntimo no
pensamento, e todavia o dehors
absoluto. Um dehors mais
longínquo que todo mundo
exterior, porque ele é um dedans
mais profundo que todo mundo
interior: é a imanência…” Gilles
Deleuze e Félix Guattari

367
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 360 e 361 (443).
Sabe-se o que significa, na história da filosofia, o empirismo tout court: uma
reação ao racionalismo que advogava a identidade do conhecimento com um saber a
priori. O racionalismo recusa o saber que se conquista na experiência, pois este jamais
satisfará a dupla exigência do conhecimento que se origina de uma fonte não empírica,
o conhecimento dos princípios primeiros, deduzidos pela razão (fonte auto-suficiente de
verdades eternas, porque lógicas): a necessidade e a universalidade. Contra o
racionalismo que afirma que todo saber verdadeiro é analítico e a priori, o empirismo
defenderá que todo conhecimento se compõe de proposições sintéticas, fundadas na
observação empírica, na experiência. A despeito de sua crítica ao racionalismo, o
empirismo compartilha com ele duas posições: de um lado, reconhece as insuficiências
e os limites do saber experimental (ocorre que, para o empirismo, não há outro saber
possível), de outro lado, acompanha o racionalismo na concepção do conhecimento
como processo intelectual, imanente ao espírito. Trata-se para sempre de relacionar
idéias ou representações, por análise (racionalismo) ou sinteticamente (empirismo).
Segundo Deleuze, o idealismo transcendental kantiano rompe tanto com o
racionalismo quanto com o empirismo. Kant, como foi analisado no capítulo “Deleuze e
a crítica”, caracteriza a razão como faculdade dos fins e equaciona os fins superiores da
razão com o sistema da cultura. Deleuze mostra como Kant afasta-se do empirismo (que
faz da razão um modo de realizar fins que são postos pela natureza) ao afirmar que há
fins da cultura e que estes são os fins da razão. Deleuze assinala também o afastamento
kantiano do racionalismo (que postula que os fins racionais são transcendentes) quando
Kant defende que a razão, ao colocar seus fins, toma a si própria como fim.

O relevante neste momento é salientar que a questão dos fins imanentes da razão
conjuga-se naturalmente com o problema de uma crítica imanente. Segundo Deleuze,
“O gênio de Kant, na Critica da razão pura, foi conceber uma crítica imanente”. 368
Pois, se os fins da razão são seus fins imanentes, a razão é que deve arrogar-se juiz de
seus próprios interesses: “uma crítica imanente, a razão como juiz da razão, eis o
princípio essencial do método transcendental.”369 A questão dos fins imanentes à razão

368
. Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 104.
369
Gilles Deleuze, La philosophie critique de Kant, pág. 7 e 8 (13).
exprime o rompimento de Kant com a metafísica em aspectos fundamentais que,
conjuntamente, asseguram a definição do campo da filosofia transcendental kantiana.
Kant reverte o primado metafísico do infinito sobre o finito e determina uma finitude
constituinte composta por faculdades heterogêneas, que diferem em natureza. Esta
reversão manifesta-se na sua teoria do conhecimento, que rompe tanto com o
racionalismo quanto com o empirismo. Kant postula que, sendo o dado não uma coisa
em si, mas um conjunto de fenômenos, deve-se conceber o conhecimento como um
acordo do dado com o sujeito, da natureza com a natureza do ser racional. Deste modo,
como foi apresentado no capítulo “Deleuze e a crítica”, o conjunto dos fenômenos

“só pode ser apresentado como uma natureza por uma síntese a priori,
a qual só torna possível uma regra das representações na imaginação
empírica com a condição de constituir primeiramente uma regra dos
fenômenos na própria natureza. Assim, em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como
fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que
aquela das relações. As implicações do problema assim invertido são
as seguintes: há o a priori, isto é, deve-se reconhecer uma imaginação
produtora, uma atividade transcendental. A transcendência era o fato
empírico, o transcendental é o que torna o transcendente imanente ao
objeto = x. Ou, o que é o mesmo, algo no pensamento ultrapassará a
imaginação sem dela poder prescindir: a síntese a priori da
imaginação nos remete a uma unidade sintética da apercepção, que a
fecha.” 370

No entanto, como já foi assinalado no capítulo “Gênese e experiência”, Deleuze


reprova a crítica transcendental kantiana na medida em que ela estabelece princípios de
condicionamento e não de gênese interna. Ao postular princípios ou condições que
permanecem exteriores ao condicionado, a crítica transcendental desconhece as forças
que agem na razão e a vontade que nela se exprime. Em conformidade com este
desconhecimento, Kant jamais renunciará ao princípio subjetivo de um senso comum,
de uma boa natureza das faculdades. Assim, se Kant concebeu na sua Critica a idéia de

370
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, págs. 124 e 125 (124 e 125).
uma forma superior para cada faculdade, na qual elas encontram em si mesmas a lei do
seu exercício — sua autonomia —, no entanto ele sempre pensou que esta autonomia
dos interesses das faculdades só pode ser realizada num senso comum. Por esta razão,
Deleuze considera que, paradoxalmente, só um empirismo transcendental pode escapar
à tentação, não evitada pelo idealismo transcendental de Kant, de decalcar o
transcendental sobre o empírico. Deste modo, como foi analisado no capítulo “O
dogmático e o problemático”, Deleuze incorpora o conceito de transcendental, na
medida em que o redefine. Subtraindo do transcendental sua dependência ao ideal do
senso comum, ao modelo da recognição e à forma da doxa, Deleuze afirma um
empirismo superior (o encontro das faculdades, no seu exercício superior, com seus
objetos próprios) que lhe permite pensar o transcendental como campo de imanência, no
qual o devir das faculdades em um acordo discordante faz nascer o pensar no
pensamento.

O problema do empirismo transcendental

Nesse contexto, o que significa o empirismo transcendental de Gilles Deleuze?


Se o empirismo designa que todo conhecimento se compõe de proposições sintéticas
fundadas na experiência, e se o conceito de transcendental diz respeito às condições
subjetivas (a priori) da objetividade do conhecimento, qual é o sentido da expressão
empirismo transcendental? Qual é a razão dessa expressão paradoxal? Sabe-se que o
empirismo transcendental de Gilles Deleuze recusa a metafísica racionalista, a crítica
empirista e a crítica kantiana do empirismo e do racionalismo — sendo toda essa
tradição agrupada pelo conceito deleuziano de filosofia da representação, na medida em
que ela se submete aos postulados de uma imagem dogmática do pensamento.
O empirismo transcendental não concerne aos universais, não é um
conhecimento dos princípios, nem detém a posse de um saber a priori. Não é também
uma gênese do conhecimento empírico a partir do elemento da sensação. Nem é
tampouco uma investigação sobre as condições da experiência possível. A posição de
Deleuze, tal como foi exposta no capítulo “O dogmático e o problemático”, é clara: a
filosofia é um aprender transcendental; ela recusa a reminiscência, o inatismo e o
apriorismo: não se faz como um pensamento que se move do hipotético ao apodítico,
mas como pensamento que procede por questões-problemas, que afirma o acaso — não
a arbitrariedade — de toda experiência, e que tem a sua função própria na arte de
criação de conceitos. Assim, o empirismo transcendental se subtrai ao problema da
investigação das condições da experiência possível em favor da constituição do
problema da gênese da experiência real. A compreensão do sentido do empirismo
transcendental torna-se dependente do esclarecimento do sentido do conceito de
experiência real.
O que define a experiência real? Nela não se encontra nenhum mistério se dela
se subtrai toda transcendência. Xavier Papaïs faculta-nos a compreensão de alguns
componentes deste conceito ao subtrair da experiência toda pressuposição de um dado e
de uma doação:

“uma experiência não poderia ser simplesmente oferecida, como


objetos a um sujeito; ela supõe para se desdobrar todo um percurso
aventuroso, invenções, um agenciamento prático. Nela, cada vez, é um
mundo que se compõe. Nesse percurso, o pensamento não se separa
das potência que ele aciona. Ele é em si mesmo uma potência que
segundo a sua própria intensidade, desenvolve mais ou menos
finalmente os seres dos quais ela se encarrega: vis nativa do espírito,
que busca extrair outros modos de existência” 371

Assim concebida, a experiência real conjuga a afirmação da imanência e as afirmações


do acaso, da multiplicidade e do devir. É do ponto de vista deste feixe de afirmações,
constituintes do empirismo transcendental, que se evidencia o inimigo do pensamento
na experiência real, que não são o erro nem a ilusão, mas a besteira: o julgamento e a
negação.

“Se para o empirista o julgamento é o Inimigo, o mais baixo grau do


artifício, é que ele impede o advento de todo novo modo de existência.
Nele se refletem todas as formas vazias, as potências enfraquecidas e
estéreis; ou antes, ele as suscita, como o pensamento o mais solitário,
o mais pobre em conexões. Assim o Julgamento e a Negação fazem
um, eles remetem indefinidamente um ao outro. Entre os seus

371
Xavier Papaïs, “Puissances de l”artifice”, in. Philophie: Deleuze pág. 85.
reflexos, as sínteses da consciência, as platitudes do senso comum e
da lei, as hierarquias orgânicas e finalistas, as ordens transcendentes:
todas formas de classificação que organizam e legiferam sem exprimir
um conteúdo.” 372

O empirismo transcendental de Gilles Deleuze retém do empirismo


propriamente dito a afirmação da independência e do primado das relações sobre os
elementos, sua exterioridade com relação aos termos. A afirmação da exterioridade das
relações compromete o conceito de sujeito como sujeito de conhecimento. No seu
estudo sobre Hume, Deleuze sublinha que a verdadeira crítica de Hume incide sobre a
representação e sobre o postulado de um sujeito cognoscente: a representação não pode
ser um critério para as próprias relações. “As relações não são o objeto de uma
representação, mas os meios de uma atividade. O que é denunciado, criticado, é a idéia
de que o sujeito possa ser um sujeito cognoscente.” 373 O empirismo transcendental,
como se depreende do seu conceito de experiência real, se despede da teoria do
conhecimento. Nele, o conceito não é mais uma forma de conhecimento, mas o meio de
uma experimentação, na qual a experiência deve ser construída e não julgada. Não se
pode mais discernir pensamento e ser, pensamento e vida, como se conclui da
afirmação de Deleuze a propósito da crítica imanente em Nietzsche:

“A crítica concebida como crítica do próprio conhecimento, não


exprimiria novas forças capazes de dar um outro sentido ao
pensamento? Um pensamento que iria até o limite do que pode a vida,
um pensamento que conduziria a vida ao limite do que ela pode. Em
lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que
afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, mas o
pensamento a potência afirmativa da vida. Ambos iriam no mesmo
sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a
passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar
significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida.” 374

372
Xavier Papaïs, “Puissances de l”artifice”. in. Philosophie, Deleuze pág. 89.
373
Gilles Deleuze, Empirisme et subjectivité, pág. 138 (137).
374
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (89).
O princípio da exterioridade das relações radicaliza-se na filosofia de Deleuze.
Ele significa que uma relação não é uma modificação relativa, mas uma modificação
intrínseca e absoluta, um devir. Desse modo, a afirmação da exterioridade das relações
permite a Deleuze subtrair de sua filosofia a questão da teoria do conhecimento e
constituir o problema da criação em filosofia. Este novo problema o conduz a distinguir,
não somente a partir de Hume (a exterioridade das relações), mas também com Bergson
e Riemann, dois tipos de multiplicidades: as multiplicidades atuais e as multiplicidades
virtuais. As primeiras (efeito do mais baixo grau do pensamento, apóiam a idéia de
experiência possível) organizam-se segundo relações interiores aos seus termos e,
assim, encontram nelas o princípio de sua métrica, constituem-se como um todo que
contém seus elementos como partes; as segundas (características da experiência real)
possuem outro tipo de consistência, afirmam a exterioridade de suas relações com
respeito aos seus termos, portanto, não podem conter suas diferenças como partes, estas
são diferenças de intensidade, concernidas por relações de envolvimento, e se subtraem
a qualquer centro ou parâmetro que permita submetê-las a uma métrica. As
multiplicidades virtuais se constituem de heterogêneos, e seu processo é uma
heterogênese. O problema da criação em filosofia conecta-se, pois, no empirismo
transcendental de Gilles Deleuze, tal como foi analisado no capítulo “O dogmático e o
problemático”, com a subtração ao pensamento de toda transcendência que possa
submetê-lo a qualquer centro ou parâmetro e com a constituição de uma teoria
diferencial do pensamento como multiplicidade virtual em heterogênese.
No que diz respeito à questão do transcendental, pode-se dizer que, da crítica
kantiana, Deleuze retoma este conceito, mas, desta feita, concebido como gênese
imanente do sentido. O empirismo transcendental subtrai do transcendental kantiano o
postulado de que as relações são interiores aos termos — em Kant, as relações
dependem da natureza das coisas no sentido em que, como fenômenos, as coisas
supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que aquela das relações — e todos os
postulados da imagem dogmática do pensamento. Desse modo, o conceito de
transcendental conhece um devir quando dele se subtrai o pressuposto de uma
semelhança entre a natureza do objeto e a faculdade de conhecer, de uma
homogeneidade do fundamento e do fundado, e a figura do condicionamento. Adquire
um novo sentido quando se encontra com os problemas da gênese da experiência real e
da gênese do pensar no pensamento. Deleuze subtrai, assim, do transcendental kantiano
sua imanência ao sujeito, dito transcendental, e ao objeto, dito da experiência possível e,
em conseqüência, subtrai também a forma de uma consciência. O transcendental, do
ponto de vista de um empirismo transcendental, não pode ser decalcado das formas
empíricas ordinárias, deve ser conquistado pelo pensamento que se expõe, via o
procedimento de subtração: constituição… , à prova do seu eterno retorno como
heterogênese. Neste sentido, conceito de transcendental tem interesse para Deleuze
apenas na medida em que ele permite ao pensamento se dizer da imanência absoluta,
vale dizer, na medida em que o pensamento não mais se refere a nenhuma
transcendência (como, por exemplo, o sujeito transcendental kantiano). Se o
pensamento não se submete a nenhuma outra instância, ele contudo não pensa a partir
do nada. Do ponto vista de um empirismo transcendental há uma gênese do pensar no
pensamento, acionada por um encontro fortuito com um signo portador de problema.
A propósito da recusa deleuziana do racionalismo, do empirismo e do
transcendental kantiano, deve-se lembrar a advertência de Deleuze: “se o erro do
dogmatismo é sempre preencher o que separa, o do empirismo é deixar exterior o
separado; neste sentido, há ainda empirismo demais na Crítica (e dogmatismo demais
nos pós-kantianos). O horizonte ou o foco, o ponto ‘crítico’ em que a diferença, como
diferença, exerce a função de reunir ainda não é assinalado.” 375
Como se pode depreender desta passagem, o empirismo transcendental deve
conquistar esse ponto crítico em que a diferença como diferença exerce a função de
reunir. Como está escrito no capítulo “O dogmático e o problemático”, a teoria
diferencial do pensamento (componente do conceito de empirismo transcendental)
recusa o pensamento como cogitatio natura universalis e concebe a sua gênese (a
gênese do pensar no pensamento) como o efeito de um encontro da sensibilidade não
com a sensação, mas com um signo portador de problema, signo cuja violência mobiliza
a sensibilidade no sentido de um exercício transcendente, no qual a sensibilidade afirma
o seu devir e o seu objeto próprio: o ser do sensível. O devir da sensibilidade afeta as
demais faculdades que, conquistando também o seu devir, o seu exercício superior,
entram num combate, num jogo discordante que determina a gênese do pensamento
como heterogênese, vale dizer, como efeito de relações entre diferenças (as faculdades,
em seu exercício superior) que se reúnem em um acordo-discordante.
A teoria da Idéia virtual como diferencial do pensamento (outro componente do
empirismo transcendental) dá sentido e consistência à diferença na sua função de reunir
o que diferencia. Com ela se aprende que o virtual não é um outro mundo. Ao contrário,
é o conceito que abre os conjuntos deste mundo. Responde ao imperativo do combate
ao sistema e à doutrina do julgamento, deslocando o centro de gravidade da existência,
não mais referida nem a um além divino, nem a um possível lógico: o virtual é o
conceito que abre a existência, isto é, a experiência, às forças da imanência, ao seu
dehors. Mais amplamente: o virtual se constitui como fidelidade à imanência. Um
desejo imanente anima o combate ao julgamento que aciona o procedimento de
subtração: constituição... Assim mobilizado, o pensamento suprime os universais
abstratos em prol do devir como razão das multiplicidades virtuais. Mais concretamente:
as subtrações da manifestação, da designação e da significação constituem o virtual
como superfície do sentido, sendo o sentido afirmado como efeito do não-sentido e
regido por uma quase-causalidade ideal que escapa a toda necessidade causal. Deleuze,
ainda uma vez, retoma os estóicos para com eles afirmar que “as relações dos
acontecimentos entre si, do ponto de vista da quase-causalidade ideal ou noemática,
exprimem, em primeiro lugar, conseqüências não–causais, compatibilidades e
incompatibilidades alógicas”. 376 Assim, por esse viés, Deleuze constitui o virtual como
instância na qual se afirmam a divergência e a disjunção dos acontecimentos enquanto
tais.
Como compreender a possibilidade desta afirmação? Como pode a disjunção
analítica tornar-se sintética? Em primeiro lugar, a compatibilidade e a incompatibilidade
dos acontecimentos devem ser pensadas como compatibilidade e incompatibilidade
entre séries de singularidades de acontecimentos pré-individuais. Em segundo lugar, é
preciso saber que os acontecimentos, que resultam da subtração da manifestação, da
designação e da significação, não se reportam a um Eu (não supõem a inerência de um
predicado a um sujeito individual), não se referem ao mundo (compreendido como
conjunto de multiplicidades atuais) e não se confundem com conceitos (compreendidos

375
Gilles Deleuze, Différence et répétition , pág. 221 (278 e 279).
376
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. (177)
como significação). Os acontecimentos são virtuais. Na medida em que virtuais, os
acontecimentos devem afirmar suas divergências e suas disjunções. Mas o que quer
dizer isto, a afirmação da divergência e da disjunção? Deleuze esclarece:

“duas coisas ou duas determinações são afirmadas por sua diferença,


isto é, são objeto de uma afirmação simultânea na medida em que sua
diferença é ela própria afirmada, ela própria afirmativa. Não se trata
mais, em absoluto, de uma identidade dos contrários, como tal
inseparável ainda de um movimento do negativo e da exclusão. Trata-
se de uma distância positiva dos diferentes: não mais identificar dois
contrários ao mesmo, mas afirmar sua distância como o que os
relaciona um ao outro enquanto “diferentes”. A idéia de uma distância
positiva enquanto distância (e não mais distância anulada ou vencida)
parece-nos essencial, porque ela permite medir os contrários por sua
diferença finita em lugar de igualar a diferença a uma identidade ela
própria infinita. (…) A idéia de distância positiva é topológica e de
superfície e exclui toda profundidade ou toda elevação que reuniriam
o negativo com a identidade.” 377

O empirismo transcendental de Gilles Deleuze conjuga a afirmação de uma


gênese do sentido como efeito do não-sentido que o percorre com a afirmação de uma
distância positiva, vale dizer, da disjunção, não como um procedimento de análise, mas
como síntese efetiva, conjuga a síntese disjuntiva e com a afirmação de um
perspectivismo que se confunde com a vida mesma:

“Ponto de vista não significa um juízo teórico. O ‘procedimento’ é a


vida mesma. Já Leibniz nos ensinara que não há ponto de vista sobre
as coisas, mas que as coisas, os seres, eram pontos de vista. Só que ele
submetia os pontos de vista a regras exclusivas tais que cada um
somente se abria sobre os outros na medida em que convergiam: os
pontos de vista sobre uma mesma cidade. Com Nietzsche, ao
contrário, o ponto de vista é aberto sobre uma divergência que ele

377
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 202 (178 e 179).
afirma: é uma outra cidade, as cidades sendo somente unidas por sua
distância e ressoando só pela divergência de suas séries, de suas casas
e de suas ruas. E sempre uma outra cidade na cidade. Cada termo
torna-se um meio de ir até o fim do outro, seguindo toda sua distância.
A perspectiva — o perspectivismo — de Nietzsche é uma arte mais
profunda que o ponto de vista de Leibniz; pois a divergência cessa de
ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de ser um meio de
separação, o incompossível é agora um meio de comunicação”. 378

O empirismo transcendental constitui uma posição ética, conquista um


perspectivismo das superfícies, um perspectivismo do sentido infinitivo, que contra-
efetua a contradição, identidade infinita, afirmando a distância infinitiva. Deve-se
observar que a afirmação da síntese disjuntiva tem um sentido subtrativo: “quando a
disjunção acede ao princípio que lhe dá valor sintético e afirmativo nela mesma, o eu, o
mundo e Deus conhecem uma morte comum, em proveito das séries divergentes
enquanto tais, que transbordam agora de toda exclusão, toda conjunção, toda
conexão.” 379 Assim, pode-se considerar que o procedimento de subtração:
constituição... — revelando, em si mesmo, uma dimensão vital — sustenta-se na
afirmação da síntese disjuntiva como pensamento adequado à afirmação do acaso, do
devir e da multiplicidade como multiplicidade virtual. Pois apenas a síntese disjuntiva
dá consistência à superfície virtual na qual ergue-se o plano de imanência do sentido
como acontecimento. Em tal plano, a “divergência das séries afirmadas forma um
‘caosmos’ e não mais um mundo; o ponto aleatório que os percorre forma um contra-eu
e não mais um eu; a disjunção posta como síntese troca o seu princípio teológico contra
um princípio diabólico”. 380 O sentido ético do empirismo transcendental consiste, pois,
em afirmar a um só tempo a síntese disjuntiva — como relação exterior às
singularidades pré-individuais e aos acontecimentos virtuais — e o eterno retorno como
movimento que somente seleciona os acontecimentos puros, os acontecimentos que se
furtam às multiplicidades atuais e aos estados de coisas: “nada mais subsiste além do
Acontecimento, Acontecimento só, Eventum tantum para todos os contrários, que

378
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 203 (179 e 180).
379
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 206 (182).
380
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 206 (182).
comunica consigo por sua própria distância, ressoando através de todas suas
disjunções”. 381
A teoria da atualização da Idéia virtual como diferenciação, a determinação do
campo de individuação como domínio de diferenças de intensidades que se
desenvolvem em extensos e nas qualidades, bem como a afirmação da “estrutura
outrem” que determina outrem como um centro de envolvimento de intensidades nos
extensos (outros tantos componentes do conceito de empirismo transcendental),
asseguram consistência à síntese assimétrica do sensível e exprimem, também, na
atualização, a diferença na sua função de reunir o que diferencia.
A teoria da Idéia e da atualização conduz à afirmação de que não há objeto
puramente atual. Pois, segundo Deleuze, quando um atual rodeia-se de virtualizações, a
atualização pertence ao virtual, o plano de imanência compreende o virtual e sua
atualização: “a atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o próprio atual é a
individualidade constituída. O atual cai para fora do plano [de imanência] como fruto,
ao passo que a atualização o reporta ao plano como àquilo que converte o objeto em
sujeito”. 382 Além deste primeiro movimento, Deleuze considera ainda um movimento
inverso: não mais o movimento que vai do atual ao virtual, mas o movimento do virtual
que se aproxima de um atual. Neste caso, no plano de imanência aparecem cristais, nos
quais o atual e o virtual coexistem. “Não é mais uma atualização, mas uma cristalização.
A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente
correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito. Não há mais inassinalabilidade
do atual e do virtual, mas indiscernibilidade entre os dois termos que se
intercambiam.” 383
Deleuze considera que, em todos os casos, a distinção entre o virtual e o atual
corresponde à cisão temporal entre fazer o tempo passar e conservar o passado. Deste
modo, correlaciona sua teoria do virtual e do atual com sua teoria das três sínteses do
tempo que culmina com a terceira síntese do tempo como futuro, vale dizer, como devir
que se afirma na repetição do eterno retorno da diferença. Mas como compatibilizar a
afirmação do virtual e de sua atualização com a idéia de que o eterno retorno expulsa,

381
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 207 (182).
382
Gilles Deleuze, “O atual e o virtual”, in. Eric Alliez, Deleuze, filosofia virtual, pág. 51.
383
Gilles Deleuze, “O atual e o virtual”, in. Eric Alliez, Deleuze, filosofia virtual, pág. 54.
no seu movimento, as sínteses do presente (síntese do hábito) e do passado (síntese da
memória)? Como já se viu, segundo a interpretação deleuziana de Nietzsche, o eterno
retorno afeta apenas o novo, o acontecimento. Para Deleuze, mesmo que o novo seja
produzido sob a condição da falta (a tarefa excessiva) e da metamorfose (o devir do
agente que o torna à altura da tarefa a realizar), a sua repetição exclui o retorno da
condição (o tempo como passado) e do agente (o tempo como presente), fazendo
retornar apenas o terceiro tempo da série, o tempo como futuro, repetição que subtrai o
suposto poder do passado e do presente. Mas o eterno retorno não submete o próprio
passado e o próprio presente à sua prova? Não saem passado e presente do eterno
retorno tão desmembrados como a Verdade e Dioniso? Neste sentido, é possível pensar
um passado e um presente do tempo como futuro. Um passado e um presente
descentrados, um passado — não mais como um antigo presente —, mas como
multiplicidade de coexistência virtual, e um presente — não mais ordenado por
esquemas sensórios motores — que, sempre cindido em passado e futuro, furta-se ao
atual e se abre para a forma pura e vazia do tempo.
Deve-se, neste sentido, salientar que a filosofia da diferença de Gilles Deleuze,
ao afirmar um empirismo transcendental, afasta-se da problemática que animou na
filosofia o desejo de uma teoria do conhecimento. Não se trata mais de estabelecer as
condições do conhecimento e do julgamento, pois este pensamento não mais deseja
julgar, nem conhecer. O empirismo transcendental expressa esse novo desejo filosófico,
desejo imanente como criação de imanência. O seu problema é então sustentar, na
filosofia, a vertigem filosófica: a imanência. Sua condição crítica: que a univocidade do
ser determine o transcendental como imanência da imanência. Nessa nova configuração
noológica, o ser não se diz mais do sujeito ou do objeto, mas para além da moral e de
suas oposições metafísicas — o Bem e o Mal, o Um e o Múltiplo, o Indeterminado e a
Ordem, o Histórico e o Eterno, a Origem e o Telos… Diz-se da afirmação como
afirmação da afirmação e da vida como uma vida. A vida como uma vida… se
conquista por subtração: constituição… — subtração de toda identidade pessoal e de
toda classificação categorial: constituição de uma potência impessoal…
A despeito das manifestações da diferença na sua potência de reunir o que
diferencia, fica ainda a questão: como Deleuze compreende o horizonte ou o foco, o
ponto “crítico” em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir? De
acordo com a terminologia do último ensaio de Deleuze (“L’immanence: une vie…”),
esse ponto crítico deve situar-se num campo transcendental pensado como um campo de
imanência absoluta. 384
O que é uma imanência absoluta? Segundo Deleuze ela é em si mesma, subtrai-
se de toda transcendência (objeto ou sujeito) à qual seria atribuída:

“A imanência não está relacionada a Alguma Coisa como unidade


superior a toda coisa, nem a um Sujeito que opera as sínteses das
coisas: é quando a imanência não é mais imanência para um outro que
não seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência.
Assim como o campo transcendental não se define pela consciência, o
plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objeto
capazes de contê-lo.” 385

Deleuze afirma assim que a imanência absoluta, como potência completa, é uma
vida. Deste modo, define o campo transcendental por um plano de imanência e o plano
de imanência por uma vida. Neste sentido, ao elevar o artigo indefinido ao estatuto de
índice do transcendental, faz do empirismo superior um empirismo transcendental que
articula a Idéia — que, como diferencial do pensamento, constitui universais concretos
—, com uma ética do impessoal. Como foi analisado, a Idéia (como diferencial do
pensamento) subtrai constantes, dissolve os universais abstratos (padrões majoritários)
ao mesmo tempo em que se constitui como multiplicidade virtual. Há em Deleuze uma
Idéia da vida como uma vida… Ora, esta Idéia, como toda idéia, constitui-se por
subtrações, por derivações que compõem um movimento que, por sua vez, libera a vida

384
Neste ensaio, Deleuze define o que é um campo transcendental: “Ele se distingue da experiência, na
medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se
apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal,
duração qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o transcendental se defina
por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do
sujeito e do objeto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não se
trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação não é mais que um corte
na corrente da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da
passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será
necessário, como conseqüência, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem
objeto nem eu [moi], enquanto movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção
espinosista dessa passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).”
385
Gilles Deleuze, “L’immmance: une vie…”, in: Philosophie numéro 47, Gilles Deleuze, pág. 4.
de todas as ficções que a aprisionam no Eu da manifestação, no Mundo da designação e
no Deus da significação. Uma vida como correlato de um devir minoritário revela que o
empirismo transcendental de Gilles Deleuze não se separa de uma ética do
acontecimento que efetua uma afirmação da afirmação, vale dizer, afirmação da
imanência absoluta — imanência ela própria uma contra-efetuação do sistema e da
doutrina do julgamento que se repete na prova ontológica do eterno retorno, na qual,
como se viu, o mais alto pensamento afirma o ser como seleção que, por sua vez, afirma
o ser do devir. Deleuze nomeia o ser do devir: uma vida… Uma vida como
multiplicidade virtual anima um perspectivismo descentrado de toda transcendência,
uma imanência absoluta cuja consistência se faz como síntese disjuntiva de
virtualidades, acontecimentos e singularidades. Este perspectivismo integral faz da
filosofia uma arte da contra-efetuação das transcendências que se erguem no interior do
plano de imanência.
O empirismo transcendental não é uma teoria do conhecimento. Ele é um devir
do empirismo quando dele se subtrai a eminência do problema do conhecimento. Se ele
se afasta, como o empirismo, do racionalismo, ao subtrair a razão como fonte auto-
suficiente dos princípios, ele também recusa o elemento da sensação (empirismo
simples), pois, segundo Deleuze, a sensação não é mais do que um corte na corrente da
consciência absoluta. Desse modo, se o pensamento não começa pela razão nem pela
sensação, como compreender o seu movimento? Se o empirismo transcendental subtrai
do campo transcendental o sujeito e o objeto, não resta opção ao pensamento senão a
afirmação do devir das sensações. Mas o que isto significa? Como se viu, Deleuze
assim esclarece: “Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da
passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência
(quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo
transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto
movimento que não começa nem termina?” 386 Evidencia-se, assim, a máxima metódica
do empirismo transcendental: tomar as coisas pelo meio.

386
Gilles Deleuze, “L’immanance; une vie …
Univocidade e imanência

A este respeito Alain Badiou esclarece: “Agarrar o meio, porque o sentido do


percurso não é fixado segundo um princípio de ordem, ou de sucessão; ele é fixado pela
metamorfose movente que atualiza uma das extremidades na que é aparentemente a
mais disjunta. É o que se pode chamar de método anti-cartesiano.” 387 Como já se
observou no capítulo “O combate e o procedimento”, seguindo a indicação de Alain
Badiou, essa posição metódica — expressa no procedimento de subtração:
constituição… — é também uma posição ontológica: o caminho da imanência é o
mesmo que o da univocidade, o ser unívoco não pode ser repartido por categorias.
Como se evidenciará a univocidade se conquista por subtração: constituição…
Quanto ao problema da univocidade do ser, Deleuze retoma, via Espinosa,
conjuntamente com a terminologia da filosofia medieval, a questão: o ser é equívoco,
análogo ou unívoco? 388 Deleuze considera que o interesse desta questão ontológica diz
respeito, sobretudo, ao problema dos enunciados. Ou seja, trata-se de decidir se o ser se
diz em vários sentidos, sem comum medida, daquilo que ele se diz (se há vários
sentidos equívocos do ser); se o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo aquilo
que ele se diz (se há um sentido unívoco do ser); ou, se o ser se diz em vários sentidos
de tudo aquilo que ele se diz, sendo estes sentidos regidos por relações de analogia (se
há sentidos diversos, porém análogos, do ser).
A tese que advoga a analogia dos sentidos do ser é a tese que organiza o sentido
metafísico da doutrina do julgamento, da representação. Para melhor compreender esta
afinidade, deve-se lembrar que a analogia se afirma em dois sentidos complementares:
ela se diz como analogia de proporção ou como analogia de proporcionalidade. Segundo
o primeiro sentido (analogia de proporção), há um sentido primeiro do conceito de ser
(a substância ou a essência), sendo os demais sentidos, derivados, hierarquizados e
ordenados a partir do sentido primeiro. O segundo sentido da analogia, a analogia de

387
Cf. Alain Badiou, "De la Vie comme nom de l’Être", in Rue Descartes n.º 20, pág. 28. Nesse ensaio,
Badiou, observa que, para Deleuze, o caminho da imanência é o mesmo que o da univocidade: “Deleuze
me escreveu um dia, em letras maiúsculas: Univocidade = Imanência.”
388
Para maiores esclarecimentos sobre esta questão refira-se, além de Logique du sens e Différence et
répétition e Mille plateaux, à aula de Deleuze em Vincennes 14 de janeiro de 1974, disponível da
Internet.
proporcionalidade, tem uma afinidade com a analogia matemática. A primeira é serial e
a segunda é estrutural. Contudo, segundo Deleuze e Guattari:

“tanto em uma como em outra a natureza é concebida como imensa


mimese: ora sob a forma de uma cadeia de seres que não cessariam de
imitar-se, progressivamente ou regressivamente, tendendo ao termo
superior divino que todos eles imitam como modelo e razão da série,
por semelhança graduada; ora sob a forma de uma Imitação em
espelho que não teria mais nada para imitar, pois seria ela o modelo
que todos imitariam, dessa vez por diferença ordenada…” 389

O fundamental para Deleuze é que todo o conjunto das noções da analogia está
necessariamente ligado com a noção de categoria. Em que sentido as categorias fazem
parte da concepção analógica? Como se viu, as categorias são conceitos que se dizem de
todos os objetos da experiência possível (Kant) ou conceitos que se apresentam como os
diferentes sentidos da palavra ser (Aristóteles). Segundo Deleuze, só é possível para um
pensamento proceder por categorias se ele pressupuser a idéia de que o ser é análogo,
vale dizer, de que o ser se diz de tudo aquilo que ele se diz de um modo analógico. Mais
ainda:

“É num mesmo meio, o meio da representação, que a diferença é


posta, de um lado, como diferença conceitual e que a repetição, por
outro lado é posta como diferença sem conceito. E como não há
diferença conceitual entre os conceitos últimos determináveis em que
se distribui o mesmo, o mundo da representação acha-se encerrado
numa rede de analogias, o que faz da diferença e da repetição os
conceitos da simples reflexão. O Mesmo e o Idêntico podem ser
interpretados de muitas maneiras: no sentido de uma preservação (A é
A), no sentido de uma igualdade (A = A), ou no sentido de uma
semelhança (A# B), no sentido de uma oposição (A ≠ B), no sentido
de uma analogia (…) (A/não-A (B) = C/não-C(D). Mas todas estas
maneiras são as da representação, à qual a analogia vem dar um toque
final, um fechamento específico como último elemento.” 390

389
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, pág. 287 (vol. 4, pág. 14).
390
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 386 (473).
No que diz respeito à univocidade, Deleuze remonta a Duns Scot, que foi o
primeiro, segundo ele, a afirmar que o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo
aquilo que ele se diz. Contudo, ainda segundo Deleuze, Duns Scot concebeu o ser
unívoco como neutro, indiferente ao infinito e ao finito, ao singular e ao universal, ao
criado e ao incriado, ou seja, concedeu à univocidade somente um sentido metafísico.
“Duns Scot merece, pois, o nome de ‘doutor sutil’, porque seu olhar discerne o ser
aquém do cruzamento do universal e do singular. Para neutralizar as forças da analogia
no juízo, ele toma a dianteira e neutraliza antes de tudo o ser num conceito abstrato.” 391
Na verdade, a univocidade integral deve excluir toda diferença categorial entre os
supostos sentidos do ser. Assim, rigorosamente, se o ser unívoco se diz no mesmo
sentido de tudo o que é, a univocidade (como pensamento ontológico) subtrai do ser
toda diferença de substância, toda diferença de forma. Ainda uma vez, dada a
radicalidade da potência subtrativa da univocidade, que, na sua dimensão seletiva,
exclui do ser as diferenças de categorias, de formas, de gênero e de espécie, impõe-se a
questão: o que resta, que diferenças pode haver entre os entes para um pensamento que
se afirma como pensamento do informe, do não específico, do não genérico? Ora, se a
univocidade subtrai do ser as diferenças que exprimem uma analogia entre os supostos
sentidos do ser, ela não o faz sem constituir-se como pensamento que afirma que o ser
unívoco (que se diz em um só e mesmo sentido de tudo o que se diz) se diferencia em
graus de potência, só admite diferenças de grau: tudo o que é remete a um grau de
potência.
A univocidade do ser só pode admitir no ser, entre os entes, diferenças de grau
(de graus de potência). Deste ponto de vista, deve-se considerar as diferenças de forma,
de gênero e de espécie como falsas-diferenças, vale dizer, como ilusões decorrentes de
falsos-problemas e, assim, como secundárias (do mesmo modo, a analogia deve ser
compreendida como expressão de um falso-problema ontológico). 392 De acordo com
Deleuze, o pensamento dos graus de potência evita as classificações em gêneros e
espécies e diferencia os existentes segundo os agenciamentos em que cada qual é capaz
de entrar.

391
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. (81)
392
Em Différence et répétition, Deleuze mostra como a representação e suas figuras, a analogia entre elas,
devem ser compreendidas como ilusões (que se convertem em erros) geradas pelo movimento do eterno
Deleuze considera Espinosa como o filósofo que soube afirmar a univocidade:
“em vez de pensar o ser unívoco como neutro ou indiferente, fez dele um objeto de
afirmação pura. O ser unívoco se confunde com a substância única, universal e infinita:
é posto como Deus sive Natura.” 393 Neste sentido, em Espinosa, a afirmação culmina
em contemplação, na contemplação da necessidade da natureza.
Deleuze gosta de imaginar Espinosa contemplando os seres e as coisas (sem a
mediação das categorias) não como órgãos, formas, gêneros e espécies, mas como
diferenças de graus de potência. Espinosa afirmou a univocidade integral, vale dizer,
considerou que o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo o que ele se diz. Em
conseqüência, concluiu que os seres, não podendo se distinguir por sua forma, seu
gênero ou sua espécie, se diferenciam por graus de potência. Graus de potência que,
segundo Espinosa, remetem ao poder do corpo de ser afetado, aos afetos ou intensidades
de que um ser é capaz. É relevante salientar que, segundo Deleuze, potência e grau de
potência não se referem mais ao mundo da analogia. A potência não se distingue mais
do ato: o poder de ser afetado é sempre necessariamente preenchido. Mas se ele está
sempre preenchido, preenche-se de maneiras diferentes. Não em decorrência de uma
suposta natureza dos seres, mas em função dos agenciamentos em que se situam, dos
encontros que efetuam. Na dependência de seus encontros, um grau de potência é
afetado de modo que sua potência de agir e de existir aumenta (alegria) ou diminui
(tristeza). Deleuze sublinha, a partir de Espinosa, a diferença ética entre alegria e
tristeza e sua correlação com a diferença entre potência e poder. A efetuação de uma
potência (alegria) distingue-se do poder como limitação da potência de efetuar-se
(tristeza).
Apesar de Deleuze considerar Espinosa como o filósofo que soube afirmar a
univocidade integral, isto não o impede de assinalar um limite do espinosismo: nele, o
unívoco não foi objeto de uma afirmação pura. Para isto, segundo Deleuze,

“para que o unívoco se tornasse objeto de afirmação pura, faltava ao


espinosismo apenas fazer com que a substância girasse em torno dos
modos, isto é, faltava realizar a univocidade como repetição no eterno
retorno. Com efeito, se é verdade que a analogia tem dois aspectos,

retorno. Cf. Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 384 a 386 (470 a 473).
393
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 82.
um pelo qual o ser se diz em vários sentidos, mas outro pelo qual ele
se diz de algo fixo e bem determinado, a univocidade, por sua vez,
tem dois aspectos totalmente opostos, segundo os quais o ser se diz
‘de todas as maneiras’ num mesmo sentido, mas se diz assim daquilo
que difere, se diz da própria diferença, sempre móvel e deslocada no
ser. A univocidade do ser e a diferença individuante têm um liame,
fora da representação, tão profundo quanto o da diferença genérica e
da diferença específica na representação do ponto de vista da analogia.
A univocidade significa : o que é unívoco é o próprio ser e o que é
equívoco é aquilo de que ele se diz. Justamente o contrário da
analogia. O ser se diz segundo formas que não rompem a unidade de
seu sentido; ele se diz num mesmo sentido através de todas as suas
formas — eis porque opusemos às categorias noções de outra
natureza. Mas aquilo de que ele se diz difere, aquilo de que ele se diz é
a própria diferença. Não é o ser análogo que se distribui nas categorias
e reparte um lote fixo aos entes, mas os entes que se repartem no
espaço do ser unívoco aberto por todas as formas. A abertura pertence
essencialmente à univocidade.” 394

O unívoco, pensado como objeto de afirmação pura, a subtração da posição fixa


e central da substância e a constituição do seu movimento em torno dos modos
dependem da afirmação da univocidade como repetição no eterno retorno. Neste caso, a
afirmação não culmina mais em uma contemplação — na contemplação da necessidade
da natureza —, mas em criação. O que torna isto possível, senão a interpretação
deleuziana do eterno retorno?
Como já foi evidenciado, a interpretação deleuziana do eterno retorno se faz a
partir de uma teoria da diferença e da repetição, a qual, por sua vez, está integrada a
uma nova teoria do tempo que, afirmando a forma vazia do tempo e o tempo como linha
reta, permite conceber o eterno retorno (a mais elevada prova ética) como pensamento
seletivo e a repetição no eterno retorno como ser seletivo. Como diz Deleuze:

“É preciso viver e conceber o tempo como fora dos eixos, o tempo


posto em linha reta que elimina impiedosamente aqueles que a ele
estão ligados, que assim vêm à cena, mas que só repetem de uma vez

394
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 388 (474 e 475).
por todas. A seleção se faz entre repetições: aqueles que repetem
negativamente, aqueles que repetem identicamente serão eliminados.
Eles só repetem uma vez. O eterno retorno só existe para o terceiro
tempo. (…) O eterno retorno só existe para a terceira repetição, na
terceira repetição.” 395

Segundo a teoria deleuziana das três sínteses temporais, a terceira repetição diz
respeito à terceira síntese do tempo, significa a repetição como síntese do tempo como
futuro. Na temporalidade constituída pela terceira síntese do tempo, só a afirmação
seletiva retorna: dela estão excluídos o negativo, o idêntico, o mesmo e o semelhante, o
análogo e o oposto. Qual é o conteúdo deste terceiro tempo? Deleuze responde que o
que se repete são individualidades impessoais e singularidades pré-individuais e que,
neste sentido, o conteúdo afetado pelo eterno retorno é o sistema do simulacro. Sendo
assim, cabe ressaltar a novidade da relação entre a ontologia da univocidade do ser e a
filosofia da natureza: a prova do eterno retorno, ao selecionar o que se subtrai ao
sistema e à doutrina do julgamento, reintroduz na natureza a abertura e a vitalidade da
repetição que se diz da diferença. Não havendo mais transcendências a serem imitadas,
modelos a serem copiados, torna-se impossível postular quaisquer relações de analogias
entre os entes. Os existentes são então selecionados como potências e, nesta medida,
distribuem-se no campo aberto da vontade de potência de tal modo que suas relações só
podem ser relações de devir. Deve-se destacar ainda uma outra dimensão desta filosofia
da natureza. Esta define-se como sistema do simulacro que, do ponto de vista da
hipótese central desta tese, deve ser compreendido como contra-efetuação filosófica do
sistema do julgamento. Além deste aspecto, a filosofia da natureza tem o estatuto de
uma construção, é constituída como efeito da repetição no eterno retorno, ou seja, como
expressão de uma decisão ética. Constitui-se como sentido que se atribui à natureza,
como contra-efetuação do sistema do julgamento, como criação conceitual e não como
reconhecimento de uma ordem previamente já dada.
Como se vê, no empirismo transcendental de Deleuze, a univocidade do ser se
conquista efetivamente no movimento seletivo do eterno retorno. E, como se dá no
pensamento de Deleuze este encontro da univocidade com a imanência? Esse encontro,

395
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 381 (467 e 468).
essa identidade é produzida pelo movimento da filosofia deleuziana que, de um lado,
seleciona o singular na afirmação do universal e, de outro lado, afirma que o universal
concreto (a Idéia como diferencial do pensamento) se conquista, como se viu no
capítulo “Idéia e atualização”, por derivação, vale dizer, por subtração de constantes
(das ficções da universalidade abstrata e da generalidade): constituição de
singularidades, diferenças pré-individuais e impessoais. Não é este, aliás, o sentido da
seleção no eterno retorno? O que significa fazer a substância girar em torno dos modos
senão afirmar, quando a repetição se diz da diferença, que o universal se diz no e do
singular?

O combate pela imanência

Não se deve supor que a questão do combate ao sistema e à doutrina do


julgamento seja unicamente restrita a uma fase ou segmento da obra de Gilles Deleuze.
Pois, decerto, se há mudanças e rupturas na sua obra, elas jamais contrariam este
combate fundamental que se desenvolve como combate pela imanência. As rupturas se
fazem, antes, como radicalização e prolongamento do combate ao julgamento. Assim,
conforme esclarecimento do próprio Deleuze, 396 o seu encontro com Guattari propiciou
a conversão do seu grito “viva o múltiplo” — a teoria diferencial do pensamento, o
sistema do simulacro e a doutrina do eterno retorno da diferença… — numa prática da
multiplicidade: “fazer o múltiplo”. Fazer o múltiplo significa, para Deleuze e Guattari,
conquistar uma escrita rizomática que efetivamente subtraia os gêneros e as espécies.
Deve-se enfatizar que é tal fidelidade ao combate ao sistema e à doutrina do julgamento
que forçou a radicalização desse movimento por uma imanência integral. Assim, se não
é falso dizer que a partir de L’Anti-Œdipe, escrito por Deleuze conjuntamente com Félix
Guattari, o combate da filosofia da diferença visa, sobretudo, às expressões culturais,
extra-filosóficas, do sistema do julgamento (a psicanálise, a lingüística, as ciências
humanas e sociais, o racismo europeu, a política majoritária, o Estado, etc.), não é
menos verdade que esta mudança não se compreende em si mesma. O relevante é que
essa mudança de direção na atenção dos temas não se separa da questão imperativa que
se radicaliza. E tal radicalização exige, conforme foi observado a propósito do sentido
da palavra plural no capítulo “O dehors e o signo”, em nome de uma imanência
absoluta, que a escrita construtivista ultrapasse a distância representativa: as dualidades
do sujeito e do objeto, da linguagem e das coisas.
Teria L’Anti-Œdipe realizado integralmente essa exigência? Parece que não. A
este respeito as considerações de Philippe Mengue, em Gilles Deleuze ou le sistème du
multiple, são essenciais. 397 É importante salientar não apenas que a crítica do desejo
como falta conduzirá logicamente à crítica do signo como significação, mas, também,
destacar o estatuto metafísico da noção de repressão em L’Anti-Œdipe. Segundo
Mengue, o conceito de repressão aprisiona o pensamento nas armadilhas da
representação, na medida em que supõe dualidades metafísicas: a noção de repressão
transporta consigo a idéia de uma distância enunciativa, vale dizer, ela implica uma
dualidade causal — a idéia de uma causa repressora que incide sobre um desejo
(reprimido), desejo onde produz-se seu efeito, a repressão —, e uma dualidade
representativa — a idéia de uma relação de oposição entre um representante deformante
e um representado deformado. A propósito deste problema, o da necessidade de
ultrapassar os dualismos metafísicos, pode-se considerar, com Philippe Mengue, que
Mille plateaux e Qu’est-ce que la philosophie? conquistam — o primeiro com sua teoria
da expressão e do agenciamento, o segundo com uma nova concepção da filosofia e
uma nova teoria do conceito — os meios filosóficos que permitem ultrapassar a
distância representativa entre o pensamento e o real, distância enunciativa denunciada,
também, por Jean-François Lyotard, em “Capitalisme énergumène”, como ainda
presente em L’Anti-Œdipe.
Assim, a cada novo encontro, a questão fundamental do combate ao julgamento,
que se exprime no movimento sempre reiterado da conquista da imanência, repete-se
em novos problemas. Um novo encontro com a psicanálise, desta vez compreendida

396
Cf. Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues, pág. 23 (24).
397
“O signo é a presença/ausência da coisa. O que é também a definição hegeliana do desejo. O desejo
como o signo é a presença no sujeito da coisa ausente (e desejada). O ‘significante’ do desejo, dir-se-á,
será, então, o significante da falta (= a marca da falta…) e este último será o significante do significante.
O destino do desejo e aquele do significante estão ligados no destino da representação, com seu dualismo
e sua dimensão de ausência. Eis porque L’Anti-Œdipe, que exibe, no centro de sua orientação, a crítica de
uma tal concepção do desejo, será necessariamente conduzido àquela do significante e da linguagem,
problemática que só se concluirá em Mille plateaux.” Philipe Mengue, Gilles Deleuze ou le sistème du
multiple, pág. 54.
como elemento do sistema do julgamento, 398 resulta em L’Anti-Œdipe, mais do que
simplesmente numa crítica à psicanálise, na criação do conceito de desejo como
imanente a si próprio. Tanto esta crítica quanto esta criação operam por subtração:
constituição... e se fazem determinando uma nova série de problemas que mobilizam a
criação de novos conceitos: o que são o inconsciente, o corpo do desejo, a história
universal, para um pensamento que afirma o acaso, o devir e multiplicidade, fiel à
construção de uma imanência radical do pensamento ao pensamento? A subtração do
pressuposto da representação, da falta, articula-se com a criação dos conceitos de desejo
maquínico (o delírio, o desejo, é histórico-mundial e não familiar), e com a
determinação do inconsciente como fábrica e não como teatro (questão de produção e
não de representação). Também o conceito de corpo do desejo deve ser construído
(questão de produção) com as subtrações dos estratos que constituem o organismo. A
história universal torna-se contingente, recorrente, crítica e irônica. Os fluxos, que são
objeto da história, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas e
descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos
independentes. Contudo, conforme Philipe Mengue, a observação final de Jean-François
Lyotard, 399 em “Capitalisme énergumène”, teria sensibilizado Deleuze e Guattari, que
buscaram, então, escapar, em Mille plateaux, do mais difícil: da tripartição metafísica
entre o mundo (como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância
representativa), e o sujeito (como estrutura enunciativa).
Mille plateaux radicaliza o movimento pela imanência, põe novos problemas e

398
No L’abcderaire Deleuze refere-se à importância do conceito nietzschiano de sacerdote como conceito
fundamental para o esclarecimento de um aspecto importante do sistema do julgamento, a saber, o poder
sacerdotal. Ele assinala que este conceito retorna, na obra de Foucault, a propósito de sua teoria do poder
pastoral. Considera que ele próprio retoma este conceito, à sua maneira, na crítica feita à psicanálise no
L’Anti-Œdipe.
399
“Um pensamento é aquilo em que a posição energética se esquece representando-se. A teatralidade é
tudo o que o pensamento pode denunciar no pensamento, pode criticar. Um pensamento poderá sempre
criticar um pensamento, poderá sempre exibir a teatralidade de um pensamento, repetir o desvio. Mas no
entanto passa-se qualquer coisa, porque os pensadores não podem criticar enquanto essa qualquer coisa
não tiver entrado no pensamento teatralizável. O que se passa é um deslocamento. (…) O que é
importante não é o discurso sobre a metafísica que é o discurso da metafísica. A metafísica é a potência
do discurso em potência em qualquer discurso. O que interessa é que ele muda de cena, de dramaturgia,
de lugar, de modalidade de inscrição, de filtro, portanto de posição libidinal. Os pensadores pensam a
teatralidade metafísica, no entanto a posição do desejo desloca-se, o desejo trabalha, começam a trabalhar
novas máquinas (…) Esse transporte da força não pertence ao pensamento nem à metafísica. O livro de
Deleuze e Guattari representa no discurso esse transporte. Se só entendermos a sua representação,
perdemos: teremos razão no interior dessa figura, segundo os critérios desse dispositivo.” J.F. Lyotard in
Carrilho, Manuel Maria (org.). Capitalismo e esquizofrenia. Dossier Anti-Édipo, págs 133 e 134.
repete diferentemente, inovando portanto, problemas já esboçados nos livros
precedentes e fazendo avançar o trabalho de criação de uma nova imagem do
pensamento e de uma escrita construtivista.
Deste modo, Mille plateaux, que compartilha com L’Anti-Œdipe o sub-título
Capitalisme e schizofrénie, não é uma continuação linear das teses propostas no livro
de 1972: de um volume a outro há mudança de tom e avanços da criação. Mesmo que se
pudesse imaginar que o Anti-Oedipe tivesse como subtítulo Pela filosofia, nele a
construção ético-filosófica se faz através de uma crítica. Mille plateaux, ao contrário, é
um livro fundamentalmente positivo: não se está mais diante de uma crítica do Édipo, e
sim da construção do conceito de multiplicidade, para além da oposição do Um e do
Múltiplo, dos dualismos da consciência e do inconsciente, da natureza e da história, do
corpo e da alma.
Como dizem seus autores no Prefácio para a edição italiana de Mille plateaux,
reproduzido na edição brasileira:

“O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana: era preciso tentar uma


espécie de Crítica da Razão pura no nível do inconsciente. Daí a
determinação de sínteses próprias ao inconsciente; o desenrolar da
história como efetuação dessas sínteses; a denuncia do Édipo como
‘ilusão inevitável’ falsificando toda a produção histórica. Mil platôs se
baseia, ao contrário, em uma ambição pós-kantiana (apesar de
deliberadamente anti-hegeliana). O projeto é ‘construtivista’. É uma
teoria das multiplicidades por elas mesmas, no ponto em que o
múltiplo passa ao estado de substantivo, ao passo que o Anti-Édipo
ainda o considerava em sínteses e sob as condições do
inconsciente.” 400

A teoria da multiplicidade efetua uma interpretação do real que conjuga uma


construção ontológica e uma leitura do mundo e da sociedade que surpreende com uma
nova distribuição dos seres e das coisas: não admite unidade natural, uma vez que não
se apóia em nenhuma necessidade e não visa a nenhum prazer; não reconhece a falta,
uma vez que não se constitui em referência a uma unidade ausente, recusando, portanto,

400
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs, vol. 1, pág. 8.
a noção de desejo como falta; e não aceita qualquer transcendência — seja na origem,
como idéia ou modelo, seja no destino, como sentido historicamente desenvolvido. A
perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade fazem do pensamento uma
atividade ética — sem modelos e finalidades transcendentes — avessa a qualquer
conforto moral ou orientação histórica.
Mille plateaux pode ser aqui tomado como exemplo de funcionamento do
empirismo transcendental, do pensamento como combate e experimentação. É que a
forma de sua composição deixa evidente a característica fundamental do sistema da
filosofia da diferença como multiplicidade em perpétua heterogeneidade e em
heterogênese. Cada platô remete a um ou mais problemas que se desenvolvem nos
conceitos que nele se criam mediante o procedimento de subtração: constituição... Além
disto, os platôs, aparentemente independentes, constituem um sistema de múltiplas
ressonâncias uma vez que seus problemas são postos pela questão maior do combate ao
julgamento e que os conceitos que desenvolvem estes problemas buscam dar
consistência ao combate pela imanência absoluta. Os conceitos tornam-se concretos
quando articulados aos problemas que desenvolvem e os problemas, por sua vez, se
precisam quanto relacionados à questão imperativa do combate ao sistema e à doutrina
do julgamento. Neste sentido, cada platô pode ser compreendido como uma contra-
efetuação filosófica do sistema e da doutrina do julgamento.
Os conceitos, para Deleuze e Guattari, devem determinar não o que é uma coisa,
sua essência, mas antes suas circunstâncias. Explica-se, assim, que cada platô —
conceito tomado de empréstimo a Bateson, que designa uma estabilização intensiva e,
no caso, uma multiplicidade conceitual — possua um título relacionado a uma data. Os
títulos enunciam um campo de problemas, e as datas indicam que se pretende
determinar a potência e os modos de individuação de um acontecimento. Apesar de cada
platô pôr seu problema próprio, observa-se uma característica comum a todos:
constituem-se como um mapeamento, cujos movimentos descrevem um percurso: parte-
se do interior de um ou mais estratos e de seus dualismos na direção de suas condições
de existência, das “máquinas abstratas” que os efetuam e os determinam como
atualizações; simultaneamente, os estratos são associados aos agenciamentos de poder
que lhes são anexos e primeiros; por fim, num outro giro, o pensamento contorna as
máquinas abstratas e as relaciona com um plano de consistência, ao qual se acede por
desestratificação: revelam-se, assim, nesse percurso, a heterogeneidade, a coexistência,
as imbricações e a importância relativa das diferentes linhas que compõem uma
multiplicidade. No entanto, o fundamental é salientar que os problemas colocados e os
conceitos desenvolvidos têm o sentido de dar consistência ao prolongamento do
combate pela imanência.
Como pensar a unidade e a abertura de um sistema filosófico (rizoma) que se
afirma como pensamento da multiplicidade? Na Introdução: Rizoma, os autores
recusam o pensamento como representação, sua lei da reflexão e da unificação, e
apresentam Mille plateaux como livro-rizoma que, abolindo a tripartição entre o mundo
(como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância representativa), e
o sujeito (como estrutura enunciativa), é capaz de conectar-se com as multiplicidades. A
escrita rizomática define-se pela operação de subtração dos pontos de unificação do
pensamento e do real, realiza um mapeamento e uma experimentação no real, que
contribui para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das
multiplicidades sobre um plano de consistência.
O platô seguinte, 1914 — Um ou vários lobos?, consiste em uma crítica da
psicanálise que aprofunda as reflexões iniciais sobre o conceito de multiplicidade. O
terceiro platô, 10.000 A.C. — A geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?),
retoma a questão de uma ontologia que se subtrai à imagem de um mundo verídico,
concebido como um Todo ordenado pelo Um. Apresenta a ontologia como geologia das
multiplicidades constituídas por movimentos de estratificação e desestratificação que se
conjugam com movimentos de territorialização e desterritorialização traçados por
máquinas abstratas que operam sobre diversos planos de consistência.
A questão sobre o que deve ser a linguagem para uma filosofia da imanência cujo
intuito é subtrair os postulados da imagem dogmática do pensamento que domina a
filosofia da representação organiza dois platôs fundamentais: 20 de novembro 1923 —
Postulados da linguística; 587 A.C. — Sobre alguns regimes de signos. Evitando
pressupor qualquer relação de representação e de causalidade — material ou simbólica
— entre os sistemas de signos e os sistemas maquínicos dos corpos, Deleuze e Guattari
criticam os postulados de base do estruturalismo e da teoria marxista da ideologia.
Atacam os pressupostos da semiologia, questionando o primado da comunicação e
propondo a “palavra de ordem” como função primeira da linguagem; criticam a
distinção langue/parole e destronam a independência e autonomia da langue com os
conceitos de agenciamento coletivo de enunciação e regimes de signos; finalmente, não
admitem uma semiologia geral, negando qualquer privilégio de um regime de signos
sobre os outros.
28 novembro 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos retoma e
desenvolve o conceito de Corpo sem Órgãos, proposto em Logique du sens e reativado
em L’Anti-Œdipe, conceito que permite pensar o desejo como processo que produz o
campo de imanência de seus agenciamentos, evitando a dependência da idéia do corpo
como origem das necessidades e lugar dos prazeres, ao mesmo tempo em que define um
centro de perspectiva impessoal, pré-individual (como idiossincrasia das forças em
metamorfose) adequado à idéia do perspectivismo (como verdade do relativo) que a
filosofia da diferença quer conquistar.
A questão que dá sentido ao platô Ano Zero – Rostidade é a questão do combate
ao sistema do julgamento, especialmente o combate ao assassinato do cosmos, vale
dizer, à supressão da Relação ou do Devir (relações de forças) imanente à existência, em
favor de uma transcendência que projeta a existência numa historia teleológica, faz dos
existentes alegorias e, dos seus afetos, sentimentos. Este platô faz o mapa de uma
semiótica mista, combinando significância e subjetivação como procedimentos de
comparação e de apropriação, os quais asseguram uma política de inclusão diferencial
que ignora a alteridade e define, segundo os autores, o racismo europeu. Desse modo,
neste platô, Deleuze e Guattari criam os conceitos de rostidade, muro branco e buraco
negro, etc, que se articulam com os conceitos de semióticas despóticas e autoritárias, os
conceitos (antipáticos, no caso) adequados para uma contra-efetuação filosófica das
semióticas que compõem o sistema e a doutrina do julgamento.
A questão-imperativa do acaso e da imanência da existência retoma, em outro
registro, o problema precedente e desenvolve-se num novo problema (problema de
micropolítica) que organiza a investigação do que pode ser, do ponto de vista de uma
ontologia do social, a consistência imanente do socius. Neste sentido, os platôs 1874 —
Três novelas ou “o que se passou?” e 1933 — Micropolítica e segmentaridade,
ensinam que o real é feito de linhas, isto é, de movimentos heterogêneos que operam
segmentações (binárias, circulares e lineares), duras ou flexíveis, constituindo
dimensões molares ou moleculares, e fugas criadoras, tudo em perpétua coexistência e
interpenetração. A diferença de natureza dos planos molares e moleculares — referem-
se a sistemas de referência distintos, linhas sobrecodificadas de segmentos e fluxos
mutantes — não impede, pelo contrário, sua pressuposição recíproca. Os autores
propõem uma visão original do que denominam centros de poder, definidos por suas
operações de conversão dos fluxos moleculares em segmentos molares, e sobre o
Estado, pensado como agenciamento de reterritorialização ou movimento de
sobrecodificação, que organiza a ressonância dos centros de poder.
Os platôs 1730 — Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível e 1837 —
Acerca do Ritornelo) dedicam-se a contornar a visão mimética da natureza, que se
sustenta em uma ontologia onde o ser se diz de modo análogo segundo suas
distribuições categoriais. Contrapõem a univocidade à equivocidade e à analogia do ser,
afirmando o ser como potência diferenciadora irredutível às idéias de modelo e de
imitação. Como pensar, então, os entes concretos e suas relações? Os autores
respondem que os entes são diferenças e suas relações devires, afetos ou modificações,
que devem ser pensados independentemente das idéias de forma, de função, de espécie
e de gênero. O conceito de devir que acompanha o abandono das concepções
substancialistas e da perspectiva hilemorfista da individuação (simples encontro de
forma e matéria), permite pensar os corpos como singularidades, como processos
irredutíveis às sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito. Nesse
sentido, os devires são moleculares e minoritários: imperceptíveis (anorgânicos),
indiscerníveis (assignificantes) e impessoais (assubjetivos). Nesse universo de
intensidades, o conceito de ritornelo enfrenta o problema da consistência ou da
consolidação de agenciamentos heterogêneos e permite pensar a arte
independentemente de qualquer modelo mimético.
Os platôs 1227 — Tratado de nomadologia: a máquina de guerra, 7000 a.C. —
Aparelho de captura e 1440 — O liso e o estriado deslocam a questão política do direito
e da liberdade civil para o problema do domínio dos fluxos. Deleuze e Guattari
afirmam, contra o racionalismo liberal, que o direito é impotente para controlar o
Estado, uma vez que lhe é interior e representa uma forma específica de violência;
contra o marxismo, questionam a dialética (a idéia de que uma sociedade se define por
um modo de produção e por suas contradições), o evolucionismo e toda idéia de
progresso histórico. O problema político é recolocado a partir da distinção de dois
grandes tipos de agenciamentos, que diferem em natureza mas se pressupõem, e são
coextensivos a toda história humana: a máquina de guerra e o aparelho de Estado. A
criação desses conceitos, a análise de suas transformações e de suas relações, e a
distinção de duas modalidades de temporalização e de espacialização configuram novas
direções para a compreensão das sociedades: não definir as sociedades por suas
contradições, mas por suas linhas de fuga; considerar não as classes e sim as minorias
como potências revolucionárias; definir as máquinas de guerra não pela guerra, mas,
antes, por um certo modo de inventar novos blocos espaço-temporais.

A imanência e o conceito

Mille plateaux avança na elaboração de uma teoria das multiplicidades


imanentes. Nesta direção, como já foi assinalado, subtrai ao pensamento os
pressupostos que asseguram uma tripartição entre o mundo, a linguagem e o sujeito, que
instaura uma dualidade representativa entre o pensamento e o que ele pensa. Com
respeito ao problema de como escapar desta dualidade ou distância representativa, é
fundamental a afirmação de um pensamento e de uma escrita subtrativa (a n-1):
constituinte de multiplicidades e agenciamentos. Deste modo, o pensamento torna-se
criativo e envolve movimentos de desterritorialização que ultrapassam qualquer
dualidade entre sujeito e objeto. Esta conquista se prolonga numa nova filosofia da
linguagem que se subtrai às constantes e aos universais postulados pela linguística,
constituindo uma nova imagem da linguagem (não mais pensada como instância
representativa) como multiplicidade que comporta agenciamentos coletivos de
enunciação, movimentos de desterritorialização e de reterritorialização na produção
imanente do sentido. A subtração dos postulados da analogia e a afirmação do devir,
como relação exterior aos termos que relaciona, desfigura a unidade do mundo e expõe
no movimento dos entes suas forças e seus devires minoritários. O movimento de
subtração: constituição… prolonga-se em Qu’est-ce que la philosophie? na
determinação do plano de imanência como instância transcendental que apóia a criação
de um novo conceito de conceito em filosofia. Deleuze e Guattari sustentam sua
fidelidade à imanência com a idéia de um plano de imanência absoluto e com um novo
conceito de conceito. Como o conceito de Idéia, desenvolvido em Différence et
répétition, o conceito deleuziano se subtrai de toda transcendência e de toda função
representativa, sendo definido como a Idéia (como diferencial do pensamento)
filosófica.
Qu’est-ce que la philosophie? prolonga o combate ao sistema e à doutrina do
julgamento. Neste livro, Deleuze, juntamente com Guattari, precisa a questão “O que é
pensar?” e, finalmente, põe explicitamente a questão que anima toda sua obra. Desta vez
trata-se de definir a própria filosofia. O que está em questão: o que é a filosofia? Ocorre
que este problema não pode ser posto isoladamente e ele abre um campo de novos
problemas. A questão “o que significa pensar, quando pensar não é julgar” determina o
problema “O que é a filosofia?”. O dinamismo que envolve esta atualização diferencia
a questão “o que significa pensar?” em uma série de problemas heterogêneos que
compõem um centro de metamorfose, no qual o combate das forças se resolve em
heterogêneses: a idéia filosófica torna-se conceito, a idéia científica define-se como
função e, a idéia da arte diferencia-se em percepto e afeto.
O tema da imagem do pensamento que está presente na obra de Gilles Deleuze
desde Nietzsche et la philosophie, repete-se, em Proust et les signes e em Différence et
répétition, na crítica da imagem dogmática do pensamento em favor de um pensamento
sem imagem. Em Qu’est-ce que la philosophie? Deleuze e Guattari não mais se referem
a um pensamento sem imagem, ao contrário, afirmam que o pensamento depende
sempre de uma imagem que lhe confere uma orientação. Será que Qu’est-ce que la
philosophie? representa um recuo a este respeito? Antes do que um recuo, há uma
radicalização e um aprimoramento da questão que se exprimiu na afirmação de um
pensamento sem imagem, condição da subtração da concepção representativa do
conceito e da constituição tanto da teoria diferencial do pensamento e da experiência
quanto do conceito de Idéia como multiplicidade diferençada e de sua atualização como
criação e diferenciação. A idéia de um pensamento sem imagem enriquece-se e
desenvolve-se, em Qu’est-ce que la philosophie?, na idéia do Uno-Todo — plano de
imanência como dimensão que deve que ser pensada e que, ao mesmo tempo, não pode
ser pensada. Este não-pensado no pensamento, base de todos os planos, imanente a cada
plano pensável que não chega a pensá-lo, deve ser discernido como o dehors absoluto
do pensamento, como a imanência absoluta que sustenta a afirmação de que pensar e ser
são uma só e mesma coisa. Assim, se não se fala mais de um pensamento sem imagem
não é porque recuou-se em favor de um universalismo dogmático ou em favor de um
relativismo das imagens do pensamento. Ao contrário, a idéia de um plano de imanência
absoluto assegura não apenas uma crítica do conceito representativo, mas a constituição
de um novo conceito de conceito e com ele um perspectivismo e uma hierarquia entre
os pontos de vista. Sem este impensável, que torna ao mesmo tempo pensável as
multiplicidades dos planos de imanência, seria impossível pensar uma seleção imanente
aos próprios planos. Nem todos os planos se equivalem na medida em que nem todos
suportam a prova do seu eterno retorno, vale dizer, a afirmação desta imanência
absoluta que se exprime na idéia de que a imanência deve ser construída e que o
conceito deve ser criado.
O conceito deleuziano só se diz da imanência: ele provém da imanência, povoa o
plano de imanência que ele pressupõe e, desse modo, torna a imanência,
filosoficamente, consistente. Deve-se, nessa nova encruzilhada de problemas, retornar
ao problema do sentido da imanência absoluta, do significado do plano de imanência:

É quando a imanência não é mais imanente a outra coisa senão a si,


que se pode falar de um plano de imanência. Um tal plano é talvez um
empirismo radical: ele não apresenta um fluxo vivido imanente a um
sujeito, e que se individualiza no que pertence a um eu. Ele não
apresenta senão acontecimentos, isto é, mundos possíveis enquanto
conceitos, e outrem como expressões de mundos possíveis ou
personagens conceituais. O acontecimento não remete o vivido a um
sujeito transcendente = Eu, mas remete ao contrário ao sobrevoo
imanente de um campo sem sujeito; Outrem não devolve a
transcendência a um outro eu, mas traz todo outro eu à imanência do
campo sobrevoado. O empirismo não conhece senão acontecimentos e
outrem, pois ele é grande criador de conceitos. Sua força começa a
partir do momento em que define o sujeito: um habitus, um hábito
num campo de imanência, o hábito de dizer Eu…” 401

Deve-se discernir duas dimensões do plano de imanência que, embora distintas,

401
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 49 (65 e 66).
estão sempre em pressuposição recíproca: o plano de imanência absoluto, que a filosofia
não pode pensar, mas apenas mostrar que ele está lá, não pensado em cada plano, o
Uno-Todo ilimitado como plano que comporta infinitas variações, e suas variações
efetivas, que configuram imagens concretas do pensamento, outros tantos Uno-Todo
ilimitados, desta feita como orientações singulares do pensamento. Torna-se crucial
pensar as diferenças nas modalidades de relações de cada plano singular com a
imanência absoluta, o plano de imanência que banha todos os demais. É neste ponto, na
relação entre essas dimensões da imanência que talvez se possa pensar uma diferença
entre os planos, sua maior ou menor disponibilidade para gerar ilusões. Mas, convém
aguardar um pouco para retornar à questão das ilusões que a imanência suscita.
De todo modo, na filosofia da diferença, o combate ao julgamento conduz a uma
imagem do pensamento que faz da filosofia um combate imanente que se efetua na
construção de um plano de imanência e na criação dos conceitos que o ocupam e,
assim, lhe asseguram consistência. O conceito de conceito se diz dos conceitos criados
para dar consistência a uma nova imagem do pensamento, que orienta a criação
deleuziana e que ele denomina de imagem moderna do pensamento. Essa imagem
postula primeiramente:

“que a verdade é somente o que o pensamento cria (…): o


pensamento é criação e não vontade de verdade, como Nietzsche
soube mostrar. Mas se não há vontade de verdade, contrariamente ao
que aparecia na imagem clássica, é que o pensamento constitui uma
simples ‘possibilidade’ de pensar, sem definir ainda um pensador que
seria ‘capaz’ disso e poderia dizer Eu: que violência deve se exercer
sobre o pensamento, para que nos tornemos capazes de pensar,
violência de um movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo
do poder de dizer Eu? Textos celebres de Heidegger e de Blanchot
expõem esse segundo caráter. Mas, como terceiro caráter, se há assim
um ‘Impoder’ do pensamento (que reside em seu coração, quando
adquire a capacidade determinável como criação), um conjunto de
signos ambíguos se ergue (…):como sugere Kleist ou Artaud, é o
pensamento enquanto tal que se põe a ter ríctus, rangidos, gaguejos,
glossolalias, gritos que o levam a criar ou a ensaiar. E se o
pensamento procura, é menos à maneira de um homem que disporia
de um método, que à maneira de um cão que pula
desordenadamente…Não há porque envaidecer-se por uma tal
imagem do pensamento, que comporta muitos sofrimentos sem glória
e que indica quanto o pensar tornou-se cada vez mais difícil: a
imanência. 402

O que é esse conceito que se diz da criação? Como pensar sua gênese? Não é
possível avançar na compreensão dessas questões sem esclarecer como Deleuze e
Guattari determinam o problema da filosofia. Este se configura na confluência de novas
questões: O que é um plano de imanência e, o que é o caos? O plano de imanência é
definido como um corte do caos e o caos é caracterizado não pela ausência de
determinações, mas pela velocidade infinita com que estas se esboçam e se apagam.
Sendo o caos pensado como caotização que desfaz, no infinito, toda consistência,
compreende-se que Deleuze e Guattari definam assim o problema da filosofia:

o problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o


infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, deste ponto de vista,
tem uma existência tanto mental como física). Dar consistência sem
nada perder do infinito, é muito diferente do problema da ciência que
procura dar referência ao caos (…) A filosofia, ao contrário, procede
supondo ou instaurando o plano de imanência: é ele, cujas curvaturas
variáveis conservam os movimentos infinitos que retornam sobre si na
troca incessante, mas também não cessam de liberar outras que se
conservam. Então, resta aos conceitos traçar as ordenadas intensivas
desses movimentos infinitos, como movimentos eles mesmos finitos
que formam, em velocidade infinita, contornos variáveis inscritos
sobre o plano. Operando um corte do caos, o plano de imanência faz
apelo a uma criação de conceitos.” 403

A filosofia, como construtivismo, deve construir um plano e criar conceitos.

402
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 55 (73 e 74).
403
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 45 (59 e 60).
Contudo, apesar do plano fazer apelo a criação de conceitos, o plano não é um conceito.
“O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos
são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus
próprios componentes. (…) O problema do pensamento é a velocidade infinita, mas esta
precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente, o plano, o vazio, o
horizonte.” 404 Feito este esclarecimento, pode-se indagar: quais são os componentes
desses movimentos finitos em velocidades infinitas? Quais são os componentes do
conceito, como eles são determinados?
Um conceito, como multiplicidade, é uma multiplicidade que comporta
componentes e define-se pelo seu regime de co-funcionamento. A esse respeito,
Deleuze e Guattari assinalam que não há conceito de um só componente, nem conceito
que contenha todos os componentes. O conceito não pode reduzir-se a um fato, nem
sucumbir no caos. Advertem, ainda, que o conceito, abstraído do problema que orienta a
sua constituição (a articulação, o corte e as superposições de seus componentes), perde
o seu sentido — que só pode ser compreendido como solução.
A respeito da definição do conceito, Deleuze e Guattari destacam os seguintes
aspectos dos conceitos: 1) Cada conceito remete a outros conceitos; 2) o conceito torna
seus componentes inseparáveis nele:

“distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal é o estatuto dos


componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua endo-
consistência. (…) Os componentes permanecem distintos, mas algo
passa de um a outro, algo de indecidível entre os dois: há um domínio
ab que pertence tanto a a quanto a b, em que a e b se tornam
indiscerníveis. São estas zonas, limites ou devires, esta
inseparabilidade, que definem a consistência interior do conceito. Mas
este tem igualmente uma exo-consistência, com outros conceitos,
quando sua criação implica na construção de uma ponte sobre o
mesmo plano” 405 ;

3) um conceito deve ser considerado como um ponto de condensação de seus próprios

404
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 38 (51).
405
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 25 (31).
componentes. Neste sentido, um conceito é uma heterogênese. Ele “é ordinal, é uma
intensão presente em todos os traços que o compõem. Não cessando de percorrê-los
segundo uma ordem sem distância, o conceito está em estado de sobrevoo com relação a
seus componentes” 406 ; 4) o conceito é um incorporal que não se confunde com o estado
de coisas no qual se efetua, ele é um ato do pensamento, o pensamento operando em
velocidade infinita; 5) o conceito é “relativo a seus componentes, aos outros conceitos,
ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas
absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas
condições que impõe ao problema.” 407 Porém, mais profundamente, o conceito sendo
criado, ele é, ainda, autopoético. “O conceito define-se por sua consistência, endo-
consistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é auto-referencial, põe-se a
si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado. O construtivismo une o
relativo e o absoluto” 408 ; 6) o conceito sendo auto-referencial não pode ser discursivo
nem a filosofia uma formação discursiva. Desse modo,

“os conceitos, que só têm consistência ou ordenadas intensivas fora de


coordenadas, entram livremente em relações de ressonância não
discursiva, seja porque os componentes de um se tornam conceitos
com outros componentes sempre heterogêneos, seja porque não
apresentam entre si nenhuma diferença de escala em nenhum nível. Os
conceitos são centros de vibração, cada um em si mesmo e uns em
relação aos outros. É por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir
ou de corresponder. Não há nenhuma razão para que os conceitos se
409
sigam.”

Por fim, deve-se destacar a especificidade da enunciação filosófica dos


conceitos. Em decorrência da natureza auto-referencial do conceito sua enunciação de
posição deve ser “estritamente imanente ao conceito, já que este não tem outro objeto
senão a inseparabilidade dos componentes pelos quais ele próprio passa e repassa, e que

406
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 26 (32 e 33).
407
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 26 (33 e 34).
408
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 27 (34)
409
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 28 (35).
constitui sua consistência. 410
Observando as características que definem o conceito deleuziano de conceito,
percebe-se como Deleuze e Guattari prosseguem, no campo conceitual, o movimento da
subtração: constituição… que animou o combate pela imanência na teoria diferencial
do pensamento, na teoria da Idéia e da atualização e na ontologia da univocidade do ser.
No caso do conceito de conceito, trata-se de subtrair do pensamento a transcendência e
o universal abstrato e a operação de generalização que definem o conceito da filosofia
da representação. A subtração do universal como Um ou como Mesmo transcendente é
o que desencadeia a constituição do novo conceito de conceito, como variação intensiva
e a sua nova concepção da unidade, como co-funcionamento ou síntese disjuntiva. O
novo problema, que estimula um novo conceito de conceito é: como pensar a unidade
conceitual sem introduzir no conceito uma transcendência, nem uma subjetividade
constituinte? Deleuze e Guattari respondem: a unidade dos componentes do conceito
depende de um sobrevoo imanente do ponto conceitual e de uma velocidade infinita do
pensamento. Desse modo, afirma-se a imanência e evita-se toda distância representativa
na teoria do conceito.
O procedimento de subtração: constituição… opera na construção da imanência
e na criação do conceito: subtração das transcendências: constituição da imanência e
criação do conceito de conceito como criação. Contudo, a conquista da perspectiva da
imanência absoluta e dos conceitos que lhe asseguram consistência não apenas se
subtrai das transcendências e dos universais. A imanência deve, por sua vez, iluminar a
gênese das transcendências e dos universais. Como compreender, do ponto de vista da
imanência, a gênese das transcendências? É claro que elas devem ter uma gênese na
própria imanência, na experiência. Mas qual é o estatuto dessa gênese, que se nega
enquanto tal? Deleuze e Guattari falam de ilusões, ilusões que envolvem o plano de
imanência e que se erguem no interior do plano. Neste sentido, eles destacam as
seguintes ilusões:

“há, de início, a ilusão de transcendência, que talvez preceda todas as


outras (sob um duplo aspecto, tornar a imanência imanente a algo, e
reencontrar a transcendência na própria imanência). Depois a ilusão

410
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 28 (36).
dos universais, quando se confunde os conceitos com o plano; mas
esta confusão se faz quando se coloca uma imanência em algo, já que
este algo é necessariamente conceito:crê-se que o universal explique,
enquanto é ele que deve ser explicado, e cai-se numa tripla ilusão, a da
contemplação, da reflexão, ou da comunicação. Depois, ainda, a ilusão
do eterno, quando esquecemos que os conceitos devem ser criados.
Depois a ilusão da discursividade, quando confundimos as
proposições com os conceitos…Precisamente, não convém acreditar
que todas essas ilusões se encadeiem logicamente como proposições;
elas ressoam ou reverberam, e formam uma névoa espessa em torno
do plano.” 411

Como compreender que Deleuze e Guattari caracterizem esses movimentos


diagramáticos, esses traços ambíguos e negativos como ilusões? Como eles advertem,
um traço não é isolável: um movimento afetado por signos negativos dobra-se em
outros movimentos, em signos ambíguos ou positivos. Sendo assim, certamente a
ilusão, no texto de Deleuze, não pode ter o mesmo sentido do que tem em Kant. Como
se sabe, em Kant, as ilusões da razão decorrem do exercício indevido da razão, quando
esta, em seu estado de natureza, não se submete às coordenadas dos sensos comuns. As
ilusões da razão autorizam uma crítica delimitativa. Esta crítica se realiza respeitando as
coordenadas da imagem dogmática do pensamento, que atribuem a Imanência ao sujeito
transcendental. Qual é, então, o sentido do reemprego do conceito de ilusão?
Cabe uma volta à interpretação deleuziana do eterno retorno, notadamente
quanto aos sentidos do Mesmo. Como foi analisado, Deleuze mostra como perspectivas
diferentes atribuem diferentes sentidos a conceitos que poderiam ser confundidos por se
expressarem nas mesmas palavras. É o caso, segundo sua análise, das metamorfoses do
“Semelhante”, do “Idêntico” e do “Mesmo”, no movimento do eterno retorno:

“o eterno retorno é o Semelhante, a repetição no eterno retorno é o


Idêntico — mas, justamente, a semelhança e a identidade não
preexistem ao retorno daquilo que retorna. Eles não qualificam antes

411
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, págs. 50 e 51 (67 e 68).
de tudo o que retorna, eles se confundem absolutamente com o seu
retorno. Não é o mesmo que retorna, não é o semelhante que retorna,
mas o Mesmo é o retorno daquilo que retorna, isto é, do Diferente; o
semelhante é o retornar daquilo que retorna, isto é, do Dissimilar. A
repetição no eterno retorno é o mesmo, mas enquanto ele se diz
unicamente da diferença e do diferente. Há aí uma reversão completa
do mundo da representação e do sentido que tinham “idêntico” e
“semelhante” nesse mundo. (…) A verdadeira distinção não é entre o
idêntico e o mesmo, mas entre o idêntico e o mesmo ou o semelhante
— pouco importa desde que sejam postos como primeiros —, e o
idêntico, o mesmo ou o semelhante expostos como segunda potência.
Tanto mais potentes por isso, girando, então, em torno da diferença,
dizendo-se da diferença em si mesma. Então, tudo muda efetivamente.
Para sempre descentrado, o Mesmo só gira efetivamente em torno da
diferença quando, assumindo todo o Ser, ele se aplica apenas aos
simulacros, assumindo todo ‘o ente’” 412

Na sequência desta reflexão, Deleuze introduz a idéia de ilusões imanentes ao


movimento do eterno retorno: imagens simuladas da identidade, da semelhança e da
negação. Essas ilusões não têm, contudo, um estatuto negativo, não são, como em
Kant, o negativo do pensamento. Pelo contrário, compreendidas como elementos de
funcionamento do sistema do simulacro elas devem ser afirmadas, enquanto tais:
“rejubilando-se naquilo que produz, o eterno retorno denuncia qualquer outro uso dos
fins, das identidades, das semelhanças e das negações. Mesmo e sobretudo a negação,
pois ele dela se serve da maneira a mais radical, a serviço do simulacro, para negar tudo
o que nega a afirmação diferente e múltipla, para aí mirar sua própria afirmação, para aí
redobrar o que ele afirma.” 413 Trata-se aqui de um novo estatuto da ilusão, não mais o
negativo do pensamento, mas um elemento do seu exercício superior. O negativo não
está na ilusão: como um sentido simulado da identidade — como se ela fosse o fim da
diferença; da semelhança — como se ela fosse o efeito exterior do díspar; ou do
negativo — como a conseqüência da afirmação. A ilusão, os sentidos simulados,

412
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 384 (470 e 471)
413
Gilles Deleuze, Différence et répétiton, pág. 385 (472).
permanece sempre sem autonomia e sem espontaneidade, mera conseqüência da
afirmação ontológica. O negativo do pensamento, o “erro”, ou melhor, a besteira,
consiste antes em conceder aos produtos do funcionamento do sistema do simulacro
uma autonomia que os desvirtua.
Terá a ilusão, no texto de Qu’est-ce que la philosophie?, esse mesmo sentido,
senão positivo, ao menos ambíguo? Parece que não: elas não afirmam a imanência
absoluta, afastam o pensamento do seu limite e limitam a experimentação. Por isto, as
ilusões da transcendência, dos universais de contemplação, reflexão e comunicação, do
eterno e da discursividade devem, antes, ser aproximadas do “erro”, ou melhor, da
besteira como “faculdade” dos falsos problemas — virtualidade imanente ao
pensamento mesmo. Neste sentido, o pensamento está sempre ameaçado, ameaçado no
seu movimento mesmo: seu inimigo é sua impotência, ou sua baixeza, seu esgotamento
mesmo. Por isto, o pensamento é radicalmente combate, combate imanente. Este ponto
é essencial, ele dá sentido à idéia de que a imanência deve ser construída. Sempre se
fazendo, como o devir, o pensamento e a imanência não têm nem começo nem fim.
Sempre se fazendo, por subtração: constituição… , a imanência solicita a criação de
conceitos e com eles consistência.
Deste modo, a filosofia é combate, combate ao julgamento e combate pela
imanência, e, nesta medida, um empreendimento de contra-efetuação: construção do
plano de imanência e criação de conceitos, que possuem a realidade de um virtual. 414
Deleuze e Guattari esclarecem:

“Atualizamos ou efetuamos o acontecimento todas as vezes que o


investimos, de bom ou de mau grado, num estado de coisas, mas o
contra-efetuamos, cada vez que o abstraímos de um estado de coisas,
para liberar o seu conceito. Há como uma dignidade do
acontecimento, que sempre foi inseparável da filosofia como ‘amor
fati’: igualar-se ao acontecimento, ou tornar-se filho dos seus próprios
acontecimentos. (…) Não há ética diferente daquela do amor fati da
filosofia, (…) Não querer o que acontece, com essa falsa vontade que

414
“Um conceito apreende o acontecimento, seu devir, suas variações inseparáveis.” Cf. Gilles Deleuze e
Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 150 (204).
se queixa e se defende, e se perde em mímica, mas levar a queixa e o
furor ao ponto em que eles se voltam contra o que acontece, para
erigir o acontecimento, depurá-lo, extraí-lo no conceito vivo. A
filosofia não tem outro objetivo além de tornar-se digna do
acontecimento. …(…) Querer a guerra contra as guerras por vir e
passadas, a agonia contra todas as mortes, e o ferimento contra todas
as cicatrizes, em nome do devir e não do eterno: é neste sentido
somente que o conceito reúne.” 415

A caracterização do conceito como movimento de contra-efetuação filosófica


expõe a dimensão ética do empirismo transcendental: da sua questão — combate ao
julgamento, o combate pela imanência — e, do seu procedimento — o movimento da
subtração: constituição... Nesta medida, a definição da imanência como imanência: uma
vida… revela que o empirismo transcendental faz o pensamento não se separar de uma
ascese — subtração: constituição… — que impele o pensamento e a vida até o limite
do que podem, vale dizer, do que se tornam: uma vida… seus conceitos, seus afetos e
seus perceptos.

CONCLUSÃO

“E de repente sentimos que não somos mais os


mesmos condenados. Nada houve. E um problema
do qual não se via o fim, um problema sem saída,
um problema ao qual todo mundo estava aferrado,
de repente já não existe e nos perguntamos do que
se falava. É que, em vez de receber uma solução
ordinária, solução que se encontra, este problema,
esta dificuldade, esta impossibilidade acaba de
passar por um ponto de resolução, por assim dizer,
físico. Por um ponto de crise. É que, ao mesmo
tempo, o mundo inteiro passou por um ponto de
crise, por assim dizer, físico. Há pontos críticos do
acontecimento, como há pontos críticos de
temperatura, pontos de fusão, de congelamento; de
ebulição, de condensação; de coagulação; de

415
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, pág. 150 e151 (205 e 206).
cristalização. Nos acontecimentos, encontram-se
até mesmo estes estados de superfusão que não se
precipitam, que não se cristalizam, que não se
determinam a não ser pela introdução de um
fragmento do acontecimento futuro.” Charles
Péguy.

A hipótese fundamental desta tese é, pois, que a filosofia da diferença de Gilles


Deleuze constitui-se como combate ao sistema e à doutrina do julgamento e que este
combate efetuou-se prioritariamente através de um procedimento de subtração:
constituição... — subtração de transcendências, ficções e universais; constituição de um
plano de imanência e de conceitos que dão consistência a este plano —, procedimento
adequado à instituição de uma nova concepção de sistema em filosofia —
multiplicidade problemática e aberta, em perpétua heterogeneidade e em heterogênese
—, vale dizer, de uma nova concepção do pensamento e da sua unidade, como síntese
disjuntiva ou como acordo-discordante.
O movimento da obra de Gilles Deleuze deve ser apreendido e compreendido
em consonância com a maneira pela qual Deleuze define a natureza de toda e qualquer
obra: “a obra é um problema nascido do imperativo e é tanto mais perfeita e total num
lance quanto o problema é melhor determinado progressivamente como problema.” 416 O
sentido do sistema da filosofia da diferença (sistema aberto, em perpétua
heterogeneidade e em heterogênese) depende da interpretação da natureza desta
determinação progressiva do problema.
Tal como se buscou demosntrar no capítulo “O dogmático e o problemático”, é
um equívoco ver no problema um estado provisório e subjetivo que o conhecimento
teria por função ultrapassar. Esse erro, segundo Deleuze, “libera a negação e desnatura a
dialética, substituindo o (não)-ser do problema pelo não-ser do negativo. O
‘problemático’ é um estado do mundo, uma dimensão do sistema e até mesmo o seu
horizonte, seu foco: ele designa exatamente a objetividade da Idéia, a realidade do
virtual.” 417 A determinação progressiva do problema envolve a avaliação da verdade do

416
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 256 (320).
417
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 359 (441).
problema enquanto problema, mas, também, a diferenciação e articulação de problemas,
a constituição de uma relação (síntese disjuntiva ou acordo-discordante) dos problemas
entre si. Deste modo, enquanto combate à doutrina do julgamento, a filosofia da
diferença rompe com a imagem dogmática do pensamento e elabora uma imagem do
pensamento não mais como movimento do hipotético ao apodítico (expressão do Saber),
mas como movimento que vai dos complexos questões-problemas às Idéias e aos
conceitos que os desenvolvem (expressão de uma aprendizagem transcendental). A
progressividade na determinação dos problemas se faz em uma temporalidade na qual,
como foi analisado no capítulo “Idéia e atualização”, as repetições afirmam um campo
de imanência, dimensão de ressonâncias, que comporta e relaciona a perplicação das
Idéias, a complicação das séries intensivas atuais (correspondentes às séries ideais), a
implicação das séries intensivas (formando campos de individuação), a explicação das
qualidades e dos extensos, os centros de envolvimento onde persistem os problemas e os
valores de implicação no movimento que os explica e os resolve (replicação).
Neste jogo do pensamento, os problemas ressoam na medida em que, em cada
caso, em cada complexo questão-problema, todo o acaso é afirmado. Assim, todos os
problemas ressoam uns nos outros e, sobretudo, na questão imperativa que os exigiu e
os relacionou. A unidade da questão imperativa por sua natureza problemática não
impõe ao movimento da obra a monotonia de uma sucessão de repetições do mesmo,
antes diferencia a obra em problemas e impõe ao seu movimento um regime de
variações contínuas, que acompanham as repetições de uma questão que se diz da
diferença. A cada repetição da questão fundamental, o pensamento repete não o mesmo,
mas as diferenças que ele foi capaz de criar, afirmando-se como heterogênese sempre
que forçado, por novos encontros, a determinar novos problemas que repercutem sobre
os demais e sobre a questão que os reúne. A própria questão, desse modo, se transforma
e se precisa com o desenvolvimento da obra que, finalmente, sustenta-se e apóia-se não
na transcendência de um fundamento, mas, ao contrário, na afirmação do acaso, do
devir, da multiplicidade, vale dizer, na potência da imanência que torna, já se disse, o
fundar um metamorfosear.
Como foi ressaltado no capítulo “O combate e o procedimento”, a filosofia de
Gilles Deleuze tem como questão fundamental o combate ao sistema e à doutrina do
julgamento. Este combate, que é, sobretudo, um combate (criativo) pela imanência, faz-
se, no interior da filosofia, como processo de constituição da filosofia da diferença, cuja
potência criativa subtrai do pensamento as transcendências contrabandeadas, para o
interior do campo filosófico, pela doutrina do julgamento que se exprime na filosofia da
representação e na sua imagem dogmática do pensamento. Deve-se sublinhar que esse
combate não pode ser separado (sob pena de tornar-se abstrato) de um combate mais
abrangente, do combate ao sistema do julgamento. Isto explica que a filosofia de Gilles
Deleuze, ao enfrentar as questões estritas da filosofia, neste momento mesmo, se abra
para um questionamento mais abrangente. A filosofia da diferença multiplica seus
combates questionando, a partir da filosofia, a cultura e a história.
A subtração das transcendências ou das ficções que constituem o sistema e a
doutrina do julgamento não é uma operação simples. A subtração é apenas um
momento do procedimento de subtração: constituição.... Pois, como já foi dito, além do
movimento que vai da subtração à constituição, deve-se sublinhar que a outra
orientação, que vai da constituição à subtração é, em outro nível, mais verdadeira. No
primeiro caso, deve-se compreender a subtração como uma operação que retira algo, um
ou mais elementos, de um conjunto, como uma operação que força uma redefinição do
conjunto, isto é, dos elementos que permanecem e de suas relações e, em conseqüência,
do sentido dos termos assim relacionados. Mas, no segundo caso, a subtração não sendo
primeira, nem apenas a operação de retirar algo de um conjunto já estabelecido, assume
outro valor: como conseqüência de uma nova afirmação, designa, agora, o que não entra
e não pode entrar no novo conjunto afirmado, o que não tem mais cabimento em vista
de uma outra definição dos seres e das coisas. São esses os dois sentidos que esclarecem
os dois tempos dos movimentos, distintos porém indiscerníveis, de uma crítica criativa.
A subtração, no primeiro sentido, abre, apenas abre, a possibilidade da constituição, isto
é, da afirmação do novo; mas é preciso saber que é, finalmente, a afirmação do novo
que pode dar necessidade à subtração: esta, então, muda de natureza — deixando de ser
um momento contingente da aventura do pensamento, torna-se o efeito de um novo
pensamento que se constitui.
Assim, como sugere uma das hipóteses desta tese, escrever a n-1 como escrita
adequada à conquista da multiplicidade como substantivo atualiza-se concretamente no
procedimento da subtração: constituição.... Contudo, de que modo se há de
compatibilizar este procedimento com o procedimento da vice-dicção e com o método
de dramatização? A rigor, é possível sustentar que não há nenhuma incompatibilidade
entre a escrita a n-1, o procedimento da vice-dicção, o método de dramatização e o
procedimento de subtração: constituição.... Isto porque, pode-se conceber o
procedimento da subtração: constituição... como procedimento cujo sentido é articular
(sem unificar) os demais. De um lado, a escrita a n-1 é, obviamente, subtrativa do Todo
e do Um. Deste modo, ela compõe-se com os momentos do procedimento de subtração:
constituição.... Decerto, a subtração é sempre desterritorializante: seu sentido é abrir um
conjunto e, conjugando-se com uma linha abstrata (linha de fuga), promover um
movimento de virtualização. Desse modo, ela prepara o mapeamento das
multiplicidades pelo procedimento da vice-dicção, que assim, de um lado, confere
consistência às multiplicidades ideais e, de outro, por retroação, dá necessidade às
mencionadas subtrações virtualizantes. O método de dramatização supõe a subtração da
posição eminente conferida à questão da essência (O que é?), abre o campo das
questões, tornando-o uma multiplicidade problemática que comporta n questões —
Onde?, Como?, Quando?, etc.. Iluminando o processo de atualização do virtual, a
dramatização institui uma relação fundamental das verdades com o tempo (como síntese
do futuro) e confere assim uma nova consistência e um novo sentido à existência atual:
efeito de um processo de atualização, constitui-se como solução inseparável do
problema virtual do qual procede. A vice-dicção e a dramatização conjugam-se,
portanto, como dois momentos da dimensão da constituição do procedimento de
subtração: constituição....
Feito este esclarecimento, deve-se dizer que uma nova escrita (construtivista)
resulta do procedimento de subtração: constituição... como escrita adequada à idéia de
um cálculo dialético que compõe uma nova filosofia, a qual, por sua vez, define a
filosofia pela atividade de criação de conceitos. O construtivismo, em filosofia,
conquista um perspectivismo (a verdade do relativo) que afeta todo o campo filosófico.
Deleuze não diz que a sua filosofia é a única a criar conceitos. Diz que toda filosofia
(mesmo aquelas que isto não admitem e que reintroduzem, na imanência,
transcendências) ergue um campo de imanência e cria conceitos. O que diferencia a
filosofia da diferença não é, portanto, a criação conceitual, mas a sua afirmação da
afirmação, vale dizer, a sua afirmação da criação.
Na obra de Gilles Deleuze, o imperativo de afirmar o acaso, o devir e a
multiplicidade, exprime-se num combate, sempre renovado, contra o sistema e a
doutrina do julgamento. Afirmar o acaso significa romper com o postulado de um
fundamento (comum ao pensamento e ao mundo) que assegura ao pensamento sua
veracidade e sua necessidade, como adequação com uma realidade dada. Assim a
afirmação do acaso subtrai do pensamento o postulado de uma transcendência que se
apresenta como fundamento. A subtração da transcendência assegura a subtração dos
elementos e das operações que a transcendência garante: os universais, os princípios a
priori, dos quais dependem a coerência do pensamento (posto como cogitatio natura
universalis) e a identidade e a unidade de um sujeito do conhecimento, a função
representativa da linguagem, bem como a identidade, homogeneidade e permanência do
mundo (posto como verídico).
O problema da construção da imanência é o fio condutor que desenvolve, nesta
tese, a questão do combate ao julgamento, a qual, conforme foi repetidamente
sublinhado, é indissociável do seu desdobramento nas afirmação do acaso, do devir e da
multiplicidade. A obra de Gilles Deleuze faz ressoarem essas afirmações, e esse sistema
de ressonâncias cria, através do procedimento de subtração: constituição…, um centro
de metamorfose: a afirmação do acaso não se faz sem estender-se na afirmação do devir
e da multiplicidade, em um movimento no qual o pensamento se subtrai às ficções das
transcendências. E, tal movimento arrasta o próprio pensamento e, com ele, o mundo no
devir da imanência.
A questão da imanência do pensamento ao pensamento repete-se, nos capítulos
desta tese, diferenciando-se em séries de problemas. Os capítulos se prolongam na
medida em que suas séries ressoam nos imperativos do combate ao julgamente e do
combate pela imanência.
O capítulo “O dehors e o signo” formula essa questão em toda a sua amplitude:
de que modo, na elaboração filosófica de Gilles Deleuze, a operação de subtração das
categorias do Todo e do Um, que organizam a filosofia clássica, permite uma crítica às
pretensões de qualquer transcendência no pensamento, no sentido da afirmação da
imanência absoluta do pensamento ao pensamento? Esta indagação não se desenvolve
sem diferenciar-se em uma série de problemas: 1) o problema de uma nova concepção
de sistema em filosofia (sistema em perpétua heterogenidade e em heterogênese),
adequada a um pensamento que quer conquistar uma nova imagem do pensamento sem
perder a relação com um plano de imanência absoluto, sem se afastar da vertigem de um
pensamento sem imagem; 2) a subtração do Todo e do Um impõe como problema
pensar uma nova idéia da unidade e do fragmento: uma unidade que reúna sem unificar
fragmentos afirmados enquanto tais e não como partes de um todo perdido ou por vir; 3)
se o pensamento perde sua unidade natural e o mundo sua totalidade, sua ordem posta
como dada, vê-se forçado a repensar o estatuto da exterioridade, da interioridade e do
seu limite: uma nova filosofia do tempo se articula com a idéia da imanência como o
dehors e o dedans do pensamento; 4) um pensamento que se subtrai de uma pretendida
natureza enfrenta o problema do nascimento do pensar no pensamento, problema que se
desenvolve em uma nova concepção do que o pensamento pensa, quando forçado por
um signo e por não um objeto: define-se assim o sentido dos novos conceitos do signo,
do sentido e da essência; 5) finalmente, o problema da interpretação como criação
articula-se com a necessidade de pensar uma nova escrita que se furte à dualidade e à
distância representativa.
O capítulo “Deleuze e a crítica” atualiza a questão do combate à doutrina do
julgamento e as afirmações do acaso, do devir e da multiplicidade, introduzindo o
problema de uma crítica adequada à afirmação da imanência, o paradoxo de uma crítica
imanente e criativa. Mal esse problema se precisa, todavia, ele dá lugar a um desvio,
necessário na medida em que permite esclarecer a diferença entre a idéia deleuziana da
crítica imanente e a concepção kantiana da crítica imanente como crítica da razão pela
razão. Neste sentido, o capítulo expõe, em linhas gerais, a leitura que faz Deleuze do
sistema da crítica kantiana. Ao revelar, do ponto de vista de Deleuze, as articulações do
sistema kantiano, esta exposição facilita a compreensão das articulações do pensamento
de Gilles Deleuze, na medida em que este se elabora, em parte, como retomada do
projeto kantiano de uma críitica imanente, mas, sobretudo, como um afastamento da
problemática kantiana que ainda quer fundar a possibilidade do conhecimento e do
julgamento não mais em Deus como fundamento da adequação do pensamento com o
mundo, mas na finitude do Homem e nas determinações do sujeito transcendental.
O capítulo “Gênese e experiência” investiga a passagem de uma crítica que tem
por intenção determinar as condições de possibilidade do conhecimento (do juízo
sintético a priori), da moralidade (da universalidade da lei moral: o imperativo
categórico), do belo (da presunção de universalidade do juízo de beleza), etc. a uma
crítica que se subtrai à problemática do condicionamento, congruente com as
afirmações, no pensamento, do acaso, do devir e da multiplicidade. Sua questão é a
determinação de um príncipio imanente da gênese da experiência real. Esta questão se
desenvolve em novos problemas: 1) a crítica genealógica apresenta-se como crítica ao
ideal do conhecimento. Mas então a crítica, concebida como crítica do conhecimento,
exprime outras forças capazes de dar uma nova orientação ao pensamento. Ela deve,
segundo Deleuze e Nietzsche, conduzir o pensamento até o limite do que pode a vida,
levar a vida até o limite do que ela pode. Deste modo, ao mesmo tempo, afirmar a vida
como a força ativa do pensamento e fazer do pensamento potência afirmativa da vida; 2)
assim concebida a crítica genealógica desbobra-se no combate à cultura e à história,
mais precisamente, ao sentido histórico da cultura, e este combate revela o problema do
devir reativo das forças ativas: como fazer reverter esse devir, como subtrair a negação
da posição de princípio de avaliação; 3) constituem-se novos problemas: como pode a
negação ser subtraída; em que sentido as afirmações da vida, do acaso e do devir dizem
respeito a um pensamento da pura afirmação? O desenvolvimento dessas questões
conduz o pensamento à investigação da interpretação deleuziana da doutrina do eterno
retorno como pensamento crítico e seletivo, que, paradoxalmente, afirma um
pensamento seletivo o qual, por sua vez, afirma um ser seletivo, pois, segundo esta
interpretação, o eterno retorno é o ser e o ser é seleção; 4) a questão ontológica
expressa-se no problema seguinte: como pensar a diferença estabelecida entre as duas
seleções, entre um pensamento seletivo e um ser seletivo? O fundamental é destacar que
as duas seleções são operações do pensamento: na primeira, o pensamento retira de si os
pensamentos reativos; na segunda, o pensamento subtrai de si a perspectiva reativa,
elimina a negação como perspectiva de avaliação. Tornado pura afirmação, o
pensamento transmuta a negação em negação das forças reativas. Compreende-se
portanto que, segundo Deleuze, a equação “ser = seleção” faz-se acompanhar dessa
outra equação: “seleção = hierarquia”. Como se analisou, o conceito de hierarquia
refere-se ao conceito de valor. Como o conceito de valor diz respeito não às realidades
objetivas, mas às diferenças de qualidade da vontade, deve-se dizer que é a segunda
equação que encerra o segredo da primeira, isto é, o ser é perspectiva e o que ele,
enquanto ato de selecionar, seleciona é o que se afirma como perspectiva e não o que se
pretende realidade; 5) configura-se o problema do perspectivismo: há elementos
diferenciais positivos que determinem, ao mesmo tempo, a gênese da afirmação e da
diferença afirmada? Tal problema conduz Deleuze a aprofundar a investigação sobre o
movimento da afirmação. A afirmação é posta uma primeira vez como o múltiplo
(diferença entre o um e o outro), o devir (a diferença consigo mesmo) e o acaso (a
diferença entre todos ou distributiva). Em seguida, a análise destaca que, para Deleuze,
a afirmação se duplica como afirmação ela própria afirmada, a afirmação reduplicada, a
diferença elevada à sua mais elevada potência. O devir é o ser, o múltiplo é o um, o
acaso é a necessidade. Assim, a gênese da afirmação remete ao movimento do eterno
retorno que seleciona a vontade de potência afirmativa enquanto princípio, plástico e
fluente, da experiência real. Neste ponto, o problema da gênese da afirmação e da
diferença soluciona-se na afirmação de um perspectivismo que se esclarece com a
seguinte hipótese: a afirmação da vontade de potência afirmativa é subtrativa e
constitutiva, pois subtrai a identidade das coisas (A é A), e a identidade do sujeito (Eu
= Eu), forçando o próprio pensamento a conquistar, por diferenciação, vale dizer, por
subtração: constituição..., uma afirmação da unidade da coisa com o ponto de vista, isto
é, um perspectivismo.
O capítulo “O dogmático e o problemático” retoma o problema da imanência, a
imanência do pensamento ao pensamento, investigando o problema da gênese da
experiência real, desta vez, a partir de uma crítica da imagem dogmática do pensamento.
Neste sentido, com apoio na exposição, realizada no capítulo anterior, da interpretação
deleuziana do eterno retorno, o capítulo sustenta sua organização na hipótese de que a
filosofia da diferença encontra, no pensamento do eterno retorno — melhor, na
interpretação deleuziana do eterno retorno —, a vitalidade necessária e a forma
adequada, seja para interpretar outros sistemas filosóficos, seja para pôr, nos seus
próprios termos, o problema do sentido do pensamento. Mas o problema sentido do
pensamento desbobra-se em uma série de novos problemas.
O primeiro deles é o problema da relação da filosofia de Gilles Deleuze com o
advento da ciência moderna. Deleuze diz que se interessa pela metafísica que a ciência
moderna não teria ainda encontrado. Como compreender tal interesse? Tal como se
buscou demonstrar, procurando esclarecer a posição de Deleuze com repeito à
epistemologia francesa, esse interesse pela ciência moderna significa, efetivamente,
repetir o ato construtivista que caracteriza a ciência moderna e, ao mesmo tempo,
afirmar uma diferença: a decisão construtivista repete-se, em Deleuze, como ato do
pensamento que afirma uma nova concepção do que é a filosofia, definida como
atividade que torna inseparáveis a construção de problemas e a criação de conceitos.
Esta decisão construtivista desenvolve-se na filosofia da diferença, via o
procedimento de subtração: constiuição…, inicialmente como crítica da imagem
dogmática do pensamento. Esta crítica se esclarece quando ela é relacionada ao
problema que lhe dá sentido: o que significa, para a filosofia da diferença, começar? O
que pode ser um começo para uma filosofia, cujo combate ao sistema e à doutrina do
julgamente se faz pela afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade? Como se
assinalou, Deleuze considera que uma Filosofia isenta de pressupostos de qualquer
espécie, em vez de se apoiar na imagem moral do pensamento, deve partir de uma
crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica. Assim, o começar é um
recomeçar: o pensamento só pode começar a pensar, e sempre recomeçar, ao afastar-se
da Imagem e dos postulados. Fica reforçada a postulação de que Deleuze encontra, no
pensamento do eterno retorno, a forma de sua crítica filosófica: o eterno retorno do
pensamento, sua afirmação enquanto diferença e repetição, sua crítica à doutrina da
verdade e do julgamento, devem, portanto, exercer seu poder seletivo, subtraindo, ao
pensamento, os postulados que sustentam a imagem dogmática do pensamento.
Com essa orientação, como se ressaltou, Deleuze discute e questiona a validade
de oito postulados fundamentais: o postulado da Cogitatio natura universalis, o
postulado do ideal ou do senso comum, o postulado da recognição, o postulado da
representação, o postulado do negativo ou do erro, o postulado da função lógica ou da
proposição, o postulado da modalidade ou das soluções, o postulado do saber. Mas,
nesse movimento de subtrações, a crítica constitui, concomitantemente, uma nova
concepção do pensamento, um outro conceito de experiência (um empirismo
transcendental), uma teoria diferencial da idéia e uma nova ontologia que reinterpreta a
univocidade do ser.
O movimento desta crítica conduz ao problema de qual é o novo sentido que o
conceito de transcendental assume na filosofia da diferença? Subtraindo ao sistema
kantiano a identidade sintética das categorias e a moralidade da razão prática
responsáveis pela restauração do eu, do mundo e de Deus, Deleuze isola, em Kant, o
momento furtivo fulgurante no qual o Eu é rachado pela forma do tempo. Este
isolamento, a afirmação da fissura do Eu pela forma pura do tempo como linha reta,
desencadeando uma coerência que articula o Deus morto, o Eu rachado e o eu passivo,
faz ruir toda a concepção kantiana do campo transcendental.
A fissura do Eu pela forma pura do tempo conduz Deleuze a um novo
problema: como pensar o tempo de forma a dar consistência à diferença transcendental,
que, em Kant, se dissolve no momento mesmo em que se esboça, neste momento que
Deleuze denuncia como furtivo e fulgurante? Este novo problema se desenvolve numa
teoria das três sínteses do tempo — a síntese do tempo como presente, a síntese do
tempo como passado e a síntese do tempo como futuro — que, ao afirmar a repetição
como repetição da diferença, denunciar a insuficiência da questão do fundamento e
aprimorar a crítica ao modelo do transcendental implicado na crítica kantiana tem o
sentido de preparar uma teoria diferencial da experiência e do pensamento.
A afirmação, no pensamento, do acaso, do devir e multiplicidade dá sentido à
teoria diferencial da experiência e do pensamento, que constitui-se e desenvolve-se na
interseção de dois temas destacados e isolados do sistema kantiano: o tema da fissura
temporal do sujeito e o da idéia de um acordo discordante das faculdades. Com as
subtrações dos postulados da imagem dogmática do pensamento, a experiência deve ser
pensada como uma prova: cada faculdade deve ir ao seu limite próprio para, aí, no seu
limite extremo, poder afirmar, nesta prova que é aquela de sua própria experiência, a
sua diferença e imanência radical. Essa experiência é a experiência de uma heterogênese
num duplo sentido: primeiro como metamorfose ou gênese da diferença interna de cada
faculdade; em seguida, como gênese das diferenças entre as faculdades que se afirmam
dissolvendo o senso comum; por fim, gênese de um acordo discordante, que reúne as
faculdades, sem unificá-las. Neste processo, se a experiência leva o pensamento a
conquistar o seu limite, o pensamento só o faz no curso de uma discórdia, no seio de
uma relação discordante entre as faculdades, que se prolonga num acordo-discordante,
mas que começa pela metamorfose da sensibilidade, a experiência não decorre de uma
decisão consciente, nem é regulada por uma consciência. A experiência, já se assinalou,
depende do acaso de um encontro e sempre começa por ser a experiência de uma
violência. A violência do acaso de um encontro é sua condição primeira, é ela que
deflagra o pensamento no pensamento.
A teoria diferencial do pensamento e da experiência põe em novos termos o
problema da instância negativa, que já não pode ser pensada pelo conceito de erro como
efeito, no pensamento, de forças exteriores ao pensamento. Às subtrações dos
postulados da Cogitatio natura universalis, do modelo da recognição, da representação,
do senso comum e do bom senso, sucede a constituição da teoria diferencial do
pensamento, que se articula com a reversão da relação do tempo com o movimento e
com o pensamento das três sínteses do tempo que introduzem uma fissura no Eu.
Sobretudo, ao articular-se com a terceira síntese do tempo, na qual o tempo se constitui
como futuro e se introduz no pensamento como seu Outro, seu limite interno, o
pensamento não pode mais ser poupado de uma instância negativa interna ao seu
funcionamento: a besteira, que se constitui como “faculdade dos falsos-problemas”,
fonte das ficções que sustentam o julgamento, o sentido histórico da cultura. Sua
possibilidade se esclarece no processo da individuação, na relação que se estabelece
entre o Eu e o fundo intensivo, como possibilidade inscrita no movimento mesmo da
gênese do pensamento enquanto tal. O pensamento, em seu exercício empírico, estúpido
e integralmente mobilizado em não pensar, confunde-se com a besteira; ou então
incomoda-a, violenta-a e dela se afasta em um combate interno que o eleva ao seu
exercício superior.
Deleuze conquista, com o conceito de besteira, um novo problema: como
escapar da falsa-alternativa — ou um fundo indiferenciado, sem fundo, não-ser informe,
abismo sem diferenças e sem propriedades ou, então, um Ser soberanamente
individuado, uma forma fortemente personalizada —, posta, ao pensamento, tanto pela
metafísica quanto pela filosofia transcendental? A subtração desta falsa-alternativada,
besteira propriamente filosófica, depende da subtração da vontade de potência negativa,
fonte de uma falsa concepção do que é um problema. Só uma apreciação da natureza
positiva dos problemas permite dissolver esta falsa alternativa comum à metafísica e à
filosofia transcendental e, assim, ultrapassar tanto a ambigüidade essencial ao
fundamento — sua oscilação entre o apoio no fundado e o abismar-se no sem fundo —,
quanto as perspectivas substancialista e hilemórfica da individuação em favor da
afirmação de uma determinação que nem se opõe ao sem-fundo nem o limita.
Igualmente Deleuze conquista o perspectivismo ou o problemático por
subtração: constituição… — tanto pela subtração da ilusão natural que consiste em
decalcar os problemas sobre proposições que se supõem preexistentes, quanto da ilusão
filosófica que consiste em avaliar os problema a partir de sua resolubilidade e da ilusão
que faz do fundamento um condicionamento exterior ao sentido que ele pretende
fundar. A constituição é a do diferencial, como elemento imperativo interior aos
problemas, que faz dos problemas o elemento diferencial do pensamento, o elemento
genético do verdadeiro. A constituição dos problemas como provas e seleções torna o
verdadeiro e o falso imanentes aos próprios problemas. Assim, as noções verdadeiros e
falsos problemas adquirem sentido e impedem que se mantenha, no pensamento, o
postulado do condicionamento exterior que concebe a condição como indiferente ao
que ela tornaria possível.
O capítulo “Idéia e atualização” retoma a questão deleuziana do combate à
doutrina do julgamento, a qual desenvolve-se tal como se argumenta naquele capítulo,
com a reversão do conceito platônico de Idéia: como pensar a Idéia, não como essência
eterna ou como a Identidade de um modelo, mas como multiplicidade e como
problema? Inicialmente, como se sublinhou, Deleuze considera que o problema é o
objeto da Idéia, sendo, portanto, a Idéia essencialmente problemática. E assim a teoria
diferencial da Idéia subtrai a dependência das idéias ao primado de uma faculdade
(razão ou entendimento) como sua fonte ou origem. Tal teoria desenvolve e apóia a
teoria diferencial do pensamento, dando consistência a um “para-senso” (ou acordo-
discordante das faculdades em seu exercício superior) constituinte do exercício superior
das faculdades. Conseqüentemente, as idéias, como multiplicidades diferenciais, são
objetos de um aprender paradoxal (não de um Saber) que se nutre de um movimento
criativo inconsciente, de um movimento extra-proposicional e não atual das idéias no
para-senso que se conjuga como o exercício não empírico e paradoxal das faculdades.
O movimento da reversão do conceito platônico de idéia configura um novo
problema: o do estatuto epistemológico e ontológico do complexo questão-problema. A
compreensão deste problema exige um esclarecimento: o que distingue o movimento
que vai do hipotético ao apodítico daquele que vai do problemático à questão? Em
primeiro lugar, como se enfatizou, repetidas vezes, o problema difere, por natureza, da
hipótese. Esta é uma proposição da consciência que se estabelece no campo das
representações do Saber, ao passo que os problemas ou as idéias são construções
imanentes a um apreender infinito e inconsciente. Em seguida, como se assinalou, a
instância apodítica difere da instância questão pela natureza dos imperativos que
expressam. A primeira é um ponto de chegada que configura um imperativo moral, a
segunda exprime a relação dos problemas com os imperativos de acontecimentos que se
apresentam como questões (que traduzem o imperativo da afirmação do acaso, do devir
e da multiplicidade), dos quais eles procedem.
Contudo, como também se observou, naquele capítulo, o círculo composto pelas
questões imperativas, ontológicas, os problemas dialéticos que delas decorrem, os
campos simbólicos de resolubilidade dos problemas e as soluções que estes recebem
nesses campos não parecem dar conta do nascimento desses imperativos ontológicos.
Deleuze propõe, então, pensar a origem das questões e de seus imperativos como
repetição da diferença: “De que se diz a repetição no eterno retorno, a não ser da
vontade de potência, do mundo da vontade de potência, de seus imperativos e de seus
lances de dados, e dos problemas saídos do lançar?” 418 Assim, a análise desta questão,
conduziu ao problema: como compreender a possibilidade de uma tal repetição? Ou, o
que há nos problemas que os dispõem à repetição da diferença?
Tal como se buscou evidenciar, um pensamento que afirma o acaso, o devir e a
multiplicidade só admite a repetição da afirmação como origem, e a repetição afirma a
virtualidade que todo problema exprime. Por esta razão, como se esclareceu, Deleuze
destaca, ainda, uma outra dimensão do complexo questão-problema que o dispõe à
repetição: há um (não)-ser do problemático que designa a diferença e sua repetição,
dimensão, que apresenta, como se assinalou, um novo problema: como compreender o
estatuto da negação contida na escrita (não)-ser?
Deleuze pensa um (não)-ser da questão, mas não admite reduzi-lo a uma
negação ou ao negativo. Por esta razão, como se sugeriu talvez a sua melhor expressão
seja ?-ser, como forma ou abertura de um campo problemático. Desfeita a suposta
relação do ?-ser com o negativo, afirmadas a potencialidade da Idéia e a virtualidade
dos problemas, compreendeu-se melhor que a origem e o destino da questão imperativa
seja repetir-se como diferença.
O destino da Idéia é atualizar-se. Retorna, nesse novo registro, o problema da
gênese da experiência real e do pensar no pensamento: como se dá a relação da síntese
ideal da diferença com a síntese assimétrica do sensível? Como se faz a passagem da
dialética das relações diferenciais à estética das diferenciações? Do ponto de vista do
virtual, a gênese da experiência real é pensada como atualização-criação, como processo
do virtual. Assim, segundo Deleuze, a Diferença tem dois aspectos: ela se diz como
realidade virtual e dialética e como realidade dinâmica e estética, como força de
atualização e de diferenciação. Como se diferenciam e se articulam esses dois aspectos?
Trata-se de um conjunto de determinações — campo de individuação, séries de
diferenças intensivas, precursor sombrio, sujeitos larvares, dinamismos espaço-
temporais — que permite pensar a passagem da dialética das relações ideais à estética
das relações sensíveis e atuais.
O problema da atualização não pode, todavia, ser separado de uma virtualização
prévia, de uma conquista do virtual que é correlata à conquista do exercício superior do
pensamento, em que, num acordo disjuntivo, as faculdades se comunicam pela violência
do exercício de suas diferenças. Deste modo, como se enfatizou, a atualização do virtual
depende de dois movimentos que se encadeiam: um movimento de virtualização,
acionado pelo encontro da sensibilidade com o signo-portador de problema, e um
movimento de atualização, também forçado pelo encontro da sensibilidade com o signo-
intensidade. No entanto, é sobretudo o encontro com a Intensidade (diferenças de
intensidade) que desencadeia o processo, aciona todo esse conjunto de determinações e
torna a atualização possível. Se para Deleuze a Idéia como multiplicidade real não é
uma forma, não existe nem no mundo supra-sensível, nem na alma do sujeito
cognoscente, nem nas convenções da linguagem, é porque, enquanto distinta do corpo,
ela, no entanto, não se constitui como uma ordem de existência separada ou
independente dos corpos: ela é o acontecimento ideal que se exprime nos corpos — para
Deleuze todo objeto é duplo, constituído de duas metades ímpares: virtual e atual.
Sendo a Idéia uma multiplicidade diferençada (no virtual), cuja atualização se
faz por criação e diferenciação, resta um último problema: como a Intensidade
desencadeia o processo da atualização e articula a Idéia–virtual com o atual
diferenciado? A resposta de Deleuze é clara: é a Intensidade que impele a Idéia a
diferenciar-se, uma vez que ela resolve suas diferenças num processo de individuação.
Deleuze conquista, então, a ordem das razões: diferençação-individuação-dramatização-
diferenciação, específica e orgânica.
A teoria da Idéia e da atualização permite Deleuze propor, em Différence et

418
Gilles Deleuze, Différence et répétition, pág. 260 (325).
répétition, uma primeira versão de uma filosofia vitalista da natureza, o sistema do
simulacro:

“O sistema do simulacro deve ser descrito com a ajuda de noções que,


desde o início, parecem muito diferentes das categorias da
representação: 1º, a profundidade, o spatium, no qual se organizam as
intensidades; 2º, as séries desbaratadas que elas formam, os campos de
individuação que elas delineiam (fatores individuantes); 3º, o
‘precursor sombrio’ que as coloca em comunicação; 4º, os
acoplamentos, as ressonâncias internas, os movimentos forçados que
se seguem; 5º, a constituição de eus passivos e de sujeitos larvares no
sistema e a formação de puros dinamismos espaço-temporais; 6º, as
qualidades e as extensões, as espécies e as partes que formam a dupla
diferenciação do sistema e que vêm recobrir os fatores precedentes; 7º,
os centros de envolvimento que, todavia, dão testemunho da
persistência desse fatores no mundo desenvolvido das qualidades e
dos extensos. O sistema do simulacro afirma a divergência e o
descentramento; a única unidade, a única convergência de todas as
séries é um caos informal que compreende todas elas. Nenhuma série
goza de um privilégio sobre a outra, nenhuma possui a identidade de
um modelo, nenhuma possui a semelhança de uma cópia. Nenhuma se
opõe a uma outra nem lhe é análoga. Cada uma é constituída de
diferenças que se comunicam com outras por meio de diferenças de
diferenças.” 419

O sistema do simulacro deve ser compreendido como a construção de uma


filosofia da natureza que combate e contraria a representação (analógica) que o sistema
do julgamento faz do mundo. Neste sentido, pode-se dizer que, do ponto de vista da
hipótese central desta tese, o sistema do simulacro exprime, concretamente, a afirmação
da imanência e da inocência da existência. Como foi proposto no capítulo “O combate e
o procedimento”, a afirmação da inocência da existência significa nela mesma a
afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade — afirmações que se compõem como

419
Gilles Deleuze, Différence et répétition, págs. 355 e 356 (457 e 458).
questão-imperativa que confere necessidade ao combate ao sistema e à doutrina do
julgamento. Contudo esta questão não se esgota nela mesma, antes se desenvolve em
uma série de problemas que nela ressoam. Nascem assim, como se viu, os problemas,
que não cessaram de retornar na obra de Gilles Deleuze: o que é pensar, o que é o ser,
para um pensamento que afirma o acaso, o devir e a multiplicidade?

No capítulo “O emnpirismo superior” a questão se expressa, inicialmente, no


problema próprio ao empirismo transcendental: como pensar o campo transcendental
como plano no qual imanência torna-se absoluta? O desenvolvimento deste problema
recapitula, na sua clave própria, uma série de conquistas expostas nos demais capítulos
desta tese. Inicialmente, essas retomadas visam esclarecer o sentido desta expressão
paradoxal, “empirismo transcendental”.
A análise revela que o empirismo transcendental articula-se com o conceito de
experiência real e se afasta de uma teoria do conhecimento: nele, o conceito não é mais
uma forma de conhecimento, mas o meio de uma experimentação na qual a experiência
deve ser construída e não julgada. Deste modo, o empirismo transcendental não se
separa de um vitalismo que não opõe pensamento e ser, pensamento e vida. Como o
capítulo “Gênese e experiência” já havia indicado, Deleuze concebe o empirismo
transcendental como uma crítica do próprio conhecimento que, desfigurando o ideal do
conhecimento, afirma a vida como a força ativa do pensamento e o pensamento como
a potência afirmativa da vida. “Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e
quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação
inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida.” 420
O empirismo transcendental não separa o vitalismo de um perspectivimo. Antes
conjuga a afirmação de uma gênese do sentido como efeito do não-sentido que o
percorre com a afirmação de uma distância positiva, acolhendo a disjunção, não como
um procedimento de análise, mas como síntese efetiva, como síntese disjuntiva, dizer,
efetuando a afirmação de um perspectivismo que se confunde com a vida mesma: pois,
nele, “a divergência cessa de ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de ser um
meio de separação, o incompossível é agora um meio de comunicação” 421 .

420
Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, pág. 115 (89).
421
Gilles Deleuze, Logique du sens, pág. 203 (179 e 180).
O empirismo transcendental deve sustentar, na filosofia, a imanência como
vertigem filosófica. Para tanto, como se enfatizou, é preciso que a univocidade do ser
determine o transcendental como imanência da imanência. Retorna o problema da
univocidade do ser como pensamento que, ao subtrair-se a toda diferença categorial,
concebe a diferença como diferença de grau de potências: a imanência exige que a
diferença seja concebida como diferença de potência.
O combate pela imanência desenvolve-se, também, nos escritos de Deleuze
com Félix Guattari, sobretudo, em L’Anti-Œdipe, Mille plateaux e Qu’est-ce que la
philosophie? A esse respeito, destaca-se a questão: como evitar a tripartição metafísica
entre o mundo (como campo de realidade a reproduzir), a linguagem (como instância
representativa), e o sujeito (como estrutura enunciativa)? Esta questão orientou as
considerações sobre L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, sendo este último tomado como
exemplo de combatividade do empirismo transcendental, do pensamento como combate
e experimentação. Como se procurou argumentar, com um levantamento de suas
questões e problemas, a forma de composição do texto deixa evidente a característica
fundamental do sistema da filosofia da diferença como multiplicidade em perpétua
heterogeneidade e heterogênese. Cada platô remete a um ou mais problemas que se
desenvolvem nos conceitos que nele se criam mediante o procedimento de subtração:
constituição... Além disto, os platôs, aparentemente independentes, constituem um
sistema de múltiplas ressonâncias, uma vez que seus problemas são postos pela questão
maior do combate ao julgamento e que os conceitos que desenvolvem estes problemas
buscam dar consistência ao combate pela imanência absoluta.
Em Qu’est-ce que la philosophie? Deleuze e Guattari prolongam o combate ao
sistema e à doutrina do julgamento de uma maneira singularmente diferente. É
importante ressaltar que, neste livro, Deleuze, juntamente com Guattari, finalmente faz
explícita a questão que anima toda sua obra. Desta vez, não se trata de pensar, como em
L’Anti-Œdipe e Mille plateaux, as atualizações extra-filosóficas do sistema do
julgamento, mas de definir a própria filosofia como atividade de criação de conceitos.
Mas este problema não pode ser posto isoladamente. Ele exigiu a abertura de um
conjunto de problemas conexos: O que é a opinião? O que é a religião (figuras)? O que
é ciência (funções)? O que é a arte (afetos e peceptos)? Mais uma vez se observa a
criação produzir-se no heterogêneo, que se faz centro de metamorfose (idiossincrasia de
forças), como heterogênese. No caso, ressalta a relação da filosofia com a ciência e a
arte, também definidas como atividades criativas, intercessoras privilegiadas da filosofia
numa comum resistência ao sistema e à doutrina do julgamento. Mesmo assim, Qu’est-
ce que la philosophie não pode ser compreendido como um livro que, finalmente, fecha
o sistema da filosofia da diferença como se lhe conferisse o seu sentido supremo.
Melhor será compreendido como mais um momento do movimento da heterogênese.
A hipótese que move esta tese tornou-se idéia no movimento de sua elaboração.
Deve-se advertir, contudo, que a idéia de que a filosofia da diferença desenvolve-se em
torno de uma questão central, o combate ao sistema e à doutrina do julgamento, não
envolve a presunção de que esta questão tenha uma resposta definitiva: pela própria
natureza da afirmação do acaso, do devir e da multiplicidade, tal combate tem por
destino animar sua eterna repetição.

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