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1 Introdução ao Tema
Vivemos uma época de incertezas. O direito passa por novos rumos e, para se
adequar aos novos tempos, são invocadas novas razões, novos motivos para legitimar a
atuação punitiva estatal. O Direito Penal também sofre a irradiação desses fatos, denominados
movimentos expansionistas, especialmente acentuados após os trágicos eventos ocorridos em
Nova Iorque, nos Estados Unidos da América do Norte, no dia 11 de setembro de 2001.
Para justificar uma nova razão de Estado, voltada para uma maior adequação do
jus puniendi, Günther Jakobs apresenta, em 1985, um esboço inicial do que, posteriormente,
defenderia como uma realidade posta: o Direito Penal do Inimigo, derivação prejudicial do
ordenamento jurídico de uma sociedade de risco, que consistiria na bifurcação no direito
criminal, que ora se voltaria para o cidadão, com todas as suas garantias e inviolabilidades,
ora se voltaria para o inimigo, o qual, por não respeitar minimamente o status quo,
afrontando-o em sua essência, deveria ser eliminado do sistema.
O Direito Penal do Inimigo busca, pela eleição – e posterior neutralização – de
possíveis estranhos, assegurar uma falsa segurança aos cidadãos, quando, em realidade, são
retirados direitos fundamentais destes. Tal fenômeno se irradia pelos ordenamentos jurídicos
do mundo.
Nos Estados Unidos da América do Norte, conhecido pelo seu Movimento da Lei
e da Ordem, e na Europa, essa moderna corrente de política criminal ganha força, subsidiada,
essencialmente, por governos de índole autoritária e juízos de valor desvinculados de qualquer
comprovação empírica. Na América Latina, que se habituou aos desmandos oriundos de
governos de exceção, a introdução desse pensamento é uma realidade, nos juízos criminais,
em doutrina específica e, especialmente, na mídia. Periférico a tudo isso, o Brasil recebe, sem
Artigo publicado na Revista Associação dos Defensores Públicos do Distrito Federal, ano 5, número 5, p. 09-
54, dez. 2010.
1
Alberto Carvalho Amaral é Procurador de Assistência Judiciária do Distrito Federal. Bacharel em Direito pelo
Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade do Sul de
Santa Catarina (UniSUL). Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(UniSUL). Membro integrante do Grupo de Trabalho para apresentação de proposta de reforma do Código de
Processo Penal – OS n.º 2, de 29.05.2009, do Centro de Assistência Judiciária do Distrito Federal
(CEAJUR/DF). Sócio-fundador do Instituto de Garantias Penais (IGP). Professor de Direito Constitucional,
Direito Penal e Direito Processual Penal.
2
o menor anteparo, essa onda repressiva de uma política criminal punitivista desarrazoada e
minimizadora dos direitos fundamentais.
No presente artigo, elaborado a partir de um estudo mais aprofundado sobre o
tema, tentar-se-á estabelecer caracteres gerais, sem perder, contudo, a precisão e técnica
científicas, a fim de possibilitar uma introdução a este tema, em voga atualmente e no âmbito
das mais intricadas discussões científicas.
Cada Estado determina os bens que são castos à convivência de seus consortes,
que merecem uma atenção incriminadora específica, bem como a atuação de suas forças para
a proteção e punição daqueles que praticarem condutas valoradas como negativas. O Estado é,
como se vê, quem determina diretrizes que, posteriormente, vincularão aos seus cidadãos e a
si mesmo, pessoa jurídica. A essa escolha, dá-se o nome de Política Criminal.
É a Política Criminal, segundo René Ariel Dotti2, o “conjunto sistemático de
princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das
infrações penais”. Como bem anota Zaffaroni, ela “é a ciência ou a arte de selecionar os bens
(ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para
efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”3.
Desses dois conceitos já podem ser extraídas funções importantes da Política
Criminal: a) função de orientação, para a assunção de medidas penais futuras, e b) função de
crítica, com a tomada de posicionamento frente às decisões tomadas pelo poder político.4
Por possuir esse papel tão importante na configuração do Direito Criminal, a
Política Criminal constitui, atualmente, “a pedra angular de todo o discurso legal-social da
2
Apud BIANCHINI, Alice. Política Criminal, direito de punir do Estado e finalidades do Direito Penal.
Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e
Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG, p. 3.
3
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 5.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 129.
4
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit., p. 129.
3
5
FIGUEIREDO DIAS Apud BIANCHINI, Alice, op. cit., [Política Criminal ...], p. 3.
6
BIANCHINI, Alice. Os grandes movimentos de Política criminal na atualidade: movimento de lei e ordem,
minimalismo penal e abolicionismo. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de
Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG, passim.
7
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
74.
4
8
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 77.
9
QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 76.
10
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 83.
11
Apud BIANCHINI, Alice, op. cit. [Os grandes movimentos ...], p. 25.
12
A cifra negra da criminalidade é, em essência, o montante de delitos que, embora cometidos, não são
capturados e punidos pelo sistema criminal, pois, em alguma fase da persecução (delegacia, ministério público,
judiciário) foi impedida a entrada do provável criminoso na competência dessas instâncias oficiais de controle. A
cifra negra da criminalidade é, em essência, o montante de delitos que, embora cometidos, não são capturados e
punidos pelo sistema criminal, pois, em alguma fase da persecução (delegacia, ministério público, judiciário) foi
impedida a entrada do provável criminoso na competência dessas instâncias oficiais de controle.
5
13
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 84.
14
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 36.
15
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 35.
16
Esses são os grupos punitivistas: a) Direito penal como instrumento de dominação ou opressão; b) Direito
penal como instrumento de contrapoder; c) Direito penal como instrumento de reforço das funções estatais; d)
Direito penal como instrumento de tutela de interesses de alguns seguimentos internacionais; e) Direito penal
como instrumento promocional de específicos bens jurídicos; f) Direito penal como instrumento de estabilização
da norma; g) Direito penal como instrumento de segurança contra os riscos da sociedade moderna (pós
industrial). (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. “Direito penal” do inimigo e os inimigos do direito
penal. Revista Ultima Ratio. Leonardo Sica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ano 1, p. 329-356. Material da
2ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em
Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG).
17
ALMEIDA, Gervan de Carvalho. Modernos movimentos de Política Criminal e seus reflexos na legislação
brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 97.
18
Apud BIANCHINI, Alice, op. cit. [Os grandes movimentos ...], p. 21. Grifos do autor.
6
infecciosa e o criminoso como um ser daninho”. A sociedade é dividida entre entre pessoas
sadias, não desviantes, e pessoas doentes, que praticam atos delituosos.
Com penas extremamente rígidas em regime fechado, aplicações desproporcionais
– como a do three strikes and you’re out19 –, desprezo de direitos e garantias materiais e
adjetivas de Direito, e utilização de práticas não-ortodoxas, demonstrativas do desdém ao
princípio da dignidade da pessoa humana, o Direito Penal que decorre dessa política criminal
é, sobretudo, simbólico20, pois apenas busca satisfazer a opinião pública, ainda quando venha
a reduzir ou anular direitos fundamentais dos indivíduos que compõe essa sociedade.
Aliás, nisso residiu o grande sucesso do Movimento da Lei e da Ordem, pois ele
foi inteiramente amparado pelas políticas implementadas em Nova Iorque, baseadas na
Tolerância Zero, e que, embaladas por mensagens errôneas e descontextualizadas da mídia,
propagaram-se por aquele país.
Para entender essa afirmação, é imprescindível um breve retrocesso histórico. No
último terço do século passado, diversos países industrializados verificaram um incremento
nos índices de criminalidade. Isso motivou a procura de novas fórmulas para a diminuição
desses níveis, pelo que as várias nações industrializadas traçaram diversificadas estratégias21.
Nos Estados Unidos da America do Norte, houve uma redução genérica dos níveis
de criminalidade no início da década de 90. Das diversas e variadas iniciativas realizadas para
a redução da criminalidade, a política de recrudescimento de Nova Iorque, “Tolerância Zero”,
baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows Theory), teve grande aceitação
nos veículos de imprensa22, a qual postula que o aumento da criminalidade e a realização de
“graves patologias criminais” decorreriam da impunidade contra os pequenos distúrbios
cotidianos, pelo que seria imprescindível uma maior e mais repressiva atuação contra delitos
menores.
Entretanto, cabe frisar que a diminuição dos índices de criminalidade verificada
em Nova Iorque e que foi unilateralmente justificada pela Tolerância Zero, por políticos da
situação, poderia ser explicada por outros fatores, não necessariamente a uma atuação mais
19
Esta lei, inicialmente originária do Estado da Califórnia, ficou conhecida pelo nome pejorativo acima, eis que
a terceira condenação por crime doloso, de qualquer natureza, determinaria a aplicação de uma pena perpétua
(LOTKE, Eric. “A dignidade humana e o sistema de justiça criminal nos EUA”. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, trad. de Ana Sofia Schmidt de Oliveira, São Paulo, n. 24, p. 39-50, 1998).
20
ALMEIDA, Gervan de Carvalho, op. cit., p. 98.
21
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 323.
22
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 324.
7
incisiva contra contravenções, já que, além de aumentarem as taxas de homicídio, não foi
fator único e decisivo23.
Essa teoria foi plenamente aceita, com poucas discussões, pois se mostrava muito
interessante para as autoridades. Sob uma idéia equivocada de oferecer segurança, poderiam
os detentores do poder justificar uma maior intervenção e controle do cotidiano dos cidadãos.
O bombardeio midiático e a venda de uma falsa idéia de que a política de Tolerância Zero
tinha alguma base criminológica bastou para sua tentacularização para outras partes do
mundo25, especialmente par uma Europa abatida, vez por outra, pelo que se convencionou
simplificar em “atos terroristas”.
E, dessa busca mundial para combater essa nova forma de criminalidade, que não
se limita a um ordenamento jurídico e não se sente intimidada pelo tradicional Direito Penal e
suas funções da pena, outro fruto de se conviver em uma sociedade de risco, advêm novos
conceitos criminais, como o do Direito Penal do Inimigo.
23
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. “Teoria das Janelas Quebradas: e
se a pedra vem de dentro?”. Boletim Ibccrim, v. 11, p. 6-8, out. 2003.
24
MUÑOZ CONDE apud BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 327/328. Grifos do autor.
25
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 329.
8
26
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 322/323.
27
PRITTWITZ, Cornelius. “O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências
atuais em direito penal e política criminal”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 47,
mar./abr. 2004, p. 32.
28
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.
29
PRITTWITZ, Cornelius, op. cit., p. 39.
9
30
FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. “O Direito Penal do Inimigo e o Estado Democrático de Direito”. Trad. Júlio
Pinheiro Faro Homem de Siqueira e Igor Rodrigues Brito. Panóptica. Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev.2008, p.
105.
31
AMBOS, Kai. “Direito Penal do Inimigo”. Trad. Pablo Rodrigo Alfen. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11,
nov./fev. 2008, p. 12.
10
ignorada32, justamente pelo fato de, apesar de descrever o fenômeno, o doutrinador manter-se
com certa neutralidade, acentuado que seria um desvio episódico, mas que não desvirtuaria o
sistema, quando devidamente afastado pelas garantias postas aos cidadãos.
Contudo, em 1999, na Conferência do Milênio em Berlim, o professor alemão
abandonou a sua postura crítica e privilegiou, ao lado da exposição do surgimento dessa
vertente no ordenamento mundial, a defesa e inevitabilidade do Direito Penal do Inimigo,
como uma realidade incontornável e que seria concebível de acordo com o seu entendimento
de finalidades da pena33. O Direito Penal do Inimigo tornou-se elemento estrutural de sua
teoria do Direito Penal e da pena34. A partir dessa guinada doutrinária, Jakobs35 passa a
concebê-lo como “a regulação jurídica da exclusão dos inimigos, a qual se justifica no fato de
estes serem atualmente não pessoas, e conceitualmente faz pensar em uma guerra cujo
alcance, limitado ou total, depende de tudo aquilo que deles se teme”.
32
GRECO, Luís. “Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, n. 56, set./out. 2005, p. 88.
33
AMBOS, Kai, op. cit., p. 13.
34
FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo, op. cit., p. 105.
35
Apud VÍQUEZ A., Karolina. “Direito Penal do Inimigo: quimera dogmática ou modelo orientado para o
futuro?” Trad. Júlio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p.
58/59.
36
GRECO, Luís, op. cit., p. 89.
11
37
GRECO, Luís, op. cit., p. 82.
38
GRECO, Luís, op. cit., p. 82.
39
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 2. ed. Trad.
André Luís Gallegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 42.
12
40
O dano colateral seria o “homicídio de seres humanos inocentes”, quando se busca “destruir as fontes dos
terroristas e dominá-los, ou, melhor, matá-los diretamente” (JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op.
cit., p. 41).
41
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 47.
42
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40/41.
43
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 37.
44
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22. Grifos do autor.
45
GRECO, Luís, op. cit., p. 95.
46
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15.
47
QUEIROZ, Paulo de Souza, op. cit., p. 47.
13
Nesta concepção, a pena é um significante, que poderá ser compreendida (a) como
a desautorização da norma, que reafirma a vigência perdida após a prática delituosa – em um
interacionismo simbólico entre fato e coação penal48 –; e, de outra ponta, (b) como a
produtora de alteração física, pois há efetiva e segura prevenção especial durante o lapso da
preservação da liberdade por uma pena restritiva49.
A função da pena, quando aplicada ao cidadão, seria restabelecer o estado normal
de coisas, que foi abalado pela prática delituosa, reforçando “a confiança no Direito Penal”50.
O Direito Penal não protege bens jurídicos, ao menos diretamente, já que, com a realização do
tipo penal pelo desviante, o bem jurídico não poderia mais ser protegido.
Em face do cidadão, a norma penal, ao cominar sanção ao desviante, reafirma a
sua validade, reimprimindo, na sociedade, o seu valor próprio, sendo irrelevante a prática
dessa conduta, pois o ordenamento jurídico segue sem alterações. Acentua-se o seu caráter
preventivo geral positivo, que seria o grande fundamento que imprimiria validade ao sistema
e ao jus puniendi estatal.
De outro ponto, quando aplicada em face de um inimigo, a sanção irá possuir
significado diverso. Ela será, de fato, um instrumento de segurança contra um indivíduo
perigoso, em que se busca a eliminação de um perigo, com o afastamento, pelo maior tempo
possível51, dessa afronta à existência do ordenamento jurídico.
O inimigo é aquele que, por não atender às normas e aos anseios sociais, não
conviveria em um Estado de Direito. A condução de sua vida direciona-se, de forma
permanente, à destruição do ordenamento jurídico posto, pelo que a atuação do Direito Penal
e Processual Penal, contra ele, teria outros caracteres, já que as garantias e direitos
fundamentais, disponíveis a todos os cidadãos, não lhe seriam extensíveis.
Ele é uma não-pessoa, já que o Direito apenas consideraria pessoa o indivíduo que
oferecesse uma segurança cognitiva de seu comportamento. Quem não oferece esse segurança
“não só não deve esperar ser tratado como pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como
pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas).”52
48
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22.
49
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22/34.
50
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15.
51
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 16.
52
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15.
14
Con toda certeza será difícil determinar quiénes son exactamente los sujetos que
deben incluirse en esta categoría, pero no es imposible: quien se ha convertido a si
mismo en una parte de estructuras criminales solidificadas, diluye la esperanza de
que podrá encontrase un modus vivendi común a pesar de algunos hechos criminales
aislados, hasta convertirla en una mera ilusión, es decir, precisamente, en una
“expectativa contrafáctica”.54
53
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 35.
54
JAKOBS, Günther. “Derecho Penal del enemigo? Un estúdio acerca de los presupuestos de juridicidad”.
Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 205.
55
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 35.
56
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 36.
57
O iter criminis é o caminho necessário para a perfecção do crime. Pode ser dividido em: a) cogitação –
preparação psicológica para a realização do delito; b) atos preparatórios – obtenção de meios, instrumentos e
verificação de momento ideal para a prática delituosa; c) atos executórios – início de condutas que afetam o bem
jurídico tutelado pela norma penal; d) consumação – preenchimento de todos os elementos típicos do delito; e,
por fim, e) exaurimento – efeitos eventualmente decorrentes da prática delituosa. O Direito Penal pune, em
regra, apenas as condutas quando se encontrem, pelo menos, na fase de execução do delito.
15
não oferece quaisquer riscos à comunidade. Limita-se, assim, tanto a liberdade de pensar,
quanto a de agir.58 Essa punição deverá ter, essencialmente, caráter prospectivo, por combater
perigos que poderão advir da conduta do agente, não atos já praticados59, em verdadeiro
exercício de previsão.
No âmbito adjetivo, Jakobs defende que seriam possíveis diversas restrições, em
virtude, inclusive, do que seriam comportamentos “típicos” de um inimigo no processo penal,
que seria aquele que “com seus instintos e medos põe em perigo a tramitação ordenada do
processo”, ao contrário da pessoa em Direito, que “nem oculta provas nem foge”60.
Suas garantias processuais serão drasticamente reduzidas, para garantir maior
efetividade dos prováveis provimentos jurisdicionais. A prisão preventiva, de exceção, torna-
se regra. Outros procedimentos invasivos também são admitidos, pois os inimigos,
“imputados, na medida em que se intervém em seu âmbito, são excluídos de seu direito: o
Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado”.61
E, da mesma forma que ocorre no direito substantivo, as regras mais extremadas
dirigem-se contra os delitos de terrorismo, em que se confundem a posição de prisioneiros
delinqüentes ou de prisioneiros de guerra. Não haveria, assim, limites para a persecução
contra esse desviante, já que o primordial seria a proteção da comunidade.
58
PRITTWITZ, Cornelius, op. cit., p. 41/42.
59
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 16.
60
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40.
61
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40.
16
Essa formulação, como se verá neste capítulo, deve ser totalmente rechaçada.
Desde a definição de inimigo, que guarda um alto teor preconceituoso e elitista, até as razões
de Direito que autorizariam a não-caracterização de sua personalidade jurídica, o Direito
Penal do Inimigo mostra-se, simplesmente, como uma política criminal punitivista negadora
do preceito principal de nosso ordenamento, que é o substrato de nossa Carta Magna – a
dignidade da pessoa humana.
Ademais, a falha das instâncias de controle, que atacam um problema sócio-
cultural com o aparato criminal, que não é apto para tais fins, e o evidente retrocesso
histórico, que nega a própria democracia, são sintomas claros de que devemos repudiar, de
forma peremptória, esse Direito Penal do Inimigo, que de Direito quase nada é.
62
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 19.
63
Em uma fração de tempo de pouco superior a 20 anos (década de 80 até 1996), o número de prisoneiros
sentenciados quase quadruplicou. Apenas em 1996, 12 (doze) milhões de pessoas adentraram em prisões e
cadeias norte-americanas. Estima-se que, por ano, cada preso custe a esse Estado U$22,000 (LOTKE, Eric, op.
cit., p. 39-50).
17
64
Sobre a Criminologia Crítica e as críticas às teorias ontológicas da criminalidade, ver BARATTA, Alessandro.
Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2002.
65
Com suporte no interacionismo simbólico, pelo qual a realidade humana é o reflexo das interpretações
coletivas dos fatos, o labeling approuch decorre de três constatações irretorquíveis, quais sejam, (a) a cifra oculta
da criminalidade, (b) a relatividade do delito e (c) a impunidade nos crimes de colarinho branco e assemelhados.
18
Há muitas outras regras do Direito penal que permitem apreciar que naqueles casos
nos quais a expectativa de um comportamento pessoal é defraudada de maneira
duradoura, diminiu a disposição em tratar o delinqüente como pessoa. Assim, por
exemplo, o legislador (por permanecer primeiro no âmbito do Direito material) está
passando a uma legislação – denominada abertamente deste modo – de luta, por
exemplo, no âmbito da criminalidade econômica, do terrorismo, da criminalidade
organizada, no caso de <<delitos sexuais e outras infrações penais perigosas, assim
66
como, em geral, no que tange aos <<crimes>>.
66
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio, op. cit., p. 34/35.
67
APONTE, Alejandro. “Derecho Penal de enemigo vs. Derecho Penal del ciudadano: Günther Jakobs y los
avatares de um derecho penal de la enemistad”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 51,
nov./dez. 2004, p. 25.
68
Nesse sentido: BUNG, Jochen. “Direito Penal do Inimigo como teoria da vigência da norma e da pessoa”.
Trad. Helena Regina Lobo da Costa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 62, set./out. 2006,
p. 123.
69
Como afirma Ferrajoli, “ciò che é punibile: non più il reato, ma il reo, indipendentemente dal reato [...] nel
punire per „quel che si fa‟ e non per „quel de si è [...] Il presupposto della pena non è la commissione di un reato,
ma una qualitá personale determinata volta a volta con criteri puramente potestativi qualiquella di „sospetto‟ o di
„pericoloso‟.” (FERRAJOLI, Luigi. “Il „Diritto Penale del Nemico‟ e la dissoluzione del diritto penale”.
Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 92/93).
19
[...] quem são os inimigos? Alguns, com segurança, podem afirmar: os traficantes de
drogas, os terroristas, as organizações criminosas especializadas em seqüestros para
fins de extorsões... E quem mais? Quem mais pode se encaixar no perfil do inimigo?
Na verdade, a lista nunca terá fim. Aquele que estiver no poder poderá, pelo
raciocínio do Direito Penal do Inimigo, afastar o seu rival político sob o argumento
da sua falta de patriotismo por atacar as posições governamentais. Outros poderão
concluir que também é inimigo o estuprador de sua filha. Ou seja, dificilmente se
poderá encontrar um conceito de inimigo, nos moldes pretendidos por essa corrente,
que tenha o condão de afastar completamente a qualidade de cidadão do ser humano,
a fim de tratá-lo sem que esteja protegido por quaisquer das garantias conquistadas
ao longo dos anos.70
70
GRECO, Rogério. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. Niterói: Impetus,
2005, p. 29.
71
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria, op. cit., p. 131.
72
FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo, op. cit., p. 119.
20
criminoso, em mera exclusão de classes, com a definição de uma parcela da população apenas
por seu modo de viver e não por eventuais perigos de práticas delituosas.
Outra questão problemática diz respeito à legitimidade para a definição do
inimigo. Como já visto, em cada época são eleitos inimigos do Estado, por motivações
direcionadas, essencialmente, à manutenção do domínio do poder.
O grande perigo nessa formulação moderna é que a definição do inimigo se dê
apenas por aspectos políticos discriminatórios, para certificar a inalterabilidade das relações
de hierarquia, sem se preocupar com verdadeiras ofensas a bens jurídicos.
É totalmente desarrazoada a diferenciação de um cidadão, pessoa física, de outro,
também pessoa física, com a exclusão de caracteres necessários para a sua existência, apenas
pelo fato de ele ter decidido seguir a sua vida por outra conformação, outras regras, que não
aquelas estatuídas para a vivência comum. Daí se nota que a formulação de Jakobs é, em
realidade, “um pessimismo cultural não comprovado empiricamente”.73
Uma sociedade que escolhe alvejar determinados cidadãos, ainda que originários
de outro país, como inimigos, acaba por ofender o princípio da igualdade:
73
PRITTWITZ, Cornelius, op. cit., p. 43.
74
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 349/350.
21
75
Para saber mais a respeito: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros
escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
76
Apud MORAES, Ana Luisa Zago de. “O Estado de exceção e a seleção de inimigos pelo sistema penal na
contemporaneidade”. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 35, n. 110, jun. 2008, p. 16.
22
A dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque
se firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de
cada povo para realizar as suas vocações e necessidades [...]
De conceito filosófico que é, em sua fonte e em sua concepção moral, a princípio
jurídico a dignidade da pessoa humana tornou-se uma forma nova de o Direito
considerar o homem e o que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade
política. Por força da juridicização daquele conceito, o próprio Direito foi repensado,
reelaborado e diversamente aplicadas foram as suas normas, especialmente pelos
Tribunais Constitucionais.77
77
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Controle de Constitucionalidade. Ação Direta de Inconstitucionalidade
n.º 3.510/DF. Relator: Min. Carlos Britto. Brasília, DF, 5 de junho de 2008.
78
VÍQUEZ A., Karolina, op. cit., p. 55.
79
Não se pretende esgotar o assunto no presente ensaio, mas apenas tecer considerações gerais. Para um estudo
mais aprofundado, cf.: BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros,
s/d; e COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000.
23
liberal e social, mostra-se verdadeira superação de seus conceitos primários, dando forma à
democracia.80
Do Estado Liberal (Estado Guardião), ele adota o ideal de Estado de Direito, em
contraposição ao Absolutista, em que todo Direito repousava nas mãos de um ou poucos
homens. A soberania popular é conteúdo essencial, já que o Direito governante é aquele que
sobressai da vontade geral, por meio dos representantes do povo escolhidos diretamente.
Do Estado Social (Estado Intervencionista), que pretendeu derrubar as barreiras
liberais entre sociedade e Estado, para a concretização do “Estado de Bem-Estar” (Welfare
State)81, requer uma atuação positiva para a diminuição das diferenças sociais. Há, dessarte,
uma “transformação superestrutural” do liberalismo, conservando, porém, a sua adesão à
ordem capitalista82.
Dessas duas visões exsurge o Estado Social e Democrático de Direito83, na
tentativa de conciliar a atuação material do Estado Social e os limites formais do Estado
Liberal.84 É ônus estatal “crear condiciones sociales reales que favorezcan la vida del
individuo, pero para garantizar el control por el mismo ciudadano de tales condiciones deberá
ser, además, un Estado Democrático de Derecho”.85
A concepção de responsabilidade, neste Estado Social e Democrático de Direito, é
diversa daqueles dois Estados, pois somente devem ser penalizadas as condutas indesejadas
por sua grande lesividade social, quando se verifica a presença da culpabilidade86. Assume-se,
como primordial, o postulado da legalidade, pois apenas são ilícitas as condutas previamente
estabelecidas em uma norma penal, de forma estrita. A atuação do jus puniendi vincula-se aos
exatos termos legais, obstaculizando atos não amparados pela lei.
Daí decorre que conceituações apriorísticas e casuísticas de prováveis inimigos
não são aceitas por afrontarem aspectos basilares desse ordenamento. O Estado Democrático
de Direito repudia hipóteses tão discriminatórias e que não são comparáveis empiricamente. O
princípio da isonomia exige que o Estado se abstenha de realizar discriminações sem
80
MIR PUIG, Santiago. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho. Barcelona: Ariel,
1994, p. 31.
81
MIR PUIG, Santiago, op. cit., p. 32.
82
Assim, ele pode ser caracterizado em regimes políticos antagônicos, como a democracia, o facismo e o
nacional-socialismo (BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 184).
83
A concepção de Estado Social, em nosso constitucionalismo, data de 1934 (BONAVIDES, Paulo. Curso de
Direito Constitucional. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 334).
84
MIR PUIG, Santiago, op. cit., p. 33.
85
MIR PUIG, Santiago, op. cit., p. 33.
86
MIR PUIG, Santiago, op. cit., p. 79.
24
justificativas, devendo o fator de discrímen ser vinculado aos benefícios que essa
desequiparação provoca no seio social.
Ademais, a definição de inimigo e sua exclusão do Direito Penal garantista, por
não reconhecer as distinções existentes entre os diversos modos de vida e ideais dos viventes,
configura uma ameaça grave aos fundamentos da democracia, quais sejam, tolerância e de
cooperação social, sob a base de um respeito mútuo.87
4.3 Proteção à Segurança Coletiva ou Defesa das Garantias Individuais. Estados de Exceção
e a Regra da Excepcionalidade
87
VÍQUEZ A., Karolina, op. cit., p. 55.
88
BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 347.
25
A oposição entre segurança e garantismo, neste contexto, talvez seja uma das
maiores falácias servidas ao público consumidor do direito penal. Não existe
dicotomia entre a manutenção dos direitos e garantias individuais e a
criação/manutenção de sistemas democráticos de controle da criminalidade. O
choque de perspectiva somente pode ser real se se optar por modelos persecutórios
autoritários.89
89
CARVALHO, Salo de. “A política de guerra às drogas na América Latina entre o Direito Penal do Inimigo e o
estado de exceção permanente”. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 175.
90
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5.ed. São Paulo:
Atlas, 2005, p. 1.738.
91
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 187.
92
O crime organizado, narcotráfico, guerrilha urbana e formas assemelhadas são, segundo o magistério de
Orlando Soares, justificativas para a decretação do Estado de Defesa (SOARES, Orlando. Comentários à
Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05.10.1988. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
p. 1.679).
26
Uma idéia que leva a que se anulem todos os limites absolutos ao poder de punir
(razão epistemológica), que não é precisa o suficiente para iluminar os aspectos
preventivos que se mostrem dignos de discussão (razão pragmática) e que ainda
representa um sabor autoritário (razão retórica) de nada pode prestar à ciência do
direito penal.95
93
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. “Silva Sánchez e Jakobs: a saga da racionalização do irracional”.
Panóptica. Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 69.
94
Mais críticas sobre o simbolismo do Direito Penal e o punitivismo expansionista, que são ampliados pelo
Direito Penal do Inimigo: CANCIO MELIÁ, Manuel. “De novo: „Direito Penal‟ do Inimigo?”. Panóptica,
Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008.
95
GRECO, Luís, op. cit., p. 102.
27
Direito Penal do autor e com regras posteriores específicas para determinadas pessoas. O que
deve ser neutralizado não é um pretenso inimigo, escolhido aleatoriamente, por concepções
transitórias provenientes de riscos e medos, mas sim esta visão preconceituosa de “Direito”,
para não mais retornar aos discursos científicos como legitimadora de uma concepção de
Estado.
A necessidade de respeito aos princípios fundamentais deve ser a tônica contínua
e duradoura de uma ação que pretende evitar o elitismo da máquina punitiva, inclusive para se
afastar uma doutrina que, sob a falsa excusa protetória de grande parcela da sociedade, na
realidade funda um Estado policialesco e autoritário, contrário a todos os cidadãos. Um
Estado no qual o inimigo é o cidadão, que é o sustentáculo e força-matriz do ordenamento.
Um Estado no qual o inimigo é o próprio Estado.
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28
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