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Prólogo
Será que a solução apresentada no nosso artigo 956.º do Código Civil, referente à
doação de bens alheios, já transparecia nos princípios e normas gerais do nosso
ordenamento jurídico?
O artigo 956.º do Código Civil está conforme com o nosso sistema jurídico?
1
Filho de Maria Olinda Marques de Carvalho e José Manuel Marques de Carvalho
Endereço electrónico: alexandremarquescarvalho@gmail.com.
Numa última fase do trabalho, entraremos na análise de um caso específico de
doação de bens alheios, a doação de bem pertencente a coisa comum.
Abstract
Does the solution presented in our article 956.º of the Civil Code, about third
party's property donation, already shone on the principles and rules of our legal
system?
The article 956.º of the Civil Code it´s according with our legal system?
Through discussion of the legal regime of third party's property donation, we try
to mention the typical concepts of General Theory of Civil Law, in order to find basis
for better understanding the figure. In this sense, will be examined aspects of the legal
system following the systematization of the article 956.º of the Civil Code.
In the final phase of the work, we get into the analysis of a specific case of third
party's property donation, the donation of common property.
2
Índice
1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 4
2. REGIME ................................................................................................................................................. 9
2.4. NÃO HAVENDO LUGAR A INDEMNIZAÇÃO, O DONATÁRIO FICA SUB-ROGADO NOS DIREITOS QUE
POSSAM COMPETIR AO DOADOR RELATIVAMENTE À COISA OU DIREITO DOADO (ARTIGO 956.º N.º 4 DO
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 26
3
1. Introdução
O artigo 940.º do Código Civil (doravante CC) avança uma noção de contrato de
doação:
“Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu
património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma
obrigação, em benefício do outro contraente”.
2
Deixamos de lado alguns dos caracteres apontados por GONÇALVES, LUIZ DA CUNHA, Tratado de
Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 1934, pp. 53 e
ss, pois correspondem a características, assim seja o facto de estarmos defronte de um contrato e de o
mesmo ser gratuito.
3
LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito das Obrigações, III, 7ª edição, Almedina,
2010, p. 177.
4
RAMALHO, MARIA DO ROSÁRIO PALMA, Sobre a doação modal, In: O direito / propr. Sociedade
Internacional de Promoção de Ensino e Cultura A. 122, nº 3-4 (Jul.-Dez), Lisboa, 1990 , p. 709.
5
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 177.
4
O espírito de liberalidade do doador corresponde, de forma simplista, a uma
contraposição entre a espontaneidade e o dever6, podendo ter como motivo interesses do
próprio doador7. Implica que não exista uma contrapartida e que se não actue em
cumprimento de uma obrigação8. Em síntese, o fim da doação é a atribuição de um
benefício ao donatário.
Por faltar o espírito de liberalidade, o n.º 2 do artigo 863.º do CC exclui do
âmbito da doação a renúncia a direitos, o repúdio de herança ou legado e os donativos
conformes aos usos sociais. Na renúncia a direitos, assim como no repúdio de herança
ou legado, só existe a intenção de extinguir o próprio direito 9. Assim, podemos
constatar que é posto em causa o elemento “à custa do património” (infra), pois existe
unicamente uma recusa por parte do doador em aumentar o seu património. Nos
donativos conformes aos usos sociais, estamos perante um animus solvendi10, existindo,
com efeito, a intenção de cumprir uma obrigação.
6
LIMA, FERNANDO ANDRADE PIRES DE / VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Código
Civil Anotado, II, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 239.
7
Veja-se os exemplos do altruísmo, gratidão e egoísmo, ALMEIDA, CARLOS FERREIRA DE, A
doação e a dádiva, In: Themis / FDUNL. - Coimbra, Ano IX, n,º 17, 2009, pp. 10 e ss.
8
CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, A doação, p. 11.
9
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 179.
10
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 179.
11
Na falta de normas específicas sobre a doação de bens alheios é aplicável o regime jurídico da compra e
venda de bens alheios, com as adaptações resultantes do carácter gratuito da doação. CUNHA, PAULO
OLAVO, Venda de bens alheios, Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, Lisboa, 1987, p. 467;
CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Da Boa Fé no Direito Civil, Volume I, Almedina, 1984, p. 503.
5
Avançamos desde já uma noção de doação de bem alheio: o doador doa como
própria uma coisa pertencente a outrem ou uma coisa sobre a qual o doador possui um
direito que não lhe permite essa actuação12. Como podemos extrair desta noção, o
problema assenta na falta de legitimidade.
Coisa/Bem13
Alheio
12
Contrariamente ao que vem exposto no artigo 1627.º do Código Civil peruano, que inclui na doação de
bens alheios as doações em que ambas as partes sabem que o bem é alheio:
(Compromiso de donar bien ajeno)
“El contrato en virtud del cual una persona se obliga a obtener que otra adquiera gratuitamente la
propiedad de un bien que ambos saben que es ajeno, se rige por los artículos 1470, 1471 y 1472.”
13
Para um maior desenvolvimento histórico: CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Tratado de Direito
Civil Português I, tomo II – Coisas, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, e VIEIRA, JOSÉ ALBERTO
COELHO, Direitos reais, Coimbra Editora, 2008, pp. 124 e ss.
14
Bem seria um sinónimo de Res, ou uma subespécie, assim, ASCENSÃO, JOSÉ DE OLIVEIRA,
Direito Civil Teoria Geral, Vol I, Coimbra Editora, 1997, p. 313.
15
MENEZES CORDEIRO, Tratado, I, tomo II – Coisas, p. 25.
16
GOMES DA SILVA definia bem como “tudo o que sirva para o homem atingir qualquer fim”. (O
dever de prestar e o dever de indemnizar, Tipografia Ramos, Lisboa, 1944).
17
MENDES, JOÃO DE CASTRO, Teoria Geral do Direito Civil, I, AAFDL, Lisboa, 1979, p. 387.
18
FREYRE, MARIA CASTILLO, sobre bienes ajenos, Lima, 1990, p. 55.
6
normas vigentes. Assim, saberemos quando o bem se encontra ou não dentro da sua
propriedade.
• Critério contratual: no momento da celebração do contrato, verificamos se o bem
não pertence a nenhum dos contraentes.
Desta forma, os bens alheios são aqueles que pertencem ao património de uma
determinada pessoa que não os contraentes e que o doador doa como próprios, ou seja,
já possuem existência material19. Não cabem neste conceito, nomeadamente, as coisas
fora do comércio (n.º 2 do artigo 202.º do CC), as coisas genéricas, pois não é
necessário que o doador seja proprietário do bem aquando da celelebração do contrato
de doação, e as coisas futuras, já que detêm um regime próprio previsto no n.º 1 do
artigo 942.º do CC – seria por exemplo o caso de o doador se obrigar a adquirir a coisa
doada para a transmitir ao donatário. De igual modo, não se incluem os casos de
representação legal ou voluntária, visto que o doador declara ao donatário não ser o
proprietário, bem como o mandato sem representação, pois estaria em causa uma
doação como própria mas por conta do proprietário20.
Posto isto, dentro do conceito de bem alheio podemos avançar desde já uma
classificação entre bem pertencente a um terceiro e bem pertencente a coisa comum
(esta última modalidade será desenvolvida infra no ponto 5).
Artigo 1468.º:
19
Contrariamente ao que prevê o Código Civil peruano, que considera bens alheios aqueles que não se
encontrem dentro do património de uma pessoa, englobando, assim, os bens futuros –, MARIO
CASTILLO FREYRE, Los Contratos, p. 56.
20
Como alude PAULO OLAVO CUNHA, Venda, p. 425, para o caso de compra e venda de bens alheios.
21
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 259.
7
“O doador não responderá pela evicção22 da cousa doada, se a isso se não obrigar
expressamente, salvas as disposições dos artigos 1142.º e 1143.º (sobre o regime dotal)
& único. O doador ficará, porém, subrogado em todos os direitos que possam
competir ao doador, verificando-se a evicção.23”
Artículo 638.º:
“El donatario se subroga en todos los derechos y acciones que en caso evicción
corresponderían al donante.
Este, en cambio, no queda obligado al saneamiento de las cosas donadas, salvo si la
donación fuere onerosa, en cuyo caso responderá el donante de la evicción hasta la
concurrencia del gravamen.”25
Desta forma, os códigos acima referidos, assim como o Código Civil Alemão
(artigos 516.º e ss), o Código Francês (artigos 893.º e ss), o Código Brasileiro (artigos
538.º e ss), o Código Suíço (não tem um único capítulo sobre doação), o Código
22
Na actualidade o nosso Código não consagra a evicção como uma obrigação legal, PAULO OLAVO
CUNHA, Venda, p. 456.
23
Negrito nosso.
24
Negrito nosso.
25
Negrito nosso.
8
Cubano (artigos 371.º e ss) e o Código Peruano (artigos 1621.º e ss), não tratam
especificamente a doação de bens alheios, nomeadamente quanto à sua validade.
Perante o facto de a maioria dos códigos dos vários países não conterem
nenhuma disposição sobre a doação de bens alheios, levantam-se 2 questões:
• Será que a solução apresentada no nosso artigo 956.º do CC já transparecia nos
princípios e normas gerais do nosso ordenamento jurídico? ABRANCHES
FERRÃO26 entendia, na vigência do Código de Seabra, que não seria necessário que
o legislador previsse nenhuma regra sobre a doação de bens alheios
• O artigo 956.º do CC está conforme com o nosso sistema jurídico?
2. Regime
Nulidade
26
FERRÃO, ANTÓNIO ABRANCHES, Das Doações segundo o Código Civil Português, I – Conceito e
elementos da doação, Coimbra, 1911, p. 194.
27
TELLES, INOCÊNCIO GALVÃO, Manual dos contratos em geral, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra,
2002, p. 358, afirma que acto nulo é um nado-morto; o acto anulável é um nado- vivo dimunuído na sua
vitalidade e ameaçado de morte.
28
PINTO, CARLOS MOTA, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p.
610.
29
GALVÃO TELLES, Manual, p. 359.
30
ANDRADE, MANUEL DOMINGUES DE , Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Almedina, 1983, p.
416.
9
• Efeitos da nulidade (artigo 286.º do CC)
Pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal;
Qualquer interessado pode invocar a nulidade;
Pode ser alegada a todo o tempo, podendo ser afastada em certos casos. Veja-se o
exemplo da usucapião.
A convalidação
Inoponibilidade
Como expusemos, na nulidade o acto não produz efeitos desde a sua origem.
Porém, este efeito da nulidade poderá ser restringido devido a interesses das próprias
partes ou de terceiros. No preceito, estamos perante uma inoponibilidade situacional (na
31
Nomedamente, LOPES, MANUEL BAPTISTA, Das doações, Coimbra, Almedina, 1970, p. 88;
ANTÓNIO ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, p. 198; PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA,
Código, p. 259; PAULO OLAVO CUNHA, Venda, p. 467.
32
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 259.
33
ANTÓNIO ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, p. 198.
10
terminologia utilizada por CASTRO MENDES34) e não perante uma inoponibilidade
face a terceiros, visto ser apenas ineficaz perante o donatário de boa fé.
Boa fé
34
MENDES, JOÃO CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, AAFDL, Lisboa, 1979, p.
317.
35
CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Tratado de Direito Civil Português I, tomo I – Introdução.
Doutrina geral. Negócio jurídico, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 180.
36
MENEZES CORDEIRO, Tratado, I, tomo I, p. 180.
37
CASTRO MENDES, Teoria, II, p. 290.
38
MENEZES CORDEIRO, Tratado, I, tomo I, p. 180.
39
Afastamo-nos do entendimento de que a invalidade corresponde a uma sanção, nomeadamente, por
estar em causa a apreciação do acto e não a reprovação do autor. Posição defendida na senda de
ASCENÇÃO, JOSÉ DE OLIVEIRA, Direito Civil Teoria Geral, Vol II, Coimbra Editora, 1997, pp. 346
e ss.
40
Contrariamente ao que defendia ANTÓNIO ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, pp. 194 e ss, que
considerava que a doação de bens alheios seria apenas anulável.
41
Com o mesmo sentido de ordem pública, porém não no sentido utilizado no direito público.
11
Para além disso, a nulidade constitui a regra (artigo 294.º do CC). Podemos, ainda,
avançar um argumento sistemático: sendo um caso de falta de legitimidade, o desvalor
apontado pelo Código Civil para estes casos é a nulidade42, como se verifica na compra
e venda de bens alheios.
No respeitante à inoponibilidade, a nulidade não pode ser oposta ao donatário de
boa fé, por motivos de tutela de boa fé43.
Não devemos esquecer que a confiança das pessoas é protegida pelo Direito.
Cabe, então, expor os pressupostos da tutela da confiança elencados por MENEZES
CORDEIRO44, que são: a existência de uma situação de confiança, a justificação para a
confiança, o investimento de confiança e a imputação da situação de confiança.
Por conseguinte, o donatário ignora, sem culpa, que está a lesar posições alheias
(situação de confiança); o doador faz a proposta de doação (justificação para a
confiança); o donatário aceita a doação (investimento de confiança); o doador, ao
proceder à doação, cria expectativas no donatário (imputação da situação de confiança).
Por fim, no tocante à boa fé, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA45
afirmam que o donatário está de boa fé se tiver aceitado a doação com a convicção de
que o bem pertencia ao doador. Exige-se, para além disso, o desconhecimento não
culposo do donatário. Assim, estando em causa um bem imóvel ou um bem móvel
sujeito a registo, o donatário deveria ter consultado o registo.
42
CASTRO MENDES, Teoria, II, p. 40; FERNANDES, LUÍS CARVALHO, Teoria Geral do Direito
Civil, II, 3ª Ed., Universidade Católica, Lisboa, 2001, p. 108.
43
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 230.
44
MENEZES CORDEIRO, Tratado, tomo I, p. 186.
45
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 260.
46
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 230.
47
BALBI, GIOVANNI, La donazione, em Giuseppe Grosso/Francesco Santoro-Passarelli, Tratatto di
Diritto Civile, Vol II, Tomo IV, Milano, Francesco Vallardi, 1964, p. 50.
12
a) ter o doador assumido expressamente a obrigação de indemnizar o prejuízo;
b) ter o doador agido com dolo;
c) ter a doação carácter remuneratório;
d) ser a doação onerosa ou modal, ficando neste caso a responsabilidade do donatário
limitada ao valor dos encargos
Declaração expressa
48
Supra, ponto 1.3.
49
Supra, ponto 1.3.
50
GALVÃO TELLES, Manual, p. 135.
51
CASTRO MENDES, Teoria, II, p. 57.
52
CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p. 224.
13
De referir, também, que um mesmo comportamento pode constituir uma
declaração expressa e uma tácita. Por exemplo, num testamento o sucessível afirma que
vende a outrem todos os móveis de uma casa que fazem parte da herança de seu pai53.
Posição adoptada
53
CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p. 226.
54
Nomedamente, CASTRO MENDES, Teoria, II, pág. 59; CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p.
225.
55
CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p. 225.
56
CASTRO MENDES, Teoria, II, p. 59.
57
MANUEL DE ANDRADE, Teoria, p. 132.
14
autonomia privada prevista no artigo 405.º n.º 1 do CC, o doador compromete-se a
cumprir uma obrigação.
Quanto ao facto de ter de ser uma declaração expressa, não seria possível que
uma mera declaração tácita vinculasse o doador à obrigação de indemnizar o prejuízo58.
Tal violaria a exigência de forma da doação. Assim, seguindo a posição de MENEZES
LEITÃO59 e de BALBI60, julgamos que a declaração tem de estar prevista no contrato
de doação ou tem que revestir a forma prevista para o contrato de doação, caso o doador
queira assumir a obrigação posteriormente ao contrato-base.
Natureza jurídica
Parece que a 2.ª tese tem razão. Aparentemente a doação detém um duplo
objecto, sendo o montante do prejuízo causado entregue ao donatário subsidiariamente,
ou seja, após a reivindicação da coisa pelo dono. No entanto, a ideia de garantia é mais
precisa. Quer isto dizer que a escolha de qual das obrigações irá ser realizada não cabe a
nenhuma das partes. Se o doador disser que não entrega a coisa doada e que somente
entregará o montante do prejuízo, estará a tentar revogar a doação e tal actuação é-lhe
vedada (artigo 970.º do CC). Por outro lado, o donatário não pode exigir, em vez da
58
Tal garantia não deriva da natureza da doação, TORRENTE, ANDREA, La donazione, em Antonio
Cicu/Francesco Messineo, Tratatto di Diritto Civile e Commerciale, volume XXII, Milano, Giuffré, 1956,
p. 505.
59
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
60
BALBI, GIOVANNI, La donazione, p. 50.
61
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
62
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 260.
63
BALBI, GIOVANNI, La donazione, p. 50.
15
coisa doada, o montante equivalente à mesma. Portanto, enquadrar a figura na
existência de uma garantia adicional parece a solução mais correcta.
Dolo
Posição adoptada
64
Consiste na omissão da diligência exigível do agente, VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Das
Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 525.
65
GALVÃO TELLES, Manual, p. 107.
66
“Aquele que procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano”,
CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Tratado de Direito Civil Português II, Direito das Obrigações,
tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, p. 470.
16
A acepção de dolo prevista no artigo 956.º n.º 2 alínea b) do CC parece
corresponder à presente no artigo 483.º do CC, como afirma MENEZES LEITÃO67.
Saber se se trata de dolo directo, necessário ou eventual só será possível averiguar no
caso concreto; na maioria dos casos, estamos perante dolo directo, pois o doador quer
directamente doar um bem alheio, sabendo que este não lhe pertencia.
Não existindo a alínea b) do artigo 956.º do CC, o donatário teria tutela nos
termos do artigo 253.º do CC e nos termos dos artigos 483.º e ss do CC. Mesmo assim,
a nosso ver, quanto mais meios de tutela da parte mais fraca, melhor.
Começando pelo caso mais simples, o doador age com dolo se tiver intenção de
causar prejuízos ao donatário68. Sendo, neste caso, fácil imaginar casos de dolo directo,
necessário e eventual.
De igual modo, o doador agirá com dolo se tiver consciência de estar a doar um
bem de outrem69.
Por fim, também haverá dolo quando, como acrescenta BALBI70 e MENEZES
LEITÃO71, o doador alienar a coisa doada antes de o donatário proceder ao seu registo.
Desta forma, afastamo-nos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA72, que
consideram que o dolo não se refere à actuação do doador, mas somente à própria
evicção, ou seja, o dolo limita-se ao caso de o doador ter como intenção que o donatário
fique sem o bem.
Doação remuneratória
67
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
68
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
69
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
70
BALBI, GIOVANNI, La donazione, p. 51.
71
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 231.
72
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 260.
73
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 242.
17
A doação remuneratória visa a gratidão por serviços prestados, podendo não
terem sido prestados pelo próprio donatário74; veja-se, por exemplo, o caso dos filhos do
prestador dos serviços.
Bem vistas as coisas, todas as doações são remuneratórias, ou seja, têm como
fim uma retribuição como referem LUIZ CUNHA GONÇALVES75 e CARLOS
FERREIRA DE ALMEIDA76. Contudo, nesta modalidade existe uma sólida intenção
do doador de recompensar serviços prestados pelo donatário.
Como características da doação remuneratória temos que a doação tem que visar
retribuir serviços passados, e já não serviços futuros77; o doador tem de declarar
(expressa ou tacitamente) o carácter remuneratório da doação; e, por fim, não pode
corresponder ao cumprimento de um dever jurídico (animus solvendi).
Posição adoptada
74
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 242 que referem um acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 25 de Julho de 1978.
75
GONÇALVES, LUIZ DA CUNHA, Tratado, p. 65.
76
CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, A doação, p. 14.
77
De resto é um dos critérios de distinção entre a doação remuneratória e a doação modal, MANUEL
BAPTISTA LOPES, Das doações, p. 21; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-09-2006,
Processo: 0633771.
78
Supra, ponto 1.3.
79
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 232.
18
Doação modal
(Cláusulas modais)
“1. As doações podem ser oneradas com encargos.
2. O donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor
da coisa ou do direito doado.”
80
Para um maior aprofundamento ver o acórdão do STJ n.º 7/97, Processo n.º 87 6741 publicado no
Diário da Républica no dia 9 de Abril de 1997 na 1.ª Série-A.
81
Sobre a cláusula modal, VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Ensaio sobre o conceito do modo,
Atlântida, Coimbra, 1955.
82
Neste sentido, PALMA RAMALHO, Sobre a doação p. 678.
83
Artigo 1454º:
“A doação póde ser pura, condicional, onerosa, ou remuneratoria.
& 1.º Pura é a doação meramente benefica, e independente de qualquer condição.
& 2.º Doação condicional é a que depende de certo evento ou circumstancia
& 3.º Doação onerosa é a que é feita em attenção a serviços recebidos pelo doador, que não tenham a
natureza de divida exigivel.”
84
Artigo 1455º:
“A doação onerosa só pode ser considerada como doação, na parte em que exceder o valor dos encargos
impostos.”
85
Art. 793º (Donazione modale)
“La donazione può essere gravata da un onere. Il donatario è tenuto all'adempimento dell'onere entro i
limiti del valore della cosa donata.
Per l'adempimento dell'onere può agire, oltre il donante, qualsiasi interessato, anche durante la vita del
donante stesso.
La risoluzione per inadempimento dell'onere, se preveduta nell'atto di donazione, può essere domandata
dal donante o dai suoi eredi.”
86
PALMA RAMALHO, Sobre a doação p. 688 e ss.
19
sendo desde a celebração do contrato perfeita, ou seja, produz todos os seus efeitos
como se fosse uma doação pura e simples87.
O encargo pode ter a forma de condição. Através de interpretação contratual,
feita caso a caso, saberemos se é uma doação modal ou uma condição, considerando-se
na dúvida doação modal, como defendiam ABRANCHES FERRÃO88 e MOTA
PINTO89.
Como elementos da doação modal, podemos mencionar a existência de uma
doação, ou seja, o doador atribui ao donatário uma vantagem patrimonial; no entanto,
surge a figura do encargo.
A doação modal poderá ser uma doação onerosa90 quando, por exemplo, o
encargo tiver natureza económica, for em benefício do doador e implicar um
empobrecimento do património do donatário.
Sendo o valor dos encargos igual ou superior ao valor do objecto doado, estamos
fora do âmbito da doação, porque neste caso seria posta em causa a característica da
gratuitidade ou, de outro prisma, faltaria o elemento essencial do empobrecimento do
doador (supra, ponto 1.1.)91. Em suma, o donatário tem de obter um benefício (VB – E
= B)92. Por essa razão, o artigo 963º nº 2 estabelece que o donatário não é obrigado a
cumprir os encargos senão dentro dos limites da coisa ou do direito doado.
O encargo vincula o donatário, sendo este obrigado a cumpri-lo, ainda que
coercivamente, e tendo legitimidade para exigir o cumprimento os sujeitos previstos no
artigo 965.º do CC. Se não o fizer, terá que que restituir o bem doado.
Posição adoptada
87
ANTÓNIO ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, p. 251; MANUEL DE ANDRADE, Teoria, II, p.
494.
88
ANTÓNIO ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, p. 251.
89
CARLOS MOTA PINTO, Teoria, p. 581.
90
GONÇALVES, LUIZ DA CUNHA, Tratado, p. 64, defendia que a doação onerosa era uma
denominação da doação modal, isso devia-se ao facto de o próprio Código Seabra as considerar onerosas.
Porém o nosso Código Civil não faz tal referência no artigo 963.º.
91
PALMA RAMALHO, Sobre a doação p. 715.
92
VB= valor do bem descontando o valor do encargo (E) tem de implicar um ganho para o donatário.
93
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 232.
20
2.3. É imputável no prejuízo do donatário o valor da coisa ou do direito doado,
mas não os benefícios que ele deixou de obter em consequência da nulidade (artigo
956.º n.º 3 do CC)
2.4. Não havendo lugar a indemnização, o donatário fica sub-rogado nos direitos
que possam competir ao doador relativamente à coisa ou direito doado (artigo
956.º n.º 4 do CC)
Mesmo não se aplicando o n.º 2 do artigo 956.º do CC, ao donatário cabe mais
um meio de tutela da sua posição jurídica. A este respeito, a maioria da doutrina
94
MENEZES CORDEIRO, Da Boa, I, p. 503.
95
MENEZES CORDEIRO, Tratado, II, Tomo III, p. 525.
96
MENEZES CORDEIRO, Da Boa, I, pág. 503, afirma que a referência feita ao valor da coisa apenas
vale para os casos das alíneas a), c) e d) do artigo 956.º n.º 2 do CC.
97
TORRENTE, ANDREA, La donazione, p. 507.
98
CASTRO MENDES, Teoria, I, 1979, p. 418.
21
assinala o exemplo das benfeitorias feitas pelo doador, nomeadamente MENEZES
LEITÃO99 e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA100.
A nosso ver, o n.º 4 do artigo 956.º do CC está em total conformidade com o
espírito do sistema. Esta solução compreende-se, considerando que, se a doação fosse
válida, os direitos que competiam ao doador estariam no património do donatário. No
caso das benfeitorias isso é muito evidente, pois estariam incluídas na doação e, desta
forma, pertenceriam ao donatário, como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES
VARELA101.
99
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 232.
100
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 261.
101
PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código, p. 261.
102
Boletim do Ministério da Justiça, 86, pp. 404 e ss.
103
Figura distinta da situação abordada anteriormente da convalidação (supra, ponto 2.1), pois esta
pressupõe que a doação produz os seus efeitos nos mesmos termos em que havia sido celebrada.
22
A Jurisprudência dividia-se quanto a este respeito105. O principal argumento
apresentado pela Jurisprudência, que negava a possibilidade de conversão, era o facto de
a teoria da conversão dos negócios jurídicos não estar prevista no Código Seabra.
(Conversão)
“O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo
diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o
fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem
previsto a invalidade.”
104
Esta questão foi levantada por MANUEL BAPTISTA LOPES, Das doações, pp. 90 e ss.
105
Em sentido negativo, contra a conversão: Ac. 17-2-1888, Ac. 13-12-1889, STJ 16-1-1945. Em sentido
positivo: Ac. 2-5-1924 e Ac. 26-7-1940. MANUEL BAPTISTA LOPES, Das doações, p. 91.
106
VENTURA, RAÚL JORGE RODRIGUES, A conversão dos actos jurídicos no direito romano,
Lisboa, 1947. Contudo não existia um instituto de conversão dos negócios jurídicos, pois não existia um
instituto de negócio jurídico nem um regime geral da invalidade, como refere CARVALHO
FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos Civis, Quid Juris, 1993, p. 125.
107
CARVALHO FERNANDES, A Conversão, p. 135.
23
nomeadamente, por CARVALHO FERNANDES108, que utiliza o termo revaloração, e
por MENEZES CORDEIRO109.
A vontade hipotética é, como refere CARVALHO FERNENDES110, o fim
prático visado pelas partes111. Assim sendo, a parte que se quiser valer da conversão terá
o ónus da prova dos requisitos desta112. Quanto à legitimidade de arguição, visto
estarmos no campo da nulidade, qualquer das partes poderá prevalecer-se da
convertibilidade.
Na hipótese levantada, importa referir um aspecto relativo ao direito de
preferência. Será o caso em que um terceiro (o comproprietário que não autorizou a
alienação da coisa) requer a conversão, exercendo posteriormente o respectivo direito de
preferência, como afirma CARVALHO FERNANDES113.
Hipótese diversa é a da alienação de toda a coisa comum. Uma possibilidade
será a de reduzir em proporção da quota do comproprietário e, posteriormente,
converter-se em alienação dessa mesma quota114, contra MENEZES LEITÃO115 que
afirma que implicaria uma alteração substancial da posição do adquirente.
Quanto à questão, começaremos por verificar se os pressupostos da teoria da
conversão dos negócios jurídicos estão preenchidos de forma a converter a doação de
uma parte especificada da coisa comum, sem o consentimento dos restantes consortes,
numa doação da quota ideal do comproprietário.
No tocante à forma, não se levantam problemas particulares, visto que os
requisitos de forma são os mesmos, como estatui o artigo 947.º do CC.
No respeitante à substância, o negócio inválido tem que conter os requisitos da
capacidade, objecto e vontade necessários para a validade do contrato a converter 116. Na
senda de MOTA PINTO117 não achamos que ambos os negócios têm de se referir ao
mesmo bem, bastando que o negócio esteja dentro do âmbito negocial delimitado pelo
doador e pelo donatário. Assim, se a doação só seria nula por violar o disposto no artigo
1408.º do CC, não parece que esteja enfermada de outros vícios de substância.
108
CARVALHO FERNANDES, A Conversão, p. 473.
109
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português I, tomo I – Introdução. Doutrina geral.
Negócio jurídico, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 591.
110
CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p. 505.
111
Está em causa uma vontade hipotética objectiva, de forma a respeitar a autonomia privada, que de
resto resulta da boa fé integrativa presente no artigo 239º, assim expõe, MENEZES CORDEIRO, Da Boa,
II, p. 1072.
112
CARVALHO FERNANDES, Teoria, II, p. 505. Contrariamente, GALVÃO TELLES, Manual, p. 376,
sustenta que o ónus da prova dos requisitos cabe ao opositor.
113
CARVALHO FERNANDES, A Conversão, p. 358.
114
CARVALHO FERNANDES, A Conversão, p. 858.
115
MENEZES LEITÃO, Direito, p. 112.
116
CARLOS MOTA PINTO, Teoria, p. 631.
117
CARLOS MOTA PINTO, Teoria, p. 630.
24
No tocante à vontade das partes, poder-se-ia pensar na compra e venda de bens
alheios, no âmbito da qual se discute se o comprador teria interesse na parte
especificada e não na quota ideal. Contudo, como referia MANUEL DE ANDRADE118,
esta questão não se coloca na doação. Entendemos que a vontade do doador é, pura e
simplesmente, favorecer o donatário, tal como é a vontade do donatário engrandecer o
seu património.
Em suma, nada obsta à conversão.
118
MANUEL DE ANDRADE, Teoria, II, p. 435.
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Bibliografia
Balbi, Giovanni,
La donazione, em Giuseppe Grosso/Francesco Santoro-Passarelli, Tratatto di
Diritto Civile, Vol II, Tomo IV, Milano, Francesco Vallardi, 1964.
26
Teoria Geral do Direito Civil, I e II, 3.ª ed., Universidade Católica, Lisboa,
2001.
27
Torrente, Andrea,
La donazione, em Antonio Cicu/Francesco Messineo, Tratatto di Diritto Civile e
Commerciale, Volume XXII, Milano, Giuffré, 1956.
28