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Pégasus Lançamentos
Capitulo 1
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Pégasus Lançamentos
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Pégasus Lançamentos
— Pois não o encontrei, mas me disseram onde estava o senhor Juan. Foi ao
engenho. Aninha estava dizendo ao Batista que o senhor Juan. Juan do Diabo como
diz ela, havia mandado selar o cavalo branco do amo e havia tombado nele para o
engenho, e que terei que ver como mandava e como dispunha, como se o amo fora
ele. Se você quiser, eu posso ir para lá. Agora mesmo estão carregando no pátio vos
carrinhos de mão grandes com tudo o que vão mandar para o engenho. Eu posso ir
com um deles e digo ao senhor Juan o que você me mande que diga, minha ama.
Que venha, não?
— Sim. Que preciso lhe falar, vê-lo. Mas espera, espera. Não confio muito
de que chegue a tempo — Com angustia crescente foi para a janela. Já o sol está
muito baixo, logo que doura com seus últimos raios a cúpula altiva do Mont-Brigue,
e murmura como para si: — Ele me espera esta noite às doze.
— Daqui as doze há muito tempo.
— Ninguém perguntou por mim na casa?
— Ninguém saiu que seu quarto desde esta manhã. Nem a senhora Sofia,
nem a senhorita Mônica, nem a senhora Catalina. E o senhor Renato está com o
notário no escritório que foi do amo dom Francisco, é o único que pediram que
entrassem foi conhaque e café. Aninha mesma entrou e leva-lhe, disse que não
podia entrar outro a incomodá-los, porque estavam arrumando as contas.
— Menos mal. Bom, vais procurar, onde esteja o senhor Juan. Vais dizer-lhe
que estou doente, muito doente; que por piedade aguarde a manhã para me falar e
para ver-me. Diga-lhe que o pedido chorando. Diga-lhe.
— Por que não me escreve tudo isso em um papel, minha ama?
— Em um papel? Sim, tem razão. Mas...
— Em um papel sem assiná-lo. Eu já lhe digo que é de você. De sua própria
mão e ponho. Só a ele o entrego. O juro, minha ama, só a ele. Não tenha medo.
— Vou confiar em ti, Ana, vou escrever esse papel, mas me responde com
sua vida de que só ao Juan o tem que entregar. Jura-me isso Ana, jura-me isso.
— Por Deus e a Virgem do Céu! Só ao senhor Juan lhe darei o papel, e se
não for assim, que me caia morta!
A escura donzela jurou cruzando os dedos, e um instante Aimée parece
vacilar entre a necessidade peremptória de confiando-se a ela e a pensar a arma
terrível que fabrica contra si mesmo naquelas letras. Com ânsia febril vai até a
pequena escrivaninha e nervosamente rebusca até achar o que necessita.
— Ana, vais ter muito cuidado com isto. Se alguém quiser lhe tirar isso se te
vir em qualquer apuro.
— Como a carta antes que dar-lhe a outro! Juro, minha ama.
— Está bem, está bem. — Acata Aimée ficando a escrever, mas de repente
duvida e rompe o papel. — Não posso expor-me dessa maneira! Espera. Não sabe
você escrever. Ana?
— Eu escrever? O que vai! Sei tirar contas e pintar muito bonito. Aninha
sim sabe escrever e ler. Puseram-lhe professor como às meninas brancas. Das
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faxineiras, é a única que sabe escrever. Mas você não vai confiar nela. Além disso,
se o senhor Juan não vir sua letra não vai acreditar que o papel é de você.
— Ele nunca viu minha letra. Mas espera. Espera. Posso escrever um papel
que não me comprometa muito. Sim, isso, ele compreenderá. O compreenderá que
não posso mandar outra coisa contigo. Ele entenderá.
Agora sim escreve, rápida e firmemente, uma carta ambígua, cerimoniosa,
que é, entretanto, um pedido dilacerador. Logo a dobra, guardando-a em um
envelope com seus dedos que tremem, e murmura:
— Para o Juan. Para o Juan de Deus. Sim. É melhor assim.
— Juan de Deus? — se estranha a faxineira.
— Alguém lhe chama assim. O entenderá perfeitamente. Mas você lhe diga
que a carta é minha, que estou realmente doente, que a escrevi chorando e
desesperada. Anda. Vê, corre, não vás perder a oportunidade dessa carreta.
— O que vai, minha ama! Quem a leva é Esteban e esse sim é meu amigo
para tudo o que seja.
Aimée empurrou violentamente à faxineira e voltou à janela. O último
raspou de sol desapareceu e uma só estrela, enorme, resplandecente, brilha no céu
azul muito pálido, sobre o topo do Mont-Brigue.
— Bom, Renato, em definitivo.
A voz se apagou em lábios do notário, dando-se conta de que Renato
D'Autremont não lhe escuta. Cruzados os braços, de pé em meio da ampla habitação
que fora o escritório de seu pai, os claros olhos inquisitivos percorrem as estantes
que chegam ao teto, como se interrogassem os velhos volumeis pretendendo lhes
arrancar o segredo que encerram.
— O que tanto miras aí, moço?
— Era neste painel. Sim. Atrás dos livros, não sei se mais acima ou mais
abaixo, mas por aqui se abria um oco. Era um esconderijo, uma espécie de caixa de
ferro na moda do século passado. Certamente aí papai guardaria valores, papeis
coisas importantes.
— Seu pai tinha contas correntes em todos os bancos do Saint-Pierre. Não
acredito que guardasse nada importante nos esconderijos do escritório.
— Pois algo guardava Noel, e mais de uma vez, sendo eu menino, vi o Pai
remexer nele. A última foi à noite que precedeu à madrugada em que nos trouxeram
ele moribundo depois de seu acidente. Esta casa é muito velha. Mandou-a fazer um
de meus avôs. Ampliaram e reformaram muitas partes, mas no escritório não foi
tocado por ninguém desde então.
— O escritório tem, efetivamente, uma porta secreta naquela esquina, e você
a conheceu de menino. Ao menos, isso me disse dona Sofia esta manhã.
— Mamãe? Mamãe falou esta manhã com você?
— Acabo de cometer uma indiscrição lhe dizendo isso, mas, enfim, já parece
e não é possível voltar atrás. Em efeito, filho, falamos. Entrou aqui quando menos o
esperava, precisamente por essa portinha, e me deu um grande susto.
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— Por que entrou minha mãe dessa maneira? Por esquivar-se de Juan,
verdade? Por não querer vê- lo nem sequer de longe.
— Bom, filho, sim. É inútil que lhe negue isso. Sua mãe se aborrece. E algo
pior: tem-lhe medo. Às vezes parece tolo e supersticioso deixando-se levar dessas
coisas, mas quando o coração de uma mãe dá um aviso.
— Não diga tolices Noel. Você também tem medo do Juan do Diabo e não é
por intuições nem por pressentimentos. Há algo mais positivo, mais concreto. O que
teme? Que roube sua herança? Não, não se alarme Noel sente-se. Volte a sentar-se.
Já lhe disse, ao trazê-lo para este escritório, que tinha que me contar várias histórias
velhas, e a primeira delas a de meu pai. A de meu pai e a do Juan.
— Do Juan ninguém sabe nada, meu filho.
— Você sabe Noel, e minha mãe também sabe. E um pouco do Juan havia
naqueles papéis que eu vi esconder a meu pai. Depois disso ocorreu a única cena
realmente desagradável e vergonhosa que lembro minha infância. Prefiro não falar
disso, mas volto a lhe perguntar, Noel: O que temem do Juan minha mãe e você?
Diga-me a verdade. A verdade, por crua, por desagradável que pareça.
— Bom, filho, eu só temo a seu caráter, a seus arrebatamentos, a sua pouca
educação.
— Mas minha mãe lhe temeu sempre. Desde menino lhe inspirou ódio e
horror, e agora evita o vê-lo porque sua presença lhe faz mal. Quando se enfrentou
com ele, ficou tão pálida que temi vê-la cair sem sentido. E sabe por quê? Juan se
parece extraordinariamente a meu pai. Pode ser uma coincidência. Mas pode não sê-
lo. E são tantos os detalhes ao redor desse assunto, que eu.
— Renato, meu filho. Eu te peço — interrompe-lhe Noel profundamente
apurado.
— Eu sou quem lhe pede que se cale, Noel. Sou já um homem feito.
Conheço a vida e não vou assustar-me a estas alturas de que meu pai me tenha dado
um irmão fora da lei. Por que essa confusão? Por que esse susto, Noel?
— Não é susto, é preocupação e angústia. Como chegou a pensar todo isso?
E como tomará sua mãe que saiba?
— Logo é certo! Acalme-se, Acalme-se, Noel, não hei lhe forjado uma
armadilha. Tinha a convicção moral. Tenho-há a muito tempo. Acredito que desde
menino, embora em forma inconsciente. Até há pouco tempo não quis pensar nisso
porque também me incomodava, mas o tenho feito e não foi difícil. Ontem à noite
mesmo estive rondando por todos esses livros. Vê você? Em um destes tecidos, em
um destes três, estava o esconderijo.
— Para que procurar esconderijos? — observa Noel dando-se por vencido.
— É certo. Para que? Tenho a convicção e com ela deve me bastar, mas
também me interessam os detalhes. Como foram as coisas? Até que ponto teve
razão minha mãe para ser implacável? Até onde sabe Juan quem é?
— A sua mãe não a culpe, meu filho, sofreu muito e ainda segue sofrendo,
— Suponho que sua conversa secreta com você foi sobre isso.
— Pois bem, sim. Ela está agora disposta a ser generosa.
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— Posso muito bem adivinhar sua horrível infância. Que fácil é perdoar sua
rudeza e seus defeitos sabendo tudo isto!
— Com quanta razão temia sua mãe que o saber tudo isto te desarmasse
mais frente a Juan, tirasse-te a pouca vontade de te defender que possa ter.
— O que pensa você que possa fazer Juan contra mim?
— Eu não penso, mas sua mãe teme e tem razão em temer. Não quero nem
pensar o que dirá quando souber tudo isto.
— Eu falarei com ela depois de ter falado com ele. E acaso dê a ela e a
surpresa de comprovar que se equivocaram. Às vezes, o coração sabe mais que a
cabeça. Juan não pode me odiar se eu for a ele como irmão, se o demonstro todo o
sinceramente que lhe quero se nobremente me adiantar a oferecer o que incluso não
pediu.
— Não caia em uma loucura de generosidade, Renato! Pensa que a só
existência do Juan é, para sua mãe, uma ofensa viva, candente; que até o nome da
Gina Bertolozi a fere como uma faca envenenada.
— Não pode ser. Minha mãe tem que ser mais generosa. Gina Bertolozi já
está morta.
— Há ódios que não se aplacam nem com a morte. Há rancores. E ciúmes
dos que não tem uma ideia. Você não há sofrido nunca, Renato, não pode medir a
amargura, a dor, o desespero a que a alma descende em alguns momentos. Você não
pode ser juiz, porque a vida foi até hoje, para ti, um caminho de rosas.
— Talvez por isso compreenda e compadeço mais aos que sofrem, e ao Juan
o primeiro. Vou mandar buscá-lo. Noel, para lhe falar como irmão. Para lhe dizer.
— Certamente, ele sabe.
— Mas pensa que eu o ignoro. E se não o pensa, acredita algo pior: que sou
insensível, egoísta. Quero que saiba que estou disposto a reparar, a devolver. Que o
mundo não é tão mau como ele pensa.
— Nem tão bom como você imagina, Renato. Deixa-o que se vá. É o maior
desejo de sua mãe!
— Até agora minha mãe cumpriu nesta casa todos seus desejos, até os mais
injustos. Vou contraria-la por uma só vez e confio em que sua contrariedade não
dure muito.
Renato se levantou, foi para a parede e touca um timbre, ante o qual, sentido
saudades, Noel pergunta:
— O que faz filho?
— Chamo um servente para que vá em busca do Juan. Aguardei quinze anos
por este momento.
— E se Juan não merecesse sua generosidade, Renato? Se não fora nem
sequer capaz de compreendê-lo? Se respondesse a sua boa vontade com sarcasmos,
com desprezo, acaso com uma amarga ingratidão?
— Pensaria que a culpa não é dele, mas sim dos que o converteram em um
emparelha, dos que lhe desapropriaram de tudo. Meu bom Noel deixe de dúvidas e
vacilações. Não há mais que um caminho e é o que me assinala minha consciência.
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Capitulo 2
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encargos mais íntimos. OH, olha! Ana sai Outra vez.. Algo vai passar esta noite, e
apostaria a que sei o que é.
— Mas que loucura.
— Baixa a voz. Ana se aproxima. Não, vai para o outro pátio. Vou atrás dela.
Algo vai passar esta noite.
Pôs-se a andar atrás da Ana. Batista, preocupado, segue-a. Muito perto está o
enorme carrinho de mão que deve sair rumo ao engenho. A ele enfia seus passos
Ana, enquanto o rosto de Batista se decompõe de cólera, ao protestar:
— Aonde vai essa imbecil? Esse é o carro que vai para o engenho;
— Naturalmente. Ana vai procurar ao Juan do Diabo, vai levar-lhe um
encargo ou um recado do Aimée do Molnar, estou segura disso.
— Não vai levar nada, porque não vai subir a esse carro. Está proibida que
as mulheres vão aos carros do engenho. Sou o chefe das cavalariças, dona Sofia me
nomeou ontem, e muitos vontades tenho que ajustar as contas a essa. — dirigiu-se
com passos rápidos ao encontro da Ana, e gritando enfurecido, ameaça-a: — Fora
desse carro. Abaixo. Fora! Sai ou lhe tiro arrastando, benjamima!
— Não sou benjamima. E não posso sair! Tenho que ir para o engenho.
— Que não vai sair. Descerá-te de cabeça
— Esteban vai levar-me. A senhora mandou que fora.
— Protestou Ana, lutando com Batista, e elevando a voz, grita angustiada:
— Esteban.. Esteban.. — Hei dito que não vão mulheres nos carros do engenho —
recalca Batista imperioso, enquanto sujeita à mestiça servente. — Esteban, maldito
pollino. Agarra as rédeas e te largue de uma vez. Que te largue, disse. Ou vais
arrepender-te! Comprido!
Batista açoitou aos cavalos que partem assustados, enquanto Esteban logo
que acerta a sujeitar as rédeas. Logo sacode como um farrapo à donzela do Aimée,
arrojando-a longe de um violento tranco, ao tempo que afirma furioso:
— Que aprendam que ainda mando nas garagens!
— Ana. Ana! Tio Batista! — grita Aninha, que chega a toda presa. — Olha-
a. Está como morta. Golpeou-se a cabeça ao cair!
— Oxalá arrebente! Mas não tem nada. Está-o fingindo! É uma cadela
maldita! Vou por não chutá-la, por não acabar com ela seriamente.
Batista voltou para as garagens. O carro se afasta pelo caminho em sombras.
Nervosamente, Aninha toca o rosto frio e cinzento da Ana, e a sacode chamando-a
insistente:
— Ana. Ana. Não tem nada. Não siga fingindo. Abre os olhos. Ai, Jesus!
Ana!
Tremendo pelo medo de ver aparecer ao Renato ou a qualquer capaz de lhe
informar, sem atrever-se a chamar, Aninha levanta a cabeça da Ana procura algo
com o que poder auxiliá-la. Ao fim desabotoa totalmente o sutiã, lhe despindo o
peito, procurando o batimento do coração do coração que logo que percebe
debilmente. Tropeçou com um sobre branco. A pouca luz do farol das garagens lê
em um instante a quem vai dirigido, e com rápido movimento o esconde entre suas
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próprias roupas, ficando de pé ato seguido. A emoção é tão forte que lhe parece
afogar-se, mas um passo e uma voz conhecida se aproximam investigando:
— O que aconteceu? O que foram essas vozes? — Aninha se afasta
procurando as sombras retrocedeu de costas, fugindo da figura que aparece no
corredor iluminado, que cruza para as garagens ao não achar resposta, e que persiste
em seu chamado: — Quem está aí? O que é isto? Ana!
Surpreendida, a senhora D'Autremont se inclinou sobre o desacordado corpo
da Ana. Rápida e silenciosa Aninha se afasta, enquanto a voz da Sofia se eleva
chamando insistentemente:
— Aninha. Aninha. Esteban. Esteban!
— Dona Sofia! — exclama Aimée aproximando-se assustada. E de repente,
com verdadeiro pânico ao reconhecer a figura inerte que se acha no chão,
prorrompe: — OH, Ana! O que aconteceu? O que aconteceu?
— É o que queria saber. Ouvi vozes, um carro. Chamei e não responderam;
saí a ver o que ocorria. Não sei o que é o que tem esta mulher.
— Parece desmaiada, mas.
Aimée olhou com ânsia o sutiã aberto; com febril angustia apalpa seu peito,
suas mãos, registra seus bolsos e volta o olhar espantado para a dama que se pôs de
pé, ao tempo que explica:
— Tinha jurado que havia alguém junto a ela. Quando sentiram me
aproximar, fugiram. E me surpreende muitíssima que ninguém apareça!
— OH! Tenho que ir ao engenho.. — murmura Ana entre gemidos, já
voltando pouco a pouco em se.
— O que diz?— quer saber Sofia.
— Nada. Loucuras. Parece que delira.. — replica Aimeé extremamente
nervosa, — Ana, sou eu, e aqui está dona Sofia também! Entende? Aqui está dona
Sofia!
— Dona Sofia, sim.. — murmura Ana fazendo um esforço. — Ai, minha
cabeça! — queixa-se. E de repente, com espanto repentino, exclama: — A carta!
Tiraram-me isso!
— Que carta era essa? — Aviva-se a curiosidade da Sofía.
— Está delirando, Ana! — As unhas do Aimée se cravaram na mão da
mestiça.
Recuperando do todo o sentido. Ana olha o rosto furioso de Aimée, e logo
aquele outro rosto pálido, grave e atento, inclinado sobre ela, e aquela voz que é lei
em terras dos D'Autremont:
— O que te ocorreu. Ana?
— Ai, senhora! Não sei. Não sei. Não sei.. — rompe a chorar Ana com
visível angustia.
— Não chore e responde! — recrimina Sofia. — Diz que lhe tiraram a carta?
— Deve ter escorregado e caído — intervém Aimée, conciliadora, tratando
de desviar a investigação de sua sogra.
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— Mas o seu lado havia alguém. Ana. Quem era? — insiste a senhora
D'Autremont.
— Não sei. Não sei! — trata de evitar a faxineira.
— Não sabe nada, dona Sofia — volta a intervir Aimée. — Já sabe você
como é ela. Tem pouca cabeça. Não se preocupe mais.. Levarei-a a cozinha e farei
que a atendam. Não se incomode.
— Sim, filha, vê com ela. Eu levei um susto atroz. Não sei onde se metem os
criados, que nunca aparecem quando mais lhes necessita — E elevando algo a voz,
chama de novo: — Aninha!
Pelo lado oposto, Aninha, impecável, correta, com o mesmo gesto de
perfeita solicitude com que se acerca sempre a sua senhora, e se oferece
humildemente:
— Aqui estou madrinha, chamava-me você?
— Chamei-te faz um momento. Ana se deu um golpe, sofreu um desmaio.
Não sei, em realidade. Não sabemos. Faz que a atendam, Aninha.
— Não, Por Deus. Eu a atenderei — adverte Aimée rapidamente. — Que
Aninha a acompanhe a você, dona Sofia. A senhora está assustada, Aninha. Acredito
que necessita uma xícara de chá imediatamente. Vamos, Ana!
— Que acidente mais estranho! — comenta Sofia.
— Tudo é agora estranho nesta casa, senhora. Mas o único lamentável é que
a tenham assustado a você. Vou até a cozinha para lhe fazer uma xícara de chá..
— Não, Aninha , deixa-o. Dê-me o braço e me acompanhe a meu quarto.
Temos que falar nós também.
— Quem te tirou a carta? Quem? — apressa Aimée em um deplorável estado
de nervosismo.
— Ai, senhora. Não sei. — choraminga Ana.
— Maldita imbecil! Mas, o que te passou? O que pôde te acontecer?
— Já lhe contei. Esse Batista. Eu estava montada no carro, Esteban vinha já
e íamos sair para o engenho. Chegou o Batista feito um demônio e tirou-me a
puxões. Logo lhe gritou ao Esteban que se fora e ele mesmo lhe tocou os cavalos.
Eu quis sair correndo atrás do carro e o Batista me empurrou. Sim, empurrou-me e
me deu um chute também. Depois, já não me lembro. Dava-me contra uma pedra.
Já não sei nada mais, minha ama, já não sei.
— Estava totalmente desacordada. Alguém te revistou, tirou-te a carta.
Quem foi? Quem pôde ser? Batista acaso? Quem mais estava aí?
— Ninguém. Eu não vi ninguém. Eu estava sozinha, o Esteban vinha. O
Batista chegou correndo. Seguro foi Batista, senhora!
— Se Batista tiver essa carta, não a entregará ao Renato, não se atreverá a
ficar frente a ele, me preferirá vender isso a um bom preço. Tenho que buscá-lo,
que falar com ele.. — Uma badalada do relógio de parede a interrompe, e com
sobressalto exclama: — OH.. . A hora que é. Tenho que pegar essa carta.
Aimeé olhou de novo pelas janelas. Não há ninguém nos portais nem nas
galerias, nem no largo trecho que separa o edifício central das garagens. Nenhum
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ruído se percebeu tampouco do outro lado da casa. Tremendo de angústia volta até o
armário próximo, toma um espesso xale de seda, envolvendo-se nele a cabeça e os
ombros, enquanto Ana o olha surpreendido, os grossos lábios entreabertos, e
pergunta:
— Aonde vai, senhora Aimée?
— A procurar Batista. Certamente está escondido nas garagens. Bom
cuidado teve de não aparecer quando o chamou dona Sofia!
Rodeou mais o xale ao redor de seu corpo estatuário, o jogou mais à cara
cobrindo-a quase por completo, onde só brilham seus olhos acesos de febre. Com as
duas mãos no peito, onde o coração parece golpear espião um momento o deserto
corredor, e sai rápida e silenciosa como uma pantera.
— Quer abrir essa janela? Esta noite parece que faltasse o ar. Esta noite
tornei a sentir que me afogo, como nos primeiros anos em que cheguei a estas
terras.
Precisa silenciosa, com a rapidez e a perfeição que são características nela,
Aninha tem aberto a janela do amplo quarto de Sofia, mas em nada troca o ambiente
da luxuosa estadia, não há uma rajada de vento, não há uma nuvem no escuro céu
coberto de estrelas. É uma dessas noites sem lua em que se entretecem os luzeiros,
tão apertados como uma rede de prata, sobre o veludo do firmamento. Com suave
passo, a pálida soberana de Campo Real se aproxima da janela, e o corpo magro,
escuro e vibrante da Aninha , retrocede um passo lhe cedendo o sítio
respeitosamente.
— Durante muitos anos aborreci esta terra até no que tem de mais formoso:
seu campo, seu céu, seu sol de fogo, suas noites imóveis. Quantas noites como esta
acreditei me asfixiar e pus-se a andar desesperada por esses atalhos!
Sofia estendeu a mão para os escuros campos silenciosos, enquanto se sente
como invadida, como golpeada por uma marejada de lembranças. Ardentes
lembranças de seus primeiros meses de casada, amargas memórias dos largos anos
em que esperava cada noite ao Francisco D'Autremont, calculando com áspero
despeito em que braços esqueceria seu nome, em que lábios estaria bebendo o mel
de um amor que a ela só chegava já como um sorriso, como uma ternura diferente,
como um amável e frio respeito.
— Não vai você a deitar-se, madrinha? Precisa descansar.
— Esta noite não tenho sono. Temos que falar Aninha. Quer me escutar?
— Certamente, madrinha.
Aninha inclinou a cabeça com aquele gesto de frio respeito que está
acostumado a fazer como um autômato, mas as mãos tremulas se juntam,
apertando-se sobre o peito, e treme mais ao contato daquela carta. Ali tem a prova, a
arma terrível, a adaga com que pode de um golpe certeiro destronar a sua odiada
rival. Mas, rival no que? Ao baixar a cabeça se olhou a si mesma, contemplando a
seu pesar o traje típico com que se veste; a larga saia de tecido floreado, o avental
branquíssimo, e volta a olhar também, como outras vezes, suas magras mãos
morenas. São finas e belas, cuidadas com esmero. Mãos cor de cobre claro,
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— Você também sabe, porque é a ama nova, não? Isso me disse o amo. Que
íamos ter ama nova e que era você. Eu a, ninguém, a ninguém digo nada, mas você
se souber. Você sabe tudo.
— O que? O que é tudo?
— O navio está na praia pequena, ao lado do engenho, e esta noite as doze
estará o amo atrás da igreja, e você se vai com ele. Você e eu vamos com ele
Aimée fechou os olhos sentindo que um vento gelado a recobre dos pés a
cabeça. É terror, é espanto. Tudo é certo, respiram verdade as ingênuas palavras do
menino que se aproximou de lhe falar em tom de mistério, brilhantes os negros
olhos sobre o rosto escuro, tremente e assustado ele também. Com angústia olha
Aimée a todas as partes até comprovar que ninguém escutou as palavras do
pequeno. Logo pensa naquela carta, queda sabe Deus em que mão. Mas que eleva
aquele papel, comparado com o apresso do momento? O Lúcifer escondido muito
perto, lhes aguardando, preparado para partir quem sabe para que rumos, para que
aventuras, para que portos. O Lúcifer, um barquinho ridículo onde a vontade do
Juan é onipotente, onde teria que submeter-se, como uma escrava, a seu domínio,
perdido tudo: fortuna, dignidade, posição, direitos. Até o nome. Juntou as mãos,
elevou os olhos ao céu. Se soubesse rezar, rezaria e neste instante; mas como um
relâmpago passa um nome por seu pensamento:
— Mônica! Mônica! Ela pode me salvar. Só ela. Como uma fera
perseguida, salvou Aimée o largo terreno que separa as cavalariças do luxuoso
edifício central, mas não torce pelo lado esquerdo. Vai diretamente para as
habitações dos hóspedes, sobe a escada de pedra, chega junto à porta do quarto da
Mônica e alta sem chamar o trinco, entrando de repente.
Lentamente, Mônica se levanta do genuflexório em que orava inclinada a
frente, e pouco a pouco vai dominando sua emoção, sua angústia, sua estranheza,
enquanto juntas as mãos, vivendo um minuto de verdadeira agonia, Aimée lhe
aguarda.
— O que te passa Aimée? O que tem? Para que vem a me buscar assim?
— Não sei nem para que venho nem sei como me arrisco ir a ti. Não mereço
sua ajuda nem seu apoio. Mereço que me volte às costas, que me jogue daqui sem
me ouvir sequer.
— Fala que já te estou ouvindo.
— Não, não me atrevo nem a te falar sequer. Perdoa-me. Estou perdida se
você não me salva, se você não me ajudar, se você não o detiver!
— Deter quem? — apressa Mônica francamente alarmada.
— Ao Juan do Diabo. — estala Aimée.
— Ah! — tranquiliza-se Mônica. — Pensei.
— Renato não sabe nada. Acredita-me pura, poda, inocente, e não me
importa morrer cem vezes com tal de que siga acreditando. É por ele, Mônica,
juro-te que é por ele. É pelo Renato que não quero cometer essa infâmia! Como
posso destroçar o coração de um homem tão bom? Como possa amargar sua vida
para sempre? Como posso lhe cravar a adaga de uma desilusão assim? Se te pedir
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que me ajude, se te pedir que me salve, é por ele, Mônica. Você me compreende.
Irmã. Irmã.
— Eis resolvido me apartar de seu caminho, Aimée. Eis resolvido deixar que
siga sua sorte. Minha luta foi inútil, e a abandono. Faz o que queira tudo o que
queira.
Como desaba no tapete, aos pés da Mônica, está Aimée, que agora se
incorporou, tomando desesperadamente entre as suas as mãos geladas e brancas de
sua irmã. Como longínqua, como ausente, permaneceu Mônica sem dar amostras de
que aquela dor, verdadeiro ou fingido, ou comover-se. Fez o gesto de afastar-se, de
apartar-se, mas Aimée, se desesperada, fecha-lhe o passo:
— Não pode me abandonar agora!
— Cem vezes me pediu que me fora, que te deixasse em paz.
— Cem vezes o pedi, e não o fez. Continuou aqui impedindo com sua
presença que eu resolvesse minhas coisas mau ou, me exasperando, me
enfurecendo. E agora. Precisamente agora.
— Pretende jogar a mim a culpa? — atalha-lhe indignada Mônica.
— Não, irmã, não é isso. Ao contrário. Meço, vejo, apalpo que tem razão
em tudo, que seus broncas eram merecidas, que seus prognósticos eram certos.
Como uma louca segui a lei de meus instintos. Cega por uma paixão insalubre rodei
e rodei, e agora estou ao bordo do inferno. Mas não quero cair mais abaixo, não
quero seguir rodando, não quero me afundar na lama definitivamente, e afundar
comigo o nome de meu marido.
— Agora pensa em seu marido! Não minta mais!
— Juro-lhe isso, irmã. Enlouquece-me a ideia de perdê-lo, de ser indigna aos
olhos dele. Estou desesperada, arrependida. Não quero mais que ao Renato,
não quero viver mais que para ele. Mas Juan não me deixa! Não o
compreende?
— Que não te deixa? Não siga mentindo! Você é quem o busca quem o
enlouquece, quem lhe juraste que a ama apesar de tudo, que está disposta a lhe
seguir a onde quer que ele leve.
— Não. Não. Não irei com ele! Antes o direi tudo ao Renato. Se você não
me ajudar, se você não me salvar, procurarei a morte. Confessarei a verdade ao
Renato, e que me mate. Sim, que me mate, para acabar com tudo de uma vez. Que
venha o escândalo! Que venha a morte! Eu mesma lhe sairei ao encontro!
— Aimée! Aonde vai? — detém Mônica com um grito a sua irmã que
começa a afastar com passos rápidos. — Estas louca?
— Pouco me falta! Mas antes que Juan venha a me buscar a esta casa, antes
de pô-los a ele e ao Renato frente a frente, em uma luta em que Renato será
vencido. Porque Juan lhe matará; Juan é mais audaz, mais forte. Antes que Juan o
mate a ele, prefiro que Renato me mate. E agora mesmo.
— Quieta Aimée! Onde está Juan? O que quer que faça?
— Vais ajudar-me? Mônica de minha alma! Já sei que não o faz por mim. A
mim queria ver morta.
17
Pégasus Lançamentos
— Não, Aimée. É minha irmã, meu sangue. Não poderia te abandonar a sua
sorte, mas não posso Fazê-lo. Não é só pelo Renato; é por ti também. Se houver
algo que eu possa fazer.
— Juan te escutará. A ti tem que te escutar. É a única que pode detê-lo,
embora seja de momento. Um prazo, uma prorrogação, umas horas de tempo para
fazer algo, algo com o que me liberar desse maldito Juan.
— Agora lhe amaldiçoa.
— Amaldiçoo-lhe e lhe aborreço! Quero ao Renato e viverei para ele! Juro-
lhe isso! Se me salvar desta, serei a mulher melhor, mais total, mais honesta, mais
dedicada ao amor de meu marido.
— Mas como te salvar, Aimée?
— Juan quer me levar esta noite. As doze espera com dois cavalos atrás da
igreja. Se não for, se não chegar, se faltar a esse encontro, virá a me buscar,
arrastará-me com ele jurou que me levará, embora seja diante do Renato.
— Mas é um selvagem, um demente! — exclama Mônica com o espanto
refletido em seu branco rosto.
— É. Quem é. Já sabe. Procura só que não dê o escândalo esta noite. Diga-
lhe que estou doente, lhe prometa em meu nome que irei com ele. Mas não esta
noite, não neste momento, — E, visivelmente alarmada, assinala: — Porque já são
as doze! Certamente que neste instante chega. Esperara só uns minutos se eu não
me apresentar, se você não chegar a detê-lo. Não lhe importará matar nem destroçar
ao Renato. Odeia-o, odiou-o sempre! Corre, Mônica, corre, vê e lhe fale. Eu ficarei
aqui rezando porque Deus tenha piedade de nós, e porque aceite meu
arrependimento.
Tem cansado aos pés do crucifixo que preside a quarto da Mônica, e chora.
Chora de espanto, de angústia, de medo. Mônica o olha um instante, coberta de
suor as têmporas, e vencendo seu horror, oferecendo-se inteira ao momento terrível,
sai arrastando o corpo gelado a alma ardente.
Capitulo 3
Nervoso, inquieto, com uma impaciência que é alegria febril, vai Renato de
um lado a outro do escritório, seguido pelos cansados passados do velho Noel. Um
instante, os olhos do jovem D'Autremont olham compassivos ao velho notário, para
em seguida lhe propor:
— Está você cansado. Vá-se descansar se quiser.
— Pensa que poderia descansar sem saber no que acaba tudo isto? Vamos
fazer um trato, filho: você te vais descansar, e eu o espero.
18
Pégasus Lançamentos
— Que ocorrência! Você sim que se vê que não pode mais. Vá, Noel, vá
repousar.
— Vou, mas só a dar uma volta. Muito me temo que dona Sofia não se
deitou esperando que eu passe a falar com ela. Se me permite usar esta porta
secreta. Dá diretamente frente à quarto de sua mãe, conforme me disse ela. Abre-se
oprimindo a moldura, acredito que neste lado. Aqui. Sim. Se afunda a moldura,
mas não se abre a porta.
— OH! O esconderijo que procurávamos! Não lhe disse ficava neste painel?
Abriu-se ao apertar você à moldura.
Foram as duas para a prateleira, onde efetivamente se encontra o oco de uma
portinha. Mas na escura cavidade só há um papel enrugado. Um papel do que os
dedos do Renato se apoderam rapidamente e, emocionado exclama:
— Aqui está! Isto era! Diante de mim, meu pai enrugou esta carta e a
arrojou aqui dentro.
— Era essa a carta que?
— Sim. Acredito que se. Você, naturalmente, saberá o que diz.
— Não, filho, nunca cheguei a lê-a. Bertolozi a enviou com o próprio Juan,
como já te contei, e seu pai a leu frente ao cadáver de que tinha sido seu implacável
inimigo.
Fixa a vista naquelas linhas que lhe queimam, Renato permanece silencioso
e imóvel muito tempo, e ao fim começa a ler em voz alta o que já leu com o olhar.
Começa a ler com a mesma angústia, com o mesmo invencível respeito de maneira
que leu seu pai frente ao cadáver do Andrés Bertolozi.
Com minhas últimas forças te escrevo Francisco D'Autremont, e te peço que
venha a meu lado. Veem sem medo. É tarde para que eu me cobre em sangue todo
o mal que me tem feito. Não tenho que te repetir quanto te odeio. Você sabe. Se
matasse com o pensamento, te teria aniquilado, mas só eu mesmo me consumei
inutilmente na fogueira deste rancor que me apodrece a alma. Mata-me o ódio mais
que o álcool. Por ódio calei durante anos inteiros. Hoje quero te dizer algo que
acaso te interesse. Esta carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e
ninguém se ocupou jamais de batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da
costa lhe dizem algo mais. Juan do Diabo. É uma fera, um selvagem, acreditai-o no
ódio. Tem seu coração malvado, e eu lhe dei, além disso, rédea solta a todos seus
instintos, destilei sobre seu coração rancor e veneno. Sabe por quê? É seu filho!"
A velha carta do Bertolozi tremeu nas mãos do Renato, como tremeu
primeiro nas do Francisco D'Autremont. Seus olhos, aumentados de angústia,
elevam-se para percorrer a estância, sem vê-la, e a figura desolada do velho notário,
imóvel, mudo junto a ele. Um instante respira com dificuldade, afogado pela
emoção daquela tragédia, não por longínqua menos cruel; mas de novo os artigos
desiguais lhe atraem como se ardessem. Outra vez volta para eles, e outra vez bebe
naquelas letras todo o veneno que Andrés Bertolozi pusesse nelas:
— “Sim seu filho estiver frente a ti, olha-o à cara. Às vezes é seu vivo
retrato, outras se parece com ela, ela, a maldita rameira que me traiu, a que me
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Pégasus Lançamentos
arrancou, a que foi tua, como é teu esse filho, vergonha de minha vida. Toma-o,
leve-o. Tem o coração podre e a alma danificada de rancor. Não sabe mais que odiar
que aborrecer. Se o levar contigo, será seu inimigo, envenenará seu lar e turvará
seus sonhos. Se o abandonar, rodará ao mais baixo, será um assassino, um pirata,
um bandido que acabará na forca. E é seu filho. Seu filho. Tem seu mesmo sangue.
Essa é minha vingança!"
Com dor intensa, pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um
instante depois, Renato D'Autremont espreme aquela carta, última mensagem do
rival vencido, do inimigo triunfador na morte. E como Francisco, naquela
madrugada fatal, sente o desejo de cuspir sobre o rosto morto, sobre a tumba do
Bertolozi.
— Pode um homem ser tão vil. Noel? Pode alguém vingar-se deste modo na
carne indefesa de uma criatura inocente? Sabia você tudo isto?
— Pressentia-o, até sem ter conhecido até agora esta carta horrenda.
— E Juan? O pobre Juan.
— Minha compaixão por ele tinha como vê, toda a razão do mundo. Era
bem justa, como justo era o empenho de seu pai em protegê-lo. Mas todo ficou
contra ele.
— Foi minha mãe a que ficou contra ele. Recordo àquelas horas, como se as
vivesse de novo. Lembrança aquela noite em que meu pai saiu a cavalo por última
vez, e a lembrança é como uma queimadura. Porque eu também me voltei contra
ele!
— Renato, filho, o que diz?
— Foi defender a minha mãe, e suas últimas palavras foram para liberar do
peso a minha consciência. Sim, Noel. Em Seu leito de morte, meu pai me disse
duas coisas: que tinha feito bem defendendo a minha mãe, até contra ele, e que
ajudasse ao Juan, que lhe tendesse minha mão de amigo, de irmão. De irmão, sim,
essa foi à palavra que usou a lembro perfeitamente. E essa palavra se cravou para
sempre em meu coração de menino, e lhe jurei cumprir seu desejo. E contra o
mundo inteiro o cumprirei, Noel!
Deixou cair à carta sobre a mesa, Enxugou-se as têmporas, úmidas de um
suor de angústia. Logo, com rápido movimento, toma o velho papel espremido e o
acende na chama amarela do abajur, comentando:
— Agora queimo esta infâmia, este papel odioso, este grito de rancor e
baixeza, que é a herança do Juan. Eu lhe darei outra, darei-lhe ao que meu pai quis
que lhe desse: minha confiança meu afeto, meu carinho de irmão. E a metade
destas terras que por seu sangue lhe pertencem.
— Filho, Por Deus. Tenha prudência.
— Prefiro ter justiça, Noel. Que ao fim haja justiça sobre a terra dos
D'Autremont. Justiça, compreensão, amor e piedade para os que vivem, e perdão
para os pecados dos que morreram.
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— Não a nomes para manchá-la, porque vai nisso a vida! Fale. Fale!
— Não minto! A senhora Aimée quer ao Juan do Diabo! Veem-se a sós, têm
encontros.
— Cala! Cala!
Rudemente, a mão do Renato tomou a garganta da mestiça e apura
enlouquecida, enquanto, sem defender-se, lança Aninha seu último jorro de veneno:
— É a verdade, é a verdade! Me mate se quiser, por dizer-lhe, mas mate-a
também a ela por lhe ser traidora!
— OH, basta! Basta!
Soltou-a fazendo-a cair; um instante a olha como fora de si, logo volta às
costas e corre para seu quarto.
Aimée se pôs que pé apoiando-se no genuflexório, onde permaneceu imóvel,
de joelhos, juntas as mãos, sem chorar nem rezar, doloridos pela tensão o corpo e a
alma. Agora sacode a escura cabeça, ante a chegada de sua mãe, que a interroga:
— Filha, o que passou? Onde está sua irmã? Foi a meu recado. Pedi-lhe que
me fizesse um favor, e está Fazendo-me. Isso é tudo. Ia esperá-la aqui.
Aimée se dirigiu para a janela, tratou que perceber todos os ruídos, mas
nenhum chega até ela no longo silêncio da noite. Tudo está em sombras, tudo
parece totalmente tranquilo, só um passo que chega muito depressa faz gelá-la
sangue em suas veias. Quer retroceder, esconder-se, fugir, mas já é tarde, pois
Renato irrompe na habitação e ordena autoritário:
— Aimée! Veem!
Arrastou-a quase, levando-lhe consigo, os dedos como ganchos de ferro de
aço cravados no braço dela, obrigando-a a afastar-se daquela quarto onde fica
sozinha a assustada Catalina, que não teve tempo sequer de pronunciar palavra
alguma. . Empurrou-a, colocando-a pela força sob o farol de luz amarela, e fica
olhando-a muito de perto de marco em marco, com expressão? Fera e terrível,
enquanto ela treme e em vão tenta retroceder. Não tem onde dar um passo atrás, e
ele está ali. Em seus olhos lhes dar há uma labareda de cólera infinita, de rancor
sem nome, um fogo que Aimée nunca viu naquelas pupilas, mas que bem conhece
em outros olhos, e suplica assustada:
— Renato! Está louco?
— Louco e cego tudo que ter sido! Hipócrita! Perdida!
— Por que falas desse modo? Por que me olha assim? — E com afogado
espanto tenta defender-se: — Renato perdeste o julgamento?
— Recorda esta carta? Diga-me!
— Eu. Eu. Eu. — balbucia Aimée sem encontrar saída.
—É tua. Não o negue, não pode negá-lo. É tua sim, você a escreveu!
Enganava-me!
— Não, Renato, não.
— Nesta carta geme, suplica, pede-lhe compaixão a outro homem, e é para
mim a quem devia pedi-la. Mas não o faça, porque será inútil. Será inútil!
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Capitulo 4
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Quase arrastada por Renato, agora detida por ele frente à porta daquele
departamento preparado para o amor e a sorte, Aimée procura em vão gestos e
palavras. Há algumas horas acredita viver em um pesadelo. Renato é agora, de
repente, outro homem para ela: longínquo, gelado, amargurado, e ao mesmo tempo
imperioso, desconfiado, agressivo, como se cada instante temesse ser apunhalado
pelas costas, como se alguém tivesse derramado em suas veias um sutil veneno que
corre envenenando-o. A olha. A olha muito de perto, com fera olhar interrogadora,
e logo sorri. Sorri com um sorriso frio e breve, que é pior que todas as
recriminações, que todos os insultos, que todos os gritos.
— Renato. — suplica Aimée com mortal angustia.
— Entra, e me deixe. Tenho muito que fazer ainda — ordena Renato com
aspereza e lhe dando um leve empurrão, depois do qual fecha com chave a porta.
— Renato. Renato. O que faz? — assusta-se Aimée. — Renato. Renato.
— Filho, fechaste com chave essa porta? — pergunta Sofia aproximando-se
preocupada e vacilante — Com a Aimeé atrás dela?
— Justamente, mãe, com a Aimeé atrás dela. E agora, se me der sua
permissão.
— Não, aguarda um instante. Quero saber o que há passado. Reclamo-o,
exijo-o. Por que decidiste essas bodas, que não te concerne, em uma forma assim?
Por que trata Aimée deste modo? Por que procede como se tivesse enlouquecido?
— Talvez porque quero chegar ao fim. Não me perguntes muito, mãe.
— O que lhe têm feito Renato? — angustia-se Sofia. — Estava segura,
estava bem segura. O golpe que mais possa ferir-te tem que chegar dele.
— De meu irmão Juan? — revolve-se Renato desafiante.
— Renato! — alarma-se vivamente Sofia.
— De meu irmão Juan, mãe. Diga-o de uma vez, acaba de dizê-lo. E me
diga mais, me diga tudo o que sente tudo o que pensa tudo o que calaste e cala
ainda, contendo anos e anos o desejo de me gritar isso me diga que me odeia que
sabe que me odeia justamente por isso, porque é meu irmão e bastou uma fórmula
legal, bastaram uns papeis e umas assinaturas para que a mim todo fosse outorgado
enquanto a ele lhe negava tudo. Diga-o, mãe, diga-o.
— Não foram uns papéis, não foram umas assinaturas. Foi à diferença de
toda uma vida: a minha, reta, honorável, limpa; a dessa mulher que deu à casa
D'Autremont um bastardo. O que digo um bastardo, um filho maldito, fruto do
adultério e a vergonha, a dessa prostituta baixa e vil, como baixo e vil tem que ser o
coração desse homem que hoje te feriu.
— Não me feriu, mãe.
— Que não te feriu? Então, por que te revolve assim? O que pode te
importar que Mônica. Renato, filho, diga-me a verdade, toda a verdade!
— A verdade é a que ouviste, é essa e não pode ser outra. O que pensaste
mãe, o que acreditaste? Pensa que se houvesse sido ela como suspeitas, estaria ela
viva atrás dessa porta? Nem ele nem ela teriam escapado com vida, mãe. Mas essas
bodas é minha garantia. Por isso quero casá-los eu mesmo, em seguida, quanto
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Pégasus Lançamentos
antes. Ver no rosto de minha esposa o sorriso feliz de quem leva uma irmã ao altar.
Já sabe tudo, mãe, e sabe também aonde vou. Vou acautelar aos que cuidam os
lindemos, a pôr guardas em todos os caminhos do vale, com ordem de deter os que
entrem ou saiam. Juan do Diabo não escapará daqui sem haver-se unido para
sempre a Mônica do Molnar, sem atar suas vidas ante os juízes e o sacerdote, sem
fazer boa a palavra empenhada, sem me provar a mim que é ela, e só ela, a que pôde
prostituir-se até ser a rameira do porto que aguarda os marinhos.
— Renato. Filho!
Sofia D'Autremont deu uns passos atrás do Renato como se pretendesse até
lhe reter, mas ele não se detém sua voz nem a seu gesto, afasta-se rápido e decidido.
Sofia vacila, olha à porta daquela quarto em que Renato encerrasse ao Aimée. Por
um longo momento parece lutar consigo mesma e, antes de afasta-se, ameaça como
sacudida pela violência de um sentimento invencível:
— Pobre de ti! Pobre de ti se tiver chegado a manchar o nome de meu filho!
Aimée se deixou cair rendida no pequeno divã de raso colocado aos pés da
cama. Em vão sacudiu a fechada porta, em vão tratou que escutar aproximando de
suas frestas o ouvido. Só percebeu os passos que se afastam as vozes apagadas
daquela conversação entre a mãe. E o filho, e agora lhe assalta a lembrança
daquelas horas que foram como a ameaça de uma adaga sobre seu peito. Como o
vértice de um torvelinho, volta a sentir-se arrastada pelo Renato até aquela cena de
pesadelo em que saltam como visões de horror os rostos conhecidos: Mônica,
Renato, Juan. Juan, sobre tudo. Aquele Juan amado e aborrecido, temido e
desejado, a cuja evocação o sangue de suas veias parece ferver.
— Não é possível. Não é possível. Todos hão enlouquecido. Todos! Ele
disse que sim. Ela disse que sim.
— Senhora Aimée.
— Ana! — surpreende-se Aimée. — Como entraste? Por onde?
— Não entrei senhora, estava aqui. Esperando-a como me ordenou.
Quando senti que vinha com você o senhor Renato, escondi-me. Como você me
disse que não falasse com ninguém a não ser o que me mandasse lhe dizer. Já não
se lembra senhora?
— Não tenho nada que te dizer! Vete daqui!
— E por onde, senhora? O senhor fechou com chave a porta.
— Quer me dizer para que me encerra como a uma fera?
— O senhor anda desconfiado, senhora Aimée, bem desconfiado. Não há
mais que ver como a olha. Se eu fosse você, andaria com muito cuidado, porque ao
senhor Renato lhe deveram dizer.
— Algo mais que dizer, Ana. A carta que mandei contigo, essa maldita carta
que lhe arrebataram essa carta que seguramente roubou Batista, está em suas mãos.
Deveu entregar-lhe ele, para comprar seu perdão com esse serviço. E tinha que ser
você a que deixou cair minha carta. Você, maldita estúpida! Negra imbecil!
— E você para que o fez? Se for uma negra imbecil, para que se confia em
mim,
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Pégasus Lançamentos
— Porque às vezes Sou tão estúpida como você mesma. E porque estou
desesperada, encurralada e perseguida pela má intenção de todos. Ana, Ana, tem
que voltar a me servir!
— Eu. , Ai, não, minha ama! Se o Batista deu a carta para que o perdoasse,
se o amo Renato souber. Ai, minha ama! Eu não quero me colocar em mais
confusões. O Batista tem a mão muito larga, e se ele voltar a mandar aqui.
— Eu serei a que te esbofeteie se não me serve! — assegura Aimée,
impaciente pelos reparos da faxineira. E mudando de tom, oferece: — Darei-te
quanto me peça, mas agora mesmo sai daqui.
— Por onde.
— Pela janela do quarto penteadeira. Cairá no pátio pequeno, onde não há
ninguém nunca, e ali te espera miras bem e buscas ao Juan, que não pode estar
longe.
— E se me vê o amo Renato,
— Se te vir, não importa. Ele não sabe que estava aqui. A mim é a quem
não pode ver. Procura o Juan e lhe diz que se aproxime justamente pela janela
pequena por onde você vais sair. Diga-lhe que lhe estou esperando, que venha em
seguida e que não me leve ao desespero, que não me faça enlouquecer porque vai
pagar muito caro. Acaso com a vida! Procura o Juan e diga-lhe, Diga-lhe.
Com oblíquo olhar depreciativo, Juan percorreu que trecho de piso os
quatro ângulos do desmantelado galpão onde Mônica e ele se encontram neste
instante. É um quarto anexo às cavalariças, onde se amontoam os sacos de
forragem, os fardos de feno, os velhos arnês, as gavetas e os barris vazios, sobre um
dos quais, que funge de mesa, está à garrafa de aguardente e alguns copos de áspero
vidro, em um dos quais Juan volta a servir o ardente licor para beber o de um só
gole.
— Não beba mais, Juan. O suplico!
— Segue com sua mania de suplicar em vão. Incluso não se convenceu que
não atendo pedidos nem súplicas? De que é inútil.
Calou olhando-a devagar, como se a olhasse pela primeira vez, acaso
surpreso de sua debilitação, do esforço com que respira, das profundas olheiras
violáceas que fazem mais fundos e dramáticos seus claros olhos de olhar sombrio, e
acaso também surpreso de sua beleza em flor, pálida e ardente como um abajur
votiva, daquelas mãos brancas, finas como de lírios, cruzadas sobre o peito para
rezar ou para morrer.
— Juan. Você vai-se, verdade? — pergunta Mônica com dolorosa voz
suplicante. — Veio aqui esperando a ocasião de recuperar um dos cavalos que tinha,
de conseguir outro, de ir-se. Verdade? .
— E por que vou? — replica Juan com uma serenidade quase insolente. Há
ironia em suas palavras quando prossegue: — Não ouviu você ao Renato? Não lhe
ouviu dizer que não sairia vivo se tentava partir de Campo Real antes de ter lavado
a afronta que lhe fiz, tomando-a por esposa? Renato quer que repare minha falta,
que lave a honra dos Molnar manchado por mim, que lhe devolva a honra que lhe
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Pégasus Lançamentos
devo. Que gracioso, verdade? O jovem D'Autremont exige que me leve como um
cavalheiro, lhe dando meu sobrenome. Meu sobrenome. Que gracioso é isto.
Santa Mônica! Suponho que será você a que tenha que me dar isso. Então me
chamarei Juan Molnar. Juan do Molnar! E herdarei com você quatro pergaminhos
amarelos e meia casa em ruínas. — Ri, e sua risada encerra em si uma amarga
mordacidade, ao prosseguir: — Renato o manda, e terá que obedecê-lo. Ele é como
esse Deus que está lá encima, que põe em meio da vida a um moço nu e faminto,
sem nome nem família, e lhe diz: "Não minta. não roube. Não mates". Mesmo que
para não matar, tenha que morrer. Pois bem, agradaremos ao Renato. A que vem
assustar-se agora, quando antes disse sim?
— Juan, é que não compreende? — protestou Mônica com voz afogada de
dor.
— Naturalmente que compreendi! O único importante é que Renato
D'Autremont não sofra, que não saiba nada, que não suspeite nada que possa
humilhá-lo nem feri-lo. Está sobre as nuvens. Não o disse? — E em um estalo de
repentino furor, protesto: — Pois não está sobre as nuvens! É uma bolota de lama
podre, é um homem como todos os demais. Pior. Mais desventurado, mais ridículo,
porque levou a altar a uma rameira. OH! É obvio isso não terá que dizê-lo. A
história já não é essa, é muito distinta agora. Ela foi ao altar casta e pura, e você,
você, Santa Mônica, era a que corria pela praia ao encontro do Lucifer. Você era a
que me aguardava nua e ardente sobre a fria areia para me jogar ao pescoço o nó de
seus braços, para me afogar com o bafo de seus beijos, para me embriagar com seu
fôlego e com suas carícias. Você era a que passava a tormenta em meus braços, a
que saltava sobre as rochas negras para me despedir, enquanto eu me afastava com o
perfume de seus cabelos em minhas mãos e com a sede de voltar presa à garganta
como um espinho. Você era a amante do Juan do Diabo, Santa Mônica. — Volta
para rir com cáustica ferocidade, e termina com arruda violência: — E agora não
cabe voltar atrás. Ele perguntou, e você disse que sim. Que sim!
Só cego de desespero poderia um homem falar de modo tão bárbaro à pálida
mulher que tem diante e que agora retrocede respirando com esforço, como se lhe
faltasse o ar. Toda ela é como uma fibra de palha que girasse atracada pela fúria do
vendaval; mas alta a cabeça, crava nele o olhar, sustenta-se lhe enfrentando, como
se apoiasse na cruz que escolheu por martírio, estende os braços qual pudesse
estendê-los sobre o madeiro para ser crucificada, e confessa total e entristecida.
— Disse que sim. É verdade. Que outro caminho ficava? O que outra coisa
podia responder às palavras do Renato? Disse que sim, mas você.
— Eu também disse sim, claro está. Queria ver até onde chegavam todos
você, com sua loucura; Renato, com sua imbecilidade. E essa cadela maldita, essa
hipócrita, professora de todas as falsidades, essa cínica que merece ser pisoteada,
também quis ver até onde podia chegar. E chegou a tudo. Até a mentir daquela
maneira, olhando-me na cara. Por suposto, fez bem. Já estaria segura, já saberia até
onde você era capaz de suportar. — Vacila um instante e, com súbita suspeita,
pergunta: — Ou acaso foi combinada entre ambas?
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Pégasus Lançamentos
Deu uns passos sobre a terra úmida. Agora já não chovia, e é pálido e
longínquo o resplendor dos relâmpagos que intermitentemente acendem o céu. Seus
olhos giram como abrangendo aquela paisagem, e ao divisar ao menino negro que
por ali vagabundeia, chama-o:
— Colibri. Colibri.
— Aqui estou meu amo. Tudo se acha preparado. Entre aquelas árvores, que
estão atrás da igreja, escondi os cavalos assim que vi que começava a chuva.
Vamos, meu amo?
— Sim, Colibri, vamos. Agora mesmo. Interrompe-se ao ouvir um estranho
e longínquo assobio, e perplexo indaga: — O que é isso?
— Não sei meu amo. Algum nos está assobiando.
— Senhor Juan. , senhor Juan. — chama Ana com insistência, mas sem
gritar, chegando onde se encontra este. — Sou eu, senhor Juan. Mas não grite. Não
grite que andam perto os guardas.
— Que guardas?
— Os guardas que mandou o senhor Renato para vigiar e não deixar entrar
nem sair a ninguém. Eu acredito que é para que você não escape.
— O que diz? Escapar eu?
— Isso disse o amo. Eu ouvi quando o disse ao senhor notário. Que não
queria que você escapasse, porque amanhã tinha que casar-se. Ai, Deus! Assim
deviam fazer todos os irmãos: não deixar que escapem os noivos. Não haveria
tantas pobres mulheres como deixam plantada.
— Vigiar. Vigiar-me. E quem mandou a ti que me dissesse isso?
— Que o dissesse a você, ninguém. Mas eu os vi e pensei: É melhor que
saiba. E que se ande com cuidado até chegar à janela.
— Que janela?
— Não lhe disse? Ai, Deus, que não lhe disse! Tenho a cabeça que me dá
voltas para todas as partes, com tantos sustos e com o golpe na pedra que me fez dar
esse maldito Batista, que assim lhe comam as formigas os pés e as mãos.
— Acabará de uma vez? — impacienta-se Juan. — Já vou senhor Juan.
Aqui todo mundo está sempre apurado. A senhora Aimée me mandou que o
buscasse por toda parte, e me disse. Deixe ver se me lembro. Ah, sim! Disse-me
que estava desesperada, chorando a mares, e doente tanto chorar.
— Disse-te que me dissesse isso?
— Sim, senhor. Isso e muitas coisas mais, que me hão escapado. Mas
seriamente que está muito assustada, e tem razão, porque terá que ver como a olha o
senhor Renato. Eu o vi quando me escondi atrás da porta. A olha como se o fora a
arrancar a cabeça, e ela tem muito medo e quer que você vá.
— Que eu vá, aonde?
— A vê-la. Pela janela pequena. Por aí me fez sair quase de cabeça para
buscá-lo, porque o amo Renato a tem encerrada e disse muitas coisas muito feias. E
para meu que se vocês não se casarem, ele mata a alguém, porque está como o amo
dom Francisco, que em paz descanse, mandando de verdade. E a senhora Aimée
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espera a você na janela. E me disse que fora. Que fora a lhe falar você esta noite,
porque se não ia, matava-se.
— Matar-se ela? — sorri Juan depreciativo. — Como se fora possível para
ela ir contra si mesmo por nada nem por ninguém. Matar-se ela
Um instante, cruzados os braços, Juan contemplou o rosto escuro, de
expressão estúpida. Logo, bruscamente, volta às costas e ordena ao Colibri:
— Vamos!
— Sim, meu amo, vamos. Trago os cavalos?
— Vai a cavalo? — pergunta Ana com estranheza. — Até onde?
— Até o inferno! Pode dizer-lhe assim a sua ama.
— Se for fora do imóvel, digo-lhe que não passa da portaria. São como dão,
todos com escopetas. E amo Renato mandou abrir o quarto grande onde estavam as
escopetas, e lhe deram um a cada guarda. Eu os vi de dois em dois dando voltas por
lá, e os viram todos na casa.
— Todos? Então era uma armadilha! — exclama Juan. — Quando Mônica
do Molnar me pediu que me partisse, que saísse esta noite de Campo Real,
certamente não ignorava que havia homens preparados para me deter. Talvez, para
me matar. Claro, depois de tudo, que valia minha vida, que vale minha vida
desventurada, comparando-a com a tranquilidade do Renato? Ele, só ele importa. E
eu cheguei a acreditar em suas lágrimas, a escutar suas súplicas.
— De quem está falando? — pergunta Ana, que não entende nenhuma só
palavra.
— O que te importa? Corre e lhe diga a sua ama, a sua maldita ama que vou
lá! Anda.
— Correndo e voando! — afirma Ana afastando-se, ao tempo que murmura:
— O que vai se alegrar! Esta vez sim que ganhei o anel, o colar, e toda a prata que
me ofereceu a ama.
— Juan. É você. É você por fim. Como se não desse crédito a seus olhos,
Aimée estende as mãos desde aquela janela, estreita e alta, enquanto frente a ela, no
pequeno pátio ladrilhado, Juan se detém cruzando os braços. Uma cólera fria, mais
terrível que todos seus arrebatamentos, um rancor gelado e surdo parece encher até
a última partícula de seu corpo e aparecer a seus olhos como nunca altivos, como
nunca ferozes e penetrantes. Seus olhos a Italianos nos que Aimée do Molnar não lê
mais que uma palavra: vingança. E claramente assustada, roga:
— Juan. Não me olha dessa maneira. Compreendo o que sente o que te
passa. Eu também estou desesperada. Ouça-me, me entenda. Tive que dizer isso
tive que mentir tratando de enganar ao Renato, porque ia matar-me naquele instante.
Tinha-me jogado as mãos ao pescoço. Tinham-lhe entregue a carta, a maldita carta
que Ana se deixou roubar.
— Ah. Ana!
— Foi me buscar como um louco e me teria matado, Juan, teria-me matado
naquele instante. Via-o em seus olhos, senti suas mãos me apertando a garganta e
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Pégasus Lançamentos
gritei o primeiro que me passou pela imaginação. Gritei para me salvar, sem saber
nem o que gritava.
— Sabendo-o muito bem, estando muito seguro do resultado de suas
palavras, tendo preparado antes a farsa, os truques, os recursos. Tendo mandado a
sua irmã para que ela me entretivera e ele nos achasse juntos. Que fácil é, que
grandiosas, que maravilhosas são suas casualidades.
— Juan de minha alma, eu te juro.
— Cala, basta, não jure mais! — exalta-se Juan em um arrebato de ira. —
Deixa a farsa e acaba de uma vez com o que tens que me dizer. Mandou-me chamar
dizendo que se não acudia te mataria. Por que te mataria?
— Mandei-te chamar desesperada. Disse o primeiro que me passou pela
mente para te obrigar a que te aproximasse. Necessitava verte te ouvir, te falar,
estar segura de que não sigas me odiando.
— Me afastar? Você também quer que vá?
— E o que outra coisa. Pode fazer frente às circunstancia. Ir. Aproveitar as
horas de noite que até ficam, tomar um cavalo, chegar até seu navio e. — Aimée se
interrompe ante a gargalhada que com amarga ferocidade solta Juan, e com uma
mescla de assombro e medo, inquire — Juan, o que tem? Vais te voltar louco.
— Não. Não tema. Isso queria você, verdade? Isso queria você e a outra:
que me voltasse louco, ou que fora tão inocente para escutar seus conselhos e me
abrandar frente a suas lágrimas. Mas não o farei. Não o farei. Fui o bastante
estúpido para te querer, o bastante imbecil para pensar que você também me amava,
o bastante asno para acreditar até na boa fé de sua irmã. Mas já sei o que querem as
duas, já sei o que entre todos me prepararam. Foi você a que aconselhou ao Renato
regar escopetas entre os guardas? Ou a ideia foi da Santa Mônica?
— O que diz? — desconcerta-se Aimée. — Não entendo nada. Juro-te.
— Talvez o combinaram entre as duas. Sabem muito, são iguais. Ardilosas
como serpentes. Somente esqueceu um detalhe: que enviava seu recado com uma
imbecil, com uma pobre tola incapaz de secundar seus planos, com uma estúpida
que teve a ingenuidade de me acautelar de quantos eram e que armas tinham.
— Juan. Juan juro-te que eu não sei nada. Nada.
— Eu te juro que vou vingar me fazendo as coisas como vocês as fazem,
cravando pouco a pouco a adaga. Você e ela. E ela mais que você, porque já te
odeio tanto e te desprezo tanto. Mas ela. Ela.
— O que fez ela? Juro-te que não sei nada, que não entendo nada!
— Entende muito! Falhou-te o último truque, falhou a ambas o plano para
desfazer-se de mim, fazendo-me prender ou matar. Melhor matar, verdade? Os
mortos não falam! Mas não me moverei desta casa. Não tenho nada que fazer fora
de seus jardins. Ao contrário, irei ao escritório para dizer ao Renato quanto lhe
agradeço que vá a apadrinhar-me e que contente estou com as bodas que me
prepara. Você é a madrinha, verdade? Com quanta alegria vai levá-la até o altar.
Como vais desejar lhe felicidades a sua irmã, e que doce viagem de bodas lhe
aguarda.
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Pégasus Lançamentos
— Cala! Cala! Não diga uma palavra mais, porque não respondo de mim!
Por quem me tomaste? Pensa que sou de sua mesma carniça, prostituta desprezível?
O que é o que chegaste a pensar? Cale-te já!
— Você é a que tem que te calar! Não sabe o que acontece, não o quer saber!
Ou acaso sim sabe e está muito conforme lhe levando isso
— Me levar a quem? O que é o que diz?
— Não faz a não ser ir rastreando atrás de meus passos, empenhando-se em
me disputar aos que me querem, a mim, a mim sozinha. Primeiro ao Renato, logo
ao Juan.
— Te cale! — exclama fora de si Mônica, ao tempo o que atira uma, sonora
bofetada no rosto do Aimée.
— Mônica! Aimée! O que é isto? — surpreende-se Renato, que chegou
silenciosamente até o grupo que formam as exaltadas irmãs.
— Renato! Já viu. — angustia-se Mônica.
— Vi que esbofeteava a sua irmã, e compreenderá que é necessário.
— Mônica não me perdoa que tenha tido eu descobri-la — interrompe
Aimée dominando a situação. — Está furiosa porque você sabe, porque a obriga a
casar-se. E nisso não lhe falta razão, Renato. Nisso acredito que te excede. Se ela
não quiser uma reparação, por que tem que impor-lhe
Mônica apertou os lábios, baixou as pálpebras, retrocedeu até encontrar o
apoio de uma coluna para não desabar-se, e outra vez, depois do momento de
imponente cólera em que há sentido ferver seu sangue, sente que é gelo o que lhe
corre pelas veias, que são como de chumbo seu corpo e sua alma. E escuta, como
através de muitos véus, indiferente já à força de sofrer, as palavras de sua irmã:
— Está como louca e por isso lhe perdoo até que me maltrate. Ao fim e ao
cabo, este é um assunto que não te concerne diretamente, Renato. O melhor será que
deixe em paz ao Juan do Diabo, que envie a mamãe e a Mônica ao Saint-Pierre, e
que tenha piedade de mim, que já não posso mais. Que já não posso mais!
Há-se arrojado chorando em braços do Renato, mas ele a detém com um
gesto frio. Agora só olha a Mônica: seu corpo enfraquecido apoiado na coluna, seus
lábios apertados, suas fechados pálpebras, sua cabeça arremesso para trás na mais
amarga atitude de supremo desespero. E com gesto sereno e tom moderado, expõe:
— Se realmente Juan te dever uma reparação, Mônica, não é possível que
não queira aceitá-la. Se realmente teve a debilidade de cair em seus braços, não é
possível que uma mulher como você se negue a casar-se. Mau ou, teve que querê-lo
para fazer o que fez, e se o que te assusta é sua modesta posição, acaso devo te
adiantar que depois das bodas as coisas mudarão. Perdoe-me se insistir, mas tenho a
absoluta necessidade de saber que quer ao Juan, que quis ao Juan, que foi dele,
você, você. E tendo sido dele, não pode rechaçá-lo que te ofereço que é o único
digno, o único decente: ser sua esposa.
— Mas se ela não quer. — rebela-se Aimée.
— Sim quero Renato. Casarei-me, irei com ele aonde queira me levar. Disse
que sim, e é minha última palavra!
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Pégasus Lançamentos
Aimée escutou tremendo as palavras da Mônica, e se diria que, sem logo que
trocar, algo se limpa no enfurecido rosto de Renato. Um instante aparta este a vista
da pálida mulher recostada na coluna, para cravá-la no rosto de sua esposa. Também
Aimée do Molnar está intensamente pálida; como os da Mônica, também tremem
seus lábios; mas há um relâmpago sinistro em seus brilhantes olhos de azeviche, e a
luz que um momento iluminasse o rosto do Renato parece apagar-se quando de seus
lábios destila sutil e dolorosamente a ironia:
— Vê? Não era necessário chegar aos extremos de antes para convencê-la
do que é justo e natural. Qualquer pode ter um instante de debilidade, mas as gente
bem nascidas. Sabem sempre que há necessidade de reparar, e Mônica não
desmente a casta. E agora, para ti, Aimée, uma pequena pergunta de ordem pessoal:
Por onde saiu do quarto?
— Eu? Pois. Bom. Por essa janela. Sua ridicularia de me encerrar obrigou
a algo, e aproveito a oportunidade para te dizer que não estou disposta a tolerar a
forma em que me trata.
— Temo-me que terá que tolerar muitas coisas mais, querida — anuncia
Renato com suavidade, mas com um oculto acento detestável. — Voltemos para
quarto. Deixa a Mônica em paz. Ela me parece que compreende as coisas melhor
que você, e aceita plenamente as consequências de seus atos. Verdade, Mônica?
A pálida frente da Mônica se elevou seus claros olhos, limpos, puros, altivos,
cravam-se um instante nos do Renato lhe fazendo estremecer-se com uma
involuntária sensação de respeito, quando esta assente muito digno:
— Em efeito, Renato. Aceito e confronto plenamente as consequências de
meus atos.
Capitulo 5
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— Acredito que ignorava esse detalhe. Sim, Juan do Diabo é meu irmão.
Claro que com o elmo do escudo dos D'Autremont virado para a esquerda; pior
ainda, porque nem sequer é um simples bastardo. É um filho do adultério, da
traição de uma mulher e da deslealdade de um amigo. Dói dizê-lo, mas esse amigo
infiel foi meu pai, mas vá à verdade por diante.
Aimée baixou mais a cabeça, afundou um instante o rosto nas mãos. O
coração lhe pulsa tão forte, que acredita não poder resistir mais. Tudo a seu redor é
como um pesadelo, como um torvelinho de loucura, enquanto ásperas, irônicas e
geladas, seguem soando, como se flutuassem em um negro infinito, as frases do
Renato:
— Justamente ontem à noite tive a segurança de que era meu irmão. E olha
você o que somos os imbecis, os sentimentais, os de coração brando. Senti uma
ternura e uma alegria infinita, saí para lhe buscar para estreitá-lo entre meus braços,
para oferecer-lhe o que, segundo meu utópico sentido da vida, pertencia-lhe: a
metade de quanto tenho. Para rogar a minha mãe, com lagrimas nos olhos, que me
permitisse lhe dar também o nome de meu pai, para lhe fazer completamente igual a
mim. Que imbecil sou, verdade?
— Por que falas desse modo? Por que destilam assim ódio e amargura suas
palavras?
— Pergunta-me isso de verdade? Não sabe? Às vezes basta um raio de luz
para ver o abismo; basta um minuto para que a vida troque para sempre. — Renato
faz uma careta, e é mais intensamente amarga a baforada de veneno que sobe a seus
lábios: — Sim. É meu irmão. Meu irmão o perdido, o contrabandista, acaso o
pirata. Como Mônica é sua irmã hipócrita e rasteira, cínica e leviana. Verdade?
Esperou a resposta um longo momento até que, ao fim, escapou trêmula e
molhada de lágrimas dos lábios do Aimée:
— É muito severo com ela, Renato. Eu. Eu me atreveria a te suplicar que os
olhasse com mais indulgência. Com mais.
Calou, afogando-se, e Renato dá um passo mais para a janela aberta, de onde
divisa ele amplo panorama do vale, semeado-los, os campos verdes, as cúpulas das
altas montanhas que douram já os primeiros raios do sol. Sua vista baixa até mais
perto e se estremece ao ver o homem que, cruzados os braços, turvo e carrancudo
frente à morada dos D'Autremont, observa também ao sol que nasce. Logo sorri
com sorriso de fel e suas mãos baixando até o Aimée, obriga-a a voltar, a olhar por
aquela janela, ao tempo que assinala:
— Olha a, Juan. Está contemplando sair o sol do dia de suas bodas. O dia
em que a vida dos homens muda. O dia de suas bodas!
— OH. Juan! . O que faz?
— Já o vê, me tomar o café da manhã na moda blusa de marinheiro, com o
sobressaia que achei à mão. O serviço nesta casa está deixando bastante que desejar.
Onde se foram aquelas filas de lacaios de jaquetas brancas? São acaso os que
rondam agora os caminhos com a escopeta ao braço? — Juan, suplico-te que não
beba mais.
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dado um posto de chefe das quadras, mas se foi despedir-se nem sequer de sua
sobrinha. A pobre sofre por isso. Já sei que você não tem por ela simpatias de
nenhuma classe, mas é uma servidora agradecida e leal.
— Sobre tudo, leal. — murmura Renato com certo rancor.
— Que tratas de me dizer?
— Nada. Falemos de outra coisa. Dentro de duas horas será a cerimônia
das bodas, e.
— Filho, de todos os modos vais fazer que se casem? Insistes? Pensei que te
bastaria sabendo que estavam dispostos a casar-se.
— Isso é muito fácil. Também eles puderam pensar o mesmo. Eu preciso vê-
lo, final, vê-los partir em alegre viagem de noivos e retornar do braço como um
matrimônio bem concorde. Se for como eles dizem, já podem sentir-se satisfeitos.
Se não o for. Quero ver estalar o vulcão. Mas o é. Eles o afirma, todo mundo o diz,
você mesma opina que devo aceitar a história, tal como me contaram isso. Pois a
aceitando, todos temos que ser felizes. Não há razão para caras largas e soluços
afogados, a não ser para festa, para uma alegre festa. Dei aos trabalhadores o dia
livre, barricas de aguardente, e a ordem de dançar até que caiam. Suponho que não
faltarás à igreja, mamãe. Agradará-me assistindo a essas bodas.
— Se for por te agradar, terá que ir. Mas queria que me escutasse.
— Não escutarei a ninguém. É inútil. — Recusa Renato vê, mas com
firmeza. Olha, aqui chega precisamente Ana, oportuna por primeira vez em sua
vida.
— Mandei-a me trazer razão de como segue Aninha — justifica Sofia. E
elevando algo a voz: — Te aproxime, Ana Como está Aninha?
— Não sei. Mas seguro que está bem, porque não se achava em seu quarto
nem no pátio, onde o Batista estava Armando o grande escândalo.
— Retornou Batista? — murmura Renato lentamente.
— Trouxeram-no os guardas, e terá que ouvi-lo. Está mais bravo que um
escorpião. Não queria vir e o tiveram que amarrar. — Ana ri com divertida
estupidez. — Está que se remói sozinho, como um cão com raiva.
— Mandou detê-lo ele também, filho?
— Mandei deter quantos tentassem cruzar os lindemos de Campo Real.
Alegro-me muito de comprovar que minhas ordens foram cumpridas ao pé da letra.
Agora mesmo vou falar com ele, e não se preocupe mamãe, porque não vai mal.
Assim que você. Ana vá dizer lhe à senhora Aimée que se prepare. A cerimônia das
bodas é às três. Deve estar arrumada um pouco antes, já que é ela quem terá que
acompanhar ao noivo ao pé do altar. Anda! Prepare-lhe a roupa e ajuda-a a vestir-se.
Não me ouve?
— Mas, meu amo, como faço para entrar? A senhora Aimée está encerrada.
— Aqui tem as chaves do quarto. Anda! Anda logo! — Empurrou a Ana, que
se afasta assustada, e voltando-se para a Sofia, aconselha-lhe: — Te arrume você
também, mamãe. Eu vou a ordenar que soltem a Batista e a lhe devolver seu
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importante cargo. Estou começando a te dar a razão em tudo, mãe: é o capataz ideal
para este inferno florido.
— Minha filha, acredito que é à hora. Aí está já Renato, e todos vão a
caminho da igreja Catalina se interrompe e balbuciando, adiciona: — Eu não sei o
que te dizer Minha filhinha. Eu.
— Não há nada que tenha que me dizer mamãe. Mônica se pôs que pé,
abandonando o genuflexório onde longamente rezou, e se move como uma
sonâmbula através da estadia. Em seus olhos há um brilho estranho, suas mãos
ardem, e estão seus lábios também ressecados e ardentes sob o bafo de fogo que
respira. Tímida e torpe, a mãe vai atrás dela como se não achasse gestos nem
palavras.
— Filha, deveria te haver mudado de traje. Vai te casar de negro, de luto
como uma viúva? E sem ramo de noiva?
— Que falta faz? Dê-me meu livro de orações e meu rosário.
— Ai, filhinha, tudo isto me parece horrível! Acredito que até poderia. —
tenta persuadir Catalina; mas a interrompem uns golpes discretos jogo de dados na
porta.
— Não posso nada. Aí está o homem que vai levar-me até o altar. É Renato.
Abra-lhe.
Catalina franqueou a porta ao Renato e com a maior discrição saiu deixando-
os sozinhos. O sim se mudou de traje barbeado e penteado com esmero e esmero. O
Marcelino rosto, tenso e pálido, não mostra expressão de nenhuma classe. Na mão
sustenta um pequeno ramo de rosas brancas, e parecem de aço suas pupilas azuis, à
força de duras e brilhantes, quando interroga:
— Já está pronta ?
Olhou-a com ânsia, com uma espécie de interrogação se desesperada nos
olhos humanizados por um instante, e Mônica sustenta aquele olhar sem responder
de momento nem com um gesto nem com uma palavra; logo baixa as pálpebras e dá
um passo para ele para lhe responder com um monossílabo que é de uma vez
afirmação e pergunta:
— Já?
— Embora seja faculdade da noiva fazer-se esperar, acredito que não
devemos extremar a nota neste caso. Juan está na igreja, há momento. Aqui tem
seu ramo de noiva.
— Obrigado, Renato — agradece Mônica com amarga ironia. — São as
primeiras flores que me dá em sua vida, e tinham que ser estas. Vamos que espera
Juan do Diabo!
Bruscamente, quase o espremendo, tomou Mônica aquele pequeno ramo de
rosas brancas, e um instante o aperta em gesto convulso contra seu peito. Tinha que
ser ele tinha que ser o homem a quem tanto amou em vão, a quem até sente junto a
si como uma queimadura, quem a levasse do braço ao altar, quem pusesse em suas
mãos o ramo de noiva para seus bodas com o Juan do Diabo. Tinha que ser aquele
Renato D'Autremont a quem amasse desde menina com o ingênuo amor de seus
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Pégasus Lançamentos
nove anos, e tinha que ser sua vontade a que pedisse a sua vida o sacrifício enorme,
maior ainda que o da vida mesma. Agora vai junto a ele, logo que apoiada em seu
braço a branca mão leve, enquanto chora seu coração com lágrimas de sangue,
porque é aquele com quem sonhasse aquele com quem tecesse os jasmins muito
puros do primeiro amor, aquele que visse noivo e marido em seus sonhos de
colegial, que a leve agora como um verdugo caminho do cadafalso. Nunca foi tanto
trecho de seu braço, nunca recebeu flores de sua mão, nunca lhe viu como agora lhe
vê inclinar-se para olhá-la, enquanto avança com uma sombra de inquietação nas
claras pupilas.
— Mônica, sente-se mau? Sua mão arde. Diria-se que tem febre.
— Não tenho nada! Sigamos.
— Juan. Não me ouve? Juan!
— Cruzando os braços, olhar perdido nas sombras douradas das madeiras do
altar, Juan não parece escutar a voz do Aimée, não baixa os olhos, não volta à
cabeça para olhá-la, nem um só músculo se move em seu rosto de pedra, e é seu
corpo frio e rígido, como se até seu fôlego humano se petrificasse naquele instante.
— Juan! Até onde vais chegar? — Juan não responde. Só inclinou um pouco
a cabeça para olhar à mulher que fala muita perto, com voz afogada e suplicante;
juntas as mãos e aumentadas de angústia as pupilas. Também Aimée acredita
sonhar, acredita viver um espantoso pesadelo, revivendo de uma vez as cenas de
suas próprias bodas que de repente lhe desejam muito longínquas, como se o
torvelinho em que vive durasse há muitos anos atrás ou como se fosse suas próprias
bodas a que se realizasse também naquele instante. Mais não suas bodas com o
Renato, a não ser com o homem que está a seu lado, junto a ela, duro, desdenhoso e
altivo. Mas a igreja não está, como então, coberta de flores. Logo que brilham
quatro círios frente ao nu altar, não há tapete, nem abajures, nem sedas, nem
brocados, nem uniformes brilhantes, nem aparece no lugar preferencial, à branca
cabeça do Governador Geral da Ilha. Lentamente foram chegando sombras escuras,
rostos de bronco ou de ébano, peitos nus, largas mãos de peões nas que tremem os
chapéus de palma, pés descalços que marcam em barro seu rastro, e também saias
de coloridas, Calarias inferiores grossas adornadas com o típico lenço das ilhoas do
Martinica, meninos de olhos brilhantes. Toda uma audiência humilde, matizada,
impulsionada por gratidão ou por curiosidade.
Na porta do templo apareceram os que faltam. Uma noiva pálida, convulsa,
enlutada com um xale de seda negro substituindo ao véu e à coroa de flores-de-
laranja. Uma noiva com os lábios trêmulos, com os olhos acesos de febre e de
espanto, que marcha devagar, como pedindo forças a Deus para cada passo, e um
jovem padrinho de face áspera e sombria, de dentes apertados, com uma máscara de
gelo sobre o desespero de sua alma.
— Não pode ser Juan! Não pode ser, e não será! — murmura decidida
Aimée em voz baixa e angustiada. De repente, vê junto a si a seu marido, e se
alarma: — OH Renato.
— Nossa missão termina frente a este altar, Aimée. Veem — explica Renato.
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— Que não a leve! Que não se vão. — Que não se vão! Faz algo, Renato,
não o deixe. Não deixe que a leve assim! Que vão atrás deles, que lhe corram atrás,
que o detenham! Não me ouve? Não compreende? Renato! Renato! Não te dá
conta? É capaz de matá-la!
Tem cansado quase de joelhos, puxa ao braço do Renato, sincera e
desesperada em um momento, mas a expressão feroz do rosto de seu marido apaga
o grito e a súplica em seus lábios.
— Por que te volta louca? — revolve-se Renato em um arranque de ira.
— Minha irmã. Minha pobre irmã!
— Casou-se com o homem a quem quis, com o selvagem que preferiu sobre
todos outros, pelo que manchou seu nome, pelo que insultou a sociedade em que
nasceu pelo que não lhe importou desafiá-lo tudo e encará-lo tudo. Casou-se com
seu Juan, com seu Juan do Diabo, e sem dúvida lhe agradam suas maneiras quando
passou por cima de tudo para dar-lhe seu amor! É isso verdade? É verdade ou não é
verdade?
— É verdade, Renato. — murmura Aimée impotente e vencida.
— Pois então, adiante — rubrica Renato. E com voz autoritária, ordena: —
Fora daqui todos! Aos barracos, aos barris de aguardente, a cantar, a dançar, a
celebrar as bodas do Juan do Diabo!
Como se voasse sobre o atalho pedregoso, marcha o cavalo que leva a
Mônica e ao Juan. Sobre o duro cela de arreios, apanhada, triturada quase pelo
braço robusto que de uma vez a sujeita e a sustenta, sente Mônica, mais que ver
como as terras dos D'Autremont vão ficando atrás. Já saíram que vale já o brioso
animal, sentindo o peso da nobre carrega, clava os cascos nas levantadas ladeiras do
desfiladeiro que é entrada e saída para vale grande de Campo Real. Abaixo ficou
tudo: a morada suntuosa, os jardins magníficos, os pomares de frutíferos, os campos
semeados, os barracos onde já soam os roucos tambores e vão emano em mão as
xícaras de rum.
Mônica elevou a cabeça. Não sabe o tempo que passou, não sabe as léguas
que sentou ao cavalo galopar, mas agora este marcha devagar, atravessando o
campo sem a caminhos, onde as pedras lhe fazem escorregar-se, onde às vezes os
ramos lhes açoitam ao passar e os tombos a obrigam a agarrar-se aos largos ombros
do homem que a leva consigo.
— Aonde vamos? Este não é o caminho do Saint Pierre. Aonde me leva?
— Este é o caminho por onde eu quero levá-la.
— Me levar aonde?
— Que mais dá? Não ouviu o que lhe disse no altar seu padre? Levo-a aonde
queira levá-la!
— Esse não foi o convênio! Basta de brincadeiras, Juan. Se o que quer é me
assustar.
— Assuste-se ou não, para mim é igual. Casou-se comigo; não? Então, é
minha mulher e a levo onde me dê à vontade.
— Não! Isso não! Juro-lhe!
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Pégasus Lançamentos
— Quieta! E não jure nada, porque jurará em falso A larga mão do Juan
aprisionou as duas da Mônica e a obriga a voltar-se para olhar à frente, às nuvens
espessas onde já afundou o sol seu último raio. — Olha o que é o que tem diante?
— O mar. E um navio.
— Um veleiro. O Lúcifer. Minha única propriedade, além de você. Minha
casa. Nossa casa.
— Está louco?
— Possivelmente. Provavelmente há que estar louco para ter aceitado toda
esta farsa. E você também deve estar louca de arremate.
— Eu não vou consentir! Me leve ao Saint-Pierre, ou me deixe aqui se não
querer me levar! Irei sozinha, a pé, como é, ou me deixarei cair em qualquer parte.
Não lhe importa o que eu faça. Pode me deixar em paz.
— Não, por minha desgraça. Disse que sim a queria por esposa. Não
recorda já as obrigações dos casados? Tão pouco valem para você, nobre e crente,
os juramentos que os dois emprestamos? Viver juntos, nos servir, nos ajudar. "Ame
e proteja o marido à mulher como a si mesmo, como a carne de sua carne; tema
respeite e obedeça a mulher a seu marido.” Não se lembra já? Foi faz umas horas
apenas. Estamos no dia de nossas bodas, e para a noite das bodas há no Lúcifer uma
larga câmara nupcial — burla-se Juan com uma risada impregnada de amargura.
Saltou a terra, arrastando a Mônica com ele sem solta-la, os dedos, como de
ferro, obstinados às brancas convoca, cravando-se nelas, enquanto há nos lábios
uma careta feroz que em nada se parece com um sorriso, ao comentar com amargo
sarcasmo:
— Assusta-te a noite de bodas, pomba branca?
— Me solte! Bruto, canalha! — luta Mônica tentando inutilmente escapar
das mãos do Juan.
— Não tente morder, porque ficará sem dentes e seria uma lástima. Não
tinha reparado, mas são muito lindos, tão bonitos como os de sua irmã. Aimée é
maravilhosa, sabes? E essas coisas revistam ser de família. Depois de tudo, acredito
que não fiz tão mal.
— Basta me deixe em paz! — exaspera-se Mônica. — O que quer é zombar,
me assustar, me desesperar, me enlouquecer, vingar-se em mim, que é a única
vítima que tem a seu alcance.
— Em todo caso, vítima voluntária. Eu não inventei que te casasse comigo,
abadessa. Inventou-o seu Renato. — Juan se interrompe para ouvir um ruído de
remos que vai aproximando-se, e elevando a voz ordena: — Aproxima a este lado.
Segundo e em voz baixa diz a Mônica: — Levarei-te nos braços para que não te
molha os pezinhos.
— Basta de estupidez! Deixe-me, vá-se, tome seu bote e acabe de embarcar-
se!
— Que graciosa é, Santa Mônica! Faria-me rir se não me entrassem
vontades de te esmagar a murros. Pensou seriamente que tudo era tão fácil? Pensou
que bastaria me dizer: deixe-me em paz, tome seu navio e largue-se, para que eu
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obedecesse como um cão? Mas até onde pode chegar seu egoísmo e sua soberba?
— E com furiosa exasperação, exclama: — Basta! Já me mordeu também o cão das
súplicas, e sei o que significam o que valem e para o que servem. Já sei o que costa
comover-se por suas súplicas e suas lágrimas. Significa cair em uma armadilha,
pagar com a vida um momento de debilidade. Uma vez o obteve, mas não vais
comover mais. Não terei piedade de ninguém, e de ti menos que de ninguém! Ao
bote ao navio! Casou-te comigo, e nem você nem sua irmã vão seguir burlando-se.
Levarei-te embora nem que seja arrastando!
De um salto, triturada por aquelas mãos de falanges como de aço, arrastada
por aquele braço que rodeia imperioso sua frágil cintura, afogada a voz em sua
garganta, Mônica se viu obrigada a salvar a pequena distância que vai da terra ao
bote. Autoritário, Juan ordena a seu segundo:
— Proa ao Lúcifer, e rema com todas suas forças. Logo!
— Não esperamos ao moço? — Vacila o segundo, assombrado. — Vai
deixá-lo em terra?
— Que venha a nado, para que aprenda outra vez a não atrasar-se! Dê-lhe
aos remos! Vamos!
— Não! Não! — suplica Mônica angustiada. — Você, senhor marinheiro me
ouça.
— Esse não ouça nada, nem vê nada, nem faz mais que o que eu lhe mando.
Entendeu? — E dirigindo-se a seu segundo, — Apura e chega logo! Pede que lhe
joguem um cabo.
— Mas, patrão. — resmunga o segundo.
— Não te meta no que não te importa nem procure o que não te perdeu,
porque o encontrará! — E voltando-se para Mônica, recalca-lhe em voz baixa: —
Vê como tudo é inútil? Tenho de minha parte a força da lei e a razão da força. Assim
é como mandam os que mandam. Chegamos! — Nesse momento se deixa ouvir o
estampido de um trovão longínquo, que pressagia a próxima tormenta, e sarcástico,
Juan comenta: — E como sempre, do céu me saúdam com salvas — Logo grita a
seu segundo: — Pede a escala, imbecil! — E dirigindo-se de novo a Mônica,
explica-lhe irônico: — Não é de mármore, mas sim de cordas. Mas não importa,
subirei-te nos braços. É a moda na Dominica e na Jamaica. A noiva vai aos braços.
Um instante bastou ao Juan, e já seus pés, fortes e largos, afirmam-se na
estreita coberta. A noite tem cansado totalmente. Junto as gávea, os três tripulantes
do Lúcifer olham com surpresa a estranha cena. Segundo dá uns passos como se não
pudesse conter-se mais, e intercede:
— Patrão, um momento. Essa mulher.
— Está-me pedindo contas? — se violenta Juan. — Afaste-se. Aparte-te.
De um chute há totalmente aberto a porta da única cabine da nave, e um
instante depois a fecha atrás deles.
— Não! Não! — clama Mônica no paroxismo do espanto. — É você um
canalha, um perfeito canalha, e não é possível que esses homens não vão a meu
auxílio! Por favor. Socorro!
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Capitulo 6
— Aonde vai? Ou melhor, dizendo, aonde foi? Porque não vais cruzar essa
porta.
— Não ia a nenhuma parte. Não sábia que dar uns passos fora um crime. Sua
atitude é insuportável, Renato!
— Volta a te sentar onde estava. Quer um plantador? Ou prefere o suco de
abacaxi com champanha? É delicioso, sabes? Por algo batizei com seu nome esta
bebida. Hei dito que se sente
Trêmula de raiva, Aimée se deixou cair, mais que sentar-se no divã de raso.
A noite cai já, e desde que horas antes terminasse a cerimônia das bodas estão
sozinhas naquelas habitações adornadas com tanto esmero para a lua de mel do amo
de Campo Real. Junto ao Renato, sobre a mesinha dourada, há copos e garrafas: o
melhor conhaque da França, o mais velho rum da Jamaica, o mais famoso vinho
Xerez da Espanha, e de um cubo de gelo emerge o pescoço dourado de duas
garrafas de champanha. Há também uma fresca jarra de suco de dente com o que
enche dois copos que acaba de mediar de champanha.
— Faz o favor de me acompanhar com a bebida de seu nome: Aimée. "M";
amada. Belo significado o de seu nome, verdade? Amada. Eu gostava tanto, tanto,
que pensei que se tratava de um desses acertos cegos do destino o que assim te
chamasse. Amada. Toma seu Aimée. Bebamos.
— Não quero beber!
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te estou incomodando com minha curiosidade, mas não é em mim em quem pensa
ao te desesperar. Pensa no Juan, verdade?
— Naturalmente que tenho que pensar! — salta Aimée vivamente. — É um
bruto, um selvagem, a que você entregaste a minha irmã
— Eu, ou você?
— Você. Você! Eu não queria, mas sim esse homem se afastasse, que se fora
para sempre, que nos deixasse em paz. Isso é o que deveste lhe mandar. Que se
fora! Porque esse homem.
— Esse homem é meu irmão. Esqueceste-o já? Meu irmão
— Mas é certa essa história horrível?
— Parecem-lhe horríveis as histórias de traições e de adultérios? Diga o que
sente. Grita o de uma vez. Estala na Santa indignação se for inocente!
Outra vez as mãos do Renato se fecharam sobre o colo do Aimée. Outra vez
seus olhos relampagueantes a olham muito de perto como querendo lhe penetrar a
alma, e ela treme, gelada de espanto, esquivando aquele gesto que lhe causa horror,
ao protestar:
— Renato! Está louco? Quer me obrigar a pedir auxílio? Quer?
— Quero que confesse que fale que grite para salvar a Mônica, se for uma
inocente a quem sacrificaste!
— Não o é. Não o é! Mas é minha irmã. Juan não terá piedade!
— Não precisa ter piedade se a ama.
— Ele não sabe amar!
— Como sabe? De onde lhe conhece? Até onde lhe conhece? Responde!
— Me deixe! Machuca-me, faz-me mal! Solte-me, Renato! Vou pedir
socorro! Vou dar um escândalo!
— Já o deste! Grita se quiser; pede auxílio, chama. Ninguém vai acudir.
Ninguém! Está sozinha comigo, e tem que dizer a verdade, toda a verdade, e me
pagar depois o preço de sua infâmia.
— Socorro! — grita Aimée. Desesperando-se. — Vais matar-me! Socorro!
Alguém se aproximou indo à chamada de auxilio, e golpeia a porta
premente. Fora de si, Renato expulsa ao intruso, gritando:
— Não passa nada! Largue o que seja!
— Abre Renato! Logo! Abra-me! — Ouça-se a voz autoritária da Sofia
através da fechada porta.
As mãos do Renato soltaram ao Aimée, que se desfalece sobre o divã de
raso. Logo, com passo incerto, vai para a porta, faz girar a chave e deixa o passo
franco a sua mãe, que indaga:
— O que é isto, Renato?
Foi para seu filho, lhe olhando com ânsia, com uma interrogação ardente nos
olhos, que não nos acham de seu filho a não ser a dúvida cruel, a incerteza lhe
torturem, desespera-a do que luta em vão por encontrar a verdade. E o nobre rosto
da dama se volta severo, enquanto Renato retrocede esquivando olhá-lo. Captando
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— Tem-no, patrão, está igual aos doentes de lá. Assim se moviam, assim
gritavam. E vai se morrer, como morriam os homens lá abaixo, quando estavam
assim. O médico disse que a febre lhes queimava o sangue.
— O que sabe você, enganador? — Rechaça Juan em um arrebatamento de
mau humor.
— Sei patrão, sei! Eu ia com ela e a ajudava. Ficavam assim mesmo, com
essa cara, e falavam como loucos. E esse tremor. Olha-a! Olha-a!
Juan se aproximou muito devagar. Franzido cenho, contempla o belo corpo
de mulher, convulso, trêmulo; o rosto cada instante mais desfigurado; os lábios, dos
que escapam as palavras daquele delírio que além da inconsciência parece obcecá-
la:
— Não. Não. Não serei tua. Não serei tua sem que me tenha matado!
Mate-me. Mate-me primeiro. Mate-me. Mata-me de uma vez, Juan do Diabo!
Malvado. Deus lhe castigará. Tem que te castigar!
— Vete Colibri, me deixe!
— Sim, patrão. Mas, não vai lhe dar nada? Medicina, remédio. Dava aos
homens colheradas de uns frascos com pacote brancos que traziam da cidade, e
umas bolinhas brancas que vinham em umas caixas, e lhes punha na frente. Ah,
sim, já sei! Panos de vinagre. E também vinha: o médico e os olhava, patrão. A ela,
quem vai olhar?
Juan foi até a porta da estreita cabine, há olhar, por sobre a amurada, a massa
escura, fervente, do oceano encrespado sob o golpe do vento; logo, volta-se
vivamente para perceber uma sombra que se aproxima sem ruído, os largos pés
descalços sobre a coberta molhada, É indaga:
— Quem vai? O que acontece?
— Sou eu: Segundo. Deixei à Enguia no leme. É a hora de seu guarda, e a
tormenta está amainando.
— Que rumo tomou por fim?
— O Noroeste, patrão, e faz momento deixamos atrás à costa da Dominica.
Dentro de uma hora passaremos a vinte milhas da Maria Galante.
— Pois lhe diga à Enguia que, dentro de uma hora, torça o rumo a estibordo.
Ancoraremos na Maria Galante. .
Outra vez, Juan se aproximou do duro leito que é a Liteira da única cabine
do Lúcifer rincão nu, habitação desmantelada, estreita e miserável, quase como a
toca de uma fera. Não tem mais móveis que aqueles dois beliches nus, um tosco
armário embutido nas pranchas, uma mesa, banquetas, e sobre o rebordo do que
pudesse ser uma prateleira, algumas cartas de navegação, plumas, tinteiro e o livro
de registros. Nunca, até esse instante, tinha reparado Juan na nudez, na sordidez
daquela estadia. Acaso a compara, com sorriso amarga, com as suntuosas habitações
do palácio do campo Real.
— Agora está quieta e calada, patrão — adverte Colibri.
— Traz água, vinagre e um trapo limpo. Anda, corre!
— Vou voando — obedece ao menino negro, saindo pressuroso.
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— Ai, senhora Aimeé Eu não me ponho contra ninguém. Você sabe que eu a
sirvo de joelhos, e se me dá esses cravos e esse colar de que me falou antes.
— Darei-te dinheiro para que compre «o colar e os brincos mais lindos que
encontre. Anda a ver o que está fazendo Renato, recolha todas as notícias que
circulem pela casa, e volta em seguida a me contar isso Vete já!
Só na enorme estadia de luxuosos móveis antiquados, revolve-se Aimée de
uma vez aterrada e furiosa, uma ideia cravada na mente, uma esperança se
desesperada lhe enchendo a alma:
— Um filho. Sim. Um filho poderia me salvar!
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gesto ao homem que lhe segue até a porta para ficar frente a ele, cruzados os braços,
com a barba enchente, as roupas em desordem, mais rude e selvagem do que
pareceu jamais.
— Não conheço um lugar menos apropriado para uma enferma — assegura
o doutor. — Aqui falta até o mais necessário, e me perdoe que lhe fale com esta
franqueza, mas necessito salvar minha responsabilidade.
— Quer me dizer que não vai atendê-la?
— Quero lhe dizer que farei o possível, mas que seria preferível que
tratássemos de desembarcá-la. No Grand Bourg temos um bom hospital. Poderiam
deixá-la nele se é que tem que seguir viagem.
— Não vou deixá-la em nenhuma parte. Terá você o bote preparado para lhe
trazer e lhe levar sempre que quiser, e lhe pagarei o que me peça por seus serviços.
— Já. Já me disse isso o moço que foi me buscar. Mas não se trata só de
dinheiro, meu senhor. O marinheiro que chegou a minha casa, disse-me que a
doente era a esposa do patrão.
— O patrão o tem você diante, e estou esperando que me diga o que tem e
como a encontra. O moço que esteve cuidando-a supõe que é um mal contagioso
que adquiriu atendendo doentes de uma epidemia que se desenvolveu por lá abaixo,
na Martinica.
— Já. Vêm vocês da Martinica. Lá são frequentes essas epidemias. Muito
bem pode tratar-se de uma febre infecciosa, efetivamente, sobre tudo se tiver estado
em contato com doentes dessa classe. Mas, seja o que seja seu mal está agravado
por um terrível estado de ânimo. Se tiver que lhe falar claro, direi-lhe que sua
esposa se encontra sob um verdadeiro ataque de terror. Sem o antecedente desse
possível contágio, digo o que se tratava de uma febre cerebral. De qualquer modo, o
que seja está agravado pelo terror, pelo espanto, pelo impacto indiscutível de um
muito grave golpe moral.
— Muito delicada a senhora, verdade? — comenta Juan com um sotaque de
ironia.
— Opino, pelo contrário, que muito valorosa e resistente — refuta o doutor
com gesto grave. — Estava já doente quando empreenderam esta viagem? Se for
assim, foi uma verdadeira loucura embarcá-la. A verdade é que eu não compreendo.
O doutor se mordeu os lábios, sob o olhar duro, fria, cortante, do Juan. Deu uns
passos dentro da cabina, para olhar a Mônica, e retorna logo aonde lhe aguarda
imóvel, com os braços cruzados.
— Insisto em que deve você desembarcá-la.
— E se não me fora possível?
— Faríamos aqui o que facilmente pudéssemos. Mas primeiro que necessita
uma doente é uma cama, uma cama com colchões e lençóis. Quanto tempo faz que
estão vocês casados?
— Importa muito isso para determinar a enfermidade de minha esposa?
— Embora pareça mentira, importa o bastante.
— Dias nada mais. O que vai fazer para lhe baixar a febre?
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— Entende muito. Eu sou a que quase não posso compreender, a que cara a
cara olho seu rosto de anjo e me pergunto como pode esconder uma máscara assim
tanto cinismo, tanta hipocrisia, tanta maldade. E você é a esposa de meu filho, você
é a víbora a quem permiti que se atasse para sempre a vida de meu Renato! Você.
Você. Eu soube muito tarde.
— O que soube? Não é possível que nem você nem ninguém saiba nada!
— Nem o notário Noel? Ah, troca de cor! Pois bem, sim, falei com o Noel,
obriguei-lhe a me dizer quanto sabe, atei os cabos necessários.
— Mas estão todos loucos? — pretende defender-se Aimée com a angústia
apropriando-se de todo seu ser.
— Cegos estivemos. Agora, por desgraça, se feito para mim a luz, embora já
muito tarde. Agora compreendo a atitude de sua irmã, o desespero de sua mãe, a
insolência desse maldito que ousou te seguir até aqui, até a própria casa do Renato.
Não pode negá-lo. Você, e só você, é a amante do Juan do Diabo!
Como se a cuspisse, como se a esbofeteasse, saíram às palavras de lábios da
Sofia, e a seu terrível impacto se dobram joelhos de Aimée, estendem-se suas mãos
e uma angústia sem igual lhe sobe à garganta. De repente, fazendo um supremo
esforço, ergue-se vibrante, como a víbora encurralada que se levanta para atacar.
Elevou a cabeça vendo brilhar uma nova esperança, uma fresta por onde escapar,
uma possibilidade a que agarrar-se.
— O que pode saber Noel? O que pode lhe haver dito?
— Sua atitude e a desse canalha, acredita que não bastam? A forma em que
te aproximou dele. A forma em que lhe falou. Tratou-te corno a qualquer.
— Tratou-me mau, mas por culpa de minha irmã. Eu lutava por defendê-la a
ela, queria convencê-lo de que partiram. Renato foi o culpado.
— Caia! Não manche o nome de meu filho; já manchaste bastante. Aos pés
do Noel se deprimiu sua mãe, espantada, tremendo, ao supor, com razão, que meu
Renato ia matar-te. E até me falou mais, até me contou mais. Sei que esteve a vê-lo
antes de te casar, que esteve em sua casa lhe perguntando por esse homem, por esse
maldito Juan do Diabo que é pesadelo de minha vida desde dia desgraçado em que
nasceu. E tinha que ser ele. Ele tinha que ser com ele e por ele, que traísse a meu
Renato. Confessa. Confessa. Declara-o?
— Não confesso nada nem declaro nada — nega Aimée refazendo-se de sua
confusão. — Para que quer me obrigar a falar? Para ir dizer ao Renato?
— Ao Renato? Não, muito sabe que não tenho que dizer-lhe ao Renato. Não
finja que está bem segura de que não vou delatar-te. Ou é que quer que te prometa a
cumplicidade de meu silêncio?
— Renato me matará. E não serei eu sozinha a pagar um momento de
debilidade e de loucura, quando incluso não era sua esposa. Não serei eu sozinha a
pagá-lo. Pagá-lo-ia também o filho do Renato, a inocente criatura que levo nas
vísceras.
— O que? Como? — sobressalta-se Sofia, sumida em uma completa
confusão.
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— Que é carne de minha carne e que é também o sangue do Renato! Por ele
calei por ele me defendi, por ele aceitei o sacrifício de minha irmã, e ela quis fazê-
lo, quis sacrificar-se por amor ao Renato.
— Mas, o que está dizendo? — interrompe-a Sofia cada vez mais
surpreendida.
— Sim, sim, essa é a verdade! Se quiser você sabê-la toda, toda inteira,
tenho que gritá-la. Mônica estava apaixonada pela Renato, disputava-me ao que era
já meu prometido. Impulsionada pelo ciúmes, encurralada pelas circunstâncias,
cometi uma loucura. Depois me arrependi e chorei muito. Só ao Renato quero com
toda minha alma. Só a ele quis sempre, e agora morro porque perdi seu amor e sua
confiança!
Sofia D'Autremont retrocedeu querendo rechaçar aquelas palavras pérfidas e
venenosas, compreendendo pela metade, de uma vez surpreendida e espantada;
enquanto vendo que ganhava terreno, Aimée se eleva para correr a ela, jogando tudo
em um golpe de audácia:
— Mas não posso mais. Não suporto mais. Vou dizer tudo ao Renato, vou
confessar-lhe a horrível verdade, vou a que me mate de uma vez, a que termine;
juntos minha vida e de meu filho.
— Quieta! — detém-na Sofia em tom imperioso. — Não abra essa porta.
Não dê um só passo! Não seguirá fazendo quanto te deseje muito, não seguirá
ferindo e destroçando a quantos têm a desgraça de estar a seu lado. Não converterá
a meu filho em homicida, acabando de lhe destroçar e lhe desonrar! Pensa que não
lhe tem feito já bastante mal? Acredita que não tenho já motivos de sobra para te
amaldiçoar?
— Pagarei com minha vida e ninguém terá que me amaldiçoar! Por isso vou
levar se ao Renato. Que dela disponha que aperte de uma vez esta garganta. Por
que não deixou você que me matasse?
— Porque não é você quem tem que julgar o castigo que merece sua falta, a
não ser eu que é a quem mais ofendeste. Eu, que te dei meu filho ditoso, feliz,
cheio de ilusões: eu, que acreditava, entregando-lhe a velar por sua felicidade,
enquanto você o banhavas de lama; eu, que agora te ordeno que cale. Que cales
como calarão todos!
— Não! — tenta protestar Aimée hipocritamente.
— Sim! Bem sei que a metade de suas palavras são falsas; sei que, apesar de
seu desplante, não tem que procurar a morte. Quem foi capaz de calar frente ao que
você calaste, tem que ser muito egoísta para deixar-se matar. Bom, ia a obrigar-te a
sair desta casa, a fazer que fugisse, que lhe afastasse sem que meu filho pudesse
verte nem te alcançar. Entrei disposta a proteger sua vida, não por ti, que não a
merece, mas sim por ele, que é o único que me importa já na terra. Mas agora não
vou deixar-te partir, agora ficará. Faz umas horas, se eu não tivesse entrado na
quarto de vocês, acaso teria pagado já sua dívida. Salvei-te uma vez e te salvarei
definitivamente; mas vais dizer o que eu te ordene, vais fazer o que eu te mande.
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Condeno-te a viver, condeno-te a calar, te condeno a expiar seu pecado, sendo para
meu filho não uma esposa, a não ser uma escrava.
Repentinamente, deixam-se ouvir na porta uns golpes violentos, e é a voz do
Renato a que chama:
— Mamãe, mamãe, me abra em seguida! Abra-me!
— Algo novo passou — assinala Sofia. — Mas não trema, prometi te
defender e eu sei cumprir minha palavra, Aimée.
— Mamãe!Não me ouve?— volta a chamar Renato, golpeando já
violentamente a porta fechada.
— Entra nesse quarto — aconselha Sofia ao Aimée. — Não saias, a menos
que seja eu quem te chame. Anda!
Sofia a viu obedecer, levando-se logo as mãos ao peito, aí onde o coração
pulsa sobressaltado. Ela também treme, também está pálida, mas tomou uma
resolução heroica, decidiu em um instante sua atitude e sua conduta futuras, e
enquanto vai franquear a porta, um pouco parecido a uma oração se eleva de sua
alma. Uma oração para o homem que a chama impaciente.
— O que ocorria? Temi ter que jogar a porta abaixo. Com olhar de franca
desconfiança, Renato D'Autremont percorreu a larga estadia que é o quarto de sua
mãe. Busca, com raivosa impaciência, o grácil figura do Aimée do Molnar,
escorrega o olhar sobre a porta fechada que dá ao quarto de dona Sofia, e a volta
para sua mãe, interrogadora e ardente:
— Onde está? Onde se escondeu? Por que não me abria?
— Porque se achava no outro quarto. Não tinha escutado que tocasse.
Pediu-te que te acalme. Está fora de si. É indigna a atitude que tomaste. Sei bem
que é um homem, dono e senhor de todos seus atos, mas como mãe tenho ainda
alguns direitos, e não acredito que me pretenda negar isso
— Não se trata disso. Onde está Aimée? Antes a liberou de minhas mãos,
mas agora não poderá. Agora terá que responder satisfatoriamente, ou sua traição
ficará provada. E se tiver a verdade na mão, se me traiu, se me enganou.
— Basta! Não tem nenhuma evidência, posto que até falas desse modo.
Verá-a quando você e eu tenhamos falado. Exijo-te que te acalme, Renato. O que é
o que te passa?
— Acharam o segundo cavalo perto da praia, na costa do segundo vale.
Morto de fadiga, suado, arranhado pelas sarças, quase arrebentado? Depois da
corrida desumana que foi obrigado a dar.
— Bom — aceita Sofia com falsa serenidade. — Se Juan do Diabo saiu
daqui levando-se dois cavalos, é lógico que sejam os que apareçam cedo ou tarde.
— Encontraram-no muito perto do lugar, em que alguém, a toda pressa,
tinha improvisado um pequeno mole de pranchas, para dar acesso certamente a um
bote. Isso quer dizer que Juan o tinha preparado tudo para uma fuga, para um
escapamento. Os melhores cavalos da casa escondidos na maleza, o barco há duas
horas daqui, o mole preparado para que ele pudesse levar comodamente uma dama.
Saída franco para uma fuga.
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ocultar isso mais. Ela, humilhada por sua atitude, não falará, e você deve sabê-lo no
ato. Renato, Aimée vai te dar um filho.
— O que? O que? Um filho!
Lentamente, Renato se sentou, jogou para trás a cabeça, fechando as
pálpebras, apertando os lábios, e sobre o tumulto de seu rancor, de seu ciúmes, de
seu ódio, de seu amor frustrado, vão caindo lentas e suaves as trêmulas palavras de
sua mãe:
— Seria terrível que pela violência de seu ciúmes cometesse uma
injustiça. Não te peço que o aceite tudo, não te digo que corra a estreitá-la em seus
braços, mas sim que modere sua caráter. Ela, como esposa, não te enganou. Bem
pode ser que seus pecados sejam veniais, e há algo que tem a obrigação de
considerar: Vai te dar um filho! Vai ser mãe!
CAPITULO 7
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cabo, o que tem feito Juan do Diabo mais que aquilo ao que seu matrimônio lhe dá
direito? Como pedir ajuda contra ele, sem denunciar a horrível circunstância que a
obrigou a entregar-se a todo risco? Como um tremor de febre, sacode-a o protesto
de seu corpo e de sua alma, mas para sem chegar a brotar.
— Atreveria-me a lhe rogar. Queria você escrever a minha mãe, doutor
Faber?
— Certamente. Não faltaria mais. O que devo lhe dizer?
— Que estou viva e que não sofra por mim, que não se trabalhe em excesso.
Minha mãe é Catalina do Molnar, Campo Real, Na Martinica. Não acredito poder
lhe escrever eu diretamente, mas suas letras a tranquilizaram. O agradecerei muito,
doutor.
— Não haverá razão. Trata-se de um serviço insignificante. Farei-o hoje
mesmo com o maior gosto. Que mais devo lhe dizer?
— Nada mais. E por favor, que fique entre nós.
— Certamente. E agora, minha filha, devo deixá-la. É a hora de minha visita
ao hospital. Se quiser que chame a seu marido.
— Não chame a ninguém. Sim alguém pergunta, diga que estou dormindo.
— Como você o deseje. Até a tarde. Com passo moderado, o doutor Faber
deixou a cabine do Lúcifer, cruzando devagar a escala. Junto à proa, sentados no
chão, cochichando em voz baixa, estão seus quatro tripulantes. Longe de todos,
sobre o cilindro de cordas da popa, cruzados os braços, o olhar longínquo perdido
no mar, Juan do Diabo. Um instante desvia o médico seus passos para acercar-se a
ele, que ao lhe ver se levanta com brusco movimento, perguntando:
— Já se vai doutor?
— Por umas horas nada mais. Acredito que posso fazê-lo sem risco. Sua
esposa melhorou notavelmente. Tanto, que se não sobrevir uma recaída, quase
poderia lhe dizer que já não tem perigo de morrer.
— Me alegro muito, doutor— Desmentindo o tom seco e cortante, os olhos
escuros do Juan se iluminaram. Há sentido como se seu peito se afrouxasse, como
se pudesse respirar melhor, mas rechaça aquele alívio que a ele mesmo surpreende,
e angustia: — Suponho que lhe terá feito depositário de seus queixa. Não lhe pediu
ajuda, amparo, auxílio? Claro que você me viu vai repetir isso. Você, naturalmente,
há-se sentido seu cavalheiro andante, seu amigo incondicional. Pelo que vá fazer se
é que vai fazer algo, inteirarei-me quando surgir o escândalo.
— Não diga coisas absurdas. Ninguém vai escandalizar. Ela não se queixou.
— Outra vez, os escuros olhos do Juan se iluminaram; outra vez, aquele resplendor
que não quer deixar brotar, aparece a suas pupilas, e o velho médico, ao adverti-lo,
arrisca uma espécie de pergunta: — Não sei se tem você algo que reprovar-se.
— Eu não me reprovo nunca nada, doutor Faber.
— Melhor então. Tinha chegado a temer, mas já vejo que me enganei, e me
agrada. Agrada-me extraordinariamente haver-me equivocado o primeiro dia. Não
leve a mal, mas me pareceu você uma espécie de pirata. Cheguei até a temer que a
que nomeavam sua esposa, fora só uma dama sequestrada por você e sua gente.
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Pégasus Lançamentos
Assim como faziam em outros séculos, verdade? A culpa é das muitas lendas que se
cobriram ao redor destas ilhas, tão belas como selvagens. Sua esposa é francesa,
verdade?
— Nasceu como eu, na Martinica; mas só faz seis meses que retornou da
França, aonde a levaram de menina.
— Já. De qualquer modo, sua esposa está tranquila no momento, e é quão
único necessita: uma absoluta tranquilidade, a segurança de que ninguém vai
contrariá-la nem a exercer violência sobre ela. Agora dorme, e, como lhe disse, seu
melhor receita é o descanso. Até a tarde, meu senhor.
Estendeu a mão fina e cuidada de cavalheiro, mas Juan finge não advertir o
gesto amistoso. Mordendo-se levemente os lábios, dissimula também o médico,
embora troquem seu tom e seu olhar, ao comentar:
— Sua esposa é uma dama, uma grande dama. Compreendi-o ao olhá-la.
Logo, atei cabos, e agora há um nome que me soa: Campo Real. É um lugar famoso
em todas as Antillas, unido ao sobrenome D'Autremont, o dos mais ricos e
importantes latifundiários da Martinica. Não faz muito, o jovem D'Autremont
casou com uma Molnar. Molnar é o sobrenome de sua esposa, não o seu. Perdoe-
me se for indiscreto. Você se chama. — me chamam Juan do Diablo!
O doutor Faber ficou imóvel, olhando frente a frente ao Juan, muito surpreso
para poder falar, mas o áspero e fechado rosto de seu interlocutor é bastante
eloquente em sua expressão dura gelada. Limita-se, pois, a inclinar a cabeça em um
ambíguo gesto de despedida, cruzando rapidamente a coberta rumo ao flanco de que
pende a escala.
— Segundo, te prepare a ir a terra. Pode ir você sozinho ao remo. No bote
grande, que vão Francisco e Julián.
— Aonde, patrão?
— A trazer duas pipas de água. O Enguia que fique de guarda na proa. Eles,
água; e você, as provisões necessárias para zarpar logo que tenham retornado. Mas
não diga uma palavra a ninguém. Dá as ordens precisas, e basta. Aqui tem o
dinheiro, te esteja atento e sai quanto antes ao que te mandei. Aguarda! Compra
também frutas, uma cesta grande. Quão melhores encontre. E, além disso, alguma
roupa de mulher.
— Roupa de mulher?
— Não sabe comprá-la? Vestidos, blusas, saias. Alguma vez comprou roupa
de mulher? Traz também um xale de seda. Pelas noites está refrescando. E uma
manta para a cama. Ah! E compra um espelho grande. Date pressa!
— Voando, patrão.
Segundo correu para obedecer às ordens do Juan. Um instante, o patrão do
Lúcifer contempla o panorama da cidade, frente à que seu navio está ancorado.
Aspira com fruição o ar carregado de salitre, enchendo-se com ele o peito, como se
reunisse as forças necessárias para uma determinação definitiva, e logo, passo a
passo, dirige-se para a cabine.
— Já está acordada ?
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Mônica não responde, porque não vão a seus lábios as palavra. Agora sua
mente está maravilhosamente clara, diáfana. Como se tivessem arrancado de seus
olhos os véus de névoa que lhe ocultavam a realidade, contempla sua triste situação
cara a cara. Aquele homem é seu dono, é o marido que há aceitado de que em vão
pretendeu fugir. Até lhe inspira terror pensar que certamente pertenceu-lhe, até arde
em suas bochechas à labareda do rubor, considerando que aquele rude marinheiro, a
quem só pode olhar como a um estranho, tem o segredo de sua intimidade.
— Suponho que não perdeste o tempo, e que há encontrado no doutor Faber
um mensageiro serviçal.
— Não compreendo o que quer me dizer.
— Compreende muito. Até eu compreendo. O doutor Faber é de sua classe,
de sua casta. Bastou-lhe escutar o sobrenome Molnar, para associá-lo a
D'Autremont. Não é alheio à fama de Campo Real e, naturalmente, surpreende-se,
fica pasmado, não acerta a explicar-se por que razão estamos casados. Temperando
que o precipitado da viagem me tenha impedido de trazer certificados e papéis,
esses importantes papéis sem os que não pode viver a gente de certa classe. Tivesse-
me gostado de lhe ver abrir a boca de assombro quando lesse: "Eu, Pai Vivier, cura
pároco de Campo Real, declaro ter unido em legítimo matrimonio a Mônica do
Molnar com o Juan, sem sobrenome, conhecido pelo Juan do Diabo”. Terei que ver
sua cara de espanto. Só por isso, sinto não ter trazido os papéis; mas podemos
mandá-los procurar. Pensa que Renato será o bastante amável para mandá-los?
— Não penso nada, e aproximou-se de mim só para me atormentar.
— Justamente o contrário. Antes lhe quis dizer isso, mas o pediste ao
médico que ficasse em meu lugar, suponho que para lhe pedir amparo e ajuda. Por
isso tomei minhas precauções. Eu não sou dos que se deixam apanhar, nem dos que
servem de brinquedo ao capricho das mulheres. Espiou o rosto da Mônica, ficou
aguardando seu protesto, suas súplicas, acaso suas lágrimas, mas nada trocou no
pálido rosto da doente. Nenhuma frase, nem um gesto, nenhuma palavra. E
recorda: — Os navios se fizeram para navegar, não para estar ancorados.
— Opino igual: os navios se fizeram para navegar.
— E nós vivemos em um navio Juan tornou a ficar silencioso, olhando-a,
aguardando suas palavras, e a tranquila mansidão da Mônica pareceu lhe inquietar:
— Não lhe eleva seguir viagem?
— Mudariam em algo seus projetos que me importasse? Mônica entreabriu
as pálpebras. Parece ausente e triste. Sem poder conter-se, Juan chega até o bordo
do leito, e se detém a vê-la tremer.
— Não tenha medo, que não vou fazer-te nada.
— Não tenho medo. Quão único poderia me fazer, é me matar, e isso não me
importa. O roguei tantas vezes em vão!
— Tomaste-me, como seu doutor Faber, por um pirata, por um assassino
profissional? Mas, o que te passa? Por que está chorando? — Viu rodar uma lágrima
pela pálida bochecha da Mônica; uma lágrima que escapa furiosa das pálpebras
entreabertas. — Não chore. Faz-te mal. Não tem por que chorar nem por que te
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assustar — Não vai passar nada, absolutamente nada. Não basta que eu lhe digo
isso? Se necessitar outro médico mais adiante, terá-o.
— O doutor Faber era meu amigo — aponta Mônica sem poder se conter. —
Agora não tenho a ninguém.
— Amigos não lhe faltam no Lúcifer. Quanto a mim.
— Não me toque Juan!
— Naturalmente que não a toco. Não se preocupe, não tenho nenhum
interesse em tocá-la. Fique em paz.
Profundamente sentido pela atitude da Mônica, Juan abandonou a cabine,
subindo a coberta onde quase se tropeça com seu Segundo que parece seriamente
agitado, e volta com frequência à cabeça para olhar para a costa próxima, por cima
da amurada. Intrigado, Juan pergunta:
— O que tem? O que te passa?
— Por fim! Aí estão já os moços com as pipas de água. Também comprei um
barril de bolacha e um pouco de carne salgada. Seus outros encargos estão aí: as
frutas, a roupa e o espelho. Acabava de pô-los no bote, saltei outra vez para procurar
aguardente e tabaco, quando.
— Quer acabar de me dizer o que acontece? — impacienta-se Juan.
— O doutor, patrão. O doutor, com o chefe da guarda do porto, em um carro,
por aquele lado. Vi-o muito bem. Falava como acalorado e duas vezes assinalou
com a mão ao Lúcifer. Não compreende? Dizia-lhe algo de nós.Você sabe que
ancoramos sem permissão, sem haver mau tempo nem tempestade.
— Trazíamos um doente a bordo.
— Uma doente, patrão, uma doente que. Bom, você é quem sabe. Mas para
mim o médico nos estava denunciando. Algo terá que denunciar. Você saberá se
tem algo que denunciar. Mas me deixo cortar a cabeça sim antes de uma hora não
temos aqui a visita do capitão do porto com seus guardas.
— Antes de uma hora, estaremos fora do canal.
— Por isso mandei subir os botes e correr aos moços. Eu poderei lhe fazer
cara a você como homem, patrão, mas à hora que os do outro lado queiram nos
fechar o passo, sou o Segundo do Lúcifer, e nada mais.
— Não temos por que fugir de ninguém. Zarparemos porque chegou a hora
de zarpar e há bom vento. Que a gente se prepare. Agarra o leme você mesmo, e
ponha proa ao norte até que eu te dê ordem do contrário.
Uma brusca sacudida estremece ao Lúcifer, virando no canal. Dois violentos
inclinações bruscas indicam que o vento sopra já sobre as velas grandes, e rangem a
seu impulso os cabos e as gavetas.
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— Não, não, esse homem não pisou jamais em minha casa! Juro-o! A
verdade é que eu nada sábia. Temia, suspeitava. Aimeé era só uma menina
caprichosa, amalucada. Sua culpa.
Catalina calou desesperada, como detida entre os dois abismos a que podem
lhe levar suas palavras, e ferozmente Sofia D'Autremont se impõe:
— Quero pensar que não houve em Aimée verdadeira culpa, quero acreditar
que se tratou de uma loucura sem importância, de um estúpido e caprichoso
devaneio. Acredito e julgo que toda a culpa é desse canalha, desse pirata.
— Não quero desgostá-la, mas não é essa minha opinião, dona Sofia —
intervém Noel, que esteve observando a cena guardando um discreto mutismo —
Juan estava transfigurado de felicidade pelo amor da que julgava lhe era fiel.
— Não interessam aqui os sentimentos desse bastardo a quem não acredito
capaz de amar como você pretende. Noel — despreza Sofia com ódio e rancor na
voz. — Tenho que pensar que ele, e só ele, foi culpado, ou não poderia perdoar a
esposa de meu filho. Forço-me à indulgência para a que é já uma D'Autremont,
porque leva o nome de minha casa e porque será mãe de um D'Autremont. Defendo
meus, aos que levam meu sangue, e, por esse sangue e esse nome, hei defendido a
Aimeé contra meu próprio filho. Salvei-a de uma morte certa, porque eu sei que
meu filho Renato é capaz de matar, e sei também que teria tido toda a razão e todo o
direito!
— Mas é que eu. — pretendeu protestar timidamente a angustiada Catalina.
— Você calou quando devia ter falado. Agora quer falar, quando é
necessário que cale. Não pude impedir o primeiro engano, mas não permitirei que se
produza o segundo.
— Obriga-me então a abandonar a Mônica? Renato tem influencia,
amizades. Ele pode fazer que detenham esse navio. .
— Faremos o possível, mas sem que intervenha Renato. Que meu filho não
saiba que não suspeite, que nenhum de vocês dois diga uma só palavra que possa
dar motivo a que renasçam suas suspeitas. Entendeu, Noel?
Noel inclinou a cabeça Sem responder. Catalina junta às mãos, olhando-a
com ânsia, e é Sofia quem dispõe decidida e rápida:
— Você volte para o Saint-Pierre, Catalina, e me aguarde em sua casa.
Dentro de umas horas estarei nela. Iremos juntas ver o Governador, solicitaremos
toda a ajuda das autoridades, faremos quanto seja preciso, mas que nenhuma só gota
desta lama alcance a meu filho. Você acompanhe-a, Noel, e não duvide minhas
palavras. O único culpado de tudo isto é Juan do Diabo, e nada importará se for
necessário fazê-lo enforcar!
— Boa marcha levamos patrão. Quinze nós desde que saímos da Maria
Galante. Se virássemos a estibordo amanheceríamos em Monserralhe, poderíamos
nos deter comprar o que nos faz falta.
— Não vire para nenhuma parte. Disse proa ao norte. Passaram dois dias.
Com as velas cheias, inclinado para estibordo tensos pela força da rápida marcha os
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custou muito cara: quem deixa uma mulher no porto corre o perigo de não encontrá-
la, ou de encontrá-la junto a outro.
— OH, basta, basta de brincadeiras e de sarcasmos! Até onde vai levar esta
horrível farsa? Não se vingou o suficiente já? Não cobrou de mim o mal que pôde
lhe fazer minha irmã? Não está já satisfeito?
— Satisfeito, do que? Isto não é uma farsa. Tenho entendido que nos
casaram de verdade, eu e você.
Mônica levantou-se violentamente, sentindo que suas bochechas ardem. Não
poderia suportar nenhuma palavra mais, não poderia sofrer a alusão que lhe espanta
nos lábios de Juan. Enlouquecida se pôs de pé, quis andar, fugir, mas seus joelhos
se dobram. Impedindo-a de cair, Juan sustento-a nos braços. Um instante treme em
suas mãos o corpo frágil, quase enfraquecido. Elevou-a como a uma criatura semi
desmaiada tornou a pô-la meigamente sobre a liteira, e fica contemplando o pálido
rosto por onde outra vez correm as lágrimas.
— Ia deixar-te na Maria Galante, ia entregar-te ao doutor Faber para que
devolvesse a sua casa, aos teus. Isso foi o que quis te dizer, para isso lhe pedi ao
doutor que nos deixasse falar a sós, mas não quis me escutar. Preferiu falar com ele,
te congraçar para que me delatasse; preferiu caluniar-me, me trair, te burlar outra
vez de meus sentimentos, de meus estúpidos sentimentos. .
— Não, Juan, não. — protestou Mônica confusa.
— Sim! Quis que me acossassem como a uma fera, abusar de que sou Juan
sem nome, te apoiando nos de sua casta, nos de sua classe. Quis me vencer, e não
me vencerá com essas armas! Juro-lhe isso! Não voltarei a ter piedade!
— Juan! Eu não disse ao doutor Faber que lhe delatasse. Só lhe pedi que
escrevesse a minha mãe, que lhe dissesse que estou viva. Juro-o! Juro-o! Só quis
tranquilizá-la, acalmar sua horrível angustia. É que não compreende Juan?
Juan se inclinou mais, sujeitando-a pelos braços, e outra vez as mãos largas a
oprimem, embora não com impulso brutal. Pelo contrário, há naquela força contida,
como uma espécie de doçura cálida e selvagem, algo que estranhamente acalma a
horrível angustia da Mônica, algo que apaga a amargura em seus lábios, e um vivo
desejo de justiça sacode para o sincero protesto:
— Eu não pedi isso ao doutor Faber. O juro, Juan! Não minto, não menti
jamais, a não ser na horrível circunstância que você conhece. E não mentia por
mim. Por mim não vale a pena mentir. Juro-lhe que não pedi ajuda ao doutor Faber.
Você acredita? Acredita-me?
— Suponho que devo acreditá-la — aceita Juan dando-se por vencido.
Meigamente tornou a deixá-la sobre os travesseiros, e fica de pé separando uns
passos do beliche. — Mas neste caso, uma vez mais pagou você pelas culpas
alheias.
Afastou-se com o passo silencioso e elástico de seus pés descalços, e Mônica
o olha através de suas lágrimas, quebrado de novo o dique de seu pranto, mas
quebrado também o nó horrível de seu terror, sentindo que respira, considerando,
pela primeira vez, que o homem que se afasta não é uma fera, não é um bárbaro,
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Pégasus Lançamentos
não é um selvagem. Que acaso pulse um coração humano sob o duro peito do Juan
do Diabo.
Muito devagar, tornou a incorporar-se, ensaiou dar uns passos agarrando-se
às paredes, aos móveis. Há chegado até a pequena janela redonda, quando um
violento tombo da nave a faz vacilar, quase cair. E o negro menino que se deslizou
sigilosamente ao interior da cabine, acode solícito em seu auxílio, com um
angustiado:
— Ama. Ama. — Colibri, o que passou?
— Nada, minha ama, que o amo agarrou o leme e mudou de rumo para
estibordo. O amo está contente; deu de presente a Segundo o tabaco que ficava, e
Segundo disse que íamos para a ilha de Saiba. É uma ilha pequena, mas os
marinheiros estão muito contentes, porque ali vamos comprar queijo, tabaco e
carne. É muito bonito ver a terra depois de tanto olhar o mar, verdade, minha ama?
— Eu nem sequer tinha visto o mar.
Pela redonda janela, Mônica fica olhando o mar e aspira com ânsia aquele ar
impregnado de salitre e de iodo, sentindo que corre mais de pressa por suas veias o
sangue, que volta a vida, essa vida que foi para ela tão dura, tão cruel, tão amarga,
mas a que se aterra sua juventude com uma estranha força, depois de haver-se
sentido agonizar, e profetiza:
— Acredito que eu gostarei de ver a ilha de Saiba.
CAPITULO 8
Fechando a suave curva elástica que formam as Antilhas Menores, das ilhas
Virgens até as costas venezuelana, broche de ouro e esmeralda no magnífico colar
das ilhas de Sotavento, eleva-se Saiba verde como que emerge das águas azuis do
Caribe com sua redonda costa de rocha viva, com a apertado matagal de seu bosque
florescido de ata, hibiscos e poincianas, perfumada do aroma penetrante da noz
moscada, cujas árvores crescem nas estreitas gretas que são como pequenos vales
alargados. E acima, no alto, perto do que fora em outro tempo a cratera de um
vulcão, a pequena cidade holandesa do Botton, com suas poucas ruas em escada, de
limpíssimas casa do mais puro estilo flamenco, seus pequenos jardins bem
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Pégasus Lançamentos
cuidados, suas calçadas de azulejos brilhantes e suas gente plácidas e lentas, que
parecem viver ao passo rítmico de um clima sempre igual, no êxtase de seu
maravilhosa paisagem.
— Fica muito bem esse traje, minha ama.
— Colibri, por que entra sem chamar? — repreende Mônica, levemente
sobressaltada.
— Perdoe minha ama, mas vi pela fresta que já estava vestida. Fica muito
bem esse traje.
Mônica fez um esforço para conter o sorriso inevitável que as ingênuas
palavras de Colibri levaram a seus lábios. Frente a aquele espelho que sem uma
palavra pendurou Juan na única cabine do Lúcifer, acaba de olhar-se embelezada
com o vestido que trouxesse Segundo da Marra Galante, e sente a impressão de
estar quase nua. O fino pescoço emagrecido emerge do encaixe que borda o decote,
as mangas chegam apenas na metade do braço. Em troca, a saia é larga, mas
rodeada na cintura, mostrando o fino talhe flexível. Penteou em duas suas tranças
dourados cabelos que caem sobre as costas, nimbo loiro de sua beleza agora mais
frágil, mais delicada que nunca. .
Com movimento de pudor instintivo, amassa-se no cai de seda vermelha e a
viva cor dá vida nova a suas pálidas bochechas. Entretanto, retrocede vacilante, com
um protesto:
— Não posso sair assim. Necessito minha roupa, meu traje negro. Onde
está? Quando me tiraram isso?
— Não sei minha ama. Mas saia, saia que já estamos chegando. Olha a
montanha! Saia, minha ama, saia.
Mônica se aproximou do redondo guichê. Em efeito, estão muito perto já de
terra. Ali, como ao alcance da mão, está à praia loira, com o verde cinturão de
palmeiras sombreando suas areias douradas, e um sol quente banha toda a
paisagem. É o sol de outro mundo, de outra vida. Como eletrizada, vai Mônica para
a porta do camarote, que se abre de par em par para lhe deixar passo.
— Já estamos em Saiba, patroa! Não quer você baixar? Não é a galharda
figura do Juan do Diabo a que está frente a ela. Um instante se estremeceu pensando
que era ele quem se aproximava, mas o homem que se apressou a franquear a porta
é ele segundo do Lúcifer mais baixo, menos robusto, menos arrogante, tem os olhos
claros, os cabelos castanhos, e há em seu rosto juvenil, hoje raspado, um gesto de
uma vez solícito e curioso. Seu peito é largo, suas mãos calosas, mas seus pés não
estão descalços nem viu a áspera camiseta blusa de marinheiro de todos os dias, a
não ser as frescas roupas claras, típicas dos habitantes da Martinica e Guadalupe.
Porte e traje fazem perfeito jogo com os da muito lindo moça que um instante ficá-
la na porta da cabine, como deslumbrada, e que balbucia:
— Baixar? Eu?
— Há um bote preparado para jogá-lo à água. Sente-se melhor, verdade?
Colibri disse que já estava curada e não sabe quanto nos alegramos todos.
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Pégasus Lançamentos
Estendeu a mão assinalando aos outros três tripulantes do Lúcifer, que agora
parecem totalmente esquecidos de seu trabalho, imóveis junto à amurada, fixos nela
as olhos, tensos pela emoção invencível que aquela presencia feminina traz para
suas mentes arrudas e cândidas. Com pudor instintivo, Mônica se tem envolvida
mais no xale vermelho.
— O amo disse que todos podíamos baixar. Não vai baixar você também,
patroa? — insiste Segundo.
— Não vai baixar contigo. Acaba de cumprir meus encargos e retorna com
eles no término da distância se não querer passá-lo mau. Todos aqui de volta dentro
de uma hora! Acabem de largar-se!
Ainda acesos de ira tornaram para Mônica os olhos de Juan, e trocam de
expressão para encher-se de surpresa. Mônica é quase outra mulher: uma doce e
delicada mulher, inferno que treme a seu pesar, que se estremece de rubor e de
angústia tão somente ao sentir perto ao Juan do Diabo, feridas suas pupilas pelo sol
brilhante que em tantos dias não contemplasse, enjoada pelo golpe da brisa do mar
que chega despenteando-a. E Juan troca de voz, de expressão e de tom depois dos
largos minutos que leva olhando-a, para assegurar:
— Eu impedirei que esses idiotas lhe incomodem mais da conta.
— Esse jovem não estava me incomodando. Aproximou-se amável e
respeitoso, e não havia nenhuma razão para tratá-lo mau.
— Opina então que devo lhe apresentar minhas desculpas? — declara Juan
em tom zombador.
— Não opino nada. Suponho que neste navio todos, e eu a primeira, estamos
submetidos a seu capricho e a sua vontade.
— A minha vontade, que estranha vez se move por caprichos. Não quero que
na larga fila de suas queixas do Juan do Diabo inclua a de te haver obrigado a
familiarizar com os marinheiros de meu navio. Além disso, oficialmente é minha
esposa. Casamo-nos, verdade? Não acredito que te ocorra duvidá-lo, como ao
doutor Faber. Não acredito que queira negá-lo. Muito Segundo atrevido em te falar
da forma em que o fez, em ficar atrás da porta esperando que aparecesse. Mas se
todo isso te agradou, não há mais que falar. Pelo resto, sua ideia não foi má. Quer
baixar a terra?
— Agora? Mas eles já se foram.
— Há outro bote e outros braços que remam melhor que os de Segundo.
Colibri ficará cuidando o navio, e eu te levarei até terra. .
Sentada no pequeno bote, amassada em seu xale de seda vermelha, sentindo
que de pés a cabeça o banho aquele sol espesso como mel dourado, Mônica olha
aproximar-se, a cada golpe de remo, a costa de Saiba. Incluso no compreende por
que se deixou levar, suave e mansa, agradecida quase, naquele bote que tão leve
parece para os robustos braços do Juan. Este soltou um instante o remo para dizer
adeus com a mão ao menino escuro que ficou no veleiro, e Mônica volta também à
cabeça para olhá-lo, correspondendo a seus gestos de despedida. Logo, seus olhos,
até temerosos, voltam-se para o Juan:
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Pégasus Lançamentos
amargo, cruel, selvagem, atormentado, com que chocasse Mônica no vale dos
D'Autremont. Não tem o olhar insolente nem o sorriso procaz com que se
aproximasse das janelas da velha casa do Saint-Pierre. E Mônica o olha
perguntando-se por que mudou tanto, até que ele fala como respondendo a seu
pensamento:
— Que estranho corre às vezes o tempo, verdade? Parece que fazia cem anos
que deixamos a Martinica, e são apenas quatro semanas. Quer que cheguemos até a
cidade? Já não falta muito; um só lance. Isso sim, costa acima. Mas pesos o
bastante pouco para que eu possa te levar nos braços.
— Não, Por Deus! Como vai incomodar-se?
— Aqui não se conhecem os carros, nem sequer os cavalos. Mulos ou burros
é o mais que pode encontrar-se. As mulheres dos colonizadores holandeses estavam
acostumados a fazer-se levar em beliches ou nos braços de um escravo.
— Não é possível! Usavam como besta a um ser humano?
— Eram gente distinguidas — assinala Juan em tom zombador. — Aqui se
trouxeram muitos escravos da África, e também do Europa. Recentemente mais de
cem anos ainda se vendiam nestas ilhas as cadeias, de presidiários. Lhes recolhia em
grandes cidades da Inglaterra, França, Holanda. Eram ladrões, piratas, ladrões,
vagabundos sem ofício, ou pobres diabos sem nome nem fortuna. No mole se
leiloavam, vendiam-se por um ano, por cinco, por dez, e neste clima morriam ou
trocavam. Gracioso, verdade?
— Não, não tem graça. É muito cruel.
— Sobre que coisas tem feito o homem seu mundo, a não ser sobre
crueldades? Os alicerces dos castelos e dos palácios se endurecem com lágrimas,
com sangue, com o suor da agonia de milhares de infelizes que arrebentaram de
fadiga. Graças a essas coisas somos civilizados. Se o mundo fora bom, não seria
mundo. Santa Mônica, séria o paraíso terrestre.
— Santa Mônica. — murmura esta lentamente. — Fazia tempo que não me
chamava desse modo.
— Sim — concorda Juan em tom jovial. — Segundo nosso novo calendário,
uns cem anos. Você, em troca, não tornaste a me chamar Juan de Deus.
— Nunca como agora poderia chamar-lhe e se aquela ideia que teve de me
deixar na Maria Galante foi verdade.
— Sim, foi verdade — declara Juan com gesto sombrio. — Mas alguém se
encarregou de frustrá-la e, como disse , está condenada a pagar pelas culpas alheias.
— Quer dizer que desprezou você esse bom pensamento de uma maneira
absoluta, total? — angustia-se Mônica.
Juan esquivou o olhar ansioso, sacudiu a cabeça como espantando o negro
pensamento que repentinamente tornou a invadi-lo. Logo, com rápida determinação,
eleva a Mônica em braços, fazendo-a protestar assustada:
— OH, Por Deus! O que faz?
— Levá-la à cidade. Não falta mais que um lance. Com a incrível agilidade
de um tigre que salta monte acima entre as pedras, pôs-se a andar quase correndo.
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Pégasus Lançamentos
Nada parece pesar Mônica em seus fortes braços, mas ela se agarra com angústia de
seu pescoço. Outra vez sente que não é proprietária de nada, nem de sua própria
vida, e entorna as pálpebras, entregando-se. Como poderia lutar contra essa força
cega? Seria tão inútil, tão insensato, como opor-se à força de um torrente, como
querer sujeitar com as mãos o bufo de um ciclone. Pertence-lhe, é daquele homem,
e ele a leva nos braços monte acima, igual a, se quisesse, poderia arrojá-la ao fundo
de uma daquelas sarjetas que se abrem como abismos aos flancos do estreito
caminho, igual a tivesse podido atirá-la ao mar ou deixá-la morrer na cabine do
Lúcifer. Vive da misericórdia daquele bárbaro que jurou não ter misericórdia, não
sentir mais piedade. Que protetor e quente é o fôlego que a envolve que estranha e
ardente doçura destila gota a gota sobre sua alma, sem que ela se atreva a saboreá-
lo! Entretanto, lá encima, ele se detém para depositá-la de pé no chão com absoluta
suavidade.
— Aí a tem: Botton. A cidade mais importante de Saiba. Há um pouco
parecido a um hotel nesta rua. Podemos comer algo distinto e dar logo uma volta
pelas lojas. Esse traje fica muito bem. Precisa comprar alguns mais.
— OH, não, não, de maneira nenhuma! Está louco? Não necessito nada, não
quero nada, e se você tivesse piedade, deixaria-me em liberdade de voltar. Me
confie às autoridades em qualquer parte. Deixe retornar a meu convento, Juan!
— Seu convento? O que pode haver nele que tanto te agrade?
— Há paz, Juan, há silêncio, solidão e paz.
— Também há paz no sepulcro! E por que morrer se inclusive nem viveste?
É que não te dá conta de que tudo em ti é absurdo? Veem para cá, te olha.
Tornou a levá-la, como se a arrastasse, até o bocal de pedra de uma fonte
próxima. É um quadrado e pequeno tanque, sobre o que gota a gota se vai
derramando um manancial, e nele, como em um espelho, as duas imagens se
retratam: fera e robusta a do Juan; frágil, trêmula e deliciosa a de Mônica do
Molnar.
— Te olha, Mônica, te olha bem. Te olha cara a cara, sem toucas, sem
hábitos, sem trapos negros que lhe cubram até não deixar aparecer de ti nem o corpo
nem a alma. Te tire esse xale!
Ele mesmo o arrancou, obrigando-a a inclinar-se sobre a água, cuja tersa
superfície devolve sua imagem. Ali vê Mônica seus lábios entreabertos, seus olhos
brilhantes; seus loiros cabelos levemente despenteados, sobre o fundo impoluto do
céu azul. Vê seu pescoço nu, seu peito, seus braços, suas mãos frágeis e brancas
como dois lírios, que se unem trêmulas para ficar depois imóveis, enquanto os olhos
extasiados se olham, vendo-se distintos.
— Quantos anos faz que não olhava a um espelho?
— Não. Não sei. — duvida Mônica turvada. — Em realidade, olhei-me
muito recentemente, no navio. Vi-me com este traje absurdo, impróprio de mim.
— Com este traje de mulher do povo, de mulher simples, saudável, que vive
que ama que sabe olhar ao sol e sentir seu beijo na carne. Te olha, não é formosa?
Não é bela? Não é tão linda como sua irmã? Entende que não é uma ofensa
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Pégasus Lançamentos
reconhecer que é formosa, apetecível e desejável para qualquer homem cabal. Não é
uma ofensa; ao contrário.
— OH, cale! Me deixe Juan!
— Não vou deixar-te; mas não tenha medo, porque de ti não quero nada,
mas sim ache a ti mesma. Por que quer morrer? Que razão há? Pensa que não pode
viver sem o Renato? Eu não acredito. Não acredito que possa amá-lo tanto. Sempre
viveu sem ele, nunca foi teu jamais esteve em seus braços.
— Tinha uma esperança. — confessa Mônica debatendo-se entre o pudor e a
angústia.
— O que pouca coisa é uma esperança! Sua paixão não existe, é falsa. Só se
ama com loucura, com desespero, com ânsia, o que já tivemos o que já foi nosso, o
que nos tiraram das mãos. Isso se doer, isso sim sentimos que ao arrancar-se,
arrancam-nos a alma. Uma esperança! Uma esperança, um sonho! Falso, Mônica,
falso. Não é mais que uma atadura que te cobre os olhos, que lhe sufoca os
sentidos. Ao principio te odiei, acreditei que de verdade foi isso: uma imagem de
seda, algo bom para adornar os altares, fria, sem coração, sem alma, sem sangue.
Acreditava-te uma espécie da Santa. Não era brincadeira meu apelido. Santa
Mônica. Agora vejo que debaixo de seus hábitos e, debaixo de suas roupas negras e
de seus sentimentos falsos, há um coração que é capaz de sofrer e de amar.
Ficaram imóveis ao bordo da fonte. Mônica entrecerra as pálpebras. Logo
que vê a escura silhueta das duas imagens, e move com gesto doloroso a loira
cabeça:
— Por que me atormenta com essas coisas, Juan? Para que?
— Para te curar. Antes que seu corpo adoecesse, estava já doente sua alma.
Doente de ideias velhas, de prejuízos estúpidos. Não foi a não ser uma múmia
envolta em faixas, e eu quero que vivas, que olha ao sol uma vez cara a cara, e se
depois de haver sentido como mulher de verdade, segue pensando que o mundo
inteiro se chama Renato, acreditarei que tem razão e que mais te vale morrer ou te
matar.
Os grandes olhos claros da Mônica se elevam até ele em algo que parece
uma súplica, uma súplica branda e dolorosa de menina doente e desgraçada:
— Juan! Juan!
— Por que não lhe esquece? — rebela-se Juan. — O que fez para que lhe
amasse assim?
— Nada. O que faz em realidade ninguém para que lhe amem? Juan fechou
os punhos, evocando. O que fez Aimée para que ele a amasse com aquela paixão
violenta e furiosa? O que fez para acender sua carne e sua alma, lhe levando até o
bordo daquela espécie de loucura se desesperada? Recorda seu perfume, o calor de
sua carne e o nó morno, brando e suave daqueles braços, aceso de seu pescoço
como uma nogueira que escravizasse sua vontade. Recorda sua boca úmida e
sensual, doce e amarga, e, apesar dele, estremece-se, mas aparta a imagem como de
um tapa, e reagindo, convida:
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ordena algo, não perguntamos por que nem para que. Pensamos: "Saberá". E ele
sempre sabe. Só quando a trouxe para você. Bom. Me perdoe, sempre tive o
defeito de falar de mais.
— Queria que me falasse francamente.
— Pois, francamente, acredito que coloquei a pata. A senhora saberá me
perdoar, como o patrão me perdoou. Mas como nunca tinha passado no Lúcifer
uma coisa parecida. Claro que até agora, tampouco o patrão se casou, nem tinha
deixado que subisse nenhuma mulher ao Lúcifer. O patrão estava desesperado
porque você se adoeceu na viagem de noivos. Estava fora de mim, e como eu
cometi a estupidez de incomodá-lo. Mas agora você está bem, e todos nos sentimos
muito contentes.
Sorriu com seu sorriso franco. Há algo ingênuo e cândido que aparece nesse
sorriso e, repentinamente, Mônica se sente consolada, segura, tranquila, e busca o
apoio de seu braço.
— Quer que lhe mostre o povo, patroa?
— Não estou um pouco cansada. Por que não vamos diretamente a esse
lugar em que nos aguarda Juan? O botequim. Está muito longe?
— Lá abaixo. E não é propriamente um botequim. É como uma hospedaria,
muito bonita e muito limpa. Fica lá, entre as últimas árvores.
— Vamos procurar ao Juan.
— Quer que a leve em braços? Temos que caminhar um pouco mais que os
outros para chegar à praia. Te lembre que foi lá onde deixamos nosso bote.
— Não. Não. Sinto-me bem. Não faz falta. .
— Pois então, em marcha.
Devagar, apoiando a branca mão no ombro do Juan, deixando-se levar por
atalho abaixo, pelo estreito caminho pedregoso, descende Mônica da cúpula de
Saiba enquanto cai à tarde. Bebeu uma taça de vinho generoso e há um novo calor
correndo por seu sangue, uma nova luz assomando-se a seus olhos claros. É uma
estranha e profunda sensação que quase se parece com a alegria, uma sensação não
sentida pela a muitos anos, acaso não sentida jamais. Sim, aquele veio quente,
aromado de canela e prego, tem o poder secreto de uma bebida mágica. Já não sente
o rubor de seus braços de nós, nem de sua saia de coloreis, nem de seus loiros
cabelos soltos sobre as costas. É como se flutuasse e até o chão que pisa tivesse uma
brandura especial.
— Que linda é esta ilha! Os que vivem aqui parecem felizes. Parece como se
aqui não houvessem ódios nem ambições.
— Claro que os haverá. Aonde irá o homem que não leve seus maus?
— Pensa você que os homens são maus?
— Sim. E as mulheres não ficam atrás. Uns são maus porque sofrem, porque
são desgraçados. Outros, porque são egoístas e não querem sofrer por nada nem por
ninguém. Outros, porque gostam do mal, porque se gozam no dano e vão semeando
a amargura por onde passam.
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CAPITULO 9
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— Sofia com quanto prazer volto a vê-la, e em que momento tão oportuno
chega.
Sua Excelência, o Governador Geral da Martinica, foi ao encontro da
senhora D'Autremont e se inclina cerimoniosamente para beijar a mão que ela
estende. É uma das amplas salas da casa de Governo do Saint-Pierre, e pelos
balcões que dominam parte da cidade, e do porto, veem-se o mar e o céu. Depois de
responder com sorriso forçado ao personagem, Sofia olha inquieta a porta que
comunica com a sala de espera, e o cavalheiro que a observa parece adivinhar seu
pensamento:
— Vem alguém com você?
— Catalina do Molnar. Mas quisesse antes, se for possível, falar eu a sós
com você.
— Como gosto. Mas repito que as casualidades se encadernam. Dispunha-
me a enviar um correio especial a Campo Real encomendando a você uma carta
para a senhora Molnar, de um doutor Faber, a quem acredito recordar ter conhecido
na Guadalupe. Mas tome assento e me diga primeiro a causa de seu visita.
Acredito que levava você vinte anos sem vir ao Saint-Pierre.
— Alguns menos. Vim para ver embarcar a meu Renato para a França.
— Em efeito. Foi nos dias em que chegava eu ao Saint-Pierre a me fazer
carrego do posto que justamente deixasse um parente dos Molnar. O me
recomendou em forma muito especial a sua prima política e até agora não tive
oportunidade de fazer nada por ela.
— Agora a terá, Governador. Não venho por mim, mas sim por essa mãe
afligida. Mas é tão pessoal, tão delicadamente reservado o assunto que a atormenta.
— É referente à sua filha Mônica? Desgraçadamente, até mim chegaram
rumores que tomei por falatórios, como é natural, e não tivesse acreditado neles sem
a muito interessante carta do doutor Faber.
— Como? É a propósito de.
— O doutor Faber escreve a sua mãe, em nome da Mônica. A moça está
gravemente doente. Segundo o médico me conta, tratava-se de uma febre maligna.
— OH, não, não! — se indigna Sofia. — Quem sabe o que haverá feito com
ela esse selvagem, esse pirata.
— O doutor Faber fala bem dele. E me perdoe Sofia, mas me asseguraram
que as bodas foi em Campo Real precisamente, e que o filho de você foi padrinho
dessas bodas desigual.
— É certo. Meu filho o fez por sua esposa. O que outra coisa podia fazer?
Mas nunca pensamos que esse homem procedesse da maneira que o tem feito.
Catalina do Molnar está desesperada. Em nome de nossa antiga amizade, é preciso
que eu lhe rogue que se façam as coisas de maneira que não se prejudique o nome
de meu filho, que não seja gasto e levado a causa, do parentesco. O peço. Quero
salvar do escândalo a meu filho, e também ao Aimée. Ela é já uma D'Autremont.
Você compreende? Não quero que, por nenhum motivo, por nenhuma razão, os
comentários mal-intencionados possam mesclá-la em nada disto. Catalina do
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Molnar vai pedir lhe que você faça deter o veleiro do Juan do Diabo. “Sabe Deus
aonde chegará a sua pena e em seu desespero de mãe ''. sabe Deus a que extremo
chegue para obter de você o que deseja.
— Mas, Sofia, em realidade não a compreendo. Vem você a me pedir que
ajude a Catalina do Molnar, e ao mesmo tempo me roga que desdiga suas súplicas.
— Tudo parece um contra senso, compreendo-o muito bem, mas eu também
sou mãe, e se nossa amizade pode me dar alguma validez, alguma força, sirva esta
para deter o escândalo que mancharia a meu filho sem remédio, a menos que esse
homem seja castigado por outros delitos. Não acredito que faltem motivos para
isso, até omitindo os destas desventuradas bodas.
— É um delito haver-se casado com a senhorita do Molnar? — comenta
irônico o Governador.
— Por favor, me entenda! Prometa-me.
— Sim, Sofia, entendo-a, embora o que me pede você é bastante complexo.
E antes de pedir que prometa nada, permita-me que faça passar a essa mãe que
espera.
O Governador se aproximou da porta e convidou a passar a Catalina do
Molnar, lhe oferecendo galante uma dos luxuosos poltronas, ao tempo que lhe
explica:
— Senhora do Molnar, tenho uma missão que cumprir com você. Trata-se de
uma carta que me foi recomendada fazer chegar a seu conhecimento. Hei aqui seu
conteúdo:
"Excelência, dirijo a você, em vez de fazê-lo diretamente à senhora Catalina
do Molnar, por ser um assunto delicado e grave no que sentiria pecar de indiscreto.
Junto com estas linhas vai uma carta que lhe pedido ponha nas mãos dessa dama,
cumprindo a súplica de sua filha Mônica, que chegou a estas costas no veleiro
nomeado O Lúcifer, doente de verdadeira gravidade.”
— Meu deus. Meu deus.
Catalina do Molnar baixou a frente, como afligida por aquela dor que as
palavras escutadas reavivam e incendeia, e o Governador detém um instante a
leitura para olhá-la com sincera pena, alta logo o olhar inteligente, buscando o rosto
da senhora D'Autremont, mas Sofia se apartou deles e parece olhar pelo balcão
aberto que domina a cidade do Saint-Pierre. Por isso o Governador prossegue a
leitura:
"Extraordinária me pareceu à presença em um navio como esse, de uma
dama como a jovem senhora Molnar, cuja distinção e beleza formavam um rude
contraste com a pobreza do ambiente, com o desconforto e à estreiteza da cabine de
um veleiro de cabotagem como é o Lúcifer, e tentado estive de dar parte às
autoridades imediatamente. Mas o estado da doente era muito delicado para me
permitir outra coisa que tratar de salvar sua vida, e a isso pus com o maior
empenho, embora com muito poucas esperanças.
"Ao ir me buscar, haviam-me dito que se tratava da esposa do patrão do
veleiro, um moço rude e descortês, a quem ofereci no ato transladá-la ao bom
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hospital que temos nesta, ele se negou rotundamente, ganhando com isso minha
imediata antipatia; mas, depois, devo confessar que sua atitude modificou minhas
primeiras ideias.
— Como? Como? O que diz? — indaga Catalina.
— Você siga escutando — aconselha o Governador: — "Mostrou-se com ela
solícito, carinhoso e atento, não omitindo gasto nem esforço para lhe proporcionar
comodidades, e não se separou um instante de sua cabeceira enquanto a vida de sua
jovem esposa esteve realmente em perigo.”
— É incrível! Seriamente diz isso?
— Por você mesma pode lê-lo, dona Catalina. E diz algo mais. . "Quando
ela pôde falar normalmente, em sua plena razão, quis fazê-lo a sós comigo, e ele se
afastou com absoluta discrição. Aproveitei o momento para lhe oferecer minha
ajuda assim que necessitasse de mim, mas ela me pediu tão somente que escrevesse
à senhora Do Molnar tranquilizando-a com respeito ao estado de sua saúde e de sua
sorte.
"Com toda classe de reservas cumpro este encarrego na carta que lhe anexo.
Tranquilizo, ou trato de tranquilizar, à senhora Do Molnar na forma que ela me
pediu que o fizesse. A você quero lhe dizer que um pouco muito estranho ocorre
entre esse desigual casal. Decidido a não abandonar a uma compatriota em situação
tão crítica, quis abusar de minha influência pedindo a sua Excelência o Governador
do Guadalupe, casualmente de passagem na Maria Galante, que usasse de toda sua
autoridade para lhes fazer desembarcar e passar uns dias em terra, mas alguém
deveu dar aviso ao patrão do Lúcifer.”
— E se foram, verdade? — interrompe Catalina em um arranque de
ansiedade. — Foram-se, ou esse médico, a quem Deus Bendiga, obteve?
— Um momento, escute. "Não sei se por causa de uma conversação com
ele, em que acaso fui indiscreto, ou pelo aviso que suponho, o veleiro levantou
âncoras imediatamente empreendendo repentina fuga. Em vão tratamos de detê-la,
comunicando-nos por cabo com as ilhas vizinhas. Só soubemos que tinham posto
proa ao Noroeste, aproveitando o bom vento para desaparecer.
"Acreditei um dever pôr isto em conhecimento de você e dos familiares
dessa jovem, criatura deliciosa a que me uniu muito vivo simpatia do primeiro
momento. Não tenho autoridade nem meios de fazer nada mais que o que tenho
feito. Se algo quiserem ou podem fazer por ela, estou incondicionalmente à
disposição de vocês. Doutor Emílio Faber, Diretor Geral do Hospital do Grand
Bourg, na Maria Galante, Antilhas Francesas".
— É preciso ir atrás deles! — salta Catalina com desespero. — É preciso
deter esse navio. É preciso salvar a minha Filha. Você pode fazê-lo. Governador.
Você pode dar ordens contra ele, fazer que os detenham no primeiro porto.
— Não sei até que ponto, senhora Molnar. Em nada do que diz esta carta há
motivo para deter ninguém. Todos sabemos que sua filha aceitou livremente a esse
homem por marido. Digo, é o que tenho entendido, as bodas foi em Campo Real e
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você mesma consentiu nela. Compreendo que para uma mãe deve ser um vivo
sofrimento uma união desigual, mas não existindo um delito.
— Não poderia você achá-lo revolvendo os arquivos do porto? — aponta
Sofia, abandonando a janela e aproximando-se do Governador. — Não acredito que
faltem delitos ao Juan do Diabo! Se pode lhe fazer deter sem mencionar para nada o
assunto destas bodas.
— Ou mencionando-o, se for preciso. É a vida de minha filha a que está em
jogo. Farei algo para salvar a Mônica!
— Por que não pensa também em salvar ao Aimée? Você cale, Catalina. Que
a pena não a faça desvairar.
Dubitativamente olhou o Governador às duas damas; logo, oprime o botão
de um timbre e vai para a porta franqueando a entrada a um regulamento, ao que
recomenda:
— Faça procurar cuidadosamente todos os dados referentes ao veleiro
Lúcifer e ao patrão o que a manda, e volte no ato para me trazer isso
— Procurará você outro delito? — indaga vivamente Sofia. — Juan do
Diabo não merece considerações de nenhuma espécie! Sobram delitos e
testemunhas contra ele.
— Salve a minha filha como é. Governador! — suplica Catalina.
— Como é não! — rechaça Sofia com decisão. — Meu filho Renato é vítima
inocente de tudo isto, e não deve segui-lo sendo. Você faça o que possa.
Governador, sem que uma só gota de lama salpique a meu filho, porque me porei
contra todos com tal de defendê-lo.
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— Não devo aceitá-los, não posso, não quero. Por. Por. Não acha a palavra
que consiga expressar seus sentimentos, porque logo que acerta a compreender ela
mesma o que sente: é alegria e pena, emoção e vergonha, rubor e gratidão. Não
pode ignorar que todo aquilo representa a maior parte das economias do rude
capitão do Lúcifer, e, entretanto, ele o oferece com uma desculpa nos lábios:
— Peço-te que os use. Não são dignos de uma Molnar, mas lhe sintam bem.
Muito melhor que seu eterno traje negro. E agora, se quer lhe dizer adeus a Saiba,
aparece imediatamente porque já quase não se vê.
— Deixamos já a terra? Aonde vamos agora, Juan?
— Rumo ao sul!
Contra tudo, contra todos, assim parece navegar o Lúcifer pelas azuis águas
do Caribe, cheias as velas, ágeis os flancos, cortante a proa, todo ele nervo, rapidez,
tensão vibrante. É como uma flecha branca cujo arco temperado é à roda daquele
leme que agora empunham as mãos do Juan, largas e fortes, e que pergunta a
Mônica, como brincando:
— Atrever-te-ia a levar o leme?
— Tanto como isso. Parece-me o mais difícil.
— Não o cria. Aproxime-te, ponha aqui. Aqui, em meu posto. Assim.
Agora, toma o leme com as duas mãos. É muito suave quando o mar está bom.
Bastar-te-á fazer girar esta roda a um lado ou a outro para que o navio troque seu
rumo. Perfeitamente. Muito bem. Claro que terá que manter o rumo indicado,
recordar onde estão os baixos, os bancos, algo em que possamos chocar ou encalhar.
Cuidado, que nos fará dar voltas em redondo! Está te torcendo a estibordo; mantém
a roda mais direita, assim, vê? Também terá que olhar as velas, pois dependemos do
vento. Se ele se negar a soprar, podemos passar semanas inteiras nos olhando uns
aos outros.
— Por que deixamos tão logo a ilha de Saiba?
— Só que fizemos o que tínhamos que fazer nela. Para que ficamos mais
tempo do necessário, nos expondo?
— Nos expondo, a que?
Juan não responde. Suas largas mãos cálidas se puseram sobre as da Mônica
no leme e vão guiando, como através delas, a fina embarcação cujo rumo se torce a
estibordo, e Mónica comenta:
— Torceu você o rumo à esquerda.
— Sim, agora fui eu. Nós dizemos a estibordo.
— Aonde chegaríamos se seguíssemos navegando para estibordo?
— Chegaríamos a São Eustáquio, uma ilha holandesa não muito maior que
Saiba. Não há ali nenhum porto que valha a pena, mas se continuássemos cairíamos
em São Cristóbal, e ali sim teremos uma cidade de dez mil habitantes pelo menos:
Basseterre. Está também o Forte do Tyson, em fantásticas ruínas; a famosa colina
do enxofre, tudo ao pé do monte Meusery, uma elevação de quatro mil e pico de
pés. A ilha se entende logo em uma larga franja de terra, terminando em uma
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— Há todas as horas tem que me desesperar; há todas as horas tens que estar
dormindo. Sai a dar uma volta pela casa. Anda a ver onde estão outros e o que
fazem.
— Agora? Ai, minha ama, se forem as três da madrugada, sem vê-lo o que
posso contar. Nem a ama Sofia nem a senhora Catalina tornaram da capital. Quanto
ao notário e ao senhor Renato.
— Seguiu bebendo Renato?
— Como que já não, minha ama. Anda como uma sombra dando voltas, às
vezes se atira no sofá do escritório e fica como dormindo. Logo se levanta, e outra
vez a beber, outra vez a passear. Mas desde ontem pela tarde não pediu nada.
— Onde diz que está?
— No portal do frente da casa, olha que lhe olha para o caminho e para o
desfiladeiro. Para mim que está desesperado porque volte à senhora Sofia e a
senhora Catalina. Mas é o que eu digo, por que não o agarra um cavalo e vai as
buscar?
— Está segura que já não está bêbado?
— Digo eu. Se desde ontem não bebeu nada, seguro que lhe aconteceu já.
— Me dê um xale.
— Um xale? Vai sair daqui? A senhora Sofia lhe disse bem claro que não se
movesse destes quartos. Vai se colocar você mesma na boca do lobo. Lembre-se
dê como voltou a outra tarde, depois que a mandou chamar e você foi para lá.
— Me traga o xale e te tire do meio idiota. Sim, ali está Renato de pé junto
ao corrimão, cruzados os braços, os olhos acesos de álcool e de febre. Mudou o
bastante para parecer outro homem: revoltos os cabelos, enchente a barba, aberta a
camisa que mostra o peito branco, o olhar sombrio, amargo a dobra dos lábios. Dir-
se-ia envelhecido em dez anos, e agora, com esse gesto e esse traçado que lhe fazem
trágica sombra de si mesmo, estranhamente parecido ao Francisco D'Autremont,
indubitável irmão do Juan do Diabo.
— Renato, meu Renato. Quer me ouvir? Quer que falemos? — roga Aimée
em tom suplicante.
— Falar? Falar? — duvida Renato com grande amargura. — Agora quer
falar?
— Sim, Renato, agora quero falar, porque agora me parece que não está
bêbado. Perdoe-me, mas é a palavra exata. Leva muitos dias bebendo como um
louco e te comportando como um selvagem. Agora me parece que está em seu
julgamento, e tenho a esperança de que possamos falar como dois seres Civilizados.
— Pois não a tenha! Os D'Autremont não somos civilizados! Nem foi meu
pai, nem o é meu irmão, nem eu tampouco o era em realidade, embora chegasse a
aparentá-lo. Temos no sangue o fogo desta terra bárbara, os sentimentos cru, as
paixões selvagens. Somos primitivos no rancor, no amor e no ódio! Não quero que
ignore isto. Quero te dar a última oportunidade de te salvar. — Foge se for culpada,
Aimée, foge antes que eu tenha a absoluta segurança de que é culpada, te salve
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agora, aproveita este momento em que um resto do homem que fui sobe aos lábios.
Depois será muito tarde!
Aimée tremeu um calafrio lhe percorre as costas, mas há também uma
explosão de raiva, de amor próprio, de ânsia infinita de jogar e ganhar, e, apoiando-
se nela, crava os dedos trêmulos no braço do Renato:
— Não tenho por que fugir, nem do que me salvar! Ouça-me se quer saber a
verdade. Toda a verdade! Não tenho nada que me reprovar! Ser sua esposa era meu
único e verdadeiro sonho.
— Olha bem as palavras que está pronunciando! Como juramento sagrado
vou tomar-te cada uma delas, e se voltares a mentir seria de verdade sua última
mentira, porque seriam suas últimas palavras. Fala!
— Tenho que tomar as coisas desde muito longe. Esse homem me cortejava.
— Juan do Diabo? Onde? Quando? Como? Foi já minha noiva! Foi já minha
noiva quando chegou da França. E se foi já minha noiva, e me pertencia
espiritualmente, como foi possível que. Fala de uma vez!
— Antes, Renato. Antes.
— Antes, do que? Antes de voltar para as Antilhas não podia conhecer o
Juan!
— Para que possa me compreender, tenho que começar desde antes. Eu era
ainda uma menina; Mônica e você adolescentes já.
— Só dois anos Mônica é mais velha que você. Dois escassos anos.
— Sim, já sei. Mas por sua forma de ser, por seu caráter, você estava sempre
com ela, apenas me fazia conta, e eu começava já te querer. Você não compreende o
que sofre o coração de uma menina que começa a ser mulher. Eu queria a ti, e você
parecia querer a Mônica. Eu sofria muito de ciúmes e de raiva, e Mônica estava
segura de que você casaria com ela. Para ti se penteava, para ti se arrumava, para ti
punha flores na mesa, por ti passava as noites e os dias estudando, para poder falar
contigo de tudo o que você queria falar, enquanto que eu era uma pobre ignorante.
— O que está dizendo? — sobressalta-se Renato, surpreso e interessado a
pesar dele.
— Mônica estava loucamente apaixonada por ti, Renato, não pensava mais
que em ti, não falava mais que de ti. Tinha a absoluta segurança de que um dia teria
que te casar com ela. As mãos do Renato se afrouxaram, seu rosto reflete — agora
perplexidade, desconcerto, surpresa profunda, e algo assim como a dor de ter
causado involuntariamente um mal. E reagindo, inquire:
— Mônica, Mônica me amava? Uma vez me disse algo parecido. Não
reparei nisso, não quis me fixar, foram desculpas tuas, mentiras, enganos.
— Não, Renato, Mônica te amava, estava louca por ti, e por ti, ao ver que ao
fim me preferia , tomou os hábitos, quis professar, foi ao Convento da Marselha.
Não recorda sua estranha atitude, sua mudança radical, suas meias palavras? Parecia
te odiar. Você chegou a pensar que te aborrecia, e era porque te amava. Estava
loucamente apaixonada por ti, e eu tinha ciúmes, ciúmes selvagens que me
acendiam o sangue.
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Capitulo 10
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que suas bochechas se acendem como uma flor, e que não há palavras em seus
lábios. Timidamente estende a mão que ele toma entre as suas, e, sem uma palavra,
baixam juntos pela estreita escada enquanto seus corações pulsam com ritmo igual.
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— Esse alguém sou eu. Governador, diga-o claro, não dê mais voltas. Vim
para pôr as coisas em seu lugar. Eu fui seu fiador, devo retirar a fiança, e exijo que o
processo detido siga em marcha.
— Para lhe condenar em ausência, em rebeldia? É extraordinário, e me
atrevo a dizer mais: é desumano. Teria você que apresentar uma denúncia assinada,
que fazer-se totalmente responsável.
— Assinarei essa denúncia aceitando toda a responsabilidade. Pode você
pedir informe caligráficos às ilhas. Corre de minha conta toda a investigação que
seja necessária.
— Se estiver você decidido a fazer as coisas dessa maneira, direi-lhe que,
por acaso, informe dessa classe não me faltam. O Lúcifer ancorou na ilha de Saiba.
Ancorou também no Basseterre. São Cristóbal. Passou pela Antiga e seguiu via ao
sul, ontem pela tarde. Por razões óbvias, não é fácil que se detenham no Guadalupe
nem na Maria Galante, mas podemos pôr sobre aviso às autoridades da Dominica,
Granada, São Vicente e Tobago. Não acredito que possam ir mais à frente sem repor
as provisões. E se você insistir.
— Faça-o, Governador, faça-o!
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aceitou carga para São José e Roseau. Mas, suponho que vem você para me buscar
por embargo de minha mãe, não?
— Foi grande sua angústia ao não lhe encontrar em Campo Real, ao saber
que tinha saído daquela maneira, sem dar apenas tempo a que lhe selassem um
cavalo. Por que fez isso? Pensa que sua pobre mãe não sofreu bastante já?
— Penso que todos sofremos o suficiente para lamentar. Mas, o que vamos
fazer? Parece ser que isto é a vida. Senta-se e bebe, ou ao menos aceite um charuto.
Eu, como você vê, estou aguardando.
Olhou uma vez mais o relógio de bolso, colocado sobre o toalha de mesa
escuro. Logo se afasta até chegar à janela que abre sobre a rua. Há vários navios
mercantes ancorados na enseada do Saint-Pierre, e os passageiros, em escala
obrigada de sua viagem da Europa, invadem a rica e populosa capital do Martinica,
saboreando nela os mil detalhes do mundo tropical. A brisa que vem desde mar não
alcança a refrescar as ardentes ruas e há no céu um sentiu saudades tom
avermelhado, como se gravitasse sobre a cidade o resplendor de um fogo
misterioso, como se um pressentimento cósmico flutuasse sobre os jardins floridos e
as luxuosas moradas.
— Falemos seriamente, Renato. O que se tem proposto? O que veio a fazer
ao Saint-Pierre? Com o que relaciona a notícia de que o Lúcifer está na Dominica e
tenha tomado carga para um porto ou para outro?
— O Lúcifer será detido logo que ancore frente a Roseau, e seu patrão
apressado em nome das leis da França. Pode voltar para Campo Real e dizer-lhe a
minha mãe: vou resgatar a Mônica custe o que custar e aconteça o que acontecer.
— Resgatar a Mônica? Então, é verdade o que me informaram? Você retirou
sua fiança ao Juan e encabeçou uma acusação em forma contra ele.
— Não ficou outro caminho para que o Governador consentisse em pedi-lo,
por extradição, como fugitivo sob processo.
— Mas o trarão preso, expropriarão-se do navio. Um momento. Um
momento, porque às vezes me parece que eu também estou transtornado. Quando
Juan chegou de sua última viagem, trazia suficiente dinheiro para pagar a você. É
mais, assegurou-me que o faria, e tenho entendido que, pelo menos, tratou de fazê-
lo. E até juraria ter visto uma bolsa com moedas sobre a mesa de seu escritório.
Isso. Recolhi-a a mim mesmo. Guardei-a na caixa principal. Juan cumpriu
fielmente seus compromissos!
— Não pode prová-lo — rechaça Renato com dureza. — E, além disso, não
é seu dinheiro o que persigo.
— Já sei, já sei. Mas acusar o dessa maneira, Fazê-lo voltar assim, é, por
dura que seja a palavra, uma infâmia. Uma infâmia!
— Piores cometeu Juan do Diabo! — revolve-se Renato irado. — Qualquer
caminho é bom quando nos leva aonde terá que chegar a toda costa. Não
compreende. Noel? Mônica é inocente, não tem nada que reprovar-se. Eu tenho que
deter esse navio, tenho que arrancar a das mãos do bárbaro a quem a entreguei,
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louco de ciúmes, cego de desespero e de raiva, sem mais direito que o que me dava
minha cólera.
— E quem disse a você?
— Quem sabe melhor que ninguém. As dez! É a hora que esperava. O
Governador está me aguardando para combinar os últimos detalhes. Tenho que lhe
deixar. Noel, e me parece muito boa hora para que tome seu carro se quer retornar
esta mesma noite a Campo Real. Não fique no Saint-Pierre. Serão inúteis seus
esforços por defender ao Juan do Diabo
— Chegou à comprovação. Governador?
— Pode ler por si mesmo o cabograma, amigo D'Autremont. O veleiro
Lúcifer tomou carga de rum, cacau e carne salgada no Portsmouth, parte para o
porto de São José, e outra para o Roseau, onde já as autoridades estão avisadas.
Como primeira formalidade deve levar a Capitania do Porto à matrícula do navio
para poder desembarcar a carne, e nesse momento será detido.
— Bem; só me subtrai esclarece um ponto que ficou pendente esta tarde: a
sorte que correrá em tudo isto Mônica do Molnar.
— Bom, legalmente é a esposa do patrão apressado. De todos os modos,
confio em que as autoridades inglesas da Dominica não esqueçam o cavalheirismo.
Tudo depende da atitude que ela adote.
— Sua atitude só pode ser a de uma prisioneira resgatada.
— Tenho minhas dúvidas, quanto mais leio e releio a carta desse doutor
Faber.
— Muito respeitável a opinião do Faber, e a sua própria, Governador, mas
me perdoe que me atinge só a minhas próprias seguranças. Quando sairá o guarda
costa?
— Dentro de vinte minutos exatos. Meu carro aguarda abaixo. Tal como lhe
prometi, farei-lhe conduzir a você aos moles com as facilidades de falar com o
capitão.
— Não desejo a não ser uma facilidade. Governador: ir eu nesse navio.
— Você? Você pessoalmente? — surpreende-se o Governador. — Nenhum
civil deve viajar em um navio de guerra.
— O peço como um grande favor. São circunstâncias muito especiais.
— Por elas me será preciso lhe agradar, me pregando a sua vontade
absolutamente. Estender-lhe-ei um salvo conduto. Uma vez mais lhe recomendo
prudência e sangue frio. Os últimos informe que me deram que o Juan do Diabo,
creditam-lhe como homem muito perigoso.
— Uma razão mais para que não me detenha nada. Governador!
O Lúcifer está ancorado frente à vila inglesa do Portsmouth, um semicírculo
de pequenas casas multicoloridos, estendido ao longo da aberta baía de Príncipe
Roberto. São as primeiras horas de uma noite estrelada, e, aproximadas ao flanco do
veleiro, três barcaças vertem sua carga no casco fino, forte e estreito, daquele navio
boêmio e pirata que, por uma vez, cumpre a missão para a que foi matriculado.
— Tudo em ordem. Segundo?
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estreitas ruelas do Roseau. Quis acontecer por ali antes de chegar à Capitania do
Porto, desejando quanto antes ver convertido em realidade o desejo daquele desejo.
— Note bem onde é. Colibri, porque temos que voltar aqui mais tarde.
— A procurar o anel? Você sempre lhe anda comprando coisas à ama,
patrão. Mas a ama não fica contente, a não ser triste. Algumas vezes até chora
olhando as coisas que você lhe traz.
— O que chora? Não tem por que chorar. Uma vez me disse que era feliz,
que sentia algo que podia chamar-se felicidade. Disse-me isso a mim mesmo, disse-
me isso bem claro, e não faz muitos dias. .
— Sim, eu sei quando o disse; mas depois disso, anteontem mesmo, esteve
chorando. Eu a vi com estes olhos. E lhe corriam as lágrimas. Primeiro com o
vestido negro, esse tudo quebrado que você tem guardado no armário. Encontrou-o,
e esteve olhando-o e chorando.
— Chorou? Chorou olhando esse horrível hábito, esse trapo negro que
parece a roupa de um justiçado? Sinto muito não havê-lo arrojado ao mar! Por que
chorava? Não lhe disse isso, Colibri?
— Falou alguma coisa. Mas eu não lhe entendi muito bem. Disse algo assim
como que chorava pela Mônica Molnar. E atirou outra vez o vestido quebrado ao
fundo do armário, e ficou a escrever. E enquanto escrevia, chora que te chora.
— Escrevia? Escreveu Mônica?
— Sim, meu amo, e é o que ia dizer lhe. Se você for lhe dar de presente
algo, ela seguro que quer papel e sobre. Essa noite esteve procurando e rebuscando,
e ao fim, para escrever a carta, arrancou-lhe duas folhas de atrás ao livro de
registros.
— Uma carta? Há dito uma carta?
— Bom, digo eu que seria uma carta, porque, o que outra coisa ia fazer meu
amo? Escreveu as duas folhas pelos dois lados, dobrou-as em quatro e logo as deu a
Segundo e lhe pediu que lhe comprasse sobre e selo para poder jogá-la no correio.
Por isso digo eu que seria uma carta. Ai, meu amo!
Colibri esquivou a mão do Juan que se aperta sobre seu braço com brutal
movimento instintivo. Logo, olha com espanto o rosto sombrio cujas sobrancelhas
se juntam com raiva, e suplica sobressaltado:
."Não fique bravo, patrão, ao melhor fiz uma confusão e não é verdade nada
do que estou contando.
Tudo é verdade! — afirma Juan com ira concentrada. — É incapaz de mentir
nem de inventar nada. Além disso, é perfeitamente lógico. Mônica escreveu uma
carta e Segundo Duelos se encarregou de pô-la no correio. Em que ilha? Em que
porto?
— Não me lembro. Não sei nada. Não fique bravo com a ama, patrão, nem
vá dizer lhe que eu lhe vim contando. Eu não sabia que ia dar raiva. Eu...
— Te cale! No Portsmouth, Segundo jogou uma carta. Disse-me que era
para sua irmã
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— Patrão. Patrão. Como se sente? Como vai? Pouco a pouco, voltando com
esforço do profundo e doloroso letargia, abre Juan os olhos tratando de olhar na
obscuridade que lhe rodeia. É quase completa naquela espécie de cova, logo que
ventilada por um pequeno olho de boi, redondo e alto. O estou acostumado a é
úmido e viscoso, das paredes penduram cadeias ferrugentas, maços de cordas, e se
amontoam nos rincões os refugos da carga. O ar é fétido e espesso, carregado de
salitre e de mofo.
— Segundo, é você?
— Sim, patrão. Pescaram a todos. A você na Capitania Geral. A nós, ali
mesmo, no botequim do Gascão, jogaram-nos a luva.
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— Quer acabar de me explicar, Renato, por que tem feito isto? O que
significa? Onde está Juan?
— Mônica querida, um momento. Explicarei-lhe isso tudo, mas te acalme.
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— Não posso mais! Leva horas sem acabar de me falar claro. Cem vezes te
pedi que me explicasse. Disse que foi você quem tinha feito isto. Por quê? Quero
saber por que o tem feito! Quero saber por que me trouxeste aqui! E sobre tudo,
quero saber onde está Juan! Quer acabar de me explicar isso
— Explicarei-lhe isso tudo, mas me deixe falar. Não posso responder-te a
dez perguntas ao mesmo tempo. Quer te sentar e me escutar?
Mônica se mordeu os lábios, sussurra, e um instante cala. Estão em uma
ampla habitação de paredes caiadas, reja; de lavrada madeira e brilhantes pisos de
tijolo vermelho. É uma casa isolada entre jardins, nos subúrbios do Rosean, maciça
construção que se levanta como tantas outras, nas estribasses da montanha, e desde
cujas janelas abertas se divisa o magnífico espetáculo do porto, a baía e o mar.
— Tem-te proposto me enlouquecer, Renato?
— Tenho-me proposto, enlouquecido, remediar as consequências de meu
pecado dê incompreensão, de egoísmo, de ira, de crueldade. É curioso e
lamentável. Eu, que não me acreditava capaz de ser cruel, fui desumano, e o fui
contigo, minha pobre Mônica.
— Se não me falar mais claro. — impacienta-se Mônica.
— O que te estou dizendo é diáfano. Já sei que pretenderás não me entender,
que mentirá e fingirá heroicamente, como até agora o fez. Já sei que sustentará a
farsa e que tomarás, a conta dela, a defesa se desesperada para o Juan do Diabo. Já
sei que tem madeira da Santa ou de mártir.
— Equivoca-te totalmente, Renato. Eu. Eu.
— Você foste à vítima inocente. Eu cometi o crime de te jogar nos braços do
Juan; mas eu, eu sozinho, contra ti mesma se for preciso, liberarei— te desse
canalha.
Renato falou, tremendo a paixão em sua voz, mesmo que seu olhar azul seja
limpo e suave. Quis em um momento arrancar a daquele ambiente para ele horrível,
começar a obra de reparação de seu mau; mas Mônica lhe rechaça, relampagueantes
de ira os olhos:
— Juan não é um canalha! Nem você nem ninguém dirá dele uma coisa
semelhante diante de mim. Onde está e o que lhe têm feito?
— Não corre nenhum risco nem lhe tem feito ainda nenhum mal. Por outra
parte, quero começar por te dizer que te desculpo do esforço de representar o papel
de esposa preocupada.
— Não estou representando nenhum papel! Não tenho nenhuma queixa do
Juan!
— Se pudesse acreditar que diz a verdade, acredito que lhe daria as graças a
Deus por me haver escutado. Não sabe como hei rogado do fundo de minha alma,
que horas de angústia vivi desde que soube a verdade! Sim, Mônica. Aimée me
disse ao fim toda a verdade
— Jesus! Mas você. Você. Tiveste calma? — se surpreende Mônica,
desabando-se aniquilada na próxima poltrona.
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me disse a verdade a verdade que você não negaste: Juan do Diabo não era para ti
mais que um estranho. Agora, sua ferida é muito profunda, sei, e você é de madeira
heroica. De outro modo, não tivesse resistido nem por amor a sua irmã nem por
amor a mim.
— Não fale mais disso! — repudia Mônica com ira.
— Também compreendo que seu amor tenha adquirido tinturas de ódio.
Fomos desumanos, mas, por que acessou a essas bodas? Nenhuma mulher no
mundo tivesse suportado tanto! Como é possível que chegasse.
— Foste matar ao Juan, a minha irmã. Suas razões eram a fio de faca.
— Eu não queria a não ser arrancar a verdade a quem soubesse! Por que não
falou? Procedi como um louco, mas foi porque as circunstâncias me
enlouqueceram. Quando te vi aceitar ao Juan, tive que pensar que a amava que o
tinha amado ou que tinha cometido um pecado de amor, e, nesse caso, talvez não
fosse eu o que podia te impor o castigo desse matrimônio desigual, mas era justo.
Ao menos, compreende minha boa intenção, não te revolva contra mim dessa
maneira.
— Bom, mas, em realidade, não responde jamais a minha pergunta: onde
está Juan?
— Veem aqui, a esta janela. Olha lá, no porto, no mar, perto do Forte. O
que vê?
— Um guarda costeira. Um guarda costeira com a bandeira da França.
— O Galión, primeiro sentinela das costas da Martinica para combater o
contrabando e outras atividades nas que Juan não tem muito limpa as mãos. São
pecados veniais, mas deles tive que me valer. Aí está Juan. — No Galión? Detido?
Preso?
— Reclamado pelo Governador da Martinica para ir ao Saint-Pierre a dar
conta de várias — acusações pelas que se pediu sua extradição ao Governo Colonial
Britânico da Dominica.
— Denunciaste você? Você? Acusaste-o que?
— Do único que podia acusá-lo. Fiz o possível e o impossível por te resgatar
quando soube a verdade, agravada pela circunstância de uma enfermidade que,
segundo certo doutor Faber, estava sofrendo.
— Renato, esse navio se vai. Vai levando ao Juan! — angustia-se Mônica.
— Naturalmente. Ao Juan e a todos os tripulantes de seu barco.
— Mas isso não é possível! Lhe levam lá, e eu. Eu!
— Nós sairemos amanhã ou passado, em um navio que reúna para ti as
comodidades necessárias.
— OH, não, não! Sem lhe ver? Sem lhe falar? Faz que detenham esse navio!
Nós saiamos também imediatamente!
— Imediatamente não é possível. Disse-te amanhã ou passado, porque é
quando se espera aqui um navio dê passageiros e.
— O Lúcifer está preparado.
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— Está bem. Tudo o que tenho feito foi por reparar uma falta, por te tirar do
inferno em que acreditei te haver sepultado, e agora resulta que seu inferno te
agrada.
— Quando me jogou nele, tivesse preferido a morte cem vezes a aquele me
sentir arrebatada pelos braços do Juan recorda Mônica apaixonada. — O pior dos
supridos, a mais terrível das agonias eram para mim mais desejáveis que aquele
homem que me arrastava, através dos caminhos e através dos mares, como pode
arrastar sua conquista um vândalo. Entre as quatro paredes da cabine do Lúcifer,
chorei e supliquei me rasgando o corpo e a alma, lhe pedindo a Deus que me
enviasse a morte repentina. Se então tivesse deslocado atrás de mim, se um
verdadeiro sentimento de justiça e de piedade humana te tivesse feito seguimos nos
deter, teria beijado os rastros de seus passos. Mas tudo tem neste mundo seu
momento, sua hora, sua oportunidade.
— O que quer dizer? — lamenta-se Renato.
— Devemos pensar no mal que fazemos, antes de fazê-lo. As reparações
revistam chegar, como esta tua, muito tarde e fazendo ainda mais danifico de que
fez o próprio mal. Compreende agora?
— Tenho que compreender. Falaste muito claro — aceita Renato doído. E
em tom de fina ironia, observa: — Suponho que não te servirá de nada que lhe
presente minhas desculpas, que te diga que sinto com toda minha alma ter
interrompido seu idílio primitivo com o Juan nessa imundície de barquinho.
— Muitas vezes a imundície está nos palácios, e há luz de sol até nas
humildes pranchas do Lúcifer — reprova Mônica com altivez. — Graças a Deus,
sou outra, Renato. Sou a mulher do Juan do Diabo, ou do Juan de Deus como eu o
chamo. E como sou sua esposa e sei que lhe acusaste com crueldade, de pecados
veniais, quando ele poderia acusar a outros de pecados mais graves, e não o faz.
Como lhe suponho açoitado e maltratado injustamente uma vez mais, não tenho
mais que um desejo: estar junto a ele, voar a seu lado, lhe defender das acusações
que lhe façam lutar a seu lado por sua vida e por sua liberdade. Se seriamente quer
fazer algo por mim, contrata tripulantes e deixe ir. Imediatamente onde ele está.
— Será agradada! — acessa Renato com ofendida dignidade. — vou realizar
essas diligências que reclama. Nos iremos ao mar em seu maravilhoso navio, e
procurarei que seja quanto antes.
— É o único que te agradecerei com toda minha alma! Da porta, tornou-se
Renato, olhou de novo a Mônica, — sentindo que sua repentina raiva se derrete em
dor, em angústia, na sutil amargura do fracasso, e transborda em uma breve flor de
ironia:
— Obrigado, por me recordar uma vez mais que fui inoportuno e torpe. A
seus pés, Mônica!
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— Que quer que seja mais que uma tormenta? Varrido pelo vento, sacudido
pelas gigantes cheire de um mar espesso, envolto no violento açoite de um
repentino temporal, range o Galión, estremecido da quilha até a ponta do pau de
mesana.
— Mas que classe de temporário! Claro que piores os baralhamos, mas não
neste velho balde de lata.
Segundo Duelos fala olhando ao Juan, aguardando com ânsia mau
dissimulada sua opinião, sua resposta, mas o patrão do Lúcifer não parece ter
intenção de lhe responder. Visivelmente inquieto. Segundo comenta:
Já não ouço nem as máquinas deste maldito cubo! Você ouça patrão?
— Não; faz momento que pararam. Parece que estamos ao grelhe. E
também que nos tivéssemos desviado, pois se houvéssemos ido à linha reta, já
estaríamos frente a Saint-Pierre.
— Quer dizer que perdemos o rumo? — Nesse momento, um violento golpe
de mar inclina o casco de navio e, espantado, Segundo inquire: — Ouviu patrão? O
que foi isso?
— A hélice fora da água. — explica Juan com impassível calma.
— Estamos ao garete! Podemos nos afundar! Não me ouça, patrão?
Podemos nos afundar!
— Oxalá! Depois de tudo, seria um modo como outro qualquer de acabar.
— Não! Não! — Segundo protesto espantado. — Eu não sou um covarde,
você sabe que não sou covarde, patrão, mas não quero morrer aqui apanhado,
enjaulado como um rato! Se formos afundamos, que nos soltem ao menos! Abram!
Abram! Nos tire desta ratoeira! Não nos deixem morrer aqui! Abram!
Enlouquecido por um pânico que é também desespero e raiva, acudiu
Segundo a porta da adega empurrando-a, golpeando-a com os pés, enquanto, verde
de espanto, Colibri se abraça ao Juan que, mudo e imóvel, contempla a seu
companheiro com amargo gesto.
Dois homens apareceram na porta. O marinheiro que faz às vezes de
guardião e um jovem oficial que olha duramente aos capturados, e interpela:
— Quem grita aqui
— Eu! Não queremos morrer esmagados, encerrados em uma ratoeira!
— Perfeitamente. Desata-o, leva-o acima e ponha a trabalhar. E você? — O
oficial se encarou com o Juan, e no ar se cruzam como dois aços, os dois duros
olhares. — Você não grita? Não protesta? Não tem medo de morrer aqui como um
rato?
— Não tenho medo de nada. Me deixe, se quiser!
— Posso te cruzar a cara como insolente! Mas não, desata-o. É uma lástima
que se percam esses braços, quando fazem tanta falta acima. Faz-o trabalhar até que
arrebente, e se revira contra ti, lhe dispare e cuida você mesmo de vigiá-lo, porque
me responde com sua vida do que ele faça.
Têm cansado ao fim as cordas que sujeitam ao Juan. Um insistente esfrega
isso os braços intumescidos, os pulsos arroxeadas. De repente, um violento golpe de
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mar entra pelas escotilhas, banhando as adegas. O Galión tremeu como se fosse
partir se em dois, correm todos enlouquecidos, escorregando pelas estreitas escadas
de ferro, alagadas a cada golpe de mar. Levando a Colibri como um fardo, sobe
Juan o último. Respirou a pleno pulmão; a água enfurecida lhe açoita o rosto,
envolve-lhe, banha-lhe. Agarrado a uma escotilha, pode olhar ao fim sobre a
coberta varrida pelas ondas. O mar se torcedor em marejadas como montanhas,
sopra o vento com fúria de furacão, negro está o céu, e apenas se vê a luz dos faróis
furiosamente bamboleados.
— Outro homem à água! — grita a voz patética de um marinheiro. —
Capitão... Capitão!
— O capitão está ferido! — adverte o oficial. E elevando a voz, chama: —
Timoneiro. Timoneiro!
— Timoneiro à água! — avisa uma voz longínqua.
Juan avançou arrastando-se entre a fúria dos lamentos, agarrando-se aos
salientes, aos cabos, às pranchas, protegendo ao moço que treme abraçado a ele,
resistindo o açoite das ondas que a cada instante ameaçam lhe arrastando. Guiado
por um instinto mais forte que sua vontade, chegou até a ponte de mando. .Um
homem, com a cabeça rota, jaz ao pé do leme cuja roda gira ao garete. O oficial se
inclina sobre o ferido, e logo se eleva olhando ao homem que acaba de chegar, para
lhe perguntar:
— O que faz aqui?
— E você, o que faz? Agarre o leme. Há rochas perto. Vamos estrelamos!
Não o vê? Vamos naufragar!
— Já sei, mas não sou piloto! — desespera-se o oficial — Você tome o
leme! Faça algo!
— O que ponham-se às andar máquinas!
— Não funcionam já. Há água nas caldeiras!
— E as velas?
— Não sou marinheiro, não sei nada. Os que sabem caíram. Eu nem sequer
sei onde estamos!
As mãos do Juan se obstinado ao leme, desviando o choque iminente. Seus
olhos percorre o horizonte escuro, elevam-se logo até a bitácora que sobre sua
cabeça se balança, e se ergue como tomando uma determinação foto instantânea:
— Junte aos homem que possam trabalhar! Que fechem as escotilhas, que
esgotem a água! — E elevando a voz entre o estrondo da tempestade, grita: —
Segundo. Enguia. Martín. Onde estão? Aqui. Logo!
— Aqui estamos patrão! — responde Segundo, aproximando-se.
— Levantem uma vela pequena a proa! Sustentem-na esquivando o ar! Terá
que tomar outro rumo, embora seja investindo a tempestade! Segundo, toma o
mando dos que vão à vela. Martín, às bombas. Faz esgotar a água!
Como um golfinho, salta o Gallón sobre as ondas; como um escalo, esquiva
o golpe dos ventos, desviando-se das afiadas rochas ameaçadoras. O vento
impetuoso se forma redemoinhos sobre sua única vela de proa, lhe dando forças de
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até banham as ondas, agarrando-se às paredes, aproxima-se um homem até seu lado,
e Juan interpela:
— O que acontece. Segundo, por que deixou a vela?
— Está em boas mãos, patrão. O Enguia e Martín estão com ela, e como a
tormenta vai amainando, pensei que você podia necessitar substituição. Sabe que o
capitão está mal ferido? Que o timoneiro e o primeiro piloto se foram à água? Que o
único que manda a bordo é o oficial esse que veio a prender-nos, que de marinheiro
não tem nada?
— Sim, Segundo, sei perfeitamente tudo isso.
— O navio está como quem diz, em nossas mãos, patrão. E se não ser por
nós, ontem à noite naufragamos, tivéssemos nos estrelado contra as rochas do
Granadinas, teríamos encalhado em um baixo, ou possivelmente tivéssemos
cansado no centro do furacão.
— Sim, Segundo, sei isso. Vá atender a seu trabalho. Segundo vacilou.
Sobre os Montes da ilha de Granada, o vento varreu as nuvens, e aparece com tom
rosado a primeira luz do alvorada. Juan consulta de novo a bússola, e depois ordena:
— Dentro de meia hora trocará o vento. Olha a ver se podem elevar outra
vela no pau que fica intacto, para que viremos quando o tempo troque.
— E poderemos ir até o fim do mundo! — alvoroça-se Segundo com a
esperança com muita dificuldade contida. — Se você me autorizar, patrão, eu me
encarrego de limpar o guarda costeira dos poucos que nos estão estorvando. Com
eles não podemos chegar muito longe. Denunciarão-nos!
— Não, Segundo, não vamos matar a ninguém.
— Patrão, esta é a oportunidade, a única oportunidade que tem você e que
temos todos. Ponha proa ao continente, desembarcamos na Guayana, e aí que nos
busquem!
— Não, Segundo, não vamos escapar — E em tom autoritário, ordena: —
Levanta a outra vela. Segundo, faz o que te mando!
— Está bem, patrão. Por você, não por mim o dizia. Eu não tenho
julgamentos nem cargos, a mim não podem me fazer nada, mas você é muito parvo
voltando a meter-se na boca do lobo.
— Vá ao que te mandei. Segundo. Vamos virar. No Saint-Pierre deve me
estar esperando uma dama a que quero voltar a ver, pague por isso o preço que
pague!
Contendo o gesto rebelde, obedece Segundo a voz do Juan. Sua figura se
encolhe, afasta-se se desvanecendo na estreita coberta molhada, enquanto por ele
lado contrário do barraco do leme outro homem aparece, os olhos como braças, o
rosto pálido e mudado. De uma olhada parece medir de pés a cabeça ao robusto
homem que agora só parece atento a levar o navio. No chão, a seu lado, envolto em
sua jaqueta de marinheiro, um menino negro dorme como um anjo e o rosto do
jovem oficial se crispam de estranheza olhando-o, para voltar logo para contemplar
com temor e curiosidade ao que chegou ao Galion prisioneiro e cansado. Por um
longo momento vacila como se escolhesse cuidadosamente as palavras que vai
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dirigir lhe, como se lutasse entre dois temores, contendo com esforço sua ansiedade.
Até que força ao fim um sorriso diplomático:
— Saímos do apuro, verdade? Amainou a tormenta, e se não vejo mal, o que
há à frente de nós são montanhas.
— O Santa Catalina, o Montain, o Maiclán. Conhece você a ilha de
Granada?
— Neste caso, o único importante é que você a conhece. A capital se chama
São Jorge. Tenho entendido que é um porto importante. Você saberá como nos
aproximamos — rápido, o oficial troca seu tom lisonjeador, e com certo alarme,
entrecorta: — Ouça, por que se desvia? Por que volta assim o navio? O que é o que
se proposto? Se pensar que vai burlar se de mim!
— Acalme-se, oficial, e estorvo a mão do revólver. Tire-o, ou soltarei o
leme e iremos todos ao inferno.
— Já está tirada. Abusa você da situação. Não vai levar o navio a São
Jorge?
— Que eu saiba não nos perdeu enchente por lá.
— Você escute — parece decidir o oficial — eu não sei do que está acusado
nem que cargos há em seu contrário. Limitei-me a cumprir as ordens de meus
superiores tomando-o preso e encarregando-me de sua custódia neste navio até
entregá-lo às autoridades da Martinica. Já sei que as coisas há trocado. Não ignoro
que lhe devemos um favor enorme.
— Mas isso é o de menos, verdade? — observa Juan com fina ironia. — Já
passou a tormenta, já não tem você medo… e já temos vista de uma ilha britânica.
Que comodamente cumpriria você sua missão desembarcando, referindo o que
aconteceu e fazendo transladar ao cárcere de São Jorge! Pensa que vou a, ter a
ingenuidade de me entregar de novo a seus desmandos, para sofrer toda classe de
vexames e brutalidades?
— Prendemos-lhe na forma usual. Tinha você ficha de ser homem muito
perigoso — pretende desculpar o oficial, um pouco apurado. — Lamento
seriamente o que passou. Eu não tive intenção de me mostrar particularmente duro
com vocês.
— Particularmente, não, claro. Tampouco era preciso. Bastava com a forma
usual de tratar aos que caem entre as malhas de suas leis sem ter influências,
brasões ou fortuna. Pobres gente, pobres diabos! Para que guardamos
considerações? Vale tão pouco a vida de um homem em desgraça! A de você
mesmo, oficial, que vale agora que o navio está em minhas mãos? Vê você?
Viramos. Proa ao norte. Sua ilha britânica fica atrás. Agora os papéis se trocaram.
Basta-me fazer um gesto a um de meus homens para que lhe jogassem em você de
cabeça ao mar.
— O que diz? Joga comigo? O que é o que se há proposto?
— Nada. Ao mais, lhe oferecer uma lição que não vai você a aproveitar. O
que pouco vale a vaidade de uns galões, de um título de oficial, quando um homem
está frente à desgraça!
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sentidos do homem com apenas te contemplar. Mas, a que preço obtiveste isso? Que
sofrimento, que sacrifício tiveste que dar em troca de que obtiveste? O que é em
realidade esse homem para ti, Mônica?
— Meu marido. Já sabe.
— Compartilhava com ele esta cabine? .
— Não. Bom. Quero dizer. — vacila Mônica.
— Por Deus te peço que me fale claro! Enquanto esteve doente o viu seu
lado; mas, depois? Diga-me a verdade; não minta Mônica. Por Deus vivo, não
minta!
— Eu estava sozinha aqui. — balbucia Mônica. — O foi para mim o melhor,
o mais amável e respeitoso dos amigos.
— Ah! — prorrompe Renato em uma exclamação de triunfo. — Nada mais?
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— Saint-Pierre. Saint-Pierre?
— Sim, Mônica, estamos chegando. Mas se ainda tenho direito a te dar um
bom conselho, se até posso te suplicar algo, peço-te, peço-te que siga caminho para
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Campo Real. Sua mãe te aguarda lá. Sua irmã ficou muito angustiada. Minha
própria mãe...
Tomando as mãos da Mônica, como em um repentino arranque, falou
Renato, e treme a súplica em sua voz que se quebra de angústia. Mas Mônica
retrocede, esquivando daquelas mãos e rechaçando com decisão:
— Não me moverei do Saint-Pierre; não me afastarei do Juan. E se houver
algo que seriamente queira fazer por mim, se for eu a que ainda posso te rogar, te
suplicar, te implorar algo, é justamente que me ajude a me aproximar dele esta
mesma noite. É preciso que eu lhe veja que eu lhe fale que saiba o que pensa e o
que fará. Você pode Fazê-lo, para mim é indispensável. Acredito que me voltaria
louca se me negasse isso!
— Está bem, Mônica, te acalme. Não precisa me suplicar dessa maneira.
Farei o possível. Acredito que, como esposa legal do Juan do Diabo, tem direito a
chegar até ele. E se for preciso, eu mesmo tenho que te levar.
Arrastando a sua donzela, envolvendo-se no amplo xale de seda para ocultar
o mais possível seu rosto e seu talhe, baixa Aimée a toda pressa as largas escadas da
casa de Governo até sair por aquela porta lateral, um pouco dissimulada, que
esquiva os grupos de curiosos e a vigilância oficial da entrada do frente. Ali está
parado o carro que a trouxesse; rapidamente, ama e faxineira sobem a ele, e Aimée
ordena ao chofer:
— Me ouça, Cirilo. Vai dar a volta muito devagar. Vais levar-nos a passo
por atrás do Hospital e te aproximar do Forte de São Pedro pelo flanco. Quando
estivermos ali, direi-te o que faz. Anda arranca.
— Ai, minha ama! — lamenta-se a assustada Ana. — Você como que vai
meter se em uma confusão muito grande.
— Baixa as cortinas e te dispa — recomenda Aimée excitada. — vamos
trocar-nos de roupa. Me dê sua blusa e sua saia. Vais pôr-te meu vestido, e a te
envolver em meu xale. Dará-me seu lenço. Não, espera! Com o xale vou ficar-me
eu, para me tampar a cara se fizer falta. Toma este véu.
— Ai, minha ama, minha ama. — queixa-se Ana. — Você como que se
tornou ta rumba com tanto susto.
— Faz tudo o que te digo, sem replicar, estúpida! Temos os minutos
contados. Quando passarmos junto ao Forte, vou baixar-me. Ao ficar sozinha,
levanta as cortinas para que lhe vejam. Tampa-te bem a cara com o véu, esconde as
mãos. Melhor ainda, ponha estas luvas. Vai dar uma volta pelas ruas principais:
pelo Passeio do Porto, pela Avenida Víctor Hugo. Quero que lhe vejam muitos e
que todos criam que sou eu a que estou passeando.
— Mas, minha ama.
— Saint-Pierre é uma colmeia de intrigas. Não faltarão os comentários. Todo
ele mundo conhece os carros dos D'Autremont. Bom, já chegamos. Dentro de meia
hora passarão para me buscar por este lugar e elevando a voz, representa a comedia:
— Cirilo, para um momento. Vou deixar a Ana fazendo. Uns encargos. Inteira-se
bem da direção dessa costureira, Ana. Dentro de meia hora voltaremos por ti —
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saltou a terra, e ordena: — Segue Cirilo! Pelo centro e sem parar em nenhuma parte.
Apura um pouco aos cavalos agora.
Aimée ficou sozinha juntou à sombria fortaleza. Ninguém se vê ao longo da
deserta cale. Um sentinela faz o guarda junto às grades, à luz tremente de um
acendedor de gás. Rodeando mais o xale a sua cabeça e a seu corpo estatuário,
Aimée do Molnar vai para aquele homem, ao que informa imperiosamente: —
Trago uma permissão do senhor Governador para ver em seguida ao detido Juan do
Diabo!
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— Conte comigo para tudo. Para tudo! Também eu, a meu pesar, sofro e
tremo pela sorte do homem, como também pela do moço. Também eu penso que, no
fundo, Juan.
— Basta! — atalha Renato com Brutalidade. — Não necessita você fazer o
panegírico. Com que cumpra a Mônica a palavra que deu, será o bastante. Suas
declarações são absolutamente extemporâneas. Noel.
— Me desculpe Renato, não sempre pode calar-se — recorda Noel com
dignidade e fazendo esforços por não perder o gesto equânime e afável. — Mas,
enfim, me desculpe, e mãos à obra. Na porta está o carro. Você venha comigo,
Mônica, terá que aproveitar a oportunidade no instante em que se presente.
— Vou eu também — indica Renato.
— Não é necessário — recusa Mônica.
— Irei embora não deseje minha companhia. Não tenho feito o que tenho
feito para te negar o apoio no momento em que mais possa necessitá-lo.
— Não quero forçar seus sentimentos!
— Você tem um plano, e eu outro, Mônica. Não estou estorvando o teu, nem
estou te fechando o passo, como supõe. Ao contrário, quero que livremente faça o
que te dite sua consciência. Permita-me a eu satisfazer à minha em troca. Se Noel
fizer o milagre de conseguir a entrada ao Forte de São Pedro, deixarei-te a sós com
seu Juan.
— Meu amo. Meu amo. Olha para lá. Ao chamado de Colibri, Juan se
elevou devagar no escuro rincão onde deixa seu corpo repousar. É uma das enormes
galeras semi-subterrâneas, abertas no mesmo coração das rochas, base e entranha do
velho castelo de São Pedro, uma de tantas fortalezas que, como bandeiras de
conquista, cravaram os governos coloniais sobre as ilhas do Caribe. O teto é muito
baixo, as paredes jorram umidade, mas através da larga grade que fica justamente à
altura da cabeça do moço, vê-se o piso de granito do largo pátio, o arco da entrada
interior, o farol, e, a sua luz vacilante, a silhueta de uma mulher que parece discutir
com o sentinela, mostrar uma vez mais o papel que traz rodear logo com mais força,
ao corpo fechando, o xale de seda, e seguir, a um gesto do sentinela, os passados do
guardião carregado de chaves. .
— É a ama. — assinala Colibri.
— Mônica? Mônica aqui?
— Seguro que vem a tiramos, patrão. Ela não queria que os soldados me
levassem. Ela é muito boa.
— Cala!
O coração do Juan tremeu. Com um esforço de sua vista de águia pôde
perceber as coisas mais claras apesar da escuridão. A mulher que se aproxima alta,
magra, flexível, de andar sensual, tem algo no ar que não concorda com a saia
colorida, com o típico traje das mulheres mais humildes que parece levar como um
disfarce. Um raio de insensata esperança banhou sua alma. Cada um daqueles
passos que sente aproximar-se é como um golpe de seu coração, estremecendo-o,
despertando-o, fazendo-o pulsar de novo ao influxo quente do sangue. Como um
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Pégasus Lançamentos
lanzazo de ouro, com ferida luminosa, sente que ama a aquela mulher, que treme
por ela, que por ela aguarda, que a si mesmo se apresenta já cem explicações, cem
desculpas. Contendo o fôlego vê abrir as grades, elevar-se a mão do carcereiro para
pôr um tocha aceso no gancho de ferro da entrada, e retroceder, dando passo à
mulher que se aproxima da luz avermelhada e fumegante daquela iluminação
primitiva.
— Juan. Meu Juan.
Aimée se arrojou nos braços, que não a rechaçam que a sustentam sem
estreitá-la, que a oprimem tensos de uma emoção sem nome, enquanto a alma
inteira do Juan, um instante aparecida na luz do dia, treme antes de sepultar-se,
caindo até o fundo do mais profundo abismo de sua vida, enquanto murmura
surpreso:
— Você. Você. Foi você.
— Quem a não ser eu podia vir a te buscar onde esteja como está por cima
de tudo? Quem a não ser eu te quer com toda a alma, Juan? Com toda a alma!
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— Como acredita que entrei? Olha: um salvo conduto firmado por sua mão.
Obtive-o, lhe prometendo em seu nome, lhe jurando, que seria comedido em suas
declarações de amanhã. Querem te esmagar, mas lhe têm medo ao escândalo, sobre
tudo minha sogra. Já sabe. Odeia-te, aborrece-te.
— Essa se!
— E também outros — desliza Aimée, suave e pérfida. — Acredita que não
conheço o sistema monge de minha irmã? Só contigo, entregue a seu arbítrio,
certamente ficou tenra, carinhosa e suave. Até te faria acreditar que gostava.
— Jamais! Nunca perdeu a dignidade! Nunca deixou de ser a mulher alta e
pura que...
— O que é isso? O que é isso, Juan? — interrompe Aimée um pouco
assustada ao escutar o toque de uma corneta longínqua.
— Não sei. Provavelmente a mudança de guarda.
— OH, que louca sou! Tenho que ir tenho os minutos contados.
— Não irá me haver enlouquecido! Não irá acabar de falar!
— Pois bem, não me interrompa e me ouça até o final. Tudo isto veio pelas
cartas ou pelas notícias da Mônica. A mim não me informou mais que pela metade,
mas estou absolutamente segura de que essa é a verdade. Já sabe que ela quer ao
Renato, que o quis sempre, e eu tive a ingenuidade de dizer-lhe a ele. Adulado em
sua vaidade de homem, está agora completamente de parte da Mônica, e lhe quer
tirar isso por todos os meios e sem lhe importar nada.
— Canalha. — revolta-se Juan mordendo as palavras. — Mas, e ela?
— Ela é cera branda em suas mãos.
— Não! Recordo! Ela me disse que sua vida tinha trocado, que ao lado meu
tudo era distinto. Que era feliz. Sim. Disse-me que sentia algo o que podia
chamar-se felicidade. Disse-me isso bem claro!
— Mônica é professora nas artes da dissimulação. Não esqueça nunca esse
pequeno detalhe. Renato quer desfazer-se de mim, e algo que você diga de nosso
passado a usará contra mim para obtê-lo.
— De nosso passado? — Tem que te calar isso, Juan. Calar aconteça o que
acontecer! Acusarão-lhe de contrabandista, de pirata, por dívidas, por embargos, por
rixas. Amontoarão cargos contra ti. A Mônica não a nomearão, não querem que
você dela fale, querem evitar o escândalo, já lhe disse isso antes. E se você não o
provoca, o Governador me prometeu que os juízes serão benévolos. Se não
provocar um escândalo, posso te salvar, e te salvarei Juan, salvar-te. Serei eu quem
lhe salve.
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Pégasus Lançamentos
passar. Quando soar de novo a corneta, despeça-se e volte aqui pelo outro lado.
Sairemos do Forte sem ser vistos, e do que você fale esta noite com ele dependerá
certamente o julgamento de amanhã.
Com passo rápido e silencioso lhe deu Mônica a volta ao largo pátio. Já está
perto, muito perto, a só um passo da larga grade. À altura de seus joelhos, saindo da
galera semi-subterrânea, o resplendor avermelhado do tocha. Tremendo, inclinou-se
para olhar um momento. Sim, ali se encontra Juan, mas não está sozinho. Uma
mulher está junto a ele. Uma mulher de costas à grade, e os olhos da Mônica se
aumentam de surpresa, de espanto. Não pode lhe ver ainda a cara, mas treme como
se um grito de seu próprio sangue denunciasse o sangue irmã que há baixo aquele
disfarce. Seus joelhos se dobraram, suas mãos se enchumaçam a grade, a seu ouvido
chega, como o veneno mais sutilmente destilado, uma voz muito familiar, a voz
trêmula de desejos e de ânsias do Aimée:
— Não tem que me agradecer nada. Sou tua para sempre, como você é meu,
e ninguém te arrancará de meu coração porque te quero e sou tua, Juan, só tua,
embora não possamos proclamar-lo, embora nos seja preciso fingir e calar. Pelo
menos até que consiga te salvar, até que se abram para ti as portas deste cárcere, até
que vença todos os obstáculos. Então irei aonde me leve e te pertencerei em corpo e
alma, embora já te pertença desse modo.
Mônica fechou os olhos, mordeu-se os lábios até sentir neles o sabor amargo
do sangue. Logo, como impulsionada por uma força irresistível, arrancou-se
daquela grade e pôs-se a andar como uma sonâmbula.
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Pégasus Lançamentos
Aimée chegou até o Juan, lhe cravando no braço os finos dedos nervosos, e
procurou com ânsia suas pupilas à luz avermelhada do fumegante tocha que já se
apaga. O nada responde nada respondeu durante muito momento no que a ouviu
sem escutá-la ausente a alma e amargas os lábios. Não, não pensa nela, não a vê
frente a ele. Sua imaginação lhe leva longe, muito longe, percorrendo hora por hora,
dia por dia, etapa por etapa, aquela estranha viagem em que o Lúcifer sulcou os
mares levando-a Mônica do Molnar. Acredita vê-la, acredita escutá-la, e murmura
como para si:
— Mônica. Mônica capaz de fingir, de mentir, de enganar. Mônica como
todas: hipócrita e leviana.
— Como todas disse? — ofende-se Aimée, e com perfídia adiciona: —
Hipócrita, sim; mas não a culpe, pois é natural. É fiel a seu amor pelo Renato,
como eu o sou ao meu. As Molnar são fies, embora você pense o contrário.
— Me deixe! — revolve-se Juan irado.
— Naturalmente que tenho que te deixar. Já vem o carcereiro. Acaso
quando ficar sozinho pense em quanto arrisquei por me aproximar de ti e em todo o
amor que despreza ao me desprezar. É cruel, Juan, cruel e ingrato, mas na vida essas
dívidas se pagam! Vim em são de paz, mas não esqueça que quem pode te salvar
pode também te perder, que sua liberdade, e acaso sua vida, estão em minhas mãos.
— Se for assim, pode fazer delas o que queira!
— Não te importa? Não te importa mais que Mônica, verdade? Pois se tiver
que te falar com franqueza, não te acredito. Está fingindo para me enlouquecer, para
me torturar. Sempre teve um prazer selvagem em me fazer chorar! Vais arrepender-
te. Juro-te que vais arrepender-se te! Se chegar a obter que eu me converta em sua
inimizade, desejará não ter nascido, Juan!
Capitulo 13
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ignorá-lo: ela, como afundada em seus pensamentos; ele, miserável a ela como por
uma força superior a sua vontade.
— Deste uma grande prova de sentido comum não entrando nessa cela em
que ia verte um estranho. Entretanto, tivesse-me gostado de saber que classe de
advogado vai defender ao Juan do Diabo.
Renato observou com ânsia o rosto da Mônica, que permanece imóvel,
impassível, fechado em um mistério que é para ele insuportável. Só um reflexo de
angústia aparece às azuis pupilas da Mônica, quando percorrem a larga praça, para
voltar-se logo a ele, interrogadora:
— O que esperamos aqui? Por que não vamos?
— Quando gostar. Se quiser ser absolutamente razoável e me permitisse te
levar até Campo Real. Ali estão todos.
— Me perdoe Renato — intervém Noel. — Esqueci lhe dizer que donas
Sofia e Aimée estão no Saint-Pierre desde ontem pela tarde. Em vão lhes adverti
que provavelmente você se desgostaria, mas dona Sofia respondeu que tampouco se
cuidava você muito de não as desgostar a elas.
— Fazia mais de vinte anos que minha mãe não visitava Saint-Pierre —
adverte Renato visivelmente molesto. — Sempre se negou a acompanhar a meu pai.
Odiava a cidade, o caminho, a carruagem por largas horas. Em que lugar está? Não
terão ido a um hotel!
— Dona Sofia se instalou na velha casa de vocês, fechada da última vez que
dom Francisco esteve no Saint-Pierre, faz mais de quinze anos. Trouxe servidão, e
parece decidida a passar uma temporada.
— Farei-as desistir desse capricho absurdo. Nada têm que procurar na
capital, nem você tampouco, Mônica. Vamos lá. Acredito poder as convencer. O
único razoável que podem fazer é seguir caminho esta mesma noite.
— Não me leve a sua casa, Renato. Peço-lhe isso, o exigirei se for preciso!
Não irei a não ser a minha casa.
— A sua casa? A sua casa de perto da praia? Mas é absurdo! Ali nem sequer
tem serviçal.
— Quero estar sozinha, quero proceder livremente como o que sou: a
legítima esposa do Juan. E sua adversária no julgamento contra ele. É o lugar que
me corresponde, e saberei enchê-lo apesar de tudo.
— Apesar de tudo? É uma forma de confessar que deve ofensas ao Juan!
Entretanto
— Entretanto, cumprirei com meu dever, Renato. Me leve a minha casa, ou
me descerei do carro e irei eu sozinha por meus passos.
— Não pode ficar reveste em um lugar como esse.
— Só tenho que estar a partir de agora em adiante. Entende o de uma vez
por todas, Renato. Devo estar sozinha, quero estar sozinho, preciso estar sozinha.
Tremeu em seus olhos o fulgor de uma lágrima, e Renato D'Autremont se
remói os lábios para conter a frase raivosa a ponto de escapar, e acata:
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"Preciso saber que me quer como antes. Preciso saber que me perdoaste.
Preciso saber que não te importa nada ela, para não me voltar louca de ciúmes. para
não odiá-la!
— Basta! Cometemos grandes enganos. Estou esforçando-me por emendá-
los. Por tua culpa, e minha também, ocorreram coisas que não deveram ocorrer
nunca. Assumi toda a responsabilidade, e o melhor que pode fazer, se desejas me
agradar, é voltar para Campo Real e aguardar ali ao lado de sua mãe.
— Sozinha, abandonada, sem ti. Ao fim e ao cabo, a quem lhe importa que
eu esteja aqui? Não lhe faço mal a ninguém. Não faço mais que aproveitar os
momentos livres que queira dedicar-me. Sinto-me tão sozinha, tão desesperada
quando você não está! A que deve mandar a Campo Real, com mamãe, é a Mônica.
— Quis Fazê-lo; quis afastá-la a todas vocês deste assunto tão desagradável,
e confrontá-lo e resolvê-lo eu sozinho, mas Mônica não escuta meus conselhos.
Recordou-me que não é já a não ser a esposa do Juan do Diabo.
— Efetivamente — corrobora Aimée contendo seu despeito. — Dá-me uma
raiva! É absurdo, Renato. Fizemos-lhe muito dano. Muito dano.
— É o que temo Aimée. Fizemos-lhe tanto dano, que não poderá nos perdoar
jamais, que não nos perdoa e sua desforra é essa adesão ao Juan, com a que parece
me insultar.
— Adesão ao Juan? — alarma-se Aimée, tragando bílis — Mônica esta
apaixonada no Juan?
— Em corpo e alma. Ao menos, essa é sua atitude. Atitude que me enfurece,
que me ofende, mas frente à que não tenho força moral. Ao fim e ao cabo, de quanto
tenha sofrido com ele, somos nós os responsáveis.
— Ao melhor não sofreu tanto Mônica é tão estranha; Ao melhor gosta dessa
fera.
— Pode lhe gostar? Você acredita que possa lhe gostar? — Renato olhou ao
Aimée de um modo estranho, lhe oprimindo o braço com os dedos crispados, outra
vez ao nu a cruel ferida de seu amor próprio. — Responde! Acredita que possa lhe
gostar? Você é mulher, e.
— Por Deus, Renato, está-me machucando! E, além disso, pensando outra
vez essa coisa horrível. Não volte a te pôr como um louco! Dá-me medo.
— Às vezes penso que é como uma menina: inconsciente, amalucada. Então
te perdoo de todo coração. Mas outras. Isto é pior que um pesadelo!
— Espanta a ideia má! Acaso não te confessei já toda a verdade?
— Me jure que não há mais do que me confessaste! Jura-o!
— Bom. Por. Por. Juro-lhe isso por nosso filho! Por esse filho que não
nasceu Que morra sem ver a luz do sol. Que não nasça se mentir, Renato! Que não
te dê o filho que vou te dar se não estiver te dizendo a verdade!
A mão do Renato escorregou por sobre a cabeça do Aimée, sujeitando-a
pelos cabelos; obrigou-a a olhá-lo, afundando-lhe no fundo de suas pupilas
inescrutáveis, mas só vê uns frescos lábios que tremem uns grandes olhos úmidos
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de lágrimas, sente ao redor de seu pescoço o morno corda de uns braços suaves e
perfumados. Então, vacila, rechaçando um pouco:
— Acabaria por me voltar louco. Em realidade, mais vale não pensar.
— Isso. Isso. Não pense querido. Além disso, por que tens que te
atormentar tanto? Ao fim, a batalha está ganha, pois Juan está em suas mãos, tem-no
totalmente em seu poder; verdade? Depende de ti perdê-lo ou salvá-lo?
— Já não, Aimée. Fui eu quem lhe acusei quem movi minhas influências
para que fosse processado, mas o processo será imparcial, os juízes obrarão com
absoluta liberdade de critério. Não podia fazê-lo de outro modo, Aimée, sem me
desprezar a mim mesmo. Quis trazê-lo para liberar a Mônica de seu poder, para
arrancá-la de suas garras. Uma vez aqui, julgarão-lhe com estrita justiça, e o castigo
que receba será o que realmente mereçam suas faltas. Serei cruel, mas não covarde.
Poderá me odiar mais do que me odeia já, mas não terá o direito de me desprezar,
porque não vou feri-lo pelas costas. Tudo está no critério verdadeiro da justiça. E
agora, por favor, me deixe sozinho. Vete a descansar.
— E você não vem? — suplica Aimée insinuante. — Lhe peço isso, amor
meu, não demore muito.
Aimée há desemparelhado depois da velha cortina de damasco, e ainda
flutua no ar seu perfume, ainda sente Renato no pescoço e nas mãos a cálida
sensação de seu roce, até tem gravada em suas pupilas o doce sorriso com que lhe
há dito adeus, a maneira insinuante com que lhe convidou a segui-la, desdobrando
frente a ele toda a força sutil de seus encantos. Foi-se e, ao voltar à cabeça, Renato
D'Autremont vê cravados nele outros olhos, escuros e profundos, que lhe olham
como lhe brocando. Primeiro é surpresa; depois, o vago desagrado que aquela
presença lhe produz sempre.
— O que acontece, Aninha?
— Nada, senhor Renato, saí para lhe advertir que a senhora se há sentido
mau toda à tarde. Que desde meio-dia está na cama.
— Lamento-o muitíssimo. Suponho que já chamaram ao médico.
— A senhora não me deixou chamá-lo. Diz que são seus achaques de
sempre, que não vale a pena de incomodar a ninguém. Tomou suas gotas e seu
calmante, e, a meu pedido repousou toda à tarde. Agora dorme, e me permito
suplicar ao senhor, que a deixe descansar.
— Naturalmente. Em realidade, deveria estar tranquila em Campo Real.
Estas coisas não são para sua saúde delicada.
— Me perdoe senhor, já vou retirar-me. Mas antes, como à senhora não pode
lhe informar, penso que acaso necessite alguma informação que esteja a meu
alcance.
— Não necessito nada, Aninha — recusa Renato com secura.
— Talvez lhe convenha saber que a senhora Sofia está terrivelmente
preocupada com o escândalo que possa provocar-se. Queria lhe dizer, além disso,
que a senhora não pôde usar a audiência privada que o governador lhe tinha
outorgado para esta tarde.
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— Bem — comenta Renato cada vez mais impaciente. — Suponho que não
se perdeu nada com isso.
— Claro que não se perdeu nada — replica Aninha com suave perfídia. — A
senhora Aimée a aproveitou.
— Como? O que? — surpreende-se Renato.
— Quero dizer, que foi em lugar da ama.
— Quer dizer, mandada por minha mãe?
— OH, não, a senhora não falou com ninguém; mas a senhora Aimée
mandou preparar o carro, e foi com o Cirilo e com a Ana. Voltou faz apenas meia
hora.
— O que está dizendo? O governador não está no Saint-Pierre. Foi das cinco
da tarde ao Fort do France.
— Então, não sei nada. Repito o que disse Ana na cozinha que tinham estado
toda à tarde com o senhor governador. Quer o senhor que chame a Ana para lhe
perguntar?
— Não, Aninha — rechaça Renato com impulsos de ira. — Não estou
acostumado a tomar informe dos criados. Já me informará minha esposa desse
assunto, se acredita necessário. Pode voltar junto a minha mãe.
— Obrigado. Com sua permissão.
Rapidamente salvou Renato a distância que lhe separa até chegar à porta
daquela quarto em que supõe está Aimée. Depois da conversação com a Aninha,
ferveu-lhe nas veias o sangue: dúvida, desconfiança, certeza quase da perfídia da
que é sua esposa, e um violento desejo de castigar nela sua própria ingenuidade,
impulsionam-lhe cegamente.
— Aimée. Aimée. Abra-me essa porta no ato! Não me ouve? Abre essa
porta! Quer me obrigar a quebrar a fechadura?
— Senhor Renato. Mas, é você? — exclama Ana, calmosa e encantada,
depois de abrir a porta de par em par.
— Onde está sua ama?
— A senhora Aimée se está banhando. Ajudando-a estava eu. E por isso
demorei em abrir a porta. Espere-se. Espere-se, senhor, que vou avisar lhe.
— Quieta!
Imóvel à voz de seu amo ficou Ana, enquanto os olhos do Renato a medem
de pés a cabeça e percorrem a estadia. Em meio da habitação, hall anexa a quarto
que efetivamente ocupa Aimée, a jovial e calmosa faxineira mestiça seca com o
avental seus nus braços cobertas de borbulhas de perfumada espuma. Um tanto
paralisado em seu primeiro impulso, contida a fera baforada de ira que lhe subiu à
cabeça, Renato examina o rosto escuro da Ana, como medindo e valorando o crédito
que possam merecer suas palavras, e, sem poder evitá-lo, escapa de seus lábios a
pergunta:
— Saiu com sua ama esta tarde?
— Sim, senhor, a pobre senhora estava tão triste.
— Já. E foram ver o governador, verdade?
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Renato moveu a cabeça como se espantasse uma ideia amarga. Logo, volta-
se para a voz que soa a suas costas:
— Até quando acredita que vou esperar-te. Ana? OH. Renato! Meu Renato,
que logo agradou minha súplica. Terminaste já seu trabalho?
Sem responder a Aimée olha Renato às duas mulheres. O rosto da Ana só
tem sua eterna expressão de tolice satisfeita; o do Aimée se mascara com seu
melhor sorriso.
— Por que não me falou de sua visita ao governador?
— OH! Sabe? Quem te disse?
— Quero saber por que me ocultou isso.
Aimée suspirou com gesto de resignação. Esteve escutando o diálogo da Ana
e do Renato, tendo estudadas as atitudes, todas as palavras, até aquele gesto de
contrição, até aquele ingênuo balbuciar que outra vez a fazem aparecer como uma
adolescente:
— Renato de minha alma, sou uma estúpida, não faço mais que te desgostar.
Mas me dá tanta pena que por causa de minha irmã brigue com sua mãe. E prometi
a dona Sofia
— O que prometeu?
— Já estou faltando a minha promessa. Prometi me calar. Dona Sofia quer
evitar a todo custo o escândalo, para isso me trouxe para o Saint-Pierre, para que
entre as duas suplicássemos, procurássemos. O velho governador foi amigo de
minha mãe. Dona Sofia pretende que suspendam o julgamento, mas não lhe diga
que eu lhe disse isso, pois me aborrecerá. Jure-me que não me denunciara Renato.
Sua pobre mãe, por amor a ti, e não leve a mal, não quer que seu nome se veja
envolto no escândalo, e quer lhe jogar terra ao assunto. Eu prometi ajudá-la, mas
sou muito torpe, não obtive nada.
— Falou-lhe com governador?
— Sim, mas não te alarme. Assegurei-lhe que tinha ido por conta própria,
que você não sabia nada, que dona Sofia não sabia nada tampouco, que era minha
conta. Deu-me sua palavra de calar. Convimos em calar todo mundo.
— Então, arriscou-te a receber um desprezo, para nada?
— Para nada, Renato. Mas, de todo modos, mais vale que tenha sido eu, e
não dona Sofia. Asseguro-te que não sei a que lado me inclinar, e estava tão causar
pena com o fracasso, que não me atrevi a voltar para a casa e me pus a passear, a dar
voltas. Tinha tantas vontades de estar em uma cidade! Odeio o campo, Renato. Por
não te desgostar, não te insisti mais sobre esse ponto. Foi um passeio inocente.
Pergunte-lhe a Ana.
Logo que volta a cabeça Renato para olhar a Ana. Com gesto satisfeito, as
mãos sob o branco avental, sorri a aludida, como quem recebe já os parabéns e os
presentes que sabe lhe aguardam confirmar:
— O senhor me perguntou, e eu o disse tudo, todinho, minha ama. Como
você me tem mandado que não diga nunca mentiras ao amo, por isso eu.
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— Para ti sozinho. E suponho que Santa Mônica pensará que com isso já
tem feito muito.
— Não envenene ao menino. Você o que sabe? — reprova Noel. — Venho a
te buscar em nome de sua ama, filhinho: a senhora Mônica obteve que ponham em
liberdade e quer que te leve a seu lado.
— Sem o patrão? EU não quero deixá-lo, patrão! Deixe-me com você! Eu
não quero ir com ninguém!
— Nem com sua ama que tanto se preocupou com ti? Pois é bem ingrato.
— Não o cria. Noel, simplesmente aprendeu a desconfiar, encarregaram-se
de acostumar-lhe explica Juan. E dirigindo-se ao menino, aconselha-lhe: — Mas
agora não há razão, ao menos para ti. Anda, vê com a Santa Mônica e serve-a como
quando estava no navio. Eu não te necessito aqui, e ela, certamente, cuidará-te bem.
Sempre será um descarrego para sua alma.
— Lamento muito que não queira entender que Mônica não é culpada de
nada — queixa-se Noel.
— De nada? Está você muito seguro. Noel. Poderia assegurar com a mesma
firmeza que rio foram as cartas da Mônica as que moveram ao Renato? Agora quer
amparar a Colibri, seguramente como uma expiação pela imprudente sinceridade de
uma carta que me tem feito parar no Castelo de São Pedro.
— Não conheço bastante a Mônica para poder assegurar o contrário, mas até
sendo assim, não haveria nada que reprovar-se.
— Você não, claro. Mas eu sonhei muito.
— Juan, que tratas de me dizer? — surpreende-se Noel, emocionado.
— Nada! — O toque de uma cometa chega até eles, e Juan adverte: —
Trocam o guarda. Creio que deve você marchar. Se sua permissão não era para me
visitar.
— Era só para recolher a Colibri e, em efeito, devo partir. Dentro de duas
horas estará frente ao tribunal que tem que te julgar, e suponho que não te faltará um
bom advogado.
— Responderei eu mesmo às acusações do tribunal — Juan respondeu com
altivez. E dirigindo-se a Colibri ordena: — Vê tranquilo, moço. Irei te buscar logo
que me devolvam a liberdade.
Acariciou com sua mão larga a lanosa cabeça escura. Logo volta às costas,
afastando-se fada o fundo da galera, enquanto Noel sai silenciosamente levando a
Colibri da mão. Juan tornou fada às grades, inclinou-se até olhar a estreita franja de
céu azul que aparece sobre os muros aumentados, e há sentido que aquela parte de
céu é como uma fina adaga de lembranças cravando-se em sua alma, e murmura
como para si:
Gratidão. Gratidão. Entretanto, ela disse: felicidade. E havia luz de sorte
em seus olhos. Por que se iluminavam? Sabia já, tinha a esperança de escapar? O
que havia em suas pupilas? Era a luz do triunfo? Burlava-se acaso? Havia amor em
seus olhos. Mas, para quem era esse amor?
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Suas mãos se fecharam sobre as duras grades, inclinou a frente e já não olha
o céu azul, a não ser os negros e carcomidos muros do pátio. Uma onda de imensa
amargura passa por sua alma e, nessa onda, sua esperança naufraga, ao protestar:
"Sim, era amor. Amor. para o Renato!
Uma onda gigante se apaga na praia, quase sob os pés da Mônica, e logo o
mar parece aquietar-se. A luz do dia que nasce aquela mesma luz que os olhos do
Juan contemplam através das grades de sua galera banha de pés a cabeça o corpo
grácil da mulher que se deteve um instante, cravando as azuis pupilas no largo mar.
Quase lhe parece mentira ter retornado. Está em sua ilha convulsa, na terra que lhe
visse nascer, entre os negros escarpados e a pequena praia que foi tálamo do amor
tormentoso do Aimée e Juan. Por que tornou com anseia a aquele lugar? Que desejo
desesperado, de revolver a adaga em sua própria ferida, a impulso? Que desejo
insensato de matar, à força de martírio, um sentimento que já a afronta, empurra-a
para aquele lugar? Ela mesma não sabe. “Como se com suas mãos santas
empunhasse as cordas do cilício para ferir suas carnes, assim toma aquele
pensamento que a rasga, açoitando nele seus sentimentos, seus sonhos» seu louco
amor pelo Juan. chegou à entrada da gruta e, como antigamente Aimée, é agora ela
quem pronuncia aquele nome, como se o beijasse ao pronunciá-lo:
— Juan. Meu Juan. — Mas reagindo com amargura, repele: — Mas não.
Nunca foi meu. Jamais. Jamais. É dela, da que soube afogá-lo com seu perfume,
da que soube sepultá-lo em sua lama! Só por ela vivia, só por ela esperava.
Tem cansado de joelhos, com o mesmo tremor convulso que um dia
sacudisse ao Aimée naquele mesmo lugar. E, como ela então, deixa correr as
lágrimas amargas.
"Devo esquecer, devo me arrancar do coração sua imagem. OH.
Repentinamente pensou no Renato, — recordou seu antigo amor, que
envenenasse sua adolescência, que lhe fizesse vestir os hábitos, que só é já como
uma sombra sobre sua alma. Não. Não quer ao Renato, quase lhe surpreende pensar
que algumas vez lhe amou, e sua imagem se apaga, enquanto se faz mais forte a do
Juan, como se levantasse, riscada com caracteres de fogo, do fundo de sua alma.
"Juan, o pirata. Juan, o selvagem. Juan do Diabo.
Mas seus olhos choram sem que ela possa deter essas lágrimas. Por cima de
suas palavras há algo que se crava em seu coração e em sua carne: aqueles braços
estreitando-a, aqueles lábios muito perto dos seus, aquele olhar de ódio ou de amor
que ardia como uma fogueira nos olhos do Juan.
"Amor. Sim. amor pelo Aimée. Seu amor de sempre! Seu amor, que não se
acaba!
Com passo leve, com gesto ondulante, com tenro sorriso, com cálida olhar,
toda ela carne de tentação e de desejo, Aimée do Molnar se aproximou do Renato,
cruzando aquela estadia anexa a quarto, em cujo rincão, sobre uma velha mesa,
amontoou Renato nota e papéis, desdenhando os delicados frios, a garrafa de
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Capitulo 14
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— Eu preciso falar com todos esses! Escute-me. Você não vai negar-me um
favor insignificante.
Apoiou sua mão suave e cálida no braço do oficial, e o perfume sutil que
impregna sua pessoa chega até o jovem envolvendo-o com uma morna sensação que
debilita sua vontade. Com angústia, olha a todos os lados, fixando logo os olhos
naquelas muito belos pupilas de mulher cravadas nas suas como lhe hipnotizando.
Charles Britton sente desmoronar-se seu fortaleza. E compreendendo-o assim,
Aimée insiste lisonjeadora:
— Confio em você. O coração me diz que devo confiando. É minha boa
estrela a que o tem feito aparecer. Você pode fazer chegar alguns recados de minha
parte às testemunhas dessa sala.
— Não, não, impossível! — protesto o oficial confundido.
— Não diga essa palavra tão dura, não mate assim minhas últimas
esperanças. Só duas coisas. Embora não sejam a não ser duas coisas. Você ponha
este dinheiro em mãos do homem do braço entalhado e diga em seu ouvido a
ordem; Terá que salvar ao Juan do Diabo! Também pode fazer chegar às mãos do
Juan um papel de minha parte.
— Não é possível! Está estritamente proibido, tenha em conta que eu, menos
que ninguém, por minha qualidade de oficial, e de oficial estrangeiro.
— O que lhe importam as leis da França? — refuta Aimeé com tenra
insinuação. — Além disso, não lhe estou pedindo que faça nada, absolutamente
nada público, a não ser particular. O papel que quero que faça chegar a suas mãos,
em privado. São sozinhos umas linhas. Umas linhas para sustentar seu ânimo.
Justamente aqui trago um troto de papel. Se tiver você um lápis.
— Sim, aqui o tenho. Mas. — vacila o oficial.
— Empreste-me isso um instante. São umas linhas. Alguém delineia nada
mais, mas essas delineia vão lhe dar forças, trocarão seu ânimo. Estou plenamente
segura que depois das ler. — Há arrebatado o lápis da mão vacilante do oficial, tem
escrito umas breves delineia a toda pressa, dobrou logo o papel em quatro, dobras,
fechando ela mesma, com a doçura de seus medos vê, a mão que se nega a tomá-lo,
ao tempo que suplica: — Sei que achará você à forma de que Juan leia isto antes
que comece a declarar. E sei também que fará você o que lhe digo.
— Se seu empenho for tão grande. Mas o certo é que eu. Eu. — gagueja
confuso o oficial.
— Você terá minha gratidão, para sempre — insinua Aimée provocadora. —
para sempre e em todo lugar, terá você em mim uma amiga. Uma amiga para tudo.
Acredita-me isso oficial. Seus nome é?
— Charles. Charles Britton, para servi-la. Mas. — detém-se um momento
e, com vivo interesse, pergunta. — E você, senhorita? Posso saber com que nome
devo recordá-la?
— Saberá muito logo. Confio em seu cavalheirismo. Confio até o extremo
de lhe dizer algo com o que me jogo até a vida. Me recorde como à mulher que dá
seu sangue pelo Juan do Diabo!
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Capitulo 15
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vermelho xale de seda que Juan comprasse para ela nos armazéns da ilha de Saiba.
Apesar de sua intensa palidez, tudo nela é repouso, mesura, serenidade. Nunca
pareceu, aos olhos do Juan, tão altiva e geada; nunca pareceu tampouco mais bela às
deslumbradas pupilas do Renato que, a pesar dele, se há aproximado tremendo.
Também na porta da sala de testemunhas, outro homem se detém paralisado pelo
impacto que sua declaração causou em todos: Charles Britton, oficial das Reais
Força Britânicas.
— Peço ser escutada, senhor presidente do tribunal!
— Mas, está louca, Mônica? — reprova-lhe Renato. E elevando a voz
protesto: — E eu peço sua abstenção, senhor presidente! A lei não a obriga a
declarar.
— Não há lei que me negue o direito a dizer a verdade!
— Insiste Mônica com decisão. — Peço ser citada como testemunha! Exijo
ser escutada!
— Se não se restabelecer a ordem, mandarei suspender o julgamento!
— Anuncia o presidente tentando em vão atalhar os fortes murmúrios e os
comentários que a presença de Mônica gostaram muito como regiro de pólvora.
— Um momento, senhor presidente — reclama Renato. — Como acusador
privado, fiz citar às testemunhas necessárias para comprovar minhas acusações.
Entre eles, não está Mônica do Molnar.
— Posso pedi-la eu como testemunha de defesa! — exclama Juan com voz
forte e poderosa.
— Não! Não neste momento! — recusa Renato. E em tom angustiado,
murmura uma súplica: — Mônica. Mônica.
— Não neste momento, em efeito! — terça o presidente. — Mas não pode
recusá-la declara, se ela deseja dá-la. A lei lhe permite abster-se, senhora. Por que
não se acolha a essa vantagem?
— Não desejo essa vantagem, senhor presidente!
— Bem. Senhor acusador privado, peço-lhe que ocupe seu lugar — ordena o
presidente. — Esse menino, à sala de testemunhas. Sentem-se no estrado, ou farei
limpar a sala! Que passe a terceira testemunha da acusação!
Mônica retrocedeu olhando ao Juan. Desde que entrou, teve o desejo quase
irresistível de correr para ele, de jogar-se em seus braços esquecendo-o tudo, menos
a enorme verdade que enche sua alma. E ele também a olha, cruzados os braços; a
olha como se também a desafiasse, empalidecendo um pouco mais quando Renato
D'Autremont a tira do braço, quando a faz retroceder, obrigando-a a tomar assento
muito perto dele, quando se inclina para lhe falar quase ao ouvido, em voz baixa,
como em um cochicho:
— Mônica, não pensei que chegasse a este extremo.
— Não vais deter-me, faça o que faça Renato. Meu dever é estar junto ao
Juan.
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Juan retrocedeu com aquele estranho papel na mão, e seu primeiro olhar é para a
Mônica. Acaso é dela? Um pouco parecido a um sopro de esperança alarga sua alma
ao imaginário, e suas pupilas procuram com ânsia a resposta daqueles outros olhos.
Mas junto à Mônica segue Renato, outra vez se inclinou para lhe falar quase ao
ouvido. Se disser que tem uma violenta discussão com voz afogada, e com anseia
estruja Juan aquela carta que não quer ler sob tantas olhadas cravadas nele, aquela
carta que pode transformar sua alma com uma dúzia de palavras, aquela carta que,
por cima de seu valor, faz-lhe tremer.
— Que passe a quarta testemunha da acusação — ordena o presidente. E o
secretário, a sua vez, alta a voz para repetir o chamado:
— A quarta testemunha da acusação! Benjamim Duval! Benjamim Duval!
Mas Benjamim Duval, não se apresenta.
— Silêncio. Silêncio! — recalca uma vez mais o presidente — Tem alguma
pergunta que fazer a sua quarta testemunha o senhor acusador privado?
— Compreendo perfeitamente a ironia do senhor presidente deste tribunal
— aceita Renato com aparente tranquilidade. — Eu mesmo não posso menos de
sorrir frente à forma em que minhas duas últimas testemunhas declararam. Mas não
importa nada, para o que se trata de provar. Benjamim Duval não nega, não pode
negar o fato comprovado. Juan do Diabo lhe feriu em uma rixa de botequim
deixando inútil seu braço direito como até o presente o está, e é o quarto fato que,
contra vento e maré, desejo fazer constar ante este tribunal. É certo que Juan do
Diabo transladou e vendeu mercadoria roubada! É certo que Juan do Diabo ajudou a
roubar, junto às costas da Jamaica, um rico carregamento de café, tabaco e cacau! É
certo que sustentou pouco menos que uma batalha com os traficantes de rum! É
certo que burlou todas as leis de restrição do contrabando, em mais de dez ilhas do
Caribe, defraudando aos governos coloniais da França, Inglaterra e Holanda! É
certa, também, a lamentável rixa de botequim em que jogou e perdeu seu veleiro
Lúcifer, levantando depois um embargo graças a uma quantidade de dinheiro que
ainda não pagou.
— Que quis pagar, e cujo pago você não aceitou! — refuta Juan sem poder
dominar um acesso de ira. — por quê? Para que? A que veio tanta hipocrisia?
— Guarde silêncio, acusado! — impõe o presidente — Silencio. Continue o
senhor acusador privado.
— E um a um provarei todos os cargos que contra ele se lançaram —
prossegue Renato com mais calma e amargura — pedindo no ato, a este tribunal,
que compareça a quinta testemunha e que seja lida, ante ele, a ata em que lhe
acusam de sequestro, para que seja corroborada pelas declarações do moço.
— Quinta testemunha da acusação! O menino conhecido por Colibri —
chama o secretário. Diga seu nome, sobrenome, idade e profissão.
— Prescindamos de formalismos por esta vez, senhor secretário — terça o
presidente. — O moço, conforme parece, não tem sobrenome, e o mais provável é
que não recorde seu idade. Sendo certamente menor dos dezoito anos, não pode
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emprestar juramento. Faça constar na ata que sua declaração é a todo risco.
Promete dizer a verdade, moço? Não tem outro nome mais que o de Colibri?
— Colibri me chamou o patrão, senhor presidente, e Colibri me chamam
todos no Lúcifer.
— Quer dizer que antes não lhe chamavam isso? Qual é seu nome? Antes
que te levasse Juan do Diabo, como lhe chamavam?
— Chamavam-me ocioso, negro sujo e cão sarnento.
— Esses não são nomes! — rebate o presidente.
— Pois assim me chamavam senhor presidente. Cada um como lhe dava a
vontade, e com cada grito, um pau ou uma patada por que não andava ligeiro. Era
muita a lenha que terei que carregar para o forno do alambique.
— Silêncio! — insiste o presidente tocando a campainha para aplacar os
murmúrios que sobem de tom. — Secretario, dê leitura à ata.
E o secretário, obedientemente, lê:
— "Na cidade do Port Morant, ante o notário William Godman, os abaixo
assinantes declaram: Primeiro: Ser absolutos proprietários de um imóvel de cem
cordas que se estende da margem esquerda do rio Morant até o monte chamado
Yallhs Hill, todos eles terrenos cultivados com plátano, tabaco e cano. Segundo:
Que contam, para a ajuda de certos trabalhos no alambique que possuem e exploram
em dita propriedade, com vários moços, um deles parente próximo, recolhido e
criado na casa, por ser órfão de pai e mãe. Terceiro: Que este moço, a cargo total de
seus tutores, da raça negra, estatura regular, aproximadamente de doze anos de
idade, desapareceu uma manhã, embarcando pelo porto do White Horses no veleiro
chamada Lúcifer, levado até ela com enganos, ou acaso pela violência, pelo patrão
da mesma, apelidado Juan do Diabo. Também asseguram que o chamado moço,
dando provas de sem igual ingratidão para os que lhe tinham amparado, cooperou
ao sucedidos sequestro obedecendo à voz do Juan do Diabo, em lugar da de seus
parentes, quando estes foram para buscá-lo. Quarto: Que o chamado Juan derrubou
a murros aos que quiseram entrar no acréscimo em busca do moço, fazendo levantar
as âncoras e partindo do porto do White Horses, sendo inúteis até a data seus
denuncias e demandas. Que, além disso, e por pura maldade, Juan do Diabo
disparou contra as barricadas de rum propriedade dos assinantes, que aguardavam
no mole do White Horses para ser embarcadas, fazendo que o líquido se
derramasse, com uma perda de mais de cem libras esterlinas, e lhes gritando as
piores injuria, com as que provocou uma insubordinação entre os outros moços,
com grave prejuízo da ordem e a disciplina no imóvel de sua propriedade. E
assinam Burke, George e Jacobo Lancaster, com quatro testemunhas que dão fé,
vizinhos proprietários da duvidem do Port Mprant, e a assina do notário
autentificando o documento, William Godman. Hei dito.
— Ouviste moço? — adverte o presidente. — recorda se reconhece ter sido
sequestrado pelo chamado Juan do Diabo?
— Eu fui com o patrão. Eu lhe pedi que me levasse. Por culpa minha se
danificou uma barrica de rum, e me foram matar a pauladas. Escapei-me morto de
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medo. Não sei nem como pude chegar, e me caí na praia quando vi que ainda
estava ali o Lúcifer. Então, o patrão me levou dentro, e não sei que mais passou.
— O cargo de sequestro fica totalmente provado — assinala Renato.
— Eu fui com ele! — insiste Colibri. — Eu lhe pedi que me levasse. Iam-
me matar. O patrão era bom comigo. Diga-lhes como foi. Diga-lhes você, patrão,
lhes diga por que me escapei de lá.
— Silêncio! — clama o presidente por enésima vez. — Tem algo que dizer
em sua defesa, acusado?
— Nada, senhor presidente — responde Juan destilando ironia. —
Tampouco acredito que seja necessário dizer nada em defesa do moço. Ia pagar com
sua vida a perda de uma barrica de rum. Eu derramei o conteúdo de dez barricas, e
não permiti a entrada de intrusos em meu navio. Não há nada que acrescentar em
minha defesa. Que procurem o que acrescentar às suas as autoridades do Port
Morant, que toleram coisas como as que acabam de escutar às mesmas portas de
uma cidade civilizada.
— Tem algo que responder a essas palavras o senhor acusador privado? —
indaga o velho presidente voltando-se fada Renato.
— Não acredito que se trate senhor presidente, de discutir injustiças sociais
com o acusado, mas sim de provar sua responsabilidade nos fatos de que lhe acusa.
O fato, nem ele mesmo o nega:
Destruiu voluntariamente uma propriedade alheia, levou-se a um moço de
doze anos sem autorização de ninguém, contra a vontade dos únicos que se
declararam seus parentes, dos que lhe tinham devotado amparo de uma infância tão
tenra, que nem o próprio interessado recorda outro lar que a casa dos Lancaster.
— Na casa dos Lancaster, Colibri não era mais que um escravo — rebate
Juan. — Sim, um escravo, mesmo que as leis do país tenham abolido já o infame
tráfico. Não acredito na existência desse laço de sangue que dizem une a seus
verdugos. Eram perto de uma dúzia de moços, órfãos ou abandonados por seus pais,
os que dormiam amontoados no fundo de uma barranco imunda, os que se
alimentavam com sobras que os cães podem desprezar os que eram obrigados a
trabalhar até além de suas forças de meninos, os que só recebiam golpes, injúrias e
maus entendimentos em troca de seu trabalho. Mas, naturalmente, eu não era mais
que um intrometido, isso não me importava nada.
— Pôde te importar e proceder de outro modo — observa Renato. — Com
uma denúncia às autoridades.
— Evidentemente o senhor acusador privado tem razão apoia o presidente.
— Quão feitos você refere são lamentáveis, mas não lhe autorizavam a converter-se
em juiz e executor de uma justiça pessoal sem ter acudido antes a essa justiça legal
que tão duramente criticou.
— Tivesse sido inútil, senhor, presidente — despreza Juan com seu habitual
sarcasmo. — Os Lancaster são pessoas muito bem olhadas no Port Morant, pagam
altas contribuições e possuem luxuosas carruagens. Não, não imaginem como
bárbaros, golpeando a este menino com suas próprias mãos. Eles são incapazes de
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uma ação repugnante. Para isso têm seus capatazes, seus capatazes, seus cães a
salário. Para isso dão absoluta autoridade a rede aos que governam a seus
trabalhadores. E se um desgraçado destes morre, importa pouco, porque ninguém
vai reclamar para saber se foi o paludismo ou a fome, os golpes ou uma indigestão,
o que o mataram. Eles são cavalheiros e vivem como tais. Não podem chegar até
eles à denúncia de um patrão de veleiro, pontuado de briguento, de contrabandista e
de pirata. Estão tão altos na bela a Jamaica, como Renato D'Autremont na
Martinica! Só um imbecil perderia o tempo denunciando-os!
Juan cravou no Renato seu olhar de fogo, como aguardando uma resposta
que não chega que não pode chegar. E Renato respira contendo-se, sentindo que é
menos firme o chão que pisa, que dos bancos do povo baixo chega até ele uma
comentei hostil, violenta, a ponto de estalar, até que a mão do presidente se eleva!
— O que você diz não tem sentido, acusado! Bem claro diz essa denúncia
que o moço em questão é parente dos Lancaster.
— Parentes de empregados dos Lancaster. É a fórmula usual para empregar
meninos nos piores trabalhos. Estão com seus parentes, segundos tio ou terceiros
primos. Acaso simplesmente lhes reconhecem como adotados. Que mais dá? A
fórmula é perfeita: paga-se a um desalmado qualquer que ofereça uma equipe de
moços. Pouco lhe custa dizer a este que são de sua família, e os amos não têm nada
que perder. Muito cômodo para os Lancaster.
— Peço a palavra, senhor presidente, para uma questão de ordem —
intervém Renato. — Não acredito que interesse a este tribunal a forma de
administração que têm os senhores Lancaster na ilha da Jamaica, nem outros
senhores nas ilhas vizinhas, nem mesmo na própria o Martinica. Cada um governa
sua casa como lhe agrada, e lá todos os quem, Estamos aqui para provar os cargos
que lancei contra Juan do Diabo, e um a um vão provando-se. Senhor presidente,
peço você faça constar em ata, que o cargo de seqüestro e destruição de propriedade
alheia está plenamente provado!
— Sua petição é justa. Faça-o constar em ata, senhor secretario — indica o
presidente. E ato seguido, prossegue: — Agora, para expor seu precatória, tem a
palavra o senhor fiscal.
— Tomo sobre mim o cargo, senhor presidente — atravessa Renato. Agora é
na tribuna reservada para os importantes, onde os comentários sobem de tom um
momento para depois calar. O fiscal faz um gesto de absoluta indiferença, retirando-
se de novo até sua poltrona, e Renato D'Autremont avança olhando um a um a
aqueles homens que formam o jurado, e cujos ânimos suspeita ganhos já de tudo
para o Juan:
— Não trato de fazer ver como um monstro ao acusado. Demasiado bem sei
que é um homem que sofreu e lutou desde menino, um homem em conflito com a
sociedade. Nada tenho que dizer a vocês sobre a desculpa moral que possa
representar, para sua má vida, sua má sorte; mas sim peço a todos, e a cada um de
vocês, a consciência de sua responsabilidade. Não acusei publicamente ao Juan do
Diabo por rancor nem capricho, não lhe acusei sequer com o afã de castigar seus
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Pégasus Lançamentos
enganos passados, mas sim de acautelar futuras maldades, de remediar males que
até podem remediar-se.
"Seu exemplo é pernicioso, nefasto. Se este tribunal, apoiado em razões
sentimentais, ganho pelo impacto moral da piedade que certos relatos escutados
podem causar no coração de qualquer homem, se este tribunal, repito, dá a razão ao
Juan do Diabo com uma sentença absolutória, todos vagabundos, todos os
malfeitores, todos os descontentamentos e ressentidos da Martinica adotarão essa
atitude briguenta e hostil, erigindo-se a se mesmos em gratuitos representantes da
justiça, repartindo-a por sua própria mão, a costas das leis e dos tribunais.
"Quero que cada um de vocês entenda que falo só em defesa de nossa
sociedade, desta sociedade a que pertence nossas esposas, a que pertencerão nossos
filhos amanha. Não podemos permitir que, pela suspeita de que uma denúncia não
vai ser escutada, tome cada qual a justiça por sua própria mão. A vida do Juan do
Diabo pode ter a brilhantismo de uma novela de aventuras, ganhar admiração das
mulheres e exaltar a imaginação dos moços, e por isso mesmo é tão perigosa, e é
mais forte nosso dever como homens, como chefes de família, como classe diretora
de uma sociedade civilizada, de dar outro rumo à justiça, outros procedimentos à
bondade humana, que pode coexistir com o respeito às leis e ao direito legal de
outros, mesmo que Juan do Diabo pretenda provamos o contrário. Como o médico
que se cura a si mesmo, descobrindo antes que as alheias suas próprias chagas,
quero fazer constar que não será estranho que uma dama de minha própria família,
uma dama da que me considero defensor natural e obrigado, tome partido a favor do
Juan.
"E isto pode lhe ocorrer a qualquer dos cabeças de associação de família que
me estão escutando. Se nossas leis forem más, devemos as reformar; se nossos
tribunais não repartirem verdadeira justiça, devemos esforçamos por Fazê-los
melhores; se nossos costumes forem violados, tratemos de modificar nossas
costumes. Mas que todo se faça com a anuência dos melhores cidadãos, com o
respaldo das leis da metrópole, com a justiça, o direito e o apoio das instituições,
não segundo o capricho, mais ou menos sentimental, do primeiro ressentido que se
eleva em rebeldia, só porque a sociedade o teve sempre à margem.
"Peço, senhores do jurado, piedade para o Juan do Diabo, mas maior piedade
ainda para a sociedade cujos alicerces escava. Seus pecados podem absolvê-los o
coração, mas suas faltas devem ser castigadas, devem ser sancionadas, devem ser
perseguidas e evitadas, nele e em quantos pretendam seguir seu exemplo, como
parecem querer segui-lo todos os homens de seu navio e até esse menino de doze
anos a quem bem pudéssemos chamar o adotado do Diabo.
"É absolutamente preciso lhes fazer compreender, ao acusado e a todos, que
nenhum homem é mais forte que as leis, que nenhum cidadão, se por acaso sozinho,
pode destruir o que há estabelecido a vontade de milhões de cidadãos, que não é a
violência privada o caminho de reparar a injustiça, que ele não pode impor uma
sanção caprichosa como no caso da destruição das barricas de rum dos senhores
Lancaster, porque isso não se chama justiça, chama-se vingança, e este tribunal não
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pode respirar esses procedimentos, a não ser, pelo contrário, lhes pôr reserva,
terminar com eles, cortar toda possibilidade de que coisas assim voltem a repetir-se,
por meio de um castigo justo, enérgico e adequado para o quebrantador de todas as
normas, para o acusado, Juan do Diabo. portanto, peço a este tribunal, para o
acusado.
— Não! Não, Renato! — interrompe-lhe Mônica aproximando-se dele,
completamente fora de si. — Que não seja você. Que não seja sua boca. Que não
sejam seus lábios os que peçam o castigo do Juan!
— Silêncio. Silêncio! — enfurece-se o presidente. — Basta! Vou fazer
limpar a sala! Senhora Molnar, em sua qualidade de testemunha, você permaneceu
indevidamente nesta sala. Passe em seguida ao departamento de testemunhas, ou
será detida por desacato à autoridade.
— Isso não! — protesto Renato.
— Nem ela nem ninguém pode interromper desse modo a ordem de um
julgamento. Falará com seu tempo, quando for interrogada. E se tiver que dizer algo
em favor do acusado.
— É o homem mais generoso da terra! Se vocês representarem à justiça, não
podem condená-lo!
Um grito unânime escapou que as tribunas do povo. Magistrados e jurados
se puseram de pé; os guardas cruzam os fuzis detendo o público que pretende saltar
ao estrado. Incapaz de conter-se por mais tempo, Mônica está frente ao tribunal,
aproxima-se do Juan, volta-se para o Renato. A um enérgico gesto do presidente,
uma mulher vai aproximar-se o, mas não se atreve a tocá-la. Detém-se frente a ela,
imóvel como todos, e se apagam os murmúrios e as vozes com o repentino e
violento interesse de escutar suas palavras:
“Senhores magistrados, senhores jurados, vocês não podem condenar ao
Juan! É preciso que os que vão julgar lhe não cometam contra ele uma nova
crueldade. Pelo amor de Deus, me escutem. ides castigar o por ser generoso? Por
sentir piedade? Por defender aos que nada têm? Por ser o apoio dos desamparados?
Não! A justiça não pode lhe castigar por lutar, defendendo sua própria vida e a de
outros desgraçados, por ajudar a burlar consciências desumanas, por dar amparo a
um menino fugitivo, por ferir um malvado em legítima defesa, que esse é o caso de
Benjamim Duval.
— Senhora Molnar, basta. Basta! — desaprova o presidente. — tomou você
o papel do advogado defensor, e em nenhum caso podemos ouvi-la nesse tom. Não
é para escutar argumentos, a não ser feitos, para o que este tribunal lhe concede o
direito de falar.
— Em seguida chegarei aos fatos, senhor presidente. Só queria suplicar aos
senhores do jurado que fossem menos cruéis com o Juan do que o destino foi com
ele desde menino. Pelo resto, suas faltas, seus delitos, os cargos de que lhe acusa
ocorreram em sua major parte em outros países e sob outras leis.
— A testemunha esquece que os principais cargos são: além de sua rixa com
Benjamim Duval, o descumprimento de sua promessa de lhe seguir pagando uma
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Se ela, em sua infinita nobreza, insiste em ser uma esposa leal, eu peço aos senhores
jurados e aos senhores magistrados que me ajudem a reparar meu grande falta, para
poder seguir me sentindo um homem honrado.
Um silêncio solene seguiu às palavras do Renato. Sem forças para lhe deter
pela segunda vez, Mônica se afastou uns passos. Agora está muito perto do Juan,
mas logo que pode olhá-lo; há um torvelinho que parece girar ante seus olhos, um
golpear de martelos que atormentam sua cabeça. Outra vez, como naquela terrível
viagem até a costa, acredita viver um pesadelo infernal, e para ela, as vozes, mais
que soar, estalam, penetrando-a com cem dardos dá angústia estalando como
chicotadas.
— O acusado pode falar em sua defesa ou aceitar a defesa de ofício que este
tribunal lhe proporcionou — manifesta o presidente.
— Dou as graças ao defensor e ao tribunal — despreza irônico Juan. —
Minha única defesa seria negar a verdade, e não tenho que negá-la. Pouco valem as
razões que pude ter para fazer o que fiz, conforme afirmou a eloquência do senhor
acusador privado. Eu desprezo o dinheiro, desprezo-o e o odeio com toda minha
alma, ou ao menos o desprezei até agora. Talvez por asco de ver que é o preço de
tudo, talvez por causa da repugnância de olhar aferrar-se a ele aos que o têm, e
voltar mais insaciáveis quanto mais ouro se amontoa em suas arcas. Não perguntei
por seu dote ao que me deu por esposa a Mônica do Molnar. Os homens de minha
classe não nos casamos com os dotes, a não ser com as mulheres. E se todo este
processo, tal como acaba de declarar Renato D'Autremont, não tem mais objeto nem
finalidade que me arrebatar à mulher que legalmente me pertence, eu lhe respondo
que não o obterá jamais, a menos que pague a um assassino para me matar!
— Silêncio. Silêncio! — grita o presidente por cima do vozerio que se
desencadeou ante as palavras do Juan. — Suspende-se a vista. Vinte minutos de
recesso antes de ouvir as testemunhas de descarrego. Limpem a sala!
Juan se tornou em vão para a Mônica. Dois guardas lhe fecharam o passo,
outros dois lhe empurram pelo comprido corredor. Em suas mãos está ainda o
dobrado papel que Charles Britton lhe desse ao declarar. Enquanto parte entre
quatro fuzis, abre-o e o lê com ânsia. São só umas palavras, loucas e apaixonadas
palavras de amor, que lhe estremecem lhe fazendo duvidar. É uma letra de mulher,
de comprimentos e nervosos caracteres desiguais. Não há um signo, não há uma
assinatura, não pode recordar se tiver visto antes essa letra, mas o sutil aroma de
nados que exala o papel é como um relâmpago repentino em sua memória, e o
amassa com raiva, deixa-o cair e, como um sonâmbulo, deixa-se levar.
Mônica seguiu os passos do Juan. Escapou às mãos do Renato, esquivou ao
meirinho o que tenta detê-la. Corre ansiosa, com o desejo de alcançá-lo, de cruzar
com ele embora seja uma palavra, uma só palavra. Mas chegou tarde. A porta
cravejada se fechou depois do último guarda, e ela se volta vacilante, como se
despertasse, afogada pelo tumulto de sentimentos que a envolvem. Muito perto da
porta espremeu uma pequena parte de papel, que recolhe com ânsia. Sim, agora
recorda, agora está segura: viu cair esse papel das mãos do Juan, enquanto corria em
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vão por alcançá-lo, e treme pensando que possa ser uma mensagem, uma palavra.
Para ela acaso?
Tem-no lido, uma e outra vez. E quase não compreende, Ao fim, sua mente
se esclarece. Recorda aquela letra, conhece demasiado bem aquele perfume de
nados que, lhe crava na garganta, e murmura em um gemido de infinita desolação:
— Do Aimée para o Juan. Para o Juan. .
Pouco a pouco, todos vão retornando. Mais grave e carrancudo o presidente
do tribunal, mais aborrecido e despreocupado o velho secretário, mais nervosos e
inquietos os doze homens, escolhidos entre todas as classes sociais, que formam o
jurado.
— O tribunal. Reata-se a audiência — anuncia o secretario.
Mônica chegou também, trêmula e pálida, e cravando nela um olhar de
profunda e dolorosa recriminação, cruza Renato até chegar ao centro do estrado. Há
uma fera determinação em toda sua atitude, como uma brusca reação exterior à
desolação de sua alma, e é como um incentivo, que se cravasse lhe torturando,
aquele velho orgulho dos D'Autremont e dos Valois que corre misturado em seu
sangue.
Em silêncio, chega Juan. Também, como Renato, parece mais sereno e mais
pálido; há nele um gesto de determinação desesperada. Gesto que, nos rostos
distintos, marca, como um selo indestrutível, seu inegável parecido de irmãos.
— Antes de dar passo às testemunhas de descarrego — adverte o presidente
— pergunto por segunda e última vez ao acusado Juan do Diabo: Deseja ser
assistida pelo defensor de ofício que lhe outorga este tribunal?
— Não, senhor presidente.
— Bem. Que passem as testemunhas de defesa.
— Testemunhas de defesa: Segundo Duclós Panart. — chama o secretário.
— Por uma questão de ordem, senhor presidente — objeta Renato. —
Segundo Duelos formava parte da tripulação do Lúcifer. Pode considerar-se o como
um empregado do Juan do Diabo.
— Trata-se de um cidadão livre, senhor D'Autremont — rechaça o
presidente — que declarará sob juramento e será réu de perjúrio se suas declarações
forem falsas — E dirigindo-se a Segundo, adverte: — Aproxime-se da barra das
testemunhas. Dá-se você conta da responsabilidade em que incorre faltando à
verdade em suas declarações, testemunha?
— Sim, senhor. Claro. Mas não preciso mentir para defender ao Juan do
Diabo.
— Bom. Jura dizer a verdade, toda a verdade, e só a verdade, assim que
fosse perguntado? Responda: "Sim, juro". E levante a mão para jurar.
— Sim, juro.
— Baixe a mão e diga quanto saiba do acusado Juan do Diabo. Quanto possa
lhe Servir para negar os cargos ou atenuar a responsabilidade deles. Estava você
presente quando a rixa no botequim de "Dois Irmãos", onde resultou ferido
Benjamim Duval?
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gesto ingênuo, a palavra tímida e doce, a atitude suave e apaixonada com que se
apoia no braço do Renato, ao perguntar:
— Meu Renato, o que é o que acontece?
— É o cúmulo. É o cúmulo! Pedro Noel está entre os advogados de defesa.
— Notário Noel, o que tem você que declarar? Uma vez mais, à voz e à
autoridade do presidente, sossegaram-se os fortes rumores, os comentários
violentos, o bater dos pensamentos e as vontades, cada vez mais presos e dominados
pelo interesse daquele processo que põe frente a frente a dois irmãos. Um assombro
indignado faz olhar-se, uns aos outros, aos altos personagens da tribuna dos
influentes. Um anseia de desforra, uma curiosidade violenta, e em alguns insalubre,
sacode as apertadas filas do departamento no que o público comum se amontoa. E
absolutamente sereno, como se por uma vez em sua vida se decidisse jogar o tudo
pelo tudo, Pedro Noel dá voltas entre as mãos à brilhante cartola, companheiro
inseparável de seu gasto levitón, antes de fazer uso da palavra;
— Quase, quase, senhor presidente, minha declaração está de mais.
— Então, por que insistiu em ser chamado como testemunha?
— Houve um momento em que pensei que faria falta, mas a eloquência dos
argumentos da senhora Molnar fez inútil toda intervenção posterior. Ela tem razão:
as palavras estão de mais. Apresentou-nos os fatos em toda sua crua realidade. O
martírio de Colibri, escrito, não em atas, a não ser na própria carne do moço, e seu
sábio pedido aos senhores do jurado lhes pedindo olhar este caso com um sentido
realmente humano da justiça, acredito que sejam o bastante para conseguir uma
falha absolutório, que é o que a maioria estamos desejando. Verdade?
— Senhor Noel, em sua qualidade de testemunha, não é discurso de defesa o
que pode você pronunciar — recorda-lhe o presidente. — Se o acusado tiver
renunciado voluntariamente os favores da defesa.
— É porque tem a consciência de não ter procedido a mau — interrompe
Noel como prosseguindo os conceitos do presidente — Porque pensa que suas
intenções estão muito claras, que se transparentam dos fatos, e é, além disso, senhor
presidente, senhores magistrados, senhores jurados, pela condição especial da
mentalidade do acusado. E isso é precisamente o que devi dizer ante este tribunal.
Como existem hipócritas do mal, existem também hipócritas do bem, e o caso típico
o têm vocês diante, no banquinho dos acusados. Hei aqui um homem nobre,
generoso e humano; um coração que destila piedade e amor ao próximo, muito
ferido, muito humilhado para ser capaz de demonstrar estes sentimentos. Hão-lhe
tratado muito mal para que ele possa dizer, sem rubores, que segue sendo bom e
generoso, e que segue amando a humanidade.
"O senhor presidente disse à testemunha, Segundo Duplos, que dissera
quanto sabia do Juan do Diabo, quanto pudesse lhe servir para desculpar-se, para
negar ou suavizar os cargos. Pois bem, nada pode desculpar tanto os pecados de um
homem como o conhecimento dos dores de sua infância. Segundo Duplos não os
conhece. Tampouco acredito que tenha chegado a conhecê-los a fundo a senhora
Molnar, embora com sua maravilhosa intuição de mulher os tenha adivinhado. Eu
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sim, porque conheci acusado desde menino, e posso dizer que é bom, que é
fundamentalmente bom, senhores jurados, apesar de seus disparates, que sempre fui
o primeiro em censurar.
— Posso fazer uma pergunta ao improvisada testemunha, senhor presidente?
Todos os olhos se tornaram para o Renato. Este chegou trêmulo, tremente de
cólera, contido só pelo domínio admirável que lhe dão sua educação e sua vontade,
e balança, cravando um olhar terrível no rosto sulcado de rugas do velho notário.
— As perguntas que queira senhor D'Autremont — concede o presidente.
— Mais que testemunha, panegirista do Juan, doutor Noel — aponta Renato
destilando amargo sarcasmo — faltou ou não há faltado Juan do Diabo às leis e
regulamentos?
— Naturalmente que faltou, mas.
— É ou não lesivo para uma sociedade, que um homem se cria superior a
suas leis e passe por cima de tudo e de todos para proceder a seu desejo, em forma
arbitrária e ditatorial, distribuindo prêmios e castigos como se tivesse os poderes de
Deus em sua mão? É ou não lesivo, senhor notário Noel?
— Bom, certamente. Não é o sistema ideal de governar, mas.
— Está ou não está neste caso o acusado Juan do Diabo?
— Não posso negar que está neste caso.
— Então, os senhores jurados não têm mais que dar um veredicto, em razão
e em justiça, não é mais que um: Sim. O acusado sim é culpado!
— Mas o acusado não é uma fera, é um homem de carne e osso — rebela-se
Noel com certa violência. — E os senhores jurados são homens também, como
somos homens os notários, os magistrados e os guardas. E existe um momento no
que terá que falar com a razão dos homens, e por isso lhe pergunto eu a este
tribunal: O que ganhará a sociedade castigando ao Juan do Diabo, se seguindo as
leis, por sua letra morta, lhe joga em cima uma pena excessiva e desproporcionada?
— A sociedade se livrará dele e dará um exemplo saudável aos que queiram
imitar seus desplantes — arrebita Renato com altivez. — Além disso, fará um ato de
justiça, de verdadeira justiça, não de justiça sentimental.
— Eu digo uma coisa. Juan é como uma força cega. Rechaçando-lhe e
ferindo-lhe mais, a sociedade lhe faz seu inimigo, converte-lhe em uma força para o
mal. Lhe compreendendo agora, lhe absolvendo, lhe dando uma oportunidade de
reparar suas faltas e de emendar seus enganos, a sociedade ganha para si uma torça
generosa e benéfica.
— Talvez. Mas não pelos meios legais. Você é um homem de leis, notário
Noel. Por isso são mais surpreendentes, mais absurdas, mais descabeladas suas
palavras, e me deu você a mais amarga surpresa de minha vida. Mas não importa.
Está no fiel a balança: de um lado, a sociedade e a lei; do outro, Juan do Diabo. Por
quem se decide você, doutor Noel?
— Eu. Eu. — balbucia o velho notário. — Eu estou do lado do Juan.
— Silêncio! Silêncio! — clama o presidente agitando com violência a
campainha, em um intento mais de sossegar os fortes murmúrios. — foi esgotado o
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tempo dos debates, foram escutados todas as testemunhas. Este tribunal fecha as
atas. Os senhores jurados podem retirar-se a deliberar. Suspende-se a audiência!
O público invade já a sala de audiência aguardando o veredicto daqueles
jurados que já voltam lentamente, enchendo o estrado. Também os magistrados vão
dirigindo-se a seus postos, e o presidente eleva a mão, impondo silêncio, ao
ordenar:
— Secretário, recolha o veredicto do presidente do jurado, e leia-o em voz
alta. E você, acusado, levante-se.
— Aqui está o veredicto, senhor presidente — Tatu o secretario. — O
presidente do jurado diz: "Por minha honra e minha consciência, ante Deus e ante os
homens. Não. O acusado não é culpado!
Uma quebra de onda de alegria frenética sacudiu os bancos nos que se
amontoa o povo. Um rumor estranho, aprovação em uns, protesta em outros,
estremece a — ampla tribuna destinada às personalidades importantes, aos
convidados de honra da sala de audiência. Um vendaval das mais diversas emoções
percorre, de um a outro o extremo, a grande sala, enquanto de pé, crispadas as mãos
que se apoiam no corrimão, Juan procura, com os seus, os olhos da Mônica. Viu-a
elevar a cabeça, levantar as mãos tremendo como se desse degraus a Deus,
retroceder cambaleante de emoção até achar o apoio que lhe empresta o respaldo de
uma poltrona, para ficar logo imóvel junto ao Renato, enquanto ao outro lado
daquele irmão, convertido agora em seu pior inimigo, apareceu aquela outra mulher
que um dia acendesse seu coração e sua carne, e que com falsa solicitude se volta
para o Renato, lhe brindando uma vez mais o espetáculo de sua farsa:
— Meu Renato, não vás preocupar-se muito. Estas coisas passam todos os
dias, e ninguém lhes dá verdadeira importância.
— Silêncio! — solicita o presidente. — Em virtude do anterior veredicto,
este tribunal absolve ao chamado Juan do Diabo, reservando o direito de lhe
admoestar lhe aconselhando mais prudência de agora em diante. Mas em
cumprimento da vontade popular, expressa pelo veredicto do jurado, ordena que
seja posto em liberdade imediatamente, a não estar detido por outro motivo. Ah.
Os custas do julgamento ficam a cargo do senhor acusador privado.
Todo mundo se pôs em movimento. Segundo Duplos, Colibri, os outros
tripulantes do Lúcifer, o tenente Britton e alguns marinheiros do Galión, correram
fada Juan, lhe rodeando com entusiasmo. Descendem os magistrados de suas
tribunas, apartam-se os guardas, o presidente do tribunal se aproxima de estreitar a
mão do Renato, e lhe diz:
— Sinto-o na alma, senhor D'Autremont, mas era de esperar-se. Também
lamento ter tido que lhe condenar ao pagamento de costas, mas a lei é a lei, e nós
não podemos resolver as coisas a nosso gosto, como os senhores do jurado.
— Estou-lhe altamente agradecido, senhor presidente, e não me
surpreendem os resultados. Empreendi o assunto a todo risco.
— E com o inimigo dentro da própria casa. O presidente lançou um olhar
significativo ao notário Noel, que desaparece entre a multidão. Logo se volta para a
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Mônica, mas ela não parece ver nem escutar quanto a seu redor passa. Aguarda
imóvel, tensa, pálida, as mãos crispada obstinadas ao respaldo daquela poltrona, e
ao fim põe-se a andar como uma sonâmbula.
— Mônica.
As largas galerias se esvaziaram, e à voz do Juan, Mônica se detém
cambaleando-se, como se não pudesse mais, como se fosse desabar. O se livrou que
as mãos tendidas, dos abraços que lhe detiveram, e correu atrás dela, mas algo se
paralisa em sua alma ao olhá-la, e as palavras tremem ao sair de seus lábios:
__"Mônica. Acreditei que te partia. Acredito que tenho que te dar as obrigado
e, entretanto, não encontro as palavras que queria empregar. Foi muito nobre e
muito generosa. Desde sua louca proposição de sacrificar seu dote, até sua forma de
falar em meu favor.
— Acredito que todos, ou quase todos, falaram com teu favor, Juan. Não
tem nada que me agradecer, pois não disse nada que não fora verdade.
— Mas o solo feito de que essa verdade esteja em seu coração, já significa
muito para mim. O solo feito de que recordasse tão claramente aquela tarde, quando
te falei do martírio de Colibri, e você.
— Não esqueci nenhuma das horas que passei a seu lado, Juan — confessa
Mônica. E trocando de repente, exclama quase violenta: — Não acredito que deva
perder o tempo em inúteis cortesias. Sabe, melhor que eu, que há alguém a quem
tem muito mais que agradecer. Guarda para ela sua gratidão e lhe dê as obrigado
como se merece. Ela o está esperando.
— Não sei a quem pode te referir Mônica. Juro-te que não entendo.
— Entende muito. Claro que o menos que pode fazer é dissimular, mas
comigo a dissimulação é vã, absolutamente desnecessário. Tenho a obrigação de ser
discreta. Soube calar e seguirei discretamente.
— Calar? No que vais calar?
— Não me pergunte muito, pois até minha vontade e minha paciência
podem ter um limite, porque eu também posso enlouquecer e gritar como se grita de
dor, sem que nos seja humanamente possível suportar mais.
— Juro-te que. .
Bruscamente calou Juan. Muito perto da Mônica, a suas costas, ergue-se a
figura altiva do Renato, pálido de ira, apertadas as mandíbulas, relampagueantes as
pupilas. Ao gesto do Juan, Mônica se volta, para retroceder espantada. Como duas
espadas chocaram no ar os olhares daqueles dois homens, mas não brota de nenhum
dos lábios o insulto que parece tremer nas pupilas de ambos. É como se dois
mundos distintos estivessem frente a frente, multiplicando seu veneno ao calor
daquele sangue traiçoeiramente fraternal, até que ao fim Renato parece achar a arma
mais cruel com que possa ferir o irmão sem nome: o desprezo. E volta a cabeça, lhe
ignorando, para lhe falar com a Mônica:
— Suponho que é inútil te pedir que volte conosco a casa.
— Totalmente inútil! — salta Juan sem poder conter a ira que o embarga. —
Me perdoe que responda por ti, Mônica, mas ainda estamos casados e não há pena
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infamante, não há falta em mim, que te autorize a pedir esse divórcio que tanto
deseja Renato. É o que mais avaliação desta liberdade que você mesma tem feito
que eu alcance, e pela que te estou dando as obrigado.
— Hoje todos têm razão contra mim, mas não por isso vou desalentar-me —
confessa Renato com amargura incontrolável. — Já vejo Mônica, que quer cumprir
até o fim seu papel de esposa exemplar. Por desgraça, não tenho o poder de impedi-
lo. Sempre a seus pés, Mônica. Se por acaso não sabe, quero-te dizer que sua mãe
segue te aguardando em sua velha casa, e que na minha, aconteça o que acontecer,
estão totalmente aberto as portas para quando quiser retornar. Boa tarde. — e com
passo rápido e gesto altivo, Renato se afasta deixando sozinhos aos maridos.
— Me deixe agora, Juan — roga Mônica com desalento. — Já me deu as
obrigado. Obrigado que não merecesse, posto que não fizesse a não ser cumprir
com meu dever.
— Que te deixe? — surpreende-se dolorosamente Juan — Então, quanto
disse no tribunal foi só porque considerou seu dever reparar uma injustiça? Então,
sua atitude pondo-se de minha parte e contra Renato, era sua consciência, não seu
coração quem a ditava?
— Suponho que para ti é igual.
— Não é igual, posto que lhe pergunte isso deste modo. Não é igual,
quando te exijo. Sim, exijo-te que me diga a verdade de sua alma.
— Não acredito que tenha direito a lhe exigir nada a minha alma. Nossa
dívida está paga. Suponho que hoje, seu orgulho e seu amor próprio estão bem
satisfeitos. Hoje não pode duvidar do que sente por ti a mulher que um dia te traiu.
Por ti enganou, mentiu, comprou vontades. Por ti se exposto a tudo, baixando até
seu calabouço para que a tivesse nos braços.
— Quem te há dito Mônica. Quem? Acaso?
— Acaso eu mesma lhe vi, mas isso não tem já nenhuma importância,
porque isso é minha coisa, e o que importo eu? O que posso eu te importar?
— E se me importasse mais que ninguém, mais que nada no mundo?
— Como o que? Como bota de cano longo? Como arma contra Renato?
— Por que não se esquece do Renato? É que não pode dizer duas palavras
sem lhe nomear?
— Foi a ele a quem desafiou. Por ódio, não por amor, falaste de me reter a
seu lado. Mas, o que sabe você o que é amor?
— E por que tenho que sabê-lo menos que Renato? Seu Renato!
— Não é meu Renato nem o será nunca!
—Talvez o seja já, talvez agora tenha aprendido a te amar, e talvez você
suspire por ele ainda. Mas você não vais ser dele! Não vais ser nunca! Jamais!
Furiosamente, cego de ira, como nos dias tormentosos em que atrás de suas
forçada bodas a levasse através dos campos até o Lúcifer, fala Juan, oprimindo entre
suas largas mãos as frágeis mãos da Mônica, e esta joga para trás a cabeça,
entreabrindo as pálpebras. Sente as ilusões mortas, a alma transbordante de
amargura, mas ao contato daquelas mãos, de uma vez imperativo e tenro, rude e
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hospedagem que nos brindam os botequins do porto? Nada disso é digno de uma
dama, mas.
— Me leve a Convento das Irmãs do Verbo Encarnado!
Capitulo 16
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— Mas não chegou. Não foi — refuta Juan, vivamente interessado. — Tudo
ficou em uma boa intenção, em um propósito vão.
— Não chegou até sua cela, porque seu lugar estava ocupado. Havia outra
mulher. Por seus próprios olhos a viu Mônica.
— Não pode ser! — exclama Juan, desconcertado.
— Foi. Eu estava perto e a vi chegar à grade, olhar para dentro e afastar-se
tremendo. Ao Renato disse que se tratava de um advogado, mas depois, a sós
comigo. Não nomeou a ninguém, a ninguém, nem tampouco fez falta. Conheço
bem o mundo, e sei até onde são capazes de chegar às mulheres da massa do Aimée.
— Não pode ser.
— Pois sim é. De um só golpe se destroçaram suas ilusões, suas lembranças.
E muito nobre foi declarando a seu favor e ficando de sua parte enquanto levava a
morte na alma.
— Temo-me que você seja muito cândido. Noel — augura Juan, incrédulo.
— Mônica é uma mulher admirável. Não sou eu quem vai lhe regatear os méritos,
nem o valor, nem a integridade, nem a lealdade. Mas não quer, nem me quererá
alguma vez. Ou lhe disse ela que me amava?
— Bom, dizer-me isso dizer-me isso assim de claro, com palavras, não me
disse isso. Mas terá que ter em conta sua humilhação e seu despeito. Ela, como
esposa.
— Como esposa? Não, Noel, Mônica não foi minha esposa jamais. A mulher
que legalmente me entregaram em Campo Real, a que levei a força sobre a sela de
meu cavalo, como conquista de vândalo, continua sendo a senhorita do Molnar.
Um gesta amargo pregou os lábios do Juan. O velho notário o olha confuso,
desorientado, mas Juan reage bruscamente, cravando em seu ombro a mão larga e
dura como uma garra, ao ameaçar:
— Mas pense que o hei dito a você, a você somente, e que repeti-lo poderia
lhe custar muito caro, porque sou capaz.
— Me tire à mão do ombro, que me está desancando, e te deixe já de dizer
sandices — interrompe-lhe Noel com falso mau humor. — Nem eu vou repetir a
ninguém o que não lhe importa, nem me dão medo suas tolas ameaças. De modo
que essa foi sua conduta com ela?
— Estava doente, quase moribunda. A febre a aturdiu durante dias inteiros.
Durante várias semanas não soube de si mesma. Quando voltou para a vida, já
minha bebedeira de odeia tinha passado, e ela não era mais que uma pobre mulher
doce e frágil como uma flor. Como uma andorinha com as asas rotas, que tivesse
cansado sobre a coberta de meu navio.
E o velho notário baixou a cabeça. Há um estranho nó de emoção em sua
garganta, que não lhe deixa falar, e algo como um véu de pranto em seus olhos
cansados, ao comentar:
— Resulta um tipo bastante estranho, Juan.
— Por quê? — refuta Juan com simulada indiferença. — Não é mérito de
nenhuma classe. O que importa uma mulher mais? E uma mulher que quer a outro.
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— Se for como você diz que é não acredito que o faça. E em último caso,
oferece a humilhação a Deus no fundo de sua alma.
— Isso não é possível. Mãe. No mundo não é possível. Você, sob o escudo
de seus hábitos, na sombra do claustro, olha as coisas de outro modo.
— Em todas as partes se pode servir a Deus, minha filha, e oferecer o
sacrifício de nossos pecados. E seu pecado de orgulho…
— Não é só orgulho. Mãe é pudor, dignidade. Não sei Mãe, é algo superior
a meus força, como se minha sorte estivesse decidida de antemão, como se meu
destino o marcasse. Em meu coração, os amores não nascem a não ser para secar-se
a sós, para crescer com a rega amarga de minhas lágrimas. Ele não me quer Mãe.
Quando me falou de lhe acompanhar, fez-o em términos de que eu não aceitasse;
quando lhe falei de me trazer aqui, nem sequer me perguntou se era por uns dias ou
por toda a vida que pensava me olhar aos muros desta Santa casa. Não queria a não
ser desfazer-se de mim; parecia impaciente, irritado, ansiosa por recuperar a pouca
liberdade que minha presença pode lhe subtrair.
— De todos os modos, é sua esposa, e seu dever é estar a seu lado. Deve lhe
esperar em um lugar onde possa retornar a ti, não no claustro, a não ser em sua casa.
— Não é só minha. Antes que a ninguém, pertence a minha mãe, e também a
minha irmã. Nela entram e saem gente às que não quero voltar a ver, às que não
posso voltar a ver, Mãe. Naquela casa me volto louca, acabaria até por duvidar que
seja cristã.
— Calma, te acalme. Esta é sempre sua casa, mas já não como antes. Está
casada, tem um dever iniludível no mundo.
— Não posso voltar junto a meus. Minha mãe odeia ao Juan. Foi à primeira
aliada do Renato, a que mais lhe animou a que, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe
que faça todo o humanamente possível para me liberar desse matrimonio que lhe
causa horror. E minha irmã. Minha irmã. Não, Mãe, não posso voltar a ver minha
irmã!
— Escuta minha filha. Prescindindo de sua gente e de sua casa, tem modo de
viver sozinha e honestamente. Seu dote foi depositada neste convento por seu
próprio pai. Quando me disseram que chegava com seu marido e um notário, pensei
que vinha a retirá-la. É perfeitamente legal, esse dinheiro te pertence.
— Em efeito, terei que Fazê-lo retirar; mas, em realidade, já não é meu.
Serve de garantia a uma dívida, uma dívida que quero pagar aconteça o que
acontecer. Mãe tenho sua promessa, sua promessa e a do Pai Vivier. Estendo faz
algum tempo saí desta casa para provar minha vocação, vocês me disseram que se
algum dia voltava ferida, destroçada, sem forças para lutar nem para sofrer mais,
abririam-se as portas desta casa. Se vocês não me acolherem, se vocês me
rechaçarem.
— Não lhe rechaçaremos. Se for realmente assim como se sente, fique e que
a paz de Deus chegue a sua alma.
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— Juan, antes de te beber esse copo de veneno, quero que me diga o que te
ocorre para estar nesse lamentável estado de ânimo.
A mão decidida do velho notário deteve o largo copo cheio de rum até os
borde, impedindo que Juan o leve a seus lábios, e os olhos vivazes piscam muito
depressa, como se queria penetrar até o fundo os pensamentos que se ocultam atrás
daquela cabeleira encrespada, através r os grandes olhos italianos, desdenhosos e
magníficos, carregados de dor e de sombra.
— Ainda quer você que lhe diga o que me ocorre? O que me ocorreu
sempre?
— Pelo que te ocorreu sempre não vamos falar, mas sim do que te ocorre
agora. Não saíste com bem desse processo, desse processo de todos os diabos? Não
lhe hão dito no Tribunal que o veleiro está a sua disposição desde manhã, sem que
tenha por isso que pagar um solo centavo, porque os senhores jurados, ao te declarar
"não culpado", desviam de ti toda ação da justiça, anulam o embargo de sua
propriedade e lhe deixam limpo de toda mancha?
— Sim. E o que?
— Quando chegou de uma misteriosa viagem, que certamente já não é tão
misterioso, não me disse que trazia dinheiro bastante para trocar de vida? Não me
falou de uma empresa de pesca? Não me confiou seu projeto de levantar uma casa
no penhasco do Diabo?
— Ora! Mais vale não falar destas coisas. Já o que sinto não é rancor, não é
ódio, a não ser asco.
— Calma, o asco, deixa o rum e me escute. Foste casar-te; agora já está
casado. Não te parece que seu projeto vem de pérolas a seu novo estado civil?
— Sou casado com uma mulher que não me quer que nunca me queira. Por
favor, basta já! Entrei aqui para livrar-me dar de todo isso, para afogar em rum até o
último rastro do que passou.
— Por que não te aproxima da alma da Mônica? Ou, se o preferes, ao
coração.
— Está ocupado. Enche-o totalmente a imagem de outro homem, e o
remorso de amá-lo, que para ela é um pecado mortal. Sofre como uma condenada
retorce-se como entre as chamas de um inferno, e eu não sou o bastante abnegado
para suportar esse sofrimento pelo amor de outro.
— Quer-me dizer que reconhece que Mônica te interessa de um modo
extraordinário?
— Não reconheço nada! Deixe-me em paz! Convidei a tomar uma taça, não
a me colocar sermões que nem me fazem falta nem quero escutá-los — rechaça
Juan com violência; mas em seguida se reprime e em tom de suave amargura,
desculpa se agradeço sua boa vontade. Noel, mas não insista não me faça remover o
fundo deste poça amargo que é minha alma, não insista em tirar flor de lábios à
verdade.
— E por que não, meu filho?
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— Pensa você que eu não quis me aproximar da alma da Mônica? Pensa que
não tive lástima de sua tortura, que não cheguei a sentir a ilusão de que por fim se
rompiam as cadeias de seu amor maldito, e de que eram minhas mãos, minhas
palavras, minha devoção silenciosa as que falam feito o milagre?
— Fez todo isso?
— Sim, Noel, fiz todo isso, e fracassei. E sabe você por quê? Porque Mônica
do Molnar não pode amar ao Juan do Diabo. Pode casar-se com ele, em um
torvelinho de loucura; pode até morrer por ele, se fizer falta, pagando uma dívida
que seu orgulho não lhe permite conservar. Mas amá-lo para a vida, compartilhar
com ele a vida senti-lo a seu lado como a igual. Não. Noel.
— Acredito que está totalmente equivocado com respeito a essa moça. Ela
não tem prejuízos. E se os tem, rompe você, que força tem para isso e para muito
mais. Rompe seu amor impossível, tira-a do inferno em que se agita, levanta-a em
seus braços, e salva-a. Salva-a contra ela mesma. Você pode fazê-lo, Juan, é sua
esposa e.
— Não, Noel, ela pode gritá-lo frente a um tribunal, mas não senti-lo dentro
de si. Não sou mais que um proscrito, um excluído de todas as partes. Não tenho
direito a usar nem sequer o nome de minha mãe. Com quem se casou Mônica do
Molnar? Com ninguém. Noel, com ninguém.
Repentinamente exaltado, faiscantes as pupilas, há falado Juan como se por
fim deixasse aparecer em flor de seus lábios amarga verdade. Mas o olhar do
notário, funda pormenorizada, carregada de simpatia e amizade, move-lhe a
abandonar-se, deixando correr, quebrados os diques, a enorme corrente:
"Aceitei a me casar com a Mônica porque a odiava, porque aborrecia nela
tudo que desde menino me tinha ofendido, infamado. Compreende você? Era como
uma vingança. Odiando-a, tivesse podido mantê-la a meu lado aborrecendo-a,
haveria sentido o prazer, a necessidade de fazer mais forte o nó que nos ata. arrastá-
la a meu abismo, manchá-la com minha lama, engendrar nela filhos que, como eu,
não tivessem tido nome legal com que recensear-se. Mas não a odiando, como
posso lhe fazer tanto dano? Ela nasceu para outro mundo, para outra coisa. Por ela,
e só para ela, acredito que deve existir esse mundo ao que detesto ao que queria
destruir e destroçar: o mundo das gente podas, sem uma mancha, sem uma sombra.
— Nisso te equivoca, Juan. Também há sombras e manchas, até no coração
dessa criatura admirável. Seu louco amor a eleva muito. Ela também é de barro,
posto que ame a quem não deve amar…
— E com quantos dores não expiou esse amor que sua consciência lhe diz
culpado! Acaso, por ele, não renunciou quase desde menina a todos os prazeres da
vida? Você venha, apareça. Veja essas paredes que temos diante. Não são menos
sombrias que os muros de um cárcere.
Arrastou ao notário até a porta daquele botequim, como escondida entre a
volta de duas ruelas, mas de onde pode abranger-se de um sozinho olhar o maciço
edifício, convento das monjas do Verbo Encarnado. É como um bloco de pedra, com
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janelas protegidas por dobro reja muradas com madeiras que nunca se abrem, com
muros centenários, largos e surdos como os de uma fortaleza.
É pior que um cárcere; é como uma tumba. Noel. E, entretanto, quis voltar
para ela, quis encerrar-se atrás dessas paredes depois de ter visto meu lado o sol, o
mar, o céu azul e livre.
— Mas você não lhe falou do sol nem do céu. Falou-lhe de levá-la aos
botequins do porto.
— São meu mundo, como aquele é o mundo dela. Nascemos nos extremos
da vida. O azar nos juntou um momento.
— E sua vontade pode juntá-los para sempre. Por que não prova?
— A que? Arrastar-me a seus pés? Reclamar direitos que, pela forma em que
me foram outorgados, é pior que mendigá-los? Não, Noel. Posso ser um bandido,
um pirata, um emparelha, mas não um mendigo.
— Autoriza-me para ser eu quem fala a Mônica?
— Não! Nem você nem ninguém falará em meu nome com ela. Nem a ela
nem a ninguém dirá nada de quanto acabo de lhe dizer, porque faria traição à
confiança que acabo de pôr em você e seria bem amargo que me falhasse o único
homem em quem confiei em minha vida inteira.
— Juan de minha alma, me ouça, me entenda — enternece-se Noel — Sou
velho e conheço a vida sem romantismos, sem frescuras. No mundo triunfam os
fortes, os audazes, e você o é. Não lhe demonstraram isso já os fatos? Se quiser
lutar.
— Triunfaria de todos, menos dela. Vencem-se as tempestades, domam-se os
mares, fazem-se pó as montanhas, batalha-se contra os homens até vencê-los, mas
não ganha o coração de uma mulher pela força.
— Por forte ama a mulher ao homem, como o homem ama a mulher por sua
doçura e sua beleza. Diz que está muito alta? Por que não subir então? Você vale o
bastante para te pôr entre os primeiros, se lhe propuser isso.
— Já. Governador. Juan do Diabo. — mofa-se Juan com sarcasmo.
— E por que não? Outros o têm feito. As árvores que crescem mais altos são
os que nascem no fundo do bosque mais espesso. Até agora provou seu valor
desprezando ao mundo. Prova-o, conquistando-o e pondo-o a seus pés.
— Enquanto ela toma os hábitos? Não, Noel, deixa-a em seu convento. Eu
tomarei meu navio amanhã e irei para sempre. Largo é o mar para os marinheiros
sem rumo!
— Como quer. Isto é o que se chama ganhar para perder. Mas, quer que te
diga uma coisa? Não valia a pena de enfrentar-te ao Renato para isto. Ao fim e ao
cabo, vai dar gosta em todo. Sabe qual era a pior condenação que podia te sair? A
morte. Era a pena máxima que reclamava para ti Renato, e não sentiria saudades
nada que, a estas horas, dona Sofia D'Autremont esteja intrigando com o
Governador para que firme um decreto te mandasse sair da ilha, até depois de ter
sido absolvido.
— Você Acredita capazes?
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— Bom… não terão que incomodar-se. Logo que saibam que te desterra
voluntariamente e que abandona a sua esposa.
— Não a abandono! A deixo em liberdade de fazer o que quiser. É o que ela
deseja. Por nobreza, por lealdade, por dever ficou de minha parte. Pois bem, eu
cedo.
— Disse publicamente que teriam que te matar para separar-te dela.
— Enganou-me sua atitude ante o tribunal. — detém-se um momento, e
com repentina ira, se irrita: — Mas só de ouvir dizer a você que os D'Autremont
intrigam para meu desterro. Antes de ir, procurarei o Renato, e cara a cara lhe direi.
— Que aí fica Mônica.
— Pretende você me enlouquecer? — enfurece-se Juan.
— Pretendo que tome o leme, como tomou para tirar adiante o guarda
costeira a ponto de naufragar. Não te importou estar cem milhas fora do rumo, não
te importou que não funcionasse as máquinas, não te importou que te soprasse um
ciclone, te empurrando ao lugar mais perigoso. Tomou o mando, improvisou velas,
achou o rumo, esquivou os maus ventos. E não ia ao navio a mulher a quem amava.
— É certo, todo isso é certo. Mas queria chegar, queria voltar vê-la, queria
saber se a luz que eu tinha visto em seus olhos era verdade ou mentira.
— E agora, não quer sabê-lo? Juan, uma vez te perguntei se não te
importaria te chamar Noel.
— E rechacei a honra, mas não cria que não soube agradecê-lo.
— Naquele momento, doeu-me. Hoje penso que teve razão ao rechaçá-lo.
Pouca coisa é meu nome para um homem de sua têmpera. Há duas classes de
homens, Juan: os que fazem os nomes e os que os herdam. Por que não fazer o teu?
Já quase parece. Chamar do Diabo é o mesmo que chamar-se de Vale, ou do Mar, ou
da Montanha, e se procurarmos os origens desses sobrenomes, chegaremos a que os
deu um pedaço de terra, como a ti deu o teu seu montanha do Diabo.
— Talvez tenha razão.
Juan se pôs que pé, apartou a garrafa e o copo, chegou outra vez à porta,
para observar com um intenso olhar as escuras paredes do convento. Logo, põe-se a
andar rua abaixo, e, com uma esperança nas pupilas, Pedro Noel parte em seu
seguimento.
Capitulo 17
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que dá ao pátio interior, olhando, sem ver, através das grades de madeira. Parece
abstraído em um pensamento muita amargurado, áspero e ausente, mas suas
sobrancelhas se elevam com desgosto ao sentir aproximar-se da mulher que chega.
Posso te falar um momento? Suponho que não lhe interrompo na tarefa de
não fazer nada.
— Desejo estar sozinho, Aimée. Não o compreende?
— Em troca, eu estou farta de me encontrar sempre sozinha, e acredito que
"você também poderia compreendê-lo. Já sei que está furioso, que não quer me
ouvir nem lombriga, que no fundo de seu coração me joga toda a culpa do que
passou.
— OH! Tem-te proposto me desesperar?
— Destroça-me o coração com sua indiferença, tortura-me com seu desamor
e sua frieza. E eu não quero a não ser conquistar seu amor outra vez. Volte a me
querer, meu Renato, me volte para querer!
Aimée jogou os braços ao pescoço do Renato, pondo um beijo de fogo sobre
seus lábios. É a batalha que começa o combate que precisa ganhar para sentir-se
firme, para poder erguer-se altiva sob o teto dos D'Autremont. Aquele filho
devotado em vão, que precisa pôr realmente em mãos do Renato. Aquele filho a
cuja só espera se dobra a razão e o orgulho da Sofia. Aquele filho que
indispensavelmente tem que chegar, e que ainda não pulsa em suas vísceras. Aquele
filho sem o que tudo estará perdido para ela. Para obtê-lo, é preciso que vença o
desamor do Renato, que rompa o muro de gelo em que se envolve que reconquiste
sua paixão embora só seja por uma hora. Uma hora de senti-lo outra vez escravo
entre seus braços. Mas Renato, suave e frio, a rechaça:
— Minha pobre Aimée, por favor. Acalme-te.
— Não me quer já. Esquece-me, abandona-me, só pensa nesse assunto
desventurado — Nesse assunto desventurado estão minha honra e meu prestígio. E
a vida inteira da Mônica.
— Por que te empenha em te fazer responsável? Bastante lutaste e expiaste
já essa culpa, caso de que a houvesse.
— Não foi o bastante, posto que não obtivesse nada. Necessito não dar paz à
mente, me torturar o pensamento, atormentar a imaginação até que dela surja o novo
plano de combate, a conduta que devemos seguir os recursos de que podemos
valemos. Deixe-me, Aimée, peço-lhe isso! Preciso pensar, e para pensar. Perdoe-
me, mas me estorva.
— OH! Isso é tanto como me chamar. — faz-se a ofendida Aimée
— Não é te chamar nada. Simplesmente, é te falar claro. Acredito que, por
uma vez na vida, pode me compreender. E neste momento, pensa que se trata de
sua própria irmã.
— Se trata de uma odiosa rival, da que te ocupa mais do que devesse! — se
irrita Aimée com autêntica ira. — Fará que a aborreça!
— Cala! Se alguém te ouvisse te expressar desse modo.
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— Não iremos ao carro. Sairemos sem, que nos veja ninguém, nem ninguém
possa contar logo por onde estivemos. Traga-me a roupa. Apure-te. Anda.
— Mas, senhora, me deixe lhe dizer primeiro o que acontece. É que.
— Anda estúpida!
Com uma fúria cega e incontrolável despediu Aimée à mestiça faxineira, e
agora espera impaciente sua volta, que não se faz esperar quando adverte, chegando
sufocada:
— Aqui está senhora Aimée. Mas o homem segue esperando.
— O homem? Que homem? Logo, me dê à saia!
— Aqui está. Traga-lhe também minha blusa nova, mas se me sua isso muito
me vai danificar isso.
— Comprarei-te cem blusas, estúpida! Ajude-me a vestir! Grampeie-me.
Dê-me o lenço enquanto vou trocando de penteado.
— Está bem. E o homem na rua, volta e volta. E como bom moço, é bom
moço. Mais que o senhor Renato.
— Que idiotices estão dizendo?
— Nada. Você não quer me ouvir. Digo que o homem volta e volta para
acima e para abaixo, passeia e passeia, e com tanto momento esperando vai a
desimpedira a rua. Terá que ver como lhe alegraram os olhos a ver aparecer. E vai e
me diz: "Eu a vi junto a ela. Certamente, você é sua criada de confiança". Até por
cima da roupa me conhece, minha ama, que sou sua criada de confiança. O homem
é mais preparado.
— De quem está falando?
— De quem vai ser? De que está volta e volta, para acima e para abaixo, na
rua, de esquina a esquina, e olhando para cá. Come-se com os olhos a porta e a
janela. E ao fim foi e me disse: "Se quisesse você ter a bondade de lhe avisar a sua
ama que eu seria o mais feliz dos mortais se pudesse lhe falar a sós duas palavras”.
— Mas. Mas, de onde tira todo isso?
— Disse-me isso ele. De repente, assim de repente, não o conheci, porque
não vem de uniforme, mas sim de patrício. Mas, assim e tudo, está da melhor moço.
Acredito que se chama o tenente Botton.
— O tenente Britton? — retifica e pergunta Aimée. — Viu-lhe?
— Pois não lhe estou contando? Se aparecer à janela, verá-o daqui acima.
Não sei desde quando está rondando a casa, e com uns olhos de apaixonado. Terá
que ver que fino. Esta o chapéu se tirou para me falar.
— O tenente Britton ronda minha casa? Então, sabe quem sou, posto que
viesse até esta casa.
— Seguro que sabe. — Não vai você a falar com ele, senhora? Está
esperando que eu lhe diga algo. Para isso me deu vinte francos.
— E você tomou? Deveria te jogar a chutes! Este tenentinho é um afresco!
Terá que ver. Tratar dê te subornar.
— Está bem, não fique brava. Direi-lhe que se vá.
— Aguarda. Deixe-me pensar. O tenente Britton. O tenente Britton.
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— Se lhe faço dar á volta e o coloco pela portinha do curral, e vão se falar lá
com fundo, onde estão às matas de manga, não os vê ninguém — assegura Ana com
entusiasmo. — Lhe vai falar senhora?
— Não, não e não! Espere-te. Está-me ocorrendo algo. Está-me ocorrendo
uma coisa que. Sim; Sai pela porta do curral faz-o passar. Que me espere
justamente nesse lugar onde não vai ver-nos ninguém, e você volta a me ajudar para
que me troque de roupa.
— Outra vez?
— Posto que saiba que sou a senhora D'Autremont, não vou apresentar-me
com o traje de uma criada, a não ser justamente o contrário, precisamente
justamente o contrário. O tenente Britton, né? Acredito que chegou a tempo. Este é
o homem que eu necessitava. Dê-me o traje branco. Não. O vermelho, o de seda.
O pega antes de ir. Quero lhe parecer muito formosa, quero lhe agradar de ainda
mais do que lhe agradei. Anda. Anda. Ai, Renato, que logo me vais pagar isso!
— Como? Por aqui?
— Pois claro. Pensou que ia poder entrar pela porta grande? Por este lado, e
caladinho. Caladinho para que não o ouçam da cozinha ou da garagem e comecem
a falar esses fofoqueiros. Caladinho, e depressa. Vamos. Vamos.
Ainda mais surpreso que adulado, olhando a todas as partes com a
inquietação de um soldado acanhado e a audácia ingênua de seus vinte anos, o
oficial inglês cruza pela portinha do pomar, atrás da Ana, e se interna com passo
rápido e silencioso através do enorme pátio que, com todas as honras de pomar,
remata sobre uma ruela solitária a vetusta mansão dos D'Autremont, no Saint-Pierre.
— Espere à senhora. Com calma, né? Com muita calma. Olha, aí há um
banco. O melhor é que a espere sentado.
— Está você segura de que vai vir?
— Pois, claro. Para que se não me ia mandar colocá-lo por esta porta? A
senhora está muito aborrecida do senhor Renato. Já verá. Já verá.
Charles Britton cala cada instante mais desconcertado. Aquela mulher de
olhos maliciosos e sorriso panaca chega a lhe fazer duvidar do que por si mesmo
olha e ouça. Um instante lhe pareceu que se burlava dele… Logo, incapaz de seguir
o conselho de sentar-se, aguarda a pé firme, freando apenas sua impaciência.
— Boa tarde, senhor oficial — saúda Aimée com irônica paquera. — Confio
em não lhe haver feito esperar muito.
— Toda a vida pode esperar-se com tal de vê-la chegar. Charles Britton se
deteve deslumbrado ante a radiante beleza do Aimée do Molnar. Aquele traje de
seda carmim, que tão maravilhosamente ressalta suas formas estatuárias, dá —
também a seu rosto uma aceso cor de vida. Os negros olhos brilham de uma vez
malévolos, zombadores e audazes, e é a fina e dobro fileira de seus dentes brancos
como um colar de pérolas que aparecesse entre os corais dos lábios sensuais e
gulosos.
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— Começo por lhe devolver a você sua gorjeta, em nome da Ana. Aqui tem
seus vinte francos. Se, como suponho, tem algo realmente importante que me dizer,
não precisa pagar para que lhe anunciem.
— Eu não tentava pagar nada. Só tratava de corresponder à boa vontade da
moça — desculpa-se o oficial, sentindo-se incomodado.
— A pobre Ana é parva e simploria. Não o notou? Sua falta de miolo me põe
a cada momento em situações verdadeiramente lamentáveis. Mas é muito leal e
muito viciada em minha pessoa para não perdoar-lhe
— Compreendo — assente o oficial com desencanto. — Trata você de me
dizer que se estiver aqui, se me recebeu que esta maneira, como eu não me atrevia a
sonhá-lo, só se deve a um engano de sua donzela.
— Mais ou menos. Mas não ponha essa cara, não se entristeça dessa
maneira. Você não tem a culpa se ela não soube explicar-me.
— Aguarda você a outro, verdade?
— Confesso-lhe que sim. Mas não se atormente mais. Esclareci-lhe o ponto
por medo de que tomasse você pelo que não sou.
— Eu não posso tomá-la, mas sim pela mulher mais bela que vi.
— Exagerado, ou galante, senhor Britton? Mas, para que vamos a discutir?
Seja pelo que seja o caso é que aqui estou, e se realmente tem que me dizer algo,
um pouco de interesse, um pouco de importância.
— Temo-me que para você não o seja, senhora. Acredito que é preferível
falar com absoluta sinceridade. Tomei a sua donzela por uma dessas faxineiras mais
prontas que tolas, com capacidade suficiente para, sem incomodar a ninguém, me
permitir realizar o desejo de vê-la um instante e de lhe dizer adeus antes de partir.
Minha missão terminou com o julgamento, e devo voltar para a Dominica
aproveitando a fragata que se acha em porto, e que garra nas primeiras horas da
madrugada.
— Tão logo se vai? Que lástima!
— Parece-lhe com você muito logo? Sente-o de verdade?
— Franqueza por franqueza, não vou negar se o Foi você
extraordinariamente simpático, e me alegro muitíssimo de que a casualidade me
tenha posto em condições de lhe fazer uma pergunta. Como foi que havendo você
posto o papel o que lhe confie, nas mãos do Juan, outra pessoa tivesse esse papel em
seu poder uma hora mais tarde? Por desgraça, foi parar às mãos de alguém que tem
muito interesse em me prejudicar.
— Como? É possível? Então. Mas como pôde ser? Dou-lhe minha palavra
de honra, juro-lhe que o pus nas próprias mãos do Juan.
— Sim. Quase lhe vi pô-lo em suas mãos. Mas, para que veja que não minto,
aqui o tem você, aqui está. Reconhece-o?
— OH, sim! É incrível Estou realmente desolado, senhora. Diz você que este
papel a prejudicou?
— OH, não! Disse que pôde me haver prejudicado, lido por uma pessoa que
certamente o teria interpretado mal.
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— Não, Pai, está você equivocado totalmente. Por uma vez estou de acordo
com a senhora D'Autremont, que é sem dúvida a que traz para minha mãe Assinarei
o que seja com tal de devolver ao Juan sua liberdade. Já sei que para ele é igual, que
em nada pode estorvar a sua vida aventureira o insignificante detalhe de ter uma
esposa. Eu sou para ele menos que uma sombra, menos que um fantasma, mas até
esse fantasma quero apagá-lo. Com sua permissão, Pai, vou ao locutório onde me
aguardam. Vou a terminar quanto antes.
Com passos leves se afasta Mônica em direção ao locutório, de repente,
alguém a chama:
— Oi, minha ama.
Paralisada de surpresa; deteve-se Mônica ao cruzar muito perto das taipas
que separam o horta do convento, do mundo exterior. Logo que pode dar crédito a
seus olhos, porque a miúda figura moreia, que descendeu com surpreendente
agilidade para aproximar-se dela com seu passo silencioso e furtivo, é alguém cuja
só presença remove até ele fundo as fibras de sua angústia.
— Colibri! Mas, como pode ser isto? Como está aqui? Por onde entraste?
Saltaste as taipas da rua?
— Sim, minha ama, tinha que vê-la, tinha que lhe falar. Pela porta grande
fui três vezes, e não me deixaram entrar. Subi-me por acima de um carro que está aí
parado, agarrei aos ramos dessa árvore, e logo me agachei me tampando com as
folhas, porque havia aqui umas senhoritas vestidas de branco que passeavam de dois
em dois. Estive-me esperando, esperando, até que de repente vi que vinha, e então
me baixei correndo. Fiz mal, minha ama? Eu queria ver a você.
— Não, Colibri, não tem feito mal.
A mão suave, com frágil brancura de madrepérola, apoiou-se sobre a
redonda cabeça escura, acariciando os curtos cabelos lanosos; logo, tomando a
Colibri do queixo, obriga-o a olhá-la frente a frente para ler no fundo das escuras
pupilas a resposta real à pergunta que balbuciam seus lábios:
— Com quem estava. Colibri? .
— Com ninguém, minha ama. Digo Segundo me levou para o Lúcifer, mas
ali não está você, nem está o amo. Ele não queria que eu viesse a terra, mas me
desci pela cadeia da âncora, meti-me em um bote que estava ao fado carregando
sacos, e quando o lancho aproximou ao mole me soltei a correr. Quando eu corro,
minha ama, não há quem me alcance. Corri o bastante, e quando já não me podia
ver ninguém do navio, tombei para cá.
— Não está bem entrar dessa maneira em um convento. Esta não é minha
casa, é um lugar que se rege por regras estritas. O que tem feito está proibido, e até
presidiário pela lei. Menos mal que não te viu ninguém.
— E me posso ficar com você?
— Não. Deve voltar junto a seu amo. Colibri, você é o único que fica dos
dias, mas felizes de minha vida, da sorte a que é preciso renunciar. E neste instante
vou pôr os meios. Cruzei por aqui, justamente para chegar mais depressa ao
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locutório, onde minha mãe e outra pessoa me esperam para me arrancar a assinatura
em um documento pelo que para sempre ficarei separada do Juan.
— Do patrão? Então, não vai voltar para navio? Ficarei-me sem ama?
— Terá outras amas, haverá outras mulheres na cabine do Lúcifer, e as mãos
do Juan se posarão sobre outras mãos, guiando a roda do leme para as ilhas
maravilhosas onde a vida parece dormida, onde não há ódios nem lágrimas: as ilhas
nas que o amor é como um sonho, onde nem pecar parece pecado. Vete Colibri,
vete. Volta com seu amo.
Nervosamente, tremendo de angústia, lutando contra aquela quebra de onda
de sentimentos o que cresce mais forte no fundo de sua alma quando mais pretende
afogá-la nela. Mônica desprendeu que sua saia às pequenas mãos escuras dou
Colibri, lhe empurrando para a alta taipa de onde o moço descendesse. Um
momento vacila Colibri como se fosse obedecê-la; logo, corre para ela outra vez,
com uma queixa que é súplica brotando de sua garganta:
— Não. Não, minha ama. Eu não quero que vá ninguém ao Lúcifer. Eu a
quero a você, a você nada mais. E o amo tampouco quer.
— Você o que sabe! Não pode saber nada.
— O amo sempre pensa em você. Com a outra, com a que ia ser a ama, com
a que foi ver-nos a outra noite ao cárcere, o patrão não faz mais que brigar.
— Talvez. Mas, ao fim e ao cabo, terminam sempre por fazer as pazes. É
como se tivessem nascido o um para o outro, como se tivessem esvaziado no
mesmo molde suas formas de amar. Amam-se se ofendendo, desprezando-se,
tendendo-se armadilhas, vingando-se cada um dos dores que o outro lhe causa, mas
aferrando-se a essa paixão que lhes enche a vida.
Tornou com inquietação a cabeça, escutando o leve ruído de uns passos sob
os largos arcos da galeria que limita o fechado horta conventual. Ao longe, como
duas sombras brancas, cruzam duas noviças. Respira mais tranquila as vendo
afastar-se, mas Colibri até está junto a ela.
— Esperam-na para assinar esse papel contra o amo?
— Não é contra ele, Colibri. "Ao contrário. estou segura de que no fundo de
sua alma me agradecerá que eu seja a que rompa este laço que nos ata, e que o
rompa como vou Fazê-lo: dando-lhe a absoluta segurança de que minha vida se
acabará entre estas paredes..
— Mas ao amo não gosta que esteja aqui encerrada.
— Disse-te ele que não gostava? Não minta nunca. Colibri, não minta nem
sequer por piedade. E agora, vete. Que eu te veja sair. Quero ter a segurança de
que ninguém te vê nem lhe ocorre nenhum contratempo. Vete que venham!
Empurrou ao pequeno negro a tempo que chega a voz do pai Vivier que, ao
descobri-la, assinala aproximando-se:
— Mas se estiver aqui. Mônica, filha, estas damas estavam muito inquietas.
— O Pai nos disse que fazia um bom momento tinha saído para o locutório
— comenta Catalina do Molnar. — Tem cara de te sentir mal, minha Mônica.
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(Esta obra continua, e finaliza, na novela intitulada: “Juan del Diablo ")
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