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Celeiro de Redenção

Terra à vista
"Navega fiel marinheiro... Até a outra borda do mar Navega fel marinheiro... Que vento não
há defaltar”
Se comparássemos Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho - a desafiadora obra de
Humberto de Campos - a um oceano, certamente Celeiro de Redenção seria uma navegação
audaz por suas águas. Equipados com os engenhos e as artes de seu tempo, nossos marujos
escrivães tomaram a pena para registrar, durante sua odisseia literária, impressões e
sentimentos retidos no coração; ideias e elucubrações vertidas do cérebro.
De repente... Terra à vista! Chegava-se, enfim, a outra borda do mar. Lá onde o
entendimento e a descoberta eram, para a tripulação aventureira, um novo país. E o Brasil de
Humberto de Campos, o Brasil Espiritual que ninguém viu, veio povoar a intimidade de cada
autor, civilizando - para o Cristo e para sempre - a consciência de quem se arriscou.
A quem interesse a leitura, diremos: - Ao mar, fel marinheiro! De velas içadas, navega sem
medo... Os bons ventos da inspiração Divina não vos faltarão jamais.
ISBN 978-85-67990-01-9
www.portalser.org
Aíla Pinheiro - Alexandre Caroli Rocha - Aluizio Elias - Gladston Lage - Gisella Amorim -
Haroldo Dutra Dias -João Romário Filho -José Otávio Aguiar. Coordenação: Aluizio Elias.
EDITORA
SER
2014
2a Edição 30 e 40 mj|heiro
Copyright 2014 by Instituto SER
AV. Manoel Ribas, 8552, loja 04. Butiatuvinha Curitiba/PR - CEP: 82320-750 - Brasil
Emblemas/ilustrações: Marina Reis Capa: Adhemar Ribeiro, Julio Corradi e Marina Reis
Ilustração da capa: Giacomo Gastaldi Diagramação: Adhemar Ribeiro Revisão: Christiane
Ruffier e Melissa Diniz Coordenação editorial: Aluizio Elias e Júlio Corradi
Catalogação na fonte do Departamento Nacional do Livro
AGUIAR, José Otávio - AMORIM, Gisella - DIAS, Haroldo Dutra - ELiAS, Aluizio - FILHO,
João Romário - LAGE, Gladston - PINHEIRO, Aíla - ROCHA, Alexandre Caroli
Celeiro de Redenção/Aíla Pinheiro, Alexandre Caroli Rocha, Aluizio Elias, Gladston Lage,
Gisella Amorim, Haroldo Dutra Dias, João Romário Filho, José Otávio Aguiar - Belo
Horizonte: EDITORA, 2014
150p.; 16x23cm
1 .Celeiro de Redenção. 2.Brasil coração do mundo, pátria do evangelho. 3.Hum- berto de
Campos. 4. Irmão X. 5. Francisco Cândido Xavier.
ISBN-978-85-57990-01-9

Apresentação
As plantinhas do sertão, mesmo as mais miúdas, fixam-se ao solo por um mun- daréu de raízes.
O capim-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arnica e o tu- cum-rasteiro espalham sob a terra
verdadeira renda radicular. Nos meses de estiagem, sobretudo, as raízes de um arbustozinho do
cerrado podem descer a uma profundidade de dez metros em busca de água.
Quem vem de longe e desconhece o lugar não suspeita dos emaranhados sob os corpos das
árvores. Só os mateiros sabem disso. Os filhos dos índios, caboclos raizeiros, desenterram a
rama da planta e dela fazem remédio para sarampão, maleita e mal de amor. Aprenderam com
seus antepassados que a vista, por si só, não consegue abraçar toda a inteireza de um ipê. É
preciso cutucar a carne da terra até descobrir a parte oculta do vegetal.
Para escrever sobre o propósito intrínseco em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do
Evangelho, seguimos essa tradição sertaneja. Mobilizamo-nos para alcançar a trama
subterrânea do livro psicografado por Chico Xavier. Importava achar as raízes do escrito e a
partir destas obter um caldo bento, remedinho santo para os males da ignorância.
Ainda hoje, muitos só sabem da obra em questão o que as expressões mais superficiais do
texto-árvore lhes revelaram: a forma e o estilo. É preciso, contudo, volver às bases bíblicas -
profundamente espirituais - em que se assenta a narrativa de Humberto de Campos. Palmos
abaixo, no encoberto de Brasil, Coração do Mundo..., repousa a espiritualidade radiosa que
poucos viram. Lá, nosso grupo reconheceu os componentes que acabaram estruturando o
presente trabalho: Celeiro de Redenção.
As primeiras páginas escritas foram assinadas por Aíla Pinheiro. Nossa maninha balbucia -
quase a posso ouvir - uma prece linda dirigida a Maria de Nazaré. Vê-se, então, acender uma
flama. Lume exemplar. Quando Aíla roga à Rainha dos Anjos que derrame sua misericórdia
sobre o Brasil, a candeia da fé vem clarear o tino de nossa casa mental.
Em meu texto abordo os processos de amálgama civilizatória e a composição espiritual que
singulariza o povo brasileiro. Em tudo isso, enxergo as enxertias espirituais presentes nos
movimentos de transmigração reencarnatória.
Com Alexandre Caroli Rocha temos uma prosa agradável. A conversa se dá em torno dos
frutos literários que pendem da parceria Chico Xavier/Hum- berto de Campos. Especialista no
assunto, ele evidencia o que há de mais peculiar na relação entre o médium mineiro e o autor
desencarnado.
José Otávio Aguiar escreve sobre as especificidades que tornam a narrativa histórica de
Humberto de Campos um caso tão singular dentro da literatura mediúnica. Essencialmente,
pergunta: como a narrativa do espírito Humberto de Campos se comporta, explorando temas
que são, geralmente, objeto de estudo da historiografia praticada pelos encarnados?
Gisella Amorim busca compreender as fontes documentais sobre a História do Brasil a
partir de suas referências bíblicas. Processo que implica apreendê-las numa dupla dimensão:
histórica, mas também simbólica.
Haroldo Dutra Dias analisa a profundidade espiritual da expressão "árvore do Evangelho",
buscando-a na própria estrutura literária das Sagradas Escrituras. Entende essa expressão como
uma palavra-mestra, ou palavra-chave, que retoma o eixo temático central da Bíblia: "Criação,
Aliança, Exílio, Êxodo e Redenção".
O poeta Gladston Lage pondera as atribuições e responsabilidades, ações e procedimentos
relativos à governadoria espiritual da nação brasileira. Recorre às metáforas "mar" e
"navegação" para problematizar a relação entre a missão espiritual outorgada à nação brasileira
e as escolhas morais dos espíritos vinculados a essa comunidade.
A constelação do Cruzeiro do Sul foi o tema confiado a João Romário Filho. Jornalista e
educador, Romário explora a significação espiritual atribuída ao Cruzeiro e sua movimentação
astronômica.
Findamos o trabalho apresentando duas seções: Textos Especiais e Fragmentos Oportunos.
Alguns são publicações raras da revista Reformador, gentilmente cedidos pela Federação
Espírita Brasileira. Os demais pertencem a uma coletânea de mensagens mediúnicas que
chegaram até nós durante a elaboração do livro. Além desse material, disponibilizamos alguns
depoimentos e entrevistas pouco conhecidas e relativas à temática Missão espiritual do Brasil.
Agradecemos a geherosidade e dedicação dos queridos amigos: Melissa Diniz e Christiane
Ruffier, pela revisão atenta; ao grupo de pesquisa das redes sociais pelo impressionante
levantamento de dados sobre o livro, em especial Eleonora Escobar e André Pena; Marina
Reis, pela arte sensível; Adhemar Ribeiro, pela diagramação precisa ejulio Corradi, pela gestão
dinâmica e responsável de todo o projeto.
"Celeiro de Redenção" é, por assim dizer, o nosso "óbolo da viúva". A oferta melhor que o
nosso esforço pôde depositar no gazofilácio da vida. São os poucos pães e peixes que a você,
estimado leitor, entregamos de coração. Quanto à dádiva do milagre multiplicador... Só a
podemos esperar de Jesus e sua bondade.
Aluizio Elias

Carta para Maria


Aíla Pinheiro1

1
1 Aíla Pinheiro, de Fortaleza-CE: Estudiosa da Carta aos Hebreus de Paulo de Tarso, além de especialista em tradições
religiosas do povo hebreu, e-mail: aylanj@gmall.com do novo Êxodo (Ex 41:56-42:3), que em breve acontecerá com a
manifestação última do Cristo neste planeta azul.
Querida princesa, mãe e amiga...
A graça e a paz de Jesus Cristo, nosso Senhor, estejam contigo e com todos os que contigo
estão nas Moradas Celestes.
Escrevo-te para dar notícias do Brasil, a terra sob a constelação do Cruzeiro, a qual já foi
chamada Ilha de Vera Cruz. Admira-me, ó querida mãe dos discípulos de Cristo, a
sensibilidade de quem designou este país, em forma geográfica de coração, com a alcunha de
"verdadeira cruz". Estariam aqueles primeiros viajantes transatlânticos intuindo um embate
entre uma verdadeira e uma falsa cruz? Teriam tido no íntimo dos corações algum presságio de
sofrimentos para o país que estava brotando qual castanha inchada que se arrebenta no desejo
vegetal de ser cajueiro? (Campos, 1960) Todo parto, tu bem o sabes, é uma cruz, até mesmo o
do vegetal. Talvez por isso tenham jorrado sangue e água do coração de Cristo, como se fora
grande parto messiânico no qual fomos trazidos à iuz como filhos de Deus. Perdoa-me as
divagações, ó mãe carinhosa.
Nesta madrugada em que me encontro na casa paterna, no meu querido Piauí, eu deveria
estar orando. Era essa a minha intenção e por isso vim ao alpendre olhar as estrelas. Mas
preocupações me assaltam e, sabendo que minha mainha terrestre ressona no quarto contíguo,
cansada e envelhecida, por uma vida de dedicação, eu penso em ti, ó mãe celeste dos mortais
que gemem no vale de lágrimas. Penso na grandeza da cruz de teu filho, pois ela explica o
mistério de quem perde a própria vida para gerar novas vidas. A cruz e a maternidade: não há
nada mais semelhante sob esse céu estrelado.
O Brasil, essa terra "em que se plantando tudo dá", recebeu no passado as sementes do
Evangelho de teu Filho, juntamente com a vocação de produzir os frutos agradáveis a Deus (Mt
5:43), e de tornar-se o celeiro para os tempos no novo Êxodo (Ex 41:56-42:3), que breve
acontecerá a manifestação última do Cristo neste planeta azul.
Pesam-me no coração, ó dileta mãe e amiga, as preocupações com a árvore do Evangelho
que foi plantada no Brasil. É por isso que te escrevo estas linhas. Para mim essa "árvore da
vida" é semelhante a um cajueiro. Digo isso porque o cajueiro já marcou a vida de muitas
crianças nordestinas (Campos, 1960), e tu sabes que marcou a minha infância também. É uma
planta altaneira como o mastro de um navio que nos convida a viajar pelos mares da
imaginação, bem escreveu o poeta em feliz comparação. Seu verdadeiro fruto, a castanha, em
forma de feto ou de coração, não pode ser consumido sem o rompimento da casca que o
envolve. E é pelo fogo purificador que o invólucro cede à resistência e deixa vir à luz a pérola,
o embrião.
Preocupa-me, mãe, doem-me as fibras do coração, ver que as pessoas de nossa época, quais
crianças no quintal do vizinho, estão furtivamente saboreando o néctar do falso fruto amarelo
que é "belo e agradável aos olhos" (Gn 3:6), em vez da castanha verdadeira do Evangelho.
Parece-me que estamos nos enganando a respeito da mensagem do Cristo. Saborear esse fruto
exige empenho e dedicação. É necessário maturidade e renúncia, por isso venho a ti, querida
amiga, pedir-te conselho e auxílio. Ensina-nos a reconhecer o verdadeiro fruto do Evangelho, a
quebrar a casca dos nossos corações empedernidos pelo egoísmo. Faze que o fogo purificador
queime a resina maléfica dos pecados através de uma constante resignação à vontade de Deus.
A Ilha de Vera Cruz foi um Porto Seguro aos navegantes em meio às ferozes tempestades.
Que esse mesmo porto assegure a água viva e o "alimento sólido" (Hb 5:12-14) aos náufragos
dos tempos atuais. Querida benfeitora, corremos riscos de estar importando um falso
evangelho, uma falsa cruz. Há muitas promessas de vida fácil e de riquezas abundantes para
quem aderir ao Cristo. No entanto, teu Filho nos alertou a todos: "Se alguém quer vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz a cada dia e siga-me" (Lc 9:23). E nesse momento olho
para as estrelas e vejo uma constelação a testemunhar para nós essas palavras do Cristo. O
pisca-pisca das estrelas faz ecoar essa grande verdade, como se novamente do céu a batkol nos
dissesse: "Este é o meu Filho amado, ouvi-O"2.
Somos crianças rebeldes, ó dulcíssima Maria. Por isso recorro a ti, pois as mães sabem
como agir nessas situações. Somos crianças pirracentas como bem indicou Jesus quando estava
sob as estrelas da Galileia: "tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não
pranteastes" (Mt 11:17).
Ah, Mãe, estamos muito demorados em nosso processo de conversão, ajuda-nos a avançar,
a não perder a oportunidade que a graça de Deus nos proporciona. Acolhe-nos no teu regaço e
consola-nos nas aflições, porque a nossa teimosia tem nos trazido muitos prantos quando
buscamos felicidade. Que o nosso pranto sincero nos traga a verdadeira felicidade
proporcionada pela cruz redentora.
Ó Mãe dos desvalidos, dos aflitos e famintos de justiça. Mãe dos humilhados, dos
vilipendiados, dos sofredores. Mãe dos rebeldes, dos obsessores, mãe dos confessores e dos
pecadores de quedas e tropeços mil. Tu, que fostes até o fim no seguimento de Cristo, não nos
abandones nos nossos caprichos de crianças rebeldes. Nosso país menino necessita de tuas
mãos firmes a nos guiar nos primeiros passos em direção a Cristo. Protege esse gigante que
dorme enlevado pelo brilho da constelação do Cruzeiro. E, que seguindo teu exemplo,

2
2 Mc 9:7, a bat kol, a voz divina vindo do céu (Mc 1:11).
possamos ir até o fim no seguimento do Cristo, sendo com Ele crucificados para com Ele
ressuscitarmos.
Cobre-nos com teu manto azul anil, ó Mãe. A aurora já se aproxima, as trevas já dão lugar à
luz, os pássaros começam a sinfonia. Dá que vivamos todos juntos, como uma família, no
Reino de teu Filho.
Aita, serva de Cristo, e em Cristo tua filha.

Referências bibliográficas
CAMPOS, Humberto de. "Um amigo de infância", in Memórias. Rio de Janeiro: Mérito,
1960, pp. 235-242.

Capítulo 1
Aluizio Elias3

A paisagem ditada do Tiberíades


"Primeiromente, surgiram os índios, que eram os simples de coração; em segundo lugar,
chegavam os sedentos da justiça divina e, mais tarde, viriam os escravos, como a expressão
dos humildes e dos apitos, para a formação da alma coletiva de um povo bem-aventurado por
sua mansidão e fraternidade.”4
A consciência do homem é qual tição em fogueira dormida. Quando sopra ideia nova de
algum lugar, a brasa aparece... esperta o lume. Então, aquela quentura boa do pensável vai
inflamando o coração da gente, até que o sentimento revele alguma vermelhidão.
É sempre assim, quando um livro agita-nos o juízo com bons ventos.
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho é obra valente, do tipo que é anterior a
fronteiras5. Trabalho de inteligência. Engenho de um autor que se valeu de sutilezas para dizer
e não dizer, ocultando a gema do sentido no oco da palavra. Esforço de quem soube farejar o
rastro dejesus, abrindo picada na mata dos séculos.
Quem nos deu entendimento foi buscar o ouro no veio.

3
1 Aluizio Elias, de Uberaba-MG: Professor de História, poeta, músico e orador espirita, e-mail: aiuizio.celeiro@gmail.com
4
2 XAVIER, Francisco Cândido. Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Ditado pelo Espirito Humberto de
Campos. Brasília, FEB, 1995, p. 39.
5
3 ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 9
As aves de um mesmo bando
A linha mestra do livro em estudo é a alquimia taciturna de Jesus, juntando tudo que é diferente
em meio comum, preferindo o improvável. O Senhor saiu à cata de povos diversos, botou tudo
no grande pilão do mundo e socou até obter um só condimento, uma só substância. O que
agrada a Deus é a mistura.
A população da Terra, toda ela, está diluída no caldo de humanidades em que se reconhece
imersa. Por todos os meios as pessoas reinventam o humano, fundindo corpos e almas. Numa
teima peregrina, ficam a migrar de um continente para outro, de um corpo para outro, sem
medir a distância e o tempo. Colecionando línguas e tradições, cada alma é multidão habitando
casa transitória.
É certo que todos os povos são aves de um mesmo bando, qualquer que tenha sido o ninho
de onde cada uma aprumou seu voo.6 Regula, todavia, que a revoada de um pássaro pode, por
vezes, acabar em desatino se este decide afastar-se do passaredo. Lamentavelmente, há os que
resistem às leis do acolhimento e da confraternização.
Quando as cercas se erguem, homens assoberbados e avaros de si mesmos negam aos
demais o acesso às suas conquistas. Preferem o isolamento e nele teimam porque a permuta
lhes desgosta. Adotam um voluntário acanhamento, supondo estar na solidão a fonte de sua
pretensa superioridade.
Os indivíduos dessas comunidades repudiam qualquer freguesia que não lhes guarde a
imagem e semelhança. Adoecem o sentimento e não mais estendem a mão à camaradagem por
crerem que o outro tem muito pouco a lhes oferecer. Negam a natureza de quem é diferente,
considerando-a aquém de sua própria. Para eles, a humanidade acaba nas fronteiras de seu
quintal.
Esse insulamento voluntário de alguns povos é passo torto, andar em desalinho pelas trilhas
da evolução. Homem algum poderá atingir sua inteireza recorrendo, tão somente às coisas do
próprio balaio. É no mercadejar moroso da convivência que as pessoas vão se afortunando,
permutando valores. Nesse vívido escambo, o preço a pagar pelo orgulho étnico é o pranto seco
no deserto das almas.7

6
4 "A origem das raças se perde na noite dos tempos. Mas, como pertencem todas à grande famflia humana, qualquer que
tenha sido o tronco de cada uma, elas puderam aliar-se entre si e produzir tipos novos." (KARDEC, Allan. O Livro dos
Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília, FEB, 2006, p. 434. Q. 690.)
7
5 "O homem tem que progredir. Insulado, não lhe é isso possível, por não dispor de todas as faculdades. Falta-lhe o
contato com os outros homens. No insulamento, ele se embrutece e estiola.” (KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad.
Mas alguns grupos aprenderam a incorporar de bom grado as expressões estrangeiras. A
saga das tribos de Israel é um bom exemplo. A fixação dos israelitas em região que
possibilitava ampla circulação de mercadorias e pessoas aguçou a sua vocação para o contato.
Esse povo se permitiu ser afetado pelo estrangeiro tanto quanto esbanjou a sua capacidade de
influenciação. Os exílios e as ocupações inimigas cuidaram de consolidar essa tendência,
submetendo Israel a regimes de convivência compulsória, direta e intensa com as demais
nações.

A lição da Palestina
No século VIII a.C, os israelitas do norte da Palestina sucumbiram ao domínio do império
assírio. Salvo o desconforto que advém dos processos militares, a região a que nos referimos
ganhou muito com a presença do inimigo. É o que afirma o historiador judeu Raymond
Scheindlin:
"Os assírios conquistadores seguiram sua prática usual de deportar a população nativa e
substituí-la com os deportados de algum outro território conquistado. Uma grande parte da
população do Reino do Norte foi transferida para a Alta Mesopotâmia, onde se uniu à
população local; o território do Reino do Norte foi totalmente ocupado com pessoas da Síria e
da Babilônia, que se misturaram com o restante da população israelita. Esse acontecimento é
conhecido na história tradicional judaica como exílio das dez tribos do norte. Mas os
recém-chegados adotaram o culto a Javé, que eles aprenderam daqueles israelitas que
permaneceram, e ambas as populações se juntaram."6
Se a população do norte foi a que mais sofreu com a sanha militar dos assírios, também foi
a que recebeu maiores benefícios dos povos para lá transplantados. O antigo reino de Israel foi
transformado em ambiente cultural profícuo, lugar onde gentios e judeus compartilhavam suas
melhores aquisições.
Sobretudo na Galileia, as famílias vindas de várias partes do mundo antigo ornavam o
cotidiano das pequenas aldeias. A simplicidade do casario de pescadores do Lago de Genesaré
abrigava toda a exuberância do multiculturalismo que ali fulgurava. Não raro, era possível
ouvir, pelas vielas de Cafarnaum, um comerciante judeu e seu freguês romano negociando em
grego a cerâmica vinda da Pérsia.
Herdeira legítima dos movimentos de transmigração populacional engendrados pelos
assírios, a Galileia foi também o berço da rota comercial que ficou conhecida entre os romanos

Evandro Noleto Bezerra. Brasília, FEB, 2006, p. 467. Q. 768.)


como Via Maris - O Caminho do Mar. Por ali, passavam inúmeras caravanas comerciais,
conectando os portos da costa palestina, desde Gaza até a Ásia Menor. Essa agitação
econômica só reforçou a maciça presença dos gentios entre judeus e samaritanos.
A diversidade cultural era tamanha que a população do sul acabou cunhando,
pejorativamente, a expressão Galileia das nações ou Galileia dos gentios (Galil-ha-goyim -
círculo ou anel dos estrangeiros), para aludir ao fenômeno cultural que ocorria no norte. Não é
fortuita, portanto, a referência que o evangelista Mateus faz a essa expressão no capítulo quarto
de seu evangelho.8
Mateus, citando Isaías, menciona a etnogeografia do lugar onde Jesus iniciou seu
apostolado. Sugere o evangelista que essa profusão de povos, vindos de províncias diferentes,
justamente criara o ambiente favorável ao advento da Boa Nova. Parece mesmo que a
assembleia aos pés do monte das bem-aventuranças, reunida para ouvir os inolvidáveis
sermões dejesus, era culturalmente bem heterogênea.
Ainda na Palestina, encontramos a arquitetura do Templo de Jerusalém e os sentidos que a
permeiam. Sob o impacto da helenização, edificou-se junto ao Segundo Templo um pátio mais
externo chamado de átrio dos gentios. Era ali que deveria ocorrer o diálogo entre o judaísmo
local e as tradições estrangeiras que circundavam Israel.
No entanto, a boa vontade não animava o coração dos que se ufanavam de sua "raça".
Israelitas de sentimentos mais ressequidos queriam que esses gentios se afastassem do
cotidiano judaico. O acesso de estrangeiros ao Templo passou a ser dificultado pelo alvoroço
comercial no átrio mais externo - coisa ardilosamente consentida pelas autoridades religiosas
locais.
Assim, problematizando a passagem bíblica em que Jesus adverte os cambistas e
vendilhões que comercializavam no átrio dos gentios, interessa-nos menos a interpretação que
se debruça sobre o histórico comércio de coisas sagradas. No trecho em que Marcos narra o
fato, Jesus recorre aos profetas para lembrar que o Templo deveria ser casa de oração para
todos os povos.9 Melhor dizendo: para um messias que escolhera a Galileia dos gentios como
base de seu apostolado, a preservação do Templo como casa de oração para todas as nações
era questão essencial. Pode-se dizer que no átrio dos gentios - lugar, por várias vezes, útil à
pregação dejesus - o aroma da fraternidade se manifestava com especial disposição.
Mas, coisa lamentável, Jerusalém tornar-se-ia, com o passar dos séculos, palco de

8
7 DIAS, Haroldo Dutra. O Novo Testamento. Brasília, Conselho Espirita Internacional, 2010, p. 47.
9
8 Idem, ibidem, p. 215.
sangrentas manifestações de sectarismo. A Palestina fizera-se mar bravio, tempestuoso. Era
preciso bordejar, contornar escolhos até encontrar um porto seguro para o Evangelho.
Foi quando a governadoria espiritual do orbe deliberou situar o grande empreendimento em
ambiente mais amistoso. A região dos pescadores humildes se transplantou espiritualmente
para o Atlântico Sul. E o Brasil, pela formosura de sua estampa, se firmou como a doce
paisagem dilatada do Tiberíades.10
Os espíritos cantaram as glórias da Galileia dos gentios, recanto da confraternização, em
plena odisseia cabralina. As melodias evocadoras dos tempos apostólicos ecoavam da vida
espiritual. Aquela mesma sonoridade mestiça que um dia, na Palestina, dera o tom para a
canção da fraternidade, agora ressurgia na América meridional.
Soprava nas florestas tropicais a brisa acolhedora do Lago de Genesaré.

Os sedentos da justiça divina


Mas, antes de avançarmos em nosso texto, será preciso recuar no tempo para compreender
como se deu a constituição social da pátria portuguesa - um dos pilares étnicos do Brasil.
No sopé da Antiguidade, prelúdio das civilizações, uns pastores andarilhos aparentados
com aqueles árias do planalto iraniano vagavam pelo continente europeu, procurando pasto
bom para o seu rebanho. O tropel dessa gente acabou estacando nos extremos da Península
Ibérica 1 na costa lusitana onde topou com outras tantas populações que ali já haviam se fixado.
Passada a hostilidade do primeiro encontro, os grupos partiram para a miscigenação, fundiram
caracteres, aculturaram-se. Surgia, assim, uma comunidade nova no local, ainda mais mestiça
que as anteriores. Eram os povos da Península Ibérica.
Depois veio a águia romana e a sua ambição. Sob o peso das armas, a mesma Península
Ibérica que condensara as tradições de celtas, gregos e germânicos também passou a receber
uma população latina numerosa. O convívio entre romanos e ibéricos engrossou os contornos
da paisagem cultural lusitana. Por isso, quando os reinos bárbaros ali se estabeleceram após a
queda do Grande Império, acabaram assentando seus tronos sobre uma sociedade preexistente
de latino-ibéricos aculturados.
Só mais tarde, no entanto, com a presença islâmica, a Lusitânia conheceu a plenitude de seu
pluralismo. Os sarracenos implantaram um regime mais competente de cooperação entre os
povos da Península. Concederam liberdade de culto e trabalho às famílias cristãs e judias, o que
potencializou a troca de virtudes sociais. Pouco a pouco, nasciam a pátria portuguesa e as

10
9 XAVIER, Francisco Cândido. Op. cit, p. 36.
muitas faces de seu universalismo incontido.
O historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda comenta essa plasticidade social
portuguesa, afirmando que havia:11
a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho da raça. Ao
menos do orgulho obstinado e inimigo de compromissos, que caracteriza os povos do Norte.
Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe latina e, mais do
que delas, dos mulçumanos da África, explica-se muito pelo fato de serem os portugueses, em
parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços.
Aliás, importa dizer que as nações conservam as qualidades morais daquela comunidade
espiritual que as constituiu. Reina a lei de afinidade e, por isso, faia-se em alma coletiva, ou
temperamento espiritual de um povo.
Os portugueses sentiam palpitar no peito emotivo o coração saudoso daquela
espiritualidade degredada que um dia se aconchegara no colo amigo de Jesus. Parte
considerável da linhagem capelina - os derradeiros exilados e as almas mais profundamente
afetadas pela sua presença espiritual - se corporifi- cara na pátria portuguesa, encarnada como
descendência mestiça dos quatro grupos de exilados: hebreus, árias, egípcios e hindus.
Esses espíritos haviam tecido a mortalha de seus dias mais prósperos. Traziam a
consciência maculada pelo remorso. Reclamavam cuidados para os 'pés', que sangravam ante
as duras penas de uma longa caminhada.
Por essa razão tinham fome e sede de uma justiça divinal. Uma que encontrasse sua
expressão mais feliz em dialeto cósmico, no traçado doce da palavra misericórdia. E porque
deixavam escorrer dos olhos essa qualidade sadia de sonho, almejavam com mais entusiasmo o
frescor de um mundo renovado.
Pois quem afunda sob a tirania de massa líquida sempre retorna à superfície com energia
exemplar. O infeliz que se afoga volta a respirar como quem sacia uma estranha sede de vida.
Assim eram esses espíritos. Queriam sorver a existência em longos tragos. Adquiriram gosto
pelo viver. Trabalhariam de sol a sol, até que pudessem ver, despontando no horizonte de suas
esperanças, a claridade de um tempo mais alegre.
A estes lusíadas, que pretendiam guardar o mundo todo no pequeno Portugal, coube a
aventura de se lançar ao mar, transformando o Atlântico, abismo que separava continentes, em
estrada marítima que aproximou as gentes de toda parte.

11
10 HOLANDA, Sérglo Buarque de. Ratzes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976, p. 22
Os humildes e os aflitos
Essa audácia lusitana, contudo, foi recompensada com uma riqueza ainda maior que o ouro e as
especiarias do comércio com as índias. Estava reservada aos primeiros colonizadores do
hemisfério sul a vivacidade das culturas de além-mar. Especialmente a África, que pode ser
definida como vertiginoso caleidoscópio étnico, apresentava-se ao senso português com
particular encanto. Era o lugar onde a originalidade andava de mãos dadas com a diversidade,
exibindo seus sabores e aromas, sons de tambores, cantos e danças.
Aliás, nenhum negro traficado para o Brasil pôde escapar dos movimentos de troca
cultural. Toda a diversidade africana, com contornos delineados pelas próprias disputas
étnicas, parecia aglutinar-se, cantando sua essência em uníssono. O intercâmbio entre as muitas
vertentes da africanidade ocorria ainda nas feitorias africanas, antes mesmo que os cativos
embarcassem nas naves do tráfico. Em artigo escrito para o Jornal do Brasil, Marina de Mello e
Souza relata que:12
"ao serem arrancados de suas aldeias e transportados pelo continente africano rumo às feiras
regionais e aos portos costeiros, os escravos de diferentes etnias misturaram-se, aprenderam a
se comunicar, criaram novos laços de sociabilidade que se consolidaram durante os horrores
da travessia atlântica, e se institucionalizaram no seio da sociedade escravista colonial, à qual
foram inseridos à força, acabando por encontrar formas de integração."
Por isso, merecem destaque os fenômenos de aculturação ocorridos entre a captura e o
embarque dos prisioneiros. Esse intercâmbio entre as etnias, por sua vez, se estendeu aos
porões dos tumbeiros, consolidando-se nas senzalas dos engenhos. O negro brasileiro haveria
de se tornar a definição unitária de uma África que, por natureza, era plural.
Temos, assim, as muitas Áfricas que, em terras brasileiras, cuidaram de criar uma nova
África. A África-Congo, a África-Benim e a África-Sudão são flores próximas que se
polinizaram. Na mata e no cerrado, entre o litoral e o interior, espalhou- se um novo perfume,
viu-se florescer a novidade: uma África brasileira.
0 certo que os africanos muito padeceram nas mãos de uma tal fragilidade truculenta que,
por costume, agredia tudo aquilo que não podia compreender. Por isso, Jesus projetou sua Luz
sobre as trevas da escravidão, encarnando no berço triste do cativeiro aqueles espíritos que se
mostrassem destros na arte de sofrer com proveito. A bem-aventurança da raça negra é a

12
11 SOUZA, Marina fte Mello e. Destino Impresso na Cor da Pele. Jornal do Brasil, Caderno de Ideias Espe* dal, Rio de
Janeiro, 29 abr. 2000.
aflição sacralizada pela resignação. Esses espíritos aprenderam a retirar do favo acre dos
testemunhos acerbos o mel de uma santidade incorruptível.
Ismael chorou quando a escravidão se firmou como um elemento fundamental dentro do
colonialismo português. Era a ganância de alguns, trans- mutada em sofrimento para muitos.
Buscou orientação e conforto na palavra santa do Cristo. Comovido, ouviu o Mestre dizer:13
"os que praticarem o nefando comércio sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do
futuro, quando forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias. Na sua
sede nociva de gozo, os homens brancos ainda não perceberam que a evolução se processa pela
prática do bem e que todo o determinismo de Nosso Pai deve assinalar-se pelo "amai o próximo
como a vós mesmos". Ignoram voluntariamente que o mal gera outros males com um largo
cortejo de sofrimentos. Contudo, através dessas linhas tortuosas, impostas pela vontade iivre
das criaturas humanas, operarei com a minha misericórdia. Colocarei a minha luz sobre essas
sombras, amenizando tão dolorosas crueldades."
Nas senzalas, reencarnados como escravos, espíritos de sentimento embrutecido e em
processo de resgate foram tocados pela força moral daquelas nobres entidades que, também
cativas, cuidaram de converter cárcere em luz, dor em crescimento, lágrima em libertação
espiritual.

Os simples de coração
Vale lembrar, também, que o Brasil já foi a Pindorama dos indígenas de fala tupi-guarani.
Estes, que se espalharam pelo litoral em movimentos migratórios geograficamente irregulares
e cronologicamente descontínuos, expulsaram para o interior as etnias de fala distinta, os
chamados tapuias, que eram os índios do sertão.
Não nos esqueçamos, no entanto, de que tanto os tupis-guaranis quanto os tapuias
descendiam daqueles nômades asiáticos que, milênios antes, haviam migrado da Ásia para a
América, atravessando uma estreita faixa de gelo que se formara no extremo norte de ambos os
continentes. Os ameríndios, portanto, formam uma porção incrivelmente híbrida da
humanidade, resultante de enxertias étnicas e espirituais promovidas pelo Plano Maior e
anteriores ao povoamento das Américas.
Precisamente esse grupo, cuja peregrinação veio dar no litoral do Atlântico Sul, se viu
isolado do resto do mundo a tal ponto que a sua essência civiliza- tória acabou por repousar, em
grande parte, sobre as expressões neolíticas. E, para estabelecer contato com essa "virgem"

13
12 XAVIER. Francisco cândido. Op. clt, p. 51-52.
humanidade dos trópicos, o colonizador branco precisou se esgueirar entre as fibras densas da
mata litorânea, sacudindo, igualmente, a poeira agreste dos sertões.
O pulo do gato, contudo, está em perceber que o encontro entre os colonizadores e esses
nativos brasileiros não repousou, tão somente, sobre bases de conflito e sofrimento. Por vezes,
o amor de Deus se fez veludo entremeando as posições. Esse encontro se deu, também, pela
palavra.
Os dois mundos tatearam o som das línguas, tocaram-se através da fala. Os índios
aprenderam o latim peninsular dos lusitanos, enquanto esses últimos assimilaram a linguagem
edênica dos naturais. Essa mestiçagem idiomática, que aqui também pode ser entendida como a
consubstanciaçãp de ideias, perspectivas, visões de mundo, precedeu a enxertia física, advinda
do cunha- dismo entre os colonos e os principais das aldeias indígenas.
Os jesuítas tiveram um papel decisivo nesse intercâmbio linguístico, conforme comenta
Antônio Teixeira de Barros:14
"Para cumprirem sua missão de educadores e evangelizadores, a comunicação oral era
imprescindível para os jesuítas. Portanto, aprender a língua dos nativos foi o primeiro passo.
Caramuru já dera sua contribuição inicial no processo de comunicação entre os missionários
e os índios, mas fazia-se necessária maior solidez estrutural e uma prática dinâmica, que
assegurassem êxito ao exercício catequético-missionário. Logo cedo os jesuítas perceberam
que o domínio da língua nativa seria a principal estratégica de aproximação dos nativos, uma
vez que (...) para os indígenas, a palavra que traduz o sentido de 'inimigo'significa,
primitivamente, 'aquele que não fala a nossa língua'."
Acontece que o grande tesouro dessa gente nativa era a sua leveza espiritual. O indígena
tinha um jeito despretensioso de compreender tudo o que estava ao redor. Era de uma sutileza
inconcebível para quem se adensou no manejo das formas brutas. Sua simplicidade cantava a
alegria das matas. Estava tão integrado à sabedoria da Criação que o perfume de Deus parecia
impregnar-lhe a pele.
Sua mais preciosa virtude era essa tal curiosidade amável. Um tino sempre preso ao visgo
de qualquer novidade. Queria aprender... Gostava de aprender... E aprendia. E justamente esse
entusiasmo que o animava ao aprendizado foi a coisa melhor que pôde legar às gerações
posteriores.
Aliás, a enxertia de espíritos - que reencarnam não onde querem, mas onde precisam estar -

14
13 BARROS, Antônio Teixeira de. Raízes Culturais e Religiosas da Foikcomunícação no Brasil: Heranças da Catequese
Jesuítica. México, 2014. Revista eletrônica: Razón y Plabra, n° 60.
precede a miscigenação entre os povos convocados ao convívio. Isso porque achamos na
dinâmica reencarnatória, que inverte as posições étnicas, aquilo que favorece a aproximação,
tornando a fusão entre os corpos e as culturas algo possível.
Para melhor compreendermos esse movimento, vamos imaginar uma situação hipotética.
Admitamos, por exemplo, que espíritos fortemente marcados pelas tradições portuguesas
tenham reencarnado no seio de uma comunidade tupinambá. Os portugueses reencarnados
entre os índios, em se deparando com o seu antigo grupo - aquele onde permaneceram por
muitas existências - sentiriam forte atração por ele, a ponto de quererem confundir-se física e
culturalmente com os colonizadores. Estes antigos lusitanos, reencarnados como tupinambás,
acabariam abrindo precedente para todo o processo de confraternização que deveria sobrevir.
O coração do 'selvagem' havia colonizado o pensamento de quem se sabia civilização.
Criaturas nuas, todas elas, índios e brancos, vestiam-se em tempo com a carne e o espírito um
do outro. E já não eram o outrora, eram o então.

Os homens da nova geração


0 que se conclui é que a História do Brasil reproduz, em escala reduzida, toda a aventura
humana. Podemos ler nas entrelinhas da epopeia brasileira a narrativa que situa os exilados do
sistema de Capela em nosso orbe, repartindo benefícios com os nativos da Terra.15
O fazer a si da civilização brasileira foi peleja com o tempo,.apuro a que a ternura de Deus
acudiu com zelos de mãe. Os imediatos de Jesus conseguiram constituir no Brasil uma
comunidade psiquicamente mestiça, que já não consegue se situar dentro de um grupo
específico. Esta parcela da população planetária apresenta-se, de outro modo, como uma nova
realidade humana, que transcende os padrões admitidos e fere as concepções mais
cristalizadas.
Os espíritos que reencarnam em meio resultante da enxertia, espiritual encontram um
ambiente convidativo, que propõe uma nova perspectiva sobre a humanidade. Os homens
tocados pelas claridades do Evangelho - em franca comunhão com seus irmãos de outras terras
- já guardam no peito o sentido da família universal. A humanidade começa a redefinir os seus
padrões. Pois a vontade do Cristo é, por assim dizer, esse querer de envergadura que há
milênios vem sonhando uma nova espécie de gente.
Chegou o tempo da efetivação do programa. O plano divino concebeu, no tempo e no

15
14 “As quatro grandes massas de degredados formaram os pródromos de toda a organização das civilizações futuras,
introduzindo os mais largos benefícios no seio da raça amarela e da raça negra, que Já existiam." (XAVIER, Francisco
Cândido. A Caminho da Luz. Ditado pelo Espirito Emmanuel. Brasília, FEB 1995 P- 38)
espaço, uma civilização que resultasse da reunião de inúmeras virtudes sóciopsíquicas.
Virtudes que, por sua vez, eram peculiares a cada etnia presente na formação do povo
brasileiro. A justiça operosa dos europeus, o sofrimento santificador dos africanos e a
simplicidade sorridente dos índios, quando em estado de harmonia, alicerçam o advento de
uma nação que deve deixar-se guiar pelo propósito de constituir, pacifica mente, uma geração
de seres humanos paradigmáticos. O Brasil é, portanto, um celeiro de redençõo onde a
misericórdia do Altíssimo tem estocado as provisões espirituais do futuro. É onde estão as
sementes fecundas de um planeta regenerado.
Porque, em seu tempo, descerá do Céu aquela Jerusalém celestial entrevista pela
sensibilidade do apóstolo João. Então, transposto o deserto áspero da agonia, nossos pés

Capítulo 2
Alexandre Caroli16

Com as suas facilidades de expressão e com o espírito de simpatia de que dispõe o escritor, em
face da mentalidade geral do Brasil.

Humberto de Campos: sua obra


mediúniuca sob uma perspectiva
acadêmica
Entrevista com Alexandre Caroli Rocha, doutor em Teoria e História Literária pela
Universidade Estadual de Campinas, autor da tese O Caso Humberto de Campos: Autoria
Literária e Mediunidade, orientada pelo professor Haquira Osakabe.
SER - Para que nossos leitores se sintam mais familiarizados com a personalidade em
pauta, responda-nos: quem foi o Humberto de Campos encarnado?
Alexandre Caroli Rocha - Humberto de Campos era muito conhecido no Brasil, era um dos
autores mais lidos nas décadas de 1920,1930. Anos depois, ele e muitos outros autores de sua
geração praticamente caíram em esquecimento. O curioso, no caso de Humberto de Campos
(HC), foi sua sobrevivência editorial como autor espiritual, em parceria com Chico Xavier
(CX/HC). Os livros mediúnicos da série CX/HC continuam sendo editados e bastante lidos, ao
contrário da obra de HC. Nascido em 1886, no interior do Maranhão, ele ficou órfão de pai aos

16
1 Alexandre Caroli, de Campinas-SP: Pesquisador, especializado em linguística, que tem se dedicado ao estudo dos
textos de Humberto de Campos (espírito) em sua parceria com Chico Xavier, e-mail: alecaroli@gmail.com
seis anos. Mudou-se com sua mãe e outros familiares para São Luís (MA) e depois para
Parnaíba (PI); frequentou pequenas escolas, onde se alfabetizou. Cedo, começou a trabalhar
como aprendiz de alfaiate, balconista de loja, aprendiz de tipógrafo, entre outras ocupações.
Em São Luís, solitário e fora do expediente, interessou-se pela leitura de ficção, quando
começou a frequentar a biblioteca pública. Tempos depois, assumiu a função de administrador
de seringais nas fronteiras do Pará com 0 Amazonas; e, enfim, em Belém, iniciou sua
carreira jornalística ao ser contratado como redator do jornal Folha do Norte. Anos depois, em
1912, quando já havia publicado o livro de poemas Poeira, mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde consolidou sua carreira de jornalista e literato. Escrevia, por exemplo, para a Gazeta de
Notícias, para o Diário Carioca, para O Imparcial, jornal em que atuavam escritores da época,
como Goulart de Andrade, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Paulo Barreto, Emílio de Menezes ejoão
Ribeiro. Até seu falecimento, HC trabalhou íncessantemente na imprensa, pela qual obteve
grande reconhecimento. Ao mesmo tempo, escrevia livros que abrangiam diferentes gêneros
literários; publicou mais de 40 volumes. Lançou, em 1933, Memórias, seu livro de maior
repercussão. Alguns comentadores, porém, defendem que HC foi um dos nossos maiores
cronistas; essa teria sido sua principal contribuição à literatura brasileira. Em dezembro de
1934, aos 48 anos, durante uma cirurgia, morreu na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro.
Além de sua produção como poeta, a qual lhe serviu para o ingresso na Academia Brasileira de
Letras, HC publicou 16 livros de crônicas; 11 livros de contos humorísticos, sob o pseudônimo
de Conselheiro XX; cinco volumes de resenhas; três de antologias de outros autores, por ele
organizadas; dois livros de contos; um de literatura infantil; e quatro de memorialística. Vários
desses livros foram publicados postumamente; e os dois volumes do seu diário secreto foram
lançados, por sua vontade, somente vinte anos após seu falecimento.
SER - Fale-nos um pouco sobre como a questão da religiosidade foi abordada por
Humberto de Campos em sua obra do plano físico. O autor confessava alguma preferência
religiosa?
Alexandre Caroli 1A família de HC era católica, e ele foi criado sob essa religião,
especialmente por parte de sua mãe. Segundo suas Memórias inacabadas, Humberto perdeu a
fé durante a mocidade, influenciado pela leitura de certa filosofia materialista (Comte,
Haeckel, Büchner). Depois disso, não abraçou nenhuma religião. Dizia-se cético e oscilava
quanto à crença na vida após a morte, mas sempre teve grande respeito pelas religiões e pelo
sentimento religioso das pessoas. Numa de suas crônicas, escreveu: "por educação e por
princípio, não tiro Deus ao coração de ninguém. Porque tenho o meu vazio, não me considero
modelo de prudência e sabedoria. Sem um templo em que me prosterne, não me sinto no direito
de incendiar os altares dos que têm fé." Há muitos escritos de HC sobre questões religiosas,
inclusive sobre espiritismo.
SER - Humberto de Campos já era, no plano físico, um estudioso da História do Brasil?
Esse era um tema que ele apreciava e que aparece, de algum modo, em sua obra de encarnado?
Alexandre Caroli - Sim, ele tinha muito interesse pela História do Brasil; í lia as principais
obras sobre o tema, citava-as e as analisava em resenhas e crô- j nicas. Com tom mais pitoresco,
produziu o livro O Brasil Anedótico (1927), que reúne passagens de diversos autores, as quais
têm como pano de fundo a his- i tória brasileira. Eis alguns exemplos de textos seus, reunidos
nos volumes de Crítica, que comentam livros relacionados à nossa História: "Retrato do
Brasil", |l sobre livro de Paulo Prado; "A nossa formação étnica", sobre O Brasil na América, de
Manuel Bomfim; "A Inquisição no Brasil", sobre Primeira Visitação do Santo I Ofício às
Partes do Brasil: Denunciações de Pernambuco-, "Capistrano de Abreu”, I sobre O

Descobrimento do Brasil, do autor que intitula o texto; “Alfredo de Car- I valho", sobre
Aventuras e Aventureiros no Brasil, também do autor que intitula o I artigo; "José de
Anchieta", sobre o livro Anchieta, de Celso Vieira. Apesar desse I interesse, HC nunca foi
historiador; seus pendores eram muito mais literários. | Ele gostava, aliás, de sublinhar a
importância da Literatura para a fixação da I História; não bastava a Verdade crua': a narrativa
devia ser interessante.
SER - Humberto estabeleceu algum contato com Chico Xavier quando ainda estava
encarnado?
Alexandre Caroli - Eles não se conheceram pessoalmente, mas HC tomou conhecimento de
Chico Xavier em 1932, ano em que escreveu duas crônicas a respeito do primeiro livro do
médium mineiro, Parnaso de Além-Túmulo. Foram publicadas na primeira página do Diário
Carioca: "Poetas do Outro Mundo", no dia 10 de julho, e, dois dias depois, "Como Cantam os
Mortos". Nelas, HC dizia que traços característicos dos poetas evidentemente apareciam nas
composições mediúnicas e, com ironia, lamentava a ideia de que, após a morte, eles
continuassem a compor poemas, e de um modo muito semelhante a como escreviam em vida.
Isso não lhe parecia uma grata revelação. Eis um trecho de cada uma das crônicas:
O primeiro pensamento que assalta o leitor, antes de examinar o mereci-\ mento literário da
obra, é a ideia de que, nem no outro mundo, estará livre dos poetas. A poesia é uma
predestinação de tal modo fatal, irremediável, que a vítima não se livra dessa maldição nem
mesmo, depois da morte. (“Poetas do Outro Mundo")
0 Parnaso de Além-Túmulo merece, como se vê, a atenção dos estudiosos, que poderão dizer o
que há, nele, de sobrenatural ou de mistificação. No primeiro caso, o outro mundo deve ser
insuportável, com os poetas que lá se acham. E pior será, ainda, se houver, também, por lá,
declama- doras... ("Como Cantam os Mortos")
A propósito, as objeções de HC ao livro de poemas psicografados por CX foram rebatidas
no texto mediúnico "Aos Críticos do 'Parnaso de Além-Túmulo"', de Chico Xavier/Eça de
Queirós, publicado em 1933 na revista Reformador. Mais tarde, núma outra edição de Parnaso,
um texto atribuído ao próprio HC, dirigindo-se a CX, faz o seguinte comentário:
Apreciando, em 1932, o 'Parnaso de Além-Túmulo', que os poetas desencarnados
mandaram ao mundo por intermédio de você, chamei a atenção dos estudiosos para a incógnita
que o seu caso apresentava. Os estudio- . sos, certamente, não apareceram. Deixando, porém, o
meu corpo minado por uma hipertrofia renitente, lembrei-me do acontecimento. Julgara eu que
os bardos 'do outro mundo', com a sua originalidade estilística, se comprometiam pela
eternidade da produção, no falso pressuposto de que se pudessem identificar por outra forma.
SER í Quando Chico Xavier começou a psicografar os textos de Humberto de Campos? Em
qual contexto surgiu o pseudônimo Irmão X?
Alexandre Caroli - Os primeiros escritos de CX assinados por HC datam do final de março
de 1935, ou seja, menos de quatro meses após a morte do cronista. De 1937 a 1943 a FEB
publicou cinco livros que CX atribuiu a ele: Crônicas de Além-Túmulo (1937), Brasil, Coração
do Mundo, Pátria do Evangelho (1938), Novas Mensagens (1940), Boa Nova (1941) e
Reportagens de Além-Túmulo (1943). Dessa primeira fase, o último texto de que tenho notícia
é de 15 de julho de 1944. Encontra-se no livro A Psicografia Ante os Tribunais, de Miguel
Timponi, e comenta o "caso Humberto de Campos", processo em que a família de HC pedia à
Justiça que decidisse quem era o autor dos livros que citei acima e a quem caberiam seus
direitos autorais. Apesar de a ação ter sido considerada sem cabimento, para evitar novos
problemas desse tipo, o nome Humberto de Campos deixou de ser utilizado em textos
mediúnicos posteriores. A primeira menção ao nome Irmão, X que localizei é de 20 de
setembro de 1944 e está em Deus Conosco, livro composto por textos de CX assinados por
Emmanuel. No ano seguinte, em 2 de março de 1945, CX envia uma carta ao então presidente
da FEB, dizendo-lhe que o "amigo" voltara a escrever, "fazendo-se sentir agora com o nome de
'Irmão X'". Junto com a carta, seguia o primeiro texto da nova fase, que era, provavelmente,
"Ante o Amigo Sublime da Cruz", publicado na primeira página de Reformador e, depois, em
Lázaro Redivivo (1945). Nesse primeiro livro assinado por Irmão X existem muitas referências
veladas a Humberto de Campos, às psicografias que Chico Xavier lhe atribuiu e ao processo de
1944. Na época, CX e seu editor da FEB tomaram a decisão de não divulgar a identidade de
Irmão X. Segundo o médium, Emmanuel achava que os leitores perceberiam que Irmão X era
HC. Em 1957, porém, a FEB decidiu oficializar essa identidade, em artigo publicado em
Reformador. E num texto do livro Cartas e Crônicas (1966), de Irmão X, o autor volta a se
apresentar como HC.
SER - Em sua tese há muitos exemplos de passagens mediúnicas que nos remetem à obra
de Humberto de Campos e à de autores que faziam parte do repertório cultural do escritor. Essa
demonstração de conhecimento, como você sugere, era uma estratégia do autor para legitimar a
autoria de sua obra psicografada. Você também encontrou esse tipo de referência no livro
Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho?
Alexandre Caroli - Essas ocorrências aparecem principalmente nos livros Crônicas de
Além-Túmulo, Novas Mensagens e Lázaro Redivivo, mas também fazem parte de BCMPE. Por
exemplo: no capítulo XII do livro mediúnico, "No Tempo dos Vice-Reis", quando o autor
apresenta um quadro da falta de higiene em cidades brasileiras do início do século XX ("Os
igarapés que conheci..."), j ele nos remete ao capítulo XXXVIII do livro Memórias, de HC, que
registra essa mesma lembrança. Ou quando, no final do capítulo XXVII de BCMPE, "A
República", o autor expõe um episódio retirado de obra de Múcio Teixeira, ele nos remete a
uma passagem do livro O Brasil Anedótico, de Humberto de Campos, com algumas adaptações
e com a tradução para o português de falas que se encontravam em espanhol. Vou agora
transcrever um terceiro exemplo: uma passagem do capítulo "D. João VI no Brasil", que utiliza
outro episódio de 0 Brasil Anedótico e alude a outras pegadas de HC. Cito, e acrescento
colchetes e números para facilitar a localização dos trechos em seguida:
Os reinóis abastados do Rio de Janeiro e das outras grandes cidades colo- •• niais receberam
títulos e condecorações de toda natureza. As cartas hono- ; ríficas eram expedidas quase que
diariamente.
[(1) Por toda parte, havia comendadores da Ordem do Cristo e cavaleiros de São Tiago dando
lugar a um grande menosprezo pelas instituições.] Os nobres da época eram os novos ricos do
mundo moderno. Conquistados os títulos, sentiam-se no direito de viver colados ao orçamento
da despesa, apodrecendo longe do trabalho. Só os gastos da despensa da corte, dos quais vivia a
multidão dos criados, no Rio deJaneiro, ao tempo de D. João VI, se aproximavam da
respeitável importância de mais de quinze mil contos de réis! 0 alojamento dos fidalgos e de
suas famílias exigiu, por vezes a fio, as mais enérgicas providências da autoridade, no capítulo
das expropriações.
[(2)A chamada lei das aposentadorias obrigava todos os inquilinos e proprietários a cederem
suas casas de residência aos favoritos e aos fâmulos reais.]
[(3) Bastava que qualquer fidalgote desejasse este ou aquele prédio, para que o Juiz
Aposentador efetuasse a necessária intimação, a fim de que fosse imediatamente desocupado.
Ao oficial de justiça, incumbido desse trabalho, bastava escrever na porta de entrada as letras
"P. R.", que se subentendiam por "Príncipe Regente", inscrição que a malícia carioca traduzia
como significando - "Ponha-se na rua".]
[(4) Moreira de Azevedo conta em suas páginas que Agostinho Petra Bittencourt era um dos
juízes aposentadores ao tempo de D. João VI, quando lhe apareceu um fidalgo da corte,
exigindo pela segunda vez uma residência confortável, apesar de já se encontrar muito bem
instalado. Decorridos alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a algum tempo,
solicita escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em face dos excessos da
corte do Rio, exclama para a esposa, gritando para um dos apartamentos da casa:
- Prepare-se, D.Joaquina, porque por pouco tempo poderemos estar juntos.
E, indicando à mulher, que viera correndo atender ao chamado, o fidalgo que ali esperava a
decisão, concluiu com ironia:
- Este senhor já por duas vezes exigiu casa; depois pediu-me mobília e agora vem pedir
criados. Dentro em breve, desejará também uma mulher e, como não tenho outra senão a
senhora, serei forçado a entregá-la.]
[(5) Todavia, a despeito de todos os absurdos e de todos os dispêndios, que seriam de muito
excedidos nos odiosos processos revolucionários, caso o país fosse obrigado a exigir pelas
armas a sua emancipação, a corte de D. João VI ia prestar ao Brasil os mais inestimáveis
serviços, no capítulo de sua autonomia e de sua liberdade, sem os abusos criminosos das lutas
fratricidas.]
(BCMPE, pp.137-9)
(1) : Um episódio da época do reinado de D. Pedro II, envolvendo a comenda da Ordem de
Cristo, é contado em O Brasil Anedótico: "A Comenda do Cônego Brito".
(2) : Essa frase ("A chamada lei das aposentadorias...") inicia, no texto medi- único, uma
paráfrase do episódio "A Lei das Aposentadorias", reproduzido em 0 Brasil Anedótico:
"Chegada ao Rio de Janeiro em 1808 a família real portuguesa com todo o seu séquito de
fidalgos e fâmulos, foi posta em execução a chamada lei das aposentadorias, a qual obrigava os
proprietários e inquilinos a mudarem- se, cedendo as casas para residência dos criados e
servidores d'el-rei."
(3): Reproduzo agora a continuação do texto de O Brasil anedótico: "Bastava que o fidalgo
desejasse uma casa, para que o juiz aposentador intimasse o morador por intermédio do
meirinho, que se desempenhava do seu mandato escrevendo sumariamente na porta, a giz, as
letras P. R. Estas significavam - 'Príncipe Regente', ou, como interpretava o povo - 'ponha-se na
rua"'.
É importante notar que, na versão mediúnica, a alteração de "como interpretava o povo"
para "inscrição que a malícia carioca traduzia" parafraseia, desta vez, a seguinte expressão do
livro Diário Secreto, de Humberto de Campos: "a malícia anônima do carioca", também
designada como "o bom-humor carioca".
(4): Esses quatro parágrafos encerram a paráfrase de "A Lei das Aposentadorias". Eis o
intertexto: "Era Agostinho Petra de Bitencourt juiz aposentador quando, um dia, lhe apareceu
um fidalgote, requerendo aposentadoria em uma excelente casa, apesar de já ter uma. Dias
depois veio pedir-lhe mobília e, finalmente, escravos.
Ao receber o terceiro pedido, Agostinho Petra, que acompanhava a indignação do povo
com tantos abusos da Corte, gritou para a esposa, no interior da casa:

- Prepare-se Dona Joaquina, que pouco tempo podemos viver juntos.


E indicando, para a mulher, que acorrera, o fidalgote insaciável:
- Este senhor já duas vezes me pediu casa, depois mobília, e agora, criado. Brevemente
quererá, também, mulher, e como eu não tenho outra senão a senhora, ver-me-ei forçado a
servi-lo!"
(5) : Essa crítica aos processos revolucionários vai ao encontro de algumas ideias de HC
apresentadas, por exemplo, nas crônicas "Um Sonho Generoso", na qual o escritor refuta
Voltaire, para quem "a política e a guerra eram as duas missões naturais do homem na terra";
"As Mulheres e a Guerra", em que escreveu: "Esparta, onde as mães se orgulhavam dos filhos
mortos em combate, e lamentavam os que regressavam vivos embora vitoriosos, não vale, para
a Civilização, um só dos distritos de Atenas." Em seu artigo sobre Retrato do Brasil (1928),
Humberto de Campos discorda de Paulo Prado, que considerava medicamentos para o Brasil a
guerra ou a revolução; na opinião do cronista, "Somos um punhado de formigas a empurrar um
penedo. Mas prefiramos, em todo o caso, a lentidão aos recursos cruentos." No artigo "Azares
das Revoluções", sobre o romance homônimo (1929) de Álvaro de Alencastre, disse o escritor:
"Nas cargas de cavalarias de irmãos contra irmãos, tão celebradas, hoje, pelos espíritos em que
a paixão obscurece o sentido da própria responsabilidade, os que lucram não são, jamais, os
partidários do governo ou os da revolução. Os triunfadores, nas contendas fratricidas, são,
sempre, e unicamente, os quatro Cavaleiros do Apocalipse."
Esses exemplos evidenciam o proposital estabelecimento de diálogos in- tertextuais entre o
livro mediúnico e a obra de Humberto de Campos - elaborados para serem notados -, a fim de
justificar a atribuição de autoria ao escritor maranhense e colaborar para a construção da
narrativa de BCMPE.
SER - A primeira edição de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho foi publicada
em 1938. Você sabe se o livro foi todo escrito nesse mesmo ano? Como se deu o processo de
transcrição e editoração dessa obra mediúnica?
Alexandre Caroli - Eu não tenho informações a respeito do processo de editoração do livro.
Quanto às datas, pelo que consegui apurar, os dois textos introdutórios e os 30 capítulos de
BCMPE foram psicografados em pouco mais de um mês, entre a segunda semana de outubro e
meados de novembro de 1937, quando Chico Xavier contava 27 anos e trabalhava na
fazenda-modelo de Pedro Leopoldo (MG). Esses dados constam em Reformador, onde foram,
publicados, entre novembro de 1937 e julho de 1938, cerca de 50% dos textos que formariam o
livro. Seu lançamento ocorreu em julho ou agosto de 1938.
SER - Uma das ideias centrais do livro defende que a "árvore do Evangelho" foi
transplantada da Palestina para o Brasil. Essa afirmação representa uma novidade ou, ao
contrário, já existia no espiritismo brasileiro?
Alexandre Caroli - Não era uma novidade. A novidade foi o alentado desenvolvimento que
o tema recebeu com CX/HC, mas essa ideia já havia aparecido há mais tempo. Quando
Reformador publicou - em sua edição de 1/11/1937, com o título "O Coração do Mundo" 1
aquele que seria o primeiro capítulo do livro, além do prefácio de Emmanuel, a revista fez
questão de vincular esse futuro livro a mensagens publicadas anteriormente no espiritismo
brasileiro, em especial a uma psicografia de Albino Teixeira, produzida em março de 1920 e
veiculada por Reformadorem abril do mesmo ano. Nela, há esta passagem: "A árvore do
Evangelho, semeada há dois mil anos na Palestina, eu a transplantei para o rincão de Santa
Cruz, onde o meu olhar se fixa, nutrindo o meu espírito a esperança de que breve florescerá,
estendendo a sua fronde por toda a parte e dando frutos sazonados de amor e perdão". Foi
atribuída ao Espírito da Verdade, e o portador do texto teria sido o espírito Ismael, segundo
outra mensagem produzida por outro médium, na mesma sessão, na FEB, e assinada por
Bittencourt Sampaio (1834-1895). Ora, esses dois nomes, o de Bittencourt e o de Ismael, nos
levam ao Rio de Janeiro do século XIX. Em 1873, Bittencourt foi um dos fundadores da
Sociedade de Estudos Espiríticos - Grupo Confúcio, a primeira sociedade espírita da capital do
Império do Brasil. Lá, naquela mesma época, já se acreditava que Ismael era o espírito guia do
Brasil e que ao país cabia a missão de cristianizar, pois era a "terra do Evangelho", de acordo
com uma psicografia assinada por Ismael. Essas ideias circulavam e eram levadas a sério por
espíritas brasileiros, haja vista, por exemplo, que, em setembro de 1934, Leopoldo Machado
fez uma longa conferência intitulada "Brasil, Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos".
Nela, o autor alude às duas mensagens que mencionei. Depois disso, já com Chico Xavier, no
livro Crônicas de Além-Túmulo, o primeiro atribuído a Humberto de Campos, há também
alusões à tese que seria desenvolvida em BCMPE e menção 1 identidade de Ismael, neste
trecho de uma crônica escrita em 1936: "Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por
Ismael, filho de Abraão e de Agar, e dirigida dos espaços por abnegados apóstolos da
fraternidade cristã". A referência é ao Ismael bíblico (Gênesis, Antigo Testamento).
SER - Como você contextualizaria a obra BCMPE?
Alexandre Caroli - O livro é escrito no final da década de 1930, época em que surgem
influentes interpretações do Brasil. Em 1928, Paulo Prado publica Retrato do Brasil; em 1933,
Gilberto Freyre lança Casa-Grande & Senzala; em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publica
Raízes do Brasil; em 1941, Stefan Zweig lança Brasil, País do Futuro. BCMPE concilia um
tema recorrente nos escritos de HC - a História do Brasil - a uma leitura espírita do país, a qual
já existia germinalmente, como disse antes. A narrativa relaciona episódios da história
brasileira, até o início da República, com outros que se passam num plano espiritual. No livro
de CX/HC, o intercâmbio entre mundo terreno e mundo espiritual faz parte do curso da
história, numa constante tensão entre os planos espirituais e as ações terrenas, as quais
normalmente não correspondem a tudo aquilo que para elas havia sido planejado na
espiritualidade. BCMPE apresenta- se como uma história oculta do país; defende a ideia de que
ao Brasil cabe a função de ser o "coração do mundo", a terra para onde foi transplantada, antes
mesmo da vinda dos europeus, a "árvore do Evangelho". O espiritismo, após seu surgimento na
Europa, teria se aclimatado no Brasil, onde fortaleceu suas características cristãs e seu pendor 1
caridade, a fim de servir como uma nova tentativa da espiritualidade para estabelecer as bases
de uma cultura baseada no cristianismo primitivo e em princípios espíritas.
Obras citadas
CAMPOS, Humberto de. (1954) Diário secreto (2 vol.). Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro.
—. (1960) Memórias. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora Mérito.
S (1960) Memórias inacabadas. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora
Mérito.
—. (1960) Crítica (4 vol.). Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora Mérito.
—I (org.) (1960) O Brasil anedótico. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife:
Editora Mérito.
ROCHA, Alexandre Caroli. (2008) O caso Humberto de Campos: autoria literária e
mediunidade. Campinas: Unicamp (tese de doutorado disponível na Biblioteca Digital da
Unicamp).
XAVIER, Francisco Cândido. (1932) Parnaso de além-túmulo [Diversos autores], Rio de
Janeiro: FEB.
—. (1995) Novas mensagens [Humberto de Campos], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1995) Lázaro redivivo [Irmão X], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1996) Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho [Humberto de
37Celeiro de Redenção
Campos], 22. ed Rio de Janeiro: FEB.
—. (1998) Crônicas de além-túmulo [Humberto de Campos], 13. ed. Rio <je Janeiro: FEB.
—. (1998) Boa nova [Humberto de Campos], 23. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (2002) Cartas e crônicas [Irmão X], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (2007) Deus conosco [Emmanuel] (org. I anot. Wanda Amorim Joviano; Geraldo Lemos
Neto). Belo Horizonte: Vinha de Luz.

Capítulo 3
José Otávio Aguiar17
Entre a pena e o infinito: ensaios de associação entre as historiografias da Terra e as crônicas de
além-túmulo
Excerto: "Caiara-se a voz de Jesus por instantes; mais confortado, Ismael
continuou:’—Senhor, não teríeis um meio direto de orientar a política dominante, no sentido de
se purificar o ambiente moral da Terra de Santa Cruz?
Ao que o Divino Mestre ponderou sabiamente:—Não nos compete cercear os atos e intenções
dos nossos semelhantes e sim cuidar intensamente de nós mesmos, considerando que cada um
será justiçado na pauta de suas próprias obras."Jesus/Humberto de Campos/ Chico/ BCMPE,
P26.

Carta de intenções
Este capítulo tem como objetivo principal dialogar com algumas questões relacionadas à teoria
e à metodologia da escrita de História da América portuguesa na análise do livro Brasil,
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Como é conhecido, as páginas com as quais aqui nos

17
1 Doutor em História e Culturas Políticas/ UFMG. Pós-Doutor em História, Relações de Poder e Meio Ambiente/ UFPE.
Professor da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG. e-mail: otavio.j.aguiar@gmail.com
envolveremos surgiram da forja mediúnica engendrada na parceria entre Humberto de Campos
e Francisco Cândido Xavier. Assim, percorrer-se-ão, inicialmente, os seguintes tópicos:
julgamento, historicidade, verossimilhança e verdade nas historiografias e nas mediunidades;
métodos historiográficos, métodos psicográficos, limitações e possibilidades.
Partindo das ressalvas, análises e compreensões que esta introdução permite, seguiremos para o
cuidado de alguns tópicos temáticos de História do Brasil analisados pelo livro, no intuito de
desenvolver diálogos entre a historiografia da Terra e a crônica histórica de Humberto de
Campos, mas, notada- mente, também, de oferecer subsídios de literatura especializada para
quem se dispuser, no futuro, a analisar o tema e os processos nele envolvidos. Como toda
escolha temática envolve exclusões, optamos pelos pontos que, ao longo das décadas que nos
separam da edição da obra, mereceram mais páginas de polêmica e abordagem, na certeza de
que honrar um pensador é mantê-lo em pauta e chamá-lo à baila dos debates.

De Emmanuel a Mara Bloch: reflexões


sobre os julgamentos, a História e o
método
No final da década dos anos de 1920, para muitos homens encarnados, a condição passageira
do poder parecia a oportunidade de inauguração de uma nova sociedade, de um novo homem,
de um novo Mundo, pelo triunfo da vontade de grupos e líderes carismáticos na inspiração de
movimentos coletivos. Conhecido por seu influxo de escrita simultaneamente enérgico e
carinhoso, Emmanuel, o principal mentor espiritual de Francisco Cândido Xavier, não
pouparia em suas críticas os movimentos político-militares autoritários dos anos de 1930. Em 1
Caminho da Luz, há uma clara análise dos diversos ardis totalitários que se engendravam,
aparentemente inofensivos, a seduzirem a alma popular com promessas de paraísos terrestres à
custa do sacrifício alheio. Uma época de sofrimentos se abria naquela década para muitos
corações sinceros, mas, sob os desafios da desumanidade, explodiria uma renovada leva de
pensadores representativos da mais criativa e generosa humanidade. Na historiografia, novos
paradigmas se anunciavam, mas seus propositores, | semelhança de Marc Bloch, nem sempre
sobreviveriam no corpo aos embates da guerra em suas'mais variadas expressões. Justamente
por isso, por sua inserção em um momento de amplo repensar das formas de se escrever a
História, parece- me interessante a resposta de Emmanuel à pergunta 81 do livro O
Consolador.
"Nos planos espirituais a História das civilizações terrestres é conhecida nas mesmas
características em que a conhecemos através dos narradores humanos? - A descrição dos
fatos é aproximadamente a mesma; todavia òs métodos de apreciação dos acontecimentos e
das situações divergem de maneira quase absoluta."18
Os métodos de apreciação envolvem, certamente, julgamento, e uma das principais funções
do julgamento em História é compreender, explicar, dar um sentido, uma versão. Para julgar
fazem-se necessários parâmetros. Ora, talvez seja justamente intuindo algo do sentido
profundo desses outros métodos que Marc Bloch, nosso admirado cofundador da Escola dos
Annales19, tenha certa vez escrito em um livro basilar para o pensar de nosso ofício:
“Uma palavra, em suma, domina e ilumina os nossos estudos: 'compreender'. Ndo afirmemos
que o bom historiador é alheio às paixões; tem aquela, pelo menos. Palavra essa, não tenhamos
ilusões, cheia de dificuldades, mas também de esperança. Palavra cheia, sobretudo, de
amizade. Até na ação julgamos demais. É tão cômodo gritar 'à forcai'Nunca compreendemos
bastante. Quem difere de nós - estrangeiro, adversário poiítico - passa, quase necessariamente,
por mau. Mesmo para orientar as lutas inevitáveis, seria necessário um pouco mais de
inteligência das almas; com mais forte razão se as queremos evitar, quando ainda é tempo. A
História, se renunciar ela mesma aos seus falsos ares de arcanjo, deve ajudar a curar-nos desta
mania. Ela é uma vasta experiência da diversidade humana, um longo encontro dos homens. A
vida, como a ciência, tem tudo a ganhar se o encontro for fraternal".20

Dos limites e liberdades do ofício de


historiar
A disciplina de História e o ofício do historiador aprimoraram-se enormemente ao longo do
século XX. Os instrumentos teórico-metodológicos aperfeiçoaram- se, a noção de documento
ampliou-se para muito além das fontes escritas e a crítica de historicidade vem exorcizando,
pouco a pouco, os fantasmas do anacronismo e dos julgamentos descontextualizados. Libertos
de uma busca desesperada pelos começos, pelas origens, aqueles que historiam foram,
gradativamente, compreendendo a complexidade dos fenômenos estudados e sua natureza

18
2 XAVIER, Francisco Cândido/ Emmanuel. O Consolador. Rio de Janeiro, FEB, 1940, p. 34.
19
3 A chamada "História Tradicional", conhecida como positivismo histórico, dominou o século XIX, passando a ser
discutida, questionada e transformada diligentemente ao longo do século XX. Desse movimento de crítica, diálogo e
reconstrução, surgiu e engendrou-se, a partir do movimento dos Annales, a chamada "Nova História". Assim, à guisa de
explicação, entendemos por Annales o movimento iniciado com a publicação da revista intitulada Annales, em 1929, sendo
Marc Bloch e Lucien Febvre os seus dois principais e diligentes editores. Esse movimento está na base do que hoje se
denomina de "Nova História", sem que ess< denominação reflita, de forma alguma, um traço de homogeneidade invariante.
20
4 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 128.
processual. Afinal, talvez, a explicação não se restrinja à identificação de um início, mas se
defina de forma verossimilhante, e não clarividentemente verdadeira, com base nas inúmeras
oportunidades inesperadas abertas pelo devir histórico para as ações e escolhas humanas. Se a
História não chega a horizontes absolutos de verdade, é certo também que, hoje, não os
pretende encontrar. Perseguimos, os historiadores, uma verossimilhança honesta e resultante
de esforço exaustivo de aproximação explicativa, esforço este indispensável a um critério de
ética que nos distancie da sofística. Como exemplo, vale lembrar que é neste campo, na busca
de compreender os meandros dos processos de determinação, indeterminação, contingência e
escolha humanas, que a biografia histórica vem despontando como possibilidade rica de
entender trajetórias individuais na condição de recurso/paradigma para a compreensão de um
tempo.
Neste capítulo, acompanharemos algumas biografias e análises processuais presentes no
livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de Humberto de Campos, pela
psicografia de Francisco Cândido Xavier. Mais especificamente, vamos tentar compreender os
argumentos do autor. Buscaremos também elementos de intertextualidade que nos permitam ir
além do texto escrito, identificando sua polifonia e seus diálogos. Nesse esforço, nossas fontes
serão tanto a literatura acadêmica quanto a espírita, na busca de rompermos os estreitos limites
de nosso campo de diálogo cotidiano. A literatura espírita localiza suas condições de
possibilidade em relação a uma série de outras literaturas, com as quais ela dialoga e em relação
às quais estabelece linhas de continuidade e ruptura discursiva. Porém, este trabalho de
associação, apesar dos muitos esforços pioneiros, ainda não se afirmou como regra em nossos
meios. Em outras palavras, ou lemos exclusivamente os livros psicografados/ escritos por
autores espíritas ou nos limitamos à historiografia acadêmica, sem buscar diálogos,
aproximações ou distanciamentos entre as duas profusas fontes de produção de saber, cada uma
delas marcada por suas especificidades e características próprias. Cabe-nos, neste livro, na
qualidade de redatores de ensaios problematizadores, trazendo elementos aos debates, a
responsabilidade e a escusa dos principiantes.

Das historiografias às mediunidades


psicográfica
Assim como ocorre com a historiografia, a mediunidade também é verossimilhante,
embora as duas o sejam em níveis completamente diferentes. A história é verossimilhante
porque, ainda que disponha de métodos de inspiração científica, esses métodos não lhe
angariam o acesso a um passado fidedigno, nem à isenção completa da escrita daquele que
reúne os vestígios para configurar uma versão. Em ciências humanas, "demasiadamente
humanas", os sujeitos que prospectam e julgam confundem-se com os objetos, embora não se
reduzam a eles. Aquele que historia sopra vida em personagens que refletem mais as
preocupações de seu tempo do que as que imperavam na historicidade que procura descrever.
Isso é natural, porque interrogamos o passado de forma muito vinculada às questões prementes
de nosso presente.
Já na mediunidade psicográfica, a mensagem é transmitida pela mente dos desencarnados,
mas não o é sem diferentes níveis de filtragem e transmissão gradativa, processo esse que
continua por meio da mente e da pena do encarnado-medianeiro que escreve. O nível de
refração é influenciado de forma direta pelo potencial anímico do médium, pelas vibrações e
emanações ambientes e pela bem mais lúcida memória do desencarnado. Em Francisco
Cândido Xavier, tivemos um médium incomum pela capacidade de cultivar-se como
instrumento e, em Humberto de Campos, um apóstolo dedicado escolhido para uma tarefa
precisa e relevante. Avaliar-lhes em completude o esforço redacional apenas com base em
nossos incompletos métodos e conhecimentos da Terra seria presunção descabida.
Cabe, entretanto, lembrar que a dúvida e a composição de questões-problema fazem parte
tanto do método historiográfico quanto dos pressupostos kardequianos. Tanto o espiritismo
quanto a historiografia nos incentivam ao raciocínio crítico, portanto, partamos a ele. Nesse
caminho, podemos esperar que, ao longo do tempo, nossa maturidade na condição de
coletividade brasileira nos permita entender, em maior escala, o alcance de sua historiografia
espiritual. Isso, entretanto, só se fará individual e coletivamente, em processo de acrisolamento
gradativo e esforço contínuo, portas adentro do templo de nosso coração. Assim como é
preciso trabalho interno para se tornar um bom instrumento de uma mensagem elevada, é
necessária e indispensável também uma dose de inspiração e emotividade elevada para
compreendê-la à altura. Também sob estes aspectos que aqui recordamos, seria oportuno
destacar que o papel do leitor nunca é simplesmente passivo.
Assim, tornou-se lugar-comum entre os homens de nosso tempo, influenciados pela leitura
de nossa História da cultura histórica ocidental, afirmar que a obra de um autor nunca vai além
de seu tempo. Pensamos que, em relação ao mundo espiritual, ocorra da mesma forma. Os
desencarnados enxergam sob um ângulo de visão mais amplo, mas há outros espíritos que lhes
superam a altitude do ponto de observação, em uma hierarquia complexa correspondente ao
grau de luz e saber que já conseguem filtrar. Lembremo-nos de que o mundo espiritual também
evolui, e que os desencarnados da Terra, em gradação, representam o melhor e o pior da etapa
evolutiva que já conseguimos alcançar. Nossos guias de hoje serão nossos filhos e netos de
amanhã. Tarefas iniciadas em uma vida se completam em outra, concatenando peregrinações
evolutivas no aperfeiçoamento de virtudes, ofícios, tarefas. Uma nova ascensão abre nova
compreensão. Uma nova vida permite uma diferente atualização. Um novo tempo na Terra será
reflexo de um novo tempo em suas esferas, mas a transformação do planeta depende em maior
parte da boa vontade dos que se encontram temporariamente vestidos de corpo de carne.
Afastada a hipótese da infalibilidade de encarnados e desencarnados, não obstante todo
empenho sincero, acolhamos com humildade a certeza de que o método depende, e muito, de
nosso empenho anímico em bem filtrar, não obstante a localização espaço-temporal de nossos
saberes, o que já podemos anelar dos fragmentos de verossimilhança e verdade que nos são
concedidos, hoje, por misericórdia divina. Assim, muitos indagam por que Humberto de
Campos excluiu de seu relato tantas personagens para as quais a historiografia em voga reserva
lugar de relevo. Lembro, quanto a isso, a proposta-projeto esboçada no próprio título do livro
Brasil, Coração do Mundo Pátria do Evangelho. Não se tratava de um livro sobre História
política ou História econômica do Brasil, como o escreveriam com propriedade outros autores,
mas de elaborar um "romance histórico" destinado a relatar a trajetória de um grande projeto
espiritual, a saber: o da edificação de uma pátria culturalmente híbrida, de cujas expressões
afetivas nasceria o celeiro de bênçãos de interpretação e vivência evangélica para o mundo
todo.
0 objetivo do livro e a natureza das fontes evocam a hermenêutica, a metodologia e o
caminho seguidos pela argumentação do autor. Em se tratando de um autor espiritual, as fontes
consultadas e o maior âmbito de visão influenciaram fortemente a elaboração do texto. Não
devemos imaginar, porém, que por habitar o mundo espiritual ou por consultar fontes lúcidas e
descoladas da Terra, Humberto estivesse isento de localização de escrita e de historicidade.
0 mundo espiritual da Terra também está em evolução, embora muito à frente do mundo dos
encarnados. Não devemos imaginar um Humberto liberto de uma grande dose de personalidade
e de historicidade, apesar de desencarnado e bem orientado. Isso naturalmente influenciava
seus escritos. Escolher um grande literato recém-desencarnado, destacado em sua arte como
cronista, versado na forma de expressão dos anos de 1920 e 1930, certamente deveu-se essa
necessidade de expressar-se de forma mais próxima da linguagem dos encarnados de então,
mas também certamente a um passado reencarnatório meritório do autor, que desconhecemos.
Humberto havia aprimorado seu po- tencial anímico, mas não a ponto de estar à frente do
mundo dos encarnados e do mundo espiritual de seu tempo.
As Terras de Santa Cruz
Antes da década de 1530, Portugal não via nas possessões ultramarinas que se delineavam
continentalmente ao longo do Atlântico Sul, nas quais Cabral aportara, uma opção mais
interessante do que as inúmeras oportunidades de comércio oferecidas pelo que chamamos
hoje de Extremo Oriente. O contato com a índia | a China, e com o Japão, geraria dividendos de
troca cultural que enriqueceriam a experiência cultural do povo lusitano, colaborando
grandemente para a posterior formação de nosso caráter de cordialidade para com os
estrangeiros que aqui aportavam, na medida em que se configurava uma civilização nascida
dos sucessivos e constantes encontros e trocas culturais e tecnológicas.
Naquela que seria chamada Terra de Santa Cruz, etnias diversas de idioma tupi haviam
conquistado, séculos antes, a plataforma que se estendia do oceano às formações montanhosas
que nos acostumamos a chamar de Serra do Mar. Guerreiros aguerridos, os tupis se
defrontaram inicialmente com os primeiros colonizadores lusitanos, buscando neles elementos
de alimento de sua curiosidade cultural incorporativa e vantagens de pacto contra inimigos de
ocasião. O caráter de conquista e exploração comercial da empreitada ultramarina portuguesa
extremamente lucrativa lhes fugia culturalmente ao universo do doméstico e conhecido. Entre
eles valia a honra guerreira que lhes angariava a agregação de nomes capazes de conferir
dignidade e reconhecimento social. A antropofagia, recheada de significados culturais bem
próprios de seu universo de vivências seculares, surpreendeu de princípio os europeus, que não
demoraram muito a demonizá-la.
Seria possível conjeturar a presença de franceses no Brasil antes das lusitanas caravelas de
Cabral? Os franceses podem ter chegado mesmo, o que mudaria pouca coisa para os interesses
deste nosso capítulo, já que não houve tentativas de colonização, como nas décadas posteriores
a 1500. Paulmierde Gonneville chegou aqui em 1503, deixando um relato extremamente
interessante abordado por Leila Perrone-Moisés, no seu livro Vinte Luas21. Depois dele, muitos
outros viriam, dentre eles os holandeses, mas, passado o interregno da sua rápida conquista, o

21 5 PERRONE-MOISÉS, Leila. Vinte Luas - Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil (1503 -1505) 2* ed.
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Quanto à especulação sobre os fenfcios e, mais ainda, sobre os
viklngs, foi uma criação do nosso IHGB e teve utilização larga antes de ser refutada no intuito de atribuir
os traços de cultura elaborada tuplnambá a povos brancos do Norte da Europa. Era uma espécie de
racismo historlográfico. Sobre as teses improváveis da presença de escandinavos navegantes da Alta Idade
Média no Brasil, veja: LANGER, Johnni. Deuses, Monstros, Heróis - Ensaios de Mitologia e Religião
Viking. Brasília: Editora: EDU - UNB, 2009.
governo seria entregue aos portugueses até nossa independência política definitiva. Humberto
explora a razão desse legado e dessa confiança na herança cristã lusitana, não obstante toda a
sua distorção, violência, intolerância e fanatismo. O catolicismo na América Portuguesa
prepararia o terreno de cristianização e afetivização para o futuro estabelecimento da árvore da
Terceira Revelação. Aqui, os tentáculos da Inquisição não se estenderiam a ponto de sufocar a
necessidade de convivência surgida da própria ausência do Estado. Uma cultura de
convivência se construiria em bases mais fraternas se comparadas às outras experiências de
relações tensivas em fronteiras coloniais. As primeiras lições do cristianismo, apesar das
distorções, haviam sido ministradas. Em reencarnações posteriores, aqueles que haviam
distorcido as oportunidades recebidas, com mais sofrimento e dificuldades auxiliariam na
completude do trabalho iniciado.

Manuel da Nóbrega
Descendente de fidalgos portugueses, o Padre Manuel da Nóbrega destacara- se como
estudante nas Universidades de Salamanca e Coimbra, bacharelando- se em Direito Canônico e
Filosofia, mas, ao prestar concurso por duas vezes para professor, encontrou um grande
obstáculo: sua gagueira. Assim, aos 27 anos, em 1544, talvez movido em parte pelo resultado
dessas decepções, ordenou-se padre jesuíta, associando seu destino aos ideais tridentinos de
difusão do cristianismo romano pelos quatro cantos do mundo. De candidato gago, Nóbrega
fez-se pregador, não sem muito sofrimento e dificuldades. Os ouvintes de sua homilia talvez
fossem mais condescendentes que os professores da banca de concurso. Dobrado ao peso das
circunstâncias, sempre reflexo da vontade de Deus para conosco, o antigo tribuno Publio
Lentulus, acostumado às lides fáceis da eloquência, encontrava, no cérebro, a inibição
necessária ao burilamento de sua alma, a disciplina indispensável ao tempero de seu espírito.
Afinal, acrisolada no casulo, a lagarta espera o amadurecimento de suas asas, alçando, por fim,
seu voo de liberdade. O aparente tolhimento era um expediente de carinho da espiritualidade,
que lhe administrava a encarnação para desenvolver-lhe as virtudes internas, que só se
fermentam suficientemente em quem atrasa a palavra para esperar o seu aperfeiçoamento.22
Ele teria nascido, segundo tradição não corroborada por registros paroquiais sobreviventes,
na vila de Sanfins do Douro, gracioso aglomerado de casas do interior de Portugal no alto de

22 6 Confira o excelente texto acadêmico sobre o tema da presença dos jesuftas no Japão: http://wvm.dhw.
de/ausstellungen/neue-welten/pt/docs/Pedro_%20Lage_Reis_Correla.pdf.
uma imponente colina. De lá, caminhavam-se dois quilômetros até a margem sinuosa e
tranquila do rio Pinhão, onde havia oliveirais, plantações de cereais e vinhas famosas pelo
esmero de seus cultivadores. A região vira passar, sucessivamente, romanos, visigodos e
muçulmanos. Agora, já reconquistada pelos cristãos, vivia o momento de expansão do império
ultramarino português e projetaria seus provincianos habitantes para além dos confins da
América, da África e da Ásia. A convite de Dom João II, migrou para a América portuguesa na
Armada de Thomé de Souza, chegando a Salvador em 1549. No Brasil, exerceria papel
essencial na fundação de diversas vilas, dentre as quais a aglomeração em paróquia que seria a
futura cidade de São Paulo.
Seu degredo voluntário no Brasil o protegeria dos desmandos e desvios da Companhia de
Jesus na Europa, na Ásia e em outras Américas. Junto aos índios, sua alma se purificaria das
mazelas que ainda sobreviviam de seu passado orgulhoso; na solidão das matas, exerceria a
disciplina e o silêncio.
Nosso péssimo vício historiográfico de julgar geralmente exige das figuras de Nóbrega e
Anchieta algo além das condições de possibilidade dos homens de seu século, o que resulta
numa ingenuidade anacrônica. Eles, entretanto, selariam, com suas renúncias, seus destinos aos
da Pátria do Evangelho, palmilhando com tijolos de virtude as estradas do futuro. Como
Fabiano de Cristo, Anchieta voltaria à Terra no século XVII, sob o sol alegre e claro do Rio de
Janeiro23. Nas montanhas de Minas, já no século XX, sob o pseudônimo de Emmanuel, aquele
que animara séculos antes a personalidade de Manuel da Nóbrega marcaria nossas vidas com a
gigantesca tarefa de interpretação evangélica em parceria com Francisco Cândido Xavier. Com
os romances históricos, novas claridades se lançariam sobre pontos obscuros de textos antes
lacunares, como Atos dos Apóstolos.
Trajetória de desterramento voluntário nas Américas teve, também, o Padre José de
Anchieta, que nascido em Tenerife, nas Canárias espanholas, em 1534, percorreria caminho de
vida inusitado. Devido a um problema de saúde, se refugiaria no Brasil, onde seria mais tarde
conhecido por sua passagem na catequese dos índios Tupi e pela produção de vasta obra
literária e dramática destinada aos fins didáticos dessa empreitada. A inibição que Nóbrega
tinha na língua, Anchieta, que chegara à América Portuguesa antes, tinha nos ossos, o que,
desde muito cedo, lhe arqueara as costas em pronunciada corcunda. No Brasil, procurava ar

23 7 Sobre os jesuítas no Rio de Janeiro, no século XVIII, veja: PÔRTO, Ângela & OLIVEIRA, Benedito
Tadeu de. Edifício colonial construído pelos jesuítas é Lazareto desde 1752 no Rio de Janeiro. Hist. cienc.
saude -Manguinhos.Fev 1996, vol.2, no.3, pp.171-4.
puro que lhe favorecesse a saúde a conselho médico, mas encontrou muito mais. Sua trajetória
de homem do seu tempo foge às simplificações da mera exaltação e da ingênua crítica
anacrônica. Ele era um padre tridentino, de uma ordem regular rígida, mas a liberdade de seu
coração o faria trilhar um caminho indeterminado, repleto de constantes devires e surpresas,
motivadas por um sentimento profundo de serviço. A arte é um "discurso" de mediação entre
um real inalcançável e sua representação sensível. Seus sentidos não podem ser reduzidos por
mera leitura cartesiana, ela denota e conota, aparenta e dissimula, diz e sugere, parodia e
parafraseia, de forma bastante livre, porém, também eivada de intencionalidades e lapsos de
conteúdo subconsciente. Intenções de quem lê, intenções de quem escreve, sentidos
construídos em um devir de leitura que não tem um repouso de possibilidades esgotadas.
Assim, aos críticos de Anchieta, seria propício ler-lhe a arte. Certamente, não encontrariam,
como é natural, no Padre, um antropólogo relativista do século XX, mas uma possibilidade
criativa de ser humano em meio às imposições e intolerâncias do catolicismo tridentino. Se há
crimes graves aos olhos de Deus que nos passam desapercebidos como meras falhas e condutas
aceitáveis em um tempo categorizadas como crimes na Contabilidade Divina, Anchieta parece
ter alcançado sucesso em sua missão de ser um homem de bem frente aos desafios de seu
tempo. Este sucesso e amor far-lhe-iam retornar à Terra. Refiro- me ao conhecido Frei Fabiano
de Cristo, cujo nome laico era João Barbosa. Eie nascera agricultor simples dedicado ao
significativo ofício do cultivo de vinhas em Soengas, ao Norte de Portugal, e se transferira para
o Brasil, onde faria fortuna. Mais tarde, dedicando-se aos trabalhos de caridade no litoral do
Rio de Janeiro, renunciaria a toda a sua fortuna em favor dos desafortunados de seu tempo, sob
o hábito de São Francisco. Deixando o corpo, este trabalhador do qual, por Humberto de
Campos, conhecemos duas encarnações, fundaria larga obra de assistência aos desencarnados
de que temos notícia na obra Obreiros da Vida Eterna, de André Luiz, por Francisco Cândido
Xavier.

Índios Tupis
0 termo indígena é genérico demais, embora resulte de condições históricas próprias do
século XVI. Os indígenas eram, acima de tudo, muito diferenciados entre si, cultural,
genotípica e fenotipicamente. Não é isso, infelizmente, o que aprendemos nas escolas.
Algumas etnias tupis litorâneas tinham um sistema cultural baseado na predação externa para
construção interna. Sua cultura se baseava num constante incentivo às virtudes guerreiras,
personificadas no ritual de antropofagia. A projeção social, em algumas delas, era garantida
pela agregação de nomes ao primeiro nome, que indicava o número de guerreiros
individualmente abatidos em combate. Nóbrega se insurgiu contra isso numa grande campanha
de difusão pedagógica de um novo ethos, baseado na fraternidade e no amor cristãos,
utilizando-se naturalmente dos métodos pedagógicos próprios ao catolicismo tridentino e aos
preceitos inacianos. Nisso ele foi prejudicado pelos interesses dos colonos que tinham como
fim principal a escravização.
Como as identidades estão em constante forja e as culturas não são santuários puros a não
serem profanados, novas possibilidades de ser em sociedade nasceriam desse encontro violento
ou não com os europeus. Reencarnados, os índios experimentariam os renascimentos biológica
e culturalmente híbridos, entrelaçando destinos de tradições tupi e macro-jê sedimentados
pelos séculos com as multiculturais heranças da lusitanidade, forjadas na experiência romana e
visigótica, tanto quanto nos requintes da mais refinada cultura muçulmana. Foi sem dúvida
uma experiência violenta e traumática, desde a raiz ibérica, mas seu legado não se restringiu à
dor. Era o parto de uma mestiçagem desejada pelos planos do Alto, mas distorcida pela
agressividade das políticas e escolhas humanas.

Etnias Africanas
"A casa de Avis, sob cujo reinado se iniciou o tráfico hediondo, desapareceu para sempre,
depois de sucessivos desastres." Humberto de Campos
A escravidão, enquanto condição de instituição, deixou mais sequelas em nossa cultura do
que em uma visão superficial poderíamos desconfiar. As formas de ser e viver em uma
sociedade escravista deitaram raízes em vícios que ainda nos acometem, solicitando remédios
amargos, cujo lento efeito exigirá de nossa plural sociedade os mais largos esforços de partilha
e solidariedade. A violência do seu nefando sistema permanece em nossa sociedade,
acostumada ao abandono da infância e à hereditariedade da pobreza. Em cadeias
reencarnatórias concatenadas, aprendemos, nos últimos séculos, como é doloroso se tornar
motivo de escândalo dos outros e colher resultados de nossos plantios em outras vivências. Seu
legado, o da escravidão, acompanhou a saga dos espíritos familiares que reencarnavam na
nobreza portuguesa, caminhando por nosso país independente, que escolheu adiar em quase
mais um século o fim da nefanda instituição.
Não obstante dolorosa, a presença das diversas etnias africanas que nos hibridizaram
enriqueceu para sempre os elementos de fraternidade e espiritualidade da alma brasileira.
Como expressões culturais e traços das sensibilidades historicamente desenvolvidas pelos seus
milenares povos para com o sagrado, os candomblés e as mais recentes umbandas, compõem,
no cenário nacional, o cortejo de nossas formas diversas, interativas, híbridas e criativas de
intercâmbio com o Mundo Espiritual. É chegado o tempo de considerar as diferenças sem
hierarquizá-las. Justamente por isso, vale destacar que seu papel, não obstante diverso daquele
previsto para o espiritismo na pátria do Evangelho, não poderia jamais ser desprezado ou
menoscabado, mas encarado na condição de pluralidade, riqueza e complementaridade
dialógica.
Assim como a Igreja Católica foi chamada inicialmente às tarefas de cristianização do
Brasil, os judeus I marranos 1 refugiados no Nordeste interior tiveram certamente sua função
na recepção popular das tradições religiosas tributárias da Torá. Os expoentes da Igreja
Reformada, com seu afã materialmente empreendedor, trouxeram ao Brasil os elementos do
laborioso espírito financeiro e comercial que deve ter modificado de certo modo, na base de sua
recepção popular, nossas estruturas econômicas no século XX. Os africanos trouxeram sua
espiritualidade, suas plantas, sua rica mitologia simbólica, enfim, seus saberes sobre a saúde, a
morte e o nascimento, o magnetismo, a Natureza, a vida. Estes saberes, não obstante por muito
tempo desqualificados, não vinham, como todos os outros, para permanecerem intactos. Seu
papel seria em recepção, interação e comunhão, enfim, em transculturação fraterna.

O reformismo lustrado
Interessantes as observações de Humberto de Campos sobre o Marquês de Pombal. O
primeiro-ministro Português é apresentado como espírito imbuído de uma missão, mas
desviado em seu cumprimento. Esse desvio seria causado pelo excesso de rigor e pela falta de
compaixão. Novamente, como no caso de JoaquimJosé da Silva Xavier, são os sentimentos
móveis das ações dos homens o que mais conta na aferição de mérito que direciona os
julgamentos históricos. Cabe apresentar aos leitores pouco afetos ao tema algo da
historiografia sobre o movimento intelectual a que Pombal pertencia.
Curioso observar que, entre meados do século XVIII e início do século XIX, um projeto de
reforma estrutural movido por intelectuais políticos, como o Marquês de Pombal, Martinho de
Mello e Castro e Dom Rodrigo de Souza Coutinho, financiou diversas iniciativas de pesquisa
mineralógica, botânica e zoológica na América Portuguesa. A maioria dessas iniciativas foi
desenvolvida de forma fragmentária e sem continuidade, ao sabor da mudança das políticas
ocasionais de fomento, caracterizadas no âmbito do misto de incentivo ao desenvolvimento
técnico e combate às reformas políticas, que configurou o que hoje chamamos de Reformismo
Ilustrado. Com frequência, como observou Ronald Raminelli em livro recente, justamente no
momento em que benesses e cargos públicos eram concedidos aos naturalistas, em
reconhecimento régio aos serviços de descrição botânica, geológica ou zoológica realizados,
sua atividade de pesquisa se interrompia, ou era significativamente reduzida em qualidade,
uma vez destituída de fatores de incentivo que não os do desejo de projeção social e segurança
econômica.1
Desde o início da colonização das possessões ultramarinas lusitanas, o reconhecimento a
descrição geográfica e geológica, botânica e zoológica do território, conhecimento esse
produtor de um saber indispensável ao sucesso do empreendimento colonizador, foi entregue
aos colonos, em processos de acordos variados. Esses processos tinham em comum a troca de
informações por favores régios, que, não restritos à concessão de vantagens econômicas,
alcançavam, sobremaneira, o desejo de distinção, reconhecimento, honra e prestígio social dos
interessados.
Como têm demonstrado muitos trabalhos, que vão da obra de Antonio Hes- panha até os
mais recentes escritos dejack Greene sobre as colônias americanas, a autoridade da metrópole
não pode ser reduzida a mero movimento centrífugo da Europa para as periferias, uma vez que
foi arregimentada por uma sucessão de barganhas e estratégias promovidas tanto de um lado
como do outro, de modo a permitir o uso da autoridade nas assim consideradas margens do
Império, Essas teriam sido submetidas a um processo de "crioulização". | Como nos lembra
Maria de Fátima Gouvêa, a chamada "economia política de privilégios" contribuía para
viabilizar a governamentalidade e apontava para um mecanismo de reforço dos laços de
sujeição e o sentimento de pertencimento dos vassalos reinóis ou ultramarinos.111
Ângela Domingues considerou a existência de uma rede de informações sobre as
potencialidades econômicas dos territórios ocupados, gerada por cientistas funcionários
portugueses, e mesmo nativos das colônias de ultramar, em finais dos Setecentos. Para essa
historiadora, o foco maior, embora não exclusivo, dessa rede, era o Brasil.IV No século XVIII,
com a emergência dos saberes ditos científicos, a descrição espontânea e improvisada da
natureza perdeu espaço para o discurso autorizado por esses saberes recentemente qualificados,
na medida em que a metrópole instrumentalizava universidades como a de Coimbra para esse
mister, atraindo, especialmente após uma política pombalina de conhecidas repercussões, os
filhos da elite colonial para que lá se formassem, sob a égide da monarquia e a inspiração de um
projeto de Império Ultramarino que garantiria, em tese, sua futura lealdade.
- "Nesse particular - respondeu Tiradentes com uma ponta de ironia não devo manifestar os
meus pensamentos. Os ossos encontrados tanto podem ser de Gonzaga, como podem
pertencer, igualmente, ao mais miserável dos negros de Angola. O orgulho humano e as
vaidades patrióticas têm também os seus limites... Aliás, o que se faz necessário é a
compreensão dos sentimentos que nos moveram a personalidade, impelindo-nos para o
sacrifício e para a morte.. ."Humberto de Campos por Chico - Crônicas de Além Túmulo,
1937.
Certamente, enquanto encarnado, Humberto de Campos não via nos relatos do mundo
espiritual a referência segura a uma realidade a ser considerada. Sua incursão entre os
desencarnados, desencadeada pela inevitável experiência da constatação pós-morte, o levaria,
entretanto, a viagens outras no tempo da memória e no espaço da nação. Uma dessas foi a que
o conduziu a Minas Gerais, onde as ideias de liberdade e liberalismo das Treze Colônias
Inglesas da América do Norte haviam gerado frutos de sublevação, nas particularidades do
movimento de Inconfidência, forma local de sua recepção. Humberto dá mais destaque à
Inconfidência Mineira de 1789 do que à Baiana de 1787. Conhecedores que somos dos muitos
outros movimentos sediciosos S motins dos setecentos na América Portuguesa, naturalmente
nos perguntaríamos sobre a razão de tal ênfase. O que já podemos responder é que, enquanto
encarnado, Humberto já era admirador da imagem de Joaquim José da Silva Xavier e defensor
da possibilidade de alçá-lo à condição de herói, conforme o processo que se fizera por toda a
primeira república, e fora corroborado por Getúlio Vargas, que criara, naqueles anos de 1930, o
Museu da Inconfidência, iniciando o processo de repatriamento dos restos mortais dos antigos
envolvidos na sublevação de 1789 nas terras alterosas das Gerais. Para além da mera referência
de memória evocada pela criação, então recente, da casa-túmulo dedicada ao patrimônio
histórico de Ouro Preto, Humberto destaca a trajetória do Tiradentes, que, como espírito
imortal, se redimira na experiência do sacrifício e coragem de pretérita encarnação como
inquisidor. O móvel e o sentimento envolvido nas escolhas que envolvem os processos
históricos, só acessíveis a Deus e aos seus mensageiros encarregados da evolução humana, são
mais significativos como motivação e julgamento dos processos do que sua manifestação
fenomênica e aparente, nem sempre acessível ao observador historiador de primeira hora na
Terra. Por seu mais pronunciado caráter de liberdade e independência, neste sentido, a crônica
de Humberto, agora desencarnado, supera a historiografia da Terra. Mas, sobre esta última
historiografia e suas polêmicas, o que teríamos a dizer?
É significativo o título de um livro de João Pinto Furtado, colega da UFMG, O Manto de
Penélope. O autor se refere às muitas versões elaboradas pela historiografia para abordar temas
variados relacionados aos eventos e personagens envolvidos na Inconfidência Mineira. À
semelhança do manto de Penélope, lendária esposa de Odisseu (Ulisses) na famosa epopeia
grega A Odisseia, atribuída a Homero, tecido e retecido ao longo do tempo de espera do retorno
do marido, as versões do movimento sedicioso setecentista variaram na pena e na leitura de
autores diversos. Neste particular, destacaram-se dois grandes grupos de pesquisadores.24 O
primeiro abordou, desde o século XIX, a documentação remanescente, buscando novas
abordagens e versões. Nele se incluem o brasilianista Kenneth Maxwell e o mais recente André
Figueiredo Rodrigues, historiador paulista que tornou pública a significativa fortuna de
Joaquim José da Silva Xavier, rompendo um estereótipo de vitimização que pairava sobre o
Alferes. No segundo grupo se inclui o próprio João Pinto Furtado e, também, de forma
significativa, José Murilo de Carvalho, que estudou a construção da imagem heroica do
Tiradentes pelo Estado Republicano em associação com a imagem martírica de Jesus.25
Sem nos prendermos ao inventário dessa historiografia, já abordado em diversos espaços
outros, enfoquemos, em nosso esforço de síntese, os comentários de Humberto de Campos.
Primeiramente, cabe lembrar o processo de colonização peculiar da região das Minas.
Disputada palmo a palmo desde o período de sua primeira colonização por diversas etnias
indígenas, essa montanhosa região conheceu um aporte sem precedentes de população entre
finais do século XVII e meados do século XVIII. Guerras sangrentas, doenças e epidemias de
fome marcaram as primeiras décadas de conquista das montanhas por colonos paulistas e
reinóis portugueses. Na falta de organização e agricultura, na busca desesperada por abastecer
a população crescente, a fauna local foi amplamente dizimada e a flora, devastada. Na procura
desenfreada pelo ouro e pelos diamantes, a traição e a morte eram constantes na vida daqueles
homens, acostumados ao assassinato e exploração cotidiana dos nativos que encontrassem em
seu caminho.
A sociedade que surgiu desses primeiros embates guerreiros, sucedidos pelo controle
governamental marcado pela militarização, foi a primeira urbanizada do interior da América
portuguesa. O fausto gerado pela extração das riquezas do solo permitiu o surgimento de certo
requinte societário marcado pelo investimento artístico e cultural. Livros eram importados,
artistas financiados por mecenas. Ideias novas, mesmo que proibidas, adentravam o coração de
uma elite oprimida por impostos que podavam suas possibilidades de maior enriquecimento.
Livros de Rousseau e de Abade Raynal, não obstante as proibições, constavam entre os
volumes das próprias bibliotecas dos clérigos.
0 exemplo das 13 colônias norte-americanas e de sua emancipação inspirava horizontes de

24
8 MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal - 1750-1808. S5o Paulo: Paz e
Terra, 1985.
25
9 RODRIGUES, André Figueiredo. A Fortuna dos Inconfidentes. São Paulo: Editora Globo, 2010. CARVALHO,
José Murilo de. A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil. Sâo Paulo. Companhia das Letras, 1990.
emancipação e liberdade.
Não se conhece, entretanto, até hoje, entre a documentação remanescente, ímpetos de
emancipação nacional entre os planos dos inconfidentes. Não se pode, também, associar a eles
ideias relativas à libertação dos escravos. Eram, em sua maioria, ricos comerciantes e altos
funcionários, proprietários de terras e escravos, a exemplo do próprio Tiradentes, como nos
mostrou obra recente de André Figueiredo Rodrigues.

A transferência da corte portuguesa


Ao aportar em Salvador em 1808, a própria Família Real reduzia-se, então, a estado de quase
indigência, o mesmo podendo afirmar-se do séquito de nobres que a seguira. Para esses
últimos, suprimidos os seus cargos, saqueadas as suas propriedades, esgotadas as fontes de
suas pensões, incertas as condições de sua estada naquelas terras desconhecidas, a sorte
definitivamente não parecia sorrir. Restavam-lhes apenas os símbolos da honra de gentis
homens de corte, outras tantas representações enraizadas no antigo regime que, em Portugal,
pareciam teimar em sobreviver. Tudo isso, no entanto, exercia certo fascínio sobre os abastados
comerciantes e fazendeiros da Colônia.
Dom João, desde o reconhecimento da demência de Maria I, sua mãe, I vinha utilizando
com bastante astúcia os parcos recursos de que dispunha na I manipulação da vaidade de seus
súditos ilustres. No Brasil, a adulação em troca dos títulos de nobreza, a busca da convivência e
do aprendizado das regras da vida em corte, o deslumbramento causado pela proximidade
inédita da realeza levaram muitos abastados comerciantes cariocas a financiarem de bom grado
as despesas reais, a cederem suas residências urbanas a orgulhosos, sectários e,
frequentemente, ingratos reinóis. Dominava ainda o imaginário luso-brasilei- ro a
representação patriarcal da monarquia, associada a uma atribuição de caráter sagrado à realeza.
Os rituais de beija-mãos, as missas solenes, as grandes manifestações de euforia e apreço
público em presença do monarca demonstravam o quanto uma atmosfera acima de tudo
conservadora reinava naquele momento efêmero, para além dos recentes ventos de mudança.
Aos olhos de alguns reinóis, a condição de refúgio na antiga colônia figurava como penosa
sentença de degredo. Para outros, menos numerosos e formados na cartilha do Reformismo
Ilustrado - como Dom Rodrigo de Souza Coutinho e seus colaboradores mais diretos - o
transporte da corte lusitana para o Brasil representava o primeiro passo na construção de um
grande e poderoso império português, com sede no Rio de Janeiro. Herança do sebastianismo
português, pregada com ardor, no século XVII, pelo padre Antônio Vieira, a utopia do
poderoso império português ocuparia ainda por muito tempo o imaginário dos estadistas de
Portugal, incorporando-se com a independência ao sonho de grandeza dos fundadores do
Império do Brasil.26

A nação e sua forja


Maria de Lourdes Viana Lyra, em um conhecido livro editado nos anos de 1990, sugere-nos
percorrer a longa história de uma utopia de poderoso império construída ao longo da formação
política, religiosa e literária de nossa tradição luso-brasileira. 27 Daí, e também devido à
extensão territorial do território brasílico, a denominação hiperbólica que o nosso olhar sobre o
século XIX e as suas classificações já naturalizou: Império do Brasil. Não obstante, em se
tratando da formação de uma identidade nacional brasileira independente, hoje é consenso na
historiografia que se tratou de processo de forja lenta, cujas primeiras manifestações para além
dos projetos dos pais fundadores da nação só se concretizaram em meados do século XIX.
Desfeita a ilusão de um único império constitucional após a malograda tentativa vintista de
recuperar a hegemonia sobre a antiga colônia, perdida desde a viagem da Corte rumo ao Brasil,
no final de 1807, ficava claro que o controle sobre tão vasto território não se faria somente com
base em abstratos conceitos de consciência nacional-liberal. Lúcia Bastos Pereira das Neves
fez um interessante estudo sobre esse período, no qual se acirrava um embate entre os
partidários das ideias conservadoras de um reformismo ilustrado lusitano tardio e os defensores
de outras possibilidades mais democráticas e radicais, também calcadas no século XVIII, mas
provenientes dos pensamentos ilustrados estadunidense e francês.28 Esse embate, assumindo
configurações e apropriações diversas, atravessaria o século, dividindo os futuros parlamentos.
Um projeto de nacionalidade se esboçava na imaginação de alguns intelectuais, como o
conhecido José Bonifácio de Andrada e Silva. As semelhanças entre ele e o esboçado no
Diretório Pombalino dos índios não são meras coincidências. Com a independência, este
esboço tomaria contornos que apontariam, gradativamente, para a centralização política e para
a afirmação de uma utopia de "amálgama" cultural. A expressão remonta ao próprio José
Bonifácio que, sendo mineralogista de formação, desejava reduzir as diferenças culturais de
nossa formação pluriétnica como se amalgamam ligas de metais, ou seja, fazendo tabula rasa

26
10 Sobre este assunto, veja LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império; Portugal e Brasil: bastidores
da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994.
27 11 LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império; Portugal e Brasil: bastidores da
política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994.
28 12 NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: FAPERJ/Revan, 2003.
das diferenças em nome de um único e culturalmente neutro projeto de cidadão brasileiro. Esse
seria o "feliz" súdito de um novo Império centrado nos trópicos, forçadamente "independente",
que tinha por desafio de futuro entornar, ou melhor, inventar, uma cultura para si.

A abdicação de D. Pedro I e suas


repercussões
Interessante refletir nas repercussões das escolhas pessoais sobre as nossas missões na Terra e
em como uma precipitação ou fraquejamento podem impactar os destinos de muitas pessoas.
Interessante, sob este aspecto, o que Humberto de Campos escreve sobre a abdicação,
"inesperada", de Dom Pedro I. Lembrei-me, também, de João Goulart e de sua renúncia à luta
armada, por ocasião do Golpe Civil-Militar de 1964. As escolhas dos homens que estão
temporariamente na missão do Estado não são fáceis. As de Dom Pedro II também não o
foram. E, pensando nessa esteira, quais seriam os planos de Jesus para Dom Pedro caso ele
permanecesse no Brasil, aceitando, por exemplo, um governo constitucional? Saindo dos
campos do governo e alcançando o da teia das vidas, quais seriam os planos de Jesus para Saulo
caso, desde o princípio, ele houvesse se sensibilizado pelas palavras e exemplos de Estevão e
Abigail? O que seria de Públio Lentulus se houvesse ouvido Jesus na primeira hora às margens
do Mar da Galileia? Um quinto evangelista de linguagem romana e, portanto, mais próxima da
nossa e menos marcada das formas literárias judaicas?
Certamente todos eles, seguindo os planos do princípio, teriam sofrido muito menos...
Antes de ler Humberto de Campos, nunca havia refletido suficientemente sobre as
repercussões da abdicação de Dom Pedro I para os rumos tomados pelo Império do Brasil no
século XIX e, de resto, sobre a própria vida pessoal do nosso primeiro Imperador. Ao que
parece, sua escolha de retornar a Portugal contrariava os planos da espiritualidade, que nele,
talvez, enxergasse possibilidades outras mais edificantes, para as quais seu temperamento e
escolhas terminaram por não contribuir.
No rápido primeiro reinado e no conturbado e revoltoso período regencial, a necessidade de
manutenção da unidade nacional ocupou a pauta de quase todos os esforços. Entendendo
federalização e atomização de poderes como anomia e caos, as elites brasileiras elegeram o
poder moderador, ratificado pela constituinte outorgada de 1824, como o grande árbitro
autorizado das querelas entre as elites locais. Insatisfações localizadas foram caladas com
concessões ou com massacres, num Estado militarizado no qual primeiro a elitizada Guarda
Nacional e, depois da Guerra do Paraguai, o antes "pouco confiável" exército eram o lastro da
manutenção de uma muito desejada ordem de tranquilidade dos homens da elite, formadores
do que então se entendia como a "boa sociedade".
No campo das ideias, o único que nos interessa neste espaço, ao longo das décadas que se
sucederam, ao sabor do século romântico que se vivia, a I empreitada de delimitação de uma
identidade nacional foi assumida em diversas frentes. Fosse na poesia de um Antonio
Gonçalves Dias ou na pintura de um Pedro Américo, ou ainda na música de um Carlos Gomes,
ou na historiografia de um Francisco Adolfo de Varnhagen, o que se buscava era evocar
imagens bucólicas de um país de índios tupis gloriosamente extintos num passado distante,
mas agora governado por uma monarquia austro-lusitana, que lhe garantia genealogia honrosa
e branca, bem como lhe sugeria grandeza e unidade. Essa unidade, afirmou-se efusivamente a
partir de então, deveria contrastar com o quadro de fragmentação das demais nações
latino-americanas. Essas eram desqualificadas como "republiquetas desorganizadas" e, mais
tarde, "autoritárias e caudilhescas". Dessa nação imaginada e romântica excluíam-se os negros
escravos e livres, que, entretanto, ocupavam ativamente a atenção do Parlamento, em parte
apreensivo e internacionalmente pressionado com a necessidade de limitar e finalmente dar fim
ao tráfico negreiro, bem como à própria instituição escravista. Essa última incomodava a vários
desses pensadores de um futuro Brasil imaginário, cheio de virtude e justiça.
José Bonifácio chegou a escrever uma memória sobre o tema, prevendo um lento e
gradativo fim para a famigerada instituição do comércio e exploração de vidas humanas.
Outros setores endinheirados, entretanto, lhe imaginavam a continuidade e nela baseavam seus
lucros. Esses últimos, naturalmente, também produziram sua justificação intelectual, buscando
alento e intercâmbio com seus correspondentes estadunidenses do norte. Feita a abolição, como
se fariam os cidadãos? Karl Friederich Von Martius e Francisco Aldolfo de Varnhagen se
perguntariam por vertentes algo diversas: como se escreveria a História do Brasil? Uma
fantasmagoria de superioridade do Império do Brasil se construía nos meios intelectuais. Os
esforços classificatórios dos viajantes estrangeiros, muito frequentemente liberais e
antiescravistas, deixariam suas contribuições neste particular. Seus escritos contavam com
grande acolhida e simpatia das elites locais, bem como do Imperador Dom Pedro I que logo se
afirmaria como grande mecenas de seus esforços em palmilhar e dar significado às naturezas e
às gentes do Brasil.

Entrelaçamentos
"Eu, porém, entre vós, sou como aquele que serve."-Jesus. (LUCAS, 22:27.)
Este esforço de pensar o entrelaçamento entre historiografias e psicografias nâo poderia ter
uma conclusão. Na verdade, o que não temos e não teremos, por muito tempo, é justamente um
ponto final. O capítulo pretendeu abrir debates, levantar novas perguntas, suscitar novas ideias.
Escrevendo do ano de 2014, remetemo-nos às notícias do Brasil 1 de seu destino trazidas por
Humberto de Campos pela pena do mineiro Chico Xavier, nos anos de 1930, pouco antes da II
Grande Guerra.
Chico Xavier, um homem puro, simples e bom, que consagrou a maior parte de sua
existência na Terra ao serviço dos sofredores e à pena que divulga o bem. Pela natureza dos
frutos se conhece a árvore, conforme a famosa | afirmativa de Jesus, e justamente por isso a
obra desses dois pioneiros merece destaque e análise exaustiva. Pioneiros, porque
desbravadores de uma historiografia psicografada do Brasil. Um legado de esperança para os
que se encontravam na escuridão da dúvida, porque aponta os planos de nosso governador
espiritual para a sofrida comunidade cultural na qual reencarnamos.
Quais destinos nos estariam reservados ao futuro no desenvolvimento desse concerto de
nações que compõem o disputado quadro internacional dos alboresdo século XXI? Quantas
dores ainda nos separam do parto da nova civilização, pela qual estamos sendo convocados a
trabalhar ativamente? Qual o nosso papel diante do cérebro do planeta, hoje situado,
metaforicamente, nos Estados Unidos da América? Se o Brasil é convocado ao comando, como
coração do mundo, é certamente porque, como na exemplificação de nosso Mestre e Senhor
Jesus Cristo, deve se fazer o primeiro a servir na exemplificação do Evangelho. Sobre isso não
nos iludamos, exemplificar, em tempos de anomia e crise, é sinônimo de sacrificar-se.

i RAMINELLI, RONALD. Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância.


São Paulo: Alameda, 2008.
u Cf: HESPANHA, Antonio. M. As Vésperas do Leviathan: instituições 1 poder político-
Portugal: Século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. GREENE, J. Negotiated authorities.
Essays in Colonial Political and Constitutional History. Charlottesville and London: The
University Press of Virginia, 1994.
jd GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo
atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, J. etalli. (orgs.) O antigo regime nos
trópicos. Rio de Janeiro: Civilização, 2001, p. 287.
iv DOMINGUES, A.: Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de
redes de informação no Império português em finais do Setecentos. História, Ciências,
Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 823-38, 2001. Veja, ainda, obra anterior da
autora: DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de
poder no Norte do Brasil durante a segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
Capítulo 4 Dimensões simbólicas
cristãs em algumas fontes hitóricas
referentes ao Brasil
Gisella de Amorim Serrano29
“Como se um pombo simbólico trouxesse as novidades de um mundo mais firme, após novo
dilúvio.”

Introdução
Um estudo sobre um cavalinho de pau nos chama a atenção. Em Memórias Sobre um
Cavalinho de Pau, Ernst Gombrich, a partir do brinquedo infantil, desbravava a complexidade
da história da arte e, ao mesmo tempo, evocava as ambiguidades no terreno da representação.
Afinal, o cavalinho, a intenção de construí-lo e a imagem do seu correspondente, na realidade,
figuravam no cerne das questões teóricas que o implicavam.
0 cavalinho de pau era mais do que uma imagem, mais do que uma imitação de um cavalo
"de verdade", era o sintoma social da necessidade de se fazerem correspondências. O cavalinho
era uma representação. Sua forma alimentava uma ilusão de realidade. A discussão sobre os
riscos dessa pretensão de realidade na arte, como nas ciências humanas e sociais, por
consequência, nos indica quão rico é o debate sobre essas questões.
As representações, como antevira Gombrich, são categorias sociais importantes e vitais.
Etimologicamente, o termo representar é tributário de repraesentar, ou fazer presente, ser
imagem. Entretanto, embora a operação sinonímica pareça simples, o conceito de
representação vai muito além dessa função e tem sido alvo de análises múltiplas e ambíguas.
Num ilustre ensaio sobre a história cultural, Sandra J. Pesavento demonstra didaticamente a
importância das representações nas organizações humanas e nas ciências sociais. Sobre elas
sublinha a "capacidade de mobilização e produção de reconhecimento, legitimidade social". As
representações são formas de organicidade, de interpretar, de validar, de confronto, de
construção de identidades e significados de mundo. Longe de corresponder a critérios de

29
1 Gisella Amorim, de Belo Horizonte-MG: Pesquisadora brasileira especializada na história nacional portuguesa, autora da
premiada tese Caravelas de Papel. Pós-doutora e doutora em História pela UFMG. e-mail: gisaamorim77@gmail.com
determinação da verdade com a qual se relacionam ou são identificadas, as representações são
formas cifradas da realidade concreta ou abstrata que dialogam mais com a verossimilhança 1 a
credibilidade do que com a verdade. As representações também são formas histórico-sociais
em permanente constituição de ordenações, significados:
As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste

mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua
existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de
força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos
dão sentido ao mundo por meio de representações que constroem sobre a
realidade.30
No terreno da História, autores como Roger Chartier e Cario Ginzburg também cultivaram
a representação como conceito-chave. A partir desses autores, o conceito de representação
passou a se relacionar com as práticas sociais e suas respectivas atribuições de significados.
Jacques Le Goff também salientou outro dispositivo fulcral: a abstração ou tradução mental
que o processo de representar envolvia. Por isso, o imaginário, termo já tão problemati- zado
pelos historiadores, passou a se integrar como objeto de compreensão das sociedades, como um
dado significativo pelo qual os indivíduos passariam a fazer valer, a explicitar ou retroceder
suas engrenagens mentais.
Assim, devido a sua importância, pretendemos entender algumas das referências
identificadas na Carta de Pero Vaz de Caminha e na cartografia histórica sobre a viagem de
1500 como representações 31 , isto é, como invocações não fortuitas no que se refere às
passagens do Evangelho e da história bíblica.

Um carta, uma origem


E tu, Belém Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me
sairá o que há de reinar em Israel, e cuja origem é antiga, de épocas remotas (Mq 5:2).

30 2 PESAVENTO, 2003, p.41.


31 3 Servimo-nos aqui de algumas advertências oferecidas por Chartier. Em primeiro lugar
consideramos, nesse texto, que as interpretações realizadas são consequência da inexorável polissemia das
leituras, portanto, parte de uma interpretação que não pretende esgotar a análise das referências
sublinhadas. Não estamos sugerindo, aqui, sua validação como parte de um estatuto de veracidade que a
História, firmemente, não pressupõe possuir. Procuramos constituir, assim, apenas uma interpretação
possfve! do tema.
Tendo Jesus nascido em Belém32 da Judeia, em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos
do Oriente a Jerusalém. (MT, 2:1)
Em 1o de maio de 1500, a compreensão, a novidade, o encanto e a surpresa sobre as terras
recém-encontradas pelos tripulantes da frota de Pedro Álvares Cabral seriam descritas numa
missiva ao rei D. Manuel por Pero Vaz de Caminha. Com a carta, o escrivão tinha a intenção de
noticiar o que haviam encontrado, deixando para a posteridade um documento oficial, uma
espécie de "certidão de nascimento" de um país que viria a surgir. Aquelas notícias ecoariam
por gerações e gerações ao longo dos séculos, quais fossem a mais fiel descrição daquele
encontro. Um misto de estranhamento e perturbação, de euforia e frustração.33
Em 1793, foi encontrada a carta de Caminha, que estava há séculos entre os documentos do
acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Décadas depois, em 1817, foi publicada por
Manuel Aires de Casal.
Caminha começa sua descrição noticiando o início da viagem, especificamente seu ponto
de partida.
A partida de Belém foi - como Vossa Alteza sabe - segunda-feira, 9 de março. E sábado, 14 do
dito mês, entre as8e9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária. E
ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo,
22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber
da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto. (CAMINHA, p.6) (grifo nosso)
A notícia da partida sugere reconstituir também uma origem. Sinalizava e sublinhava uma
vincuíação à história bíblica. A carta então batizada como atestado de nascimento do Brasil,
por apontar as transformações cruciais naquele território, sob todos os pontos de vista atestava,
da mesma forma, um ponto de origem naquela capital quinhentista.

32 4 Gn 35:16; 48:7; Rt 4:11; Mq 5:2; Mt 2:1 -16; Lc 2:4.15; Jo 7:42.


33 5 Há na historiografia muitos estudos que têm como objeto a referida carta. Nesses estudos, ela é
entendida sob diversos prismas. Quase todos escapam à proposta desse texto, embora todos contribuam,
sem dúvida, para a compreensão do documento e, portanto, para nosso estudo. VerSILVA, Maria Beatriz
Nizza da. A carta-relatório de Pero Vaz de Caminha. Ide (São Paulo), São Paulo, v. 33, n. 50, jul. 2010.
Disponível em <http7/pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scrlpt=sci_arttext&pid=S0101
=31062010000100005-&lng=pt&nrm- iso>. acessos em 29 out. 2014; TUFANO, Douglas. A Carta de Pero
Vaz de Caminha: comentada e ilustrada. São Paulo: Moderna, 1999. TEXEIRA, Marli Geralda. Leitura
Ideológica da Carta de Pero Vaz de Caminha. In: REVISTA FESPI Anais do Seminário: Leituras da
Carta de Pero Vaz de Caminha, (Edição Especial) .Ilhéus Ba, Editus, 22 de abril de 1996. PEREIRA, Paulo
Roberto (org.). Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Larceda,
1999, entre outros.
Belém ou Santa Maria de Belém é uma zona portuária que abrigava uma pequena aldeia
chamada Restelo, a par do rio Tejo e então vizinha de Lisboa. No século XIV, D. Henrique
resolvera instituir ali, naquela região, cujas atividades atraíam e faziam parar os marinheiros,
uma edificação em homenagem à Maria, posteriormente doada 1 Ordem de Cristo. Mandara
construir ainda uma fonte e um chafariz (18 de setembro de 1460). Um século depois, D.
Manuel mandaria erguer um mosteiro e passaria sua administração à ordem dos hiero- nimitas
e transformaria aquela edificação religiosa num conjunto monumental, reformando a igreja e
oferecendo-a à Santa Maria de Belém. Mandara construir ainda uma torre, conhecida como
Torre de Belém.
Nenhuma dessas iniciativas foi aleatória. O porto, antes com funções comerciais e
marítimas, passou a desempenhar também uma função religiosa, afinal, situava-se numa região
criada sob o imperativo da natividade e em alusão a ela.
Sobre a origem e a importância daquela região no contexto da viagem, afirmou Humberto
de Campos:
No dia 7 de março de 1500, preparada a grande expedição de Cabral ao novo roteiro das índias,
todos os elementos da expedição, encabeçados pelo capitão-mor, visitaram o Paço da
Alcáçova, e na véspera do dia 9, dia deste em que se fizeram ao mar, imploraram os
navegadores a bênção de Deus, na ermida do Restelo34, pouso de meditação que a fé sincera de
D. Henrique havia edificado. O Tejo estava coberto de embarcações engalanadas e, entre
manifestações de alegria e de esperança, exaltava-se o pendão glorioso das quinas. (CAMPOS,
p. 21-2)

34 6 Edificada em 1514, dentro dos terrenos da cerca do Mosteiro de Santa Maria de Belém, foi concebida
por Boitaca e conclufda por Rodrigo Afonso. De planta quadrada, o corpo da capela é rematado superior-
mente por grosso cordão e pináculos torsos, com gárgulas nos cantos. Os cunhais estão reforçados por
quatro gigantes com função estrutural, que apoiam a sustentação da cobertura, em abóbada pollnervada, e
dos panos murários. A porta principal apresenta, na molduração, diversa emblemática manuelina. No
interior destaca-se o arco triunfal polilobado, com decoração vegetalista, dando acesso a capela-mor, um
corpo mais pequeno e baixo, igualmente quadrangular. Esta mesma capela-mor já teve três altares,
recobertos de azulejos sevilhanos quinhentistas; aquele que existe actualmente é já do século XX, e nele
foram usados azulejos originais. A Capela tem sido restaurada ao longo dos séculos, sendo o restauro mais
recente aquele que fqi feito a par das grandes obras levadas a cabo no final do séc. XIX no Mosteiro
dosjerónimos, como prova a Inscrição gravada sobre a pequena porta lateral, restaurada em 1886. Esteve
sepultado nesta capela Pina Manique (1733-1805), fundador da Casa Pia de Lisboa. SML
http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/pes- quisa/geral/patrimonioimovel/detail/70633/. Acesso em 10 de
abril 2014.
Aos empreendimentos feitos na zona religiosa organizada inicialmente por D. Henrique e
que, passo a passo, unira-se à cidade de Lisboa, soma-se ainda o passo mais significativo nas
pretensões portuguesas quanto à procura de novas terras: a viagem cabralina.
A zona de Belém constituíra ainda clara alusão à cidade de Davi, do nascimento de José e
do próprio Jesus.
A partida de Belém, da zona construída como forma-representação simbólica da cidade do
Evangelho, recomporia, de toda sorte, a História do Brasil, filiando-a, conforme as pretensões
cristãs da época. O cristianismo ainda medieval dos monarcas portugueses iria fundamentar a
religiosidade das viagens ao ultramar e apresentar-se-ia como ingrediente de um capítulo
expressivo da história das Grandes Navegações. A chegada de Cabral à margem oposta do
Atlântico inauguraria, de forma indelével, nova ordenação no conhecimento territorial do
mundo. Nesse sentido, a alusão a Belém é uma reafirmação, naquela fonte histórica, da
descendência do povo cristão, assentada na irmandade divina e na sua filiação.
É fortuito lembrar que Belém também é conhecida como a "Casa do Pão", do hebraico
“beit" (casa) e "lehem" (pão).
A cidade da natividade é assim referida como local onde se produz um alimento cujo teor
simbólico perpassa todo o Evangelho, afinal, "Jesus é o pão da vida!" GO 6:22-35).
O pão tem conotação significativa na história do povo bíblico. É por repartir o pão que os
discípulos reconhecem o Mestre ressuscitado, nas proximidades de Emaús (LC 24:13-35).
Jesus repartira os pães entre os famintos, os ouvintes e entre seus discípulos no monte.
Sobrariam 12 cestos, com os restos da multiplicação bendita que saciaria a fome de mais de 5
mil pessoas (MT 14,15-20).35
A promessa do alimento, tal qual ocorrera no deserto por meio do "maná dos céus"
anunciado, pode ser novamente antevista na previsão da origem. A ideia de uma "pátria nova"
abençoada retornaria na anunciação da partida ao desconhecido? Provenientes daquela região,
cujo sentido simbólico referia-se à cidade do pão, de onde emanam o alimento e o sustento
divino, aqueles desbravadores uniam, necessariamente, fé e coragem em direção ao horizonte
temido. A referência bíblica na partida da viagem poderia então ser traduzida por uma nova
promessa: a da confiança de que os céus não deixariam faltar o alimento espiritual de que

35
7 Em nota explicativa acerca da duplicata de referências quanto à multiplicação dos pães, há uma relação importante: "o
gesto de Jesus queria ser entendido - como de fato o foi desde a mais antiga tradição - como preparação do alimento
escatológico por excelência, a eucaristia". É o que salientam a apresentação literária dos Sinóticos (comp. Mt 14:19;15:36 e
26:26) e o discurso a respeito do pão da vida de Jo 6. (Bíblia de Jerusalém, 2011).
necessitavam os viajantes. Aqueles homens deveriam se nutrir da confiança no verdadeiro pão
da vida, afinal, como afirmara Jesus em seu tempo na Terra: "Eu sou o pão descido do céu"36 e
nascido em Belém.
I com o pão que Jesus alimenta a multidão. O alimento mais necessário, "puro e simples"37
fora utilizado por Jesus como elemento simbólico da comunhão para com ele. Jesus abençoa o
pão. Demonstra a fé e o poder de Deus. Reparte e compartilha. Ensina-nos o cuidado e a
fraternidade pelo pão.
Analisando esses aspectos, podemos compreender que a viagem de Cabral, abençoada na
ermida do Restelo, nos remete, de forma evidente, a uma tripla dimensão simbólica associada
às expectativas quanto às novas terras. É possível perceber um entrecruzamento pautado na
tradição bíblica, traduzido na reminiscência da natividade, na simbologia do
pão-aíimento/sustento e, sobretudo, na possibilidade de uma eucaristia, ordenada pela missão
redentora do novo país a se formar.
Emmanuel, em sublime comentário, reafirma sua importância, enfatizando que cabe ao
homem a orientação em direção ao Alto na busca do seu pão espiritual, de cujo celeiro nunca há
de faltar o alimento de que verdadeiramente necessita. Contudo, se a "Pátria do Evangelho"
pode ser compreendida como celeiro de redenção, devemos pressupor que será,
necessariamente, na busca por sua origem celeste que se compreenderá melhor a verdadeira
aliança.

Alguns nomes, uma missão


Com a observação de sinais e a proximidade das terras, após dias de viagem no Atlântico, eis
que o capitão da frota restauraria, mais uma vez, o sentido religioso que os nutria:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de
Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -
segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas - os quais eram muita quantidade de
ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dõo o nome
de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um
grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã,
com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra
A Terra de Vera Cruz! (CAMINHA, p. 7, grifos nossos)

8
36
Ver sobre o diálogo Jo 6:22-59.
37 9
Ver ainda Palavras de vida eterna, p.134.
0 Brasil teve vários nomes que, nas pretensões deste texto, nos servem a uma reflexão
profunda acerca dos seus significados, explícitos e implícitos. No ideário das Grandes
Navegações, o objetivo da expansão da fé católica estimulava os ânimos dos crentes e também
servia como segurança aos temerosos dos oceanos. Naquele momento, após longa e tumultuada
viagem sobre o Atlântico, a visão de uma terra firme seria como refúgio e descanso, como oásis
no deserto.
Evidentemente, sob aquela conjectura, a predição da chegada reanimava e reacendia as
promessas mundanas por riquezas, mas também por reconhecimento real.
Os nativos, primeiros habitantes das terras encontradas pelos portugueses em 1500,
denominavam-nas Pindorama. Da língua dos tupis, Pindorama quer dizer “terra das
Palmeiras".38
Curiosamente, a viagem - que chegará ao sul do continente ainda desconhecido - inicia-se
no período da Páscoa. Essa é a justificativa conhecida para a denominação do Monte avistado
do mar: Monte Pascoal. Entretanto, a referência à Páscoa naquele contexto guarda simbologia
que devemos analisar.
Conforme nos indica a citação acima, os primeiros sinais da proximidade de novas terras
foram avistados na terça-feira das oitavas de Páscoa.39 Conforme os ritos cristãos católicos, as
comemorações da Páscoa representam um período de festa e renovação, o que está
intimamente associado à ressurreição de Jesus. Entretanto, a Páscoa é uma tradição mais
longínqua. A primeira ceia de Páscoa aconteceu no Egito. Segundo consta em Ex 12,28 os
hebreus comemoraram-na, ainda no Egito, conforme a orientação recebida. Por isso,
tornou-se bastante significativa também para o povo hebreu, que, por meio da alimentação com
pães ázimos (sem fermento) e do sacrifício de um cordeiro, relembrava o sofrimento no
cativeiro. Em hebraico, a Páscoa é definida pelo termo Pessach, usualmente entendido como

38 10 Conhecidas pelos botânicos pela sua diversidade de espécies (aproximadamente 2.500), pelo seu
aproveitamento (várias partes são aproveitadas na fabricação de casas, na culinária etc.), por sua beleza (é
muito utilizada pelo paisagismo), entre outros aspectos. Entretanto, é forçoso lembrar que a espécie
singulariza uma paisagem tropical, vincula-se a uma paisagem natural.
39 11 "Segundo Agostinho, a oitava da Páscoa é uma "ecclesiae consenslo", um costume unânime da
Igreja, tio antigo quanto a Quadragesis (a Quaresma). Os fiéis deviam suspender seus trabalhos nesses dias,
e tomar parte nas cerimônias diárias". Esta semana era chamada antigamente também "semana branca" ou
"semana das vestes brancas". No Oriente é conhecida também como semana da renovação. Inicialmente ela só
terminava no domingo, o qual, por isso, tinha o nome de domingo das vestes brancas (www.cnbb.org.br/
comissoes-episcopais/liturgia/1495-oitava-da-pascoa).
"passagem". Podemos compreendê-la, como nos lembra Paulo, relacionando-a à ressurreição,
quando todos devemos nos libertar pelo exemplo do Cristo crucificado.
A Páscoa é, portanto, um momento de reflexão acerca do necessário des- pertamento com
Jesus, para que se viva em maior sintonia divina. Assim como nos primórdios do povo hebreu,
a Páscoa remetia-se à travessia do Mar Vermelho. Também podemos considerar que sua
referência na carta/certidão das novas terras referia-se tanto à Nova Travessia (do Oceano
Atlântico) quanto à possibilidade de uma vida com Cristo ressuscitado internamente.
O período cujos contornos litúrgicos remetiam-se à renovação pela ótica cristã
coadunara-se, historicamente, com a chegada às novas terras. Assim, o capitão, ao avistar um
monte, deu-lhe o nome Pascoal. Mas há ainda outro desdobramento nessa denominação. A
primeira porção de terra antevista foi uma elevação chamada acidente geográfico ou monte,
cujas características se destacam pelas altas altitudes em relação a suas proximidades. Esse tipo
de elevação é uma forma símbolo recorrente em passagens evangélicas no Novo Testamento.
Entre elas, podemos citar: a transfiguração no Monte Tabor, o Sermão do Monte, a
multiplicação dos pães, entre tantas outras. Foi também no Monte Sinai que Moisés recebeu os
10 Mandamentos. Em todas essas passagens, a configuração do monte remete-nos a uma
conformação geográfica e ainda a um sentido implícito quanto à disposição espiritual, quanto à
elevação, a subida do padrão vibratório por meio do qual se alcançaria, de forma mais fluida, a
sintonia divina. Jesus subia para refletir, subia para orar, para profetizar, para meditar, e
aqueles que procuravam por ele subiram muitas vezes o monte para ouvi-lo e senti-lo.
A despeito da sua significativa presença em toda a Bíblia, é forçoso questionar se teria sido
fortuito o capitão avistar logo um monte que seria chamado “Pascoal" na "Terra de Vera
Cruz"...
Outro aspecto fundamental que nos instiga à reflexão quanto às nomenclaturas adotadas é
mencionado nas primeiras páginas da obra de Humberto de Campos:
Todo o suo existência de abnegação e ascetismo constituíra uma série de relâmpagos
luminosos no mundo de suas recordações. A prova de que os seus estudos particulares falavam
da terra desconhecida é que o mapa de André Bianco, datado de 1448, mencionava uma
regido fronteira à África. Para os navegadores portugueses, portanto, a existência da grande
ilha austral já não era assunto ignorado. (BCMPE, 2013, p.14)
Em artigo recente, o professor Paulo Márcio Menezes analisou a cartografia histórica
relativa ao período anterior à chegada dos portugueses às novas terras, em 1500. Ele propôs
uma discussão fundamental sobre as referências cartográficas que identificavam ilhas místicas,
incluindo a Ilha Brazil, e ainda problematizou, a partir de um histórico bibliográfico, algumas
divergências na etimologia da palavra Brazil. Tendo como base de apoio esse estudo, podemos
refletir um pouco mais sobre a escolha dos nomes para as novas terras.
Segundo Paulo Menezes, o surgimento na cartografia histórica de referências ao Brazil
como "topônimo" é muito anterior ao século XV, quando a frota de Cabral cruza o oceano e
aqui aporta. Há, inclusive, uma discussão significativa na historiografia, cujas conclusões
nunca se concluíram, de que o conhecimento das terras encontradas em 1500 já era real, sendo,
portanto, questionada a tese de que os portugueses buscavam as índias naquela viagem. De
toda forma, desde a Antiguidade, o desbravamento dos oceanos constituía motivo de fascínio e
temor. Há uma literatura fantástica que antecipa a existência de seres imaginados e
assustadores. Além disso, as águas dos mares e oceanos seriam resguardadas por seres
mitológicos, cuja fúria era pressentida e pré-narrada.
Assim, havia um desconhecimento sobre os oceanos, afinal a ciência náutica era ainda
muito tímida. A ignorância sobre os mares e oceanos fez brotar na mentalidade dos europeus
um imaginário, onde residiam seres fantasiosos.
O núcleo central nas representações cartográficas pautava-se na Europa e no Mar
Mediterrâneo. Na esteira desse confrontamento entre o conhecimento cartográfico do mundo e
o imaginário, foram sinalizadas inúmeras ilhas. Muitas delas nunca foram encontradas de fato.
Menezes nos indica uma lista, entre ilhas confirmadas e outras nunca descobertas. 40 Dentre
elas, destacou a ilha de São Brandão e Brazil.
Segundo o autor, as referências concernentes à ilha Brazil ocuparam os mapas com
variadas designações, tais como Berzil, Bracie, Bracir, Brezill, entre outras, e perpassaram a
cartografia histórica até o início do século XVII.
Pautado nessas referências, ele traz à tona os mapas de Andréa Bianco, aqui já referidos em
citação da obra BCMPE, e nos elucida quanto à filiação do cartógrafo italiano à Escola de
Sagres, elencando três de seus mapas: o de 1436, o de 1439 e o de 1448. Esses mapas, em sua
opinião, sublinham nãosóo I registro de uma ilha intitulada pelo cartógrafo como Ilha Brazil ao
sul de Cabo Verde, como também a existência de terras "a 1500 milhas a oeste", e ainda nos
indicam, conforme advertira Jaime Cortesão, "por onde viajavam os portugueses" naquele
tempo.
Outra ilha associada ao Brasil é a Ilha de São Brandão. Essa seria relacionada à lenda

40 12 Antilia, Stocafixa, Man Satanaxo, Salomão, Mariéa, Drogeo, Do oro, Cabreira, da Ventura,
Górgodas, Eternas, Sanzorzo, do Corvo Marinho, Yma, do Homem e da mulher, Fortunadas, das Sete
Cidades, Essores, Montrorlo, dos Pombos, Verde, Tíbias, Tausens, Mayda, Cerne (Menezes, p.4/5.)
céltica do século IX que perdurou até o século XIV. Uma expedição portuguesa denominara
uma das referências atreladas a São Brandão como "Ilha do Brasil de Brandam".41 A referência
a essa ilha também é realizada por Andréa Bianco.
Tanto a lenda céltica quanto as referências cartográficas, e também aquelas do mapa de
Andréa Bianco, indicam um sentido comum. Para Menezes, a lenda textual Peregrina tio sancti
Brandani é denominada Ho Brasile ou Hy Bras- sail, cujos significados compreendem "terra
feliz", "terra da felicidade" ou ainda "terra da promissão".
O mesmo autor cita a existência de um documento significativo, apontado por Gustavo
Barroso, em 1941, como uma carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel em que o capitão
da frota de 1500 ressalta que as terras encontradas seriam "terra nova onde chantara a cruz
como aquela que os antigos chamavam de São Brandão" (p. 7). Mais à frente, o próprio
pesquisador salienta:
Desta forma, verifica-se que existia uma curiosa aproximação entre o significado da palavra
Brasil com a ideia de uma terra de promissão ou de terra de felicidade e que hoje é sugerida
como uma das teorias do nome e da terra descoberta" (p. 7)
Na última parte de seu texto, Paulo Menezes analisa, em linhas gerais, as correlações na
etimologia da palavra Brasil. Lembra-nos acerca da sua correspondência com a extração do
pau-brasil (Caesalpinia echinata Lam), cujo comércio e utilização remontavam à Antiguidade,
inclusive na antiga China (embora lá fosse utilizada a Caesalpinia sappan), e arrola documentos
europeus desde o século XII, bem anteriores à sua extração portuguesa no Novo Mundo.
0 pau-brasil, como referente para a designação das novas terras a partir de 1500, estaria
associado à cor da tinta e da madeira da espécie vegetal.
Quanto à etimologia, o nome Brasil pressupõe a abundância da riqueza vegetal (pau-brasil)
nas novas terras. Mas, embora essa tese seja muito aceita, não podemos desconsiderar a
indicação de que o nome "ilha Brasil" tem raízes célticas (dois componentes gaélicos "breas" e
"ail"), que teriam o significado de “nobre" ou "bem-aventurado", conforme nos informa o
próprio autor.
Há duas vertentes no texto de Paulo Menezes que nos importam sobremaneira e que se
referem claramente ao nosso objetivo. De um lado, o pesquisador procura relembrar que a
identificação de parcelas de terras então consideradas ilhas estaria associada a um investimento
de cartógrafos de nacionalidades variadas e correlacionava-se a um imaginário fictício da
época. O pouco conhecimento cartográfico de então favorecia um componente místico e

41 13 Expedição do capitão da Real Armada Portuguesa Sancho Brandão


fantástico.
Por outro lado, o autor nos leva a refletir sobre as designações e a etimologia da palavra
Brasil, referendando sua historicidade em trabalhos anteriores ao seu.
Antes de ganharem este nome, as terras encontradas por Cabral chama- • ram-se Pindorama
(antes de 1500), Ilha (Terra) de Vera Cruz (1500), Terra de Santa Cruz (1501), Terra Papagalli
(1502), Mundus novus (1503), América (1507), Terra do Brasil (1507), índia Ocidental (1578),
Brazil (século XIX).42
Em artigo de divulgação científica, José Murilo de Carvalho sublinha a importância, para a
historiografia do século XX, da discussão acerca da nomenclatura do país. Assevera ele que um
dos mais respeitados historiadores do referido século, conhecido pelo garimpo nos arquivos,
sobretudo os portugueses, renovara a correlação do nome Brasil com a Ilha apontada na
cartografia, sugerindo ampliar o panorama, então restrito a sua identificação com a madeira
extraída:
Mas a maior polêmica em tomo do nome do país ainda estava por vir. Não dizia respeito
apenas à ortografia, mas também à origem do nome. Se entre os cronistas coloniais, inclusive
os contemporâneos da chegada dos portugueses, é unânime a versão de que o nome da nova
terra tenha vindo da madeira Brasil, a partir do início do século XX começa a ganhar força a
versão que defende outra origem, alternativa ou complementar Em notas à terceira edição da
principal história geral do Brasil até então escrita, a História geral do Brasil, do visconde de
Porto Seguro (Francisco Adolfo de Varnhagen), datada de 1906, outro respeitado historiador,
Co- pistrano de Abreu, menciona uma outra vertente do nome Brasil.
Trata-se de uma ilha mítica supostamente localizada à altura da costa irlandesa. Era uma das
muitas ilhas ou terras fantásticas que povoaram o imaginário europeu desde a Idade Média, a
Ilha Brazil, que aparece em vários mapas desde 1375, como no Atlas de Catalan, desse ano, e
no de Mercator, de 1595. Ela constou dos mapas do Almirantado inglês até 1865. Velhas
tradições célticas, como a do rei BrasaI que nela teria fixado residência após a morte, falavam
desta ilha coberta de brumas a que ninguém tinha acesso. Marinheiros procuravam em vão
por ela, poetas a cantavam em pleno século XIX. (...). Essa versão do nome do país também
registra mais de 20 grafias, como Berzil, Bracil, Brasil, Brazil, Brazille, Brazir, Braxil.43

42
14 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-brasil-e-seus-nomes
43
15 CARVALHO, José M.O longo debate em torno dos muitos nomes que teve o pais pode ser lido como indicação da
insegurança sobre nossa identidade e das frustrações de nossos sonhos. 12/9/2007. IN-
httpwvm.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-brasil-e-seus-nomes.Acessoem20/03/2014.
Algumas considerações
Pensar sobre as referências bíblicas explicitadas na Carta de Caminha ou refletir sobre os
nomes do nosso país e seus significados possíveis é como rever o cavalinho de pau de
Gombrích.
Intrigado com o brinquedo, o historiador interroga-se, em tom conclusivo, sobre o estatuto
da sua representação que aqui muito nos importa. O cavaii- nho seria apenas um retrato, seria
um substituto para o cavalo? Gombrich nos afirma: "Talvez haja, nessa fórmula, mais do que
os olhos podem ver".

Referências:
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1976.
CAMPOS, Humberto. Brasil, coração do mundo. Pátria do evangelho.2013, p.
21-2.CORTESÃO, Jaime. Carta de Pero Vaz de Caminha. Ed. Livros de Portugal, 1943.
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achamento do Brasil. (Atualização e Notas) Revista FESPI. Anais do Seminário. Leituras da
Carta de Pero Vaz de Caminha. Ilhéus. 1996.80 p. Edição Especial.
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O Brasil e o mito do Paraíso terreal - do Fórum Internacional de História e Cultura no Sul
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Três documentos contemporâneos ao descobrimento do Brasil. WWw.
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SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A carta-relatório de Pero Vaz de Caminha. Ide (São
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TUFANO, Douglas. A Carta de Pero Vaz de Caminha: comentada e ilustra- I da. São
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TEXEIRA, Marli Geralda. Leitura Ideológica da Carta de Pero Vaz de Cami- I nha. In:
REVISTA FESPI Anais do Seminário: Leituras da Carta de Pero Vaz de Caminha, (Edição
Especial). Ilhéus Ba, Editus, 22 de abril de 1996.
PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Larceda, 1999, entre outros.

Capítulo 5 Árvore do Evangelho


Haroldo Dutra Dias44
„Jesus transplantou da palestina para a região do Crozeiro a árvore magnânima do seu
Evangelho”
"Em essência, poética é a gramática da literatura. Devemos, primeiramente, saber como um
texto significa antes de podermos saber o que ele significa" (WALTKE, 2010).

Introdução
44
1 Haroldo Dutra Dias, de Belo Horizonte-MG: Estudioso das Escrituras e literatura rabínica. Conhece as línguas hebraica,
grega e aramaica. Tradutor do Novo Testamento editado pela Federação Espírita Brasileira Orador espírita conhecido no
Brasil e no mundo.
A narrativa bíblica desvela, ao leitor atento e treinado, propósitos históricos,
teológico-didáticos e estéticos, ao longo de uma tessitura artisticamente elaborada com o
emprego de técnicas típicas, utilizadas com maestria pelo narrador.
É literatura, na medida em que narra, conta histórias - persuadindo, prescrevendo e
comunicando significado - sem perder o senso estético. Ao mesmo tempo é obra
teológico-didática que não oculta suas intenções religiosas, pedagógicas, selecionando e
conectando eventos para construir personagens que se tornem inspiradores da crença, ética e
mensagem que pretende comunicar.
Os leitores são convidados a interagirem com a história, experimentando os sentimentos,
ideias, perplexidades e desafios dos personagens-tipo.
Em suma, é exortação engenhosamente destilada na narrativa.
A abordagem literária da Bíblia é responsável por importantes contribuições ao trabalho
dos seus exegetas e hermeneutas. Os estudos críticos da poética e da narrativa evidenciam
como o narrador estrutura sua composição, sua narrativa-histórica de maneira que a peça
artística possa comunicar significado.
Adele Berlin define a poética como:
"uma ciência indutiva que busca abstrair os princípios gerais da literatura (...) sua meta não é
obter o significado de determinado texto, mas descobrir os blocos do edifício literário e as
normas por meio das quais foram reunidos (...) a poética é para a literatura o que a linguística
épara o idioma". (WALTKE, 2010).
Naturalmente, os métodos de composição literária variam de uma época para outra, de uma
cultura para outra, de um idioma para outro. Nesse sentido, é importante descortinar o cenário
cultural, social, histórico e linguístico do narrador, de modo a tornar-se consciente do abismo
que separa o ambiente de produção do texto do ambiente de sua leitura, preenchendo as lacunas
com elementos e informações quase sempre ausentes do texto, mas presentes no conjunto
literário da época.
A primeira lição destacada pela abordagem literária é a de que os autores bíblicos
utilizavam as palavras com parcimônia, engenhosidade, estratégia, sem perder de vista os
aspectos estéticos, lúdicos e artesanais inerentes a qualquer obra de arte. Em síntese, cada
palavra é importante.
No trabalho de interpretar o texto bíblico, deve-se discernir os seus diferentes níveis de
construção, reconhecendo que cada aspecto do texto possui uma função e precisa ser explicado.
Por essa razão, I conveniente explorar os diferentes níveis de estruturação do texto, quais
sejam:
1) nível fonético-morfológico - no qual se encontram o jogo de sonoridades das palavras
bíblicas, responsável pelo ritmo e cadência presentes na constituição dos versos e estrofes dos
textos, bem como pelos expedientes lúdicos, nos quais se destacam os trocadilhos. As palavras
constituem os blocos primários do edifício literário;
2) nível frasal - onde se localizam os fios do tecido narrativo, semelhante à teia de aranha,
sutilmente modelada para correlacionar as palavras e entretecer as ideias, em frases e orações
coordenadas e subordinadas umas às outras;
3) nível discursivo - onde estão presentes as macroestruturas argumen- tativas que
fornecem identidade ao discurso, e revelam as estratégicas e técnicas retóricas do texto;
4) nível cênico - no qual se destacam os cenários, as personagens, os episódios, as cenas,
os atos, o roteiro - ao qual propomos a tese de que se estruturam em quatro dimensões (três
dimensões espaciais e uma temporal);
5) nível composicional - onde se articulam os blocos cênicos, formando os atos, e as
seções/cidos que moldam a arquitetura, a forma final do livro, e da Bíblia como um todo.
Com relação ao primeiro e segundo níveis, é bom salientar que, no imenso tecido da
composição Bíblica, as frases representam os fios artisticamente entrelaçados, nos quais se
inserem as palavras, cuidadosamente selecionadas para emprestar colorido e conteúdo à peça.
É impossível estabelecer qualquer estratégia discursiva sem adequada combinação de
palavras, frases, orações, em períodos artística e estrategicamente entrelaçados, de modo a se
obter a máxima coesão e coerência.
A partir dessa perspectiva podemos compreender a expressão “Leitwoif, cunhada por
Martin Buber, que significa "palavra-mestra" ou "palavra-chave". Segundo esse autor, a
expressão pode ser compreendida como:
"a palavra ou radical que é significativamente reiterada dentro de um texto, ou uma sequência
de textos ou complexo de textos (...) os que atentam para essas reiterações encontrarão um
significado do texto revelado e da- rificado,' ou, de certa forma, enfatizado" (BUBER, 1994)
(Buber, Martin. "Leitwort Style in Pentateuch Narrative" in Scripture and Translation, org.
Martin Buber e F. Rosenzweig).
Essas palavras nos conduzem ao foco, ao significado da narrativa, ou pelo menos, aos
aspectos enfatizados no texto, não somente em decorrência do uso de radicais, com vistas à
produção de ritmo, sonoridade e trocadilhos, mas também em razão da sua utilização como
conectores das demais estruturas representadas pelos níveis frasal, discursivo, cênico e
composicional.
Não raro, uma palavra pode ser o eixo de um conjunto de orações, o elo entre elementos do
discurso, o liame entre cenários, atores, cenas, atos, ou ainda, a conexão entre seções e ciclos,
dando unidade à peça composicional, em seu conjunto. Em suma, além de serem os blocos
fundamentais da construção, representam também os elos que reúnem os cinco níveis entre si,
Por esta razão, não é exagero denominar essas "palavras-chaves" de pedras angulares do
edifício textual, exigindo alta dose de perspicácia durante a leitura da composição.
No terceiro nível, encontramos o conjunto de estratégias retóricas empregadas pelo
produtor do texto para expor, argumentar, e defender seus pontos de vista acerca dos temas
presentes na sua composição.
A identificação dos temas e a atualização do leitor com relação ao estado do debate,
retratados nos textos anteriores e contemporâneos (intertextuali- dade), é vital para se afastar a
leitura ingênua e/ou fundamentalista.
Todo texto integra um amplo debate que o precedeu e que persistirá, malgrado ele tenha ou
não contribuído para o enriquecimento da discussão. E todo autor pretende agregar ao debate
seu ponto de vista, suas crenças e convicções, ainda que não esteja consciente da sua ação
comunicativa, tornando-se relevante, por isso, a investigação das estratégias retóricas
empregadas pelo autor para atingir seus objetivos.
Nesse nível, também, descortina-se a elaboração e alinhamento dos diálogos, com seu
intricado jogo de silêncio e fala, cenário e personagens, gerando uma complexa articulação dos
elementos semióticos, com a finalidade de comunicar as ideias, crenças e visão de mundo do
narrador.
0 quarto nível pode ser subdividido em dois blocos: os Atos e as Cenas, com suas
respectivas estruturas fundamentais.
As cenas são micro-histórias, que se desenrolam no espaço-tempo, compostas de cenários,
personagens e episódios habilmente dispostos segundo padrões culturais assimilados ou típicos
da sociedade onde se produziram, todas elas manejadas com a finalidade de criar a narrativa.
Em seu conjunto, lembram fotografias alinhadas segundo prévio roteiro, artisticamente
elaborado, que conferem tessitura, colorido e dinâmica 1 trama.
Os atos, por sua vez, constituem agrupamentos ou conglomerados de cenas,
engenhosamente dispostos visando o desenvolvimento particularizado de cada um dos temas,
concebidos e compostos no nível composicional.
É certo que os livros bíblicos desenvolvem, cada qual a seu modo, os temas básicos ou
fundamentais do monoteísmo judaico-cristão, efetuando o respectivo desdobramento de cada
um deles em outros subtemas particulares. Sendo assim, é lícito compreender esses Atos como
exposições dialéticas dos temas, através da combinação de cenas, mediante quatro expedientes
básicos: afirmar, negar, expandir e restringir.
Por fim, o nível composicional também pode ser subdividido em dois conjuntos: o Plano
Unitário da Obra e o conjunto de Seções/Ciclos responsável pelo desdobramento desse plano
geral.
No Plano Unitário podem ser localizados o objetivo geral do livro, o escopo temático, a
estruturação geral da forma, bem como a estruturação temática, ou seja, concepção,
configuração e articulação dos temas.
A segmentação da unidade textual em grandes subdivisões lógicas e artísticas dá origem às
Seções da Obra, ou Ciclos da Narrativa. Essa Seções/ Ciclos representam a formatação de
blocos textuais, configurando ciclos de desenvolvimento do enredo no espaço e no tempo.
Constituem etapas do roteiro, criativamente articuladas para conduzir a narrativa ao seu
clímax e, posteriormente, ao seu desfecho, em uma variada sucessão dramática.
Nessas Seções/Ciclos podem ser visualizada a distribuição dos temas em uma base
temporal, explicitando o arcabouço histórico da narrativa. São formadas de conglomerados de
Atos, por sua vez compostos de conjuntos de Cenas. Em termos de segmentação do texto,
podemos compreendê-las como os maiores blocos narrativos.
Nesse ponto das nossas reflexões, é possível postular que o narrador bíblico se orienta por
temas, ao tecer a intricada rede quadridimensional da sua narrativa. Conhecer os temas gerais
da Bíblia, suas narrativas controladoras, implícitas e explícitas, se torna pré-requisito para a sua
adequada compreensão.
N. T. Wright adverte, ao desenvolver esse tema:
"Para citar um exemplo claro, a literatura judaica, desde a Bíblia até nossos dias, está
impregnada de certas histórias controladoras, como as de Abraão, do Êxodo, do exílio e do
regresso, de tal maneira que uma breve alusão a uma dessas histórias na fonte judaica
costuma ser um indício seguro de que devemos entender toda a narrativa como pairando sobre
a história primitiva (...) Mas, da mesma forma, é importante frisar que se trata também de um
assunto de simples história; é um instrumento de vital importância compreender o papel das
histórias no mundo antigo e como uma breve alusão podia concentrar e de fato concentrava
toda uma narrativa implícita, inclusive narrativas em que o narrador e o ouvinte acreditavam
estar vivendo"(WRIGHT, 2005)
Prossegue, ainda, o referido autor, salientando a importância das narrativas:
"A questão principal sobre as narrativas no mundo judaico do Segundo Templo, e igualmente
no mundo de Paulo, não se explica simplesmente pelo fato de que as pessoas gostassem de
contar histórias para ilustrar ou comprovar esta ou aquela experiência ou doutrina, mas sim
pelo fato de que os judeus do Segundo Templo se consideravam atores dentro da narrativa da
vida real. Explicando melhor, os judeus do Segundo Templo nõo eram apenas contadores de
histórias que empregavam seu folclore (no caso, principalmente a Bíblia) de maneira
desconexa para ilustrar as alegrias e as tristezas, as provações e os triunfos da vida cotidiana.
As narrativas que eles empregavam podiam funcionar e funcionavam tipo- logicamente, ou
seja, fornecendo um tipo que poderia ser tomado como padrão com relação aos incidentes e
histórias de outros períodos sem continuidade histórica que pudesse ligar as duas narrativas.
Mas a função principal das histórias assim narradas era recordar os momentos antigos e
(assim esperavam) característicos dentro da história única, maior que se estendia desde a
criação do mundo e da vocação de Abraão até seus próprios dias e, como esperavam, também
para o futuro (...)
0 Monoteísmo de estilo judaico (criação, providência, justiça final) que Paulo procura
realçar, sempre que o remodela, gera precisamente este senso de narrativa subentendida do
relato histórico e ainda inacabado da criação e da aliança, ao qual os relatos particulares
como os de Abraão e do Êxodo dão sua contribuição e cujo sabor reforçam, mas indo além de
toda tipologia e projetando-se na continuidade histórica. Este é quase sempre, afinal, o
sentido da literatura exílica e pós-exílica. Deus não abandonou seu povo no momento em que o
despachou para a Babilônia. Grande parte da literatura do Segundo Templo tem por intuito
precisa- mente repetir indefinidamente a narração da história para demonstrar que o enredo
estava avançando e talvez estivesse prestes a chegar ao clímax." (WRIGHT, 2005)
Ampliando um pouco esse quadro, (WRIGHT, 2005), postula o conceito de "visão de
mundo", o qual pode ser subdividido em quatro partes, para efeito de análise: Narrativa
(história), Símbolo, Práxis e Pergunta. Sua descrição merece ser reproduzida:
(...) o mundo de Paulo poderia com proveito ser descrito com relação às narrativas múltiplas
sobrepostas, às vezes, concorrentes: a história de Deus e Israel do lado dos judeus; as
histórias pagãs sobre seus deuses e o mundo, e as narrativas implícitas em tomo às quais os
pagãos construíram sua identidade, do lado greco-romano, e de modo particular as
grandiosas narrativas do império, tanto as de grande porte, como encontramos no poeta
Virgílio e no historiador Tito Lívio e em outros literatos, como as histórias menores, implícitas
na cultura local (...)
Da mesma maneira, esse mundo poderia ser descrito quanto a seus símbolos: no judaísmo o
Templo, a Torá, a identidade da nação e da família; no paganismo, os símbolos múltiplos de
nação, reinado, religião e cultura; em Roma, de modo particular, os símbolos (desde moedas
até arcos, os templos, o poderio militar) que falavam de um único grande império mundial (...)
Poderíamos acrescentar a tudo isso a práxis característica das diferentes culturas
sobrepostas, tanto os meios de vida que expressavam e encarnavam a aspiração pessoal e de
mera sobrevivência como os meios adotados em consequência de ensinamentos sociais e
éticos particulares (...)
Poderíamos ainda delinear o tipo de resposta que poderíamos esperar no seio de diferentes
culturas até as grandes perguntas que jazem por trás de cada visão do mundo: quem somos,
onde estamos, o que há de errado, qual a solução, e que tempo é esse? (...) "(WRIGHT, 2005)
Considerando-se que o mundo hebreu representa o local privilegiado de produção da
literatura bíblica, examinar a "visão de mundo" dessa cultura, nessa divisão em quatro partes, é
fundamental para compreensão da produção literária levada a efeito em suas fronteiras.
Podemos afirmar, sem correr o risco de reducionismo, que o eixo temático central da
Bíblia, capaz de expressar com vivacidade a "visão de mundo" dos hebreus, pode se resumir
nesta sequência temática: Criação, Aliança, Exílio, Êxodo e Redenção.
O Deus Criador é o Deus da Aliança: Deus é UM (ehad). Essa afirmativa foi desenvolvida
no antigo judaísmo de modo aparentemente paradoxal, como ressalta (WRIGHT, 2005):
"Primeiro, a aliança existe para resolver os problemas no seio da criação. Deus chamou
Abraão para solucionar o problema do mal, o problema de Adõo, o problema do mundo (...) A
vocação de Israel é cumprir fielmente a aliança. Através de Israel, Deus se dedicará a resolver
os problemas do mundo, levando a justiça e a salvação até os confins da Terra. O modo,
porém, como isso ocorrerá permanece um tanto misterioso, mesmo no Livro de Isaías.
Segundo, a criação é invocada para solucionar os problemas surgidos dentro da aliança.
Quando Israel se encontra em dificuldades, quando as próprias promessas da aliança
parecem ter se desmantelado no solo, o povo clama pelo Deus da aliança precisamente como
criador. Israel volta ao Gênesis 1 e à história do Êxodo para orar e confiar que YH WH fará de
novo o que como criador tem poder e direito de fazer, e o que, como Deus da aliança, tem a
responsabilidade de fazer, isto é, estabelecer justiça no mundo, e mais espedftcamente,
defender seu povo quando esse pedir socorro.
Em ambos os casos, devemos observar cuidadosamente que se supõe que alguma coisa saiu
muito mal. Alguma coisa está profundamente errada na criação, e no seio da criação algo está
muito errado com a humanidade - alguma coisa cuja resposta está na aliança com Israel. Algo
está muito errado na aliança, seja pelo pecado de Israel, seja peta opressão gentia ou por uma e
outra coisa: a resposta a esse problema consiste em invocar de nova a criação ou o Deus
criador.
Como vimos anteriormente, a narrativa implícita da aliança pressupunha sempre que alguma
coisa de gravemente errado tinha acontecido na criação. (...) A solução particular que Deus
propõe de dar início a uma família e prometer uma terra mostra que o que há de errado
refere-se, de uma maneira central, ao rompimento das relações humanas e ao rompimento das
relações entre os seres humanos e a criação não humana. E a fé para a qual Deus chama indica,
como demonstra a Carta aos Romanos, que no cerne da questão está a falha dos seres humanos
de não confiar em Deus, não lhe prestar louvor e honra como criador todo-poderoso. Todos
esses fatos são insistentemente lembrados no dom da Torá, que apresenta uma cópia
extraordinária da vida humana genuína (...) A incapacidade dos seres humanos de serem
verdadeiramente criaturas portadoras da imagem divina conforme o desejo de Deus tem como
resultado a corrupção e a morte" (WRIGHT, 2005)
0 bloco literário, conhecido pelo nome de "Novo Testamento", procura oferecer uma
solução a esse drama, retomando o eixo temático central da Bíblia Hebraica, mas
reconfigurando-o em torno da figura do Messias.
Nessa nova perspectiva, Jesus preenche e amplia as expectativas messiânicas do povo
hebreu. Essas expectativas sempre estiveram conectadas com a narrativa histórica dessa
cultura: Criação, Aliança, Exílio, Êxodo e Redenção.
Sendo assim, é natural que se espere do Messias uma resposta adequada tanto ao problema
da aliança, quanto ao problema da criação, sem excluir Israel da solução, ainda que a nação
eleita seja uma parte relevante do problema.
Nesse esquema narrativo, o Messias deve ser portador da genuína "imagem divina", capaz
de confiar plenamente em Deus, prestando-lhe louvor e honra como criador todo-poderoso, e
ao mesmo tempo ser confiável (fiel) para executar o plano de Deus: derrotar o mal e os pagãos,
reconstruir o Templo (morada de Deus na Terra) e trazer a justiça de Deus ao mundo. Em suma,
implantar o Reino de Deus no mundo.
Por essa razão, o anúncio do Messias era intitulado “Evangelho'', palavra grega que
significa "boa-nova", “boa notícia". A notícia alvissareira era de que o Reino de Deus estava
próximo, e enfim seria implementado.
Embora esse fosse o plano geral de atividades traçado para o Messias - implantação do
Reino de Deus na Terra - é natural que não houvesse concordância quanto aos meios, muito
menos quanto ao modo pelo qual tudo isso seria concretizado.
Nesse sentido, é bastante perspicaz a observação de N. T. Wright:
"Em Romanos 3:2-3, Paulo declara que Israel tinha sido encarregado dos oráculos de Deus; em
outras palavras, Israel tinha sido escolhido por Deus para ser seu arauto diante das nações. Mas
Israel, como diz Paulo (sem dúvida, inspirando-se na crítica dos profetas), tornou-se infiel, nõo
cumprindo o encargo recebido. Essa ideia coincide com a outra ideia que Paulo expressa em
Rm 10:2-3; Israel não tinha compreendido os desígnios da aliança de Deus e procurou
promover uma aliança para si só. 0 que Deus irá fazer? Deverá ele abandonar a aliança e
decidir, como tantos teólogos propõem, por um plano B total mente distinto? Absolutamente:
que Deus se mantenha na sua verdade, ainda que todos os seres humanos se tornem falsos.
Deus deve se manter firme em seu plano, mas isto exigirá que mais cedo ou mais tarde ele
tenha de escolher um representante israelita que seja fiel, que seja obediente ao desígnio de
Deus nõo somente para Israel, mas também para o mundo através de Israel. Assim, o mundo
aguarda (sem saber) e Israel aguarda (com o conhecimento que se exprime na profecia e na
oração) que Deus manifeste seu desígnio e revele como, depois de tudo, ele será fiel à aliança.
Mas, ao chegar o momento da manifestação (Rm 3:21-22), o que vemos é a fidelidade da
aliança de Deus operando (...) através da fidelidade de Jesus, o Messias. Precisa- mente como
Messias, ele oferece a Deus aquela fidelidade representativa ao plano de salvação através do
qual o plano pode ser levado em frente para que, afinal, Abraão possa ter uma família no
mundo (Rm 4) e para que o vínculo do pecado de Adão e da morte possa ser rompido (Rm
5:12- 21) pela obediência que ele, Abraão, demonstrou e que, como sabemos de Rm 1:5, é para
Paulo algo estreitamente alinhado com fé, fidelidade e lealdade" (WRIGHT, 2005).
Depois de percorrer esse longo trajeto, nos sentimos seguros para explicar os propósitos
que inspiraram a redação do presente capítulo.
A obra "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", psicografada por Francisco
Cândido Xavier, de autoria do espírito de Humberto de Campos, a nosso ver, retoma esse eixo
temático central da Bíblia, ao utilizar expressões como: “árvore do Evangelho", "paisagem
dilatada do Tiberíades", "pátria do Evangelho, coração do mundo".
Em seu conjunto, ela é desconcertante, como os demais livros proféticos da Bíblia, ao falar
de "mundo espiritual", "governo espiritual da Terra", “dirigentes espirituais de nações,
comunidades, instituições e pessoas", "falanges de espíritos dedicados a determinadas
atividades", bem como ao retomar promessas de Jesus, feitas nos evangelhos, em especial
aquelas descritas nas "Bem-aventuranças", com respeito à definitiva implantação do Reino de
Deus no mundo.
A obra desafia, sutilmente, interpretações puramente alegóricas, espirituais e morais que
costumam negligenciar os aspectos sociais dessas promessas, tais como: "o comando do
mundo nas mãos dos mansos, pacíficos e pacificadores ", "a supremacia dos humildes" "a
religiosidade dos puros de coração", "a exaltação da misericórdia".
E para acrescentar nitroglicerina à mistura, localiza um espaço geográfico -Brasil j para ser
o palco dessas ações espirituais, sob o comando do Messias Jesus, com vistas à concretização
dos propósitos anunciados no Evangelho.
Nesse cenário complexo, elegemos apenas uma expressão - "árvore do evangelho" - para
demonstrar nossa tese central: a afirmação de que a obra psicografada retoma o eixo temático
central da Bíblia.
Para tanto, adotaremos as premissas da abordagem literária, já explicitadas, bem como as
ferramentas da filologia, visando estudar de maneira metódica as ocorrências da referida
expressão, tanto nos livros bíblicos, quanto na obra do autor espiritual.
Enfim, “árvore do evangelho" será nossa "Leitwort” ("palavra-mestra" ou
"palavra-chave").

O jardim e suas árvores


Repetiremos inúmeras vezes que o eixo temático central da Bíblia, capaz de expressar com
vivacidade a ""visão de mundo" dos hebreus, pode se resumir nesta sequência temática:
Criação, Aliança, Exílio, Êxodo e Redenção.
Do ponto de vista da análise literária, examinando o nível composicional, pode-se afirmar
que o Plano Unitário do livro Gênesis gira em torno dos dois primeiros elementos desse
conjunto temático: Criação e Aliança.
No desdobramento desse plano geral da obra, são explicitados na narrativa dois graves
problemas, um deles referente à criação do mundo - o mal, outro relacionado à aliança de Deus
com o povo hebreu - a infidelidade.
Vale lembrar igualmente que a segmentação da unidade textual, delineada no Plano
Unitário, em grandes subdivisões lógicas e artísticas dão origem às Seções da Obra, ou Ciclos
da Narrativa. Essa Seções/Ciclos representam a formatação de blocos textuais, configurando
ciclos de desenvolvimento do enredo no espaço e no tempo.
No caso de Gênesis, WALTKE propõe a divisão do livro em 10 tôledot (relatos de
linhagem ou genealogias), precedidas de um prólogo, e intercaladas por transições, consoante o
quadro:
Prólogo - Criação do Cosmos 1:1 -2:3
Linhagem dos Céus, da Terra e do
Homem 2:4-4:26
Linhagem de Adão 5:1 - 6:8
Linhagem de Noé 6:9-9:29
Linhagem dos Filhos de Noé 10:1 -11:9
Linhagem de Sem 11:10-26
Linhagem de Tera 11:27-25:11
Linhagem de Ismael 25:12-18
Linhagem de Isaque 25:19-35:29
Linhagem de Esaú 36:1 - 37:1
Linhagem de Jacó 37:2 - 50:26
RENDSBURG (RENDSBURG, Gary. The Redaction of Genesis), por sua vez, divide o
mesmo material em quatro partes, levando em conta as semelhanças na estrutura formal
(paralela - ABCA'B'C, quiasmática - ABCB'A' e concêntrica - ABCCBA'). Nesse caso, os
primeiros cinco tôledot, que pertencem à história da humanidade como um todo, são
organizados numa estrutura paralela, ao passo que as últimas três em uma estrutura
concêntrica, intercaladas por materiais de ligação, no seguinte esquema:
História Primeva Ciclo de Abraão Material de Ligação
Paralela
Concêntrica
Paralela
1:1-11:26 11:27-22:24 23:1 -25:18
Ododejacó 25:19-35:22 Concêntrica
Material de
Ligação 35:23-36:43 Paralela
Cidodejosé 37:2-50:26 Concêntrica
No prólogo, o redator explicita que o Deus responsável pela Aliança com opovo Hebreu é o
mesmo Criador do Cosmos. Esse Ser Supremo é transcendente, mas também imanente, visto
que provê a criação, estabelece a ordem e comissiona todos os agentes executores do seu plano
de gestão.
0 palco onde se desenvolverá toda a trama bíblica é descrito minuciosamente, dando-se
destaque para a ideia de que a Providência Divina fornece todos os elementos de sustentação
(ar, água, terra, vida vegetal e animal em abundância).
É exatamente no prólogo que surge pela primeira vez o termo "árvore" (Gn 1:11-12,29),
com referência a uma ampla variedade de plantas que dão fruto e sementes, servindo de
mantimento para as criaturas vivas, em especial o homem.
Estabelecido o grande cenário da história bíblica, inicia-se a narrativa-padrão da criação do
homem e do jardim do Éden, que inaugura o drama humano, o chamado enredo principal - o
problema do mal e do sofrimento.
Desnecessário ressaltar que essa constitui a narrativa controladora de todas as demais.
ASeção/Ciclo denominada Linhagem dos Céus, da Terra e do Homem (Gn 2:4-4:26) se
subdivide em três Atos, cada qual com suas respectivas Cenas, como pode ser constatado no
esquema abaixo, inspirado em WALTKE:
AT01 - Humanidade em Prova/Teste 2:4-25
0 Homem, o Jardim e o
Cena 1 Mandamento 2:4-17
Cena 2 A Mulher e o Matrimônio 2:18-23
Epílogo 2:24-25
ATO 2 - A Queda e o Mal 3:1-24
Cena 1 A Serpente e a Queda 3:1-7
Cena 2 0 Mal e o Juízo 3:8-19
■ 3:20-24
Epílogo

ATO 3 - A progressão do Mal 4:1-26


Cena 1 Caim e Abel 4:1-16
Cena 2 Lameque 4:17-24
Epílogo 4:25-26
Nessa Seção/Ciclo percebe-se o destaque conferido a duas "árvores", entre todos os demais
elementos naturais do Jardim do Éden - A Árvore da Vidae a Árvore do Conhecimento do Bem
e do Mal. Elas representam o conteúdo do primeiro "mandamento" (Gn 2:16) dado ao homem.
"E o Senhor Deus lhe deu essa ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da
árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,
certamente morrerás"
O vocábulo "árvore" é tradução do termo hebraico 'efs, substantivo masculino que ocorre
cerca de 329 vezes na Bíblia Hebraica. O significado básico do termo hebreu diz respeito ao
vegetal e suas partes (árvore, madeira, tronco, vara, ramo), como também se aplica a todas as
coisas feitas com esse material (tora, vara, madeiro, cruz, forca).
Além do uso denotativo do vocábulo, é comum o emprego metafórico para expressar o
Justo e suas ações, como em Salmos 1:1-3. Em Provérbios 11:30 encontramos a impactante
afirmação: "o fruto do Justo é árvore devida".
No DITAT encontramos a expressiva e reveladora correlação:
"Não é por acaso que a solução para o pecado humano, que teve inicio aos pés de uma ‘ets, a
"árvore do conhecimento do bem e do mal"(Gn 2:9), está aos pés de outra 'ets, o madeiro que
foi a cruz do calvário".
Na Nova Jerusalém (Ap 22:2) a "árvore da vida" é transplantada do Éden (Gn 3:22-24),
onde se encontrava protegida por querubins com espadas, para ficar ao alcance dos moradores
no mundo vindouro.
A análise, porém, não pode se deter apenas no nível fonético-morfológico, e deve explorar
outras camadas.
BEALE (BEALE, G. K. Comentário do Uso do AT no NT) nos fornece uma pista sugestiva
para a compreensão dessa Seção, quando assevera:
"Ao criar Adão e Eva, Deus os equipou com atributos internos (e.g., moral, espiritual, volitivo
e racional), a fim de que fossem funcionalmente capazes de "sujeitar", "dominar" e "encher" a
terra com a presença e a glória de Deus. A própria noção de ser a "imagem" de Deus
provavelmente incluía refletir a glória divina, pois o próprio Deus era essencialmente um ser
glorioso (para uma ênfase no papel de Adão em glorificar a Deus, v. Si 8, e sua aplicação em
Mt 21:15-16). Ser a "imagem"de Deus também sugere que Adão era "filho" de Deus, como foi
dito a seu respeito na ocasião em que nasceu seu filho Sete (Gn 5:3). Parte da incumbência de
"sujeitar e dominar" sem dúvida incluía "frutificar, multiplicar e encher" a terra com filhos
naturais verdadeiros, que se juntariam a Adão não só para refletir a imagem de Deus, mas
também para exercer o majestoso domínio sobre a terra. Portanto, Adão e Eva e sua prole
seriam vice-regentes que agiriam como filhos obedientes de Deus, refletindo seu glorioso e
pleno reinado sobre a terra. 0 que evidencia-se em Gênesis 1-3, sendo também relevante para
Colossenses 1:6-10, é que a obediência à palavra de Deus era cruciai para realizar a
incumbência de Gênesis 1:26-28. ”
Abstração feita ao arcabouço teológico limitado do autor, a correlação desses dois
elementos - obediência e filiação (mandato divino) - foi muito bem explicitada. Para Adão, é
impossível cumprir a comissão divina que lhe foi ordenada - refletir a glória divina, na
qualidade de corregente do Cosmos - sem a incorporação do elemento "obediência".
Nesse sentido, espraia-se por toda a Bíblia Hebraica a noção de que a 'Palavra de Deus
(Torah)" é orientadora, pedagógica, reveladora, mantenedora, providente e previdente, e não se
circunscreve a meros textos preservados em pergaminhos ou papiros, mas pretende ser gravada
no coração do ser humano, visto já estar insculpida em sua consciência.
0 drama da queda do homem se desenvolve a partir de duas linhas de força, de um lado a
ordem divina, a missão atribuída a Adão, e seu dever de obediência e corregência, de modo a
refletir a glória de Deus na criação, de outro lado o projeto de autonomia e autossuficiência da
criatura, que pretende usurpar os atributos e as atribuições do próprio Criador.
A ordem divina não é restritiva, nem implica cerceamento sufocante; ao contrário, permite
ao homem alimentar-se de todas as árvores do jardim, com exceção de uma - apenas uma:
exatamente aquela que ocupa o centro do projeto humano de usurpação da posição do Criador.
EMMANUEL (XAVIER, 1998, p. 99) sublinha, com sutileza, a questão ao definir: "0
dever define a submissão que nos cabe a certos princípios estabelecidos como leis pela
Sabedoria Divina, para o desenvolvimento de nossas faculdades (...) pode-se simbolizar o
dever como sendo a faixa de ação no bem que o Supremo Senhor nos traça I responsabilidade,
para a sustentação da ordem e da evolução em Sua Obra Divina, no encalço de nosso próprio
aperfeiçoamento (...). Desse modo, pela execução do dever - região moral de serviço em que
somos constantemente alertados pela consciência -, exteriorizamos a nossa melhor parte,
recolhendo a melhor parte dos outros | (grifos nossos)
Em se tratando de "faixa de ação no bem"! todas as árvores do jardim - há um amplo
espectro de possibilidades, com exceção daquelas que impliquem usurpar o poder de
deliberação, decisão, gerência, concessão, cuidado inerentes ao próprio Criador - árvore da
ciência do bem e do mal.

Em busca da árvore da vida


É importante salientar, contudo, que a falha do casal Adão e Eva jamais poderia representar
obstáculo intransponível aos desígnios do Todo-Poderoso.
BEALE (BEALE, G. K. Comentário do Uso do AT no NT) propõe um interessante
percurso para compreensão do tema:
"Depois do fracasso de Adão em cumprir o mandato divino, Deus convoca outras pessoas
semelhantes a Adão, às quais sua comissão é repassada (...) A começar por Abraão, o mandato
repetido também se torna uma promessa, que Deus no devido tempo cumprirá. (...) Mas os
descendentes de Adão, assim como ele, falharam. "
A partir dessa constatação, é fácil notar que todo o enredo bíblico posterior a Adão,
especialmente quando se refere aos destinatários da Aliança, é sempre uma minuciosa narrativa
da falha humana em corresponder ao mandato divino. A maior parte das personagens bíblicas é
retratada como descendentes incapazes de responder à altura o encargo dado pela misericórdia
de Deus.
Por outro lado, essa progressiva escalada rumo aos propósitos da criação divina faz surgir a
"expectativa messiânica", como esperança de que, ao termo da jornada, a comunidade humana
seria regenerada, restaurada e preparada para cumprir seu mandato divino.
BEALE (BEALE, G. K. Comentário do Uso do AT no NT) esclarece a questão:
"Na repetição da comissão aos patriarcas, observada acima, a menção do fato de "todas as
nações da terra" serem "abençoadas" pela "semente" de Abraão faz alusão a uma renovação
da comunidade humana que exibe a imagem de Deus e “enche a terra" com descendência
regenerada e também reflete a imagem de Deus e faz resplandecer sua luz a outros na "cidade
do homem", cujos habitantes não se rebelam e passam também a refletir a imagem de Deus.
Assim, esses novos convertidos são "abençoados" com o favor da gloriosa presença de Deus e
se tornam parte do governo e do Reino de Deus em constante expansão, que o primeiro Adão
havia perdido. Em consequência disso, o "sujeitai" e o "dominai" de Gênesis 1:28 incluem
agora superar espiritualmente a influência do mal no coração da humanidade não regenerada
que se multiplicou sobre a terra (...)"
Nesse contexto, não é difícil perceber o impacto da associação de Jesus à figura do Messias
prometido pelas Escrituras, nos primeiros séculos da era cristã, tendo em vista as implicações
decorrentes dessa identificação.
BEALE (BEALE, G. K. Comentário do Uso do AT no NT) explicitou correta- mente o
alcance desse impacto:
"Ao depositar sua fé no Messias, eles se identificam com quem ele é e como o que ele realizou
como o último Adão, que recuperou a imagem de Deus para a humanidade caída e instaurou o
reino que o primeiro Adão deveria ter estabelecido. Cristo é o "primogênito" da nova criação,
por isso os que se identificam com ele também nascem no início da nova criação. Eles
nasceram porque foram ressuscitados da morte espiritual para a vida espiritual por estarem
identificados com a própria ressurreição de Cristo. Em Colossenses 3:9-10, Paulo explica o
significado disso: eles "se despiram do velho homem" (i.e., da sua identificação com o velho
Adão e com o mundo caído, morto) e "se revestiram do novo homem" (i.e., agora se identificam
com o último Adão e com a nova criação. (...) Lembre-se de que até mesmo os verdadeiros
filhos de Adão não eram apenas novos homens no aspecto físico, mas também novas criaturas
espirituais, o que implica serem fiéis portadores da imagem da glória de Deus. E, depois da
queda, a reiterada comissão na própria época do AT provavelmente incluía novos convertidos
sendo "abençoados" pela presença de Deus e tornando-se filhos espirituais recém-nascidos no
governo e no Reino de Deus em constante expansão. Paulo entende que os fiéis começavam a
experimentar vida nova por causa da sua identificação com Cristo na condição de Filho de
Deus (...) “
| impossível não identificar no enredo da obra "Brasil, Coração do Mundo, |Í| do Evangelho"
um eco dessa narrativa bíblica, uma continuidade dessa “Usca espiritual, a partir da figura
central de Jesus, enquanto Guia e Modelo do homem, da nova criatura, rumo ao novo Jardim do
Éden.

A árvore do evangelho
Examinando os textos do Novo Testamento, constatamos que a ideia central com relação ao
tema das árvores naqueles livros pode ser resumida no ensino de Jesus segundo o qual
"conhece-se a árvore pelos seus frutos" (Lc 6:43-44).
Nesse sentido, ganha relevo o desenho da cepa de uva colocado nos pro- legômenos de O
Livro dos Espíritos, bem como a justificativa dos Espíritos para a simbologia do ramo da
videira:
"Porás no cabeçalho do livro a cepa que te desenhamos, porque é o emblema do trabalho do
Criador. Aí se acham reunidos todos os princípios materiais que melhor podem representar o
corpo e o espírito. O corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma ou espírito ligado à matéria é
o bago. 0 homem quintessência o espírito pelo trabalho e tu sabes que só mediante o trabalho
do corpo o Espírito adquire conhecimentos". (KARDEC, 2006, p. 71)
EMMANUEL descortina novos horizontes hermenêuticos ao tema, coma seguinte
proposição:
"Jesus é o bem e o amor do princípio. Todas as noções generosas da Humanidade nasceram de
sua divina influenciação. Com justiça, asseverou aos discípulos, nesta passagem do evangelho
de Joõo, que seu espírito sublime representa a árvore da vida e seus seguidores sinceros as
frondes promissoras, acrescentando que, fora do tronco, os galhos se secariam, caminhando
para o fogo da purificação. Sem o Cristo, sem a essência de sua grandeza, todas as obras
humanas estão destinadas a perecer (...)"(XAVIER, 2012, p. 125)
Nessa perspectiva, no tocante ao Cristo, "seu espírito sublime representa a árvore da vida",
seu fruto é o da videira, que corresponde às "noções generosas da Humanidade" recebidas ao
longo dos processos de Revelação, não apenas no âmbito religioso, mas em todas as esferas de
atuação humana.
Por outro lado, impossível não abordar, ainda que de modo ligeiro, outro tema correlato a
esse - Pátria do Evangelho - em razão da afinidade e identidade de propósitos.
Partindo do pressuposto, como o fazemos, que a árvore do Evangelho é o espírito sublime
do próprio Cristo, cujos frutos representam as noções generosas da Humanidade regenerada
que precisamos edificar em nosso íntimo, qual a razão de um local geográfico específico para
essa tarefa?
Parte da resposta se encontra em BCMPE:
“Para esta terra maravilhosa e bendita será transplantada a árvore do meu Evangelho de
piedade e de amor. No seu solo dadivoso e fertilíssimo, todos os povos da Terra aprenderão a
lei da fraternidade universal. Sob estes céus serão entoados os hosanas mais ternos à
misericórdia do Pai Celestial (...)"
“Instalaremos aqui uma tenda de trabalho para a nação mais humilde da Europa,
glorificando os seus esforços na oficina de Deus (Português). Aproveitaremos o elemento
simples de bondade, o coração fraterna! dos habitantes destas terras novas (índio), e, mais
tarde, ordenarei a reencar- nação de muitos Espíritos já purificados no sentimento da
humildade e da mansidão, entre as raças oprimidas e sofredoras das regiões africanas
(Africano), para formarmos o pedestal de solidariedade do povo fraterno que aqui florescerá,
no futuro, a fim de exaltar o meu Evangelho, nos séculos gloriosos do porvir"
“Daí a alguns anos, o seu mensageiro se estabelecia na Terra, em 1394, como filho de D. João
I e de D. Filipa de Lencastre, e foi o heróico Infante de Sagres, que operou a renovação das
energias portuguesas, expandindo as suas possibilidades realizadoras para além dos mares. 0
elemento indígena foi chamado a colaborar na edificação da pátria nova; almas
bem-aventuradas pelas suas renúncias se corporificaram nas costas da África flagelada e
oprimida e, juntas a outros Espíritos em prova, formaram a falange abnegada que veio
escrever na Terra de Santa Cruz, com os seus sacrifícios e com os seus sofrimentos, um dos
mais belos poemas da raça negra em favor da humanidade." (CAMPOS, 2013, p. 16)
É inegável a ênfase do texto nos sacrifícios e sofrimentos decorrentes do esforço em
modelar o próprio coração, herança do primeiro homem - Adão - aos exemplos do homem
genuíno, fiel e obediente, herança do segundo homem - Cristo.
Não se trata de uma nação de evangelizadores, no sentido estrito do ter- oio, mas de uma
nação de espíritos em luta com suas próprias imperfeições, tujo testemunho de superação
pessoal é capaz de evangelizar - pelo exemplo.
Aprofundando ainda mais a questão, ressalta CAMPOS:
"Mestre — diz ele—graças ao vosso coração misericordioso, a terra do Evangelho florescerá
agora para o mundo inteiro. Dai-nos a vossa bênção para que possamos velar pela sua
tranquilidade, no seio da pirataria de todos os séculos. Temo, Senhor, que as nações
ambiciosas matem as nossas esperanças, invalidando as suas possibilidades e destruindo os
seus tesouros...
Jesus, porém, confiante, por sua vez, na proteçõo de seu Pai, não hesita em dizer com a certeza
e a alegria que traz em si: Helil, afasta essas preocupações e receios inúteis. A região do
Cruzeiro, onde se realizará a epopéia do meu Evangelho, estará, antes de tudo, ligada
eternamente ao meu coração. As injunções políticas terão nela atividades secundárias,
porque, acima de todas as coisas, em seu solo santificado e exuberante estará o sinal da
fraternidade universal, unindo todos os espíritos. Sobre a sua volumosa extensão pairará
constantemente o signo da minha assistência compassiva e a mão prestigiosa e potentíssima de
Deus pousará sobre a terra de minha cruz, com infinita misericórdia. As potências
imperialistas da Terra esbarrarão sempre nas suas claridades divinas e nas suas cidópicas
realizações. Antes de o estar ao dos homens, é ao meu coração que ela se encontra ligada para
sempre."(CAMPOS, 2013, p. 23)
Tornou-se lugar comum, discurso corriqueiro, sobretudo na seara espírita, dizer que o
futuro da missão espiritual do Brasil depende absolutamente do desempenho dos brasileiros,
em especial dos próprios espíritas. Naturalmente, não estamos inclinados a menosprezar ou
dispensar a colaboração humana na concretização da obra divina, mas e a "proteção de seu Pai"
invocada por Jesus, e o vínculo expressado em sua declaração "é ao meu coração que ela se
encontra ligada para sempre".
Essa relativização de um projeto espiritual nos coloca novamente na mesma cena do jardim
do Éden, no qual o velho homem era convidado a seguir as inspirações do Altíssimo - Árvore
da Vida - no entanto, prefere seguir seu próprio tirocínio - Árvore da Ciência do Bem e do Mal.
Nesse sentido, é importante ressaltar a justificativa do próprio Jesus para a escolha dessas
terras, CAMPOS:
"Ismael, manda o meu coração que doravante sejas o zelador dos patrimônios imortais que
constituem a Terra do Cruzeiro. Recebe-a nos teus braços de trabalhador devotado da minha
seara, como a recebi no coração, obedecendo a sagradas inspirações do Nosso Pai. Reúne as
incansáveis falanges do Infinito, que cooperam nos ideais sacrossantos de minha doutrina, e
inicia, desde já, a construção da pátria do meu ensinamento. Para aí transplantei a árvore da
minha misericórdia e espero que a cultives com a tua abnegação e com o teu sublimado
heroísmo. Ela será a doce paisagem dilatada do Tiberíades, que os homens aniquilaram na
sua voracidade de carnificina. Guarda este símbolo da paz e inscreve na sua imaculada pureza
o lema da tua coragem e do teu propósito de bem servir à causa de Deus e, sobretudo,
lembra-te sempre de que estarei contigo no cumprimento dos teus deveres, com os quais
abrirás para a humanidade dos séculos futuros um caminho novo, mediante a sagrada
revivescência do Cristianismo" (CAMPOS, 2013, p. 26)
0 próprio Cristo recebeu a tarefa, não com trombetas, terremotos e epifanias, mas no seu
coração augusto, obedecendo a sagradas inspirações de Deus. Todavia, como compreender a
missão espiritual do Brasil se não nos recolhermos ao recinto secreto do coração, se não
adotarmos a obediência como padrão de conduta, e se não estivermos aptos a recolher as
sagradas inspirações do Eterno em nós mesmos - requisitos essenciais do NOVO HOMEM?
A história bíblica se repete....
Uma nova terra da promissão? Talvez mais que isso.... Um novo teste para a fé? Prefiro
essa última opção, porque não se trata de um novo lugar, mas de uma nova atitude.
E essa nova atitude significa moldar o próprio coração ao Coração Augusto do Cristo, que
nunca escondeu sua predileção pelas prostitutas, publicanos I pecadores, nem seu amor pelos
infortunados de toda sorte.
Refletindo na política, economia e religião do Brasil, seria de bom alvitre tentar identificar
entre os seus líderes "as prostitutas, publicanos e pecadores", todos necessitados da
misericórdia de Jesus e do seu Evangelho Redentor.
É o que ressalta CAMPOS:
"Ismael, nas tuas obrigações e trabalhos, considera que a dor é a eterna la-1 pidária de todos
os espíritos e que o Nosso Pai não concede aos filhos fardo superior às suas forças, nas lutas
evolutivas. Abriga aí, na sagrada extensão dos territórios do país do Evangelho, todos os
infortunados e todos os infelizes. No meu coração ecoam as súplicas dolorosas de todos os
seres sofredores, que se agrupam nas regiões inferiores dos espaços próximos da Terra.
Agasalha-os no solo bendito que recebe as irradiações do símbolo estrelado, alimentando-os
com o pão substancioso dos sofrimentos depu- radores e das lágrimas que lavam todas as
manchas da alma."
"Leva a essas coletividades espirituais, sinceramente arrependidas do seu passado obscuro e
delituoso, a tua bandeira de paz e de esperança; ensina- lhes a ler os preceitos da minha
doutrina, nos códigos dourados do sofrimento."
"E aí, nas estradas escuras e tristes da angústia espiritual, viu-se, então, que falanges imensas,
ansiosas e extasiadas, avançavam com fervorosa coragem para as clareiras abertas naquela
mansão de dor e de sombras. Todos queriam, no seu testemunho de agradecimento, beijar a
bandeira sacrossanta do mensageiro divino. O seu emblema — Deus, Cristo e Caridade —
refulgia agora nas penumbras, iluminando todas as coisas e clarificando todos os caminhos.
/As esperanças reunidas, daqueles seres infortunados e sofredores, faziam a vibração de luz
que então aclarava todas as sendas e abria todos os entendimentos para a compreensão das
finalidades, das determinações sublimes do Alto.
Essas entidades evolvidas pela ciência, mas pobres de humildade e de amor, ouviram os
apelos de Ismael e vieram construir as bases da terra do Cruzeiro. Foram elas que abriram os
caminhos da terra virgem, sustentando nos ombros feridos o peso de todos os trabalhos. Nesse
pião de claridades interiores, buscaram as pérolas da humildade e do sentimento com que se
apresentaram mais tarde a Jesus, no dia, que lhes raiou, de redenção e de glória." (CAMPOS,
2013, p. 50)
O que esperar de uma nação que agrupa na imensa extensão do seu território "todos os
infortunados e todos os infelizes, todos os seres sofredores das regiões espirituais inferiores",
arrependidos do seu passado obscuro.
A resposta só pode ser uma: A Pátria do Evangelho.
Não foi com um material diverso desse que o Cristo edificou sua epopeia na Galileia
distante. Basta ler os evangelhos.

De volta ao Éden
A obra "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", psicografada por Francisco Cândido
Xavier, de autoria do espírito de Humberto de Campos, finaliza com significativa assertiva:
"Depreende-se, portanto, que a principal questão do espiritualismo é proclamar a necessidade
da renovação interior, educando-se o pensamento do homem no Evangelho, para que o lar
possa refletir os seus sublimados preceitos. Dentro dessa ação pacífica de educação das
criaturas, aliado ò prática genuína do bem, repousam as bases da obra de Ismael, cujo
objetivo não é a reforma inopinada das instituições, impondo abalos à Natureza, que ndo dá
saltos; é, sim, a regeneração e o levantamento moral dos homens, afim de que essas mesmas
instituições sejam espontaneamente renovadas para o progresso comum. A tarefa é vagarosa,
mas, de outra forma, seria a destruição e o esforço Insensato. A obra da revolução espiritual,
no Evangelho de Jesus, não se compadece com as agitações do século. Os que desejarem
impor, no seu compreensível entusiasmo de crentes, os preceitos do Mestre às instituições
estritamente humanas, talvez ainda não tenham ponderado que a obra cristã espera, há dois
milênios, a compreensão do mundo. Todos os que lutaram por ela de armas na mão e quantos
pretenderam utilizar-se dos processos de força para a imposição dos seus ensinamentos, no
transcurso dos séculos, tarde reconheceram a sua ilusão, redundando seus esforços no mais
franco desvirtuamento das lições do Salvador, porque essas lições têm de começar no coração,
para conseguirem melhorar e regenerar o planeta."(CAMPOS, 2013, p. 180)
É evidente que a obra redentora do Cristo, cujo propósito é renovar e regenerar o mundo
inteiro, pede um coração obediente, grato, sábio e amoroso. Assim como o mundo para
renovar-se pede também um coração, com as mesmas características.
Obstáculos, lutas, testemunhos e desafios representam material didático, até que as lições
do Mestre sejam definitivamente incorporadas em nosso íntimo.
No final do enredo, há novamente um coração (individual e coletivo) diante de duas
árvores: a árvore da vida (dever de obediência e corregência, de modo a refletir a glória de
Deus na criação) e a árvore do conhecimento do bem e do mal (projeto humano de usurpação
da posição do Criador).
Para aqueles que acreditam tratar-se de uma obra puramente histórica, temos a seguinte
ponderação a fazer, extraída de EMMANUEL (Vinha de Luz, Cap. 29):
“Urge reconhecer que no sentimento reside o controle da vida (...) Ofereçamos ao Senhor um
coração frme e terno para que as divinas Mãos nele gravem os augustos Desígnios. Atendida
semelhante disposição em nossa vida íntima, encontraremos em todos os caminhos o
abençoado lugar de cooperadores da divina Vontade".
Tudo começa e termina no coração. Ele é ojardim do Éden das promessas bíblicas. Ao se
exteriorizar materializa dadivosa gleba ao redor dos seus passos, de vez que "onde estiver o
nosso tesouro, lá estará nosso coração".
Alcançada essa posição espiritual de docilidade ativa e operante, todos os lugares e
situações passam a representar para nosso espírito lugar abençoado de aperfeiçoamento, onde
podemos nos tornar cooperadores da Divina Vontade.
Todavia, a infidelidade humana às bênçãos divinas, em todos os setores onde somos
provisoriamente posicionados pela Providência, nos tornam refratários, incapazes de extrair o
supremo bem que se oculta por detrás de todos os acontecimentos.

Referências:
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB,
2006.
WALTKE, Bruce K. Comentário do antigo testamento: Gênesis; trad.Valter Graciano
Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
WRIGHT, N. T. Paulo Novas Perspectiva; trad. Joshuah de Bragança Soares. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
XAVIER, Francisco Cândido. Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Ditado
pelo Espírito Humberto de Campos. Brasília: FEB, 2013.
XAVIER, Francisco Cândido. Caminho, Verdade e Vida. Ditado pelo Espírito Emmanuel.
Brasília: FEB, 2012.
XAVIER, Francisco Cândido. Pensamento e Vida. Ditado pelo Espírito Emmanuel.
Brasília: FEB, 1999.

Capítulo 6 Caravela
Gladston Lage45

Instituirás um roteiro de coragem, para que sejam transpostas as imensidades desses oceanos
perigosos e solitários”

45 1 Gladston Lage, de Belo Horizonte-MG: Poeta, pedagogo e esperantlsta que legou ao movimento espirita obra artística
produzida em parceria com a dupla Tim e Vanessa
Aceitei a grave incumbência de escrever um capítulo para a composição da presente obra.
Solicitei primeiramente que me concedessem bastante tempo de modo que eu pudesse
dirimir alguns impasses, amadurecer reflexões e críticas que me assomaram durante a leitura da
obra-matriz. Em segundo lugar, manifestei a necessidade de autonomia das ideias porque não é
de minha natureza a postura dogmática, nem a defesa incondicional doutrinária (e nisso sigo o
método do Codificador: antes rejeitar nove verdades do que admitir uma mentira; fé inabalável
somente aquela capaz de encarar a razão em qualquer época; se a religião não quiser caminhar
com a ciência, a ciência caminhará sozinha).
Ambas as condições foram consentidas e assim fico à vontade para navegar no ambiente da
filosofia.
Outro esclarecimento preliminar é o modelo de produção do texto em primeira pessoa que
adoto neste caso. Asseguro aos leitores não se tratar de personalismo, haja vista o fato de eu não
acreditar em autoria particular. Sou adepto de correntes de análise do discurso que entendem a
produção textual como fenômeno coletivo, até porque a língua em todos os seus caracteres e
modalidades (vocabulário, contexto, significados, expressões...) é uma construção de gerações
seculares, às vezes milenares.
Assim, estamos todos, partícipes, acumpliciados, seja nos subterrâneos de
remadores-divulgadores, de velejadores-(re)leitores, seja ainda ao leme rumo ao mar da
literatura - e a bagagem tem múltiplos elementos históricos: os conhecimentos, os fatos, as
interpretações, os valores, os prognósticos. O mar do inconsciente coletivo ora esbraveja ora
asserena, ora flui ora reflui, a maré varia conforme o clima, a pressão, o volume de coisas que
lhe preenchem o seio.
Há rumores e entrechoques na superfície da leitura... terá mesmo essa elevação o príncipe
Pedro II? Cabe o termo "descobrimento"? A grande viagem foi precedida preponderantemente
de esperança ou angústia, alegria ou medo, paz ou ambição, concórdia ou divisão, fraternidade
ou disputa? O bandeirante Paes Leme atendeu a imperativo no assassínio do filho (a esse
propósito não me furto a afirmar que mais simpatizo com a bondade extremada de Davi para
com o revoltoso filho Absalão46)? Os nativos realmente recepcionaram os imigrantes com
docilidade? Resumidamente, o que respondemos a essas questões é que: Acima das limitações
de Pedro II há o espírito missionário que cumpre seus desígnios de alicerçar a nação brasileira;
que do plano espiritual eflúvios irresistíveis embalavam os tripulantes que aos seus influxos
sonhavam e esperavam; que o caçador de esmeraldas fez a escolha cabível ao caso em face da

2
46 2 Sm 18:33
empreitada que lhe cabia, sem deixar de ser responsabilizado carmi- camente pelo ato; que a
hospitalidade atestada pelos nativos aos navegadores portugueses que aqui desembarcaram é
um episódio referendado por eminentes historiadores (fato um tanto singular e é de estarrecer
também que o enorme território brasileiro haja mantido sua unidade diante de tantas
arremetidas estrangeiras desde então).
Há outro sem-número de possibilidades a serem desenvolvidas, acareadas, sondadas,
comparadas. Entretanto, "dura coisa é recalcitrar contra os aguilhões"47 da história e esse é o
exercício contumaz do raciocínio crítico.
A proposta, conforme temos debatido e no sentido em que me orientam, é ver além das.
quedas humanas o homem espiritual, além das refregas da avareza e da ambição os
determinantes divinos, além dos rótulos de descobrimento e holocausto os movimentos
evolutivos, acima do pessimismo e das agruras a força que evola do Alto e eleva a frequência
mental aos páramos da esperança (e esta, quanto a fé, extrapola em essência o mero raciocínio
lógico. Nisso se fundamenta que, ante condições aspérrimas de trabalho e penúria, os pastores
rejubilaram pela chegada do Menino Salvador. É também paradoxal a alguns abastados aceitar
logicamente a alegria renovada de casais paupérrimos comemorando a chegada, por exemplo,
do quarto filho).
Feitas as divagações, voltemos ao mar... Estamos na nação brasileira e deparamos com uma
tripulação miscigenada, pluralidade de gostos, grandes variações de agrupamentos e de
modelos familiares, desigualdades econômicas imensas e modos de vida rural e urbana,
interiorana e cosmopolita; em suma, um palco social habitado por representantes de
variadíssimas culturas e procedências, e coexistem nuanças de virtude e traços de barbárie.
Decerto a evolução impele os indivíduos e a coletividade ao seu destino de "perfeição",
mas o trajeto e o tempo têm as participações dos espíritos em seus relativos arbítrios.
Os desígnios são inderrogáveis no que têm de divino. Não tenhamos a presunção de
conhecer o futuro ou detalhes dos projetos de Ismael. Antes, basta- nos saber das finalidades,
da prevalência do bem sobre o mal e que sempre estamos em processo; ou seja, mesmo em
meio a solavancos, perturbações e intercorrências, os preceitos divinos se consolidam mais e
mais. Faltam-nos olhos de ver e ouvidos de ouvir. Ademais, a nação não cessa de ser agredida
e responder com o bem, praticar a caridade em relação aos espíritos ignorantes, embrutecidos,
inconsequentes, revéis e irreverentes a que hospeda e aprimora.
A condição de encarnado me remete novamente à irresistível metáfora do mar. O

3
47
Atos 26:14
marinheiro se vê cercado de massa de água por todos os lados. Sabe que há um além e um
aquém, mas a realidade o compele a velejar, remar... Nada o abstrai completamente do mundo
que o agita, o balança, o envolve. Estamos imersos na sociedade de tal maneira que, embora
saibamos da imortalidade e da brevidade da vida corporal, todos os conteúdos da vida material
nos impressionam a tal ponto que nos confundimos com o mundo das formas e chegamos a
acreditar que somos o corpo, a matéria é o meio de felicidade e a morte é o fim de tudo. Sob
essa ótica nossos olhos veem e as mentes avaliam.
Em todas as atualidades civilizatórias o ser humano se viu em crise. 0 mar é conturbado
ostensivamente ou em suas profundezas e noites o perigo é sempre iminente...
A atualidade, o presente a que me refiro já estará renovado e modificado no momento em
que o leitor topar com estas letras.
O tempo é o labirinto de angústia e ansiedade, o manancial de memórias e esperanças. Esse
paradoxo é constante quer recorramos à Antropologia, quer à Sociologia. Mas que recorte
propomos? Que aspecto nos interessa em particular para a finalidade deste ensaio? A linha de
comportamento e de valores morais. Somos, e aqui escrevo especialmente aos cristãos, mais
diretamente aos cristãos espíritas, os continuadores do apostolado. Somos os capitães-em
-exercício ou os servos da ininterrupta viagem. E Jesus na parábola das virgens explica que não
sabendo quando virá o noivo devem elas vigiar todo o tempo.48 Também remontamos ao
banquete em que um participante foi expulso porque não estava devidamente trajado para o
evento.49
Uma ressalva importantíssima a fazer é de que o título da obra-matriz não é “Brasileiros,
povo de Deus. Cartas-vivas do Evangelho". A referência é ao país, cuja predestinação é acolher
e auxiliar os espíritos a que aninha em seus caminhos depuradores.
A abordagem que elejo é macroestrutural e tem muito de observação, convivência e
informação midiática. Os indicadores comportamentais brasileiros têm traços de adesão ao
individualismo alemão, de longevidade italiana, de trabalho autônomo dos estadunidenses
(incluindo o modelo de alimentação terceirizada), de corrupção e de criminalidade em
modalidades e quantidades de estarrecer.
A Espiritualidade tem atuado generosamente no campo das legislações sociais, mas tal não
impede que haja rebeliões, pilhagem, desatino, desentendimentos no grupo e alguns marujos se
lançam, ou são lançados, ao mar da toxicomania.

48
4 Mt 25, versículos 1 a 13
49 5
Mc 22, versículo 11
Constitui objetivo deste capítulo apresentar uma equação entre o paraíso anunciado, as
doenças de bordo e as intempéries que parecem avassalar o barco e contaminar a tripulação?
Decerto que não. Esses elos se encontram nos grandes núcleos de planejamento espiritual.
Então em que consiste o intuito dessa relação entre o que se espera(va) e o que se constata?
Alertar...
0 cristão, desde o princípio, é instado a ser fermento na massa, cordeiro em meio aos lobos,
ser dos poucos trabalhadores na seara do Senhor. Ao individualismo contrapõe a consciência
solidária (não apenas de discurso e ideais, mas ao ponto do sacrifício pessoal); à corrupção
enfrenta com discernimento e retidão; às arremetidas e impulsos de violência responde com a
mansidão. Na oração de São Francisco tem a tradução de vida do Santo da Pobreza e as bem
-aventuranças representam a súmula de sua máxima Constituição existencial.
As pedras rejeitadas pelas ondas ideológicas da globalização são justamente as suas gemas
preciosas: a humildade, a paciência, a pureza, a misericórdia, a justiça... Sofre aflições e
perseguições porque no seu exemplo de testemunho está o sal do mundo... O sal, e eis-nos de
novo ao mar... Sinto que abuso da resistência dos leitores, mas a metáfora é infinita. O mar da
existência na Terra é bastante salgado muitas vezes, mas é ele, o sal, que assegura a vida do
mun- daréu de água; também se aplica a analogia no sentido de que há vidas nas profundezas
(uma que conhecemos, outras em que cremos sem ver; outras de que nem cogitamos). Na
superfície a realidade dos sentidos nos absorve, nos aliena. E o comércio e a pirataria parecem
ser a razão das relações... Nesse ire vir do texto, adianto aos leitores amigos que se sentem
entediados, também o mar a muitos enjoa...
Por fim, ufa!, Urge que nos agigantemos... Lembrar da partida, ter fé na terra firme,
suportar as agruras da viagem, cuidar do barco, dirigir o destino, ter em mente onde devemos
aportar... Há sempre reparos a fazer, avarias a remendar, provisão a administrar, forças a
gerenciar, revezes a aquilatar, inter- corrências a superar, limitações a considerar...
O Brasil não está em bonança? As velas esgarçam? A tripulação se alvoroça? Os laços se
rompem? As ondas arremetem? Os mastros'estrepitam? As galés sucumbem? O piso range? O
rumo confunde? As estrelas se ocultam? A tempestade se insinua? O apostolado cristão nunca
se abstraiu das tormentas... Jesus não ludibriou a nenhum dos seguidores: "No mundo havereis
de passar por tristezas e desilusões"; "Aquele que quiser vir após mim, tome a cada dia sua
cruz". Paulo (quanto de distância e tempo o Grande Apóstolo lidou ao mar na pescaria de
almas!?) aprendeu para ensinar: "Completo em meu corpo os padecimentos que faltam ao
Cristo"; "Para com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para com
todos, para de alguma forma salvar alguns" (1 Coríntios, 9:22).
Há princípios gerais de destino da pátria brasileira. O povo, espíritos encarnados, é uma das
variáveis. Os bons, os cristãos, os espíritas, são lâmpadas, sinalizadores de virtudes que
manifestam a luz oriunda dos altiplanos; são referências para os que também singram noutros
barcos os mares da existência terrena.
Façamos a nossa parte, onde e quando estejamos. Acrescentemos a esse espírito de serviço
à convicção de que não estamos à revelia, a embarcação é justa e o mar da História é o mapa de
Deus.
Cientes de tudo o que aqui (neste e demais capítulos) está escrito, parafraseando o desfecho
de uma mensagem excelente da excelente obra em quatro volumes "Do País da Luz", médium
Fernando de Lacerda - intitulada "Um marinheiro":
"Presta atenção aos ventos, para mandares orçar a tempo próprio. Cartas a examinar, a tua
consciência. Bússola, a tua fé. Esperança em Deus, e ao largo.
Boa viagem. Que Nossa Senhora dos Navegantes te acompanhe."
Capítulo 7 Assim na Terra, como no
Céu...
João Romário Filho50
“Onde fica, nestas terras novas, o recanto planetário do qual se enserga, no infinito, o símbolo
da redensão humana”
Ah, os nossos olhos... Desde há muito, permanecem tão fechados para as coisas dos céus

50
1 João Romário Filho, de Fortaleza-CE: Jornalista e educador afinado com a proposta de Evangelização de espíritos.
Especialista em ensino de Astronomia pela Universidade Cruzeiro do Sul. e-mail: joaoromariofilho@gmail.com
quanto costumamos nos esforçar para mantê-los abertos diante das coisas da terra... Tão
fechados que, durante aquele dia de primavera lamentavelmente memorável, as únicas cruzes
que mereciam a atenção do povo eram as de madeira sobre o Calvário. Três madeiros cruzados
a ostentar farrapos humanos por horas a fio, àquela altura, já agonizantes.
Ao fim do lento espetáculo de sangue a que já estava habituada toda a gente, cada um
retomaria avidamente seus afazeres humanos. Muito poucos se interessariam pelo singelo
asterismo que tomaria lugar no céu ao sul, pouco acima do horizonte, tão logo o Sol se
houvesse furtado à vista dos habitantes daquela região, a exemplo do que faziam naquele
momento muitos seguidores do crucificado nazareno. E mesmo entre os raros interessados
pelos mistérios celestes, não se tem notícia de qualquer sábio judeu que houvesse jamais
dedicado maiores meditações a tão singelo agrupamento estelar.
A bem da verdade, até para os gregos e romanos mais ilustrados, aqueles grãos de luz em
particular pouca importância detinham. O romano-egípcio Ptolomeu, no século seguinte, ao
sintetizar a sabedoria astronômica greco-ba- bilônica, elencaria aquelas cinco estrelas em
formato tão característico como mera porção dos pés do Centauro...
Porém, elas estavam ali. Desde que das estrelas veio o impulso espiritual para o surgimento
das primeiras civilizações sobre a Terra, elas já estavam ali, visíveis do Egito à Escandinávia,
da China à Ibéria. Visíveis aos olhos, porém inacessíveis ao sentimento. Isso porque "o
símbolo da redenção humana", para ser percebido como tal, ainda precisaria do
reconhecimento dos homens. E não seria senão naquele dia cinzento que o peso de seu
significado começaria a recair sobre os habitantes deste mundo.
Tamanho peso e, paradoxalmente, a maioria dos espectadores sequer se dava conta do que
se passava naquele momento. Entre os minimamente aptos a suportá-lo, a maioria recuou.
Apenas o mais jovem e as mais compromissadas perseveraram até o fim, velando pelo
supliciado mesmo quando, desmembrada a peça de madeira, já se revelava em policrômicas
fulgurações sua eontraparte celeste.
Naquela noite, a passagem da pequena constelação pelo céu foi rápida. Durou bem menos
do que durara o excruciante martírio infligido ao anunciador do Reino. Para os que haviam
acedido ao anúncio, porém, comprometendo-se a iniciar a obra divina no próprio coração,
aquelas parcas horas pareciam tão infinitas quanto os pontos de luz que salpicavam a abóbada.
A morte do renovador de suas esperanças caíra como um véu negro e espesso sobre o olhar
daquelas almas. Tudo o que conseguiam divisar era um vazio escuro como o céu de fundo de
uma noite bem estrelada. Talvez por isso mesmo a Providência tenha garantido que aquele
trágico acontecimento se desse num dia de plenilúnio, quando a Lua derrama seu suave
magnetismo sobre a Terra de forma ininterrupta durante todo o período de ausência do
Astro-Rei...
Assim é que, à noite densa que medrava entre os que se haviam deixado envolver pelas
promessas do carpinteiro de Nazaré, responderia o Alto com um dia e duas noites de plena
claridade, coroadas estas pela presença marcante da inconfundível figura estelar que se
apresentava ali "de pé", logo após o crepúsculo. Afinal, a Luz jamais está ausente dos
horizontes de quem a procura em Espírito e Verdade...
Tanto que na manhã do terceiro dia Ela voltou a se apresentar pessoalmente, ressurgindo
sob a forma transfigurada do Nazareno a cada um daqueles que seriam diretamente incumbidos
de mergulhar os demais habitantes deste mundo na Divina Experiência que lhes fora dado
vivenciar. Experiência essa que se eternizaria sob o símbolo da Cruz, que dali para a frente
passaria a evocar o supremo sacrifício do interesse pessoal em prol do Bem e da Verdade. Cruz
de hastes retas que convidam à retidão, ante as tortuosidades da vida. Cruz de hastes
convergentes que se encontram no ponto de equilíbrio entre a horizontalidade de nossas
relações uns com os outros e a verticalidade de nossa relação com Deus. Cruz que faz lembrar
o exemplo do Crucificado...
Porém, se hercúleos foram os esforços daqueles que se lançaram a esse mister, animados
què estavam pelo Sopro Divino, as sombras de um mundo comprometido com a ilusão não
permitiram que as Luzes da Verdade se espargissem livremente. O apego à terra ia minando
pouco a pouco as inspirações do Alto, bem como o ímpeto renovador dos apóstolos e as
lembranças da Carta Viva que o Criador enviara à humanidade. De tal forma que a cruz,
quando recordada, passou a ser mero símbolo de opressão e sofrimento...
Não por acaso, seu reflexo celestial foi sumindo pouco a pouco dos céus do Velho Mundo1.
Numa dessas inumeráveis sincronicidades entre os acontecimentos cósmicos e os eventos
humanos11, quando a ignorância e o esquecimento chegaram ao ponto de Jerusalém ser alvo da
gana sanguinolenta de "cristãos" em busca de lascas da cruz do Cristo, a velha e esquecida
plêiade praticamente já desaparecera das noites da Cidade Santa111.
Àquele tempo, o Senhor já havia determinado a necessidade de estenderas claridades do
Evangelho para além do mundo dito'"civilizado". Era preciso renovar os ares, oferecendo a
outras almas, ainda menos afastadas da simplicidade e da ignorância que nos caracterizaram a
todos, um dia, a oportunidade do Mergulho. Em meio a elas, quem sabe, a Luz pudesse
encontrar espelhos mais apropriados para refleti-la sem distorções. Em meio a elas, quem sabe,
a Cruz pudesse encontrar corações mais dispostos | renúncia, ao trabalho e à regeneração...
Assim é que, apesar de cintilar há milênios imemoriais nos céus do Novo Mundo, "a cruz"
só seria vista e descrita pela primeira vez como tal por um astrônomo que acompanhava a
comitiva de Pedro Álvares Cabral, nove dias após a chegada oficial dos portugueses à terra que
batizariam - não por acaso - de Vera Cruz e cinco após a celebração da primeira missa a oeste
do Atlântico.
De lá para cá, sob o nome de Cruzeiro do Sul, a menor das 88 constelações que permeiam o
firmamento permanece como que "fincada" ao polo sul celeste, servindo de bússola
indefectível ao viajor das latitudes meridionais em busca de caminhos que o levem ao destino
desejado. E para o cristão, em particular, é ela também símbolo imperecível,
providencialmente disposto pelo Mais Alto na abóbada para manter viva na memória a certeza
de que o Caminho da Verdade exige a entrega de si na conquista da Vida Eterna.
João Romário Filho
I 0 desaparecimento gradual do Cruzeiro nos céus do Hemisfério Norte se justifica pelo
movimento de precessão que a Terra completa ao longo de 25.772 anos. Para uma explicação
mais detida sobre o tema, assista ao Painel registrado no DVD do Seminário Brasil, Coração do
Mundo, Pátria do Evangelho.
II Cf. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo, cap. 18, item 8.
III aproximadamente a mesma época em que se dá o diálogo entre Jesus e Helil registrado nas
primeiras páginas de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, em que o Cristo
pergunta: "...onde fica, nestas terras novas, o recanto planetário do qual se enxerga, no
infinito, o símbolo da redenção humana?". O Cruzeiro acabara de sumir dos céus
setentrionais, passando a ser visível exclusivamente da porção do globo localizada abaixo
do Equador, onde se localiza o Brasil.

Textos Especiais
A mensagem do Espírito da Verdade
Bittencourt Sampaio
No dia 9 de março de 1920, em sessão pública realizada na Federação Espírita Brasileira, o
médium Albino Teixeira forneceu aò grupo que ali se reunia uma memorável comunicação do
Espírito da Verdade. Segue a comunicação:
Meus filhinhos, a minha paz vos dou.
Abri os seios doloridos de vossas almas acicatadas pela prova, abri o sacrário de vossos
corações acrisolados na dor, para dar guarida às celestes emanações que pelos meus emissários
constantemente vos envio, como refrigério ao sofrimento que de quando em vez vos vem
despertar do letargo em que jazeis, para entreverdes as claridades espirituais da vossa
regeneração.
Vinde, filhinhos meus muito amados, aprender comigo que sou manso e humilde a suportar
o peso da vossa cruz; vinde, pelos ensinos que vos leguei, adquirir as virtudes que um dia
formarão rico diadema para ornar as vossas frontes de espíritos redimidos. Vinde repousar no
meu seio os vossos espíritos combalidos pelas provações, certos de que felizes sois, pois que o
filho do homem não tinha onde reclinar a cabeça.
Irmanai-vos pelo amor, compreendei que sois filhos de um mesmo Pai, chorai com os
vossos semelhantes as suas desventuras, vesti os nus, confortai os aflitos e sereis dignos de
seguir-me e sereis de fato meus discípulos.
Tudo passará, meus filhinhos muito amados, mas as minhas palavras jamais passarão,
queira ou .não o príncipe que impera no vosso mundo e aí tem por enquanto estabelecido o seu
reino.
A árvore do Evangelho, semeada há dois mil anos na Palestina, eu a transplantei para o
rincão de Santa Cruz, onde o meu olhar se fixa, nutrindo o meu espírito a esperança de que
breve florescerá, entendendo a sua fronde por toda a parte e dando frutos sazonados de amor e
perdão.
Lavai-vos nas águas lustrais, na pura linfa que dele jorra, e asseguro-vos que perdoados vos
serão os vossos pecados.
Filhinhos meus muito amados, há longos séculos que procuro reunir-vos todos para que
formeis um só rebanho sob minha direção, mas rebeldes vos tendes conservado às minhas
injunções, procurando antes servir ao príncipe do vosso mundo.
Cumpridor fiel da vontade do Pai, toda a minha complacência se distribui por este pobre
rebanho desgarrado. Eu, porém, prometi que todos seriam salvos e espero levar-vos um dia,
limpos e puros, às suas sacratíssimas plantas, aureoladas as vossas frontes pela luz brilhante da
purificação final.
Estudai, filhinhos meus, gravando os meus ensinos em vossos corações, para que eles
iluminem as vossas consciências, fazendo-vos finalmente compreender a necessidade que vos
impõe de remodelardes os vossos espíritos, esmagando o orgulho e egoísmo que os degradam e
adquirindo as virtudes que os elevam no conceito do Senhor.
A minha paz vos dou, a minha paz vos deixo, pedindo-vos que vos ameis uns aos outros
como eu vos amei e vos amo.
O Espírito da Verdade.
Na mesma noite, o benfeitor Bittencourt Sampaio encerrou os trabalhos comunicando-se
por outro médium. Surpreendeu a todos os presentes, dando a conhecer que o portador da
mensagem anterior foi o próprio Ismael, anjo-guardião da nação brasileira. Na ocasião,
Ismael foi o portador das palavras santas do Cordeiro endereçadas ao plano da vida em que
nos encontramos. Eis o ditado de Bittencourt:
Meus caros amigos e companheiros de jornada, paz em nome do manso Cordeiro de Deus.
Liberto o espírito das cadeias do egoísmo e do orgulho, poderá ascender da lama às
claridades celestes. Amante da verdade, saberá seguir os passos dAquele que, sendo a própria
Verdade, ao mundo veio mostrar-se.
À sombra de Jesus caminhará todo aquele que deixar o mundo do erro e da miséria moral,
pautando sua vida pelos ensinos edificantes que Ele deixou.
Como vistes, meus amigos, as trombetas do céu ressoam pela atmosfera da Terra,
chamando os homens à Verdade, porque os tempos são chegados. Vistes, e me congratulo
convosco, porque sentiste a grandeza da misericórdia baixada até vós, por intermédio daquele
anjo que preside aos destios desta casa – Ismael.
Sede unidos e amai, para que Jesus, por seus emissários, encontre um pouso em vossas
almas.
Paz, meus amigos, e encerrai os vossos estudos.

Brasil, coração do mundo, pátria do


Evangelho
Aécio Pereira Chagas / Eduardo Joaquim de Souza Vichi
Desde sua publicação, em 1938, o livro ditado pelo espírito Humberto de Campos, "Brasil,
Coração dó Mundo, Pátria do Evangelho" (edição FEB), através da mediunidade de Francisco
Cândido Xavier, tem, no meio espírita, suscitado discussões. Muito interessante é que a obra
vem com um prefácio de Emmanuel, que logo depois dita um outro livro, “A Caminho da Luz"
(editado pela FEB em 1939), através do mesmo médium. Para uma melhor compreensão do
primeiro livro, convém, a nosso ver, ler inicialmente o segundo.
Muitas das críticas, e dúvidas, sobre o livro de Humberto de Campos, que chamaremos
agora pelas iniciais BCMPE, são de modo a considerá-lo uma "pa- triotada". Isto aconteceu na
época em que surgiu e, posteriormente, durante os governos militares, tivemos oportunidade de
ouvi-las. Esta atitude é decorrente do efeito da própria propaganda que todos os governos
fazem de si mesmos, para que todo cidadão confunda “governo" com "nação".
O importante é não nos deixarmos levar por essa propaganda e não nos esquecermos que a
nação e o sentimento patriótico são algo mais duradouro e profundo que eventuais simpatias
por um determinado governo, que dura um tempo bem menor.
A nosso ver, a chave para melhor se compreender o BCMPE é tentarmos entender o
significado da expressão "coração do mundo, pátria do Evangelho". Nas várias vezes em que
temos proferido palestras sobre o tema, em nosso Centro, muitas vezes, confundem essa
expressão com "paraíso", o local do eleitos, o local dos gozos eternos, o local da perfeição
contemplativa etc. Para nós, o melhor sentido para essa expressão foi quando da presença
dejesus, entre nós, na Palestina.
Ali era, naquele momento, o coração do mundo, a pátria do evangelho. Qual melhor
expressão, senão essa, para caracterizar a presença do Cristo aqui entre nós? No entanto, o que
se pensava em Roma, centro do mundo, a respeito daquela parte do Império? Pensava-se numa
região turbulenta, sem nenhum atrativo especial, pobre, com um povo religiosamente fanático,
que, por esses motivos religiosos, se recusava a pagar tributos a Roma. Recusava a "Pax
Romana". Não tinha nenhuma expressão militar e, no entanto, perturbava a ordem geral do
Império com esse tipo de atitude. Ainda mais, tinha uma estranha religião de um Deus único e
sem imagens. Em suma, era um espinho, um entrave, na periferia do mundo.
Ao lermos o texto evangélico enquanto testemunho histórico, notamos que, além de Jesus e
uns poucos Espíritos de grande elevação que O auxiliavam na tarefa, a maior parte do povo que
ali estava, que O ouvia e que O procurava, eram Espíritos sofredores, eram Espíritos que
buscavam um consolo, uma esperança. A quem é dirigido o "Sermão do Monte"? Quem é
curado? Para quem os pães e peixes são multiplicados? Quem eram os sacerdotes, os
governantes? Os Espíritos iluminados? Longe disso; se o fossem, o Mestre não teria sido
crucificado. 0 próprio Emmanuel no livro "Há dois mil anos" traduz estas impressões.
Muitas pessoas, quando a elas se apresenta essa interpretação da expressão "coração do
mundo, pátria do Evangelho", não discordam, mas ficam como que decepcionadas, pois para
elas valia a interpretação do paraíso, do Éden, como lugar do ócio e contemplação.
No Capítulo VII do BCMPE, "Os Negros no Brasil", temos uma narrativa do chamamento
dos Espíritos sofredores, ligados à Europa, para aqui se reencar- narem, proporcionando o seu
desenvolvimento e saldando os seus débitos passados, da qual transcrevemos dois trechos:
1o) das palavras do Cristo a Ismael:
"Abriga aí, na sagrada extensão dos territórios do país do Evangelho, todos os infortunados e
todos os infelizes. No meu coração ecoam as súplicas dolorosas de todos os seres sofredores,
que se agrupam nas regiões inferiores dos espaços próximos da Terra."
2o) da narrativa de Humberto de Campos sobre os atos de Ismael nos planos próximos à
Terra:
"Aí se encontram antigos batalhadores das Cruzadas, senhores feudais da Idade Média,
padres e inquisidores, espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos cheios da treva
das suas consciências polutas." (...)
"E aí, nas estradas escuras e tristes da angústia espiritual, viu-se, então, que falanges imensas,
ansiosas e extasiadas, avançavam com fervorosa coragem para as clareiras abertas naquela
mansõo de dor e de sombras.“
Em suma, "coração do mundo" não deve ser entendido como paraíso terrestre, mas como
região escolhida e preparada pelo Cristo para receber um grande contingente de Espíritos
desejosos de resgatar seus débitos para efetuarem a transição evolutiva para a espiritualidade
mais desenvolvida.
Uma outra crítica que se tem ouvido refere-se à forma da narrativa, lembrando cerimônias
católicas. Aparentemente essa crítica procede, porém, no prefácio, Emanuel já revela que "os
dados que ele (Humberto de Campos) fornece nestas páginas foram recolhidos nas tradições
do mundo espiritual (...)" (destaque nosso) Temos a impressão de que a narrativa do autor
espiritual foi fiel a essas tradições, pois a nosso ver não poderiam ser de outra forma:
carregadas de simbolismo católico. Se Humberto de Campos coletasse tradições do mundo
espiritual vinculadas | cultura escandinava ou chinesa, os simbolismos com certeza seriam
outros. Como são as narrativas épicas de Homero, Virgílio, Camões e muitos outros? Que
melhor que a metáfora poética para expressar estados da alma indescritíveis através de formas
ditas "racionais"? É preciso tentar compreender, e isso nem sempre é fácil, o que há por trás do
simbolismo da narrativa.
Vejamos um caso: no Capítulo I, "O coração do Mundo", há a descrição da assembleia
realizada nas proximidades do nosso orbe, entre o Cristo e seus colaboradores imediatos, no
último quartel do século XIV. Nessa ocasião Jesus abençoa as terras que seriam depois o
território brasileiro. O que seria esta bênção do Cristo? Apenas algo como certas "bênçãos"
aqui proferidas e que são meras palavras, ocas de sentimentos e de realizações? Cremos que
não. Seria então um símbolo? Neste caso simbolizou o quê? Vamos tentar responder; antes,
porém, deixemos um pouco de lado BCMPE para examinar outras fontes.
O livro clássico e cativante "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, veio a lume
em 1936, pouco antes do BCMPE. É até interessante comparar essas duas obras escritas com
propósitos semelhantes e cujas estruturas guardam também certa semelhança. No "Raízes" o
autor procura explicar o que somos, culturalmente falando, através de nossa formação a partir
do indígena que aqui chegou e do africano, que para aqui foi trazido. Em seu Capítulo VI, "O
Semeador e o Ladrilhador", encontramos as seguintes afirmações, que transcrevemos:
“No Brasil, a exploração litorânea praticada pelos portugueses encontrou mais uma
facilidade no fato de se achar a costa habitada de uma única família de indígenas, que de norte
a sul falavam um mesmo idioma. É esse idioma, prontamente aprendido, domesticado e
adaptado em alguns lugares, pelos jesuítas, às leis da sintaxe clássico, que há de servir para o
intercurso com os demais povos do país, mesmo os de casta mais diversa. Tudo faz crer que,
em sua expansão ao largo do litoral, os portugueses tivessem sido sempre antecedidos, de
pouco tempo, das extensas migrações de povos tupi efato é que, durante todo o período
colonial, descansaram eles na área previamente circunscrita por essas migrações.
0 estabelecimento dos Tupi-Guarani pelo litoral parecia ter ocorrido em data relativamente
recente, quando aportaram às nossas costas os primeiros portugueses. Um americanista
moderno fixa este fato como se tendo verificado, provavelmente, a partir do século XVI. E com
efeito, ao tempo de Gabriel Soares, isto è, aos fins do século XVI, ainda era tão viva na Bahia a
lembrança da expulsão dos povos não Tupis para o sertão, que o cronista nos pode transmitir
até os nomes das nações "Tapuias" das terras conquistadas depois pelos Tupinaé e
Tupinambá...
A opinião de que a conquista da orla litorânea pelas tribos Tupi se verificou pouco tempo antes
da chegada dos portugueses parece ainda confirmada pela perfeita identidade na cultura de
todos os habitantes da costa, pois estes, conforme disse Gandavo, 'ainda que estejam divisos e
haja entre eles diversos nomes de nações, todavia na semelhança, condição, costume e ritos
gentílicos todos sam huns'.(Nota 101: Tanto mais extraordinária esta semelhança quanto nos é
conhecida hoje a capacidade dos povos Tupi-Guarani para assimilarem traços de culturas
diferentes da sua e também para 'tupinizarem'os povos estranhos à sua raça (...) (Padre W.
Schimidt, 1913.)
(...) E é significativo que a colonização portuguesa não se tenha firmado ou prosperado muito
fora das regiões antes povoadas pelos indígenas da língua-geral. Estes, dir-se-ia que apenas
prepararam terreno para a conquista lusitana. Onde a expansão dos Tupi sofria um hiato,
interrompia-se também a colonização branca, salvo em casos excepcionais (...)".(pág. 71 e
seguintes, 21a ed., 2a reimpressão, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1982M
Voltemos então à pergunta que havíamos colocado anteriormente: a bênção dejesus foi
simbólica? Ela simbolizou o quê? Ela simbolizou atos práticos e materializáveis, visíveis a nós
outros. Não ficou apenas no gesto vazio. O início da migração dos povos Tupi, segundo
pudemos inferir, deu-se logo em segui-
I NOTA DO SER: Hoje se sabe que os primeiros fluxos migratórios da nação Tupi-Guarani em direção ao litoral
antecedem o período aqui sugerido. No entanto, isso não invalida a tese de Sérgio Buarque, visto não haver dúvidas quanto à
ocorrência de movimentações populacionais mais recentes, ocorridas às vésperas da ocupação lusitana

da. A bênção não se traduziu apenas na reencarnação de Helil como infante D.Henrique, o
Navegador, e de outros Espíritos, em terras portuguesas. Outras providências materializáveis
devem ter sido tomadas. Achamos que os historiadores espíritas (e os há) têm aí um bom filão
para trabalhar.
Muitas pessoas pensam no Brasil - País do Futuro - como uma grande potência, brilhando,
e até ofuscando, países como os Estados Unidos e as velhas nações europeias. No BCMPE, em
parte alguma, Humberto de Campos faz alusão a um futuro desse tipo. O papel de 'celeiro do
mundo' não implica necessariamente dominação econômica ou militar. Em local disposto a
receber Espíritos altamente comprometidos em seu passado, porém, dispostos a reconstruir o
que destruíram, não se deveria esperar um ímpeto de conquista material, a não ser que houvesse
fracasso total desses espíritos em suas auto- propostas regenerativas, o que é muito pouco
provável. É interessante notar que muitas pessoas, ao perceberem que o futuro do Brasil não
seria de uma grande potência, sentem-se frustradas, assim como os que esperavam um paraíso.
Por que essa atitude? Achamos que isso já traz motivo de interessantes reflexões sobre nós
mesmos.
Um outro aspecto que se evidencia quando se discute o BCMPE são as características de
nosso país, naquilo que diferem de outras nações, de outros povos. Várias visões vêm à tona e
muitas vezes refletem essas ideias que acabamos de mencionar: potência e paraíso. Outras,
devido a informações incompletas, caracterizam-se pelo exagero, por uma postura extremista.
Poucos são os que destacam a mistura de povos e culturas que aqui se encontra, caso único no
mundo. São realmente uma coisa estranha essas misturas, não apenas no sangue, mas nos
vários aspectos culturais. Aqui se misturam religiões, artes plásticas, músicas, culinárias etc.
As variabilidades de receitas de macar- ronada, aqui trazidas pelos italianos, e que assustam os
próprios italianos. 0 quibe, iguaria árabe, recheado com a italiana ricota. O prato
caracteristicamen- te brasileiro, o feijão com arroz, é também uma mistura 'sui generis' e,
segundo os estudiosos de nutrição, mais nutritivo que cada um de seus componentes se
comidos em separado. O feijão é nativo do continente americano e o arroz foi trazido da Ásia
pelos portugueses. E no campo ideológico? Conhecemos coisas sem iguais de fazerem inveja a
certos 'blendings', principalmente no período anterior a 1964, e também, nos chamados 'anos
rebeldes' (final da década de 60). Nem nos Estados Unidos, outro país onde convivem povos de
todo o mundo, é desse jeito, pois ali as misturas, no sentido de amalgamação, da
homogeneização, são muito menos intensas e às vezes ne as há. Outro ponto interessante, que
nos leva a reflexões, é o que Buarque de Holanda menciona sobre o Homem cordial, com
relação ao brasileiro (ver Cap. V, opus cit.).
No Brasil o que se espera não é apenas um desenvolvimento material, mas o
desenvolvimento espiritual. É o laboratório onde se prepara uma nova dvilização baseada em
valores espirituais. Uma evidência dessa situação é o desenvolvimento do Espiritismo. Embora
as primeiras manifestações documentadas tenham ocorrido nos Estados Unidos e na Europa, e
a Doutrina tenha sido codificada na França, por Kardec, foi no Brasil que encontrou terreno
fértil para se desenvolver. Poder-se-ia perguntar: mas outras nações, como a índia, não teriam
um 'porte' espiritual maior que o do Brasil? Não é por acaso que no Brasil se mistura tudo,
diferentemente da índia, onde o sistema de castas, o mais antigo 'apartheid' de que se tem
notícia, impede que as pessoas se misturem até em conversas do dia a dia. Onde a reencarnação
é usada como uma forma de intimidação social, da mesma maneira que a força militar é ainda
usada na África do Sul.
0 título deste artigo é uma pergunta. Tentamos convencer aquele que leu oBCMPE de que a
resposta é afirmativa, ou seja, o Brasil 1 realmente o coração do Mundo, a Pátria do Evangelho.
Àqueles que ainda não leram o BCMPE e o “A Caminho da Luz", aqui vai o convite para a
leitura e a reflexão.

(Reformador-JULHO/93 - pág. 208-210)

Humberto de Campos por Elias


Barbosa
I Elias Barbosa51
Alexandre Caroli Rocha entrevista Elias Barbosa sobre Humberto de Campos e Chicò Xavier.

Alexandre Caroli Rocha: Você conversava com Chico Xavier a respeito de Humberto de
Campos? O médium lhe dava informações sobre o escritor? Ele lhe disse algo sobre o escritor
que não conste dos escritos mediúnicos?
Elias Barbosa: Sim, todas as vezes em que ele vinha à minha casa, nas noites de
terças-feiras. Dava-me preciosas informações; uma delas sobre quando Humberto de Campos
mostrou a Chico Xavier a cena de quando o autor de Sepultando os Meus Mortos chegou ao
mundo espiritual, após a sua desencarnação. O local era de beleza infinita e das próprias folhas
das plantas divina música brotava. Nada mais me disse que não conste dos escritos mediúnicos.

51
1 Elias Barbosa (1934-2011), grande amigo de Chico Xavier, publicou, entre outros livros,
“Humberto de Campos e Chico Xavier a mecânica do estilo"
Alexandre Caroli: Sabe se Chico Xavier se pronunciou sobre a afinidade entre ele, como
médium, e o espírito Humberto de Campos? Se não me engano, Emmanuel disse que havia
entre os dois uma afinidade muito propícia à comunicação mediúnica.
Elias Barbosa: Por diversas vezes Chico Xavier se referiu à grande afinidade que existia
entre ele e o espírito de Humberto de Campos, confirmando o que Emmanuel lhe havia
transmitido, inclusive que já eram amigos de existências pregressas, e a importância de serem
ambos autodidatas.
Alexandre Caroli: Sabe se Chico Xavier era leitor de Humberto de Campos?
Elias Barbosa: Não. No meu livro Humberto de Campos e Chico Xavier, a Mecânica do
Estilo, deixei claro que somente a partir de 1956 que eu mesmo consegui percorrer alguns
livros do grande beletrista maranhense. Em 1935, o próprio repórter Clementino de Alencar,
que o jornal "O Globo" mandou para seguir os passos de Chico Xavier em Pedro Leopoldo,
verificou que não existia nenhum livro de Humberto de Campos, ou mesmo uma enciclopédia
sequer, na casa do médium.
Alexandre Caroli: Chico Xavier se pronunciou alguma vez sobre a história da senha que
Monteiro Lobato e Godofredo Rangel planejavam usar, após a morte de um deles? Esse caso,
aliás, foi comentado na crônica "Nota explicativa", do livro Cartas e Crônicas.
Elias Barbosa: Quando conversei com ele sobre esse assunto, comentando o que eu havia
encontrado num dos dois tomos de A Barca de Gleyre, com cartas de Monteiro Lobato a
Godofredo Rangel, nosso inesquecível amigo Chico Xavier guardou absoluto silêncio.
Alexandre Caroli: Acha que, entre as décadas de 1930 e 1970, as psico- grafias de Chico
Xavier assinadas por Humberto de Campos/lrmão X mantiveram a mesma qualidade? Ou
houve "altos e baixos"?
Elias Barbosa: Entre as décadas 1930 e 1970, as páginas assinadas por Humberto de
Campos/lrmão X, mantiveram a mesma qualidade, por sinal altíssima.
Alexandre Caroli: Você saberia identificar quais as principais fontes históricas utilizadas
no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho?
Elias Barbosa: Os repórteres que revistaram a casa de Chico Xavier, principalmente depois
de 1938, quando saiu a primeira edição do Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho,
não encontraram sequer um livro de curso primário que trouxesse algo sobre a História do
Brasil. O mesmo aconteceu quando Emmanuel escreveu, através de Chico, o livro A Caminho
da Luz, os referidos repórteres não encontraram nenhuma obra que tratasse da História
universal, constatando a inexistência de qualquer enciclopédia em seu poder.52
Alexandre Caroli: Sobre o livro Boa Nova, saberia dizer quais as principais fontes
evangélicas utilizadas? Acha que esse livro apresenta novidades confiáveis a respeito da
história cristã? Parece que o Chico Xavier tinha um apreço especial pelo Boa Nova.
Elias Barbosa: O livro Boa Nova, que eu costumo receitar para vários clientes, em meu
consultório, com efeito tinha Chico Xavier especial apreço por semelhante obra-prima,
exatamente por trazer Jesus até nós, de forma admirável,
Alexandre Caroli: Nos textos mediúnicos de Humberto de Campos, há referências a seus
filhos, sua mãe, seus amigos etc. Não encontrei nenhuma referência à viúva do escritor. Você
encontrou alguma?
Elias Barbosa: Somente no livro Irmão X, Meu Pai, de Humberto de Campos Filho, pelo
que soube já desencarnado, a quem conheci, pessoalmente, em minha casa, na década de
setenta, acompanhado de repórteres da extinta revista Manchete, é que eu encontrei referências
à D. Paquita.
Alexandre Caroli: Sabe quem eram os responsáveis, na FEB, pela leitura dos textos de
Chico Xavier/Humberto de Campos, antes de serem publicados? Sabe se cabia à FEB a revisão
dos textos? Parece que o presidente Antônio Wantuil de Freitas era um dos responsáveis por
esse trabalho.
Elias Barbosa: Os responsáveis pela leitura dos textos de Chico Xavier/ Humberto de
Campos eram os Drs. Antônio Wantuil de Freitas e seu ilustre filho Zêus Wantuil, figuras de
alto valor na Federação Espírita Brasileira.
Alexandre Caroli: Foi o autor espiritual quem decidiu começar a assinar Irmão X, após o
processo de 1944?
Elias Barbosa: Sim, pelo que o Chico Xavier me disse, certa vez. Creio que Humberto de
Campos quis se penitenciar do que escrevera, na Terra, o velho ConselheiroXX, material
enfeixado em onze volumes.
Alexandre Caroli: Sabe se ainda há textos de Chico Xavier/Humberto de Campos não
publicados?
Elias Barbosa: Até agora, não tive conhecimento de qualquer texto inédito de Chico

52
| Comentário do entrevistador: nesta pergunta, eu quis saber se Elias Barbosa havia
identificado quais as principais fontes históricas utilizadas pelo autor do livro ‘Brasil. CoraçOo
do Mundo. Pátria do Evangelho", mas ele entendeu que eu me referia aos conhecimentos que
Chico Xavier tinha sobre a historiografia brasileira.
Xavier/Humberto de Campos.
Alexandre Caroli: Antes de ler esses textos, você já era leitor de Humberto de Campos? Ou
conheceu primeiro os textos psicografados e, depois, a obra do escritor "em vida"?
Elias Barbosa: Como deixei claro no meu livro acima citado, somente em julho de 1956 é
que pude ler alguns livros de Humberto de Campos, deixados por ele, neste mundo. Desde os
meus quinze anos de idade, já havia lido textos de Humberto de Campos através de Chico
Xavier.
Alexandre Caroli: Vários textos de Chico Xavier/Humberto de Campos são
cartas-respostas. Sabe se existiam mesmo as cartas de leitores anônimos às quais os textos
psicografados se referem?
Elias Barbosa: Sim, as cartas-respostas de Humberto de Campos/lrmão X destinavam-se a
leitores encarnados, que lhe solicitavam informações sobre assuntos da mais alta importância.
Alexandre Caroli: Em sua opinião, o espírito Humberto de Campos entrevistou, de fato,
Judas Iscariotes, Sócrates, D. Pedro II, Marilyn Monroe? Ou ele realizou entrevistas ficcionais,
tais como aquelas que ele fazia, "em vida", em algumas de suas crônicas? Além disso, acha que
ele esteve mesmo em Marte?
Elias Barbosa: Em minha opinião, não pode pairar qualquer dúvida sobre as entrevistas
feitas pelo espírito de Humberto de Campos a Judas Iscariotes, Sócrates, D. Pedro II e Marilyn
Monroe. Por que não poderia o espírito de Humberto de Campos ter visitado o planeta Marte?
Uberaba, 25 de abril de 2006

Salve, salve!
Mensagem psicografada

Após meu decesso, gastei primaveras e verões, outonos e invernos refletindo sobre o
despropério da descompostura dos últimos anos de minha obra terrena.
A voz que outrora sentenciara, descuidada, que eu fosse gaúche na vida, mudara de
propositura e impunha, poderosa, dentro de minha alma: "Eis o tempo de ser resoluto. Eis o
tempo em que ousadia é promover concórdia. Dá ao teu verbo as asas da paz."
Obediente como nunca fui, pensei comigo: o que não se sabe, aprende-se com quem faz.
Assim visitei os grandes centros de Literatura Moralizante do além, para tentar capturar na
verbalidade dos mais experientes a fonte da paz que a adornava. E foi exatamente nessas
buscas que um dia deparei-me com o que seria a matriz espiritual de nosso hino nacional.
Encantei-me. Sem prejuízo à genialidade das mentes de nosso Duque Estrada e do
respeitável Francisco Manuel, que captaram e legaram à posteridade uma poesia tão bela,
somos obrigados a admitir que a obra geradora possui contornos de tão profunda
sentimentalidade que ficamos por imaginar que planos são esses, inacessíveis a nós, pobres
criaturas terrenas, mas que a mente de seu verdadeiro autor pôde penetrar. E que mente é essa,
que alcança altiplanos impensáveis para o raciocínio comum.
O fato é que entrar em contato com tal obra literária despertou-nos um tal patriotismo
superior, que empolgou-nos e hoje nos faz traçar estas singelas linhas.
Busquei novamente a obra transcrita no mundo, guardando a função de erguer ao alto
nossos corações quando suas notas se elevam no ar, mas agora, com um olhar mais atento, mais
amoroso e grato. Perpassei, tomado de emoção, os triunfos e os campos brasileiros, a exaltação
do sentimento de amore a esperança no porvir grandioso transformado em versos. Se alguma
dúvida havia em minha aima quanto à grandeza do destino que aguarda nossa amada nação,
pronunciar vagarosamente cada quadra do hino fez com que esvanecesse de minha mente.
Mas uma pequena parte pareceu querer assenhorear-se de minhas percepções, efui
obrigado a lê-la mais algumas vezes: "Oh, Pátria Amada, Idolatrada! Salve, Salve!"
Seria essa última expressão apenas a culminância do sentimento de exaltação,
materializando-se em uma saudação exclamativa? Penso que não. Penso que é o verbo em sua
condição imperativa, conclamando os filhos da Nação do Evangelho à sua mais grave
responsabilidade, repetido para que se não pudesse olvidar a ordem!
Sendo Jesus o Salvador, por excelência, pois nos propôs o roteiro da redenção infalível, eis
a sua divina ordem à Pátria para onde resolveu transplantar a Árvore do Evangelho: "Salve!
Salve!"
"Como, se nem a si esta Pátria se salva? A quem?" - poderão perguntar- nos os descrentes e
os eternos pessimistas, contempladores inertes das atrocidades sociais, discutidores das causas
vazias, críticos de todos os matizes, descontentes passivos de todos os tempos, repetindo ainda
o discurso fatídico ao pé do madeiro onde os braços de Jesus abriam-se ao mundo.
A esses de mentalidade insatisfeita e inquieta, tão contraditória à postura acomodada e
cheia de desprezo com que se movimentam no seio da sociedade, mais preocupados em
vociferar discursos pré-condicionados e tendenciosos, no afã de serem vistos como cidadãos
conscientes e politicamente corretos do distorcido ponto de vista dos que pouco se
aprofundam nas questões de relevância - a esses vamos apenas propor uma reflexão para
corrigir a má interpretação de nossas colocações.
A Pátria, bem o sabemos, é o agrupamento de homens que, somos obrigados a admitir, mais
cambaleiam que caminham eretos nas estradas do acerto. Talvez seja essa a raiz da confusão.
Se os homens são falhos 1 conclui o raciocínio mais afoito - falha é a nação. Uma nação falha
não se coaduna com ideais tão grandiosos. Ora, meu caro irmão, não vamos te contradizer
nesse setor. Somos tal como crianças em idade pré-escolar, diante de problemas da
Trigonometria avançada. Mas, se na Terra, onde as Leis Imutáveis não encontram eco claro no
coração do Homem, as crianças já são assistidas pelas Leis, pelas Instituições, pela família e
pela sociedade, de maneira a serem resguardadas dos prejuízos da própria inexperiência e
ignorância; faça breve analogia, caro irmão, quanto às Leis Perfeitas que regem a Evolução dos
Mundos. Estaríamos nós, crianças espirituais, destituídas da tutelagem mantenedora da
segurança e da ordem? Estaria distraído o Grande Governador do Orbe, Jesus Cristo? Errara,
acaso, a sabedoria de Ismael, instituído pelo próprio Salvador no encargo santo?
Reflitamos.
O sucesso do empreendimento não se prenderá somente aos operários simples e humildes
que desempenham as funções mais imediatas da construção, mas principalmente ao cálculo
minucioso dos Engenheiros Responsáveis, que antecede o canteiro de serviços. Todo operário,
até que se gradue nos conhecimentos mais profundos das outras áreas que abrangem uma
grande empreitada, está restrito ao seu campo de trabalho. Se seu olhar se limitar à rusticidade
dos materiais que tem ao seu alcance, jamais poderá antecipar a visualização do conjunto da
obra. Até que veja e compreenda o projeto e esclareça-se adequadamente sobre as etapas da
construção, seus pareceres serão vazios e pouco produtivos.
Eis!
Só admitiríamos o fracasso do empreendimento de Jesus se sobre nossos ombros inseguros
e despreparados pesassem responsabilidades incompatíveis com nossa evolução. Mas esse
pensamento é mero jogo de orgulho 1 vaidade humana, que não se admite subordinada a
vontades superiores.
Neste caso, a vontade governante é a de Jesus. E possuímos duas maneiras de adesão ao seu
projeto infalível de redenção do planeta: a adesão voluntária, usufruindo das vantagens da
liberdade e do posicionamento consciente; e a involuntária, sob os grilhões dos ciclos de
reajuste e corrigenda.
Visualizando o caminho ou de costas para ele, marcharemos invariavelmente, sob a tutela
gentil da Providência Divina.
Recordemos que a Pátria do Evangelho, refletindo a bondade e a paciência magnânima de
Jesus, é oficina para os que anseiam trabalhar em prol da própria ascensão e pelo progresso
moral em bases evangélicas de todo o planeta. Mas também é hospital e leito acolhedor e
retificador para os que conservam-se paralíticos da vontade e doentes do espírito.
Depois destes pareceres, retomamos a frase intrigante de nosso Hino, dirigindo-se à
governança do Coração do Mundo.Textos Especiais
Oh, Brasil, eis que, sob o disfarce de empolgada saudação, o imperativo de trabalho
inadiável. Mas eis também o clamor de toda multidão de filhos de Deus, que abrigas
caridosamente, Mãe Gentil, em teu solo fértil de oportunidades: Oh, Pátria Amacia!
Idolatrada! Salve-me! Salve também o meu irmão!
Mensagem psicografada no Instituto Meimei, em Belo Horizonte, durante a preparação do
Seminário Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, realizado pelo SER.Textos
Especiais
Emmanuel

O Brasil no conserto das nações


Mensagem de Emmanuel psicografada por Chico Xavier e publicada pela revista Reformador da
FEB em junho de 1979 (páginas 208 a 211).
Meus Amigos, que o Senhor dos Mundos vos encha o coração de muita paz. De novo regresso
a esta Casa, a fim de confabular convosco. Isso me é grato ao coração, de modo a examinarmos
a complexidade de nossos deveres nos setores das atividades que nos foram conferidas dentro
da vida.
Se falamos, da última vez, na dolorosa situação dos tempos modernos, ante as tenebrosas
perspectivas e os sinistros vaticínios que pesam sobre a Civilização Ocidental, falaremos hoje
da missão do Brasil, no concerto dos povos, como detentor de grandioso trabalho espiritual, no
quadro das nações. Como a individualidade humana, os países têm, igualmente, a sua missão
definida. A História da Civilização no-lo comprova.
Em cada período de tempo, determinadas nações do mundo são convocadas pelo Alto a
essa ou àquela missão especializada, na estrada intérmina dos destinos humanos.
Antigamente, era a Grécia organizando os símbolos democráticos com a sabedoria de
Atenas, depois a família romana desempenhando um papel relevante na formação do Estado,
com as profundas realizações políticas do Império. Em seguida, bastará uma digressão através
de todos os caminhos históricos da humanidade a fim de examinarmos as missões coletivas
dentro da comunidade internacional. Ainda há alguns séculos, víamos a Península Ibérica com
a tarefa singular dos descobrimentos, a França com o trabalho superior de definir os direitos do
homem, a Grã-Bretanha com a missão educativa de colonizar, levantando as almas pela
cultura. Sim, cada povo tem a sua hora gloriosa marcada no relógio do tempo.
Dentro do colosso americano, onde há quase cinco séculos formava o plano espiritual o
imenso organismo da liberdade, erguia-se o Brasil como o coração do mundo, pulsando pelo
mais sublime idealismo dentro da comunidade continental. Bastará um exame superficial na
sua história, a fim de que verifiquemos, em todas as circunstâncias, a excelência da missão do
Brasil, no quadro dos valores políticos e econômicos do mundo. Desde o descobrimento, a sua
existência vem sendo assinalada por fatos providenciais. É que, aqui dentro, na vastidão da
terra generosa, forma-se uma nova mentalidade para o mundo. Mentalidade dos bens fraternos
que sabem felicitar o coração de todas as criaturas. À sombra de seus vastos potenciais
econômicos, o homem do Brasil dilata as suas concepções da vida, no estuário da liberdade
bem compreendida e bem aplicada. Seus fatos históricos revestem-se de característicos quase
sobrenaturais. Enquanto o minúsculo Portugal se distraía com as suas fabulosas conquistas da
índia, o Brasil, quase milagrosamente, conservou a sua integridade territorial, apesar das forças
poderosas de outras nações do Velho Continente. Os princípios da força jamais conseguiram
desagregar os seus patrimônios extraordinários e, em cada acontecimento de sua vida nacional,
há um traço de luz fulgurante, a luz do Evangelho, compelindo-nos a refletir no que se refere
aos seus deveres profundos. Seus próprios políticos são sempre grandes missionários da ordem
social, que, através de todas as tormentas dos eventos humanos, sabem conservar as mãos no
leme da tranquilidade coletiva, organizando núcleos de paz e formando a confiança geral, no
melhor senso de administração e de ordem, imprescindível a todas as realizações.
Semelhantes conceitos chegam-nos à mente de desencarnado, satisfeito por cooperar, de
algum modo, convosco, em virtude das derradeiras arremetidas das organizações dogmáticas e
clericalistas, que, na atualidade, pretendem mobilizar os sindicatos médicos contra as florações
luminosas do Espiritismo no Brasil, desconhecendo o extraordinário fator de segurança e
iluminação interior, provindos de nossos postulados de consolação e de paz.
0 Brasil, antes de tudo, antes de qualquer campanha em favor da coletividade, nesse ou
naquele setor, necessita de organizar, não as lutas religiosas com pretensões ao Santo Ofício,
mas detonar as armas do alfabeto, criando em toda parte a base da cultura indispensável, a fim
de que seja cumprida, em toda a sua intensidade emocional, a grandiosa missão das almas que
vivem sob a luz do Cruzeiro. Basta o livro, a fim de que o país chegue a realizar a precisa
consciência real indispensável ao desdobramento de seus esforços, nos valores do mundo.
Acusa-se o Espiritismo quanto a todas as manifestações místicas das multidões
delinquentes, quando essas expressões doentias do organismo social são filhas de modalidades
afrocatólicas [especialmente a Kiumbanda (magia negra), que não respeita os princípios
fundamentais da Umbanda e da Quimbanda], que perseveram nas massas humildes, sequiosas
por compreenderem o sentido de seus trabalhos, na solução dos problemas profundos do
destino e do ser.
Espiritismo é paz e instrução, amor e luz moral, conduzindo a criatura humana ao
conhecimento dos enigmas de sua própria personalidade. As agremiações econômicas dos
credos organizados temem-lhe a influência salutar, no sentido de extirpar todas as úlceras da
ignorância do coração dos mais desfavorecidos da sorte. A necessidade do momento que passa
não é de lutardes com armas destruidoras de nossos esforços espirituais, mas sim a de
evangelizarmos o ambiente do país, em que se desdobram as atividades do profissionalismo
especializado, de modo a não perdermos as mais belas conquistas do coração na atualidade da
tecnocracia.
Que os aparelhos judiciários da nação operem no assunto, com o descortino espiritual de
quem vê mais claro e mais longe. O problema do mundo inteiro não é mais de ciência, mas de
consciência; e, para atingirmos esse elevado desiderato, necessitamos colocar, como nas leis
naturais, o coração generoso entre o estômago e o cérebro.
A missão do Brasil, repetimos, é das mais vastas na organização dos valores espirituais da
civilização do futuro. Para esse fim, os exércitos do Invisível se desdobram, em todas as
direções, a fim de se consolidarem os melhores conceitos morais em nossa evolução política,
para as realizações mais avançadas.
Em nosso esforço, não guardamos outro propósito além daquele de reviver o Evangelho do
divino Mestre, na sua pureza primitiva, porquanto deste coração ciclópico da América e do
mundo há de partir para o ambiente internacional um cântico de hosanas! Unamo-nos para o
advento desse dia novo. Esqueçamos os conciliábulos políticos que se lembram das
conferências de paz sobre os despojos sangrentos. Dentro de sua posição elevada, no capítulo
das edificações espirituais, o Brasil prestará ao mundo os mais altos serviços, buscando ensinar
com fraternidade, implantando a verdadeira concórdia e defendendo os seus nobres
patrimônios morais, guardando, sobre todas as coisas, o princípio inelutável do Direito e da
Justiça.
Vós outros, os que me ouvis, sem jamais haverdes frequentado os núcleos do Espiritismo,
não vos impressioneis com as minhas assertivas. No Espaço, uma das modernas tradições é a
de que, ultimamente, chegam às portas do Céu somente os ateus e materialistas generosos que
fazem o bem pelo bem, alheios às convenções e ao sentido das recompensas. Com essa
lembrança não desejo menosprezar os esforços da fé, mas quero lembrar a necessidade do
trabalho sincero, perseverante, decidido e leal nas mais belas expressões de solidariedade real e
de simplicidade na vida!
Se puderdes, ajudai-nos! Unamos os esforços para o mesmo fim, estendendo as mãos uns
aos outros para a mesma grandiosa tarefa. O homem vale pela sua expressão de sentimento e de
consciência e 1 dentro desses valores profundos que precisamos viver para a consecução das
finalidades mais elevadas e mais puras.
Que o divino Mestre vos conceda muita paz ao íntimo é a rogativa sincera do irmão e amigo
de sempre,
Emmanuel

Fragmentos Oportunos
Chico Xavier

I – Brasileiros e os irmãos de outras


terras
Esta é uma entrevista concedida por Chico Xavier ao programa No limiar do amanhã
(Especial de primeiro aniversário -1971). 0 material se encontra disponível, atualmente, na
página da Fundação Herculano Pires (wmi. fundacaoherculanopires.org.br) tendo sido os
áudios das entrevistas devidamente transcritos.
Segue, portanto, o trecho no qual Chico comenta a vivência espiritual dos brasileiros ea de
seus irmãos de outras terras.

Pergunta n° 7 - Papel do Brasil


Renato: Você acredita, Chico, na tese de Humberto de Campos sobre o papel do Brasil num
futuro próximo? Ele é realmente o coração do mundo e a pátria do Evangelho? Isso não é uma
espécie de ufanismo espírita? De messianismo do tipo judaico?
Chico Xavier: Muita gente interpreta esse livro como sendo realmente um volume de
legendas patrióticas sem finalidade dentro do esquema de progresso mundial. Mas nós estamos
convencidos de que ao Brasil foi assinalado um papel muito significativo na chamada "era do
espírito" a que se reportou o nosso caro professor Herculano Pires, porque em verdade o
cristianismo no Brasil é diferente dos processos de vida cristã nos outros países.
J. Herculano Pires: Chico um momentinho, um momentinho; perdoe, mas eu não quis
perder, parece que entra bem no fio da questão. Nas suas viagens pelos Estados Unidos, pela
Europa, nas observações que você teve oportunidade de fazer, você constatou que há realmente
diferença na nossa posição perante o cristianismo aqui no Brasil em relação aos outros povos?
Chico Xavier: Se eu tivesse a autoridade de uma pessoa que fosse representar algum valor
cultural fora do Brasil, a minha opinião teria realmente significado neste sentido. Eu fui como
uma pessoa de hábitos simples, com mente muito simplista para observar o que eu via,
principalmente do ponto de vista religioso. Do meu ponto de vista, tudo que eu vi nos países
que visitamos em 1965 e 1966 é diferente do que se verifica no Brasil. O amor fraterno, o
chamado calor humano que existe no Brasil, eu não vi em parte alguma nas cidades a que
estivemos presentes por alguns meses, conquanto tenhamos regressado ao Brasil com muita
admiração e com muito respeito pelos países visitados, especialmente pelos Estados Unidos da
América do Norte e, por que não dizer, pela Inglaterra também? Mas encontramos em todos os
países que visitamos -América do Norte, incluindo o México, a cidade Montreal no Canadá, a
Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Itália 1 encontramos comunidades cristãs absolutamente
diferentes, mas tão diferentes que nós não conseguimos entrosar o coração com espírito de fé
apresentado por aquelas comunidades, fossem elas dessa ou daquela confissão religiosa dentro
do Evangelho de Jesus Cristo. Encontramos a monumentalização da fé através de templos
majestosos, movimentos educacionais de expressão enorme no campo verbalístico, mas o calor
humano não encontramos. Parece que visitamos grandes museus honrados pela vida de hoje,
grandes legendas em matéria de conclamação ao espírito de Jesus, mas sem vida. E no Brasil,
por muito que se faça desvinculação no Brasil, por muito que se pegue hoje no Brasil a
desvinculação e a reeducação dos nossos impulsos de amor, o brasileiro de todas as condições
é portador de recursos afetivos imensos que parecem iluminados por uma inspiração de ordem
superior. Digo "parecem" falando fora da doutrina espírita. Mas com a minha convicção
espírita, eu digo que iluminados pelo espírito de Jesus através dos bons espíritos que estão a
postos ajudando os brasileiros a construir o grande celeiro espiritual do futuro.

Pergunta n° 8 - Outros países espíritas


Renato: Chico, diante desses países visitados, algum ou alguns apresentam condições ou
amadurecimento para aceitar o espiritismo nos moldes que é praticado no Brasil?
Chico Xavier: Do que pude perceber, encontrei na Inglaterra uma legião de criaturas,
principalmente no campo da cura espiritual, uma legião de criaturas consagradas ao bem do
próximo em regime de perfeita gratuidade; grandes grupos de médiuns perfeitamente
interessados em auxiliar os seus semelhantes sem nenhum desejo de remuneração. Encontrei
esse clima em grande parte da Inglaterra, mas nos outros países, incluindo a França, de onde
recebemos a bênção da doutrina espírita, por muito que veneremos os nossos Irmãos franceses
como nossos amigos, como nossos orientadores na formação da nossa pátria, conjugados ao
esforço de Portugal, nós não encontramos, de momento, um clima propício ao
desenvolvimento da doutrina espírita nos moldes brasileiros. Encontramos muita dificuldade
em pensar, em que nossos irmãos venham a pensar na legenda do dar sem interesse de receber.
Não digo propriamente dar, dar, dar sem nunca receber, mas esse dar sem intenção de receber,
eu não vi, a não ser em grandes grupos de nossos irmãos ingleses interessados principalmente
na solução do problema de auxílio aos doentes. Mas cremos que é possível que, num futuro
próximo, brasileiros possam sair de nossa pátria aos grupos para, vivendo de seu próprio
trabalho no exterior, venham a formar grupos capazes de mostrar que é possível fazer-se um
espiritismo tocado de alegria, tocado de felicidades, paz e muito amor, sem o trabalho
remunerado como sendo o trabalho castigo para enriquecer.

Pergunta n° 9 - Ingleses, franceses e


brasileiros
Renato: Nota-se que alguns grupos ingleses têm interesse no intercâmbio com o espiritismo
no Brasil. Na sua opinião, valeria à pena um esforço maior nosso no sentido de ampliar este
intercâmbio? Seria válido isso?
Chico Xavier: Cremos que os nossos irmãos ingleses têm muita coisa interessante para nos
dar, tanto quanto os brasileiros possuem também muita coisa valiosa para darem aos nossos
irmãos ingleses. De minha parte, se eu pudesse entrar no conhecimento da língua inglesa, se eu
pudesse estudar o inglês para comunicação fácil com os nossos amigos da Inglaterra e dos
Estados Unidos da América do Norte, incluindo também o Canadá, eu sentiria uma felicidade
enorme se eu pudesse fazer isso. Mas estando muito interessado com o serviço que os nossos
amigos espirituais me deram por misericórdia de Deus no Brasil, eu não tenho a menor ideia de
como é que eu posso realizar esse ideal. Se eu pudesse, iria à Inglaterra conhecer melhor a
língua inglesa, aperfeiçoar os conhecimentos que eu pudesse adquirir e entrar em contato maior
com nossos irmãos do Christian Spirit Center, em Yale College, nos Estados Unidos, para um
contato mais amplo entre nós. Mas vejo, a cada dia, que as minhas possibilidades pessoais são
cada vez mais reduzidas, mas é de desejar que outros irmãos possam fazer isso e que esse
intercâmbio seja ampliado tanto quanto possível. Vejo isso com tanta simpatia que o próprio
Mister Bar- banell, que é um dos nossos melhores amigos na Inglaterra, ele está sempre
interessado, nos últimos dois anos, em traduzir e publicar trechos de obras de Allan Kardec
para fixar os conhecimentos da codificação kardequiana entre os ingleses. Isso é muito
importante.
J. Herculano Pires: Acho interessante, Chico, lembrar também aqui neste assunto - nós
estamos aqui conversando e as ideias vão surgindo uma coisa muito curiosa que ainda parece
que não foi lembrada; nós encontramos no Brasil, nós estamos falando da posição do Brasil, no
Brasil como pais do futuro, encontramos na posição atual do Brasil essa coisa curiosa: é a
primeira grande nação do Ocidente que está se tornando basicamente reencarnacionista. A
ideia da reencarnação penetrou de tal maneira no Brasil por influência não só do espiritismo,
mas também das religiões africanas que foram trazidas aqui pelo contingente negreiro, de tal
maneira essa ideia está se disseminando que você dificilmente encontra hoje uma pessoa que,
se não aceita assim positivamente a ideia, pelo menos não a nega, não a combate e a admite.
Isso é muito curioso porque no Ocidente só houve uma nação reencarnacionista no passado,
que foi a França. Não propriamente a França, mas as Gálias antigas, envolvendo inclusive a
Irlanda, parte da Inglaterra e a França; as Gálias antigas eram reencarnacionistas, e como nós
sabemos pelo druidismo. E depois, com o desaparecimento da ideia de reencarnação no
Ocidente, a ideia voltou na França com o espiritismo, e de lá se projetou ao Brasil através do
espiritismo, e está se desenvolvendo de uma tal maneira que o Brasil será, dentro em breve, a
grande nação reencarnacionista do Ocidente. E curioso que o doutor lan Stevenson, na pesquisa
sobre a reencarnação, ele disse exatamente isso, que nós consideramos, por exemplo, a índia
como um grande maciço reencarnacionista no mundo; diz ele: é verdade, mas no Brasil eu
encontrei - diz ele lá no livro dele - uma compreensão mais precisa, mais natural da
reencarnação, por exemplo, a pesquisa da reencarnação no Brasil é mais fácil, porque não há
preconceitos contra a reencarnação aqui. Enquanto na índia, que é um país reencarnacionista,
existem preconceitos do tipo religioso. Por exemplo, quando a pessoa se lembra de uma
reencarnação passada, eles dizem que essa pessoa vai morrer logo. Então não querem divulgar
e não querem criar o problema de expectativa de morte em torno daquela pessoa, enquanto no
Brasil nós não temos isso. Quando a pessoa se lembra de uma encarnação passada, nós
achamos admirável e queremos aprofundar a questão.
Chico Xavier: Muito bem! Queremos aprofundar a questão e passamos a estudar. A esse
respeito, peço licença para aditar um apontamento de Emma- nuel, o que me interessou muito
nas conversações com ele em 1965. Perguntei a ele onde estavam aqueles companheiros de
Allan Kardec que vibravam com a doutrina espírita na França; onde estava aquele contingente
de almas heroicas, sublimes que aceitaram aquelas ideias e a divulgaram com tanto entusiasmo
pelo mundo inteiro - a maior parte na França, grande parte na Bélgica, por exemplo -, então ele
me disse que do último quartel do século XIX para cá, mais ou menos de quinze a vinte milhões
de espíritos da cultura francesa e, principalmente, os simpatizantes da obra de Allan Kardec, se
reencarnaram no Brasil para dar corpo às ideias da doutrina espírita e fixarem os valores da
reencarnação. Tanto é assim, diz ele, que nos últimos oitenta anos se desenvolveu entre nós tal
amor à cultura francesa, que muitos de nós, milhares de nós outros sabemos de ponta a ponta a
história da Revolução Francesa, mas nada conhecemos a respeito do Marques de Pombal, das
lutas de Napoleão, dos reis de Portugal, que foram os donos da nossa evolução primária. Nós
nos reportamos muito mais à França como terra mater de nossa espiritualidade do que Portugal,
até porque isso está no conteúdo psicológico de milhões e milhões de brasileiros que estão
fichados, por certidão de cartório, como brasileiros, mas psicologicamente são franceses.
J. Herculano Pires: Isso que você está nos dando aqui é uma revelação extraordinária, viu,
Chico? É extraordinária essa revelação de Emmanuel, porque é uma verdadeira revelação
espiritual; porque é uma coisa que não pode ser provada materialmente; a revelação vem do
lado de lá, mas é uma coisa que nós podemos sentir no Brasil; podemos sentir no
desenvolvimento do espiritismo no Brasil. Quer dizer que grandes trabalhadores do espiritismo
que estavam na França naquele tempo hoje estão aqui lutando pelas ideias espíritas.
Chico Xavier: Diz ele que isso é tão válido que nós devemos lembrar um fato curioso: é que
na Proclamação da República, quando as cidades brasileiras em grande número vacilavam com
respeito ao hino que se devia adotar para a nova pátria, centenas de cidades cantaram a
Marselhesa na Proclamação da República do Brasil.

II – O Brasil dos dias atuais


No programa Pinga-fogo da Rede Tupi de Televisão, exibido em 21 de Dezembro de 1971, Chico
Xavier foi submetido a um sem número de perguntas gabaritadas. Desse vasto repertório extraímos
aquelas que abordam, mais detidamente, aspectos pertinentes à temática "Brasil Contemporâneo".
Pergunta: Com relação à situação do Brasil, em termos gerais, em que a Espiritualidade
Maior pode instruir-nos a respeito?
Chico Xavier: Estamos, hoje, em meio a uma crise moral de grandes proporções, o que de
modo geral ampliaria os problemas cotidianos de uma nação qualquer, assim como se faz
conosco. A conscientização de nossa condição de corresponsáveis por tudo que se passa ao
nosso redor é o que deve prevalecer. Passamos por um momento de revisão de conceitos
morais e éticos e, nesse momento, o esforço de cada membro da nossa sociedade deve estar
orientado no sentido de melhor cumprir os deveres e obrigações de cidadão, com muita
disciplina, vontade de melhora geral, trabalho e muita, mas muita, oração. O pensamento
cristão deve prevalecer sempre.
Pergunta: Se os Poderes Executivo, Legislativo ejudiciário fossem dirigidos por pessoas
espíritas e evoluídas, teríamos um país melhor?
Chico Xavier: Não se trata de somente termos dirigentes espíritas; se tivéssemos dirigentes
mais evoluídos certamente já teríamos hoje um país melhor. Entretanto, não se pode esquecer
que uma nação não é formada apenas de dirigentes, existe em número maior o povo. E nosso
povo, como um todo, precisa realmente buscar sua evolução moral e intelectual a fim de
construir uma nação mais fraterna e cristã por excelência.
Pergunta: O Brasil continua sendo o "coração do mundo e pátria do Evangelho?" E
atualmente, no Brasil, existe algum espírito superior que possa levar o país ao desenvolvimento
global?
Chico Xavier: Essa denominação foi dada ao Brasil por Jesus e não lhe será tirada.
Espíritos de escol têm reencarnado em todas as partes, no seio de todos os povos, para o
progresso geral. O Brasil não está desprovido dessas almas. Cabe a cada um de nós o
aperfeiçoamento íntimo, que é a obrigação primeira de todo espírito encarnado e, juntos,
fazendo de nossos corações e lares recantos de paz, terão um país de grandes realizações.

III – Um retrato futurista do Brasil


Em 25 de maio de 1973, Chico Xavier concedeu entrevista coletiva à imprensa na ocasião em
que visitou a cidade paulista de Guarujá. Temos a seguir um trecho da matéria intitulada
"Com a palavra, Chico Xavier". A entrevista foi publicada no Jornal "A Tribuna" de Santos,
no dia 28 de maio de 1973.
Pergunta: O senhor poderia traçar um retrato futurista do Brasil?
Chico Xavier: "Admitimos que a civilização cristã do Brasil está destinada a representar um
papel dos mais importantes no futuro da Humanidade. Isso, porém, depende dos brasileiros
que, naturalmente, necessitam preservar o sentido religioso da civilização que recebemos das
nossas formações evangélicas. Cremos que deveríamos respeitar todos os templos onde o nome
e o ensinamento de Jesus estivessem acatados, porque nossa tradição histórica está subordinada
à concretização dos postulados evangélicos que Jesus nos trouxe. No Espiritismo estamos
dentro de explicações mais amplas. Nós somos obrigados a reconhecer que a formação cristã
do Brasil nos garante um futuro maravilhoso de bênçãos, mas dependendo do homem, porque o
homem é o colaborador de Deus. Deus é o Criador mas o homem é o cocriador."Fragmentos
Oportunos

IV-Poema do Castro Alves


Também no programa Pinga-Fogo da Rede Tupi de Televisão, Chico Xavier psicografou
singular poema assinado por Castro Alves. É oportuno notar que os versos seguintes são
marcados pela mesma perspectiva espiritual que norteou a composição de "Brasil, Coração do
Mundo, Pátria do Evangelho".
Brasil
Brasil, o Mundo a escutar-te, Pergunta hoje: "O que é?" Ah! Terra de minha vida, Responde às
Nações de pé! Das montanhas altaneiras, Dentro das próprias fronteiras, Alonga os braços -
Sansão! Sem prepotência ou vanglória, Grava no livro da História, Novo rumo à evolução!
Contempla a sombra da guerra, Dragão do lodo a rugir, Envenenando a Cultura, Ameaçando o
Porvir!...
Fala - assembleia de bravos - Aos milhões de homens escravos Sábios loucos prometheus... Do
píncaro a que te elevas Dissolve os grilhões das trevas Na fé que te induz a Deus!
Celeiro de Redenção
Brada - gigante das gentes - Proclama com destemor Que o Cristo aguarda na Terra Um novo
mundo de Amor! Ante a grandeza que estampas, Os mortos voltam das campas, Sublimando-te
a visão!
Ao progresso Fernão Dias!...
O Dever mostra Caxias, Deodoro a renovação!...
Dos sonhos do Tiradentes, Que se alteiam sempre mais, Fizeste Apóstolos, Gênios, Estadistas,
Generais...
De todos os teus recantos Despontam palmas de santos, Augusto pendões de heróis!... Astros
de brilhos tamanhos Andrada, Feijó, Paranhos,
Em teus céus brilham por soes!...
Desde o dia em que nasceste, Ao fórceps de Cabral O tempo se iluminou,
Na Bahia maternal!...
Hoje, que o mundo te espera Para as leis da Nova Era,
Por Brasília envolta em luz, Que em ti a vida se integre,
De Manaus a Porto Alegre,
No Espírito de Jesus!...
Fragmentos Oportunos
Ao resguardar o Direito, Mantendo a Justiça e o Bem, Luta e rasga o próprio peito, Mas não
desprezes ninguém!... Levanta o grande futuro, Ergue tranquilo e seguro,
A paz nobre e varonil!...
À humanidade que chora, Clamando: "Senhor... e agora?!" O Cristo aponta: Brasil!...Celeiro
de Redenção
Em visita à reunião pública do Centro Espírita Uberabense (Uberaba-MG),em 4 maio de 1945,
Chico Xavier psicografou os seguintes versos de Pedro D'AIcäntara.
Brasil, Pátria do Evangelho
Esta é a Pátria da Eterna Primavera, Áureo florão da América, celeiro De abastança sublime ao
mundo inteiro, Nação de que as nações vivem à espera.
Enquanto o antigo monstro dilacera O Velho Mundo em novo cativeiro, Brilha o pálio celeste
do Cruzeiro Na vanguarda de luz na Nova Era!
Brasileiros, vivamos a aliança Do trabalho, do bem e da esperança, No País da Bondade, almo
e fecundo!...
Exultai! Que o Brasil, desde o passado,
É a Pátria do Evangelho Restaurado E o Coração de Paz do Novo Mundo.

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