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BIBLIOTECA PIONEIRA DE CIBNCIAS SOCIAIS ROGER BASTIDE


1: Professor da Sorbonne
!
SOCIOLOGIA

Conselho Diretor:
Prof, RUY OoELHO
Prof, OCTAVIO IANNI
Prof. LUIZ PEREIRA
As Religiões Africanas
no Brasil
Conselho Orientador:
Contribuição a Uma Sociologia
Profs.: Nestor de Alencar - Vicente Unzer de Almeida - F. das Interpenetrações de Civilizações
Bastos de Ávila - Júlio Barbosa - Tocary Assis Bastos - Paula
Beiguelman - Cândido Procópio Ferreira de Camargo - Wilson
Cantoni - Fernando Henrique Cardoso - Orlando M. Carvalho -
Helena Maria Pereira de Carvalho - Orlando Teixeira da Costa PRIMEIRO VOLUME
- Levi Cruz - Mário Wagner Vieira da Cunha - A. Delorenzo
Neto - Florestan Fernandes - Pinto Ferreira - Marialice Men-
carini Foracchi - Frank Goldman - Augusto Guelli Netto - Jua-
rez Brandão Lopes - Sílvio Loreto - J. V. Freitas Marcondes -
Maria Olga Mattar - Laudelino T. Medeiros - Djacir Menezes Traduçá<> de
- Douglas Teixeira Monteiro - Evaristo de Moraes Filho -
Aldemar Moreira - Edmundo Acácio Moreira - Renato Jardim MARIA ELOISA CAPELLATO
Moreira - Oracy Nogueira - L. A. Costa Pinto - Maria Isaura e
Pereira de Queiroz - João Dias Ramalho - Alberto Guerreiro OLfVIA KRXHENBüHL
Ramos - José Arthur Rios - Aziz Simão - Nelson Werneck
Sodré - Henrique Stodieck - Oswaldo E. Xidieh.

LIVRARIA PIONEIRA EDITORA rJ j


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO í Qg 'f
SAO PAULO (1 {.o
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Título do original francês:
LES RELIGIONS AFRICAINES AU BRÉSIL
Vers une sociologie des interpénétrations de civilisations

t ÍNDICE
Copyright 1
PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE
Introdução, 9
1960

PRIMEIRA PARTE

A DUPLA HERANÇA

Capa de 1. A Influência de Portugal e da África na América, 47


MÁRIO TABARIM
2. Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras, 85
3. O Protesto do Escravo e a Religião, 113
4. O Elemento Religioso da Luta Racial, 141
5. Os Dois Catolicismos, 157
- - - - - - - - - - - - l·---·
MUSE~ NACIONAL 6. As Sobrevivências Religiosas Africanas, 181
OEP. OE ANTROPOLOGIA . 7. O Islã Negro no Brasil, 203
BIBLIOTECA 1
~Jl laG.: a5> j 9 r
CONCLUSÕES

1. Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais, 219

1971

Todos os direitos reservados por


ENIO MATHEUS GUAZZELLI & CIA. LTDA.
Rua 15 ·de Novembro, 228 - 4.0 andar, sala 412
Telefone: 33-5421 - São Paulo

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
'~I'

Introdução

m lado, a expressão
mesma miséria.
ela desgraça. (l)

Ai;sim, os valôres religiosos, na Sociologia nascente, eram


ligados às ~truturas sociais ou, mais exatamente, à condição dos
homens em sociedade. Mas, esta ligação que constitui o objeto
essencial dêste trabalho, era concebida em têrmos bem mais
particulares. Uma vez que a vida social é encarada, antes de
tudo comó atividade prática, ela se confunde com as fôrças da
produção. É certo que o joveµi Marx nos seus primeiros escri-
tos considerava a produção em seu sentido mais amplo -
produção de idéias do mesmo modo que produção material -
aparecendo-lhe já a religião sob a forma de uma ideologia. A
medida que restringe seu conceito de produção unicamente ao
setor da produção material, êsse caráter de ideologia se acen-
tua. ( 2 ) OS marxistas têm insistido em considerar a religião o
ópio do povo, a função das igrejas, debilitar a revolta operária
1
> e ligar as classes exploradas à opressão das classes dominantes.
1 Não é êste, porém, o aspecto do marxismo que nos interessa aqui.
É impossível, nos quadros da teoria marxista, fazer da religião
uma simples ideologia inventada pelos senhores para melhor
dominar seus escravos. A religião não é falsa por ser uma visão
unilateral da realidade, a expressão dos interesses económicos
da classe dominante. Este aspecto é secundário, uma reação
ideológica sôbre a infra-estrutura social, sôbre a perpetuação do
regime de classes. É um aspecto importante, sem dúvida, pois
Marx em seus Escritos Políticos se preocupa menos,com a ação
causal das técnicas de produção do que com a relação dialética
oposta e, nos Escritos, são idéias "falsas" aquelas que não
exprimem as realidades econômicas do momento. Mostram-se as.
mais eficazes no curso dos acontecimentos históricos, .uma vez.
~1:(1) Karl MARX, "Contribution à la Critique de la PhUosophie du Droit.
de Hegel", Oeuvres Phtlosophiques, t. I, ed. Costes, Qp, 94.
(2) Karl MARX, Le Capitaz, t. m, p. 9n.

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que é por meio delas que a classe dirigente pode manter um Não deveremos, nas páginas subseqüentes, negli~en~i~r esta \
poder condenado pelos fatos. ação comum. Mas, o marxismo, passando do soc10log1co ao 1
Ainda assim, não é senão um aspecto secundário. Se a psicológico, voltando à explicação da religião pelo mêd~, não
religião pode ser utilizada por uma classe para melhor assegurar faz mais que insistir numa ~olução ultr.al?assada. Chega. a con-
seu domínio, por que irá ela abandoná-Ia? A religião nasceu clusão de que não há sentimentos rehg1osos, mas sentimentos
da "miséria do homem". Mas como? Para nós, aí está o essen- normais fàcilmente identificáveis, que dizem respeito à cons-
cial. Sem dúvida, encontramos nos marxistas tentativas mais ciência 'comum e da qual a religião é somente um efeito ou
ou menos frutíferas de relacionar a religião às técnicas de pro- objeto.(4) Mesmo onde ~ ~eligião surge com.o algo aterra~c:r,
dução ou, de modo mais geral, às conjunturas econômicas, espe- onde se exprime pela angustia, ela parece surgir de um dom1mo
cialmente tratando-se do cristianismo primitivo ou do totemismo. particular e fazer-se absoluta não apenas em face do fracasso do
Mas, tanto um como outro não são mais que soluções para trabalho humano mas, em tôda part~
abrandar um sentimento poderoso, o mêdo. No fundo, quando
onde a vida atinge seus pontos culminan,tes, no nascime~t~! ~a
se analisam os principais textos marxistas sôbre a ireligião, per- morte, no coito, onde o homem se debruça a margem da ex1stencia
cebe-se que, sob uma roupagem econômica nova, volta-se à e é tomado de vertigem. ( 5)
1 velha idéia dos antigos: Primus in orbe, Deos fecit temor. O que

: a religião exprime não são as relações de produção entre os Entretanto, a presença· de fôrças religiosas não é sempre 1
/ homens mas, sim, o fato de que essas relações são contraditórias, uma presença de mêdo, mas também de fôrça, de paz ou de
i
o que não é geralmente reconhecido. Foi Engels quem cuidou ~egx:rn ... E dizendo isso, não aludimos Un.icamente ao cristianis-
1
dêste aspecto, mostrando que a religião primitiva traduz a an- j mo atual mas também às formas primitivas da religião. Dur-
gústia do homem em face das fôrças misteriosas de uma nature- kheim posteriormente, insistirá sôbre êste aspecto da questão.
za que êle não pode domesticar; tomam elas, por isto, o aspecto r Recus~o-nos neste trabalho a pesquisar as origens da religião,
de fôrças supraterrenas, enquanto a religião contemporânea ex- o que nos faria passar da Sociologia à Filosofia (mesmo que seja
prime a angústia do homem em face de fôrças sociais, como as Filosofia Sociológica, não deixa de ser Filosofia). Propomo-nos,:
leis do mercado, as crises econômicas, as bancarrotas ou o de- sim a estudar num caso específico, os diversos tipos de relaçõe~
semprêgo, fôrças sociais que o proletário não pode prever o qu; podem s~ estabelecer entre as estruturas sociais CU:c~usiv
que sôbre êle se abatem de maneira inesperada e brutal, com suas condições econômicas) e o mundo dos valôres rehg1osos,
um caráter simultâneo de estranheza e de necessida~, tomando- no seio do fenômeno social total. Em certos casos, veremos
-se, também, fôrças sobrenaturais e supra-sociais. Deus, assim, que essas relações podem tomar o sentido de ideologias ou,
· não é mais que a imagem do capitalismo irracional. Daí, ser ainda, se misturarem e se tingirem de ideologias, não na acepção
' psicológica e sociológica a explicação definitiva da religião: lata do têrmo, de produção intelectual, de "obras" da consciên-
1
sociológica no sentido de que nasce do esfôrço fracassado do cia coletiva, mas no sentido mais tradicional de "deformação
· trabalho humano em face da natureza ou das contradições de inconsciente" ou de fantas!Jlagorias atuando sôbre as infra-estru-
um regime; e psicológica no sentido de que êsse revés ou essas turas econômicas.(6) Queremos analisar como e por que, em que
contradições agem excitando o eterno mêdo pânico ante o irra- circunstâncias opera esta distorção do "sagrado", nunca coloca-
cional, o incontrolável e o selvagem. f do como um problema a ser resolvido em têrmos de "ideologia",
Piaget louva Marx por haver, ao ter descoberto a relativi- mas ,tóns~o como uma parcela da realidade social global.
dade das superestruturas em relação às infra-estruturas, apli- (J)urkh~~ retoma o problema pôsto por Karl Marx dan-
cado conceitos ideológicos às explicações concretas nas do-lhé~~pofém, base mais ampla, suscetível, por isso, de conse-
(4) Lucien HENRY, Les Origines de la Beltgion, p, 21.
coisas executadas em comum para assegurar a vida do grupo social (5} Van der LEEUW, L'Homme Primitif et la Beltgton, p. 1~9.
em função de um determinado meio material que se prolonga em (6) Georges GURVITCH, La Vocatton Actuel!e de la Soctologie, pp, 587-88
representações coletivas. ( s) (i) e 601 (sôbre a distinção entre obras e ideologias): Détermintsmes soctaux
et Liberté Humaine, nota da p. 136 (sôbre os diversos sentidos da palavra
(3) Jean PIAGET, L'1:ptstémologte Génétique, t. m, cap. XII. ideologia para Marx).

10 11
. guir mais fàcilmente nossa adesão. Recusa-se, primeiro em sua Ela é, ao mesmo tempo, o produto da comunhão e a expressão
definição de religião e depois em sua crítica ao marxismo, a própria em que se manifesta êsse sentimento de comunhão, a
identificar o sentimento religioso com o de mêdo. O homem pri- saber, a distjnção entre dois mundos: o "profano" da consciên-
mitivo, longe de se sentir esmagado por fôrças contra as quais cia individual e o "sagrado" da consciência coletiva, exterior e
nada pode, superior às consciências individuais. É inútil retomar aqui mais
uma vez a crítica da tese durkheimiana já várias vêzes elaborada,
"atribui-se sôbre as coisas um poder que não possui", e é esta e bem elaborada. ( 11 ) O que nos impressiona é a descontinuidade
ilusão que "o impede de se sentir por elas dominado". (7) entre os fatos citados por Durkheim e as conclusões a que chega.
Em segundo lugair, recusa-se a fazer da religião um sim- O que ressalta dos fatos é o contrôle do grupo sôbre as mani-
ples epifenômeno, uma pura fantasmagoria: festações da mística,(12) é a ligação efetiva das normas de paren-
~s~c;> com as da vida cerim~~~.( 13) é, em uma palavra, a impos-
É inadmissível que os sistemas de idéias, como as religiões, sibilidade de separar a rehgiao do fenômeno social total não
que tiveram lugar tão considerável na História, e nos quais os povos que esta religião seja o produto da !l'eunião dos homens 'e da
de tôdas as épocas buscam a energia que lhes é necessária para formação, no seio do povo, de uma consciência coletiva. A
viver, sejam tão-somente tecidos de ilusões. (8)
conclusão ultrapassa os múltiplos exemplos coligidos por Dur-
.t- kheim em favor de sua tese, porquanto êsses exemplos mostram
Em suma, em Formes Élémentaires de la Vie Religieuse, não
é a uma infra-estrutura econômica que a religião está ligada, t\ que a religião está sempre presente no social e não que o social
mas à totalidade da estrutura social e sua organização morfoló- cria a religião. Se Formes Élémentaires teve o mérito, ao des-
gica. Mas, da mesma forma que em Marx, embora. sob forma tacar o símbolo da imagem, de eliminar certas insuficiências do
mais requintada e complexa, o mesmo problema causal preocupa f marxismo, explicando, por outro lado, em última análise, êsses
Durkheim: 't símbolos pelo estado da sociedade em conjunto, ela não nos
deixou sair de uma investigação causal que já recusáramos aceitar
As concepções religiosas, longe de produzirem o meio social,
1 por filosófica. ( 14)
são produtos dêle, e se, uma vez formadas, reagem sôbre as causas
que as engendraram, esta reação nunca será muito radical. (9) 1 Por sua v~z, a Sociologia Religiosa alemã,1como a francesa,
pode ser considerada uma tentativa de superar o que o mar-
Sendo essa citação tomada ao Suicide, é o caso de pergun- i' xismo, em sua forma clássica, tinha de demasiado estll'eito. E
tarmos se do Suicide a Formes Élémentaires, o pensamento de -~ começa com Cassirer, opondo à dialética histórica o que se
Durkheim não se modificou mais ou menos profundamente. Ao poderia chamar de eternidade psicológica do espírito humano.
distinguir os símbolos religiosos das imagens, êste pensamento De fato, para êle, não é da sociedade que é preciso partir, mas
não só se afasta da religião definida como ideologia, mas ainda de categorias religiosas consideradas no sentido do a priori kan-
da religião como simples representação, que era a idéia de tiano e ver como essas categorias servem para unificar tanto a
Suicide. A religião toma-se, pois, a expressão da sociedade, de sociedade quanto o mundo. Sem dúvida, não se pode mais
sua estrutura e de suas tendências, da reunião ou da dispersão falar de uma causalidade temporal, a religião não senda a, Pausa
dos homens. ( 1º) Por certo, o equívoco não está inteiramente da sociedade uma vez que esta é cronologicamente a.utedor
resolvido. Durkheim parece hesitar sempre entre a religião como àquela, porque constitui sua condição lógica. A sociedade não
"produto" e como "expressão". Os dois temas acham-se intima- p~d~ se constituir senão através das categorias do pensamento
mente ligados e toma-se difícil separá-los. . mistico, do mesmo modo que a natureza em Kant se constitui
Se essa separação é difícil é porque todo homem é um ani- (11) De Ga.ston RICHARD, L' Athéisme Dogmatique en SocioZogie BeZi-
mal social e a religião se reduz à consciência da vida coletiva. gleuse, Cahiers de la "Revue d'Histoire ·et de la Ph1loaoph1e Rel1g1euse"
Istra, Estrasburgo, 1923, 48 pp., a G. GURVITCH, "Le Problême de la Cons~
(7) É.DURKHEIM, Formes ÉZémentaires de Za Vie ReZigieuse, pp. 121-22. cience Collective dana ia· Soc1olog1e", de Durkheim, Vocation ActueZZe, pp.
(8) Ià., Ibià., p, 98. . 351-408, e PARSONS, The Structure o/ Social Action, por exemplo, p, 425.
(12) Por exemplo, Formes ÉZémentaires, pp. 565-67.
(9) É.DURKHEIM, Le Suicide, p. 245. (13) Por exemplo, Formes ÉZémentaires, p, 359.
(10) Talcott PARSONS, ÉZéments pour une SocioZogie ãe Z'Action, pp. (14) Claude Lll:VI-STRAUSS, SocioZogie au XXe StecZe, II, p. 527.
28-31, introdução de F. BOURRICAUD.

12 13

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pelas formas da sensibilidade ou das categorias do entendimen- , l não se contenta em estabelecer correlações vanaveis entre os
to.(15) Pode-se ver também em Max Weber, antes de tudo, um fatos econômicos e os místicos; êle quer compreender o signi-
.adversário de Marx, apresentando, contra êle, em seu célebre ficado profundo dessas correlações, o sentido do comportamentQ
ensaio sôbre as origens do capitalismo industrial, a ação dos humano. Mas aí há um perigo e Weber não o soube evitar: o
fatôres ideológicos sôbre os econômicos. do subjetivismo. Desde que esta compreensão é feita pelo obser-
Contudo, a Sociologia Religiosa de Max Weber não se re- .vador, quer dizer, pelo sociólogo que interpreta as correlações,
duz a essa obra e seria uma caricatura considerá-lo um puro não se deve esquecer que êle participa de uma sociedade, que
idealista. Inicialmente, no ensaio a que aludimos, o protestan- é moldado por uma dada cultura, que sua psicologia, em con-
tismo não aparece como a causa absoluta do capitalismo total, seqüência, está condicionada por fatôres sociais. Da mesma
mas como uma entre muitas causas e sômente de certos aspec- forma, os "significados" dos comportamentos que êle analisa
tos do capitalismo. Weber procura, sobretudo entre o religioso 1
j.
dependem de fenômenos sociais totais em que êsses compor-
e,9 econômico, um elemento de união que possa nos fazer com- tamentos vêm à luz. Tornaremos a encontrar êsse problema
preender a ação eficaz desta causalidade, e êsse elemento é a da compreensão quando passarmos da Sociologia à Etnologia.
ética social do calvinismo. A religião não atua diretamente A esta altura apenas diremos, para terminar nossa crítica, que
sôbre a economia, mas orienta sempre o comportamento moral não podemos aceitar que o subjetivismo weberiano penetre em
dos indivíduos em relação uns aos outros e são, única e exclusi- nosso trabalho.
vamente, êsses comportamentos morais que podem modificar as Se Max Weber está mais próximo da posição marxista do
relações econômicas.( 16 ) Enfim, se Max Weber em Gesammelte problema - relações entre os fatos econômicos e os religiosos -
Aufsiitze zur Religionsoziologie insiste sôbre a ação causal da Max Scheler parece mais próximo da posição durkheimiana
religião, em Wirtschaft und Gesellschaft é a ação contrária que, :.._ relações da religião com a estrutura social e não unicamente
se não domina a ação causal da Economia, pelo menos domina ·~ com a econômica. :i;:ste último, de fato, distingue uma Socio-
a das classes ou dos grupos de interêsse. De fato, cada classe logia cultural e uma Sociologia real, o estudo da religião per-
ou grupo social, seja o campesinato, a aristocracia, a burguesia ,/ tencendo à primeira e o de grupos e instituições à segunda; ora,
comercial, os artesãos ou os proletários, tem sua ll'eligião pró- se os fatôres econômicos aparecem na Sociologia real, é em
pria, que é a expressão de sua situação no interior da sociedade, terceiro lugar, depois dos raciais e políticos, cronolôgicamente
de sua posição de domínio ou de dependência e o mais comu- anteriores do ponto de vista da sua preponderância - o que
mente de sua mudança de situação - de sua ascensão ou de faz com que a questão colocada pelo marxismo tenha mais sig-
sua decadência.(17) nificação para as religiões atuais que para as primitivas. Isto
O que opõe Max Weber ao marxismo não é ter invertido dito, quais são as relações causais entre essas duas sociologias?
o encadeamento materialista de causas e efeitos. Weber está Há, de pronto, duas ordens de causalidades independentes: o
bastante ciente das diferenças, da complexidade do real e da espírito determina os conteúdos ou, como disse Scheler, "o modo
variação das seqüências causais, para não reconhecer a existên- de ser dos conteúdos da cultura"; paralelamente, as necessidades
cia de um fator econômico na Sociologia Religiosa, da mesma humanas determinam a formação e a organização dos grupos
forma que Marx estava interessado na reação das superestrutu- ou das instituições. Entretanto, ao lado desta dupla causalidade
ras sôbre as infra-estruturas. A verdadeira oposição, a meu há ligações entre o mundo da cultura e o da realidade social:
ver, reside na substituição de uma Sociologia Positiva por uma mas essas, por vez, complicam-se de outra forma. O conteúdo
Sociologia Compreensiva. Marx, como Durkheim, estuda os fa- cultural exerce uma influência manifesta sôbre as formas de or-
tos sociais de fora, ou se se deseja, como "coisas", ao menos ganização; por exemplo, o conteúdo da fé, protestante ou católica,
como "ações'', suscetíveis de uma explicação objetiva. Weber
influi na organização adotada pelas respectivas igrejas. Contudo,
(15) CASSIRER, Philosophie der Symbolischen Formen, II Teil: Das o espírito não tem "eficiência causal", seja êle individual ou
Mythisl!he Denken, Berlim, 1924.
(16) Raymond ARON, La Sociolog!e Allemande contemporaine, pp. 137-38. coletivo, ne~ ação dinâmica sôbre o real; não se pode deduzir
(17) Max WEBER, Wirtscha/t unã Gesellscha/t, t. m (categorias, classes
e religiões) • do conteúdo ou dos valôres religiosos as relações reais dos

14 15
homens em sociedade. Na [ecíproca, as religiões são condi- Parece que a Sociologia contemporânea tende a substituir
cionadas sociolõgicamente pelas formas de relações existentes as antigas ordens de seqüências, isoladas, desligadas da realida-
entre os homens e pelas de seus grupos, mas essas condições de total, por justificativas em têrmos de situações, de configura-
sociológicas não são mais que uma atividade de seleção. Os ções ou de integrações. E é. assim que ~ ~elho prnblema das. rela-
interêsses sociais dominantes, primeiro os biológicos, depois os ções entre os fatos econômicos e os rehg1osos, do qual partllllos,
políticos e, por fim, os econômicos, podem excluir certas realiza- é substituído pelo das relações entre os diversos aspectos de
ções possíveis da lógica do espírito, ou favorecê-las, ou selecioná- uma mesma civilização. O causal desaparece ante o situacional.
-las, mas a história real, a das instituições ou das situações so- Em certa medida, êsse movimento segue as transformações
ciais, é "indiferente" em relação à história da vida espiritual. O da Lógica clássica que abandona a concepção aristotélica de
determinismo sangüíneo, por exemplo, favorecerá a religião fami- classes ou de substâncias para substituí-la por uma Lógica das
liar ou tribal que o determinismo político elimina:rá em seguida, Relações ou pela Matemática dos conjuntos. Vemos, de fato, o
mas o conteúdo das religiões tribais ou políticas depende da pura mesmo movimento operar primeiro na Física, depois na Psico-
lógica causal do espírito individual ou coletivo.(18 ) logia (com a teoria do campo de Kurt Lewin) e, por fim, na S"'o-
Max Scheler, é verdade, estabelece um outro tipo de ligação ciologia. Mas, se a nova lógica, que explica as partes pelo todo
entre a Sociologia da cultura e a da realidade. As necessidades e não o aparecimento de um fenômeno pela ação eficiente de
humanas, os impulsos vitais que estão na origem dos grupos ou um outro, criou um clima favorável a uma teoria do campo
das instituições podem superar a barreira que separa os dois social, parece-nos que o fator determinante das novas concep-
mundos a fim de penetrar no nível das idéias e dos valôres. Mas, ções sociológicas deve ser procurado na própria evolução da
ne~se caso, elas ou êles sofrem logo uma metamorfose, pois que
Etnologia, no comêço do século XX.
são prontamente "sublimados" pelo espírito. Em suma, o autor A grande dificuldade da Etnologia está na compreensão
da Sociologia do Saber compreendeu a dificuldade do proble- do "outro". O evolucionismo mascarou-a por um momento,
ma das relações entre o que Marx chamou de "infra-estruturas" mas, com Lévy-Bruhl, o reconhecimento da riqueza e da relati-
e de "superestruturas" quando são postas em têrmos de !~qüên­ vidade das civilizações fê-la reaparecer. As refações entre os
cias causais. Como êle queria a todo custo manter essas se- homens não são da mesma natureza que as relações entre as
qüências, não encontrou outro recurso que o du,alismo mais coisas; elas t~m um significado, colocam o problema da com-
intransigente, separando a lógica do espírito e a dó ..real. Em preensão; mas, temos o direito de interpretá-las através dos mol-
vão tentou investigar ainda assim ligações, condicionamentos des de nosso próprio pensamento, talhado pela nossa sociedade
recíprocos, deparando com a mesma dificuldade que Descartes, ou nosso sistema de valôres sem cair no etnocentrismo? Pode-
o qual, separando tão radicalmente a alma do corpo, não conse- mos nos comunicar com o "outro" além das barreiras que as
guia depois explicar sua união. diferenças culturais erguem? Lévy-Bruhl compreendeu a difi-
Nem tudo deve ser rejeitado, cremos, nesta Sociologia Re- culdade desta questão e procurou durante tôda a sua vida um
ligiosa que acabamos de resumir; mas, não se torna válida método que permitisse enquadrar-nos nas atitudes mentais dos
somente quando tenta escapar ainda que desajeitadamente de primitivos, ao invés de lhes atribuirmos as nossas.(19 ) Mas esta
uma explicação puramente causal? As dificuldades que encontra longa busca resultou na proclamação da "opacidade" do pensa-
não provê)ll sempre do predomínio que dá à causalidade sôbre mento dos "primitivos" em relação ao do etnógrafo que procura
outras formas de explicação? Somos assim levados a examinar compreendê-lo. No fim de sua vida, êste método reduzia-se
uma outra Sociologia Religiosa, radicalmente diversa da prece- ao conselho dado ao pesquisador para não se abandonar à ilusão
dente. de esclarecer o que, por natureza, nos é obscuro.( 20 ) Não era isso
* uma espécie de reconhecimento da impossibilidade da transfe-
* * (19) O caráter da teoria de Lll:VY-BRURL, vista como uma "sociologia
compreensiva", fol evidenciado por Florestan FERNANDES, "Lévy~Bruhl e o
(18) Max SCHELER, Sociologia ãel Saber, trad. esp., particularmente Esplrito Cienti!ico", .Revista ãe Antropologia, S. Paulo, Brasil, II. 2, 1954,
pp. 3-46. pp. 121-42.
(20} Lucien Lt:VY-BRURL, Les Carnets, p. 214.

16 17
rência da Sociologia compreensiva a um mundo de homens per- da compreensão não está, portanto, eliminado, está unicamente,
tencentes a outras civilizações que não a ocidental? Em todo párece-nos, rejeitado. Pode-se-lhe dar diversas soluções. A
caso, é assim que a Etnologia contemporânea em geral conce?eu primeira, que é a de Kardiner, nos reconduz uma vez mais ao psi-
a tentativa de Lévy-Brubl, e ela retomará, abandonando .t?da cológico: é a "personalidade básica" que dá significação às insti-
interpretação compreensiva, um método essencialmente pos1t1vo. fiíições sociais; nesta perspectiva, o problema das relações entre
o estudo das estruturas daqui por diante leva vantagem ª'Economia e a Religião, ou entre as estruturas sociais e as
sôbre o das representações coletivas. E a religião será inter- representações coletivas não se coloca mais no nível do socioló-
pretada como parte desta estrutura social, muito mais do que gico, nas ações e reações das instituições entre si, mas na cons-
um conjunto de representações "místicas". Desta i;n~neira, o ciência dos indivíduos que as unem, as integram, nas suas har-
comportamento dos indivíduos e dos grupos não é mais mterpre- monias ou com suas tensões internas e externas.( 24 ) Mas a difi-
tado de dentro mediante um esfôrço de "expatriação" do etnólo- culdade que Lévy-Bruhl tão bem trouxera à luz será novamente
go, mas de fora,' como "coisas", ou melho~, ~orno " - "con1u-
açoes . encontrada nesse caso: como o etnólogo terá certeza de pene-
gadas, complementares, recípro~as, suscetive1s. de um tratamento trar êsse significado? Para não interpretar somente, ou para
científico objetivo. Desta maneira, a Etnologia procura escapar verificar suas hipóteses, êle poderá muito bem valer-se de testes
ao risco do etnocentrismo e da valorização, por uma evasão da como o de Rorschach( 25 ) mas, para quê? O significado das res-
vida vivida na imobilidade quase inorgânica das estruturas, das postas não é válido universalmente, visto que tem tantos senti-
ordens ou das organizações. Há, fora disto, fases nesta imobili- dos quanto há civilizações. A segunda solução consistirá em
zação, conforme se dê ao têrmo estrutura social um sentido con- não ver os mitos, as representações coletivas, as crenças religio-
creto visível, considerando o dinamismo das sociedades,( 21 ) ou sas que como justificações ou racionalizações, nos sentidos mar-
ainda,' os fenômenos de "desvios" ou d e "alternativas
. d e compor- . xista e freudiano dos têrmos, de realidades ocultas e mais essen-
tamento" que permitem aos modelos mais rígidos se adaptarem ciais. Quando Lévi-Strauss, por exemplo, critica Marcel Mauss
aos acasos da vida,( 22 ) ou, ao contrário, o sentido de regras abs- por haver desejado estabelecer as regras da troca, dos presentes
tratas de modelos normativos, variáveis, sem dúvida, conforme e contrapresentes,. das prestações e contra prestações na noção
as ci~ilizações, mas se concentrando em um determinado. núme- explicativa do hau, quando declara contra êle que o hau não é
ro de tipos formais, em ligação coi;n. a estrut_ura ~ent~l ~cor_is­ mais que o juízo que os indígenas fazem de seus próprios mo-
ciente, que se atinge por uma espec1e de ps1canahse mstituc10- delos culturais e que esta teoria não tem mais valor que aquêle
nal. (2ª) que nós mesmos podemos fazer. Por conseguinte, faz dêle um
O problema da compreensão não está, porém, completa- simples epifenômeno, dissimulando estruturas inconscientes do
mente afastado, porque a ligação dos homens ou dos grupos, espírito, ainda por descobrir, dando-nos um bom exemplo desta
dos sexos ou dos grupos de idade é definida por um sistema de segunda solução. ( 26 ) A atitude de Lévi-Strauss. parece-nos ser a
símbolos inclusive precisamente os símbolos religiosos, que l~e única verdadeiramente positiva em Etnologia, mas podemos nos
dá um sentido. Como disse Radcliffe-Brown, a ordem social contentar com isso? Os estudos de M. Granet sôbre a China
depende, em última ·análise, da existência, nos espíritos de s~us mostram-nos, ao contrário, que as crenças religiosas excedem
membros, d~ sentimentos que controlem os comportamentos in- as leis da troca e da solidariedade, as regras fundamentais da
dividuais ou grupais, uns em relação aos outros. A estrutura complementariedade, a lógica das relações, para explicar a com-
funciona segundo modelos, valôres, idéias ou ideais que têm um plexidade do funcionamento de modelos estruturais. A religião
significado para os seus elementos constituintes. O problema tem menos por função explicar essas regras da troca, essas rela-
(21) com RADCL!FFE-BROWN, por exemplo, Structure anã Function ções entre grupos, entre os sexos ou entre grupos de idade, que
in Prtmttive Society.
(22) com Raymond FIRTH, por exemplo, "Social Organlzat!on and
atenuar os efeitos perigosos das aproximações, e é menos uma
Social Ohange", J. o/ B. J. o/ G. B. anà r., 84-1954. (24) cr. Mikel DUFRENNE, La Personnalité de Base.
(23) com Claude Ll!:VI-STRAUSS, por exemplo, Les Structures ~Zémen­ (25) Abram KARDINER, The Psychological Frontiers ot Society, pp.
taires de la Parenté, cf. também do mesmo autor: Tristes Tropiques, cap. 240-51.
xxvm, onde o problema da pesquisa de modelos está voluntàriamente (26) Claude Ll!:VI-STRAUSS, Prefácio do livro de M. MAUSS, Sociologie
ligado com o ultrapassar do etnocentrismo. et Anthropologie, pp. XXXVIII-XL.

·1s 19
ideologia do equilíbrio que uma solução para suas rupturas.(27)
a estrutura do conjunto. Esse processo se fêz em duas etapas.
..... . A primeira foi a aplicação de métodos descritivos da Antropo-
Ademais, a estrutura social inclui os mortos, os ancestrais deifi- : ,. logia Cultural ao estudo da sociedade contemporânea dita "ci-
cados, os totens e os deuses da mesma forma que os vivos, com ,. · ·:~:yilizada" (estudo de comunidade) e a segunda foi a aceitação
seus status e papéis. Os indivíduos com êles não só mantêm
relações de troca, mas "participam" dêles, identificam-se com ' .,,w\*~líit1s:;i:·í?··~.<'- estruturalismo e do funcionalismo pela Sociologia norte-ame-
···.·:;J;;;~;;~;:~f ,1;.;·:ncana.
êles, como bem mostra M. Leenhardt em seus estudos sôbre os L A Sociologia norte-americana em seus primórdios sofreu
Canaques, a tal ponto que o etnólogo não pode fazer separada- .·.· :.t;: grande influência do formalismo alemão, limitando-se a reduzir
mente o estudo econômico da religião e da categoria do sagra- o social a U!Jla nebulosa de relações interindividuais ou inter-
do, se desejar compreender a sociedade que analisa. Uma civili- grupais. O que a Sociologia francesa unira· tão estreitamente o
zação não toma seu verdadeiro sentido se não a apreendermos estudo das instituições ou das organizações sociais, o estddo
através de sua visão mística do mundo, que mais que sua ex- das representações coletivas e dos valôres, o estudo da ação
pressão ou justificação, constitui verdadeiramente seu suporte.(2 ~) da sociedade sôbre o psiquismo individual foi dividido em três
Não tem, por conseguinte, a Etnologia recursos para com-
preender, para apreender o "diferente"? É certo que não, já ciências diferentes, a Sociologia propriamente dita, a Antropo-
que êsse diferente é de ordem cultural, não impedindo a uni- logia Cultural e a Psicologia Social. Entretanto, sentia-se igual-
dade mental da espécie humana. Se é verdade que os símbolos mente a necessidade de sair do nominalismo e de refazer o que
revelam ocultando e ocultam revelando, isto que é uma defini- estava dissociado; ora, a Etnologia mostrava que as relações
ção(29) pode se transformar em regra metodológica. De fato, essa interindividuais se faziam no interior de uma dada estrutura glo-
mistura de oculto e revelado nos possibilita um meio de atingir bal que as orientava, permitindo assim à Sociologia desembara-
o sentido oculto pelo que é ao mesmo tempo revelado. Com- çar-se do nominalismo; por outro lado, essa orientação se fazia
preende-se então a razão da evolução da Etnologia com a esco- segundo normas ou ideais, o que possibilitava a ligação dessa
la de M. Griaule, interessada no estudo, em profundidade, das nova Sociologia com a Antropologia Cultural. Os norte-ameri-
diversas categorias do pensamento simbólico.( 3 º) As estruturas canos, por certo, estavam presos a uma tradição universitária dife-
sociais não são esquecidas mas colocadas em íntima correlação rente da francesa; não chegaram a confundir sociedade com civi-
com o universo dos valôres míticos ou rituais. Pode-se censu- lização, tanto mais que a civilização podia emigrar e passar de
rar o exagêro desta escola, mas essa censura não prové!Jl de um uma sociedade a outra; mas, com Sorokin, por exemplo, ou com
método demasiado positivo que se atenha apenas ao que é visível Parsons, as partes separadas - sociedade, civilização e persona-
ou ligue de um só golpe as estruturas sociais normativas às estru- J lidade - tentam unir-se.
turas inconscientes do espkito, para não ver no símbolo mais que Mas, se o pensamento norte-americano tinha o mérito de
a expressão da ligação e não seu significado? despertar a atenção dos pesquisadores para a importância das
Seja o que fôr êsse problema, a Etnologia forneceu à So- configurações totais, por outro lado, tendia a confundir os diver-
ciologia o meio de passar de uma Sociologia causal a uma So- sos níveis da realidade que a Sociologia marxista e durkheimiana
ciologia integrativa. Permitiu eliminar as teorias que valoriza-
vam certos fatos, considerados privilegiados, como os da pro- haviam distinguido. Gurvitch mostrou a origem do que chamou
dução econômica para os marxistas ou os da ética social-religio- de_ "Sociologia em profundidade" tanto nu!Jla como noutra.(ªl)
sa para Max Weber. Mostrou-lhe que, numa sociedade, tudo É, ·pois, inútil voltar aqui ao assunto. Ora, a estratificação de
se realiza, tudo age e reage sôbre tudo, e que a causa dos fenô- níveis da realidade social permitia uma dialética mais rica, que
menos sociais deve ser pesquisada nas suas inter-relações com não temia fazer intervir até mesmo a causalidade única, quando
a necessidade se fazia sentir. Ela percebia ao mesmo tempo as
(27) Marcel GRANET, Études Sociologiques sur la Chine, pp. 84, 166, 184,
186, etc. implicações mútuas sôbre as quais a nova Sociologia americana
(28) Maurlce LEENHARDT, Do Kamo. insistia, como também pelas divisões, tensões e polaridades. Por
(29) G. GURVITCH, op. cit., p. 77.
(30) Marcel GRIAULE, "Réfiexlons sur les Symboles Soudanais", Cahiers (31) G. GURVITCH, op. cit., pp, 376-77, 590.
Intemationaux de Sociologie, XIII, 1952, pp. 9, 29-30.

21
20
isso mesmo, permitia passar da estática à dinâmica, do situacional simultâneamente cada fenômeno social a êsses dois eixos de
ao causal, numa palavra, moldar mais eficaZmente a explicação .·~
~.:
'~ coordenadas.
sôbre o concreto, em perpétua transformação. Sem dúvida, só ~
Em terceiro lugar, Gurvitch deixou de lado o problema das
podemos obter as normas culturais a partir do comportamento interpenetrações entre os diversos tipos de sociedades globais.
humano e êsse comportamento situa-se sempre num todo orga- Certamente, sente-se o interêsse que êle atribui a essa questão
nizado, estruturado ou em reorganização; indubitàvelmente tam- qu,ando, por exemplo, escreve:
bém, os símbolos são compreendidos nas instituições, amiúde
Talvez poder-se-ia supor que o equilíbrio das formas de socia-
delas inseparáveis. Mas não resta dúvidas de que não se podem bilidade tenderia a predominar sôbre a hierarquia específica dos
colocar normas, símbolos, grupos, etc., num mesmo plano sob .. níveis na estruturação e na desestruturação dos grupos, enquanto
o pretexto de que êles funcionam simultâneamente. adendência seria inversa no caso da sociedade global. (32)
A Sociologia Religiosa deve considerar, como a Sociologia
Geral, essas duas exigências que são a da configuração e a dos Isto parece ser uma alusão a certos trabalhos norte-ameri-
níveis superpostos. O mérito de Gurvitch está em ter justamente canos em que se vê o contato de duas civilizações ocasionar o
proposto uma Sociologia profunda, respeitando o fenômeno so- desaparecimento de uma sociedade global que pode se dissolver
cial total e as formas diversas de que êle se reveste. sob a forma de sociabilidades. Mas, num mundo onde domina
f:, pois, a partir da obra de Gurvitch, o qual encerra tôda ô''âriiálgama das raças, das etnias e das civilizações, a questão
uma longa história de debates, de lutas de escolas, de hesitações ~.''.:'.''~~!~,[~,}~~?ca é a _?e mais completa teo~ização de ta!s fenô-
•. ,.,",u'Mfíi~~; Pôrtanto, nao podemos saber a przori se é preciso con-
teóricas, que devem~s empreender nossa pesquisa. Mas parece-
:.~::::,;sfC1erâ'.ifos-cÕtrio relacionados a um único fenômeno social total
-nos útil antes de tudo fazer um certo número de observações
sôbre esta obra:
1
:;t;';f';::: G~r:: exempIO; o da cultura nativa em contato com elementos
Em primeiro lugar não se pode esquecer que os conceitos estrangeiros) ou em relação a dois fenômenos totais (como
propostos por Gurvitch são conceitos operacionais e que, por sugere Durkheim quando define a colonização, o nascer de "ti-
conseguinte, o número de níveis a considerar ou sua ordem de pos sociais" inteiramente novos). ( 83 ) Somos assim levados
importâneia varia de um caso concreto a outro. Isso se nota por enquanto a deixar de lado o primeiro problema que nos
bem quando se compara a Vocation Actuelle, por exemplo, com preocupou - o das conexões entre as estruturas e as atividades
Déterminisme,s Sociaux onde a simples passagem do descritivo ao religiosas - para ver a que conclusões chega o estudo das inter-
explicativo ocasiona uma revisão do número de níveis e mesmo penetrações de civilizações e se podemos com elas nos satis-
o deslocamento do oitavo. fazer.
Em segundo lugar, a Sociologia em profundidade não faz *
com que desapareçam os velhos problemas mas, ao contrário, ela * *
os complica para melhor resolvê-los de acôrdo com a riqueza e a As interpenetrações de civilizações não constituem fenôi
complexidade do real. Isto é, as relações do religioso e do não- meno nôvo, ligado à expansão européia do século XIX. A~
-religioso no fenômeno social total se efetuam ao mesmo tempo contrário, pode-se dizer que a História da humanidade tôda
no plano vertical e no horizontal; inscrevem-se no estudo das a História do contato, das lutas, das migrações e das fusõe
relações dialéticas entre os diversos estágios da realidade, do mor- culturais. São, pois, os historiadores os primeiros a se ocupa_\
fológico à consciência coletiva e em cada um dêsses estágios. rem dêsse fenômeno, mais particularmente do encontro entre
Por exe~plo, entre os grupos econômicos, as classes sociais, de o mundo grego e o asiático, da assimilação dos povos medi-
um lado, e as organizações religiosas, de outro; ou, ainda, entre terrâneos ao Império Romano, dos sincretismos :religiosos que
os símbolos místicos e os valôres políticos ao nível das obras marcam o fim dêsse Império, da invasão dos bárbaros, das
culturais. E preciso acrescentar que êsses dois movimentos não Cruzadas e da difusão progressiva dos valôres ocidentais no
podem separar-se, que êles se entrecruzam a cada instante, não (32) Id., ibtcL., p. 101.
(33) DURKHEIM, Les Regles de la Méthode Soctologtque, Alcan, 8.• ed.,
se devendo tratá-los isoladamente, mas, ao contrário, relacionar p. 108.

22 23
. ,

resto do mundo. Mas êles estudam êsse fenômeno como histo-


riadores, quer dizer, destacando a individualidade de cada caso;
não tentaram, com auxílio do método comparativo, construir
i
••••
'

O fracasso de certas formas de colonização na Oceania ou


na .Africa, o malôgro da incorporação das massas ameríndias à
civilização ocidental, a dupla crise do capitalismo europeu e
uma tipologia, ou, no mínimo, um esquema conceitua! permi- norte-americano, que os forçam a. sair de seus mercados limita-
tindo passar da descrição à explicação. · dos para se preocuparem com os países subdesenvolvidos, colo-
A Sociologia nascente herdou da História esta primeira caram hoje, ao contrário, em primeiro plano, o problema que
posição do problema, mas procurou um modêlo teórico, com a Sociologia do fim do século XIX e início do XX tendia a ne-
Karl Marx, que pudesse explicá-lo. O qual será, naturalmente, . gligenciar. Aqui não serão mais os historiadores ou os sociólo-
o materialismo histórico. O sincretismo religioso é o efeito do gos que terão um papel a desempenhar e, sim, os etnólogos e os
desenvolvimento do comércio e da formação de cidades, locais antropólogos. Daí, a passagem de uma concepção histórica a
de encontro de marinheiros e viajantes; êle não faz mais que uma concepção naturalista.
traduzir no plano das superestruturas os laços econômicos que ·- Tentemos vislumbrar o que distingue a segunda da primei-
se tecem entre os países, tornando-os interdependentes. Mas ra. Ela de início se verifica, pelo menos nos Estados Unidos,
cada "sincretismo" tem sua própria originalidade e luta com na oposição tradicional entre a Sociologia e a Antropologia Cul-
os outros; o triunfo do cristianismo será a conseqüência do de- tural, uma estudando as relações grupais, a outra as relações
saparecimento, ou, ao menos, da decadência das cidades comer- entre as culturas, o que faz com que tenhamos dois sistemas de
ciais e da ruralização que marcou a invasão dos bárbaros.( 34 ) conceitos sem nenhuma relação: o da Sociologia - competição,
Infelizmente, o organicismo, desfazendo os laços entre a Socio- cõllflito;"·aêôfu.odação - e o da Antropologia Cultural - aceita-
logia e a História para buscar modelos biológicos em lugar ção seletiva, adaptação e sincretismo, resistência e contra-acul-
dos antigos modelos marxistas, ressaltou o fenômeno oposto, turação.(86) Em segundo lugar, o estudo da aculturação segui-
da fixidez dos tipos sociais, análogos às espécies animais ou . rá o progresso da Etnologia e não o da Sociologia. Inicialmente,
vegetais, impedindo à Sociologia, desta maneira, incorporar em na época em que a cultura é definida anafüicamente por um
seu campo de estudo as interpenetrações de civilizações. Dur- complexo de traços, tirar-se-á do encontro de civilizações uma
kheim, que ultrapassou o organicismo, mas que dêle partiu com imagem mecânica e procurar-se-á nas culturas sincréticas os
Espinas, reconhece, entretanto, o problema quando estuda nas traços pertencentes à civilização nativa e os traços emprestados
Regras as relações entre os tipos sociais; êle distingue dois casos: à civilização alienígena. Quando a Etnologia trouxer à luz o
aquêle - que é o mais geral - onde a causalidade externa caráter "gestaltista" da cultura, estudar-se-á, ao contrário, o
atinge apenas a periferia da sociedade, o que lhe permite, com contato entre os povos em têrmos de culturas totais, o que, cons-
a primazia da causalidade interna na explicação dos fenômenos tituindo um progresso inegável, colocaria do ponto de vista me-
sociais, descobrir, bem antes de Herskovits, o fenômeno da todológico uma grande dificuldade ao pesquisador, porque êsse
reinterpretação; ( 35 ) e aquêle do nascimento de espécies dife-
contato é ainda assim seletivo, isto é, isola do todo os traços
rentes, do qual a colonização seria um exemplo; a formação
culturais específicos, aceitando uns e recusando outros. O que
moderna pela interpenetração da família paternalista franca e
da família patriarcal romana continua a ser o único caso dêsse conduz a Antropologia Cultural, em uma terceira etapa de seu
segundo fenômeno estudado por Durkheim. O que impediu, desenvolvimento, à noção de "foco cultural".( 87 )
todavia, a criação nessa época de uma verdadeira Sociologia Esta concepção naturalista deve ser ultrapassada, nós o ve-
das interpenetrações de civilizações foi o que se chamou a su- remos; mas, devemos, todavia, integrar os resultados em nosso
perstição do primitivo, a pesquisa das "origens", origem da reli- próprio trabalho. Quais são, pois, as conclusões a que ela chega?
gião, origem do poder político, etc., que considerava os fatos da De início, ela permite uma tipologia que nos ajuda a superar a
"aculturação" como indignos do interêsse do pesquisador. (36) R. REDFIELD, R. LINTON e M. J. HERSKOVITS, "Memorandum foi""
the Study of Acculturation", American Anthropologtst, XXXVIII, 1936, pp.
(34) HENRY, op. cit., p. 190. 140-52.
(35) R. BASTIDE, Initiation au:i: Re<fherches sur l'Interpénétration ães (37) Ver esta evolução e o estado atual da questão em M. J.
Clvfüsations, pp, 28-9. 1 HERSKOVITS, Man anci his Works, caps. 27 a 32.

24
J 25
-a::

l.,. ~~
individualização histórica da qual partimos. Bateson, por exem- J ou permanece restrita aos documentos ao ponto de se limitar
plo, distingue o caso da completa fusão entre os grupos originais & a uma simples descrição cronológica dos fatos, ou é concebida
- o caso da eliminação de um ou dos dois grupos em contato ~.· como uma "dinâmica cultural", quer dizer, como uma História
e o caso da persistência dos dois grupos em equilíbrio dinâ- l parcial: a dos fenômenos culturais desligados dos fenômenos
mico no interior de uma comunidade maior.( 38 ) Sobretudo, ~· sociais totais. ( 41) E é justamente por ser esta História parcial
ela descobriu, em íntima ligação com a heterogeneidade das ci- J que ela não chega a perceber os fenômenos de aculturação e que
vilizações em inter-relação, os dois grandes processos de des- · .o etnólogo que não quer se limitar à simples descrição é obriga-
truição e de reinterpretação. No primeiro caso, os modelos cul- ' do, em última instância, a recorrer à Psicologia. ,
turais que estruturavam a sociedade desaparecem, e esta mesma i Não são as civilizações que estão em contato, mas os ho- \
sociedade se reduz a uma poeira de relações interindividuais -_a ; mens. Por conseguinte, os mecanismos psíquicos é que são res-
causalidade externa domina a causalidade interna. No segundo, t ponsáveis pelo que se produz quando duas civilizações se encon-
os elementos estranhos são modificados, metamorfoseados em ~ tram. Assim, o causal deve ser, em última análise, procurado
função dos modelos predominantes e reinterpretados em têrmos ~· nos desejos dos indivíduos, desejo de ser düerente dos outros,
da cultura original - a causalidade interna domina, nesse caso, J desejo de prestígio, desejo de melhorar, desejo de ser imitado,
a externa. No primeiro caso, faz-se Patologia e, no outro, Gené- · reivindicação do eu, afirmação da defesa do eu. . . e a reinter-
tica. (89)
Entretanto, êsse naturalismo percebe bem suas próprias · i•,?·;~;t)~,~~~~1;°:!,m;::~~~~:· e~~~~;.:,B:~sq:e e:i~~:~i~~~~ºJ;
insuficiências e tenta superá-las introduzindo sucessivamente em ,( ' ,,:,:: qµê;'~ iriovàções ou os empréstimos são mentais, que não po-
~;' :c·k:~ ~,);, ;·:poiS~ se manüestar além dos limites impostos pelas pró-

t""""'~não ~~=. ~: :~~:'d~:)c!~~i=:t =~rl:


sua descrição dos fenômenos de aculturação, a História e a
Psicologia.
O naturalismo, com efeito, interpretou e explicou os fenô-
menos de interpenetração das civilizações em têrmos "quanti- f" gicos em que opera; não é uma Psicologia de indivíduos isolados,
tativos". Os resultados do contato dependiam do número rela-
tivo de grupos em contato, grupos restritos ou grupos amplos,
da duração cronológica dêsse contato, da extensão territorial,
t
t

.1
mas de indivíduos pertencentes a grupos, a castas, a clãs, tendo
status diferentes de sexo, de idade ou de classes.( 43 ) Isso faz
com que o psíquico nos reenvie, queira-se ou não, ao sociológico .
etc., enquanto a aculturação sempre se verifica em condições .~ Aceitemos, entretanto, que o macroscópico se reduza em defini-
históricas determinadas e em evolução constante. Era preciso, (, · tivo a uma multiplicidade de microprocessos psicológicos, do
portanto, reagindo contra a condenação feita por Malinowski · mesmo modo como se quis reduzir os fenômenos visíveis de evo-
contra "os estudos de antiquário" em nome de sua doutrina fun- lução (o aparecimento de novas espécies) a uma infinidade de
cionalista, voltar ao continuum histórico, que explica como e fenômenos bioquímicos, atuando no nível dos genes. :S eviden-
por que se opera o sincretismo entre as diversas civilizações.( 4 º) te, nesse caso, que a nossa explicação nunca se concluirá, por-
Herskovits exige do etnólogo a análise da documentação dos que ela precisaria incluir o exame completo de todos os indiví-
Arquivos e lembra oportunamente ao americanista que o que duos em contato, o que é impossível mesmo no caso de grupos
é preciso pôr em contato não é a civilização africana de hoje pequenos. Felizmente, cada. vez que a análise microscópica se
com a indo-européia, mas as civilizações africanas dos séculos revela impossível, há um outro nível de explicação, o plano
XVII e XVIII, tais como podemos conhecê-las pelos via- macroscópico, onde o caos dos fenômenos individuais se neu-
jantes de outrora. Infelizmente, esta História a que aspiramos, traliza para deixar aparecer novas formas de regularidade tão
(38) G. BATESON, "Cultura Contact and Schlsnogenesls", Man, :XXXV, (41) TUlllo SEPELLI, La Acculturazione come Problema Metoãologico,
199, pp. 178-83. pp. 15-8.
(39) Ll!JVI-STRAUSS, bibliografia sôbre aculturação em L'Année Socio- (42) Já o Memoranãum de REDFIELD, LINTON e HERSKOVITS reclama
logique, 3.• série, 1940-48, t. I, pp. 335-36. o estudo das mec1t111smos ps!cológlcas, Cf. HERSKOVITS, "Some Psychologlcal
(40) J. M. HERSKOVITS, "The Signiflcance ot the Study of Acculturatlon Impllcatlons of Afro-amerlcan Studles," XXIXth aongress o/ Americ., t. III,
:for Anthropology", Amer. Anthrop., 39, 2, 1937, pp. 260-63. "Some Comments pp. 152-60 e Man anã his Work.
on the Study of CUltural COntact'', ibiã., 43, 1, 1941, pp. 3-5, e o livra (43) R. BASTIDE, "Sociolog!e et Llttérature Comparée", aahiers Interna-
The Myth o/ the Negro Past. tionaux de Soclologie, XVII, pp. 94-5, e TUllla SEPELLI, op. cit., pp. 15· • •
~~~~'àÇl/O f~
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·\I',,..· -e·"' M. N. ji".
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objetivas e VlSIVe1s quanto as primeiras, como Durkheim e lução, separando-os dessas "situações". ( 48 ) Bem entendido, o
Halbwachs verificaram em suas pesquisas (embora divergentes) . que .é -verdadeiro para a colonização permanece válido para to-
sôbre o suicídio. ( 44) .· -dos· os outros tipos de "situação". O estudo das interpenetrações
A Rússia Soviética, elevando o nível de vida pela introdução · ' •' '~t<:de.(~civilizações ultrapassa a "Sociologia Colonial", que constitui
de novas técnicas de produção nos países ditos "periféricos" (em · · j;·'"'·'lmt•de seus capítulos mais importantes, mas não poderá ser mais
relação à Rússia Central), muitos dos quais ainda pertenciam a .· .•. : •>' que sociológico, se ·quiser ser explicativo.
civilizações "arcaicas", é hoje levada a se interessar pelos fenô- ·:·x--~·+"·"<··Asconclusões aque chegamos no exame das diversas inter..
menos de aculturação, porém os estuda através do materialis- ··ptetações·•sucessivas •'dos fenômenos de aculturação encontram,
mo histórico, na base das relações dialéticas entre as infra e as · •;':'!·Jc~:como•servê; ·aquelas resultantes do exame do nosso primeiro pro-
superestruturas. Ela ultrapassa, assim, o psicologismo que su- .• ., ..• ~.-.blem~"ºu'•seja-;• a n,ecessidade de encarar os encontros de civili-
põe uma psique eternamente idêntica a si mesma, ligada a seus . zações "através de .uma Sociologia em profundidade e a de utili-
própr~o.s conflit~s _i~ternos, independente da História, capaz, pelo ~ zar ;as --dialéticas de níveis respeitando o fenômeno social total;
contrario, de dmgir causalmente o curso dos acontecimentos no caso presente, os diversos tipos de situações ou de configu~
históricos. A consciência dos indivíduos é sempre determinada rações;
~elas condições do momento; ela está em estreita relação dialé-
tica com as transformações socioeconômicas. ( 45) É êsse nôvo *
P.onto de vista que foi aplicado, por exemplo, no Haiti por Gué- * *
nn para compreender a sobrevivência do vodu, que outrora teve .....:.:~:·::.;;.':~:'.!~~'.}~!~
..
!,?-1:::~,~;:. W:l~
te~as que b:evemente historiamos vão mis~u-
.· . . - .. , es, se opor, em nossa pesquisa
uma f?nção útil numa sociedade com um sistema de produção
escravista, como expressão da resistência do povo frente a seus sôfüe·â~ teligiões afro-brasile· s - mas sem jamais se contra-
senhores, mas que hoje não é mais que um epifenômeno conde- dizerem, antes, p e ando-se mutuamente, enriquecendo-se um
nado, m~n~jado p~la burguesia mulata para melhor assegurar ao outro, já que, como vimos, surgem igualmente da mesma in-
seu dom1mo pohtico. ( 46 ) E, por certo, numa sociedade de terpretação sociológica.
classes, não podemos negligenciar a ação desta espécie de agru- Nosso ponto de partida é o tema das relações entre as infra
pamento nos fatos ditos de aculturação, porém, com a condição e as superestruturas, ou se se prefere, o do condicionamento so-
de repor êsses grupos na sociedade total. Não se pode aqui cial da religião; mas, para poder julgar o papel respectivo das
valorizar a ~istória Econômica mais que. a Cultural; é preciso diversas camadas da realidade social, das ações e das reações
recolocar a mterpenetração das civilizações, como diz Sepelli, de cada uma sôbre aquelas que as precedem ou que as suce-
numa concepção unitária e orgânica da dialética da sociedade dem, como o fenômeno total sôbre as partes, não é o melhor
total no processo de desenvolvimento. piétodo, o comparativo? Entretanto, êste método apresenta pe-
Desde já esta História está bastante afastada da História his- r~gos, se se comparam religiões diversas em várias sociedades,
toricizante. Para vir a ser uma \História Social e Sociológic~ não mesmo se tomarmos o caso de civilizações do mesmo tipo, em
é preciso ir mais longe ainda? Esses processos históriéos .s'e de- que os elementos de diferenciação seriam mínimos, de maneira
senvolvem no interior de certas "situações" como a escravidão, a melhor aplicar a regra durkheimiana das variações concomi-
a colonização ou os auxílios aos países subdesenvolvidos.(47) tantes; porque se êle permite mostrar como a variações de estru-
Como Balandier mostrou, não se pode estudar os contatos entre · turas correspondem variações de símbolos ou de valôres, não
as civilizações, assim como os fenômenos ou processos de evo- nos permite compreender in statu nascendi a dialética do fenô-
meno se formando e, se possibilita a formação de hipóteses de
(44) R. BASTIDE, "La Causalité Externe et Ia Causalité Interne dana trabalho, não nos permite verificá-las. Numa aplicação seme-
l'Explicatton en Sociologie", e. I. s., XXI, 1951.
(45) T. SEPELLI, O'p. cit,, p. 17. lhante do método comparativo, passa-se de uma sociedade glo-
(46) R. GUÉRIN, "Un Futur pour les Antllles?", Présence A/rlcaine, nova
série, !ev.-março, 1956, pp. 20-7. . bal para outra, mas é difícil encontrar duas sociedades globais
(47) Para as relações entre a. História. e a. Sociologia. no caso especifico
da colonização, ver Georges BALANDIER, "La. Situa.tion Coloniale: Approche
análogas exceto num ponto, pois tudo está em relação com tudo.
Théorique," Ccthiers Internationauz àe Socio!ogie, XI, 1951, pp. 47-61. (48) G. BALANDIER, Socio!ogie Actue!Ze àe 1' A/Tique NcYlre, pp. 3-36.

28 29
Parece que a melhor maneira de se proceder é permanecer no - , porém, mais gravemente ainda, nas antigas estruturas. :É o
seio de uma mesma sociedade, desestruturando-se e reestrutu- regime de produção que muda, o trabalho forçado sendo substi-
rando-se, evoluindo mais lenta ou mais ràpidamente, nas formas tuído pelo trabalho livre; mas a estrutura demográfica transfor-
de produção ao longo do tempo, criando novas obras culturais ma-se também primeiro com o êxodo do campesinato de côr para
e comparando êsses diversos momentos da sociedade em desen- a cidade, depois com a chegada em massa, no Sul, de imigrantes
volv!mento .. ':\r~ta-se, em suma, de substituir à comparação geo- europeus, em seguida japonêses, para substituir o negro nas plan-

l gráfica, a h1stonca. Trata-se, contudo, de comparação e não de


História, porque o que desejamos é examinar estruturas e reli-
giões em "idades" diferentes - a documentação não sendo infe-
lizinente, jamais assaz rica para se poder acompanhar o 'curso
tações, modificando com sua vinda a distribuição racial no solo;
da mesma forma, o regime familiar, o grupo da Casa-grande
destituído de seus escravos, lavradores ou empregados domésti-
cos; é, por fim, a sociedade brasileira que passa, com a indus-
das ações e _das reações. A dialética histórica poderá completar trialização, tornada possível graças aos capitais outrora utilizados
a comparaçao pelo menos em certos pontos, e isto com maio- na compra da mão-de-obra servil e depois disponíveis, de uma
res possib~idades à medida que nos aproximarmos do. período sociedade de castas para uma sociedade de classes. Tudo isso
c~n.tempor~eo coll?- a m~ssa da documentação aumentando, per- não deixou de repercutir nas religiões afro-brasileiras.
m1tmdo assim seguir mais de perto as temporalidades dos diver- Contudo, êsse movimento se opera com velocidade variável
sos níveis do ireal. nas diversas regiões do Brasil. As vêzes se diz que o Brasil se
Escol.h~~ exemplo, para aplicar êste método as compõe mais de estratos históricos que de camadas sociais e que
religiõe&::@:o-brasº-eifél..S que se constituíram e continuaram' em uma viagem do litoral ao interior nos faria passar sucessivamente
meio a P!º:füiiaãS alterações da estrutura social, modificando-se da civilização contemporânea à civilização imperial, depois à
em relaçao a elas. colonial, para chegar finalmente à neolítica dos índios do campo
. Os negros ~traduzidos no Brasil pertenciam a civilizações ou da grande floresta amazônica.( 49 ) Sem chegarem até essas
diferentes e provinham das mais variadas regiões da Africa. Po- nuanças, os geógrafos ou os sociólogos franceses que se ocupa-
rém, suas religiões, quaisquer que fôssem, estavam ligadas a cer- ram do Brasi1(5º) opõem o Brasil arcaico ao moderno. A tenta-
tas formas de família ou de organização clânica a meios biogeo- tiva de Redfield feita no México para seguir no espaço o conti-
gráficos especiais, floresta tropical ou savana, a' estruturas aldeãs nuum folie-urbano é possível também no Brasil, e hoje aí vemos
e comunitárias. O tráfico negreiro violou tudo isso. E o escravo multiplicarem-se os estudos de comunidades, distinguindo "comu-
foi obrigado a se incorporar, quisesse ou não a um nôvo tipo nidades de folie" e "comunidades em transição". As estruturas e
de .sociedade baseada na família patriarcal, ~o latifúndio, no as civilizações, rurais e urbanas, não são idênticas; as estruturas
reg~me de c_astas étnicas. Que se passou então? Esta é a pri- das cidades do Nordeste, onde a indust:rialização é menos acen-
1 ~e~a questao ~ue teremos de resolver. Mas o período de escra- tuada, diferem daquelas do Sul e, mesmo nêle, o capitalismo
' v1dao durou tres séculos e no curso dêsse tempo a sociedade ainda se apresenta em suas diversas etapas, de uµia região a
brasileira não permaneceu imóvel. O século XVIII, por exemplo outra. Uma vez que o negro seja camponês, artesão, proletário,
v~u a produção mineira dominar o regime das grandes planta: ou constitua uma espécie de subproletariado, sua religião se
çoes: ~ sécul_? XIX, o desenvolvimento da urbanização; enfim, apresentará diversamente ou exprimirá posições diversas, condi-
a misc1genaçao e a ascensão do mulato modificaram, pouco a ções de vida e quadros sociais não identificáveis.
pouco, a antiga estratificação de castas, no fim do Império. O que complica a questão é que essa religião sofreu não
Como reagiram as religiões africanas a tôdas essas transforma- só a influência dessas variações da estrutura social mas, também,
ções? Esta é a segunda questão que precisaremos examinar. (49) Cf. Pedro CALMON, História Social do Brasil: "O Brasil, social·
A diminuição do tráfico negreiro, inicialmente sob a im- mente, não é uma estratificaçli.o de classes, mas de épocas. :ltle não se divide
em camadas humanas, mas numa justaposiçli.o de séculos"; e a discussli.o de
posição da Inglaterra, mais a abolição da escravatura condu- Fernando de AZEVEDO, "Para a Análise e Interpretaçli.o do Brasil", Rev. Bras.
ziram o Brasil a uma crise que, Se!Jl dúvida, reper~utiu na de Estudos Pedagógicos, XXIV, 60, 1955, pp. 12-4. ·
(50) J. LAMBERT, Le Brésil, Structures Sociales et Institutions Poli-
Economia e na Política - passagem do Império .à República Uques, A. Colln, 1953, p. 64 e segs .

., 31
80
da pressão cultural do europeu branco, católico, e da dupla sos aspectos, melhor compreender essas relações dialéticas. Pa-
política seguida pelo Estado português, representado por seus rece assim necessário, para terminar esta introdução, ver o que
governadores, e da Igreja Católica Romana, representada por nos separa das interpretações já dadas às religiões afro-brasileiras
seus monges mais que por seus capelães de engenho ou curas como também a contribuição que cada qual pode t:razer à nossa
das paróquias. Isto faz com que as superestruturas, as represen- tentativa.
tações religiosas como os símbolos da mística, os valôres cultu- Não foi senão no fim do século XIX que essas religiões
rais dos africanos ou de seus descendentes se achem subordina- despertaram a atenção dos investigadores. O término da escra-
dos a uma dupla influência: uma no mesmo nível, a das repre- vidão colocou, de fato, um e e problema ao Brasil, o da
sentações coletivas dos cristãos, dos símbolos culturais europeus, assimilação dos negros como cidadãos e como produtores assa:-
dos valôres portuguêses e, a outra, em nível diferente a das -lariados. O aumento da crim · ade, da vagabundagem, da
modificações morfológicas das estruturas, organizadas ~u não. prostituição, o retômo dos negros libertos da agricultura comer-
De _?Utro. lado, esta cultura religiosa lusa foi importada também cial à mera agricultura de subsistência, tudo isso levava o bran-
e nao deixou, como a outra, de sofrer as influências de uma co a inquirir se esta assimilação seria possível. Não tinha o
mudança ecológica e de desestruturações e restruturações da africano uma mentalidade diferente da do brasileiro branco? Seu
sociedade brasileira em formação. cristianismo não era um simples verniz que mal dissimulava a
. , ~ão evocamos ainda sen~o um dos aspectos dos processos manutenção de "superstições" ancestrais? Sua evangelização não
dialeticos que deveremos segmr. Porque se a Religião Católica havia"·sidoiuma "pura ilusão"? É para demonstrar esta tese, da
sofreu a influência das modificações da estrutura social, ela, de ·· 'hêtet.egeneidade·dos·espíritos, que Nina Rodrigues,i pela primeira
outro lado, moldou a nova sociedade; encarnou-se nela como vez1"na· Brasil, estuda a religião dos 900. ( 51 )
uma alma que, de dentro, modelaria o corpo onde passaria a Precisamos insistir na obra d ina Rodrigue porque é a
viver. Roma, aliás, não estava tão longe que não pudesse lutar partir :dêle que tôdas as pesquisas se eram. Ele foi,
contra os desvios, contra as influências dissolventes e com um segundo a expressão de seu discípulo, Arthur Ramos, "um chefe
. ou menor. tentar unir em tôrno de sua' Igreja os
su,cesso m.aior de escola", quer dizer, fixou os dois pontos de referência do
nucleos dispersos, as células viv~ 4o~o brasileiro em estudo das religiões afro-brasileiras para tôda a primeira metade
gestação. Da mesma forma, a (religião afriçanà tendeu a re- do século XX, o psicologismo e a Etnogrnfia. Poder-se-á corri-
constituir no nôvo habitat a comunidadealdeã à aual estava gi-lo, recusar seus preconceitos raciais ou seus estereótipos sôbre
ligada e, como não o conseguiu, lançou mão de outros meios; o negro, mas sempre colocar-nos-emos nas mesmas perspectivas
secretou, de algum modo, como um animal vivo, sua própria que êle, as da Psicologia e da Etnografia.
concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes Nina Rodrigues era médico-legista e naturalmente o que
e todavia diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não mais o impressionou nas seitas africanas foi o que interessava
pode vi~er fora da matéria e, se essa lhe falta, êle faz uma nova. ao médico, isto é, as crises de possessão. Isto o levou a:
1
1 O marxismo teve razão em nos alertar contra o idealismo, lem-
i brando que não há vida social e cultural possível fora da matéria 1.0 - Centralizar todo o culto no transe estático e negli-
/ que a condiciona; seu êrro foi crer que ela nasce sempre da genciar, por conseguinte, outras manifestações religiosas menos
1 matéria. Não devemos, ao contrário, esquecer êste poder de cria- espetaculares mas, talvez, tão importantes como o ritual da divi-
ção das correntes profundas da alma coletiva. Por conseguinte, nação, as cerimônias privadas, a mitologia, etc.;
o problema das interpenetrações de civilizações complica, mas 2. 0 - Propor uma interpretação dessas religiões através
ainda assim não nos liberta do problema mais profundo, o das dos quadros da Psicologia Clínica. A iniciação dos fiéis no culto
relações entre os níveis superpostos da Sociologia em profundi- aparece, nesta perspectiva, menos como uma incorporação a uma
dade. sociedade e a uma cultura, do que um processo de perturbação
A tarefa que nos atribuímos é, pois, um~~arefa sociológi~à.
(51) Com O Animismo Fetichista dos Negros da Bahia, publica.do pri-
Trata-se de, num exemplo que nos parece privilegiado sob diver- meiro em francês e depois em português.

32 33


do sistema nervoso, uma educação do êxtase. E com a ajuda. das e os santos católicos. Portanto, foi êle quem descobriu primeiro
idéias que o Dr. Janet estava elaborando na mesma época sôbre e· quem despertou a atenção dos pesquisadores, como acentua
o sonambulismo e o desdobramento da personalidade que Nina Arthur Ramos, para as formas modernas de aculturação. Nesse
Rodrigues explica os fenômenos do transe místico nos negros do ponto, êle se encontrava numa situação privilegiada, pois que no
candomblé; é verdade que o sonambulismo era então aproximado seu tempo existiam, lado a lado, africanos puros e negros crioulos.
da histeria e que certos psiq.Qi egavam a existência da his- Era êle assim levado a distinguir dois tipos de candomblés - os
teria entre os negros. ~ina Rodrigues é, pois, obrigado a de- africanos e os nacionais - e dois sincretismos - o dos africanos
monstrar que os negros -collhecem-·a histeria tão bem como puros que simplesmente "justapõem" o culto católico a suas cren-
os brancos e que as festas religiosas africanas constituem, do ·ças e práticas "fetichistas" e que concebem os orixás e os santos
mesmo modo, exercícios de sonambulismo provocado; em se- "como de categoria igual ainda que perfeitamente distintos", e o
gundo lugar, e à guisa de subterfúgio, que o desdobramento da dos crioulos, em que êle nota "uma tendência manifesta e incoer-
personalidade pode aparecer em outras moléstias que não a his- cível para identificar os (dois) ensinamentos". A aculturação é
teria, por exemplo, na neurastenia ou na imbecilidade. Daí, sua então por êle concebida como uma europeização progressiva do
conclusão final de que o baixo desenvolvimento intelectual do negro, moderada pela "incapacidade ou morosidade de progredir
negro primitivo, auxiliado pelo esgotamento nervoso das ceri- por parte dos negros".(52)
mônias de iniciação, provoca estados de neurastenia nos africanos
Em 1902, ainda, um médico da Bahia, desta vez Oscar
e que, portanto, a histeria existiria nos negros crioulos ou nos
mulatos. A religião africana seria, em ambos os casos, um fe- Freire, escreve sua tese sôbre a Etiologia das Formas Concretas
nômeno patológico. da Religiosidade no Norte do Brasil, que marca um progresso em
relação à tese de Nina Rodrigues na medida em que atribui a
Mas a prática intensiva dêsses fenômenos patológicos su- fatôres sociais o que êste atribuía à r~ç~. Ma~ _o mais célebre
punha a existência anterior de seitas africanas, não assimiladas discípulo de Nina Rodrigues seria Árthur Ram0$;)igualmente
1

pela civilização brasileira. Portanto, era preciso centralizar o médico-legista e que consagraria quase.tôdá suã-·existência ao
êxtase no complexo teológico-litúrgico no qual se manifestava. estudo cuidadoso das civilizações aftricanas no Brasil. O grande
Daí a passagem da Psicologia (ou Psiquiatria) à Etnologia. mérito de Arthur Ramos é seu anti-racismo, seu antietnocentris-
Nina Rodrigues não era um etnólogo profissional, já o dissemos, mo, o de ter substituído o velho princípio de civilizações supe-
mas esforçou-se muito para descrever objetivamente o mundo riores ou inferiores pelo da "relatividade das culturas". Ninguém
dos candomblés e para pesquisar nos livros dos afr,icanistas as fêz mais que êle para dar ao brasileiro de côr o orgulho pelas
raízes africanas das religiões da Bahia. Por certo, êle exagerou suas origens étnicas. Os critérios por êle utilizados na pesquisa
ou insistiu muito sôbre o que essas religiões podiam apresentar são os mesmos de Nina Rodrigues, isto é, o psicologismo e a
de exótico, de estranho, à nossa mentalidade; não quis nelas ver Etnologia.
mais que ~...~~~e superstições, o que fêz com que Nota-se em seus livros, do ponto de vista psicológico, uma
confundiss~~ prõpriaip.ente dita e negligenciasse, ampliação do pensamento de seu predecessor. Sem dúvida, êle
infelizmente, os aspectos comuns, cotidianos, da vida religiosa. se interessa sempre pela crise de possessão e a relaciona sempre
Mas isto dito, se se pode reprovar-lhe as lacunas ou certo excesso a "estados mórbidos", mas, antes de tudo, utilizou a psicanálise
de pitoresco, não resta dúvida de que o esfôrço de objetividade para explicar fenômenos de sobrevivência africana; os mitos e os
do autor foi tão arrojado que sua descrição mais de meio século ritos subsistiram na medida em que se inscreviam no inconsciente
depois permanece válida e meSmõ,·· na·· õpinião dos sacerdotes coletivo ou racial, onde eram as expressões de complexos gerais
afro-brasileiros que conhecem bem as obras de seus discípulos, (52) Mala ou menos na mesma época de Nina Rodrigues, um homem
a mais justa de tôdas. de côr da Bahia, Manuel QUERINO, em seu desejo de glorificar "sua raça"
e a contribuição que ela trouxe ao Brasil, escreve uma série de estudos
Nesse campo da Etnologia, a grande descoberta de Nina sôbre a religião e o folclore do negro. ~sses estudos permanecem isolados,
Rodrigues foi a do sincretismo religioso entre os deuses africanos fora da corrente geral, mas trazem uma documentação, a nosso ver, par-
ticularmente interessante e cuja importância tem sido subestimada.

34 35
como o edipiano e o narcisista; e o sincretismo só foi possível onde Ferraz e Édison Carneiro, e o de Belo Horizonte, nas vésperas
o santo católico correspondia exatamente aos mesmos complexos da II Grande Guerra, organizado por Ayres da Mata Machado
fundamentais que os orixás, São J orges fálicos ou Virgens ma- ' e"João Domas Filho.
ternais. O sincretismo não é mais simplesmente o resultado do · ··· ~vem, durante a guerra, ao Brasil, aí continuando
encontro de duas civilizações; resulta em definitivo da analogia a grande investigação sôbre os fenômenos de aculturação afro-
entre o inconsciente do negro e do branco. O que se pode cen- -americana que já q levara ao Daomé, ao Haiti e à Guiana Ho-
surar nesta.. Psicologia não é seu princípio, a aplicação dos landesa. Envia aos Estados Unidos jovens pesquisadores brasi-
recursos da Psicanálise ao fenômeno de aculturação, mas ser leiros para formá-los nas disciplinas da Antropologia Cultural e
um!!.-Psicologia sem Sociologia. ( 53 ) Uma vez que o inconsciente dessa maneira abre-se um segundo período na história das pes-
é modelado da mesma forma que o consciente pelas estruturas quisas sôbre os negros brasileiros: a influência de Herskovits
sociais, êle está condicionado pelo fenômeno social total no qual substituindo a de Arthur Ramos. Os dois representantes desta
se inscreve e, aqui, êsse fenômeno é o da dominação econômica nova corrente são Octavio da Costa Eduardo, que estudou os
e política de uma classe sôbre outra. Vodun do Maranhão, e o Dr. René Ribeiro, que exaustivamente
A Etnologia de Arthur Ramos também amplia considerà- estuda as seitas religiosas em Recife. Mas se esta escola aper-
velmente a de Nina Rodrigues. Para começar, há um conheci- feiçoa os processos da primeira, utiliza novas técnicas e uma
mento melhor de pesquisas feitas no Continente Africano, o que nova conceituação, não muda a perspectiva da antiga, isto é, a
lhe permite esclarecer sobrevivências que até então permaneciam religião afro-brasileira continua sendo interpretada pelo psicolo-
no esquecimento. Estendeu principalmente o estudo que Nina gismo e pela Etnologia.
Rodrigues fizera na Bahia a outras áreas culturais do Brasil, em Entretanto, e é talvez o maior mérito da contribuição de
particular à macumba do Rio de Janeiro, sôbre a qual não se Herskovits, o transe místico é destacado do estudo clínico para
possuía mais que uma reportagem jornalística, aliás sugestiva, relacionar-se, com o auxílio da teoria dos reflexos condiciona-
de João do Rio (Paulo Barreto). Mas esta Etnologia prende-se dos, a um complexo cultural normal. As perspectivas psicológica
ainda aos quadros da Antropologia Cultural norte-americana e etnográfica, em lugar de serem separadas, acham-se assim inte-
modificada pelos estudos de Lévy-Bruhl sôbre a mentalidade pri- gradas e constituem as duas faces de um mesmo fenômeno de
mitiva. Os fel!ô~ep.Qs d.e ª~1:1lturação são descritos mas .não ex- civilização. :Ssse nôvo ponto de vista tem não só a utilidade de
plicados pelas conjunturns eÇonôiliicas .e- socfais;-em~Q!~ _aj!JJ~ nos libertar, de maneira que esperamos seja definitiva, das inter-
tura de. civ~iz~ç9.e.~ não. se faça no vácuo: rep()_ll-ªª--~m bases ma- pretações do êxtase pelos dados da Psicopatologia - conce-
teriais que co11dic;ig.!J:a_m ()S prgces,so_~_ij>ª e.feit<:>_~. · Ao lado de bendo-o como um momento do ritual - mas também, e princi-
Arthur Ramos, considerando-o como o iniciador, seria preciso palmente, a de começar o trabalho de unificação entre o psicoló-
citar tôda uma série de pesquisadores que, por sua vez, amplia- gico e o cultural. Infelizmente, de apenas começar, porque o cul-
ram a pesquisa começada, seja em outros pontos do território tural é interpretado ainda isolado de seu condicionamento social.
brasileiro (o Dr. Gonçalves Fernandes com Xangôs de Recife, ·É preciso reconhecer dêsse ponto de vista que Herskovits e seus
Nunes Pereira com a Casa das Minas do Maranhão), seja em discípulos estão, ainda, empenhados nesta última direção; de
outras formas de culto (Édison Carneiro com o Candomblé de º·
fat~_JQina-se ne<::ess.wio, êles nos recomendam, ~-s~c1.itl.'.. -~ªª-­
Caboclo). É a época do tema negro invadindo a poesia, o ro- ,\ CIOmblé em se_!!_çonjunto ~-11!0~ comQ.s~Ugião; ~ seitas africa.~
mance, o jornalismo, afastando o índio e o caboclo da Litera- ííãsd<>-Brasfi têm um as~cto econQP.J:i~Q, llJna __estruturas.o_cio-
tura e das preocupações dos intelectuais. Três grandes congres- 1
:! fógica- qüe-~~Jmp9~ -~-!ll!)d~i~~as i~)ªçº~ªJnt~tindiv.içhrn-!s. .Iôda.
sos afro-brasileiros reunindo etnógrafos, psiquiatras, antropólo- ãescrição que n~igencia êsses aspectos não pode ser válida. A
gos, lingüistas, historiadores, folcloristas e mesmo sociólogos mar- .1 investigação, nesse sentido, certamente não faz mais que começar,
cam êste período: o de Recife em 1934, organizado por Gilberto 1 mas já revela a preocupação com o fenômeno social total; O êrro
Freyre, o da Bahia .em 1937, organizado por Aydano do Couto está em negligenciar o fenômeno social mais geral aindª, que é
(53) Tentamos uma critica dêste aspecto da obra de Arthur RAMOS a sociedade brasileira, ou em só considerar a influência desta
em nosso livro Socio!ogte et Psychana!yse, pp. 248-50.
87
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sociedade pela sua transformação em sincretismo, isto é, na única para colimarem seus objetivos ( .•. ) encontram aí um sistema de
expressão que ela toma no seio dessas seitas. Em certa medida, crenças, de relações interpessoais, de hierarquia, bem como um
tipo de relações com o sobrenatural e de aparente contrôle do
( êste ponto de vista é válido porque a civilização africana está acidental, que lhes permitem a satisfação das necessidades psicoló-
"enquistada", mas a dialética dêste enquistamento escapa-nos to- gicas indispensáveis a seu ajustamento ao mundo em que vivem. (54)
talmente a esta altura. Em suma, o que censuraríamos na posição
1 _de_ R~rskovits .é penl!@~~t:_ º~-ª91P:Í!J:~~i~() __<!l!_b.n!ropologia Preeisamos notar, desde o início, o que êsse texto tem de
l -~~ltur~ ~º invés de ultrapassá:-lo para f!_.~_!_l!!!l:ª Sociologia da significativo na mudança completa por que passou a pesquisa
mterp~trªç_ã_o_ das...relig~. .afro-brasileira. Partimos do patológico e chegamos agora à
~- --Melhor dito, visto que sob a forma que damos a·esta crítica, conclusão oposta, de que a religião africana é o fator de ajusta-
a objeção toma um aspecto demasiado radical, o que lhe censura- mento do indivíduo à sociedade. Longe de ser uma experiência
mos é não ver as relações entre o social e o cultural senão através mórbida, o transe é uma técnica de solução de tensões. Estamos
do fúncionalismo e da Ecologia. De início, pela Ecologia. O mé- inteiramente de acôrdo e amiúde insistimos nesse ponto. Mas
todo preconizado por Herskovits é o do estudo de pequenas co- onde vemos um efeito, quer-se ver uma função. O funcionalismo
munidades por meio da observação participante. Ora, na co- tem seus méritos, êle nos lembra que todo organismo funciona,
munidade, a religião parece bem unida aos outros elementos o que alguns às vêzes esquecem. Uma pura sobrevivência que
da vida social e como o etnólogo de que falamos tem a preo- não desempenhasse nenhum papel teria de desaparecer; muitas
cupação da História, ela está compreendida no seu continuum descrições de cultos afro-brasileiros transformam, infelizmente,
espaço-tempo. :Bste estudo de comunidades de negros permitiu ·êsses cultos em peças de museu recendendo naftalina, em obje-
ultrapassar o pitoresco e a preocupação com o exotismo que tos preciosos de vitrina devidamente catalogados e fichados. Mas
estragaram freqüentemente os primeiros trabalhos dos etnógrafos; a ll'eligião negra do Brasil é uma r~ão viva. Devemos porém
permite-nos descobrir a vida cotidiana dos habitantes, os gestos Õbservar que: ---
de todos os dias, o que é essencial para uma melhor compreensão
do conjunto. Mas esta ligação entre o cultural e o social conti- 1.0 - Com Durkheim, a pesquisa das funções vem em
nua a ser feita do ponto de vista da Antropologia Cultural, isto segundo lugar, após a pesquisa causal e histórica, pois se ela nos
é, ela se opõe às duas críticas seguintes: mostra por que um determinado fenômeno subsiste, não nos
explica por que êsse fenômeno existe, e isto fica particularmente
1.0 - O estudo de comunidades não pode ter um sentido claro nos candomblés que mudaram de funções no correr do
enquanto essas comunidades não forem ligadas a um ·conjunto, tempo;
regional ou nacional; as civilizações locais não passando de re-
flexos particulares de uma civilização geral que as abrange e 2.0 - Quando se pesquisa de um ponto de vista funciona-
lista a razão última de um fenômeno, chega-se sempre à mesma
2. 0 - O funcionalismo tende a ser a única perspectiva pela conclusão: assegurar a satisfação das necessidades humanas (se
qual o social é compreendido. se parte de Malinowski), assegurar a existência do grupo (se de
Radcliffe-Brown). Tanto num caso como no outro a explicação
Normas e sanções culturais representam modos tradicionais é muito geral para ter um valor explicativo. Uma vez que as mais
de ajustamento do individuo ( .•• ) No caso dos grupos de culto diversas instituições políticas, religiosas, familiares permitem a
afro-brasileiro, constituem-se êstes não somente em unidades de satisfação dos mesmos desejos de prestígio, de segurança, de
convivências particulares, dentro de nossa sociedade geral, como
em vetores de um sistema de valôres e de patterns freqüentemente novas experiências, do mesmo modo os grupos, quaisquer que
diversos daqueles adotados nos outros grupos dessa sociedade. ~les sejam, organizam a solidariedade entre seus membros. O que
fornecem ainda aos individuos que dêles participam, sem que lhes é importante não é a banalidade do comum, mas as diferencia-
seja necessário repudiar os demais valôres e estilos da cultura ções: por que o indivíduo procura satisfações aí e não em outro
luso-brasileira, um sistema de crenças e um tipo nôvo de relações lugar? POII' que a integração se faz nesse grupo e não em outro?
interpessoais amplamente favorável à redução de tensões. Pessoas
cujos status e papéis na sociedade global não lhes oferecem chance (54) René RIBEIRO, Cultos Afro-brasileiros de Recife, pp. 142-43.

38 39
Só uma análise sociológica da sociedade brasileira total pode-nos J domblé; esta integração da religião afro-brasileira nos quadros
do conceito sociológico. Ele realmente tentou, por exemplo,
permitir responder a essas questões.
eJt,aminar as relações ou reações das diversas classes sociais da
Gilberto Freyre, ao contrário dos autores precedentes, estu- Bahia; ou de· diversas épocas, em relação ao candomblé. Mas
da a situação racial brasileira como sociólogo, mais que como .seu livro é mais a justaposição de dois "sistemas de referência",.
etnólogo ou antropólogo, se bem que seja discípulo de Boas. o. dos soc;iólogos (conflito, acomodação, etc.) e o dos antropólo-
Sem dúvida, êle não estudou particularmente o domínio da Re- gos (assimilação, sincretismo, aculturação, etc.), que uma integra-
ligião, contentando-se nesse campo com observações feitas de . ção num todo bem coordenado. Ele permanece prêso à tradição·
passagem, como sôbre o culto de São Jorge ou sôbre a seita norte-americana. que separa as ciências da sociedade e das rela-
panteísta de Pernambuco; mas traçou, pelo menos para as épocas ções interpessoais, das ciências da civilização e das relações entre
colonial e imperial, o &l::t~ro sociológico no qual ocorreram o~. .valôres, ideais e representações coletivas. As seitas afro-brasi-
fenômenos de aculturação. Fazendo isso, êle ultrapassa os dois leiras não são, portanto, recolocadas no quadro do fenômeno·
pontos de vista, opostos mas igualmente valorizadores, do branco .social total que por si só lhe pode dar uma interpretação. Isso
e do negro. A aculturação, na verdade, tem sido estudada no bem compreen~eu Tullio Sepelli, que nos propõe uma definição
grupo negro; mas contràriamente ao que pensa Guerreiro Ramos, da aculturação afro-brasileira através do quadro das transforma-
nem Herskovits, nem seus continuadores brasileiros, têm a inten- ções do regime social.
ção de fazer a apologia da "brancura"; ao contrário, e justamente . Sepe_lli çensura o caráter unilateral das interpretações ante-
porque sempre se parte do negro, é descobrir, por meio de rein- -dores. A Antropologia negligencia as relações sociais entre se-
terpretações, a conservação das civilizações africanas. A Africa nhores e escravos e se preocupa apenas pela dinâmica dos fenô-
ocultou-se sob roupagens ocidentais, mas sua forma de família menos culturais. Gilberto Freyre descreve. essas relações mas
habitual sobrevive no concubinato, suas formas de trabalho cole- põe em segundo plano o fato de que a civilização do escravo não
tivo no mutirão, a independência econômica da mulher na divi- se originou dos quadros da sociedade brasileira, que foi tra-
são sexual do trabalho e pelo comércio do grupo feminino ... zida da Africa e que era ali o fundamento da existência. Res-
As duas censuras que Guerreiro Ramos faz à Antropologia Bra- taria, pois, a fazer, e é o que tenta nosso autor, uma interpre-
sileira, a apologia do "branqueamento" e o excessivo interêsse no tação unitária do sincretismo, considerando a relatividade dos
exotismo (o negro como tema em lugar de ser problema), valem diversos fatôres causais estabelecendo uma hierarquia das inte-
talvez para a primeira escola de que falamos mas não para a grações psíquicas e históricas. O quadro em que tenta esta in-
segunda, que insiste na pesquisa do cotidiano e na importância tegração lhe é fornecido pela situação social da escravidão, mais
do "não-branqueamento" cultural. Guerreiro Ramos não faz tarde a proletarização do negro, ligada a sistemas de produção (a
tampouco distinção entre a obra sociológica de Gilberto Freyre monocultura e as minas, a industrialização do Brasil). É nesta
e a dos etnólogos. Sem embargo, há entre essas suas concep- direção que, de fato,. é preciso empenhar-se. E os pequenos en-
ções uma diferença capital, além do fato de se relacionarem- a saios de Sepelli constituem certamente um grande progresso em
ciências diversas. O que os antrnpólogos ressaltam sob a ilusão relação às tentativas precedentes.
do sincretismo é o perpetuamento da civilização africana; o que Infelizmente o autor, proclamando seu repúdio ao unilate-
( ralismo e recusando aceitar unicamente a explicação econômica,
ressalta Gilberto Freyre é o estabelecimento de uma civilização
brasileira pela fusão das contribuições culturais do índio, do
1 acha-se ainda bastante ligado ao marxismo. De início, êle define
português e do africano, os traços da civilização freqüentemente a religião sempre como uma ideologia, o que impede de ver
que a Teologia Afro-brasileira pode, em certos casos, se conver-
se encontrando mais entre os brancos que entre os negros e os da ter em ideologia. A confusão entre obra cultural e jdeologia
civilização luso-ameríndia entre os negros mais que entre os torna-o cego para certas variações importantes da religião, que
brancos. +;,~ examinaremos. Em segundo lugar, sua explicação repousa, em
Podia-se esperar de~ sociólogo da escola de Chicago última análise, mais sôbre as formas de produção que sôbre as
que consagrou um livro importante à Bahia e que estuda o can- estruturas sociais, o que lhe permite perceber certos aspectos im-

40 41
port~!~s da questã?,. o papel da escravidão, por exemplo; mas Guerreiro Ramos, que escreve na sua problemática do negro
a rehgiao afro-brasileira nos parece menos ligada à escravidão brasileiro:
que ao trabalho artesanal dos .negros "livres" e é preciso recolo-
car a escravidão no conjunto dos quadros sociais da sociedade As teorias sôbre o negro brasileiro são o fruto de um_a visã_o
brasileira: sua estrutura familiar, sua organização política, cor- alienada, de uma visão exterior ao pais. ~~smo quai:do sao re_?1-
gidas por brasileiros, se inscrevem na trad1çao das ai:tigas relaço~s
porativa, religiosa. Deveremos considerar todos os fatôres que ara com a metrópole ( ... ) Os epígonos da nossa soc1oa~tropolog1a
entram em jôgo - demográficos, econômicos, sociais - em ~o negro desde Nina Rodrigues não fazem mais que compilar c?men-
todos os níveis e em tôdas as suas inter-relações. A dialética tários ( .•. ) às categorias de peritos europe;is e n?rte-ame:1can?s
social é mais rica que a marxista. sôbre 0 assunto... Entretanto, a compreensao ~fe~1va da s1t~açao
do negro no Brasil exigirá um esfôrço d~ ~r~açao met~d?log1ca
, Se esta Sociologia não pode substituir a Etnologia, deve in- e conceitua}. Ela tem particularidades historie.as , e . soc1a1s 9-ue
tegra-la e dar-lhe sentido. O que faltou a Sepelli foi justamente não podem ser captadas por processos puramente s1metr1~os Jaqueles
esta base etnológica. Ela é indispensável, como poderemos ver da ciência de expor~ação) ( ... ) . P:- . tar~fa que se impoe como
necessária para conJugar esta m1stif1caçao do te.maA - o ~eg~o
apenas por um exemplo. Na falta de uma pesquisa pessoal no no Brasil - é a de promover a purg;_ação dêsses chche~ conce1tua1s
campo, constatando nos livros que consultou somente a pobreza e tentar examiná-lo pondo entre parenteses ~s conotaçoe~ de nossa
dos mitos africanos, o autor considera como inexistência o que, ciência oficial e tentar compreender o obJeto a partir de uma
em realidade, é falta de informação, uma lacuna da pesquisa. situação vital. . . Qual será esta situação vital? Ao ~ut?r, parece
que esta é a do homem com a pele escura, quando o i_ndividuo se
Ora, êle acha para isso uma explicação na dialética histórica. E afirma de um modo autêntico como negro. Quero dizer que .se
sempre mais fácil encontrar explicações a posteriori. . . sobre- começa a compreender melhor o fenômeno q,uando se p~r~e. da afir-
tudo quando se tem um sistema! Quanto a nós, devemos descon- mação _ niger sum. Esta experiência. do niger su~ é! micialmente,
fiar de nossos modelos de interpretação, de nossos esquemas por seu significado dialético, na conJuntura bras~l~ira oi:de ~~do
mundo quer ser branco, um processo de alta rentabihdi::de cientifica
conceituais, porque poderíamos justificar tudo o que quiséssemos, ( ... ) A partir desta situação vital o problem~ efetivo do pe~ro
tanto o falso quanto o verdadeiro. O papel da Etnologia é de no Brasil é principalmente psicológ~co e s~cundàriamente econom1<;_0.
nos fornecer a base sólid.a sôbre a qual construiremos depois. :e Desde que se defina o negro como mgred1ente normal da populaçao
por êsse motivo que nós, após traçarmos num artigo os quadros do pais, falar de um pro~lema econômico do. negr~ desligado daqu:Je
das classes não favorecidas ou do pauperismo e um absurdo. ( )
conceituais da pesquisa que iríamos empreender,(1111) nos entre-
gamos, sem idéia a priori e sem pensar em qualquer teoria a No fundo, dois temas se confundem nesta crítica: a necessi-
uma investigação direta no ambiente das seitas afro-brasilekas dade do niger sum e o repúdio da Sociologia "Consular" ou de
c.om o fim de verificar primeiro a validade pelas descrições ante: Exportação. Não vamos aqui discutir a questão de saber se se
i:ores e, ~m s~gundo lugar, para completar as partes que haviam deve partir da experiência da negri!~d~ pa:_a ~oder compreend~r
s~do. . ~eghg~nciadas (culto dos mortos, mitologia, divinação, ce- as relações raciais ou se esta expenenc1a nao e d~formante (e ...e
nmomas privadas ... ) . Por certo nossa investigação é insuficien- é melhor, no caso, como pensam os norte-americanos, escolher
te em face da riqueza dêsses cultos.(~ 6 ) Pelo menos estamos um obserwtdor "neutro", o que fêz recair a escolha para estu~ar
conscientes de su~s falhas e não tentaremos explicar o que ainda
as relações raciais n:os Estados Unidos sôbre Myrdal, estrangeiro
está por descobrrr. Nossa tese é uma tese de Sociologia, mas
que se fundamenta numa longa observação etnográfica de vários em seu país). Mas, quando se passa do nível de grupos e das
anos. organizações ao nível dos símbolos e dos v~ôres, en~ão a com-
' preensão supõe a participação ou, com~ diz Guei:eiro Ramos,
Todavia uma dúvida nos assalta ao fim desta introdução.
~ode um branco tentar esta pesquisa etnográfica? Propor esta
1 "uma situação vital". Somente no Brasil, por motivos que exa-
mterpretação sociológica? Vamos aqui de encontro à recusa de minaremos, há uma dissociação entre a cultura e a raça. Encon-
tram-se no candomblé, espanholas "filhas-de-santo", membros
(55) Aludimos ao nosso artigo de Re~tsnce, "Structures Sociales et frances;s e suíços, com títulos diversos da hierarquia sacerdotal
Rellglons Afro-bréslllennes", publicado em 945, _!!!.l!!iL escrito anteriQr!nente.
(56) Esperamos que Pierre VERGER, que nduziu mala longe à. trivês-
tlgação etnográfica, nos dê, um dla, resUltados mala completos. (57) Guerreiro RAMOS, "O Problema do Negro na Sociologia Brasileira".
Cadernos ão Nosso Tempo, 2, 1954, pp. 207-15.

42
(não falo, naturalmente, de estrangeiros que têm títulos honorífi-
cos sem iniciação prévia) ; basta aceitar de coração a lei africana;
e a partir dêsse momento, não obstante ser-se branco, a pessoa
é tomada pelas participações místicas, pelos tabus, pela permea-
bilidade à vingança mágica. :e, o que faz com que se possa ser
negro no Brasil sem ser africano e, reciprocamente, ao mesmo
tempo, branco e africano. Posso, por conseguinte, dizer no prin-
cípio desta tese, africanus sum, na medida em que fui aceito por
uma dessas seitas religiosas, considerado por ela como um irmão
na fé, com os mesmos deveres e os mesmos privilégios que os
outros do mesmo grau. A experiência que daremos será uma · Primeira Parte
experiência vivida.
Quanto à crítica da Sociologia Consular, ela constitui, cre-
mos, uma tomada de posição útil contra aquêles que querem A DUPLA HERANÇA
aplicar métodos ou conceitos extraídos da Sociologia Européia
ou Norte-americana às realidades brasileiras sem uma crítica
prévia. Por si só, esta objeção de G. Ramos é válida apenas
para uma conceituação de tipo substancialista e não para uma
de tipo operacional, isto é, subordinada ao contrôle dos fatos,
moldando-se nêles, mudando com êles. Nossa tarefa é compreen-
der a realidade brasileira em tôda sua originalidade e não encer- .
·1·t
rá-la no geral, mas chegar até a generalização apenas quando (
ela trouxer algo de nôvo a uma Sociologia Teórica das relações ''
J
dialéticas entre estruturas sociais e religiões e entre civilizações
heterogêneas.
'•.,

44
CAPÍTULO I

A Influência de Portugal e da África


na América

A colonização da América, a princípio, não foi uma coloni-


zação de povoamento: o português, como o francês e o inglês,
criou feitorias no litoral para comerciar com os indígenas, com
paus-de-tinta, particularmente, e os primeiros brancos chega-
dos ao Nôvo Mundo, longe de impor ou propagar sua própria
civjlização, deixaram-se influenciar pela dos índios. Essas feito-
tj~(qpe eram simultâneamente mercados e pequenas fortalezas,
não eram numerosas porque o Oriente, com suas riquezas em
especiarias, em pedras preciosas e em tecidos resplandecentes,
dominava ainda o comércio luso. Só depois que o português foi
banido das lndias Orientais é que seu interêsse se voltou para a
América. Mas, a América só lhe podia fornecer poucas mercado-
rias, algumas plantas medicinais, o pau-brasil, papagaios multico-
res e macaquinhos divertidos. Para poder abrir o nôvo conti-
nente ao comércio era preciso, de início, introduzir aí novas
culturas coµio a do açúcar, cujo consumo começava a crescer
' na Europa, e a criação de uma agricultura comercial não
podia ser bem sucedida sem o povoamento dos novos territórios
descobertos pelo branco. ( 1 ) Por outro lado, os espanhóis en-
contraram nos caminhos de seus conquistadores minas de prata
e pedras preciosas; não conteria o Brasil também em seu vasto
interior jazidas de minérios? A sêde de ouro vai impelir a me-
trópole a organizax expedições, entradas ou bandeiras, à pro-
cura de µietais preciosos,( 2 ) o que supunha, antes de tudo,
o povoamento relativo do país. Por conseguinte, a colonização
(1) Sõbre esta primeira forma de colonização do Brasil, ver Alexander
MARCHANT, De Escambo a Escravidão, trad. port., S. Paulo, Ola. Ed. Nai-
clonal, 1943, 205 pp.; e sôbre a fus!l.o dos primeiros exploradores na civill-
zação ind!gena, G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 86.
(2) As bandeiras partidas de S. Paulo, ao contrário das entradas que
saiam das cidades do Nordeste, parecem à primeira vista mais espontâneas.
Mas Jaime CORTESAO, numa sérielde artigos do o Estado de S. Paulo, em
1948, mostrou que o govêmo contrc\ava também o movimento bandeirante.

47
no século XVI vai mudar de caráter e, permanecendo unida ao colonização; certos historiadores quiseram aí ver a implantação
·capitalismo comercial, característico da época, efetuar-se-á com do regime feudal na América, exatamente quando êle se desmo-
o povoamento. ronava na Europa; outros, pelo contrário, insistiram sôbre seu
Portugal, entretanto, se ressentia da falta de mão-de-obra, caráter capitalista.( 5 ) :É preciso, cremos, distinguir entre a or-
mesmo para sua agricultura local; grande parte dêsse país em- ganização jurídica e as finalidades do sistema; juridicamente, ·
bora pequeno, continuava no século XVI carente de homens, constituía uma feudalidade, mas êste nôvo regime feudal não
.quase sem cultma, pois as guerras de conquista, as pestes, as epi- era mais que um meio de atrair os brancos ao Brasil, sem ônus
·demias fizeram grandes claros na população. :É por isso que a para a Coroa portuguêsa e o fim último da emprêsa, finalmente,
·Colonização americana vai tomar uma forma especial, vai se fazer tem conexão com a mentalidade mercantilista do século XVI. O
sob o signo da ç§cravidão. Aliás, Portugal a isto já estava habi- problema, aliás, não nos deve reter longamente, visto que essas
tuado pois que fizera trabalhar em seus campos os descendentés capitanias hereditáll'ias deviam malograr, e a metrópole foi obri-
·dos árabes conquistados e depois os prisioneiros de guerra feitos gada a substituir êsse primeiro sistema de povoamento por um
na África do Norte. Tinha mesmo adotado, em seguida à sua outro, o contrôle feudal pelo contrôle governamental. Em 1548
·exploração das costas africanas, a escravidão dos negros; sabe-se a Coroa nomeia um governador geral para representá-la na Co-
que, em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era compos- lônia e, a partir desta data até o fim do período colonial, a cen-
ta de escravos negros. Bastava, pois, transportar êste costume da tralização e o ll'efôrço do poder real irão aumentar sem cessar.
metrópole ao Brasil e fazer trabalhar nas plantações que aí se iam Todavia, essa mudança política não devia ter influência no
instalar a massa de indígenas escravizados sob o contrôle e em desenvolvimento da economia porque a cana-de-açúcar não se
:benefício de uma minoria branca. ( 3 ) Deixar-se-ia, ademais, prestava a pequena cultura; reclamava, para prosperar, a grande
êsses brancos, excitados por um clima mais sensual e pelo conta- plantação.
to com belas jovens nuas, misturarem-se com a gente da terra,
dando origem a uma multidão de bastardos e de mestiços que Já para desbravar e preparar convenientemente o terreno
(tarefa custosa nesse meio tropical e virgem tão hostil ao homem}
·formariam, entre o colonizador branco e o índio selvagem, uma tornava-se necessário o esfôrço reunido de muitos trabalhadores;
classe intermediária de maneira a amortecer os choques de civi- não era emprêsa para pequenos proprietários isolados. Isto feito,
lizações, a propagar os valôres portuguêses no sertão e a ajudar a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos
o povoamento do país graças a uma população mais assimilável onde se preparava o açúcar, só se tornavam rendosos quando realiza-
dos em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno produtor nãó
.que a população indígena às formas µiodernas do trabalho. ( 4 ) podia subsistir. (6)
Mas, para atrair os colonos brancos para uma terra estra-
nha e inóspita, coberta de vastas florestas, povoada por ín- A monocultura forçava ao latifúndio e êste, por sua vez,
dios antropófagos, era preciso, naturalmente, dar a êsses ousa- reclamava a escravidão. Recorreu-se naturalmente, de início, à
·dos conquistadores privilégios consideráveis. A costa do Brasil mão-de-obra que se encontrava no país, isto é, à mão-de-obra
foi dividida em doze setores por linhas paralelas e tôda a exten- indígena. Esta devia se manter por muito tempo ainda, sob for-
são do país, a partir do litoral até o mistério de seu interior, foi mas mais ou menos hipócritas, nos extremos Norte e Sul do
·dada a título hereditário a capitães que, em troca das despesas Brasil; oorém, nas grandes plantações de cana, o africano, desde
·de transporte e de instalação, recebiam direitos de soberania sô- o fim' d~ século XVI e sobretudo no século XVII, devia substituir
bre o território outorgado: direito de nomear as autoridades ad- gradualmente o índio. Os historiadores pesquisaram as causas
ministrativas, direito de justiça, direito de distribuir terras, direi- dessa mudança da mão-de-obra. A primeira e a mais importan-
:to, enfim, de receber em seu proveito taxas e impostos sôbre te delas foi o estado de civilização do aborígine, habituado ao
seus futuros súditos. Discutiu-se muito o caráter dessa primeira (5) Femando de AZEVEDO, A Cultura Brasileira, p, 89. Oliveira. VIANA,
Pequenos Estudos a.e Pstcologta Social e Instttutções Políticas Brasileiras, t. I,
cap. IX, Caio PRADO Júnior, Evoluçlto Política d.o Brasil, cap. I, A. R~OS,.
(3) Caio PRADO Júnior, História Económica d.o Brasil, pp. 21-31. Introãuçlto à Antropologia Brasileira, t. II, p. 120. R. SIMONSEN, Histó.ria
(4) G. FREYRE, op, ctt., pp. 46-7, ·,nsistlu sõbTe o caráter "politlco" e Econômica d.o Brasil, t I, pp. 124-27.
:não apenas "sexual" desta primeira form.)!. de miscigenação, c!. p. 214 e segs. (6) Caio PRADO Júnior, História Econômica ão Brastz, p. 41 •

.48 49
nomadismo e a uma agricultura itinerante que não podia se sub- transportar 54 500 africanos todos os anos, era preciso uma flo-
meter ao trabalho sedentário, do mesmo modo que "à disciplina, tilha de 185 barcos com capacidade para 300 pessoas cada um,
ao método e ao rigor de uma atividade organizada". A segunda exclusivamente empregada no tráfico, não havendo no século
foi a reação da Igreja Católica contra a escravidão do índio que XVIII mais que 50 barcos entre os portos d.? Nordeste e. da
impedia a sua cristianização. Sem querer subestimar êsse segun- Africa fazendo uma viagem cada 2 anos; e o numero de veleiros
do fator, êle nos parece ainda assim menos importante que o que chegavam ao Rio .não devi.a ser muito maior.(1~) , .
primeiro porque, no Maranhão e em São Paulo, onde os brancos Para encontrar cifras mais exatas, restam dms poss1ve1s
não eram tão ricos para importar "peças de ébano" da África, métodos, um mais econômico e o outro mais histórico. Roberto
os senhores se levantaram contra as ordens religiosas que os im- Simonsen parte da duração média da vida dos escravos, segundo
pediam de escravizar os indígenas e chegaram mesnio até a os testemunhos de seus contemporâneos (que seria de sete anos
expulsar os jesuítas. Se o elemento índio tivesse se mostrado de vida efetiva) e da produção do país:
apto ao trabalho agrícola, não há dúvida de que se teria encon-
trado um modus vivendi como na América Espanhola; foi seu A produção total do açúcar,_ no século X~II, é calculada .s~gundo
nossos gráficos, perto de 180 milhões de. arrobas. ( 11) Admi tmdo-~e
fracasso nas plantações mais que a proteção da Igreja que cau- que a produção média por escravo seJa de 5? arrobas, que n~o
A

sou sua substituição pelo negro.( 7 ) é grande para terras virgens, e uma perda ocasionada pela duraçao
Quantos negros foram trazidos ao Brasil? :E'. evidente que de vida de 7 anos do escravo, concluiremos que a pro_?ução ~çuca­
se pudéssemos dar uma resposta exata a esta pergunta, ela seria reira do século XVII absorveu 520 000 escravos. Desse numero,
deve-se ter importado do Continente Africano no máximo 350 000
para nós da maior utilidade porque a solidez da implantação de ( .•• ) O total do volume de açúcar exportado de 1700 a 1850 dev.e
uma civilização num país depende do número de seus migrantes. chegar ao máximo de 450 .mil~ões de. arrôbas .. ~egundo nosso cri-
Infelizmente, os documentos oficiais sôbre o tráfico negreiro fo- tério, esta produção necessitaria, na pior das h1poteses, de Al 300 000
escravos. Não parece exagerado calcular que um quarto deste ~on­
ram queimados depois da supressão do trabalho servil, a fim de tante seria constituído do braço indígena e de escravos nascidos
apagar a µiancha escravocrata do brasão do país apesar dêsse no Brasil. Chegaríamos assim à cifra de 1 000 000 de escravos
gesto sentimental não facilitar a tarefa dos historiadores. Por importados neste período. O século XVIII foi o século do ouro ( ... )
certo, sempre existe nos Arquivos Municipais dos portos uma Estabelecemos mais acima a produção de 200 gramas de ouro por
homem.· Teremos, pois ( ... ) supondo uma produção geral de
documentação sôbre os direitos alfandegários pagos à chegada
(10) A. de E. TAUNAY, op. cit., p. 247 e Maurício GOULART, A Escra-
dos escravos, mas esta documentação - que, aliás, não está viã4o Africana no Brastl, p, 275. ~ preciso acrescentar ainda: 1) Que Calógeraa
ainda totalmente publicada - não é suficiente, e os historiadores superestima o tráfico clandestino que certamente existiu, mas que segura-
mente não duplicou o tráfico regular e, 2) Que êle elimina a reprodução
são obrigados a confiar em generalizações a partir de dados frag- do negro no Brasil, baseando-se no depoimento de Eschwege, que atribui ao
negro uma taxa negativa de crescimento, o que está em contradição com as
mentários ou a sugerir hipóteses. Não é surprêsa, nessas condi- estatistlcas conhecidas, e o próprio cálculo de Eschwege está errado. De fato,
êle atribula uma taxa de -2,19% para os mulatos e -3,95% para os negros.
ções, que os números variem de um autor a outro. Se ao menos Calógeras conclui que todos os negros Importados deviam desaparecer neces-
essas variações fôssem pequenas teríamos uma certeza aproxima- sàrlamente ao fim de 20 a 25 anos, e que "logo, para manter um n!vel
constante deveria haver de 4 a 5 renovações por sécUlo". Mas essas taxas
da; mas, elas variam de 12 a 14 milhões para Calógeras( 8 ) para negativas' só valem para Minas no século XVIII. Maurício GoUlart cita para
outras regiões e para outras épocas coeficientes positivos de 0,05% a 0,2%.
apenas 2 500 000 para Pedro Calmon! :E'. evidente que êste últi- As pesquisas que eu mesmo realizei nos arquivos de São Paulo mostram que
mo número é bastante baixo porque equivale a uma média de as taxllll negativas do sécUlo XVIII tornam-se positivas a partir do século
XIX (de +7,6 a +18%). Mesmo para o sécUlo XVIII o cálculo de Calógeras
8 333 negros por ano, número êsse que é desmentido pelos mostra-se falso, porque se se deduz de 100 escravos aos primeiros -4,5, Isso
seria realmente uma diminuição de 4,5; mas os segundos -4,5 tirados agora
documentos já publicados. Calmon percebeu isso e modificou êsse de 95,5 não farão mais que 4,03, e assim sucessivamente, até aue no fim
de 25 anos restariam ainda 32 negros dos 100 primeiros Importados. A
número em seguida, elevando-o para a ordem de 6 milhões.( 9 ) êBSes erros capitais, Oalógeras acrescenta outros; por exemplo, adiciona
De outro lado, a cifra de Calógeras é muito alta porque, para aos 92 128 escravos contados nos Impostos por cabeça do primeiro semestre
em Minas os 92 740 do segundo semestre, sendo que êBSes Indivíduos são
(7) G. FREYRE, op. cit., pp. 152-54. . os mesmo~ o pagamento do lmpôsto se fazendo em duas vêzes; ou ainda,
(8) Pandlá CALóGERAS, :A Polttica Exterior ão Império, cap. IX, p. 283 como entr~ 1575 e 1591, 52 053 negros saíram da Colônia Portuguêsa de
e sega. e 302. Angola conclui que todos êles entraram no Brasil, quando Portugal nesta
(9) Pedro OALMON, História Soctal ão Brastl, citado por TAUNAY, época estava prêso ao tratado com as índias de Castela, M. GOULART,
Subsídios para a História ão Tráfico Africano no Brastl, p. 239. op. cit., p. 155.
(11) Arrôba: pêso português de 32 libras de 16 onças cada uma.

50 51
i!

são inúteis como, por exemplo, as narrativas de certos viajantes


1 200 000 quilos e uma duração média de vida de 7 anos, um total
de 860 000 escravos dos quais 600 000 ou 2/3 teriam sido importados. onde o gôsto pelo exotismo leva a ver no Brasil "um país n€>-
O café começou a aparecer como valor nacional apreciável a partir gro". (15) Entretanto, êle também chega a uma cifra total que
de 1820 ( ... ) Sua exportação total durante o período do tráfico não está tão longe daquela de Simonsen: 2 200 000 a 2 250 000
africano não atinge 150 milhões de arrôbas. A produção média para o período colonial, 1 350 000 para o século XIX, f. que
anual por escravo deveria ser superior a 100 arrôbas. O café não
é, pois, responsável senão pela importação de 250 000 escravos apro- daria uma importação total ~e 3 500 000 aLl__§.0.9 . QQ.g africa-
ximadamente, o que nos dá, com 1100 000 negros para as outras nos.(16) Certamente que mmtos outros africanos foram arran-
Pjº~uções-agrícolas e para os serviços domésticos uma cifra total cados de seu país para serem transportados ao Brasil, mas acor-
d~~~~ -~~~]< 12) , rentados nos navios, comprimidos uns contra os outros, foram
dizimados por moléstias contagiosas, pela fome ou sêde, e seus
Taunay com a ajuda da documentação histórica chega a corpos lançados ao oceano. Às vêzes, somente a metade da carga
uma cifra aproximada de 3 600 000. O tráfico foi bastante re-
chegava ao seu destino.( 17)
duzido de 1540 a 1560; elevou-se progressivamente a partir desta Por conseguinte, podemos concluir que hoje há um acôrdo
data, mas não atingia no fim do século uma cifra superior a 3 ou em relação a uma quantia aproximada de 3 milhões e meio de
4 O~~ cabe?as por ano. No século XVII, quando a navegação negros chegados ao Brasil desde os primórdios da colonização
mantuna foi fortemente perturbada pela pirataria francesa e inglê- até ao fim do tráfico legal ou clandestino.( 18 )
sa e pela guerra com os holandeses para a conquista do Brasil Se os navios negreiros desembarcavam cargas cada vez
não se pode ultrapassar a média de 6 000 escravos entrado~ mais numerosas de africanos, a emigração portuguêsa ao Brasil,
anualmente. No século XVIII a mineração criou uma necessida- por sua vez, acelerou-se sobretudo com a descoberta de minas
de maior de mão-de-obra e provocou um afluxo mais elevado das de ouro no século XVIII e com o progresso dos empreendi-
entradas de africanos, mas a segunda metade do século vê a mentos comerciais _no século XIX. Malgrado nosso, não dis-
decadência da indústria açucareira como também a da minera- pomos de estatísticas bastante seguras sôbre a composição racial
ção, o que faz com que Taunay proponha uma média anual de da população no curso dos diferentes séculos. Segundo o Padre
~3 000 escravos. Se essas primeiras cifras permanecem hipoté- Anchieta havia em 1585: 24 750 brancos, 18 500 índios civili-
ticas, Taunay, por outro lado, conseguiu reunir para o século zados e 14 000 africanos. Rocha Pombo calcula a população
XIX uma documentação assaz rica sôbre o tráfico, permitindo-
brasileira de 1600 em 30 000 brancos, 30 000 negros e 70 000
-lhe calcular entre 1800 e 1856 uma entrada de 1 562 000 afri-
canos no país. Isso nos dá em definitivo o seguinte quadro: indígenas civilizados ou mestiços. Em 1660, no fim da guerra
contra os holandeses, haveria 74 000 brancos e índios livres,
século XVI .......... 100 000 110 000 escravos, em geral africanos ou crioulos. Em 1798, se-
século XVII .......... 600 000 gundo Perdigão Malheiro, 1010000 brancos, 250 000 índios,
século XVIII .......... 1 300 000 406 000 mulatos ou negros livres, 1 582 000 negros ou mulatos
século XIX .......... 1 600 000 (15) Iã., ibiã., pp. 114-15, FREZIER, por exemplo, calculou que na Bahia
havia. 20 negros para. l bra.nco, Belation de Vayage dans la Mer du Suã,
3 600 000(13) pp. 271, 275, 279.
(16) lã., ibiã., p. 272.
(17) Ver sôbre o tráfico negreiro e seus horrores, TAUNAY, op. cit.,
Maurício Goulart, o último historiador que se preocupou pp, 123-31. J. F. de ALMEIDA PRADO, Pernambuco e as Capitanias ão Norte
ão Brasil, p. 246 e segs. J. DORNAS Filho, A Escravidlio no Brasil, pp. 57-61,
com a questão, recusa-se a fazer hipóteses como Simonsen, cujos Charles de LA RONCll:RE, Negres et Négriers, cap. III.
(18) Ao la.do das obras gerais sôbre o tráfico, existem algumas sôbre
da~~s lhe parecem por demais arbitrários.(14) Ele prefere a o tráfico pa.rtlcula.r pa.ra. uma região, como a de Luiz VIANNA FILHO, O
análise dos documentos e estatísticas com a condição de sub- Negro na Btthia, Rio, J. Olympio, 1946, p. 167 ou a de Ciro T. de PADUA,
O Negro no Planalto, S. Pa.ulo, Imprensa. Oficial, 1943, pp. 127-22'8. Deixamos
metê-los a uma reflexão crítica, já que µmitos dos documentos de la.do propositada.mente o estudo do tráfico negreiro e da. esCTavidão negra.
no Bra.sil hola.ndês, que não deiXou traços suficientes para,. serem registra.-
(12) Roberto C. SIMONSEN, História Econômica ão Brasil 1500-1880 t I dos na. história. ulterior do Bra.sll. Ver sôbre a. questão: WATJJ!rN, O Domi-
pp, 201-5. , ' . • nio Colonial Hollanãez, p. 378 e segs., 487. Gonç~lves de MELLO NETO,
(13). A. de E. TAUNAY, op. ctt., pp. 304-5. Tempo dos Flamengos, pp. 208, 222, 229.
(14) M. GOULART, op. cit., p. 149.
53
52
escravos. A estatística oficial de 1817-1818 dá para todo o Brasil Mas a herança africana já então se manifestara largamente
uma população total de 3 817 000 habitantes dos quais 585 000 no curso' dos três séculos precedentes, tempo suficiente para se
mulatos e negros livres e 1930000 escravos.( 19 ) Desta ma- implantar e subsistir ao lado da herança portuguêsa.
neira, no início do século XIX os negros dominam demogràfica-
mente os brancos, o que permite compreender porque êles pude- *
ram manter parte de sua herança cultural e mesmo, por motivos * *
que posteriormente veremos, influenciar a civilização dos por- Todavia, é preciso fazer entre essas duas heranças uma
tuguêses. .Entretanto, é preciso não esquecer que os brancos distinção capital.
comandam e dirigem, que o escravo é rejeitado da comunidade Portugal importa sua sociedade ao mesmo tempo que sua
nacional e que esta estratificação das côres prejudicou em maior civilizàÇão. A escravidão, pelo contrário, destrói a sociedade
ou menor grau a ação do fator demográfico. itfrfoana, e o negro não pode trazer consigo, ~os costados dos
A partir do século XIX as proporções se invertem, não em n.avios negreiros, mais que seus valôres culturais.
benefício do grupo branco e sim do grupo dos mestiços; todavia, O português deve se adaptar~ a um. nôvo ~eio e as mod.~­
aqui ainda os dados que temos são pouco seguros. Rugendas, cações que sofrerão sua organ1zaçao soc,1~, assim co_mo sua c1v1:
por exemplo, estima para 1827 a população total do Brasil em lização serão, sobretudo, de ordem ecologica. O africano devera
3 758 000 habitantes ao passo que Malte-Bruna eleva em 1830 se adaptar, pelo contrário, a uma, socied.a~~ be:n diver!a da sua
para 5 340 000; Rugendas pensa que não havia mais que 845 000 que lhe é imposta pelo branco, e e sua c1vibzaçao que el~ deverá
brancos e 628 000 mestiços, enquanto as cifras dadas por Malte- adaptar a fim de incorporá-la numa outra estrutura social.
-Brun para êsses dois grupos étnicos são respectivamente Na sua nova terra, os primeiros colonos brancos tentaram
1 347 000 e 1 748 000. Os dois autores estão mais ou menos de inicialmente implantar o país que haviam deixado com suas hor-
acôrdo em relação ao número de negros: 1 987 000 para o pri- tas e jardins, seus campos de trigo e seus vinhedos, seus galinhei-
meiro e 2 O17 000 para o segundo. Mesmo as estatísticas de ros e seus currais, suas igrejas barrôcas e suas casas de pedra
escravos que aqui nos poderiam ser de grande utilidade apresen- um pouco sombrias e austeras. A nostalgia que guardavam ~m
tam grandes divergências: o conselheiro Velloso de Oliveira esti- seus corações da terra natal, de suas montanhas e de suas praias
mava seu número em 1819, em 1107 000; em 1850, o senador não os abandonou sob o sol ardente dos trópicos e quiseram
Cândido Baptista de Oliveira o elevou para 2 500 000 e em criar no sentido exato da palavra, uma "Nova Lusitânia". Seus
1869, o senador Tbomaz Pompeu de Souza Brasil o reduziu para navi~s desembarcavam junto com os primeiros feudatários, arte-
1 690 000.( 2 º) Tomando-se por base o recenseamento de 1872, sãos, monges, sementes, cavalos, blocos de granit? p~a a cons-
não obstante a maioria das pessoas de côr serem analfabetas e trução de casas, blocos de mármore para levan~ar igrejas a peus.
sua qualificação racial depender ou de seus senhores quando A nova sociedade que se modela quer continuar a sociedade
escravas, ou dos recenseadores quando livres, ainda assim êle portuguêsa até nos mínimos detalh~s. Já dissemos que as ~apit~­
constitui o dado mais seguro que podemos utilizar: permite-nos nias hereditárias foram uma tentativa para calcar a orgamzaçao
verificar a inversão a que aludimos. Naquela data, havia no feudal no solo da colônia americana. Poderíamos dizer o mesmo
Brasil 3 854 000 brancos, 4 862 000 mulatos ou mestiços (dado das primeiras ~idades. Eram elas administradas como as de
no qual é preciso computar um certo número de mestiços de Portugal por Câmaras municip~is c~mpostas de representan~es
índios) e apenas 1996000 negros.( 21 ) Começara o branquea- eleitos entre os "homens bons", isto e, entre os grandes proprie-
r mento do país ou sua "arianização" como às vêzes se diz.
tários fundiários; os p~imeiros artesãos se agruparam em "corpo-
rações" com seus juízes, seus regulamentos, seus exames para
(19) Perdigão MALHEmo, A Escravidllo no Brasil, 3 vois., Rio, 1867. F. ascender ao grau de mestre e em confrarias de ofício sob a prote-
OONTREmAS RODRIGUES, Traços da !Economia Social e Polttica do Brasil
Colonial, pp. 93-4. ção de um santo católico. A própria família, pelo menos a dos
(20) Glorgio MORTARA, O Desenvolvimento da Popu!açllo Preta e Parda
no Brasil, IBGE, Estudos demográficos, n.0 18, p. 2. nobres, não é diferente da família dos fidalgos da Côrte, muito
(21) Recenseamento da Populaçllo do Império do Brasil a que se Pro-
cedeu no Dia 1.• àe Agôsto de 1872.
maior que a família plebéia, com seus "criados", isto é, seus pro-

54 55
~!'.
')
1

tegidos, educados, casados, dotados pelo senhor e que aqui tomam r atüem · para· remodelá-las e fazê-las evoluir numa direção dife-
rente daquela das famílias que ficaram em Portugal. A po-
o nome de "crias". (2 2 )
Esta sociedade foi obrigada a se transformar a fim de se voação tão tipicamente portuguêsa com seu rico folclore, seus
adaptar a outras condições de vida da mesma forma que o tipo grupos de vizinhança, seus bens comunitários, seus hábitos de
de casa construída precisou abandonar a pedra pela taipa ou àjuda ·recíproca e de cooperação vicinal, sua solidariedade em
pela terra batida, tornando-se também maior, prolongando-se tômo.da igreja paroquial, deixa de existir no Brasil; em·vão, o
em terraço aberto, em varanda segundo a moda oriental para govêfno··metropolitano tenta fundar aldeias, burgos, concedendo
permitir ao português tomar a fresca nas doces horas do anoite- ordens ou elogios aos construtores e criadores de "lugares de per
cer. O trigo e a videira não frutificaram. Os colonos precisaram voamento";(~) e, em conseqüência, êsses povoados factícios,
aceitar os hábitos dos índios que estavam casados com a natu- cenários exóticos plantados no campo, conservam suas casas
reza ambiente, isto é, substituíram o pão de trigo pela farinha de vazias a maior parte do . ano e não ganham vida senão nos dias
mandioca, o leito muito quente pela rêde, os antigos instrumen- de festas religiosas, de procissões, de convocações das câmaras
tos de caça e de pesca pelos dos indígenas; adotaram seus barcos municipais, quando os proprietários deixam seus domínios rurais
feitos de casca de árvores ou cavados num tronco para subir os para discutir seus negócios e render homenagens à divindade.
rios; começaram a gostar dos frutos do país e do tabaco que A agricultura comercial na forma de plantações exige o latifún-
mascavam, aprendendo a tragar a fumaça à moda dos índios. dio e êste, por sua vez, com sua cultura itinerante, suas reservas.
A horta ou a chácara portuguêsa, o pomar, foram abandonados florestais, suas terias exauridas deixadas em alqueive, separa os
para serem substituídos por grandes plantações de cana-de-açú- homens mais que os reúne. Cada família vai viver concentrada
car, o que ainda os forçou a modificar seus antigos métodos de em si mesma, no interior de sua Casa-~ande e de seu domínio
produção, sua agricultura tradicional para aceitar a dos indíge- numa espécie de autarquia econômica, bastando-se ~ si própria,
nas, o desbravamento da floresta e a cultura itinerante entre separada das mais próximas por léguas e léguas sem outras estra-
as queimadas.( 23 ) Tudo isso não ultrapassa certamente o cam- das a não ser as vias fluviais ou caminhos muito inóspitos, rece-
po da ergologia; os empréstimos são mais materiais que sociais bendo visitas nos dias raros de casamentos, de aniversários. Há,
e são impostos menos pelo índio enquanto índio que pelas ne- portanto, do ponto de vista morfológic~J entre a sociedade rurat
cessidades do meio, do clima, necessidades às quais o índio soube portuguêsa de tipo comunitário e a sociedade rural brasileira, de
dar soluções que na prática provaram ser eficazes, melhores que habitat disperso ao máximo, uma diferença essencial, e esta
as técnicas ou os objetos transportados do outro lado do Atlân- diferença não podia deixar de repercutir nos outros níveis.
tico. da organização social. E, de início, esta sociedade não é
Mas, essas novas condições de vida também vão em breve uma sociedade estruturada; as fôrças cen'trífugas predominam
fazer romper a organização social herdada, quebrá-la em uma sôbre as fôrças de coesão; os únicos laços que podem reunir essas
multidão de famílias sem ligação orgânica umas às outras. O células autônomas são os laços de parentesco ou de casamento,
Brasil agiu sôbre a sociedade portuguêsa que se lhe queria im- e ainda o casamento é freqüentemente endogâmico, às vêzes.
plantar à maneira de uma carga de dinamite que fêz esta socieda- entre tios e sobrinhas, amiúde entre primos-irmãos,( 25 ) o que·
de explodir em pedaços; e, certamente tôdas essas partes, isto é, faz com que ao clã feudal, para empregar as expressões de Oli-
as famílias permanecem partes "portuguêsas" por seu gênero veira Vianna, isto é, do clã formado no interior do domínio pelo
de vida, suas regras de parentesco ou de casamento, suas tradi:... senhor, sua fa)l1ília, seus escravos, seus homens livres, servos ou
ções e seus rituais; não impede que seu isolamento, sua dispersão · administrados, seus "índios de flecha", se ajunte o clã familiar
numa terra imensa, sua distância da metrópole pouco a pouco composto de famílias unidas tôdas pelo parentesco e pelo casa-
mento. Mas êsses clãs permanecem independentes uns dos ou-
(22) Costa LOBO, História da Sociedade em Portugal no Século XV,
Lisboa, 1903, pp. 427-28. (24) Oliveira VIANNA, Instituições Políticas Brasileiras, t. I, pp. 119-20.
(23) Sôbre essas Influências lndlgenas, ver Sérgio BUARQUE DE (25) Alfredo ELLIS Júnior, Capítulos da Hístóría Social de s. Paulo,.
HOLLANDA, "índios e Mamelucos na Expansão Paulista", Anais do Museu p. 121, calcula com a aluda dos livros genealógicos, tão reputados no Brasil,
Paulista, XIU, 1949, pp. 177-290, Raízes do Brasil, p. 42. G. FREYRE, Casa- o índice de consangüinidade em 23,3% e em 42,1% na província de S. Paulo.
-grande e Senzala, trad. fr., pp. 81-156. contra 2% na França e 7% na Noruega, o pala europeu onde êste indlce
é o mais alto.

56 57'
tros; a solidariedade também não ultrapassa suas fronteiras flu- a levar as suas colheitas ao engenho do senhor; camponeses a
tuantes e indecisas.( 26 ) Por questões de terras disputadas, por quem êle dá permissão de, em troca de alguns dias de trabalho,
amôres não aceitos pelo patriarca, batalhas sangrentas semelhan- construir na sua propriedade uma casa, fazer um jardim, mas
tes às vendetas, desenvolvendo-se às vêzes em encontros de ban- que êle pode despachar impunemente quando bem lhe aprou-
dos armados, lançam essas famílias umas contra outras, os ver, e que se misturam com os índios, perpetuam-se em filhos
Montes contra os Feitosas, os Pires contra os Camargos ... ( 27 ) mestiços; em suma, todo um bando de "agregados", de índios
É o que faz que a História do Brasil Colonial seja mais a histó- "administrados", de protegidos, "o que é muita gente", como
ria de um caos de disputas que a história da administração diz Gabriel Soares em sua linguagem arcaica. Portanto, foi
metropolitana unificadora e orgânica. O govêmo empregará to- o engenho ou a grande propriedade de cultura ou de criação que
<!e>s os seus esforços para reunir numa solidariedade política substitui no Brasil a povoação portuguêsa. Mas quem não vê que
êsses membra disjecta freqüentemente antagônicos, nomeando, no Brasil a solidariedade se manifestou de forma tão diferente?
por exemplo, um "juiz de fora" encarregado de representar o o
Ela não repo'Usamais sôbre trabalho comunitário, sôbre a coo-
poder real frente às Câmaras dos "homens bons" que defendem peração democrática e sim sôbre o trabalho escravo, a servidão
os interêsses dos plantadores e dos grandes proprietários fundiá- dissimulada dos mestiços, a hierarquia familiar. Solidariedade tão
rios; e mesmo na Bahia, substituindo a eleição dos conselheiros frágil quando se passa do centro (Casa-grande do senhor e sen-
municipais por sua nomeação, multiplicando também a partir do zala dos riegros) à periferia, às casas de argamassa dos pequenos
século XVII o número de seus funcionários; em vão, esta unida- proprietários sem escravos ou dos trabalhadores sem terra que
d~ política fica como uma espécie de superestrutura, útil sem formam simplesmente uma clientela no gênero daquela do pa-
dúvida ao govêmo real para a coleta de impostos ou para a triciado romano. Entretanto, era preciso que esta; solidariedade
defesa da colônia, mas sem raízes autênticas nas realidades bra- para se consolidar revestisse formas orgânicas; elas foram to-
sileiras. O dito do Padre Vieira, que como bom português e cató- madas de empréstimo dos costumes católicos do "compadrio"
lico espantou-se diante da situação, permanece válido: "E cada e do "comadrio"; o laço espiritual ou il'eligioso juntou-se ao laço
família chega a ser uma República". da dependência econômica ou social para corrigi-lo, para dar-
Contudo, se como dissemos, a sociedade portuguêsa explo- -lhe uma coloração afetiva e sentimental que não tinha em sua
diu, cada fragmento continua sendo parte da sociedade portuguê- origem. O compadrio que podia tomar formas diversas, com-
sa transplantada. A estrutura da família nobre, a única que nos padrio de batismo com o nascimento de uma criança, compadrio
interessa no momento porque foi ela que se tomou o nôvo núcleo d~ casamento e mesmo compadrio das fogueiras de São João,
de solidariedade no Brasil, continua a estrutura da família do criava entre o padrinho, a madrinha e seus afilhados ou afilha-
fidalgo português adaptando-se a um meio onde primeiro os das tôda uma série de obrigações recíprocas e de tabus sexuais,
índios e depois os escravos negros substituíram a plebe rural de
brancos. De.fato, é ao redor do senhor de engenho ou do senhor fazendo desta forma de parentesco, um parentesco tão forte como
de gado que se agrupam todos aquêles que vivem à sombra de se fôra de sangue, salvaguardando a hierarquia dos estratos so-
sua Casa-grande: primeiro sua fl!Jllília sôbre a qual exerce um _çi~; deveres de proteção para com o compadre, de educação
poder absoluto, casando os filhos à sua vontade, traindo sem 1 de seus filhos, de dote para a afilhada da parte dos padrinhos,
deveres de ajuda, de respeito, e obediência da parte das "coma-
escrúpulos sua µrnlher, sem se ocultar, com suas amantes de côr;
os escravos, que êle pode punir, matar impunemente; seus negros
·r
1
dres" ou dos afilhados ... (28)
livres, condutores de carros-de-bois, marceneiros, ferreiros, tro- A luxúria do brasileiro sôbre a qual Paulo Prado tanto
peiros que conduzem o gado do sertão ao litoral, feitôres vigian- insistiu em seu Retrato do Brasil não deve, pois, nos iludir; esta
do os cortadores de cana, os limpadores de açúcar, etc. Também família conserva seus valôres católicos portuguêses; a capela
~.@c_os _pobres", pequenos proprietários que são obrigadós (28) Ver sôbre o compadrio O. VIANNA, op. cit., p, 263 e sega. Vianna
cita essas palavras tipicas de um viajante, Richard Burton: "Nos pequenos
(26) o. VIANNA, op. cit., caps. IX ex. Populações Men«tionals, cap. IX. lugares todos os habitantes estão ligados pelo batismo se não o estão pelo
(27) Costa PINTO, Lutas <te Famfüas no Brasil, s. Paulo. A. de E. sangue"; e o bom artigo sintético de CAMARA CASCUDO, Dicionário do
Folclore Brasileiro, p, 189.
TAUNAY, Sob El Bey Nosso Senhor, cap. 19.

58 59
apóia-se nos muros da Casa-grande. Mas o catolicismo ~plan­ tudo no indígena e depois no negro u'a máquina de trabalho ou
tado é o catolicismo da Contra-Reforma que, em oposiçao ao de prazer; anexará um e outro à sua sociedade familiar, mas
protestantismo, desperta o velho cul!o_ dos santos e, ,P?r isso como se incorpora um rebanho de gado ao seu capital. Face às
mesmo ressuscita em parte as superstiçoes da Idade Media. Na seduções de um clima amolecedor e voluptuoso, o senhor para
Europ~, o culto dos santos é controlado, fiscaliza~o, parte.de .um não dçsaparecer se reveste de seus valôres europeus, prende-se
todo dogmático e litúrgico que o ultrapassa. Aqui a família, iso- â~êlçs,; tLSepara-se orgulhosamente dos "homens de côr". :Bsse
lada de Roma mais ainda que de Lisboa, vai incorporar êsse sentimento"'Yariará segundo as regiões, será menor em São Paulo
culto. Sem dúvida, nas grandes plantações há um capelão, e ~'onde o português e o espanhol viverão na mais estreita sim-
êste poderia ser o representante da Igreja, o mantenedor da hé-
biose com os ::indígenas, ao ponto da língua tupi aí dominar a
rança religiosa européia. De fato, êle é o oficiante da missa
dominical, o mestre-escola que ensina o português aos filhos do língua da metrópole(ªl) - que nos engenhos do Nordeste, isto
senhor, mas, como mostrou Gilberto Freyre, êle também é tomado por ser a população de S. Paulo mais plebéia, menos rica e mais
por êsse isolamento, pelo clima voluptuoso ~a senzala, pelo .odor móvel que a dos nobres, proprietários dos vastos latifúndios d~
embriagante das canas cortadas; sobretudo ele depende mais do Bahia e de Pernambuco. A civilização paulista isolada do ocea-
patriarca que o remunera, nutre e aloja, que de seus super.ior~s no pela Serra· do Mar e, por conseguinte, mais independente
hierárquicos. Os bispos demandarão freqüentemente e com ms1s- daquela da metrópole, mestiçar-se-á em maior grau; a do Nor-
tência a supressão dêsses capelães que fazem retroceder o cato- deste será mais orgulhosamente lusitana.
licismo de religião comunitária em religião de clãs familiares, Tódavia, uma herança que não se renova por um contato
mas nunca chegarão a destruir o costume.( 29 ) Ademais, o pa- direto com suas fontes de inspiração corre a longo prazo o risco
triarcado brasileiro tenderá a influir pouco a pouco até sôbre a de se empobrecer. Foi o que aconteceu aos valôres materiais
igreja de Roma, penetrando-a com seus interêsses, suas preo- da cultura portuguêsa: o vestuário perdeu suas características
cupações, seu nativismo rural, o filho mais nôvo de cada grande regionais(S2) e o mobiliário se reduziu ao mínimo.( 83 ) Foram
família estando destinado ao sacerdócio e as filhas que não se as ordens religiosas e, mais particularmente, a ordem dos jesuí-
casam enclausuravam-se no convento (se se pode dizer.enclausu- tas que constituíram o canal de ligação entre a Europa e a Amé-
ramento já que elas nêle entravam com uma ou duas escravas para ríéa. Se o homem era por vêzes reticente, tentando livrar-se das
servi-las e desempenhavam aí a comédia). O que faz que em
definitivo as transformações morfológicas da sociedade na sua
transplantação de Portugal ao Brasil tivessem repercussões até
l
1
despesas e dos trabalhos com as procissões, ( 34 ) pelo menos o
jesuíta tinha a mulher quando ela ia à cidade confessar, e o filho
no colégio.( 35 ) Pode-se dizer que a criança nascia duas vêzes
no domínio dos símbolos, dos valôres e dos ideais religiosos, 1 no Brasil, primeiro como brasileiro, como filho da plantação
criando o que se poderia chamar de um "familismo" católico, t sujeito às influências do meio físico, criado pelos escravos, brin-
centralizado no culto dos santos protetores do patriarca e dos
lr cando com os negrinhos e correndo a cavalo através de vastas

,
mortos domésticos enterrados na mesma capela e envolvidos na regiões, e, segundo, como português entre os muros tristes do
µiesma piedade. ( 30 ) !
colégio onde aprendia o latim, o português "do Reino", a filoso-
Mas todos êsses fatôres de dissolução ou de transformação fia tomista, a arte de obedecer. Essas ordens religiosas cujo pes-
cultural eram compensados ou negados por outros fatôres, opos- soal se renovava sem cessar pela vinda de frades italianos e
tos aos primeiros, que tendiam a manter ou a restabelecer a j
espanhóis, mas sobretudo portuguêses, faziam vir as plantas de
civilização dos portuguêses. De início, o que os sociólogos norte- suas igrejas, as cerâmicas, as imagens de santos, os objetos litúr-
-americanos chamam às vêzes de "o sentimento da fronteira", isto
(31) S. BUARQUE DE HOLLANDA, .Rafaes do Brasil, pp. 179-93.
é, a altivez racial do aventureiro, do colonizador face a outros (32) A. RAMOS, Introduçfi.o à Antropología Brasileira, t. II, p. 123.
grupos étnicos que lhe parecem inferiores. O branco verá sobre- (33) Como mostram os Testamentos, publicados aob oa cuidados dos
Arquivos de s. Paulo, de Recife e de Salvador •
. (34) A. de E. TAUNAY, Hístória da Cídade de s. Paulo no SécuJo XVIII,
(29) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, pp, 149-51. vol. I, pp. 182-88, etc.
(30) G. FREYRE, Casa-grande. e Senzala, trad. fr., pp. 394-95. (35) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, pp. 92-3.

60 61
gicos da Europa, e, assim, faziam de suas igrejas, de suas sacris- nas mãos dos negros: confrarias "aristocráticas" abertas somen-
tias, de seus colégios, de suas bibliotecas, fortalezas do espírito te aos brancos, confrairias de mestiços, confrarias de negr?s.( 88 )
, l Mas malgrado essas mudanças, a cidade permanece mais por-
lusitano. Como disse, com justa razão, Fernando de Azevedo:
tuguêsa que brasileira, porque o desenvolvimento do comércio
Foi por esta ação conjugada e pela chegada sucessiva de marítimo para aí atrai os portuguêses - caixeiros de lojas, guar-
jesuítas e de capelães vindos do Reino ou educados na colônia, em
grande parte pelos padres da Companhia, que a maré enchente das da-livros, gerentes ou diretores - e é êsse o primeiro núc~eo da
influências africanas diminuiu ( ... ) A ação dos jesuítas e dos burguesia urbana que vai entrar em choque com a sociedade
capelães que haviam dêles recebido o mesmo espírito e os mesmos rural dos senhores de engenho ou dos proprietários fundiários.
ideais de cultura para transmiti-los à mocidade da colônia não Tivemos a Guerra dos Mascates, que opõe a brasileira Olinda ao
se reduziu certamente à defesa do português contra as influências
negras ou indígenas que ameaçavam ao mesmo tempo a língua Recife comercializado, e a Guerra dos "Emboabas", que termina
paterna, a autoridade da Igreja, a moral e os costumes: êles pela expulsão dos "bande~a~tes" paulistas das ~inas .que desco-
ergueram uma barreira à desintegração da herança cultural da briram e onde são substitu1dos pelos portugueses vmdos para
qual eram depositários,
tentar a aventura da riqueza fácil.( 89 ) Demais, a descoberta
e acrescenta ainda o referido autor que êsses co16gios não cons- dessas minas transformará a estrutura social do Brasil no século
tituíram Unicamente os alicerces da manutenção dos valôres por- XVIII, dando nascimento, no planalto central, a uma civilização
tuguêses, mas foram também os canais da circulação das elites, urbana, de povoamento denso, ávida de luxo, estreitame?~e con-
remodelando a juventude branca e mestiça para transformá-la em trolada pela metrópole. O que fêz que o cordão umbilical de
frades, em funcionários, em letrados, ao mesmo tempo bons ca- ligação da colônia à mãe-pátria nunca fôsse cortado, que, século
tólicos e bons portuguêses, o que na época significava mais ou após século, novas migrações recimentassem os laços, dando
menos a mesma coisa. ( 86) vida nova aos valôres ancestrais e permitindo restabelecer, visto
Havia, enfim, a ação das cidades ou mais exatamente dos as civilizações mudarem no curso do tempo, o equilíbrio entre
p9.rtos,. portos êsses abertos ao grande além e onde ancoravam as duas correntes de evolução, a da metrópole e a da colônia.
não apenas navios negreiros, mas ainda navios vindos de Portu- Certamente, parece estar provado que o recrutamento étnico
gal e que traziam consigo as idéias, os valôres, as últimas modas variou, que os primeiros colonos pertenciam mais às províncias
da Europa, a franco-maçonaria e as teoria dos filósofos do século do Sul de Portugal, fortemente moçarabes, e que se estendeu, no
XVIII, a Arcádia e a poesia bucólica. Dissemos que a organi- século XVII, aos açorianos e, no século XVIII, às províncias do
zação dessas cidades seguia a de Portugal, mas também aqui foi Norte,(4º) mas as diferenças regionais dos migrantes não tolhe-
preciso adaptar-se a condições novas. Os artesãos não eram mui- ram sua participação numa mesma cultura.
to numerosos para poderem constituir corporações, e aos apren- A descoberta das minas não só atraiu portuguêses, como
dizes davam-se o título de "mestres" sem passar por exames, por também ocasionou deslocamentos populacionais do Norte do
simples "licença" concedida pelos conselheiros municipais, e os Brasil para o Sul, e a criação do gado, com o transporte conse-
"mestres", por sua vez, abandonavam aos mulatos ou aos negros cutivo do mesmo das zonas de pastagem aos centros de consumo,
livres seus ofícios a fim de poder entrar na categoria dos "ho- não só teceu entre as células dispersas dos clãs familiares uma
mens bons'',( 8 7) enfim, as confrarias de ofício tenderam a se vasta rêde, prelúdio econômico a uma unidade política, ( 41 ) mas
transformar em confrarias raciais, enquanto o artesanato caía
(38) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, t. I, p. 675 e t. II, p. 864.
(36) Fernando de AZEVEDO, A Cultura Brasileira, pp. 298-309. (39) Fernando de AZEVEDO, O'JJ. cit., pp, 65-72, 86-9. SODRI!:, p. 173
(37) Nelson WERNECK SODRI!:, Formaç4o da Sociedade Brasileira, pp. e segs., 224-34.
244-45. BUARQUE DE HOLLANDA, O'JJ. cit., pp. 62-5; êsse último autor cita (40) A. RAMOS, O'JJ. cit., pp. 91-6, a colonização no comêça foi aberta
mesmo um texto particularmente significativo, uma carta do vice-rei do tanto aos estrangeiros como aos portuguêses; exigia-se-lhes apenas para
Brasil em 1767 que se lastima da Rio ser só habitado de oficiais mecânicos, possuírem as terras que fõssem bons católicos. Mas, a partir do sécUlo XVII,
pescadores, marinheiros, mulatos, prêtos boçals e nus, e alguns homens de restrições foram feitas, o que lmpedlu o desenvolvimento de uma cultura
negócios dos quais multo poucos podem ter êsse nome sem haver quem brasileira mais cosmopolita que portuguêsa. A. RAMOS, O'JJ. cit., p. 98.
pudesse servir de vereador, nem servir cargo autorizado, pois as pessoas Nelson W. SODRI!:, O'JJ. cit., p. 113; Calo PRADO Júnior, O'JJ. cit., pp. 60-1.
de casas nobres e distintas viviam retiradas em suas :tiw:endas e engenhos, (41) R. SIMONSEN, O'P· cit., cap. VIII.
p. 124.

63
fêz também todos se reaproximarem e sentirem a homogeneidade Precisamos, pois, examinar as condições em que operaram,
de suas crenças, sentimentos e hábitos. primeiro o tráfico negreiro; .e, depois, a escravidão, para com-
preender como a cultura africana pôde resistir a uma tal revolu-
* ção.
* * Os primeiros escravos deviam pertencer às tribos do litoral,
Mas se o português pôde conservar sua sociedade e sua civi- mas à medida que o tráfico se intensificava, que as plantações
lização sob os trópicos americanos, adaptando-as a êsse me:o, o ou as minas reclamavam mais mão-de-obra servil, o tráfico ga-
mesmo não aconteceu com o africano. nhava as profundezas do Continente Africano e tornava-se mais
Com efeito, o negro, ao contrário do branco, era arrancado sistemático; roubavam-se crianças e mulheres nos caminhos, da-
à fôrça de sua terra, transportado para um nôvo habitat, integra- va-se de beber aos homens que eram presos quando a embria-
do numa sociedade que não era a sua e onde se encontrava numa guez os mergulhava num sono profundo; os sobas entraram em
posição de subordinação econômica e social. A escravidão ia guerra uns contra outros para fazer prisioneiros e revençlê-los aos
destruir-lhe a comunidade africana aldeã ou tribal, sua organiza- mercadores europeus (a luta dos fons contra os ioruba não teve
ção política, as formas da vida familiar, impedindo a subsistência outra causa), e os comerciantes árabes se fizeram grandes com-
das estruturas sociais nativas. O negro entrava numa nova pradores de carne humana. Nessas condições, ainda que o tráfico
estratificação onde o branco ocupava o ápice, o mestiço livre ou não tivesse penetrado tão longe no interior do continente( 42 )
o caboclo a camada intermediária e êle a camada mais baixa de como afirmam certos historiadores, devia-se mesmo assim en-
tôdas, ou seja, a da escravidão. Era recebido nessas grandes fa- contrar nos portos de embarque, São João de Ajuda, São Tomé,
mílias proprietárias de plantações ou de minas, células vivas da São Paulo de Luanda, etc., pessoas pertencentes às mais diversas
nova sociedade brasileira, sendo que essas famílias vão substituir- tribos e mesmo a etnias diferentes. É em razão disso que os
-lhe daí por diante o clã, a linhagem, a aldeia. A sociedade afri- têrmos pelos quais se designavam no Brasil os africanos importa-
cana não podia renascer no Brasil. Sôbre êsse ponto é geral a dos não podem nos servir para reconstituirmos sua origem étnica,
concordância e não pode aqui haver realmente nenhuma dis- porque, em geral, são têrmos que designam os portos de embar-
que e não as tribos nativas. Em todo caso, uma primeira mistura
cussão possível. fazia-se antes mesmo da subida aos navios, mistura que só podia
Mas a civilização do negro estava ligada a essa sociedade; deixar subsistir o que as civilizações originais tinham de comum
ela constituía a expressão autêntica dessa sociedade, seja o seu e não o que tinham de diferente, de um lado os minas, de outro
reflexo como o querem os marxistas, ou a sua fonte viva. E eis os bantos ocidentais e do outro enfim os bantos orientais (ou da
que esta civilização era arrancanda de sua base morfológica e "Contra-Costa").
institucional para flutuar de algum modo no vácuo. Portanto, Os negreiros operavam uma primeira seleção nesse gado
não corria o risco de desaparecer simultâneamep.te com a socie- humano que vivia nos casebres de tábua, os pés carregados de
dade, nessa transformação radical das antigas condições de vida? pesados ferros, os ombros marcados por ferro em brasa. Re-
De desaparecer também ao mesmo tempo que os quadros sociais cusavam-se a comprar indivíduos por lotes. Olhavam detida-
que até então a condicionavam? Isso porém não é o que se mente os dentes, os olhos, os braços e as pernas, os órgãos sexuais
· passa; sem dúvida esta civilização precisou adaptar-se aos novos para averiguar a fôrça dos escravos, sua saúde, seu poder de
quadros econômicos e sociais, à monocultura, à escravidão, à reprodução, e esta seleção fazia que no navio a heterogeneidade
família do senhor de engenho, mas subsistiu. Tudo se fêz como étnica fôsse ainda mais incitada, uma vez que os lotes se acha-
se uma fenda se abrisse entre os diversos níveis da Sociologia vam fragmentados em indivíduos. E já, ao menos para os que
em profundidade, no estágio dos símbolos, alargando-se para não morriam durante o caminho, a miséria comum fazia nascer
deixar intactas em grande parte as representações coletivas, os (42) HERSKOVITS, The Myth o/ Negro Past, cap. II, insurge-se contra
a idéia da importância do centro da Africa no tráfico negreiro. De outro
valôres e mesmo as palpitações da consciência coletiva, enquanto lado, Francis de CASTELNAU na Bahia interrogou os escravos para dar uma
desmoronavam as estruturas e as normas que as sustentavam. descrição geográfica e etnográfica do interior da Africa, Bensetgnements aur
'
I' A/Tique CentraZe, Paris, Bertaud, 1851.

64 65

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uma outra forma de solidariedade que não a antiga solidarieda- res.( 44 ) Depois dêle, Braz do Amaral e Calógeras( 45 ) amplia-
de tribal ou aldeã, e essa solidariedade, na medida em que as ram a posição bastante estreita de Sílvio Romero e distinguiram
circunstâncias permitiam, continuou no Brasil. Os negros chama- quatro grandes centros de exportação, o de Cacheu e Cabo Verde,
vam malungo aquêles que tinham viajado no mesmo navio infer- o de São Tomé (Guiné e Camerum), o de São Paulo de Luanda
nal, no mesmo cubículo imundo, cheio de excrementos, sujo de (Congo e Angola) e o da Contra-Costa (Moçambique). Mas se
urina ou que tinham precisado dançar na coberta sob o látego êsses dois autores fizeram obra útil como historiadores, conheciam
de seus guardas. ( 43 ) Tudo isso deveria também desagregar as mal a Etnografia; suas listas de tribos estão cheias de erros e de
culturas nativas. confusões. Foi Nina Rodrigues quem, interrogando ao mesmo
Chegados enfim ao Brasil os negros deviam esperar nos tempo os últimos africanos importados da Bahia e utilizando o
barracos (o de Vallongo no Rio tornou-se tristemente célebre) método comparativo lingüístico bem como o etnográfico, renovou
à boa vontade dos compradores. Naturalmente, êsses compra- inteiramente o problema,( 46 ) ao qual Arthur Ramos teria o mé-
dores, movidos apenas por seus interêsses egoístas, separavam rito de dar solução definitiva.(H) f:sse último, em conseqüência
os maridos das mulheres, os filhos de suas mães. Tomavam as de pesquisas feitas nas diversas regiões do Brasil, chega ao se-
"peças" de que necessitavam sem se preocupar com suas solida- guinte quadro de civilizações que tiveram representantes na
riedades étnicas, levando apenas em conta o estado de saúde ou América Portuguêsa:
de fôrça física de seus futuros escravos. Uma vez que vários
navios, vindos de diferentes pontos· da Africa, chegavam mais 1. as civilizações sudanesas representadas especialmente
ou menos na mesma época com suas cargas já misturadas, podiam pelos ioruba (nagô, ijexá, egbá, ketu, etc.), pelos daomeanos
êles comprar e levar para suas fazendas negros minas juntamente do grilpo gêge ( ewe, fon ... ) e pelo grupo fanti-axanti chamado
com congos, "negros de Guiné" juntamente com angolas. - Mas se na época colonial mina, enfim pelos grupos menores dos kru-
essa oportunidade não se apresentasse, o plantador ou o proprietá- mans, agni, zema, timini;
rio de minas comprava apenas as "peças" necessárias para subs- 2. as civilizações islamizadas representadas sobretudo pe-
tituir os mortos ou para aumentar a produção, e, nesse caso, os los peuhls, pelos mandingas, pelos haussa e em menor número
escravos de uma só etnia iam encontrar, na propriedade para onde pelos tapa, bornu, gurunsi;
eram levados, escravos de outra origem. Temos testamentos, pa-
péis de família, livros de conta de "fazendeiros" e vemos sempre 3. as civilizações bantos do grupo angola-congolês ll'epre-
estarem, lado a lado, escravos pertencentes a territórios distantes, sentadas pelos ru:µbundas de Angola ( cassangues, bangalas, in-
a civilizações bem diferentes, o que nos é fácil constatar, pelo me- bangalas, dembos), os congos ou cabindas do estuário do Zaira,
nos em geral, pois cada africano leva como nome de família o os benguela dos quais Martius cita numerosas tribos escravizadas
nome de seu país, João Congo, Joaquim Benguela, Francisco Ibo, no Brasil;
Maria Nagô. . . O fato de tôdas as etnias serem assim niveladas 4. por fim as civilizações bantos da Contra-Costa. repre-
pela escravidão constituía ainda uma outra condição desfavorável sentadas pelos moçambiques (macuas e angicos).
à perpetuação das civilizações africanas, em suas originalidades
e em suas diferenças. Como se vê por esta simples enumeração, a Africa enviou
Para melhor compreender esta ação desfavorável precisamos ao Brasil negros criadores e agricultores, homens da floresta e
nos deter mais longamente sôbre êsse ponto para ver até onde se (44) Silvio ROMERO, História da Literatura Brasileira, 2.• ed., vol. I,
estendeu esta imensa mistura de povos e de culturas e se ela podia p. 74; cf. SPIX e MARTIUS, Reise in Brastlien, vol. II, Sllvio Romero
e J. Ribeiro sl!.o tanto mala indesculpávels pois sabiam que já na guerra
ou não deixar subsistir traços coµiuns a todos. contra os holandeses, Henrique Dias tinha quatro regimentos de negros,
distinguidos segundo suas nações: minas, ardas ( daomeanos) , angolas e
Sílvio Romero colocou a questão da origem dos escravos crioUlos.
importados pelo Brasil e afirmou que quase todos eram bantos; (45) Braz do AMARAL, Os Grandes Mercados de Escravos Africanos, pp.
437-96.
foi seguido nesse ponto por João Ribeiro e por outros historiado- (46) Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, caps. IV e V, pp.
188-229.
(43) KOSTER, V011ages Pittoresques, II, p. 357. RUGENDAS, Viagem (47) Arthur RAMOS, Las Poblaciones del Brasil, cap. XII. Introduço.o
Pitoresca, p. 176. à Antropologia Brasileira, t. I, sobretudo capa. XI, XII, XIV, XV, XVI, XVIII.

66 67
da savana, portadores de civilizações de casas redondas e de vas levas de trabalhadores justamente quando uma epidemia de
outras de casas retangulàres, de civilizações totêmicas, matrili- varíola varreu Angola dizimando a população, afastando os tra-
neares e outras patrilineares, prêtos conhecendo vastos reinados, ficantes de carne humana. Aliás, se os bantos eram preferidos
outros não tendo mais que uma organização tribal, negros isla- para a agricultura, os minas o eram para os trabalhos pesados
mizados e outros "animistas", africanos possuidores de sistemas da mineração, "sendo mais fortes e vigorosos", segundo a ex-
religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais pressão dos brancos da época. Essa também é a época das guer-
de linhagens. ( 48) Como essas diversas civilizações vindas de ras entre os ioruba e os fon que fornecem numerosos prisionei-
áreas tão diversas não se destruíram mutuamente pelo simples ros de guerra. No fim do século XVIII e início do séçulo XIX,
contato? Não são elas enfraquecidas por seu choque umas con- os daomeanos enviam uma série de embaixadas a Bahia e Lisboa
tra outras? para reclamar o monopólio do comércio negreiro para seu país.
:f:sses fatôres negativos eram contrabalançados aqui tam- Todavia, o tratado de 1815 assinado entre a Inglaterra e Por-
bém por outros, positivos. Pri~eiramente de or~em histórica.(49) tugal, primeiro passo no caminho da supressão total do tráfico,
No comêço todos os escravos vindos da Africa eram chamados interditava a exportação ao Brasil de escravos vindos de países
"negros de Guiné", mas não seria preciso to~ar esta expressão situados acima do equador, o que fêz que a partir desta data
ao pé da letra porque no século XVI a Guiné ~stendia-se do até 1830, pelo menos teoricamente, os negros importados vies-
Senegal a Orange. Bsses guinés chegados ao Brasil deviam ser ~em de Angola, ou ainda, já que faltava mão-de-obra nas novas
autênticos bantos. Não falam as denúncias da Inquisição na plantações de café, de Moçambique, se bem que seus habitan-
Bahia do "negro de Guiné. . . filho da raça Angola"? ( 50 ) tes "rudes" e "bárbaros" fôssem pouco apreciados pelos com-
Entretanto, é provável que nos primeiros anos da colonização pradores. ( 52 )
a maioria dos escravos procedesse de países situados acima Bem entendido, êsse esquema é válido apenas em geral, a
do equador onde o domínio europeu desde há muito tinha se Africa tôda sempre participou do tráfico. Mesmo quando foi
implantado e onde o comércio entre brancos e negros já era mais assinado o tratado de 1815 os navios desembarcavam, enganan-
tradicional. · Por outro lado, os negros bantos certamente domi- do os barcos de guerra inglêses, lotes de clandestinos vindos do
naram durante o século XVII, primeiro porque as distâncias Daomé e da Guiné. Mas como cada século teve ainda assim
entre o Brasil e Angola eram menores que entre êsse país e as sua característica··étnica própria, cada grande grupo, banto, de-
regiões ao Norte do Congo; em segundo lugar porque os bantos pois mina e de nôvo banto, pôde estabelecer, ao menos em parte,
mostravam-se excelentes agricultores numa época em que pre- sua civilização no Brasil, antes que a mistura de etnias tivesse
dominava a atividade agrícola. Ao negro de Guiné "brigão, um efeito por demais desagregador.
cabeçudo, preguiçoso, acostumando-se dificilmente à obediên- :É. óbvio que o tempo podia - no nôvo habitat - corroer
cia e ao trabalho", opunha-se o negro de Angola, que "revelava as tradições mais enraizadas. Contudo, o tráfico renovava a cada
mais disposição para o trabalho e podia ser fàcilmente ensinado instante as fontes de vida, estabelecendo um contato permanente
pelos escravos antigos", como diz Watjen.( 51 ) Os minas ou entre os antigos escravos ou seus filhos e os recém-chegados ·em
sudaneses substituíram progressiVamente os bantos no século cujas fileiras vinham, com freqüência, sacerdotes, adivinhos, mé-
XVIII porque a descoberta de areias auríferas necessitava de no- dicos-feiticeiros, o que fêz que houvesse durante todo o período
escravista um rejuvenescimento dos valôres religiosos exatamente
(48) É preciso comparar o quadro das tribos importadas com o das
"áreas culturais" da Africa; quer seja o de FROBENIUS, Der Ursprung der quando êsses valôres tendiam a enfraquecer-se. Estamos mal-
Afrikanisch.en Kulturen, Berlim, 1898. Der Westafrikanisch.e Kulturkreis,
Petermann's Mitteilungen, ts. 43-4, 1897-899; ou o de Melville J. HERSKOVITS,
-informados sôbre as religiões atiro-brasileiras dessas épocas lon-
"Social History of the Negro", Handbook of Social Psych.ology, Clark Univer- gínquas, mas é preciso sem dúvida substituir a idéia de centros
sity, 1935, p. 214 e segs., ou o de H, BAUMANN e D. WESTERMANN, Les de culto (que persistiram ao longo dos séculos até nossos dias,
Peuples et les Civilisations de l' Afrique, trad. fr., Payot, 1948, pp. 89-424,
para ver a heterogeneidade cultural dos povos que forneceram escravos ao
Brasil. (52) Ver AFFONSO CLAUDIO, "As Tribos Negras Importadas", e Braz do
(49) Seguimos nesse parágrafo as idéias expressas para 111 Bahia por AMARAL, "Os Grandes Mercados de Escravos", B. /., H. G. B., número espe•
Luiz VIANNA Filho, o-p. cit., mas que são válidas também para todo o Brasil. ctal do 1.• Congresso de História Nacional, pp. 597-655 e pp. 437-96; KOSTER,
(50) Denunciações da Bahia, pp. 406, 407, 408, O'p. cft., II, pp. 358-65. Rev. R. WALSH, Notices o/ Bra2il, II, p. 331; BAR·
(51) H. WATJEN, O Domínio Holandês no BraSil, trad. port., pp. 487-88. RETO Fllho e H. LIMA, História da Polfcfa, II, pp. 178-79.

68 69
o que a escravidão não poderia perµrltir) pela idéia de uma mesmo quando a tração animal ou as quedas dágua substituíram
proliferação çaótica de cultos, ou de fragmentos de culto, que a tração humana para virar a mó, o número de escravos dos
nasciam apenas para se extinguirem, os quais eram substituídos engenhos não diminuiu. Ao contrário,( 57 ) irá, sem cessar, au-
por .outros .à medida de novas chegadas de africanos. Os can- mentando e no século XIX não será raro ver proprietários pos-
domblés, os xangôs, os batuques de hoje não são os resíduos de suir até mil escravos. É evidente que, nessas condições, as etnias
seitas antigas que mergulham no passado do Brasil, mas organi- africanas podiam reagrupar-se, formar de nôvo no seio da casta
zações de data relativamente recente, remontando mais ou me- dos negros e em tôrno de seus líderes religiosos uma solidarieda-
nos ou ao fim do século XVIII ou ao comêço do século XIX. de mais restrita. Ninguém contou ainda a história dessas peque-
Verger pôde mostrar que a Casa das Minas de São Luís do Ma- nas comunidades. Os brancos não se interessavam senão pela fôr-
ranhão tinha sido provàvelmente fundada em 1796 por membros ça de trabalho de seus negros. Sabemos, contudo, por certos via-
perseguidos da família real do Daomé;( 113 ) e Nunes Pereira jantes, que quando numa plantação existia, o que às vêzes acon-
soube por Mãe Andréa que sua "casa" havia sido fundada por tecia, escravos de sangue real, êsses eram cercados de grande
"contrabandos", isto é, por negros trazidos clandestinamente de- consideração por seus compatriotas e pelas pessoas de côr em
pois de 1815 e que tinham sido libertados quando de sua chega- geral; eram respeitados e obedecidos.( 58 ) Podemos, pois, ima-
da ao Brasil. ( 54 ) Sabemos, de outro lado, que o candomblé de ginar que pequenos grupos se formavam, que laços de amizade
Engenho Velho em Salvador foi fundado por duas sacerdotisas como também de rivalidade se criaram, que figuras de chefes
da familia de Xangô, trazidas como escravas para essa cidade apareceram nesta massa informe aos olhos dos brancos; êsses
no coµiêço do século XIX.( 65 ) Desta maneira, devemo-nos grupos puderam manter parte de sua herança cultural, enquanto
representar a vida religiosa dos africanos no Brasil como uma os chefes, pelo prestígio que usufruíam, puderam impor as formas
série de acontecimentos sem laços orgânicos, de tradições inter- culturais de seus países de origem a escravos pertencentes a ou-
rompidas e retomadas, mas que mantinham de século em século, tros grupos étnicos. Desta forma se explicaria a preeminência
sob formas provàvelmente as mais diversas, a mesma fidelidade
à mística, ou às místicas africanas.
.j da civilização daomeana em certas regiões, enquanto em outras
é a civilização ioruba que domina e, ainda em outras, é a dos
Ao lado dessas causas históricas (a existência de ciclos no bantos. Às vêzes, entretanto, a solidariedade étnica ia contra o
tráfico ~ a perpétua renovação da mão-de-obra servil) é preciso prestígio dos chefes; sabeµios que quando escravos preparavam
também fazer intervir, para compreender as sobrevivências reli- uma revolta ou uma fuga, eram freqüentemente denunciados aos
giosas, ou seu desaparecimento, cimsas mais sociológicas consi-
senhores por outros escravos pertencentes a "nações" rivais.
derando as formas mesmas de escravidão. No Sul dos Estados
A grande plantação, onde o número de escravos era bas-
Unidos, até o momento da expansão da cultura algodoeira, o re-
gime da propriedade era o da pequena ou média propriedade; o tante considerável, para que inter-relações se estabelecessem com
senhor não tinha à sua disposição mais que 3 a 4 escravos; por o senhor, possibilitou, por conseguinte, numa certa medida, a
conseguinte, o processo de "aculturação" pôde ser aí mais inten- perpetuação dos valôres africanos. Mas para que êsses se per-
so. ( 56) No Brasil, havia igualmente um grande número de pe- petuassem era necessário revigorá-los, em datas determinadas,
quenas propriedades, cada uma com poucos escravos, na cultura na grande corrente da consciência coletiva. Marcel Mauss mos-
do tabaco por exemplo. Mas o regime dominante, pelo menos trou, tratando dos esquimós, a importância do ritmo de dispersão
social e politicamente, foi o da grande plantação que exigia no e de concentÍ"ação humana na vida religiosa, e Durkheim, focali-
mínimo de 60 a 80 escravos para plantar, cortar, moer as canas; zando os nativos australianos, destacou a importância da festa
que reúne os homens numa mesma exaltação mística. Ora, os
(53) P. VERGER, "Le Culte des Vodouns d'Abomey Aura.it-U été Apporté negros das plantações comungaram também em festas, renova-
à S. Luiz do Maranhão par la Mére du Rol Ghézo?", Les Afro-américains,
pp. 157-60. ram a fôrça de seus símbolos, de seus valôres, de seus ideais na
(54) Nunes PEREIRA, A Casa das Mtnas, p. 22.
(55) É, CARNEIRO, Candomblés da Bahia, p. 31. (57) Fernando de AZEVEDO, Canaviais e Engenhos na Politica do
(56) M. J. HERSKOVITS, The Myth o/ the Negro Past p. 112 e sega. Brasil, p. 57.
Cf. HOPE FRANKLIN, From SlaveTll to Freedom, cap. XIII, ~ E. FRANKLIN (58) R. WALSH, Notices of Brazil, II. p. 339. TOLLENARE, Notas Domi-
FRAZIER, Th.e Negro ín the Uníted States, caps, II e Ill. nicaes, p. 110.

'lO 71
reunião regular e em datas determinadas ao redor do fogo e ao momento a .Africa e permitia, numa exaltação ao mesmo tempo
som de atabaques. A_ primeira razão que levou os senhores a frenética e regulada, a comunhão dos homens numa mesma
p.ermitir aos escravos, ou na tarde de domingo, ou nas dias feria- consciência coletiva.
dos e "santificados por Nossa Muito Santa Madre Igreja", diver- Temos disso a prova no fato das religiões africanas se con-
tirem-se "à moda de sua nação" era de ordem puramente eco- servarem principalmente nas zonas de .plantações açucareiras
nômica; tinham notado que os escravos trabalhavam melhor do Nordeste. Nas zpnas de mineração, com algumas exceções,
essas religiões não sobreviveram; isso porque as condições de
quando podiam divertir-se livremente de tempos em tempos, e
não quando exigiam dêles um trabalho contínuo, um esfôrço
sem interrupção, dia após dia. Antonil, que escreveu o que se
poderia chamar a Bíblia_ dos senhores de engenho, recomenda
r~ escravidão aí eram bem diferentes. O trabalho de mineração
era infinitamente mais penoso porque não estava submetido como
o trabalho agrícola ao ritmo das estações: impunha sua tirania
autorizar os escravos a cantarem e a dançarem em certos dias do todo ano em remover a areia ou o cascalho, em parar os rios,
ano, única consolação que têm no seu triste estado, e sem o que 1 ein cavar canais de estrangulamento ou de derivação, em lutar
se tornam "melancólicos, com pouca vida e saúde". ( 59) Como
religioso Antonil exige que estas festas caiam nos dias dos ~ contra a montanha provocando o desmoronamento das rochas
sob a forma de cascatas artificiais, em cavar galerias à procura
santos patronos da família do senhor ou dos santos patronos de filões. O roubo de pepitas era relativamente fácil, ou os
da casta dos escravos (São Benedito, Sta. Ifigênia). Mas havia escravos escondiam-nas em seus cabelos ou as engoliam, e daí
outra razão menos fácil de recobrir com o véu pudico da re- estarem sujeitos a uma constante vigilância durante o trabalho
ligião e que impedia os senhores a acumular as festas e os e também nas horas de folga. O negro enfim, em presença de
atabaques: essa era o alto preço dos escravos. A dança parecia- uma civilização de tipo capitalista, onde aventureiros diante dêle
-lhes uma técnica de excitação sexual, um incentivo à procriação, enriqueciam-se e onde o lucro dominava ostensivamente, mudou
e por conseguinte um meio mais econômico de renovar seu inves- sua mentalidade para aceitar a do branco; tôda uma série de
timento humano sem perda de capital. Houve como que uma medidas - outorga a liberdade àquele que encontrava um
seleção ou uma orientação do folclore africano pelo branco das diamante grande, dádiva de roupas ou de presentes àqueles cuja
danças de origem banto, do tipo samba, côco, batuque, jongo, produtividade era maior - ajudou essa µiudança de mentalida-
lundu; o nome varia segundo as regiões, mas é sempre a mes- de. ( 61 ) Não somente alguns negros conseguiram libertar-se, mas
ma dança erótica, cujo centro é construído pela escolha do par- ainda tornaram-se proprietários de minas graças a um regime
ceiro sexual, escolha que se marca simbolicamente pela umbi- cooperativo de ajuda mútua. É claro que esta ajuda estava con-
gada, isto é, o contato dos dois ventres, umbigo contra umbi- finada aos limites de uma "nação" ou de uma tribo, e mesmo
go. ( 60) Por outro lado, diante do modesto altar católico erigido de uma família, o que mostra que a civilização africana não
contra o muro da senzala, à luz trêmula das velas os negros po- estava de todo morta, que conservava alguns de seus qua-
diam dançar impunemente suas danças religiosas tribais. O bran- dros. ( 62) Mas êsse desejo de enriquecimento ia de encontro à
co imaginava que êles dançavam em homenagem à Virgem ou aos (61) Ver sõbre as condições da escravidão nas minas: W. L. ESCHWEGE,
santos; na realidade, a Virgem e os santos não passavam de l'luto BrasiliensíS. J. LÚCIO DE AZEVEDO, Épocas de Portugal Econômtco,
pp. 364-65. ANTONIL, op. cit., tõda a 3.• parte. A. de SAINT-HILAIBE,
disfarces e os passos dos bailados rituais cujo significado escapa- Voyage elans les l'rovinces ele Rio ele Janeiro et ãe Minas Geraes, como
va aos senhores, traçavam sôbre o chão de terra batida os mitos também: Voyage elans le District eles Diamants. E. POHL, Reise in Innern
von Brasilien. J. P. OLIVEIBA MARTINS, O Brazil e as Colonias Portuguêzas,
dos orixás ou dos voduns. . . A música dos tambores abolia as livro II, caps. 6 e 7. M. M. de BARROS LATIF, As Minas Gerais, p. 165 e segs.
distâncias, enchia a superfície dos oceanos, fazia reviver um R. F. BURTON, E:z;plorations o/ the Highlanels of the Brazil, I, pp. 270-78. VON
SPIX-E. MARTIUS, Viagem pelo Brasil, II, p. 101 e segs.
(62) A história de Chico-Rei que chegou a ser proprietário da mina
(59) ANTONIL, Cultura e Opulência elo Brasil, p. 96. de Palácio Velho e que ai organizou o que se chamou a primeira tentativa
(60) Ver sõbre essas danças: A. RAMOS, O Folclore Negro elo Brasil, de "socialismo cristão"; G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 176, é
pp. 129-58. Luciano GALLET, Estudos ele Folclore, p. 61 e segs. É. CARNEIRO, célebre. Chico-Rei, um rei africano que tinha sido !eito prisioneiro e redu-
Negros Bantos, pp. 131-45 e 161-65. Manuel DIEGUES Júnior, "Danças
Negras no Nordeste", O Negro no Brasil, pp. 293-302. Oneyda ALVARENGA, zido à situação de escravo, conseguiu, com suas economias, libertar seu
Música Popular Brasileira, pp. 130-58. Mário de ANDRADE, "O Samba Rural filho e depois a si próprio, graças ao que os dois ganharam a seguir.
Paulista", R.A.M.S.P., XLI. Maynard ARAúJO, Documentário Folclórico Pau- Libertaram depois tõda sua familia, "até a tribo tôda" e acabaram por
lista, pp. 11-3 e 31-3. Câmara CASCUDO, Dicionário elo Folclore Brasileiro, etc. comprar a liberdade de escravos de outras tribos (provàvelmente da mesma
Brasileiro, etc. etnia) até formar "um verdadeiro Estado no Estado", com um rei {Chico),

72 7l/
manutenção dos valôres religiosos. Podemos dizer o mesmo das indivíduos num espaço menor: mesmo se cada família tem pou-
zonas de criação, tanto as do pampa no Sul quanto as do sertão cos escravos, o conjunto dá para tôda a cidade um número con-
do Nordeste. A criação exige a grande propriedade mas não siderável de negros. Certos viajantes desembarcando, ao acaso
reclama mão-de-obra abundante; os senhores de gado em geral das escalas, em portos brasileiros, falaram de uma "nova Guiné".
não possuíam mais que alguns negros para vigiar suas grandes E o têrmo não é falso. Essa união de negros urbanos iria permi-
manadas ou para tratar de seus pequenos jardins. :Bsses prêtos tir o que a escravidão rural sem impedi-la de todo entravou
perdidos nas regiões onde dominavam os mestiços de índios não consideràvelmente: a solidariedade "por nação", isto é, a recria-
puderam resistir à influência do meio e deixaram-se fàcilmente ção das etnias em agrupamento mais ou menos organizados.
contaminar pela civilização ambiente. ( 63 ) Por fim, quando o P:rimeiro, a cidade conheceu os "negros de ganho", ou seja escra-
café atingiu o Estado de São Paulo, vindo do Rio pelo Vale do vos que trabalhavam fora da casa do senhor e que aí se encontra-
Paraíba, os dias de escravidão já estavam contados; a propaganda vam de noite, trazendo seus salários; eram arrendados como em-
abolicionista agitava o país e a resistência do negro, nessa atmos- pregados domésticos, ou, outras vêzes, fornecia-se-lhes um tabu-
fera, devia mudar de caráter, devia passar do plano da resistência leiro de mercadorias que eram encarregados de vender nas ruas.
cultural ao da resistência política, da fidelidade à religião da Mas, vagabundeando assim todo o dia, êsses negros encontravam
África à colaboração com os abolicionistas brancos que iam às compatriotas, falavam do país de origem, e nos feriados ou nos
fazendas para aí preparar a fuga de escravos.( 64 ) Luiz Gama dias de festa populares reuniam-se em associações de originários
é o próprio símbolo dessa mudança; sua mãe era uma filha-de- de um mesmo país.( 66 ) De outra parte, muitos dêsses "negros de
-santo, talvez mesmo uma ialorixá; êle foi advogado, fundador de ganho" eram carregadores que trabalhavam na descarga de mer-
uma loja maçônica e o grande agente negro da supressão do tra- cadorias dos navios, levavam-nas às lojas ou transportavam, da
balho servil.( 65 ) Teremos no curso dêsse trabalho de voltar a casa do comerciante até às casas dos seus fregueses, caixas diver-
esta idéia; existe como que uµia espécie de antagonismo entre es- sas, pianos, barricas de vinho, etc. :Bsses negros, sobretudo depois
sas duas soluções ao problema do negro brasileiro, a solução cul-
tural e a solução política; onde triunfou a primeira, a política não de sua libertação, mas mesmo antes, formavam grupos chamados
teve presença, e onde a segunda prevaleceu, a resistência cultural cantos, comandados por um "capitão"; e com êsses grupos, geral-
anterior logo se anulou. mente de quatro indivíduos, cantavam canções em africano, en-
Contudo, nosso quadro da escravidão não está completo quanto transportavam suas pesadas cargas. Podemos concluir,
porque deixamos de lado um tipo de escravidão particularmente visto a diversidade das línguas africanas, que êsses cantos agru-
importante para nosso assunto: a escravidão urbana. Tem-se pavam o indivíduos segundo suas origens étnicas. Manuel Que-
dito freqüentemente que o anonimàto da cidade, diferente da- :rino deixou-nos uma boa descrição de alguns de seus rituais.
quele da região rural, enfraquece o contrôle social e, no caso do
contrôle do branco sôbre o negro, possibilita àquele que não Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o
sucessor, que assumia logo a investidura do cargo. Nos cantos do
se pertence uma liberdade que êle não usufruiria em outro bairro comercial (Bahia), êsse ato revestia-se de certa solenidade
lugar. Por outro lado, a cidade permite maior concentração de à moda africana. Os membros do canto tomavam de empréstimo
uma pipa vazia ( ... ) , enchiam-na de água do mar, amarravam-na
uma rainha (sua segunda mulher), um princlpe e uma princesa, e uma de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito
"confraria de Santa Ifigênla" (aquela mesma que construiu uma das mais
belas igrejas de Ouro Prêto, a Igreja do Rosário). Ver: Diogo de VASCON• ou doze etíopes, comumente os de musculatura mais possante,
CELOS, Htstória Anttga das Mtnas Gerats, p, 324 e segs. Alcibíades DEI.AMARE, suspendiam a pipa e sôbre ela montava o nôvo capitão do canto,
Vtla Bica, p. 25 e segs. tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma gar-
(63) Ver sôbre as condições da escravidão no sertão: Cl!.mara CAS-
CUDO, "A Escravidão na Evolução Econômica do Rio Grande do Norte", rafa de aguardente. Todo o canto desfilava em direção ao bairro
Bevtsta N<YVa, I, 1931. L. VIANNA Filho, op. ctt., pp. 126-32. Caio PR.ADO das Pedreiras, entoando os carregadores monótoma cantilena, em
Júnior, op. ctt., pp. 52·4: e no pampa: A. SAINT-HILAmE, Vtagem ao Bto
Gtanãe ão suz. Louis COUTY, L'Esc!avage au Brésti, p. 24, Por fim, para (66) Ver sôbre os "negros de ganho": TAUNAY, Htstórta da Ctdade de
as zonas de criação de Minas, Caio PRADO Júnior, Formaçl!o ão Brastl, S. Paulo no Século XVIII, vol. II, p. 87. D. PIERSON, Brancos e Prêtos
p. 196. na Bah.ta, p. 92. J. WETHEREL, Brazil, p. 53. Cf. RIBEYROLLES, Brast!
(64) R. BASTIDE e F. FERNANDES, Belações Bactafs entre Negros e Pttoresco. II, pp. 60-5, e principalmente EXPfü'LY, Le Brést! tel qu'i!
Brancos em S. Paulo, pp. 16-105. est, e J. B. DEBRET, Viagem Pitoresca, que contém tôda uma série de
(65) Sud MENUCCI, O Precursor do Abo!tctontsmo no BrastZ, Lutz Gama. quadros comentados sôbre o negro artesão. EWBANK, Ltfe ín Brazti, p. 946.

74. 75
dialeto ou patuá africano. Na mesma ordem, tornavam ao ponto pode destruí-las; mas esta política constitui um fator operante
de partida. O capitão recém-eleito recebia as saudações dos membros que em parte determina a orientação da colonização como tam-
de outros cantos, e, nessa ocasião, fazia uma espécie de exorcismo bém seus processos estruturais. N-0 Brasil houve não uma, porém
com a garrafa de aguardente deixando cair algumas gôtas do
líquido. ( 67) duas políticas, às vêzes unidas, ora diverge~~es, cujos .efeitos se
anulavam, se compensavam ou, ao contrario, se umam e se
Sabe-se que êsse rito que continua até hoje no mundo dos acumulavam: a política do rei e a política da Igreja.
candomblés tem um significado religioso bem preciso: nada se A Igreja, que defendera com tanta energia a causa dos ame-
deve comer ou beber, sem primeiro oferecer às divindades, e os ríndios contra os colonos e mesmo contra o próprio govêmo da
membros das seitas afro-brasileiras não esquecem de antes d~ metrópole, aceitou a escravidão do negro. Ela mesma lucrou com
beber, por exemplo, lançar à terra algumas gôtas do conteúdo de isso: a propriedade de Santa Cruz que pertencia aos jesuítas
seus copos. O testemunho de Manuel Querino deixa, pois, en- compreendia, em 1768, 1 205 escravos; o Convento do Destêrro
trever, além da solidariedade étnica, uma outra solidariedade na Bahia tinha 400 escravas para 74 freiras; e poder-se-iam mul-
mais profunda, a da comunhão na religião ancestral. tiplicar os exemplos.( 68 ) Mas, se a Igreja aceitava a escravidão
Os negros de ganho levavam, portanto, ao anoitecer, uma do negro, aceitava-a somente sob certas condições: se lhe toma-
certa quantia aos seus patrões, mas o excedente dessa soma va o corpo, dava-lhe em troca uma alma. O senhor branco
estipulada lhes pertencia; os mais afortunados ou os mais desem- podia lucrar com a mão-de-obra servil, mas êsse direito .estava
baraçados conseguiam assim constituir um pequeno pecúlio com contrabalançado por deveres correlatos, figurando, em primeiro
o qual podiam comprar sua liberdade. São êsses negros livres lugar, o de cristianização. O negro, que não tinha sido batizado
que, mais ainda que os outros, fazem-se os mantenedores das na Mrica, antes de sua partida, devia ser obrigatoriamente evan-
religiões africanas, reunindo os fiéis nas casas humildes, segundo gelizado em sua chegada, aprender as rezas latinas e receber o
suas respectivas "nações" e ao mesmo tempo ocupando-se com batismo; devia assistir à missa e tomar os santos sacramentos.
o recrutamento e com a direção da seita. Ora, à medida que nos Se esta política tivesse sido seguida, tenderia a fazer desa-
aproximamos da segunda metade do século XIX, o número de parecer as religiões africanas; ou, pelo menos, a sincretizá-las
negros libertados vai aumentando, permitindo u'a mais fácil soli- profundamente com o catolicismo. Alguns viajantes estrangeiros
dificação das crenças africanas no nôvo habitat: afirmam que os brasileiros agiram dessa maneira com seus
1798: 406 000 mulatos e negros livres; 1 582 000 negros e escravos.
mulatos escravos (Perdigão Malheiro); ·:•1 Os escravos do Brasil são tratados quase como filhos da família;
1817: 585 000 mulatos e negros livres; 1 930 000 negros e mu- e há o maior cuidado em batizá-los e instruí-los nos elementos da
latos escravos (Perdigão Malheiro) ; i fé cristã ao menos. Poder-se-ia propor a questão: os escravos
1847: 1 280 000 mulatos e negros livres; 3 120 000 negros e í' ganham ou não infinitamente mais com a troca da sua bárbara
mulatos escravos (Ewbank). liberdade por estas vantagens de instrução e proteção segura.(69)
Esses são os principais fatôres positivos que· permitiram Entretanto, não podemos nos fiar nesta imagem idílica da
aos negros, malgrado o desaparecimento das estruturas sociais escravidão brasileira; ela é desmentida por muitos documentos
africanas destruídas pela escravidão, manter ao menos seus valô- oficiais que protestam contra a recusa da extrema-unção aos mo-
res religiosos no nôvo habitat. ribundos, contra o batismo dado pelos senhores sem catequização
preparatória, só para obedecerem os regulamentos. De fato, os
* brancos não se interessavam senão pela fôrça física dos negros:
* * era-lhes indiferente a salvação de suas almas.
Tôda metrópole tem determinada política em relação a suas A Igreja não podia, contudo, abandonar totalmente o escra-
colônias; essa política pode se chocar com resistências que deve vo à sua triste sina e, já que o senhor se mostrava indiferente a
levar em consideração e a que tenta adaptar-se, quando não (68) J. DORNAS Filho, A Escraviàilo no Brasil, p.· 243.
(69) John THRUNBELL, A Voyage Rounct Worlct in tne Year 1860, citado
(67) Manuel QUERINO, Costumes Africanos no Brasil, pp. 94-6. por J. DORNAS Filho, op. cit., p. 244.

76 77

-------------·---··----_·· - - ' - - - - -
seus deveres religiosos, é a Igreja constituída que vai substituí-lo. pagãos e cristãos, acabando naturalmente com a vitória dos úl-
As confrarias dos negros ou dos mulatos, fundadas nos moldes timos. A questão permanece ainda aberta para se saber em que
das confrarias dos brancos, às quais tornaremos mais longamente medida esta política surtiu efeito. Ela certamente adulterou as
quando estudarmos o catolicismo do negro, correspondem a religiões africanas, iniciou a obra do sincretismo católico-africa-
esta política da Igreja em reunir no seu seio e à sombra da Cruz, no, mas ajudou também a conservação de valôres ~uramente
os africanos ou seus descendentes que ela procura incorporar, africanos. Devemos de início notar que essas confrarias foram
embora mantendo-os distintos, na vasta comunidade religiosa sobretudo confrarias de bantos e que os ioruba ou os daomeanos
brasileira. É no interior dessas confrarias, a de São Benedito foram menos atingidos. Em segundo lugar, os africanos conti-
e a do Rosário dos Negros, que se farão a assimilação e o sin- nuaram a falar suas línguas primitivas e, não obstante o desejo
cretismo religioso. Somente, êsse sincretismo será um sincretismo da Igreja de fazer vir missionários conhecedores das línguas
planejado, se se permite a expressão. As ordens religiosas, so- africanas para a evangelização dos escravos do Brasil, (7 1 ) êste
bretudo a dos jesuítas, haviam estabelecido um sistema de evan- esfôrço não pôde ser tentado mais de uma vez; as confrarias, fi
gelização dos índios baseado em dois critérios: a aceitação de li
assim protegidas pela ignorância lingüística, contra o contrôle I'

certos valôres nativos, aquêles que não inquietavam a Igreja, l1:i


de seus sacerdotes, puderam amiúde servir de refúgio a crenças
que podiam, por conseguinte, ser por ela preservados, com a muito menos ortodoxas. Não sabemos de onde Diogo de Vas- li
condição de serem reinterpretados em têrmos cristãos (por concellos deduz sua afirmação de que uma das confrarias do !1
lj
exemplo, as danças dos Curumiri, onde os cantos índios eram Rosário era composta de filhas de Iemanjá,( 72 ) mas o que sa- li
substituídos por cânticos à Virgem e que serviam de fundo às bemos é que em tôda parte onde existiram confrarias de negros,
representações teatrais, no gênero dos Mistérios, a fini de fazer a religião africana subsistiu, no Uruguai, na Argentina, no Peru li
penetrar pelos olhos e pelo ouvido, nas almas dos indígenas, os e na Venezuela, e que essas religiões africanas desapareceram
dogmas do catolicismo), e por outro lado, a luta resoluta e nesses países quando a Igreja proibiu as confrarias de se reunir
tenaz, pela astúcia ou pela fôrça, contra os valôres mais radical-
mente opostos aos valôres ocidentais (como os pajés). · Uma fora da Igreja depois da missa para dançar.{73 ) Quantas vêzes
substituição era feita nos rituais e na mitologia dos tupi: Tupã notamos no Nordeste que essas confrarias de negros são compos-
tornava-se Deus e Jurupari o Diabo.(7º) Ainda que de maneira tas das mesmíssimas pessoas que freqüentam o candomblé e aí
menos sistematizada, é esta política que vai ser aplicada no seio ocupam importantes cargos hierárquicos.
das confrarias de negros. Por conseguinte, a Igreja sem o querer, ajudou a sobrevi-
Aceitam-se os costumes africanos que podem adaptar-se vência dos cultos. africanos. A confraria não era evidentemente
ao catolicismo, bem entendido os que são reinterpretados e re- o candomblé, mas constituía uma forma de solidariedade racial
cebem nôvo significado. É o caso, por exemplo, das realezas que podia servir-lhe de núcleo e continuar em candomblé com
nacionais ou das chefias tribais. A tradição africana da sucessão o cair da noite.
hereditária dos reis é substituída nas confrarias pelo sistema O Estado às vêzes investiu contra a Igreja, o que ocorreu
eletivo. Os reis das confrarias passam a ser eleitos pelos seus quando ela defendia o escravo, e colocou-se ao lado dos proprie-
membros; isso possibilita maior obediência de seus súditos e tários de negros:
permite-lhes servir como intermediários entre os senhores bran-
(71) Sera;fim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, II, pp.
cos e seus escravos, constituindo dêsse modo canais de contrôle 35:\-54 (ler todo o capitulo 3 sôbre a assistência religiosa aos escravos negros).
do branco sôbre a massa das pessoas de côr. Com a coroação (72) Diogo de VASCONCELLOS, Mariana e seus Templos, pp. 89-94,
107.
dos reis do Congo de Angola, podiam pas~ar também outros (73) Ver, por exemplo, Vicente ROSSI, Casas de Negros, Rio de la
costumes africanos, como o das embaixadas, ou o das guerras Plata, 1926. I. PEREDA VALDES, Negros Esc!avos 11 Negros Libres, Montevidéu,
1941. Los Morenos, Ed. Enece, Buenos Aires, 1942; os artigos de Fernando
interétnicas que se transformaram nessas confrarias em lutas de ROMERO sôbre os negros do Peru. J. PABLO SOJO, "Cofradias Etnoafrlcanas
en Venezuela", Cultura Universitaria, Caracas, I, 1947. M. ACOSTA SAIGNES,
(70) G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr., pp, 137-52. "Las Confradlas Colonlales y el Folklore", ibid., 47, 1955, etc.

78 79
Se o escravo (ainda que .seja cristão) fugir a seu senhor para os batuques como para um ato ofensivo dos direitos dominicais, uns
a Igreja, acoutando-se nela, por se livrar do cativeiro em que porque querem empregar seus escravos em serviço útil ao domingo
está, não será por ela defendido, mas será por fôrça tirado dela. (7') também, e outros porque os querem ter naqueles dias ociosos à sua
porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O Govêrno, porém,
Também lutou freqüentemente contra os efeitos da misci- olha para os batuques como para um ato que obriga os negros,
genação que, a seu ver, faziam flutuar perigosamente as linhas insensível e maquinalmente de oito em oito dias, a renovar as idéias
de aversão reciproca que lhes eram naturais desde que nasceram,
'entre·as·classes sociais, e o fêz, seja proibindo àqueles que viviam e que todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça comum;
em concubinato com negras( 75 ) de ocupar cargos honoríficos ou idéias que podem considerar-se como o Garante mais poderoso da
funções públicas, seja negando às mulatas o uso de sêdas, de ren- segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez
das e de jóias.( 76 ) Opondo-se às uniões que arriscavam modi- as diferentes Nações da África se esquecerem totalmente da raiva
com que a natureza as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser
ficar a estrutura social do país, a metrópole ou seus represen- irmãos com os Nagôs, os Gêges com os Haussas, os Tapas com os
tantes tomaram medidas a fim de manter ou aumentar as distân- Sentys, e assim os demais; grandíssimo e inevitável perigo desde
cias entre as castas. A política portuguêsa foi, portanto, uma então assombrará e desolará o Brasil. E quem duvidará que a
política essencialmente conservadora da ordem social existente; desgraça tem poder de fraternizar os desgraçados? Ora, pois, proi-
se ela tomou medidas contra a arbitrariedade de certos senhores bir o único ato de desunião entre os negros vem a ser o mesmo
que promover o Govêrno indiretamnete à união entre êles, do que
e assim mesmo bastante tardiamente, defendeu bem mais seus não posso ver senão terríveis conseqüências. (78)
privilégios, às vêzes até mesmo em oposição a êles, como nessas
leis suntuárias sôbre o trajar das mulatas, amantes de colonos O Conde dos Arcos não se enganara. Houve revoltas de
ricos e mesm9 de bispos. Além dessa defesa da ordem social, negros, nós o veremos, mas essas revoltas eram sempre revoltas
dos interêsses dos possuidores de escravos, esta intensificação de certas "nações", não do conjunto de escravos. E elas malo-
<las distâncias sociais entre as "castas", mais ainda: os conselhos graram porque foram conhecidas de antemão graças à traição
dados, não sendo ordens, para que não se libertem muitos escra- de outras "nações" rivais. Mas se passarmos da Política à Socio-
vos, para que não se aumente abusivamente o número de negros logia, veremos que esta política possibilitou a constituição, a orga-
liv:res(7 7 ) apresentavam também um perigo: o de criar uma nização de negros em "nações", e, por conseguinte, permitiu a
consciência de classe na massa de côr e uma consciência de perpetuação de suas tradições religiosas ou culturais. O fator de
dasse revolucionária. Nivelando negros e mulatos, escravos ou desintegração, pela reunião das diversas etnias nas mesmas plan-
livres, num país onde os brancos estavam em minoria, o Estado tações, ou na cidade nas mesmas casas dos senhores, pelo choque
arriscava sublevações que podiam terminar pelo incêndio das das civilizações umas contra outras, foi impedido de uma vez por
plantações, pelo assassinato dos senhores e talvez mesmo pela esta política de registro dos negros em "nações" autônomas. To-
perda da colônia. davia, o Conde dos Arcos era muito bom cristão para aceitar
Ora, seu primeiro dever era garantir a segurança da colônia que esta classificação se fizesse sob o signo das religiões africa-
defendendo a segurança desta minoria de privilegiados. Daí, um nas. Quem sabe se êle não acreditava também que os sacerdotes
outro caráter da política portuguêsa que poderia se resumir na ''fetichistas" f ôssem os líderes das revoltas contra os brancos
célebre fórmula: dividir para reinar. O Conde dos Arcos, no cristãos, o que realmente sucedeu? Em todo caso, êle distinguia
comêço do século XIX, admiràvelmente definiu esta política: entre as danças religiosas africanas condenadas e o batuque
profano, aceito. Assim fazendo, seguia a tradição que continuou
Batuques olhados pelo Govêrno são uma cousa, e olhados pelos
Particulares da Bahia são outra diferentissima. :l!:stes olham para (78) Citado por Nina RODRIGUES, op. cit., pp. 234-35. Da mesma forma.
é verdade que, quando o rei do Daomé enviou uma. embaixada. para Salvador
(74) Ordenações Felipinas, L, II, tlt, v., n.• 6, citado por F. MENDES para. que esta cidade lhe assegurasse o monopólio da compra de seus
DE ALMEIDA, "O Folclore nas Ordenações do Reino", R.A..M.S.P., LVI, 1939, escravos, o governador de então escreveu ao rei de Portugal um relatório
p, 31. TAUNAY, História àa Cidade àe S. Paulo, 1, p. 107. concluindo pela nega.tiva. "porque não convém que um grande n"Wnero de
(75) P. CALóGERAS, Formação Histórica do Brasil, p. 36, BUARQUE escravos de uma só nação se reúna nesta. capitania, poderia. resultar per-
DE HOLLANDA, Rai2es do Brasil, p, 60. G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, niciosas conseqüências" (carta do capitão geral da Bahia de 1795, citada
III, p, 934. por TAUNAY, op. cit., p. 215). Essas duas políticas não eram, aliás, contra-
(76) J . .ALVARES DE AMARAL, Resumo Chronologieo, p. 403. Xlllvler da ditórlas; a.o contrário, multiplicando as "nações" num mesmo lugar e
VEIGA, Ephemeriàes Mineiras, I, p. 208, II, p. 293. orga.ntzando-as para lutarem entre si, tinha-se em vista. o mesmo resultado:
(77) Braz do AMARAL, op. cit., p. 467. impedir a :formação de uma consciência de classe.

80 81
durante todo o período escravista e que consistiu em proibir a
perpetuação dos cultos africanos no Brasil.( 79 )
'
'!t

representações coletivas para as instituições e os grupos. Os


modelos africanos puderam influenciar esta reestruturação, mas
Já numa época em que os "negros de Guiné" eram raros, a também exerceram influência os modelos europeus impostos,
Inquisição, em visita a Pernambuco e à Bahia, preocupou-se com como as confrarias ou as associações de danças dos negros em
a questão. Mais tarde, as Câmaras municipais eram encarrega- "nações".
das de fazer inquirições para saber se existiam na região "pessoas Em segundo lugar, quer-nos parecer que os fatôres negati-
utilizando a feitiçaria, ou que são feiticeiras - curando os ani- vos da escravidão agiram sobretudo em certos setores da socie-
mais, benzendo-os - servindo-se de relíquias diabólicas ou te~­ dade, nas zonas rurais e mais ainda nas zonas de pastoreio ou
do feito um pacto com o Diabo''.( 8º) Em todo lugar os arqui- de mineração - enquanto os fatôres positivos, de ordem demo-
vos, à medida que revelam suas riquezas, nos põem em presença gráfica ou institucional, atuaram principalmente nas zonas urba-
de regulamentos contra as reuniões de negros de caráter religioso, nas. Daí, a conseqüência, que constataremos várias vêzes, que
ou de perseguições intentadas contra "casas de sorte", calundus as religiões africanas são mais fiéis, mais puras e mais ricas nas
e associações de jurema, seguidas da prisão de fiéis e d.e seus grandes cidades que nas regiões rurais. Ao contrário do que em
sacerdotes. ( 51) Mas tudo em vão como reconheceu o conde geral ocorre( 82 ) com as resistências religiosas ou folclóricas,
da Ponte em 1807. no Brasil é a grande cidade o museu das tradições arcaicas.
A Igreja, permitindo aos negros reunirem-se ém confrarias,
está na origem do sincretismo do catolicismo com. a região afri-
cana mais que na origem da catolização do negro. O govêrno
por sua vez, estimulando a divisão dos negros em "nações" inde-
pendentes, está na origem das diferenças culturais entre os afri-
canos que encontraremos na nossa pesquisa.
Certo número de conclusões pode pois ser deduzido da
análise das condições históricas da implantação da Africa no
Brasil.
Em primeiro lugar, a escravidão operou uma separação
entre as super e as infra-estruturas, sem darmos a êsses têrmos
um sentido marxista. As estruturas sociais africanas foram des-
truídas, os valôres conservados; mas êsses valôres não poderiam
subsistir se não se formassem novos quadros sociais, se não se
criassem instituições originais que os encarnassem e os permitis-
sem sobreviver, perpetuar-se e passar de uma geração a outra.
Isto significa que as superestruturas tiveram que produzir ut:Íla
sociedade. O movimento não é mais um movimento de baixo
para cima, que sobe progressivamente da base morfológica para
o mundo dos símbolos e das representações coletivas, mas um
movimento inverso, de' cima para baixo, dêsses valôres e dessas
(79) Por exemplo, no fim do século XVIII, o Conde de Pevoll pede
que essas danças das "nações" sejam conservadas; não são mais imorais
que as dos brancos; mas condenava ao mesmo tempo as danças "feitas
às escondidas nas casas ou nos campos com uma a.mante negra, um altar
cheio de ídolos, onde se adora bodes vivos e outTos feitoo de barro, untados
com diversos óleos ou com sangue de galo".
(80) Segundo Ordenações FeZipinas, LIV, tit. LXXX, VllI, n.os 7 e 8; e
MENDES DE ALMEIDA, op. cit., p, 58.
(81) Ver mais adiante o nosso Capitulo VI.
(82) PARK e BURGESS, The City, pp. 130-41.

82 83
CAPÍTULO II

Os Novos Quadros Sociais das Religiões


Afro-brasileiras

Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as


etnias, fragmentando as estruturas sociais nativas, impondq aos
negros nôvo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as reli-
giões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas.
Víéira exprimia bem esta oposição entre a sociedade, dominada
e regulada pelas normas portuguêsas, e as civilizações, vindas da
Africa, escrevendo que o Brasil "tem o corpo (europeu) na Am6-
rica e a alma na Africa". Mas as crenças que permanecem
confinadas no segrêdo dos corações, que não se exprimem em
ritos e ceri.µiônias, nem tomam formas coletivas de organização,
estão fatalmente condenadas à morte. A religião, ou as religiões
afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais
que lhes eram impostas "nichos" por assim dizer, onde pudessem
se integrar e se desenvolver. Deviam se adaptar a nôvo meio
humano, e esta adaptação não iria se processar sem profundas
transformações da própria vida religiosa. Tornava-se necessá-
rio encontrar entre as superestruturas - outrora em conexão
com a família, com a aldeia, com a tribo - e as novas infra-
-estruturas ---::- a grande plantação ou o centro urbano, a escravi-
dão e a sociedade de castas hierarquizadas dominada pelos se-
nhores brancos - laços ignor~dos, formas de passagem inéditas,
encarnando-se no corpo social e a êste, por sua vez, deixar-se
penetrar por êsses valôres diferentes, como modelos ou normas.
As religiões africanas que podiam teoricamente implantar-
-se no Brasil eram tão numerosas quanto as etnias para aqui
transportadas. Entretanto, pode-se aqui fazer uma observação
de ordem geral, a de que tôdas essas religiões, sem exceção,
estavam estreitamente ligadas às famílias, às linhagens ou aos
clãs. Os bantos de ~biqµe cultuam .os ancestrais familia-
res e é o pai de família que exerce o sacerdócio; isoladamente,
os ancestrais do chefe são objeto de culto por parte de todos os

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membros da tribo e servem de intermediários entre os homens ser esta idéia: os deuses do ioruba e os voduns daomeanos diri-
e o Deus supremo, deus do céu ou da chuva. O culto dos ante- gem departamentos da natureza, com sacerdotes especiais e con-
passados domina também a religião, mais rica e mais complexa, frarias de iniciados que os servem, em benefício de tôda a comu-
dos negros de Angola, onde as mulheres são possuídas, durante nidade e, ao mesmo tempo, cada deus dirige uma família, da
as cerimônias, pelos mortos de suas famílias. No Co~.g_Q, o ani- qual é o ancestral e que lhe rende culto, transmitido em linha
mismo é certamente mais desenvolvido; há tôda uma mitologia masculina.
com um deus celeste, uma deusa terra, mas esta mitologia está Ora, como dissemos no capítulo anterior, a escravidão se-
ligada "domesticamente" às grandes famílias reais, os deuses parava a mãe dos filhos, o marido da µiulher,( 3 ) dispersava
sendo considerados os fundadores das dinastias reinantes; e, para- nas regiões mais afastadas do Brasil os membros de uma mesma
lelamente, entre as outras famílias, o lugar preponderante cabe linha ou de um mesmo clã, que poderiam ser escravizados ein
ao culto dos ancestrais. ( 1 ) Quanto aos !Qrubas e daomeanos, conjunto. ( 4 ) Como, nessas condições, uma religião tão estreita-
apresentam uma dupla religião, rural e urbana, que Frobenius mente unida à vida doméstica, aos manes dos ancestrais, reais
definiu muito bem em sua Mitologia da Atlântida: ou lendários, totêmicos ou não, onde o sacerdócio era o privi-
A idéia fundamental do sistema religioso ioruba é a concepção
légio do patriarca, podia resistir a tal transformação? Todavia,
segundo a qual todo homem descende de uma divindade ( ... ) Todos devemos distinguir os negros da Africa ocidental dos bantos,
os membros de uma família descendem da mesma divindade ( .•. ) em relação aos efeitos dessa mudança de estrutura. Os bantos
É inteir11-mente indiferente que esta divindade seja ao mesmo tempo não podiam achar solução para o desaparecinlento de um culto
o deus das tempestades ou da forja, de um rio, da terra, do céu,
ou o deus de uma fôrça ou de uma atividade. Cada deus tem quase que unicamente centrado na adoração dos mortos, a não ser
descendência e face a esta, tem o poder de nela se perpetuar através por vias indiretas que, na realidade, parece terem sido tomadas
de filhos. Mas, numa segunda perspectiva ( ... ) cada Deus tem sinlultâneamente, segundo o testemunho dos viajantes ou dos
uma função determinada que lhe é própria. Temos, por exemplo,
o deus das tempestades que se preocupa em assegurar chuvas fe- cronistas da época da escravidão. A primeira solução estava
cundas à terra. Temos o deus do ferro que fornece o metal para em que podiam se prender à idéia de que a alma depois da
a forja ( ... ) Se a chuva faltar em algum lugar, tôda a. população morte retorna ao país dos antepassados, ou para as reencarnar nos
interessada invoca em comum o deus das chuvas, qualquer que sêres livres, ou para· aumentar o grupo de ancestrais deificados,
seja o orixá que cada familia descende. Se uma guerra sobrevir,
tôda a comunidade invoca o deus do ferro (que é também o deus dessa forµia recebendo um culto que era inlpossível no Brasil.
do destino das guerras) qualquer que seja o deus de que descende Esta era a solução de membros de famílias arrancados de seus
cada pai de família ( .•. ) Conseqüentemente, é preciso que cada grupos e não de grupos escravizados por inteiro. Ela impeliu
propriedade possua um altar do deus familiar onde o serviço seja freqüentemente os escravos à morte para assinl encontrarem mais
assegurado por um intermediário ou um preposto, um sacerdote
familiar. E, em segundo lugar, cada comunidade urbana tem depi;essa o Paraíso dos ancestrais. ( 5 ) A segunda solução era
necessidade, para que cada grande deus possa agir bem ou mal reinterpretar as outiras religiões do Brasil, a religião indígena, a
sôbre ela própria, de um templo, de um santuário onde as grandes religião católica, e mesmo a religião de outras etnias africanas
festas, as cerimônias sejam celebradas por um grão-sacerdote ligado em têrmos do culto dos mortos. Esta segunda solução era relati-
a cada deus ( •.• ) O membro celebrante da família chama-se vamente fácil no que diz respeito às religiões ameríndias, porque
Aboxá, o sacerdote da comunidade, Ajê.(2)
(3) KOSTER, Voyages Pittaresques, cita.do por A. BRANDAO, "Os Negros
No momento não nos interessa saber como essas duas reli- na História de Alagoas", Estudos Afro-brasileiros, pp. 55-91; TOI.!LENARE,
Notas Dominicaes, pp. 79, 139. Numerosos exemplos citados por Ch.
giões, que se dirigem às mesmas divindades, se coordenam, nem EXPILLY, Murheres e Costumes, pp, 385-96.
(4) Exemplo: no engenho Freguezia, contam-se em 1811: 13 crioulos,
como puderam passar de uma para a outra; não reteremos a não 32 mulatos, 16 africanos sem outra designação, 7 daomeanos, 3 nagôs, 2
angolas, 1 mina. Em 1832: 15 crioulos, 13 mulatos, 9 cabras, 4 haussa, 4
(1) A bibliografia das religiões africanas é demasiado ampla para daomeanos, 1 mina, 1 mendobi. Em 1853: 102 nagôs, 15 crioulos, 14 haussa,
que possamos citá-la. Indicamos simplesmente para os bantos H, BAUMANN 1 calabar, 1 moçambique, 3 cabindas, 1 mulato, 27 africanos sem outra
e D. WESTERDANN, Les Peuples et les Civmsattons de Z' Afrique, pp. 123-250, designação. VANDERLEY PINHO, História de um 'Engenho do Recôncavo,
e para os negros da antiga Costa dos Escravos, G, PARRINDER, !la Religicm pp. 163-64.
en Afri,rzue Occidentale. (5) Sôbre esta primeira solução, ver d'ASSIER, Le Brésil Ccmtemparain,
(2) L. FROBENIUS, Mythologie de l' Atlantide, pp. 122-23. pp. 26-8.

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os pajés faziam falar os mortos com seus maracás e as índiàs pára que umoes estáveis pudessem se produzir;( 8 ) a µiesma
entravam imediatamente em transe, ( 6 ) o que explica a acei- mulher dormia ao acaso de seus caprichos ora com um macho,
tação imediata da pajelança ou do catimbó pelos bantos.(7) ora com outro, e mesmo que êsses homens fôssem da mesma
Essa solução era já mais düícil no que diz respeito às religiões etnia, ioruba ou daomeana, a mulher quando tinha filhos não
ioruba ou daomeana que se dirigiam menos aos ancestrais prO- podia saber quem era o pai. :Sste fato não. teria nenhuma im-
. priamente falando que às divindades, mas ainda assim êsses cultos portância se os orixás ou voduns fôssem herdados eµi linha
transformavam em deuses reis ou heróis que viveram na terra, y; feminina, mas sendo transmitidos, como o dissemos, em linha
divinizando-os após sua morte, dando ao transe papel central em 1 masculina, a ignorância da paternidade impedia o culto domés- ·
seus rituais, coisas essas que podiam ajudar os bantos da costa tico. Conseqüentemente, sob a influência do catolicismo, o casa-
do Atlântico a redefinir suas religiões em têrmos ioruba. As mento religioso abençoado pelo capelão, aceito ou patrocinado
"nações" congo ou angola, de fato copiaram amiúde, mudando pelo senhor branco, substituiu esta espécie de vasta prostituição
apenas os nomes das divindades (substituindo Oxalá por Zumbi, primitiva. ( 9 ) Mas, segundo Couty, a tentativa malogrou; ·os
senhores encerravam as môças para protegê-las da lascívia dos
Exu por Bonbongira, etc.), os candomblés dos negros ociden-
machos; mas, essas, uma vez casadas, envenenavam freqüente-
tais. O catolicismo, ao contrário, proibia ou, em todo caso, mente seus maridos, preparando-lhes guloseimas com ervas for-
desconfiava das crises extáticas; as confrarias religiosas da Vir- necidas por seus feiticeiros, para poderem casar com outros.
gem do Rosário ou de São Benedito ofereciam aos bantos, ape- companheiros; as mortes de escravos casados tornavam-se mes-
sar de tudo, uma concepção de "intermediários" que podia se mo tão usuais que se precisou proibir às viúvas em quase tôdas
adaptar à sua própria; de um lado, a idéia de que os santos as grandes propriedades, casarem-se de nôvo; finalmente, acres-
eram os intercessores entre o homem e Deus, identificava-se em centa Couty, cessaram as preocupações com a moral, "ficando os
seu pensamento com a própria idéia de que eram os ancestrais dois sexos à vontade para se misturarem durante duas ou três
que estavam encarregados de levar seus pedidos a Zumbi ou horas cada noite".( 1 º) O mesmo ocorria nas cidades, enquanto
Zambi, divindade do céu, isso tanto mais fàcilmente pois que os senhores dormiam, os escravos saíam das casas para encon-
a Virgem e os santos viveram na terra antes de alcançarem a trarem-se na escuridão da rua ou nas praias desertas. ( 11 ) Nessas
glória de Deus. Em segundo lugar, a existência de Virgens ne- condições, mesmo depois da obrigatoriedade do casamento, a
gras; de santos prêtos podia fazê-los pensar que êsses "negros" ligação orixá-linhagem masculina estava definitivamente rompi-
católicos tivessem sido ancestrais de suas raças, não mais, é ... da. Em compensação, o segundo aspecto da religião ioruba-
verdade, ancestrais familiares, mas, ao menos, ancestrais nacio- -daomeana, o culto dos deuses da natureza em benefício da co-
nais. Dessa maneira, os bantos foram mais permeáveis que as munidade, por sarcedotes urbanos rodeados por uma confraria
outras etnias africanas à aceitação de confrarias. Mais tarde, de iniciados era agora possível no quadro das "nações", recons-
porém, no fim do século XIX, quando o espiritismo se desen- tituídas pelo govêrno português, depois pelo brasileiro, a fim de:
evitar, exaltando as rivalidades interétnicas, a formação de uma
volverá no Brasil, com os fenômenos de mediunidade e de incor- consciência de classe e a revolta geral dos negros contra os bran-
poração dos mortos, é êle que fornecerá a melhor solução aos cos. As condições de vida impostas às etnias africanas ociden-
últimos bantes importados, ou aos seus descendentes, para rein- tais levaram, por conseguinte, a uma cisão em sua religião, segun-
terpretar em têrmos europeus a religião de seus pais. do divergência já verüicada na Africa, entre os seus dois aspec-
Quanto aos\ ioruba e daomeanos, a questão se colocava de
forma diferente, já que a religião aí se apresentava sob um aspec- cs> G. FREYRE, op. cit., p. 611. Alexander CALDELEUCH, Travels in
South Ameríca, I, p. 25'; KOSTER, op, cit., I, p. 202; DEBRET,. em sua.
to dualista, religião ao mesmo tempo de linhagem e de comuni- Voyages Pittoresques, dá uma excelente gravura representando um dêsses casa-
mentos, vol. m, gra-vura 15.
dade. A primeira veio a desaparecer. O número de mulheres (9) H. KOSTER, VoYages Pittoresques, II, p. 347, e sôbre a tendência·
em casar mulatos escravos com pessoas mais escuras para impedir· a pas-
escravas era bastante inferior ao número de homens escravos sagem da linha de côr, p. 372; TAUNAY, História do Café, IV, cap. 63, e·
VIII, p, 174.
(6) P. NÓBREGA, Cartas do Brasil, 1549-1560, pp. 99-100. (10) L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 74-5.
(7) Ver a 2.• parte, cap. I. (11) Oh. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI; KOSTER, ()]I. cit.~
I, p. 23; V. COARACY, O .Rio de Janeiro no Século XVIII, p. 201.

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tos, o doméstico e o nacional, preservando apenas o último, camente suas formas, obedecendo aos mesmos rituais, dando
que achou nas organizações dos cantos, das nações, das reuniões lugar aos mesmos transes extáticos.( 13 ) Isto significa que as
de dança, dos batuques, os "nichos" apropriados, como os cha- novas infra-estruturas sobrepuseram-se às superestruturas e só
·mamos, onde pôde se ocultar e sobreviver.( 12 ) se deixaram contaminar por elas na medida que puderam mo-
Mas como se operou a relação entre essas infra-estruturas delá-las segundo seus padrões.
brasileiras - confrarias e nações, criadas pelo branco e em seu Mas, para compreender essas "nações", êsses batuques ou
proveito - e as superestruturas, valôres e representações coleti- essas confrarias, é preciso recolocá-los na sociedade total da
vas de origem africana? Não dispomos infelizmente de documen- época, caracterizada pela monocultura, pela escravidão e pela
tos históricos que possam nos fornecer a solução dêsse problema: grande propriedade.
não poderemos resolvê-lo a não ser indiretamente, mais tarde, Tem-se dito e repetido freqüentemente que a escravidão
ao estudarmos a organização social dos candomblés. Contentar- brasileira era infinitamente mais amena que a escravidão anglo-
-nos-emos, no momento, com duas observações fundamentais. -saxônica ou francesa. Os viajantes inglêses ou americanos, que
1
Na Africa, cada divindade, seja Xangô, Om.olu ou Oxum, J tinham conhecido a sorte trágica dos trabalhadores de seus paí-
tem seus sarcedotes especializados, suas confrarias, seus conven-
tos, seus locais de culto. No Brasil, mesmo nas cidades "negras" ses no início da industrialização, não deixaram de observar que
do litoral, era impossível para cada "nação'', bem menos nume- a situação dos escravos, que ao menos tinham o futuro assegu-
rosa, reencontrar e reviver esta especialização. As seitas vão, rado, que eram tratados quando estavam doentes, ajudados
pois, tornar-se reduzida imagem da totalidade do país perdido; quando velhos ou fracos, era bem superior à situação dos ope-
quer dizer, cada candomblé terá, sob a autoridade de um único rários europeus ou norte-americanos;( 14 ) Saint-Hilaire, por sua
sacerdote, o dever de. render homenagens a tôdas as divindades vez, comparando a vida dos escravos rurais com a dos campone-
ao mesmo tempo e sem exceção. Em lugar de confrarias espe- ses franceses, declara que os primeiros são mais felizes que os
f segundos.(111) Não contestaremos êsses testemunhos que são to-
cializadas, uma para Oxum, outra para Xangô e outra para
Omolu, teremos apenas uma confraria, compreendendo simul- dos concordantes. Exceto talvez os depoimentos dos viajantes
tâneamente as filhas de Oxum, as filhas de Xangô, etc. Por alemães que gostavam, em geral, de acentuar os casos de tortu-
conseguinte, temos a concentração da Africa na seita. Esta, a ras infligidas aos negros pelos brancos, ou casos de .assassinatos
primeira observação. de brancos por seus escravos; mas, percebe-se que suas narrativas
Por outro lado, quando as seitas africanas foram criadas obedecem a uma política de desencorajar a imigração de seus
pelos negros livres, os ancestrais familiares aí puderam se intro- compatriotas para o Brasil. ( 16 )
duzir, ao lado das divindades da natureza. Isto foi o que se
passou, por exemplo, na Casa das Minas. Nela são adoradas, (13) Sôbre essas três familias e sua semelhança teológica atual, ver
Nunes PEREIRA, A Casa das Minas, pp. 31-2. Octavlo da COSTA EDUARDO,
com efeito, três "famílias" de deuses: a família de Dã, ou Dan- The Negro in Northem Brai:il, pp. 76-80. P. VERGER, op. cit., pp. 159-60.
(14) A. MAJORIBANKS, North and South America, Londres, 1854, p. 73.
birá, isto é, da varíola; a família de Keviosô, isto é, do raio; por A. R. WALLACE, A Narrative of Traveis on the Amai:on and Rio Negro, p. 120.
fim, a família de Davisé ou Dahomé, isto é, os ancestrais da Hamlet CLARK, Letters Home from Spain, Algeria and Brai:il, p. 160. S. W.
H. WEBOTER, Narrative of a Voyage o/ the Soutn Atlantic Ocean, p. 43.
família a:eal do Daomé, da qual os fundadores da "casa" eram GARDNER, op. cit., p. 14. H. Charles DENT, A Year in Brai:il, p, 28. Franck
BENNET, Forty Years in. Brai:il, p. 111. J. W. WELLS, Tnree Tnousand
membros. Temos, portanto, um caso em que as duas- religiões, Miles tnrough Bra2il, II, p. 187.
a familiar e a nacional, sobreviveram em conjunto. Mas sua (15) SAINT-HILAIRE, Voyage dans Zes Provinces de Rio de Janeiro et
de Minas Geraes, cap. IV. Os testemunhos de outros viajantes franceses
ligação numa "nação" ocasionou uma evolução das crenças, os concordam com o seu: COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 3-9. Ferdlnand
DENIS, Brésil, p. 142. H. KOSTER, Voyages Píttoresques, acentua mesmo
antepassados tomaram-se iguais aos voduns tomando teolôgi- que no Brasll os escravos dos estre.ngelros são tratados mala rudemente
que os dos senhores brasllelros, p. 311. RIBEYROLLES, op. cit., não
c12i O fenômeno da cisão entre as duas rellglões fol bem observado, obstante seu antlescravlsmo, Teconhecla a superlorldade da sorte do escravo
do ponto de vlsta da organização dos candomblés, por M. J. HERSKOVITS, sôbre a. do operário europeu. Ide. PFEIFFER, V'oyage ,Autour du Monde, p. 18.
"The Soclal Organlzatlon of the Candomblé", Anais ão XXXI Congresso de (16) Por exemplo, Avé-LALLEMANT ou o e.utor anônimo de Brasilia-
Americanistas, p. 521, e, do ponto de vista do que os norte-americanos niscne Zustande. Mas é preciso note.r também que outros viajantes alemães
chamam de "enculturação", por E. Fr.· FRAZIER, "The Negro Famlly ln acentuaram a Telatlva brandura da escravidão brasllelra, como SPIX e
Bahla, Brazll", Amer. Social. Beview, VII, 4, p. 471. MARTIUS, J. EMANNUEL POHL ou RUGENDAS.

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Entretanto, se não contestamos êsses testemunhos, devemos tortura utilizados no Brasil.( 25 ) Quando as idéias abolicionis-
fazer um certo número de observações que limitam sua importân- tas começaram a se desenvolver na classe dos "bacharéis" e dos
cia. A sorte dos escravos variava segundo as regiões; era melhor, "doutôres'', os ricos proprietários precisaram naturalmente to-
por exemplo, no Rio ou na Bahia que no Maranhão ou no mar precauções para não proporcionar contra si mesmos armas
Pará.( 17 ) Variava também conforme as categorias de escravos: aos seus piores adversários; fizeram inclusive passar de suas mãos
era menos severa para o vaqueiro que para o trabalhador das 1 às dos agentes do Estado, policiais ou soldados, a execução de
charqueadas, ( 18 ) para o empregado doméstico que para o tra- castigos, privando-se assim de alguns de seus direitos.( 26 ) A
balhador rural. ( 19 ) Todos êsses testemunhos datam principal-
mente do início do século XIX, época em que o tráfico negreiro -·-~ Igreja Católica, por seu lado, que permanecera muito tempo indi-
ferente à sorte dos africanos, tomou certo número de medidas
começa a ser limitado, prenunciando o seu desaparecimento total. a favor dessa classe, tais coµio a libertação de escravos pelas
Isto fêz com que o preço dos escravos aumentasse bastante.( 2 º) confrarias do Rosário, o direito do branco de comprar o escravo
Os senhores, percebendo que se tornaria no futuro cada vez mais que lhe pedisse asilo de seu antigo senhor, que não podia opor-se
difícil renovar seu investimento humano, coµipreenderam que a essa transferência de propriedade, etc.( 27 )
cada trabalhador constituía precioso capital; apressaram-se a Todavia, tôdas essas medidas que µielhoraram certamente
tomar medidas adequadas à conservação da saúde e da vida de ou mitigaram a sorte dos escravos não devem nos iludir, A es.
seus escravos, a melhorar sua alimentação, a construir hospitais cravidão moderna não é como a escravidão antiga,( 28 ) ela não
em suas fazendas, fazendo vir "cirurgiões", a conceder dias de se fundamenta, como a última, na integração do homem em uma
repouso às mulheres parturientes ou às jovens mães durante o família, mas na exploração econômica de uma raça por outra, e
período de lactação, enfim, a regular o trabalho nos campos de no lucro; em outras palavras, poderíamos dizer que o indivíduo
maneira a não demandar em excesso esforços físicos de seus ne- na escravidão moderna é como um assalariado de uma nova lei
gros. ( 21 ) Pensamos que é preciso investigar a moderação da 't de fome. A escravidão pela sua própria natureza impunha insen-
escravidão muito mais nessas razões econômicas que em motivos 1
sibilidade ao senhor. Os mesmos viajantes que acentuam a rela-
raciais, como a indolência dos brasileiros,( 22 ) ou em motivos tiva brandura da escravidão no Brasil, observam paradoxalmen-
religiosos, como a influência do catolicismo.( 28 )
te êsse fato; que o suicídio de negros, os assassinatos e as rivali-
Há na obra de Gilberto Freyre contradição evidente entre
sua afirmação da brandura da escravidão e sua idéia de que a 1 dades raciais encontram-se em maior número nas propriedades
escravidão desenvolveu nos brancos brasileiros o gôsto do _sadis- -~
dos senhores "bons" que nas dos outros.( 29 ) Na verdade, não
mo. (24) De fato, êsse sadismo não se teria desenvolvido se não se podia dirigir um grupo de às vêzes várias centenas de escravos
houvesse prazer em ver açoitar os negros, em pôr-lhes máscaras sem uma vontade de ferro. Observa-o Fernando de Azevedo,
de ferro, em colocá-los nos troncos, em cortar as orelhas dos com muita precisão, baseando-se ao mesmo tempo na opinião de
fugitivos capturados. Arthur Ramos consagrou todo um capítulo Max Weber e nos dados da história do Brasil.
de um de seus livros à descrição minuciosa dos instrumentos de (25) Arthur RAMOS, A 111.culturaçlío Negra no BrMil, pp, 103-14. Sôbre
os castigos infligidos aos escravos no Brasil, ver também d'ASSIER, op, cit.,
(17) SAINT-HILAIRE, Voyage au::c Sou.roes ãu Rio San Francisco, p. 110. p. 96. N. SANT'ANA, Slío Paulo Histórico, II, pp. 185-92. Tavares BASTOS,
KOSTER, op. cit., II, p. 399. Cartas ão Solitário, p. 154. FerdiD.and DENIS, op. cit., p. 146. F. BIARD,
(18) SAINT-HI'LAIRE, Viagem ao Rio Grande ão Sul, p. 87. Deu::c Années au Brésil, p. 180. Vivaldo CORACY, O Rio ãe Janeiro no
(19) COUTY, op. cit., pp. 83-4. Século XVIII, p. 204, nos diz que em 1688 o rei de Portugal tomou medidas
(20) o lucro sôbre a venda de escravoe que era de 20 a 30% subiu contra a barbárie dos senhores, mas depois que os escravos toma:am conhe-
então para 200 e 300%. J. DORNAS Filho, A Escraviãão no BrMil, p. 63, em cimento das ordens do rei, houve uma série de rebeliões e, a pedido do
nota-. governador, as recomendações reais precisaram ser revogadas. Encontrar-se-á
(21) TAUNAY, História ão Café no Brasil, vol. m, capa. 62-69, vol. VI, a coleção de leis sôbre a pena a ser infligida aos negros na Coizecçlío
capa. 9, 10, vol. VIII. cap. 17. das Leis ão Imperio ão Brasil ãe 1835, Rio, 1864, I, p. 5 e sega. Os anúnc1011
(22) Essa é a opinião, por exemplo, de M. GARDNER em sua Viagem de negros fugitivos dos jornais indicam freqüentemente, como meio de
no Brasil, p. 12. reconhecê-los, cicatrizes deixadas por êsses diversos castigos.
(23) Essa é também a opinião de CASTELNAU, citado por TAUNAY, (26) GARDNER, op. cit., p. 14. SPIX e MARTIUS, Traveis in Braztz, I,
No Brasil ãe 1840, p. 311. D'ASSIER viu bem a causa econômica da mudança p. 179.
de politica dos senhores brancos (Le Brésil Contemporain, p. 160). (27) KOSTER, op. cit., pp. 337-40. A. RAMOS, op. cit., p. 121.
(24) G. FREYRE, op. cit., entre a p. 301 (c!. Interpretaçlío ão Brasil, (28) A. COMTE, Cours ãe Philosophie Positive, t. V, 53,• lição, pp. 99-103.
pp. 108-18) e as pp. 76-8. (29) COUTY, op. cit., p. 78. TSCHUDI, Beise Duroh SM-Amerika, II,
pp. 76-·9.

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Certamente, para que a economia patriarcal da Casa-grande da escravidão, a estrutura social do Brasil estava justamente em
( •.• ) pudesse sustentar-se e desenvolver-se, tinha de manter na fase de transição sob o efeito da urbanização. E esta nova
submissão servil, por uma disciplina de ferro, bugres e africanos estrutura iria ainda intensificar a separação das duas classes, a
que constituiam dois terços e, mais tarde, a metade da população. exploradora e a explorada, tornando dessa maneira caduco o
Era uma luta de sobrevivência e de dominio. A "Casa-grande" não
teria sido, no caos da sociedade colonial, êsse instrumento discipli- efeito integrador do abrandamento dos costumes.
nador da ordem, êsse poderoso elemento que foi, de aglutinação, A cidade brasileira no comêço não foi mais que o prolon-
essa fôrça centripeta que reagrupa e retém, sem êsse esfôrço tre- gainento cfoi-ê:ampos. O dono das plantações que vinha morar
mendo que ia até a crueldade, para solidificar a armadura do na capital ou nos portos trazia consigo seus gostos rurais. O so-
sistema, constantemente ameaçado pelas tropelias dos silvícolas e
pelos tumultos nas senzalas.(ªº) brado urbano copiava a Casa-grande do engenho, isolava-se das
outras casas por jardins, voltava a sua parte traseira à rua ( con-
Os sofrimentos que os meninos brancos infligiam aos preti- centrando sua vida nos aposentos que davam para o pátio), de-
nhos sujeitos a seus caprichos, os ciúmes das mulheres brancas fendia a µiulher branca da vista de estranhos pelas gelosias de
contra as amantes negras de seus maridos das quais rasgavam suas janelas, pelas grades. A senzala para aí foi também levada
os olhos, ou arrebentavam os dentes a golpes de martelo, não ocupando as dependências mais úmidas ao rés-do-chão, enquan-
têm para nossa matéria senão um interêsse anedótico.( 81 ) O to a capela do engenho aí se transformava em altar familiar,
importante é que o escravo se ressentiu da exploração sistemá- nuµi armário embutido no salão, as portas entreabertas sôbre
tica, brutal, interessada, contínua da qual era o objeto e a vítima. um fundo de ouro e de chamas de velas. Entretanto, contra êsse
E não é sem razão, de fato, que um célebre provérbio faz do isolamento das casas, a _ma. que mesmo assim era um meio de
Brasil "o inferno do negro, o purgatório do branco e o paraíso comunicação entre elas e que constituía um centro de encontros,
do pmlato". O mulato livre e sobretudo a mulata voluptuosa de confraternizações ou de reuniões, ac~..QQLJriunfar. Ela
bem podiam encontrar aqui um paraíso, o escravo negro apenas vai arrancar a mulher branca de sua solidão para fazê-la ouvir
encontrando um inferno. Antonil, no fim do século XVII, lem- à sua janela as alvoradas dos estudantes, para levá-la a freqüen-
bra que para o escravo três "p" são necessários: pão, pau e pano, tar os bailes e as recepções µiundanas, para ir ornada como as
mas que o brasileiro começa mal, porque começa com o pau, santas, aos camarotes dos teatros. Vai também arrancar o pa-
tratando melhor seus cavalos que seus escravos. ( 82 ) O senhor triarca de seus interêsses puramente econômicos para conduzi-lo
achara, é verdade, uma solução para dirigir o ressentimento do à freqüência de clubes políticos, de lojas maçônicas, das vastas
negro sôbre outra pessoa que não êle, desdobrando a figura do sacristias das igrejas coloniais, onde se discutiam terras, cavalos
pai-senhor em duas, o pai bom que era o proprietário, e o pai e negócios do Estado. Através da rua como pelos salões, o antigo
mau que era o feitor.( 88 ) A êsse último principalmente é que antagonismo do senhor de engenho e do português comerciante
se deviam as piores selvagerias, e como os feitores eram esco- vai diminuir, acabar às vêzes em casamento da filha do senhor
lhidos na classe dos mUlatos e dos negros livres, conseguia a já meio arruinado com o filho cio português, caixa ou gerente da
classe exploradora dissociar no espírito da classe explorada a loja de seu pai.( 84 ) Mas se a rua perµiitiu assim aos brancos
luta econômica, contra o regime servil, da luta racial, africanos desenvolver o sentido de sua solidariedade racial, não parece ter
contra portuguêses. tido o mesmo efeito no sentido da confraternização "das raças
Todavia, quando essa exploração diminuiu, depois da de- e das cUlturas".
cadência das minas e durante todo o século XIX até a extinção De fato, a urbanização, longe de ter ajudado a integração
do negro e do branco em uma mesma sociedade, parece ter agido
(30) Fernando de AZEVEDO, Canaviats e Engenhos, pp. 59-60. A oplnião no sentido contrário, salvo talvez nas grandes festas populares,
de Max WEBER a que alude Fernando de Azevedo encontra-se em
Wirtschaft und GeseZZschaft, t. I da. tradução espanhola, p. 128 e segs. onde tôdas as côres se encontravam, µiisturando-se na alegria
(31) Para o negrinho, objeto de tortura da criança branca, ver G.
FREYRl!l, Casa-grande e Sen2ala, trad. fr., pp. 285-86, e sôbre o caso do comum, e ainda nas procissões em que desfilavam juntas as con-
clúme das mulheres, idem, p. 286.
(32) ANTONIL, op. cit., cap. 5. (34) Gllberto FREYRE consagrou um livro a êsse problema, Sobrados
(33) R. BASTIDE, "Introductlon à l'Estude de Quelques Complexes Afro- e Mucambos, bem como um dos mais importantes capítulos de Regillo e
-bréslllens", Bul. Bureau d' Ethnologie, Raltl, II, 5, pp. 26-7,. e SocioZogie et Tradiçllo, 66. Aspectos de um século de translçã.o no Nordeste do Brasil,
Psychanalyse, pp. 242-43. pp. 107-94.

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frarias de negros e de brancos. Mas, mesmo aqui as raças per- guerreiras. Mas, naturalmente, esta nova orientação dada às
maneciam separadas; as confrarias do Rosário ou de São Bene- representações coletivas trazidas da África alteraria o seu signi-
dito eram as primeiras, à frente do cortejo, e as irmandades dos ficado. Na África as divindades eram cultuadas em benefício de
brancos rodeavam o pálio do bispo ou do pároco; a festa, por tôda a comunidade, comunidade de criadores ou de camponeses;
seu lado, fazia coexistir as danças dos negros com os divertimentos pedia-se-lhes a fecundidade dos rebanhos, das mulheres e das
dos brancos mas não ocasionando sua interpenetração. A rua
agiu em rel;ção aos escravos no mesmo sentido de solidariedade colheitas .. As grandes festas da Nigéria e do D~omé são ainda
étnica que vimo-la fazer aos brancos. Dizemos solidariedade festas agrárias. ( 37 ) No Brasil, como pedir aos déuses a fertili-
étnica e não solidariedade de casta, visto que as "nações" dis- dade das mulheres se elas põem no mundo apenas pequenos
putavam-se por tôda parte onde se encontravam, as mulheres na escravos? Melhor seria, rogar-lhes a esterilidade de suas entra-
fonte, os homens nas praças públicas. Dessa forma, os elemen- nhas. Como pedir aos deuses boas colheitas numa agricultura
tos do antigo engenho que estavam integrados num sistema uni- que é comercial e não mais de pura subsistência e em benefício
tário de produção e pela autoridade absoluta do patriarca contra dos brancos, isto é, da raça dos exploradores? Valeria bem mais
as fôrças de dissolução, separam-se: a Casa-grande torna-se . pedir-lhes a sêca, as pragas destruidoras das plantações, já que
o sobrado, a senzala, o mucambo; o antigo equilíbrio que exis- para o escravo as colheitas abundantes se traduziriam finalmente
tia entre a civilização rural luso-brasileira e as civilizações popu- num acréscimo de trabalho, de fadiga e de miséria. :E: assim que
lares africanas é substituído pelo antagonismo entre a cultura ocorre uma primeira seleção dos deuses; as divindades proteto-
européia do branco, adquirida nas faculdades de Direito, nas ras da agricultura são postas à parte, acabando por serem com-
escolas de Medicina, nos seminários, e a cultura africana, que pletamente esquecidas no século XX. Em compensação, a figura
se desenvolve no interior das associações de "nações" sob a forma ele Ogum, o deus. da guerra, de Xangô, o deus da justiça, ou de
de retôrno às tradições religiosas ancestrais. ( 35 ) Por certo, Exu, o deus da vmgança, tomam lugar cada vez mais considerá-
coino há pouco dissemos, o escravo ao mesmo tempo que viu vel na cogitação dos escravos, mas transformando-se: Ogum
sua sorte melhorar, não mais se arrastou seminu pelos canaviais. deixará de ser o patrono dos ferreiros ou o protetor dos instru-
Vestiu, para honrar seu senhor e para simbolizar sua posição mentos agrícolas de ferro, Exu não manterá, senão dificilmente,
social face aos vizinhos, sobrecasaca e luvas brancas, mas com- seu caráter de divindade da ordeµi cósmica para ocupar antes
preendendo, por isso mesmo, o sentimento de sua dignidade c!e tudo a regência da ordem social, mais exatamente, para lutar
humana que a antiga servidão rural nêle tendera a abolir. A contra a desordem de uma sociedade de exploração racial. O
escravidão da plantação desafricanizava o negro, a escravidão tã-tã que se elevará nas noites sufocantes não será destinado a
urbana o reafricanizou, pondo-o em contato incessante com seus pedir a chuva, a prosperidade da aldeia, a grandeza da tribo,
próprios centros de resistência cultural, confrarias ou nações. mas chamará outros mistérios para o preparo de filtros de amor
:E: por isso que a manutenção das religiões africanas deve
que permitirão às belas mulheres negras desforrarem-se do des-
ser vista definitivamente nesse dualismo de classes opostas. A
prêzo das patroas brancas, tomando o coração de seus maridos !I·
luta das civilizações é sõµiente um aspecto da luta das raças ou
das classes econômicas no seio de uma sociedade de estrutura (segundo peças de processos sabe-se de casos em que o marido ih
escravista. O negro não podia se defender materialmente contra se livrou de sua espôsa para dar a direção de sua propriedade a ·'
um regime onde todos os direitos pertenciam aos brancos; refu- u'a amante preta que o tomara louco de amor),(38) ou o
giou-se, pois, nos valôres místicos, os únicos que não lhe .podiam preparo de venenos poderosos que enfraqueciam o cérebro dos
arrebatar.(3 6 ) Foi ao combate com as únicas armas que lhe senhores, fazendo-os cair em inanição e µiorrer lentamente ( cha-
restavam, a magia de seus feiticeiros e o mana de suas divindades mavam-se essas plantas venenosas de "ervas para amarisar os
(35) G. FREYRE, Sobraãos e Mucambos, cap: V. (37) Ver, por exemplo, PARRINDER, O'J>. cit., p. 149.
(36) A. ARINOS DE MELLO FRANCO, Conceito de Civilização Bra- (38) .Revista ão Arquivo Público, Recife, 2.• semestre de 1946, Documentos
sileira. extraídos dos Arquivos, p. 231 e sega.

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senhores"), ( 89 ) ou ainda para fazer abortar as mulheres grávi- com gritos roucos e estalidos de chicotes. Em baixo, os escravos
das para não aumentar o número de esctavos. ( 4º) mas êsses escravos por sua vez não formam u'a massa indife-
Em suma, a cultura africana deixou de ser a cultura comu- renciada: êles se dividem em dois grupos, o grupo dos escravos
nitária de uma sociedade global, para se tornar a cultura exclu- domésticos que moram na Casa-grande ao lado dos senhores a
siva de uma classe social, de um único grupo da sociedade bra- cozinheira, a costureira, a fiandeira, as criadas e os criados 'de
sileira, a de um grupo explorado econôp:iicamente e subordinado q.uarto, as amas das crianças brancas, os negros de recado ( espé-
socialmente. ( 41 ) cie de estafetas que levavam mensagens e que uniam a proprie-
* dade às outras propriedades vizinhas), e o grupo dos escravos
* * dos campos, penando sob o sol ardente, do amanhecer ao pôr do
A escravidão não somente separa como une o que separa. sol, às vêzes até mais, grupo mais numeroso como também o
Ela uniu as civilizações africanas que vimos arrancadas de mais afastado do núcleo central, a Casa-grande.
suas infra-estruturas, mutiladas por essa separação, transforma- Esta hierarquia de posições ou de status é também uma
das de civilizações comunitárias em "subculturas" de classe, com hierarquia étnica. A família do senhor é endógama, não deixa
as civilizações européias da classe dirigente, o que levou ao apa- o sangue negro correr em suas veias,. a mulher aí é escolhida
recimento de novos fenômenos, o sincretismo religioso ou a mes- ';' segundo sua pureza racial, encarregada de dar a seu marido
tiçagem cultural, que agora precisamos estudar. Mas, ainda aqui, filhos que continuarão a linhagem, o primogênito que substituirá
p~ra compreender como opera a interpenetração das civilizações, o chefe da família à sua morte, o caçula que será bacharel ou
por que canal, de que maneira, com quais efeitos, precisamos sace;,dote. fJ;- elas.se int~rmediária comp.unha-se de "brancos po-
recolocá-la na situação social que a condiciona e explica. bres que so podiam viver com a condição de se integrar numa
Da altura em que domina a plantação, a Casa-grande dos posição de dependência aos únicos núcleos estáveis da colônia
senhores brancos aparta-se da senzala onde os escravos vivem as grandes famílias senhoriais, e de mulato ou negros livres:
com suas nostalgias, suas músicas e seus deuses, o que não im., quase completamente assimilados à civilização portuguêsa. Os
pede que as duas constituam os elementos de uma mesma rea- escravos domésticos eram escolhidos segundo sua beleza sua inte-
lidade, a grande família escravocrata. Essa família forma um
todo orgânico, de partes solidárias, isolada no mato, exatamente
li~ência, seus hábitos .de asseio ou de higiene entre ~s negros
crioulos ou entre os mma, os nagôs, em suma, quase unicamente
como um sucedâneo da vila portuguêsa. Certamente as relações
entre os afri~an~s ocidentais. Os escravos dos campos eram
que unem os membros dessa comunidade doméstica não são
recrutados prmc1palmente entre os bantos e os semibantos. As
iguais às relações vicinais de aldeia, porquanto êsses mem-
distâncias sociais eram tanto maiores à medida que se afastava
bros são hierarquizados, o que aliás aproxima-a mais do clã feu- dos modelos de valôres europeus, representados pelo senhor e
dal que da vila. As distâncias sociais serão maiores ou menores
sua mulher. Isso fêz que a desafricanização fôsse o único meio
segundo o lugar que êsses membros ocuparão nesta hierarquia.
de subir na escala social, de chegar aos postos cobiçados aquêles
Em seu ápice temos exclusivamente a família branca do senhor,
que davam mais liberdade, segurança e prestígio.(42) '
proprietário dos homens e dos escravos;. abaixo, logo em seguida,
Nesta perspectiva a aculturação aparece sob seu verdadeiro
os homens livres que desempenham as funções relativamente
pris~a que é o de ser uma luta pelo status social. Não é
"nobres" da produção, aquêle que dirige o trabalho do engenho,
precISo pensar, sob o pretexto de que falamos de uma raça domi-
o que fiscaliza a refinação do açúcar, o que faz as contas, o
pequeno exército de feitores que comanda os grupos de escravos ?ante e de um~ raça explorada, que a civilização dos brancos foi
llllposta pela força e que o escravo teve assim o sentimento dolo-
(39) A. RAMOS, o Negro Brasileiro, pp. 192-96. roso d~ s~a alienaçã~.. A civilização dos brancos foi desejada
(40) O branco estimulava a procriação de seus escravos: a mulher
que tinha pôsto no mundo 10 crianças era libertada, posteriormente o número como tecmca da mobilidade social, como a única solução deixa-
fol diminuido para 7. Mas sabemos que, não obstante essas vantagens, a
natalidade fol bastante balxa; era em parte devida às práticas antlcon- C42> Todo o llvro de O. FREYRE, Casa-grande e Senzala é consagrado
cepclonals e mesmo aos abortos voluntários, como forma de reslstêncla. à análise dessa estrutura famillar. Indicamo-lo ao leitor que desejar amplos
(41) T. SEPELLI, Il Sincretismo Religioso A/ro-catto!ico in Brasi!e, p. 53.
esclarecimentos.

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da, após o fracasso da insurreição, para sair de uma situação temente vence os mais fortes.( 45 ) Existe todo um folclore do
insuportável; ela foi desejada deliberadamente, sistemàticamente. negro escravo do Brasil que é conhecido com o nome de "ciclo
Tomou duas formas, uma puramente cultural que foi a adesão do Pai João". :Bsse ciclo é extremamente ambíguo porque for-
ao catolicismo, a apropriação de hábitos e de formas de com- mou-se com a colaboração do branco e do negro estando, dessa
portamento dos brancos, e uma forma biológica: "limpar o san- maneira, voltado para duas direções opostas. Do lado branco é
gue", purificá-lo dormindo com os brancos, dando nascimento a apologia do negro "bom" oposto ao "negro mau", ao negro
quilombola ao negro assassino, ao negro revoltado, o bom ne-
a crianças mais claras, cujos pais se ocupariam, e que seriam gro que às vêzes canta sua tristeza ao som áspero do urucongo
assim libertadas do jugo da escravidão, tendo posteriormente mas que .se submete à sua sorte, que é devotado aos seus senhores,
posição melhor na concorrência econômica. Não havia outros que sem dúvida se considera como o parente pobre, mas paren-
meios de subir socialmente numa sociedade moldada e diri- te assim mesmo da família senhorial. Do lado negro é a apolo-
gida pelo branco, a não ser purificar o sangue do estigma infa- gia do negro manhoso, que chega a reqüestar a mulher branca,
me da negrura; purificar a civilização africana de sua marca a dormir na rêde de seu senhor, a tomar uma posição de comando
de barbárie; reconhecer como somente válido o ideal estético do na casa dando-se aparentemente "uma alma branca", mas que
senhor, o da superioridade da côr branca sôbre a côr negra, e conserva num recanto secreto de seu coração o melhor de sua
seu ideal moral, o da superioridade da ética dos brancos sôbre civilização africana, o conhecimento das plantas medicinais,
os costumes dos "pagãos". dos ritos mágicos, e o nome africano dos santos católicos, isto
A importância do transe nas religiões da Africa negra enga- é, o seu verdadeiro nome.( 46 ) A aculturação não é, pois, intei-
nou os primeiros etnógrafos quanto à psicologia dos prêtos. Os ramente a assimilação cultural, o desaparecimento total das civi-
negros não são místicos; sua filosofia está, como por vêzes se lizações nativas na grande noite destruidora da escravidão.
diz, mais próxima da filosofia dos anglo-saxões que daquela dos A prova dissQ está em que, se de um lado o africano, e
asiáticos; é uma filosofia essencialmente utilitária e pragmática, mais ainda o crioulo, aceitam os valôres brancos, tingindo-os de
onde o que conta é o sucesso apenas.( 43 ) O desejo do africano prêto, por outro lado, e simultâneamente, a aproximação das
de ser burocrata, intelectual, funcionário, de usar pince-nez, raças na organização da escravidão ocasionou uma transferência
de traços culturais africanos para a civilização luso-brasileira. A
e de ter uma Pasta Ministerial, não corresponde de modo nenhum criança branca era deixada, nos seus primeiros anos de vida, no
a uma aspiração idealista, à aversão pela máquina e pelo trabalho meio dos negrinhos, com êles se recreando, nadando no charco do
manual, mas ao reconhecimento do status social superior dado engenho, brincando de esconde-esconde nos canaviais, aprenden-
pelos brancos a certas profissões em detrimento de outras.( 44 ) do a armar arapucas para passarinhos na floresta vizinha. O
É êste utilitarismo que explica no Brasil colonial ou imperial a menino branco tinha sido alimentado por uma ama negra, que
acomodação do negro à sua nova situação e seu esfôrço para o embalara com cantigas africanas, que lhe dera seu leite com
tirar dela o máximo proveito. O recurso à fôrça não estava total- tôda a sua ternura. Continuava a depender da uma criada de
mente excluído ou desaparecido, como veremos nos capítulos (45) Silvlo ROMERO recolheu alguns dêsses contos africanos de animais
subseqüentes, mas empregado somente quando circunstâncias fa- na Bahia, Contos Populares ão Brasil, que Nina Rodrigues pôde comparar
com os correspondentes africanos recolhidos por A. ELLIS, The Yoruba
voráveis podiam apresentair-se. O escravo agiu ordinàriamente Speaktng Peoples o/ Slave Coast, p. 258 e segs. Ver Nina RODRIGUES,
Os Africanos no Brasil, p. 277 e sega. Por sua vez A. RAMOS consagrou
como a aranha, a tartaruga, o coelho ou o lagarto de suas fábu- a êsses contos populares de animais um capitulo de seu livro O Folclore
Negro ão Brasil, cap, VI. Ver sôbre a mesma questão a tradução em
las, pela astúcia que é a arma dos fracos, uma arma que freqüen- português e principalmente os comentários de L. da O.AMARA OASOUDO
ao livro de o. HARTT, Os Mitos Ama2ônicos àa Tartaruga, e Octavlo da
( 43) Essa é a opinião, por exemplo, de Mary H. KINGSLEY, West COSTA EDUARDO, "Aspectos do Folclore de uma Comunidade Rural", separata
A/rican Stuãies, p. 318. do n,o CXLIV da B.A.M.S.P,
(44) E a prova está em que, na nossa sociedade industrial, o negro (46) Sôbre o ciclo do Pai João, ver A. RAMOS, op, cit., cap, IX.
não teme abandonar essas profissões, quando elas lhes parecem pouco lucra- DIVERSOS AUTORES, Novos Estuãos A/ro-brasiletros, p, 60. Théo BRANDAO,
tivas, por oficlos "sujos" e "duros", como os serviços de mecânicos, porém Folclore ãe Alagoas, pp, 121-33. Osmar GOMES, "Tradições Populares Colhidas
mais rentáveis. Ver R. BASTIDE e F. FERNANDES, Belaçôes .Raciais, PP· no Baixo Sã.lo Francisco", mECO, 1.° Congresso, Anais II, 1551, p. 175 e segs,
57-60, 224-26.

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quarto negra que, para adormecê-lo, contava histórias de Quibun- africanização do bx:anCQ, dando origem simultâneamente a crian-
go, o bicho grande que come as crianças, da môça que canta no ças mulatas e a uma cultura mestiça.(49)
saco ou do marinheiro casado com Calunga, rainha do mar.(47) Gilberto Freyre estudou bem eµi Casa-grande e Senzala
Isso fazia com que êle se impregnasse de valôres puramente afri- êsses diversos fenômenos, mas estudou-os do ponto de vista da
canos na idade em que a alµia é mais plástica, mais maleável às civilização brasileira, e não do ponto de vista, que aqui nos preo-
impressões de fora e às influências estranhas. Quando estava cupa, das civilizações africanas. Precisamos, pois, retomar à
doente, sua mamãe negra tratava-o com ervas colhidas pelo fei- questão, examinando-a, se se nos permite a expressão, pela outra
ticeiro e ajuntava em sua corrente, às suas medalhas bentas, às extremidade da luneta.
suas imagens de santos dadas pela mamãe branca, outros sortilé- O engenho de açúcar ou a grande propriedade cafeeira subs-
gios mais poderosos, banhados no sangue de animais sacrificados, tituíram no Brasil a comunidade aldeã africana. Foi êsse engenho,
contra o "mau-olhado" ou contra as enfermidades da primeira in- essa grande propriedade, que viria substituir as funções da aldeia
fância. Mais tarde, quando seu interêsse sexual começava a des- ou da linhagem, ou sejam, as funções de integração e de seguran-
pertar, olhava as negras nuas banharem-se no rio, esgotava-se em ça, que iriam regular, organizar em seu seio, as relações interindi-
jogos excitantes e mais ou menos eróticos com as pretinhas, "tor- viduais, formar, em uma palavra, o bloco sólido eµi que todos os
nava-se homem", enfim, com a primeira negra que encontrava nos papéis e todos os status sociais encontrariam seu equilíbrio, seu
campos. Não cessará de ter amantes negras, de colocar no mun- centro de coordenação. Não obstante as oposições de interêsses
do mulatinhos, de reanimar seus sentidos amortecidos pela idade entre a classe exploradora e a classe explorada, e tôdas as tensões
ou pelo abuso, pedindo ao feiticeiro africano, se êste se encon- que essas oposições ocasionavam, o negro foi tomado, numa certa
medida, pela solidariedade que o ligava ao senhor. f'.le se bateu
trasse em sua plantação, os filtros necessários. A influência da por êle nas lutas entre os clãs familiares, assassinou mais tarde
Africa não cessava com a passagem da infância à adolescência; os adversários políticos de seu senhor, formou sua guarda pessoal
continuav~ insidiosa, sutil, por tôda a vida, sobretudo através
nas disputas eleitorais. Viveu assim em duas sociedades simul-
dêsse erotismo, essa propensão ao culto da Vênus negra. Da tâneamente, uma sociedade de classe racial, com suas confrarias,
mesma forma, ainda que por outras razões, a espôsa branca suas "nações", seus grupos de jogos, seus batuques, e uma socie-
que vivia reclusa no meio de seus escravos, a fazer confeitos ou dade familiar da qual dependia para não morrer de fome, para
marmeladas, a fiscalizar a costura ou a lavagem, a mandar fazer não se sentir abandonado numa terra estrangeira. Foi homem de
cafuné pelos hábeis dedos de suas criadas de quarto,(48) sem dupla fidelidade que determinou, como conseqüência, senão a
quase nunca sair, recebendo raramente visitas, desaparecendo subordinação da civilização africana à européia, ao menos sua
mesmo na sua cozinha se algum estranho aparecesse à porta da coexistência pacífica, penhor de sua futura união.
casa, acabava por pensar, por sentir como seus escravos, a aceitar Essa união mais se verifica à medida que passamos da gera-
suas crenças supersticiosas, ou suas histórias mágicas, a crer em ção dos negros "selvagens", como eram chamados os recente-
Exu quase do mesmo modo que no Diabo. Somente quando a mente chegados da Africa, à geração dos negros crioulos, nasci-
família branca sair do engenho para ir µiorar na cidade, quando dos ou educados na plantação. A própria civilização, se se assen-
se puser em contato com as idéias européias trazidas pelos navios, ta na natureza e mesmo se responde aos instintos ou às necessi-
com as mercadorias de Lisboa ou de Manchester, é que as fôrças dades naturais, o que nem sempre acontece, porque ela mais cria
do que satisfaz necessidades, não é nunca inata e sim adquirida.
de separação levarão vantagem sôbre as fôrças de fusão; mas no
O grande órgão de socialização da criança é sempre !!- família;
Brasil rural a desafricanização do negro marchou a par com a mesmo quando nos ritos de iniciação há uma aprendizagem tri-
(47) Sôbre as histórias de Quibungo, ver A. RAMOS, op. ctt., cap. VII, bal, essa aprendizagem é do tipo escolar; não vai, pois, contra o
e L. da OAMARA CASCUDO, Geografia dos Mitos Brasileiros, pp. 272-77, A
história da môça no saco encontra-se em Nina RODRIGUES, op, ctt., pp. (49) A. RAMOS, depois de ter citado a palavra de Nina RODRIGUES:
285-87, com a correspondente africana, pp. 288-90. A. de OALUNGA, em J. da "Na Bahia tôdas as classes, mesmo a superior, estll.o prontas a tornarem-se
SILVA CAMPOS, "Contos e Fábulas Populares da Bahia", in BasUio de MA- negras", diz que "a desafricanlzaçll.o gradual do negro foi acompanhada
OALHAES, o Folk-Zore no Brasil, pp. 244-46. em contrapartida por uma deseuropelzaçll.o do branco no Brasil", Acultwaçllo
(48) Sôbre o cafuné, ver R. BASTIDE, Psicologia do Cafuné, Curitiba. Negra, pp. 11-2.

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grupo familiar, completa-o apenas. Ora, o negrinho, ou o mula- seus estudos, moldando sua inteligência e suas sensibilidades.
to, nascido na plantação, recebia os cuidados de sua mãe somente segundo normas européias. Esses dois grandes líderes do aboli-·
durante o período de aleitamento; era cuidado às vêzes por uma cionismo, um por fidelidade à sua nutriz negra, o outro por fide-
mulher velha, que não mais podia trabalhar nos campos com lidade à sua mãe escrava, representam admiràvelmente, ainda
todos os outros garotos coletivamente; bem cedo sofria a influên- que sob uma forma inversa, êsse drama da dupla paternidade,.
cia do senhor, do capelão, e mesmo do professor se se mostrava que ainda não encontrou seu analista. i:
um pouco inteligente, principalmente se f ôsse um dos bastardos Cremos, de fato, que é por meio dos conceitos psicanalíticos
do senhor ou um filho do capelão. Foi dessa forma que os criou- de "superego", de identificação, de narcisismo, muito mais do-
los sofreram uma dupla socialização, a do grupo africano pela que através dos processos de imitação, de aprendizagem, de adap-·
mãe, pela velha guardiã das criancinhas, pela senzala, e a da tação, de sugestão, que se pode definir os mecanismos psíquicos
família branca com tôda sua autoridade e prestígio. Dêsse modo, da aculturação. O que colaborou para unificar os elementos
duas civilizações iam confundir-se em seu espírito. heterogêneos da sociedade brasileira, a propagar através de tô-·
Eis aqui o fenômeno mais curioso da escravidão, a dualida· das as camadas da sociedade os mesmos valôres, foi o fato do-
de racial dos pais. Ela vale tanto para o pequeno branco quanto branco, vivendo numa família de tipo patriarcal, e o negro, num.
para o menino negro. O filho do senhor tinha pai branco e mãe tipo de família matriarca!, interiorizarem o mesmo pai. E inte- . !
negra. As vêzes a mãe negra educava-o ao mesmo tempo que a riorizando o mesmo pai, interiorizaram sua cultura, sua concep-
mãe branca; esta podia, nesse caso, lutar contra as influências ção do mundo e da vida, seus quadros de referência e suas nor-
africanas. Mas, amiúde também, a mulher branca casada muito mas. A separação que F:reud propõe entre o "ego" e o "superego"
jovem (15 ou 16 anos), mãe pouco depois, mal nutrida, não traduz-se assim principalmente para o negro, mas também para.
fazendo nunca exercícios, morria môça e a autoridade da mamãe o branco criado pela mãe negra, entre a estratificação das duas
negra cobrava então mais fôrça.( 5 º) Por seu lado, o filho do civilizações, a maternal, africana, repelida no inconsciente, onde
escravo, se conhecia sua mãe, não sabia freqüentemente querri toma o caráter "estranho" do "recalcado", sem por isso deixar
era seu verdadeiro pai. Esse era no fundo, mesmo se não o de atuar no "ego'', e a dirigente, constrangedora, mesmo com
fôsse biolôgicamente, o patriarca branco, o senhor de engenho. uma ponta de sadismo, a civilização paterna do luso. Isso fêz
Joaquim Nabuco e Luiz Gama poderiam servir de exemplo a com que o branco ouvisse sempre do fundo dos turbilhões, dos
êsse tema da dualidade paterna. Nabuco, órfão de nascimento, redemoinhos, dos abismos líquidos do inconsciente, o canto fas-
era tão ligado a sua ama de côr, tão ternamente unido a ela, cinador das sereias negras, e que o negro, como nôvo Narcisar
mesmo quando subiu à glória, grande escritor, homem político, inclinando-se sôbre as águas da vida para melhor se conhecer,.
embaixador de seu país. Homem, sem dúvida, da mais refinada via-se branco.
civilização européia, ao ponto dos críticos literários lhe censura- Na verdade, êsses fenômenos tornavam-se muito mais pro-
rem o fato de ser às vêzes mais estrangeiro que brasileiro. Seria fundos e sólidos na medida em que passavam da periferia ao
necessário estudar psicanaliticamente sua formação, orientada centro da vasta família senhorial, dos negros do campo agru-
pela doce mãe negra, se quisermos compreender sua sensibilidade pados nos quartos da senzala pouco ligados a êsse núcleo, aos
e sua forma de inteligência. Luiz Gama teve, indubitàvelmente, negros crioulos, vivendo na Casa-grande, no mesmo ritmo que
um pai português que poderia tê-lo educado, mas êste não só os brancos. Entretanto, todos os escravos deviam, antes de dor-
o deixou na escravidão como ainda o vendeu a comerciantes que, mir, reunir-se para receber a bênção do senhor, louvá-lo por
em seguida, mandaram-no da Bahia para a província de São um "Bendito seja Jesus Cristo, nosso Senhor'', de maneira a
Paulo. Foi arrancado de sua mãe a quem procurou tenazmente perpetuar, a manter em seu interior a imagem do pai branco.( 51 )
durante tôda sua vida, sem jamais encontrá-la, mas da qual A identificação foi, pois, mais ou menos bem sucedida segundo
as classes de escravos; em umas "recalcou" as civilizações nativas;
guardou o culto. Entretanto, seu verdadeiro pai será o filho de em outras, onde êsse recalcamento não foi bem realizado, deu-lhe
seu senhor paulista, educando-o, formando-o, fazendo-o seguir
(51) D. P. KIDDER, Beminisci!ncias <te Viagens, p, 203. Alvim PERCY,
(50) O. FREYRE, op. cit., pp. 295-300. La Esclavitu<t y su AboZición, p. 1213.

104 105
somente um caráter de estranheza; enfim, no grupo dos africanos primeira civilização arcaica refinou-se ao contato com as modas,
puros, chegados ao Brasil quando já eram adultos, o pai não as idéias e os valôres importados da Europa, e do outro, a solida-
pôde ser interiorizado, foi apenas acrescentado, afixado de fora, riedade dos escravos, dos negros de ganho, dos membros de
sem alterar suas civilizações nativas, impondo-lhes só um con- "nações", cujas perdas culturais eram sem cessar compensadas
trôle, que era preciso lograr, pondo-se u'a máscara branca nas por novos apontamentos da Africa. Mas, aqui, também, contra-
cerimônias negras. riando êsse dualismo, freando o processo de constituição de cul-
Em segundo lugar, devemos notar que êsse processo de inte- turas antagônicas, para restabelecer uma certa unidade, houve
riorização somente vale para o dualismo senhores-escravos. Mas, um fenômeno de compensação que Gilberto Freyre estudou no
entre êsses dois pólos da sociedade, existiu uma camada inters- livro que seguiu Casa-grande e Senzala, ou seja, Sobrados e
ticial, a dos "colonos", dos "agregados", dos "protegidos", dos Mucambos. De fato, a sociedade brasileira sempre conheceu
pequenos proprietários livres. Antônio Cândido observou com os dois movimentos antitéticos, um centrífugo, o da formação
justa razão que os sociólogos negligenciaram o estudo dessa de culturas separadas, o outro, centrípeto, de integração dessas
classe intermediária. ( 52 ) Originàriamente, essa classe eira pouco civilizações numa civilização mestiça, mais branca do que índia
numerosa e estava muito ligada à família senhorial por laços ou negra, visto que era a classe branca que tinha os meios de
de dependência, de compadrio, de proteção e de subordina- comando, o status mais elevado, e que de alguma forma mane-
ção. ( 118) Pouco a pouco ela se desenvolveu pela dupla mesti- java os mecanismos de sincretização.
çagem do branco com o índio e com o africano, para constituir A miscigenação ganhou crescente importância no curso do
entre. as células ganglionares do país, isto é, as grandes famílias século XIX. As estatísticas mostram-nos, não obstante o au-
latifundiárias, tôda uma rêde, ainda que frouxa e descontínua, mento do tráfico negreiro que conheceu o esplendor antes de
de camponeses miseráveis, analfabetos, isolados, freqüentemente desaparecer, a preponderância crescente do mulato, senão sôbre
móveis. Económicamente autônoma, abandonando-se a uma o branco, ao menos sôbre o negro puro:
agricultura de pura subsistência familiar,( 54 ) politicamente su-
bordinada, formando uma clientela dos clãs senhoriais, ( 55 ) essa BRANCOS MESTIÇOS NEGROS ÍNDIOS
classe que não tomou importância a não ser no fim do século
XVIII, escapou dêsses processos de aculturação; sua cultura,
feita com os restos de tôdas as civilizações propõe-nos, conse-
1835 845 ººº (24,4%) 648 000 (18,2%) 1 987 ººº (51,4%) ?
1872 3 818 403 (38,1%) 3 833 015 (38,4%)
qüentemente, outros problemas·. Nós os examinaremos posterior- ...... 2 970 509 (16,5%) ( 7%)
mente quando estudarmos as religiões afro-brasileiras rurais. 1890 6302198 (44,0%) 4 638 495 (32,0%J 2 097 426 (12,0%) (12%)

* Mas essa miscigenação faz-se agora num clima düerente,


* * mais sentimental, mais colorido de cristianismo; a vontade de
A urbanização, como dissemos mais acima, fragmentou esta desenvolver o capital humano não obnubilou o senso das respon-
integração da família patriarcal do século XVII e comêço do sabilidades paternas, a afeição do pai por seus filhos ilegítimos,
século XVIII. A rua, vencendo o sobrado, ocasionou uma dupla o cuidado de sua educação e de sua colocação na sociedade
solidariedade: de um lado, a solidariedade dos senhores, cuja principalmente quando eram filhos de sacerdotes (como José do
(52) ··Antônio CANDIDO, "O Estado Atual e os Problemas mais Importan- Patrocínio, um dos mais brilhantes jornalistas do Brasil imperial)
tes dos Estudos sôbre as Sociedades Rurais do Brasil", XXI Congr. Int. de que gozavam de situação privilegiada. ( 56 ) Em 1774, uma lei dava
Americanistas, p, 322. TOLLENARE sentiu a Importância dessa classe média
e deplorou o tato de ela ter sido deixada no abandono, porque !armaria
a base de um Brasil melhor equillbrado, parte inédita do manuscrito de
aos mestiços acesso a todos os postos, "honrarias e dignidades",
Notas Dominicales, Biblioteca Saint-Oeneviêve. dos quais só os negros estariam excluídos.(57) No século XIX,
(53) Oliveira VIANNA, Populações Meridionais do Brasil, cap. IV.
(54) Sôbre a ligação entre essa classe intersticial e o desenvolvimento vemos certas confrarias abrirem-se democràticamente a tôdas as
das culturas de subsistência, ver Calo PRADO Júnior, História Econômica
ão Brasil, pp. 49-52. (56) Osvaldo ORICO, Patroctnto, 2.• ed. de O Tigre da Abo!içlto.
(55) o. VIANNA, op. ctt., caps. VII e VIII. (57) Anais da Biblioteca Nacional, XXXVIII, 1913, p. 85.

106 107
côres. ( 118 ) A classe artesanal das grandes cidades constitui-se de balançou o outro efeito da urbanização: a separação da civiliza-
negros livres e, sobretudo, de mulatos, alfaiates, sapateiros, cabe- ção dos sobrados da civilização dos mucambos, a dos bailes dos
leireiros, pedreiros e vendedores ambulantes. O exército, mais salões da dos batuques de rua, a da classe burguesa daquela das
particularmente, é o grande canal de ascensão dos mestiços. De "nações".
imediato, essa classe intermediária distingue-:se da classe de Mas o que nos interessa nesse livro, não é tanto êsse movi-
escravos por certos símbolos, dos quais o mais insignificante não mento de ascensão social, e sim os seus efeitos na perpetuação
é certamente o uso de calçado, os sapatos pequenos ressaltando ou nas metamorfoses das religiões africanas. Portanto, precisa-
a diferença do pé do mulato face ao pé do mestiço, pesado, gros- mos aqui fazer duas observações importantes.
seiro do homem que trabalha nas plantações. (59 ) A abertura de Esta ascensão foi de indivíduos enquanto indivíduos e não
colégios, de academias, vai permitir a constituição, para os bastar- de um grupo social enquanto grupo.( 62 ) O paternalismo brasi-
dos dos senhores, protegidos e ajudados por seus pais, de uma leiro certamente não responde a uma política refletida, desejada,
pequena burguesia de côr, formada de médicos, de engenheiros, sistemática; êle é espontâneo, é a resposta afetiva do "homem
de advogados, de jornalistas, de romancistas ou de poetas, todos cordial" a uµia dada situação social. Isso dito, para reabilitá-lo
admiràvelmente trajados, os cabelos alisados e untados de óleo de tôda acusação de hipocrisia, não deixa de permanecer o fato
de côco, bons oradores, galantes e bajuladores. O romantismo, de que a ascensão do mulato ou do negro crioulo se fazia segundo
preconizando o direito ao amor da mulher, a santidade da paixão critérios escolhidos pelos senhores, e que continuou sempre sob o
contra os preconceitos dos casamentos impostos, arranjados pe- contrôle dos brancos. Sem dúvida, conforme a inteligência dos
las famílias, auxilia a aproximação sexual das côres; ao concubi- protegidos, ou suas qualidades pessoais, suas aptidões profissio-
nato entre o branco e a negra, vai suceder, ao menos para essa nais, sua habilitação, como também segundo qualidades morais,
classe de intelectuais, de "bacharéis" e de "doutôres", a possibili- o respeito aos valôres estabelecidos, o sentimento de gratidão
dade de casamento legal entre a mulher branca e o mulato claro. ao pai, ao padrinho, ou ao protetor, a arte de "pôr-se em
A família real brasileira ajudou com todo o seu poder esta polí- seu lugar". Não só a ascensão era individual mas também pro-
tica de integração dos mulatos bem sucedidos e dos negros inteli- gressiva, processava-se em geral segundo a distância em geração
gentes, recebendo "doutôres" e "bacharéis" de côr, freqüente- da classe de escravos africanos, ou segundo a côr da pele, favo-
mente funcionários da Côrte, eleitos às vêzes deputados, em seus recendo os mais claros, os que tinham cabelos lisos e nariz aqui-
salões, em seus bailes, nas cerimônias do "beija-mão" do impe- lino, em detrimento dos mais escuros, de cabelos crespos e nariz
rador, outorgando-lhes, como aos brancos, títulos de nobreza por chato.( 6 ª) Por conseguinte, ela não podia senão ressaltar, por
serviços prestados e criando o que na época se chamou de "ba- comparação, ou por contraste, o abandono em que estava a plebe
rões chocolate". ( 6 º) escura, a massa de negros importados. Em suma, êsse paterna-
Mas era evidente que essa ascensão só se podia fazer pela lismo certamente ajudou a assimilação ou o triunfo da civilização
adesão dêsses elementos aos valôres e aos ideais europeus, pela dos brancos, mas também fragmentou a sociedade em subcultu-
rejeição das civilizações africanas e total assimilação à cultura ras, retalhando-a em uma série de segmentos hierarquizados,
branca. ( 61 ) A mobilidade vertical do mulato, ou do negro livre, porém não juntos. A ascensão do mulato não foi senão a contra-
golpeou, portanto, as sobrevivências religiosas africanas e contra- partida da indiferença para com as medidas propostas, de início,
por José Bonifácio,( 64 ) depois, pelos positivistas brasileiros, a
(58) G. FREYRE, op. cit., p. 98.
(59) Sôbre êsse simbolismo dos sapatos, como marca do status social, favor de uma política educacional de todo o grupo negro a fim
ver G. FREYRE, op. cit., pp. 329-30. GAFFER, Visions ãu Brésil, p. 203. de elevá-lo coletivamente na sociedade, e não mais privá-lo de
C. SEIDLER, Dez Anos no Brasil, p. 237. DEBRET, op. cit., p. 205. KIDDER-
FLECHTER, op. cit., p. 148.
(60) Sôbre a ascensão do mulato, ver G. FREYRE, op. cit., II, cap. XI. (62) R. BASTIDE e F. FERNANDES, Relações Raciais, pp. 124, 141, etc.
D. PIERSON, Brancos e Prêtos na Bahia, cap. VII. o. VIANNA, Evolução (63) A importância dos cabelos bem "lisos" ou do nariz afilado no
ão Povo Brasileiro, p. 157 e segs. Pedro CALMON, História Social ão Brasil, Brasil é multas vêzes maior que a da côr da pele. PIERSON, op. cit., p. 201.
t. I, p. 187, e t. II, p. 116 e sega. WAGLEY (org.), Races et Classes aans le Brésil Rural, p. 100.
(61) Dai a Importância da Arte e da Literatura pa·ra os mulatos e os (64) Pode-se ler o projeto de José BONIFACIO em Antologia ão Negro
negros livres, como expressão de sua total assimilação (R. BASTIDE, A Brasileiro de É. CARNEIRO, pp. 13-7, em particular os arts. 10-27-28.
Poesia Afro-brasiv~ira) • Sôbre a ação dos positivistas, ver o nosso artigo na Revista Me:z:icana ãe
Sociologia, VIII, 3, .pp. 371-88.

108 109
negro livre; êle chama a atenção para o número de negros ou
seus melhores elementos - a brilhante contrapartida do aban- de mulatos que se eD.Tiquecia, ser muito restrito e acrescenta: se
dono da massa escravizada, dividida em "nações" rivais para êles sobem um pouco alto demais, a astúcia dos brancos bem
não inquietar os senhores, e relegada aos batuques para que aí depressa os remete ao ponto de origem.( 67 )
encontrasse uma distração de sua triste sina. Isso fêz que em Podemos seguir no livro de Gilberto Freyre, que pinta em
1888, quando o trabalho servil seria definitivamente abolido, a côres idílicas esta ascensão do mulato ou do bacharel de côr, as
sociedade brasileira, não obstante sua aristocracia de côr, não etapas da política antitética de que é o corolário a proibição aos
formasse uma sociedade homogênea, mas uma sociedade desfeita negros, no século XVIII, de coroar seus reis do Congo, de pos-
em partes separadas, isoladas, cada qual portadora de uma civili- suir escravos, de escolher padrinhos em sua própria raça, sepa-
zação diferente. ( 65 ) Isso explica por que as religiões africanas ração dos doentes nos hospitais segundo a côr, espirros ou zom-
puderam manter-se em certos segmentos dessa sociedade com barias em voz alta no teatro, quando aí surgia um negro de
relativa fidelidade, já que êsses setores não eram atingidos pelo cartola e sobrecasaca de cerimônia, interdição de certas lojas
movimento de capilaridade. maçônicas ou de certos clubes políticos aos mulatos. Muitas
A segunda observação é que o paternalismo, ao contrário do dessas medidas certamente atingiram mais os negros livres ou
que alguns pensam, não é a marca de uma ausência de preco~­ os mulatos escuros que os mulatos claros, mas ainda assim faziam
ceito, pois que a seleção se faz segundo a côr da pele. Ao contra- com que êsses últimos sentissem a insegurança de sua posição,
rio, êle desenvolveu-o, a princípio no grupo dos "pequenos b~an­ desenvolvendo nêles u111 preconceito contra o negro ainda mais
cos", criando entre êles um estado de insegurança, de desconfian- forte que aquêle que o branco podia ter, originando, enfim, mui-
ça, de insatisfação, à medida em que. viam homens de outra raça
subirem mais alto que êles, e finalmente vencê-los na luta pelo to mais entre os mulatos que entre os negros puros, um complexo
de inferioridade ou de "marginalismo". Isso explica por que o
il
status econômico e social. Os psicólogos mostraram bem a· re- i1
lação que existe entre os sentimentos de agressividade e os de mulato, ferido em sua suscetibilidade desconfiada, ou não che-
frustração, como também a origem do complexo do "bode expia- gando a satisfazer inteiramente suas ambições, podia voltar para 1

tório'; para que seja preciso insistirmos nesse ponto.( 66 ) O a classe dos negros, tomando aí a liderança, ou para encontrar
' preconceito foi, nessa primeira classe, uma arma de defesa, ou a posição de superioridade que lhe era negada noutro lugar.
uma desforra compensatória contra a política dos senhores. Mas De fato, observando bem, não se trata tanto do mulato que
êle devia também, obrigatoriamente, irromper nesta segunda clas- ascende, quanto do mulato "bacharel'', protegido pelo senhor.
se, como a técnica de contrôle da mobilidade vertical. Essa mo- Porém, terá .abaixo de si a multidão sempre crescente dos mula-
bilidade fôra desejada, mas comportava perigos; não se podia tos que não têm nenhuma possibilidade de realizar suas ambi-
deixar essa ascensão transformar-se numa tempestade que leva- ções imiscuindo-se nos interstícios do grupo branco. A religião
ria consigo os privilégios do grupo branco; era preciso também africana se abrirá a êsses mulatos, permitindo-lhes, sobretudo
lembrar no momento oportuno ao mulato "bacharel", ou ao negro nas seitas bantos ou nos terreiros de caboclos, aí ocupar impor-
"doutor", que êle devia tudo à boa vontade de seu senhor e que tantes posições sacerdotais.
êle não tinha o direito de esquecer êsse fato. Para isso foi pre-
. ciso a alternância de uma política de comportas abertas e outra Não devemos esquecer a resistência dos cabras dos engenhos,
· de comportas fechadas. Daí, as medidas discriminatórias~ que quase todos mulatos ou cafusos, nem a dos carregadores de nossas
não estão de nenhum modo em contradição com o paternalismo, cidades, mulatos em sua maioria ... Os próprios líderes das tradições
mas que constituem, pelo contrário, a contrapartida obrigatória. religiosas que o negro conserva como algo de intimamente seu, hoje
são mulatos. Alguns dêles já bem desafricanizados em seu estilo de
Um viajante tão observador como Saint-Hilaire notou tal coisa vida, mas que se reafricanizam indo estudar na África, como o Pai
no comêço do século XIX, pelo menos no que diz respeito ao Adão de Recife que se iniciou como pai-de-santo em Lagos e que
falava o africano com a mesma facilidade que o português. (68)
(65) V. SODRll:, op. cit., p. 222.
(66) Contentar-nos-emos em citar Gordon W. ALLPORT, The Nature (67) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces de Rio de Janeiro,
o/ Prejudice, A. Welsey co., 1954. Otto KLINEBERG, Tensions A//ecting t, II, cap. 11. Sôbre os negros ricos, Wanderley PINHO, op. ,cit., p. 166.
Internatíonal Understandíng, Social Science Research Council, Bol. 62, 1950, (68) G. FREYRE, op. cit., III, p, 1069.
208 pp., e, sobretudo, J. DOLLARD, op. clt.

111
110
, Mas se, e~cetuamos o Pai Adão que fôra à Africa para aí
beber na P:?pna fo~te ~as religiões africanas, são êsses mulatos,
·e~ parte Jª desafncamzados no seu estilo de vida, como diz
·G;lbe:to Frey:e, que adul~er~am mais i:rofundamente os cultos,
n.eles mtroduz~do suas pro~nas concepçoes estéticas, como João-
zmho ~~ ~omea, ou sua meia etnia européia, como os fundadores CAPÍTULO III
·do espmtismo de Umbanda.
O Protesto do Escravo e a Religião

A conclusão que se depreende do capítulo anterior é que a


civilização africana (e a religião é dela parte integrante) tomou-
-se no Brasil, para empregar uma expressão norte-americana, uma
"subcultura" de grupo. Ela vai, pois, encontrar-se presente na
luta das classes, no dramático esfôrço do escravo para escapar
a um estado de subordinação ao mesmo tempo econômico e
social. Somos assim levados a estudar a resistência do negro ao
trabalho servil e seu protesto racial.
:tl:ste protesto tomou formas individuais e formas coletivas,
desde o assassínio do senhor branco até a insurreição à mão
armada, desde a fuga de um escravo assustado pelo pensamento
do castigo até a formação de quilombos. Veremos posteriormente
essas formas coletivas e como freqüentemente se condensaram
em tômo de um centro religioso. Em compensação, o elemento
místico estava quase sempre ausente na resistência ou na fuga
individual. Damos alguns exemplos: em Vila Rica, os e!>cravos .1 ;·
de José Thomas de Mattos, para vingar-se das chicotadas, no 1
momento de receber a bênção da tarde, precipitam-se sôbre o
fazendeiro, matam-no assim como a seu filho, violam as mu- 1
; i
lheres, furam os olhos, esquartejam os corpos e acabam por
lançar os cadáveres aos formigueiros para serem devorados
pelas formigas. (1) No Rio Grande do Sul, Gomes tendo orde-
nado a seu · escravo Jesuíno matar seu rival em amor, e êste
tenclo se recusado, aplica-lhe seu chicote. Jesuíno volta-se e
crava sua faca no coração de Gomes.(2) :tl:sses são os tipos de
assassinatos de brancos, o produto da raiva guardada no cora-
ção, ou a reação imprevista a uma ofensa inopinada.( 3 ) O
1 ;
(1) E. Th. BOSCHE, Quadros Aiternaàos, p. 116.
(2)
(3)
C!. EXPILLY, Le Brésti tei qu'ii est.
Encontrar-se-ão outros exemplos em TSCHUDI, .Reisan c'luron sua
Amarika, II, p. 76. COUTY, L'f!:soiavaga au Brésti, . p. 78, B. 1. H. G. s.
Paulo, XXXV, p. 145. SANTOS VILHENA, Becoptiaç/fo, I, p. 138. TAUNAY,
';
Em Santa Catarina, p. 380. D'ASSIER, LB Brésti Contamporatn, pp, 97-B.
f:studoa A/ro-brasUeiros, p. 125. Novos Estuc'los, pp. '13-4. J. DOBNAS Filho,

:1.12 113
elemento
1m religioso não parece intervir sena-o entre os negros todo o furor do escravo era usado igualmente contra o inimigo
muçu anos que não podem suportar o fato de serem dom· da pátria, e assim é que vemos formarem-se regimentos de afri-
dos pelos cristãos. ( 4) ma- canos e de mulatos com seus oficiais próprios (chamava-se-lhes
Em _todo caso, ~ branco sente mêdo. E êsse mêdo aumen- os "Henriques Dias" por causa do grande chefe negro da guerra
~ ~ ~edida. q1!e ? numero de escravos cresce. :É preciso, pois holandesa); êsses regimentos tomaram parte ativa em tôdas as
erivar a ~i?lenc~a do escravo para um outro objeto, e tôd~ batalhas brasileiras contra os batavos por exemplo, contra 1
os
uma ~strategia vai aparecer, a qual poderíamos chamar de es- franceses de Duguay-Tirouin, ou na Guerra dos Farrapos. ( l) Mas
tratégia. da frustração; para descrevê-la, é necessário ater-se às não se tem sempre um inimigo branco contra o qual derivar o
ca~egonas dos psicanalistas, porque o problema é derivar o ódio racial do escravo. Nesse caso, usa-se o ódio contra os ini-
ódi? contra o senhor. branco fornecendo-lhe um substituto men migos interiores, e é dessa maneira que o negro surge em tôdas1 as
perigoso para a sociedade. O primeiro substituto é o própr~~ revoltas civis, nas guerras dos Paulistas contra os Emboabas,( º)
~~f o. Dollard most:ou que no sul dos Estados Unidos os con- nas guerras da independência nacional, ( 11 ) na luta dos partidos
i os entr~ n~gros sao bastante numerosos e que são precisa- no Império, entre monarquistas e republicanos,( 12 ) ou nas rivali-
~ente derivativos da agre~são impossível contra 0 branco.(5) 13
dades dos homens políticos entre si. ( )
d 0 émesmo f1º?º•~o Br...as~, todos os viajantes e historiadores Mas usou-se igualmente de um outro processo, nós o disse-
a poca. co omal sao u~animes em. falar de querelas incessantes mos, que tem seu paralelo na Psicanálise, ou seja, o _çl~sdobra­
que surgiam en.tre as diversas nações africanas.(ª) Ou então mento do senhor branco. Da mesma forma que o paranóico
se voltava o ódio do negro contra o índio opondo as du~s ra a~ mventa um romance familiar, onde desdobra seu pai em dois, o
um; contra a outra. Entretanto, êste ódio não era natural. Jos pai bom, nobre ou rico, que é imaginário, e o pai verdadeiro que
{u o~os, nós.º ve~en;ios, negros e indígenas se mesclarão fra- é para o doente um pai artificial e mau, o que lhe possibilita
d
em~ d~nte; Samt-H1larre fala mesmo várias vêzes da predileção
as m ias pelos negros. (7) sair da ambivalência do sentimento· filial, ao mesmo tempo de
~a.s os brancos formavam batalhões de negros para ca ar
ódio e de respeito, ( 14 ) do mesmo modo o negro se encontrava
amermd~s~ .como também encarregavam êstes de capturar ços em presença de dois homens, o senhor que lhe dava a bênção no
negros gitivos.(ª) Em caso de guerra contra o estrangeiro, crepúsculo, permitindo-lhe por vêzes dançar à noite, e o feitor,
sempre armado de um chicote, mais cruel quando era um mula-
A Escravidllo
-HILAIRE, VoYage dam
no Brasil PP
les 148 224
PrÓvinc;;ª· WALSH, Notices, II, p. 360. SAINT-
!, p. 567, II, p. 454. Mello BARRETO de Rio de Janeiro et Minas Geraes,
to desejoso de acentuar que êle pertencia a uma outra raça, ou
PoZfcia do Rio de Janeiro, 3 vols., 1939 _~~º Hermito LIMA, História da
t, um negro às vêzes escravo, cioso de sua autoridade. Assim, a
(4) Jesuíno era. muçUlma.n
Santa Catarina, p. 380, a.firma. ~~ n
LANG ' e •
SDORFF, citado por TAUNAY, Em ambivalência dos sentimentos do escravo podia se esclarecer,. o
a sociedades secretas cujos pres~ente~ ~~os os escravos estavam filiados respeito sendo dirigido ao senhor branco, o ódio, ao feitor; mui-
misteriosos explicam-se por esta. maçonarl negros livres e que os homicídios
ser falso. Ver também J WETHEREL Ba. -~gra., o que foi demonstrado tos dos crimes de negros voltavam-se unicamente contra os feito-
Rei.se, p. 47. ' • rw:al, p. 138. Avé-LAILLEMANT
(6) DOLLARD
(5) FLETCHEÍtCaste
e K~D nit CI asse in ª Southern Toum, Yale Univ. Press 1937• (9) Sôbre o papel do negro na defesa. mUitar do BTa.ail, ver ROCHA
II, p. 45. H. KOSTER, V01Jag~t:r:~~ ~;24• o. P. KIDDER, Reminiscéncias;
POMBO, História do Brasil, II, p. 55, Brito FREYRE, Nova Lusitania, PP·
244-45, 322, 389-97. Da·nte de LAYTANO, "0 Negro e o Espirito Guerreiro nas
escravos de fazenda.a diferentes e q t • I, p. 58, II, p. 28 (aqui luta entre Origens do Rio Grande do SUl", B. I. H. G. do Rio Grande do Sul, XVII.
EDMUNDO, O Rio de Janeiro no en re escravos e negros livres). Luís 1937, pp. 95 e 117. "Como Sa.int-HUaire Viu o Negro no Rio Grande do
DENIS, Brésil, p. 113. D' ASSIER Le T;~?st~ dost Vice-reis, p. 24. Ferdinand SUl", Anais, III Congresso Sul-rio-granãense de História, p. 22. Novos
Recopilaçllo, p. 136 (disput 't con emporain, p. 199. VILHENA
Rocha. POMBO, História do ~r:~I relln~õ~~ e entre crioulos e africanos)'. Estudos, p. 37. Nelson de SENNA, Africanos no Brasil, pp. 45-6.
(10) Diogo de VASCONCELOS, História Antiga das Minas, p. 325.
(7) SAINT-HILAIRE Viage
Sources du Rio s. Francisco if'
' ' '
;~ R~ ';;ª~e'
do Sul, p. 367; VoYage aux
(11) Nestor ERIOKSEN, "O Negro na Revolução dos Farrapos", Planalto,
15-11-1942, p. 12, Aydano do COUTO FERRAZ, "O Escravo Negro na Revoluçll.o
o do .cruzamento entre 0 1:i.d1ó e · - · caso oposto· também existe,
RUGENDAS, Viagem Pitoresca P l~)i;tefiª• éma.ab é pouco espontâneo (cf. da Independência. da. Bahia.", R.A.M.S.P., LVI, pp. 195-202.
(12) G. PEREIRA DA SILVA, Prudente de Moraes, o Pacificador, pp.
que quer assegurar-se assim ' · • e o ra. da vontade do branco
PU: a.~~nt~de seu braço servil, o fllho seguindo
1
a. condição da mãe R 216-18. Braz do AMARAL, História da Bahia, p. 331.
MORAES Fllho, QtuÍdroo 1 Ô2 • • au o, XXXVI, 1939, p. 112. Meno (13) COUTY, L'Esclavage au Brésil, p. 84. Meno MORAEB, Crônica
3
(8) Sôbrep a 286
Pernambuco captura.' doá neiros pe1os indios, ver F. de ALMEIDA PRADO
Fr VICENTE (14) 11,R.p.BASTIDE,
Geral, 178. "Introductlon à l'l'!:tude de Quelques Complexes!üro-
J, DOR.NAS' Filho,. A Escravtdllo, r;:'
:Of-VADOR, História do Brasil, p. 369'. -brés111ens", op. cit., pp. 22-31.

115
114
res.(15) No Império, existiu uma outra instituição que levou Por fim, ao lado da derivação, há a sublimação da agressi-
ao mesmo resultado, a do apadrinhamento. O padrinho do es- vidade frustrada. Sublimação da luta violenta que se torna um
cravo defendia-o contra a brutalidade de seu senhor, ou impe- jôgo, a capoeira. Sublimação do ódio racial que se torna um
dia-o de ser castigado se fugisse. A dualidade agora funcionava motivo literário, o desafio. Teremos de voltar a essas manifesta-
entre o padrinho amado e o senhor detestado.( 16 ) Nos conventos, ções que envolvem às vêzes protestos religiosos. No momento
o regime servil era geralmente mais brando, mas não necessària- só estudaremos a mais curiosa dessas formas sublimadas: o Tes-
tamento de Judas.
mente; houve escravos mortos pelos abades e os sacerdotes casa-
vam mulatos claros com pessoas muito mais escuras, para que os .! .Trata-se de um velho costume português que passou à colô-
filhos fôssem bem negros, e não pudessem pretender passar a nia. (19) Consistia de, no sábado de aleluia, passear pelas ruas
linha de côr. Daí a necessidade, aqui também, de uma dualidade da vila ou da cidade um homem de palha, representando Judas,
do senhor, e esta era a do abade e do santo: e finalmente queimá-lo, afogá-lo ou enforcá-lo. O Judas devia
se tornar o substituto das autoridades, e um meio para a grande
Os negros dizem que não são escravos dos monges, mas de São massa se livrar, simbõlicamente, de seus complexos de inferiori-
Benedito, do qual os frades são apenas os representantes. (17)
dade. Mas, no Brasil, onde a estratificação das idades, dos sexos,
No fim do período escravista, o ódio sempre ameaçador dos clãs e das raças era particularmente pronunciada, êle pro-
devia encontrar um nôvo derivativo. Para substituir a mão-de- duziu também curiosa estratificação do costume. Assim, no Rio,
-obra servil que estava a ponto de desaparecer, apelou-se para havia o Judas da côrte com fogos de artifício oferecidos pelo
a imigração européia. O exército do Brasil compreendia também imperador; havia o Judas da classe média dos brancos, em parti-
mercenários estrangeiros, principalmente alemães. Os negros não cular dos empregados em casas de comércio e que consistia
acharam coisa melhor do que chamar os recém-chegados de "es- também de fogos de artifício, representando Judas enforcado
cravos brancos", alegraram-se em ver pessoas da mesma côr que pelo Diabo, e o Judas dos moleques de rua, onde os negrinhos
seus senhores trabalharem ao seu lado, viver em casas que pare- pareciam ser mais numerosos que os meninos brancos; havia,
ciam senzalas, encontrando nesse fato uma espécie de desforra enfim, o Judas dos negros e dos mulatos escuros, cheio de bom-
contra sua sorte. E quando alguns dêsses brancos se revoltavam bas, que era preparado à noite, que se prendia a uma árvore
e os negros foram chamados a esmagar a revolta, êles o fizeram e que finalmente se fazia explodir.( 2º) Se os brancos com isso se
com uma crueldade tão selvagem, que não há aqui outra explica- livravam de seus protestos frustrados, ou dando aos bonecos a
ção possível que a do alemão, no caso, aparecer como substituto aparência de pessoas importantes do govêrno (por exemplo no
do senhor branco.(18) Rio em 1831),( 21 ) ou distribuindo nas casas Testamentos de
(15) COUTY, L'Esclavage au Bréstl, p, 84.•.• um negro que matou um Judas, ridicularizando os grandes senhores do lugar,(22) com
feitor pode ser, em uma. outra fazenda., um excelente escravo, p, 79. KOSTER, mais razão o negro aí devia livrar-se de sua agressividade racial,
VoYages Pittoresques, II, p. 380, Documentos Interessantes, LVII, p. 147.
Ba.nos LATIF, As Minas Gerais, p, 169. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, e disso temos uma prova no fato de que êle representava Judas
pp. 181-82.
(16) KOSTER, VoYages Pitt;oresques, I, p. 340. Ferdinand DENIS, Brésil, (1!}) R.A.M.S.P., -,.,.vr, p. 70. A origem dêste costume é o auto-de-fé
pp. 142, 146. RIBEYROLLES, Brésil Pittoresque, p. 45. Cf. EXPllLLY, Le em eflgie (queima de est.é.tua) do judeu. Depois, com a. conversão dos i'
Brésil tel qu'il est, cap. VI. judeus a.o catolicismo (cristão-novos), ou da fuga. de Portugal, a eflgie
(17) Sôbre a escravidão nos conventos e esta dua.lldade do senhor, ver do judeu foi substituída pela de Judas. Marlanne BAILLm deixou uma
KOSTER, V07Jages Pittoresques, II, pp. 45, 369-72. BrasilianisC'he Zustitnde, descrição desta cerimônia em Lisboa na sua obra Lísbcm in tlie Years 1821 1
p. 50. S. P. KIDDER, Reminisct!ncias, II, p. 142. HANDELMANN, História ão 1822 e 1823, I, p. 67. '
(20) DEBRET, Viagem, II, p. 198, para a oposição entre o Judas da 1
Brasil, p. 375. J. DORNAS Fllho, A Escravidão, p. 243. A. GRANT, História
ão Brasil, p, 104. G. FREYRE, Casa-grande, pp. 315-16 (diferenças da. sorte côrte da classe média e da classe pobre. KIDDER, Brasil, para o Judas
dos escravos segundo os conventos, a multipllcação dos jejuns mais por dos negros, p. 120. A gravura 21 das Voyages de DEBRET mostra- bem a.
motivo econômico que rellgioso), e Sobrados, p. 340 (as experiências gené- separação dos negros e dos brancos na festa de Judas. Cf, SAINT-HILAIRE,
ticas dos jesultas). F. CONTREffiAS RODRIGUES, Traços da Economia, V07Jages dans les Provinces de Saint-Paul, II, pp. 195-96.
pp. 63-4. Do ponto de vista católico: P. SERAFIM LEITE, História da (21) DEBRET, op. cit., cita uma proibição de 1863: "Todos aquêles que
Companhia de Jesus no Brasil, II, pp. 357-59. no sábado de Aleluia fizerem um Judas semelhante a qualquer pessoa
(18) As Memórias de um Colono de DAVATZ são sintomáticas desta Stlrão punidos com umer muita de 30 $". Cf. R.A.M.S.P., LVI, p. 70. F. DENIS
primeira mentalidade do fazendeiro, ainda habituado à escravidão e que escreve em 1837: "Ora a alusão é geral e se dir1ge a tõda uma classe, ora
vê no imigrante um substituto do escravo, pp. 84, 114, 123, 215, 262. Sôbre torna-se pessoal e é keqüentemente uma observação polltica que se faz a
o apêlo aos negros contra os colonos, ibid., p. 269. Sôbre os massacres dos grandes persona-lidades", F. DENIS, Brésil, p. 135.
soldados alemães pelos negros, ver E. Tb. BOSCHE, Quadros Alternados, p. (22) G. BARROSO, Através dos Folklores, pp. 40-2.
102. Ferdinand DENIS, Brésil, p. 154.

116 117
. ---···--·-------------------------------

como um homem torturado por um Diabo negro.( 23 ) Dupla suicídio, enquanto em sua forma egoísta, para empregar a ex~
vingança para êle. :E: um branco, Judas, quem traiu Cristo, e pressão durkheimiana, é raro ou inexistente nos povos ditos não
.são êles, os negros, que são chamados de diabos, por causa de civilizados,( 26 ) o suicídio de escravos é, em compensação, muito
-sua côr, que servem de instrumentos à justiça divina. freqüente.( 27) O suicídio é uma forma de resistência à cultura
Todo êsse jôgo subterrâneo de sentimentos não impedia, do branco, e é a forma mais apreciada pelos fracos; foge-se
entretanto, que surgissem de vez em quando insurreições gerais ao contato opressor refugiando-se na morte. O negro do Brasil
dos homens de côr. Mas, para poder passar do ódio individual sabia perfeitamente que seu suicídio era um ato de guerra, p0ir-
à resistência coletiva, era preciso evidentemente uma espécie de que o escravo custava caro, e quando todo um grupo jurava
.catalisador comum. Logo veremos que a religião foi precisa- deixar-se morrer, ou envenenar-se em conjunto, seguramente
mente êsse catalisador. dessa maneira o patrão ficaria arruinado. Essa foi uma forma
O negro tinha um outro meio de protestar contra a escra- de vingança que os escravos souberam utilizar.( 28 )
vidão: escapando. Essas fugas no comêço e mesmo depois, no Ora, o que nos interessa mais particularmente é que o sui-
Império, foram individuais. Nesses casos, o elemento religioso cídio foi também um protesto religioso. Tschudi, surpreendendo-
está ausente. O escravo culpado, que queria escapar ao castigo, -se com o fato dos suicídios de escravos serem mais numerosos
ganhava à noite a floresta e aí se perdia.( 24 ) entre fazendeiros bons que entre os outros, pesquisou para des-
Mas, principalmente no período colonial e mesmo no início cobrir o motivo; disseram-lhe, então, que o fato devia se explicar
do século XIX, êsses fugitivos, para evitar serem presos no- provàvelmente pela influência de seu sacerdotes, os quiombos,
vamente, para escapar também aos perigos de enfrentar a sós que nêles desenvolvem não um ódio particular contra essa ou
uma existência difícil na floresta cheia de animais selvagens, às aquela pessoa, mas um ódio racial. A explicação lhe pareceu
vêzes de índios desconhecidos, tomaram o hábito de se _reunir. plausível; pode ser também que muitos dos escravos, acrescenta
Dessa maneira, formava-se um pequeno grupo que aumentava êle, sendo descendentes de príncipes ou de pequenos reis afri-
pouco a pouco, a ponto de forma'l' verdadeiras cidades: são os canos, não pudessem suportar o regime servil e matavam-se para
quilombos ou mocambos. Nessas repúblicas negras, sobretudo encontrar seus ancestrais, para juntar-se a êles no outro mun-
quando o fugitivo era um recém-chegado da África, os antigos do. (29) Seja como fôr, influência do clero, ou influência das
costumes tribais ['essuscitavam, e, por conseguinte, aqui ainda, crenças míticas, o suicídio tem sua origem na mística. Temos
como para o caso da agressão, a passagem do individual ao também um outro testemunho em uma narrativa de d' Assier que
coletivo se faz, ao menos em parte, sob a égide da religião. relata uma conversa que manteve com um negro. Prêso por ne-
Todavia, antes de abordar êsses dois grandes fenômenos de greiros e trazido ao Brasil, seu interlocutor decidira enforcar-se
resistências coletivas, os quilombos e as insurreições, devemos com seus companheiros "a fim de voltar o mais breve possível
dizer ainda uma palavra sôbre uma terceira escapatória possível ao nosso país". Entretanto, a coragem faltou-lhes no derradeiro
à escravidão: o suicídio. instante e um só se matou. O feitor fêz soltar o corpo, cortou-
A permeabilidade ao suicídio era como a tendência à agres- -lhe a cabeça e pregou-a num poste: "Agora, que êle volte, se
são, variável segundo as etnias; o mina mata, o gabonês ou o o desejar, para seu país, isto é indiferente, sua cabeça aqui per-
moçambique suicidani-se.( 25 ) Mas é um fato constante que o
manecerá e todo filho da puta que fizer como êle, terá a mesma
(23) DEBRET, op, cit., gravura 21 e p. 197. sorte, reaparecerá sem cabeça". "Compreendeis, acrescentou o
(24) WALSCH, op. cit., p. 343. KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p.
397. Rocha POMBO, História ão Brasil, l, p, 562. TAUNAY, História àa pobre homem, que não se pode encontrar o caminho de seu país
Vila ãe s. Paulo, Anais do Museu Pa.Ulleta, VII, p. 121. Diogo de VASCON-
CELOS, História Média àe Minas Gerais, p. 164. D'ASSIER, Le Brésil Con- (26) DURKHEIM, Le Suiciàe, pp. 233-34,
'temporain, p. 99. TOLLENARE, Notas Dominicaes, p. 55. SAINT-HILAIRE, (27) Duraram até o fim da escravidão; o relatório do chefe de policia
Voyage àans le District ães Diamants, p. 242, diz que os portuguêses cha- do Rio em 1866 registra que de 23 sulc!dloe, 16 foram de escravos. Sôbre
mavam êsses negros Isolados de "ribeirinhos". WALSCH, Notices, p, 342. a freqüência do sulc!dlo entre escravos, ver CORRE, Ethnographie Criminelle,
B.I.H.G.B., LVI, 1893, pp. 164-65.
(25) Sulc!dloe doe galinha.a, Braz do AMARAL, 0'/1. cit., p. 479; dos Rainuald, Paris, 1894, IX-521, p. 26. Segundo KIDDER e FLETCHER, embora
gaboneses, KOSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 362, TAUNAY, História ão melhor tratados no Bra.sll que nos Estados Unidos, os escravos aqui se
Café, III, p. 232; os moçambiques, KOSTER, op. cit., p. 363, SPIX e MAR· suicidavam mais. KIDDER e FLETCHER, O Brasil e os Brasileiros, p. 146.
TIUS, Através ãa Bahia, p. 99, em nota; doe minas, TAUNAY, História ão (28) KOSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 363.
Café, m. p. 240. (29) TSCHUDI, Beisen ãurch S'ild-Amerika, II, pp. 76-9.

118 119
quando não se tem cabeça". Dessa maneira, preferiu fugir para dissemos, da reunião em massa, num mesmo lugar, de escravos
a floresta onde vivia de raízes, de frutos e de algumas aves do- fugitivos. Chegou o momento, pois, de estudar os quilombos
mésticas roubadas à noite, mais foi prêso e agora, velho resignado, um pouco mais detalhadamente.
esperava o fim próximo: "Sou velho, não tardarei a voltar ao
país". ( 8 º) *
Contudo, o elemento religioso não nos deve fazer esquecer * *
que êle só se revelou sob a ação do sofrimento e como resistên- .~
;..·•
! •

cia à escravidão. A importância de um elemento social ao lado ·'


'
de um elemento místico manifesta-se no fato de que os suicídios Palmares " 1

de escravos são quase sempre suicídios de homens. A mulher,


mais habituada ao trabalho agrícola que o homem, por causa Não se sabe exatamente em que lugar preciso do Estado
da divisão sexual das ocupações na África, e cujo destino era de Alagoas localizavam-se os quilombos de Palmares, nem em
já uma espécie de servidão doméstica, em geral adaptou-se me- que data foram estabelecidos.( 83 ) Em todo caso, existiam desde
lhor à escravidão; ela geralmente não se mata:( 31 ) a época da ocupação holandesa, no norte do Brasil, e uma pri-
Ao suicídio pode-se aproximar o banzo, ~ nostalgia do país meira expedição foi enviada contra êles em 1645, segundo o
natal. Muitos negros não podiam · suportar seu nôvo habitat. diário de viagem do capitão Jean Blaer. Palmares era então
Pouco a pouco estiolavam, definhavam, depois morriam de nos- dividido em dois quilombos, um grande e um pequeno, com
talgia. ( 82) Entretanto, não se pode falar de um patriotismo ne- respectivamente 6 e 5 000 habitantes.( 34 ) A expedição encon~
gro, nem de um sentimento afetivo para com um lugar geográfi- trou inicialmente um velho quilombo abandonado por ser muito
co qualquer. O banzo se explica, pois, por um outro patriotismo insalubre. Depois chegou ao "grande Palmares" do qual o diário
que não o nosso, e onde a religião, mais uma vez, tem sua parte.
O lugar onde se nasce não é um mero sistema de acidentes geo- nos dá a seguinte descrição:
gráficos, montanhas, lagos ou rios, é um todo social-geográfico As casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se
onde os mitos locais, a divisão das tribos no solo, os lo- uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho: havia
cais determinados de reunião das sociedades secretas, etc., entre os habitantes tôda espécie de artífices e o rei os governava
constituem um único e mesmo todo. O africano não separa o com severa justiça, não permitindo feiticeiro entre a sua. gente,
mundo material, como nós o fazemos, do conjunto dos valôres e quando alguns negros fugiam mandava-lhes crioulos ao encalço-
que ocupam cada qual posição ecológica nesse mundo; êle não e uma vez apanhados eram mortos, de sorte que entre êles reinava
o terror, principalmente nos negros da Angola. O rei também tinha.
vê a colina como uma colina, mas como a morada dêste ou uma casa de campo a duas milhas daí, com terras abundantes. (85)
daquele espírito, ou como o centro tradicional desta ou daquela
cerimônia. Marcel Mauss mostrou que o espaço entre os ·"pri- Quando a expedição holandesa chegou a êsses lugares, os
mitivos" é essencialmente heterogêneo, onde cada ponto tem quilombolas tinham fugido e encontrou-se apenas alguns anciãos>
suas características próprias, sua natureza distinta. Podemos mulheres e crianças.
então dizer que o banzo não é a nostalgia propriamente falando, O quilombo pouco a pouco se reconstituiu e tomou o nome-
é uma certa disposição ecológica da cultura, é a saudade da con- de Macaco. Um manuscrito anônimo nos dá também uma des-
figuração tribal, e também religiosa, no espaço, e se o escravo crição:
morre, é porque esta configuração não pôde recriar-se no Brasil. (33) Sôbre êsses problemas de localização geográfica e temporal d&
Não obstante, houve tentativas de recriá-la, para refazer Palmares, ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brastl, pp. 115, 126, 150 ..
Alfredo BRANDAO, "Os Negros na História de Alagoas", Estuãoa Afro-brastZei-
uma nova África, tentativas aliás espontâneas, nascidas, como o ros, pp. 61, 63, 64, 66, 68, 73, 75.
(34) As cifras que são de BARLEUS, Bes Gestae Maurifü., ,, p, 270,
(30) A. d'ASSmR, Le Bréstl Contemporain, pp. 26-8. devem ser exageradas. Jean LAERT avalia a população do Grande Pa1mare8'
; i
(31) FREYRESS, Kaiserthum Brasilien, p. 160. em 1 500 habitantes. Fr, de BRITO FREYRE em 30 000, Nova Lustt4nia, p. 281.
(32) Rocha POMBO, IIistória ão Brasil,· p. 561. SPIX e MARTIUS, (35) Brieven en Pepieren tn Brastlian, trad. port. de Alfredo de CAR-
Através da 'Bahia, p. 99, em nota. Paulo PRADO, Retrato ão Brastl, cap. 3. VALHO, B. I. A. G. ãe Pernambuco, X, março, 1902, p. 37.

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- - - - - - - - - · · -·--------.
o' rei habita sua cidade real chamada Macaco porque aí morreu não obstante, não estava de todo morto. Ainda e~ _1 703 o negro
êsse animal, é a metrópole entre tôdas as cidades e lugares habi- Camuango, que escapara aos massa~res, reconstitum um p~q.ue­
tados, é fortificada por um muro de barro ( .•. ) Ai habitam os
ministros da Justiça para as execuções necessárias e tôdas as ins-
no quilombo que precisou ser d.estrmdo.( 40 ) Os _?Utros fug1tiv~s
tituições de qualquer república aqui são imitadas ( .•. ) Reconhe- de Palmares reuniram-se aos qu1lombolas da Para1ba, em Cumbe,
cem-se todos obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que sendo finalmente exterminados em 1735. ( 41 ) ( 42 )
quer dizer Senhor Grande; a êste tem por seu rei todos os mais, Palmares suscita tôda uma série de problemas que devemos
tanto os naturais dos Palmares, como os vindos de fora; tem examinar. Para começar, era êle formado de diversas etnias ou
palácios, casas da sua família, é assistido de guardas e oficiais,
que costumam ter as Casas Reais; é tratado com todos os respeitos tinha unidade racial? Ayres do Casal afirma que Palmares foi
de Rei e com tôdas as cerimônias de Senhor; os que chegam à sua fundado por 40 negros de Guiné. ( 43 ) Isso é possível para o
presença põem logo o joelho no chão e batem as palmas das mãos, primeiro Palmares na época da ocupação holandesa; mas, mes-
sinal do seu reconhecimento e protestação da sua excelência, cha-
mam-lhe Majestade, obedecem-lhe por admiração. (36) mo assim não se pode afirmar que os primeiros quilombolas
fôssem todos negros da Africa Ocidental, porque o têrmo Guiné
A cidade tinha 1 500 casas e nela havia uma capela onde designava na época, como o dissemos, tôda a costa atlântica da
se encontrou uma imagem do Menino Jesus, outra de São Brás Africa; de resto, o que significava êsse pequeno núcleo para u'a
e outra de Nossa Senhora da Conceição. massa de 11 000 habitantes? Parece que os ousados defensores
Mas Macaco não era a única cidade. Os quilombolas esta- da Tróia Negra foram principalmente bantos: a velha Madalena
vam distribuídos ao longo da Serra da Barriga, formando um que foi enviada como embaixatriz a Palmares era angola, ? :pri-
conjunto de vilas e de povoações fortificadas, aliás federadas sioneiro Gaspar era chefe de campo dos angolas; sem duvida,
entre si por laços dinásticos. o nome de Bengola dado a um irmão do rei é a expressão de sua
Houve mais de 18 expedições enviadas para destruir esta origem étnica e deve ser lido Bengala; o nome de Zumbi, o últi-
"Tróia Negra" como se lhe chamou. Mas sempre renascia de mo rei do quilombo, é originário da língua bunda, e designa o
suas cinzas. A mais célebre dessas expedições foi a de Fernão deus da luz; as expressões de Gana, lomba, Gana Zona dadas
Carrilho que amedrontou tão terrivelmente os africanos fugitivos,
que granjeou entre êles "a fama de feiticeiro".( 37 ) Seguiu-se (40) Mário BEHRING, "A Morte de Zumbi", Don Casmurro, 2-8-1941.
(41) Sôbre as Guerras de Palmares, ver: Documentos: BARLEUS, Res
depois uma tentativa de paz entre os portuguêses e os quilom- Gestae Maurítii ..·., pp. 270-71. R.I.H.G.B., II, p, 153, tomo XIV, p. 491.
Revista ão Instituto ão Ceará, "Dezenove Documentos sôbre os Palmares".
bolas. ( 88) XVI, pp. 161-91. Francisco de BRITO FREYRE, Nova Lusitll.nia, Lisboa, 1675.
Mas essa paz foi apenas momentânea e completamente ilu- .. J. NIEUHOFF, Remarkables Voyages anã Travels to Brazil, p. 8. Sebastião
da ROCHA PITTA, História da América Portuguésa, 1.• ed., 1730. Jean
sória. Zumbi, sobrinho do rei, retomou armas. Foi preciso ape- BLAER "Diário de Viagem aos Palmares", R.I.H. de Pernambuco, março, 1902.
Ernest~ ENNES, As Guerras nos Palmares. Coleção de documentos inéditos
lar a um antigo mestre de campo, Domingos Jorge Velho, que publicados em São Paulo, Ola. Ed. Nacional, Brasll!ana, vol. 127, 1938, 502 PP·
Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do gover-
com seus paulistas, seus índios, os soldados do lugar e, diz-se nador D. Pedro de Almeida de 1675 a 1677, R.I.H.G.B., XXII, p. 303. ~·
mesmo, seis peças de artilharia, iniciou uma longa e renhida luta, BRANDAO "Documentos Antigos Sôbre a Guerra dos Negros Palmarlnos •
O Negro no BraBíl, pp. 275-89. f:stuàos Históricos ou Sociológicos: HAN-
que deveria terminar pela destruição mais ou menos completa DELMANN História do Brasil, fim do cap. VIII. Mário MELO, Dentro da
História, pp, 101-16. VARNHAGEN, História Geral ào Brasil, 3.• ed., III,
de todos êsses quilombos e com a morte de Zumbi.(39 ) p. 319. Pedro PAULINO DA FONSECA, "Memórias dos Feitos que se Deram
As terras foram distribuídas aos vencedores; os negros que Durante os Primeiros Anos de Guerra com os Negros Qullombolas dos Pal-
mares, seu Destrôço em Junho de 1178", R.I.H.G.B., XXXI.X, PP 193-322.
não tinham sido massacrados voltaram à escravidão. Palmares, Dias CABRAL, "Narração de Alguns Sucessos Relativos à Guerra com os Negros
Qullombolas dos Palmares de 1668 a 1680", R.I.H. de Alagoas, 1875, Nina RO-
(36) R.I.H.G.B., t. 47; mais recentemente, Benjamim PERET (que rol o DRIGUES, Os Africanos no BraBíl, pp. 115-45. Diversos: Estudos Afro-
quilombo de Palmares, Anhembi, 66, maio, 1956, pp. 469-86) opõe-se à Idéia -bra8ileiros, pp. 60-77. J!:. CARNEmo. o Quilombo àos Palmares, SP, ~947, 246
·de que o remo de Palmares teve sempre êsse mesmo caráter, e teima em pp. Benjamin PERET, "Que foi o Quilombo dos Palmares", Anhembi, n. 0 65,
achar, hipotéticamente, uma evolução da forma politlca no curso de ses- pp. 230-49, e 66, pp. 467-86. A essa lista pode-se acrescentar o romance
senta anos de existência de Palmares. de Jayme de ALTAVILLA, O Quilombo dos Palmares, mas que é preciso
(37) E. ENNES, As Guerras nos Palmares, pp. 44, 161. consultar com precaução porque o Autor mistura dados de épocas diferentes,
(38) J!:. CARNEIRO, O Quilombo àe Palmares, p. 102 e segs. chegando inclusive a fazer dos sacerdotes do quilombo, alufás muçulmanos!
(39) S. da ROCHA PITTA, História àa América Portuguésa, 2.• ed., pp, (42) A. VIDAL, "Três Séculos de Escravidão na Paraiba", Estudos Afro-
45-6. Oliveira MARTINS, o BraBíl e as Colônias Portuguésas, 5.• ed., pp. -braBíleíros, pp. 109-10.
65-6. Rocha POMBO, História ào BraBíl, V, pp. 359-63. Nina RODRiIGUES, (43) Ayres do CASAL, Cronographia Brasileira, citado por Nina RO·
Os Africanos no Brasil, p. 132. DRIGUES, op. cit., p. 133.

122 128
l ;I

aos irmãos do rei pertencem à mesma língua e são corrupções 11 época das colheitas ou das plantações. O rei, diz-se, tinha seu
de ngana que significa Senhor; Zona e lomba devem estar ligados palácio e sua casa de campo. O fato, citado por Barleus, de q~e
à palavra mona que significa irmão na língua bunda e filho na se dançava nessas casas rústicas com gran?e barulho até à me1~:
kimbunda; Ganga é também uma corrupção de nganga, Senhor -noite não significava que elas fôssem habitadas regularmente, Jª
Grande; Nina Rodrigues relaciona o têrmo de Zumba à expressão que as danças talvez pudessem ser festas agrárias, irealizadas no
cazumba onde o prefixo ca denuncia a origem banto.( 44 ) O fato início e no fim das colheitas. Do mesmo modo pode-se pensar
dos guinés terem uma mitologia bem constituída, e por isso mais que as cidades tinham sobre~do~uma. função _P~líti_:a e ~ilitar i! !
resistente ao cristianismo que o vago animismo dos bantos, é e que havia tôda uma orgamzaçao cu1a estratiflcaçao ~ocial se
mais um fator a apoiar esta argumentação. A existência de uma firmara: havia a capital real, com seus sacerdotes e magistrados, 1 1
igreja com imagens de santos tende, pois, a confirmar que Pal- sua sala do conselho que era, talvez, mui simplesmente a casa :! 1
.i .
mares foi um quilombo banto. Um documento recente, enfim, dos homens· havia Sucupira, habitada pelo irmão do rei e praça
:1
forte, onde ~ preparavam os soldados para a defesa da confe-
1
encontrado nos Arquivos de Lisboa diz que os quilombolas cha- ·J j

! '
mavam suas cidades de "Angola Janga, Angola pequena".( 45 ) deração; havia as administrações dos diversos quilombolas, sedes
Mas, é evidente que êsses bantos eram recrutados entre as mais dos potentados; e, finalmente, a massa trabalhadora rural que ,I
diferentes nações e disso temos um testemunho direto no fato vivia constantemente em seus pequenos pomares, afastados uns
dos habitantes de Palmares chamarem-se malungo; ora, o P. dos outros, não indo à cidade senão em casos de ataque dos
Vieira nos diz em um de seus sermões: "O espírito de associa- brancos. ,
ção é tão próprio e natural aos negros, que êles consideram como Ao lado das informações que temos sôbre o habitat, possui-
parentes todos os indivíduos da mesma côr e companheiros ou mos outras relativas ao trajar dêsses negros fugitivos. Quando
malungo, todos os que embarcaram no mesmo navio".( 46 ) Vi- do envio de embaixadores dos Palmares ao governador, o aspec-
mos que o navio negreiro tinha quase sempre uma carga de cati- to dos negros de tal maneira surpreendeu aos portuguêses que
vos das mais variadas tribos. Portanto, o fato de se darem o êstes nos deixaram uma descrição detalhada. Eram bárbaros
nome de malungo significava que Palmares não era uma tribo, nus o sexo coberto, uns trazendo a barba trançada, outros com
mas um cadinho de povos, reunidos nesse navio imóvel, feito barba e bigodes postiços, outros, enfim, inteiramente barbeados.
de montanhas e de rochedos, batido pelo mar verde das florestas, Todavia não sabemos se essas distinções correspondiam a sobre-
qual um outro oceano.( 47 )
,., vivência~ tribais ou a diferenças de classe, de posição social, .ou,
O segundo problema que se apresenta é o da organização .·:;,;.
0 que é também possível, a sobrevivências étnicas que ten~m
social de Palmares e seu significado. Espacialmente o quilombo mudado de função tomando-se critérios de estratificação social.
se apresenta, como o vimos, como uma série de aldeias fortifica- Em todo caso, um' fato é certo, esta estratificação social e~i~en­
das, separadas umas das outras por grandes distâncias. Mas, ciava-se no vestir; sabemos que os chefes que eram os umcos
sabemos também que havia, espalhadas entre êsses lugares, cer- vestidos usavam trajes feitos de tecidos roubados ou comprados
cados de paliçadas e onde os negócios públicos eram tratados, aos portuguêses. Parece também que eram os únicos a ter fuzis.
pequenas cabanas cercadas de plantações, situadas principalmen- Os outros negros eram armados de arcos e flechas, punhais ou
te nas orlas das florestas. Essas casas campestres eram feitas de
cimitarras. ( 49 )
ramos e seu teto de sapé.( 48 ) Porém, isso é tudo o que sabemos Sua ~conomia era complexa. Os homens se dedicavam à
e várias explicações possíveis restam para se entender desta orga- caça e à pesca. Laert encontrou em sua expedição armadilhas
nização ecológica. Pode-se imaginar que havia dois tipos de casa
abandonadas na floresta, e Rocha Pitta nos fala de um lago
para uma mesma família, uma urbana, se se deseja, local de resi-
abundante de peixes perto do qual foi construído u!11 quilomb?.
dência habitual, e uma casa rural que era habitada somente na
Praticavam a agricultura, e, ao que parece, uma agricultura me10
(44) Nina RODRIGUES, op. cit., pp. 157-60. individualista, meio coletiva. A propriedade das terras era fami-
(45) E. ENNES, op. cit., p. 235,
(46) A. BRANDAO, op. cit., p. 67. liar, mas tem-se a impressão de que tôda a aldeia se entregava
(47) ALTAVILLA, op. cit., p. 35.
(48) BARLEUS, op, ctt., pp. 270-71. Nina RODRIGUES, op. ctt., p. 135. (49) Sõbre o traje, ver Rocha PITl'A, op. ctt., p. 237.

124 125

1.
-~-'---··· ·--········
às lides agrícolas. Em verdade, Barleus nos diz que o trabalho mente a outras compras. Em todo caso, a economia dos Palma-
era feito duas vêzes por ano, primeiro para a plantação e a cul- res é, antes de mais nada, como tôdas as economias primitivas,
tura, depois para a colheita do milho. O que indica o caráter uma economia de escambo. Parece que êsse comércio se fazia
coletivo desta economia é o fato dêsses dois tipos de trabalho principalmente do branco para o negro e não do negro quilom-
agrícola se processarem cerimonialmente, seguindo-se um perío- bola com o branco. Barleus nos conta que uma das expedições
do de repouso de 14 dias em que os habitantes se entregavam ao holandesas tinha sido preparada por um certo Bartholomeu Lintz
que vivera vários dias no quilombo para trazer informações úteis; ti
prazer de festas religiosas, diríamos nós, talvez mesmo de sacri- 1,
i'
fícios agrários, como hoje ainda existe entre os bantos africanos. é evidente que, apesar de Barleus não dizer, êsse Lintz não teria
· Dessa forma, a economia dos Palmares se opõe radicalmente à podido demorar em Palmares a não ser por viagem de comércio. 1

econ~mia dos co!<?nos brancos da época. De um lado, a pequena Rocha Pitta nos dá ainda mais detalhes. Tipos de comunicações i'
propriedade familiar, a terra trabalhada pela família e seus escra- secretas eram estabelecidas entre os quilombolas e os fazendeiros;
vos (J?o:que, como veremo~,, os. quilombolas não suprimiram a êstes recebiam dos primeiros salvo-condutos, consistindo de de-
escrav1dao), de outro, o Iatifund10. De um lado, uma economia terminados sinais ou figuras, e seus escravos que subiam até
baseada ~m larga. e~cala na do país de origem, isto é, _Çonservan- Palmares, graças a êsses papéis, não eram nem molestados, nem
.do seu ntmo religio.l'o; de outro, uma economia assentada na aprisionados.( 51 )
monocultura, com vista na venda e no lucro, inteiramente leiga, Mas o que mais impressionou aos colonizadores foi a 9r-
se. bem que o capel~o inaugurasse o trabalho do engenho com
missa solene e a benção dos trabalhadores. Acrescentemos a r ganização política. Já dissemos que os diversos quilombos for-
mavam uma espécie de federação sob a autoridade de um rei,
tudo isso o fato dos habitantes dos Palmares ignorarem a domes- que dirigia todo o seu domínio com o auxílio de potentados,
ticação dos animais.(5º) freqüentemente escolhidos entre seus próprios parentes, cada qual
Entretanto, a economia não estava essencialmente baseada à frente de uma das aldeias. O rei era eleito.
na atividade agrícola. Havia nas cidades numerosos artesãos
d_?s quais não sabemos. o número, nem a natureza das ocupa~ Elegiam para seu príncipe, ou rei, a quem davam o nome
de Zumbi (nome que em língua africana significa Diabo) um
çoes. Os branc?s só se mteressavam, evidentemente, por aquelas dos seus mais inteligentes e corajosos, e embora a sua autoridade
que lhes pareciam as mais perigosas, isto é, a fabricação de fôsse eletiva, era todavia vitalícia e a ela tinham direito todos
armas. os negros, mulatos ou mamelucos de mais reto procedimento, cora-
Enfim, não ignoravam o comércio. O grande número de gem e experiência; e não se conta nem se sabe que entre êles hou-
vesse partido ( ... ) nem que no espaço de quase 60 anos que
expedições punitivas dirigidas contra êles, as queixas de assaltos viveram independentes, e se governaram, matassem para entronizar
de roubos e de raptos enviadas pelos brancos das cercanias a~ outro, (52) prestando todos pronta obediência e respeito ao eleito logo
governador, não nos devem fazer esquecer que houve também que se concluía a eleição, que era direta; isto é, os que votassem em
longos períodos de paz, quando os negros comerciavam pacifica- um punham-se em um lado, os que queriam outro separavam-se
dos precedentes, pertencendo o poder ao que era escolhido pelo
mente com os colonos. Trocavam os produtos de suas terras ou maior número sem que nesta eleição houvesse a menor desavença.
~s frutos da. floresta por armas, por pólvora, por balas, por ves-
tidos ou. tecidos da Europa para seu chefe, e mesmo, segundo Magistrados cercavam o rei para a administração da comu-
R~cha Pitta que conheceu sobreviventes desta época, por prata. nidade e também havia uma casa do Conselho na metrópole onde
Nao sab~mos se a última informação procede, e nem para que se discutiam negócios gerais. Muito se escreveu sôbre o signifi-
lhes .servia esta prata, se era transformada em bijuteria, se era cado dêsse regime político e por causa da eleição do chefe, da
considerada como tendo valor mágico, ou se servia posterior- possibilidade de todos concorrerem aos mais altos cargos, falou-
(50) Sôbre a economia agrfcola, ver BARLEUS, op. cit., p, 270. Rocha (51) Sôbre o comércio, ver ALTAVILLA, op. ctt., p. 32, em nota.
PITTA, "11· ctt., p. 240. Brito FREYRE, op. cit., p. 280. Segundo B. PERET BARLEUS, op. cit., p. 270. Rocha PITTA, op. ctt., p. 238. N. RODRIGUES,
op. cit., pp. 469-86, teria havido uma evolução na economia desde ~ op. cit., p. 133. É. CARNEIRO, op. cit., pp. 59-60.
trabalho coletivo dos negros fugitivos nos primórdioe do qull~ba até a (52) O fenômeno, portanto, verificou-se no fim do Palmares; talvez
economia baseada na escravidão, os escravos e as mU!heres ocupando-se fôsse a conseqüência da desorganização que as lutas continuas contra os
d a agrtcuttura e os homens da caçai ou da guerra. brancas não podiam deixar de ocasionar internamente.

126 127
-se de uma república negra, comparou-se Palmares ao Haiti, como mente dêsse sistema tem todo um significado face a êsse aspecto:
também se quis ver nesse quilombo o primeiro grito da indepen- o de ''retômo à África".
dência brasileira contra o regime colonial. Outros, ao contrário, Em compensação, conhecemos bem menos o regime ma-
como os holandeses, pensaram que êsses negros não faziam mais trimonial. O certo é que aqui o antigo sistema tribal devia ser
que copiar a organização dos portuguêses, confundindo sem forçosamente desorganizado, não tanto pelo fato do encontro das
dúvida a casa dos homens, que chamam de Grande Conselho, tribos, quanto pela falta de mulheres. Menos aptas a fugir que
com as câmaras municipais da colônia que se ocupavam dos ne- os homens, eram em menor número e os quilombolas viram-se
gócios locais. Nenhuma dessas opiniões é exata. Nina Rodri- forçados assim a roubar mulheres das cercanias. Não se olhava
gues está muito mais próximo da verdade quando compara essa a côr da pele: roubavam mulatas e mesmo brancas. (M) Contu-
realeza às africanas, mas prejudicou sua argumentação porque do, sabemos que a poligamia existia ao menos para os chefes:
dtou apenas as realezas dos negros fugitivos. Na realidade, não Gangamusa, chefe da nação angola, era casado com duas filhas
é somente a realezas de revoltados que é preciso se ater para do rei, e êste tinha três espôsas. ( 55)
compreender Palmares, mas ao estado social dos negros africa- . . Agora podemos definir ~almares. Não foi uma criação
nos, que 9onheciam o regime dinástico, à eleição e discussão dos ongmal e de alguma forma racional dos negros fugitivos, findan-
assuntos tribais pelos adultos ou pelos velhos. Palmares é, antes do-se uma constituição republicana ou uma monaTqui'â. eletiva
de tudo, um retôrno à tradição africana. estabelecendo leis e instituindo magistraturas inéditas mas u~
fenômeno de resistência cultural, de "regressão tribal" 'um esfôr-
O que também muito surpreendeu os historiadores brancos
ço dos africanos para reconstituir as antigas organiz~ções ban-
foi que o quilombo não formava um amontoado de fugitivos, tos, ( 56 ) contra a desagregação de seus costumes em contato com
um caos indistinto de indivíduos unidos por um protesto comum os ?rancos. Foi algo semelhante à recriação da África em plena
contra a escravidão, mas um verdadeiro Estado civilizado: Guiana Holandesa que ainda hoje subsiste, estudada, entre outros,
Entre êste povo eram castigados com pena de morte o ho- P_?r M. ~erskovits. e espôsa, em Rebel Destiny.(51) Todavia,
micídio, o adultério e o roubo, porque mesmo o que era lícito toda reaçao, pelo simples fato de ser uma reação, não pode che-
fazer aos brancos, com os quais, diziam, estavam em guerra, gar a ~ma reco?stituição fiel do passado; é sempre atingido
era-lhes vedado, sob pena de morte, praticar com os seus. Aos ~,elo objeto ou coisa contra o qual se luta, principalmente quando
escravos que voluntàriamente se lhes iam oferecer e juntar, ·con-
cediam liberdade; os que, porém, tomavam por fôrça ficavam cativos Jª houve contato com uma cultura estrangeira dominante. Se se
e podiam ser vendidos. Também impunham pena capital aos que, ac.r~scenta ~ infl1;1ência do meio exterior, diferente do habitat pri-
tendo ido voluntàriamente, resolviam voltar ao domínio branco. mitivo, e amda impregnado de valôres indígenas, compreender-
Aquêles porém que eram escravos e que tinham sido aprisionados -se-á que Palmares devia integrar em si elementos externos, apre-
pela fôrça não eram punidos com a morte quando intentavam sentar um certo sincretismo. Por exemplo, a agricultura lembra
desertar. Estas leis não eram escritas mas conservavam-se per-
feitas nas m€mórias e tradições, transmitidas de pais a filhos, de bem a África, mas os produtos cultivados são o milho e a cana-
tal maneira que, quando os atacaram e os venceram, as acharam -de-açúcar. Os nomes dos lugares são na maioria têrmos bantos,
impressas nas memórias dos segundos e terceiros descendentes dos
(54) Sõbre o rapto das mulheres, ver N. RODRIGUES, op. cit., p. 132.
primeiros fugitivos. (53) (55) Documento de 4 de fevereiro de 1678 citado por A BRANDAO
"Documentos Antigos Sôbre a Guerra dos Negros Palmarinos" . O Negro no
Vê-se aqui ainda que Palmares não fazia mais que manter, Brasil, P· 283. BLAER em 1645 escreve a propósito dos ca~amentos dos
qullombolas: ":IJ:les escolhem um dos mais tnstruidos entre si, que veneram
em pleno sertão brasileiro, as regras tribais da África longínqua. como um cura que os batiza e os casa. Todavia, o batismo sem a forma
exigida pela Igreja e os casamentos sem as peculiaridades reclamadas pela
Todos êsses fatos, punição do homicídio, do roubo, do adultério, lei da nc.tureza ( ... ) Seu apetite é a regra de suas escolhas", lll. CARNEIRO,
op. cit., pp. 43 e 189. ·
são características da organização moral ou dos costumes das (56) :ll:ste ponto fol bem observado principalmente por J. H. RODRI·
antigas comunidades das quais êsses negros foram arrancados. GUES e J. RIBEIRO, Civilizaç/io Holandesa no Brasil, p. 375. A. ARINOS
DE MELO FRANCO, Conceito de Civilizaçlio Brasileira pp. 121-29 e A. RAMOS
A conservação da escravidão entre os prêtos que fugiam justa- Culturas Negras, p. 363. ' ' '
(57) Fr. e J. M. HERSKOVITS, Bebe! Destiny. VAN LIER, Notes sur
(53) Texto de Fernandes GAMA citado por ALTAVILLA, op. cit., p. la Vie · Spirituelle et Sociale des Dfuka. Norton KAHN Diuka the Bus'h
114. Cf, N. RODRIGUES, op. cit., p. 133, e Brito FREYRE, op. cit., p, 282. Negroes of Dutch Guyana. ' '

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como se aí houvesse uma vontade de africanizar o país, de trans- barulho que vinha das casas dos negros fugitivos, pelo ruído dos
formar a geografia, mas, mesmo assim, certas palavras indígenas pés que batiam no chão e que repercutia até muito longe. Essas
subsistem para designar acidentes geográficos. :É no seio dêsse danças duravam até a meia-noite, depois do que os negros dor-
fenômeno de resistência e sincretismo culturais que devemos es- miam até às 9 ou 10 horas da manhã.( 62 ) Sem dúvida há entre
tudar a religião de Palmares, na medida infelizmente bastante os bantos danças profanas ao lado de danças religiosas, mas era
limitada em que a conhecemos. provável que, mesmo assim, algumas delas fizessem parte de
Segundo o testemunho dos holandeses, esta religião seria
uma cópia mal feita do catolicismo dos portuguêses. :Bles falam cerimônias litúrgicas. Como Barleus nos dá essa informação
de capela, de imagens de santos, de padres, calcados no modêlo juntamente com outras relativas ao seu tipo de economia agríco-
dos brancos.( 58 ) Francisco de Brito diz que os negros conserva- la, sugerimos que talvez essas cerimônias fôssem agrárias. O
ram o catolicismo de seus antigos senhores, "se bem que de modo que é mais evidente é o caráter religioso da realeza. Os nomes
i
ridículo, falta mais de ignorância que de maldade".( 59 ) Vimos que foram conservados do rei e de seu irmão, comandante dos 1
também que o rei de Palmares proibira o fetichismo no quilom- exércitos, não são nomes de pessoas, mas nomes genéricos, títu-
bo. Na realidade, há aí um certo número de graves confusões los místicos - Ganga, o rei, é a palavra kimbunda nganga, Se-
desculpáveis, aliás, para a época. Os bantos, que tinham uma nhor Grande, e Zumbi, a suprema divindade. 1
mitologia relativamente pobre, identüicaram seus espíritos com A resistência contra o branco foi, portanto, uma resistência
os santos católicos, e as imagens descobertas pelos conquistado- religiosa e social. j
res eram, portanto, representações dêsses espíritos adorados por * !
êles. A proibição do fetichismo, se a informação é precisa, pode * *
se aplicar seja pela reação dos bantos contra os orixás dos pri-
meiros fugitivos guineanos, seja pela rivalidade entre sacerdotes e
feiticeiros. Rocha Pitta está, pois, mais próximo da verdade quan- Os Outros Quilombos
do nos diz que os quilombolas conservaram do catolicismo o
sinal da cruz e certas orações mal repetidas, que misturavam a Se Palmares foi o mais célebre e indubitàvelmente o maior
de todos os quilombos, não foi o único. A história e a geografia
palavras e cerimônias de suas religiões nativas, ou inventadas por
do Brasil (muitos lugares ainda se chamam Quilombo, em recor-
êles.( 60 ) Nesse texto antigo, achamos já observadas as desco-
bertas recentemente feitas pelos estudiosos dos contatos culturais, dação dos negros fugitivos que aí se fixaram)( 6 ª) nos revelam
ou sejam, a existência de um sincretismo, a conservação de ele- a importância da fuga coletiva e da resistência à escravidão e à
mentos da cultura primitiva e, enfim, o fato dêsse sincretismo assimilação da cultura dos brancos. Muitos dêsses quilombos fo-
não consistir em uma simples adição de elementos justapostos, ram construídos próximo a lugares povoados, mas outros, po-
que apenas se misturam, µias de uma simbiose que ocasiona o rém, formaram-se a grande distância, no coração das florestas.
aparecimento de novas instituições.( 61 ) Parece que foi isso o Surge assim, um outro fenômeno que estudaremos posteriormen-
q\Je de fato aconteceu em Palmares. te, o contato entre as culturas africana e indígena. :Bsse contato,
Quais eram os elementos africanos dessa simbiose? Nós os (62) BARLEUS, op. cit., p. 271.
(63) Perdigão MALHElROS, A Escravidlio no Brasil, p. 37. Mesmo nos
ignoramos e não podemos descobri-los senão indiretamente. Estadoe do SUl, onde a popUlação africana era menos numerosa, como em
Barleus conta que os colonos brancos que moravam nas imedia- Santa Catarina, encontramos nomes iguais de lugares, ao todo seis nos
municfpioe de Florianópolis, TiJucas Imaruí e Chapecó, BOITEAUX, Dicio-
ções do quilombo ficavam acordados durante a noite com o nário Histórico e Geográfico do Estado de Santa Catarina. Com mais
razão ainda os encontramos nos Estados do centro e do Norte. No Guia
(58) BARLEUS, op. ctt., p. 270, e Diário âe Vtagem do Capitlio J. Blaer Postal do Brasil de 1930, encontram-se nada menos que 101 agências postais
ao Palmares, citado em apêndice ao livro de J!:. CARNEIRO. com êste nome, 35 em Minas, 22 em São PaUlo, 19 no Rio. Na forma
(59) Brito FREYRE, op. ctt., p. 281, mocambo: 28 na Bahia, 10 no Piauí, 8 em Sergipe, 5 em Pernambuco. Seria
(60) Rocha PITI'A, op. ctt., p. 237. preciso ainda acrescentar 50 nomes de montanhas e rios, Apontamentos para
(61) Prefâcio de MALINOWSKI ao livro de L. SHAPERA, The Contrl- o Dicionário Geográfico do Brasil de Moreira PINTO; c1'. A. de E. TAUNAY,
buttons o/ W estern Civfü~attons to Modem Kratla culture, apu<Z Revista História do Tráfico no Brasil, pp. 51-2. Hlstôricam·ente, oe documentoe
Bimestre Cubana, XLIX, maio-Junho, 1942. mais antigos datam do comêço do sécUlo XVII; são encontrados nos Do•
cumentos Históricos ão Arquivo Munictpal ão Salvador, t. I.

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é óbvio, não deixou de repercurtir na religião dos africanos e dos Mas esta repressão exasperou os ódios. A população bran-
índios. ca começou a viver no temor contínuo de possíveis revoltas das
O primeiro quilombo remonta quase à época do início do pessoas de côr. Pensava-se que essas sublevações eram organiza-
tráfico negreiro, em 1575, e localizava-se na Bahia. Foi destruído das de fora, exatamente pelos negros fugitivos dos quilombos.
por Luís Brito de Almeida.( 64 ) Uma carta do Pe. Rodrigues Em 1719, corre o boato de que os negros conspiram para massa-
de 1597 mostra que "os primeiros inimigos dos colonos são os crar os brancos, aproveitando-se da circunstância de estarem to-
negros de Guiné revoltados, que vivem nas montanhas, daí saindo dos reunidos na igreja, sexta-feira santa. Os quilombolas do
para cometer assaltos".( 65 ) Em 1607, uma carta do governador, Rio das Mortes já teriam eleito um rei, os príncipes e os chefes
conde de Ponde, comunica ao rei uma revolta dos negros haussa, oficiais do nôvo Estado. O governador, de início cético, acabou
sempre na Bahia, enquanto em 1601 um quilombo em Itapicum por tomar precauções. No Rio das Mortes, o tenente-general
cortava o caminho entre a Bahia e Alagoas.( 66 ) Em 1650, o João Ferreira Tavares deteve os reis das nações mina e angola
capitão Manoel Jordão da Silva destrói com dificuldades quilom- e todos aquêles que se supunha terem sido designados como
bos próximos ao Rio de Janeiro.( 67 ) Em 1671, um outro qui- futuros magistrados da república dos negros. Em 1756, novos
lombo apareceu em Alagoas.( 68 ) Em 1704, Dias da Costa é temores por parte dos brancos e o rumor de uma conspiração
chamado a "destruir os mocambos (da Bahia), aprisionar os ne- circula, ainda, nos mesmos tênnos da precedente. Os negros de-
gros e subjugar os índios maracaz, cucuriús e os caboclos que viam se aproveitar da quinta-feira santa quando os brancos visi-
êles tinham domesticado". Em 1707, Domingos Netto Pinheiro é tam as igrejas, e sôbre êles se precipitarem, massacrando os
encarregado de subjugar os mocambos que se localizavam nos homens brancos e os mulatos; entretanto, as mulheres seriam
distritos de tôda a serra de Jacobina e Carinhanha até o rio poupadas. Um oficial teria descoberto êsse projeto e os africanos
S. Francisco.( 69 ) Nas imediações de São Paulo, no "rio da trai- vendo-se perdidos, refugiaram-se nas florestas. ( 72 ) Nada nos
ção", havia também um quilombo que durou de 1737 a 178 7. (7º) permite afirmar que conspirações tenham realmente aconteci-
Mas é a região de Minas que constituirá o centro privilegiado do. (78) Mas êsses boatos exprimem bem a atmosfera de terror
dêsse tipo de resistência. Esta localização se compreende fàcil- que reinava em todo o país.
mente. A descoberta de ouro e d('. pedras preciosas ocasiona um Tôda a região de Campo Grande e do São Francisco estava
deslocamento populacional, os escravos são arrancados do tra- infestada de negros fugitivos, dos quais não se podia fàcilmente
balho agrícola para se sujeitarem ao trabalho duro da mineração; desembaraçar. Em 1741, João Ferreira organizou uma expedição
a descoberta de novos filões e de novos rios ricos em pepitas contra êles, mas lograram escapar, reconstituíram-se e massacra-
aumenta o fluxo de africanos, lançados, logo em seguida à sua vam os viajantes que seguiam pelo caminho de Goiás à procura
chegada, em novas terras; o mêdo de roubos origina uma vigilân- de ouro. Em 1746, nova expedição, desta vez mais feliz, onde
cia brutal. O viajante que excursiona pelas antigas cidades de 120 negros são aprisionados e suas terras dadas aos pioneiros
Minas Gerais fica impressionado ao deparar em tôda parte, cons- brancos. Mas, em 1752, o assalto à expedição do Pe. Marcos
tituindo como que o centro arquitetural da cidade, a prisão de onde 42 homens foram massacrados, dos quais 19 escravos mos-
muros espessos como se fôsse uma fortaleza. Essas prisões são trou que o perigo ainda não passara. (74) '
o sinal de uma repressão feroz aos negros fugitivos. (71) Os quilombos de Minas são certamente os mais importan-
(64) HANDELMANN, História do Brasil, fim do cap. V!Il.
tes depois dos Palmares. Eram bem organizados e compreende-
(65) Citada por Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no ram uma população de 20 000 negros que tinham afluído de to-
Brasil, II, p. 358. · ·
(66) Felte BEZERRA, Etnias Sergipanas, p. 154. dos os cantos do Brasil, de São Paulo, da Bahia, aos quais se
(67) Sôbre os acontecimentos de 1617 e de 1650, ver o artigo de A. juntaram mulatos, criminosos e bandidos, distribuídos em deze-
RAMOS no Boletim da Sociedade Luso-americana, n.• 24, dez., 1938, p, 15.
(68) F. BEZERRA, op. cit., p. 178. nas de povoações, das quais quatro eram grandes e fortificadas,
(69) U. VIANNA, Bandeiras e Sertanistas Baianos, p. 65.
(70) Nuto SANTANA cita em "O Ribeirão da Traição", artigo de jornal, (72) Diogo de VASCONCELOS, História Antiga de Minas Gerais, p, 326.
certo número de documentos sôbre êsse quilombo: Acta.s XI, p. 79, XII, (73) Diogo de VASCONCELOS, História Média de Minas Gerais, pp.
pp, 17-484, XVIII, p. 116, XVIII, p, 455. Cf. TAUNAY, História da Cidade de 164-75, e Xavier da VEIGA, Efemérides Mineiras, p. 77.
s. Paulo no Século XVIII, I, p, 123. (74) N. RODRIGUES, op. cít., p. 148.
(71) Barros LATIF, As Minas Gerais, p. 169,

132 193
A.mbrosio, Gareca, Zundu, Calaboca, tôdas situadas perto de descobriu-se que os índios e os caborés já conheciam a doutrina
Sapucaí. Cada uma tinha seu rei, seus oficiais e seus ministros, cristã e a língua portuguêsa, aprendidas dos antigos escravos.
reinando com um despotismo sangüinário. Face aos brancos Mais além, foi descoberto U!ll grande quilombo, formado por
manifestavam atitude ambivalente: de um lado, dêles desconfia- dois blocos, um de 1O e outro de 11 casas, distantes um do outro
vam, tendo um serviço de espionagem, colocando guardas ao cêrca de 50 passos. Os quilombolas abandonaram-no para re-
longo dos caminhos e até nas povoações brancas; de outro, viviam construí-lo mais nas profundezas das matas, sempre dividido em
do comércio e seus agentes secretos trocavam armas ou alimentos dois campos, mas desta vez distantes um do outro cêrca de três
por ouro, peles e por produtos de suas colheitas. Foi preciso léguas; o primeiro comandado pelo negro Antônio Brandão, com
organizar uma grande expedição contra êles, comandada pelo ca- 14 negros e 5 escravos, o segundo pelo antigo escravo Joaquim
pitão Bartholomeu Bueno de Prado, que voltou trazendo como Félix com 13 negros e 7 negras. Talvez esta distinção em dois
troféus 3 000 pares de orelhas!( 75 } campos represente a aceitação da divisão dualista dos clãs exó-
Os quilombos nunca desapareceram. Em 1769, sempre em gamos dos índios.( 79 ) O movimento de formação dos quilombos
Minas, há a destruição de outros quilombos em Samambaia.( 76 } não desapareceu senão no século XIX. Em 1810, um quilombo
Em 1770, a destruição de um outro quilombo, desta vez em Mato é descoberto em Linhares (Estado de São Paulo).( 80 ) Mais
Grosso, o de Cartola. Em 1772, em São José do Maranhão, os ou menos em 1820, J. E. Pohl devia encontrar um quilombo
negros fugitivos aliam-se aos índios para atacar a povoação. (77 ) na região de Minas, formado de fugitivos do Estado de São ·
· Em 1778, dois quilombos são destruídos no Estado de São Paulo, Paulo; diz êle: "Tinham também um sacerdote que devia cele-
às margens do Tietê, formados de negros de 30 a 60 anos, todos brar os serviços religiosos".( 81 ) Existia ainda em 1828 um qui-
pagãos.( 78 ) O encontro entre negros e índios verifica-se ainda lombo às portas de Recife, em Cahuca, governado por um chefe,
em 179 5 em Piolho, Mato Grosso. Ali vinham se refugiando, des- Malunguinho, cercado de fossos e paliçadas, de onde os quilom-
de há 25 anos, numerosos escravos tendo guerreado contra os bolas saíam para fazer incursões e onde viviam sob uma forma
índios das vizinhanças, os cabixé, a fim de roubar-lhes as mulhe- comunista, o que parece indicar, ainda aqui, um retôrno às tra-
res; dessas uniões nasceram mestiços (de índios e de negros) que dições africanas.( 82 ) Em 1829, os índios são encarregados de
foram chamados caborés. A expedição de Francisco Pedro de destruir um outro quilombo em Corcovado, perto do Rio.( 83 )
Mello devia encontrar ainda seis descendentes dêsses antigos Em 1855, um outro é destruído na Amazônia, o quilombo de
escravos que eram os chefes, sacerdotes e médicos de seus des- Maravilha. ( 84 ) Em 1866, os negros do Pará ainda fugiam para
cendentes; o quilombo era composto, à parte êsses velhos negros, as povoações indígenas da Guiana Francesa. ( 85 )
de caborés e de índios. Viviam da pesca e da caça, cultivavam Como se vê, a documentação de caráter sociológico de que
o milho, o feijão prêto, favas, mandioca, batatas-doces, ananás, dispomos para o estudo dos quilombos não é muito rica. As
tabaco, algodão e bananas; criavam galinhas e faziam roupas de pessoas da época não se interessavam pela organização interna
algodão. Em São Vicente, no primeiro quilombo aprisionado e pelos costumes dêsses negros fugitivos, e sim pelas medidas
( 6 negros, 8 índios, 19 índias, 1O caborés homens e 11 mulheres) militares tomadas para destruí-los. Entretanto, como em Pal-
(75) J. RESENDE SILVA, "A 1'1ormação Territorial de Minas Gerais", mares, temos a impressão, na maioria dos casos, de estarmos em
Anais ão ·III Congresso Sul"'1'io-grandense ãe História e Geografia, vbl. presença de situações de regressão tribal, de fuga para a Africa.
III, p. 707. J. DORNAS Fn.HO, "Povoamento do Alto S. Francisco", Sociologia,
XVIII, I, pp. 70-109. Diogo de VASCONCELOS, op. cit.• p. 164. l!l. OAR· A religião desempenhou um papel nesta resistência cultural, e isso
NEmo. o Quilombo ãe Carlota, obra Inédita. Cônego R. TRINDADE, op. cit.,
p. 277. Aires da MATA MACHADO Filho, "O Negro e o Gartmpo em Minas (79) Roquette PINTO, Rondônia, pp. 31-45.
Gerais", R.A.M.S.P., LXI, 1939, p, 277. J. EUGENIO DE ASSIS, "Levante (80) Documentos Interessantes, LIX, p. 319.
de Escravos no Distrito de São José das Queimadas, Estado do Espirita Santo", (81) J. E. POHL, Beise in Jnners von Brastzien, II, pp. 307-8.
Bev. ão Museu Paulista, 1948, e I. FALCONI, "Um Quilombo Esquecido", (82) Pereira. da COSTA, "Folklore Pernambucano", R.I.H.G.B., t. 40.
Correio das Artes, João Pessoa, 25-9-1949, pp. 8-9. Os quilombos _sle Minas (83) DEBRET, Voyage Pittoresque, I, p. 56. R.J.H.G.B., t. 90, vol. 144,
existiram até o século XIX como mostram os livros de REZENDE, Recor- pp, 512-13. DABADIE, Récits, p. 34. WALSCH, Notices, p. 342 (neste texto
dações, p. 43, e B. GUIMARAES, "Uma História de Qullombola", Lendas e encontram-se ainda traços de sobrevivências da religião africana, como o
Romances. uso de cauris).
(76) Diogo de VASCONCELOS, op. cit., p. 168. (84) Fr. Protaslo FRIKEL. "Tradições Histórico-lendárias dos Kachuyana.
(77) Resende SILVA, op. cit., p. 707. e Kahyana", Rev. ão Museu Paulista, nova série, 1955, pp. 227-29.
(78) N. RODRIGUES, op. ctt., p. 149. (85) Perdigão MALHEmos, A Escravidllo no Brasil, cap. II.

194 135
é o que prova o quilombo do rio Tietê onde todos os habitantes sob a autoridade de um rei-sacerdote, pelo menos é o que inferi-
eram "pagãos". Ainda no início do século XIX, o inglês Burton mos dos documentos que citamos.
descobre, entire os quilombeiros das cercanias de Diamantina, so- Tudo isso certamente pertence ao passado. Porém, êsse
br.:evivências africanas, como o uso de certos encantamentos e a passado não morreu sem deixar vestígios que ainda hoje se en-
utilização de veneno (strazoninum).( 86 ) A medida que a civiliza- contram. Não podemos saber até que altura penetraram os es-
ção dos brancos se estendia para dentro da faixa litorânea e pene- cravos fugitivos, nem o grau de difusão de suas culturas. Martius
trava no interior, os negros fugitivos iam cada vez mais entrando pensa que devem ser muito raras as tribos ameríndias que não
em contato com os índios que aí anteriormente tinham se refu- entraram em contato com os africanos. ( 88 ) Roquette Pinto re-
giado. Falou-se muito que os africanos e os indígenas eram ini- monta a origem da agricultura nambiquara nos quilombos dos
migos e lutas entre êles amiúde se verificavam. Mas o ódio co- caborés.( 89 ) Descobriram-se sobrevivências dêsses mocambos
mum aos senhores brancos impeliu-os a uma compreensão mútua de negros fugitivos até na Amazônia, por exemplo, nas margens
e se irmanaram. Ora, tôda vez que essa união se verificou, nota- f\ do Trombetas, em Alcobaça, cujo mocambo era dirigido por
-se que é o negro quem lidera a nova comunidade, seja reduzindo 1:-. uma negra, Felipa Maria Aranha, tão poderosa que os portu-
o índio à escravidão, como na Bahia em 1704, seja tornando-se guêses precisaram se aliar a ela em lugar de combatê-la e cujos
o chefe, militar ou religioso, como em Mato Grosso, em 1795. descendentes tornaram-se guias dos viajantes que queriam descer
Muitas vêzes um mulato, diz d'Assier em 1867, fugindo à escra- as cataratas do Tocantins. (9º) Quando os lusitanos chegaram
vidão ou desertando do serviço militar, era proclamado chefe pela a Passanha (Estado de Minas Gerais) tôda a região era povoada
tribo índia em que se refugiava. (87) por índios µialali, entre os quais viviam negros fugitivos; êsses
Coisa mais curiosa ainda, observamo-la por duas vêzes, é índios haviam aceito como chefe ainda aqui uma negra. (9 1 )
essa escolha recair sôbre uma mulher negra, e a única razão ~/
Saint-Hilaire que os visitou em 1817 os achou com o aspecto
válida para isso é de ordem religiosa; a mulher passava por ter físico mais de mulatos do que de índios; o chefe malali lhe disse
virtudes mágicas especiais, estando mais sujeita que o homem às que sua avó era negra.(92 )
crises místicas. Formou-se então um si!!2!etismo-religioso em Quando Saint-Hilaire visitou em 1819 os caribocas de Minas
que o elemento dominante devia ser fornecido pela civilização prestes a desaparecer (não havia mais que 18 aldeias), mulatos
africana; foi ela que forneceu a liturgia e a mitologia, no caso e negros crioulos para aí vinham casar-se com as índias, a fim
do negro sacerdote e os processos de cura mágica, no caso do de poderem desfrutar da situaç·ão privilegiada que gozavam os
negro médico. Mas, mais curioso ainda, é que êsse sincretismo índios no Brasil; êle aí devia encontrar um curioso sincretismo
foi acrescido de traços culturais brancos e que o negro foi um de crenças, onde o catolicismo desempenhava uma função indi-
instrumento de difusão do catolicismo português entre os índios, reta, nenhum sacerdote desejando ir à povoação. A língua era
um catolicismo provàvelmente bastante modificado e corrompido. a tupi; Deus era adorado com o nome de Nhandinhan.( 93 ) Em
Bem entendido, o índio também trouxe sua parcela de contribui- outros lugares é a religião indígena que parece dominar, como
ção a êste curioso povo nascido em pleno sertão brasileiro. A na povoação de Mato Alto (Minas), onde as mulheres macunis
organização tribal dos negros tinha sido inteiramente destruída ')
se casam com os negros, e onde Saint-Hilaire as viu, quando o
pelo regime de escravidão e apenas subsistiu nos espíritos como 1 vento soprava com violência, fumar diante de suas casas para
1
uma lembrança das antigas monarquias de caráter divino. Os (88) Citado por Roquette PINTO, op. cit., p. 32. Cf. Anats ão Museu
indígenas, ao contrário, tinham conservado sua antiga estrutura Paultsta, V, 1931, p. 703.
(89) Idem, p. 38 n. ·
social. Dessa maneira, criou-se um sistema social que unia a (90) R. MORAES, Anfiteatro Amazônico, pp. 135-49. Nunes PEREmA,
organização dualista da tribo indígena (os dois blocos ou campos "Negros Escravos na Amazônia", Anais ão X congresso Brasileiro de Geografia,
m. 1952, p. 178.
dos quilombos de Mato Grosso) com a federação tribal africana (91) SAINT-HILAIRE, VQ11age ãans les Provinces ãe Rio de .Janeiro et
de Mtnas Gerais, I, p. 413.
(86) R. E. BURTON, Explorations of the Highlanàs of the Brazil, II, (92) !d., tbiã., p. 424.
p. 97. (93) SAINT-HILAIRE, V<>11ages aux Sources du Rio S. Francisco, II,
(87) D' ASSIER, Le Brésil Contemporain, p. 80. pp. 253-71.

136 137
espantar o furacão. Evidentemente, tudo isso acontecia sob o
verniz do cristianismo oficial.( 94)
Ao lado dêsses quilombos afastados, existiram por causa
da natureza do país, das montanhas virgens cheias de matas,
l
r
f
Africana tem lugar de destaque, do mesmo modo que um sim-
ples protesto contra o regime de escravidão. O que confirma
êsse modo de ver as coisas é que os quilombos estão transforma-
dos, que a tradição negra os relembrou, e como outrora os me-
nestréis cantaram os feitos de Carlos Magno e de seus bravos
próximas às grandes capitais, pequenos quilombos de negros em suas canções de gesta, da mesma forma Palmares tornou-se
. puros, sem interferência do índio. Foi êsse o casQ, por exemplo,
do quilombo de Manoel Congo, nas matas de Santa Catarina,
perto de Petrópolis, destruído em 1839 por Caxias.( 95 )
Temos poucas informações sôbre o papel que aí desempe-
j
'
um drama popular, mesclado de cantos e danças, subsistindo em
Alagoas até o comêço do século XIX, no folclore dos negros.
Ora, êsses quilombos da massa de côr conservaram o caráter de
um protesto racial:
nhava a religião. Mas, pode-se fazer uma idéia, pela reunião Diverte-te negro
de tôdas as etnias que conhecemos, indiretamente, pelos nomes de
O branco aqui não vem
alguns de seus membros: Manoel Congo, Justino Benguela, An-
Se êle vier
tônio Nagô, Canuto Moçambique, Afonso Angola, Miguel Criou-
O diabo o levará. (96)
lo e Maria Crioula. O denominador comum dessas raças diver-
sas não podia ser senão o catolicismo mais ou menos mesclado Os sociólogos que estudam os contatos de civilizações hete-
com o "fetichismo" nativo. rogêneas são obrigados a classificar os fenômenos nos quadros
Demais, êsse quilombo situa-se numa conjuntura de assassí- conceituais para melhor interpretá-los e para distinguir assim
nios; de mortes, de fugas individuais ou coletivas e de revoltas, os fatos de "contra-aculturação" dos fatos de "sincretismo" que
onde a religião não cessa de intervir ao lado do sofrimento físico seriam o contrário dos primeiros, fatos de acomodação à civili-
e moral. Talvez mesmo a maçonaria tenha dado aos homens de zação dominante. Na realidade, êsses conceitos atingem apenas
côr a idéia de uma revolta geral, posterior ao esmagamento do um certo grau de abstração. O sincretismo é sempre mais ou
quilombo de Santa Catarina por Caxias, visto que uma subleva- menos "contra-aculturativo", e a aculturação mais ou menos
ção foi preparada por uma sociedade secreta dividida em círculos
de 5 membros, que não se conheciam, cada um sendo ligado "sincrética".
somente por um presidente ao chefe supremo, um mulato livre, O estado do escravo fugitivo é mais uma nostalgia da África
ferreiro, Estevão Pimentel (1847). Mas os negros não tinham do que sua reconstituição exata (no caso brasileiro, a reconsti-
ainda a tradição da sociedade maçônica; tinham um patrono tuição principalmente da África banto, com seus grandes reinos),
negro, Klbanda, e tinham mais confiança em sua intervenção visto que as condições geográficas, demográficas, políticas são
sobrenatural que na organização e nas ações políticas. Foi êsse outras, às quais é preciso se adaptar. Sobretudo, não se pode
catolicismo atrevido e semipagão que os perdeu e fêz malograr separar êsse estado da situação social total em que aparece e
a conspiração. Se bem que esta tentativa de revolta fôsse poste- que é de luta de um grupo explorado contra a classe dirigente.
rior ao quilombo, ela nos esclarece e justifica nossa hipótese O quilombo ou o mocambo está sempre em pé de guerra; ora,
precedente de que nessa época o elemento religioso que susten- não se luta adaptando-se ao adversário; a guerra, do mesmo
tava a fé dêsses indivíduos humildes era menos o "fetichismo" modo que a troca pacífica, é um dos processos pelos quais as
ancestral que o cristianismo popular. civilizações se interpenetram ao mesmo tempo que se combatem.
Mas êsses são fenômenos posteriores que datam do Império. Os quilombos são certamente mais a obra de africanos puros que
Para os tempos coloniais, nos cremos autorizados a dizer que os não conseguiram esquecer as realidades de seus países, que dos
quilombos foram um fenômeno de resistência de uma civilização negros crioulos; não impede que já tenham sido atingidos pelo
que não quer morrer; por conseguinte, u,ma luta em que a religião regime de escravidão, pela catequização, mesmo superficial e
(94) SAINT-HILAIRE, Vovages au:z; Provinces de Rio, II, p. 49. externa: o santuário dos Palmares abriga santos católicos; o ne-
(95) Carlos LACERDA MARCOS, O Quilombo de Manoel Congo, Rio,
R.A., 1935, 50 pp. Temos igualmente em mãos um documento inédito (96) A. BRANDAO, Viçosa de Alagoas, pp. 95-8, e "Os Negros na História
enviado por P. de CARVALHO NETO, sôbre um quilombo no Rio, encon- do Alagoas", Estudos Afro-brasileiros, pp. 89-90.
trado nos Arquivos de Mariana.

138 139
gro fugitivo levará aos índios de Mato Grosso, em lugares jamais
tocados pelas missões cristãs, os rudimentos do catolicismo.. .
Todos os fenômenos religiosos africanos da época colo-
nial, ou quase todos, devem ser interpretados através dêsse
clima de resistência cultural; mas a resistência não é um fenô-
meno normal: produz distorções, cria estados patológicos, en- CAPÍTULO IV
durece tanto os espíritos quanto as instituições. Uma certa
interpretação marxista do estado de escravo fugitivo não nos
pareceu possível; a resistência não foi apenas essencialmente 1 O Elemento Religioso da Luta Racial
uma resistência econômica contra um determinado regime de
trabalho, mas a resistência de tôda a civilização africana da
qual a dureza do trabalho servil intensificava a nostalgia. E Vimos o lugair que ocupava a religião nas insurreições
a prova está em que a religião aqui não aparece, como hoje, 1 dos escravos contra o regime servil. Mas nem todos os ho-
': separada do resto da vida social, mas, sim, como no país dos t piens de côr eram escravos. Nas cidades principalmente for-
~ i
~cestrais,. ein estreita interpenetração. É por pieio da concep- mou-se pouco a pouco uma plebe composta de negros liber-
çao marxista da luta de classes, porém, que se pode melhor tos dos mulatos artesãos, milicianos, soldados dos regimentos dos
comI?r:ender a ~~tureza do estad? do escravo fugitivo com a Henriques. . . e, se bem que ela constituísse a camada mais
c~nd1çao de. defmrr a classe em toda a sua complexidade, não baixa da população livre, formava, em relação aos escravos,
so pelo regune de produção, mas pela sua cultura própria. uma camada superior na escala social.
Dêsse ponto de vista, constitui a primeira etapa desta luta a Esta população urbana era upia população marginal. De
segregaçã~ da plebe no monte Aventino. Uma segunda etapa um lado, pelo trabalho livre, aproximava-se dos brancos e, de
deve seguir: a da revolução armada; se os quilombos definem outro, pela côr, era rejeitada da verdadeira sociedade. Devia,
melhor as formas de resistência dos séculos XVII e XVIII as portanto, sofrer por causa de sua condição racial, e, ao menor
revoltas constituem, por sua vez, a forma característica' do incidente, todo o ressentimento recalcado, tôdas as injustiças
século XIX. suportadas em silêncio, todos os ódios acumulados, deviam se
mostrar bruscamente, explodir em insurreições caóticas. Nesse
nôvo tipo de revolta que vamos agora estudar, pode parecer
a priori que a religião não exerça grande função. A simples pas-
sagem do regime servil para a plebe urbana era, no fundo, uma
ascensão, e numa sociedade onde os brancos dominavam, subir
era forçosamente assimilar-se a êles, perder, sob a côr, tudo o que
os antepassados tinham trazido consigo da Africa "bárbara".
Mas, estava a religião totalmente ausente dessas insurreições?
A primeira delas eclodiu em 1798 e é conhecida coµio
"Conspiração dos Alfaiates", porque alguns de seus membros
e seu chefe eram alfaiates, ou ainda "Conspiração dos Búzios",
porque seus membros se reconheciam por essa concha africana
que traziam pendurada num colar.(1) Os conjurados eram
todos pessoas humildes, alfaiates, carpinteiros, pedreiros, obrei-
ros, piulatos ou negros livres e mesmo escravos; destacam-se
somente dêsse fundo escuro um notário, um professor de latim,
(1) G. BARROSO, História Secreta ão Brasil, 1937. V. CORREA, Mata
Galego. Alvares do AMARAL, Besumo Cri:mológico, p. 234 e, principalmente.
A. RUY, A Primeira Bevoluçllo Social Brast!eira.

140 141
/
piradores, que protestam, num documento encontrado com
um tenente de artilharia, talvez sacerdote; êstes foram soltos Luiz Gonzaga das Virgens, contra o fato de p:iulatos ou negros 11
por falta de provas. Os conspiradores de côr não eram igno- "não serem admitidos nas corporações da igreja pública", a
1.

rantes: dos 9 escravos detidos, um só era analfabeto; os mu-


êles somente sendo permitida a formação de suas próprias "ca- í
latos e os negros livres sabiam todos ler; conheciam as idéias
da Revolução através dos oficiais franceses que estavam na pelas particulares feitas com seu próprio dinheiro e à custa de 1
prisão, mas com direito de sair, e com os quais se encontravam muito trabalho" e que não são reconhecidas "da mesma essên-
em ágapes fraternais; o escravo mestiço Luiz Pires tinha um cia" que as confrarias do Santo Sacramento, as ordens segun-
das e terceiras dos Franciscanos, Dominicanos, Beneditinos, 1
livro manusarito para "desiludir as pessoas da religião", sem
dúvida tradução de algum filósofo do século XVIII. Carp:ielitas.(2) Dessa maneira, o protesto religioso não foi um 1;
~ Não obstante a posição do homem de côr, a insurreição protesto religioso propriamente dito: é uma das formas de que
nao é up:ia revolta de raça, mas de classe. É uma revolta social se reveste o protesto racial. A revolução que se preparava não
dos deserdados da vida contra a ordem existente. Os atos de tinha base mística, mas, sim, social e econômica. Nem mesmo
penhora mostram que tinham apenas móveis velhos, roupas pretendia dar às pessoas de côr "o sentimento de espécie", a
usadas e seus instrumentos de trabalho; a liquidação não ul- consciência de raça.
trapassou a quantia irrisória de 36$000; o único que possuía A Conspiração dos Alfaiates malogrou. Porém, o protesto
u~. pouco de dinheiro. líquido, n~o tinha mais de 8$000; alguns racial passou do campo dos quilombolas ao da insurreição po-
viviam mesmo da caridade publica. O que desejavam era um lítica, e continua daí por diante nessa linha. Encontramo-lo
regime de liberdade e de igualdade para todos.: · vinte anos depois, na agitação começada em Pernambuco em
1817 e que devia continuar até 1824, originar a proclamação
. Tomai coragem, povo da Bahia, dizia a proclamação que tinham
afncado nas praças e nas igrejas, o dia feliz de nossa liberdade da "Confederação do Equador", o primeiro grande movip:tento
chega,. o n_iomento em que seremos todos irmãos, em que seremos de independência dos brasileiros contra o regime absolutista do
todos 1gua1s ( ••• ) Império.
A revolução de 1817 foi uma revolução política e não
Mas, na medida em que a classe dos artesãos pobres era social. Proclamou a inviolabilidade da propriedade privada,
:ecrutada entre as pessoas de côr, a reivindicação racial se fazia logo, garantiu proprietários de escravos e brancos nativos contra
Juntamente com a reivindicação social. É por isso que po- "os portuguêses". Todavia, alguns homens de côr, de tendên-
demos perguntar se algum elemento religioso não se introduziu
ep:i seu protesto.
A impressão que se tem, quando se lê os documentos do
processo que pôs fim à trama, é a extrema confusão dos pen-
t cias liberais, aí apareceram como chefes.(3)
Entre êles, o mestiço Pedro da Silva Pedroso que foi exi-
lado para Portugal. Quando voltou, suas idéias não tinham
samentos entre os próprios conjurados, alguns ateus ou no mudado, organizou com os brancos o partido dos "liberais
mínimo, anticlericais, alimentados nas fontes da filosofi~ do' Ilu- puros" que assumiu a liderança da revolta de 1823.(4) Como
1 era muito popular entre as pessoas humildes e os soldados de
minismo, mais ou menos bem digeridas, outros como Manuel
Faustino dos Santos Lyra, com quem se encontrou ao lado de
escritos libe:a!s, uina considerável coleção de oraÇões, profun-
damente religiosa. Entretanto, parece ter sido uma idéia co-
num a todos, a da separação da igreja brasileira da igreja de
l
r
côr, arrastou para o movimento batalhões de mulatos e de
negros. Uma junta popular foi designada, mas bem depressa
se percebeu que os liberais recusavam-se a transformar a luta
política em luta racial; a linha de côr continuou a existir entre
Roma, a fundação de uma igreja nacional independente, que
chamavam de "Amerina". O que a caracterizaria seria o fato l
l
os brancos e os negros, se bep:i que unidos na mesma insur-
(2) Manuscrito do Arquivo da Bahia, Inconfidência de 1789, M. 2, n.<>
20, citado por Afonso RUY, A Primeira Revoluçao Social Brasileira, p. 122.
de estar aberta ao homem de côr e não Unicamente aos brancos. (3) F. DENIS, Brésíl, p. 258. Muniz TAVARES, História da Revoluçao
Por certo, os brasileiros escuros podiam ter suas confrarias: Pernambucana. C!. também Pedro CALMON, História do Brasil na Poesia
do Povo, pp. 96-100,
do Rosário, de São Benedito, porém, essa separação de côres (4) A. de CARVALHO, Estudos Pernambucanos, p. 259. Mário MELO,
Dentro da História, p. 117 e sega. F. P. do AMARAL, Escavações, p, 230.
no catolicismo revoltava a consciência de igualdade dos cons-

142 143
reição; assim, os revolucionálrios brancos tentaram se livrar de Que eu imite Cristóvão,
:mate haitiano imortal
Pedroso, tirando-lhe o título de comandante de tôdas as Fôrças ·Imitai, pois, seu povo,
Armadas. Sua popularidade, contudo, era tal que saiu vencedor ô meu povo soberano! (B)
e foi a Junta que finalmente teve de resignar, não êle. O pro-
testo racial podia, agora, se manifestar livremente. Mas desta vez a revolta não se espalhou. A insurreição
Conta-se que Pedroso gostava de comer cercado de negros degenerou em banditismo, sendo Recife saqueada, restabele-
.e de mulatos, tendo estreitada contra si uma negra, a quem cendo a ordem na cidade os negros do regimento dos Hen-
riques.
.dizia: "Sempre a!Jlei esta côr, é a minha raça".(5) Na cidade,
À medida que avançamos no século XIX, as revoltas to-
abandonada pelos brancos, que tinham fugido ou que se en- Diain um caráter social µiais acentuado. É que o regime im-
contravam entocados em suas casas, a populaça de côr, bêbada perial, permitindo à luta dos partidos a tomada de uma forma
.e seminua, vagueava cantando: legal, não restava outra forma através da qual os infelizes
Épreciso acabar com
pudessem fazer ouvir sua voz. Ora, como a plebe na sua maioria
Os marinheiros e os brancos! era composta de pessoas de côr, veremos o protesto racial se
Só os mestiços e os negros introduzir no protesto social. Isto já é bein evidente na revolta
Devem habitar esta terra! (6) dos "Cabanos'', das "pessoas sem terra" do Ceará lutando
contra os proprietários brancos. Porém, esta revolta não nos
Pouco durou êste breve período de exaltação, chamado o interessa porque aí o elemento dominante é o índio. Em com-
·govêrno dos "Matutos". O exército regular destruiu a rebelião; pensação, a dos "Balaios" (1838), em que domina o africano,
·Os batalhões de negros e mulatos livres abandonaram-na quase
no fim e Pedroso foi feito prisioneiro. • deve nos interessar.(9)
Havia então no Maranhão dois partidos, o dos conserva-
No fundo, não obstante a presença de negros livres, quando dores e o dos liberais, conhecidos como os Bem-te-vis. E:sses
bem se examinam suas estruturas, essas revoltas são mais de apelaram para U!Jl grupo de bandidos, composto de homens de
mulatos que propriamente de negros e explicam-se mais pela côr, que assolavam o sertão, a fim de ajudar na luta contra seus
posição marginal do mestiço, prêso entre duas culturas, ao mes- adversários.
mo tempo repelido pelo branco e pelo escravo, que por um E:ste bando fôra organizado por um negro, Raimundo
sentimento racial bastante pronunciado. A prova disso temos Gomes, alcunhado de "Figura Negra", que, tendo contas a
no fato de que o exército regular foi ajudado em sua luta contra ajustar com a justiça, fugira para o mato e levara junto outros
-os revolucionários pelos senhores de engenho assustados, sendo fugitivos de seu tipo. Entretanto, fôra bem sucedido, principal-
mente em aumentá-lo, apelando para as reivindicações raciais.
que as tropas dêsses senhores eram formadas por seus colonos, Conclamava os escravos a deixarem seu jugo, a revoltarem-se
seus vaqueiros e também por seus escravos.(7) Temos ainda uma contra· seus senhores; assim, transformou pouco a pouco seu
.outra prova no movimento de insubordinação que devia surgir bando de pilhagens numa hoste desejosa de redenção social.
no ano seguinte, ou seja, em 1824, também no Recife. Os Entre os que se uniram a Gomes, encontrava-se uin negro cha-
espíritos estavam bastante superexcitados para que a calma mado "Balaio", porque fazia cêstos e que, dizia-se, ofertara a
pudesse resultar em seguida. A notícia da insurreição dos sua cabana para hospedar o oficial encarregado de perseguir os
negros no Haiti, assim que foi conhecida no Brasil, fêz com que o bandidos, e fôra recompensado por êsse seu gesto aquela noite
regimento dos mulatos (sempre êles), CO!Jlandados por Emi- com a violação de suas duas filhas pelo dito oficial. Bem de-
liano Mandurucci, se sublevasse ao canto do seguinte hino: pressa, "Balaio" se tomou, por sua crueldade, por suas faça-
nhas, o verdadeiro chefe dêsse exército que coµJpreendia
(5) Frel CANECA, Obras Políticas, p. 159. •
(6) "Marlnhelros" era o têrmo pejorativo que designava os portugueses (8) F. P. do AMARAL, op. cit., p. 427.
.e "Calados", aquêles que se embranquecem com cal, têrmo pejorativo que (9) Virlato CORRE.A, A Balaiada, se bem que em forma romanceada, e
·designava os brancos. José GONÇALVES DE MAGALHAES, "Memória Histórica- e Documentada da
(7) G. FREYRE, Região e Tradição, pp. 189-90. Revolução da Província de Mara-nhão", R.I.H.G.B., X, 1848, pp. 236-362.

.144 145
negros, também mulatos, como o "Ruivo", caboclos como "Ca- sacrar alguns e que foi preparada por uma campanha na im-
qui" e brancos, e que chegou a reunir até 6 000 homens. prensa feita por um mulato, Figueiredo, socialista e adepto de
Os Bem-te-vis chamaram à Caxias o "Balaio" para que Fourier, a favor do desmembramento dos latifúndios e da re-
aí os desembaraçasse de seus adversários. Mas, se êste aceitou distribuição de terras; (11) a dos guabirus, em 1848, da mesma
não foi para tomar partido numa disputa de brancos e sim para forma dirigida contra a imigração européia. Na realidade, é
ganhar duplamente, como bandido, pilhando uma cidade que um fato comprovado que em todo lugar em que o imigrante
se lhe oferecia e como homem de côr, vingando-se dos brancos. branco se introduz acaba por ultrapassai' o artesão de côr,
O prefeito de Caxias defendeu sua cidade, mas esta foi fàcil- mulato ou negro livre, que vive plàcidamente de seu pequeno
mente tomada e entregue à pilhagem. O que nos interessa, to- ofício. A luta dos guabirus é a luta dos µiestiços ou dos negros
davia não é êste elemento de banditismo, se bem que seja possuídos pela fome contra os "ratos" brancos que vêm tomar-
essen~ial, mas o protesto racial que aí se fêz presente. O Balaio -lhes seu ganha-pão.(12 )
tomava em cada cidade que ocupava uma mulher branca e, Houve também em Minas uma insurreição, em 1820,
quando ela não mais lhe agradava, mandava chamar um padre menos conhecida, mas que apresenta um caráter assaz especial:
para casá-la com um de seus negros. ~Houve ,ce.nas de. s.elva- foi uma insurreição legal. Quando Portugal adotou uµia Cons-
geria que não se podem entender senao por od1os raciais de tituição democrática,
há muito nutridos no silêncio, como a de abrir o ventre de um
homem e cosê-lo novamente com um leitão dentro (e Han- os prêtos das lavagens de ouro de Guaracaba (Cuaraciaba), Santa
dehnann nos dá a verdadeira razão desta explosão de ódio Rita, Cantagalo e de Saraguá (Sabará?), auxiliados por um fazen-
racial quando nos diz que o ponto de partida da "Balaiada" deiro muito rico, também prêto, nas margens do rio das Mortes,
foi uma lei que modificava as atribuições de certas autoridades reunidos em o Fanado, fizeram proclamar a Constituição em tôdas
as margens do Abaeté ·em Tapuias, e Araguaia, unindo-se a êstes
judiciárias, correndo o boato em todo o sertão de que os parte das hordas selvagens de guerreiros, que habitam nas suas
brancos queriam "escravizar" de nôvo tôdas as pessoas de côr ribeiras. Não obstante houve forte combate entre os prêtos do
tornadas livres). Mas, o banditismo leva finalmente vantagem Arraial de S. Bárbara e os habitantes de Paraibuna, onde os prêtos
sôbre êste ódio do negro outrora maltratado: os brancos têm são civilizados. O fazendeiro negro Argoins reuniu um exército de
21 000 negros, a que se agregaram dois regimentos de Cavalaria.
a vida poupada quando oferecem um grande resgaste. Se o Matavam sem piedade os que, sendo prêtos, não os seguiam; possuíam
elemento racial fôra preponderante, o Balaio não teria esque- bandeiras e ostentavam distintivos.
cido que existia na mesma época, perto do litoral! entre os Uma proclamação foi dirigida ao povo: "Em Portugal proclamou-se
rios Tutuoi e Priá, na fazenda Tocangura, um quilombo de a Constituição, que nos iguala aos Brancos: esta mesma Cons-
3 000 negros, cujo chefe Gomes se intitulava "o imperad?r do tituição jurou-se aqui no Brasil ( ... ) Morte aos que nos oprimirão.
Brasil". Ora, êle não pensou sequer um momento ~m. ]Untar Prêtos miseráveis! Vêde a vossa escravidão: já sois livres. No
Campo da honra derramai a última gôta de Sangue pela Cons-
essas fôrças às suas. O ·conjunto de escravos na ~rov.mc1a per- tituição que fizeram os nossos irmãos "de Portugal!"
maneceu tranqüilo, continuou seu trabalho na fidelidade aos
senhores. (10) Encontramos aqui a mesma aspiração de igualdade com
Se olharmos para trás, seremos levados a notar, todavia, que deparamos no Recife e na Bahia. Contudo, a repressão
que, através das lutas políticas e econômicas, um~ gr3.!1de tr.ans- não tardou a chegar: proprietários de escravos, e mesmo freis
formação se operou. O recrutamento revoluc1?0ári? vai se e bispos, tomaram armas e destruiraµi o movimento, afogando-o
processando sempre nas camadas cada vez mais baixas; dos num mar de sangue.(18)
melhores brancos, passou sucessivamente aos mulatos, depois aos O elemento religioso ou cultural, que desempenhou papel
artesãos livres, depois aos soldados e finalmente à massa anal- tão importante na formação dos quilombos, parece ter desapa-
fabeta. As últimas sublevações em que aparece o homem de
côr são dêsse tipo, como a revolta dos Praieiros em 1848, em <H > Amaro QUINTAL, A Revolução Praietra, p. 39 e, do mesmo autor,
O Sentido Social da Revolução Praietra, p. 34.
que quiseram expulsar os portuguêses, 9hegando mesmo a mas- (12) B. José de SOUZA, Dicionário da Terra e da Gente do Brasil, pp,
204-5.
( lo) Calo PRADO, Evolução Política, cap. 12. (13) J. DORNAS Filho, A Escravidão, pp. 120-22, segunda os documentos
publicados na Revista do Arquivo Mineiro, V, p. 158.

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recido dêste conjunto nôvo de revoltas, onde o econômico é aqui, é em tôrno da religião que se articula a revolta dos negros
mais essencial que a mística, onde a reivindicação racial está contra os brancos.(14)
essencialmente unida à reivindicação social. Em 28 de fevereiro de 1813, 600 haussas das fazendas de
Todavia, houve ao lado dessas insurreições, outras revoltas, Manuel Ignacio de Cunha Menezes, J. Vaz de Carvalho e de
mais de escravos que de mulatos ou de negros livres, aos quais outras vizinhas queimaram suas senzalas, marcharam sôbre a
se uniram escravos fugitivos e quilombolas apenas por acaso. povoação de Itapoã onde se reuniram aos negros do lugar, mas.,.
Passaremos a examiná-las e veremos que o elemento religioso sacrarani os brancos que lhes resistiam, sendo porém final-
vai retomar, ao contrário, tôda sua importância. mente dizimados pela tropa. O elemento místico não faltou
Essas sublevações foram obra principalmente dos negros aqui também, senão na revolta, pelo menos no movimento dos
muçulmanos. A primeira, que foi impedida antes mesmo que espíritos que a preparou. Os negros tinham o direito tradicio-
estourasse, ocorreu em 28 de maio de 1807. Os haussas ti- nal de associação para celebrar suas festas religiosas. Reu-
nham designado em cada um dos bairros da cidade de Salva- niam-se, pois, todos os domingos, sob a presidência de um
dor um capitão para comandá-los e um embaixador encarre- chefe escolhido, para queimar na praça de Salvador efígies de
gado de efetuar a ligação entre os escravos. O mínimo que brancos. Não se dava atenção a essas reuniões. Todavia, po-
ambicionavam era massacrar tôda a população branca, segundo der-se-ia aí discernir um processo banal de magia imitativa,
alguns; conforme outros, pôr fogo na capela de Nazaré e apro- uma espécie de feitiço preparatório, o ritual e antes da entrada
veitarem-se da amotinação que se seguiria, para apoderar-se em campo para destruir, por antecipação, o poder dos se-
de algumas embarcações e voltar para a Mrica. Contudo, nhores inimigos.
foram traídos, provàvelmente por um negro de outra nação; Eni 1826, ainda mais duas tentativas. Em abril, uma
dez dos principais capitães foram presos antes de terem tentativa abortada, mas onde era fácil discernir a existência,
executado seu plano, e - o que principalmente nos interessa na base, do fator religioso. Foi feito prisioneiro, incapaz de
aqui - descobriu-se na casa de um dêles, além de armas, fugir por causa de seus ferimentos, um rei negro, coroado de
"certas composições supersticiosas e de seu uso a que chama- um capuz adornado de fitas, o corpo envôlto por um manto
vam mandingas, com que se supõem invulneráveis e ao abrigo verde com galões de ouro e tendo nas mãos uma bandeira ver-
de qualquer dor ou ofensa". melha. A rainha que o acompanhava foi morta iil}ediatamente.
Em 1809, uma segunda sublevação. Desta vez os haussas Em dezembro, alguns indivíduos decidem partir à pro-
aliam-se aos nagôs; os escravos urbanos e rurais procuraram cura de negros fugitivos que tinham formado um quilombo
refúgio na mata, de onde saíam para roubar, incendiar, assas- entre a estrada de Cabula e o baixo Urubu. O encontro foi
sinar. Não puderam resistir às Fôrças Militares confira êles sangrento, e aprisionou-se uma negra que afirmou que os
enviadas. Mas a sindicância que se seguiu devia revelar a exis- escravos tinhani projetado uma insurreição geral na Bahia para
tência de uma sociedade secreta dêsses escravos, Obgoni ou as vésperas do Natal e parece que o que dizia era verdade.
Ahogbo. Ora, as Ogboni e as Oro, cujos chefes são os Ologbo, Em todo caso, o que devemos aqui ainda considerar é que o
enquanto Ahogbo é uma de suas divindades, são precisamente centro do quilombo e o lugar de inspiração da revolta proje-
sociedades secretas africanas que, como se vê por êsse teste- tada era uma casa de candomblé, isto é, um templo da reli-
munho, foram reconstituídas no Brasil pelos descendentes dos gião fetichista afro-brasileira.
africanos. Por certo, os africanistas insistiram sobretudo no Duas pequenas revoltas locais irrompem ainda em 1827
caráter político dessas sociedades, que estariam encarregadas de e em 1828. Assini, chegamos à mais grave das insurreições e
perseguir e punir os criminosos; contudo, Bascom nota com de tôdas a mais conhecida, a de 1835.
justa razão que esta atividade política é secundária (e a prova
(14) SObre essas sociedades secretas na A!rica e sua verdadeira natureza,
está em que as Ogboni não têm voz nos assuntos da cidade), ver R. P. BAUDIN, Fétichisme et Fétieheurs, p. 67. FROBENIUS, Mythologie
que essas sociedades, que têm a mesma natureza das confrarias ãe l' Atlantiãe, p. 91 e segs. PARRINDER, La Religton en Afrique Octãental,
p. 155 e segs., e, principalmente, W. R. BASCOM, The soctological Role of the
dos deuses, continuam com o culto da Terra-Mãe (culto mais Yoruba Cult Group, p. 65 e segs., e F. M. HERSKOVITS, Dahomey, II, pp. 178-
-79. SObre o têrmo Ahogbo, ver DENETT, Nigerian Stuãies, cap. m, e TALBOT,
antigo que o dos orixás e por êste encoberto). Assim, ainda Peoples ot Southern Ntgerla, D, p. 91.

148 149
O número de revoltosos não ultrapassou certamente a Posso desde já asseverar a V. Exa., escrevia êle ao presidente
cifra de l 500, aí compreendidos negros fetichistas que se da província, que a insurreição estava tramada de muito tempo, 1·
com um segrêdo inviolável e segundo um plano superior ao que
uniram depois aos muçulmanos. A insurreição tinha sido bem devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão
preparada e devia irromper na noite de 24 a 25 de janeiro, em quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos
que tôda a população de Salvador vai à Igreja do Bomfim, dei- que se assemelham ao Árabe, usado entre os ussás, que figuram
xando a cidade quase deserta. A cidade seria dividida e!ll 5 ter hoje combinado com os nagô ( ... ) Existiam mestres que
grupos, que deviam atacar em ordem Sl.lcessiva, lançando, dessa davam lições e tratavam de organizar a insurreição na qual entra-
vam muitos forros africanos e até negros ricos. Têm sido encontrados
forma, a confusão entre os soldados, até que estando a caserna muitos livros, alguns dos quais dizem serem preceitos religiosos
da cavalaria tomada, os negros subiriam até a Igreja do Bom- tirados de mistura de seitas, principalmente do Alcorão ( ... ) O
fim para aí massacrar ·seus senhores· brancos e, diz-se, elegerem certo é que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes
não se sabe que rainha misteriosa. persuadiram os miseráveis que certos papéis os livrariam da morte;
isto porque encontrou-se nos corpos mortos grande porção dos ditos
Mas, ao anoitecer do dia 24, o projeto é denunciado por bem como nas vestimentas ricas e esquisitas que provàvelmente
uina nagô liberta. Precauções são tomadas, a sede dos revol- perteciam aos chefes e foram achadas em algumas buscas.
tosos, uma casa próxima da subida da praça, é cercada, porém
os africanos que aí se haviam refugiado, escapam repentina- O estudo de autos do processo levou primeiro Nina Ro-
mente, matando alguns policiais e, assim, a rebelião começa. drigues, depois ~tienne Brasil e Arthur Ramos a defenderein
Não cabe a nós aqui contar todos os detalhes desta noite san- a tese do caráter essencial!llente místico da sublevação de
grenta. ·De manhãzinha, estava acabada, os conjurados mortos, 1835.
prisioneiros ou refugiados na floresta. As "nações" de negros No comêço, os chefes do movimento são, na maioria, sa-
presos revel~ a parte preponderante de muçulmanos no movi- cerdotes ou mestres-escola, porém sabe-se que o ensino mu-
mento, como dissemos, estando, todavia, os "fetichistas" junto çulmano tem caráter religioso. Pedro Luna era Alui:ná ou
a êles. De fato, contavam-se entre êles: 165 nagôs, 3 grumas, Alufá, isto é, marabu, e assim era também Luís "Sanim na sua
6 gêges, 21 haussas, 5 bomos, 6 tapas, 3 cabindas, 4 congoleses, nação Tapa". O nagô Pacífico, Licutan entre os seus, era pelos
1 camerunês, 1 barba, 3 minas, 2 calabares, 1 jabu, 1 benin, 1 conjurados chamado de o Sultão. Recebia, na prisão, segundo
mundula e também uma mulata e 1 cabra, ao todo, 220 homens o depoimento do carcereiro, dias e noites, numerosas visitas de
e 14 mulheres. negros e negras "que se ajoelhavam com muito respeito para
Esta insurreição de 1835 devia ser a última. Os objetos lhe tomar a bênção". O lugar que ocupava no coração de
que foram apreendidos entre os conjurados, o processo que se todos os muçulmanos da Bahia pode ser avaliado pela tentativa,
seguiu, os interrogatórios de prisioneiros, permitem-nos melhor que malogrou, de um assalto à prisão para libertá-lo e pelo
entender esta revolta em comparação com as anteriores e poder esfôrço feito para conseguir a soma necessária para lhe con-
resolver o problema de saber se essas revoltas de negros têm ceder a liberdade. O carcereiro conta também que um nagô,
o caráter de insurreição econômica e social, como a Cabanada que com êle falava através das grades de sua cela, dizia-lhe
e a Sabinada, ou se, pelo contrário, tomam o aspecto de ver- que não se afligisse, pois, "quando acabasse o jejum, êles ha-
dadeiras guerras religiosas.(15) viam de ir lá para que êle saísse liberto de uma vez". Nina
Que .a religião desempenhou papel preponderante nesta Rodrigues, que analisa êsse documento, acrescenta:
revolta, desde o início, foi tão evidente que o relatório do chefe
de polícia o pressentiu desde 1835: A alusão à insurreição e à sua dependência da medida propi-
ciatória dos jejuns maometanos ou malês revela-se aqui em plena
(15) SObre essas revoltas, ver Alvares do AMARAL, Resumo Cronológico, evidência.
p. 147. Bralll do AMARAL, História da Bah.fa., pp. 119-21. E. I. BRASll.,
"Os Malês'', B.I.H.G.B., LXXIl, pp. 67-126. HANDELMANN, História do
Brasil, p. 1&13. Nina. RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, pp. 75-98.
Aderbal JUREMA, Insurreições Negras no Brasil, pp. 17-32, e a resposta
O alufá Dandara tinha uma escola na cidade baixa:
de A. RAMOS à A. JUREMA, "Levantes de Negros Escravos no Brasll", Boletim
da Sociedade Luso-africana do .Rio de Janeiro, n.0 24, dez., 1938, pp. 15-ltT. Era mestre em sua terra, declarou êle, e aqui tem ensinado
Me.noel QUERINO, Costumes Africanos, pp. 121-24. L. VIANNA FllhO, o os rapazes, mas não é para mal.
Negro da Bahia, p. 108 e segs.

150 151
Na sua tenda, encontraram-se uma túnica guerreira e um Que o nono é uma espécie de folhinha, em que os Malês sabem
o tempo dos jejuns para matarem depois carneiros.
rosário prêto sem cruz, tábuas e papéis escritos em caracteres Apresentando-se-lhes duas tábuas, uma escrita e outra sem le-
árabes. Havia, também, a escola de Manuel Calafate, Aprígio tras, êle disse que a branca já tinha sido lavada, como êle antes indi-
e Conrado. A polícia aí apreendeu entre outras coisas 6 sa- cara, para a água ser bebida como mandinga depois de ser escrita
quinhos de couro que serviam de amuletos. vinte vêzes, e que a outra, a escrita era a segunda lição de quem
aprende a escrever. (16)
Na casa dêsses chefes reuniam-se os conjurados, sob o
pretexto de festas ou de danças, para preparar a revolta. E Um outro fato significativo é que a roupa da revolta não
esta preparação se fazia sob o signo da propaganda muçul- é senão a mesma vestimenta litúrgica, gabão branco com cinto
mana. As testemunhas chamadas a juízo estão de acôrdo quanto vermelho, camisa também vermelha, barrete azul e turbante
a êsse ponto. Gaspar da Silva Cunha afirma que os manus- branco, calçados brancos e também as proteções mágicas, orna-
critos que se lhe mostram mentos de coral, anéis brancos, amuletos em volta do pescoço,
em uma palavra, todo o simbolismo das côres, das letras e dos
são de reza, pois andavam a persegui-lo para que os aprenda e deixe números pôsto a serviço da luta e em vista da obtenção da
de ouvir missa como costumava.
vitória. Há aí, vê-se, tôda uma série de dados que. permitem
Marcelina diz afirmar que a revolta dos nagôs e dos haussas foi, na Bahia
do início do século XIX, uma verdadeira guerra santa dos mu-
que os papéis achados são de reza dos malês, escritos e feitos pelos çulmanos contra os cristãos.
mestres que andam ensinando. :l!:stes mestres são de nação haussa, Contudo, êsse ponto de vista foi criticado, recentemente,
porque os nagôs não sabem e são convocados para aprender por por uµi historiador das rebeliões de escravos na América,
aquêles e também por alguns de nação Tapa ( ... ) :l!:les a abor- Aderbal Jurema. A distinção que fizemos entre os movimentos
reciam, dizendo que ela ia à missa adorar um pedaço de p·au, que populares e nativistas de um lado, e as insurreições negras de
está no altar, porque as imagens não têm valor religioso.
outro, não lhe parece justa e êle vê, tanto numas como noutras, a
Os conjurados só se falavam em língua ioruba ou nagô, expressão, antes de tudo, da luta de classes sob sua forma
chamando-se por seus verdadeiros nomes e não pelos nomes colonial. Não nega a existência de um elemento religioso, mas,
cristãos que lhes tinham sido atribuídos: Ojô, Ová, Namosin, retomando em sua causa, a célebre distinção marxista, a mística
Sanim, Sule, Dadá, Aliará, Edum, etc. não é para êle senão mera superestrutura ideológica, sendo que
Os manuscritos foram conservados. Alguns são planos o único fator causal é a infra-estrutura econômica. Tudo o
de rebeliões, escritos em língua árabe. Porém, muitos são do- que a religião faz é colorir de um certo matiz a reivindicação
cumentos religiosos. O escravo Albino, que os decifrou para social de uma classe oprimida; é também agregar práticas co-
laterais, sem nenhuma influência sôbre o moviµiento de revolta
a justiça, afirmou: em si, como o uso de amuletos; dessa maneira, ainda hoje o
que o segundo lhe consta já ter sido escrito, há mais de ano bandido do Nordeste, o cangaceiro, usa "fechar o corpo'', para
e meio, para o fim também de guardar o corpo das ofensas de estar ao abrigo das balas da polícia. Ninguém pensa, no
qualquer arma, e contém orações que, depois de passadas nas tábuas, e;
1
entanto, em dar a seu banditismo raízes místicas. Enfiµi, a
são lavadas para se beber a água que livra das armas; 1 religião pode servir de meio, em vista de um fim econômico,
que o quinto, que foi achado em um breve com terra embrulhada, ser usada como tática revolucionária, sendo o misticismo sem-
são como que caminhos riscados e cêrco feito, dizendo que por todo pre um potencial de fôrça explosiva que pode agir como instru-
o caminho que passassem, ou ainda sendo cercados, não lhes há de
acontecer coisa alguma, e por isso tinha a dita terra simbolizado o mento de propaganda ou de revolta. Porém, o objetivo final
terreno do dito caminho; é a expropriação das terras dos brancos e sua posse pelos
que o sexto é uma espécie de proclamação para ajuntar gente, (16) O costume de copiar verslculos do Alcorão em tábuas, que são
com sinais ou assinaturas de vários e assinado por um nome Mala- lavadas com água que é bebida ou com a qual um individuo se lava, para
-Abubakar, afirmando que não há de acontecer coisa alguma no atrair sorte, continua ainda na Afrlca muçulmana. Ver, por exemplo, D. W.
AMES,"The Selectlon of Mates, Courtship and Marrlage among the Wolof",
caminho, por que hão de passar livremente; Bul. IFAN, xvm. 1-2, 1956, p. 160.

152 153
nagôs: a negra Edum, a quem Sabina pediu para ver seu amante estrutura e sim o conjunto de sua vida no Brasil como um
numa reunião de conjurados, lhe respondeu: ":ale só sairá todo, onde o protesto econômico e a reivindicação cultural
quando fôr a hora de tomar a terra". Assim, as superestru- formam uma unidade indissolúvel. Se a isto acrescentarmos
turas muçulmanas e católicas não fazem senão refletir o anta- que tôda civilização em geral tem seu centro de interêsse e
gonismo subjacente dos interêsses materiais de escravos e de que êste centro de interêsse na civilização muçulmana é, como
senhores.(1 7) todos sabem, o fanatismo religioso, então a revolta de 1835
:a evidente que essas insurreições exprimem sentimentos nos aparecerá como uma verdadeira guerra, dirigida contra os
variados e complexos. Há um elemento racial: os haussas e criStãos em todos os planos, quer econôp:iico quer religioso,
os nagôs, que na Africa eram senhores de escravos e de terras, porque a economia dos brancos era uma econoi:nia de cristãos.
não podiam aceitar para si próprios o estigma da escravidão. Não devemos esquecer que havia entre os conspiradores
:asses povos corajosos e aguerridos não podiam se submeter, o negros livres e alguns negros ricos. A ascensão social era pois
elemento étnico sendo ao mesmo tempo um elemento religioso, possível para muitos dêles. Mas, como diz Alain, se é possível
isso porque a herança social de poderio e de militarisp:io que :~ transigir com os interêsses porque têm sempre alguma coisa
receberam era uma herança muçulmana acumulada pelas guer- de racional, é impossível transigir com as paixões. E o fana-
ras seculares contra os negros fetichistas, constituindo, con- tismo não deixou de arder no fundo dêsses corações indoi:ná-
seqüentemente, cruzadas religiosas.(18) :a claro que há também veis. A religião não colore a revolta social, está mesmo na
um elemento econômico. Mas não é a escravidão em si mesma essência dessa revolta.
que essas !l'evoltas queriam destruir e sim, unicamente, a escra-
vidão por êsses cães cristãos dos filhos de Alá, e se queriam
apoderar-se das terras não era para as trabalhar mas para nelas
fazerem ·trabalhar os negros crioulos e os mulatos. :a o ódio
do muçulmano que faz surgir a revolta e não up:i. sentimento r
de consciência de classe por parte dos deserdados. O êrro de
Aderbal Jurema está em ter dissociado a cultura em seus ele-
mentos para procurar o fator causal entre essas partes culturais
ou sociais dessa maneira desagregadas. :a bem verdade que o
próprio regime de escravidão tendeu, pelo contato entre as di-
versas tribos africanas obrigadas a trabalharem juntas e pela
l
ruptura cdm o habitat original, a dissociar o cultural, e pelo
sincretismo, a fazê-lo perder sua unidade primitiva. Contudo,
vimos, os muçulmanos continuavam a ter suas escolas e seus
lugares de oração, a tradição mantendo-se viva entre êles. De
mais a mais, de acôrdo com o testemunho dos que estudaram
seus últimos descendentes, pouco freqüentavam os outros escra-
vos, os negros "fetichistas" ou cristãos viviam isolados e arrogan-
tes. ( 19) Daí, nã() devermos considerar uma infra e uma super- 1
(17) Aderbal JUREMA, Insurretções Negras no Brasil, Recife, s. d. Um
ponto de vista análogo defendido por Djaclr MENEZES, O Outro Nordeste,
Rio, 1937, e por João RIBEIRO, O Elemento Negro, pp. 33-8.
(18) A. RAMOS, Levantes d.e Escravos, op. cit., pp. 15-7.
(19) James WETHEREL, Brasil, p. 138, nota o caráter intratável e o
espirlto constante de revolta do negro. maometano no Brasll e acentua
que, quando êste matai seu senhor, é sempre possuldo por fé religiosa. R.
Avé-LALLEMANT, Betse Dur<Jh Nord-brasiHen, p. 47, nota da mesma forma
que não se pode separar entre os minas muçulmanos, que formam como
que uma "maçonaria" poderosa, a resistência polltica e social da resistência
1'ellglosa, ao cristianismo que se lhes quer impor.

1.54 155
CAPÍTULO V

Os Dois Catolicismos

A resistência da civilização e da religião africanas não


pôde todavia impedir a ação do meio católico ambiente e essa
civilização ou essa religião não puderam subsistir senão se sin-
cretizando mais ou menos prof1Indamente com o cristianismo.
Sàmente o catolicismo do escravo da época colonial apre-
senta particularidádes interessantes que nos reconduiem uma
outra vez ao nosso problema central, o das relações entre as
estruturas sociais e o universo dos valôres místicos. Por conse-
guinte, é preciso nos determos nesse ponto por um momento
antes de voltar às religiões africanas.
"f Definimos num capítulo anterior os caracteres do catoli-
cisµio brasileiro em oposição aos do catolicismo português; a
transição da catedral ou da igreja provincial à capela do enge-
nho, da religião do burgo à religião doméstica com seus santos
protetores, patronos do senhor, ou dos diversos atos de sua
vida familiar (São José balançando o berço do nenê, Sta. Ana
fazendo-o dormir no seio da nutriz, São Bento protegendo-o
contra as picadas de grandes formigas venenosas •.. ) .(1)
Que lugar ocupa o escravo nesta religião patriarcal?
Sem dúvida, há uma grande diferença entre a escravidão
antiga, onde o indivíduo é integrado por meio de uina ceri-
mônia religiosa na família de seu senhor, e a escravidão colo-
nial, onde o escravo representa um valor econômico. Entre-
tanto, a similaridade do tipo familiar, o patriarcalismo, traz
algumas nuanças a esta oposição fundamental, aproxima o escra-
vo brasileiro do escravo grego ou romano; porque êle também,
numa ~rta medida, está integrado à família e, por conseguinte, a
seu culto. Mas a solidariedade doméstica não impede a diferen-
ciação racial e social, donde a separação do catolicismo do branco
e do negro.
(1) Gilberto FREYRE, Casa-grande e Sen~aza, trad. fr., pp. 394-95.

157
santos, vão buscar de comer nos matos, por seus senhores não lhos
Encontramos fenômenos análogos em todo lugar onde se dar. Pelo que nos parece que seria de muito serviço de Nosso
encontrem raças diferentes. Nos Estados Unidos, o puritano Senhor alcançar do Papa que estendesse o privilégio que temos,
protestante, sempre ávido de propagar sua fé, catequizou o de dizer duas missas ao dia em diversos lugares, a dizerem-se no
negro, porém, o culto dês te era separado do culto dos brancos: mesmo lugar, em diversos tempos. Uma, logo pela manhã, aos
havia duas cerimônias diferentes e, em geral, com sermões escravos; e outra aos portuguêses, como se costuma. E se êste
tatnbém diferentes; a segregação se estendeu a ponto de privilégio se estendesse aos clérigos seculares, para o mesmo efeito,
seria grande bem, porque tôdas estas 15 ou 20 mil almas parece
determinar o aparecimento de pregadores de côr, encarregados que não têm mais que o nome de cristãos (1584). (5)
da edificação de seus irmãos de raça. Daí, a existência de dois
protestantismos onde se exprimem as diversidades do tempe- Se, dêsse ponto de vista, o Brasil se aproximava dos
ramento étnico, o protestantismo mais afetivo do negro e o Estados Unidos e tendia à separação dos dois catolicismos,
protestantismo mais racional do branco.(2 ) No México, a igreja não chegava, contudo, a realizá-la completamente, porque
toma aspecto típico, a capela real sendo construída ao lado da impedia à consciência de raça exprimir-se através da expe-
igreja ou, mais comumente ainda, a capela principal sendo riência mística, já que o catolicismo do negro era controlado
privada de uma de suas paredes laterais, de modo que dava por um líder branco. É o aparecimento do pregador de côr
simultâneamente para a nave da igreja e para um pátio fechado
que possibilitou nos Estados Unidos a segregação de dois tipos
onde os índios permaneciam durante o sacrifício da missa.
Dessa maneira, conciliavam-se a catolicidade da Igreja e a bem diferentes de religião, e a prova está em que após a
separação dos brancos, aos quais a nave estava reservada, dos guerra civil, são os próprios negros que reclamam a separação
indígenas conquistados, encerrados no pátio.(3 ) No Brasil, a das Igrejas, que pedem a constituição de seitas de negros. Sen-
capela se dividia comumente também em duas partes separadas, tiam que assim poderiam mais fàcilmente exprimir suas rei-
o pórtico e a nave. À família do branco se reservavam os vindicações raciais. No Brasil, pelo contrário, o negro, mesmo
bancos da nave, enquanto os escravos permaneciam ·fora, o livre, não podia pretender entrar nas ordens eclesiásticas.
assistindo à missa do pórtico através das portas abertas.. Por Quando se via um padre de côr, êste provinha ou de Cabo
conseguinte, o africano estava ao mesmo tempo unido e sepa- Verde ou de Angola.( 6) Se o mulato, em geral claro, pôde isso
conseguir posteriormente,(7) foi porque a mentalidade a seu res- 1
rado, participava da religião de seu amo, embora dela parti-
cipando como um ser inferior; a arquitetura se modelava na peito era diferente no Brasil, em relação àquela dos Estados
hierarquia das côres.(4) Quando essa solução não era adotada, Unidos, em que uma só gôta de sangue negro basta para clas-
empregava-se u~a solução análoga à dos Estados Unidos: o sificar um homem como negro; o mulato brasileiro, como já
capelão rezava duas missas em horas diferentes, logo de manhã vimos, podia se inserir fàcilmente numa sociedade mais ames-
para os negros e, mais tarde, para a família do senhor branco: tiçada, e se considerava, êle mesmo, mais como um membro
do grupo branco que do grupo africano. Nos Estados Unidos,
Nas fazendas e engenhos há muitos escravos que nunca ouvem
missa, escreve o Visitador Cristóvão de Gouveia ao prior dos J e- (5) Seraflm LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, II, p, 355.
suítas, ainda que tenham nelas sacerdotes que as digam, por serem (6) TOLLENARE, Notas Dominicaes, p. 159.
(7) G. F. MATHISON, Narrativa of a Visit to Braztz, p. 159. Mas êsse
as igrejas pequenas, e os escravos andam nus; e, pelo mau cheiro, sacerdote mulato não oficiava senão para a sua classe; ver: R. WALSH: "Os
não os deixam os seus senhores e portuguêses estarem nem dentro negros oficiam nas igrejas tal como os brancos ( ... ) No Brasil pode-se
nem fora das igrejas. Além disso, logo em amanhecendo, nos dias ver um negro como ministro oficiante, os brancos recebendo o sacramento
de suas mãos", Notices o/ Brazil, p. 365. Entretanto, Vlctor JACQUEMONT,
(2) H. POWDEMAKER, A/ter Freedom. A Cultural Study in the Deep que vlsltou o Brasil em 1828, nota que os negros preferem os sacerdotes
so:u,th, princlpalmente pp. 221-96. Bertam WILBUR DOYLE, The Etiquette mulatos aos curas brancos (A. de TAUNAY, Rio de Janeiro de Antanho,
o/ Race Relaticms in the South, princlpalmente o cap. IV. Publicações da p. 513). Na época colonlal, era preclso autorização da Igreja, allás, para
The Atlante Unlverslty, VIII. The Negro Church, 1893. Caster GODWIN que o mulato pudesse entrar nas ordens; esta autorização era outorgada
WOODSON, The History oi the Negro Church, Washlngton, 1921. Jerome pelo Papa (C11;lo PRADO, Formação do Brasil Contempor/ineo, p. 278). Sob
DOWD, The Negro tn Amencan Life, cap. 25, etc. regi.me monárquico, pelo contrário, o mulato clara, quase branco, pôde
(3) Louls GILLET, "L'Art dana l'Amérique Latlne", in A. MICHEL, His- alcançar os mals altos graus da hlerarquia ecleslástlca, tornar-se arceblspo
toire de Z' Art, t. VIII. como D. Silvelra Pimenta, bispo como D. Prudêncio Gomes e D. Modesto
(4) Luiz SAIA, "O Alpendre nas Capelas Brasilelras", Revista do SeTViço Vlelra (Nelson de SENNA, Africanos no Brasil, pp. 45-6),
do Patrimônio Histórico, III, 1939, pp, 235-49.

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o mulato é freqüentemente o líder de homens de côr;( 8 ) êste antes do trabalho e na tarde depois dêle, mo!Jlentos em que o
fato não se verifica, senão raramente, no Brasil. O que resultou negro se achava em contato direto com seus senhores. Na
foi que a liderança religiosa aqui pertencia ao branco e que o parte da manhã antes da distribuição das tarefas e antes de
catolicismo negro se justapunha ao dos seus senhores, numa partiT, os negros cumprimentavam a autoridade com a mão,
esfera mais baixa da hierarquia, um pouco desdenhado e julgado dizendo: "Louvado seja Jesus Cristo".- O senhor respondia
inferior, mas ainda assim de natureza similar. "Para sempre". A tarde, cada um beijava a mão do senhor, di-
Esta identidade de natureza ao lado da desigualdade de zendo: "Pai, dai-me tua bênção" ou, ainda: "Os n.omes de
grau se manifestou muito bem em tôda a vida da fa!Jlília pa- Jesus e Maria sejam louvados".(12) Alguns cumprimentavam
triarcal. O catolicismo com seus ritos ritmava o dia como ajoelhando-se, outros não.(13) Nas famílias mais católicas,
seguia também o ritmo das estações, a ronda do ano. O êsse ritual tomava uma forma ainda mais desenvol'\lida, como
escravo entrava nesse ritmo cristão ao lado do branco, mas na fazenda do Jaraguá, de D. Gertrudes, visitada por Kidder.(14)
sempre numa posição subordinada, estando também bem indi- Contudo, o catolicismo não ritµiava somente com essas
cado que fazia parte da comunidade doméstica enquanto comu- cerimônias domésticas, o dia do escravo; ritmava também a vida
nidade religiosa, mas como um ser inferior e enquanto proprie- . da fazenda durante o ano inteiro, e, conseqüentemente, o escravo
dade do senhor. Em suma, a estrutura da família patria:rcal estando integrado na fazenda, participava de seu culto mas
escravista inibia o igualitarismo cristão e se opunha ao desen- sempre na mesma posição subalterna. As grandes festas que
volvimento de uma das tendências características da Igreja. interrompiaµi o trabalho eram, de início, festas de aniversário
Um observador anglo-saxão, James Wetherel, fala da cor- da família senhorial. Uma missa era então celebrada em lou-
tesia natural dos escravos, sempre solícitos a vos saudar quando vor ao senhor; os negros não eram admitidos na capela, deviam
vos encontram.(9) E, de fato, se desenvolveu tanto no Brasil permanecer fora, mas celebravam o fim da missa cantando
como nos Estados Unidos, para regular as relações raciais e um hino, às vêzes em sua própria língua.(1 5) Em seguida vi-
para marcar as distâncias sociais, tôda uma ~tiquêta que con- riham as festas agrárias, a da colheita nas plantações de café,
sistia de saudações estereotipadas.(1 º) Mas, enquanto a etiquêta a do comêço da moenda nas plantações de cana-de-açúcar. Melo
norte-americana era mais laica, a brasileira se processava num Moraes nos deixou, datando da época imperial, uma descrição
clima católico: desta última festa.
Em abril, os escravos punham tudo em ordem, limpavam
A saudação comum de um negro batizado do interior é "Jesus
Cristo" e a resposta é "para sempre" ( ... ) Uma outra resposta tudo: a casa, o pátio, o engenho. Na véspera da chegada do
é "Em Deus", contração da frase, "Louvado seja Deus que faz senhor, enfeitavam tudo com flôres, ramos verdes, troféus e
todos os santos". Quando no comêço eu €ncontrava nas estradas arcadas, guirlandas entrelaçadas de bandeiras, enquanto os co-
grupos de negros que a mim estendiam as mãos, pensava que, eram zinheiros de côr preparavam o banquete, para o qual se havia
mendigos. ( 11)
sacrificado uµi boi, carneiros e inúmeras galinhas. No dia
Ora, esta troca de polidez que exprimia, de um lado, a seguinte chegava o senhor cercado de seus parentes, de seus
submissão do escravo, e de outro, o caráter paternal do senhor, amigos, seguido do vigário, ao som da música local. Dizia-se
que de um lado os unia na mesma fé, embora ao mesmo tempo que não se podia começar a moenda antes de o engenho ser
marcando bem a hierarquia de suas respectivas posições no bento. Senão iria tudo mal, as máquinas se quebrariam, as
universo da vida religiosa, se verificava nas fazendas nas di- colheitas futuras ·se estragariam, os escravos morreriam, ou .
versas partes do dia, mais especificamente na parte da manhã mesmo, uma desgraça atingiria a família do fazendeiro. Na
capéla cheia de gente, o padre dizia a missa, indo depois benzer
(8) W. LLOYD WARNER, Buford H. JUNKER, Walter A. ADAMS,
Colar and Human Nature, Washington, 1941, cap. IV. (12)M. GRAHAM, Voyage to Brazil, p. 146.
(9) WETHEREL, Braztl, p, 7. (13)TOLLENARE, Notas Domtnicaes, p, 81, e RmEYROLLES, Brastl
(10) Bertram WILBUR DOYLE, The Ettquette of Race Relations in Pitoresco,pp, 38-43.
the South, Chicago, 1937, John DOLLARD, Caste and Class tn a Southern (14)D. P. KIDDER, Bemtniscências, pp, 203-4. Cf. A. BRANDÃO, "Os
Town, Yale University, 1937. Negras na História de Alagoas", Estudos Afro-brastleiros, p. 80.
(11) WALSCH, op. cit., p. 341. (15) D'ASSIER, Le Bréstl Contemporatn, p. 150.

160 161
o engenho. Quando êle jogava a água benta, os negros se pre- entre os brancos e os negros, na esti'utura dualista da sociedade,
cipitavam a fim de receber a maior quantidade possível pois relações de exploração e de domínio de um lado, de resistência
criam que essa água tinha para êles podêres miraculosos de e de luta de outro. Uma perspectiva cultural: a das relações
proteção.(1º) As primeiras canas eram colocadas cerimonio- entre est~ "subcultura" de classe e a civilização do branco ou,
samente sob a mó, bebia-se o primeiro suco do moinho e a festa se se prefere, definir os valôres, as normas, as representaçõ~s
terminava num grande baile. Bem entendido, êsse "baile do coletivas próprias dêsse catolicismo negro. Estudemo-lo pri-
açúcar" estava subordinado à estratificação social, os brancos meiro sob a' perspectiva sociológica.
dançando entre si, enquanto os escravos, por outro lado, se Não sabemos exatamente quando se formou. Antonil, em
divertiam à sua própria maneira.(17) 1711, já se refere às festas de São Benedito ~de N-0ss~ Senhora
O escravo não trabalhava nos dias santos; participava do Rosário, nas capelas dos engenhos.( 20) Sao Benedito, morto
ainda dêsse grande ciclo de festas que vai desde o N atai até a em 1589, imediatamente depois de sua morte passa por tau-
semana santa. Mas sua festa, coincidindo no tempo sempre maturgo e, por causa de sua côr, torna-se logo o protetor
com a de seu senhor, permanecia apenas contígua àquela, co- dos negros (embora seu culto permaneça à marge;111 do c~to­
memorando-se segundo outros ritos.(18) Esta "distância" se licismo ortodoxo; não foi senão autorizado pela Igre1a posterior-
manifestava melhor ainda pelo fato de que se o negro devia mente em 1743; sua canonização data de 1807).(21) O culto
se alegrar quando o branco se regozijava, em compensação, o de N~ssa Senhora do Rosário fôra criado por São Domingos
branco permanecia à parte das próprias festas religiosas do de Gusmão, mas estava fora de moda, sendo restabelecido ju~­
negro, dessa maneira significando que êle, o negro, devia ten- tamente nas época em que os dominicanos enviaram seus pri-
tar elevar-se respeitosamente à religião de seu senhor; êste, por meiros missionários para a Africa; daí, sua introdução e sua
sua vez, não tinha de descer até o catolicismo de seu escravo. generalização progressiva no grupo de negros escravizados.(22)
Por exemplo, o convento de Olinda, que tinha uma propriedade :Bsses fatos bem indicam que o culto de santos negros ou de
de uma centena de escravos, consentia em deixá-los celebrar sua Virgens negras foi, de início, impôsto de fora ao africano, como
padroeira Nossa Senhora do Rosário. Os negros se entendiam uma etapa da cristianização; e que foi considerado pelo senhor
para nomear um comitê, encarregado de fornecer as velas, de
preparar os fogos de artifício; designavam um ecônomo para
controlar as despesas e cotizavam-se a fim de recolher os
branco como um meio de contrôle social, um instrumento de
submissão para o escravo. Ribeyro~le~ º. acentua ainda, n~ pri-
l
J:l .
meira metade do século XIX: a disciplma da fazenda, diz, se
fundos necessários. Se um branco apaa:ecia era somente para fundamenta em duas bases: a existência do feitor e a do ca-
vigiar, de mêdo que tudo terminasse em disputas e contendas.( 19 ) pelão ou do cura; o primeiro fiscalizando o trabalho coµi um
Em outras fazendas, o proprietário até mesmo contribuía para chicote, o segundo enfraquecendo o espíritd de revolta com
as despesas e à noite dava uma breve volta entre as rodas de sua cruz· acrescenta o autor que é por êste motivo que a evan-
seus servidores que dançavam desenfreadamente. gelizaçã~ do africano permanece tão superficial; o s~cer~ote não
Esta separação religiosa forçou o negro à consciência de cumpre sua missão por amor, mas .com.o uma obngaçao e~f~­
sua raça, como à procura de protetores específicos, mas sem- donha imposta pelo grande propnetáno e em seu benef1c10
pre sôbre um µiodêlo que lhe era oferecido pelo culto doméstico único.(2a) Não é de se admirar que nessas condições o ho~em
que, como dissemos, era essencialmente um culto de santos. de côr reagisse no Brasil exatamente como nos Estados. Umdos
Dessa forma o catolicismo do negro foi, como as religiões e que transformasse êsse catolicismo, do qual se. queria fazer
africanas, em certa medida, uma subcultura de classe. :E: pre- um meio de contrôle e de integração numa sociedade que o
ciso, pois, estudá-lo se quisermos coµipreendê-lo, da mesma
forma que estudamos as religiões africanas, isto é, sob uma (20) ANTONIL, ap. cit., p. 96.
(21) Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 97. J. da
dupla perspectiva. Uma perspectiva sociológica: a das relações SILVA ·CAMPOS, Proctssões Tradicionais da Bahia, p. 205. O movimento que
tendeu a dar aos negros um santo de côr era, ademais, bem anterior à
(16) KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 70. época da escravidão; data da Ida<ie Média. SEIFERTH, "St. Maurltius, Afrl-
(17) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp, 277-90. can", Philon, 1941, 4, pp. 370-76.
(18) TOLLENARE, ap, cit., p, 134. (22) Dante de LAYTANO, Festa de Nossa Senhora dos Navegantes,
(19) KOSTER, ap. cit., II, p. 28. pp. 39-51. Charles de LA RONCUlRE, Negres et Négriers, p. 118.
(23) RIBEYROLLES, ap. ctt., pp. 43-5.

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maltratava, num instrumento, pelo contrário, de solidariedade mesmo às pessoas casadas coµi indivíduos de côr. Sem dúvida,
étnica e de reivindicação social.(24 ) O dualismo do catolicismo µuma sociedade em que a população feminina era pouco nu-
e esta metamorfose de uma religião de contrôle social· em uma merosa, o número de pessoas brancas que vivia em concubinato
religião de protesto racial se intensificarão ainda com o êxodo com mulatas era grande. Isto era de conhecimento geral e
dos campos à cidade, pois que, como vimos, a cidade afrouxou tolerado pela opinião pública. O que era proibido não era a
os laços que ligavam, no Brasil rural, numa mesma solidarie- união ilegal e sim o casaµiento desigual.(26) As pessoas de côr
dade, a família patriarcal, as côres e as posições sociais. eram, portanto, obrigadas .a pertencer a confrarias próprias à
~j sua côr. A separnção era tão radical que se acabou por dar a
Por certo, existiram nas cidades do século XVII e comêço
do século XVIII, corporações de ofícios que poderiam ter reu- êsses grupos os nomes de "igreja branca" e .de "igreja negra";
nido brancos inferiores e negros livres. Mas a corporação não Essas, se insurgiam uma contra a outra, em perpétua discussão
assegurou no Brasil, entre os trabalhadores de um mesmo ramo, pelos direitos de precedência nas procissões e nos enterros, pelos
a estreita solidariedade que encontramos na Europa. Ela de- itinerários dos cortejos, apelando aos tribunais eclesiásticos ou
sempenha um papel nas festas; as profissões se dividem em civis e a Roma.( 27 ). A "igreja branca" se defendendo de re~
grupos, cada qual desempenhando função diferente. Por exem- guiamentos, de investigações a todo pedido de nova admissão,
plo, no século XVIII, em São Paulo, em honra ao nascimento contra os ''cristãos-novos" ou mesmo contra os de sangue man-
da princesa, os carpinteiros fazem a contradança, os sapateiros chado", como um recinto fechado encimado por cacos de vidro;
a dança dos Espíritos, os marceneiros constroem um grande e a "igreja negra" tentando penetrar nos santuários mais proi-
barco de madeira do qual formarão a tripulação, os alfaiates bidos, nas confrarias mais aristocráticas, µiais fechadas, como
constroem também um carro, os ferreiros e os seleiros se mas- a dos Franciscanos, pela astúcia e pelo humor. Citamos, a
caram . . . Mas, parece que, inesmo nessas festas, a raça se título de exemplo, o caso da célebre disputa entre a confraria
separa do ofício; os mestiços segueµi sem dúvida os patrões do Cordão de São Francisco e a Ordem Terceira dos Firancis-
brancos, mas à parte. Por exemplo, os taberneiros fizeram tam- canos; o Papa permitira em 1585 a fundação de confrarias do
bém um carro e êste era seguido pelos Caianos e pelos crioulos, famoso Cordão de São Francisco, branco com três nós, e os
dançando a dança do Congo.(25) Dessa maneira, o ofício não mulatos de São João del Rey, Sabará, Mariana, Vila Rica disso
chega a aproximar as côres numa verdadeira comunhão reli- se aproveitaram para organizar esta conf:raria em Minas, já que
giosa. a Ordem Terceira lhes proibia o acesso; a Ordem Terceira pro-
Mais importante ainda que a corporação é a &Q.~_aria testou, não querendo ver pessoas escuras assim se insinuarem,
urbana. Ocupoú ela lugar preponderante sobretudo na religião mesmo por uma porta disfarçada, em suas igrejas de brancos,
das Minas Gerais. Enquanto no Nordeste dos engenhos do com seus "violões e tamborins", como disse na queixa enviaqa
século XVII a religião é uma religião doméstica, nas minas do a Lisboa para nelas realizarem suas festas ou com "mestiças
século XVIII a religião é uma religião de confraria. Con- prostitutas" se misturando nas procissões "sem diferença coµi
frarias extremamente numerosas, ciumentas umas das outras, as brancas bem honestas". (28 )
em concorrência mútua, para ver qual ornaria melhor sua ca- Essas duas igrejas estavam, aliás, divididas contra si mes-
pela, qual teria mais poder, qual seria a mais rica. Os homens, mas. A igreja dos brancos porque se ligava às lutas de família
de côr se contagiaram por êsse movimento; organizaram também ou de clãs feudais, por exemplo, os Camargos em São Paulo,
confrarias calcadas no modêlo das dos brancos e, assim, o con- que se reuniam na confraria dos Franciscanos, e os Taques, na
flito racial vai se dissimular sob o manto da religião e a opo- do Carmo,( 29 ) e, posteriormente, quando a sociedade começou
sição étnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedades reli- (26) Caio PRADO, Formaçllo do Brasil Contemporaneo, p. 352.
giosas. (27) Por exemplo, a disputa por um itinerário de procissão entre a
confraria do Rosário de negros e a confraria (branca) da Paixão de Cristo
As confrarias de brancos estabeleciam estatutos que proi- Jnstituiç6es de Igre1as no Bispado de Mariana, p. 156 e segs. .
biam o acesso, em suas associações, aos negros, aos mulatos e (28) G. RAYMUNDO TBINDADE, S. Francisco'ãe Assis de Ouro PrUo,
pp. 90-101. .
(24) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n. 0 41. (29) Fr. A. ORTMANN, História da Antiga Capela da Ordem Terceira
(25) A. de E. TAUNAY, Sob EZ Be11 Nosso Senhor, p. 361. da Penitmcfa de s. Francisco, p. 27.

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a se hierarquizar e uma classe média se forµiou em Minas ao modos mais indecentes.(35) A finalidade suprema dessas con-
lado da classe dos "homens bons'',(30) apareceram. confrarias frarias vai passar paralelamente do céu à terra. Irão ajudar
de ricos e confrarias de pobres. A igreja negra estava da mesma os escravos a ganhar sua liberdade.
forma dividida porque o mulato não queria se deixar confun- Já citamos a história de Chico Rei que libertou tôda sua
dir com o negro. A rivalidade atiçou assim a luta, em Dia- tribo sob a égide de Sta. Ifigênia. Mas, em tôdas as cidades
mantina, entre as confrarias do Rosário dos negros e da Mise- de Minas e em todo o Brasil, as confrarias seguiram êsse exem-
ricórdia dos µiulatos.( 31) Em Tijuco, no distrito dos diamantes plo. De início, eram a obra dos negros, que rendiam graças
a Deus por terem alcançado a liberdade. Dessa forma, a Igreja
em que as sete igrejas e a metade das capelas tinham sido
construídas e eram mantidas pelas confrarias, havia em 1877 o
·~ de N. S. do Bomfim de Copacabana foi fundada por um fei-
1
templo dos africanos, o dos negros crioulos e o dos mulatos.(ª2) ticeiro negro que ganhara Cr$ 1.000.000,00 com suas feitiça·
Essas confrarias serviram, não obstante sua probreza, de
ponto de concentração de reivindicações sociais. Elas se reu- l
f
rias.( 36 ) Depois todo negro que se libertava não deixava de
dar um pouco de dinheiro para a caixa da confraria destinada
aos negros menos afortunados; e, dessa maneira, conseguiam
niam, na realidade, em tôrno de Um. santo de côr, e na dedi-
cação dos fiéis a êsse santo havia mais que uma ligação mís- libertar, cada ano, um determinado número de escravos.(ª 7) Os
tica, o sentimento de uma espécie de afinidade étnica. Foi o brancos acabaram por ajudá-los; em diversos lugares criou-se
que um negro exprimiu admiràvelmente um dia a Kidder e o costume de dar ao rei eleito da congada, que se celebrava
a Flechter vendo passar uma prodssão: "Lá. vem meu pa- anualmente quando da festa do santo patrono, sua carta de
rente ... ". ( 83 ) O pairentesco leva vantagem sôbre o caráter re- alforria.
ligioso, desespiritualizando o santo, humanizando-o, tornando-o Contudo, encontra-se entre certos viajantes a observação
parecido sob todos os pontos coµi seus irmãos da terra: contrária; acontecia que os escravos que guardavam dinheiro
1 dificilmente, à custa de trabalho, para poder comprar sua liber-
Meu S. Benedito dade, preferiam dar a maior quantia dêsse dinheiro à confraria
É santo de prêto ; 1 de que faziam parte, na esperança de obter mais fàcilmente,
~le bebe garapa, na qualidade de doadores, cargos honoríficos e de tornarem-se
~le ronca no peito! (34)
personalidades importantes e respeitadas. Por conseguinte, a
1 confraria desempenhou outro papel, teve outra finalidade; era,
Frei Correal, quando de sua passagem na Bahia em 1689
surpreende-se ao ver numa procissão um carro onde a Virgem ! para a massa de pessoas de côr, um instruµiento de seleção,
permitia a formação de um certo tipo de liderança.( 38 ) De fato,
Santa rivaliza com São Benedito que toma, diante dela, os havia cargos aos quais era permitido o acesso: em particular,
(30) Sôbre as principais confrarias de Minas e seu recrutamento ver
Luiz JARDIN, "A Pintura Decorativa em ( ... ) Minas" Revista ão Sphan,
os de rei e rainha. Todavia, o cargo de secretário, freqüente-
1
3, pp. 67-71. Esta distinção de classe se liga também às distinções sociais, mente, e o de tesoureiro, sempre, eram reservados aos bran-
não aceitando os Franciscanos pessoas casadas com mUlatas, enquanto os cos. (39)
Carmos as aceitam.
1
(31) Aires da MATA MACHADO Filho, Arraial ão Tijuco, Cidade àe
Diamantina, pp. 51, 162 e sega. Os crioulos e · os mUlatos freqüentavam
Finalmente, a última finalidade da confraria, se bem que
inicialmente a contraria do Rosârio dos negros, mas se separaram em 1771, não fôsse a mais insignificante de tôdas para os africanos ha-
sob o pretexto de que era uma confraria de negros; conseguiram uma capela bituados ao culto dos mortos, era assegurar a cada mem-
especial numa Igreja. de brancos, mas parece que eata tentativa não teve
multo sucesso e que tiveram de suportar algumas afrontas, porque tentaram bro uma sepultura e um entêrro adequados. O regulamento de
voltar ao Rosârlo dos negros, o que lhes foi recusado, porque "entre negros
e crloUlos haveria discórdias continuas". Ao lado dêsse movimento de cls- 1750 da confraria de Nossa Senhora do Rosário dos negros de
siparldade, é preciso observar, allâs, que certas contrarlas tentaram unir Vila Rica permitia mesmo dar urna sepultura às mulheres e
todos os homens de côr, sem distinção do maior.ou menor grau de coloração
da. pele e a elaboração de uma consciência de raça, contra as diferenças
de "nações". Por exemplo, a confraria dos mUlatos da Misericórdia em (35) J, TAUNAY, Na Bahia Colonial, cap. 2 (Frei Correal).
Minas admitia "tôdas as pessoas, mesmo negros cativos e naturais da costa (36) F. MENDES DE ALMEIDA, "O Folclore nas Ordenações do Reino",
da Guiné", ià., ibià., p., 162. Para fenômenos anil.logos no Nordeste ver o. B.A.M.S.P., p. 75. .
Ji'REYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n.• 41. · (37) Ià., ibià., p. 75.
(32) SAINT-HILAIRE, VOJ!age àans le Distrlct des Diamants, I, p. 48. (38) KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p, 345.
(33) KIDDER e FLECHTER, o Brasu· e os Brasileiros, p, 167. (39) Arquivos do 'Estado àe s. Paulo, Livro 90, confraria do Rosârlo
(34) S. ROMERO, Cantos Populares, p. 295. de Melas Arlno, · 1861, manuscrito Inédito.

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aos filhos dos membros da confraria, embora dela não partici- ruas, a marcha dos fiéis obedece a uma ordeµi hierárquica que
passem pessoalmente, não contribuíssem e não tivessem o direito assegura a diferenciação das côres. Desta maneira, na pro-
de voto. ( 40 ) Dêsse modo, uma profunda tendência da etnia cissão de Corpus Christi em São Paulo, depois do. ·Santo Sa-
negra podia, cristianizando-se, desenvolver-se livremente. cramento, vem São Jorge em seu cavalo curveteando; atrás,
Acontecia que, às vêzes, se bem que erigissem em quase as confrarias de negros, depois a dos mestiços de Santo Eles-
todos os lugares igrejas a N. S. do Rosário, a S. Benedito, a bão, da Misericórdia e do Carmo; em seguida, frades e sacer-
Sta. Ifigênia, a Sto. Elesbão e a outros santos de côr, as con- dotes; as corporações de ofícios desfilavam depois; numa ordem
frarias não tinham sede própria, não podiam dispor de uma determinada, que começava pelas escravas padeiras terminando
igreja, seja por falta de recursos, seja porque a construção do por outras escravas vendedoras de legumes. ( 45 ) Em Minas, na
templo não estava acabada .. Nesse caso era-lhe reservada uma procissão de São Francisco, os penitentes vinham primeiro,
capela na igreja paroquial. Porém, a seleção sempre atuava, principalmente negros e mulatos livres, o clero em segundo
sendo a separação das capelas o símbolo da divisão dos dois lugar e, por fim, o povo. ( 46 ) A procissão de Cinzas era aberta
catolicismos. No Rio de Janeiro o mesmo local de culto era por três mulatos em dominó cinza, um trazendo a cruz e os
partilhado pelos cônegos do cabido e pelos negros.(41 ) E ràpi- dois outros um grande bastão encimado por uma lanterna; atrás,
damente, em lugar da cooperação esperada, surgiu a disputa um mascarado, disfarçado de esqueleto, surpreendendo os espec-
entre as raças. Ou, com os africanos rejeitando os brancos, tadores com uma foice de papelão; depois um grupo de brancos
mesmo os negros crioulos a fim de ficarem sozinhos, como na representando Adão e Eva, Caim e Abel; os membros da con-
Bahia,( 42 ) ou, pelo contrário, os brancos fazendo saírem os fraria de São Francisco traziam nos ombros os andores dos
negros sob o pretexto de que suas festas eram muito barulhentas santos, vindo, depois de tudo, a µiúsica e o Santo Sacramen-
acompanhadas de danças e tambores e indignas da Casa de Deus, to.(47) A procissão do triunfo eucarístico de 1753 começava
como em Pôrto Alegre.(4ª)
Parece, contudo, que o catolicismo devia marcar limites a por dois grupos de danÇarinos, os mouros e os cristãos, segui-
esta tendência segregativa, já que todos os homens são filhos do dos de músicos e de carros alegóricos, tendo logo após o des-
mesmo Deus e chamados à mesma mesa de comunhão. Há file das confrarias que se apresentavam na seguinte ordem: mú-
várias capelas laterais, cada qual pé>dendo escolher a sua; po- ! sicos e negros a cavalo, confraria do Santo Sacramento, con-
rém, há uma só capela-mor onde oficia o sacerdote. Há as fraria dos mestiços da capela de São José, confraria do Rosário
igrejas de confrarias que se localizam nos diversos bairros da dos negros, confraria de Santo Antônio, o grupo dos nobres
cidade, mas há no centro a igreja paroquial, às vêzes a cate- ou "homens bons", confraria do Rosário dos brancos, confra-
dral, que representa a comunidade urbana total, abole as di- ria de Nossa Senhora da Conceição, confraria de Nossa Senhora
ferenças sociais ou raciais. Entretanto, aqui ·ainda, a separa- do Pilar, confraria do Divino Sacramento, e depois o clero,
ção leva vantagem sôbre a união. Saint-Hilaire admirou-se ao os anjos, o Santo Sacramento, o governador geral das minas,
ver que as igrejas eram bastante freqüentadas pelas negras, a nobreza µiilitar, o Senado, o dragão atacado por São Jorge,
mas estas não se confundiam com as brancas; a diferenciação e, por fim, os soldados.( 48 ) Na procissão de São Jorge a ordem
do trajar permitia separar as duas categorias de fiéis, as pri- era diferente: os soldados vinham primeiro, depois a confraria
meiras tendo a cabeça e o corpo enrolados num pano prêto, de São Jorge e, no fim, uma turma de escravos com seus músicos
as segundas trazendo na cabeça uma mantilha de caxemira ne- e uma estranha personagem montada num cavalo prêto, o homem
gra. ( 44) Nas procissões, quando a cidade inteir~ desfila pelas
(4ã) Nuto SANT'ANA, "Foice e Pá", Estado de S. Paulo, 17 de novembro
(40) A. DELAMARE, Vtla Rica, p. 71. de 1940.
(41) Nuto SANT'ANA, "O Templo dos Homens Prêtos", Estado de S. (46) SAINT-HILAmE, Voyages dans Zes Provinces de Rio, I, pp. 347-48.
Paulo, 1940. (47) SAINT-HILAIRE, V<>11ages aux Sources àu Rio S. Francisco, I. p, 100.
(42) Silva CAMPOS, op. ctt., p, 168. (48) Simão FERREmA MACHADO, "Triunfo Eucarístico, exemplar da
(43) DANTE de LAYTANO, op, cit., pp. 39-51. Cristandade Lusitana em pública exaltação de fé na solene transladação
(44) SAINT-HILAIBE, Segunda Viagem ão Rio de Janeiro a Minas do Diviníssimo Sacramento da Igreja de N. s. do Rosário para um nôvo
Gerais, p. 186. Cf. GOBINEAU: "Na quinta-feira santa ( •.. ) a mUltldão en- templo da Senhora de Pilar em Vila Rica, côrte da Capitania das Minas,
chia as Igrejas. Um branco ou semlbranco entre vinte mUlatos ou negros'', G. aos 24 de mato de 1733", Lisboa, 1734 (o texto foi transcrito totalmente por
RAEDERS, Gobineau au Brésil, p. 38. G. PENALVA, o AZeiiadinho, pp. 120-51).

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de ferro; atrás dêles, os carregadores t:razia.m, elevando-a ao céu, zendo que são os negros os mais escrupulosos em suas devo-
a estátua de São Jorge.(49) ções e acrescenta que imediatamente, por desforra, esta reli-
A hierarquia de côres não segue, portanto, uma ordem gião se viu depreciada aos olhos dos brancos.(5 ª)
fixa; tudo depende das cerimônias; se se trata de um santo A questão tôda é saber se a esta separação das duas Igre-
militar, são os soldados brancos que vêm à frente; noutros jas, a negra e a branca, corresponde também uma diferença
casos, são êles que teqninam o cortejo. Mas, de um modo de catolicismo.
geral, parece que são os mulatos e os negros que desfilam em É claro que a unidade do dogma tendeu à assim.ilação
primeiro lugar e a aristocracia dos brancos em último. A ordem e houve, principalmente entre os crioulos, verdadeiros santos
do desfile é uma ordem de mérito crescente, onde o clero se de côr. Tollenare cita uma mulata de 18 anos, de rara be-
coloca no meio como para assegurar, por sua situação me- leza, Gertrudes, que desejava ser freira e que fôra avisada mi-
diana, a coerência e a estabilidade de uma sociedade tão mis- lagrosamente da morte de sua mãe, o que lhe deu uma auréola
turada. De todos os modos, e êste é o ponto que mais nos de santidade em seu meio.( 64 ) Os jesuítas outorgavam aos
interessa, as côres não se confundem; a Igreja aceita a estra- negros mais piedosos insignes mercês, como a entrada na com-
tificação social. panhia após sua morte: "João Francisco, homem mulato, serve
O que é mais grave é que a aceitação pelas pessoas de a casa há trinta e tantos anos, por amor de Deus, sempre com
côr do catolicismo dos brancos acarreta imediata.mente a depre- edificação e boa satisfação, confessa-se e comunga cada oito
ciação dêsse traço. Quando o senhor de engenho ou o fazen- dias e faz vida exemplar; não tem raça de mouro nem judeu;
deiro vêm residir na cidade, trazem consigo o altar doméstico, pede ser admitido na Companhia na hora da morte; é digno e
o culto de sua família; há em sua casa urbana sempre um nicho merece esta consolação". Para outros, dava-se como recompensa
de santos onde queima uma vela.( 5º) Entretanto, a religião a liberdade civil. ( s5)
familiar não exerce mais a função que tinha no campo. A rua únicamente a manutenção das pessoas de côr eµi grupos
reúne as casas, estabelece uma corrente de comunicação entre separados perturbou esta assimilação, tendeu a uma divisão
as famílias, e a capela do engenho é substituída pela igreja pa- paralelá das representações coletivas. Porque não só as "na-
roquial ou a da confraria. Mas esta rua toma também aspecto ções" eram preservadas enquanto grupos de festas, mas ainda
sagrado; de quando em quando, na esquina de duas travessas, cada qual podia originar uma confraria religiosa étnica. Na
no centro de cada quarteirão, há um nicho de santo e todo Bahia, por exemplo, a confraria do Senhor da Redenção não
passante deve aí demonstrar sua devoção. Os viajantes estran- agrupava senão Daomeanos; a Ordem Terceira do Rosário era
geiros impressionaram-se com êsse fato;( 51 ) contudo, a rua é composta de negros Angolas; a do Senhor da Cruz, de mula-
o doµiínio principalmente do "povinho"; os brancos não fazem tos.(56) Esta política da Igreja reflete a do govêrno; leµibra a
mais do que aí passar, os escravos aí se demoram, se encon- carta do Conde dos Arcos que citamos mais acima. Todavia
tram, sendo ela o lugar de suas conversas fiadas, o instrumento ela tendeu a criar um catolicismo diferencial. Desta maneira,
de sua solidariedade. Na rua, como vimos, êles escapam ao somos levados a passar de nossa primeira perspectiva, a pers-
domínio do pater familias, à integração da família patriarcal, pectiva sociológica, à segunda: a perspectiva cultural que estuda
para recriar uma agregação étnica e de classe social.( 52 ) Desde os valôres, as normas, as representações coletivas próprias a
então, serão levados, µiais do que os brancos, a fazer da rua esta "igreja negra". A catequização jesuíta partia da idéia de
o centro também de seu catolicis~o e, em vez de render culto que era preciso adaptar o dogma à mentalidade e que a men-
aos santos da propriedade senhorial, rendem culto aos santos
talidade dos negros é a µiesma das crianças. É preciso atraí-los
dos bairros. Ewbank, em 1580, verifica isso muito bem, di-
(53) EWBANK, Li/e in Brasil, pp, 182-83. Reciprocamente, as ordens
(49) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 229-36; para a Bahia, mendicantes se viram desconsideradas, porque "é lmposslvel que um negro
Silva CAMPOS, op. cít., dá, em geral, a ordem tradlclonal das grandes veja um ser superior num branco que se humilha para pedir alguma cari-
proclssões antlgas. dade", DENIS, Brésil, p. 257.
(50) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, 1.• edlção;pp. 250-51. GRAHAM, (54) TOLLENARE, Notas Dominicaes, p, 110.
op. cít., p. 127. TOLLENARE, op. cít., p. 51. (55) Seraflm LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, II, p.
(51) A. E. TAUNAY, "Na Bahia Colonial", R.I.H.I.B., t. 90, vol. 144, p. 484. 359. G, FREYRE, Casa-grande, p. 262.
(52) KIDDER e FLECHTER, O Brasil e os Brasileiros, pp. 192-95. (56) Silva CAMPOS, op. cit., pp. 168, 7, 206, 243.

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pela música que adoram, pela dança, que é sua única distração, servaram na terra de exílio. Se o cristianismo a aceitou é por-
pela vaidade, o amor aos títulos, aos cargos decorativos.(57) que êsse combate podia aqui tomar um significado simbólico,
Não é preciso romper absolutamente com seus costumes tra- a coroa terrestre tornando-se . uma imagem da coroa celeste a
dicionais, mas fazer uma seleção dêles, e dos que são conside- qual, falou o apóstolo, Jesus dará àqueles que lhe forem fiéis.
rados como aceitáveis, servir-se dêles como de um trampolim Mas as recordações sempre vivas dos reinados africanos são ainda
para levá-lo até a verdadeira fé. mais pronunciadas nas congadas.
Dessa maneira, criou-se um catolicismo negro que se con- As congadas aceitavam a perpetuação do regime real para
serva dentro das confrarias e que, não obstante a unidade dos os negroSõrasileiros, mas corrompendo, bem entendido, o ca-
dogmas e da fé, apresenta características particulares. ráter dêsse reinado e, sobretudo, incorporando-o ao culto de
A procissão de São Benedito compreendia apenas negros Nossa Senhora do Rosário. A mais antiga menção que temos
ou mulatos: o porta-estandarte, os anjinhos de côr presos à sôbre essas congadas data de 1700 e da cidade de lguarassu
mão de suas mamães, a confraria de São Benedito, as rainhas (Pernambuco) (61 ) mas já existiam, pelo menos fragmentària-
dos africanos, em número de três, com Perpétua no meio, cer- mente, em pleno século XVIl(62) e tinham mesmo sua origem
cada por dois grupos de negros que disputam a coroa de Per- remota em Portugal.( 63 ) Pereira da Costa nos diz que cada
pétua, a confraria do Rosário e as Taieras, cujos vestidos de paróquia tinha seu rei, sua rainha, um secretário de Estado,
sêda deixavam, diz-se, adivinhar os seios lascivos, e que mar- um mestre de campo, uµi arauto de armas, suas damas de
chavam cantando: honra, etc., que se faziam chamar Majestade, Excelência ou
Virgem do Rosário Senhora. A eleição se fazia no dia da festa de N assa Senhora
Senhora do mundo ... do Rosário, dando origem a danças, variáveis segundo a etnia à
Dê-me um côco d'água
Senão vou ao fundo! ... qual pertencia o rei.
Virgem do Rosário '1 A dispersão do costume foi considerável e pouco a pouco
Senhora do norte ... se estendia a todo o Brasil. Determinou, da mesma forma que
Dê-me um côco d'água as confrarias de que saiu, as mesmas lutas étnicas, as µiesmas
Senão vou ao pote!. .. ( 58)
rivalidades entre nações. De início, era uma festa de bantos,
A essas ladainhas ingênuas que não pedem à Virgem mais em que os nagôs e os daomeanos se aborreciam. Posterior-
que um fruto para acalmar a sêde, correspondem as ladainhas mente, colocou em disputa os congos contra os angolas, êstes
de São Benedito: contra os inoçambiques. Em Osório (Rio Grande do Sul)
Meu São Benedito êsses últimos iam atrás dos cucumbis angolanos, nem cantando
Venho te pedir e nem dançando, somente fazendo ouvir seus instrumentos
Pelo amor de Deus musicais; em Minas, os moçambiques eraµi considerados igual-
Brincar de cucumbi. ( 59) mente como "a plebe dos congos".(64) Em compensação, os de
O que caracteriza esta festa não é esta fainiliaridade com São Paulo crêem que sua dança foi inventada pelo próprio
os santos que encontramos também, na realidade, na mesma São Benedito e por êle dada à sua nação; acabaram por triun-
época entre os brancos( 6º) e, sim, esta luta incorporada na pro- far em numerosas localidades desta província sôbre seus ad-
cissão, entre os negros, pela coroa da minha Perpétua. E se versários congos, e eµi Monsanto são êles que vêm em pri-
se acrescenta que esta era protegida por um grupo de Congos, meiro lugar porque foram os primeiros, dizem, a encontrar
então a cerimônia alcança todo seu significado: é uma sobre- Nossa Senhora do Rosário.(65) Bem entendido, a solidariedade
vivência das lutas étnicas e de reinados africanos que se con- (61) Pereira da COSTA, "Rei do Congo", Jornal ão Brasil, 21/4/1901.
(62) A embaixada, por exemplo, aue é uma das partes fundamentais
(57 J Serafim LEITE, op. cit., p. 358. da congada. Cf. Gaspar· BARLEUS, o Brasil Holandés, trad., p. 272.
(58) G. Th. PEREIRA DO MELO, A Música no Brasil, p. 49. (63) Câmara CASCUDO, Dicionário ão Folclore Brasileiro, pp; 191-94.
(59) SANTA ANA NERY, Folklore Brésilien, p. 48. G. Th. PEREIRA (64) Dante de LAYTANO, As Congarlas ão Municfpio ãe Osório, pp. 41,
DO MELO, A Música no Brasil, p. 49. 55, 65, e DORNAS Filho, "A Influência Social do Negro'', R.A.M.S.P., LI, 1938.
( 60) Sôbre as relações entre os brasileiros brancos com os santos, ver (65) Câmara OASCUDO, Dicionário, p. 402, e Folclore Nacional, Centro
G. FREYRE, Casa-grande e Se1111:ala, trad. fr., pp. 215-16, 296, 394-95. de Pesqu1sas Folclóricas, 1946, p. 4.

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de classe dos escravos triunfou sôbre as inimizades tribais, têm sôbre seu povo de côr, e diz que o rei coroado é alvo de zomba-
rias. (72) Não admira, pois, que perdesse, pouco a pouco, sua auto-
como na confraria de Baltazar, composta de africanos e de ridade para não ser mais que um rei de carnaval!
crioulos em sua maioria escravos e datando de 1742. Os Quanto à dança, que acompanhava a coroação e que traz, segundo·
arquivos da confraria, dando nomes aos dignitários tipicamente as regiões, o nome de congadas, de cucumbis, de congos, de ticumbi
africanos (o rei se cha~ava Newangue, a rainha Nembanda, ou de turundu, (73) constitui uma espécie de representação teatral,
compreendendo diversas partes: primeiro, a entrada do bailado, a
os príncipes Manafundos, o feiticeiro, que trazia freqüente- chegada do rei cantante, que pede à assembléia permissão para
mente uma serpente enrolada no pescoço, Endoque, os escravos celebrar a congada; depois, o cortejo real vagueia através das ruas,
reais Uantuafunos), nos mostram que os reis eram escolhidos dança na frente da igreja e das casas dos notáveis. É a parte·
livremente, sem distinção de origem étnica, visto que o primeiro, mais livre da festa, a mais variável, mudando segundo os lugares.
Há cantos semi-africanos, como o da rainha:
em 1742, é um rebôlo e o último, um cabunda.( 66 )
Quenguerê, oia congo do má;
A festa era preparada com antecedência. Nos domingos e dias Gira Calunga,
santos, os membros da confraria pediam esmolas tanto aos negros Manu quem vem lá.
como aos brancos para as despesas da cerimônia. Demais, era um
costume bastante comum e tôda confraria, de brancos ou de prê- Há contradanças à moda portuguêsa, cantos folclóricos que-
tos, fazia o mesmo. (67) A coroação do soberano tinha lugar na igre- se introduzem, cantos de trabalho na plantação ou de preparativos
ja. Um longo cortejo acompanhava o rei e a rainha com seus secretá- culinários. Há danças animais onde o negro reproduz os gestos do.
rios e sua côrte até a capela em meio a cantos e danças; depois, o animal de que fala em seus cantos. Assim, Melo Moraes cita a
vigário sagrava aquêle que a confraria escolhera, colocando sôbre sua dança da serpente interpretada pelo filho do rei, a do jaguar, e Gus-
cabeça uma coroa de papelão dourado.(68) A duração dêsses reina- tavo Barroso, a dos crustáceos.
dos não era fixa; a princípio, é provável que os príncipes escolhidos A segunda parte da brincadeira é a embaixada. A rainha
fôssem antigos reis negros trazidos em escravidão e que continuavam Ginga envia um embaixador ao rei (rainha Ginga Ngambi, em Par-
a receber homenagens de seus súditos. Numa certa medida, os bran- naíba); é às vêzes uma embaixada de guerra, às vêzes de paz, mas,
cos podiam aproveitar esta submissão do negro a um rei para impor mesmo nesse caso, a inabilidade dos dignitários do rei, o ardor
mais fàcilmente suas leis às pessoas de côr: "É só o nosso rei que do príncipe Suena ocasionam a guerra entre os Congos e o exército
nos dá ordem de trabalhar." E esta seria, para Mário de Andrade, a da rainha Ginga. O príncipe é aprisionado e condenado à morte.
finalidade dessa coroações, um meio de sujeitar mais fàcilmente o A terceira parte, é a morte e a ressurreição do príncipe. A
negro a seu duro trabalho. (69) Entretanto, êste costume era perigo- rainha infeliz com a morte de seu filho chama o feiticeiro que vai
so, porque o rei gozava de grande autoridade sôbre os fiéis e podia buscar o cadáver:
voltá-los contra seus senhores brancos. Um dêles, Miguel, dirigiu FEITICEIRO
uma insurreição negra em Natal que, aliás, fracassou desde o comêço
(Miguel fOi prêso, deposto e substituído por outro escravo, Luís). E ... Mamaô/ E ... Mamaô/
(70) De outro lado, a tradição católica, querendo fazer coincidir a Ganga rumbá, sinderê iacô
eleição e a coroação dêsses soberanos com as festas cristãs que são E ... Mamaô/ E ... Mamaô!
festas anuais, tendeu a mudar a duração do reinado para um ano, o
TODOS
que finalmente prevaleceu. Assim fazendo, a Igreja desvirtuou o
conceito de realeza, fêz-lhe perder seu caráter solene e sério, para Zumbi, matêquerê,
transformá-la num simples divertimento. Spix e Martius comparam Congo, cucumbi-oiá.
êsses reis negros aos "reis da fava" da Europa e dizem que quando
o nôvo soberano vai fazer sua visita ao governador do distrito dos FEITICEIRO
Diamantes, é por êste recebido em "robe de chambre". (71) No en-
tanto Koster, por seu lado, reconheceu a autoridade que êsses reis Zumbi, Zumbi, oia Zumbi!
Oia Mamêto muchicongo.
(66) Melo MOR.AES Filho, Fest04 e Tra4iç6es, pp. 343-49.
(67) J, B. DEBRET, op. cit., p. 225. Oia papêto.
(68) KOSTER, Voyages Pittoresques, II , p. 112. J. E. POHL, Reise in
tnner von Brasllien, I, p, 157. II, pp, 81-6. Ademar VIDAL, "Congos'', Revista "Durante tôdas essas evocações, o Feiticeiro rodeia o corpo.
do Brasil, fev., 1939, pp, 53-62, etc.
(69) Mãrlo de ANDRADE, "Os Congos", Lanterna Verde, 1935. da criança, ausculta-o, palpa-o, faz passes mágicos, emprega mis-
(70) L. da Câmara CASCUDO, "Festas de Negroe", .A. República, Natal,
20/2/1942, (72 l KOSTER, op. cit., p. 112.
(71) SPIX e MARTIUS, Viagem pe'lo Brasil, II, p. 127. (73) Câmara CASCUDO, Dicionário, pp. 191-94, 243, 611, 623.

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teriosos sortilégios, fá-la aspirar plantas e resinas, estendendo-lhe vez de origem totêmica, já que os bantos que criarain a con-
aos lados pequenas cobras e talismãs de virtudes sobrenaturais." gada freqüenteµiente são povos totêmicos. Em segundo lugar,
Pouco a pouco o corpo do príncipe toma vida em meio à alegria
da multidão: a importância das embaixadas, que é um traço bem africano;
FEITICEIRO não somente os reis congoleses ou guineanos enviam-se praze-
rosamente embaixadas uns aos outros, mas chegaram mesmo a
Quem pode mais? ser enviadas ao Brasil em 1750 e 1795 duas embaixadas dao-
CôRO meanas e em 1824 uma do rei de Benin. Em terceiro lugar, os
próprios nomes dos personagens são nomes históricos: a rainha
É o Sol e a Lua. Ginga ou Ginga Ngambi não é outra senão a rainha Ginga Bandi
FEITICEIRO
que reinou em 1621 e, que após sua embaixada ao governa-
dor português João Correia de Souza, converteu-se ao cris·
Santo maior? tianismo.(711) O rei dos congos que, em certas versões, se
chama Dom Henrique, é também uma recordação exata das
CôRO
coisas africanas, porque houve numerosos Henriques na di-
É S. Benedito. nastia dos soberanos cristianizados do Congo português.(7º) O
nome do príncipe, Suana, não é nome de gente mas um têrmo
A última parte da peça é o reinício da luta. Se se trata de honorífico que Dias de Carvalho encontrou no século XVII
um caboclo que matou o negro, o feiticeiro o fulmina com seu olhar entre os luandas e que significa "herdeiro imediato".(77)
e êle cai por terra. Se se trata da rainha Ginga, desta feita seu
exército é batido. O rei oferece sua filha ao mágico em recompensa Quanto à cerimônia da coroação, onde o nôvo rei toma a
de seus serviços. coroa daquele do ano precedente, Mário de Andrade compa-
E a festa termina com novas danças onde a muito pura Virgem ra-a a uµia versão de congada em que, antes do combate o
do Rosário naturalmente não é esquecida. (74) pai faz passar a coroa a seu filho, tomando êle próprio, ao re~és
Como se viu, trata-se de uma peça de inspiração estrita,. os atributos do príncipe: esta mudança de coroa foi observad~
~nte __a_!!icana e onde um dos principais papéis é dado a um justamente por Prazer na Africa em seu estudo sôbre a morte
feiticeiro pãgão. Mário de Andrade, que no Brasil foi o que do rei da vegetação. Não há até a lembrança da circuncisão
analisou com mais cuidado essas peças de Congo, assinalou que não esteja manifesta na descrição de Melo Moraes e que
traços da Africa negra nos versos portuguêses, indo desde os se situa entre as danças da primeira parte e a morte do filho
mínimos detalhes, aos temas poéticos mais singelos, como êsses do rei.(78)
versos cantados, num dado µtomento, pelo rei: Certamente elementos da cultura branca se misturam fra-
ternalmente a êsses traços da cultura africana. Mas êsses ele-
Não procuro mais canário mentos da civilização ocidental não nos devem ocultar o ca-
Dentro de meu reino ráter tipicamente africano da congada. Isto pôsto, podemos
Destruíram-me as sementes, perguntar como a Igreja pôde aceitar tão fàcilmente incorpo-
que é um tema freqüente dos contos africanos, que se encon- rar à vida das confrarias de côr esta apologia do feiticeiro
tra nas histórias recolhidas por Chatelain, Equilbecq, J acottet, ressuscitador de mortos . . . É que o catolicismo brasileiro é a
e até as partes essenciais do drama. Limitemo-nos a êstes. continuação do catolicisµio português e já em Portugal existia
Logo, na primeira parte, as danças imitativas dos animais, tal- o costume de juntar danças mascaradas e cantos profanos às
festas religiosas. Um certo número de altos dignitários ecle-
(74J Para esta descrição da congada, servimo-nos de duas versões, as siásticos lutaram contra esta tradição, em 1534; por exemplo,
mais antigas que possuimos, a de Melo MORAES Filho, qp. ctt., pp. 159-65,
que data de aproximadamente 1850, e a de Luiz EDMUNDO, Nooos Estudos,
pp. 227-30, que data de 1811. Ai misturamos a embaixada da rainha (75) Mário de ANDRADE, op. ctt., pp. 50·3.
Ginga, por causa de seu caráter essencialmente arcaico; Mário de ANDRADE, (76) A. RAMOS, o Folclore Negro, p. 60.
op. cit., pp. 36-53. Aludimos também a G. BARROSO, Ao Som da Viola, (77) R. A. DIAS DE CARVALHO, Etnografia e História Tradicional dos
pp. 213-55, porque a dança dos crustáceos é provàvelmente uma sobrevi- P<>Vos de Lunãa, Lisboa, 1890, citado por Mário de ANDRADE.
vência bastante antiga, de caráter talvez totêmico. (78) Melo MORAES Filho, op. ctt., p. 127.

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0 bispo de Bvora. O rei, entretanto, as permitia,, o que . f~z
traços das civilizações africanas - particularmente de civiliza-
com que continuassem, e ainda em 1855 era poss1vel ass~sti­
-las. ('19) O hábito passou à colônia. Os viajantes estrangerros ções bantos - passaram, sem que o sacerdote percebesse, ao
estão repletos dessas descrições de festas profanas à sombra culto dos santos negros ou nas congadas. Parecíamos estar
das igrejas e dos conventos, admirando-se ao ve~ ~eças amo- bastante distantes das religiões africanas quando estudávamos
rosas representadas por freiras ou por essas multidoes proces- o catolicismo. Assim, não era tanto quanto imaginávamos, por-
sionais que jogam bola com estátuas de santos:(ªº) . que essas congadas foram justamente um dos "nichos" de que
Nada extraordinário portanto, que a Igreja tenha mtro- falamos, no interior do qual o negro pôde guardar preciosamente
duzido a congada na estrutura das confrarias de côr: .Mas por seus deuses ou seus espíritos, para melhor adorá-los.
isso mesmo, e é o que nos interessa, deu ao cato!1c1sm? dos
negros um aspecto diferente do dos brancos pela mserçao de j Na descrição feita pelo eminente folclorista pernambucano Pe-
elementos africanos. H reira da Costa, do auto africano dos Çongos no Brasil, encon-
il tramos o têrmo Zambiapungo, nome do deus supremo dos Bantos,
Entretanto a congada formou, por si mesma, uma reali- na frase em que o rei lança a bênção ao seu secretário: Bênção. de
dade autônoµia' que, certamente, pôde se as~ociar com os ritos Deus, de Zambiapungo qui tirindudê, etc., e na seguinte quadra:
religiosos, mas que podia també~ viver mdepen~entemente.
Isso porque as associações que ensaiavam,, que repetiam a peça Nosso rei vem com vontade
entre duas festas foram levadas pouco a pouco a desenvolver Nosso rei vem com vontade
De festejá neste dia
suas atividades f~ra da cerimônia de coroação e da procissão O glorioso São Lourenço;
de Nossa Senhora do Rosário. .As autoridades leigas delas se E por isto. nos trás aqui
apropriaram para dar mais brilho aos grandes ~estejos. popu- O nosso rei Dom Caro.
lares celebrados por ocasião de qualquer acontecimento impor- O Zambiapungo, Zambiapungo,
Tirindundê, ô lê lê
tante, co~o o casamento de uma princesa, o nascimento de
um herdeiro em Portugal. Já no mesmo auto dos Congos, colhido por Gustavo Barroso
De outro lado a Igreja começou a ver com maus olhos em época mais recente, encontro a forma Zlf1lmuripunga, na quadra:
essas cerimônias africanas misturadas às cerimônias católicas.
Aceitava a coroação real desvirtuada, mas não tão fàcilmente Abençam de Zamuripunga
Que no céu te ponho já
a congada que se lhe seguia. No ~o, a própria coroação dos A mulá, amulequê
reis foi proibida na festa do Rosário.( 81 ) E, dessa forma, a Amulequê, amulá.
congada perdeu pouco a pouco o domínio da religião para
entrar no cainpo do folclore. Com o nome Zabiapunga existe uma dança de prêtos no sul
Tivemos, pois, dois catolicismos distint?s•..em_ virtude da do Estado da Bahia, corruptela e significado extensivo de Zambi-
ampungu. Na referida descrição do auto dos Congos pelo Dr.
distinção de côres, que impe~em ~a ass~a~ao total do Pereira da Silva, encontramos a palavra calunga com significação
negro à religião do branco. Daí as criticas dos Viajantes estran- desconhecida:
geiros, principalmente anglo-saxões e I?rotestantes, ~u~ ~ecla­ Calunga ê meia ê
rain que os brasileiros de côr estão desfigurando o cnstiamsmo. Zambuê
dêle fazendo uma mistura de cerimônias burlescas e imora- Calunga ê meia ê
Zambuê.(83)
lidades.(82) O que é preciso dizer, e que é mais justo, é que
(79) Textos citados por F. MENDES DE ALMEIDA, "O Folclore nas O catolicismo negro foi um relicário precioso que a Igreja
Ordenações do Reino", B.A.M.S.P., LVI, pp. 64-9.
(80) De GENTIL DE LA BARBINAIS, Nouveau Voyage Autour du Monde, ofertou, não obstante ela própria, aos negros, para aí conser-
citado por G. FREYRE;, Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 217, e resu- var, não como relíquias, mas como realidades vivas, certos
mido em A. de TAUNAY, Na Bah.ta Colontai, cap. 7.
(81) J. B, DEBRET, op. ctt., II, p. 225. valôres mais altos de suas religiões nativas.
(82) G. F. MATHISON, Narrattve o/ a Vistt to Bra2iZ, pp. 157, 158 e 159.
(83) A. RAMOS, O Negro Brasileiro, pp. 106-7, 110.

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CAPÍTULO VI

As SobreVivências Religiosas Africanas

Em que medida o catolicisp:io do negro adulterou as reli-


giões africanas? Parece que o escravo não opôs· uma resistên-
cia aberta a esta cristianização, imposta pelo .branco, ou à sua
arregimentação em confrarias do Rosário e de São Beneclito.
D'Assier assinala a negligência com que se submetia, chegando
ao Brasil, ao sacramento do batismo e, nesse ponto, contrasta
o escravo com o índio que gostava "de fazer-se rogado" .para
assim ganhar um presentinho, uma garrafa de tafiá, um pedaço
de pano, chegando mesmo a batizar o mesmo filho por vários
padres sucessivamente só para receber presentes.(1) O meio
em que o negro era introduzido o induzia, aliás, a aceitar,
até a desejar, o batismo, que melhorava seu status social, sem
seµi o que os negros crioulos caçoavam dos africanos "pagãos",
chegando mesmo a injuriá-los, enquanto os brancos os trata-
vam como animais "sem alma". Dessa maneira, apressam-se
em aprender de cor algumas orações· de que não compreendem
o sentido.(2 ) Se excluímos as tentativas feitas pelos Jesuítas
para fazer vir padres que conheciam a língua de Angola ou
os escravo!) dos conventos que seguiam o catecismo regular-
mente e se confessavam, pelo menos duas vêzes por ano, no
Natal e na Páscoa,(3) a catequização, como dissemos .nuµi ca-
pítulo anterior, permaneceu superficial: o catolicismo se so-
brepôs à religião africana, durante o período colonial, mas não
a substituiu. À sombra da Cruz, da capela do engenho e da
igreja urbana, o culto ancestral continuou, o que levou Nina
Rodrigues a afirmar, no fim do período escravista, "a ilusão
da catequese". ( 4 )
(1) A. d'ASSIER, Le Bréstl Contemporain, pp. 77-9.
(2) KOSTER, op. ctt., pp. 343-44. C!. TOLLENARE, Notas Dominicaes,
p. 140.
-(3) S. LEITE, História da Companhia ãe Jesus, pp. 353-54, sôbre a
catequização na Bahia em língua. angola, · e sôbre a catequização nos
conventos.

1 . (4) Nina RODRIGUES, O Animismo Fetichista, p. 199.

181
1
Ilusão porque os senhores ou proprietários de escravos os impedia de visitar tôdas, cada ano.(1°) Tollenare também
não estavam interessados em suas almas e sim eµi seus corpos. pensava que o ensino religioso só era possível nas cidades.(11)
Não viam nêles sêres a salvar e sim máquinas de trabalhar. Nesse ponto, outras dificuldades surgiam. O escravoeséãpava,
Ainda no século XVIII, o arcebispo D. Sebastião Monteiro de pela rua, ao estreito contrôle de seus senhores; encontrava-se
Vide se queixa amargamente que: com os membros de sua "nação" nos batuques noturnos ·em
que se alimentava de lembranças de sua civilização nativa; o
o de que tratam principalmente os compradores é de porem os branco da cidade, Piais ocupado que o dos campos pelos negó-
escravos ao trabalho, e descuidam-se tanto de lhes ensinar a dou-
trina Cristã, que poucos são os que têm a fortuna de serem bati- cios políticos se era homem, e se mulher, pela vida mundana
zados dentro de um ano. (li) principalmente, não se interessava nem mesmo por ensinar aos
seus empregados de côr o sinal da cruz ou o Padre-nosso.( 12)
02. capelães, quando não eram tomados pelo cliµia volup- O clero, que podia e· devia substituir nesse caso o senhor, ex-
tuoso dos trópicos, abandonavam-se aos deveres de seus cargos -ceto o clero regular, pouco se preocupou com sua missão. O
como a uma atividade puramente profissional, sem nutrirem <le Minas, por exemplo, nota Saint-Hilaire, não teµi outro dever
o amor cristão; ainda no século XIX, quando os costumes ti- senão o de rezar uma missa não cantada todos os domingos e
nham µiudado assaz profundamente e os brancos se interes- -confessar os fiéis na Páscoa; o resto do tempo se dedica ao
savam mais pela moralidade de seus trabalhadores, -comércio, à profissão de advogado; os sacerdotes são proprie-
tários de minas ou de engenhos, inesmo contrabandistas de
êles não os evangelizam, observa Ribeyrolles, e sim levam-nos ao .ouro e de pedras preciosas. Os curatos são obtidos em con-
trabalho. Batizam os negros e os casam, mas não os instruem. (6)
cursos ou comprados. O sacerdócio tomou-se uma profissão,
Couty, na mesma época, faz uma observação análoga.(7) não uma vocação; assim os vícios triunfam e os sacerdotes vão
Os brancos viam taµibém freqüentemente na ascensão do à igreja publicamente com suas concubinas e seus bastardos.(1 ª)
negro ao cristianismo um verdadeiro perigo, uma primeira É compreensível, nessas condições, que o catolicismo
igualação entre o senhor e o escravo, que podia ocasionar con- negro em geral sobrepôs-se, mais do que a penetrou, à reli-
seqüentemente outras igualações - uma primeira brecha, por gião africana, e a confraria freqüentemente prolongou-se em
conseguinte, em seus privilégios. Lindley toma-se seu intér- candomblé. Vilhena reconhece que ·é impossível arrancar do
prete quando declara que .coração dos africanos os costumes e as ceriµiônias que "be-
beram com o leite de sua mãe" e que seus pais lhes ensinaram;
esta participação na religião do país e a familiaridade inconseqüente ·êle afirma que entre mil negros, há talvez um que siga voluntà- 1
que se permite aos escravos, os tornam impudentes. (S) 11
riamente o cristianismo; entre todos os outros, êste é impôsto
A negligência dos senhores não era, contudo, o único fator de fora, um simples verniz superficial.(14) Em 1738, o prior
atuante. Onde não havia capelães fixos nos engenhos ou nas <los Beneditinos da Bahia, num documento encontrado nos
plantações, -ªL!-fütâncias entre as propriedades eram enormes, (10) H. KOSTER, Voyages Pittoresqu.es, pp. 150, 155. Esta dificuldade 1
tomando as visitas dos sacerdotes· iàiãs e cãfàs. Frésier atribui
assim ao isolamento a falta de vida religiosa tanto entre brancos
como entre os negros na província de Santa Catarina, em
1713.(9 ) Em Pernambuco, os padres eram obrigados a per-
.da cristianização das massas africanas rurais, por causa das grandes dis-
tâncias, foi também observada por P. CALóGERAS, Formação Histórica,
p. 78. J. ABREU Filho, "A Influência Negra", Problemas, I, 5, 1938, pp. 32-3.
s. LEITE, op. cit., II. p. 355. MANSFIELD, Paragu.ay BraziZ anã the Plate,
p. 93. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, pp. 43 e 46. DEBRET, op. cit., II,
.P· 100. KIDDER, op. cit., p, 136. AGASSIZ, Viagem ao Brasil, p. 85. TSCHUDI,
op. cit., llI, p. 134.
ll
correr distâncias a cavalo de 20 a 30 léguas, que separavam (11) TOLLENARE, op. cit., p. 79 n.
(12) Perdigão MALHEIRO nota justamente que a educação religiosa,
as propriedades ou as povoações, o que, como conseqüência, possivel n111 zona rural, permanece nula na cidade, A Escravidão no Brasil,
Titulo II, cap, 3.
(5) Citado por M. QUERINO, Costumes Africanos, p. 35. (13) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces de Rio et de Minas,
(6) Cf. RmEYROLLEB, Brastz Pitoresco, pp. 43-5. · cap. VIII. Voyage au.z Sou.rces, p. 338 e o cap. XVI. Cf. D. de VASCONCELOS,
(7) L. OOUTY, L'EscZavage au. BrésiZ, p. 76. História Antiga, p. 300, sôbre o clero de Minas (tod111Vla houve tentativa de
(8) Th. LINDLEY, V011age au. BrésiZ, pp. 188-89. .reforma eob D. Pedro de Almeida), e GRANT, História do Brasil, p. 308.
(9) Citado por A. de E. TAUNAY, Sta. Catarina nos Anos Primeiros. (14) VILHENA, Recopilação, p. 137.

182 11 188
iJ'~
t
arquivos por Luiz Vianna Filho, lamenta-se de que os Angolas, sua repercussão no regime de trabalho servil. Mesmo assim,
os negros de São Tomé e de outros lugares, se bem que cate- é útil agrupar todos os documentos de ordem histórica que pos-
quizados, batizados e vivendo no meio dos brancos suímos; um determinado número de conclusões podem ainda
assim ser inferidas, que não são de se desprezar.
não abandonam por isto as superstições que aprenderam em suas
terras, reúnem-se em sociedades (às escondidas) para fazer seus
calundus. (15) *
* *
No início do século XIX, Luccok nota que o catolicismo Observainos que a escravidão, destruindo o regime fa-
dos negros e mulatos de Minas é um catolicismo puramente miliar, não permitiu mais a subsistência do culto dos ancestrais
nominal, que se reduz a simples gestos, sem significado para a no Brasil. :E:sse culto estava, entretanto, tão enraizado nos
alma.(16) Em 1838 ainda Flechter e Kidder mostram que o costumes e na civilização -de tôdas as etnias da África negra
escravo maometano não renega sua fé, mesmo batizado, e que que deixou, no mínimo, um certo número de atitudes mentais,
o negro fetichista continua seu culto, mesmo considerando-se de formas de comportamento e de tendências sentimentais
cristão.(17) entre os escravos, como entre os negros crioulos, educados por
- Infelizmente dispomos apenas de poucas informações - êsses escravos: a importância do entêrro, dos rituais de sepa-
que são, ademais, bastante fragmentárias - sôbre as sobrevi_- ração entre os vivos e os mortos, a idéia de que as almas dos
vências do animismo no período colonial e mesmo no impe- falecidos reuniam-se à grande família espiritual dos ancestrais
rial. O interêsse por pesquisas etnográficas ainda não existia; no outro lado do oceano. :E:sse cuidado de render aos mortos
as informações que nos restam estão dispersas em meio aos o culto que se lhes devia, a fim de que não se vingassem, para
livros mais diversos, crônicas históricas, narrativas de viajantes. que não viessem perturbar seus filhos com doenças ou pesa-
O branco não se interessava pela religião de seu escravo a delos, explica a importância que o cerimonial de enterra-
não ser na medida em que esta podia ter alguma influência, mento conservou entre todos os afro-ameríndios,(2º) mesmo
seja em perturbando seu sono pelos sons roucos de suas vozes entre os que se assimilaram mais profundamente à civilização
quando cantavam, o tantã ensurdecedor de seus tambo- 11
ocidental, como os dos 'Estados Unidos.(21)
res, (18) seja no caso em que um sacerdote negro se torna o No Brasil, êsse cerimonial se preserv·ou tanto mais fàcil-
chefe ou o líder de uma revolta, de uma fuga de escravos, de " mente, pelo menos durante os dois primeiros séculos de escra-
um episódio de suicídios coletivos.(19) Fechava os olhos en- vidão, devido aos brancos considerarem o negro como um ani-
quanto os cultos não tocavam seus interêsses imediatos. Tudo mal sem alma. Em vão, as ordens religiosas protestaram contra
o que sabemos é, pois, através de uma tomada de consciência o abandono dos negros no momento de sua morte por seus
egoísta, parcial e desigual, que deixa desaparecer os mais im- sellhores.(22) Todavia, essas ordens nunca foram inteiramente
portantes elementos para uma análise científica das religiões obedecidas em seus protestos, porque iam de encontro a essas
representações coletivas do negro como "coisa" e não como
africanas no Brasil, e não retém senão o aspecto mais externo, "pessoa"; representações essas que nunca estão explícitas nos
(15) L. VIANNA Filho, O Negro na Bahia, p. 108. livros, manifestas ou escritas por indivíduos, mas que existiam
(16) Citado por M. BANDEIRA, "De Vila Rica de Albuquerque a Ouro
Prêto", número especial de O Jornal no centenárlo de Ouro Prêto. tão profundamente q~e ainda as encontramos hoje no folclore
(17) FLECHTER e KIDDER, Brasil, p. 132. Cf. B.I.H.G.B., t. 90, vol. popular, em quadriD.has do tipo que se segue:
144, 1921, p. 153, e G. F. MATHISON, Narrative, p. 157.
(18) Nuno MARQUES PEREIRA, por exemplo, citado por Câmara (20) I. PEREDA VALDES, El Negro Btoplatense, pp. 37-42. M. J.
CASCUDO, Meleagro, p. 180. HERSKOVITS, Li/e in a Haittan Vallev, cap, X. Martha WARREN BECKVITH,
(19) L. VIANNA Filho, op. cit., p. 107. Em 1637, um mocambo de Black Roaàways, a Stv.cly o/ Jamaican Folk Li/e, caps. VI e VII, etc.
negros fugitivos é destruido; imediatamente são feitos prisioneiros o "gover- (21) M. J. HERSKOVITS, Th.e M'Vth o/ the Negro Past, cap. VI.
nador" (isto é, o chefe millta.r) e o "bispo" (isto é, o chefe religioso) (22) Carta do rei ao governador de. Pernambuco de 17 de março de
dêsse mocambo. 1693, citada por ALTAVILA, O Quilombo dos Palmares, p. 110.

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·-···--··-·-----~------------------..._-"-=-__:.-:::::.:-···=---=··==·-·=·----
O branco, Deus o fêz Durante a ocupação holandesa, o pastor Soler escreveu a um
O mulato, Deus o pintou de seus amigos que quando um negro morria, homens, mulheres e
O caboclo é um peido de porco crianças rodeavam o cadáver, e, ao som dos tambores, o interro-
E o negro, o diabo o cagou(28) gavam cantando: "Ai, ai, ai, por que morreste? - Ai, ai, ai,
faltava-te pão? Ai, ai, ai, faltava-te peixe?" e assim, passavam
O negro não n<JJ$Ce, apmrece em revista todos os tipos de alimentos e de bebidas.(30)
Não morre, de.saparece
O branco dá sua alma a Deus As descrições que Debret nos dá no início do século XIX dos
O negro dá a sua ao Diabo (24) enterros de negros os mostram impregnados de cristianismo. Entre-
tanto, nota que êsse cristianismo é mais ou menos aparente segundo
Se o padre que diz a missa é branco as nações, os Moçambiques, segundo êle, o denotam ao máximo. Os
A de wm negro não seria mais que mentira ... enterros de negras são acompanhados somente por mulheres, com i
O negro nasceu para ser um cão exceção de dois carregadores, um mestre de cerimônia e um de
Quando morre, morre latindo (25) tambor. Durante todo o cortejo as carpideiras lançam gemidos ;)
e gritos. Chegadas à Igreja dos negros, o cadáver é transportado !!
Ou ainda em tôda uma série de provérbios que ressaltam a numa rêde acompanhado de 8 parentes ou amigas intimas, devendo \ji
impossibilidade do negro tornar-se cristão: "O negro se confessa cada uma pousar sua mão sôbre o corpo. (31) Para um rei negro,
mas não toma a comunhão", "O negro não entra na igreja, espia a cerimônia é ainda mais impressionante. Uma moeda é posta
por fora'', "O negro não acompanha a procissão, corre atrás dela" na bôca do defunto e uma fita ao redor da cabeça para manter
e; por fim, o que toca o nosso objeto mais de perto: "O negro não os maxilares presos. É estendido sôbre uma esteira, envolvido
morre, acaba".(26) em suas roupas de gala (se isto é impossível, êle é representado
na parede por um desenhista com suas roupas) e os dignitários
Compreende-se, nessas condições, que os brancos não se de tôdas as diversas nações negras o vêm visitar, o embaixador,
o porta-bandeira, o capitão da guarda. Tôda a noite, seus súditos
incoinodavam em assistir um escravo no momento de sua o velam, ressoando no ar o som das batidas abafadas de suas
morte.(27) D'Assier, no comêço do século XIX, mostra que
seus companheiros velam sozinhos seus derradeiros instantes e
se ocupam de seu entêrro.(28) :l;:ste isolamento permitia a per-
r mãos ou de seus instrumentos musicais. O entêrro é acompanhado
por uma multidão que solta bombas, chora, canta; alguns executam
mesmo saltos perigosos. (82)
petuação de costumes tradicionais, de cerimônias arcaicas e Kidder pôde ver de sua janela, onde se lançara atraido pelo
tudo nos leva a crer que, para melhor celebrar os enterramentos barulho, "um negro trazendo sôbre a cabeça uma tábua, na qual
dos cadáveres nos cemitérios, os negros aceitaram as confrarias estava colocado o cadáver de um negrinho, coberto por um pano
católicas, o rito cristão não fêz mais que se sobrepor ao rito L branco, ornado de flôres, tendo à mão um ramo. Atrás seguia a
multidão entre a qual umas vinte negras e numerosas crianças,
"pagão" já arraigado profundamente nos costumes dos afro- quase tôdas enfeitadas de fitinhas vermelhas, brancas, amarelas,
-brasileiros. · · que entoavam alguma cantiga etíope da qual marcavam o ritmo
com um passo lento e cadenciado; o que levava o corpo parava
Os documentos mais antigos que possuímos sôbre êsse assunto freqüentemente e voltava-se sôbre seus passos como se dançasse". (33)
datam do século XVII. Em 1618, quando da visita da Inquisição
na Bahia, Sebastião Barreto denuncia junto aos padres o costume Melo Moraes Filho nos deixou uma descrição de um entêrro
que têm os negros de matar animais em seus enterros para lavar moçambique em 1830 que lembra a descrição de Debret, as mulheres
os corpos em seu sangue, dizendo que nesse caso a alma deixa ·o seguindo o cadáver de uma mulher, os homens o de um homem,
corpo para subir ao céu.(29) os dois sexos assistindo o de um rei ou o de uma criança, todos
com um grande acompanhamento de palmas, de tambor, de cantos
(23) José LINS DO R1!:GO, Bang'IU (romance), J. Olymplo, s. d. (310 pp.), e lamentações fúnebres.(34) É evidente que essas narrativas não vão
p, 258. além da superfície das coisas, mas provam ainda assim que o roa-
(24) Câmara CASCUDO, Vaqueiros e Cantadores, p, 113.
(25) Novos Estudos, p. 56. nismo africano subsistia, era vivo. Os dados de S. Vampré são
(26) Florestan FERNANDES, "O Negro na Tradição Oral", o Estado de
s. Paulo, 1, 7, 1943.
(27) M. GRAHAM, J<YUrnal, p. 144, conta que alguns lnglêses, tendo (30) Carta Impressa em 1639 e citada por G. de MELLO Neto, "A Situa-
encontrado uma negra morrendo numa estrada, pediram aos portuguêses ção do Negro sob o Dominlo Holandês", Novos Estudos, p. 220,
que os aco~panhavam que a socorreasem; porêm, êles lhes responderam: (31) DEBRET, Viagem, pp. 184-85.
"InútU pararmos, é apenas uma negra". (32) Id., tbtd., pp, 185-86.
(28) D'ASSIER, op. ctt., p, 157. (33) D. P. KIDDER, Remtntsc/lnctas, pp. 142-43.
(29) L. VIANNA Filho, op, ctt., p. 108. (34) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 379-84.

186 187
mais interessantes, porque nos mostram os negros de São Paulo reu-
nidos em suas confrarias do Rosário no fim do período escravista segurança. Sabe-se que a magia éstá ligada justamente à angús-
dirigindo-se ao morto da mesma forma que, no século XVII ; tia ante o estranho e o desconhecido; é ela uma técnica irra-
negros do Pernambuco holandês, lhe diziam em seu falar crio~lo: 0

"~u que amavas tanto a vida. Tu, bôca, que tanto falou. Tu, cional para tranqüilizar. Dessa forma, tudo concorria: o cará-
b~ca, que tanto comeu e bebeu. Teu corpo que tanto trabalhou. ter supersticioso dos primeiros imigrantes, a ausência de uma
Vos, pernas, que tanto andastes".(35) . medicina científica, a insegurança dos trópicos para um homem
Esta duração do costume mostra a resistência das cerimonias vindo da Europa, mediterrânea e temperada, para manter entre
mortu~rias af:ica~. Rocha Pombo assinala também que é nesse os brasileiros o interêsse pela inagia.
domínio dos ritos funebres que as sobrevivências são mais nume- E da mesma forma, o negro, tendo uµia dupla qualifica-
rosas. O cadáver é Javiado, como no Camerum antes de ser sepul- ção, a de estrangeiro, ou seja, a de estranho - e a de côr,
tado e, às vêzes, faz-se..Jhe a barba. Antes' do sepultamento é
velado por seus amigos; é a cerimônia do velório e os que vel~m que é a côr do Diabo - lhes parecia feiticeiro, por excelência.
são ~esignados pelo nome de carpideiras. Bebe-se, come-se, entoa-se Mas também a atitude do branco vai ser ambivalente em rela-
cantigas e se os parentes do defunto não podem arcar com as ção ao prêto. De um lado, aceitará sua magia medicinal, seus
~espesas do velór!o! c;otizam-se à maneira da África; depois o cadáver filtros amorosos que darão aos senhores esgotados sexualmente
e levado ao cemiterio,. enquanto o c~rtejo dança em redor, jongos o vigor desaparecido,(39) e de outro, terá receio do feiticeiro
e. co!l~adas. (3 6 ) É evidente que os termos "jongos" ou "congadas"
s1gmf1cam para Rocha Pombo apenas "danças de negros" indistin- escravo que conhece as plantas venenosas, e prepara os ve-
tamente; de fato, as danças mortuárias que seguem o féretro nada nenos, para se deseµIbaraçar de senhores odiosos. Antonil
t~m 3: ver com as danças eróticas, como o jongo, ou danças de alude a esta guerra mística, aos "feitiços" preparados pelos
d1vertJmento, como a congada; constituem aqui ritos fúnebres espe- negros e lançados contra os proprietários de terras ou de
cializados.

O segundo campo ein que temos igualmente informações


históricas bastante detalhadas é o da magia africana. Na rea-
,,
1
minas;(4º) a êsse respeito, aludimos mais acima.
É por isso que vemos, lado a lado:
lidade, ela impressionou os brancos. "Por várias razões e pri- 1.º - Tantas condenações durante todo o período colonial ou
meiro de tudo porque o colonizador português era supersti- imperial, como a de Luiza Pinto, negra livre, de Sabará, nativa
cioso também, como seu escravo, negro ou índio. O pequeno de Angola, condenada a quatro anos _de prisão "por crime de fei-
tiçaria e presunção de ter feito um pacto com o Diabo" (1744),(41)
número de "cirurgiões", de médicos e de boticários durante ou a do negro de Santo Antônio de Cachoeira que "ordenou a
todo o período colonial, mesmo nas grandes cidades e nos revolução" em seu bairro (1888) .(42)
portos comerciantes do litoral,(37) forçava os doentes a infu-
sões de ervas ou aos emplastros que não chegavam a curar, a 2.0 - Ao mesmo tempo o reconhecimento oficial do curandei-
rismo negro pela metrópole, como o prova o caso do Rei D. João VI
consultarem "curandeiros" e "algebristas"; e como os africanos dando uma pensão de 40 $ ao soldado Antônio Rodrigues, que curava
eram versados na arte da magia curativa, impuseram-se a seus com o auxílio de certas palavras poderosas;(4S) os viajantes da época
senhores brancos e mantiveram, dessa maneira, alguns de seus imperial se admiraram por esta aceitação da parte do branco, dos
processos nativos, misturando-os, aliás, aos processos dos fei- processos africanos de medicina mágica. ( 44)
ticeiros brancos. Um poema de Gregório de fylattos evoca,
para o século XVII, alguns casos desta magia médica.(38) Esta dualidade de atitudes do branco em relação à magia
associa-se às vêzes à dualidade da estrutura· social, à oposição
Enfim, é óbvio que o português, longe de seu país natal,
numa terra estrangeira, cheia de ciladas e de perigos impre- cidade-campo. Nas zonas rurais, sobretudo nas regiões afas-
tadas, isoladas, o negro tinha mais prestígio, pois que substi-
vistos, num clima freqüentemente enervante, não se sentia em
(39) G. FBEYRE, Casa-grande, p. 238.
(35) Spencer VAMPRÉ, Memórias Para a História àa Academia de s. (40) Sôbre a magia como arma de guerra contra o branco: ANTONIL,
Paulo, Saraiva, s. Paulo, 1924, I, p, 75. Cf. Avé-LALLEMANT, Reise Durch. Cultura e Opul~a, pp. 95-6, e sôbre a magia como auxilio válido a-os
Nord Brasilien, p. 36, para fatos análogos na- mesma época no norte do Bra.sll. escravos: KOSTER, Voyages Pittoresques, n, p. 188.
(36) Rocha POMBO, História ão Brasil, ll, p. 543. (41) X. de VEIGA, Efemérides Mtn.eiras, p. 511. .
(37) A. MACHADO, Vida e Morte ão Bandeirante, p. 97. (42) "O Guartpocaba", Jornal de Campinas, Estado de S, l'aUlo, 2·12-1886.
(38) Gregório de MATTOS, Obras, Oficina. Industrial Gráfica, Rio, 1930. (43) L. EDMUNDO, o Rto de Janeiro ••• , p. 472.
t. IV: sattrica, vol. I, p. 345. (44) WALSH, Notfces, p. 415.

188 189

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um feiticeiro fazendo dançar duas serpentes numa praça da cida-
tuía o papel do médico ausente. Saint-Hilaire e Koster, no de. ( 49) Alguns anos depois, Saint-Hilaire e_?cont:a prática~ anáfogas
curso de suas viagens pelo Brasil rural, observam o fenô- em Minas e em São Paulo. O cura de Sao Joao Del Rei (Mmas)
meno. ( 45) Em compensação, na cidade, a magia africana não tinha um escravo que fôra de seu pai, que agarrava impunemente
somente se chocou com o clero urbano, mais esclarecido ou as serpentes venenosas. Um dia êle amarrou o escravo a fim
de se apossar de seu segrêdo e êste confessou que se tornara
mais "romano",(46) mas ainda se depreciou em contato com os invulnerável às picadas, esfregando o corpo com a "erva de urubu".
brancos, que lhe pediam receitas voluptuosas, o meio de se Porém acrescenta Saint-Hilaire, qual é essa erva? ( 50) A serpente,
livrarem dos rivais eµi amor ou de inimigos políticos. Perma- aliás 'é objeto de muitas superstições desta época e é opinião
necia assim, sem dúvida, mais propriamente africana (e par- difu~dida nas mesmas regiões que a mordida da cascavel cura da
ticularmente banto), servindo-se de ossadas roubadas nos cemi- Iepra.(51) Koster chama êsses negros feiticeiros não de "curande~­
ros" mas de mandingueiros; êstes podem manejar as serpentes mais
térios, dotadas de "virtudes" especialmente fortes. Desta ma- venenosas sem perigo, encantá-Ias com seus cantos ou seus gritos,
neira quando se exumou em 1881 o cadáver de Maria Moreira, curar de suas picadas. Nesse último caso, o paciente deve rodear
africana morta três anos antes, no ceµiitério dos leprosos, fal- sua cabeça, seu rosto e seus. ombros com uma serpente. domesticada
tava o crânio do esqueleto.(47) e o mandingueiro pronuncia algumas palavras mágicas. Se um
homem mordido por uma serpente não pode apelar para um ·dêsses
Essa necessidade reconhecida de uma magia, tanto para feiticeiros, deve se isolar, porque a mordida tornar-se-ia mortal, se
o mal como para o bem, e, ao mesmo tempo, êste temor do lançasse os olhos, mesmo involuntàriamente, para u_m animal, fê~ea
branco pela feitiçaria de seus escravos, explicam por que os e particularmente uma mulher.(52) O ponto de vista de D Assier
documentos sôbre µiagia africana no Brasil são relativamente difere essencialmente dos viajantes precedentes: falando da jara-
raca trigonocéfala, singularmente venenosa, que, contudo, parece não
numerosos. A questão apresentava um interêsse prático, mais fazer mal aos negros, acrescenta: "Contudo, tal é a aversão ins-
que a descrição de cerimônias mortuárias ou de danças mís- tintiva dos negros por êsse réptil, que muitos dêles preferiam levar
ticas. E entre êsses documentos, os que são mais explícitos, uma bastonada a tocar e principalmente profanar uma serpente
que contêm mais detalhes, são os que tratam de serpentes. O morta". (53) Entretanto, esta contradição não é mais que aparente.
que é coµipreensível numa época em que a vacinação antiofí- Pode ela provir ou de uma sobrevivência totêmica, ou da ambiva-
lência da noção de sagrado. Em todo caso, o fato é certamente
dica não existia e onde os humildes trabalhadores dos campos, verídico, porque Herskovits o encontrou igualmente entre os des-
em sua lidas cotidianas, eram freqüentemente picados por êsses cendentes dos negros fugitivos da Guiana Holandesa.(54)
répteis.
Donde resulta êsse complexo da serpente no Brasil? Certos
Tollenare diz que os negros curandeiros se cercavam de ser- autorês pensam que é de origem daomeana e é certo que o culto
pentes que obedeciam a suas ordens, resultado de determinadas do Vodun existiu na época colonial; o Códice Felipino a êle faz
preparações. Ensinavam seus segredos a seus sucessores e êste menção, atribuindo:o, aliás, aos "negros da Guiné" em geral. ( 55)
ensino toma a forma de uma iniciação religiosa, sôbre a qual o Charles Expilly, por seu lado, afirma ter encontrado o culto da
autor, infelizmente, não nos dá informações. Uma amiga de Tolle- serpente Panga no Brasil, mas originário do Congo; teria êle até
nare, mordida tão profundamente por uma serpente, que o sangue mesmo lhe consagrado um livro, Os Negros Feiticeiros ( 56) que não
lhe safa por todos os orifícios da cabeça, fêz vir um dêsses curan- foi publicado e o manuscrito certamente se perdeu porque não o
deiros que, estando ocupado, contentou-se em lhe enviar ( ... ) seu encontramos. Entretanto, parece que, em conseqüência das des-
chapéu. (48) :t!:sse chapéu foi colocado sôbre a cabeça da moribunda crições que citamos, não há razão para se falar de um culto pro-
que se sentiu melhor no mesmo instante. A tarde veio o curandeiro, priamente dito, ainda menos de um velho totemismo africano con-
chamou a serpente culpada que, de fato, apareceu, andou em tôrno
do leito, para grande terror dos assistentes, depois enrolou-se no (49) TOLLENARE, op. cit., pp. 107-8.
(50) SAINT-HILAmE, V01Jage au:c sources du Rio S. Francisco, p. 98.
corpo do negro, que a matou. Tollenare igualmente viu em Recife (51) Id., ibid., p. 152.
(52) KOS'I'ER, op. cit., II, p. 77.
(45) SAINT-HILAIRE, VO'Jlage dans les Provinces de Bio et Minas, p. 305. (53) D'ASSIER, op. cit., pp. 45 e 285.
(46) A. de CARVALHO, "A Magia Sexual no Brasil", &I.A.H.G. de Per- (54) M. J. e F. HERSKOVITS, Rebe! Destiny, p. 72.
nambuco, vol. XXI, p. 406. (55) Codez Felepino, Rio, 1870, p. 931, citado por Mendes de ALMEIDA,
(47) Alvares do AMARAL, Besumo Cronológico, p. 277. Se 1ndlcan:i.os uma op. cit., p. 85.
provável influência banto, é porque, em Cuba, a região da América onde as (56) Ch. EXPILLY alude a êsse livro, não encontrado, em Mulheres
sobrevivências religiosas africanas são mais semelhantes às do Brasil, a magia e Costumes. O culto da serpente existe, na !realidade, entre os bantos.
com a ajuda de OBBadas, principalmente do crânio, roubadas aos cemitérios, R E DENE'IT At the Back of the Black Man's Mind, p. 140. Sôbre o
ainda hoje existe entre os Congos. Ver Lydla CABRER.A, El Monte, p. 147. cÜ!to' da serpei:i.te na Africa, em geral, ver: W. D. HAMBLY, "The Serpent
(48) :tste costume do chapéu sobrevive ainda, como um de meus estu- ln African Bel1ef and Custam", .American Anthrop., vol 31, 4, 1929.
dantes brasileiros observou em 1938 em O Estado de S. Paulo.

191
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servado no Brasil. De fato, há dois grupos de "magia" ligados os Xangôs de hoje não são sucessores dos Xangôs do século
mas que não podemos distinguir por falta de conhecimentos: d~ XVII, a evolução se processou numa linha descontínua, porém,
um lado, o negro encantador de serpentes, e podemos pensar que pontilhada de criações, desaparecimentos e novas aparições de
seja talvez de origem muçulmana ou árabe (o têrmo "mandin-
gueiros" dado por Koster a êsses "encantadores" deixa supor uma seitas.
influência maometana) e de outro, o negro curandeiro de mordidas O primeiro documento literário data também do século
de serpentes; e, nesse caso, o fenômeno não é mais que um caso XVII; é uma sátira de Gregório de Mattos:
particular de um todo mais vasto, o da magia curativa de que já
falamos. Quantos quilombos existem
Enfim, a terceira série de documentos de que podemos (a palavra quilombo é tomada aqui no sentido de reunião de negros
e não mais de negros fugitivos)
dispor trata dos cultos religiosos propriamente ditos. São infe-
lizmente os menos numerosos, o que se compreende, porque a Com senhores· superlativos
Onde a noite se ensinam .1
magia interessava tant<? o branco brasileiro quanto o escravo; Calundus e fetichismo! !
os enterros eram púbhcos e despertavam a atenção dos via-
jantes estrangeiros, ávidos de exotismo ou de pitoresco. O Mil mulheres
culto, ao contrário, era secreto. O primeiro documento icono- Os freqüentam com devoção
gráfico que temos é a gravura 105 do Zoobiblion ·de Zacharias Do mesmo modo que homens barbados (portuguêses)
Que se consideram novos N arcisos
Wagner, que estêve no Brasil holandês entre 1634 e 1641; o
texto que a acompanha está assim redigido: ( .•. ) O que digo é que nessas danças
Satã tem parte ligada,
Quando os escravos têm executado, durante a semana inteira Que somente êsse senhor cúmplice
a sua penosissima tarefa, lhes é concedido o Domingo como melho~ Pode ensinar tais delírios. (59)
lhes apraz; de ordinário se reúnem em certos lugares e, ao som
de pífanos e tambores, levam todo o dia a dançar desordenadamente f:sse texto é interessante porque nos mostra que os "can-
entre si, homens e mulheres, crianças e velhos, em meio de fre- domblés para turistas" têm uma origem bastante remota. O
qüentes libações ( ... ) a ponto de muitas vêzes não se reconhe- elemento branco não permaneceu fora do culto africano; par-
cerem, tão surdos e ébrios ficam.(57)
ticipou, provàvelmente não atraído por um interêsse etnográ-
Mas, COJllO observa mais precisamente o Dr. René Ribeiro: fico ou uma inquietação religiosa, mas por apetites baixos.
f:sse contato tendeu a desagregar o culto tradicional, a mudar
à simples inspeção (desta gravura) qualquer pessoa familia- a função, a fazê-lo desaparecer na Jllagia ou no erotismo. Mas,
rizada com os cultos afro-brasileiros do Recife reconhecerá ali uma é preciso notar que o culto não é, segundo a descrição do
roda de Xangô: o mesmo círculo de dançarinos a se movimentar poeta, um culto ioruba ou daoineano, e sim um culto banto. O
para a esquerda com as atitudes coreográficas características· próprio têrmo "calundu", que o designa, evoca certos espíritos
idêntica posição dos ogan-ilu a tocarem dois atabaques do tip~
comum em tôda a África Ocidental e um agogô; a jarra de garapa de Angola, que têm o mesmo nome e que se introduzem nas
ao lado dos tocadores; a mesma posição e atitude do sacerdote. mulheres na hora do parto;(6 º) os dois têrmos, "senhor" e "ca-
Chegavam a não "se reconhecer" não porque estivessem "tão chimbo" incitam a ver nessas cerimônias freqüentadas pelos
surdos e ébrios" e sim por estarem possuídos por seus deuses brancos, cerimônias análogas às do catimbó, do candomblé de
(ficarem no santo), condição psicológica que ·naturalmente o artista caboclo, ou da macumba, isto é, fortemente sincretizadas com
ignorava.(58)
elementos indígenas e católicos. As verdadeiras seitas africanas
Esta perpetuidade de gestos que continuam ao longo dos conservavam, pelo contrário, seus mistérios e seus segredos; não
séculos, como assinalamos anteriormente, não nos deve iludir: aceitavam branco. Em todo caso, desde o coJllêço, a religião
dos negros exerceu uma estranha sedução sôbre as populações
(57) Alfredo de CARVALHO, "O Zoob1bl1on de Zachar1as Wagner"
R.I.A.H.G. d.e Pernambuco, XI, pp, 181-95. ' não negras e, dessa maneira, êsse fenômeno se perpetuou. A
(58) René RIBEIRO, Cultos Afro-brasileiros ão Recife, p. 27. Já, antes
dêle, G. de MELLO Neto fizera uma observação análoga, op. cit., in Novos (59) Gregório de MATI'OS, op. cit., pp. 186-88.
Estudos, p. 221. (60) A. RAMOS, O Negro Brasileiro, p. 113,

192 193
l)

~
!i l
sátira de Gregório de Mattos corresponde, de fato, para a se- nidades cristãs; "as outras são somente toleradas". O projeto
gunda metade do século XIX, ao poema de Melo Moraes: !i li
não devia passar, a Assembléia Constituinte havia sido dissol- li il
Mas que vejo? Tudo em redor serpentes penduradas
vida, e o texto que foi promulgado já era menos favorável:
Galinhas por terra, corujas no muro
Cabras sem cabeça, grelhas sôbre brasa A religião católica, apostólica e romana continuará a ser a
E um fetiche abrindo asas enormes! religião do Império. Tôdas as outras religiões serão permitidas
De um aposento, um bando sujo e chistoso sai com seu culto doméstico, ou particular, em casas especiais, sem ' 1
11,
aspecto exterior de templo.
Agitando os corpos ao som de sinêtas: 11
À luz de uma mecha que queima num azeite côr de terra
Os negros vão orar ao seu estranho ídolo 1 É evidente que êste artigo não aludia de modo nenhum à
1
Mulheres, de diversas côres, dançando juntas religião dos escravos; pensava-se na hipótese somente da reli-
Estão nuas, com exceção de uma tanga ... (61) gião dos estrangeiros, comerciantes vindos a se estabelecer no
Brasil, israelitas ou protestantes. O código criminal de 18 31
Ao lado dêsses documentos, iconográficos ou líricos, temos. penetra mais além nas realidades sociológicas do Brasil e parece
outras duas fontes que nos falam da religião africana: os. tolerar o "fetichismo" sob a condição de permanecer entre os
documentos da polícia e da administração e as narrativas dos muros da senzala e não num templo público. Entretanto, êsse
viajantes. Na época colonial, o culto dos negros foi siµlples e mesmo código comportava um artigo, o artigo 179, que per-
'QUramente confundido com a feitiçaria e como esta era proi- mitia tôdas as intervenções policiais:
bida em Portugal, as ordenações reais que contra ela eram di-
rigidas foram aplicadas no Brasil contra as reuniões de negros. Ninguém pode ser perseguido por razão religiosa, uma vez
que tinham, aos olhos dos cristãos, por suas músicas, suas danças que respeite o Estado e não ofenda a moral pública.(64)
extenuantes, ~ principalmente suas crises de possessão, algo
de demoníaco.( 62 ) O Conde de Pavolide, em 1780, entra em Era sempre fácil, num meio regularmente perturbado por
guerra contra os bailes revoltas de escravos, ver nas reuniões de negros um atentado
contra o Estado e nos sacrifícios de animais, nas danças acom-
"que os prêtos da Costa da Mina fazem às escondidas, ou em casa~ panhadas de transes µiísticos, uma ofensa aos bons costumes.
ou roças com uma preta mestra, com altar de ídolos adorand~ bodes. É, pois, por intermédio dêste artigo 179 que se deixava a defi-
vivos e outros feitos de barro, untando seus corpos com diversos nição da "moral pública" ao critério subjetivo dos administra-
óleos: sangue de galo, dando a comer bolos de milho d_epois de
diversas bênçãos supersticiosas, fazendo crer aos rústicos que dores ou da simples polícia, que a luta contra os calundus e
aquelas ·unções de pão dão fortuna, fazem querer mulheres a os candomblés vai continuar no Império, não obstante o belo
homens e homens a mulheres" e acrescenta que "a credulidade de ornato da Constituição sôbre a tolerância religiosa. Em 1870,
certas pessoas chega a tal ponto, mesmo aquelas que não são tão no sul do Brasil, "as casas da sorte" (como se chamavam então
simples como padres e curas, que ameaçadas de prisão em minha
presença em conseqüê~cia das ~preensõe~ que. mal!dara fazer nessas os templos fetichistas; a palavra portuguêsa tendia a substituir
casas, foi-me necessário, para hvrar sua imagmaçao, fazer os negro&< o antigo têrmo banto de calundu) eram objeto de visitas po-
dessas casas confessarem ante elas sua mistificação e em seguida liciais, destruídas e seus fiéis, aprisionados.( 65 )
submetê-los a seus prelados para que fôssem punidos como-
merecimn". (68) Em 1876, novas perseguições; o Conselho municipal de Cam-
pinas (São Paulo) decreta: "As casas conhecidas vulgarmente sob
Sob o Iµipério, o problema devia se apresentar um pouco o nome de Zangus ou batuques estão proibidas. 30 $ de multa".(66)
diferente. As idéias de liberdade haviam penetrado, da França No Norte, ao princípio do século XIX, o africano Domingos foi prêso
numa sessão de candomblé na Bahia, mas foi sôlto porque pôde
e da América do Norte, no Brasil. O projeto de Constituição· exibir seu título de tenente da "milícia dos Henriques". (67) Em
de 1823 proclamava a liberdade de culto para tôdas as comu-
(64) Sôbre esta questão da autenticidade das .religiões africanas, ver
(61) Melo MORAES Filho, "O Candomblé", Cantos ãe Equador. Diário de BITTENCOURT, "A Liberdade Religiosa no Brasil: A Macumba
(62) F. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., pp. 85-6. e o Batuque em Face da Lel", O Negro no Brastz, pp. 173-86.
(63) Informação do Conde de Pavollde a Martinho de Mello e Castro. (65) MENDES DE ALMEIDA, op. ctt., pp. 85·6.
citada por R. RIBEIRO, op. cit., pp. 27-8. (66) Cf. também "O Guarlpocaba'', Jornal de Campinas, 2-12-1886.
(67) Manuel QUERINO, Costumes Africanos, p. 45.

194 195
1872 na mesma cidade, o chefe de polícia fêz cercar à meia-noite
um dandomblé de Cruz das Almas e aí prendeu oito pessoas entre as ô minha lua, luar
quais um "louco", Raimundo Nonato, de cujo corpo os feiticeiros Minha madrinha
tiraram animais, espíritos e 30 diabos vermelhos, o que fêz com Aceitai vosso filho,
Ajudai-o a crescer.(72)
que o infeliz fôsse encontrado todo coberto de queimaduras e de
feridas (os feiticeiros afirmaram que faziam sair por êsses buracos Mesmo se a interpretação de Maria Graham fôsse exata e se
os espíritos que o atormentavam).(68) Inútil multiplicarem-se os a dança dos negros fôsse dedicada à lua, é preciso não esquecer,
exemplos, porque não nos ensinam infelizmente nada sôbre a orga- como assinalamos, que a cultura e a raça estão separadas no Brasil,
nização dessas seitas, seu cerimonial e sua importância numérica. que muitos traços da -civilização portuguêsa passaram aos negros
Se citamos esta fonte documentária, é somente porque mostra a crioulos escravos, enquanto reclprocamente traços de civilizações
atividade de uma religião, sem cessar perseguida, encurralada, mas africanas foram adotados pelos brancos, o que faz com que não
que jamai:s morre, resistindo assim, até hoje, a tôdas as violências. se possa generalizar a côr dos adeptos na origem geográfica de
seus costumes. A lua desempenha em nossa cultura mediterrânea
As descrições dos viajantes são be!ll !llais ricas. A mais um grande papel, em relação com a água, com a mulher, com o
antiga é provàvelmente a do peregrino da América, Nuno ritmo das crises de loucura e com o crescimento da vegetação i
êste traço não é nem um pouco africano, mesmo se êste o aceita
Marques Pereira, que data de 1728, que não pôde fechar os em seu nôvo habitat. Mas pensamos que Mari:a Graham compreendeu
olhos à noite, por causa do barulho de tambores e de uina mal as respostas dos brasileiros às questões que lhes apresentou
e que seria preciso modificar sua :frase da seguinte maneira :
gritaria "do inferno"; seu hospedeiro o inforµia que se celebrava "Negros cantam e dançam ao luar"; é a dança noturna, que é
um calundu e explica: costume ancestral, não a dança dedicada ao culto da lua. Um pouco
mais tarde, em 1839, Flechter e Kidder aludem aos "fetiches", que
São divertimentos, ou divinações, que êsses negros dizem ter definem como "sociedades secretas" onde os negros celebram seus
o costume de fazer em suas terras, e quando se encontram reunidos, costumes nativos.(73) Em 1846, em Olinda, Koster nota que quan4<>
as praticam também aqui, para saber diversas coisas, como a os escravos estão na senzala e pensam que os senhores estão dor-
mindo, às vêzes se li:bertam e vão com outros negros que convidaram,
origem de suas doenças, ou para encontrar coisas perdidas, e tam- "a alguma festa noturna que se celebrava no maior mistério como
bém para ter sucesso em suas casas, em seus jardins e para muitas as festas da Deusa Boa".(74)
outras coisas.(69)
O segrêdo impedia que os viajantes se entregassem a uina
Porém, é com a época imperial que essas descrições se observação mais completa das seitas africanas. Além disso, êles
multiplicam. Maria Graham encontrou em 1821 "negros dan- se interessavam mais com a categoria de erotismo que de mística.
çando e cantando para a lua" e acrescenta: :B assim que Tollenare, em 1817, nos diz que os negros dan-
çam aos pares, cercados por espectadores: êles
Esta veneração supersticiosa é, diz-se, corrente na África e
provàvelmente os negros, mesmo batizados, dançam para a lua em assim representavam ou a concupiscência do macaco, ou do urso
memória de sua pátria.(70) ou de qualquer outro animal. O macho levava grosseiramente sua
Opinião à primeira vista surpreendente, porque o culto da lua pata sôbre a fêmea, esta se defendia um pouco, fugia e acabava por
não é difundido particularmente na África; deve existir entre os se render; então, os dois dançarinos se precipitavam um sôbre
Krumans, que forneceram escravos ao Brasil, mas em pequeno nú- o outro.
mero. (71) E as superstições ligadas à lua são bem mais numerosas
ainda entre os portuguêses que entre os prêtos: era uso apresentar
Ou então, ao par se juntava um terceiro dançarino, sim-
a criança que nascia à lua crescente para que crescesse ao mesmo
bolizando o caçador, armado de um pau; comumente, batia
tempo que ela: com êle numa jovem negra que se sentia feliz por êste sinal
de escolha.(715) O francês, galante, não viu mais que sexuali-
(68) Encontram-se numerosos exemplos nos cronistas, como Melo dade nas danças animais que têm um outro caráter, se bem
MORAES Filho, Pereira da COSTA, e nos jornais da época.
(69) Citado por Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, que não se possa dissociar o sexual do místico nuµia civiliza-
p. 147.
(70) Maria GRAHAM, Viagem ao Brasil, p. 198. (72l G. PENALVA, O Aleiiadinho, p. 373.
(71) Não obstante a opinião contrária de Braz do AMARAL, "Os Grandes (73) FLECHTER e XIDDER, Brasil, p. 136.
Mercados de Escravos Africanos", op. cit., p. 478. (74) KOSTER, op. cit., p. 23.
(75) TOLLENARE, op. cit., p. 234.

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ção total onde tudo está contido. g provável que tenhamos Assim, êle recuperou a "boa consciência" e as danças místicas
aqui o caso de uma dança que existe ainda na Africa e em dos negros, ao redor de suas pedras lavadas de sangue de ani-
que certos etnólogos quiseram ver uma das origens do teatro mais sacrificados, tornavam válida, aos seus olhos, a distância
africano negro; ela é conhecida sob o nome de Nanzéké e social que mantinha entre si e êles. A definição de civilizações
coloca em luta o grupo de homens fantasiados de caçadores e r africanas como diabólicas foi uma racionalização da brutali-
o grupo de homens mascarados, fantasiados de animais; poréµ:i, ; dade e da falta de humanidade da escravidão.
Nanzéké mata um antílope tabu que chora por se ver colhido o folclore, que mantém as crenças dos séculos anteriores,
nas malhas da morte, o que traz a intervenção da mulher do conserva sempre traços desta falsificação, mais ou menos cons-
caçador "guardião dos fetiches".(7 6) Esta dança se encontra .ciente, das religiões do negro, desta ligação entre o paganismo
sob uma forma ainda mais próxima da brasileira entre os ca- .do escravo e a dualidade da estrutura social. As crenças e os
raíbas negros de Honduras com, na realidade, um só caçador; ritos religiosos dos negros são considerados como constituindo
o animal morto é ressuscitado pelo feiticeiro.(77) E no Brasil -0 lado demoníaco, a margem obscura, dêsse dualismo essencial:

contemporâneo, êsses dois fragmentos da dança africana con- O Negro não adora Deus;
tinuam a existir, o grupo de animais e o caçador nos Ranchos É Calunga que êle ama.
da Bahia,(78) a morte do animal "sagrado" ou "tabu" e sua Todo branco quer se tornar rico;
ressurreição pelo feiticeiro no Bumba-meu-boi, de que êsse diver- Todo mulato é um pretensioso,
Todo cigano é um ladrão
timento africano é, certamente, uma origem ao lado de outras E todo negro um feiticeiro.
européias e índias,(79) se. bem que até agora, que seja de me~
conhecimento, não tenha sido assinalada. Dessa maneira, so- O mulato jamais deixa sua faca
Nem o branco sua sabedoria,
brevivências mais ou menos totêmicas manifestam-se na infra- O "cabra" não deixa nunca sua aguardente,
-e~trutura das danças públicas, as únicas que os viajantes estran- Nem o negro seu fetichismo.(80)
gel.I'os nos puderam descrever um pouco mais detalhadamente
porque a elas assistiram. ' Quando negro velho morre
Exala um odor tão forte
* Que Nossa Senhora não o aceita
* * E o negro não entra no céu.(81)
A estrutura social do Brasil escravista, separando as côres O negro tem pé de animal, unhas de caça e calcanhar rachado,
em classes superpostas, cada qual com sua civilização própria, .seu dedinho é como o pepino de São Paulo,(82)
levou naturalmente a uma falsificação de seus respectivos
valôres. -o que é, mais ou menos, a representação tradicional que o
O branco não podendo compreender uma religião tão di- -cristão da Idade Média fazia do Diabo. O branco podia, é
ferente da sua, julgava-a "demoníaca" já que não era cristã. certo, sentir-se misteriosamente atraído por êsse caminho obs-
O dualismo social se prolongou por conseguinte - justifican- .curo da mística, da mesma forma que era atraído sexualmente
?o-se tambéµ:i - pela oposição entre as fôrças do Bem, que pela mulher de côr; podia, como dissemos, freqüentar os ca-
iam de Deus ao senhor de engenho, e as fôrças do Mal que lundus, até mesmo organizar para si cultos africanos (Saint-
iam de Satã até os seus sequazes das senzalas e dos moca~bos. -Hilaire registra um cerimônia de brancos na povoação de Lage
que se fazia na casa, chamada mandinga, isto é, na casa da
(76) PROUTEAUX, "Premiers Essais de Théâtre chez les Indigênes de la
Haute-Côrte-d'Ivoire", Bullet. àu Comit~ à'J!:tuães Historíques àe Z'A o F 2
feitiçaria africana, e que consistia em uma mistura de orações
1929, pp. 448-75. . . . ., • .católicas e de batuques, dançados inicialmente apenas pelos
(77) Ruy COELHO, "As Festas dos Caribes Negros", An1iembí, 25, 1953,
Ano m, vol. IX, pp, 54-72. homens, depois por homens e mulheres juntos);( 8 ª) nem por
(78) Nina. RODRIGUES, Africanos no Brasil, pp. 262-69 e A. RAMOS
Folclore Negro, pp, 80-5. ' ' (80) Leonardo MOTTA, Cantadores, p. 90 e segs.
(79) Sôbre o Bumba-meu-boi, ver o estudo sintético que é dado por (81) Estudos Afro-brasileiros, p, 87.
Câmara CASCUDO, em seu Dicionário ão Folclore Brasileiro, pp. 124-27. A. (82) SANTA ANNA NERY, Folclore Brasileiro, p. 40,
RAMOS, Folclore Negro, procurou, talvez de maneira um pouco abusiva, (83) SAINT-HILAmE, Vo11age aux Sources àu Rio S. Francisco, II,
as origens africanas dêsse teatro-bailado, pp, 103-28. ~. 59.

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isso deixava a Africa de ser sej:npre vista através de uma con- para êles havia sido a terra lhes valeria, uma vez mortos, a
cepção cristã, de um cristianismo mais ou menos matizado de glória no céu. Para a classe dos senhores, a religião, sem que !I!
maniqueísmo. Sua participação era como uma descida num ela o confesse a si mesma, foi bem concebida, segundo a expres-
abismo. são de Marx, como um "ópio'', capaz de enfraquecer a resistên-
O branco até o comêço do século XX não se esforçou 11r1
cia terrestre, de mutilar a vontade de revolta dos oprimidos, de
para compreender as religiões de seus escravos fora de seus dissolver a oposição em meros sonhos messiânicos. 1111
conceitos e de sua cultura própria. Pelo contrário, esta de- Mas - e nossa observação poderia ser, aliás, o ponto de
formação a que submetia os valôres africanos o justificava. Foi partida também de uma crítica do marxismo - isso era esque-
i[li
• preciso que o Brasil abolisse o trabalho servil, proclamasse a cer que o negro ia reconsiderar (reinterpretar, diria Herskovits)
igualdade de todos os cidadãos, qualquer que fôsse a côr de o cristianismo através de sua própria religião, utilitária· e cole--:.
111:
sua pele ou sua origem étnica, para que o cientista, enfim, se tiva. "A religião, ópio do povo" é menos uma definição da
interessasse, com um mínimo de etnocentrismo, pela cultura - religião em geral que de uma determinada tática, a de utilizar
afro-brasileira. A passagem da valorização negativa à ciência a religião, que crê na iµ:iortalidade da alma, num dado mo-
está ligada às condições sociais que aboliram, pelo µ:ienos ju-
ridicamente, o dualismo da sociedade, senhores e escravos, mento da luta de classes. O método pôde ser experimentado
negros e brancos. Foi a conseqüência de uma mudança de no Brasil colonial e imperial. Trouxe frutos mais para os mu-
estrutura, demandando a integração do homem de côr, como latos e mestiços que para os negros puros; entre êstes mais
igual, numa comunidade, unificada e harmoniosa. para os que tinham perdido sua civilização nativa, que estavam
Mas houve, antes, durante todo o período escravista, uma totalmente alienados, que para os outros. Os anjinhos negros
dupla falsificação de valôres. Vimos aquela a que o branco que às vêzes se vêem pintados nas igrejas barrôcas do N ar-
submeteu os valôres africanos. Resta, contudo, ver a adulte- deste ou de Minas, voando eµi meio às nuvens no fôrro, pró-
ração a que os negros submeteram os valôres portuguêses. ximos a anjinhos loiros de olhos azuis, é a prova. Isto quer
A igreja nos negros - com suas confrarias e seus jogos dizer que a definição de Marx não'-se aplica a não ser em
- está superposta sôbre os calundus e os cachimbos. A po- situações sociais onde outras categorias _Jnarxistas aparecem,
lícia que revistava as "casas de sorte", às vêzes detinha dan- em particular, a categoria da alienação. Q negro das irman-
çando ou fazendo sacrifícios, um dos reis ou chefes dessas dades, membro de "nações", dançador de batuques, encarava
confrarias católicas.(84) Isto significa que o cristianismo vai ser ... os santos e a Virgem de sua igreja negra, exatamente como
considerado pelos negros através de suas próprias concepções seus deuses ou seus ancestrais, não como concessores de graças
do sagrado, exatamente como os senhores julgavam os cultos celestiais, mas sim como protetores de sua vida terrestre. Pe-
africanos através do dualismo maniqueu de Deus e do Diabo. dia-se-lhes, como a seus Orixás ou a seus Voduns, um bom
É inegável (voltamos a alguns dos textos que citamos no capí- marido, a volta da amante, a morte de seus inimigos, a liber-
tulo sôbre os dois catolicismos) que êsses senhores queriam tação de sua sorte desde aqui na Terra. Sem dúvida, o culto
fazer da igreja dos negros um instrumento, talvez mais eficaz dos santos também tem êsse caráter para o povo; os portuguêses
ainda que os "capitães de mato" ou os "feitôres" das planta~ oravam a Santo Antônio para mandar chuva, as môças a São
ções, de contrôle social e mesmo de domínio racial. Ao µiesmo João Batista para lhes dar um marido, as velhas solteiras a
tempo que diziam que São Pedro se recusava a abrir as portas São Gonçalves. Pediam, contudo, também a seus santos abre-
do céu aos negros ou que a Virgem Santa lhes proibia a en- viar-lhes o tempo de Purgatório, fazê-los entrar, por suas in-
trada por causa de seu mau cheiro, queriam desviar o ressen- tercessões, no céu do Bom Deus e da Virgem Maria. É êste
timento do escravo para uma vingança post mortem. O sofri- aspecto que escapou aos negros.
mento passado na terra, o trabalho forçado, os castigos rece-
bidos, tudo isto lhes valeria no além, e o "vale de lágrimas" que Sua economia teoantrópica, observa Fernando Ortiz, não é uma
economia de crédito a prazos longos, nem de enriquecimento, de
(84) G. FREYRE nos dá um exemplo em Sobrados e Mucambos, p. 725. capitalização de juros para investi-los no Céu que, no dia da morte,

200 201

---~ .., _________,.


·---- -··-----------------------------,

lhes dá juros eternos - mas uma religião de consumo imediato,


de ritos de trocas, sem crédito nem juros acumulados.(85)

Os ancestrais protegiam, mediante sacrifícios, _suas ~a­


gens: · as divindades ioruba ou daomeanas protegiam, igual-
mente e em contrapartida, dependendo das festas que se lhes CAPÍTULO VII
dava as colheitas dos lavradores, as expedições de caça ou de
gueda, as pescarias no mar ou nos lagos; os santos milagrosos,
da mesma maneira, somente ajudariam os membros de suas O Islã Negro no Brasil
irmandades na vida de todos os dias, a única que lhes interessa,
contra pagamentos imediatos ou contra "promessas", o acen-
dimento de uma vela ou o ex-voto substituindo simplesmente, Deixamos de lado, em nossa descrição das sobrevivências
à moda dos brancos, o sacrifício de um galo ou de um bode.
Trata-se sempre do mesmo do ut des, mas para receber ime- J religiosas africanas no Brasil colonial ou imperial, os cultos das
"nações" maometanas. Vimos, contudo, ao enumerar as di-
diatamente, e não em uma problemática do além. versas etnias que forneceram escravos ao Brasil, que o Islã [1
Se bem que o catolicismo, ligando-se à religião africana, negro também contribuiu para o povoamento brasileiro. E êste
desnaturou-a, é preciso dizer que, pelo menos no início, foi Islã conservou carinhosamente suas crenças místicas na nova
a religião africana que desvirtuou o catolicismo. Aceitando o terra. No fim do Império e no início da República, quando a
culto dos santos, mas tirando-lhes parte de seu significado, para documentação começa a ser mais objetiva e a descrição das
dêle não considerar senão o que poderia interessar a uma eco- religiões negras mais minuciosa, vemos os cronistas distinguirem
nomia de troca, de dotes e contradotes, de trocas sem inves- nitidamente dois grandes cultos que designam como muçul-
timentos celestes. Isto fêz com que o cristianismo não tenha
sido para os escravos uma compensação à sua sorte, uma subli-
r mano e fetichista.(1) Entretanto, o primeiro está hoje quase
inteir.~en.,te. desapm.-~~~do; constitui apenas, segundo a expres-
mação de seus sofrimentos, o que não era compreensível senão são de Arthur Ramos,-.'uma página de história".(2 ) :t;;ste é
para a mentalidade dos brancos e possível apenas para a dos o motivo pelo qual o estudaremos nesta prime~a parte de
negros alienados. A igreja negra não foi suficientemente êste nosso trabalho, que trata da evolução histórica das civilizações
"ópio para o povo", êste instrumento de contrôle social, de.
derivação do ressentimento, com o qual os senhores sonharam
l importadas em suas relações com as novas estruturas sociais.
A religião muçulmana no Brasil era praticada por certos
- e, por conseguinte, traço de união entre as camadas sociais. escravos de côr conhecidos pelo nome de Musulmis ou Malês.
O dualismo de civilizações, unindo-se ·ao -de classes, cada uma O têrmo Musulmis é claro. O têrmo Malês suscitou porém
transformando os valôres específicos da outra, reinterpretando muitas discussões.(3) :f: evidente que êste têrmo é uma cor-
em tên.D.os cristãos as representações coletivas dos africanos e
em têrmos africanos as representações coletivas dos portu- (1) João do RIO, As .Religiões no .Rio, p, 16. Arthur RAMOS, O Negro
Brasileiro, pp. 90-2.
guêses, acentua o caráter paradoxal, desde suas origens, dêsse (2) A. RAMOS, As Culturas Negras, p. 349.
(3) Foi Nina RODRIGUES quem teve a idéia, em seu Animismo Feti-
"sincretismo católico-fetichista", como se lhe chamou, que en- chista, p. 30, de relaciona.r pela primeira vez o têrma malê de malenkê.
. contraremos posteriormente, e que consiste, tanto de um lado Refere-se novamente a esta etimologia em Os Africanos no Brasil, pp .
109-12. Foi seguido por A. RAMOS, O Negro Brasileiro, pp. 77-9, e Culturas
como de outro, em dar sentidos diferentes às mesmas palavras. Negras, pp. 333-35. J'J:ste último lembra que o radical malê significa "hipo-
pótamo" e que se trata, por conseguinte, de um povo primitivamente totê-
mico. TAUXIER, La .Religíon Bambara, p. XVffi. Et. BRAZIL dá. à palavra
malê o significado de "pedagoga", A seita muçulmana dos Malês do Brasil,
Anthropos, IV, 1909, p, 95. Trata-se evidentemente de um sentido derivado
porque os muçUlmanos do Brasil possuiam escolas e uma cultura erudita.
Os negros Sollmas disseram a Nina RODRIGUES que o têrmo malê cor-
responde a "nação sá.bia", "pessoas que freqüentam as escolas", Os Afri-
canos, p. 112. J. RAIMUNDO deriva a palavra do imalé ioruba "o rene-
gado, aquêle que adotou o islamismo", O Negro no Brasil, p, 361. Braz
do AMARAL, As Tribos Negras, p, 671, acha que é uma contração de duas
(85) F, ORTIZ, op. cit., p, 34. palavras portuguêsas, má let; os Malês seriam os que não seguem a boa lei,

202 203
pude constatar que devem guardar bem fielmente e transmitir com
rupção de Mali, nome de um dos reinos muçulmanos do vale grande zêlo as opiniões trazidas da África, pois que estudam 0
do Níger, habitado pelos Malinkê, no século XIII de nossa árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao
e:-ra. !!:sse povo é também conhecido pelo nome de Mandin- menos grosseiramente. li:sse livro se vende no Rio nos livreiros
franceses Fauchon, Dupol!t, que mandam vir exemplares da Europa
gues e veremos que a palavra mandinga no Brasil estendeu-se ao preço de 15 a 25 cruzeiros, 36 a 40 francos. Os escravos eviden-
à magia negra. Contudo, não foi tanto pelos Malês que o mao- temente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores s~crificios
metanismo foi introduzido no Brasil, como principalmente para possuir êsse volume. Contraem dividas para êsse fim e levam
pelos haussas. Se êstes constituíram o elemento mais impor- algumas vêzes, um ano para pagar o comerciante. O númer~
tante dos negros islamizados, encontravam-se, todavia, na terra
da escravidão, juntamente com outras tribos da mesma reli-
\ de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma
centena de exemplares ( ••• ) A existência de uma colônia muçul-
man!'- na Am~rica, creio! nunca foi observada até aqui, e ( .•. )
gião, como certos Nagôs, os Bornus ou Adamanás, ·os Gu- exphca a atitude particularmente enérgica dos negros Minas
rushis, Guruncus ou Gruncis, os Mandingues, os Fulahs ou (1869) .(6)
Peuhls.(4) Os viajantes ou historiadores antigos falavam tam-
bém dos Minas como sendo muçulmanos. Porém, essa pa-
lavra que não designa uma etnia, mas sim uma localidade, o
t
1
. É verdade que essas afirmações são contraditadas por outras
da mesma época e do mesmo lugar, isto é, do Rio. Dizia-se
grande mercado português de escravos de Mina na costa oci- que existia em 1840 uma µiesquita fundada por negros mao-
dental africana, compreendia, na realidade, como assinalamos met.anos, na rua B:irão ~e São Félix; investigações empreendidas
to~os os q'!e n~o pertenciam aos grupos bantos, e por canse~ a fim de descobn-la nao levaram senão ao conhecimento de
um negro, João Alabah, que pedia de vez em quando permis-
gumte, havia Mmas muçulmanos e não µiuçulmanos.
Ora, à parte algumas raras exceções, tratava-se de tribos s?es à polícia para realizar festas em sua casa; se bem que con-
de negros puros ou de negros mestiçados com hamitas; por siderasse os µiuçulmanos como "irmãos'', sua religião, con-
conseguinte, antigos animistas islamizados e não muçulmanos tudo, não.ia além do "fetichismo". O único islamita de quem
de origem. Suas antigas crenças não tinham desaparecido com- Alabah pôde dar o enderêço afirmou que não havia mesquita
pletamente(5) e foi êsse sincretismo muçulmano-fetichista que no Rio e que n~o podia citar mais que seis negros muçul-
foi introduzido no Brasil e não o puro islamismo de Maomé. manos que se dedicavam ao culto em suas próprias residências.
Mais ainda que os outros grupos de escravos, resistiram Podemos ~alvez conciliar essas afirµiações contraditórias,
formulando a hipótese de que os "Minas" muçulmanos do Rio,
vitoriosamente à cristianização e conservaram com uma espécie
de altivez ciosa sua fé orgulhosa e intratável. ·Todos os via- ,l se bem que numerosos, eram mais ou menos fetichistas e que
se ocultavam para evitar perseguições, celebrando seus ritos
jantes estão de acôrdo nesse ponto. Mas talvez o que melhor
indicou esta resistência foi o Conde de Gobineau, durante sua nas suas próprias casas.
estada co)llo embaixador no Rio de Janeiro: . , .Os µll_lÇ~anos estavam dispersos eµi quase todo o ter-
ntono brasilerro. Sabemos, em particular, que os houve em São
A maioria dêsses Minas, senão todos, são cristãos externamente Paulo, onde teria existido, segundo o testemunho de um
e muçulmanos de fato; porém, como esta religião não seria tole- escravo, urna mesquita para a celebração de seu culto,(7) assim
rada no Brasil, êles a ocultam e a sua maioria é batizada e trazem
nomes tirados do calendário. Entretanto, malgrado esta aparência, como nos Estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba.(ª) Mas
a lei verdadeira de Deus. Trata-se aqui de duas etimologias inexatas que
o maio.r núm~r~ se encontrava na ~ahi-ª' onde forapl a alma
vêm de um sentido derivado adquirido pelo têrmo no Brasil. Os haussas, . dessas msurre1çoes de escravos às quais dedicamos um capítulo
por causa do sincretismo muçulmano-fetichista dos malenkê e de sua origem
pagã, consideravam malê uma palavra de desdém e a. um tal ponto que um G. READERS, Le Comte ãe Gobineau au Brésil, pp. 75-6.
(6)
viajante francês, Francis de CASTELNAU, escreveu em 1851: "Designa-se Sud MENUCCI, O Precursor ão Abolicionismo no Brasil Lufa Gama
(7)
sob o nome de Malês (ale) todos os infiéis, lsto é, todos aquêles que não p. 117, em nota. As pesquisas que empreendi mostram aqui 'ainda com~
são maometanos". Renseignements sur Z' Afrique, p. 12. no Rio, que não existiu em São Paulo uma mesquita e que os 'negros
(4) Nina RODRIGUES, Os Africanos, pp. 167-75. A. RAMOS, Culturaa muçulmanos celebravam seus cultos numa casa particular. como disse pre-
Negras, pp. 335-41. cisamente M. RICARDO a propósito dos textos brasileiros, "a palavra macha-
(5) v. J. de CROZALS, Les Peuh!s, Paris, Maisoneuvre, 1883. P. HENRY, chall não designa mais que simples oratórios" e não mesquitas "L'Islam Noir
Les Bambara, Münster, 1910. li. LABOURET, Les Tribus ãu Rameau Lobi au Brésil", Hesperis, 1.0 e 2. 0 trimestres, 1948, p. 3. '
Paris, Institut d'Ethnographie, 1931, VII, 510 pp. E. F. GAUTIER, L'Afriq!Ú (8) Melo MORAES Filho, Festas e Traàiç6es, p. 333. A. RAMOS, O
Noire Ociãentale, Paris, Larousse, 1935. G. CHERON, "La Clrconcislon et Negro Brasileiro, pp. 90-1. Mendes de ALMEIDA, op. ctt., p. 53.
l'Excislon chez les Malenke'', J. s. ãe11 Afr., III, fase. 2, 1933, pp. 297-303 etc.
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204
1 205
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e onde, no fim do século XIX, ainda formavam, segundo o a prova dêsse sincretismo no culto pernambucano. O alufâ,
testemunho de Nina Rodrigues, um têrço da população afri- isto é o sacerdote muçulmano, decifrava o futuro fazendo
cana, conservando um culto perfeitamente organizado: unçõe~ de óleo de palma e de sangue sôbre três pedras roxas,
das quais uma era chamada de Santa Bá~bara e, as outr~s duas
Há uma autoridade central, o Iman ou Almány, e numerosos eram pedras de raio. (1 3 ) Ora, Santa Barbara e a eqmval~nte
sacerdotes que dêle dependem. O Iman é chamado entre nós Li- católica de Xangô, o deus do trovão, cujo símbolo ~ precisa-
mano, que é evidentemente uma corrupção ou simples modifica- mente a pedra de raio. A religião isl.âmica confundia-se com
ção de pronúncia de Almány ou El Imány. Os sacerdotes, verda-
deiros marabus, chamam-se na Bahia alufás. Conheço diversos (9) a religião ioruba. O mesmo acontecia . e1:11 Alagoas, on~e. a
( ••. ) O atual Limano é o nagô Luiz, e a sede da igreja maometana, seita "Malê" de Tia Marcelina ainda existia em 1912. DlZla-
a sua residência no Barris, à rua Alegria n.0 3. O Limano é um -se que as fiéis recém-iniciadas deviam se prostituir ao deus
homem alto e robusto, mas já bastante curvado pela idade ( ... ) da seita Ali-Babá "deus em forma de criança coberto de pano
Sua atual mulher é uma negra crioula de mais de 30 anos, que
estêve por algum tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao vermelh~ e envolto de colares de ofás e de oôs". U~ alufá
Islamismo. É uma negra bem disposta, inteligente, sabendo ler e aí dirigia a casa de Orixá-alum, cujos mur?s estav~m ymtad~s
escrever um pouco e muito versada na leitura do Alcorão. Como ela com arabescos e onde cantavam-se determmados cantlcos. reli-
não conhece o árabe e o Limano não sabe ler nem escrever o portu- giosos que testemunham uma influência muçulmana mais ou
guês, existem na casa um Alcorão em árabe para o Limano, e uma
versão portuguêsa para sua mulher.(10) menos remota:
Edurê, edurê, alilala ...
O Rio era, depois da Bahia, o segundo grande centro do
maometanismo; mais ou menos na mesma época em que Nina mas cujas cerimônias dirigiam-se às divindades ioruba, como
Rodrigues descreveu seus últimos sobreviventes na Bahia, João Oxalá, Ogum, Xangô, etc. ( 14 ) Dessa man~ira, os cultos islâ-
do Rio, escrevendo uma reportagem sôbre as religiões da ca- micos desagregaram-se em tôda parte, fundiram-se com os de
pital, do Brasil, aí distinguia dois tipos de sobrevivências reli- outras "nações", adotando as suas divindades e o seu c~r~~­
giosas africanas, o culto dos orixás e dos alufás, quer dizer, o nial, esquecendo Alá e seu profeta Maomé. Ora, se a ~e !sl~­
das seitas ioruba e o das seitas muçulmanas.(11) Acrescenta, mica era tão orgulhosa, tão resistente aos esforços d.e cnstiru:i-
é verdade, que os muçulmanos aderem às festas de outros zação donde vem êsse paradoxo do seu desaparecimento tao
negros, o que prova, aliás, não tanto a formação de uma cons- brusc~ ou de sua profunda transformação? Há, para. ist?,
ciência racial na oposição ao regime de escravidão, mas a várias razões. De início, o número de haussas era considera-
extensão do sincretismo religioso e a perpetuação, entre os velmente reduzido após a revolução de 1813 em que os mais
negros islamizados, do paganisµio primitivo.(12) Encontramos turbulentos ou foram massacrados, ou deportados para a Afri-
ca. ( 15) Aquêles que ficaram consegui!1111 po1;1cos pros~~tos,
(9) O autor cita 7 marabus na Bahia, entre os quais 5 haussas e 2
nagôs. principalµiente por causa do seu desprez~ racial ou rellgios.o
(10) Nina RODRIGUES, Os Africanos, pp. 99-101. A essas Indicações, que os fazia viver isolados dos outros afncanos, pouco convi-
pode-se acrescentar a de Manuel Querlno que fala da existência na Bahia
de um xerife, espécie de profeta, cargo êsse só desempenhado por pessoa vendo com seus companheiros de infortúnio,( 16 ) indo dormir
idosa; de um Lemano ou bispo, de um Ladane, o secretário e do alufá, cedo enquanto os outros preferiam viver a noite para aí cele-
simples sacerdote, Costumes Africanos, p, 113, e a do Padre :s:t. BRAZIL que
cita o Zemano (o qual, quando celebrava o culto tomava o nome de soga- brarem suas festas pagãs.(17 ) No início, a escravidão'. fazendo d?
bamu), o Zad.ano, ao mesmo tempo secretário, muezin e diácono, o achuafu,
mestre de cerimônia, o alikaeya ou juiz. Mas tem a pretensão de exagerar a catolicismo a religião dos senhores e do maometamsmo a reli-
Unidade e a sistematização desta Igreja muçulmana quando afirma que gião dos líderes da revolta, podia favorecer a propagação da
há um Zemano supremo na Bahia (chamado depois de sua morte de iman
universal), que dirigia. os fiéis da Bahia, Rio, Ceará e Pernambuco e deter- seita principalmente entre os africanos que conservavam .suas
minava a da.ta d!lfi festas, La Secte Musulmane, p. 103.
(11) João do RIO, As Beligtões no Bio, p. 16. línguas originárias. Poréµi, a supressão do trabalho servil, a
(12) João do RIO, "O Natal dos Africanos", Kosmos, dez., 1904. Ponto
de vista oposto em Nina RODRIGUES, Africanos, p. 108: "Afirma-me o iman (13) Mendes de ALMEIDA, CYp. cit., p. 53, e o artigo anônimo "Remlnis-
( ••• ) : que também no Rio de Janeiro existe uma Igreja musuZmi regular- cênclllfi dos Cultos Africanos", B.I.H.G.A. de Pernambuco, XXX, 1930, pp. 49-50.
mente organizada e sôbre a qua-1 não pesa, como sôbre a da Bahia, a. Inter- (14) A. RAMOS, O Negro Brasileiro, pp. 90-2.
dição das festas solenes que lá são executadas com grandes pompas. Mas, (15) A. RAMOS, Culturas Negras, p. 337.
tanto quanto pude Inferir destas Informações, trata-se antes de uma Igreja (16) Id., ibtd., p. 345.
de muçulmanos árabes em que os negros malês são admitidos". (17) Manuel QUERINO, 01J. ctt., pp. 111-12,

206 207
~ !

igualdade teórica de todos os brasileiros perante a lei, faziam tas dos haussas ou dos Minas, encontraram-se alfabetos, ma"
desaparecer um dos mais importantes motivos da conversão. nuais de leitura, quadros onde estavam escritas as diversas lições
O limano Luiz queixava-se a Nina Rodrigues ao ver os próprios a serem aprendidas. ( 24 ) No Rio, usavam gramáticas árabes
filhos dos Malês preferirem as seitas fetichistas ou a conversão em língua francesa. ( 25 ) Alguns iam mesmo para a África a fim
católica a perserverarem na fé de seus maiores. ( 18 ) :B dessa de continuar seus estudos e poder, em seguida, se dedicar ao
maneira que, do mesmo modo que uma espécie animal desapare- professorado entre seu povo escravo no Brasil. O casamento
ce por extinção de seus indivíduos, o maometanismo desapareceu era uma cerimônia sagrada, que marcava o fim da infância e
no Brasil em virtude da morte de seus antigos fiéis, tendo perdi- a entrada do muçulmano na vida adulta. Era o iman quem
do tôda possif:>ilidade de rejuvenescimento ou de propagação. celebrava a cerimônia: aconselhava aos nubentes a que refle- ··I

Mas antes dêsse culto desaparecer, quando principiava a .tisseµi maduramente para que não houvesse arrependimento
entrar em agonia, pôde ainda assim ser observado e estudadd futuro; dava-lhes alguns instantes para pensar, depois pergun-
tava-lhes se na realidade casavam-se por livre determinação.
por um Melo Moraes, um Manuel Querino, um :Btienne BrazilJ
Quando de sua resposta afirmativa, a noiva, "vestida de branco,
1
um Nina Rodrigues ou um João do Rio. :B por meio de suas
o rosto coberto por um véu de filó", colocava num dos dedos
descrições que tentamos reconstituir a vida da antiga comuni-\ de seu futuro marido um anel de prata, enquanto êsse, "em
dade islâmica negra do Brasil. \ calças de bombachas no estilo turco", dava à sua futura espôsa
Era essencialmente uma comunidade puritana. Não só pelai um colar de prata, dizendo uµi ao outro "Sadaca do Alamabi"
moral externa, pela sobriedade, a temperança que freava con-\ (Ofereço-vos em nome de Deus).
sideràvelmente a exuberância, a gritaria, o gôsto pela bebida,\
os cantos e gritos dos outros africanos e que se notava até na\ Ajoelhavam-se e o iman dava início à cerimoma, dizendo os
aparência externa, a calma nas conversas, a moderação dos, ·deveres de cada um; depois exortava-os a que procedessem bem,
sem discrepância de suas obrigações. Por fim, erguiam-se os nubentes
gestos e o uso de barba "à la Cavaignac", como símbolo de\ e beijavam a mão do sacerdote. Estava assim concluída a cerimônia,
diferenciação étnica e religiosa,( 19 ) mas também porque a fé\ retirando-se todos para a casa do banquete. Aí, sentados, a noiva
marcava tôda a vida dos muçulmanos, os diversos momentos \ adiantava-se até o meio da sala, batia palmas, recitava uma canção
de sua existência, desde o nascimento até a morte, e as diversas i e voltava ao seu lugar. Seguia-se o jantar de bodas, constante de
galinhas, peixes, frutas, etc., com exclusão de bebidas alcoólicas. (26)
.etapas do dia, desde o alvorecer ao pôr do sol.( 2º) 1

Parece que o pequeno muçulmano era batizado quando 1 A vida matrimonial começava. A poligamia era permitida
nascia.( 21 ) Aos 10 anos sofria a circuncisão.( 22 ) Depois, era\ e existia entre os muçulmanos do Brasil.( 27 ) As µiulheres esta-
instruído. Os maometanos davam grande importância à educa- , vam submetidas a um código de honra bastante rígido.
ção.( 23 ) Como a leitura do Alcorão era necessana à fé, era 1
preciso saber ler e escrever os caracteres árabes. Daí, a 1
A mulher que faltava aos deveres conjugais ficava abandonada
de todos, ninguém a cortejava; mas, nem por isso, o marido podia
fundação de escolas junto aos seus santuários, na casa de afri- \ tocá-la. A espôsa infiel, apenas se permitia ausentar-se de casa à
canos livres. Nas buscas judiciárias que se seguiram às revol- noite, acompanhada por pessoa de confiança do marido.(28)
(18) Nina RODRIGUES, Africanos, p. 101. C!. Animismo Fetichista, As inulheres continuavam com alguns dos costumes das
pp. 28-9.
(19) Manuel QUERINO, Costumes Africanos, p. 110. Entretanto, l!:t. mulheres de seu país e, em particular, com a pintura do rosto;
BRAZIL diz que os muçulmanos tinham bastante defeitos. Como é um padre
.católico que diz isto, é provável que se refira prtncipalinente à poligamia. (24) Nina RODRIGUES, Africanos, pp. 89, 93, 98.
(20) Bem entendido entre os negros livres, a escravidão não permi- (25) G. READERS, op. cit., p. 76.
tindo êsse tempo sagrado, sendo preciso encontrar nesta lmposslbllldade (26) QUERINO, op. cit., pp. 117-18.
<lo escravo marcar seus dias segundo as regras de sua !é, uma das· razões (27) Id., ibid., p. 111.
<le sua revolta para com o regime servil, o que confirma nossa tese anterior (28) Id., ibid., p. 118. Uma lenda (IBECC, comUl11cação de Mariza.
<la origem religiosa das revoltas dos negros muçulmanos. LIRA de 6-18-198), descreve o vestido da baiana como o resUltado de um
(21) Ademar VIDAL, "Costumes e Práticas do Negro", O Negro no castigo: 'Um !emano tinha uma filha muito bonita, mas bastante ieviana;
Brasil, p. 49. ela. la ser mãe; para puni-la, êle a expu!Sou de casa. e ela passou a vender
(22)· QUERINO, op. cit., p. 11. pastéis na rua "vestida com um traje humilhante, aquêle mesmo que mais
(23) lã., ibid., p. 11. tarde !oi introduzido no Brasll" sob o nome de vestido <lé baiana.

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pintavam as pálpebras inferiores, como requinte de beleza.( 29 ) .2.a ~arte..: O ~acrifício. ,N,a véspera do amanhecer propriamente
Mas., não traziam o rosto c.oberto como na Africa.( 30 ) Parece ~estivo, a meia-noite, os sacrificadores levavam os cordeirinhos para
que êsses Malês tinham uma existência tranqüila, levantando-se Junto de buracos recentemente cavados. Esperavam, com o machado
cedo e dormindo também cedo, observando cuidadosa!llente a e1!1 posiyão, ~s primei:as ho:as .da aurora para os matar. O sangue
nao ~evia su3ar as ;n.aos e sim Jorrar nas escavações do campo para
higiene e vivendo separados. ( 31 ) ai. alimentar os espiritos dos mortos. Os animais eram então esquar-
Quando um muçulmano morria, lavava-se-lhe o corpo pri- te3ados e seus pedaços guardados para os ausentes. Essa parte do
meiro, depois vestia-se-lhe com uma camisa branca chamada culto era secreta: nenhum estranho podia assisti-la.
abadá, punha-se-lhe na cabeça um gorro do· qual pendia um 3.ª parte: O banquete e as danças. A essa parte todo 0 pessoal
cordão branco, o filá, que era o gorro cerimonial. O entêrro das redondezas era convidado e até os habitantes da cidade podiam
se processava segundo os costumes brasileiros.( 82 ) Todavia, dela parti.cip~r. "De turbantes e panos da Costa, de saias rendadas
corria o boato de que se quebrava o corpo, desconjuntando os e leves chmelm11:as, as :n:ulhe;es negras prodigalizavam aos convivas
do e~t:anho festi~, ~o~udas ª.moda de seu país, sendo as principais
ossos do morto antes de colocá-lo no ataúde. Mas não parece refeiçoes dos dois. ultimos dias presididas pelo sumo sacerdote e
que seja êsse o caso. "Simplesmente êles o deitavam de lado e seus sequazes, v_estido~ com suas vestes brancas, iguais às dos deser-
não de frente" no caixão.( 83 ) Mas, se os Malês não podiam tos .do Saara e as areias do Oman ... Depois, perdendo-se das vistas
fazer seus enterros inteiramente à sua maneira devido às impo- curiosas, ~atronas .da Áfrici;, de face tatuada e gestos magníficos,
d.esapareciam, cobrmdo o alimento com o pano de seus trajes. E,
sições do ineio, compensavam-se celebrando entre si, duas vêzes circunspectas no. andai:, furtiv~s nos movimentos, olhando em volta,
por ano, a festa dos mortos. Temos uma descrição desta pre- entornavi:m aqui e ah, por cima da terra e por baixo da terra
tensa festa muçulmana que data de 1888.( 34 ) Compreendia e por baixo das pedras( o funerário alimento para o banquete das
almas, que supunham_ vir,, nas h~ras caladas da noite partilhar das
três partes e era precedida por um período de preparação carac- oferendas comemorativas . Entao, ao som dos instrumentos afri-
terizado pela abstinência de bebidas fortes, de álcool, de carne ca:i~s, as danças começavam fora da casa. Da numerosa literária des-
e de cereais, que destruiriam a virtude dos ritos, a alimentação cr1~ao que temos dessa festa, devemos atentar para dois pontos: pri-
dêste período consistindo Unicamente de alguns legumes, de meiro, era o sac;rdote que in~icava o inicio das danças, e, em segundo,
um pouco de leite e de água. dai:ç~vam-se ai to~os os tipos ~e danças, tanto profanas quanto
rel!gu~sas, portuguesas como africanas, cada "nação" seguindo seus
propr10s cost~es. Essas danças finais que duravam três noites
1.ª parte: As orações. Retirando-se para sítios afastados, inter- parecem ter trdo função menos religiosa que prática financeira
nando-se no intrincado das matas, os africanos, recolhidos em casa ?'esmo, ~en_do por. obJetivo prover as despesas da festa. 'Pelo menos
humilde e. espaçosa, entregavam-se à contemplação, às cismas e o que u~f1:0, pr1me1ro po:que essa parte do cerimonial era pública
do além-mundo. "Nesse grupo· de penitentes, em expiação de cul- e, secundariamente, de acordo com o seguinte trecho do texto de
pas das .almas, havia chefes e subchefes, dignidades subalternas e Melo Moraes: "Uma das baiadeiras negras, libertando-se da roda
gradativas. Vestidos todos de uma espécie de alva e tendo à cabeça dançando semp~e, chegava-s_e para .os assistentes profanos que cir~
bonés brancos, unicamente o chefe distinguia-se dos demais pela cund!lvam os bailados. Graciosa e vistosamente trajada recobria-lhe
vestimenta listrada, por um barrete de molde diferente ( ... ) Cons- a mao suspensa um~ chuva de fitas de tôdas as côr~s, pendentes
tituindo uma feição do sacerdócio, êsses africanos passavam a pri- do. cabo de uma varmha de prata de sessenta centímetros de com-
meira noite de vigília, em monótonas .melopéias, ao som de seus rudes primento e em. cuja extremidade tiniam moedas de ouro, de encontro
instrumentos, findando essas preces, essas orações lúgubres antes as voltas de missangas e búzios que a adornavam de um palmo Em
do segundo dia. da festa funerária. A esta iniciação propiciatória frente .do espectador escolhido, entregava-lhe ela a sua varinha de
não eram estranhas mulheres africanas e suas famílias, que mais fada, tirando-~ para as danças. Aceito o convite, a satisfação era
tarde entregavam-se às lides do preparo do banquete, ao folguedo geral~ a. alegri~ P!e~a. A recu~a, entretanto, ficava compensada,
de macabras danças imitativas." contribumdo o mdividuo com mil a dois mil-réis para a festa· e
s~ acontecia d!1r mais, os vivas e as palmas coroavam-lhe a gen~ro~
(29) lã., tbtd., p. 111.
(30) Ét. BRAZIL, op. ctt., p, 104 (sôbre o vestido Ma.lê). sidade espontanea e animadora. A êste ofereciam as baiadeiras da
(31) QUERINO, pp. 111-12. Morte r~~s ?e flôres enlaçados de fitas, em aclamações prolon-
(32) A. RAMOS, O Negro Brastletro, p. 92. J!:t. BRAZJIL,. op, ctt., p. 105, gadas e viv1ssimas. E seguia-se outro, ainda mais outros ( ... ) "
dl.z que se vestia o cadáver com 5 .vestidos se se tratava de um homem e
com 7 se era mulher.
(33) QUERINO, op. ctt., p, 120. Poré!ll, Ricard, num artigo recente, baseando-se no fato
(34) Melo MORAES Filho, Festas e Tradtções, pp. 335-42.
bem conhecido de que o Islã é contra o culto dos mortos, nega
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J
a esta festa seu caráter muçulmano.( 35 ) E:le tem razão; toda~
~ Sinai). Durante a celebração do ato religioso, as mulheres, de espaço
a espaço, repetiam a frase: Bi-similai. Em dado momento o chefe
via, há uma explicação possível: vimos como as seitas dos levantava-se, dava as costas ao auditório, soerguia as mãos, descan-.
Malês de Alagoas estavam sincretizadas com as dos Iorubas; sava-as sôbre o peito, ajoelhava-se, baixava, em sinal de reverência,
um contato, pois, era possível. Não podemos julgar o Islã negro e proferia as mesmas palavras do inicio : Lá-i-lá, i-la-lau, mamadú-
do Brasil com os mesmos critérios que o Islã negro da África araçú-lu-lai. Sa-la-lai--0-lei-salanna. Isto feito, o chefe apertava as
e afirmar, a priori, que êsse culto dos mortos, precisamente em mãos de seus imediatos, e êstes, das demais pessoas presentes, e esta-
Alagoas, não fôra dirigido - não obstante sua pouca ortodoxia va terminada a missa. Em plena cerimônia, a dona-da-casa se·
dirigia às pessoas presentes, cruzando os braços, e, na atitude de
- por negros mal-islamizados. quem dobra os· joelhos, proferia a seguinte saudação: Barica da subá
Seja o que se concluir dêsse ponto, a vida religiosa marcava môtumbá, que quer dizer: Meus respeitos". (39)
a vida do fiel e o destino das almas dos mortos. Contudo, não Evidentemente, o trabalho servil para os escravos e a distância
eram somente os grandes quadros da existência que eram vivi- para os negros livres impediam as peregrinações a Meca.(40) Con-
dos segundo os preceitos alcoranistas: era-ó também a vida coti- tudo, o jejum de Ramadã era sempre respeitado.(41) Os muçul-
diana. manos observam, demais, um determinàdo número de tabus alimen-
tares, em especial, o toucinho e justificam êsse tabu por uma lenda.
Às quatro horas da manhã, depois de estar vestido (camisa Contam que percorrendo o deserto diversos missionários de sua fé
fechada, calças, gorro com borla caída, tudo de algodão bem alvo), morriam de sêde e não encontravam água. Prosseguindo na pere-
munido de seu Tecebá, um rosário de cinqüenta centímetros de com- grinação, eis que se lhes depara uma manada de suínos a fossarem
primento, composto de noventa e nove contas grossas de madeira, e em certo lugar. Ai se detiveram e viram que a água jorrava da
terminado por uma bola, o fiel abria o dia que começava por orações, terra revolvida pelos porcos! Espantaram então os animais e ma-
pronunciadas sôbre uma pele de carneiro. (36) Era o que se chamava taram a sêde na torrente que se formou.(42)
''iazer sala". A palavra sala deve, aliás, ser uma corruptela da Consideravam da mesma forma o cachorro como um animal
palavra "sara" que, como veremos, designa as cerimônias religiosas sagrado, sob condição que não tivesse tido contatos sexuais. Nesse
principais dos muçulmanos. Esta corrupção certamente resulta da caso, "a umidade de suas narinas, esfregada nas mãos e no rosto,
diferenciação entre o culto privado e o público. faz que o adivinhador obtenha maravilhosas revelações". Em caso
Aquêles que podiam, rezavam mai's quatro vêzes por dia. Os contrário, não o deixavam entrar em suas casas.(43) Eram conhe-
cinco exercícios piedosos chamavam-se, na linguagem dos muçul- cidos de outros negros principalmente por sua magia poderosa.
manos da Bahia, de: Açubá (manhã), Ai-lá (meio-dia), Ay-á-sari Possuíam tôda uma coleção de amuletos, de mascotes, geralmente
(depois do almôço ou à tarde) , Alimangariba (anoitecer), Adi:t:á
(noite), sempre antecedidas pela expressão: Bi-si-mi-lai (em nome signos de Salomão e papéis nos quais estavam escritos versículos do-
de Deus clemente e misericordioso).(37) Cada prece era precedida Alcorão e que traziam ao pescoço em pequenas bolsas. ( 44) O pro-
por uma ablução em que o negro deixava sua vestimenta comum e cedimento mais usado e que vimos empregado nas revoltas dos
vestia uma longa camisa branca de mangas compridas, chamada Haussas para torná-los invulneráveis às balas, consistia em escre-
abadá.(38) ver numa tábua negra um certo número de sinais árabes, depois
Tôdas às sextas-feiras e dias santos celebrava-se a cer1moma a tábua era lavada e a água usada para êsse fim era bebida. ( 45)
do sara, que correspondia à missa dos católicos. Eis como Manuel O mesmo processo servia para. lançar má sorte; no caso, a água
Querino descreve esta cerimônia: ao invés de ser ingerida, era atirada no caminho em que devia
"Pela manhã, era servida uma mesa, em que sobressaía a transitar a vítima; e os sinais que tinham sido lavados eram,
toalha muito alva, de algodão, ocupando a cabeceira o chefe Lemano, naturalmente, sinais de maldição.(46) A impressão que esta magia
como lugar de honra. Após ligeira refeição, cada um, munido de (39) M. QUERINO, op. cit., pp. 115-16.
seu rosário, ouvia do chefe estas palavras: Lá-i-lá-i-la-lau, mama (40) Todavia Nina RODRIGUES vira junto ao llmano Luls, pendente do
dú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-saláma (Deus único e verdadeiro, muro, a planta de Meca. Realizava o sacerdote sua peregrinação em lmagl-
nação e em esperança, Africanos, p. 102.
o seu profeta é quem nos guia). Acheádo? ana? lá-i-llá, i-la-lau (Vós (41) M. QUERINO, op, cit., pp. 120-21.
sois o único Deus verdadeiro). Acheádo-ana-manmadú ara-su-luai (E (42) lã., ibià., p. 119.
teu profeta é o nosso mestre). Ai-á-la-li-salá (Eis as minhas preces). (43) lã., ibià., p, 119.
(44l Nlna RODRIGUES, Africanos, pp. 102-7, cita alguns dêasea talismãs
Ai-á-la-lifalá (Eis o meu coração). Cadecama-i-salá (No monte onde estão escritos, por exemplo, a aurata 106 do Alcorão, os versículos
(35) R. RICARD, op. cit., p. 2, nota 2. Na Africa os Iorubas islamizados
129 e 130 da 2.• eu.rata; cada veraiclllo sempre é repetido várias vêzes, num
doa tallamãa 36 vêzea, a repetição do mesmo texto aumentando seu poder
são os principala membros do culto doa Eguna, isto é, doa mortos. · mágico. .
(36) ll:t. BRAZil., op. cit., p. 103. (45) lã., ibiã., p. 107.
(37) QUERINO, op. cit., 113. l!:t. BRAZil., op. cit., pp. 103-5. (46) M. QUERINO, op. cit., p. 118.
(38) . Nlna RODRIGUES, A/Ticanos, p, 102.

212 ~19
deixou entre os outros africanos bem se revela pela f!!Obrevivência Tanto no Rio como na Bahia, os Malês eram considerados
do nome de mandingas para designar os objetos de magia negra mestres da magia negira e muitos dêles viviam muito bem com
e de mandingueiros para os praticantes. os sortilégios que vendiam. João do Rio observa a êsse propósito
que, não obstante seu monoteísmo, se serviam para compor
Não sabemos senão muito pouco das crenças dêsses muçul-
manos, sendo que a descrição minuciosa .que nos dá Étienne êsses sortilégios de aligenum, espécie de diabos, palavra em que
Brazil sôbre sua teologia, é válida para todos os muçulmanos se vê uma deturpação do têrmo djins( 5º) e que, dentre êles,
do mundo, pois é uma descrição geral. O que nos interessa não alguns adquiriram grande reputação nessa arte, como Alikali,
são as crenças e os dogmas do Islã em si mesmos e sim as cren- que fazia idams paira chover. ( 51)
ças e os dogmas dos muçulmanos do Brasil. Sôbre êsse ponto o que resta hoje de todo êsse complexo tão rico?
deveµios nos contentar com as breves informações de Querino: Em 1937, a União das seitas afro-brasileiras da Bahia tinha
ainda um candomblé de nação "mussurumin" situado à Rua da
Só reconheciam duas entidades superiores: Olorum-u-luá (Deus Liberdade e dirigido por Pedro Manuel do Espírito Santo. ( 52 )
criador); Mariana (a Mãe de Jesus Cristo). Desprezavam a Sata-
nás, que, na opinião dêles, não tem fôrça no mundo.(47) Faltam-nos informações sôbre êle, mas a própria corrupção da
palavra deixa perceber que o islamismo, se islamismo houve,
Numa de suas orações, vê-se que êles procuram um refúgio foi bastante modificado. O nome de Alá encontra-se em certos
"contra os gênios",( 48 ) o que parecia indicar que haviam trazido cânticos de candomblés bantos ou nagôs, como os anotados por
o culto dos djins até para seu nôvo habitat. Edison Carneiro, primeiro em ltaporã ( 1936) :
A descrição que temos da seita muçulmana do Rio con-
firma os dados da Bahia, e se bem que de modo breve, acres- Alá
centa ainda assim alguµias informações novas: Alá de Deus!
Alá
Os alufás têm um rito diverso (dos Ioruba). São maometanos
com um fundo de misticismo ( ... ) Logo depois do suma ou batismo
e da circuncisão ou kola habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua e depois num candomblé de Gantois:
obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando com a
ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr Alá
do sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas Olô Alá!
brancas, fazendo a aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia
no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de Babá quara dá. ( 53)
mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde 1
pende um cordão branco, e, à noite, o ki&sium continua, sentados No Rio, os espíritos que se encarnam durante as macum-
êles em pele de carneiro ou de onça ( ... ) Essas criaturas desfiam bas formam "linhas" e uma delas, ainda existente, chama-se "Li-
à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de
porco, escrevem as orações numas tábuas, as atô, com tinta feita nha de Mussurumin, Massuruman, Massurumin ou ainda Mas-
de arroz queimado, e jejuam como os judeus quarenta dias a fio suruhy". Como a magia dos Malês era considerada particular-
( ... ) Há em várias tribos vigários gerais ou ledamos obedecendo ao mente eficiente, ~ingularmente perigosa, esta linha compõe-se de
lemano, o bispo, e a parte judiciária está a cargo dos alikali, juízes
sagabamo, imediatos de juízes, e assivaju, mestre-de-cerimônias. espíritos perversos, que descem à terra para praticar atos de
Para ser alufá é preciso grande estudo, e· êsses pretos que se fingem vingança. Evocam-se traçando no solo círculos de oólvora em
sérios, que se casam com gravidade; não deixam também de fazer que se põe fogo e no centro dos quais encontram-~e cigarros,
amuré com três e quatro mulheres. Quando o jovem alufá termina
o seu exame, os outros dançam o opa-suma e conduzem o iniciado bebidas, alfinêtes, fumo, galinhas, etc. Os espíritos descem quan-
a cavalo pelas ruas, para significar seu triunfo ( .... ) As cerimônias (50) A. RAMOS, Antropologia Brasileira, I, p. 428.
realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afas- (51) João do RIO, op. cit., pp. 53-60.
tados. ( 49) (52) A. RAMOS, O Negro Brasileiro, p. 82, nota 96. Aydano do COUTO
FERRAZ, "As Culturas Negras no Nôvo Mundo", Boletim à' Ariel, 1938, n.º 8,
(47) QUERINO, op, cit., p, 110. p. 340, fala de uma seita mussurumln na rua Oriental do Japão, n,o 26.
(48) Ic'l., ibiã., p. 115. (53) ·É. CARNEIRO, Negros Bantos, p. 37.
(49) João do RIO, op. cit., pp. 16-8.

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do da explosão da pólvora. Os dirigentes dessas linhas chamam- que, não contradizendo êste informante, sempre contim1a· como
-se "Alufá", "Pai Alufá" ou "Tio Alufá".( 54 ) A. Ramos recolheu Ricard nos fêz observar, nada tem de muçuhnano .e se O· chefe
em 1934 um cântico de Ogum de Malê em Alagoas: dêsse culto traz o nome de Alibá (o que nos · faz· pensar no
Alibabá de Alagoas e no Alagbá, sacerdote d9s· negros africa-
O pequeno Ogum é da raça Malê nos) (6ª) é preciso não confundir, como bem nota Verger, têrmos
Nu-ê, nu-ê! ortogràficamente parecidos, mas de acentuação diferente.( 63 )
O pequeno Ogum é da raça Malê Além do mais, no Daomé a sociedade secreta dos Eguns estava
Nu-ê, ê-rê-rê-rê! (55)
'"
1
ordinàriainente nas mãos dos negros islamizados, enquanto os
·Olorum, deus nagô principal, acabou por se confundir com Voduns pertenciam aos negros não-muçuhnanos;( 64 ) e, por fim,
AJá, Qriginando uma nova entidade mista: Olorumuluá (uluá em Cuba, Fernando Ortiz cita a dança mascarada dos Kulona,
sendo a corruptela de Alá) . ( 56 ) . que não é outra coisa senão o adjetivo malinke, kulona ou lonna
· O têrmo Alá é usado na Bahia e em Pôrto Alegre para e que significa "sábio" ou "instruído", como uma dat:),ça ligada
designar um tecido branco que na Bahia serve para formai ...
1 '
às cerimônias mortuárias dos "diabretes".( 65 ) Pode-se, pois,
uina espécie de dossel sob o qual passam as filhas de santo, ou presumir que êsses negros · muçuhnanos trouxera!ll ao Brasil
muito menos do Islã e. muito mais dos cultos antenores ao apa-
para cobrir as pedras sagradas do pegi, e em Pôrto Alegre para
recimento do maometanismo na África e que, quando o Islã
envolver um dos atabaques do culto.( 57 ) Porém, é certo que desapareceu, só subsistiram os antigos elementos. O paganismo,
êsse têrmo é a palavra ioruba que serve para designar da mesma por um momento encoberto pelo Islã, irrompeu no Brasil.
forma tecidos brancos e não ui:na sobrevivência puramente mu- No Brasil ocorreu just~ente o contrário do que sucedeu
çuhnana.(58) Muitos dos traços que parecem ser de origem no continente negro. Enquanto na África Ocidental o islamismo
árabe no Brasil não foram trazidos pelos muçulmanos e sim triunfa sôbre o "fetichismo", fá-lo recuar em todos os lugares,
pelos Nagôs, como a geomancia que, aliás, tende a desapare- invade regiões cada vez µiaiores do continente negro e mesmo
cer;(59) contudo, ainda assim é curioso notar que ~a Ba~~a se bate contra as missões cristãs e é quase sempre vitorioso; aqui,
era praticada freqüentemente pelos Malês: o babalao (adlVl- pelo contrário, desapareceu e a liderança religiosa passou ao
nhador). Felisberto Salge, já morto, era publicamente chamado gêge-nagô ou ao cristianismo. Como explicar, pois, êsse con-
de "Mussurumi"( 6º) O culto dos mortos ou Eguns era ligado traste sociológico? .
também de acôrdo .com os informantes de Protasius Frikel, ao Para começar, do ponto de vista quantitativo, os muçul-
Islã: ''Os Nagôs e os Gêges não trabalham, diz um dêles, com manos constituíram sempre uma minoria da população de côr,
os espíritos dos mortos", "quem evoca os espíritos dos mortos e eram, se me permitem esta expressão, muçuhnanos "pas-
são os Mussurumin e os Malês"; "somente os Mussurumin pos- sivos", isto é, negros islamizados, convertidos e não semitas
suem uma casa de mortos'', mas hoje "os Malês estão todos puros. Tudo o que podiam fazer, já que lhes faltava o dom do
mortos. . . Gunocô voltou para a África. . . êle fala no vento, proselitismo, era resistir o maior tempo possível. A essa razão
mas ninguém µiais o entende."( 61 ) De fato, o culto dos Eguns demográfica é preciso acrescentar um motivo psicológico, a alti-
(54) A. RAMOS, op. cit., pp. 88-9. vez do maometano, seu desejo de não conviver com os outros
(55) /d., ibid., p. 90. 1.·· escravos, de formar um mundo à parte. Dessa forma, uma
(56) A. RAMOS, O Negro BrasUeiro, p, 83.
(57) R. BASTIDE, Imagens do Nordeste Místico, p. 57, e "Le Batuque mudança da situação social ocasionava uma modificação do
de Pôrto Alegre", XXIX Int. Congress of Americanists, p. 202. O, ALVARENGA,
Catálogo do Museu Folclórico, pp. 78-83. comportamento coletivo, a µietamorfose de proselitismo em uma
(58) a. PARRINDER, La .Religion en A/Tique Occidentale, p. 46. religião de isolamento místico.
(59) Sôbre a origem árabe da geomancia ver MAUPOIL, La Géomanci~
sur l' Ancienne Côte des Esclaves, pp. 35-43, e TRAUTMANN, La Dination a (62) É. CARNEIRO, Candomblés da Bahia, p, 105, notai 4. Cf, TALBOT,
la Côte des Esclaves et à Madagascar, pp. 36 e 143. PeopZe o/ southern Nigeria, m, pp. 477-760.
(60) R. BASTIDE, "L'Islam Nair au Brésll", Hesperis, 1952, 3. 0 e 4.0 tri- (63) Carta de P. VERGER de 24-10-1955.
mestres, p. 7. ,, st (64) Conversa com P. Verger.
(61) Protaslus FRIKEL, "Dle Seelenlehre der Gêge und Nago , o (65) F. ORTIZ, Los Bailes 11 el Teatro de los Negros en el FoZklore de
Antonio, 1940-41, pp. 203-4. Cuba, p, 342 e segs.

216 ~17
Em relação aos negros fetichistas, os maometanos e os
cristãos encontravam-se no Brasil numa situação absolutamente
inversa daquela da Africa. Lá, o islamisµio exige m~nos sacr~­
fícios .ao indivíduo que o catolicismo e o protestantismo. Eli-
mina a mitologia para substituí-la por seu dogmatismo, tiraz
CONCLUSÕES DA PRIMEIRA PARTE
alguns tabus, orações, mas não impõe um esfôrço mora~ ~ngus­
tiante, adapta-se à sensualidade do negro. Pelo contran?, no
Brasil, .era o catolicismo a religião mais acolhedora e wa1s to- Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais
lerante. Exigia ao africano mais gestos e orações decoradas
que era uma verdadeira transformação da personalidade, seguro
de qÚe a influência do meio pouco. a ~uco modificru;ia até o A escravidão com efeito, dividiu as sociedades globais
âmago das almas. Portanto, era o 1slam1smo que aqui desem- africanas ao long~ de uma linha flutuante que separaria,, de
penhava o papel de religião puritana, com sua proibição da um modo geral, o mundo dos símbolos, das representações co-
embriaguez, proibição essa inflexível para ?s infelizes escravos letivas, dos valôres, do mundo das estruturas sociais e de suas ba-
que buscavam na cachaça uma fuga à realidade.( 66) ses morfológicas. O africano, com a destruição racial das linha-
Para o negro, o maometano não era um companheiro de gens, dos clãs, das aldeias ou das realezas, apegava-se tanto mais
servidão. Não podia se tomar um líder senão na revolta, isto a seus iritos e seus deuses, a única coisa que lhe restara de seu
é, em circunstâncias excepcionais. O branco representava o país natal, o tesouro que pudera trazer consigo. Mitos e d~uses
mundo da liberdade que era possível se atingir pela alforria. êsses que não viviam somente em seu pensamento, como ima-
Contudo, a imitação do branco era a condição sine qua non gens mnemônicas sÚjeitas a perturbações da memória? mas que
desta ascensão. Daí, a atração do catolicismo.
Tôdas essas razões agiam em sintonia para que o africano í também estavam inscritos em seu corpo, como mecamsmos mo-
tores, passos de danças ou gestos rituais, capazes, por conse-
se mantivesse fetichista ou não reconhecesse outra liderança a guinte, de mais fàcilmente serem avivados ao rufar lúgubre dos
não ser a do cristianismo. É o que explica o malôgro do Islã tambores.
no Brasil, como igualmente entre os últimos Malês, o retôrno A antropologia .cultural fundamenta-se, em certa medida,
às crenças de seus antepassados animistas. E, de fato, em con- 1 na distinção das civilizações das estruturas sociais, sob o pre-
tato com os "fetichistas" do Brasil, principalmente depois do ... texto justamente de que as civilizações podem passar de uma
màlôgro de suas revoltas e quando já não eram tão nume- estrutura a outra. Que podem transformar a sociedade. Mas
rosos, o revestimento islâmico nêles se desagregou: não restou o seu ponto fraco está em estudar quase exclusivamente os fe-
mais nada a não ser a antiga propensão à adoração das fôrças nômenos de "aculturação" como simples fenômenos de con-
da natureza: os muçulmanos deixaram-se absorver pelo culto tato e de mistura de civilizações, sem levar suficientemente em
gêge-nagô. Bste ocasionou uma outra conseqüência: enquanto conta as conjunturas sociais novas em que acontecem êsses
no Islã negro o maometanismo constituía a religião oficial e os encontros. As leis, se leis há, que regulam o jôgo das interpe-
velhos cultos passavam por ser somente magia, aqui, por uma
inversão das coisas, é o maometanismo que se tornou e que r netrações, não atuam no vazio: operam nas situações globais
que as determinam, forma e conteúdo. Os valôres africanos
permaneceu feitiçaria. Assim, o choque racial ou cultural, eram trazidos para um mundo nôvo, para uma sociedade com-
quando se processa em condições demográficas e sociais dife- posta de duas classes, uma classe de senhores e uma classe de
rentes, tende às mais surpreendentes aventuras e às metamor- escravos, uma dominadora e outra explorada. As civilizações
foses religiosas as µiais. contraditórias. étnicas eram assim transformadas em civilizações de classe e
(66) A. ALMEIDA Júnior, sôbre o aguardentismo colonial, R.A.M.S.P., isto não podia deixar de exercer sôbre elas uma forte influência
LXXII, 1940, pp. 155-64. Opor êsse puritanismo no Brasil à situação de tole- para remodelá-las e metamorfoseá-las. Eis por que consagra-
rância para com os costumes dos negros na A!rica. Richard L. THURNWALD,
Blaclc anã White in East A/rica, cap. 5. mos dois capítulos ao papel da religião na resistência dos negros

218 219
ao regime servil que lhes era impôsto, e não somente porque de escravos, como revoltas culturais, é certa. Balandier forneceu
os brancos se interessaram mais (e não sem motivo) nas re- a luminosa demonstração para o .l!l~~sianismo negro.(1) Pode-
voltas dos escravos que na descrição de seus costumes e usos:
é porque estamos aqui no próprio cerne da questão. ! ríamos encontrar fenômenos análogos até no Brasil, onde · o
movimento dos fanáticos do Contestado não edodiu a não ser

l
O marxismo, de um lado, teve razão, portanto, em acen- após o malôgro do movilllento político no extreµio sul do
tuar a importância do regime econômico e o lugar da luta de Brasil,(2 ) ou ainda no movimento profético do Conselheiro que
classes no domínio da vida religiosa. Mas, coisa curiosa, estando arrasta, nas suas águas lamacentas, a resistência econômica e
n::>s antípodas da antropologia cultural, ainda assim nos leva a política do sertão contra o domínio do litoral, mas que foi
conclusões análogas: o sagrado torna-se uma simples ideologia, incapaz, em virtude da falta de líderes políticos, de tomar uma
flutuando acima das estruturas sociais, mais que nelas fixada, outra forma que não a mística. Contudo, é preciso notar que
acompanhando externamente suas flutuações. Nos dois casos, as revoltas que estudamos no curso do período colonial não se
ainda que por razões diferentes, tôda a riqueza da dialética que situam no mesmo plano cronológico que as da África contem-
liga os diversos níveis da sociedade se perde; tende-se, tanto porânea ou do Brasil do século XX. Elas se aparentariam muito
numa concepção quanto noutra, a separar a civilização da so- mais ao caso da resistência dos africanos no início da era mis-
ciedade, ou mais exatamente, a ligá-las apenas por um puro sionária, quando os negros destruíam capelas ou escolas, assas-
mecanismo de causas e efeitos, complicado apenas pelo reco- sinavam os padres ou os pastôres. Poder-se-ia distinguir duas
nhecimento da possível reação dos efeitos sôbre as causas, rea- espécies de resistência religiosa: a de antes e a de depois da
ção, aliás, concebida também mecânicamente. A resistência do ação mais ou menos profunda das civilizações estrangeiras sôbre
escravo ao regime de subordinação ou de exploração do qual as civilizações nativas. Se se desejar usar aqui expressões caras
era a vítima não se nos apresenta sob êsse prisma. Tínhamos aos sociólogos americanos, dir-se-ia que a primeira constitui
sido levados a defini-la como uma 'resistência cultural, como r um fenômeno de resistência cultur:al e a segunda um fenômeno
um esfôrço antes de tudo para não deixar perecer os valôres de contra-aculturação. A primeira expriµie o trágico do choque
vitais herdados dos antepassados e mesmo para reconstituí-los entre civilizações heterogêneas; a segunda os efeitos desinte-
seja no segrêdo dos calundus, seja no isolamento armado dos gradores dêsse choque no curso do tempo e, como bem mostra
quilombos; não foi aliás impunemente que os brancos deram a a análise de Balandier, o desejo de restabelecer um equilíbrio
êsses calundus o nome de mocambos ou de quilombos; percebiam já destruído por uma fuga no passado, anterior às tensões tor-
que deviam nos dois casos enfrentar o mesmo fenômeno, a nadas intoleráveis. Ora, se o messianismo se produz nas socie-
ressurreição da .Afu'ica em terra brasileira, com seus sacerdotes e dades coloniais em que o nacionalismo político é obstado, a
seus ritos, e até mesmo seus costumes matrimoniais e suas reale- explicação pela obstrução de todo uµi outro meio que não o
zas. A fim de melhor esclarecer êsse caráter de resistência global, místico não vale para os quiloip.bos do Brasil, nem mesmo para
e não apenas econômico dos escravos, é que a comparamos com as revoltas dos Malês ou dos Nagôs da Bahia.
as revoluções dos mulatos ou dos negros livres assimilados; nesse Por certo também, a ruptura que a escravidão ocasionara
entre o mundo dos valôres e o mundo das estruturas sociais
último caso, sim, a religião aparece bem como uma ideologia, africanas expôs, fazendo flutuar por um instante, essas repre-
quando surge; de fato, ela mal dissimula o ressentimento de uma sentações no vazio, transformando-as eµi ideologias, ou no mí-
classe social, ávida de igualdade e desejosa de mais oportunidades, nimo, desviando-as de seus significados sagrados, penetrando-as .
econômicas ou sociais. de ressentimentos, de ódios raciais e de reivindicações econô-
Sem dúvida, alguém poderia nos observar que a resistên- micas. Veremos que o fenômeno não deixou de se produzir e
cia apenas se torna religiosa quando não pode tomar a forma que as imagens que os negros ainda hoje fazem de seus deuses
política, que a religião é a única via aberta, quando tôdas as conservam dêle ·alguµia coisa. Os santos católicos ou os Orixás
m:.tras saídas estão fechadas, e que, por conseguinte, o esquema
(1) . G. BALANDIER, Soctologte Actuelle de Z' Afrique Notre, p, 496.
marxista continua válido, mesmo se nossa definição das revoltas (2) Maria Isaura P. de QUEIROZ, La "Guerre Sainte" au BréstZ, S.
Paulo, 1957.

220 221
foram aceitos na estrutura dualista do Brasil, foram usados na da sociedade que sua aceitação, o desejo de se incorporar na
luta· de classes sociais. Santo Antônio, o mais popular dos comunidade dirigente, de penetrar, sob o véu da religião, na
santos brasileiros no tempo colonial, o protetor do país contra organização dos brancos. O fenômeno, na realidade, data prin-
os invasores estrangeiros, franceses ou holandeses, a ponto de cipalmente do século XVIII, isto é, de uma época em que a
ser nomeado tenente-coronel dos exércitos, com o sôldo ati- descoberta do ouro modifica a hierarquia social em que a for-
nente a seu grau, foi encarregado de encontrar escravos fugi- ti:na se torna um instrumento de classificação das pessoas, e,
tivos; tornou-se, na imaginação dos brancos, segundo a expres- nao obstante, a repugnância de alguns, malgrado as leis sun-
são de Câmara Cascudo, uma espécie de "capitão do mato com tuárias destinadas a repor o negro "em seu lugar", o provérbio
jurisdição sobrenatural",( 3 ) e chegava-se mesmo a deixar sua brasileiro se realizava: "o negro rico é branco, o branco pobre
estátua nu~ reduto obscuro ou de cabeça para baixo, deixan- é negro". Esta mentalidade que transformou o sentido da luta
do-o nesse lugar indigno e nessa posição incômoda, até que o racial, que fê-la se desviar da revolta da classe em ascensão do
escravo fôsse achado.(4) Da mesma maneira, os negros que ~ulato rico para sua metamorfose progressiva em branco, debi-
não suportavam sua sorte fizeram de Ogum o deus loruba da litou o que o catolicismo de uma igreja negra pudera apre-
guerra, o patrono de sua vingança; contra o sincretismo cató- sentar de mais agressivo. A religião não se tornou aí pór isto
lico que o identificava a São Jorge, a êsse São Jorge louro como
o Sol, cujo cavalo branco pisava um demônio prêto, preserva- um ópio para o povo, ou o ponto de partida de movimentos
~essiânicos; o homem de côr não procurou aí uma fuga da rea-
ram o Ogum de seus antepassados, armado apenas com a faca
dos assassinos; os arquivos da polícia do Rio falam de uma ltdade ou uma compensação a suas desgraças; fazia dela sim-
associação secreta cujo emblema era um bracelete de ferro plesmente um canal de ascensão; um meio de melhorar seu
( êsse é o' símbolo dos filhos de Ogum), do qual a côr típica status de todos os dias. O catolicismo foi por êle concebido
era o amarelo e cujo fetiche era "um tamboril ornado, simbo- mais como uma atividade social que como mística, mais como
lizando a guerra".(5) Não deve~os nos esquecer nesta análise uma organizaç~o da.qual podia se aproveitar na terra que como
que houve casos de degradação do sagrado. O negro partici- u~ banco de mvestlmentos celestes, mais como instituição que
pava de dois círculos, primeiro, seu próprio grupo social e, em fe. As exceções, e as ·houve, do cristianismo vivido nas pro-
segundo, do grupo brasileiro, do qual era parte integrante, se fundezas da alma, não nos devem fazer esquecer esta regra
bem que no mais baixo grau da hierarquia social; portanto, ?eral, tanto mais atiya porq.ue o catolicismo português, tal qual
devia introduzir em sua religião, principalmente o negro crioulo, llllplantado no Brasil, era Já, segundo a definição de Gilberto
os efeitos das tensões que eclodiam entre êsses dois tipos de Freyre, um "catolicismo mais social que místico",(ª) bem
solidariedade. Mas êsses efeitos eram detidos por outros fenô- oposto, por conseguinte, ao protestantismo de "reavivamentos'',
menos sociológicos que veremos em seguida. de "campos", de choques afetivos, no qual se inseriu o negro
Enfim, o escravo e mais ainda o negro crioulo estavam dos Estados Unidos.
certamente cristianizados e na medida em que esta cristianiza- · _ . A, estru~ura social da época colonial e do comêço do Im-
ção chegou, como vimos à constituição de uma Igreja negra, pério e duahsta. Podemos negligenciar a classe intermediária
diferente e subordinada, controlada pela igreja branca, o cato- de caboclos rurais ou de artesãos urbanos, porque não constitui
licismo pôde ter originado fenômenos análogos aos que foram uma verdadeira classe média. Couty assim se expressa nun;ta
produzidos no protestantismo negro dos Estados Unidos. É fórm~la impressionante: o Brasil não tem povo,(7) e Tollenare
fato que a luta de côres pode por vêzes tomar a forma de lutas propoe todo um plano para transformar esta classe interme-
de confrarias religiosas entre si, e delas citamos alguns exem- diária, analfabeta, improdutiva, prêsa aos conflitos das grandes
plos. Aliás, lutas de prestígio mais que a expressão de ódios (6) O. FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 47.
raciais, e que demonstram menos a revolta contra o dualismo (7) L. COUTY, L'Esclavage au Bréstl, p. 86, e Isto não obstante a
lmport:Ancla numérica desta classe Intermediária que domina infinitamente
(3) Câmarà CASCUDO, Dictondrio do Folclore Brasileiro, pp. 49-52. em numero as duas outras: entre a aristocracia (500.000) e os escravos
(4) A. d'ASSIER, Le Brésil Contemporaín, p. 202. . (l.500.000), 6.000.000 de habitantes nascem vegetam e morrem sem ter
(5) O. FREYRE, Sobrados, 'p. 853. servido o pals. '

222 228
Voltamos, portanto, ao nosso .
tur~ ~ntre. o mundo dos síi:nbolos ponto de __Partida: o da rup,.
famílias, numa cla'sse média de tipo europeu;(8) será preciso sociais africanas. A religião sub . ou dos valores e as estruturas
esperar pela República para que essas medidas comecem a ter ~as ~e~taca~a do sistema socia~1s:~t~omo crença_ e sentimento,
efeito. Porém, êsse dualismo de uma classe intermediária ou ligada, ~ obngada a se moldar a qu~ ate antes estava
burguesa e cie uma classe escrava não deve, contudo, nos indu- ~er prec1~0 q~e as representaçõe~1:ie~~tro s1~tema global. Yai
zir a um êrro. Cada uma dessas classes está dividida em grupos e .orgaruzaçao, em que assam .1vas cneµi outras formas
de interêsses que não percebem a comunidade de suas crenças, quais po_derão se propagarp em su s~ mco!porar e através das
~ento vmdo da estrutura du· . a uraça_o. Houve um movi-
a solidariedade de seus laços, ao contrário, se opõem em riva- Dio do sagrado ao qual alista da sociedade para o dom1'-
lidades incessantes. Entre os brancos, senhores de engenho . . • consagramos tr" ,
contra comerciantes portuguêses, proprietários fundiários contra pnmetra parte; porém, por isto não n . es .cap1tulos de nossa
mverso do sagrado se verif ' d egligenc1amos o movimento
a igreja. católica, esta contra governadores metropolitanos. Sem
dúvida, todos desejam um contrôle do negro escravo, mas cada suas ins~~ições, sua base I~~rf~Íó s~gr~g~do suas estruturas,
mento, alias, não era livre is gica. .esse segundo movi-
um concebe êsse contrôle de forma diferente: um pensa em dade .e. mesmo 0 negro libe: que faltaya ao escravo a liber-
fazer trabalhar o negro os sete dias da semana ou senão em subm1sso ao contrô1e da cl ' pe~a?ec1a nas grandes cidades
fazê-lo dançar danças eróticas a fim de renovar seu cabedal Illento desta recriação foi ofsse ommante. O priµieiro mo-
humano; outro pensa em sua cristianização; outro, enfim, em
dividi-lo e)ll "nações" erguidas umas contra outras. Nota-se africano devia encontrar
à:·
se .se prefere, de adaptaçãg r~~:~mento. d.e aceitação. Ou,
a es sociais permitidas O
pelas cartas dos governadores ou das ordens religiosas que essas .h
o~ mc os, como os denom·
' na estrutura da sociedade. .
brasileira
fori:nas de contrôle se operem em querelas sempre recomeçadas. c1vil'IZa?oes
- mamos
nativas. Bsses nichos f~ra em q di
~e po a inserir suas
'
Do mesmo modo, a classe de escravos está dividida em con- confranas dos homens de c" rn, ':Imos, os batuques as .
frarias religiosas rivais, a dos africanos, a dos crioulos, a dos ganho, as "nações" constituíd~i as organiza_ções de negros' de
mulatos ou, ainda, em nações organizadas, com um governador de governadores nas cidad sdob a autoridade de "reis" ou
de "nação", cada um dêsses agrupamentos tendo vida autôno- tamb'em nas zonas rurais es, Ce as
t anças dommgue1ras
· · '
em parte
ma. O que faz com que haja da mesma maneira uma distância tos eram grupos de contrôl dr amente, todos êsses agrupamen-
social entre um Malê e um Ioruba, entre um Ioruba e um Dao- ser modificados em suas re~lid:d':1ª classe por outra, mas vão
meano, entre um Daomeano e um Angola, entre um Angola e negr~s, ou, mais exatamente s profu~das pela vontade dos
um Conguês, entre um Conguês e um Moçambique, como entre coletivas religiosas sôbre os '. ~:I~dpressao das representações
um negro ou um mulato, entre um mulato e um branco. Se pamentos. O que faéilitava m IVI uos membros dêsses agru-
quereµios compreender os fenômenos brasileiros das relações sociaJ existente entre 0 munJ~ti transformação era a distância
entre as civilizações devemos pô-los i:nenos no dualismo rígido ~o bra?co ~e interessar pelo quer~~~º e 0 negro, que impedia
de classes econômicas que nesse caos de grupos de interêsses e~ses seres igualmente noturn am, na sombra da noite
c10Jôgicamente é a d' t" . os, o.s homens de côr escura S '
ou de reuniões de etnias. O dualismo já é uma abstração cio • is anc1a social · . · o-
sociólogo. Os indivíduos compreendidos nesse dualismo esta- men~o. ~eográfico, que ex lica a ' mu1!0 mais que o isola-
vam por êle muito menos tomados que pela vida cotidiana, pelo de c!vilizações, o folclore prural ~anutençao de formas arcaicas
imediato dessas rivalidades de brancos entre si ou de negros co~eç~ da era capitalista o f~J) r e~emplo, na Europa, ou no
também entre si; sentiam menos o dualismo profundo que os ~ nao e tanto a direção ~nquan~ ore t as corporações de offoio·
antagonismos, mais concretos, )llais poderosos, mais aparente- ~~ usos.' a aproximação de elaso ro a, e.orno a democratizaçã~
mente reais dos microagrupamentos. a barrerra", que explica o desa : · ? trmnfo" do "nível" sôbre
(9) Sôbre a distân i p ec1mento desses folclores. (9)
Eis porque devemos em nossa explicação nos manter igual- ao lado da bem di c a social como !ator d
mente longe tanto da interpretação puramente marxista quanto ~n~:uum Folk-urb!!~Y ~~~gdeográflca,
• • pp. 194-204.
v:r~~!;ª~º ~1?... folclore,
ad Rural Proletaria" 0 , · ........,Tz, "El
da interpretação puramente culturalista. • •enctas Soelales,

(8) TOLLENARE, Notes Dominicales, parte não traduzida para o por-


tuguês, cartas da Biblloteca "Sainte-Geneviêve".
225
224
iso mais se aplicava aos clãs, aplicava-se apenas àquilo que os
. d' tância sendo máxima, compreen- ter havia substituído, às pessoas que tinham "fixado" em seus
Num regime escravista, ~ isd ~ ~· pôde se m·traduzir sem ou
· . if - vmda a .R..llica corpos a mesma divindade; dessa ITianeira, as grandes festas
de-se que a civ ~ahçao lhe oferecia a estrutura social bra- lu- continuavam, porém, desligadas de suas bases agrárias. Não
düiculdade nos me os que 'OS
nos demoraremos em todos êsses aspectos porque teremos de
sileira. " . . momento de adaptação é seguido por \S,
descrever mais longamente esta organização noutra parte, para
Mas esse pnmei~o - nicho tomando-se em esconde- .l- compará-la àquela da Africa. Basta, para o inomento, indicar-
um segundo, o de cnaçao. O "d a sociedade africana ~o
rijo, partindo d~s valôres :i~~:~~s~~d:tivamente, na medida,
-lhe a origem, mostrar-lhes as fontes e acentuar principalmente
ra que a reconstituição da sociedade africana, na medida em que
vai passar por ele, recons d. -es demográficas e a quebra das m
pelo menos, ~m que as ·~ºnm:1.ç~econstituição essa, numa análise era possível, fêz-se a partir de sua civilização, por um movi-
la mento de cima para baixo e que sempre lhe resta um caráter
'linhagens assun o pernn ire, ' . . 1 dos aos mais baixos. m
sociológica profunda, do~ mveis ITI!ISaf; : a "mulher de santo"' sagrado; a estrutura interna modela-se sôbre a mística, ela não
Havia sempre na massa e es~r.av nos limitar a um ou til é mais que sua materialização simbólica.
algum sacerdote ou algum adiv~ho. n~:r~andomblés da Bahia, al As religiões afro-brasileiras não podem ser compreendidas
dois exemplos, se ° Ket? domma e destruída pelos reis de n
e
a não ser se as examinarmos, como tentamos fazer simultânea-
mente sob esta dupla perspectiva; de um lado, elas exprimem
é porque esta cidade foi tolTiada rínci es vendidos ao Chachá
Abomey e seus sacerdotes ou se~s p . p baiana. êste grande s certos efeitos do dualismo estrutural senhores-escravos, são mo-
de Souza, por Uidah que era en~~g::ravos e~ su~ grande dificadas pela luta das côres e refletem a estrutura da socie-
traficante de cari;ie 1~umana, re~~o das águas 'que desapareceu dade global; de outro, em conseqüência da divisão das grandes
maioria, ao BrasilJ ) ~~ c:ial encontra-~e, pelo contrário, classes em grupos de interêsses ou de crenças diferentes, for-
0

em certas partes a ica a ' também a confraria dêsses main o ponto inicial de uma nova estrutura de classe de negros;
na América,. é !'arque nesse ~asofoi reduzida inteiramente à são elas mesmas criadoras de formas sociais.
sacerdotes, mve1ada pelos bre1s,il ·ros puderam dessa forma, Todavia, esta organização africana que se introduz na socie-
escrav1·d-ao. (11) os negros rasalundus
ei '
organizando-os so"bre o dade global e é protegida pela distância social entre as côres, aí
transformar os batuques em e ' filhos ou se desenvolve como quisto, permanece do mesmo modo mergu-
tipo das confrarias religiosas afric.ana~a::t;º:_1~~~osos para lhada num mundo nôvo. Um mundo em que dominam os valô-
as fi~a.s-de-santo n~o e=Ú;,s1:nfrarias separadas, . se reu- res culturais, as representações coletivas dos brancos. Dessa
constitmr' e1TI seu no~o - Em tômo dêsse núcleo sóhdo, que maneira, vai haver, e é o que reteremos do culturalismo, puras
niram na mesma associaçao. avidade da "nação"' outros trocas de civilizações se processando num mesmo nível da reali-
formava como que <? cen~~~= :rgruparam-se num siste1Tia de dade sociológica, independentemente dos efeitos, das pressões
negros da mesma oi:igem ouco a pouco com status so- ou das reações das estruturas sociais. De fato, eram os mesmos
inter-relações! orga~ar;n--se, P d papéis di~tintivos no inte- escravos batizados pelo capelão que celebravam seus tantãs
ciais, com h1erarqu1das e gi;aus, u emenor aproximação de cada no pátio da senzala; eram os mesmos negros urbanos que simul-
. d grupo segun o a maior o . f tâneamente eram membros dos confrarias do Rosário e fiéis do
nor o d A nova sociedade que assim. se armava,
um com o sagra o. . , ti o calundu subs- calundu. Portanto, influências de uma religião sôbre outra eram
modelava-se, pois, sôbre c~r~0n:s m:es~das pelo regime de possíveis. Sobretudo porque havia para facilitar essas interpe-
tituía ao mesmo tempo ~s _ag de' seus membros pelas mais netrações, analogias de esquemas entre uma e outra. O que, de
eséravidão comc:, pela dISper~ao diminuídas em número, cuja fato, os negros viram no catolicismo foi a existência de um Deus
diversas plantaçoes e povoa.:; das estações~ As leis do ca- supremo que "estava no céu", mas, de tal forma transcedente,
vida outrora se pautav~ ao ri ºmas a regra de exogamia não que para chegar até êle era recomendável passar por tôda uma
sarnento contudo, continuavam,
____ 'P_VER_GER "L'Infiuence dU Brêsll au Golt e d e Bênln"• Les Afro· série de intermediários, Jesus Cristo, seu Filho, a Virgem, a
(10) • • à s bem-amada Mãe de Jesus e, logo abaixo, o exército inumerável
-amértcatns, pp. ll·lOTlS. "Les Noirs du Nouvea.u ?){onde", Joum. soe. e
(11) HERBKOVI •
Afrtcantstes, vm, 1938, p. oo.
227
226
de santos, cada qual patrono de uma corporação de ofício, ou pretação um fenômeno simbólico de ascensão, desejado mais ou
exercendo uma função social bem definida: fazer encontrar obje- menos em surdina, mas impossível de se realizar na vida social,
tos perdidos, curar doenças dos olhos ou erisipela, dar um marido um drama do inconsciente.( 13 ) Essas duas interpretações colo-
a uma filha sem atrativos, etc. Não criam êles também num cam-se, como se pode notar, no plano das atividades mentais ou
Deus supremo, geralmente divindade celeste, Olorun ou Zambi psíquicas.
conforme as "nações", mas afastado dos negócios dêsse mundo Mas se elas nos dão alguns dos motivos que puderam, na
ou não atendendo às preces dos humanos senão pela intercessão realidade, ~tuar em certos casos e em determinadas categorias,
obrigatória de intermediários, os Orixás, os Voduns, os ancestrais mais para os mulatos que para os crioulos e mais para êsses que
deificados? Desta analogia originou-se um sincretismo religioso, para os africanos, não nos devem fazer esquecer que os santos
fazendo corresponder seja globalmente o conjunto de Virgens e foram, primitivamente, simples máscaras brancas colocadas no
de santos, como entre os Bantos, seja, um por um, tal divindade rosto negro das divindades ancestrais. Os membros dos candom-
africana com tal Virgem, êste ou aquêle santo, como entre os ?lés, quando conquistada um pouco de sua confiança, confessam
Iorubas e os Daomeanos. Não vamos por enquanto estudar isso de bom grado ainda hoje. O segrêdo não era uma medida
êsse sincretismo tal qual existe em sua rica complexidade; preo- de proteção suficiente para a sobrevivência dos calundus; inva-
cupar-nos-emos posteriormente com essa questão. Agora busca- sões da milícia ou da polícia podiam, a cada instante, interromper
remos somente suas origens históricas.
Alguns atribuíram-lhe causas de ordem psicológica; o negro, o cerimonial; era preciso, portanto, dissimular o mais possível
mesmo ligado a suas divindades étnicas, não deixa de emprestar aos olhos dos brancos o caráter africano do culto que aí se
e de adotar as divindades de outros grupos étnicos vizinhos, rendia, colocando sôbre o pegi, onde as pedras de santo consu-
desde que essas últimas se mostrem mais eficientes em certos miam as oferendas ensangüentadas, um altar católico, enfeitado
domínios que as suas; houve também uma troca de deuses, ou com flôres de papel, toalhas brancas, imagens e pinturas de san-
de práticas religiosas, entre os Ioruba e os Daomeanos. Ora, tos. Escolhiam-se evidentemente os santos que mais se aproxima-
os santos católicos eram os deuses da classe mais poderosa, da- vam das divindades verdadeiramente adoradas nessas seitas, m&S
quela capaz de efetuar o tráfico negreiro e a organização da os cânticos que subiam ao altar iluminado de velas eram dirigidos
escravidão em larga escala; nem os Orixás, nem os Voduns, de fato a Oguµ:i e não a São Jorge, a Omulu e não a São Lázaro.
nem os ancestrais, totêmicos ou não, tiveram fôrça bastante para :S daqui que devemos partir para compreender o sincretismo
proteger seus filhos infelizes contra o exílio na terra estrangeira religioso, mesmo quando transformado após o desaparecimento
e o trabalho servil. :Bsses foram, portanto, por seu pragmatismo, dos últimos africanos e com a diminuição, senão a ruptura com-
levados a acrescentar ao seu panteão, os deuses dos cristãos, pleta, das ligações marítimas entre o Brasil e a costa ocidental
como a acrescentar a seus sortilégios a "magia" todo-poderosa africana. ,.
dos ritos católicos. ( 12 ) Vê-se que esta conversão ao cristianismo A conclusão que é preciso deduzir desta observação é que
subentendia, também, a mesma "africanização" do catolicismo se o culturalismo tem motivo para se situar numa única etapa
que já notamos a propósito de um outro fenômeno. da realidade social, a das civilizações, para ver como se interpe•
Outros autores recorreram à psicanálise. Nesse caso, tra- netram ou se opõem, os fenômenos do sincretismo variam no
tar-se-ia de um fenômeno de projeção. A escravidão teria desen- d~urso do tempo.,, Mas não é o tempo enquanto tal que age,
volvido nos negros um complexo de inferioridade e o catolicismo nao é, em outros termos a sua duração que é fator de causação;
surgiu, de outro lado, como a religião da classe dominante. nesse caso, .as situações sociais são modificadas e conseqüente-
Transferindo ou projetando suas crenças e suas orações de um me?te, aqui também, so~?.s levados ao campo da Sociologia
Orixá bárbaro a um santo civilizado, de um deus escravo a um mais uma vez. ·Esta é a 1de1a que finalmente se depreende, cre-
deus senhor branco, elevaram sua vida religiosa de um plano mos, de tôdas as páginas de nossa primeira parte: se traços da
inferior a um plano superior. O sincretismo seria, nessa inter-
(13) Gonçalves FERNANDES, o sincretismo gêge-nagõ-católico como
<t2> Em parte, fundamento da opinião de G. FERNANDES (ver nota expressão dinâmica dum sentimento de inferioridade A/ro-nmérioains PP
seguinte). 125•26, ' ,. I '

~28 229
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civilização africana puderam passar para a classe dos portuguê-


ses foi em razão da hierarquização dos escravos em escravos do
! 1
entre seus descendentes do Nôvo Mundo, mesmo onde a aculturação
pelos modelos euro-americanos foi mais ampla. (15)

campo, artesãos, domésticos e a intimidade dêstes últimos com Porém, a menos que se considere que exista uma mentali-
seus -senhores, isto é, o processo dessa passagem deve ser pes- dade característica e uma psicologia diferencial de raças, o que
quizado na estrutura da família patriarcal brasileira. Se, de está em contradição com os dados da ciência contemporânea, o
modo recíproco, traços da civilização portuguêsa, cada vez mais problema não se resolverá por esta explicação; a solução não está
numerosos, passaram para a classe dos negros, é porque as senão diferenciada, porque se o afro-brasileiro pôde manter
duas classes nunca foram castas, rigidamente fechadas, tranca- traços a.e sua personalidade africana, foi porque esta personali-
das por um cadeado de dupla volta, mas canais de ascensão social dade foi moldada por um meio cultural africano· as atitudes
que sempre estiveram abertos no seio da sociedade brasileira, afetivas, as formas de mentalidade, as categorias d~ pensamento
estando bem entendido que a assimilação do negro aos valôres são o produto da educação. Se admitirmos, de outra parte (o
brancos constituía o critério de tôda mobilidade vertical. que nã<? ~ceitarnos, aliás, sem fortes reservas), que esta educação
A supressão do tráfico negreiro de início e depois a do da afetividade e dos modos de pensar africanos no Brasil não
provêm da família negra, mas do candomblé - que é a opinião
trabalho servil iriam quebrar esta estrutura social que permitira de Frazier - ( 16 ), então o círculo se fechará sem que tenhamos
a conservação das religiões africanàs no Brasil e a sua coagulação a solução desejada: por que, pois, há sempre candomblés?
(empregarei aqui de preferência êsse têrmo ao invés de sincre- Não é para a Psicologia que devemos nos dirigir em nossa
tismo) com o catolicismo. Não iria tal confusão de estruturas busca, mas para a Sociologia. Antes, todavia, de começar nossa
trazer um golpe fatal a essas sobrevivências ou a essas primeiras pesquisa, precisamos notar que esta resistência das seitas africa-
formas de intt:'.rpenetrações de religiões? nas é tão profunda que nenhuma perseguição, policial ou ecle-
siástica, pôde vencê-la. Como muitos de seus membros crêem-
* -se bons católicos, freqüentam a missa, fazem parte da confraria
* * do ~osário, po~er-se-ia pensar que as Pastorais, por exemplo,
Ora, o fato aí está: do bispo da Bahia, as ameaças de excomunhão contra "as filhas-
-de-santo" por "apostasia", as ordens dadas aos sacerdotes para
Os perpetuadores atuais das tradições africanas não são mais recusar-lhes a comunhão, teriam podido colocar sob o báculo
os nativos da África, mas seus descendentes em terceira ou quarta ;1
geração. Entretanto, através dessas gerações, num nôvo habitat de Roma muitos filhos dos candomblés.( 17 ) Mas nada disso ; 1

e com novas condições de vida, os pais continuaram a transmitir a aconteceu. Não insistiremos sôbre esta primeira forma de per-
seus filhos, consciente ou inconscientemente, seu estilo de vida. ( 14) seguição porque sempre houve no Brasil entre o dogma e a
prática uma grande margem de tolerância. As perseguições
Como então puderam os velhos calundus coloniais sobre- policiais for~ violentas, de outra maneira, principalmente quan-
viver através de tôdas as revoluções das estruturas sociais? Como do estavam ligadas a movimentos políticos, como em Alagoas
pôde a civilização africana manter-se numa sociedade antidualis-
(15) HERSKOVITS, "Some Psychologlcal lmplicatlons of Afromerlcan
ta, pelo menos juridicamente, e onde os escravos tornavam-se Studles", XXIXth In.t. Ccmgress o/ Americanists, p. 158. Sôbre a perslstêncla.
cidadãos, iguais em direitos e em mérito aos seus senhores de de atitudes africanas e não só de sua organização, ver a história da vlda
de uma Jovem negra em PIERSON, Brancos e Prétos na Bah.ía pp 326-32
antigamente? Procurou-se, algumas vêzes por razões de ordem e R. RIBEIRO, "Projectlve Mechanlsms and the Structuralizatlon of · Percep:
~~.ln ~~o-brazl!1an Dlvlnatlon", Rev. Inst. EthnCYpsycho. Normale et Pathol.,
psicológica, explicar êsse fenômeno. 1
(16) E. Franklin FRAZIER, "The Negro Famlly ln Bahia, Brazll", Amer.
Sociol. Rev., VII, 4, 1942, pp. 471 e 478. Dizemos que não aceitamos êsse
. A tenacidade dos elementos culturais africanos, contra os ponto de vlsta sem grandes reservas porque se fôr verdade que a afrlcanl-
diversos ataques que suportaram na organização social, na língua, zação do negro provém do candomblé, nem por isso delxa êle encontrar em
na religião, na arte, deve ser relacionada à tenacidade com a qual sua familia o clima espiritual que favorece esta ação da seita religiosa.
(17) A doutrtna da Igreja sôbre os candomblés, com a análise das
alguns traços caracteristicos da personalidade africana continuaram Pastorais em questão, encontra-se em Candomblé Santo Antônio 15 I abrll
de 1937, pp, 15-29. ' ' ' '
(14) René RIBEIRO, B.I.H. de Alagoas, XXVI, p. 14.

291
290
onde a revolta popular de 1912 contra o governador, amigo dos mento do regime de escravidão não ocasionou o fim dêsse vai~e­
negros e protetor dos Xangôs, terminou pela destruição selvagem -vem entre os dois continentes. Um comércio bastante próspero
dos santuários africanos de Maceió. ( 18) O que tôdas essas de-nozes de cola, de conchas, de sabão prêto para o ritual e
perseguições conseguiram fazer foi somente transformar ceri- outros objetos de culto continuou até hoje, se bem que haja
mônias públicas em cerimônias secretas, uma religião de festa diminuído de intensidade depois do término da Primeira Guerra
em uma religião de catacumba, sem tambores barulhentos, com Mundial.( 22 ) Martiniano de Bomfim foi a Lagos para aí apren-
cânticos apenas murmurados, cantados a meia-voz, com tôdas as der a arte da adivinhação antes de se tornar o Babalaô mais
portas e janelas fechadas.( 19 ) Gonçalves Fernandes achou por famoso da Bahia, e empregou tôda sua autoridade, que era
analogia com certos ritos católicos, a mais exata expressão dêsse grande, para impedir a degeneração dos cultos africanos, e mes-
fenômeno, quando diz que a missa cantada foi substituída pela mo para reformar o candomblé de Opo Afonjá para daf·llle ·
missa rezada (Xangô-reisado-baixo).( 2 º) A perseguição nem
mesmo conseguiu impedir - tentando fazer reinar o terror no
grupo de fiéis - o recrutamento de continuar como se nada
houvesse acontecido. Durante minha viagem a Recife, no auge
da luta, pude ver, num dos Xangôs mais tradicionais da cidade,
três môças prestes a sofrerem as provas da iniciação.
certas intituições que não existiam no Brasil mas que vira ou
acreditava haver visto na Africa.( 28 ) Citamos mais acima o
caso do P. Adão que também fêz a viagem para a África ·para aí
se submeter ao ritual de iniciação. Se, sem dúvida, os negros
hoje não podem mais pagar essa viagem, guardam, pelo menos,
preciosamente, ou uma Bíblia em língua ioruba ou jornais da
"
~ 1

Quais são, pois, os fatôres sociais que permitiram esta Nigéria, a fim de manter, não obstante a distância, a ligação ao
resistência e esta conservação? menos espiritual com o país dos antepassados.( 24 )
Se a supressão do tráfico negreiro impedia a renovação Contudo, essas intercomunicações entre o Brasil e a África
de africanos, entretanto não· fêz cessar inteiramente as relações podem explicar apenas a pureza dos mitos ou dos ritos dos
entre o Brasil e a África. O candomblé de Engenho Velho foi i candomblés. Não explicam sua existência atual, tanto mais
fundado, segundo É. Carneiro, por Iyá Nassô,( 21 ) mas o que que esta existência não é um simples fato de conservantismo ,j
êle não diz, e que para nós é importante, é que Iyá Nassô, se popular, de sobrevivência folclórica. A religião africana, como
possuía alguma relação com a Bahia, já que sua mãe aí fôra es- veremos em nossa segunda parte, é uma religião viva. Para que
crava antes de retornar para a Africa e aí exercer o sacerdócio, ela não desmoronasse com os abalos sísmicos que sacudiam a 1)
nasceu na Nigéria e veio para a Bahia, livre, acompanhada por sociedade no momento da abolição, era preciso que desempe-
um wassa (que é um título sacerdotal), a fim de fundar um
candomblé, justamente o de Engenho Velho. Sua filha espiri-
aj!;isse uma função útil e que as modificações da estrutura social,
em particular, a abolição do dualismo senhores-escravos, lhe il
tual, vinda também da África livremente, Marcelina, partiu mais deixasse ainda um lugar na nova organização do país. , ,,
tarde para seu país, sem dúvida para aperfeiçoar seus conheci- Se a escravidão separava as raças, unia-as também: coi:nó
mentos, iniciar-se mais profundamente nos segredos do culto, vimos, permitindo uma certa participação do negro na vida do
e regressou depois de sete anos (que é o número sagrado dos branco. A família patriarcal constituiu, no caos social do Brasil,
Ioruba) para substituir Iyá Nassô no instante de sua morte, a_única organização convergente e a tal ponto que Zimmermann 1
como suprema sacerdotisa de Engenho Velho. O desapareci- prefere chamá-la antes "tutélar" que patriarcal porque estava
(18) A. BRANDAO, "O Negro na História de Alagoas", Estudos Afro-
investida de uma função de proteção para com o povinho e os 1

·ln"astletros, p, 60. escravos.( 26 ) A abolição, arruinando os grandes latifundiários,


(19) Ou ainda em camufiar-se em seitas espiritas, toleradas pela policia
ou em sociedades carnavalescas. O Diário da Tarde de 12 de abril de 1934, (22) Sôbre êsse comércio, ver. D. PIERSON, op. ctt., p, 303. Os membros
Recife, observa a propósito de uma visita da policia ao centro espirita "Ca- dos batuques de Pôrto Alegre me afirmaram que um comércio semelhante
ridade e Amor de Jesus Cristo": "Os centros espirltas funcionam livremente existia também entre a Africa e o sul do Brasil, mas não pude verificá-lo
quando munidos de uma autoriz9;1)ã.o policial. Aproveitando-se desta circuns- nos documentos históricos ou nas coleções de velhos jornais.
tância, os adeptos de Exu passaram a se dizer espirltas e o que funcionava (23) Aludimos à criação dos 12 ministros de Xangõ. E dizemos "crera
nos lugares desertos ou nos bairros afastados velo a ser feito em pleno cora- ~er" em lugar de ver, porque se certos autores atlnnam que há 12 Obas, .Í
ção da cidade". Ver sôbre êsse ponto Gonçalves FERNANDES, Xang(Js ão os nomes dêBBes ministros englobam titulos extremamente heterogêneos
Nordeste, pp. 7-17. (carta de P. Verger de 21 de dezembro de 1953).
(20) Gonçalves FERNANDES, o Sincretismo Religioso, pp. 28-9. (24) PIERSON, op. clt., pp, 304-6.
(21) lll. CARNEIRO, Candomblés da Bahia, p. 31. (25) Citado por G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, 2,a ed., p. 58.

232 289

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destruiu uma das raras formas de solidariedade que existia no tipo capitalista e industrial, que substituiria sob a República, a
Brasil, para deixar em seu lugar apenas a desordem de relações antiga sociedade, aquela que fazia a riqueza e o prestígio social
interindiv:iduais, apenas uma poeira de átomos incapazes de repousarem na posse da terra. Todavia, o antigo escravo, não
formar novas moléculas sociais. A abolição, dessa maneira, preparado para seu papel de cidadão livre, não soube logo se
continuou e agravou êsse processo de distanciamento social que transformar em "proletário" e substituir, assim, a antiga solida-
vimos principiar com as primeiras formas de urbanização e que, riedade familiar do engenho ou da fazenda, por uma solidarieda-
separando as raças muito mais que o engenho, tomou possível de de classe;( 32 ) já após a extinção do tráfico negreiro ou de sua
a formação de candomblés. . O primeiro grito do negro libertado diminuição, quando o número de negros livres ia aumentando
er.a: "Agora vamos ter casas com janelas e porta do fundo",( 26 ) sem parar no Brasil, em detrimento dos escravos, esta libertação
e êsse brado exprime bem em seu próprio simbolismo, o desejo não se traduziu senão pelo aumento da prostituição e da vaga-
de escapar ao contrôle do branco (a porta de trás, por ondei bundagem; as estatísticas salientam, nesse caso, um grupo cada
podia sair sem ser visto, enquanto a senzala não tinha mais que vez maior de "inativos".( 33 )
a porta da frente, bem em frente da casa do senhor ou do casebre A abolição vai precipitar ainda esta desagregação da co-
do feitor), e também o desejo mais profundo ainda de comuni- múnidade negra. Os antigos escravos vão formar, não um
cação com o vasto mundo, de abertura sôbre os valôres europeus proletariado (a proletarização do negro é um fenômeno poste-
(as janelas). E, de fato, após a supressão do trabalho servil, o rior, que marca uma primeira promoção), mas sim um Lumpen-
primeiro impulso do ex-escravo foi de fugir da plantação que proletariat que, em parte, explica os estereótipos que se criaram
lhe lembrava a servidão, para se precipitar no anonimato da então do negro preguiçoso, alcoólotra ou ladrão, do vagabundo
cidade grande.( 27 ) Mas, em lugar da casa sonhada, não devia vivendo às custas das môças (as jovens negras adaptaram-se
aí encontrar senão o mocambo de barro sêco, de teto de palmas mais fàcilmente que os homens à nova sociedade urbana como
ou de gramíneas, perdido na solidão dos charcos, fora da aglo- r
1 domésticas, aias, cozinheiras ou lavadeiras). Na competição
meração dos brancos, ( 28 ) a favela de tábuas nas encostas es- i econômica que o capitalismo industirial incipiente desenvolve, o
corregadias dos morros, ( 29 ) o cortiço infecto nas . casas aban- negro escuro é vencido pelo mulato e êste, por sua vez, pelo
donadas ou nos porões úmidos.( 3º) Por certo, a segregação imigrante europeu ou por seus descendentes. Mas, não se deve
ecológica do negro não apresenta no Brasil o caráter racial dos crer que esta atomização da classe de côr seja um fenômeno
Harlem norte-americanos, não é imposta pelos brancos para se puramente urbano. Pierre Denis deu uma descrição útil do
protegerem de um contato por êles não aceito: é o produto negro rural do Estado de Minas, às vésperas da Primeira Guerra
passivo de uma simples competição de classes econômicas por Mundial, opondo uma resistência passiva ao trabalho regular e
um lugar ao Sol. ( 31 ) Porém, o resultado é o mesmo, o do vigiado, não obstante a formação de equipes sob o comando de
desaparecimento das proteções do branco, da família tutelar, do feitores ("menos o látego, sua função é aquela dos guardas dos
paternalismo afetivo e a intensificação das distâncias raciais. O tempos da escravidão"), não prestando seu concurso ao agricul-
negro poderia sair indubitàvelmente desta situação se tivesse tor branco senão dois a três dias por semana quando precisava
&ubstituído êsse paternalismo por um esfôrço pessoal de ascensão de dinheiro, essencialmente móvel, nunca se fixando num mesmo
social e se pudesse se integrar fàcilmente na nova sociedade, de lugar, passando de uma fazenda a outra ao sabor de seu capricho
(26) Felte BEZERRA, Etnias Sergipanas, p. 160. ou de sua indolência.( 34 ) A atomização social aí se verificava
(27) EmUlo WILLEMS, "Mob1lldade e Flutuação das Profissões no BrasU". da mesma forma que na cidade. No Nordeste da cana-de-açúcar,
Of. Caio PRADO Júnior, História Econômica do Brasil, pp. 217-308, sôbre a
oposição no Brasil moderno ao BrasU escravista. (32) T. SEPELLI, II Sincretismo .Religioso Afro-Cattolico, p. 40, nota
(28) Sôbre os mucambos ou mocambos do Recife, ver Josué de CASTRO, bem a importância da dlficUldade do negro em se inserir no nôvo ciclo
Documentário do Nordeste, J. Olympio, Rio, 1937, 186 pp. a. FREYRE, Mu- produtivo do BrasU republicano, como uma das causas da conservação doa
cambos do Nordeste, Publicações de Sphan, n.• 1, Rio, s. d., 70 pp. cUltos africanos,
(29) Sôbre as favelas do Rio, ver Censo. das Favelas, Rio, 1949, e L. A. (33) Oliveira VIANNA, Populações Meridionais, cap. X. Em 1882, para
COSTA PINTO, o Negro no Bio de Janeiro, pp. 129-37. todo o Brasil, 2.822.583 pessoas sem ocupação definida, ou seja, mais de
(30) Sôbre os cortiços de S. PaUlo, ver. R. BASTIDE e F. FERNANDES, 50% da popUlaçlí.o livre .
.Relações .Raciais, p. 137. (34) Pierre DENIS, Le Brésil au XXe Siêcle, cap. 12, sôbre as "popu-
(31) COSTA PINTO, O Negro no .Rio de Janeiro, p. 122 e segs. lações negras".

234 235
rl
a antiga fraternidade que unia o senhor de engenho com a paisa- do pelo Babalorixá patriarca. Esta é, parece-me a ràzão princi-
gem, com os caboclos e com seus escravos, foi substituída por pal que permitiu às seitas religiosas africanas resistir vitoriosa-
relações desumanizadas. do usineiro para com seus empregados, mente e mesmo se consolidar sociolôgicamente na grande crise
que para êle não passavam de cifras inscritas intercambiáveis e que marca o início da era republicana.
de acessórios da máquina. A criança abandonada cresce sozinha Todavia, para sobreviver, deviam se adaptar a condições
nos canaviais; a família desorganizada se restringe ao concubina- sociais novas e, de início, ao desaparecimento dos africanos.
to; o homem sente-se sem apoio, completamente isolado, pronto Os calundus estavam ligados às "nações" e seus ritos como
a se lançar no abismo que o atrai, a sexualidade, a aguardente, suas· divindades variavam segundo essas "nações"; a cabula
movido pela vontade de autodestruição de sua própria personali- banto se distinguia do candomblé ioruba e êste do Tambor de
dade que o meio social não quer mais reconhecer.(85) Mina daomeano. Eis que, dessa maneira, cessa o recrutapiento
Nesta atomização e desumanização das ·relações humanas, étnico, mais ainda os casamentos se fazem entre as etnias mais
o cand9mblé permaneceu o único centro de integração possível. diferentes(87) e as crianças nascidas dessas uniões são "crioulas"
Na. medida em que houve uma reconstituição do povoado sem nenhuma ligação com uma tradição determinada. :S evi-
africano, com suas regras de confraternização religiosa e seus dente que êsses casamentos levaraµi a um sincretismo entre os
modelos de assistência mútua, como também esta afetividade que costumes das "nações" africanas outrora rivais; encontra-se
ligava seus membros, tomou-se (o candomblé), para esta popu- u'a "mãe d'água" gurunci numa casa de candomblé ketu;( 88 )
lação, subitamente abandonada a si mesma, o refúgio e o apoio. ouvem-se cânticos congueses nos terreiros angola. . . . Porém, em
O que escreve Costa Pinto a respeito da macumba do Rio de geral, cada seita conservou a tradição étnica de seus funda-
hoje, era evidentemente ainda mais verdadeiro para as seitas dores; produziu-se assim uma dissociação entre a origem tribal
africanas logo em seguida à supressão do trabalho servil: e a civilização, entre a etnia e a cultura, graças à qual o antigo
O prestígio de seu líder espiritual e sua posição no culto, o
éalundu pôde se conservar não obstante à miscigenação; mas
leva a manter um contato amigável e constante com a policia seu recrutamento não mais se faz num único povo já que não
do bairro; sua situação econômica lhe permite ajudar alguns pro- há mais povos; obedece a outras leis, como a de vizinhança,
sélitos em seu infortúnio; suas relações pessoais com os membros a de prestígio dos chefes de culto, ou de amizade.(89)
de uma classe superior, sua maior habilidade mental e oral, fazem- Se a abolição desagregou a comunidade da classe negra,
-'IlO um líder latente, freqüentemente um líder efetivo, no pequeno
mundo de seu burgo. (86) aumentou também os contatos, se bem que inforµiais e mais cul·
turais que sociais, com o mundo dos brancos. O negro viu-se
Se se acrescenta que a Constituição da República procla- prêso nas lutas dos partidos políticos, na concorrência econô-
mava o sufrágio universal, compreende-se que os candidatos às mica no mercado de trabalho, e como a Igreja, seguindo o mo-
eleições estivessem imediatamente interessados em ganhar os vimento de integração de todos os brasileiros numa só socie-
sufrágios dêsses líderes, o que acarretaria os de todo o grupo dos dade mudava de atitude e se dirigia agora contra o dualismo
fiéis; mas era preciso negociar êste apoio, e êsse negócio permitia ~e unia igreja negra distinta da igreja branca, viu-se também
ao homem político substituir, para o todo integrado da seita, o envolvido nas grandes festas, nas procissões, nos congressos
desaparecido senhor de engenho, se tomar o senhor tutelar, apoia- católicos, reunindo as massas populares sem distinção de origem
(35 J São principalmente romancistas como José LINS DO R1!:GO para a
ou de côr. i;;ste aumento de contato com o mundo luso-bra-
região de Pernambuco (com seu ciclo da cana-de-açúcar, do bangüê à usina) sileiro, verificando-se no momento exato em que diµiinuíam
e Jorge AMADO para a regiãio da Bahia ou de Ilhéus que descreve o
destino desta plebe do Nordeste. Do ponto de vista sociológico ou da (37) Por exemplo, o avô da atual Ialorixá de Engenho Velho era um
geografia humana, ver o prefácio de G. FREYRE, ao livro de Júlio BELLO, Egba, que se casara com uma Gêge-Mahum. Um Egba da mesma seita casou-
Memórias d.e um Senhor d.e Engenho, J. Olympio, Rio, 1938, XXXII-235 pp., ·se com uma Ioruba, segundo o rito católico e o rito mu9t11mano 11lmt11tâµea-
o· livro de Limeira TEJO, Brejos e Carrasc6es d.o Nordeste, pp. 35-79; oe mente, FRAZIER, op. ctt., pp. 473 e 475.
estudos de Clóvis AMORIM, "O Moleque de Canavial'', O Negro no Brasil, pp. (38) Couto FERRAZ, "As Ctllturas Negras no Nõvo Mundo", BoZ. d/Artez,
71-4 e de Jovlno de RAIZ, "O Trabalhador Negro no Tempo do Bangüe Com- n,o 8, 1938, p. -340.
parado com o Trabalhador Negro I1JO Tempo das Usinas de Açúcar", tn Estudo& (39) HERSKOVITS deplora, com razão, a falta de estudos sõbre o recru-
A/ro-õrastleiros, pp. 191-94. tamento atual dos candomblés, "The Social Organlzatlon of the Candomble",
(36) COSTA PINTO, up. ctt., p, 244, XXXI Congr. Int. d.e Amer., p. 508. .

236 237
os contatos com a África, ocasionou um esfacelamento dos "sincretizadas" .(44) Assiste-se atualmente a um movimento de
valôres, das normas e das crenças ancestrais. O negro respon- purificação dos candomblés, em reação contra. o aviltamento da
deu a isso pelo que propusemos chamar de "princípio de macumba, bem como a um aprofundamento da fé religiosa
corte".(4 º) Escapou à lei do "marginalismo" edificando eµi seu de seus membros.
interior uma barreira quase intransponível entre os dois mundos A política republicana, por oposição ao dualismo colonial
opostos que nêle habitavam, o que lhe permitiu uma dupla fi- ou imperial, foi uma política de integração nacional. Existia
delidade a valôres freqüentemente contraditórios. A Psicologia, no século XIX uma integração dos melhores elementos da
que Stonequist tomou célebre, do homem marginal,(41 ) se se classe de côr e falamos da ascensão do mulato; porém, esta
aplica ao negro alienado do sul do Brasil; não se aplica, em integração era apenas integração de indivíduos selecionados, dei-
compensação, ao negro fiel à África de seus pais. O último xando fora a grande massa de negros. A política republicana,
vive com tôda tranqüilidade nas duas culturas simultâneamente, ao contrário, foi de integração de todos os brasileiros sem dis-
sem que essas duas culturas se choquem, se interfiram ou se tinção: caboclos, mestiços de índios, negros, imigrantes euro-
misturem. Parafraseando Pasteur, poder-se-ia dizer que quando peus ou japonêses, de criação não só de uma comunidade de
entra em seu sindicato, em seu grupo profissional ou quando interêsse, mas também e principalmente uma comunidade de
j. vai ao mercado, fecha a porta de seu pegi e, da mesma for- crenças e de sentimentos. Ora, esta homogeneização de pensa-
ma, quando entra no pegi, deixa na entrada suas vestimentas mentos e de atitudes ia aparecer como o maior obstáculo a
de brasileiro, sua mentalidade em contato com o capitalismo, continuação das seitas africanas. O Estado substituía agora a
por uma econoµiia baseada no dinheiro e por uma sociedade família tutelar e se sua proteção não tivesse o caráter afetivo que
fundamentada em modelos ocidentais. Este "corte", do qual tinha o antigo regime de patriarcado, ajudava ainda assim a
se encontrará, demais, equivalentes entre os "evoluídos" dos ter- metamorfose da plebe desorganizada num proletariado cons-
ritórios africanos,(42) nada apresenta de doloroso, não é um ciente; favorecia a inclusão do negro no nôvo sistema de pro-
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rasgão ou uma automutilação. :É, pelo contrário, a solução dução capitalista, a formação de uma pequena burguesia de
li mais econômica aQ problema da coexistência pacífica de dois
µiundos numa única personalidade. O candomblé graças a êle
côr. Ora, todos os observadores estão de acôrdo em reconhecer
'que esta ascensão se fêz em detrimento dos valôres africanos.
1'' í pôde assim resistir vitoriosamente aos assaltos da sociedade-am-
biente que podiam se organizar contra êle. Os caracteres culturais, tais como o candomblé e o culto de
lt Janaína, passam por ser o sinal de uma condição social humilde
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Por certo, o corte não pode ser tQtal. As seitas africanas escreve Hutchinson a propósito dos negros rurais, e os que deseja~
não estão inteiramente incólumes às influências sutis que nelas se elevar socialmente fazem questão de se dissociar dos grupos que
se insinuam vindas do mundo dos brancos. Teremos que estu- conservaram essa característica. (45) ·
dar mais além essas influências, coµio também seus limites, Pierson faz observações análogas em relação ao negro
examinando os fenômenos do sincretismo. Em todo caso, elas urbano. Estudando o desenvolvimento da instrução no povo~
sentiam o perigo, e para resistir estão hoje fortificadas numa notando que esta instrução não se faz em escolas separadas,
1 lealdade, tanto mais tenaz e resoluta, aos valôres herdados de
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seus fundadores. A esta Couto Ferraz chamou de '"retômo à mas em classes nas quais os negrinhos sentam-se nos mesmos.
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Africa" ,(4ª) que se traduz nos fatos pela união de tôdas as seitas bancos que os brancos antes de se recrearem juntos no mesmo
tradicionais numa federação e, por ela a excoµiunhão de seitas (44) O fim desta federação é "manter e orientar a religião afro-brasileira
ao interior do ritual deixado pelos antepassados", "de evitar a intervenção
(40) R. BASTIDE, "Le Principe de Coupure et le Comportement Brési- direta das sociedades filiadas nas festas do Carnaval com objetos perten-
llen ", id.., íbtã., pp. 497-98. centes ao culto afro-brasileiro"; "a federação terá autoridade sôbre as socie-
(41) STONEQUIST, o Homem Marginal, trad. port., pp. 163-75. dades fllladas a fim de que não se pratique abusos ao cU!to e fora do
(42) P. OSCHWA'LD, "Défense de la Jeunesse Gabonaise", Le Ohrtstta- rito estabelecido P,~los ancestrais": ameaça, não apenas eliminá-las da fede-
nisme au XXe Siecle, 20-1-1949, p. 21. ração, mas ainda cassar seu direito de praticar o cU!to", sem que se veja,
(43) A. de COUTO FERRAZ, "Volta A Africa", B.A.M.S.P., LIV, 1939, pp. aliás, como p0der1a ela exercer êsse direito.
175-78. (45) H. W. HUTCHINSON em Ch. WAGLEY, Races et Classes dans le:
Brésíl Rural, p. 49,

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pátio de recreio ou na rua,(46) assinala que as novas gerações,


os cc ao contrário das antigas, desprezam ou zombam dos candom-
valôr,· blés.(47) Essas observações são perfeitamente justificáveis; a
deu grande maioria das "filhas-de-santo" recruta-se ainda na massa
corte'· econômicamente desfavorecida e intelectualmente mais ou menos
inteiri analfabeta.(48) O candomblé acha-se, pois, em presença hoje
opos1 de uma verdadeira prova de fôrça, ·mas não podemos ainda
delid predizer se saberá adaptar-se a esta nova situação ou se pere-
que cerá. Entretanto, o que devemos notar, para terminar, é que
aplic hoje se encontram cada vez mais entre seus p:iembros, advoga-
com]. dos, comerciantes ricos, artesãos abonados e que seus sacen-
vive dotes ou suas sacerdotisas são capazes de discutir com rara intei
sem ligência com etnógrafos de passagem assim como de- respondet
mist11 com sutileza às objeções que se lhes faz. Devemos observa t- .
entrli- também que se êsse movimento de integração prejudicou a~ i
.{ s. eitas tradicionais, não prejudicaria as seitas mais ou meno~ :_.
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sincréticas cujo número, em vez de diminuir, como veremos,\ :
aumenta dia a dia. :·
de f•. De qualquer maneira, no que diz respeito ao futuro e nãoi ,
por' ao presente, o candomblé e outros tipos de religião africana
func: têm resistido a-- todos os caos estruturais, encontrando sempre
se e• o meio de se adaptar a novas condições de vida ou a novas
ritó1 estruturas sociais; chegou o momento, pois, de estudá-los em
rasg, suas formas atuais.
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(46) D. PIERSON, "The Educational Process and the Brazil!an ;
Amer. Journ. o/ Sociology, XLvm, 6, 1943, p, 692 e segs.
nisr. (47) D, PIERSON, Brancos e Prétos na Bahia, pp, 380-84. í
(48) É. CARNEIRO, Candomblés ãa Bahia, pp. 79-81. 1
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