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O PENSAMENTO

POLÍTICO DE
MICHEL FOUCAULT

Coleção

contrassensos
Dirigida por Nildo Avelino e Ana Montoia
Coleção

contrassensos

Governamentalidade | segurança
Nildo Avelino e Salvo Vaccaro [orgs.]

Ditaduras: a desmesura do poder


(memória, história, política)
Nildo Avelino, Telma Dias Fernandes e Ana Montoia [orgs.]

Hegemonia e estratégia socialista.


Por uma política democrática radical
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe

O mito do fascismo: de Freud a Borges


Federico Finchelstein
O PENSAMENTO
POLÍTICO DE
MICHEL FOUCAULT

Nildo Avelino  |  Salvo Vaccaro

o r g a n i z a d o r e s
Editora Intermeios
Rua Cunha Gago, 420 / casa 1 – Pinheiros
CEP 05421-001 – São Paulo – SP – Brasil
Fones: [11] 2365-0744 – 94898-0000 (Tim) – 99337-6186 (Claro)
www.intermeioscultural.com.br

O PENSAMENTO POLÍTICO DE MICHEL FOUCAULT

© Nildo Avelino | Salvo Vaccaro

1ª Edição: fevereiro de 2018



Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros
Revisão técnica e preparação de texto Ana Godoy
Capa Foto: Francisco Ripó
Ugolino and his Sons
Jean-Baptiste Carpeaux
The Metropolitan Museum of Art
New York
Arte Intermeios – Casa de Artes e Livros

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS)
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)
Barbara Arisi (Unila)
Nikita Paula (Ancine)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

A948     Avelino, Nildo, Org.; Vaccaro, Salvo, Org.


   O pensamento político de Michel Foucault. / Organização de Nildo Avelino
e Salvo Vaccaro. – São Paulo: Intermeios, 2018. (Coleção Contrassensos).

   370 p. ; 16 x 23 cm.
  
  ISBN 978-85-8499-068-9
  
1. Ciência Política. 2. Política. 3. Poder. 4. Anarquismo. 5. Lutas Sociais.
6. Pensamento Foucautiano. 7. Foucault, Michel (1926 -1984). I. Título.
II. Série. III. Avelino, Nildo, Organizador. IV. Salvo, Vaccaro, Organizador.
V. Convegno Internazionale “Il pensiero politico di Foucault: Governamentalità,
biopolitica, post-democrazia”. Palermo, 27 – 28 novembre 2014. VI. Intermeios
– Casa de Artes e Livros.

CDU 321
CDD 320 

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino


Sumário

 7 Introdução: pensar a política com Foucault


Nildo Avelino

 43 Historicização radical, genealogia da governamentalidade e


subjetivação política
Laura Bazzicalupo
 65 Greve da política: Foucault e a revolução subjetiva
Frédéric Rambeau
 83 Foucault e a pós-democracia neoliberal. Além da ‘‘crítica
inflacionista do Estado”
Ottavio Marzocca
109 Pensar Marx com Foucault e Foucault com Marx
Jacques Bidet

125 Foucault, a contraconduta e a atitude crítica


Daniele Lorenzini

139 A dobra de Foucault: o pensamento do ‘‘fora’’ e a prática


do verdadeiro
Sandro Luce
155 Foucault e a questão da ideologia
Orazio Irrera

185 Spectator novus: transfiguração e estranhamento em Foucault,


Hadot e Guinzburg
Laura CremoneSi

201 Êthos animal. Filosofia e política no último Foucault


Pierandrea Amato

233 ‘‘Dramatizar’’ a escrita. O theatrum politicum de


Michel Foucault
Arianna Sforzini

251 O dizer verdadeiro, condição do bem morrer


Guillaume Le Blanc

269 Disciplinar e curar: a ‘‘realidade’’ como alvo do poder


psiquiátrico
Philippe Sabot

287 O governo da turba? Produção do resto e seu excesso


Martina Tazzioli

303 Ambiguidade de Foucault


Marco Assennato

321 ‘‘A crítica como arte da inservidão voluntária’’: Foucault,


La Boétie e o problema da liberdade
Saul Newman

343 O pensamento político de Foucault: da ethopoiesis à ethopolítica


Salvo Vaccaro

365 Sobre os autores


Introdução:
pensar a política com
Foucault

Nildo Avelino

[...] meu projeto é multiplicar por toda parte em


que forem possíveis as ocasiões de sublevar-se em
relação ao real que nos é dado; sublevar-se [...] contra
um tipo de relação familiar, contra uma relação
sexual, contra uma forma pedagógica, contra um
tipo de informação. [...] não pode existir, e não é
desejável que exista, sociedade sem sublevação.

Michel Foucault
“Entrevista inédita com Farès Sassine (1979)”.

O momento anárquico

O final da década de 1990 assistiu ao ressurgimento do


agir anárquico. O marco dessa guinada é o ano de 1999, e seu
acontecimento decisivo a batalha de Seattle. Naquela curta e
violenta semana, entre fim de novembro e começo de dezembro,
o mundo presenciou o “florescimento de um novo movimento
radical [...], turbulento, anárquico, internacionalista, esclarecido
e, em certa medida, mais criativo e fluído que as irrupções
populares das últimas décadas”1. Os protestos mundiais contra

1 A. Cockburn, J. St. Clair. Five days that shook the world: Seattle and beyond. Londres:
Verso, 2000, p. 1.
8 o pensamento político de michel foucault

a World Trade Organization coordenados pela Peoples’ Global


Action (Ação Global dos Povos), de forte inspiração zapatista,
demostraram a potência radicalmente explosiva dessa forma
de ação política tida como morta ou moribunda. Logo após a
batalha de Seattle, David Graeber escreveu que o anarquismo foi
não apenas o coração e a alma das manifestações, mas também
as táticas empregadas efetivamente pelos diversos grupos
ativistas “estavam em perfeita consonância com a inspiração
geral anarquista do movimento, que é menos a de tomar o
poder do Estado do que expor, deslegitimar e desmantelar os
mecanismos da ordem para arrancar-lhes sempre mais espaços
de autonomia.”2
Desde então, milhares de pessoas têm tomado as ruas,
praças, parques, edifícios e escolas em todo o mundo: das
batalhas da Praça Sintagma, em Atenas, aos conflitos do Parque
Taksim Gezi, em Istanbul; da revolta dos Indignados espanhóis
do M15 (Democracia real ya!) aos vários Occupy de Nova Iorque,
Oakland, Boston e outras cidades estadunidenses; até chegar
às revoltas de junho de 2013, com a eclosão dos black blocs, e
às recentes ocupações das escolas no Brasil. “Algo de novo
está acontecendo [...]. Hierarquia e democracia representativa
estão sendo rejeitadas, ideológica e espontaneamente, e nessa
rejeição vastas assembleias horizontais estão abrindo novas
paisagens com horizontes de autonomia e liberdade.”3 Aquilo
que os autores de Eles não nos representam! imaginam ser uma
“nova onda revolucionária sem precedentes na sua forma,
nas suas políticas, em seus escopos e escalas”4, é, contudo, a
retomada de um sentido político há muito tempo banido da cena
política mundial: o anarquismo. Existe uma flagrante analogia

2. D. Graeber. “The New Anarchists”. New Left Review, n. 13, jan.-fev., 2002, pp. 62,
68.
3. M. Sitrin, D. Azzellini. They can’t represent us! Reinventing Democracy from Greece to
Occupy. Londres: Verso, 2014, pp. 5-6.
4. Idem.
nildo avelino | salvo vaccaro 9

entre o modus operandi que tem sido acionado nessas diversas


manifestações e aquele utilizado pelos movimentos anarquistas
dos séculos XIX e XX; neles, floresce uma mesma forma do agir: a
ação direta, na definição de Pouget, um agir que “não espera nada
dos homens, dos poderes ou das forças exteriores a ela mesma.
Mas cria suas próprias condições de luta e emprega por si mesma
seus próprios meios de ação.”5
Mas além da ressurgência ruidosa do anarquismo na cena
política mundial das últimas décadas, há também a irrupção
de um amplo interesse acadêmico sobre os saberes anarquistas,
o que provocou um significativo desenvolvimento teórico dos
seus temas e problemas. Como salientaram Amster et al., “logo
após os protestos Anti-Globalização de Seattle, em 1999, ocorre
uma significativa ressurgência do interesse acadêmico e de
ativistas pelo anarquismo e o pensamento anarquista.”6 E o efeito
decorrente desse segundo aspecto, como observou Evren, não foi
apenas o surgimento de pesquisas orientadas anarquicamente;
foi também, significativamente, o florescimento de “uma teoria
anarquista ‘contemporânea’ específica. Uma nova oportunidade
para anarquistas repensarem uma teoria social anárquica.”7
Embora considerando o termo “teoria” inapropriado, seria
preciso reconhecer que o florescimento da reflexão anarquista
no interior da academia possibilitou associar ao anarquismo
novos conteúdos de saberes, tais como os encontrados no pós-
estruturalismo, nos estudos culturais e pós-coloniais, nos estudos
de gênero e feministas, na teoria queer, nos estudos ambientais,
ecologistas e de liberação animal etc. Entre os resultados dessa
nova condição teórica do anarquismo contemporâneo está
certamente a configuração de um novo campo de estudos no

5. É. Pouget. L’action directe suivi de Le sabotage. Marselha: Le Flibustier, 2009, p. 13.


6. R. Amster et al. “Introduction”. In: _____. (org.). Contemporary Anarchist Studies. An
introductory anthology of anarchy in the academy. Routledge: Londres, 2009, p. 1.
7. S. Evren. “How New Anarchism Changed the World (of Opposition) after Seattle
and Gave Birth to Post-Anarchism”. In: D. Rousselle, S. Evren. Post-Anarchism. A
Reader. Londres: Pluto Press, 2011, p. 3.
10 o pensamento político de michel foucault

interior da academia – os Estudos Anarquistas8 –, abrangendo


um número cada vez maior de intelectuais, professores,
pesquisadores e estudantes anarquistas que:

Utilizam o anarquismo em seus cursos de filosofia (por exemplo,


Steve Best, na University of Texas, El Paso; Eric Buck, na
Montana State University; Alejandro de Acosta, na Southwestern
University; Todd May, na Clemson University), educação (por
exemplo, Joel Spring, no Queens College; Richard Kahn, na
University of North Dakota; Abraham DeLeon, na University of
Rochester), nos estudos de paz e conflitos (por exemplo, Mark
Lance e Colman MacCarthy, na Georgetown University; Randall
Amster, no Prescott College), antropologia (por exemplo, David
Graeber; Jeff Juris, na Arizona State University) sociologia e
justiça criminal (por exemplo, Jeff Ferrell, na Texas Christian
University; Emily Gaarder, na University of Minnesota-Duluth;
Luis Fernandez, no Northern Arizona University; Deric Shannon,
na University of Connecticut; Anthony Nocella, no Le Moyne
College), e de ciência política (por exemplo, Mark Ruppert,
na Syracuse University; Joel Olson, na Northern Arizona
University).9

Assim, tudo indica que estaríamos assistindo a um


acontecimento bifurcado em relação ao anarquismo das últimas
três décadas: de um lado, o ressurgimento barulhento na cena
política; de outro, a retomada e o desenvolvimento inusitados
e sem precedentes da reflexão anarquista no interior da
academia. Certamente, são dois aspectos inseparáveis, que se
implicam e reforçam mutuamente, de modo que a ressurgência
do anarquismo nas ruas está diretamente ligada à irrupção dos
saberes anarquistas no interior da universidade. O fato de que

8. Cf. S. Vaccaro. Anarchist Studies. Una critica degli assiomi culturali. Milão: Elèuthera,
2016.
9. R. Amster et al., op. cit., 2009, p. 1.
nildo avelino | salvo vaccaro 11

muitos dos pesquisadores do anarquismo na academia sejam


oriundos do movimento anarquista ou mantenham com ele
alguma relação, não é acidental.
Em todo caso, essa dupla ressurgência do anarquismo
tem atraído a atenção de vários estudiosos. Significativo, a esse
respeito, foi a conferência intitulada The Anarchist Turn, realizada
em 2011, na New School, em Nova Iorque, bem como o livro dela
decorrente10. Um dos organizadores, Simon Critchley, professor
de filosofia naquela instituição e estudioso do pensamento de
Jacques Derrida e Emmanuel Levinas, afirmou que o objetivo
da conferência foi o de argumentar sobre a existência de um
anarchist turn, uma virada anarquista não apenas nos modos
como praticamos a política, mas também na maneira de pensá-
la, nas próprias formas do saber político. Trata-se de uma virada
anarquista que, diz Critchley, ao reativar o impulso anárquico,
“tem permitido imaginar uma desconstituição do campo político
baseado na primazia da arché (seja como princípio primeiro,
poder supremo, ato de soberania ou dominação), para o cultivo
do que poderíamos chamar de meta-políticas anárquicas.”11
No Brasil, contudo, país palco de uma das cenas de irrupção
do agir anárquico e da desconstituição do campo político como
arqué, o que se tem observado é o enorme atordoamento e a
incapacidade do discurso político (de esquerda, de direita,
mas também, é forçoso dizer, anarquista, ainda preso à leitura
obsoleta da luta de classes), em compreender os acontecimentos.
Foi assim que, em 2013, no ápice dos conflitos, não somente as
autoridades e a mídia, mas grande parte da intelectualidade
brasileira de todas as tendências políticas assistiu atônita o
país ser engolido por um furor que escapava aos limites da sua
compreensão. Foi o caso do célebre cientista político Wanderley

10. J. Blumenfeld, Ch. Bottici, S. Critchley. The Anarchist Turn. Londres: Pluto Press,
2013.
11. S. Critchley. “Introduction”. In: J. Blumenfeld, Ch. Bottici, S. Critchley, op. cit.,
2013, p. 3.
12 o pensamento político de michel foucault

Guilherme dos Santos ao afirmar, em artigo publicado no jornal


Valor Econômico, que as ações dos black blocs estabelecem uma
“atração fatal à anomia, ao niilismo, ao negativismo militante”
propugnados por “minorias insidiosas de sempre: um nazismo
renascente, protofascistas” que têm infestado as manifestações.
Essa “informal coalização de celerados”, diz Santos, é
defensora de uma semântica política “niilista, reacionária,
antidemocrática. [...] A conjuntura é fascistoide”, alardeia o
prestigioso politólogo12.
O juízo de Marilena Chaui não foi menos implacável.
Falando para uma audiência de cadetes e oficiais da Academia
da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a célebre filósofa de esquerda
não se constrangeu em apresentar os black blocs como fascistas.
“Temos três formas de se colocar. Coloco os ‘blacks’ na fascista.
Não é anarquismo, embora se apresentem assim. Porque, no caso
do anarquismo, o outro [indivíduo] nunca é seu alvo. Com os
‘blacks’, as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as coisas”.
Além disso, diz Chaui, tampouco sua violência seria uma
violência revolucionária, na medida em que esta “só se realiza
se há um agente revolucionário que tem uma visão do que é
inaceitável no presente e qual a institucionalidade futura que se
pretende construir”13.
Algumas vezes, a incompreensão atinge o ápice da
tolice. Foi assim que Adauto Novaes, após lamentar a “perda
dos fundamentos políticos” em uma época na qual vigora “o
princípio do sem princípio”, chamou os recentes acontecimentos
de “espetáculo burlesco, sinistro e insuportável”, expressão “de
um voluntarismo decadente” e de um “egoísmo organizado”.
Ainda mais espantoso foi o que Eugênio Bucci escreveu a
propósito da atuação dos black blocs no Brasil. A partir de uma
semiologia rasteira, o jornalista afirmou que tanto os “imitadores

12. W. Guilherme dos Santos. “Anomia niilista”. Valor econômico, 26/07/2013.


13. M. Chaui. “‘Black Blocs’ agem com inspiração fascista, diz filósofa a PMs do Rio”.
Folha de São Paulo (Poder A9), 27/08/2013.
nildo avelino | salvo vaccaro 13

de Seattle” quanto o papai Noel dos shopping centers “podem ser


lidos como dois signos transitando em lugares públicos”: ambos
precisam se mascarar14.
Esse tipo de cegueira interpretativa revela a natureza
problemática e o desafio reflexivo com os quais se está sendo
confrontado: de Seattle ao Brasil está em jogo a emergência do
novo e a abertura de possíveis como resposta ao que não é mais
suportável. E, como afirmou Lazzarato, fornecer velhas respostas
a novos problemas é perder o acontecimento15.
Em todo caso, quando confrontado com o agir anárquico,
a resposta do discurso político tem, em geral, oscilado entre as
aspas da derrisão e o silêncio da exclusão: incapaz de teoria, o
anarquismo foi relegado ao posto de objeto empírico desprovido
de funcionalidade teórica; seus autores são postos aquém da
ciência, do lado de lá da fronteira onde habita o lirismo utópico
ou a simplicidade empírica. Pré-científico e pré-teórico, o agir
anárquico foi encerrado no devaneio, limitado à matéria do seu
empirismo ingênuo ou simplesmente reduzido à força bruta das
suas manifestações. De qualquer modo, as formas teóricas do
conhecimento lhe são inacessíveis. Daí seu banimento: há mais
de um século o agir anárquico vive o exílio destinado aos que
se recusam a expressar-se por meio dos princípios consagrados

14. A. Novaes. “Sobre uma imobilidade agitada”. In: E. Bucci. A forma bruta dos
protestos. Das manifestações de 2013 à queda de Dilma Rousseff em 2016. São Paulo: Cia.
das Letras, 2016, pp.11-12; E. Bucci, op. cit., 2016, p. 48. Pretendendo mostrar ao
leitor “a forma bruta dos protestos”, Bucci conseguiu apenas apresentar um estudo
abstrato e superficial que ignora não somente a extensa literatura sobre o assunto,
mas também o contexto econômico e político no qual as manifestações mundiais
se inserem e ganham inteligibilidade. Para uma abordagem nesse sentido, ver,
entre outros: G. Katsiaficas. The subversion of politics. European Autonomous Social
Movements and the Decolonization of Everyday Life. Okland: AK Press, 1997; D.
Harvey. Rebel Cities. From the Right to the City to the Urban Revolution. Londres:
Verso, 2012; A. Godoy (org.). “Dossiê: Na rua | Em movimento [o incalculável
da política]”. Revista Alegrar, n. 12, 2013. Disponível em: <http://alegrar.com.
br/revista12>; C. Dixon. Another Politics. Talking across Today’s Transformative
Movements. Oakland: University of California Press, 2014.
15. M. Lazzarato. As revoluções do capitalismo. Trad. Leonora Corsini. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 23.
14 o pensamento político de michel foucault

pelo discurso político e aos renitentes do agir sem fundamento


nem princípio, isto é, sem arché.
Portanto, aquilo que o discurso político reprova no agir
anárquico é precisamente a sua ausência de direção e a sua
não ordenação segundo a perspectiva de um fundamento ou
de um princípio com o qual se possa mensurar a coerência de
suas palavras e gestos. Sem um ponto fixo, desprovido de um
princípio de inteligibilidade, não restará ao agir nada mais que
o banimento ou a desqualificação pelo discurso, que cumpre,
neste sentido, uma função árquica estruturante e que forma
tanto os objetos quanto os sujeitos do discurso. Como assinalou
Reiner Schürmann, em seu notável estudo, arché é um termo de
subordinação que estabelece com o agir uma relação atributiva:
ordena-o conforme um ponto de vista ou fundamento que lhe
confere um télos. Os princípios, afirma Schürmann, “desenham a
estrutura em que se liga o princeps, a autoridade à qual se atribui
o que é permitido fazer. As filosofias primeiras fornecem ao
poder suas estruturas formais. Mais exatamente, a ‘metafísica’
desenha o dispositivo no qual o agir requer um princípio ao qual
se reportam as palavras, as coisas e as ações.”16
É nesse sentido que a exclusão que silencia ou a inclusão
que desqualifica não são jamais acidentais, mas efeito da sujeição
produzida pela teoria sobre o agir político. Como salientou
Gunnel, a função da Teoria Política é precisamente a de assentar
os fundamentos da ação dos indivíduos, necessários para a
manutenção da ordem. Para tanto, o agir deverá ser encerrado
“dentro do mito de ordenação e da ordem institucional de maneira
tal que o caráter imprevisível e marginal da ação individual
seja anulado.”17 Suplantando, assim, o que existe de incerto e
irregular (de anárquico!) no comportamento, a Teoria garante a

16. R. Schürmann. Le principe d’anarchie. Heidegger et la question de l’agir. Bienna/Paris:


Diaphanes, 2013, p. 15.
17. J. Gunnell. Teoria política. Trad. Maria I. C. de Moura. Brasília: Ed. UnB, 1981, p.
110.
nildo avelino | salvo vaccaro 15

estabilidade necessária às instituições sabiamente fundadas em


conhecimento teórico. Aqui reside a singular simbiose entre o que
Deleuze e Guattari chamaram os “dois polos da soberania: um
imperium do pensar-verdadeiro, operando por captura mágica,
apreensão ou liame, constituindo a eficácia de uma fundação
(muthos); uma república dos espíritos livres, procedendo por
pacto ou contrato, constituindo uma organização legislativa e
jurídica, trazendo a sanção de um fundamento (logos).”18 Nessa
simbiose, o Estado confere ao pensamento o status de centro
único, nomeando-o Teoria. Em troca, o pensamento dá ao Estado
algo de essencial: o consenso sobre o qual será instituída sua
justiça e atribuída sua legitimidade19.

Uma arqueologia do saber político

A ruína dos governos começa com a dos princípios, afirmou


Montesquieu20; o autor de O espírito das leis soube reconhecer
mais do que ninguém sua irredutível dimensão normativa:
“princípio é o que faz agir”. Os princípios engendram, tanto na
teoria quanto na filosofia, a estrutura árquica por meio da qual a
conduta dos indivíduos será o resultado do governo da arqué,
da obediência a um sentido estabelecido. Assim, o princípio seria
para a ação o que a episteme é para o saber: essa última, como
mostrou Foucault, confere uma lei interior às palavras, às coisas
e aos gestos, “mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre
mais ‘verdadeira’ que as teorias”, sem a qual não seria possível a
constituição dos conhecimentos verdadeiros21. Os princípios, por
sua vez, conferem ao agir uma instância primeira de ordenação

18. G. Deleuze, F. Guattari. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, v. 5. Trad. Peter P.


Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 43.
19. Ibidem, p. 44.
20. Montesquieu. Do espírito das leis. Trad. Fernando H. Cardoso e Leôncio M.
Rodrigues. São Paulo: Victor Civita, 1973, pp. 49, 121.
21. M Foucault. As palavras e as coisas. Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. XVII.
16 o pensamento político de michel foucault

dos atos e condutas. Teve razão Proudhon quando declarou ser


seu poder “tão forte que, frequentemente, mesmo enquanto
combatemos um princípio que o nosso entendimento julga
falso, que a nossa razão rejeita, que a nossa consciência reprova,
defendemo-lo sem nos apercebermos, raciocinamos segundo ele,
obedecemos-lhe atacando-o.”22
Entretanto, a questão que gostaria de colocar é, com relação
ao agir anárquico e no domínio específico da teoria política, como
se fez para que fosse possível sua rejeição ou subordinação geral
pelo discurso? Como descrever a história do banimento e da
sujeição do agir anárquico pela teoria política? A esse respeito,
a crítica foucaultiana tem provocado uma verdadeira revolução
conceitual nos modos de pensar a política, a partir, sobretudo, do
que pode ser considerado como a mais influente reelaboração do
conceito de poder das últimas décadas.
Em 1977, pouco após publicar o primeiro volume da sua
História da sexualidade, Foucault afirmou que “a Teoria Política
permaneceu obcecada pela personagem do Soberano. Todas
essas teorias ainda colocam o problema da Soberania.”23 Uma
obsessão que teria produzido, desde o final da Idade Média, um
tipo de homogeneidade teórica do poder como submissão, “quer
se trate do súdito ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da
criança ante os pais, do discípulo ante o mestre”24. Surge uma
concepção do poder como potência negativa capaz unicamente
de impor limites e de deixar fazer apenas o que é permitido, e que
reduz “todos os modos de dominação, submissão, sujeição, [...]
ao efeito de obediência.”25 Como explicar a permanência dessa
representação teórica do poder? Segundo Foucault, há duas

22. P.-J. Proudhon. O que é a propriedade? 3ª ed., trad. Marília Caeiro. Lisboa: Estampa,
1997, p. 16.
23. M. Foucault. “Entretien avec Michel Foucault”. In: _____. Dits et écrits, t. II: 1976-
1988. Paris: Gallimard, 2001b, p. 150.
24. M. Foucault. História da sexualidade, v. 1: a vontade de saber. 11ª ed., trad. Maria Th.
da C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1993, p. 82.
25. Ibidem, p. 83.
nildo avelino | salvo vaccaro 17

explicações para isso. Em primeiro lugar, ela cumpre uma função


estratégica proveniente do tipo de racionalidade específica das
relações de poder na modernidade. Com o surgimento do Estado
moderno, para fazer-se tolerável, o poder passou a mascarar o
aspecto mais importante e essencial de si mesmo: a positividade
e a produtividade dos seus mecanismos. A eficácia e o sucesso
do poder, diz Foucault, passaram a depender da colocação
em segredo da sua intencionalidade intrínseca. Para tanto, sua
forma negativa deve ser visível, na medida em que a dimensão
positiva dos seus mecanismos deve ser ocultada. De modo que
“o segredo, para ele, não é da ordem do abuso; é indispensável
ao seu funcionamento.” O segredo e a ocultação do que pode
haver de positivo e produtivo no seu exercício fez com que a
representação do “poder, como puro limite traçado à liberdade,
pelo menos em nossa sociedade, [se tornasse] a forma geral de
sua aceitabilidade.”26
A segunda explicação para a permanência da representação
negativa do poder é histórica. O tipo de racionalidade tática do
exercício do poder encontraria confirmação no desenvolvimento
histórico do Estado e das instituições políticas modernas,
primeiramente das monarquias absolutistas organizadas em
torno da teoria da Soberania. Segundo Foucault, o pano de
fundo que deu o impulso primordial para o estabelecimento da
Soberania foi a existência de uma multiplicidade de “poderes
densos, intrincados, conflituosos, ligados à dominação direta ou
indireta sobre a terra, à posse das armas, à servidão, aos laços de
suserania e vassalagem.”27 Assim, se a Soberania se implantou e
se fez aceitar como poder perpétuo e absoluto de uma República,
foi apenas sob a condição de se apresentar “como instância de
regulação, de arbitragem, de delimitação, como maneira de
introduzir ordem entre esses poderes, de fixar um princípio para

26. Idem.
27. Ibidem, p. 84.
18 o pensamento político de michel foucault

mitigá-los, e distribui-los de acordo com fronteiras e hierarquias


estabelecidas.”28 Diante desses poderes, a Soberania se apresentou
“como princípio do direito”, manifestando-se sob a forma de um
grande poder que se exerce através de mecanismos negativos
de proibição e punição. Com isso, o direito, diz Foucault, não
foi somente a arma dos monarcas, mas foi também, sobretudo,
“o modo de manifestação e a forma de aceitabilidade” do poder
soberano.
Foi assim que Bodin, escrevendo no contexto das guerras
de religião e pouco após o massacre de São Bartolomeu, separou
poder soberano e direito, para que o primeiro pudesse se
manifestar como legibus solutus (isento da lei) e o segundo como
seu limite, criando o estranho paradoxo de um poder que pode
se exercer contra ou acima das leis sem, contudo, jamais ser
injusto, uma vez que o direito é equidade e a lei nada mais é que
“o comando do soberano usando de seu poder.”29 Em Hobbes,
encontra-se a mesma separação de maneira ainda mais clara:
escrevendo no estalido da guerra civil inglesa, dirá que as leis
civis nada mais são que as ordens do soberano, “há, portanto,
uma grande diferença entre lei e direito – porque a lei são
grilhões, enquanto o direito é liberdade, e por isso se diferenciam
como dois contrários.” 30
Em seguida, encontra-se no desenvolvimento histórico da
tradição liberal o mesmo princípio jurídico-político empregado
pela teoria da soberania, dessa vez direcionada contra o poder
monárquico absoluto: apresentado como arbitrário, ligado ao
capricho, ao abuso, ao não direito, a crítica política do liberalismo
teria se servido “de toda reflexão jurídica que acompanhara o
desenvolvimento da monarquia, para condená-la; mas não

28. Idem.
29. J. Bodin. Os seis livros da República: livro primeiro. Trad. José C. O. Morel. São Paulo:
Ícone, 2011, p. 231.
30. Th. Hobbes. Do cidadão. Trad. Renato J. Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
pp. 106, 218.
nildo avelino | salvo vaccaro 19

colocou em questão o princípio de que o direito deve ser a


própria forma do poder e de que o poder deveria ser sempre
exercido na forma do direito.”31 Foi assim que ela serviu a
Rousseau para consolidar as democracias parlamentares contra
as monarquias absolutistas: contra “o vício inerente e inevitável”
do poder, o filósofo genebrino opôs os direitos da soberania
popular32. Posteriormente, Benjamim Constant dirá que não
basta proclamar a soberania do povo, é preciso limitá-la pelos
direitos do indivíduo. “A jurisdição dessa soberania cessa onde
começa a existência individual”, diz Constant33.
Mais tarde, será ainda o mesmo modelo jurídico-político que
se encontrará na crítica marxista. Embora escolhendo por alvo o
próprio sistema do direito, tomado como forma de violência e
maneira de encobrir, sob as aparências da lei, as desigualdades e
injustiças da dominação, foi uma crítica que conservou o mesmo
princípio da Soberania, isto é, o “postulado de que o poder deve,
essencial e fundamentalmente, ser exercido de acordo com um
direito fundamental.”34 Como é sabido, na sua crítica ao direito
de Hegel, Marx afirmou que “o proletário possui em relação ao
mundo que está a surgir o mesmo direito que o rei alemão possui
em relação ao mundo já existente”; portanto, conclui Marx, se a
cabeça da “emancipação é a filosofia, o proletariado é seu coração.”35
Em suma, como indicou Jean Terrel36, são diferentes figuras
da soberania – suserano feudal, monarca soberano, Estado
soberano, povo soberano, indivíduo soberano e, finalmente,
proletariado como classe portadora do direito universal – que, ao
longo da história, remetem sempre ao mesmo modelo teórico cuja
31. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 85.
32. J.-J. Rousseau. Do contrato social ou princípios do direito político (Os Pensadores). Trad.
Lourdes S. Machado. São Paulo: Victor Civita, 1973, p. 105.
33. B. Constant. Princípios de política aplicáveis a todos os governos. Trad. Joubert de O.
Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 82.
34. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 85.
35. K. Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de
Deus. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 156-157.
36. J. Terrel. Politiques de Foucault. Paris: Presses Universitaires de France, 2010, p. 36.
20 o pensamento político de michel foucault

dinâmica é a de um poder que se exerce como potência negativa


ao lado de um direito que o limita ou justifica. No fundo, diz
Foucault:

[...] apesar das diferenças de época e objetivos, a representação


do poder permaneceu marcada pela monarquia. No pensamento
e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei. Daí a
importância que ainda se dá, na teoria do poder, ao problema
do direito e da violência, da lei e da ilegalidade, da vontade e
da liberdade e, sobretudo, do Estado e da soberania (mesmo
se esta é refletida, não mais na pessoa do soberano, mas num
ser coletivo). Pensar o poder a partir destes problemas é pensá-
lo a partir de uma forma histórica bem particular às nossas
sociedades: a monarquia jurídica.37

Aqui se encontra a famosa metáfora do “regicídio de


Foucault na filosofia política”38. Trata-se de revelar a persistência
de um modelo teórico-jurídico-político dominante que, ao longo
dos séculos, condicionou a representação do poder na reflexão
política em termos de comando/obediência com referência a um
direito cujo papel é o de acusar ou legitimar um poder que, em
todo caso, lhe é exterior 39. É um esquema teórico que, portanto,
deixa de fora da análise todos os mecanismos positivos por
meio dos quais o poder efetivamente se exerce; entretanto, é
ele que, também há séculos, tem fornecido o “código segundo
o qual [o poder] se apresenta e prescreve que o pensem.”40 Ou
seja, o que está em jogo na lógica da soberania é o bloqueio da
análise dos mecanismos positivos do poder para apreendê-lo

37. M. Foucault, op. cit., 1993, pp. 85-86.


38. Cf.: J. Simons. Foucault & the Political. Londres-Nova Iorque: Routledge, 1995,
especialmente, “Foucault’s Regicide of Political Philosophy”, pp. 51-67.
39. É assim que na teoria kelseniana é preciso sempre partir das normas do direito
para justificar o poder. Cf.: N. Bobbio. Direito e poder. Trad. Nilson Moulin. São
Paulo: Ed. Unesp, 2008, p. 158.
40. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 85.
nildo avelino | salvo vaccaro 21

unicamente em termos de obediência, e isso com o propósito de


encobrir todos aqueles dispositivos disciplinares indispensáveis,
diz Foucault, para a implantação do capitalismo industrial. A
lógica da soberania, incompatível com a lógica das disciplinas,
deveria ter desaparecido quando do amplo desenvolvimento
dessa última na modernidade. Se isso não ocorreu, foi porque
ela deu ao direito a força de um princípio que por si só ele não
teria. Somente nessa condição o direito foi capaz de se sobrepor
ao exercício do poder disciplinar para apagar “o que podia haver
de dominação e de técnicas de dominação na disciplina e, enfim,
[para garantir] a cada qual que ele exercia, através da soberania
do Estado, seus próprios direitos soberanos.”41
Assim, a soberania sobreviveu à sociedade disciplinar
para que o direito fosse investido de eficácia epistemológica
para a formação dos objetos e conceitos a partir dos quais é
permitido ao discurso político falar. Se o direito pôde se investir
da positividade fundamental diante do poder foi para impor
um jogo de coações e limitações às práticas discursivas do saber
político. Contudo, seria incorreto dizer que o direito funcionou
apenas como obstáculo de análise; ele é, sobretudo, o espaço em
que o sujeito assume uma posição. O que faz sua positividade
espistêmica é precisamente o fato de ele constituir “um domínio
em que o sujeito é necessariamente situado e dependente”42. Foi
nesse sentido que Foucault afirmou ser a teoria da soberania uma
teoria que “tenta necessariamente construir o que eu chamaria
de um ciclo, o ciclo do sujeito ao sujeito, mostrar como um
sujeito – entendido como indivíduo dotado, naturalmente (ou
por natureza), de direitos, de capacidades etc. – pode e deve se
tornar sujeito, mas entendido desta vez como elemento sujeitado

41. M. Foucault. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). Trad.


Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 44.
42. M. Foucault. A arqueologia do saber. 6ª ed., trad. Luiz F. B. Neves. Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 207.
22 o pensamento político de michel foucault

numa relação de poder.”43 Assim, de Hobbes à Marx, o princípio


do direito tem funcionado como dispositivo de governo no qual o
sujeito político de direito é ao mesmo tempo o elemento subjetivo
de um sistema de deveres em relação ao Estado, à sociedade, ao
partido etc.
O irônico em todas essas teorias é que elas nos fazem
supor o indivíduo como a realidade última contra a qual se
confrontaria o poder destinado a submetê-lo ou a aniquilá-lo,
quando, ao contrário, diz Foucault, “o que faz que um corpo,
gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos
como indivíduo, é precisamente isso um dos efeitos primeiros
do poder.”44 O trágico é que se acredita encontrar nelas um guia
para a liberação.

Uma analítica das relações de poder

É preciso desconfiar do discurso político que deixa de fora


da sua análise o exercício do poder, por mais revolucionário que
ele pareça. Não porque o poder seja ruim, mas porque as relações
de poder atravessam e circulam pelos corpos dos indivíduos; o
poder transita pelo discurso, pelo desejo, pelo comportamento,
pelos gestos que não são mais do que seus efeitos45. Anatomo-
poder, ele altera a materialidade dos corpos em seus mínimos
detalhes, atribuindo-lhe ritmos, capacidades, habilidades; bio-
poder, regula as forças vitais de uma população para majorar
suas funções e otimizar seus processos; poder pastoral, instaura
um processo de subjetivação no qual o indivíduo se constituirá
como sujeito da verdade de si mesmo; poder governamental,
estrutura o campo de ação e de possibilidades dos indivíduos.
Por se ter ignorado esses amplos e complexos jogos de poder

43. M. Foucault, op. cit., 1999, p. 49.


44. Ibidem, p. 35.
45. M. Foucault. “Les rapports de pouvoir passent à l’intérieur des corps”, op. cit.,
2001b, p. 228.
nildo avelino | salvo vaccaro 23

é que se viu, no Ocidente, filosofias da liberdade darem lugar


a grandes formas de dominação: de Rousseau, passando por
Hegel e Marx, até Nietzsche, encontram-se filosofias admiráveis
que pensaram a si mesmas “segundo uma relação de oposição
essencial ao poder e a seu exercício ilimitado mas que, no
entanto, o destino do seu pensamento fez com que, quanto mais
ouvidas, mais o poder, mais as instituições foram penetradas
por seu pensamento, mais elas serviram para autorizar formas
excessivas de poder.”46 Quando convocada para a luta política,
não se percebeu que, embora declarando-se pensar contra o
poder, a filosofia pensou com ele; embora dizendo-lhe não, ela
ocupou seu lugar e constituiu a si mesma como “a lei da lei”,
isto é, como arché: o fundamento capaz de conferir poder ao
poder.
A filosofia instaura, sub-repticiamente, a estrutura árquica
que reenvia ao poder, seja o do monarca, Estado ou partido. A
recusa de Foucault de uma teoria do poder encontra aqui sua
razão. Na medida em que “toda teoria supõe uma objetivação
prévia”47, em vez de uma teoria que estaria destinada a legislar
como filosofia régia em nome de um Estado por ela coroado como
filosófico; melhor seria uma analítica do poder capaz de definir
o “domínio específico formado pelas relações de poder” e de
determinar os “instrumentos que permitem analisá-lo.”48 Assim,
a analítica foucaultiana não se ocuparia das questões de direito
e legitimidade, mas dos procedimentos concretos e efetivos por
meio dos quais o poder se exerce. Trata-se de tornar visíveis as
estratégias e táticas em jogo com o propósito de intensificar as
lutas e conflitos que garantirão a reversibilidade necessária às
relações de poder, para evitar que se cristalizem em estados de
dominação. Mostrar que as relações de poder fazem mais do que
forçar e obrigar e que, consequentemente, não é possível delas

46. M. Foucault. “La philosophie analytique de la politique”, op. cit., 2001b, p. 539.
47. M. Foucault. “Le sujet et le pouvoir”, op. cit., 2001b, p. 1042.
48. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 80.
24 o pensamento político de michel foucault

escapar “bruscamente, globalmente, massivamente, por um tipo


de ruptura radical ou por uma fuga sem retorno.”49
A analítica do poder, inicialmente apresentada no primeiro
volume da História da sexualidade e retomada na conferência de
Tóquio, em 1978, Foucault já a tinha esboçado uma década antes
no seu livro dedicado a “problemas de método”, A arqueologia
do saber. Após ter apresentado a análise arqueológica voltada
especialmente para a descrição da episteme, Foucault termina
anunciando sua aplicação em outros domínios possíveis, tais
como o da sexualidade e do saber político. A respeito deste último,
Foucault dirá que sua descrição arqueológica consistiria em
demonstrar que o comportamento político é sempre atravessado
por uma prática discursiva determinada e descritível que:

[...] definiria o que pode tornar-se objeto de enunciação, as formas


que tal enunciação pode tomar, os conceitos que aí se encontram
empregados e as escolhas estratégicas que aí se operam. Em lugar
de analisá-lo – o que é sempre possível – na direção da episteme
a que pode dar lugar, analisaríamos esse saber na direção dos
comportamentos, das lutas, dos conflitos, das decisões e das
táticas. Faríamos aparecer, assim, um saber político que não é
da ordem de uma teorização secundária da prática e que não é,
tampouco, uma aplicação da teoria.50

Portanto, o ponto de análise da arqueologia do saber


político não será constituído pela episteme, mas pela “dinástica”
(dunasteía) do saber51, isto é, as relações de poder que estabeleceram
as condições históricas e políticas para a aparição dos discursos.
Ao fazer da luta contra o poder o ângulo da análise do saber
político, o papel da arqueologia não seria expressar ou aplicar uma

49. M. Foucault. “La philosophie analytique de la politique”, op. cit., 2001b, p. 542.
50. M. Foucault, op. cit., 2002, pp. 220-221.
51. M. Foucault. “De l’archéologie à la dynastique”. In: _____. Dits et écrits, t. I: 1954-
1975. Paris: Gallimard, 2001a, p. 1274.
nildo avelino | salvo vaccaro 25

teoria, mas suspender os efeitos de poder dos discursos teóricos


do próprio saber político, que impedem, limitam e invalidam os
discursos e saberes não teóricos das lutas. Para Foucault, existe
uma vantagem analítica nos discursos não teóricos das lutas: ao
contrário das lutas contra a exploração, nas quais o proletariado
constituiu a unidade que conduz a luta, define seus métodos e
instrumentos; as lutas contra o poder são definidas e conduzidas
por cada um daqueles sobre quem o poder é exercido como
abuso e percebido como intolerável, e sempre a partir da posição
e atividade específicas nas quais se encontram. É assim que “as
mulheres, os prisioneiros, os soldados no exército, os doentes nos
hospitais, os homossexuais [experimentam] uma luta específica
contra uma forma particular de poder, de coerção, de controle que
se exercem sobre eles.”52 As lutas contra o poder não são jamais
unitárias e globais, são sempre múltiplas e locais, assim como
os saberes que elas manifestam. “Quando os prisioneiros falam,
eles mesmos têm uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça.
Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso
sustentado pelos prisioneiros ou pelos chamados delinquentes, é
o que conta, e não uma teoria sobre a delinquência.”53
Portanto, são os saberes das lutas o objeto de análise de uma
arqueologia do saber político. Mais tarde, a partir da “virada
genealógica”, Foucault conferirá à análise um engajamento
radical e decisivo. Trata-se agora de voltar os saberes locais
“contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los,
hierarquiza-los, ordená-los em nome de um conhecimento
verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência possuída por
alguns.”54 A genealogia assume, assim, o papel de “anticiência”,
para promover a “insurreição dos saberes sujeitados” contra
os discursos institucionalizados, seja no interior de instâncias
pedagógicas, como a universidade, ou políticas, como o

52. M. Foucault. “Les intellectuels et le pouvoir ”, op. cit., 2001a, p. 1183.


53. Ibidem, p. 1178.
54. M. Foucault, op. cit., 1999, p. 13.
26 o pensamento político de michel foucault

marxismo. “É exatamente contra os efeitos de poder próprios


de um discurso considerado científico que a genealogia deve
travar o combate. [...] a arqueologia seria o método próprio da
análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz
intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os
saberes dessujeitados que daí se desprendem.”55
Consequentemente, tanto a descrição arqueológica do
saber político quanto a tática genealógica de dessujeição dos
saberes locais supõem uma analítica das relações de poder: não
se trata, na análise, de partir do domínio da episteme, da arqué,
da teoria; trata-se, ao contrário, de adotar como ponto de partida
domínios de experiências específicos, tais como a loucura, a
morte, a doença, a criminalidade, isto é, partir daquilo que
Foucault chamou de “um conjunto de coisas que constituem a
trama da nossa vida cotidiana em relação às quais os homens
construíram seu discurso trágico.”56 A inspiração veio da filosofia
analítica anglo-americana que, em vez de se ocupar com o ser
e a estrutura da linguagem, propõe examinar o uso cotidiano
e efetivo que se faz da linguagem. “Creio que seria possível
também imaginar uma filosofia que teria por tarefa analisar o
que ocorre cotidianamente nas relações de poder, procurando
mostrar do que se trata, quais são, nessas relações de poder, as
formas, as apostas, os objetivos.”57
Portanto, a tarefa da analítica do poder não é se ocupar do
sujeito político, tampouco das estruturas políticas, mas analisar
o exercício efetivo e cotidiano do poder. A analítica procurará
mostrar que, no conjunto dessas pequenas experiências – a
loucura, o crime, a doença, a morte, a sexualidade etc. – e nas
relações de poder que as atravessam, não se encontra nelas o
“grande jogo entre Estado e cidadãos”; não se trata de lutas por
liberdade ou direitos, elas sequer constituem afrontamentos. O

55. Ibidem, pp. 14, 16.


56. M. Foucault. “La philosophie analytique de la politique”, op. cit., 2001b, p. 542.
57. Ibidem, p. 541.
nildo avelino | salvo vaccaro 27

que se encontra nessas pequenas batalhas cotidianas que escapam


à lógica jurídico-política da soberania é, muito simplesmente,
uma recusa fundamental do próprio jogo do poder; esse é o traço
maior que as caracteriza e as define como resistência.
Foucault insistiu em distinguir e delimitar a dimensão
específica das lutas contra o poder com relação às lutas contra
a dominação (social, ética, religiosa etc.) e contra as formas de
exploração econômica. Diferente dessas duas últimas, as lutas
contra o poder são fundamentalmente antiautoritárias, isto é,
dirigem-se contra as diversas formas de autoridade: dos pais
sobre os filhos, dos homens sobre as mulheres, do professor sobre
os estudantes etc. Portanto, não são lutas por mais direitos ou por
liberdades; seu objetivo é, muito simplesmente, dar cabo de certo
exercício autoritário de poder. Consequentemente, diferente das
lutas por direitos sociais ou políticos e das lutas por melhores
condições de trabalho e salário, nas lutas antiautoritárias encontra-
se uma rejeição da própria legalidade e institucionalidade do
poder. Quando, diz Foucault, contra elas “as pessoas razoáveis,
os legisladores, os tecnocratas, os governos questionam: ‘Mas
então o que vocês querem?’, a resposta é: ‘Não nos cabe dizer
em qual molho queremos ser devorados’ [...]. Não se quer mais
jogar o jogo, tradicionalmente organizado e institucionalizado,
do Estado com suas exigências e dos cidadãos com seus direitos.
Não se quer mais jogar o jogo de modo nenhum; impede-se o
jogo de jogar.”58
Dessa dimensão antiautoritária das lutas contemporâneas,
Foucault destacou algumas características que lhes são comuns.
1) São transversais, em vez de causais: significa que não são
determinadas por processos econômicos, geográficos, nacionais
etc., e não obedecem a nada mais que o acaso dos acontecimentos.
2) Elas têm por alvo iminente uma relação estrita de sujeição, bem
mais do que de dominação ou exploração: têm por alvo certas

58. M. Foucault. “La philosophie analytique de la politique”, op. cit., 2001b, p. 541.
28 o pensamento político de michel foucault

formas de poder e seus efeitos tornados intoleráveis. 3) Operam


de maneira anárquica e não teleológica: elas não remetem nem
a uma hierarquia teórica, nem a uma ordem revolucionária, e
tampouco a um tempo porvir; agindo sem princípio e fora de
qualquer estrutura árquica, essas lutas se inscrevem, diz Foucault,
“no interior de uma história que é imediata, aceita e reconhecida
como indefinidamente aberta.”59 Segundo Foucault, esses três
aspectos seriam os mais gerais dessas lutas. Deles decorrem outros
três mais específicos em relação à nossa contemporaneidade.
1) São lutas contra o “governo da individualização”, ou seja,
de um lado afirmam as relações de si consigo dos processos
de auto-subjetivação do eu, nos quais os indivíduos se tornam
verdadeiramente individuais; de outro lado, rejeitam as relações
de si com o outro dos processos de objetivação ou trans-
subjetivação do sujeito que provocam a renúncia e a ruptura do
si60. 2) São lutas contra “os privilégios do saber”, isto é, opõem-
se à competência e à qualificação, mas também ao sistema do
segredo e ao regime de representação impostos aos indivíduos.
3) Por fim, na especificidade dessas lutas encontra-se uma
recusa tanto à indiferença quanto à determinação do eu pelo
exercício do poder; ou seja, rejeita-se tanto o poder que ignora
o que se é quanto o poder que pretende determinar o que se é.
Em resumo, são essas três últimas características, constituintes
da especificidade das lutas contemporâneas, que, segundo
Foucault, as predispõe contra uma forma de poder que, desde o
nascimento do Estado moderno até nossos dias, não cessou de se
instalar na prática política Ocidental: o poder pastoral.
Essas lutas antiautoritárias, afirmou Foucault, devem servir
na análise como “catalisador químico” e “ponto de partida” para
colocar em evidência as relações de poder. Aqui está o aspecto
significativo da arqueologia do saber político. Seria possível

59. Ibidem, p. 546.


60. Cf. M. Foucault. A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France (1981-1982).
Trad. Márcio Fonseca e Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 263.
nildo avelino | salvo vaccaro 29

dizer dela o que Schürmann afirmou a propósito da “destruição”


heideggeriana: “do agir privado de arché, Heidegger faz a
condição do pensamento que descontrói a arché.”61 A propósito da
analítica do poder foucaultiana, seria possível igualmente dizer
que ela “inverte a relação tradicional entre pensar e agir para
fazer do agir – de um certo agir – a condição do pensamento”.62
Em vez de partir da teoria, o ponto de partida da analítica é
constituído pelas práticas de resistência; na analítica, não é
a teoria que tem prioridade na análise, mas o agir anárquico
ou essas lutas em torno do poder que, diz Foucault, não são
“apenas uma questão teórica, mas algo que faz parte da nossa
experiência.”63 Consequentemente, se para a teoria política, como
afirmou Gunnell, trata-se de anular o que existe de imprevisível e
marginal no agir; na analítica do poder foucaultiana, ao contrário,
é precisamente o agir marginal e imprevisível, isto é, aquilo que
escapa e resiste, que servirá para evidenciar a maneira como se
inscrevem as relações de poder, para “descobrir seus pontos de
aplicação e os métodos utilizados. Em vez de analisar o poder da
perspectiva da sua racionalidade interna, trata-se de analisar as
relações de poder por meio do afrontamento das estratégias.”64

Anarqueologia e parrésia:
do anarquismo epistemológico à vida anárquica

Em diversas ocasiões, Foucault recusou dar às suas pesquisas


o estatuto de um trabalho teórico. Não se trata, afirmou, de “dar
um solo teórico contínuo e sólido a todas as genealogias dispersas
– não quero de modo algum lhes dar, lhes sobrepor um tipo de
coroamento teórico que as unificaria”65. Entretanto, reivindicou

61. R. Schürmann, op. cit., 2013, p. 16.


62. Ibidem, p. 341.
63. M. Foucault. “Le sujet et le pouvoir”, op. cit., 2001b, p. 1043.
64. Ibidem, p. 1044.
65. M. Foucault, op. cit., 1999, pp. 18-19.
30 o pensamento político de michel foucault

para si mesmo a posição do “empirista cego”66 e do “teórico


negativo”67, e insistiu em distinguir claramente sua démarche da
maneira pela qual se tem tradicionalmente colocado a questão
filosófico-política acerca do poder. Segundo Foucault, a análise
da tradição filosófico-política parte sempre de uma aceitação
tácita dos fundamentos, dos instrumentos e das justificativas
dados previamente pela teoria. Esse vínculo prévio entre o
sujeito e a verdade limitaria a afirmação de um discurso crítico:
o que é possível dizer sobre, por ou contra o poder, quando já
se encontra previamente a ele submetido pelos fundamentos,
instrumentos e justificativas? O que o indivíduo que se encontra
voluntariamente preso à verdade do poder é capaz de dizer
sobre o laço que o prende e o dobra involuntariamente ao poder?
É preciso, portanto, inverter os termos por meio dos quais a
filosofia política tradicionalmente coloca a questão do poder.
Assim, em vez de começar estabelecendo um

[...] laço voluntário e, de algum modo, contratual com a verdade;


colocar de início a questão do poder da seguinte maneira: o que
é que o enfrentamento sistemático, voluntário, teórico e prático
do poder tem a dizer sobre o sujeito do conhecimento e sobre o
laço com a verdade no qual, involuntariamente, ele se encontra
preso? Não se trata mais de se dizer: considerando-se o laço que
me prende voluntariamente à verdade, o que é que eu posso
dizer do poder? Mas: considerando-se minha vontade, decisão
e esforço para desfazer o laço que me prende ao poder, o que se
passa com o sujeito do conhecimento e a verdade?68

66. M. Foucault. “Pouvoir et savoir”, op. cit., 2001b, p. 404.


67. M. Foucault. Du gouvernement des vivants. Cours au Collège de France, 1979-1980.
Paris: Gallimard/Seuil, 2012, p. 75.
68. Ibidem, pp. 75-76.
nildo avelino | salvo vaccaro 31

Portanto, não são as representações teóricas do poder,


mas o movimento real e empírico para se separar dele que
servirá de ponto de partida de uma análise que, diz Foucault,
se afirma mais sobre uma atitude do que uma tese: a “atitude
teórico-prática concernente a não necessidade de qualquer
poder, [...] posição teórico-prática sobre a não necessidade do
poder como princípio de inteligibilidade do saber”69. Atitude
teórico-prática que Foucault chamou, deliberadamente, pelo
termo anarqueologia, procurando amalgamar seu próprio método
arqueológico com a atitude anárquica em face do poder. O
significativo é que se encontra na anarqueologia uma implicação
suplementar da inversão do esquema tradicional entre pensar
e agir operado por Foucault na arqueologia, e que diz menos
respeito ao pensamento que ao sujeito. Tudo acontece como se
não fosse possível pensar a sujeição sem se colocar a si mesmo
contra o poder. É no momento em que, diz Foucault, “nenhum
poder é fundado em direito ou em necessidade, no momento
em que todo poder não repousa jamais que na contingência e
na fragilidade de uma história, que o contrato social é um blefe
e a sociedade civil um conto de fadas, que não existe direito
universal, imediato e evidente que possa em toda parte e sempre
sustentar uma relação de poder qualquer que seja.”70 Em suma,
é somente neste momento de oposição fundamental ao poder, é
apenas a partir dessa decisão de não aceitabilidade do poder, que
se deve colocar a questão do sujeito e do conhecimento. Sem esse
salto inicial e necessário para fora das verdades do poder, dos
seus princípios e fundamentos, da sua arqué, não seria possível
o desprendimento do ser das objetivações, das representações,
da preponderância das estruturas árquicas do pensamento
verdadeiro.

69. Ibidem, p. 77.


70. Ibidem, p. 76.
32 o pensamento político de michel foucault

A anarqueologia é uma atitude que arranca o ser do solo


teórico dos fundamentos por meio de um agir resoluto que
produz, por retorno, uma transmutação concreta do ser. Nesse
gesto, como sublinhou Schürmann, “o pensamento – que é o
agir em sentido amplo do termo – aparece flanqueado do agir
em sentido estreito como sua condição e sua consequência.”71
Para Schürmann, existe na inversão da relação entre pensar e
agir um tipo de imperativo prático, a partir do qual “um modo de
pensar se torna sempre dependente de uma maneira de agir”72.
De tal modo que, retomando o perspectivismo nietzschiano, para
compreender a pobreza é preciso ser pobre, isto é, recusar as
imagens que a riqueza fez dela; compreender o desprendimento
requer ser desprendido, ou seja, recusar os valores que prendem
e aprisionam; do mesmo modo, para compreender o poder
é preciso colocar-se do lado da resistência, isto é, recusar as
representações que o poder faz de si mesmo. Schürmann, como
antes dele Foucault, estabeleceu o comportamento, e o tipo de
injunção que ele mantém com o pensamento, como prioridade
metódica. “Modificação prática da existência primeiro,
inteligência ‘filosófica’ depois. Apropriação das possibilidades
existenciais primeiro, ontologia existencial depois.”73 É sempre
questão de comportamento, diz Schürmann, de um “ou isso ou
aquilo” e da sua decisão essencial que sempre precede, como sua
condição de possibilidade, todas as decisões racionais.
Como se sabe, Foucault perseguiu e descreveu com
certa obstinação e admiração a irredutibilidade desses gestos
inexplicáveis que arrancam o indivíduo de si mesmo. Ele os
encontrou na vivacidade mortífera da loucura, no ilegalismo
popular da plebe sediciosa, no parricídio de Pierre Rivière, no
suicídio de Herculine Barbin, na série quase infinita de anormais
inscritos sob o signo do onanismo, da histeria, da possessão, da

71. R. Schürmann, op. cit., 2013, p. 341.


72. Ibidem, p. 344.
73. Ibidem, p. 345.
nildo avelino | salvo vaccaro 33

feitiçaria, do monstro moral e político; mas também entre os


prisioneiros escrutinados, os ascetas empedernidos dos primeiros
séculos, entre os infames das lettres de cachet, na espiritualidade
revolucionária etc. O que Foucault viu em todas essas figuras
sombrias? Certamente, ele percebeu na opacidade dessas
existências o ponto luminoso do exercício do poder. Mas também
encontrou nelas algo de mais precioso: uma “intensidade que as
atravessa”, uma impressão que abala todas as fibras, “excessos”;
uma “mistura de obstinação sombria e perfídia”, de “derrota
e fúria”; “existências-relâmpagos”, “poemas-vidas”. Foucault
buscou mostrar que, embora houvesse, nessas figuras, “em suas
desgraças, em suas paixões, em seus amores e ódios, alguma
coisa de cinza e de comum” que as destinava “a passar sem
deixar rastro”, elas também foram “atravessadas por um certo
ardor, animadas por uma violência, uma energia, um excesso na
malvadeza, na vilania, na baixeza, na obstinação ou no azar que
lhes dava [...] uma espécie de grandeza assustadora ou digna
de pena. [...] espécies de partículas dotadas de uma energia
tanto maior quanto menores elas são e difíceis de discernir.”74
Do que provém essa energia arrebatadora do ser que atravessa
existências tão ínfimas? Do seu encontro com o poder:

[...] sem dúvida, sem esse choque, nenhuma palavra estaria lá


para nos lembrar do seu trajeto fugidio. O poder que espiava
essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que
por um instante, às suas queixas e aos seus tumultos, e que
as marcou com suas garras, foi ele que suscitou essas poucas
palavras que nos restaram; que se tenha querido se dirigir
a ele para denunciar, queixar-se, solicitar, suplicar; ou que
ele tenha querido intervir e que tenha, em poucas palavras,
julgado e decidido. Todas essas vidas que estavam destinadas
a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem

74. M. Foucault. “La vie des hommes infâmes”, op. cit., 2001b, p. 240.
34 o pensamento político de michel foucault

jamais terem sido ditas, só puderam deixar seus traços – breves,


incisivos, frequentemente enigmáticos – no ponto do seu contato
instantâneo com o poder.75

Foucault viu no encontro com o poder o momento


fulgurante e o instante mais vívido da existência dos indivíduos.
No encontro com o poder, afirmou, reside o “ponto mais intenso
das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é lá onde elas
se chocam contra o poder, se debatem com ele, tentam utilizar
suas forças ou escapar às suas armadilhas.”76 Foi o que levou
Deleuze77 a reconhecer a culminância de certo vitalismo em seu
pensamento: a vida, em toda sua intensidade, energia, vigor e
vivacidade, estaria nessa capacidade de resistir ao poder. Assim
como o elã vital de Bergson78 procede da resistência que a vida
experimenta contra a matéria e da força explosiva que ela carrega
em si, para Foucault, é na resistência ao poder que se encontra o
pouco de ruído e de brilho que as vidas mais supérfluas são ainda
capazes de provocar. “Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado
e seus esgotos povoados de insurgentes.”79 Para Foucault, trata-
se de um gesto sem explicação. Ao contrário de Camus, que
viu nele uma tomada de consciência, para Foucault trata-se de
um tipo de “dilaceramento que interrompe o fio da história e
suas longas cadeias de razões”80. Por isso mesmo ele escapa às
revoluções e sua história “racional e controlável” para habitar o
“enigma das insurreições” que Foucault assistiu, por exemplo,
no desenrolar da revolução iraniana: “paradoxo [...]: a população
se opõe a um dos regimes mais militarizados do mundo e a mais

75. Ibidem, pp. 240-241.


76. Ibidem, p. 241.
77. Cf. G. Deleuze. Foucault. Trad. Claudia S. Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.
99.
78. Cf. H. Bergson. A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 107.
79. M. Foucault. “Inutile de se soulever?”, op. cit., 2001b, p. 791.
80. Idem; cf. A. Camus. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro:
Record, 1999, p. 26.
nildo avelino | salvo vaccaro 35

temível polícia. E isso de mãos nuas, sem recorrer à luta armada


e com uma obstinação e coragem que imobilizam o exército nas
ruas: pouco a pouco ele se paralisa e hesita disparar.”81
Sem explicação e sem porque, tudo o que se sabe das
insurreições é que elas são “possíveis, necessárias, improváveis,
espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas,
violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas
ou fadadas ao sacrifício; [e que] por definição, não podem existir
a não ser no campo estratégico das relações de poder.”82 Não
porque o poder seja um mal, mas porque, em razão dos seus
mecanismos, ele é interminável e, portanto, sempre perigoso. Em
uma entrevista surpreendente concedida em 1978 a Farès Sassine,
e até recentemente inédita, Foucault sublinhou a dimensão que
torna o poder o campo de imanência das insurreições; trata-se
do fato de que, nas sociedades modernas, com seus “aparelhos
de Estados, mas também com toda uma série de técnicas para
governar as pessoas, com a proliferação dos mecanismos de
poder que produzem sua estabilização, sua multiplicação, seu
refinamento, encontra-se sempre a tendência de se governar
abusivamente. Existe algo nessas sociedades como uma lei de
excesso que é interior ao desenvolvimento do poder.”83 Contudo,
do mesmo modo que o poder na modernidade se tornou
interminável, a luta contra ele se dá por uma multiplicidade de
pontos de resistência pulverizados, móveis e transitórios, que não
têm um lugar fixo, nem adquirem as formas da grande recusa
ou da ruptura radical, mas se disseminam “com mais ou menos
densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante
de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando

81. M. Foucault. “Une révolte à mains nues”, op. cit., 2001b, p. 701.
82. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 91.
83. M. Foucault. “Entretien inédit avec Michel Foucault (1979)”. Rodéo, n. 2, 2013.
Disponível em: <http://fares-sassine.blogspot.com.br>.
36 o pensamento político de michel foucault

certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de


comportamento.”84
Não é questão, portanto, de um face-a-face entre poder e
resistência, e da consequente exclusão de um deles; tampouco
trata-se de uma resistência pacífica ou de uma ação não violenta.
É algo bem mais complexo, em que, diz Foucault, a resistência
figura como condição de existência do poder, mas também e
simultaneamente aquilo que se opõe ao seu exercício. De modo
que “a relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem
ser separadas [...]: no coração da relação de poder, provocando-o
sem cessar, existe a renitência do querer e a intransitividade da
liberdade.”85 No entanto, deve-se a essa posicionalidade recíproca
o fato de que “os poderes não sejam ‘absolutamente absolutos’;
é que existe, posterior a todas as aceitações e coerções, além
das ameaças, das violências e das persuasões, a possibilidade
desse momento em que a vida não mais se negocia, em que
os poderes nada mais podem, em que, diante dos patíbulos e
das metralhadoras, os homens se sublevam.”86 Daí a premente
necessidade de se espreitar por trás da política para apreender
nela esse “movimento irredutível”, “profundamente ameaçador
para qualquer despotismo” e que se manifesta como “aquilo que
deve incondicionalmente limitá-la”, isto é, a decisão que consiste
em dizer: “‘não obedeço mais’, e que joga na cara de um poder
que ele considera injusto o risco da sua vida”87. Foucault percebeu
nessa decisão uma “dramaturgia do vivido revolucionário”:

Decidir que se vai morrer quando se faz a revolução não quer


dizer simplesmente colocar-se frente a uma metralhadora e
esperar que ela dispare. Decidir que se vai morrer, ou que se
prefere morrer a continuar, assume certo número de formas. Pode

84. M. Foucault, op. cit., 1993, p. 92.


85. M. Foucault. “Le sujet et le pouvoir”, op. cit., 2001b, p. 1057.
86. M. Foucault. “Inutile de se soulever?”, op. cit., 2001b, p. 791.
87. Ibidem, pp. 793-794.
nildo avelino | salvo vaccaro 37

assumir a forma da luta armada ou da guerrilha, do atentado


individual, do movimento de massa, de uma manifestação
religiosa, da marcha fúnebre etc. Então, se o senhor quiser, é o
que eu chamaria de dramaturgia do vivido revolucionário, e
é indispensável a se estudar. Ela é absolutamente a expressão
dessa espécie de decisão que produz a ruptura das continuidades
históricas e que é coração da revolução.88

Conhece-se a importância que o tema da dramaturgia


revolucionária vai adquirir no final da vida de Foucault. Na
abertura do curso de 1983, ele será retomado, juntamente com
a reflexão kantiana sobre a Revolução Francesa, para deslocar
a análise do “drama da Revolução” para o “entusiasmo
revolucionário”. A partir disso, foi possível para Foucault
mostrar que “o importante na Revolução não é, portanto, a
própria Revolução, [...] mas o que se passa na cabeça dos que
não fazem a Revolução ou que não são, em todo caso, seus atores
principais. [...] O significativo é o entusiasmo pela Revolução.”89
É o entusiasmo dos espectadores ou, no limite, dos coadjuvantes
o que é relevante nas revoluções; ele se manifesta não nos grandes
atos revolucionários fundadores e solenes, mas no ímpeto e na
energia da vida revolucionária, isto é, nessas diversas maneiras
de viver a revolução que constituirão a sua dramaturgia e que
não se confundem simplesmente com uma mise-en-scène, mas
adquirem o valor de uma alèthurgie, de um “ato pelo qual o sujeito
[...] se manifesta, [...] representa a si mesmo e é reconhecido pelos
outros [...], se constitui e é constituído pelos outros”90, como
alguém que faz da sua própria vida o palco visível da revolução.

88. M. Foucault. “Entretien inédit avec Michel Foucault (1979)”, op. cit., 2013.
89. M. Foucault. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France, 1982-
1983. Paris: Gallimard/Sueil, 2008, p. 19.
90. M. Foucault. Le courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours au
Collège de France, 1984. Paris: Gallimard/Sueil, 2009, p. 4.
38 o pensamento político de michel foucault

Finalmente, seria ainda preciso situar neste contexto o


tema da parrésia. Foucault encontrou na descrição histórica do
termo uma ferramenta conceitual capaz de evidenciar a própria
mecânica da dramaturgia revolucionária e, se não desvendar, ao
menos apreender o “enigma das insurreições”. Afinal, na prática
política das sociedades ocidentais, como explicar esse tipo de
experiência-limite em que o indivíduo aceita pagar o preço da
própria morte nos confrontos com o poder? Do que procede
esse desprendimento de força, ímpeto e energia que produz o
dilaceramento do próprio ser e a ruptura do razoável? Segundo
Foucault, encontra-se na parrésia, noção primordialmente
política ligada à democracia clássica, esse tipo de experiência
ética na qual o sujeito, afirmando uma verdade, estará disposto a
morrer por ela, a pagar o preço da sua própria existência. É nesse
sentido que o discurso da parrésia não pertence ao campo da
retórica, da erística, da pedagogia ou da dialética; ele habita uma
“dramática do discurso” que se manifesta a partir de uma dupla
obrigação que o indivíduo estabelece consigo mesmo: a de dizer
a verdade e a de se vincular ao conteúdo da verdade proferida
aceitando todos os riscos das suas consequências. Por isso que,
diz Foucault, no cerne da parrésia encontra-se a coragem do
sujeito não apenas em afirmar pelo discurso, mas, sobretudo, em
viver conforme a verdade afirmada por seu discurso. “Parrésia
será a presença, na pessoa que fala, da sua própria forma de vida
tornada manifesta, presente, perceptível e ativa, como exemplo
do discurso que ele enuncia. [...] Eu devo ser eu mesmo aquilo
que digo; eu devo estar eu mesmo implicado naquilo que digo,
e o que eu digo deve mostrar-me como realmente verdadeiro
naquilo que afirmo.”91
A partir da definição da parrésia como uma dramática
do discurso, Foucault propôs apreender suas diversas formas
históricas. Assim, houve uma dramática do discurso durante a

91. M. Foucault. “Parresia”. Critical Inquiry, v. 41, n. 2, 2015, pp. 245, 247.
nildo avelino | salvo vaccaro 39

antiguidade na figura do conselheiro do Príncipe; em seguida,


por volta do século XVI, houve uma dramática do discurso na
figura do ministro da razão de Estado; também na figura do
“crítico político”, ao longo do século XIX e XX; e, finalmente,
há a dramática do discurso revolucionário, daquele “que se
levanta, no seio de uma sociedade, e diz: eu digo a verdade, e
a digo em nome de qualquer coisa que é a revolução”92. Nessas
diferentes dramáticas do discurso, seria possível encontrar uma
posteridade da parrésia que mostraria não se tratar de uma
experiência perdida no tempo antigo. Contudo, diz Foucault,
embora a parrésia seja uma experiência que, sob diversas formas,
atravessou a história do Ocidente, essa apenas será considerada
uma atividade de crítica, voltada para o outro ou para si
mesmo, quando, e somente quando, o locutor se encontrar em
uma posição de inferioridade em relação ao interlocutor. “O
parresiasta sempre é menos poderoso do que aquele com quem
fala. A parrésia, por assim dizer, vem de ‘baixo’ para ‘cima’. Por
isso, na Grécia antiga, não seria possível dizer que um professor
ou um pai que critica uma criança utiliza parrésia. Mas quando
um filósofo critica um tirano, quando um cidadão critica a
maioria, quando um discípulo critica seu mestre, então, esses
locutores podem estar usando a parrésia.”93
Os estudos sobre a parrésia permitiram a Foucault encontrar
um mecanismo sobre o qual fundar uma ética que não provém
de nenhuma teoria de um suposto conhecimento científico sobre
o que seja o eu, o desejo, o poder, o Estado, a democracia etc. Ou
seja, a parrésia constitui, no domínio da política, uma prática que
não se encontra ancorada em nenhum princípio, porque imanente
às relações de poder. Trata-se de um tipo de agir anárquico
que opera transformando profundamente a subjetividade dos
indivíduos, seus modos de ser e viver no mundo. E, na dimensão

92. M. Foucault, op. cit., 2008, p. 67.


93. M. Foucault. Fearless Speech. Los Angeles: Semiotext(e), 2001c, p. 18.
40 o pensamento político de michel foucault

crítica dessa dramática do discurso político, encontra-se a potência


afirmativa de uma vida verdadeira porque radicalmente outra.
Schürmann compreendeu a importância do pensamento
político de Michel Foucault para nosso presente: ele nos permite
perceber a potencialidade extraordinária de produção de novas
subjetividades presente nas formas de luta contemporâneas
contra o poder. Em sua reflexão anarqueológica, Foucault
não apenas realizou “a constituição de si mesmo como sujeito
transgressivo”, mas mostrou também que a tarefa urgente de
nossa atualidade está, sobretudo, em “constituir a si mesmo
como sujeito anárquico”94. Contra o governo da individualização,
exercido desde o surgimento do Estado moderno e sempre mais
acentuado em nossos dias, o agir anárquico se coloca como uma
possibilidade prática: ao se constituir a si mesmo como sujeito
anárquico, o indivíduo não apenas contesta sua própria inclusão
em uma estrutura de poder, mas também expõe suas estratégias
ali, no ponto e da maneira como ocorrem. De modo que, diz
Schürmann, o “anarquismo por meio da intervenção discursiva
se torna hoje uma possibilidade, mas não um dever. [...] O sujeito
anárquico constitui a si mesmo nas microintervenções contra a
ressurgência de padrões de sujeição e objetivação.”95
Foucault nos forneceu as ferramentas conceituais para
compreender os recentes acontecimentos que, conforme indicou
Critchley, no início deste trabalho, têm criado as condições de
possibilidade de um agir político fora da primazia da arché e,
a partir disso, têm tornado possível a emergência de “meta-
políticas anárquicas”. Sem uma compreensão da forma
anárquica das manifestações e da dinâmica das “meta-políticas”
contemporâneas, a partir das quais não apenas os indivíduos
cessam de agir em conformidade com os fundamentos
estabelecidos, mas também a própria ação deixa de ter sua

94. R. Schürmann. “On Constituting Oneself an Anarchistic Subject”. Praxis


International, v. 6, n. 3, 1986, p. 307.
95. Ibidem, p. 308.
nildo avelino | salvo vaccaro 41

origem nas estruturas árquicas; sem compreender essa “época


em que a derivação da práxis a partir da teoria se esgota”, como
notou Abensour, e na qual “o agir se manifesta como an-árquico,
isto é, desprovido de arqué, fundamento, origem, comando – a
época, enfim, do princípio do sem-princípio ou do princípio que
ordena não ter princípio.”96, não seremos capazes, em suma,
de reconhecer o campo de experiências possíveis da nossa
atualidade.
* * *
O presente volume da coleção contrassensos traz uma
série de ensaios que possuem o mérito de apresentar ao leitor
brasileiro diferentes ângulos do pensamento político de Michel
Foucault. As reflexões aqui reunidas, muitas delas de autores
consolidados no campo dos estudos foucaultianos, foram
inicialmente apresentadas no Colóquio Internacional realizado
na Universidade de Palermo, entre os dias 27 e 28 de novembro
de 2014, organizado por Orazio Irrera, Daniele Lorenzini, Serena
Marcenò e Salvo Vaccaro, com o título “Il pensiero politico di
Foucault. Governamentalità, biopolitica, post-democrazia”.
Foram, em seguida, reunidas por Salvo Vaccaro e Oazio Irrera
para compor um dossiê, sob o mesmo título, na prestigiosa
revista italiana materiali foucaultiani (a. IV, n. 7-8, janeiro-
dezembro de 2015); também encontra-se no prelo uma edição
francesa a ser publicada pelas edições Kimé, de Paris. Assim,
com a publicação deste volume, somamo-nos aos esforços que
buscam compreender e experimentar o pensamento político de
um dos mais importantes pensadores do século XX.

96. M. Abensour. “‘Démocratie sauvage’ et ‘Principe d’anarchie’”. Revue européenne


des sciences sociales, t. 31, n. 97, 1993, p. 234.

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