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EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema I

A Exclusão da Ilicitude (Causas de Justificação) I. Legítima defesa. 1) Considerações gerais sobre a


ilicitude. Evolução do conceito. 2) A legítima defesa: generalidades:a) Conceito e fundamento legal;b) Os
elementos objetivos e o elemento subjetivo. 3) Espécies: legítima defesa real, legítima defesa putativa,
legítima defesa subjetiva e legítima defesa sucessiva.

Notas de Aula1

1. Causas de exclusão da ilicitude

Antes de tudo, deve ser dito que o termo antijurídico, bastante empregado como
sinônimo de ilícito, não é de fato muito preciso. Isto porque ser antijurídico significa que
não é jurídico, ou seja, que é irrelevante ao ordenamento jurídico – e de forma alguma o
crime é juridicamente irrelevante. Por isso, emprega-se, doravante, os termos ilícito e
ilicitude, ao invés de antijurídico ou antijuridicidade.
Nem tudo que não é proibido pelo direito penal é permitido pelo ordenamento
jurídico. Tudo que o direito, como um todo, não proíbe, é permitido. A fonte da ilicitude é o
ordenamento jurídico, e não o direito penal.
Veja: o fato de uma conduta ser penalmente irrelevante não a torna lícita. Por
exemplo, o estacionamento de veículo em local proibido não é penalmente relevante, mas é
ilícito, assim como a fuga de um preso, que é ilícito administrativo grave, mesmo que não
seja fato típico.
É bastante importante consolidar este entendimento de que a ilicitude não diz
respeito à seara penal, somente, mas sim ao ordenamento como um todo, para entender
corretamente as causas que excluem-na, em seu fundamento. Quando uma conduta é ilícita,
significa que o ordenamento jurídico a proibiu; mas quando esta conduta é de tamanho
gravame social que precisa de ainda maior supressão, o ordenamento conclama o direito
penal para que este assevere a restrição, tipificando a conduta e cominando pena. Daí se vê
a subsidiariedade do direito penal: apenas aquelas condutas ilícitas mais graves são dadas
aos seus cuidados, e não todas – não sendo preciso, por exemplo, que seja reforçado, com a
gravosidade do direito penal, o estacionamento irregular.
No mesmo sentido, o direito penal, que é chamado a agravar ainda mais a repressão
a certas condutas, não pode ir de encontro ao que este ordenamento entende como ilícito;
não pode uma conduta considerada lícita pelo ordenamento ser considerada ilícita
penalmente. E por isso se fundamentam as causas de exclusão da ilicitude das condutas
típicas.
Há que se consignar, entretanto, que há algumas poucas situações em que o direito
penal é, sim, a fonte da ilicitude, e não o ordenamento jurídico. Por exemplo, a omissão de
socorro genérica, de quem não é garantidor: em função do ordenamento jurídico, não
prestar socorro não é conduta ilícita. É mero descumprimento de um dever moral, que não
teria qualquer repercussão jurídica. Neste caso, se não fosse o direito penal constituir a
ilicitude, não haveria qualquer conduta reprimível juridicamente – e justamente por isso
Zaffaroni chama o traço penal, nestas situações, de direito penal constitutivo, sendo que o
papel de direito constitutivo é naturalmente exercido pelo direito civil, e não pelo penal,

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Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 4/9/2008.

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que vem como sancionador fragmentário. O dever que era unicamente moral se torna
jurídico através da previsão penal2.

1.1. Ilicitude

O crime, como é cediço, se divide em três colunas: tipicidade, ilicitude e


culpabilidade. A tipicidade se trata de um juízo de adequação, em que há a descrição do
comportamento que o direito intenta reprimir, e a conseqüência lógica de um
comportamento proibido, típico, é o reconhecimento de sua ilicitude, pois é um
comportamento que, em regra, foi selecionado dentro de um universo de condutas já
consideradas ilícitas pelo ordenamento.
Esta vinculação de condutas típicas à ilicitude, esta relação de derivação, é o que se
chama de função indiciária de ilicitude do direito penal. Assis Toledo entende que, no
crime, percorrem-se dois filtros de ilicitude: o primeiro, feito na verificação da tipicidade,
no juízo de adequação, é um juízo de ilicitude circunscrito ao direito penal; em seguida, a
conduta passa pelo crivo da ilicitude, que é a compatibilização daquela proibição feita pela
tipicidade com o ordenamento vigente.
Veja: o direito penal criou – na verdade, selecionou – uma conduta para chamar de
típica, e portanto ilícita, em tese. Porém, deverá, agora, submeter esta conduta ao
ordenamento, a fim de verificar se a ordem jurídica como um todo efetivamente proíbe
aquela conduta, se realmente se trata de uma conduta que o ordenamento pretende rechaçar.
Este confronto entre o direito penal, a tipicidade, e o ordenamento, se faz presente
porque há condutas típicas que excepcionalmente não são proibidas pela ordem jurídica
geral. Em regra, o comportamento que é típico é ilícito porque, como se viu, o direito penal
escolhe algumas condutas que já são abjetas à ordem jurídica, e agrava a severidade com
que são rechaçadas. Todavia, em casos excepcionalíssimos, o ordenamento entende que
estas mesmas condutas são lícitas, dadas as circunstâncias; sendo este o caso, se a ordem
geral não veda, não pode o direito penal proibir, sob pena de estar esta proibição em
violenta contraposição ao que é de direito – e, de novo, o direito penal é subsidiário. Se o
sistema autoriza, não pode o direito penal proibir.
Reiterando, então, toda conduta típica é ilícita, em regra, mas há casos em que esta
conduta tem a ilicitude excluída por conta da permissão excepcional em praticá-la, dada ao
agente pelo ordenamento jurídico. Se o ordenamento tolera, o direito penal não pode
proibir. Se é típico, é presumidamente ilícito3, mas se a situação for excepcionalmente
tolerada pela ordem jurídica geral, não há ilicitude.
Vejamos um exemplo: se um médico amputa a perna de um paciente para salvar-lhe
a vida, a conduta em si – extirpar o membro –, se analisada do ponto de vista penal formal,
é típica, e presumidamente ilícita. Consultado-se, porém, o ordenamento jurídico no

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Zaffaroni ainda prevê a tentativa como outro exemplo de direito penal constitutivo, pois do contrário não
seria, em regra, juridicamente relevante.
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A teoria da tipicidade conglobante, de Zaffaroni, vai ainda além: entende que, se o ordenamento tolera a
conduta, ou, ainda mais além, a fomenta, não pode a conduta ser sequer considerada típica. É por isso que os
seus autores consideram o exercício regular do direito e o estrito cumprimento do dever legal causas de
atipicidade de uma conduta, e não de exclusão da ilicitude. De forma semelhante, a teoria da imputação
objetiva, de Roxin, exclui a tipicidade quando a conduta que, aparentemente típica, é praticada de forma a
objetivamente diminuir risco que seria maior na ausência desta conduta – estando, portanto, afeita ao
ordenamento, que premia a diminuição de um risco. O tema será mais bem abordado adiante.

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segundo momento da verificação da ilicitude, se aquela conduta é de fato proibida, a


resposta será que neste caso não é, pois o médico agiu de forma que o ordenamento não
veda – ao contrário, é necessária sua atuação.
Em síntese: normalmente, o ordenamento ratifica a proibição penalmente atribuída à
conduta tipificada, mas casos há em que, excepcionalmente, a proibição penal não encontra
amparo, e são nestas exceções que se incluem as causas de exclusão da ilicitude.

1.2. Juízo de adequação na tipicidade e juízo de adequação na ilicitude

O juízo de adequação na tipicidade é positivo: a conduta é típica quando a resposta à


pergunta “tal conduta se adequa a tal tipo penal incriminador?” for sim. Tomando um fato
qualquer, uma conduta qualquer, o agente vai verificar se ela se amolda ao teor de um
dispositivo legal penal, e se o fizer, há tipicidade.
Já a ilicitude, ao contrário, passa por juízo de adequação negativo: se a resposta à
pergunta “tal conduta se adequa a tal tipo penal permissivo?” for sim, significa que esta
conduta não é ilícita. Por isso, o juízo deve ser negativo para se identificar a ilicitude:
tomado um dos dispositivos penais permissivos – artigos 23, 24 e 25 do CP – como
paradigma, se a conduta diante dele posta for adequada, positivamente, ou seja, se houver
correspondência perfeita, não há ilicitude; se a conduta não corresponder a um destes tipos,
ela é ilícita. Veja:

“Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:


I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá
pelo excesso doloso ou culposo.”

“Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar


de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se.
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar
o perigo.
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena
poderá ser reduzida de um a dois terços.”

“Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios


necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Os elementos de cada tipo penal permissivo é que serão alvo deste estudo, a fim de
se identificar, nas situações que seriam típicas, as exceções legalmente previstas. O meio de
interpretação de tipos penais permissivos, como são pro reo, é extensivo, ao contrário dos
tipos penais incriminadores. Portanto, podem inclusive se valer de analogia, desde que in
bonam partem.
Veja que há tipos permissivos também na parte especial do Código Penal, mas são
atrelados a tipos penais incriminadores específicos, enquanto estas acima apontadas são
gerais. Como exemplo, os artigos 128 e 142 do CP:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

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I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;


II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

“Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:


I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador;
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando
inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou
informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação
quem lhe dá publicidade.”

E há ainda causas gerais de exclusão da ilicitude que sequer estão na lei: são as
chamadas causas supralegais. A doutrina admite pacificamente, hoje, o consentimento do
ofendido como uma destas causas, o qual será abordada adiante.

2. Legítima defesa

A legítima defesa conta com dois fundamentos, duas funções. A primeira, e mais
óbvia, é a função de defesa do direito. A legítima defesa é uma forma de o Estado devolver
ao indivíduo aquilo que havia tomado para si como monopólio: a liberdade de defesa do
direito próprio.
Ao tomar o monopólio da defesa dos direitos, o Estado pretende impedir a
autotutela. Casos há, porém, em que o exercício da autotutela é a única maneira de se
resguardar um direito, porque aquele que deveria atuar não está presente. É neste momento
em que se autoriza a legitima defesa.
O verbo “tolerar” é muito bem aplicado quanto à atuação do Estado nestes casos:
ele, detentor do exercício da defesa do direito, tolera que o cidadão o faça quando ele
próprio não puder fazê-lo: a proteção do bem jurídico injustamente agredido é permitida a
quem quer que seja, se o Estado não puder atuar.
Este é o fundamento mais óbvio, qual seja, permitir a defesa própria se não pôde, o
Estado, fazê-lo. Há, entretanto, outra função, menos óbvia, mas igualmente importante: é a
afirmação do direito. O Estado, quando não pode defender o direito, não abre mão de que
este seja defendido, e ao deferir ao cidadão o direito de se defender, está, de fato,
reafirmando a toda a sociedade qual é a ordem jurídica vigente. Está dizendo, com a
tolerância à legítima defesa, que a agressão injusta não será aceita, pois qualquer um poderá
reprimi-la, tal é a importância que o direito assume.
Roxin enxerga neste segundo fundamento também uma forma de prevenção: é a
demonstração, para todos, de que o direito será protegido, a qualquer custo (não se entenda
como irrazoavelmente, pois se verá que a proporcionalidade aqui também se aplica). Sendo
assim, é bom que não se agrida o bem jurídico, pois mesmo se o Estado não estiver
presente, a agressão não será tolerada.
Com base nestes fundamentos, uma série de questões são solucionadas. Como
exemplo, a situação jurídica dos duelistas (a briga provocada, a luta, o desafio, e a
conseqüente busca de lesões corporais recíprocas): podem os duelistas alegar que agiram
em legítima defesa?

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Veja: o fundamento da legítima defesa é a proteção, qualquer que seja o aspecto que
se considere. Sendo assim, a finalidade dos duelistas não se enquadra na legítima defesa: a
agressão que se perpetra, de um ou de outro contendor, é injusta, mas não é inevitável. E
sendo assim, não há legítima defesa, há lesões recíprocas. A legítima defesa não pode
servir de pretexto a uma agressão.
Por conta do segundo fundamento da legitima defesa, pode-se asseverar com certeza
que mesmo se a fuga for uma opção segura, ela não se torna obrigatória. Entenda: se fosse
imposto ao agredido que fugisse, se possível o fazer com segurança, ainda assim se estaria
protegendo o direito, mas não restaria reafirmado este direito perante a sociedade, e muito
menos perante o agressor. Ao invés de desestimular o avilte, estar-se-ia praticamente
encorajando as agressões, pois se a fuga é obrigatória, o agressor saberá que a defesa ativa
será vedada à vítima.
O fato de que a fuga era possível, e portanto o assalto ao direito era evitável, não
torna a defesa ativa ilegítima, justamente porque só esta vai atender ao segundo
fundamento: o de reafirmar aquele direito em face do agressor. Veja que a fuga não é
desencorajada; o que não se pode conceber é a obrigatoriedade da fuga à vítima, pois isto
seria praticamente um incentivo ao agressor. E esta mensagem de reafirmação do direito
deve poder ser passada ao agressor, como implemento da função preventiva da legítima
defesa.
Neste ponto se torna relevante tratar da agressão por inimputável. Se o agressor for
um inimputável, incapaz de discernir os efeitos das mais corriqueiras situações da vida
comum, a fuga da vítima será obrigatória?
Note que, neste caso, o segundo fundamento da legítima defesa não será
implementado de modo algum, quer haja fuga, quer haja reação da vítima. Isto porque a
falta de discernimento do agressor lhe retira qualquer condição de entender a mensagem de
reafirmação do direito que a defesa ativa possa apresentar. Neste caso, se a fuga, pela
vítima, for uma opção segura para esta, se torna obrigatória: a doutrina entende que a
repulsa deve se dar unicamente na medida do necessário para a proteção do bem jurídico –
ou seja, apenas a primeira função da legítima defesa terá relevância, pois a segunda função
simplesmente não pode ser implementada, vez que o agressor jamais entenderá a
mensagem proveniente de uma reação.
É claro que, sendo impossível a fuga ou a reação branda, a vítima poderá repelir a
agressão do inimputável como quer que seja necessário e razoável, pois a defesa do seu
direito não pode ser-lhe negada4.
Outra questão diz respeito à ponderação de bens em contraposição na agressão e na
defesa: exige-se ponderação entre os bens em confronto, ou seja, pode-se sacrificar
qualquer bem em defesa de um bem agredido?
No estado de necessidade, o alvo do dano causado pela defesa pode ser umas pessoa
inocente, e por esta peculiaridade, é certo que a ponderação entre bem sacrificado e
protegido é rigorosamente necessária. No estado de necessidade, é fato que, no Brasil,
jamais se poderá admitir que um bem maior seja sacrificado na proteção de um bem
menor5. Todavia, na legítima defesa, a proporcionalidade não é necessária: a ação dirige-se
4
Nélson Hungria tem posição isolada, entendendo que a fuga não é exigível, mesmo diante do inimputável,
mas defende que a excludente da ilicitude da reação contra o incapaz é o estado de necessidade, e não
legítima defesa.
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Mesmo por isso, seria até questionável a aplicação extensiva do artigo 24 do CP, já transcrito, pois o tipo
permissivo faz com que se torne admissível a agressão a um bem de terceiro inocente – o que, por sua

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a repelir agressão injusta, e o alvo é o agressor injusto, e não terceiro inocente, como no
estado de necessidade. Sendo assim, não se pode limitar a reação atentatória contra a vida
do agressor, que está aviltando o patrimônio da vítima, se agir contra a vida dele é a única
saída para defender o direito em xeque. A vítima pode matar o agressor para defender seu
patrimônio, se outro meio mais brando não se apresentar para defendê-lo. Sendo possível
meio mais brando, com a mesma eficácia, e com o mesmo potencial implementador das
duas funções da legítima defesa, este é exigido; mas não havendo, a agressão a bem maior
pela vítima é legítima6.
Ocorre que, mesmo não se exigindo a ponderação dos bens em atrito, a grave
desproporção não pode ser admitida. Vejamos um exemplo usual na doutrina: um
fazendeiro, paraplégico, só dispõe de uma escopeta para defender-se e a seu patrimônio;
este fazendeiro se vê diante de uma invasão por crianças que estão subtraindo os frutos de
sua mangueira, e tenta, por diversos meios brandos, afastar o ataque ao seu patrimônio:
grita, atira para o alto, para o chão, mas nada surte efeito. Como se disse, não havendo
outro meio, a ponderação não é exigida, e, sendo assim, poderia o fazendeiro atirar nas
crianças, para salvaguardar seu patrimônio?
Como dito, não será admissível a gritante desproporção. Não há necessidade de
proporcionalidade, mas não se admite a aberrante desproporcionalidade. Neste caso, o
fazendeiro deverá resignar-se, e amargar a perda dos frutos.
Diferente seria se as crianças estivessem ateando fogo ao paiol, ou à plantação:
nestes casos, não haveria gritante desproporção – a vida das crianças, mesmo suplantando o
patrimônio, em tese, não é oponível contra o titular de direito patrimonial tão severamente
agredido.
Os doutrinadores chamam esta gritante desproporção de excesso na causa. Como se
verá adiante, o excesso no golpe usado, ou o excesso no meio, imoderado, de repelir a
agressão, são causas que tornam a vítima imputável, mas não se confundem com este
excesso na própria causa da defesa: é excessiva, aqui, a motivação da agressão, a causa do
dano infligido ao agressor.
Veja um outro caso curioso: se um indivíduo tenta roubar de uma farmácia um
remédio de que depende para sobreviver, está claro seu estado de necessidade. Se o
farmacêutico assaltado nega-se a entregar, sua vida está em risco, e sua reação seria (mas
não é) amparada por legítima defesa. Ocorre que, neste caso, há que se atentar para detalhe
de suma importância: o farmacêutico que reage está repelindo agressão que o direito
legitimou ao assaltante, posto que este está em estado de necessidade; destarte, se a
agressão não é injusta (pois foi justificada pela necessidade), não há legitima defesa: há
também estado de necessidade. E é por isso que se admite, então, o estado de necessidade
recíproco.

2.1. Requisitos da legítima defesa

gravosidade, não seria passível de interpretação extensiva. Esta crítica é feita por Cezar Roberto Bittencourt.
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Cabe aqui uma crítica ao estado de necessidade, que melhor seria classificado como excludente da
culpabilidade. Veja: se é tolerado o estado de necessidade como legitimador de ataque a terceiro, e é permitido
a este terceiro defender-se contra a agressão, o direito penal está, de fato, colocando os dois em confronto, e
aguardando para premiar o vencedor com a excludente. O que a doutrina diz é que há um conflito de
interesses legítimos – o que há, deveras –, mas mesmo assim o que há é que premia-se o indivíduo mais forte.
Fosse o estado de necessidade uma excludente de culpabilidade, é claro que seria mais justa a situação, mas
esta crítica é absolutamente minoritária.

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Analisemos de forma partitiva o artigo 25 do CP:

“Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios


necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

O emprego do verbo “repelir”, per si, empresta grande significado ao instituto.


Repelir é afastar de si, fazer cessar. Por isso, o que o instituto autoriza à vítima é justamente
(e somente) fazer cessar, afastar a agressão injusta. Note-se que não se autoriza o revide: o
verbo revidar não se enquadra aqui, pois revide tem conotação de vingança, e o instituto
certamente não se trata de “legítima vingança”, mas sim de legítima defesa.
O dispositivo determina que a agressão deve ser injusta. A medida da justiça de uma
agressão só pode ser dada a condutas humanas, porque somente aos humanos é dada a
racionalidade capaz de valorar a justiça de seus atos. Por isso, não há legítima defesa contra
agressões de animais, e sim estado de necessidade – salvo se o animal for utilizado como
instrumento da agressão perpetrada por um ser humano (como quando o dono de um cão o
incita a atacar alguém).
A agressão não precisa ser um fato típico para legitimar a defesa pela vítima. O
conceito de injustiça não é limitado ao direito penal, pelo que qualquer agressão injusta
poderá ser legitimamente repelida, sendo ela típica ou não. Como exemplo, o furto de uso:
esta conduta não tem relevância penal, pela falta de tipicidade material, mas não deixa de
ser injusta, podendo ser rechaçada pela vítima. Basta ser contrária à ordem jurídica para ser
injusta, não sendo necessário que seja contrária ao direito penal.
Da mesma forma, a agressão pode ser culposa, e ainda assim ser injusta. Como
exemplo, um motorista imperito que é contido pelo passageiro, pois estava à beira de causar
acidente, com danos a terceiros: os danos causados ao motorista, que estava na iminência
de agredir culposamente terceiros, são amparados pela legítima defesa.
A agressão injusta pode ser também perpetrada por meio de uma omissão. Veja: se o
agente tinha o dever de agir, e com a sua inação causou, ou poderia causar, avilte a um
direito, a proteção deste direito pode se insurgir contra o omisso, vez que a sua omissão se
configurou uma agressão injusta. Um exemplo facilita a compreensão: se um carcereiro
recebe alvará de soltura de um preso, e se nega a agir, abrindo-lhe a cela e soltando-o, esta
inação tornou-se uma agressão injusta à liberdade do preso, e pode ser repelida com amparo
na legitima defesa.
A agressão de quem está protegido pelo manto de uma excludente de culpabilidade
continua sendo injusta. Veja: o fato de alguém estar agindo, por exemplo, em coação moral
irresistível, não torna justa a conduta – o que seria diferente se fosse uma excludente de
ilicitude, pois aí deixaria de existir o injusto penal (tipicidade somada à ilicitude). O injusto
penal, para ser crime, deve ser também culpável, mas o fato de não sê-lo típico, por não ser
culpável, como já se disse, não deixa de configurá-lo como injusta agressão. Por isso, ainda
é passível de ser repelido em legítima defesa.
Além de injusta, o instituto determina que a agressão seja também atual ou
iminente, para ensejar defesa legítima. Traçando um comparativo com o estado de
necessidade, veja que no artigo 24 do CP não se alude ao perigo iminente, mas apenas ao
atual:

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“Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar


de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se.
(...)”

Grande parte da doutrina entende que deve ser estendido a este instituto a iminência,
tal como é prevista no artigo 25 do CP para a legítima defesa. Assim, o perigo iminente
seria também ensejador de ações em estado de necessidade.
Ocorre que, data maxima venia, não há como se abraçar este entendimento, pela só
razão de que o perigo iminente simplesmente não existe. Veja: a agressão pode ser atual, ou
seja, estar sendo praticada, ou iminente, em vias de ser cometida. O perigo, todavia, é
sempre atual: se há qualquer indício de risco, se há qualquer traço indicativo de que há
perigo de algum dano, é porque já há o perigo. Do contrário, não há perigo algum, pela
própria natureza do perigo, que é risco que já se vê em iminência, e se já há risco, é porque
o perigo é atual. Crer no perigo iminente é exercício de previsão do futuro, sem qualquer
base lógica, pois se esta previsão for calcada em qualquer indício, o perigo não é futuro, e
sim atual.
Por isso, é claro que o legislador não redigiu este texto sem técnica, não desta vez.
Não há lacuna ao deixar de fazer constar a expressão “ou iminente”, para o perigo; há
silêncio eloqüente, calcado em raciocínio lógico, e estender o conceito da agressão iminente
para o perigo, por ser norma pro reo, é atecnia imperdoável – mas, incrivelmente, a
doutrina majoritária o faz.
Voltando ao estudo dos elementos da legítima defesa, esta iminência da agressão é
medida pelo iter criminis: Roxin diz que a agressão é iminente quando se encontra, o
agente, no momento final da preparação, antes de iniciar a execução. Se, ao contrário, o
perpetrador já passou deste ponto, iniciando a execução, a agressão se torna atual.
Aqui é importante se traçar os limites da iminência em outra perspectiva: a da
ameaça. Zaffaroni expõe que a iminência não guarda apenas relação puramente temporal
com a conduta do agressor. Ao contrário, diz este autor, haverá agressão iminente sempre
que o agressor demonstrar vontade inequívoca de agir, determinação expressa na violação
do direito da vítima. Se a ameaça é clara, e é percebida a seriedade do intento do autor, há
iminência da agressão, mesmo que esta só venha a ser efetivamente praticada após várias
horas. O ameaçado que se vê nesta posição poderá repelir a agressão desde já, do modo que
lhe for possível.
Um exemplo, do qual se vale Rogério Greco, é o da rebelião na cadeia, em que os
comandantes declaram que a cada hora será morto um refém. Um dos reféns, marcado para
morrer dali a quatro horas, pode desde já atacar seus algozes, que a agressão será iminente.
Ocorre que há quem defenda que a iminência guarde necessariamente relação de
proximidade temporal. Rogério Greco é um autor que assim pensa, e ao narrar o exemplo
acima, defende que se trata não de legítima defesa, mas sim de inexigibilidade de conduta
diversa – excluindo apenas a culpabilidade. Não há, porém, que se acatar o ponto de vista
de Greco, pois pode gerar uma perplexidade inominável: o líder da rebelião, atacado pelo
refém, poderá se defender, e estará em legítima defesa, pois se a agressão do refém é injusta
(vez que só teve excluída a culpabilidade, e não a ilicitude), a defesa é legítima.

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Outra questão de alta indagação é se pode haver omissão amparada em legítima


defesa. Entenda: pode o garantidor, aquele que tem dever de agir, deixar de cumprir o seu
dever, e argüir legítima defesa?
A doutrina entende que sim, e traz o seguinte exemplo: imagine que o garantidor de
alguém vê seu dependente em situação de risco, mas ao mesmo tempo é ameaçado pelo
próprio dependente de morte, ou seja, se o salvar, como é seu dever, será morto por ele.
Poderá abandoná-lo à morte, e este abandono não será homicídio por omissão, vez que o
abandono é a única forma que encontrou para repelir a injusta agressão que o indivíduo
garantido estava na iminência de contra ele praticar.
O direito protegido pode ser próprio ou de terceiro. Todo direito pode ser objeto de
defesa, sem olvidar da questão da gritante desproporção, como se mencionou (não se pode
matar em nome da defesa da honra, por exemplo). A doutrina diverge quanto à
possibilidade de se defender legitimamente bens da coletividade, bens comunitários (como
a saúde, a segurança e a fé públicas). A corrente majoritária entende que não, pois a defesa
destes bens compete exclusivamente ao Estado. E é com base nisso que não é possível ao
cidadão matar um traficante de entorpecentes em defesa da saúde pública.
Luiz Flávio Gomes, de seu lado, entende que é possível a defesa de bens coletivos, e
dá como exemplo o meio ambiente: se alguém vê que um indivíduo está na iminência de
despejar óleo em uma lagoa, poderia legitimamente repelir esta agressão. Mas veja que se
trata de um bem tangível, o meio ambiente, diferentemente dos demais bens vagos,
intangíveis – e por isso seria uma exceção admissível, e não a regra.
Quando o direito defendido for alheio, mas for indisponível, a defesa é legítima; se
o direito alheio for disponível, contudo, é necessário que o terceiro, ofendido, não tenha
dado seu consentimento ao agressor, pois o consentimento faz com que aquela conduta seja
lícita – como dito, é causa supralegal de exclusão da ilicitude –, e a defesa não será
legítima, por estar repelindo agressão justa. Se alguém repele agressão consentida a bem
disponível de terceiro, não está amparado pela legítima defesa7.
O dispositivo ainda exige que sejam usados moderadamente os meios necessários a
repelir a agressão. Este requisito é casuístico: se o meio utilizado para repelir a agressão for
o único, será sempre necessário, não importando a disparidade diante da agressão (sempre
levando em conta a gritante desproporção entre bem sacrificado e resguardado, o excesso
na causa, que não é admissível). O meio necessário é o que causar menor dano, mas se
outro meio não há, pode causar o dano que for, que ainda assim será admissível. E o uso
moderado diz respeito à quantidade de seu uso na cessação da agressão: não pode a vítima
utilizar da reação de forma exagerada, ou seja, mesmo após a cessação da agressão injusta,
continuar agindo contra o agressor. Este será o excesso na imoderação, e este excesso é
punível, quer doloso ou culposo (podendo haver excesso impunível, por ser fruto de
fortuito).
O excesso é um crime como outro qualquer, e assim será encarado. Se a vítima
repele a agressão com um soco, capaz de por a nocaute o agressor e quebrar-lhe o nariz, e
depois disso desfere outro golpe, que lhe quebra as pernas, responderá pela lesão às pernas
do agressor, mas não pela quebra do nariz.
7
Zaffaroni cogita de um caso em que mesmo sendo indisponível, o consentimento seria exigível: se um pai
está para ser assassinado pelo filho, e terceiro mata o filho agressor, em defesa da vida do pai, poderia ser
preferível àquele pai, vítima, ser morto pelo filho do que vê-lo morto. Todavia, não se deve entender que o
terceiro seja punível, pois estava de fato em legítima defesa do bem indisponível, não se podendo exigir dele
outra reação.

Michell Nunes Midlej Maron 9


EMERJ – CP II Direito Penal II

Há que se falar, aqui, da chamada legítima defesa subjetiva: trata-se de um excesso


exculpante, ou seja, o excesso protegido pela inexigibilidade de conduta diversa. Se o
excesso praticado não puder ser evitado pela vítima, pois não se podia exigir desta que
agisse de outra forma, não será punível por haver a exclusão da culpabilidade. Veja um
exemplo: se a vítima encarcerada, que sofre reiterados estupros, consegue tomar a arma do
agressor e, ao repelir o ataque, descarrega nele a munição, é claramente inexigível que
agisse de outra forma. Por isso, sua conduta excessiva estará amparada nesta causa
exculpante, e por ser originada da legitima defesa, se denomina legitima defesa subjetiva.
O último requisito da legítima defesa é a necessária presença do elemento subjetivo.
De fato, toda causa de exclusão da ilicitude necessita de um elemento subjetivo, e não só a
legitima defesa. A inclusão da culpa lato sensu nas excludentes da ilicitude foi procedida
pela teoria finalista do direito penal, pois ninguém age em legítima defesa, especialmente
de terceiros, sem ser com esta finalidade. Por exemplo, suponha que alguém mate uma
pessoa, dolosamente, no exato momento em que ela estava cometendo estupro de uma
mulher, mas sem saber que este crime estava sendo cometido: é claro que não há legítima
defesa de terceiros, porque se não sabia da conduta de sua vítima, resta óbvio que seu
intento não era a defesa do direito da mulher, e sim a tomada da vida do vitimado.
Juarez Cirino entende que, mesmo que seja esta a concepção, a conduta do que
matou o estuprador não pode ser punida como se houvesse matado pessoa isenta, porque ao
matá-lo, o fato de impedir o estupro fez cessar o desvalor do resultado de sua conduta.
Mesmo que o desvalor da conduta esteja presente, pois almejava assassinar a pessoa, e não
defender a vítima do estupro, acabou por causar resultado sem desvalor penal, que foi
exatamente a defesa do direito. Por isso, não seria crime. Mas veja que não contraria a
necessidade do elemento subjetivo.
Pelo ensejo, surge uma questão: seria possível a legítima defesa nos crimes
culposos? Veja um exemplo: culposamente, dirigindo negligentemente, o motorista atropela
e mata o ladrão que estava furtando um carro – repelindo injusta agressão, portanto. Estaria
em legítima defesa do patrimônio de terceiro?
Juarez Tavares entende que sim: não se exige a presença do elemento subjetivo,
neste caso, sendo possível a legítima defesa do agente, que culposamente fez cessar o
resultado criminoso. Seria exceção à regra da necessidade de elemento subjetivo na
legítima defesa.
E como ficaria a legítima defesa diante de erro na execução da reação repelente da
conduta? Se a vítima, ao tentar defender-se, acerta disparo em pessoa diversa do agressor,
por má pontaria, o que se desenha?
A doutrina majoritária entende que continua sendo legítima defesa, pois se aplica a
primeira parte do artigo 73 do CP, que remete para o artigo 20, §3º, do mesmo código:
trata-se de erro sobre a pessoa, caso em que o agente responde como se houvesse acertado a
pessoa alvejada – e tendo sido a pessoa alvejada o agressor injusto, há legítima defesa.
Veja:

“Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente,
ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde
como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º
do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente
pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
(...)
§ 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena.
Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da
pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.”

Em que pese esta ser a corrente amplamente majoritária, Juarez Tavares e Zaffaroni
entendem se tratar, de fato, de estado de necessidade, e não de legítima defesa. A lógica
destes autores é a seguinte: a pessoa efetivamente afetada é o terceiro inocente, e não o
agressor. Somente por isso, pelo resultado efetivamente provocado, não se enquadraria na
legítima defesa, pois não atingiu o causador do perigo.
Há ainda que se mencionar que não há como existir legítima defesa real de ato
praticado em legítima defesa real: o paradoxo é intransponível, pois se um agente está em
legítima defesa real, significa que a agressão que está repelindo é injusta, e se fosse esta
agressão feita em legítima defesa também real, não seria injusta, pois que excluída sua
ilicitude – e assim por diante, renovando-se este ciclo. De outro lado, pode haver legítima
defesa real de um ataque praticado em legitima defesa putativa, pois quem se defende de
um ataque nesta situação de erro ainda assim está se defendendo de agressão injusta,
mesmo que o erro ainda elida a pena do que atacava pela putatividade.
Por fim, há que se tratar da legítima defesa sucessiva: consiste na repulsa ao excesso
de defesa. Veja: se a vítima age em legítima defesa, mas passa a se exceder no meio ou na
moderação, aquele que originalmente era agressor estará agora em posição de vítima do
excesso, e a sua defesa será legítima, porque o excesso é uma agressão injusta.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 11


EMERJ – CP II Direito Penal II

JOSÉ, policial militar, durante a madrugada, verificando a aproximação de um


carro com um motorista e duas pessoas no banco de trás, uma das quais segurando um
objeto pontiagudo que pareceu a JOSÉ o cano de um fuzil, determinou que o veículo
parasse. O motorista então empreendeu velocidade, vindo JOSÉ, desconfiado, a efetuar
disparo com o revólver que portava, evento que acabou por matar a pessoa que segurava o
objeto. Posteriormente, ficou provado que o objeto carregado era uma vassoura e que o
motorista acelerou o veículo pensando que se tratava de um traficante. Diante disso,
responda:
a) Como adequar a conduta de JOSÉ?
b) Se o motorista revidasse os disparos, haveria crime?
c) E se o motorista continuasse atirando, ainda que não houvesse mais agressão,
mas supondo que ainda precisava se defender?

Resposta à Questão 1

a) Trata-se de legítima defesa putativa, pois José acreditava estar protegendo-se de


agressão injusta que, na verdade, não existia. Todavia, é questionável esta
configuração, porque a casuística não dá margem a qualquer suspeita de dano
atual ou iminente, pelo que não havia do quê se defender – seria, então,
homicídio.

b) Se o motorista revidasse, ele estaria em legítima defesa real de um ato que fora
praticado em legítima defesa putativa. Não haveria crime.

c) Neste caso, o excesso estaria calcado em erro, e seria, este excesso, também
calcado em legítima defesa, agora putativa.

Questão 2

Quando se encontrava no estacionamento de um shopping, já com a porta do


veículo aberta para nele entrar, JÚLIO dele se afastou alguns metros para conversar com
alguns amigos, momento em que MARCELO subtraiu do carro o carregador de celular.
Perseguido por JÚLIO, MARCELO jogou o carregador de celular no chão. Iniciou-se,
então, uma discussão, já que JÚLIO queria saber como é que as coisas iriam ficar. Nesse
momento, MARCELO deu um soco na barriga de JÚLIO, virou as costas e foi em direção
ao seu carro. JÚLIO abriu a porta do carro para impedir que MARCELO desse a partida e
fugisse, momento em que foi esfaqueado pelo mesmo. Depois de caído ao chão, JÚLIO
recebeu vários chutes de MARCELO que fugiu, cantando pneus. Em juízo, a defesa
sustentou, no tocante às lesões corporais sofridas por JÚLIO, a tese da legítima defesa,
pois MARCELO pensou que seria agredido - já que JÚLIO havia segurado a porta de seu
carro - e apenas procurou defender-se. Assiste-lhe razão? Justifique.

Resposta à Questão 2

Júlio estava em legítima defesa real, e, por isso, toda agressão de Marcelo foi
injusta, impossibilitando-o de alegar qualquer espécie de legítima defesa a seu favor. Não

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP II Direito Penal II

tem qualquer razão, portanto, vez que ele, com a agressão inicial ao patrimônio, e depois à
integridade de Júlio, provocou qualquer ataque contra si praticado.
O TJ/RJ assim decidiu na apelação criminal 2002.050.00348:
“FURTO. TENTATIVA. LESAO CORPORAL GRAVE. PROVA DA AUTORIA.
PROVA DA MATERIALIDADE. DOSIMETRIA DA PENA. REVISAO.
FURTO TENTATO - LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE - PROVA
CONVINCENTE DA AUTORIA E CULPABILIDADE LEGITIMA DEFESA
PUTATIVA INOCORRÊNCIA - CORRETO JUÍZO DE CENSURA PRETENSÃO
DE CONDENAÇÃO NO CRIME DE LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA -
FATO NÃO DESCRITO NA DENÚNCIA IMPOSSIBILIDADE - VERBETE 453
DA SUMULA DO STF DOSIMETRIA PENAL EQUIVOCADA, QUE SE
ACERTA. A prova colhida em juízo, sob o crivo do contraditório, não deixa dúvida
de que o acusado tentou subtrair para si o carregador de celular que estava no carro
da vítima, não conseguindo o seu intento em razão de ter sido visto saindo do
veículo, quando então foi por ela mesmo abordado e deixou cair no chão o objeto
furtado, como também revela-se inquestionável a covarde e desnecessária agressão
que proporcionou as sérias lesões corporais na vitima, afigurando-se
despropositada a tese de legítima defesa putativa, pois a vitima nada mais fez do
que.procurar proteger seu patrimônio, desfalcado criminosamente pelo réu que, por
isso mesmo, não tinha o direito de agredi-Ia violentamente. A pretensão do
assistente de ver o acusado condenado no crime de lesão corporal qualificado pela
lesão permanente não encontra respaldo na lei nem na prova, vez que a perícia
oficial concluiu negativamente ao responder o sétimo quesito (se resultou
incapacidade permanente para o trabalho ou enfermidade incurável ou
deformidade permanente), em perfeita compatibilidade com as fotografias
acostadas às fis. 238/239, bem diferentes daquelas que foram juntas às fls. 38/42,
indicativo de que as lesões não são indeléveis nem irrecuperáveis pela atuação do
tempo ou de um profissional da medicina. De outra banda, não poderia a sentença
acolher a nova definição jurídica aventada nas razões finais do Ministério Público
sem o indispensável aditamento a denúncia, pois estaria a inagistrada violando o
princípio da correlação que deve existir entre a imputação e a sentença. Tampouco
poderia o apelante alcançar seu objetivo através do recurso, em vista do disposto
no verbete 453 da Súmula do Supremo Tribunal Federal "Não se aplicam à 2
Instância o art. 384 e parágrafo único do CPP, que possibilitam dar nova definição
jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida
explícita ou implicitamente na denúncia ou na queixa." A dosimetria penal reclama
pequeno ajuste, pois a elevação da pena base no crime de furto não está
devidamente motivada, ainda mais que a primariedade e os bons antecedentes
foram reconhecidos, sendo o dolo no atuar o normal do tipo. Tampouco a redução
pela tentativa na fração mínima afigura-se correta, pois a abordagem no réu
aconteceu tão logo saiu ele do carro da vítima na posse do carregador do celular
subtraído. Em conseqüência, fixa-se a pena base do crime patrimonial em 1 ano de
reclusão, que se diminui de metade pela tentativa, perfazendo 6 meses de reclusão,
acomodando-se a pecuniária em 5 DM na diária mínima. O mesmo ocorre na pena
imposta pelo cometimento do crime de lesão corporal grave, elevada do dobro,
pois a gravidade e localização das lesões são circunstâncias já consideradas no tipo
incriminador, resultando dai a cominação mais severa do que na lesão simples. Por
isso, considerando a elevada censurabilidade da conduta do réu e as conseqüências
do crime, pois a vitima foi submetida a cirurgia e ficou internada vários dias, fixo a
pena base cru 1 ano o 6 meses de reclusão, não devendo ter incidência a agravante
prevista no art. 61, II, "b", porque presente também a atenuante inominada do art.
66 do CP, decorrente da relevante função de conciliador desenvolvida pelo réu no
1º Juizado Cível, gratuitamente, em benefício das pessoas carentes de recursos e da
própria justiça. O valor da pena pecuniária deve ser reduzido ao mínimo legal, por

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP II Direito Penal II

ostentar o réu a condição de estudante. Provimento parcial do recurso defensivo e


improvimento dos demais.”

Questão 3

É possível a um indivíduo atuar em legítima defesa em favor de um terceiro,


quando este consente com a ofensa ao bem jurídico atacado?

Reposta à Questão 3

Se o bem jurídico atacado, que se intenta proteger, for bem disponível, o


consentimento elide a ilicitude da agressão, a qual se torna justa. Sendo assim, quem repelir
esta agressão não estará amparado pela legítima defesa. De outro lado, se o bem jurídico
tutelado for indisponível, o consentimento não tem valor, e por isso a agressão ainda será
injusta, podendo a repulsa ser considerada legítima defesa do terceiro.

Tema II

A Exclusão da Ilicitude (Causas de Justificação) II. O Estado de Necessidade. 1) O estado de necessidade:


generalidades:a) Conceito e fundamento legal;b) Os elementos objetivos e o elemento subjetivo. 2) Espécies.
3) A legítima defesa e o estado de necessidade (diferenças).4) A colisão de deveres (controvérsias sobre sua
natureza jurídica).

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

Notas de Aula8

1. Estado de necessidade

O estado de necessidade, em nosso ordenamento, é formalmente descrito como


causa excludente da ilicitude. Assim estabelecem os artigos-sede do instituto, 23, I, e 24 do
CP, postos sob esta nomenclatura:

“Exclusão de ilicitude
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá
pelo excesso doloso ou culposo.”

“Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar


de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se.
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar
o perigo.
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena
poderá ser reduzida de um a dois terços.”

Esta natureza legal não é afastada pela teoria da tipicidade conglobante, que explica
a real natureza do exercício regular do direito e do estrito cumprimento do dever legal
como causas de atipicidade. O estado de necessidade e a legítima defesa são, formal e
materialmente, situações excludentes da ilicitude, causas justificantes da conduta.
Como visto, no estudo da legítima defesa, a fuga só é exigível quando o agressor for
inimputável, dada a segunda função desta excludente da ilicitude, e que a desproporção
entre os bens é tolerável (desde que não excessiva). No estado de necessidade, porém, o
fundamento é completamente diferente: os bens jurídicos que estão em perigo não são,
quaisquer deles, postos abaixo por conduta própria do agente, o que significa que todos os
bens jurídicos merecem igual proteção. Não há agressor ou agredido: estão os envolvidos
na mesma situação, em tese, o que gera outro modo de interpretar o instituto.
Surge, então, a necessidade de que a agressão ao bem jurídico alheio seja inevitável,
pois se não há agressor ou agredido a repelir, é estado de exceção máxima a permissão do
ordenamento para aviltar bem jurídico de terceiro inocente.
Aqui se faz relevante o conceito de commodus discessus: no estado de necessidade,
só é permitido o ataque ao bem jurídico alheio se não houver outra saída; se este for apenas
o caminho mais cômodo – e esta é a tradução do termo –, não há exclusão da ilicitude.
Havendo outra forma de salvaguardar o bem jurídico, que não a violação do bem alheio,
esta é imponível, tamanha é a relevância da inevitabilidade neste instituto, o que não se
repete na legítima defesa, em regra, dada a não obrigatoriedade da fuga, por exemplo.
Mesmo por isso é que surge a discussão se a reação à agressão do inimputável seria
mesmo legítima defesa, ou seria estado de necessidade. Veja: se o agressor não está agindo
injustamente, pela simples razão de não haver qualquer discernimento na justiça de seus
8
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 5/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP II Direito Penal II

atos, a atitude de repelir ativamente tal agressão, quando não for possível a fuga – quando
for inevitável –, pode fazer com que o ato assuma feições de estado de necessidade, ao
invés de legítima defesa, e assim defende Nélson Hungria. A doutrina majoritaríssima,
porém, entende que se trata mesmo de legítima defesa, com o requisito especial e
excepcional da inevitabilidade da reação violenta.

1.1. Teoria unitária e teoria diferenciadora do estado de necessidade

Antes de tudo, deve-se atentar que as teorias são excludentes, são opções de cada
ordenamento, que deverá adotar uma ou outra para configurar o instituto. Na Alemanha,
adota-se a teoria diferenciadora; no Brasil, a unitária.
A teoria diferenciadora prevê o estado de necessidade com duas naturezas diversas;
ora como excludente da ilicitude, quando é chamado justificante; ora como excludente da
culpabilidade, caso em que é chamado exculpante. A unitária, como o nome indica, só
atribui uma natureza, sempre, ao estado de necessidade: a de excludente da ilicitude.
Na teoria diferenciadora, as situações em que se exclui a ilicitude ou a culpabilidade
devem ser identificadas de acordo com parâmetros estabelecidos para tanto. Por isso,
entende-se que o estado de necessidade será justificante quando o bem protegido for de
valor maior que o sacrificado; e será estado de necessidade exculpante quando o bem
jurídico protegido for de valor igual ou menor que o sacrificado. Por exemplo, se o bem
que se intenta proteger for a vida, e para isso se sacrifica patrimônio, a conduta resta
plenamente justificada; se o bem protegido for a vida, e o sacrifício for da vida alheia, nesta
teoria, o estado de necessidade é exculpante, pois são iguais os valores protegido e
sacrificado. O estado de necessidade é exculpante porque exclui a exigibilidade de conduta
diversa.
A teoria unitária, por seu turno, não divide as naturezas jurídicas desta excludente: é
sempre justificante. Mas é importantíssimo consignar que o conceito de justificante desta
teoria não é idêntico ao da teoria diferenciadora: aqui, não há vigência do mesmo parâmetro
estático que lá se opera, porque, por exemplo, se os bens em conflito forem de igual valor,
ainda assim será justificante – sendo que na teoria diferenciadora seria exculpante. De fato,
na teoria unitária, não há aplicação estática destes parâmetros de valor; o que se exige é a
ponderação dos valores na casuística, a razoabilidade. Estará em estado de necessidade o
agente se não for razoável exigir atuação diferente, ou seja, se as circunstâncias
demonstrarem que não era possível exigir que a pessoa sacrificasse o bem que ela protegeu.
O que ocorre, então, na teoria unitária, é que a análise da exigibilidade de conduta
diversa, elemento da culpabilidade, é antecipada para a verificação da ilicitude. Mas veja
que esta antecipação só se dá no estado de necessidade, mantendo-se os demais casos de
exigibilidade de conduta diversa na análise da culpabilidade. Em síntese: o estudo da
exigibilidade de conduta diversa, no estado de necessidade, se antecipa para a análise da
ilicitude.
No Brasil, como dito, adota-se a teoria unitária, não havendo qualquer caso em que
se aplique o estado de necessidade exculpante, nem mesmo como causa supralegal de
exclusão da culpabilidade: simplesmente este conceito aqui não se amolda, porque se há
estado de necessidade, não há ilicitude; se a conduta diversa não é exigível, a conduta resta
justificada.

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP II Direito Penal II

E veja que não se pode confundir a previsão do § 2º do artigo 24 do CP como uma


hipótese de exclusão da culpabilidade: ali se dá uma diminuição da culpabilidade, o que
não consiste em adoção do estado de necessidade exculpante.
Cezar Roberto Bittencourt, minoritariamente, entende que o estado de necessidade
exculpante é cabível, aqui, pois faz uso do conceito e dos critérios da teoria diferenciadora
para tratar o justificante como nossa hipótese legal, e o exculpante como causa supralegal
de exclusão da culpabilidade. É isolado, porém.

1.2. Requisitos do estado de necessidade

Um dos requisitos elementares do estado de necessidade é a existência de perigo


atual que não tenha sido provocado pela vontade de quem alega a necessidade.
Imaginemos a seguinte situação: um preso foge do presídio, que fica localizado em meio ao
deserto. No curso da fuga, após caminhar por quilômetros no sol, à beira da morte por
desidratação, este preso chega a uma loja, e subtrai itens para se alimentar. Poderia alegar
estado de necessidade?
Veja que há perigo atual de morte, e não há outro meio de sanar este perigo sem
sacrifício do patrimônio, sendo este sacrifício razoável. Contudo, como dito, é necessário
que o perigo que gera a necessidade não tenha sido criado pela vontade do agente que da
necessidade se vale, e no caso a criação do perigo foi criada por sua fuga, voluntária, para o
deserto – pelo que não poderá safar-se pelo estado de necessidade.
O alcance deste termo “vontade”, utilizado no artigo 24 do CP, é bastante
controverso. Se o perigo for causado por ato doloso, é claro que se inclui, sem qualquer
controvérsia, neste conceito – o perigo foi oriundo da vontade do agente, e não poderá
alegar estado de necessidade para justificar os atos que praticar para safar-se ao perigo que
criou. Como exemplo, se o agente ateia fogo propositadamente a um local, e para fugir
acaba causando lesões aos demais ocupantes, não há que se falar em estado de necessidade.
Todavia, quanto à conduta culposa causadora do perigo, a doutrina diverge.
Imagine-se que o agente, sem dolo, por descuido, causa incêndio em um recinto. Na fuga,
acaba por causar lesões aos demais ocupantes do lugar, também em fuga. Veja que o agente
causou o perigo, mas de forma culposa, sendo caso em que a doutrina majoritária defende
que as lesões causadas aos demais por este agente são amparadas pelo estado de
necessidade.
Mas há quem defenda que, mesmo culposamente, o perigo foi causado pelo agente
voluntariamente, e é assim que deveria ser interpretado o termo “vontade”, porque quem
causa o perigo, qualquer que seja o modo ou animus, se torna garantidor de todos que a
este perigo estarão expostos – leitura que não prevalece. A vontade, no perigo culposamente
causado, seria não de causar o perigo, mas sim de praticar a conduta descuidada.
Em síntese, o entendimento amplamente majoritário é que só não pode alegar estado
de necessidade quem causa o perigo dolosamente.
O termo “perigo atual” também merece definição amiúde. O perigo, aqui, consiste
na probabilidade de dano a algum bem jurídico, dano que deve ser iminente. Veja que,
então, por definição dicionária, o perigo é sempre atual, não existindo perigo iminente –
pois seria a previsão do futuro, vez que se há indício de que pode haver algum dano futuro,
é porque já há o perigo atual em alguma escala. Todavia, mesmo assim, há quem faça um
paralelo com a legítima defesa, na qual há menção à agressão iminente, entendendo que

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EMERJ – CP II Direito Penal II

deva ser lido este artigo 24 do CP, por interpretação extensiva, como perigo atual ou
iminente. É claro que não deve prosperar esta leitura, por não haver sentido na expressão
perigo iminente: na legítima defesa, é necessário que haja a previsão da iminência, pois o
dano, a agressão, sim, pode ser atual ou iminente.

1.3. Estado de necessidade vs. legítima defesa

Outro aspecto que deve ser considerado é a confrontação entre pessoas que agem
uma em estado de necessidade e outra em legítima defesa: este confronto é, em verdade,
impossível, porque se alguém atua em estado de necessidade, sua agressão ao bem alheio é
justa, e sendo assim, a conduta da vítima em repelir tal agressão não se amolda à legítima
defesa, que demanda agressão injusta.
Nada impede, porém, que haja estado de necessidade recíproco: ambos os agentes,
estando em perigo atual, podem, os dois, disputar a salvação própria em detrimento do
outro, estando ambos amparados pelo estado de necessidade. Exemplo clássico é o do
naufrágio, em que dois sobreviventes disputam tábua de salvação que só comporta um:
ambos estão em estado de necessidade, e aquele que vencer o combate terá sua conduta
justificada.

1.4. Estado de necessidade putativo

Pode acontecer de o perigo atual só existir na mente do agente, ou seja, ele


realmente crer que há perigo a ser evitado, mas faticamente este perigo inexistir. Sendo este
o caso, configura-se o estado de necessidade putativo, e os atos danosos por ele praticado
estarão amparados pela isenção de pena prevista para as descriminantes putativas, se o erro
quanto à situação de perigo for considerado invencível.
Veja, o artigo 20, § 1º, do CP, trata da descriminante putativa de que aqui se cogita:

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
(...)”

Assim, se as circunstâncias revelarem que o erro era plenamente plausível, o agente


não será apenado. D’outrarte, se a situação de perigo for claramente inexistente, e o erro for
oriundo de comportamento açodado e nada atento do agente causador do dano, não há
descriminante, e o agente responde pelos atos praticados, se há modalidade culposa do
delito configurado.
Vejamos exemplos: se um alarme de incêndio soa, mas não há incêndio algum, e o
agente corre para salvar-se, lesionando outrem, não responderá, pois o erro era claramente
justificado, invencível. Em outro exemplo, se uma pessoa que não sabe nadar é atirada em
um lago, e causa lesão a alguém por desespero, sem sequer tentar ficar em pé – pois se o
fizesse veria que a água não passava de um metro de profundidade –, as lesões ser-lhe-ão
imputadas a título de culpa: causou-as por negligência em verificar sua real condição, e
deve por elas responder.

Michell Nunes Midlej Maron 18


EMERJ – CP II Direito Penal II

A natureza jurídica do erro no estado de necessidade putativo conta com três


correntes a disputá-la. Para a teoria limitada da culpabilidade, trata-se de erro de tipo
permissivo; para a teoria extremada da culpabilidade, trata-se de erro de proibição
indireto; e para a teoria que remete às conseqüências jurídicas, trata-se de um erro sui
generis, não enquadrado em nenhum outro.

Casos Concretos

Questão 1

CREUSA está passeando pela rua quando um cachorro pitbull morde sua perna.
Ela, em desespero, saca uma pistola que possui e efetua disparos no cão, que morre.
a) Está CREUSA amparada por alguma causa de exclusão da ilicitude?
b) E se o cão estivesse sendo atiçado por CLEIA, sua inimiga, haveria exclusão da
ilicitude?

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP II Direito Penal II

c) E se CREUSA visse o cão mordendo um homem armado que estava prestes a


matar o cachorro e resolvesse matar o homem porque era uma apaixonada pela
raça pitbull?

Resposta à Questão 1

a) Sim, está amparada pelo estado de necessidade, vez que agrediu o patrimônio, o
bem semovente, pela necessidade de salvar sua integridade física, sendo o
ataque o meio necessário, razoável e, aparentemente, inevitável de salvar-se.

b) Neste caso, o cão seria instrumento da agressão que foi, de fato, perpetrada por
Cléia, e sendo assim, o ataque de Creusa estaria repelindo agressão injusta de
ser humano, motivo que configuraria legítima defesa.

c) Neste caso, não há qualquer razoabilidade no sacrifício do bem jurídico atacado,


pois que há clara desproporção de valor entre o bem salvado – patrimônio – e o
bem sacrificado – vida humana. Sendo assim, não se configura estado de
necessidade, e Creusa responde pela morte, pelo homicídio. Era exigível, ao
contrário, sacrificar a vida do animal para salvar a vida humana, e não o inverso,
como fez.

Questão 2

MAURÍCIO foi preso em flagrante em razão da prática de furto. A defesa, ao


alegar a pobreza, o desemprego e as inúmeras carências materiais do acusado, busca o
reconhecimento do estado de necessidade. Você, Magistrado, reconheceria esta excludente
de ilicitude? Por quê?

Resposta à Questão 2

Não se pode confundir estado de necessidade com estado de precisão: este consiste
na carência, penúria, pobreza, e não no perigo atual que enseje incidir em conduta
normalmente típica sem que seja ilícita. O estado de necessidade só pode ser reconhecido
se o sacrifício do bem em questão for inevitável. Fosse caso de iminente colapso famélico,
e o agente que furtasse alimento absolutamente não tivesse outra opção para saciar-se,
estaria nesta excludente, mas não é o que se passou, in casu. Por isso, não há que se
reconhecer a excludente neste caso concreto.
Assim se posicionou o TJ/RJ na apelação criminal 2003.050.00564:

“FURTO. TENTATIVA. PRISAO EM FLAGRANTE. PROVA SEGURA.


DOSIMETRIA DA PENA. FURTOS CONSUMADO E TENTADO. PRISÃO EM
FLAGRANTE. PROVA SEGURA DE AUTORIA. ESTADO DE NECESSIDADE
INDEMONSTRADO. APELO DESPROVIDO. Se a prova é robusta no sentido de
confirmar a autoria das subtrações, tendo sido o agente preso em flagrante, correto
o juizo de censura. Pobreza, desemprego, carências materiais, de per si, não
possibilitam o reconhecimento da excludente de estado de necessidade. Dosimetria
escorreita. Apelo desprovido.”

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP II Direito Penal II

Questão 3

JORGE, advogado da Petrobrás, portador do vírus da AIDS, foi condenado pela


prática do crime de peculato, pois, temendo discriminação, preferiu esconder a doença e
apropriar-se indebitamente do numerário da empresa em razão da função que ali exercia.
A defesa de JORGE alega ter agido o mesmo amparado pela excludente do estado de
necessidade, isto porque era natural ele não querer admitir ser soropositivo, pois JORGE
já tinha ouvido falar de vários casos de discriminação a funcionários portadores do vírus
HIV, sendo que o caminho achado por ele para não viver essa situação foi abrir mão do
seguro saúde ou do reembolso da empresa, preferindo apropriar-se de quantias a ela
pertencentes, para custear seu tratamento, de um ex-companheiro e do atual. Indaga-se:
a) Assiste razão à defesa? Fundamente.
b) Quais são as espécies de estado de necessidade? Responda com base nas teorias
existentes a respeito de tal excludente.

Resposta à Questão 3

a) Não há nenhuma razão nas alegações defensivas. O estado de necessidade


demanda que o sacrifício do bem alheio seja inevitável, o que claramente não existe,
no caso em tela. Por isso, era exigível comportamento diverso de Jorge, o que
impede a configuração de estado de necessidade. No máximo, poderia ter a pena
reduzida, na forma do § 2º do artigo 24 do CP, mas nunca a excludente.

b) Há duas espécies: o exculpante e o justificante. Na teoria unitária, só há o


justificante, e na teoria diferenciadora, há os dois. O justificante, em qualquer caso,
exclui a ilicitude; o exculpante, exclui a culpabilidade.

O TJ/RJ tratou do caso na apelação criminal 2002.050.02707:

“PECULATO. A.I.D.S. TRATAMENTO MEDICO. ESTADO DE


NECESSIDADE. NAO CARACTERIZACAO. EMBARGOS DE
DECLARACAO MODIFICATIVOS DA DECISAO. PRESCRICAO DA
PRETENSAO PUNITIVA. EXTINCAO DA PUNIBILIDADE.
Crime de peculato. Apelante que, por ser portador do virus da AIDS, apropriou-se
de numerarios da PETROBRAS, empresa onde trabalhava, com o objetivo de
financiar seu tratameto medico e de mais duas pessoas, portadoras da mesma
doenca. Inexistencia da excludente de ilicitude narrada no art. 23, I, do Codigo
Penal. Para sua configuracao, e' necessaria a comprovacao de inevitabilidade do
comportamento lesivo, ou seja, so' havera' estado de necessidade se o unico meio
de que dispunha o agente na ocasiao era lesar bem de terceiro, para salvaguardar o
seu proprio. Sentenca mantida. Desprovimento do recurso. (CLG) Obs.: Ementa
dos Embargos de Declaracao. Embargos de Declaracao. Acolhimento, para
declarar extinta a punibilidade do embargante pela ocorrencia da prescricao da
pretensao punitiva, na forma do artigo 109, V, do Codigo penal.”

Michell Nunes Midlej Maron 21


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Tema III

A Exclusão da Ilicitude (Causas de Justificação) III. O estrito cumprimento do dever legal e o exercício
regular do direito. 1) O estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito: generalidades:a)
Conceitos e fundamentos legais;b) Os elementos estruturais. 2) Os ofendículos ou ofensáculos. 3) O excesso
nas causas de justificação: excessos doloso e culposo. Controvérsias.

Notas de Aula9

1. Estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito


9
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 5/9/2008.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

O artigo 23, III, do CP, trata expressamente destes institutos como causas de
exclusão da ilicitude:

“Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:


(...)
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
(...)”

Ao contrário da legítima defesa e do estado de necessidade, a lei não conceitua o


estrito cumprimento do dever legal nem o exercício regular do direito, porque estes
conceitos pertencem ao ordenamento jurídico como um todo: pode o direito civil prever
direitos e deveres legais, bem como o direito administrativo, etc.
Prepondera, todavia, a noção de que o dever legal se impõe aos servidores públicos
no exercício de suas funções, na medida em que é a estes que se destinam, em regra, as
normas criadoras de deveres, motivo pelo qual não poderiam os particulares alegar esta
excludente da ilicitude: as relações privadas, em regra, são guiadas pelo exercício regular
do direito, nesta seara.
Há, porém, um problema a ser enfrentado no estudo destes institutos, referente à
teoria da tipicidade conglobante. Adotada esta teoria, o estrito cumprimento do dever legal
deixaria de ser excludente da ilicitude para ser excludente da própria tipicidade. Para esta
teoria, a conduta que é praticada em cumprimento a dever legal exclui a tipicidade por
ausência da antinormatividade.
Veja: se a norma aplicável determina ou fomenta a prática de determinada conduta,
ou seja, torna uma determinada atuação normativa, não poderá esta conduta ser ao mesmo
tempo vedada pelo direito penal. Sendo assim, se o agente atua de acordo com a norma que
lhe impõe tal atuação, não estará jamais incorrendo em fato típico, por incongruência
material, incompatibilidade inadmissível em um ordenamento sistêmico. É por isso, por
exemplo, que o oficial de justiça que cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar não
incorre em violação de domicílio: sua conduta é-lhe imposta, não é antinormativa, e o
mesmo ordenamento que a fomenta, que a impõe como dever, não pode considerá-la
penalmente típica.
Entretanto, de lege lata, ambos os institutos são excludentes da ilicitude, pois assim
são tratados na lei, formalmente; materialmente, e adotando-se a teoria da tipicidade
conglobante, são causas de exclusão da tipicidade.

Há que se abordar, aqui, a previsão do agente infiltrado, figura criada na lei


9.034/95, lei de combate ao crime organizado. Esta lei não define crime, mas apenas trata
de meios investigativos especiais para ações contra organizações criminosas. No artigo 2º,
V, trata, o diploma, da infiltração:

“Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos
já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de
provas:
I - (Vetado).
II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se
supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que
mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP II Direito Penal II

no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento


de informações;
III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e
eleitorais.
IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou
acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial;
V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de
investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante
circunstanciada autorização judicial.
Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá
nesta condição enquanto perdurar a infiltração.”

A nova lei de drogas, a Lei 11.434/06, também trata da infiltração, no artigo 53, I:

“Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos
nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial
e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos
órgãos especializados pertinentes;
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores
químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no
território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número
de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal
cabível.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será
concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos
agentes do delito ou de colaboradores.”

Esta figura do agente infiltrado é notoriamente efetiva no combate a estes delitos,


pois permite que o agente entenda o modus operandi da organização, e identifique melhores
condições de efetuar prisões.
Ocorre que o agente infiltrado na organização, por vezes, estará praticando delitos
em conjunto com os investigados, a começar pela própria formação de quadrilha, do artigo
288 do CP. Em relação ao crime de quadrilha ou bando, a sua tipicidade resta afastada pela
própria inadequação à tipicidade formal, pois este crime exige o dolo específico de
associar-se para o fim de cometer crimes, e o agente infiltrado está se associando com a
finalidade de combater o crime – não se adequando sua conduta sequer à tipicidade formal.
Em verdade, poder-se-ia dizer que sequer há, de fato, este vínculo associativo real de sua
parte, pois sua associação é simulada perante os demais criminosos. Veja:

“Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim
de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”

Entretanto, de outro lado, seria formalmente típica a sua conduta quando, no curso
da infiltração, praticasse outros delitos, o que se faz necessário pela própria dinâmica de
uma infiltração (ou seu disfarce seria descoberto, caso negasse participar dos crimes).
Imagine-se, então, que o agente seja forçado a matar alguém quando do curso da
infiltração, sob risco de, se não o fizer, revelar seu disfarce e sofrer a consequência, que
provavelmente será sua morte: terá cometido crime?

Michell Nunes Midlej Maron 24


EMERJ – CP II Direito Penal II

O agente que assim agiu não pode alegar estado de necessidade, porque, apesar do
perigo em que se encontra, como já se viu, esta excludente demanda que o perigo causado
não tenha sido criado pelo próprio agente, e a infiltração, fonte do perigo, foi por ele
praticada. O agente infiltrado também não estará amparado pelo estrito cumprimento do
dever legal, pois seu dever normativo, nesta situação, e no curso de toda a infiltração, não é
o de cometer qualquer crime, e sim o de investigar, somente. Mas veja: como não poderia o
agente agir de outra forma, pois seria morto, estará apoiado na inexigibilidade de conduta
diversa, tendo a culpabilidade excluída. Mesmo não tendo amparo em qualquer excludente
de ilicitude – tendo praticado fato típico e ilícito –, o agente infiltrado, nesta situação, não
age em conduta reprovável, sendo excluída sua culpabilidade.
A confusão sobre estas excludentes, em especial o estrito cumprimento do dever
legal, se faz notar especialmente nas ações policiais. É muito comum crer que o policial, em
diligência, tem o dever de matar bandidos, o que é absurdo. Quando um policial mata o
bandido em tiroteio, não o faz em estrito cumprimento do dever legal, e sim em legítima
defesa de sua vida, que está na mira dos tiros do meliante.
Mesmo por isso, se o policial mata dolosamente o meliante sem que este ofereça
resistência ativa, ou seja, sem que atente contra a vida do próprio policial – o bandido em
fuga –, não há que se falar em excludente alguma: o policial comete o crime de homicídio,
pura e simplesmente. Havendo resistência do bandido, é necessário que o policial se
defenda, e sempre sem excesso; sem ataque do bandido, o policial não está autorizado a
atacar violentamente ninguém.
Note que, na fuga do meliante, o policial poderá atuar de forma a impedi-lo, ou seja,
poderá até mesmo chegar a disparar a arma, alvejando as pernas do perseguido, ou as rodas
do seu veículo, se for o caso – caso em que estará, sim, em estrito cumprimento do dever
legal. Mas veja que estará agindo moderadamente para proteger a segurança social, e não
para matar o bandido, sendo-lhe, em tese, possível assim atuar (em que pese o STJ
demonstrar adotar tese de que o policial nunca pode atirar para conter fuga, mas apenas
para defender-se).
O exercício regular do direito, como dito, tem natureza formal, legislativa, de
excludente da ilicitude. Para a tipicidade conglobante, porém, a natureza jurídica será
variante, podendo ser excludente da ilicitude ou da tipicidade.
Isto porque há duas formas de se atuar em exercício regular do direito: ou o agente
realiza atividade fomentada pelo ordenamento, ou realiza atividade tolerada pelo
ordenamento. A prática de esporte violento, por exemplo, é atividade fomentada, assim
como a intervenção cirúrgica para fins terapêuticos necessários. De outro lado, é atividade
meramente tolerada a cirurgia estética, desnecessária à proteção da saúde.
Para a lei, quer se trate de atividade fomentada, quer de atividade tolerada, o
exercício regular do direito sempre excluirá a ilicitude. Para a tipicidade conglobante,
todavia, se a atividade for daquelas considerada fomentadas pelo ordenamento, não serão
antinormativas, e conseqüentemente serão atípicas; se a atividade for meramente tolerada,
ou seja, não houver qualquer norma que a fomente, será típica, pois que é antinormativa,
mas não será ilícita, pois que justificada.
Como exemplo, a conduta do boxeador ao ferir o adversário em conformidade com
as regras do esporte (normatividade do esporte, portanto), é atípica, assim como a do
médico que segue o protocolo da cirurgia necessária à cura – não há lesão corporal por
atipicidade, nos dois casos. Já a conduta do médico que realiza cirurgia estética é típica,

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EMERJ – CP II Direito Penal II

porque não há fomento normativo da sua prática, mas não é ilícita, porque é conduta
tolerada, excluída sua ilicitude pelo exercício regular do direito.

2. Consentimento do ofendido

O consentimento do ofendido opera em duas frontes: em uma função, exclui a


própria tipicidade formal, a própria adequação típica, quando o dissenso for elemento do
tipo penal. Exemplo claro é a violação de domicílio, do artigo 150 do CP:

“Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a


vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas
dependências:
(...)” (grifo nosso)

Em todo tipo penal em que a falta de anuência é elementar do crime, a própria


tipicidade fica afastada pelo consentimento do ofendido.
A outra função do consentimento do ofendido é a de excluir a ilicitude, sendo causa
supralegal de exclusão da ilicitude. Para que assim funcione, é necessária a presença de
cinco requisitos, quais sejam:

- O bem jurídico violado deve ser disponível, pois do contrário a própria vítima não
tem ingerência sobre seu bem, não podendo consentir em seu ataque;

- O consentimento deve ser emitido por pessoa capaz para tanto, e o direito penal,
em interpretação sistemática do CP, reconhece como capaz a pessoa maior de
quatorze anos, não alienada ou débil mental, ou não incapacitada de manifestar
vontade (como a pessoa sedada), como demonstra o artigo 224 do CP:

“Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:


a) não é maior de catorze anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
(...)”

- O consentimento deve ser válido, ou seja, não pode a vontade ser viciada por
fraude ou coação;

- O consentimento deve ser concomitante ou anterior à conduta violadora, pois o


avilte posteriormente tolerado pela vítima apenas indica, quando muito, perdão, e
não exclusão da ilicitude ab initio;

- O consentimento deve ser específico, destinado expressamente à conduta gravosa,


e não a alguma conduta similar, ou colateral. Mesmo a reiteração da conduta
demanda outro consentimento renovado: como exemplo, se o agente consentiu em
lesão leve a sua integridade (um tapa), não pode o agente praticar outra lesão igual,
em outro momento (dar outro tapa), a pretexto de ter sido consentido anteriormente.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Zaffaroni, sobre o tema, defende que o consentimento do ofendido sempre afasta a


tipicidade, porque indica que há ausência de tipicidade material, outro elemento da
tipicidade conglobante. Veja: se a ofensa ao bem jurídico for consentida pelo seu detentor, é
porque aquele bem não pode ter relevância penal, naquela circunstância. Se o próprio
detentor do bem não o atribui relevância, não pode o direito penal fazê-lo. É tese
minoritária, entretanto.
A integridade física é disponível? A doutrina entende que é relativamente
disponível, ou seja, no que tange às lesões corporais leves pode o indivíduo consentir que
sejam-lhe causadas, mas não no que se refere às lesões graves ou gravíssimas.
Aqui cabe comentar sobre a doação de órgãos: toda pessoa pode doar, em vida,
órgão dúplice, sem o qual poderá sobreviver. A doação consiste necessariamente em uma
lesão grave à integridade física, e, a rigor, a causação desta lesão não poderia ser
consentida, pelo que este consentimento não afasta a ilicitude da conduta do médico que
retira o órgão. Neste caso, o que afastará a ilicitude da conduta é o permissivo legal, a lei
que autoriza o médico a realizar a doação e o transplante, caso que se enquadra no exercício
regular do direito (podendo, se se entender como fomento legal, excluir a própria tipicidade
da conduta, pela normatividade da conduta).

3. Ofendículos, ou ofensáculos

O termo ofendículo significa impedimento, barreira. Os ofendículos de que aqui se


trata são aqueles obstáculos postos previamente na defesa de um bem jurídico, em geral o
patrimônio, sendo exemplos corriqueiros as cercas eletrificadas, o arame farpado, os cacos
de vidro sobre o muro, etc (as chamadas defesas mecânicas predispostas).
A natureza jurídica destes elementos de divide em dois momentos, sendo uma no
momento da sua colocação, e outra no momento do seu acionamento: quando da instalação,
os ofensáculos são manifestações do exercício regular do direito; quando do acionamento,
ou seja, quando agem impedido meliante que tentava violar o bem jurídico – quando
eletrocutam o ladrão que pulava a cerca eletrificada, por exemplo –, são considerados como
manifestações da legítima defesa.
Veja que os ofendículos devem ser colocados em atenção às normas que os
autorizam, pois do contrário, se sua instalação for irregular, é claro que não serão
considerados exercício regular do direito, mas sim abuso do direito, e a lesão causada por
conta deste abuso, quando do acionamento, será considerada excesso na legítima defesa, e
por isso punível.
Como curiosidade, a instalação de ofendículos, grande parte deles (como a
eletrificação de cercas) é normatizada pela ABNT – Associação Brasileira de Normas
Técnicas –, e é dali que se extrai a regularidade do direito de exercer esta defesa.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Casos Concretos

Questão 1

O cumprimento do dever jurídico pode ser admitido como causa de justificação ou


de atipicidade comportamental?

Resposta à Questão 1

A resposta a esta questão depende da corrente que se adota; a posição legislativa, de


lege lata, demonstra que o CP adotou a tese de que é causa excludente da ilicitude, pois

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EMERJ – CP II Direito Penal II

assim a identificou na redação do diploma. De outra sorte, se se abordar o instituto pela


ótica da tipicidade conglobante, do finalismo, é excludente da própria tipicidade, por não
ser conduta antinormativa.

Questão 2

CAIO e JUCA discutiam em uma mesa de bar sobre a seleção brasileira. O


primeiro, provocando o último, dizia, em síntese, que o Brasil tinha dificuldades em se
classificar para a Copa do Mundo porque possuía na equipe três jogadores do Flamengo.
JUCA, inconformado com aquela provocação, partiu para a agressão. CAIO se defendeu,
batendo com uma garrafa de cerveja no rosto do seu agressor, o que causou neste lesão de
natureza grave. Responda:
a) CAIO atuou em legítima defesa? Analise os requisitos exigidos para o
reconhecimento da excludente.
b) O fato de CAIO ter provocado JUCA o impedia de atuar em legítima defesa?
c) Admitindo-se que JUCA estaria atuando em legítima defesa, a reação de CAIO
seria legítima?
d) Houve excesso na reação por parte de CAIO? Pode ocorrer o excesso que não
seja doloso, nem culposo?
e) Na hipótese de CAIO, ao arremessar a garrafa, acertar terceiro inocente,
afastaria a legítima defesa?
f) No caso supra, se reconhecida a excludente, ficaria CAIO isento no campo cível?
g) Admitido que JUCA autorizara a agressão, a conduta de CAIO seria típica? Em
caso de resposta negativa, seria ilícita? Quais os requisitos para o reconhecimento
do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão de ilicitude?
Qual a natureza jurídica do consentimento?

Resposta à Questão 2

a) A princípio, Caio atuou em legítima defesa, porque a sua provocação não foi uma
agressão, e assim a atitude de Juca foi a própria agressão injusta.

b) Não. O que o impediria seria a sua agressão, porque então a conduta de Juca
seria, esta sim amparada pela legítima defesa. Quem deu azo ao acontecimento não
pode alegar legítima defesa, a não ser pelo eventual excesso.
c) Se Juca estivesse em legítima defesa, é claro que a atuação de Caio seria reação a
uma agressão justa, e não seria amparada, então, pela legítima defesa.

d) O excesso não pode ser identificado nem refutado na hipótese, pois a agressão
repelida, bem como os meios de agressão usados por Juca poderiam ensejar até mais
do que foi feito por Caio, ou ser efetivamente excessiva a sua atuação. O excesso
fortuito é possível.

e) Para a maior doutrina, é caso de aberratio ictus, e portanto ainda há legítima


defesa, porque responde como se houvesse acertado o alvo – agressor injusto. Há,
contudo, quem entenda que haja aqui o estado de necessidade, pois o atingido foi

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EMERJ – CP II Direito Penal II

terceiro inocente, em caso em que era inexigível do autor da reação agir de forma
diversa.

f) A responsabilidade cível pelo dano causado a terceiro não fica afastada, pois é
dano sofrido que merece reparação, se a vítima não deu causa, a teor do artigo 65 do
CPP – caso em que terá direito regressivo contra Juca. Uma segunda corrente
entende que Caio não deverá responder por nada, vez que o ato não foi ilícito.

g) Neste caso, a conduta seria típica da mesma forma, porque a lesão causada foi de
natureza grave – deformidade permanente ao rosto –, e por isso o consentimento do
ofendido não tem relevância como excludente. Os requisitos são cinco: bem jurídico
disponível; vítima capaz; consentimento válido; consentimento contemporâneo; e
consentimento específico.
A natureza jurídica é flutuante: é causa de atipicidade, se o dissenso é
elementar do crime; e é causa supralegal de exclusão da ilicitude, se preenche os
cinco requisitos mencionados. Para Zaffaroni, sempre exclui a tipicidade material.

Questão 3

RIBAMAR, delegado de polícia, foi condenado por infração ao art. 121, §3º, c/c
art. 20, 1ª e 2ª partes e art. 23, III, e parágrafo único, todos do Código Penal, porque, no
dia em que ocorreu uma fuga de presos na 6ª DP, estava em trabalho de captura de
fugitivos, quando se deparou com GENIVAL caminhando em via pública em atitudes
suspeitas e, então, pensando ser este um dos fugitivos, procurou detê-lo, pedindo para que
parasse. Porém, quando RIBAMAR se identificou como policial, GENIVAL empreendeu
fuga, momento em que o agente atirou para cima e, não obtendo êxito, efetuou um disparo
na perna daquele, mais precisamente na face posterior da coxa direita, causando-lhe,
cerca de cinco dias após, sua morte em razão de gangrena gasosa causada pelo ferimento,
como pericialmente determinado. Indaga-se: agiu corretamente o magistrado?

Resposta à Questão 3

O delegado foi condenado pelo homicídio culposo, porque entendeu o magistrado


que matou a vítima em erro vencível na descriminante putativa, ou seja, que com um pouco
mais de esmero e atenção teria podido identificar que a vítima não era o bandido fugitivo.
Assim, a morte cometida em descriminante putativa com erro vencível é punível na
modalidade culposa, pois nesta ocorrência, a culpa imprópria determina que o agente
responde pelo resultado, a título de culpa, se esta modalidade existir – sendo irrelevante o
dolo inicial de lesionar (ou seria lesão corporal).
Veja que, se fosse a vítima realmente um dos fugitivos, o policial estaria em estrito
cumprimento do dever legal, pois é sua incumbência impedir a fuga, moderadamente, e
assim agiu, atirando na perna daquele que corria.
Por tudo enunciado, agiu corretamente o magistrado.
O STJ, no REsp 402.419, todavia, tratou deste caso, e entendeu que mesmo se a
vítima fosse um dos ladrões fugitivos, não haveria autorização legal para nele atirar, a fim
de conter sua fuga, sequer tendo o intento de apenas lesionar e fazê-lo parar, mas neste caso

Michell Nunes Midlej Maron 30


EMERJ – CP II Direito Penal II

seria lesão corporal seguida de morte, respondendo pelo excesso na atuação, sem considera-
se a descriminante putativa – denotando adesão do STJ à tese de que não é permitido jamais
ao policial atirar para conter a fuga, mas apenas para se defender (posição bastante
criticável). Veja:
“RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE.
DESCLASSIFICAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. ESTRITO CUMPRIMENTO
DO DEVER LEGAL. ARTIGO 284 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
NORMA DE EXCEÇÃO. PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO.
1. O artigo 284 do Código de Processo Penal é norma de exceção, enquanto
permissiva de emprego de força contra preso, que não admite, por força de sua
natureza, interpretação extensiva, somente se permitindo, à luz do direito vigente,
o emprego de força, no caso de resistência à prisão ou de tentativa de fuga do
preso, hipótese esta que em nada se identifica com aqueloutra de quem, sem haver
sido alcançado pela autoridade ou seu agente, põe-se a fugir.
2. Não há falar em estrito cumprimento do dever legal, precisamente porque a lei
proíbe à autoridade, aos seus agentes e a quem quer que seja desfechar tiros de
revólver ou pistola contra pessoas em fuga, mais ainda contra quem, devida ou
indevidamente, sequer havia sido preso efetivamente.
3. O resultado morte, transcendendo embora o animus laedendi do agente, era
plenamente previsível, pela natureza da arma, pelo local do corpo da vítima
alvejado e pelas circunstâncias do fato, havendo o recorrido, em boa verdade,
tangenciado o dolo eventual.
(...)”

De outro lado, se se entender que o erro fora invencível, dadas as condições do


momento, a descriminante putativa seria aplicável na sua forma mais intensa, ou seja,
isentando o delegado de pena.

Tema IV

A Culpabilidade I.1) Teorias sobre culpabilidade:a) Teoria psicológica da culpabilidade: definição e


elementos. Críticas;b) Teoria psicológico-normativa da culpabilidade: evolução dogmática, definição. A
introdução da consciência da ilicitude. O surgimento do juízo de censura. Elementos estruturais. Críticas. 2)
Teoria normativa pura da culpabilidade: evolução dogmática, definição e objeto. Elementos estruturais:a)
Os novos contornos da imputabilidade e da responsabilidade penal: o livre arbítrio em contraposição ao
determinismo;b) A mera possibilidade de conhecimento da ilicitude como juízo normativo. O conhecimento
na esfera paralela do leigo e o dever de informar-se;c) A exigibilidade de conduta conforme o direito;d)
Críticas à teoria.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Notas de Aula10

1. A culpabilidade

Conceitualmente, a culpabilidade pode assumir três aspectos: ora trata-se de um


princípio fundamental do Direito Penal; ora é vista como elemento integrante do conceito
de crime; e ora é tida por fundamento e limite da pena.
Como princípio, a culpabilidade implica na afirmativa de que não há crime sem
culpa, o termo “culpa” sendo lido em seu sentido mais amplo, o de responsabilização penal
por algum fato. Assim, para que alguém possa ser responsabilizado penalmente por alguma
coisa, é necessário que tenha culpa, lato sensu, sintagma que se traduz em dois elementos:
dolo e culpa em sentido estrito. A culpa, em sentido amplo, pode se apresentar então de
duas formas: dolo, sinônimo de intenção, de finalidade; ou culpa stricto sensu, sinônimo de
falta de cuidado.
Trata-se, portanto, da própria responsabilidade penal subjetiva, conceito inerente ao
de “culpa-habilidade”, culpabilidade. Nesta ótica, só se é hábil para ser culpado por alguma
coisa quando se teve intenção em produzir um resultado – o dolo –, ou quando se faltar com
o cuidado que era exigido – a culpa stricto sensu. Agindo sem dolo ou sem culpa, o fato
resultante não pode ser considerado crime, e o fato será considerado atípico.
Quando se lê a culpabilidade como elemento integrante do conceito de crime, é
sinônimo de reprovabilidade pessoal, terceira coluna do conceito do delito, ao lado da
tipicidade e da ilicitude. A idéia central em que se traduz a culpabilidade, neste aspecto,
então, é a de juízo de reprovação, e não de responsabilização. Adiante-se, esta é a principal
ótica em que será observada a culpabilidade, neste estudo.
Sendo vista como fundamento e limite da pena, terceiro significado possível para o
significante culpabilidade, o conceito é bem próximo ao de reprovabilidade pessoal do
agente, segunda e principal vertente. Isto porque se a culpabilidade é um elemento de
reprovação pessoal, pré-requisito para que haja crime, também deverá servir para graduar o
quanto de reprovação o agente do crime merece. Se há reprovação pessoal, deve haver
sanção, e por isso a culpabilidade é o fundamento da pena; e se há sanção, a intensidade
com que deve ser esta aplicada é medida justamente pelo grau de reprovação da conduta,
quando então a culpabilidade se apresenta como limite da pena.
Como dito, o foco do estudo será no segundo aspecto da culpabilidade, posto que
ainda é o momento de se perscrutar a estrutura da teoria do delito.

1.1. Teorias da culpabilidade

A história da teoria do delito mostra que a culpabilidade, que hoje é


inquestionavelmente elemento integrante da estrutura do crime, foi de fato o tema que mais
sofreu alterações, que foram tremendamente profundas.
As teorias dedicadas a delimitar o conceito, a estrutura e a forma com que a
culpabilidade se apresenta no direito penal variaram com as teorias gerais do próprio direito
penal, iniciando no causalismo, passando pelo finalismo e culminando no funcionalismo,
teoria que ainda está em construção. Vejamos cada uma das teses.

10
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares Rodrigues, em 8/9/2008.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

1.1.1. Teoria psicológica da culpabilidade

A primeira teoria formulada com a culpabilidade sendo elemento do crime foi a tese
psicológica da culpabilidade. Esta teoria definiu a culpabilidade como a responsabilidade
do autor pelo ato ilícito praticado, sendo o vínculo psicológico entre o autor e o resultado
causado. Vigente no causalismo, este conceito apresentava a culpabilidade como um
elemento estritamente psicológico, ligando a atuação do autor com um determinado
resultado. O crime, para o causalismo, era visto de forma muito objetiva, muito material,
sendo caracterizado tão-somente por aquilo que se causa com uma determinada conduta
natural.
Veja que esta postura causalista, extremamente simplista, acerca do que é conduta e
resultado, é ótica que não cogita de nenhuma valoração sobre aquilo que é causado no
mundo natural. E neste contexto bastante objetivado de crime, a culpabilidade assumia o
único aspecto de subjetividade admitido na estrutura. O aspecto objetivo, material, do
crime, nesta época, é o fato típico e a ilicitude, e a culpabilidade é o único lado subjetivo da
moeda, servindo como o único vínculo psicológico entre o autor e os fatos por si
praticados, objetivamente delimitados.
Em síntese, na teoria psicológica da culpabilidade, esta é vista como a parte
subjetiva do fato punível, enquanto a tipicidade e a ilicitude formam a parte objetiva,
material, do injusto.
Quando os autores desta teoria definem que o vínculo entre a pessoa e o injusto por
ela praticado é feito pela culpabilidade (nesta visão bem crua deste elemento), concluem
também que ela se divide em dois elementos, dois aspectos: o juízo de culpabilidade será
formado pela imputabilidade e pela presença de dolo ou culpa.
A imputabilidade se demonstra a capacidade de compreender o mundo, e, com esta
ciência, poder se autodeterminar na condução de seus atos. Define-se, então, como a
capacidade de culpabilidade, caracterizada como plena capacidade de entender os fatos e
de se autodeterminar de acordo com este entendimento. Diga-se, este conceito, aqui
surgido, ainda é o mesmo até hoje, mesmo com o abandono do causalismo.
Ao trabalhar este conceito, o causalismo demonstrava perceber, já, a necessidade da
vinculação pessoal de quem causa alguma coisa ao resultado causado, para merecer a
reprovação pelo resultado danoso. Por isso, agregaram o segundo aspecto mencionado: a
análise do dolo e da culpa.
Dolo e culpa, então, surgem como a relação psicológica do autor com o resultado
causado. Perceberam que resultado pode ter sido desejado, havendo dolo, ou não desejado,
mas causado por falta de cuidado – quando há então a culpa. De uma ou de outra forma,
reputavam necessário um ou outro elemento, somado à imputabilidade, para que se
desenhasse a culpabilidade do autor do injusto.
É importante perceber que a teoria psicológica da culpabilidade nunca a interpretou
como um elemento autônomo da estrutura do crime, e sim como uma medida da vinculação
do crime, já cometido pelo preenchimento da tipicidade e da ilicitude, ao agente autor de tal
fato. Bastava, para ser reprovável o crime, a existência do injusto, e a imputabilidade,
dolosa ou culposa, de seu cometimento ao autor.
Note que se aproxima bastante, esta concepção, da culpabilidade enquanto
princípio, que exige a vinculação subjetiva para a responsabilização penal, como se disse. É
daqui que surge a responsabilidade penal subjetiva.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Na verdade, estes dois aspectos – imputabilidade e culpa lato sensu – se


demonstraram como pré-requisitos para haver o vínculo dos fatos com o agente, ou seja,
pré-requisitos da própria existência da culpabilidade.
É claro que esta tese foi alvejada por críticas incontestáveis, pois hoje se sabe com
clareza que não pode ser suficiente para a imputação de alguém, para a reprovação do fato,
a sua capacidade em entender o mundo e ter tido dolo ou culpa na causação do dano. A
principal crítica, além da própria contestação à estruturação prevista para a culpabilidade
por esta teoria, foi exatamente em relação a tudo que esta teoria não previa em tal
estruturação – e esta foi ainda mais contundente.
A primeira crítica dos dogmáticos propositivos da época é a de que simplesmente
não se pode entender dolo e culpa como vínculos psicológicos do agente com resultado:
esta concepção é simplesmente errada. Isto porque a culpa tem dois aspectos bem traçados,
o da culpa inconsciente, em que o agente age com falta de cuidado em situação em que o
resultado danoso era previsível, mas jamais foi previsto pelo agente; e a culpa consciente,
que é de fato uma exceção, na qual há a previsibilidade do resultado, e o agente de fato o
prevê, mas acredita sem qualquer dúvida que é capaz de realizar a conduta sem que tal
resultado se produza.
Ocorre que a culpa inconsciente, culpa comum, é a regra geral, sendo a consciente
excepcionalíssima. Sendo assim, os críticos da teoria psicológica chamam atenção para a
incongruência em se tratar como elementos de um só gênero coisas tão diferentes como o
dolo e a culpa comum, pois como se pode entender que a culpa comum pode ser um
vínculo psicológico do agente com o resultado, se neste caso o agente sequer imaginou,
sequer atravessou sua psique, em momento algum, que tal resultado poderia acontecer? Ou
seja, como pode haver vínculo psicológico de alguém com resultado que jamais passou por
sua esfera psicológica?
Veja que no caso do dolo (e até certo ponto também na culpa consciente) esta
vinculação é bastante lógica e pertinente, pois o agente não só previu o resultado como o
buscou, efetivamente. É clara a ligação psicológica entre seus atos e o resultado. Na culpa
comum, jamais.
Esta é a crítica ao que se apresentou na teoria psicológica da culpabilidade. Vale a
síntese: dolo e culpa, por serem elementos absolutamente distintos, não poderiam ser
considerados espécies de uma mesma coisa – da culpabilidade –, sendo que a culpa que, via
de regra, é inconsciente, decorre de hipóteses em que não há qualquer vínculo psicológico
entre o autor e o resultado.
Se fosse seguida à risca esta teoria, trabalhando a culpabilidade como vínculo
psicológico para atribuir reprovabilidade ao autor, o que se passaria é o afastamento da
culpabilidade de quem não previu o resultado produzido, pois não há este vínculo, ou seja:
a culpa inconsciente não seria reprovável.
Outra crítica veio, como dito, para apontar as falhas desta teoria em função daquilo
que ela não previu. A teoria psicológica não previu que a culpabilidade de alguém não pode
ser calcada apenas no vínculo psíquico de quem atua, sendo necessária a análise da situação
concreta em que a pessoa atua, de forma haja reprovabilidade naquela conduta. Isto porque
pode ocorrer de alguém ter este vínculo psicológico demonstrado, ter dolo no resultado
causado, mas não merecer reprovação em função da peculiaridade das circunstâncias
concretas da realização do fato. Tais situações peculiares se apresentam na forma da

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP II Direito Penal II

inexigibilidade de conduta diversa da injusta, elemento que não foi previsto pela teoria
psicológica da culpabilidade.
Veja que pode haver caso em que o agente causa o resultado danoso, com dolo, sem
amparar-se em excludente de ilicitude, mas mesmo assim sua conduta não seja reprovável.
Bom exemplo é a coação moral irresistível que força agente a matar alguém: há a conduta
da causação da morte, e há o dolo em matar – ou seja, há o vínculo psicológico da estrutura
causalista –, mas não é reprovável esta conduta porque não se podia exigir que o agente
praticasse outra.
A falta de previsão destas situações concretas, que podem afastar o juízo de
reprovação mesmo quando o vínculo psicológico está presente, é uma das mais gritantes
falhas desta teoria. Percebe-se que o juízo de reprovação não deve ficar vinculado apenas
aos aspectos psicológicos, pois há hipóteses em que, mesmo o dolo estando perfeito, a
culpabilidade deve ser afastada em face da análise das circunstâncias concretas da prática
do ato.
Com estas críticas, teve impulso nova teoria sobre a culpabilidade, a chamada
teoria psicológico-normativa da culpabilidade.

1.1.2. Teoria psicológico-normativa da culpabilidade

Para esta teoria, o juízo de reprovação passa ainda pelo aspecto psicológico, porque
esta teoria ainda é ligada à estrutura causalista, que vê dolo e culpa como aspectos da
reprovação pelo que se causou. Mas esta tese agrega ao conceito de reprovação aspectos
objetivos, que como visto, estavam ausentes na teoria psicológica da culpabilidade.
Por isso, começam a enxergar dolo e culpa como elementos que podem ser apurados
na culpabilidade, mas não necessariamente como vínculo psicológico puro entre conduta e
resultado. Podem ser elementos para reprovar a conduta, mais gravemente, quando há dolo,
ou menos severamente, quando há apenas falta de cuidado, culpa.
A principal nota desta teoria, porém, é mesmo a agregação de elementos objetivos à
culpabilidade, a qual passa a ter analisados elementos psicológicos e elementos normativos
– e daí vem seu nome.
Em suma, para esta teoria, o juízo de culpabilidade passa pela análise da
imputabilidade (conceito que perdura até hoje); do dolo e da culpa, mas como elementos
independentes na reprovação, e não os únicos; e agrega o aspecto objetivo, normativo, para
se reprovar alguém, qual seja, a exigibilidade de conduta diversa no caso concreto.
A adução deste elemento objetivo é de fato o maior avanço, pois é certo que em
casos como o do exemplo dado, em que o agente age moralmente coagido de forma
irresistível, não há como se reprovar sua conduta, mesmo que psicologicamente presente o
dolo. Se não é possível exigir conduta diferente da praticada, não há como se reprovar o
fato.
O conceito deste elemento, da exigibilidade de conduta diversa como requisito da
culpabilidade, pode ser atribuído a Frank, em 1907, que foi o primeiro a entender que as
situações concretas, sendo diferentes entre si, não podem receber tratamento genérico pelo
prisma da culpabilidade: se a situação não é normal, não é igual às demais, a conduta não
pode ser igualmente reprovada. Por isso, seu estudo se baseou na proposição da teoria da
normalidade das circunstâncias concretas, ou seja, se situação concreta é idêntica às
normais, a conduta exigida na normalidade também se impõe; se a circunstância é

Michell Nunes Midlej Maron 35


EMERJ – CP II Direito Penal II

diferente, é anormal, não se pode exigir a mesma conduta que é imposta na normalidade. E
assim surgiu a fórmula da inexigibilidade de conduta diversa.
Resumindo: com base no conceito de normalidade das circunstâncias concretas,
Frank previu a inexigibilidade de conduta diversa como causa de exculpação para se afastar
o juízo de reprovação da culpabilidade.
Ao separar dolo e culpa como elementos independentes na culpabilidade, esta teoria
deu ainda outro passo. Percebeu que para se reprovar a finalidade da conduta, ou a falta de
cuidado, é necessário que o agente tenha também a exata noção de que está agindo errado,
que está contrariando o que o direito lhe comanda. Assim, poder entender o mundo (ser
imputável), poder agir de forma diferente da injusta (exigibilidade de conduta diversa), ter
finalidade dirigida ao resultado, ou faltar com o cuidado necessário a impedir que ocorra
(dolo ou culpa), são todos elementos que devem estar presentes para que haja
culpabilidade. Mas além deles, é necessário também que o agente saiba que tal resultado é
contrário ao ordenamento, porque se o agente realmente acredita que o resultado que
causou não é ilícito, ele não pode ser reprovado. E aí surgiu outro elemento no juízo de
reprovação, especificamente aderido ao juízo sobre a finalidade da conduta, ao dolo: o
conhecimento da ilicitude.
Fica claro, então, que nesta teoria psicológico-normativa, o dolo é aquele que os
romanos chamavam de dolus malus, “dolo mau”, dolo valorativo, atribuído a quem sabe
que faz algo proibido. A consciência da ilicitude, neste momento, adere ao dolo da
culpabilidade como requisito imperativo, portanto (não tendo relação com a culpa, que não
tem aderida a si este conhecimento, pois para incidir em quebra do dever de cuidado não se
cogita da ilicitude da falta de cuidado).
Em suma, ao analisar o dolo como elemento de reprovação, esta teoria exige que
junto a este dolo esteja presente a consciência da ilicitude do resultado, trabalhando assim
com o antigo conceito de dolus malus, ou seja, dolo valorativo, que pressupõe o efetivo
conhecimento do autor do caráter proibido daquilo que faz. Não sabendo da proibição de
sua conduta pelo direito penal, não poderia ser reprovado.
É de se perceber que esta culpabilidade da teoria psicológico-normativa é a que
mais elementos continha em sua estrutura, desde os primórdios da teoria do delito. Para esta
teoria, surgia na culpabilidade a análise da imputabilidade, do dolo (com conhecimento da
ilicitude) e da culpa, e da exigibilidade de conduta diversa. Mas esta teoria sofreu
lapidação, depuração pelos estudiosos, que culminou na formulação da teoria normativa
pura da culpabilidade.

1.1.3. Teoria normativa pura da culpabilidade

O finalismo, de Welzel, promoveu enorme reviravolta nos conceitos da teoria do


delito, especialmente na culpabilidade. O grande mérito do finalismo foi perceber que toda
conduta humana, mais do que meramente voluntária, presupoe sempre uma finalidade
qualquer. O que caracteriza a ação do ser humano é aquilo que ele quer, e não aquilo que
ele causa, como crera o finalismo. Assim, a conduta de atirar em alguém e causar-lhe a
morte pode ser lesão corporal seguida de morte, porque esta era a finalidade do atirador, e
não o homicídio – situação que seria impensável na leitura causalista deste fato.

Michell Nunes Midlej Maron 36


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Neste diapasão, se a finalidade está ínsita à conduta, o dolo não pode ser analisado
em momento diverso desta: a análise do dolo obrigatoriamente deve ser realizada em
conjunto com a análise da conduta do agente. E a conduta é analisada dentro do tipo penal,
e não na culpabilidade. Por isso, se o dolo é elemento da conduta, deve ser atraída a sua
análise para junto desta, sendo retirada da culpabilidade: se o dolo, a finalidade, é analisada
na conduta, não pode ser analisada na culpabilidade.
E esta foi simplesmente a maior alteração promovida na teoria do delito, ou melhor,
no direito penal, em todos os tempos. Ao perceber que a conduta humana se delimita de
acordo com a finalidade, a intenção, o dolo do autor, Welzel percebe que o dolo está
atrelado à conduta, sendo que, se a conduta está prevista no tipo, o dolo passa a fazer parte
do próprio tipo penal, como caracterizador da conduta e do crime, deixando de ser um
elemento analisado na culpabilidade, no juízo de reprovação. O dolo não identifica a
reprovabilidade: identifica qual foi a conduta praticada.
Com isso, a culpabilidade perdeu o elemento realmente psicológico, passando a ser
composta apenas pelos elementos normativos, e por isso a teoria finalista da culpabilidade é
chamada teoria normativa pura da culpabilidade.
Assim, são mantidos na culpabilidade todos os elementos dantes presentes, com
apenas duas alterações; o dolo deixa de ser presente, e o conhecimento da ilicitude, que era
exigido efetivamente do agente, agora passa a ser apenas potencial, ou seja, basta que seja
possível que o agente saiba do caráter proibido da conduta para que seja reprovável (se
efetivamente sabe da ilicitude, sua reprovabilidade é maior do que se não sabe mais podia
saber).
Destarte, a teoria pura, finalista, que é hoje adotada, traz na culpabilidade a
imputabilidade, o potencial conhecimento da ilicitude, e a exigibilidade de conduta diversa.
Ao transferir o dolo de dentro da culpabilidade para dentro da tipicidade, o finalismo
passou a adotar esta teoria normativa pura da culpabilidade, que deixou de possuir o
elemento psicológico (dolo), passando a ser formada apenas pelos três elementos
normativos mencionados.
É importante consignar que a culpa, stricto sensu, também passou a ser analisada na
conduta, ou seja, não restou sua análise na culpabilidade. Porém, não se trata de elemento
subjetivo da conduta: o juízo que é feito na verificação da quebra de cuidado é juízo de
previsibilidade, valoração que é absolutamente objetiva, calcada em eventos empíricos. A
justificativa para Welzel trazer a análise da culpa para a conduta é porque até na conduta
culposa há dolo, há intenção: toda conduta humana tem finalidade, e a finalidade da
conduta culposa é uma tal, sendo o resultado proveniente uma conseqüência nefasta não
prevista da busca da finalidade querida pelo agente. Um exemplo clareia a situação: ao
limpar a arma de fogo, esta conduta tem finalidade, ou seja, há dolo de limpar a arma, que
não é uma conduta típica. Todavia, se esta conduta, por falta de cuidado, acabar matando
alguém com um disparo acidental, mas que era totalmente previsível11 – pois toda arma de
fogo pode disparar –, o agente responderá pelo resultado acontecido. Mesmo a intenção

11
A previsibilidade é cada dia mais encarada como critério objetivo, como indica o próprio princípio da
confiança: se é esperado de todos que ajam de determinada forma, a valoração objetiva da conduta, diante
daquela que é considerada standard, é que indica se há ou não quebra do dever de cuidado. Passada a análise
objetiva da quebra de cuidado, que se dá na conduta, análise que é comparativa com a conduta esperada do
homem médio, pode até ser excluída a culpabilidade na análise da culpabilidade como elemento estrutural,
quando se verifica que, naquele caso concreto, a conduta standard era excepcionalmente inexigível.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

sendo atípica, a conduta desidiosa gerou resultado típico, se a norma prevê a modalidade
culposa à situação previsível.
O dolo que foi destacado para a conduta é valorativamente neutro, sendo o chamado
dolo natural. É a finalidade física, sem valoração da conduta, sem cogitar do porquê de tal
conduta. O motivo da conduta será avaliado em outro momento, mas não na análise da
finalidade da conduta: o dolo natural é estrito, é somente a identificação, na conduta, da
intenção em fazer o que está descrito no tipo penal.
Veja que, como dito, o conhecimento da ilicitude que restou na análise da
culpabilidade era analisado em conjunto com o dolo valorativo de então. Todavia, ao restar
solo na culpabilidade, passou a bastar a potencialidade da ciência da ilicitude para haver
reprovabilidade, porque ali se faz a valoração da reprovabilidade da conduta, e sem o dolo
valorativo, o conhecimento seria meramente objetivo, descartado o desleixo daquele que,
podendo saber que estava agindo errado, não se interessou por informar-se. Se no juízo
profano, comum, leigo, não se podia cogitar que aquele injusto era uma conduta ilícita, não
será reprovável; se há qualquer indício de que poderia ser conhecida a ilicitude do fato, já
há reprovabilidade.
Em síntese: ao se alterar a estrutura da culpabilidade, e deixar a consciência da
ilicitude, separada do dolo, como elemento da culpabilidade, percebe-se que o juízo de
reprovação pode ocorrer em duas hipóteses: conhecimento real da ilicitude; e potencial
para conhecer tal ilicitude, ou seja, ser possível na esfera comum, profana, usual, saber, se
informar, sobre o caráter ilícito daquilo que se faz. É claro que a medida da culpabilidade
daquele que tinha apenas o potencial conhecimento da ilicitude é menor do que o daquele
que efetivamente sabia de tal ilicitude.

Casos Concretos

Questão 1

Tendo em vista a evolução das teorias do delito a partir do séc. XIX e o tratamento
dispensado à doutrina da culpabilidade e seus elementos estruturais, esclareça:
a) em que consistem as concepções bipartidas e tripartidas do delito;
b) quais foram as principais teorias sobre a culpabilidade formuladas a partir da
adoção do conceito estratificado de delito;

Michell Nunes Midlej Maron 38


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c) quais foram seus elementos estruturais em cada uma delas.

Resposta à Questão 1

a) A concepção bipartida, da doutrina causalista, pretende que a culpabilidade se


torne apenas condição para punibilidade do delito, o qual se aperfeiçoaria tão-
somente, e já, na existência de fato típico e ilícito – e por isso é bipartida. Já a
tripartida, concepção finalista e mais correta, entende que não há crime sem
culpabilidade, sendo parte integrante do delito a tipicidade, a ilicitude e a
culpabilidade.

b) São três: a psicológica, a psicológico-normativa, e a normativa pura.


Modernamente, há ainda a teoria complexa da culpabilidade.

c) Na psicológica, havia apenas imputabilidade e dolo ou culpa na culpabilidade;


na psicológico-normativa havia, imputabilidade, dolo ou culpa, conhecimento
da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa; na normativa pura, há
imputabilidade, potencial conhecimento da ilicitude, exigibilidade de conduta
diversa, sem dolo ou culpa. E na teoria complexa, retorna a análise do dolo na
culpabilidade.

Questão 2

DANIELLE é uma pobre mãe solteira de 22 anos, soropositiva, com três filhos
pequenos para sustentar, sendo o menor deles - CLEISSON, um bebê de 07 meses -
soropositivo também. Certo dia, DANIELLE entrou na loja SOM LEGAL com uma bolsa
grande, na qual colocou alguns CDs que visava furtar, sem saber, todavia, que estava
sendo observada pelos seguranças do estabelecimento, pelos quais foi detida, ao tentar
sair com os CDs. Houve o oferecimento de denúncia e a condenação de DANIELLE pela
prática do crime previsto no artigo 155, § 2º, n/f do artigo 14, II, todos do Código Penal.
Em razões de apelação, a defesa sustentou a inexigibilidade de conduta diversa, em razão
da doença da ré e de seu bebê, já que ambos necessitam de cuidados médicos que seriam
viabilizados exatamente com os recursos materiais obtidos com a venda dos objetos que
tentara furtar. Assiste razão à defesa? Por quê?

Resposta à Questão 2

Não. A conduta diversa era exigível. Poderia, a ré, ter-se valido de outros meios,
lícitos, na obtenção de seu sustento, sem ser o furto a única e última saída para que seu
sustento fosse obtido. Todavia, a tese defensiva deveria ter apelado à atipicidade material,
pois decerto o fato seria atípico por insignificância penal da lesão, sendo aplicável a tese da
bagatela.

Michell Nunes Midlej Maron 39


EMERJ – CP II Direito Penal II

Também caberia aqui, pelas condições da vítima, invocar a teoria da co-


culpabilidade do Estado, apesar de não ser esta tese aplicada com freqüência em nossa
jurisprudência.
Há, na jurisprudência, duas linhas de resposta, uma negando a responsabilidade da
ré, e outra imputando-lhe. Veja:

“TJ/RJ. Processo : 2002.050.02801. FURTO. SUPERMERCADO. CRIME


IMPOSSIVEL. INOCORRENCIA. PRINCIPIO DA INSIGNIFICANCIA OU DA
BAGATELA. INAPLICABILIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA
DIVERSA. INEXISTENCIA. SENTENCA CONFIRMADA
APELAÇÃO. FURTO PRIVILEGIADO. SUBTRAÇÃO DE OBJETOS EM
SUPERMERCADO. CRIME IMPOSSÍVEL. INOCORRÊNCIA PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. EXCLUSÃO DA
CULPABILIDADE. INCONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DO FATO.
INEXIGIVBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. INOCORRÊNCIA. A
circunstância de os supermercados e lojas de departamentos manterem serviço de
vigilância permanente não torna impossível a tentativa de furto de objetos
colocados à venda, na medida em que a ineficácia do meio, no caso, é apenas
relativa até porque nada garante possa haver falha da sistema de segurança com a
conseqüente consumação do delito. Mera especulação doutrinária, sem nenhum
reflexo no direito positivo, é inacolhível, como causa de exclusão da tipicidade, o
princípio da insignificância, não podendo, no caso do furto simples, o pequeno
valor da coisa furtada permitir se vá além do reconhecimento do privilégio,
definido no § 2º do art 155 do CP. A par da escassa comprovação de estarem o
apelante, sua mulher e seu filho acometidos de doença grave, tal circunstância,
ainda que verdadeira, não é bastante ao reconhecimento da exclusão de sua
culpabilidade, vez que não lhe obstou o potencial conhecimento da Ilicitude de sua
conduta nem a tomou inexigível, dado que o Estado lhe assegura outras formas de
superar a necessidade, não sendo razoável exigir-se o sacrifício do património da
lesada. Sentença mantida. Recurso desprovido.”

“HC 84412 / SP - SÃO PAULO. HABEAS CORPUS.


E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS
VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE
POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE
DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO
MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM
DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA"
NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO
ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO
DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE
DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio
da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da
fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o
sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na
perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera
necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos
vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma
periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se,
em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter
subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos
por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA

Michell Nunes Midlej Maron 40


EMERJ – CP II Direito Penal II

INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON


CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima
circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo
somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das
pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais,
notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham
a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito
penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por
não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente,
por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à
integridade da própria ordem social.”

Tema V

A Culpabilidade II. 1) Noções gerais: culpabilidade como requisito fundamental do crime. 2) O conceito
complexo de culpabilidade:a) Evolução dogmática, definição e objeto;b) Os elementos estruturais: a
imputabilidade, a consciência da ilicitude, a dupla posição do dolo e da culpa. As formas de culpabilidade,
os elementos especiais da culpabilidade, as causas de exculpação; c) Críticas. 3) A culpabilidade

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP II Direito Penal II

fundamentada na teoria do fim da pena. Críticas. Tendências atuais. 4) A denominada "co-culpabilidade":


definição e as controvérsias sobre a aplicabilidade ao Código Penal Brasileiro.

Notas de Aula12

1. A culpabilidade como requisito do crime

Dada a evolução dogmática perpassada pela culpabilidade, em suas várias teorias,


especialmente quando o dolo passou a fazer parte imanente à conduta, sendo analisado no
tipo penal, surgiu profunda controvérsia acerca da posição que a culpabilidade ocuparia no
conceito de crime, dividindo a doutrina pátria em duas grandes vertentes, basicamente a
que entendeu a culpabilidade como elemento integrante do conceito estrutural do crime; e
a que pretendia que a culpabilidade fosse vista como pressuposto de aplicação de pena, e
não elemento do crime.
Os autores, especialmente os que vinham da escola causalista, entenderam que a
presença do dolo na conduta faria com que o fato típico doloso e injusto já configurasse o
crime. Analisar se o agente era imputável, se tinha consciência da ilicitude e se poderia ter
agido de forma diversa da injusta – ou seja, avaliar a sua culpabilidade – seria apenas
avaliar requisitos para a reprovabilidade e conseqüente aplicação de pena, ao crime que já
estava configurado. Ausente a culpabilidade, haveria crime, mas não haveria pena: trata-se
da concepção bipartida do delito. No Brasil, Damásio capitaneou esta corrente, seguido por
Mirabete, Delmanto e Capez.
A outra vertente da doutrina, que de início era minoritária no país, defendeu que o
crime só se configuraria por completo em estando presente a culpabilidade, ou seja, é um
dos elementos necessários ao conceito de crime, ao lado da tipicidade e da ilicitude.
Estabeleceu, portanto, a concepção tripartida do delito. Esta prevalece praticamente
unânime hoje. Vejamos, então, os fundamentos desta divergência, da culpabilidade como
elemento do crime versus a culpabilidade como pressuposto da pena.
Em síntese, a partir da estrutura finalista, e da teoria normativa pura da
culpabilidade, surgiu esta divergência doutrinária a respeito da natureza jurídica da
culpabilidade, bem como a respeito da concepção tripartida ou bipartida do conceito de
crime, havendo claramente dois posicionamentos: o que trata a culpabilidade como terceiro
elemento integrante do conceito de crime (concepção tripartida), e o que a entende como
pressuposto de aplicação da pena (concepção bipartida).
Começando a análise pela concepção bipartida, esta se fundamentou, de início, pela
transferência da análise do dolo para a tipicidade, para a conduta. Se a conduta já
contivesse o dolo, ela seria, desde já, responsável por caracterizar o fato típico como crime,
se a análise excludente da ilicitude fosse negativa, ou seja, se não houvesse excludente
qualquer.
Sendo assim, o fato típico, presumidamente ilícito, se não fosse presente uma
excludente, já seria crime. Restava, então, à culpabilidade, o papel de critério de aplicação
ou não da pena, em juízo objetivo. Damásio de Jesus, que não foi o pioneiro, mas decerto o
maior defensor desta corrente, hoje é isolado, nestes termos.
Destarte, a doutrina quase unânime adota a concepção tripartida. Para chegar ao
raciocínio desta corrente, é interessante trazer os argumentos da concepção bipartida, a fim
de refutá-los um a um.
12
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares Rodrigues, em 8/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP II Direito Penal II

A primeira crítica à doutrina de Damásio incide sobre a própria concepção de


culpabilidade que adota, ou seja, a de pressuposto de aplicação da pena. Veja: a corrente
majoritária diz que é claro que a culpabilidade é um pressuposto de aplicação da pena, pois
sem ela não se pode punir o agente, de modo algum; mas também é claro que os demais
elementos do crime, todos eles – ilicitude e tipicidade –, são também pressupostos de
aplicação da pena, pois sem um ou sem outro não se pode punir o agente. Portanto, este
argumento da tese bipartida não se sustenta, pois não há como se diferenciar a
culpabilidade dos demais elementos do crime neste aspecto, se são idênticos.
Em síntese: não só a culpabilidade, mas também a tipicidade e a ilicitude, são
pressupostos de aplicação da pena, não havendo porque diferenciar a culpabilidade dos
demais elementos, no que tange a possibilidade de se aplicar a sanção penal.
O segundo argumento a ser refutado é o de que a terminologia do legislador penal
brasileiro diferencia as hipóteses de ausência de culpabilidade das hipóteses de exclusão do
crime, pois quando quer se referir à falta da culpabilidade se utiliza do termo “isenção de
pena”, e não “exclusão do crime”, como o faz quando elide a tipicidade ou a ilicitude. Veja,
por exemplo, o artigo 26 do CP, que trata da exclusão da culpabilidade por
inimputabilidade, comparado ao artigo 23, que trata da exclusão da ilicitude:

“Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento


mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento.” (grifo nosso)

“Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:


(...)” (grifo nosso)

Na lógica desta corrente, então, fica claro que o legislador pretendeu que a ilicitude,
por exemplo, é necessária para que haja crime, mas a culpabilidade só é necessária para que
haja pena.
Ocorre que olvidou-se, esta corrente, de um detalhe de grande importância: o
legislador brasileiro é altamente impreciso no uso da terminologia. Há claros exemplos no
próprio CP que esclarecem esta atecnia do legislador. A primeira que pode ser apontada está
no artigo 20, § 1º, que trata do erro de tipo permissivo:

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
(...)”

Veja que no erro de tipo invencível está afastado o dolo e a culpa, e o fato é atípico;
no evitável, afasta-se o dolo, mas pune-se a título de culpa. Ocorre que ao se tratar de
causas que afastam dolo ou culpa, o instituto trata da própria tipicidade, elemento
inconteste do crime. Mas ao invés de dizer que não há crime, veja que o legislador diz, no §
1º, que está o agente isento de pena, o que demonstra clara imprecisão no uso do termo,
pois se fosse levada a redação do texto à literalidade, como defende Damásio, afastamento
do dolo seria também um mero pressuposto de aplicação da pena, e a própria tipicidade
deixaria de ser elemento do crime.

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP II Direito Penal II

É fato, então, que o legislador simplesmente não se prendeu a estas nuances


terminológica. Um outro exemplo claro é o do artigo 128 do CP, quando fala que não se
pune o aborto necessário, caso que é claramente uma hipótese de estado de necessidade a
excluir a ilicitude, e portanto deveria ter redigido “não há crime”. Veja:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:


I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
(...)”

Em síntese, no que tange a terminologia, não há como se afirmar, como pretende a


corrente minoritária, que quando o legislador se refere a exclusão de culpabilidade utiliza
os termos “não se pune”, ou “é isento de pena”, e quando se refere a exclusão da ilicitude
ou da própria tipicidade afirma que “não há crime”, porque há uma evidente falta de técnica
e precisão na legislação pátria, já que em hipóteses de ausência da ilicitude ou da
tipicidade, o legislador usou termos como “não há pena”, ou “não se pune”, quando deveria
ter usado “não há crime”.
Mas há ainda um último argumento de que se vale esta corrente, e que precisa ser
contradito. Este argumento se vale do artigo 180, § 4º, do CP, que tipifica a receptação:

“Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio


ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-
fé, a adquira, receba ou oculte:
(...)
§ 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do
crime de que proveio a coisa.
(...)”

O que esta corrente defende é que neste § 4º o legislador determinou que mesmo se
o autor do crime que produziu a coisa receptada for isento de pena, ainda se configura a
receptação, significando, em última análise, que um inimputável pode cometer crime, em
sentido estrito. Nesta linha de raciocínio, se a inimputabilidade não é suficiente para excluir
o crime, como faz entender este dispositivo, é porque o próprio elemento que esta integra –
a culpabilidade – não é suficiente para excluir o crime, mas tão-somente a pena.
É de se atentar que a receptação é um crime que só existe pela impossibilidade de
punição da participação posterior ao cometimento do crime, porque, em fundamento, é isto
que é a receptação: participação posterior no crime do agente imediato. A fim de não
permitir esta conduta, foi necessária a criação de tipo penal específico, deste crime
acessório ao primeiro, que d’outrarte seria post factum impunível.
E veja que a participação, no Brasil, vige sob a égide da teoria da acessoriedade
limitada, ou seja, a participação já é punível se o fato principal seja típico e ilícito, sendo
irrelevante a culpabilidade do agente principal para a responsabilização do partícipe, pois
que a culpabilidade é um juízo pessoal de reprovabilidade. Em resumo, para que haja
participação punível, basta que o fato principal seja típico e ilícito. E é por isso que na
receptação se configura o crime mesmo que o agente do crime original seja inimputável,
por ser uma participação, em fundamento.
Por isso, este argumento não tem sustentação. Em suma, ao alegar que no crime de
receptação o agente pode responder por receptar produto de crime cometido por
inimputável, está utilizando um modelo de culpabilidade causalista (psicológico-normativa)

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP II Direito Penal II

para justificar um entendimento para justificar a culpabilidade finalista (normativa pura): o


artigo 180 do CP foi criado quando o modelo era o causalista, e por isso a sua estrutura. E
isto sem cogitar que a receptação nada mais é do que um crime autônomo criado para
possibilitar a punição de uma participação futura em um fato alheio, devendo
analogicamente seguir as regras da teoria da acessoriedade limitada, que predomina na
análise da participação, e que exige apenas que a colaboração se dê em fato típico e ilícito,
sendo irrelevante a culpabilidade do autor principal.
Refutados todos os argumentos, resta claro o porquê da corrente majoritária ser a de
que a culpabilidade é, sim, elemento integrante da estrutura do crime. Seguindo a linha de
Maurach, jurista alemão, o crime é o injusto típico reprovável, ou seja, é o fato típico,
ilícito e culpável.

2. Teoria complexa da culpabilidade

Quando se instalou o finalismo, ou seja, quando se trouxe o dolo para a conduta, a


assertiva de Welzel de que o dolo não poderia mais ser analisado na culpabilidade foi aceita
praticamente sem contestação. Todavia, na Alemanha, surgiu a seguinte cogitação: por que
o dolo não pode ser analisado nos dois momentos? Afinal, Welzel não explica, em sua tese,
o porquê desta impossibilidade, limitando-se a asseverar como dogma que a análise do dolo
na conduta impede sua análise na culpabilidade.
Diante desta conjectura, a resistência a esta assertiva passou a entender que nada
impedia que o dolo fosse analisado duas vezes, sem configurar bis in idem: na conduta, a
intenção natural, como fundamentadora natural da conduta; na culpabilidade, a intenção
como graduação da pena, como fundamentadora da pena.
Esta tese soluciona com absoluta precisão a maioria dos problemas que se
encontram na legitima defesa putativa. Veja: ao julgar agressão iminente que, de fato, não
existia, o agente incide em erro de tipo permissivo, que, segundo o artigo 20, § 1º, do CP,
exclui o crime se o erro é inevitável – pois exclui o dolo –, mas mantém a
responsabilização a título de culpa, se o erro era evitável e há modalidade culposa no
crime. Vale rever o dispositivo:

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
(...)”

Mas veja o seguinte: quando o agente, em legítima defesa putativa, atira, por
exemplo, naquele que supunha agressor, o que se dá, na verdade, é o dolo de matar, dolo
natural de realizar a conduta descrita no tipo – e, lembre-se, não há valoração neste dolo,
sendo irrelevante neste ponto da análise o motivo do tiro. Ocorre que a lei, então, determina
que se puna a título de culpa uma conduta que, em verdade, foi dolosa. Como sanar esta
aparente discrepância?
O finalismo não apresenta solução, de fato. Para o finalismo clássico, a situação
jamais permitiria punição por culpa, e sim uma excludente da ilicitude, se reconhecida a
invencibilidade, ou a diminuição da pena, se o agente podia ter vencido o erro – mas jamais
transformar a conduta que é dolosa em culposa.

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP II Direito Penal II

O direito penal alemão entende que, na verdade, o que se passa é o seguinte: há, na
análise da tipicidade, a verificação inconteste do dolo natural, apenas, e, sendo assim, no
exemplo dado, a conduta foi dolosa. Adiante, porém, quando da análise da culpabilidade, o
dolo será novamente aferido, e por não saber que o que estava praticando era ilícito – vez
que achava que praticava-o em legítima defesa, e portanto justificado –, o agente teve dolo
de praticar conduta lícita. Ora, somente assim se poderá, se verificando que o
conhecimento da ilicitude lhe era possível, e por isso o erro era vencível, entender que o
crime que foi dolosamente praticado, na conduta, teve culpabilidade culposa: o dolo
analisado na culpabilidade foi de realizar conduta lícita, mas por descuido do agente em
verificar a real licitude do seu ato (perscrutando melhor a ação daquele que julgava estar na
iminência de agredi-lo, mas que de fato não estava), acabou realizando, culposamente,
conduta ilícita – devendo responder por esta culpa.
Esta é a teoria complexa da culpabilidade, que faz uma segunda análise do dolo, no
escrutínio da culpabilidade, e por isso se entende, nesta tese, que o dolo tem uma dupla
função: a de identificar a conduta finalisticamente dirigida do autor, o dolo natural em
realizar conduta formalmente típica; e a de fundamentar a culpabilidade do autor, dolo
este que deve ser sempre correspondente à afirmativa de que o agente teve intenção em
realizar conduta típica e ilícita, ou seja, dolo de realizar conduta injusta.
E, se neste segundo momento, o dolo for afastado, mas o cuidado em verificar as
condições corretas do evento estiver ausente, a conduta será culposa, pela chamada culpa
imprópria13, pelo erro vencível quanto à licitude de sua conduta, quanto à descriminante
putativa.
Em síntese: a teoria complexa da culpabilidade, de Wessels, entende que o dolo
possui uma dupla função: primeiramente, no fato típico, funciona como caracterizador da
conduta; posteriormente, na culpabilidade, tem a função de fundamentar a reprovação a
título de dolo ou a título de culpa, explicando, por exemplo, o instituto do erro de tipo
permissivo, constante do artigo 20, § 1º, do nosso CP, e o próprio conceito de culpa
imprópria (ocorrido na legítima defesa putativa).

3. Teoria da co-culpabilidade do Estado

O Estado, detentor do jus puniendi, tem este direito de punir, mas também tem
deveres a cumprir, e as obrigações do Estado, quando não são por ele adimplidas, importam
em que arque com as conseqüências. A idéia desta teoria, então, é que o Estado assuma a
parte que, de fato, é sua responsabilidade pela criminalidade.
Veja: quando o Estado é omisso quanto a suas obrigações, e não dá ao cidadão os
direitos que constitucionalmente deve dar, é imperativo que divida e assuma parcela de
culpabilidade com o criminoso. Com base neste “rateio da culpabilidade”, deveria diminuir
a reprovabilidade do indivíduo, ou até mesmo excluí-la.

13
Veja que os autores entendem que a culpa imprópria seria exceção, em que se admite a tentativa de crime
culposo; ocorre que, como se pôde perceber, não se trata mesmo de um crime culposo, mas sim de um crime
doloso que será tratado como culposo. Por isso, não é de fato uma exceção, pois no crime culposo,
propriamente dito, não cabe mesmo a tentativa.

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP II Direito Penal II

Assim, se um agente que jamais teve amparo estatal, desde seu nascimento até o
cometimento de um furto, por exemplo, por absoluta falta de acesso a tudo aquilo que
constitucionalmente deveria ter-lhe sido entregue pelo Estado, há que se imputar ao próprio
Estado parcela da responsabilidade por aquele furto. Esta teoria tem potencial aplicação
especialmente nos crimes que estejam relacionados à miserabilidade do indivíduo que oos
comete.
Em síntese, segundo esta teoria, o Estado deverá assumir uma parcela de culpa ao
omitir os seus deveres, e não dar condições iguais ao cidadão, que lhe possibilitem uma
vida digna. Por isso, deve assumir uma parcela de culpa pela criminalidade, reduzindo a
pena, ou até mesmo absolvendo o acusado.

4. Teoria da culpabilidade funcionalista

Roxin e Jakobs trazem, no modelo penal funcionalista, uma nova concepção de


culpabilidade, bastante similar à de Welzel, que se trata da culpabilidade voltada para os
fins da pena, especialmente no que diz respeito à sua função preventiva, geral e especial.
Para eles, como o direito penal deve ter uma função, só é de fato culpável,
merecedor de pena, aquela situação em que a pena efetivamente assume esta faceta
preventiva. Se o juízo de reprovação não puder repercutir como meio de evitar o futuro
cometimento de outros crimes, como medida exemplar inibitória de novas práticas, não é
culpável.
Partindo do modelo finalista, e da teoria normativa pura, o juízo de reprovação da
culpabilidade deve atender aos fins da pena, ou seja, a prevenção geral e a prevenção
especial (exemplar, para a sociedade, e dirigida à não reiteração criminosa pelo apenado),
sendo que, na ausência destes objetivos, a sanção penal não se justifica, afastando-se a
culpabilidade e o juízo de reprovação.

Casos Concretos

Questão 1

CARLOS nasceu e foi criado no Morro da Cruz, numa localidade comandada pelo
tráfico ilícito de entorpecentes. Durante sua infância, devido ao exemplo daqueles que
considerava como os líderes que traziam o bem à comunidade - os traficantes - tinha a
idéia de trabalhar junto a eles. Crescendo, descobriu que na verdade aquelas pessoas
estavam à margem da sociedade e não praticavam condutas lícitas. No entanto, aos
dezoito anos, já era pai de gêmeos, cuja mãe, de quinze anos, não trabalhava. Em virtude

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP II Direito Penal II

da falta de oportunidade de empregos, já que só estudara até a segunda série porque sua
mãe não conseguia matrícula na escola próxima à comunidade, foi atraído por uma
proposta de ser "olheiro" do tráfico, e para isso só precisava ficar sentado num banco o
dia todo, armado com uma pistola, e avisar se a polícia se aproximasse. Entendia que não
estava fazendo mal a ninguém e, além de tudo, recebia R$ 50,00 por dia. Um dia, foi
surpreendido por policiais militares à paisana e preso em flagrante pela prática do crime
previsto no art. 37 da Lei 11.343/06. Analise a culpabilidade de CARLOS, de acordo com a
análise do livre arbítrio e do determinismo e conclua se há ou não culpabilidade diante da
exigibilidade de conduta diversa.

Resposta à Questão 1

Por aplicação da teoria da co-culpabilidade do Estado, seria viável que a conduta


diversa da criminosa não pudesse ser exigida do autor. Sendo assim, para quem adota esta
tese como aplicável, poderia ser absolvido, ou ter ao menos reduzida sua pena.
Todavia, é fato que a co-culpabilidade tem difícil aplicação. Não se pode alegar
inexigibilidade da conduta diversa em função das questões sociais de miserabilidade, sob
pena de ser criada abertura à impunidade generalizada. É fato que o meio contribui para a
incursão no crime, mas também é fato que entender que é inexigível agir de outra forma é
um perigo enorme à segurança social. Seu livre arbítrio não foi detrido pelo meio; sua força
de vontade, talvez.

Questão 2

TÍCIA, empregada doméstica que obtém condições mínimas para a própria


subsistência através de sua labuta, mantém sua filha única, MÉVIA, com quatro anos de
idade, acorrentada pelo pé na própria cama do "barraco" onde reside, diante da
circunstância de não ter nenhum familiar ou vizinho com quem possa deixá-la enquanto
trabalha, até porque se a mantivesse solta, esta escaparia para fora da casa, correndo
então riscos diante do lugar perigoso onde tal residência se localiza. No trabalho, TÍCIA
verifica que seus empregadores mantêm um nível de vida de extremo conforto, o que, em
determinado momento, lhe causou revolta pela constatação de desproporção de condições
e oportunidades entre as pessoas na sociedade. Neste contexto, veio TÍCIA a subtrair
algumas roupas de sua empregadora, danificando outras, por inveja.
a) Analise a hipótese sob a ótica da co-culpabilidade.
b) Sob a ótica do terceiro elemento da culpabilidade, indique se poderá resultar
para TÍCIA tratamento legal diverso em face de suas ações produzidas no que
tange à sua filha e à sua empregadora.

Resposta à Questão 2

a) A co-culpabilidade é teoria que pretende imputar à sociedade parcela de


responsabilidade pela conduta reprovável de seus membros menos afortunados.
Neste sentido, a gravidade da ação de Tícia seria arrefecida, ou mesmo excluída,
reconhecendo-se que o meio a compeliu a tais atos. Seria um “rateio da culpa”,
por assim dizer. Mas nesta situação, entretanto, não se poderia pretender

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP II Direito Penal II

aplicável esta teoria, pois não são por demais claros os elementos que a
compelem.

b) Poder-se-ia dizer que no fato referente à filha de Tícia, seria excluída a


culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, sendo certo que, por mais
degradante que pareça, a conduta foi destinada à proteção da criança, não
havendo outro meio de manter a criança. Já quanto ao ato de furto, não há que se
falar em excludente: era claramente exigível que não cometesse tal ato, devendo
por ele responder.

Questão 3

Em alegações finais em ação penal pública iniciada para apuração do delito


previsto no art. 157, caput, do CP, o patrono da defesa pleiteou a absolvição do agente,
não obstante reconhecendo a presença dos elementos estruturantes da tipicidade, ilicitude
e culpabilidade do fato, ao argumento de que o delito não representou abalo social, posto
não ter sido conhecido por terceiros que não o lesado, e ainda por encontrar-se o réu
tetraplégico, vítima de uma doença degenerativa progressiva, inviabilizando, assim,
qualquer prática delituosa futura. Consideradas as teorias da culpabilidade, haveria
alguma que recepcionasse os argumentos defensivos?

Resposta à Questão 3

Sim: a culpabilidade sob a ótica do funcionalismo, denominada teoria da


culpabilidade ligada aos fins da pena. Nesta, é necessário que haja, além da
reprovabilidade, a potencial tutela do interesse social na repressão, ou seja, é preciso que o
agente a ser imputado ofereça risco futuro à sociedade, e que a pena lhe seja doutrinadora,
pedagógica, funções que, no caso, jamais poderá assumir, pois o crime não foi levado ao
exame social, ou seja, não foi conhecido pelo público – pelo que a função de prevenção
geral da pena não se faria presente; e o agente não poderá jamais cometer outro crime, pelo
que a função de prevenção especial não se implementa.
O réu, assim, seria absolvido por ausência de culpabilidade, vez que as funções da
pena estão ali postas como elementos necessários.

Tema VI

Excludentes de Culpabilidade I. 1) A inimputabilidade penal: a imputabilidade e os sistemas adotados pelo


Código Penal. a) A menoridade;b) A doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado. c)
A culpabilidade diminuída. 2) A emoção e a paixão. 3) A embriaguez:a) Espécies;b) A actio libera in causa:
definição. Evolução dogmática e a necessidade de sua compatibilização com o princípio da culpabilidade.

Notas de Aula14

1. Introdução

14
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 9/9/2008.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Hoje, adota-se no Brasil a teoria normativa pura da culpabilidade, já estudada, na


qual a culpabilidade conta com três elementos: a imputabilidade; a potencial consciência
da ilicitude, e a exigibilidade de conduta diversa da injusta.
Se a culpabilidade é a reprovabilidade de sua conduta típica e ilícita, sempre que o
comportamento for reprovável para o direito penal, será merecedor de uma pena. Por isso, a
conseqüência de se reconhecer a ausência de reprovabilidade é reconhecer que não há
culpabilidade, e por isso não há que se falar em pena. Destarte, é de se notar que sempre
que há ausência de culpabilidade, há isenção de pena.
Mas não se pode confundir que seja esta uma diferenciação na teoria tripartida do
delito: a culpabilidade é elemento estrutural, e não pressuposto de aplicação de pena, como
se pôde ver em estudos anteriores, sobremaneira porque há casos em que a isenção de pena
vem da justificação ou da atipicidade da conduta – o legislador penal não é muito preciso.
Por isso, não se deve aferir a natureza da excludente pelo termo legal, e sim pelo elemento
que afasta.
Veremos de forma aprofundada, então, os elementos da culpabilidade, um a um,
iniciando pela imputabilidade.

2. Imputabilidade

Welzel chama a imputabilidade de capacidade de culpabilidade. O imputável é


aquele que é capaz de ser reprovável, porque reúne os requisitos que lhe possibilitam
entender aquilo que faz, e poder se determinar livremente sobre aquele proceder. Podendo
entender o caráter ilícito do que faz, e se posicionar de acordo com este entendimento da
sua conduta ilícita, é imputável.
Não se pode, contudo, confundir imputabilidade com capacidade penal. A
capacidade penal é bem mais ampla do que a imputabilidade, uma vez que esta última deve
ser verificada apenas no momento do crime, no momento da ação ou da omissão. A
capacidade penal, ao contrário, é analisada a qualquer tempo, antes ou depois.
Veja: qualquer pessoa, em princípio, tem capacidade penal, mas não serão todos que
serão imputáveis, pois, mesmo se for penalmente capaz, se no momento da ação ou
omissão estiver em estado inimputável, não terá culpabilidade. Como exemplo, uma pessoa
plenamente capaz, que responderia criminalmente, tem colocada substância entorpecente
em sua bebida, sem que o saiba, ficando completamente letárgica, sem capacidade de
entender o que faz. Esta pessoa, se comete algum ato penalmente relevante, estará em
estado de embriaguez completa involuntária, o que a faz penalmente irreprovável, e
portanto sem capacidade de culpabilidade – é penalmente capaz, mas está inimputável
quando da eventual ação típica.
Por outro lado, se o condenado for eivado de doença mental que lhe sobreveio após
a condenação, no curso do cumprimento da pena, ele deverá ser levado ao hospital
psiquiátrico, não podendo mais cumprir pena porque não tem mais capacidade penal, e não
porque não é inimputável: era imputável quando do momento do crime, da ação ou
omissão, além de penalmente capaz. Agora, mesmo tendo sido imputável, não mais é capaz,
e por isso não pode continuar cumprindo pena. Assim dispõe o artigo 41 do CP:

“Art. 41 - O condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a


hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento
adequado.”

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP II Direito Penal II

Destarte, fica claro que capacidade penal e imputabilidade não se confundem: a


capacidade é medida a qualquer tempo, antes ou depois do delito, mas a imputabilidade só
é relevante quando do momento da ação ou omissão.
Em qualquer caso em que a pessoa não reunir os requisitos que a tornem capaz de
entender o caráter ilícito de sua conduta, e se determinar livremente em relação a esta
conduta, esta pessoa é inimputável. Vejamos, então, quais as causas de exclusão da
imputabilidade eleitas pelo legislador penal.

1.1. Menoridade

A primeira das causas que excluem a imputabilidade é a menoridade. O legislador


considerou, no artigo 27 do CP, que as pessoas que tenham menos de dezoito anos não têm
total discernimento sobre os fatos que podem viciar sua conduta de ilicitude.

“Art. 27 - Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando


sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.”

O legislador, calcado em critério estritamente biológico, criou esta presunção legal,


que é jure et de jure, absoluta, não admitindo afastamento por nenhum meio de prova.
A menoridade cessa à zero hora do dia em que o agente completa dezoito anos. Na
data exata do seu aniversário de dezoito anos, cessa a inimputabilidade penal da pessoa.
Surge uma questão: é sabido que o Código Civil de 1916 estabelecia que a plena
capacidade era aos vinte e um anos, e somente após a edição do CC de 2002, a plena
capacidade civil passou a ser também aos dezoito anos – lei ordinária alterou lei ordinária
anterior. A mesma dinâmica poderia ser realizada no CP? Poderia uma nova lei ordinária
alterar a menoridade penal, diminuindo-a, por exemplo, para dezesseis anos?
Esta alteração não seria possível por meio de lei ordinária. Isto porque, ao
contrário da lei civil, a matéria penal é também tratada, neste particular, pela CRFB, como
se vê no artigo 228 da Carta Magna:

“Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às


normas da legislação especial.”

Mas este critério etário, então, não poderia jamais ser alterado? Sobre o tema,
surgem duas correntes em disputa: a primeira defende que o mecanismo hábil para alterar a
menoridade penal seria uma emenda constitucional, simplesmente, pois seria dada ao poder
constituinte derivado esta habilidade – sendo mesmo, em verdade, matéria que poderia ser
até considerada meramente formalmente constitucional. Esta corrente é majoritária.
A segunda corrente, por outro lado, entende que a menoridade consignada na CRFB
é um direito fundamental do indivíduo, pois nada impede que estejam estes direitos em
outros dispositivos da CRFB, alheios ao artigo 5º. Sendo assim, seria cláusula pétrea, na
forma do artigo 60, § 4º, IV, da CRFB, e sua alteração somente seria possível por meio da
promulgação de uma nova Constituição, por meio do poder constituinte originário.

1.2. Doença mental

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP II Direito Penal II

A doença mental também afasta a imputabilidade, mas, ao contrário da menoridade,


o critério legal para identificação desta excludente não é somente biológico, e sim bio-
psicológico. Por isso, é necessária a agregação de dois valores: a existência da doença
mental; e a constatação de que a pessoa, ao tempo da ação ou omissão, por conta da
doença mental, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-
se em relação a ele.
Veja que há doenças mentais que não produzem seus efeitos de forma contínua,
ininterrupta, e por isso há momentos em que este doente está em plena capacidade de
culpabilidade, mesmo portando a doença. Um exemplo corriqueiro é a epilepsia: as pessoas
que portam esta moléstia, a qual tem vários níveis quanto à intensidade das crises, podem
passar pela vida sem que seja manifestada a doença na sua culpabilidade, porque a
medicação controla perfeitamente as crises. A doença existe, mas não está viciando a
capacidade de discernimento do agente.
Imagine então a seguinte situação: um epilético controlado, por alguma
circunstância extravagante de alto estresse, entra em crise, e durante a crise acaba por
cometer fato típico e ilícito. Se, no momento da ação injusta, estiver configurada a
completa incapacidade de entendimento do caráter ilícito, ou a absoluta impossibilidade de
determinar-se contra a realização de tal conduta (sabendo-a ilícita), estará inimputável, pois
reúne-se a existência da doença, e o efeito nefasto desta sobre a psique do agente. Se,
mesmo portador da doença, e durante uma crise, restar algum resquício de discernimento e
autodeterminação, o agente será imputável15.
Repare que foi dito que o agente em crise, mesmo com a consciência da ilicitude de
sua conduta, pode estar impedido de se determinar de forma contrária à realização do
injusto, o que o tornará igualmente inimputável. Esta situação pode ser bem ilustrada no
caso da cleptomania: o agente que tem esta doença, ao subtrair coisa alheia, é capaz de
saber da ilicitude de sua conduta, mas é realmente incapaz de se determinar de forma
contrária a sua realização, padecendo de verdadeiro sofrimento ao efetivar o injusto, por
saber-se errado. Sendo assim, mesmo sabendo da injustiça de sua conduta, ela não será
reprovável, se retirada por completo a sua capacidade de autodeterminação. O artigo 26 do
CP assim dispõe, especialmente na parte final do caput:

“Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento


mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento.
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.”

Veja que o parágrafo único deste artigo estabelece uma gradação na reprovabilidade
da conduta: no caput, a incapacidade de culpabilidade é absoluta, e por isso não há crime;
no parágrafo único, não há absoluta incapacidade; há capacidade de entendimento e de
determinação, mas é reduzida em razão da doença. Como é presente, mas reduzida, o que
se passa é uma redução da culpabilidade, diminuição da reprovabilidade, e não
inimputabilidade. Por isso, há crime, mas a pena é reduzida.
15
A identificação das condições psicológicas do agente são determinadas por perícia, pois são análises
extremamente técnicas.

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP II Direito Penal II

É importante se salientar que a dependência química, na qual se inclui a


embriaguez patológica, é uma doença mental, e como tal deve ser tratada pelo direito
penal. Estes dependentes químicos, de entorpecentes quaisquer ou de álcool, não têm a
imputabilidade afastada pela mera existência da doença, da mesma forma que os demais
doentes; para ter a imputabilidade afastada, devem, no momento da ação ou omissão, estar
absolutamente sem condições de entender a ilicitude de seus atos, e sem poder se
autodeterminar em relação a eles – assim como qualquer doença mental. Se porventura for
percebido algum resquício de capacidade de culpabilidade, ou seja, de entendimento da
ilicitude da conduta, será imputável, podendo, a depender do caso, ter a pena reduzida, na
forma do parágrafo único do artigo 26 supra.
Imagine então a seguinte situação: um dependente químico de entorpecentes se vê
sem dinheiro para comprar a droga, e para conseguí-lo, assalta uma pessoa. Neste
momento, na hora da ação, do roubo, esta pessoa está inimputável? De forma alguma: não
obstante ser dependente químico – portador da doença –, no momento da ação estava em
plena capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta, e também estava em
condições de se determinar em sentido contrário a sua realização.
Imagine-se, portanto, outra hipótese: pessoa portadora de embriaguez patológica (ou
de qualquer dependência química), acaba por embriagar-se, sem predeterminação qualquer.
Durante o estado de absoluta embriaguez, causa a morte de uma pessoa, dolosamente. A sua
conduta é típica, é ilícita, mas não é culpável: estava inimputável, pois no momento da
ação, não tinha absolutamente nenhuma condição de saber da ilicitude de sua conduta,
sendo, então, inaplicável a teoria da actio libera in causa, que se verá adiante16.
Outro aspecto altamente relevante é a desnecessidade de que o doente mental,
especialmente os dependentes químicos e ébrios patológicos, estejam sob o efeito direto da
substância quando da prática da conduta. O que se vai aferir, através de perícia, é se o seu
discernimento estava elidido, naquele momento, por causa da doença que porta, mesmo
que não estivesse sob o efeito da substância. Como exemplo, o portador de embriaguez
patológica que, em absoluta crise de abstinência – não estando, portanto, alcoolizado –,
furta um perfume caríssimo de uma pessoa, a fim de bebê-lo, pois tem álcool em sua
composição. Este furto, mesmo não estando a pessoa sob efeito direto da substância da qual
é dependente, foi praticado em razão da doença, ou seja, a patologia teve o condão de
retirar absolutamente a possibilidade de entender a ilicitude de sua conduta, e de se
determinar a não realizar tal conduta injusta.
Repare que há diferença tênue entre esta segunda hipótese e aquela do roubo para
adquirir a droga, narrada antes: neste roubo, a circunstância evidencia que o agente tinha
capacidade de discernimento e autodeterminação, o que impede a inimputabilidade. No
caso do perfume, a abstinência deixou a dependente, pela narrativa, em evidente
incapacidade de discernimento – e é daí que vem a inimputabilidade. Fosse, no caso do
roubo, pericialmente comprovado que o agente não podia discernir a ilicitude de sua
conduta, e estaria igualmente inimputável.
Ressalte-se ainda outra particularidade: se a dependência química for de álcool, o
agente estará sob a égide deste artigo 26, sendo tratada como doença comum. Se, contudo,
for de entorpecentes ilícitos diversos, há norma especial expressa que deve prevalecer, qual
seja, o artigo 45 da Lei 11.343/06. E veja que não há grandes diferenças no tratamento:

16
A embriaguez voluntária, que em regra não afasta a imputabilidade, poderá fazê-lo excepcionalmente,
exatamente quando realizada em dependência patológica.

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP II Direito Penal II

“Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito,
proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da
omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que
este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no
caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento
para tratamento médico adequado.”

1.3. Emoção e paixão

A emoção e a paixão não excluem a imputabilidade, como determina o artigo 28, I,


do CP:

“Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal:


I - a emoção ou a paixão;
(...)”

Entretanto, mesmo não sendo uma excludente de imputabilidade jamais, o


legislador reconhece, em diversos dispositivos penais, que a emoção tem tal influência na
conduta do agente que pode, de fato, reduzir a culpabilidade, a reprovabilidade. Como
exemplo, o artigo 121, § 1º, do CP, prevê o homicídio privilegiado em caso específico de
violenta emoção:

“Art 121. Matar alguém:


Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
(...)”

Mesmo não excluindo a culpabilidade, é fato que é menos reprovável o


comportamento daquele que age nestas condições, e por isso é reduzida a pena.
Pode haver caso em que a emoção ou paixão pode, ao contrário, não só não excluir a
imputabilidade, como agravar a reprovabilidade da conduta. É o caso do ciúme: a
jurisprudência vem reconhecendo que este motivo para cometimento de homicídio, por
exemplo, é tido por motivo fútil, e torna o homicídio qualificado, nos termos do artigo 121,
§ 2º, II:

“(...)
§ 2° Se o homicídio é cometido:
(...)
II - por motivo fútil;
(...)
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
(...)”

1.4. Embriaguez

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP II Direito Penal II

A embriaguez recebe tratamentos diversos pelo direito penal. Como visto no tópico
anterior, a embriaguez patológica deve ser tratada como doença mental, e sofrer a aplicação
do artigo 26 do CP. Os outros tipos de embriaguez, todavia, receberão tratamentos
diferentes pelo direito. O artigo 28, II, do CP dispõe que:
“Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal:
(...)
II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos
análogos.
§ 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de
caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento.
§ 2º - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez,
proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da
omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-
se de acordo com esse entendimento.”

Há diversas espécies de embriaguez. Como gênero, pode ser voluntária ou


involuntária. A embriaguez voluntária se divide em voluntária em sentido estrito,
preordenada e culposa. A involuntária, se divide em completa e incompleta. Vejamos uma a
uma.

1.4.1. Embriaguez voluntária em sentido estrito

Nesta situação, o agente deliberadamente dedica-se a entrar em estado de


entorpecimento, sendo esta a única finalidade de sua conduta. O agente, sem qualquer outro
ímpeto, quer ficar alcoolizado, com este único propósito.
A lei dispõe que, neste caso, não se afasta a culpabilidade do agente. Se porventura
comete crime, neste estado, responderá normalmente por seu ato. Mas surge então a
seguinte aparente contradição: se a imputabilidade penal se afere no exato momento da
conduta, da ação ou omissão, o agente que está em embriaguez completa voluntária em
sentido estrito estará, no momento da ação criminosa, completamente incapaz de entender a
ilicitude de sua conduta. Como pode, então, a lei determinar que não está afastada a
imputabilidade, se está nas condições que, por conceito, a afastariam?
É aqui que surge a aplicabilidade da teoria da actio libera in causa. Esta teoria se
baseia em casos em que alguém, no estado de não imputabilidade (completa embriaguez), é
causador, por ação ou omissão, de um resultado punível, tendo se colocado no estado de
não-imputabilidade propositadamente, com intenção de produzir o resultado, ou sem esta
intenção, mas tendo previsto este resultado, ou, se não previu, devia ter previsto que ele
ocorreria.
Veja: se a pessoa se colocou na condição de completa embriaguez, foi por sua
própria vontade – embriaguez voluntária stricto sensu –, ou porque julgou erroneamente
seus limites – embriaguez voluntária culposa. Sendo assim, é fato que quando iniciou a
ingestão da bebida, sua ação era livre de entorpecimento, e por ficção jurídica, o legislador
faz remontar àquele exato ponto a análise da imputabilidade. Porque a ação era livre na
causa – actio libera in causa –, o agente deverá responder por ela.

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP II Direito Penal II

1.4.2. Embriaguez voluntária preordenada

Neste caso, o agente deliberadamente dedica-se a ficar alcoolizado, mas com o


escopo de, ao ficar bêbado, perder os freios que sua sã consciência impõe, e conseguir
praticar algum delito. Literalmente, o agente bebe para conseguir cometer crime.
A embriaguez preordenada não só não exclui o crime, a imputabilidade, como é
circunstância agravante genérica, constante do artigo 61, II, “l”, do CP:

“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem
ou qualificam o crime:
(...)
II - ter o agente cometido o crime:
(...)
l) em estado de embriaguez preordenada.”

1.4.3. Embriaguez voluntária culposa

Consiste, este estado, em um erro de cálculo do agente: ao consumir a bebida


alcoólica, o agente quer beber, mas não pretende atingir inconsciência, letargia; contudo,
por alguma situação qualquer, ocorreu de sua resistência ao álcool ficar muito baixa, e com
pouca quantidade de bebida atingir níveis extremos de embriaguez.
Veja que o agente não queria ficar completamente alcoolizado, mas por algum
motivo excepcional acaba ficando. E mesmo sendo excepcional, é voluntária, e sofre a
aplicação da actio libera in causa, como dito, devendo o agente responder.
Observe, porém, que a actio libera in causa deve ser aplicada com bastante cuidado,
sob pena de se imputar ao agente, por vezes, responsabilidade penal objetiva, o que é
inadmissível. O melhor exemplo a ser dado é o da direção de veículo sob efeito de álcool:
quem atropela e mata alguém, estando sob efeito de bebida alcoólica, pode tê-lo feito
dolosa ou culposamente, ou mesmo de forma justificada.
Veja: segundo a actio libera in causa, a imputabilidade se verifica no momento em
que o agente iniciou a ingestão. A primeira análise a ser feita, então, é se naquele momento
o agente desejava o resultado danoso (no exemplo, a morte de alguém por atropelamento),
em dolo direto ou eventual (quando prevê e assume o risco de causar o resultado); estando
presente o dolo, é claro que o agente responde, restando plenamente aplicável a teoria. Se,
ao contrário, não estiver presente o dolo, direto ou eventual, de matar ágüem ao volante, a
análise volta-se para a previsibilidade: seria previsível o resultado “morte de alguém por
atropelamento” quando do início da ingestão da bebida? Se fosse previsível, mas não
previsto (culpa inconsciente), ou se previsto, absolutamente não desejado pelo agente
confiante na inocorrência (culpa consciente), será imputado pela morte, a título de culpa17.
Mas veja que o resultado poderia ser, também, completamente imprevisível.
Suponha situação em que o agente, bebendo em casa, tendo por certo que o final de sua
noite seria imediatamente entrar no seu quarto e dormir, após estar completamente
alcoolizado, é instado a levar um vizinho que passa mal ao hospital, sendo o único que pode
17
É de se perceber que a regra, na maior parte dos casos, é a culpa, inconsciente ou consciente, nos delitos de
trânsito. Não há como se pretender tratar como regra o dolo eventual, nestas circunstâncias, porque o dolo
eventual, como diz Frank, é “a opção pela conduta”, sem qualquer apreço pela não ocorrência do resultado – e
é claro que a imensa maioria de quem bebe e dirige prevê o resultado, mas crê piamente que ele não
acontecerá.

Michell Nunes Midlej Maron 56


EMERJ – CP II Direito Penal II

fazê-lo (e mesmo se outro pudesse, não tem como julgar, dada a letargia). Esta
possibilidade, de tomar o volante alcoolizado, jamais poderia ter passado pela sua mente
quando do início da ingestão do álcool. Por isso, se atropelar e matar alguém a caminho do
hospital, a verificação de sua conduta na causa, pela actio libera in causa, fará ver que,
naquele momento, não havia dolo ou culpa, e que por isso não pode haver tipicidade em sua
conduta – o fato é atípico.

Casos Concretos

Questão 1

Quais as circunstâncias jurídico-penais no caso de embriaguez crônica, já


instalado o quadro de delirium tremens?

Resposta à Questão 1

O delirium tremens retira a capacidade de discernir a realidade e se autodeterminar


em relação a ela, o que faz com que seja tratado da mesma forma que a doença mental, no
direito penal, ou seja, aplica-se o artigo 26 do CP.
Ocorre que se o delirium tremens atingir estado convulsionante extremo, elide a
voluntariedade da conduta. Sendo assim, não há qualquer conduta a ser medida, pois
qualquer atividade corporal, neste estado, é conseqüência de espasmos involuntários, não
havendo responsabilidade penal pelo resultado.

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP II Direito Penal II

Questão 2

JAMIL, após ingerir duas cervejas, entrou em seu carro e seguiu pela Estrada
Caetano Monteiro. Dirigindo com sua carteira de habilitação vencida e alcoolizado,
acabou por atropelar e matar ROSELI, que estava em cima da calçada, aguardando uma
oportunidade para atravessar a estrada. JAMIL foi condenado à pena de 3 anos e 4 meses
de detenção, substituída por prestação de serviços à comunidade por igual período, em
virtude da prática de homicídio culposo na direção de veículo automotor, com as causas de
aumento previstas no art. 302, parágrafo único, I e II da Lei 9.503/97. Ao fixar a pena
referida, o Magistrado reconheceu a circunstância da embriaguez preordenada. Agiu
corretamente? Justifique.

Resposta à Questão 2

Errou o magistrado apenas quanto à circunstância da embriaguez preordenada, uma


vez que esta condição consiste em um ato preparatório para o cometimento de um crime
doloso, e nunca culposo. O agente que preordena a embriaguez o faz para ganhar coragem
para, dolosamente, praticar um delito, e não para agir culposamente – não existe preparação
no crime culposo.
O TJ/RJ, na apelação criminal 2003.050.01474, assim se posicionou:

“Apelação Criminal. HOMICIDIO CULPOSO. MORTE POR


ATROPELAMENTO. EXCLUSAO DA AGRAVANTE. APREENSAO DE
CARTEIRA DE MOTORISTA. REDUCAO DA PENA. Homicidio culposo.
Transito. Correto juizo de reprovacao. Carteira de habilitacao vencida. Vitima
atropelada na calcada. Correto juizo de reprovacao. Resposta penal. Retirada da
agravante generica da embriaguez preordenada. Isencao de custas.
Impossibilidade. Provimento parcial ao apelo defensivo. Decisao unanime. A
autoria e materialidade do delito restaram sobejamente demonstradas pelas provas
dos autos, em especial, o laudo de exame de local de acidente, e os depoimentos
dos milicianos aprisionadores. Restou demonstrado que o reu dirigia seu veiculo de
forma imprudente, estava alcoolizado, e apos uma forte guinada, sem qualquer
motivo aparente, veio a atingir a vitima quando a mesma estava na calcada, tendo
esta falecido em decorrencia das graves lesoes sofridas. A carteira de habilitacao
do ora apelante foi apreendida, verificando-se que estava vencida ha' mais de um
ano da epoca do acidente, positivando a agravante do inciso I paragrafo unico do
art. 302 do CTB. Comungo do pensamento do ilustre membro do Parquet de
Primeiro Grau de Jurisdicao, no que tange a retirada da agravante generica da
embriaguez preordenada no presente caso, porquanto, tal agravante so' incide nos
casos em que o agente se embriaga propositadamente para cometer um crime, o
que nao ocorreu, tendo em vista tratar-se de delito culposo. Melhor sorte nao
socorre o apelante quanto à pretendida isencao das custas, que nao pode ser
concedida, decorrente a mesma da sucumbencia, regra processual inquestionavel,
consoante o disposto no artigo 804 do CPP.”

Veja que o regramento jurídico da época fez com que a pena fosse reduzida porque
não se aplica a circunstância da embriaguez preordenada, mas manteve as demais
agravantes, quais sejam, a embriaguez comum, o atingimento na calçada e a habilitação
vencida.

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP II Direito Penal II

Hoje, contudo, a situação seria diferente, não quanto à retirada da preordenada, que
é claro que deve ser retirada, mas sim quanto às agravantes. A Lei 11.705/08, a famigerada
Lei Seca, alterou bastante a situação da direção sob efeito de álcool, retirando a agravante
genérica da embriaguez, por exemplo.

Questão 3

MÉVIO, vigia ferroviário de passagem de nível, ingeriu bebida alcoólica suficiente


para deixá-lo em característico estado letárgico, mesmo sabendo que deveria permanecer
lúcido e atento para o momento em que viessem a passar pelo seu posto algumas
composições ferroviárias; tal fato então veio a causar um desastre de razoáveis
proporções, inclusive com a morte de duas pessoas.
a) É possível aplicar-se aqui a teoria da actio libera in causa?
b) Como poderia ser classificada esta embriaguez?
c) É possível admitir-se a incidência da actio libera in causa em delito culposo?
d) A posição adotada pelo CP vigente, no art. 28, II, consagra a responsabilidade
penal objetiva?

Resposta à Questão 3

a) Sim. Mesmo que no momento do acidente estivesse em aparente


inimputabilidade, ao iniciar a ingestão do álcool, deveria prever a possível
conseqüência, e por isso deve por esta responder.

b) Embriaguez voluntária em sentido estrito, mas não preordenada, na medida em


que não planejara o incidente conseqüente.

c) Não só é possível, como é a sede natural da teoria: a quebra do dever de cuidado


teve início na causa, e não na conseqüência.

d) De forma alguma, pois a não imputabilidade em que se encontra não era


presente quando tomou a decisão de embriagar-se, sendo este o momento em
que se analisa a presença do elemento subjetivo. Mesmo porque, ao se analisar o
momento pretérito à embriaguez, deve ser perscrutado o dolo ou culpa, a
intenção ou previsibilidade do resultado, e se for imprevisível, não há
responsabilização.

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema VII

Excludentes de Culpabilidade II. 1) A coação irresistível e a obediência hierárquica: definições e


características. 2) As excludentes supralegais: a legítima defesa intensiva, o estado de necessidade
exculpante e a chamada colisão de deveres.

Notas de Aula18

1. Exigibilidade de conduta diversa

A culpabilidade como juízo de reprovação também já fora adotada antes do


surgimento da teoria normativa pura da culpabilidade. Os causalistas, já na época da teoria
psicológico-normativa da culpabilidade, já contavam com alguns aspectos normativos na
culpabilidade, fazendo com que assumisse, desde então, esta nota de medida da
reprovabilidade da conduta. Um dos elementos que denotam esta adesão foi a exigibilidade
de conduta diversa.
18
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 9/9/2008.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

A exigibilidade de conduta diversa determina que uma conduta só pode ser


reprovável se do agente pudesse se exigir outro tipo de atuação qualquer. Não se pode
reprovar um comportamento se é impossível exigir daquela pessoa atitude diversa. E a
própria lei estabelece, hoje, algumas hipóteses em que esta conduta diferente é inexigível, e
portanto exclui-se a culpabilidade. Vejamos cada um dos constantes do artigo 22 do CP:

“Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a


ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da
coação ou da ordem.”

1.1. Coação moral irresistível

A coação moral irresistível faz com que o agente não possa agir de forma diversa, e
assim não pode sua atuação ser reprovada. Embora exista conduta voluntária e consciente,
esta vontade não foi livremente formada, sendo viciada em seu real intuito.
Mas é importante perceber que nem toda coação moral afasta a culpabilidade. A
coação moral precisa ser realmente irresistível, ou seja, é necessário que o agente não tenha
podido, diante do que se espera do homem médio, agir de forma diferente, pois se, mesmo
exigindo algum sacrifício, fosse razoável que este sacrifício fosse feito, a conduta diversa
era exigível, e há reprovabilidade.
Se a coação, então, fosse (minimamente, que seja) resistível, a reprovabilidade não
será afastada, mas será atenuada a pena, de acordo com o artigo 65 , III, “c”, do CP:

“Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:


(...)
III - ter o agente:
(...)
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem
de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato
injusto da vítima;
(...)”
Estando presente a coação moral irresistível, o agente não responde, mas o autor da
coação sim: este é o autor mediato da ação, e tem, mesmo à distância, o domínio do fato,
valendo-se do autor imediato como instrumento do crime.

1.2. Obediência hierárquica

No mesmo artigo 22 do CP, vê-se que o agente que é subordinado a alguém, se


cumpre ordem deste alguém que não seja claramente ilegal, estará, de fato, executando um
mandato vinculante, ou seja, estará agindo em nome daquele de quem promanou a ordem.
Se esta ordem, que aos olhos do homem médio, não poderia ser identificada prontamente
como ilegal, acaba por evidenciar-se um injusto penal, aquele que o praticou, em
cumprimento à ordem, não poderá ser reprovado: quem merece reprovação é o emitente da
ordem.
Veja que o subordinado, em regra, não deve questionar a validade das ordens que
recebe de seu superior. O cumprimento da ordem é a dinâmica natural. Todavia, se a ordem
for por demais ilegal, sendo evidente, aos olhos de qualquer um, a sua ilegalidade, é

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP II Direito Penal II

exigível do subordinado que não a cumpra, pois se o fizer, responderá pelo fato, assim
como o emitente da ordem.
É caso análogo à coação moral irresistível: se o agente imediato poderia julgar a
ilegalidade da ordem (assim como o coagido poderia agir de outra forma), a conduta
diversa da injusta é exigível, e por isso não se exclui a culpabilidade (podendo reduzi-la se
a ilegalidade for perceptível, mas de forma tênue, na forma do artigo 65, III, “c”, do CP,
supra); se, ao contrário, não é plausível identificar a ilegalidade da ordem, é inexigível que
a descumpra, e somente o autor da ordem, autor mediato do fato, será culpável.
Sendo o agente subordinado um policial militar, só será exigível que descumpra a
ordem se esta, mais do que manifestamente ilegal, for criminosa. Se o oficial superior emite
ordem que aparente ilicitude, é-lhe normativamente exigível que a cumpra, inclusive sob
pena de insubordinação e punição disciplinar. Sendo assim, se a cumpre, não poderá ser
culpável pelo resultado injusto que possa vier dali, resultando culpabilidade apenas ao seu
superior, pois era inexigível que a descumprisse, vez que, mesmo ilícita, não era
manifestamente criminosa.

1.3. Abortamento de gravidez resultante de estupro

O artigo 128, II, do CP, traz uma hipótese que a doutrina majoritária identifica como
excludente de culpabilidade, havendo corrente minoritária que entende que se trata de causa
especial de exclusão da ilicitude. Veja:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:


I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Veja que o aborto necessário, do inciso I deste artigo, é claramente excludente da


ilicitude, pois se trata claramente de estado de necessidade. Já o aborto resultante de estupro
não consiste em estado de necessidade, e sim de inexigibilidade de conduta diversa da
gestante, que não pode ser obrigada, pelo Estado, a carregar aquela gravidez ignóbil.
Há quem entenda que, diante da dignidade da pessoa humana, princípio magnânimo
do ordenamento desde a CRFB de 1988 (mas que sempre foi regente supranormativo do
direito), este inciso II teria sido não recepcionado pela Constituição, pois o feto teria que ter
protegida sua dignidade, desde a concepção. Todavia, é tese incipiente, sem a menor adesão
da doutrina pátria mais técnica, porque a dignidade da pessoa da gestante prevaleceria sobre
a do concepto.

1.4. Causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa

Há causas que a lei não prevê expressamente, mas que identificam situações em que
a conduta do agente não poderia ter sido outra senão a injusta, e por isso sua culpabilidade é
excluída. O rol destas causas pode sofrer inclusões que a prática indique, mas há algumas
que são apontadas como certas. Vejamos quais sejam.

1.4.1. Legítima defesa contra agressão futura

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP II Direito Penal II

Um exemplo que parte da doutrina entende se tratar de causa que torna inexigível
conduta diversa é a legítima defesa de agressão futura. Como se sabe, a legítima defesa
pressupõe ao menos a iminência da agressão e, por isso, estaria desnaturada a defesa
quando a agressão está prevista para um momento futuro. Todavia, se a ameaça de agressão
futura for deveras séria, percebendo-se inequivocamente que a agressão vai de fato ser
praticada adiante, não é exigível do ameaçado que nada faça, e a defesa contra esta
agressão futura será exculpável.
Vale dizer, porém, que parte significativa da doutrina entende que esta legítima
defesa é ainda a mesma excludente de ilicitude. Isto porque o critério da iminência na
agressão não é um critério temporalmente estático, mesmo porque seria impossível
estratificar um conceito objetivo de iminência temporal. Por isso, o que se exige, nesta
situação, para configurar legítima defesa de ato futuro como excludente de ilicitude, é a
inequívoca intenção do ameaçador em consumar a agressão ao tempo futuro. Se for
absolutamente inequívoca esta intenção, a defesa é justificada.
Mas veja que a legítima defesa só pode ser válida quando o Estado, detentor do
monopólio da defesa, não se puder fazer presente. Se para evitar a agressão futura o agente
poderia ter socorrido-se do Estado, a sua defesa não será nem justificante, nem causa
supralegal de inexigibilidade de conduta diversa.

1.4.2. Abortamento de gravidez resultante de estupro realizado por não médico

A regra é que somente o médico realize qualquer abortamento, uma vez que é um
procedimento cirúrgico, mesmo que não invasivo, e somente ao médico é permitido realizar
intervenções cirúrgicas.
Isto é necessário porque o procedimento deve ser controlado pelo Estado, não
podendo ser dado a qualquer um a realização de procedimento tão periclitante. Inclusive, é
crime de exercício ilegal da profissão, a prática deste procedimento por quem não é médico.
Outrossim, pode acontecer a seguinte situação: a gestante, residente de local
altamente isolado, como comunidades silvícolas, não tem sequer perspectivas de recorrer a
médico para realizar este procedimento. Se neste caso a mulher procurar qualquer pessoa
que tenha conhecimentos para tanto, como um curandeiro indígena, a sua conduta será
(assim como a pessoa que realizou o aborto), de forma excepcionalíssima, tolerada, e será
exculpável por ser considerada inexigível conduta diversa. E veja que se trata de causa
supralegal, pois não há previsão para realização de aborto por não médico em caso
excepcional.

1.4.3. Estado de necessidade exculpante

Como já se pôde abordar, há quem entenda que poderia haver estado de necessidade
exculpante em nosso ordenamento, que, como visto, adota a teoria unitária do estado de
necessidade, sendo todas as modalidades subsumidas à lei causas de justificação da
conduta.
Quando houvesse caso que se amoldasse ao conceito de estado de necessidade
exculpante – qual seja, o sacrifício de bem jurídico de maior ou igual valor ao preservado –,
seria então uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de
conduta diversa.

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP II Direito Penal II

Mas como se pôde ver no estudo do estado de necessidade, esta tese não merece
acolhida, sendo mencionada apenas por existir doutrina pátria isolada, mas de peso, a
defendê-la – leia-se Cezar Roberto Bittencourt.

1.4.4. Questões especiais: aborto econômico e aborto de feto anencefálico

Pode a autora de aborto econômico ser imputada pela realização de tal conduta?
O aborto econômico, ou social, se trata da conduta abortiva realizada por quem não
tem a menor condição de criar um filho, por absoluta situação de miserabilidade. A regra na
doutrina e na jurisprudência é que não seja desnaturado o crime: a gestante poderia ter
gerado o filho e dado-o à adoção quando nascido.
Todavia, há que se suscitar que diante da pobreza extrema, mas realmente violenta,
aquela em que não há sequer condições de subsistência mínima, poder-se-ia cogitar de uma
causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa. Veja que não há adesão significativa
na jurisprudência a tal tese, mas é uma tese propositiva plausível19.
Quanto ao abortamento do feto anencefálico, a doutrina é mais tendente a entender
que se trata de hipótese claramente açambarcada na inexigibilidade de conduta diversa. Isto
porque é bem claro que carregar a gestação de feto destinado à morte pós-parto é
circunstância de extremo sofrimento mental, capaz de tornar inexigível da gestante conduta
outra que não a de abortar a gestação. Seria, então, causa supralegal de inexigibilidade de
conduta diversa, em analogia à gravidez resultante de estupro. Esta questão, porém, não
está ainda pacificada, mas está em vias de sê-lo, pois é hoje objeto de julgamento no STF a
ADPF 54, em que se pretende que seja dada interpretação conforme justamente ao artigo
128, II, do CP, a fim de ali se entender incluída esta hipótese.

Casos Concretos

Questão 1

CLÁUDIA, humilde moradora do "Morro do Alemão", é presa em flagrante e


posteriormente denunciada por ingressar em um presídio com considerável quantidade de
cocaína. O fato ocorreu da seguinte forma: CLÁUDIA, pretendendo fornecer a droga ao
detento JARBAS, seu companheiro, colocou um pacote contendo a referida substância
entorpecente na "calcinha" de sua filha de oito anos, tentando ludibriar os agentes
penitenciários da instituição prisional. Em sua defesa, a denunciada alegou que não
poderia negar a JARBAS a empreitada criminosa desvendada, pois fora até ameaçada por
ele e seus comparsas, todos traficantes da mesma favela. O MP sustentou que CLÁUDIA,
ao ser ameaçada pelos traficantes, deveria ter comunicado o fato à polícia para que as
providências cabíveis fossem tomadas, mas nunca chegar ao ponto de utilizar-se
ardilosamente de sua filha menor para atender aos anseios criminosos de seu
companheiro. Sustentou ainda o membro do parquet que o artifício com que agiu a

19
Seria aqui também o caso de se aplicar a teoria da co-culpabilidade, pois se esta gestante tivesse adimplidos
minimamente os seus direitos constitucionais de dignidade, poderia não se encontrar nesta prática injusta.

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP II Direito Penal II

denunciada não evidencia um comportamento de quem age ameaçado, senão uma atuação
audaciosa típica do criminoso contumaz que atua com tranqüilidade e, acima de tudo,
planejamento. Você, juiz, como decidiria?

Resposta à Questão 1

Das informações do enunciado, pode-se colher que há, sim, inexigibilidade de


conduta diversa da ré. É cediço que o domínio das comunidades carentes pelos traficantes
impõe coação moral irresistível, e nesta situação, não há como se atribuir culpabilidade a
que padece de tais ameaças. O meio empregado para acatar a coação não a exclui, de forma
alguma: o uso da criança foi o único meio encontrado para cumprir com a exigência do
coator.
Veja que o argumento do parquet, de que a ré poderia ter buscado a polícia, não é
procedente, dadas as condições do caso apresentado: esta conduta diversa que supostamente
ser-lhe-ia exigível, de fato, nenhum efeito poderia ter, porque sofreria pesadamente as
sanções do coator, se o fizesse. Esta conduta não era, evidentemente, exigível.
O TJ/RJ, na apelação criminal 1999.050.01620, acatou a tese defensiva, in casu:

“SUBSTANCIA ENTORPECENTE. TRAFICO ILICITO DE ENTORPECENTE.


COACAO MORAL IRRESISTIVEL. ABSOLVICAO.
Trafico. Coacao moral irresistivel, causa legal de exclusao da culpabilidade.
Absolvicao. Se a prova confirma que a infeliz mae, analfabeta e sem perspectivas e
esperancas, nao obrou com vontade livre e consciente no transporte do
entorpecente,nao sendo possivel exigir-se-lhe conduta diversa eis que coactada por
seu companheiro e integrantes de sua quadrilha, e' de justica reconhecer a sua
submissao `a coacao moral irresistivel imposta com ameaca de morte. Absolvicao
que se impoe, com fulcro nos arts. 22 do CP e 386, V do CPP. (MLN) Vencido o
Des. Luiz Leite Araujo.”

Questão 2

Qual o fundamento da não-punibilidade do agente no caso de obediência


hierárquica a ordem não manifestamente ilegal?

Resposta à Questão 2

Resta afastada a culpabilidade, pois é clara a inexigibilidade de conduta diferente


daquela que representou acato ao comando, pois se entende que ao leigo, ao homem médio,
seria dado desconhecer da ilicitude da ordem, e agir da mesma forma. O fundamento,
portanto, é a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, na forma do
artigo 22 do CP.

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema VIII

Excludentes de Culpabilidade III. O Erro sobre a Ilicitude do Fato (primeira parte). 1) Noções gerais:a) A
teoria finalista e a evolução dogmática. Definição do instituto. Diferença para o erro de direito e as
conseqüências na teoria do delito;b) O conhecimento da ilicitude e sua evolução doutrinária. Modificação
para a potencial consciência do injusto (juízo normativo);c) A ausência do conhecimento da ilicitude e a
ignorância da lei: diferenças. Consciência da ilicitude e erro sobre a ilicitude do fato;d) Distinção entre o
erro sobre a ilicitude do fato e o erro de tipo: conseqüências jurídico-penais. 2) Formas de erro sobre a
ilicitude:a) Erro sobre a ilicitude evitável (inescusável) e inevitável (escusável): conseqüências jurídico-
penais;b) Divisão do erro sobre a ilicitude escusável: erro sobre a ilicitude direto, erro de mandamento e
erro sobre a ilicitude indireto (diferenças).

Notas de Aula20

1. Potencial consciência da ilicitude

20
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 10/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP II Direito Penal II

Na teoria finalista, como se sabe, a conduta deixou de ser apenas o comportamento


humano que causava o resultado, conceito causalista. O conceito finalista de conduta
determina que conduta é o comportamento humano consciente e voluntário,
finalisticamente dirigido.
Esta preocupação com o conteúdo finalístico da vontade é tão fundamental que
nomeia a própria teoria. Para eles, o conceito de dolo, vindo da culpabilidade, pertence à
conduta, e deve abraçar todos os elementos da conduta, pois se deixa de abarcar algum
destes elementos ocorrerá o que se chama erro de tipo. Vejamos detalhadamente este
instituto.

1.1. Erro de tipo

O artigo 20 do CP disciplina este erro de tipo. Veja:

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
Erro determinado por terceiro
§ 2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.
Erro sobre a pessoa
§ 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena.
Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da
pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.”

Veja que a afirmativa legislativa de que “o erro sobre elemento constitutivo do tipo
exclui o dolo” conta com uma impropriedade técnica significativa. Isto porque, na
realidade, a conduta deve açambarcar tanto a ciência quanto a vontade de praticar todos os
elementos – é necessário saber aquilo que se pratica e querer praticar –, mas quando a
pessoa pratica aquilo sem o saber (mata alguém sem saber que está matando alguém, por
exemplo), estará em erro de tipo, errando sobre um elemento do tipo, mas o dolo não é
excluído: o dolo nunca existiu. Se, no exemplo, a pessoa mata alguém mas não sabe que é
alguém (crê que mata um animal, por exemplo), o seu dolo nunca foi de “matar alguém”, e
sim de “matar animal”. Se nunca teve o dolo de matar alguém, não há como este ser
excluído – ele nunca esteve presente. Assim, a expressão mais técnica seria: o erro de tipo
evidencia a inexistência de dolo.
O erro de tipo pode ser evitável. Poderia, a pessoa que erra, ter vencido o erro, ter se
esmerado mais em perceber a exata realidade das coisas. Este erro vencível, como expõe a
parte seguinte do caput do artigo 20, evidencia que não havia dolo, mas faz o agente
responder como se houvesse culpa.
O erro de tipo deve ser analisado logo de início, dado que sua presença é verificada
logo na tipicidade, da qual a conduta é componente. Ao contrário, o erro de proibição, que
será logo abordado, incide na culpabilidade, terceiro momento da análise estrutural do
delito21.

21
À época causalista do delito, falava-se em erro de fato e erro de direito. Veja que não se pode traçar um
paralelo respectivo entre erro de tipo e erro de proibição, porque o dolo causalista era tremendamente

Michell Nunes Midlej Maron 67


EMERJ – CP II Direito Penal II

Pelo ensejo, vejamos o erro de proibição, que é o erro responsável por afastar a
potencial consciência da ilicitude.

1.2. Erro de proibição

Quando o agente realiza uma conduta, sabendo que o faz, e querendo praticá-la, não
há erro de tipo. Mas se ao praticar tal conduta o agente entendia que esta era justa, ou seja,
não sabia da proibição sobre tal conduta, estará em erro de proibição.
O erro de proibição afasta o potencial conhecimento da ilicitude. Vejamos o artigo
sede do instituto, 21 do CP:

“Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato,


se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um
terço.
Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a
consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou
atingir essa consciência.”

Este erro pode ser classificado como vencível ou invencível, respectivamente


inescusável ou escusável. Quando o agente realmente não poderia saber que a sua conduta
era injusta, o erro sendo invencível, não haverá crime (mesmo falando o artigo em “isenção
de pena”). Se fosse exigível do agente a ciência da ilicitude, ou seja, se o erro foi
inescusável, o agente não terá excluída a culpabilidade, pois é claramente presente o
potencial conhecimento da ilicitude, mas ainda há que ser considerado o erro, e por isso o
agente terá minorada a pena: sua conduta é culpável, mas é menos reprovável.
É necessário comentar sobre a expressão inicial deste artigo 21: “o desconhecimento
da lei é inescusável”. Esta assertiva parece contraditória, à primeira vista, mas não é. Veja:
como pode ser possível admitir erro sobre a ilicitude de um fato, e não admitir o
desconhecimento da lei?
É simples: o erro de proibição não se confunde com a ignorantia legis. Não saber
que a lei existe não é desculpa, pois esta é presumidamente conhecida de todos; todavia,
não saber que em uma conduta específica a lei, que se presume conhecida, era aplicável,
tornando-a proibida, é possível, e por isso não há paradoxo no artigo.
O erro evitável é descrito no parágrafo único deste artigo: é justamente a existência
do potencial conhecimento da ilicitude. Se a casuística demonstrar que, com um pouco
mais de zelo, de esmero em se informar, o agente poderia ter alcançado a consciência de
que sua conduta era ilícita, este erro é vencível, e portanto inescusável. Se não poderia,
mesmo com muita atenção, conhecer da ilicitude de sua conduta, será erro inevitável, e
portanto escusável.
O erro de proibição se classifica em três espécies: direto, indireto e mandamental.
Sempre terão a mesma conseqüência: quando invencíveis, excluem a culpabilidade; quando
vencíveis, diminuem a reprovabilidade. Vejamo-los.

1.2.1. Erro de proibição direto

diferente do finalista: para os causalistas, ter dolo era saber e querer praticar a conduta contrária à lei, ou seja,
já englobava o conhecimento efetivo da ilicitude.

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP II Direito Penal II

Consiste no erro que incide sobre a própria ilicitude do fato: o agente sabe que sua
conduta é típica, e deseja praticá-la, mas acredita que o ordenamento traz alguma
autorização especial para que o faça – autorização que não existe, em verdade.
A conseqüência do erro de proibição depende da sua escusabilidade: se o erro for
bastante plausível, ou seja, se é provável que qualquer pessoa, naquela circunstância,
entenderia que estava agindo conforme o ordenamento, e não contrariamente a ele, este erro
é tido por invencível, e a culpabilidade resta afastada por não haver sequer o potencial
conhecimento da ilicitude.
Se, de outro lado, poderia o agente procurar saber que o ordenamento veda sua
conduta, é claro que há o potencial conhecimento da ilicitude, e por isso a culpabilidade
não é excluída. Todavia, este erro de proibição vencível enseja redução da reprovabilidade
do agente, e sua pena será redutível.

1.2.2. Erro de proibição indireto

Este erro, também chamado erro de permissão, consiste no erro quanto aos limites
ou quanto à existência de uma causa de justificação. Veja: este erro ocorre se o agente
pratica a conduta típica porque acreditava que estava presente a causa de justificação,
enquanto esta não existia, ou se pratica a conduta realmente amparado por uma excludente
da ilicitude, mas exacerba quanto aos limites que esta causa lhe permite agir.
Veja: se o agente que mata outrem entende que está amparado por uma excludente
de ilicitude que não existe naquele ordenamento, está neste erro. Suponha, então, que no
Brasil não existisse a legítima defesa: o agente que mata crendo possível fazê-lo para
defender-se erra quanto à proibição da conduta repelente da suposta agressão: esta morte
ser-lhe-á imputada, se fosse vencível o erro sobre a descriminante; se fosse invencível,
estará isento de pena, não havendo crime.
Mas este erro pode dar-se quanto a uma excludente de ilicitude que exista, sendo
erro sobre o alcance de tal excludente. Suponha que o agente repele a agressão em legítima
defesa, e esta causa é prevista no ordenamento, como no Brasil o é. Entretanto, o agente crê
que o instituto permite que mate o agressor, mesmo que ele já tenha sido dominado e tenha
parado a agressão, e, amparado neste erro, mata-o: está em erro de proibição indireto, pois
erra quanto à proibição de exacerbar a legítima defesa.

1.2.3. Erro de proibição mandamental

O erro quanto ao mandamento implícito no tipo é um erro direto: trata-se de um erro


sobre a ilicitude da conduta. Todavia, diferentemente do erro de proibição direto, o agente
pratica a conduta omissiva, crendo que a lei permite que se omita, ou seja: é um erro
quanto à proibição da inação. Se o agente entende que a inação não lhe é proibida, este
erro é quanto à vedação legal, e não quanto às condições de fato.
Enquanto no crime comissivo o preceito implícito é proibitivo (teoria de Binding:
“matar alguém” tem implícito “não matarás”), e a prática do que é descrito revela violação
a este preceito, nos crimes omissivos o preceito é mandamental, e o tipo descreve a inação
proibida: “deixar de socorrer” tem implícito “socorrerás”. O erro quanto a este
mandamento, ou seja, entender que a norma não exige que atue, é o erro de proibição
mandamental.

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP II Direito Penal II

Suponha-se que um agente, garantidor de outrem, entende que determinada conduta


não é de si esperada pela lei: estará claramente neste erro de proibição mandamental. Mas
se o agente erra quanto às circunstâncias que o tornam garantidor, entendendo que não é
garantidor, estará em erro de tipo: sua omissão não revela dolo de “omitir-se quando devia
agir”, e sim de “omitir-se podendo não agir”. Como exemplo, uma pessoa que causa
acidente, tornando-se garantidora da vítima, mas não vê que causou o acidente, e por isso
não socorre, vindo a vítima a óbito: estará em erro de tipo quanto ao homicídio por
omissão, porque não se sabia garantidora (mas estará incursa, de qualquer forma, na
omissão de socorro).
Veja um exemplo peculiar: o guarda-vidas é garantidor enquanto está em seu posto
de serviço, em seu horário de serviço, pela área por ele guardada. Suponha-se que este
guarda-vidas acaba seu horário, e o seu substituto chega. O guarda-vidas que terminou o
horário, ainda no recinto, vê alguém se afogando, e deixa de socorrê-lo porque seu turno
acabou, e crê que a lei permite que não aja, desde então.
Ocorre que, enquanto estiver no recinto, tem o dever de agir, e por isso está, este
agente, em erro de proibição mandamental: sabe-se garantidor, omite-se com intento e com
ciência dos fatos e da sua condição, apenas acreditando que a lei o desobrigou.
O erro de proibição mandamental é aquele que versa sobre o mandamento implícito
nas normas que definem crimes omissivos22.

1.3. Estudo de exemplos concretos

O estudo por meio de exemplos ilustrativos, neste tema, é de grande valia, a fim de
melhor identificar erros de tipo e de proibição. Por isso, vejamos alguns:

a) Agente revela segredo profissional julgando haver justa causa para fazê-lo,
quando, na verdade, não havia tal justa causa.

Ao revelar o segredo profissional sem justa causa, o agente estaria incurso no artigo
154 do CP:

“Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão
de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a
outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Trata-se de erro de tipo, pela seguinte razão: o agente, ao praticar a conduta, estava
errando quanto a um dos elementos necessários do tipo, qual seja, o elemento normativo:
entendia que havia justa causa, e portanto não estaria realizando, com plena ciência e
vontade, uma conduta típica. O que este agente queria era praticar a conduta “revelar
segredo com justa causa”, e não “revelar segredo sem justa causa”, ou seja, não havia dolo

22
Aqui, é necessário que a configuração de garantidor esteja bem expressa. O médico, por exemplo, é tido
comumente por garantidor a qualquer momento, o que não é verdade: só é garantidor enquanto está no seu
local de trabalho, e por aqueles que está obrigado (sendo assim considerado quando é contratado para tanto,
em relação ao seu contratante particular). Da mesma forma, o policial: só é garantidor quando em serviço.

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP II Direito Penal II

em “revelar sem justa causa”. E como visto, o erro de tipo é aquele que revela a
inexistência do dolo.
Veja que, se o agente quisesse praticar a conduta “revelar segredo sem justa causa”
porque acreditava que, no caso, era permitida tal revelação, estaria em erro de proibição.
Há quem entenda, minoritariamente, que o erro quanto à justa causa é de proibição,
e não de tipo, porque o que está ocorrendo é a interpretação de que aquela conduta, que se
sabe típica e se quer praticar, não é ilícita, errando o agente quanto à vedação da prática no
caso concreto.

b) Supondo ser ilegal a prostituição, o irmão de uma prostituta a retira, à força,


de um quarto de hotel onde esta se prostituía.

O irmão está praticando a conduta do constrangimento ilegal, do artigo 146 do CP,


mas crendo que está autorizado para tanto, neste caso, porque entende que a conduta da
prostituição é ilegal. Veja:

“Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de


lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
(...)”

Ocorre que, como é cediço, a prostituição não é crime. Assim, o agente estava, de
fato, constrangendo alguém a não fazer o que a lei permite, só que seu dolo era de
“constranger alguém a não fazer o que a lei proíbe”, e não “constranger alguém a não fazer
o que a lei permite”. Está, portanto, em erro de tipo, pois não praticou, com ciência e
vontade, a conduta descrita no tipo: praticou a conduta com vontade, mas sem ciência do
elemento “ilegalidade” da conduta constrangida.

c) Agente faz colheita de planta, sem saber que a mesma se destina ao fabrico de
entorpecente.

Esta situação revela claro erro de tipo. Veja o artigo 33, § 1º, II, da Lei 11.343/06:

“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a
1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-
prima para a preparação de drogas;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP II Direito Penal II

A pessoa não sabia que estava colhendo planta destinada a fabrico de entorpecentes,
e o dolo só se define pelo que se sabe e se quer. Seu dolo não era de “colher planta
destinada à preparação de drogas”, e sim de “colher planta”. Por isso, está revelada a
inexistência do dolo natural descrito no tipo, havendo erro de tipo.
Se este agente, ao contrário, soubesse que a planta era destinada ao fabrico de
drogas, mas acreditasse que o proibido era somente o fabrico, e não a colheita, aí sim seria
erro de proibição: seu dolo era de “colher planta destinada ao fabrico de drogas”, apenas
errando quanto à licitude desta conduta (e, diga-se, é erro evitável, reduzindo a
reprovabilidade, mas não a elidindo).

d) Agente se opõe à prática de ato legal de funcionário público, julgando estar


diante da prática de um ato ilegal.

Novamente, trata-se de claro erro de tipo: o agente pratica sua conduta crendo que a
situação de fato não é aquela que realmente está ocorrendo, ou seja, crê que rechaça prática
ilegal, enquanto esta prática é legal. Seu dolo é de “opor-se à prática de ato ilegal”, e não
“opor-se à prática de ato legal” da autoridade. Veja:

“Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a


funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:
Pena - detenção, de dois meses a dois anos.
(...)”

A conduta típica do crime de resistência seria saber que o ato é legal, e querer opor-
se ao ato legal. Se o agente crê que o ato é ilegal, e opõe-se contra ato ilegal, sua conduta
não preenche o dolo exigido para tipificar-se – está em erro de tipo.
Caso este agente soubesse que o ato era legal, e a ele se opusesse por crer que
alguma situação o autorizaria, mas não havia esta autorização, estaria, aí sim, em erro de
proibição.

e) Agente que pertence a família que tradicionalmente vive da caça exerce esta
atividade sem a devida autorização, e, ao ser abordado por agente de polícia
ambiental e questionado sobre a licença, declara que “não precisa de licença,
pois sua família vive da caça há mais de quatro séculos, naquela área, distante
e isolada de centros urbanos”.

Veja que esta conduta é erro de proibição, pois o agente, ao caçar, sabe que o faz, e
sabe que a lei exige licença, mas crê que as suas condições pessoais o autorizam a praticar
esta conduta típica, “caçar sem licença”. Sendo assim, o seu dolo de “caçar sem licença”
está presente: ele sabe que caça sem licença, e quer caçar sem licença, mas acredita que o
ordenamento permite que ele o faça.
Trata-se, inclusive, de erro de proibição direto: o agente realiza um fato crendo que
o direito o permite, especialmente. Este erro aparentemente é invencível: se a prática
sempre lhe foi autorizada, não seria razoável exigir, deste agente em particular, que
soubesse que também a ele licença era imponível – seu erro exclui sua culpabilidade,
porque ele não tinha como saber que era lhe era proibida a caça sem licença.

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP II Direito Penal II

f) Agente retira algas do fundo de uma lagoa sob proteção ambiental, sendo preso
em flagrante delito por pescar em local proibido. Alega desconhecer que
estivesse “pescando”.

Esta questão é tremendamente peculiar. O agente pratica a conduta sabendo o que


faz, e querendo fazê-lo: ele retira vegetal da lagoa protegida, e sabe que retira vegetal da
lagoa protegida. O problema é que a lei ambiental equipara esta conduta a “pescar”.
O comportamento tipificado é “pescar em local proibido”, e o agente o realiza com
ciência e vontade, mas apenas porque não sabe que “retirar algas” é equiparado, pela lei, a
“pescar”. O agente sabe que “retira algas”, e “quer retirar algas”, mas desconhece que esta
conduta está enquadrada em um tipo penal. Seu dolo natural é o de retirar os vegetais, mas
não sabe que a lei equipara esta retirada a pescar. Erra, portanto, quanto à vedação do
ordenamento à sua conduta – é erro de proibição.
Mas veja que, se analisada por outro enfoque, pode ser tida por erro de tipo: o
agente não sabia que estava “pescando em local proibido”, porque para ele não estava
“pescando”, mas sim “colhendo algas”. Sendo assim, seu dolo nunca foi de “pescar em
local proibido”, e sim de “colher algas em local proibido”, conduta que entendia permitida.
Haveria erro no preenchimento de um elemento do tipo, qual seja, “pescar”.
Este raciocínio, do erro de tipo, não deve prevalecer: o agente, de fato, sabe que
colhe vegetais, e quer colher vegetais – o tipo está perfeito –, mas não sabe que a lei
equipara sua conduta a “pescar”, o que sabe ser proibido – havendo erro de proibição,
então.
Veja que se o agente retirasse as algas crendo que estava retirando lixo, seria
claramente erro de tipo. Daí a diferença: realiza o tipo com ciência e vontade, errando
quanto à proibição de colher algas.
Trata-se, portanto, de erro de proibição direto invencível, pois é certo que quase
ninguém saberia desta equiparação legal da colheita de algas à pesca.

g) Agente transporta cocaína julgando ser farinha.

Esta situação é bem simples: o agente não sabe que transporta droga, nem quer
transportar droga. Realiza a conduta típica sem ciência nem vontade de preencher os
elementos do tipo. Está, portanto, em claríssimo erro de tipo.

h) Após cinquenta anos em coma, agente recobra a consciência e, no carnaval,


vende lança-perfume em um baile, sendo preso em flagrante. Ao ser preso,
questiona o motivo, pois sempre usou e vendeu lança-perfume, quando jovem,
de forma irrestrita.

Aqui, desenha-se claramente o erro de proibição direto: o agente pratica a conduta


típica, querendo e sabendo de seus atos, mas crê que é autorizada pelo ordenamento. E, no
seu caso, é certamente invencível, por suas condições pessoais (sendo vencível a qualquer
pessoa, em regra).

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP II Direito Penal II

i) Agente, humilde habitante de área rural, ao ser agredido por outra pessoa,
reage à injusta agressão, e, julgando poder atingir as últimas conseqüências,
mata o agressor, que já estava dominado.

Aqui se trata de erro de proibição quanto ao alcance da descriminante: o agente,


que iniciou sua conduta em legítima defesa, praticou o excesso por acreditar que o
ordenamento permitia que o fizesse. Excedeu-se por errar quanto aos limites de sua causa
de justificação: é erro de proibição indireto.

j) Babá de criança, julgando que quando a mãe da criança se encontra em casa a


babá não precisaria agir para evitar lesões à criança, deixa de agir diante de
situação de perigo em que a criança se encontra, e esta vem a sofrer lesão.

A agente sabia que deixava de agir em relação a sua garantida, e queria deixar de
agir em relação a ela, estando claramente preenchidos os elementos do tipo comissivo por
omissão. Todavia, a agente só agiu assim porque entendia que a lei, naquele caso, não
exigia que agisse, ou seja, acreditava que a lei não proibia sua inação. Por isso, trata-se de
erro de proibição mandamental.
Veja que a agente não erra quanto à sua condição de garantidora: sabe que o é.
Contudo, entende que, naquele momento, pela presença de outra garantidora, a lei a exime
de agir, não impõe que aja. Por isso, erra quanto ao mandamento que a lei emana, sem errar
quanto às elementares da conduta omissiva: se omite com ciência e vontade de omitir-se,
crendo que a lei permita que não aja. Sabe que a criança é sua garantida, e omite-se
achando que a lei não exige sua atuação.

k) Babá leva criança sob seus cuidados à praia, para ter aula de ginástica, e não
vê quando esta criança, que trajava maiô vermelho, troca de maiô com uma
amiga, que trajava amarelo. Em dado momento, a babá vê uma criança de
amarelo se afogando, mas não a socorre, embora pudesse. Posteriormente,
verifica que era a sua garantida que se afogara, e sofrera graves lesões.

Neste caso, a garantidora não erra quanto a sua obrigação mandamental em agir:
sabe que, como garantidora, tem esta obrigação. Todavia, erra quanto a uma circunstância
de fato que é elementar do crime omissivo: a própria presença da garantida. Por isso, não
sabia que era garantidora daquela criança, porque acreditava ser outra criança, dada a troca
de roupas. Estará, portanto, em erro de tipo, pois a condição de garantidora é uma
elementar dos crimes comissivos por omissão, e se a agente erra quanto a esta condição,
erra quanto a uma elementar do tipo – erro de tipo.

l) Muçulmano radical que reside no Brasil, descobrindo o adultério de sua


esposa, a mata, julgando que pudesse fazê-lo, por ser seu direito de marido.

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP II Direito Penal II

O homem que é vítima de adultério, em alguns países muçulmanos, tem realmente o


direito de matar a esposa infiel. Trata-se, realmente, de exercício regular do direito, nestes
países.
No Brasil, é claro, isto não procede. Mas este agente, quando matou sua esposa,
acreditava que a lei o permitisse fazê-lo – errou quanto à existência de uma causa de
justificação. Este erro, como se sabe, trata-se de erro de proibição indireto. Claramente
vencível, o agente responde, apenas tendo reduzida a culpabilidade.

Casos Concretos

Questão 1

Cite três distinções básicas entre o erro de tipo e o erro de proibição. A questão da
obediência hierárquica na hipótese do autor justificante se limita no campo do direito
público ou inclui a relação de natureza doméstica ou religiosa?

Resposta à Questão 1

O erro de tipo afasta o dolo, pois o agente não tem consciência de todas as
elementares do tipo, e não pode querer algo que não sabe (tecnicamente, revela a
inexistência do dolo, e não o afasta); quando vencível, o fato é punido a título de culpa;
quando invencível, exclui a própria tipicidade, por falta de dolo.
No erro de proibição, por sua vez, o agente não tem consciência da ilicitude, e por
isso afasta a culpabilidade; se for vencível, mantém-se a imputação, mas reduzida a pena;
se invencível, exclui-se a culpabilidade, e não há crime.

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP II Direito Penal II

Quanto à obediência hierárquica, esta não pode ser argüida em relações privadas,
atendo-se à seara pública, pois só ali as relações são regidas pela estrita legalidade.

Questão 2

No injusto do tipo de violação de segredo profissional é admissível o erro de


proibição invencível?

Resposta à Questão 2

O que se reconhece, majoritariamente, é que quando o agente erra neste crime ele
estará errando quanto a um elemento do tipo, geralmente a justa causa, o que seria, então,
erro de tipo, e não erro de proibição.
Considerando que o agente, entretanto, pratique a conduta sabendo que é típica, sem
justa casa, mas creia que possa praticá-la, por algum motivo, seriamente fundado, diverso
de achar que está em justa causa, será erro de proibição.

Tema IX

Excludentes de Culpabilidade IV. O Erro sobre a Ilicitude do Fato (segunda parte). 1) O erro sobre a
ilicitude indireto. As descriminantes putativas:a) Conceito e importância do tema;b) A nova nomenclatura:
erro de permissão. Diferença frente ao erro de tipo permissivo. 2) Exame da teoria extremada e a teoria
limitada da culpabilidade. Análise da teoria dos elementos negativos do tipo. Posição adotada pelo artigo 21
do Código Penal Brasileiro. 3) A doutrina alemã: o conceito de erro sui generis (teoria do erro orientada às
conseqüências do erro).4) O erro sobre a ilicitude evitável e o inescusável:a) Erro de vigência, erro de
eficácia, erro de subsunção e erro de punibilidade: controvérsias quanto à escusabilidade desses erros. 5) O
erro sobre a ilicitude no crime culposo e no crime omissivo. Exame dos exemplos.

Notas de Aula23

1. Erro nas descriminantes putativas

Antes de adentrar no estudo próprio do erro nas descriminante putativas, é


necessária uma breve revisão sobre as conseqüências dos diversos erros.

23
Aula proferida pela professora Cláudia Barros, em 10/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP II Direito Penal II

O erro de tipo escusável faz com que o agente deixe de responder por crime, pois
revela inexistência de dolo ou culpa, deixando de haver crime. Se evitável, inescusável, não
há dolo, mas acarreta a responsabilidade a título de culpa.
O erro de proibição, por sua vez, se escusável, inevitável, isenta de pena (exclui
culpabilidade, e por isso também exclui o crime); se inescusável, não exclui a
culpabilidade, mas reduz o grau de reprovabilidade, reduzindo a pena.
O erro na descriminante putativa, por sua vez, é uma circunstância tremendamente
peculiar. Tem lugar a análise amiúde do artigo 20, § 1º, do CP, pelo que se o repete:

“(...)
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
(...)”

A definição de descriminante putativa está neste dispositivo: o agente,


subjetivamente, atua sob o pálio de uma descriminante, a qual, no mundo fático,
objetivamente, inexiste. Exemplo claro é quando o agente, vendo-se diante de seu desafeto,
crê que este, por realizar um movimento brusco, vai lhe agredir, e desfere-lhe agressão
repelente da suposta agressão, vindo a perceber que na verdade o seu desafeto não ia
agredi-lo: está em legítima defesa putativa, pois o seu ânimo foi de repelir injusta agressão,
que parecia existir no mundo dos fatos, mas só existia em sua mente.
Subjetivamente, então, a situação se desenhava como injusta agressão, e merecia
repúdio; objetivamente, não existia. Se, neste caso, a situação existisse, ou seja, se
realmente a agressão fosse ser praticada por seu desafeto, o agente estaria em legítima
defesa real, e sua conduta seria justificada, não havendo crime.
Assim como o erro de tipo e o de proibição, a putatividade também é dividida em
vencível e invencível: se a situação de fato, objetiva, realmente não pudesse ser perscrutada
pelo agente, de forma a identificar que não existia, senão em sua mente, a necessidade de
atuar em sua proteção, o erro é invencível; se era exigível do agente que observasse melhor
os fatos, pois desta observação ser-lhe-ia revelada a inexistência da justificante, o erro era
vencível, e portanto inescusável. Para a putatividade invencível, o dispositivo transcrito
dispensa o mesmo tratamento da excludente da ilicitude, se fosse real: exclusão do crime
por justificação da conduta. Para a vencível, o dispositivo prevê que o dolo é excluído, mas
se o fato praticado escorado na justificante objetivamente inexistente for crime, e punido
também em modalidade culposa, será assim tratado o agente: responderá pelo delito
culposo. Estas conseqüências são claramente expressas na lei, e não se as pode questionar.
Definir a natureza jurídica do erro nas descriminantes putativas, entretanto, é tarefa
extremamente complexa. Saber se é erro de tipo ou de proibição é tarefa árdua, em nosso
ordenamento. Mesmo por isso, Zaffaroni critica a ordem do CP brasileiro, entendendo que,
de fato, nosso legislador criou tumulto que seria dispensável. Vejamos.
A teoria adotada para a culpabilidade, hoje, é a normativa pura, como se viu, por
inexistirem elementos subjetivos em nossa culpabilidade: é juízo de censura composto por
três elementos, todos eles normativos, quais sejam, a imputabilidade, o potencial
conhecimento da ilicitude, e a exigibilidade de conduta diversa. Os partidários desta teoria
normativa pura divergem entre si, quanto à natureza deste erro nas descriminantes
putativas: para cada corrente da doutrina que adota a teoria normativa pura, uma vertente

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP II Direito Penal II

interna desta teoria é criada: a teoria extremada da culpabilidade, e a teoria limitada da


culpabilidade24.
A teoria extremada da culpabilidade não faz distinção quanto às espécies de erro
sobre causas de justificação: qualquer erro sobre estas causas é sempre erro de proibição,
chamando-o erro de proibição indireto, erro de permissão, já visto.
Já a teoria limitada da culpabilidade, ao contrário, faz distinção entre as espécies de
erro nas causas de justificação, distinguindo três espécies de erro quando incidentes sobre
justificantes: o erro pode incidir sobre a existência da causa; sobre os limites da causa; ou
sobre os pressupostos fáticos da causa. Errando sobre a existência, achando que o
ordenamento cria uma causa de justificação que inexiste (como no caso da morte da mulher
adúltera por seu marido), seria erro de proibição indireto. Se o erro for sobre os limites de
uma causa que realmente existe no ordenamento (como no caso do erro de permissão sobre
o excesso na legítima defesa), será também erro de proibição indireto. E se o erro for
quanto aos pressupostos de fato da causa, ou seja, o erro em que o agente supõe que os
fatos justificam conduta sua que ordinariamente seria ilícita (é exatamente o caso da
legítima defesa putativa), se trata de erro de tipo permissivo.
Veja que para a teoria limitada da culpabilidade normativa pura, então, o erro nas
descriminantes putativas, este erro quanto aos pressupostos de fato que criaram na mente do
agente a putatividade, é um erro de tipo. Contudo, o erro incide sobre uma elementar que
não se encontra em um tipo proibitivo, e sim em um tipo permissivo. Tome-se a legítima
defesa putativa por exemplo: o agente sabe que a lei permite a ação repelente, e pratica-a
com sua vontade: tem ciência e vontade em praticar a conduta permitida na lei, ou seja,
preenche com sua vontade os elementos do tipo permissivo, da legítima defesa. Ocorre que
se a situação de fato não revelava a agressão, ou seja, se esta só existia em sua mente, o
preenchimento da conduta permitida foi feito em erro; errando sobre elementos do tipo, se
trata de erro de tipo, e como este é permissivo, é erro de tipo permissivo.
Em síntese: para a teoria limitada, é erro de tipo permissivo; para a teoria
extremada, é erro de permissão, erro de proibição indireto.
Pela análise do artigo 20, § 1º, do CP, não fica clara a natureza do erro. Veja: se for
considerada a tese da teoria extremada, ou seja, se se considerar que é erro de proibição
indireto, se inevitável, isenta de pena; se evitável, irá diminuí-la – mas o artigo fala em
responsabilização por culpa. Se adotada a tese limitada, e o erro for de tipo, o artigo 20, §
1º, determinaria que o agente estaria isento de pena por conta do erro escusável, quando se
sabe que o erro de tipo escusável exclui o dolo. De uma ou de outra forma, haveria uma
impropriedade.
Debalde esta discussão, a tese adotada é a limitada, pois assim consignaram os
legisladores nos itens 17 e 19 da exposição de motivos do CP. Mas é uma impropriedade.
O erro nas descriminantes putativas é erro de tipo permissivo, mas seu tratamento
não é compatível com erro de tipo. É por isso que Zaffaroni entende que a teoria limitada
não poderia ter sido adotada no nosso CP, pois é a aplicação da teoria da ratio essendi no
campo da culpabilidade, é a conseqüência da aplicação da ratio essendi no campo da
culpabilidade, teoria que prevê a ligação inafastável entre a tipicidade e a ilicitude25. E o
24
Repise-se: ambas são vertentes internas da teoria normativa pura.
25
Há três teorias a respeito desta ligação: a que crê absolutamente independentes um do outro, tipicidade e
ilicitude; a que entende que há ligação entre tipicidade e ilicitude, sendo calcada na ratio cognoscendi (a
tipicidade indicia a ilicitude), mas são conceitos autônomos, mesmo havendo esta relação indiciária; e a teoria
que entende que não há como se dissociar uma da outra: tipicidade e ilicitude são ligadas, por este vínculo

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP II Direito Penal II

Brasil adotou, como é cediço, a teoria da ratio cognoscendi, havendo tipicidade apenas
como indiciária da ilicitude, e não dependente da ilicitude, como indica a ratio essendi, não
havendo sentido em se adotar a teoria limitada da culpabilidade.
Veja que esta adoção não faz sentido porque para a teoria da ratio essendi, se não
for ilícito, não é típico, mas para a ratio cognoscendi, por nós adotada, pode haver
tipicidade sem que haja ilicitude. Para a teoria da ratio essendi, se a ausência dos elementos
justificantes faz parte do tipo, para haver o dolo, é preciso que se saiba e se queira praticar a
conduta típica em todos os seus elementos, mas também é preciso que se saiba e se queira
praticar esta conduta sem que haja os elementos de nenhuma das justificantes. Se o agente,
neste caso, pensa que estão presentes os elementos da justificação, mesmo estando eles
ausentes, o erro é na tipicidade, no tipo total de injusto – é erro de tipo. Mas este raciocínio
não se opera na ratio cognoscendi: ali, se o agente erra quanto a elementos justificantes,
ainda assim a tipicidade se faz presente. Não há tipo total de injusto, e haveria tipicidade na
conduta justificada. O agente, na nossa sistemática, quando repele a agressão, age com dolo
de matar, e ciente da ilicitude desta conduta: realiza a conduta com dolo, havendo
tipicidade, mas não havendo ilicitude, pois a justificante da legítima defesa a retira. Se a
justificante é putativa, este erro não exclui o dolo: o dolo de matar ainda está perfeito,
apenas podendo ou não ser excluída a ilicitude (se vencível ou não), mas nunca a tipicidade
– e portanto não poderia ser erro de tipo.
A situação é bastante complexa, tanto que o próprio legislador acabou por se
confundir. Por isso é que é tão absurdo se falar em resposta por culpa, quando o erro é
vencível, se não se trata de culpa jamais, em nossa sistemática: o dolo natural não deixou de
estar presente, em nenhum momento. A culpa imprópria é uma construção desastrada.
Por conta disso, surge uma terceira teoria, para a qual este erro é sui generis. Trata-
se de teoria alemã, teoria do erro orientada às conseqüências do erro. Para esta teoria, não
se trata de erro de tipo ou de proibição: o erro sui generis consiste em uma modalidade
diversa das demais, justamente pelo tratamento que recebe, incompatível com os demais. O
tratamento é dado em relação às conseqüências do erro, e não em relação ao elemento sobre
o qual ele incide.

indiciário, mas um fato não pode ser típico sem ser ilícito, jamais: esta é a teoria da ratio essendi, teoria dos
elementos negativos do tipo, em que a tipicidade depende da inexistência necessária de causas que excluem a
ilicitude, pois sem ilicitude não há tipicidade (é o tipo total de injusto).

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP II Direito Penal II

Casos Concretos

Questão 1

JACIRA, com dezoito anos de idade e simplesmente alfabetizada, é mãe de


JANDIRA, cuja guarda foi deferida judicialmente à avó paterna. Numa visita, por entender
que era a mãe e que por isso poderia ficar com a filha, a leva consigo não devolvendo à
avó. Denunciada como incursa nas penas do art. 249 do Código Penal, a defesa alega
exercício regular de um direito putativo. Está correta a postulação? Qual será a
conseqüência penal se for aceita a tese defensiva?

Resposta à Questão 1

Está incorreta. Nada indica que a ré estivesse em erro de tipo penal permissivo, e
sim em erro de proibição: a ré sabia da guarda dada à avó, e sabia que a quem é dada a
guarda incumbe ter o domínio da criança: os fatos eram por ela conhecidos, e ao preencher
os elementos do artigo 249 do CP, o fez sabendo de cada um deles, e querendo-os, mas

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP II Direito Penal II

crendo que a norma a si não se aplicaria, por ser mãe. E é erro de proibição direto: está
errando sobre a ilicitude da sua conduta (de forma vencível, diga-se).
Se fosse acatada a tese defensiva, tratar-se-ia de erro de tipo permissivo; como todo
erro de tipo, se invencível, exclui o dolo, e isenta de pena; sendo vencível, responde pela
conduta como se culposa fosse, e como este crime do 249 do CP não é punível a título de
culpa, não há crime.

Questão 2

Em alegações finais, sustenta a Defesa o reconhecimento de hipótese de


descriminante putativa por erro de tipo. O MP, embora também aderindo à tese do erro,
sustenta, porém, a aplicação da teoria do erro que remete às conseqüências jurídicas,
aduzindo que a defesa encampa a teoria limitada da culpabilidade por reputá-la mais
benéfica ao réu. Posto a decidir a questão, discorra acerca de cada tese, esclarecendo suas
características, identidade de postulados e divergências no tratamento da questão.

Resposta à Questão 2

Em síntese, a defesa pretende isenção de pena por exclusão do dolo, vez que se há
reconhecimento de erro de tipo, no caso de erro na descriminante putativa – pois este é o
resultado da aplicação da teoria limitada da culpabilidade –, este será o tratamento dado à
conduta. o MP, ao contrário, diz que há o dolo, e por isso não pode haver erro de tipo, sendo
este um erro sui generis que recebe tratamento especial do ordenamento, respondendo pela
conseqüência do erro – se foi culposo, responde por culpa.

Tema X

Crime Consumado e Crime Tentado I. 1) As fases do iter criminis: cogitação, decisão, atos preparatórios,
início de execução, consumação. 2) Atos preparatórios e atos executórios: distinção. Teorias subjetiva e
objetiva. Posição do Código Penal Brasileiro. 3) Consumação: definição. A importância do resultado para a
consumação do crime. Diferença para o exaurimento.

Notas de Aula26

1. Iter criminis

Em seu conceito mais plano, iter criminis é o processo subjetivo e objetivo pelo
qual perpassam as etapas de realização do crime doloso, sendo que algumas etapas são
obrigatoriamente presentes, e outras facultativas, eventuais.

Cogitação
Exaurimento
Preparação
26
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares, em 11/9/2008.
Execução

Michell Nunes Midlej Maron Consumação 81


EMERJ – CP II Direito Penal II

Vejamos cada etapa.

1.1. Cogitação

Cogitar é imaginar, desejar. Esta primeira fase do iter criminis é puramente mental,
psicológica, em que o agente planeja mentalmente a prática do crime. Por óbvio, por ser
etapa passada exclusivamente na mente do agente, esta fase é absolutamente impunível, em
face do princípio da lesividade: para que haja crime, é preciso que bem alheio tenha sido
ofendido, ou ao menos ameaçado – o que não acontece, aqui.
Mas repare que a cogitação é uma etapa necessária do crime doloso: todo crime
doloso obrigatoriamente foi cogitado na mente do agente. A premeditação, ao contrário do
que se pode pensar, não é uma particularidade de um ou outro crime. Todo crime doloso
precisa, pela própria natureza do dolo, ter sido cogitado em algum momento, quer seja por
uma fração de segundo, quer por um mês. E veja que é claro que a premeditação não é
agravante para crime nenhum, como se vê em filmes; é etapa natural, ínsita ao dolo.

1.2. Preparação

Os atos preparatórios são passados já no plano concreto: são atos, e não


pensamentos. Mesmo sendo atos, ainda estão na esfera de afecção do próprio agente que os
faz, não alcançando bem jurídico alheio, e por isso também são absolutamente impuníveis,
em si. São atos externos, concretos, de preparação para a realização do crime; porém,
também não ultrapassam a esfera, o âmbito, do próprio autor.
É também pela atenção ao princípio da lesividade que os atos preparatórios são
impuníveis, já que não ultrapassam a esfera de direitos do próprio agente.
A preparação é uma etapa facultativa, pois nada impede que o agente salte direto da
cogitação para a execução do delito doloso. Veja que a preparação é composta por atos de
organização do que se pretende executar, tais como adquirir a arma, escolher e preparar o
local, etc. Sendo assim, não são determinantes para a execução, que pode se dar de forma
desorganizada, de relance.
Mas veja que há exceções à impunibilidade dos atos preparatórios. Todavia, antes
de mencioná-las, há que se atentar para a definição do que se entende por exceção, pois o
que ocorre, de fato, em um sentido mais estrito, não se trata de exceção. Veja: há atos que
têm natureza preparatória, mas que o legislador pretende tornar puníveis; sendo ato
preparatório, não pode receber, de per si, punição, pela ausência de lesividade, e por isso o
legislador cria um tipo autônomo para punir aquela conduta. Perceba, então, que o que
ocorre é a tipificação autônoma de uma conduta que, de outra forma, seria mera preparação
para outro crime, e por isso um ante factum impunível. Vejamos, então, algumas destas
“exceções”:

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP II Direito Penal II

“Quadrilha ou bando
Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim
de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”

“Petrechos para falsificação de moeda


Art. 291 - Fabricar, adquirir, fornecer, a título oneroso ou gratuito, possuir ou
guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente
destinado à falsificação de moeda:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.”

Perceba que nestes casos as condutas seriam preparatórias de outros crimes, mas a
partir do momento que são autonomamente tipificadas, o que se pune não é mais a
preparação do crime, e sim o crime autônomo. Por isso é que não seriam, criteriosamente,
exceções: quando se pune a formação de quadrilha, não se pune a “preparação para roubo
em concurso de pessoas”, por exemplo; se pune a “execução da formação de quadrilha” –
mesmo que em essência fossem atos preparatórios de outro crime.
Vale consignar que a cogitação não só não é punível, como jamais é eleita como
uma conduta típica autônoma, ao menos em nosso ordenamento.

1.3. Execução

A delimitação do momento exato em que se dá o início da execução é tarefa árdua, e


é de extrema importância, pois é deste ponto em diante que se inicia a punibilidade dos
atos, ao menos a título de tentativa.
Segundo a definição clássica, a execução ocorre quando o agente dá início à
realização do crime, interferindo pela primeira vez na esfera do bem jurídico alheio,
possibilitando, portanto, a intervenção do direito penal sobre seus atos, através da punição
ao menos da tentativa.
O problema reside em se identificar quando é que se deu exatamente o início da
prática considerada criminosa. A doutrina traçou, neste estudo, dois critérios para tanto, um
subjetivo e outro objetivo. O critério subjetivo, de fato, foi abandonado, por não ter o nível
seguro de definição que um ato concreto precisa. Consistia, o critério subjetivo, na
identificação do ânimo do agente, ou seja, se seu intento era de preparar-se ou se já era
executório da conduta, independente de que ato se estivesse analisando.
É claro que este critério subjetivo é altamente tênue, e por isso se demonstrou
inaplicável. Os critérios objetivos, então, foram os adotados no direito penal para delimitar
o início da execução. Em síntese, os critérios de natureza subjetiva acabaram por ser
afastados pela dogmática moderna, em face de sua pouca precisão, já que delimitavam o
início da execução de acordo com o ânimo do autor. Portanto, para estes critérios, o início
de execução se dá quando o agente atua demonstrando ânimo de realização do crime, ao
contrário daquelas condutas realizadas com ânimo de preparação, organização para a futura
prática do crime.
Há, portanto, predominância dos critérios objetivos, mas isto não significa que o
tema se pacificou. Ao contrário, há três teorias objetivas para definir o início da execução.
Vejamo-las.

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP II Direito Penal II

1.3.1. Critério objetivo-formal

Esta teoria entende que a execução se inicia quando o agente formaliza o crime.
Formalizar o crime significa realizar a conduta prevista no tipo formal, ou seja, o início da
execução se dá quando o agente inicia a concreta prática, a realização do verbo núcleo do
tipo penal.
No homicídio, por exemplo, seria início de execução a primeira conduta destinada a
matar a vítima. Veja que este critério é tremendamente restritivo; exigindo que o ato de
matar seja efetivamente iniciado, a situação será muito próxima da consumação até poder
ser considerada execução. Isso sem mencionar que é de difícil definição o que seja um ato
que revele a conduta matar: é o disparo da arma de fogo? É o desferir de um golpe de faca,
mesmo se passar no ar? Veja que é complexo definir este momento, o qual só seria
realmente preciso na consumação do fato.
Imagine, por exemplo, que seja intentada uma conduta que se demonstre tentativa
branca, incruenta: segundo este critério, seria impunível, porque o agente não começou
efetivamente a matar a vítima, pois sequer tangenciou sua integridade física. Por isso, este
critério não tem tanta adesão doutrinária.
Sintetizando: este critério se tornou minoritário por ser demasiadamente restritivo, e
exigir espera longa demais para que se configure a execução, para que haja a tentativa.

1.3.2. Critério objetivo-material

Este critério se construiu exatamente tentando reparar os erros do critério objetivo-


formal. Determina que não é necessária a concreta prática do verbo para delimitar início de
execução, pois há atos que, mesmo anteriores à concreta prática do verbo podem, e devem,
ser considerados executórios. De fato, para esta teoria, tudo que antecede a prática do
verbo, até chegar no primeiro ato de preparação, deve ser considerado ato de execução.
Veja que esta teoria faz uma análise retrotraida da conduta: partindo do momento da
consumação, retroage-se até a preparação, e tudo que estiver neste interregno, é ato
executório.
Em síntese, para esta teoria, o início da execução se dá com condutas anteriores à
concreta prática do verbo, e que integrem a realização do crime. Portanto, o primeiro ato
após a preparação já pode ser visto como início de execução.
Perceba que este critério é intimamente ligado a uma análise concreta dos fatos,
sendo irrelevante qualquer aspecto subjetivo. E aproxima muito, de fato faz lindeiro,
fronteiriço, o primeiro ato executório ao último ato preparatório. Ocorre que, ao fazer esta
aproximação, este critério se torna ampliativo em demasia, criando novos problemas. Veja
um exemplo: o agente prepara a arma de fogo, municia, e sai de casa para encontrar a
vítima. Encontrando-a, saca a arma: este ato será executório, pois alheia-se à mera
preparação (enquanto que, se fosse seguido o critério objetivo-formal, seria necessário que
houvesse o disparo acertando a vítima).
Mas veja que esta situação pode se demonstrar tremendamente incompatível com a
realidade. Se o agente, ao sacar a arma, não tivesse a real intenção em dispará-la, vindo a
apenas ameaçar a vítima, ou constrangê-la a fazer algo, se estaria atribuindo homicídio
tentado a um fato que se trata de uma ameaça ou constrangimento ilegal consumados. Esta

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP II Direito Penal II

incongruência é bastante problemática, depondo contra esta teoria. Ao tratar do saque da


arma como execução de homicídio, por vezes se estará interpretando corretamente, mas em
muitas outras se estará atribuindo uma natureza ao fato que não corresponde ao que ele
efetivamente representa. Fica claro que é necessário, então, que haja um elemento a mais
para identificar qual é o bem jurídico posto em alvo.
Esta tese é majoritária na Alemanha, mas lá é aplicável com maior precisão, pois a
descrição dos tipos penais, em sua legislação, é muito mais detalhada e precisa, sendo
igualmente precisa a análise objetiva de sua execução. Por exemplo, o crime de homicídio,
que aqui é “matar alguém”, lá é algo como “praticar conduta destinada a retirar a vida de
outro ser humano”. Por isso, apontar a arma é mais facilmente enquadrado (mesmo ainda
havendo imprecisão quanto ao dolo) no tipo penal deles do que no nosso, pois é certo que
“apontar arma” não é facilmente identificável com “matar”, mas é mais provável seu
enquadramento em “praticar conduta dedicada a retirar vida de alguém”.

1.3.3. Critério objetivo-individual

Este critério se trata de um desdobramento do critério objetivo-material, sendo a


análise calcada no plano material, mas com algumas restrições que aquele não apresenta.
Para esta tese, o início de execução se dá a partir do último momento antes da concreta
realização do verbo núcleo do tipo penal, quando se demonstra a realização do plano
criminoso do autor – leia-se finalidade –, de forma precisa, caracterizando-se o início da
ofensa ao bem jurídico tutelado.
Veja que é o mesmo critério objetivo-material, acrescido da necessária identificação
da finalidade. Não é coincidência, portanto, que seu autor seja Welzel, pai do finalismo.
Reportando-nos ao exemplo do homicídio, se o agente que aponta a arma o faz com
a finalidade de matar, estará em início de execução, mas esta verificação não pode ser
subjetiva: deve haver a prática concreta de alguma conduta que demonstre a finalidade do
autor, e esta conduta seria, neste caso, o disparo da arma. Veja que apontar a arma ainda
não pode ser definido como execução, nem neste critério, pois ainda não é possível
identificar a real finalidade deste ato; contudo, ao disparar, estará clara a intenção em matar
ou lesionar (a depender do local que for alvejado, por exemplo), sendo identificada
objetivamente a finalidade do ato, e o começo de sua execução.
Veja que este critério interpreta o crime como um todo, e fica bem ilustrado se for
alterada, em tese, a redação do texto, trocando a preposição que precede o verbo núcleo por
um artigo. Veja um exemplo: ao invés de dizer que o ato executório é o primeiro que
evidencia que o agente “começa a matar a vítima”, se deve ler como o primeiro ato que
demonstra que o agente “começou o matar da vítima”. Esta substantivação do verbo deixa
bem clara esta teoria: o início da execução é o primeiro ato que identifica o crime, e não o
verbo do crime.
Este, por sua precisão, é o critério adotado em nossa sistemática.

1.4. Consumação

Cada crime se consuma a sua própria maneira, a depender da sua natureza, do bem
jurídico que afeta, etc. A definição de consumação, portanto, deve ser bastante restrita, a
fim de não excluir, com excessivos detalhes, nenhuma hipótese.

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Por isso, consumação é a completitude do crime: a consumação se dá quando o


crime está completo, e dependendo da natureza do crime, esta completitude se dará de uma
forma ou de outra. Como cada espécie de crime se completa de uma forma, vejamos quais
podem ser apontadas.
A forma mais clara de se perceber que um crime se completou é identificar a
produção do resultado naturalístico. Se o resultado no mundo fático se opera, o crime está
completo, e esta é a regra aplicável para os crimes materiais: estes se consumam na
concreta produção do resultado naturalístico, material, previsto no tipo. Exemplo claro é o
homicídio, que se completa quando a vítima morre.
Pode ocorrer de o tipo penal não exigir a produção de resultado material para que o
crime se complete, e bastar, para a consumação, a realização integral da conduta prevista.
Assim ocorre nos crimes formais: em que pese ser possível a ocorrência de resultado
naturalístico, o crime já se completa na mera formalização da conduta, sem ser necessária a
materialização do resultado – e por isso é crime formal. O crime se consuma com a
completa prática da conduta prevista no tipo, independentemente da produção do resultado
natural, material, previsto na norma. Assim ocorre com a extorsão mediante seqüestro, do
artigo 159 do CP, que se completa com a realização da conduta “seqüestrar alguém com
aquela finalidade específica de obter o pagamento”, sendo dispensável, para consumar-se,
que haja este resultado “obtenção de pagamento”. Veja:

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate:
Pena - reclusão, de oito a quinze anos.
(...)”

É por isso que se chama estes crimes formais de crimes de consumação antecipada.
Veja: o crime deste artigo é seqüestrar alguém, com a especial finalidade de agir, mas esta
finalidade não precisa ser alcançada naturalisticamente para que o tipo se preencha
formalmente; se preencheu na prática da conduta formalizada de seqüestrar. Veja que este
crime estaria transformado em um crime material se o legislador redigisse da seguinte
forma: “seqüestrar pessoa e obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem”. Aí, o
resultado seria exigido para consumar-se.
E há ainda caso em que o tipo penal sequer prevê qualquer resultado naturalístico
como possível desenrolar da conduta: são os crimes que por isso são chamados de mera
conduta, e, da mesma forma, se consumam quando a conduta traçada no tipo é preenchida.
Nestes crimes, a completa prática da conduta prevista os consuma, pois sequer é possível
que haja resultado naturalístico, vez que a norma não o prevê. Assim é, por exemplo, o
crime de desobediência, do artigo 330 do CP. Veja:

“Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:


Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.”

A questão da admissão de tentativa é das mais complexas nesta seara.


Nos crimes materiais, a tentativa é cabível e bem clara: se alguma força externa
impede que o resultado ocorra, estará tentado.
Os crimes formais podem admitir tentativa se a conduta que é descrita no tipo puder
ser interrompida antes de se completar, ou seja, se puder ser fracionada – se for

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP II Direito Penal II

plurissubsistente. Imagine-se que na extorsão mediante seqüestro o agente captura a vítima,


com esta especial finalidade, mas vê-se obstado de tolher-lhe a liberdade por forças alheias:
estará tentado. Um outro exemplo seria a injúria: se o agente profere injúria escrita, e esta
jamais chega a alcançar a vítima, sendo interceptada por alguém no trajeto, estará tentado o
crime formal. Veja:

“Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:


Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
(...)”

Os crimes de mera conduta, da mesma forma, ao contrário do que diz a enorme


maioria da doutrina, são passiveis de tentativa se a sua tipificação trouxer conduta
plurissubsistente. Ocorre que, no nosso ordenamento, a maioria absoluta dos crimes de
mera conduta são unissubsistentes, finalizando-se em um só ato. Por isso é que a doutrina,
então, entende descabida a tentativa. Esta situação percebe-se no crime de desobediência,
supra, em que o ato de desobedecer se consuma em uma só conduta, sem fracionamento
possível – não há como tentar desobedecer.
Outra hipótese em que fica clara a impossibilidade de tentativa no crime de mera
conduta é a do crime de omissão de socorro, crime omissivo próprio do artigo 135 do CP:

“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

É claro que não há como tentar se omitir, pois qualquer conduta que indique esta
omissão consuma este crime, não havendo como se fracionar.
Mas não é porque a maior parte dos delitos de mera conduta hoje tipificados são
unissubsistentes que se pode dizer que, em tese, tecnicamente, todo crime de mera conduta
não admite tentativa. Ilustra bem esta assertiva o crime de violação de domicílio:

“Violação de domicílio
Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a
vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas
dependências:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
(...)”

A maior parte da doutrina, diga-se, diz que este crime não admite tentativa, mas,
data venia, a conduta “entrar” pode ser fracionável, na casuística. É bem plausível que, por
exemplo, o agente esteja saltando o muro de uma casa, e seja impedido de finalizar sua
conduta “entrar” por alguma força externa. Se isto ocorre, o agente não entrou no
domicílio, e por isso a doutrina entende que não há tentativa: o agente não “começou a
entrar”, porque não é possível que isto ocorra – ou entra de vez ou não entra –, mas pode-se
dizer, com base no critério objetivo-individual, que o agente começou “o entrar”, sendo
impedido de continuar – havendo claramente a tentativa, portanto.

Michell Nunes Midlej Maron 87


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Neste exemplo, se a mera conduta for “permanecer”, não será possível a tentativa,
pois a conduta é unissubsistente, e não simplesmente por ser tipo penal de mera conduta.
Mas repita-se, porém: a maior parte da doutrina entende que não há tentativa em crimes de
mera conduta.
Adiante, será feito estudo detalhado do tema tentativa.

1.5. Exaurimento

Esta fase é impropriamente colocada, por alguns autores, como uma fase inserta no
iter criminis. A maioria da doutrina, porém, trata corretamente o exaurimento como fase
alheia ao iter criminis, porque é certo que este não faz parte do crime. Veja: o exaurimento
é o esgotamento do crime, ou seja, não há mais nada que possa vir daquele fato criminoso
já consumado.
O exaurimento, de fato, só tem relevância – para não dizer que só existe –, em uma
espécie de crime: no crime formal. Veja: o crime formal se consuma quando se completa a
prática da conduta, mas há um resultado naturalístico que poderá ou não ocorrer. E este
resultado será, quando ocorrido, exatamente o exaurimento deste crime.
No crime material, não há que se falar em exaurimento se o resultado já é o próprio
fato que ultima a conseqüência do delito, ou seja, se o resultado é o que faz este crime
consumado, a própria consumação exaure o crime, não restando nada mais que possa
ocorrer posterior, a título de exaurimento. O resultado é o exaurimento dicionário do crime
material, mas está inserto na consumação.
Já o crime de mera conduta, sequer tem qualquer conseqüência por vir: se exaure na
própria conduta, pois dali nenhum resultado será derivado. Seu exaurimento também
coincide com a consumação.
O exaurimento, portanto, só é relevante nos crimes formais, pois nestes se separa da
consumação. Nos crimes materiais e de mera conduta, embora ocorra, será irrelevante, pois
coincide com a consumação.

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Casos Concretos

Questão 1

RICARDO, inimigo de FÁBIO, resolveu matá-lo e, para tanto, preparou-lhe uma


tocaia. Sabedor de que FÁBIO, às terças-feiras, sempre voltava para casa de madrugada,
um tanto quanto embriagado das "rodas de pagode", resolveu esperá-lo numa rua deserta,
cujo acesso era obrigatório para a casa de FÁBIO. Assim sendo, RICARDO chegou ao
local da emboscada por volta das 22 horas e, para passar o tempo, ficou arremessando
sua faca de encontro a uma cerca, com o intuito de aprimorar a sua pontaria. Entretanto,
como o local era pouco iluminado, ao arremessar sua faca na direção da cerca, acabou
por atingir RODOLFO, vizinho de FÁBIO, ferindo-o mortalmente. Indaga-se:
a) RICARDO deve responder por homicídio doloso consumado em relação a
RODOLFO e tentativa de homicídio doloso no tocante a FÁBIO?
b) E se, no momento em que arremessou a faca, RICARDO tivesse se confundido,
atirando em RODOLFO, por pensar que estava matando FÁBIO? Qual o crime
pelo qual responderia?
c) Se RICARDO tivesse matado FÁBIO, o qual retornara mais cedo, responderia
ele por homicídio doloso, consumado?

Resposta à Questão 1

a) Não. O seu crime foi simplesmente de homicídio culposo em relação a Rodolfo,


pois deveria saber que era perigoso atirar facas em locais de livre acesso, ainda

Michell Nunes Midlej Maron 89


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mais se pouco iluminados. Imprudente que foi, de nada importa seu ato quanto a
Fábio, pois não iniciara a execução: estava em fins de preparação. E, diga-se,
quiçá, que poderia ser mesmo conduta atípica, a depender das características do
local (se for muito ermo, por exemplo, sendo imprevisível a passagem de
alguém).

b) Então, aí sim, seria homicídio doloso, e qualificado, pois o erro quanto à pessoa
induz a que responda como se houvesse acertado aquele que alvejava. Há ato
executório, e consumação em erro quanto à pessoa, na forma do artigo 20, § 3º,
do CP.

c) Se no golpe preparatório tivesse acertado Fábio sem ser seu intento, a situação
seria a mesma de quando acertou Rodolfo: seria culposo, pois que se tratava de
ato preparatório, mas imprudente – e quiçá atípico, se o local é tremendamente
ermo.

Questão 2

MARIA, quando voltava para casa, foi abordada por FLÁVIO nas proximidades de
um terreno baldio. FLÁVIO simulou o porte de uma arma de fogo e pediu para MARIA
tirar a blusa. MARIA, assustada, se jogou de uma ribanceira e se feriu levemente.
MARCOS e VINÍCIUS, que passavam pelo local, socorreram MARIA e depois perseguiram
FLÁVIO, conduzindo este para a delegacia. O Ministério Público ofereceu denúncia por
tentativa de estupro. Realizada a instrução probatória e comprovados os fatos, como você
decidiria?

Resposta à Questão 2

Há duas possibilidades: pode-se entender que há a especial finalidade de agir neste


constrangimento ilegal, qual seja, a de cometer conjunção carnal forçada – quando seria
estupro tentado; e pode-se entender que esta especial finalidade não esteja revelada,
havendo o constrangimento ilegal consumado.
Uma ou outra decisão encontrará amparo na doutrina. O TJ/RJ, na apelação criminal
2002.050.01012, decidiu-se pelo constrangimento consumado:

“ESTUPRO. TENTATIVA. DESCLASSIFICACAO DO CRIME.


CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ESTUPRO (ART. 213, C.P.). TENTATIVA.
ATOS PREPARATÓRIOS, INÍCIO DE EXECUÇÃO NÃO DELINEADO.
DESCLASSIFICAÇÃO PARA CONSTRANGIMENTO ILEGAL (ART 146,CP).
Agente que ameaça a vitima simulando estar armado, a caminhar por tira terreno
baldio indo e voltando, passando por trecho habitado, sem expressar a vontade de
realizar qualquer ato sexual, tendo a vítima se jogado Pela ribanceira em direção a
rua quando o réu mandou que tirasse a blusa. A conduta do agente não Chegou a
extravasar os limites dos atos preparatórios, inexistindo qualquer ato objetivo e
concreto dirigido à conjunção carnal, não se podendo reconhecer, por mera
presunção ou probabilidade a intenção de violentar a Liberdade sexual. Constituem
atos de execução apenas aqueles situados dentro da área do tipo penal atacando-se
objetiva e eficazmente o bem jurídico, enquanto os atos preparatórios não
representam perigo objetivo para o bem jurídico protegido no tipo. Não delineada a

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EMERJ – CP II Direito Penal II

presença de atos de execução, desclassifica-se a imputação para o tipo do art. 146,


do C.P. Recurso provido parcialmente.”

Questão 3

HENRIQUE, JUAREZ e TÚLIO, em 30 de maio de 2007, por volta das 22 horas,


no interior de um ônibus, em concurso e de comum acordo, com emprego de arma de fogo,
usada por HENRIQUE, renderam a cobradora e os passageiros. Levaram celulares, bolsas
e outros objetos de pessoas diversas. Em seguida, saíram correndo pela Rua X, sendo que
policiais militares que passavam pelo local, avisados por um dos passageiros do ônibus,
foram em sua perseguição, conseguindo alcançá-los. Em poder de JUAREZ estava a bolsa
com todos os objetos roubados. Pergunta-se: é hipótese de crime tentado ou consumado?
Diferencie tentativa, consumação e exaurimento.

Resposta à Questão 3

Quanto à consumação do crime de furto ou de roubo, há duas correntes: a mais


clássica exige que haja a posse mansa do bem pelo agente, segundo a qual esta situação do
caso seria tentada; e a tese mais moderna, que demanda apenas a inversão da posse, e para
esta o crime do caso se consumou – esta corrente tem preponderado.
A consumação é o alcance do resultado querido pelo agente na conduta executória.
Se finaliza os atos de execução, e perfaz, assim, todo o iter criminis, está consumado o
delito. A tentativa se dá quando, ao contrário, no curso da execução, alguma força externa
frustra a intenção final do agente, obstando a consumação. E o exaurimento consiste em
fase pós-consumação, em que o agente extenua os efeitos da prática delituosa, sem
configurar outro delito (é o post factum impunível), relevante nos crimes formais (pois nos
materiais e nos de mera conduta, o crime se exaure na própria consumação).

Michell Nunes Midlej Maron 91


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Tema XI

Crime Consumado e Crime Tentado II. 1) Tentativa: definição, natureza jurídica, espécies. 2) Punibilidade
da tentativa. 3) Crimes que não admitem a tentativa.

Notas de Aula27

1. Tentativa

O estudo da tentativa, como visto, se insere no próprio estudo do iter criminis. O


artigo 14, no inciso II e parágrafo único, do CP, traz o instituto:

“Art. 14 - Diz-se o crime:


Crime consumado
I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;
Tentativa
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias
alheias à vontade do agente.
Pena de tentativa
Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena
correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.”

Se o crime consumado é o completo, o crime tentado é aquele que se iniciou mas


não se completou. Delimitando mais precisamente, a tentativa ocorre quando a execução do
crime tem início, mas não há a consumação. Em síntese, a tentativa ocorre quando o crime

27
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares, em 11/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP II Direito Penal II

está incompleto, pois o agente inicia a execução mas não obtém a consumação, por motivos
alheios à sua vontade.
Não há um crime autônomo de tentativa, pois o elemento subjetivo, na tentativa,
está perfeito, havendo apenas uma falha objetiva na execução da conduta. O crime é o fato
típico estabelecido em outro dispositivo, que, estando nesta condição de incompleto, se
considera tentado. De fato, a tentativa é um defeito na execução da conduta, sendo que o
dolo do agente está perfeito: é o dolo de consumar, e não o dolo de tentar, que não existe.
Portanto, na tentativa, o agente responde pelo mesmo crime e pela mesma pena
abstrata prevista para o crime consumado, a qual será diminuída de um a dois terços, em
face da menor lesividade que o fato apresenta, devido à ausência de consumação.
A natureza jurídica da tentativa, no que tange a suas conseqüências, é de causa de
diminuição de pena, levada em conta na terceira fase da dosimetria. Mas há outra natureza
jurídica, referente à estrutura da teoria do crime, que traz a tentativa como uma norma de
adequação típica indireta, ou seja, ela atribui a um fato que não se amolda ao fato típico a
natureza de crime. Veja: se ao atirar para matar alguém o agente não acerta, não estará
preenchendo o tipo penal do homicídio; se não houvesse a norma do artigo 14, II, o fato
seria atípico, pois sua conduta não se adequaria ao tipo do artigo 121 do CP. Somente com a
norma de extensão a conduta tentada se torna adequada ao tipo penal.
Assim, pode se dizer que a tentativa é uma norma de adequação típica, sendo norma
de natureza incriminadora, pois aplica-se a esta conduta um tipo penal que só seria,
tecnicamente, atinente a um crime consumado, para depois se reduzir a pena.

1.1. Infrações que não admitem tentativa

1.1.1. Crimes culposos

A primeira hipótese, unânime, é a dos crimes culposos: estes crimes não admitem
tentativa porque neles não há vontade, elemento característico do dolo direto, exigido no
próprio inciso II do artigo 14 do CP. Simplesmente, não se pode tentar aquilo que não se
quer, e a tentativa exige que o agente atue com vontade, caracterizando dolo direto.
Ocorre que há uma exceção, se interpretado amplamente este conceito de exceção: a
culpa imprópria. Nesta situação, o agente erra quanto a uma excludente de ilicitude, erra
quanto a um elemento do tipo permissivo – erro de tipo permissivo –, e, se seu erro é
evitável, será punido o crime culposo. Se o agente pratica violência por estar em legítima
defesa putativa, por exemplo, e este erro é evitável, será excluído o dolo, mas será punido a
título de culpa. Esta culpa, contudo, é imprópria, porque na verdade o que se dá é dolo
punido como culpa. Sendo assim, este crime doloso impropriamente chamado de culposo
será possível ser tentado: se ao agredir em legítima defesa putativa o agente podia ter
perscrutado melhor a sua conduta, ou seja, se era evitável, responderá mesmo se não acerta
o seu suposto agressor, pela tentativa do crime impropriamente culposo.
Veja que, a rigor, não é exceção: o crime continua sendo doloso, punido
impropriamente a título de culpa. Em síntese: a culpa imprópria permite a punição de forma
tentada da modalidade culposa do crime; entretanto, em sentido estrito, não se trata de
exceção à impossibilidade de tentativa na culpa, pois em face do erro de tipo permissivo
evitável (artigo 20, § 1º, do CP, já visto), estará se punindo uma tentativa de crime doloso
tratado como culposo, de acordo com a teoria limitada da culpabilidade.

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1.1.2. Crimes preterdolosos

Os crimes desta natureza não admitem tentativa pela simples circunstância de que o
crime conseqüente é culposo: não há dolo no resultado produzido, mas apenas culpa,
impossibilitando, assim, a tentativa, por ausência de vontade quanto a este resultado que vai
além do dolo do agente.
A doutrina majoritária entende que há exceções. O crime de aborto qualificado pelo
resultado morte da gestante poderá assim se configurar. Veja:

“Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um
terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer
dessas causas, lhe sobrevém a morte.”

Suponha-se que o agente realiza o abortamento na gestante, e se desfaz do feto. A


gestante, porém, morre em decorrência do sangramento da operação, morte esta culposa,
não querida pelo agente. Este agente foge, e, posteriormente, alguém descobre a gestante
morta mas descobre que o feto sobrevivera. Neste caso, o aborto foi tentado – o feto não
morreu –, mas o resultado culposo da morte da gestante se implementou. É pacífico, então,
que se configurou a tentativa de aborto qualificado por resultado morte, ou seja, a tentativa
de crime preterdoloso, do artigo 127 do CP, aplicando-se a pena do artigo, reduzida da
tentativa.
O latrocínio pode ser preterdoloso, mas pode ser doloso puro. Se for doloso, sendo a
morte dolosa, a tentativa é claramente cabível; se for preterdoloso, basta haver o resultado
morte culposa para que se consume, independentemente da consumação da subtração ou
não, por prevalecer o bem jurídico mais importante, a vida. Assim se pode ver na súmula
610 do STF:

“Súmula 610, STF: Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda


que não realize o agente a subtração de bens da vítima.”

1.1.3. Crimes omissivos próprios, crimes unissubsistentes e crimes de mera conduta

Estes crimes omissivos próprios, que são de mera conduta, não admitem tentativa
por serem unissubsistentes, sem possível fracionamento da execução. Repita-se, não é só
por ser de mera conduta que inadmite tentativa, e sim por sua unissubsistência, pois crimes
de mera conduta há que podem ser tentados, como se viu na análise da violação de
domicílio.
Exemplo mais claro é o de omissão de socorro, do artigo 135 do CP:

“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

Michell Nunes Midlej Maron 94


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Se a conduta da omissão própria não pode ser fracionada, não há força alheia que
possa impedir que a execução se consume.
Com o mesmo fundamento, vale apenas consignar que os crimes unissubsistentes e
os crimes de mera conduta não fracionáveis não são passiveis de tentativa. E em razão de o
tipo penal prever quase que todos os crimes de mera conduta como unissubsistentes, a
doutrina, por vezes, entende que todo crime de mera conduta não é passível de tentativa –
impropriedade que já se enfrentou.
Veja que há crimes formais unissubsistentes, e que por isso também não admitem a
forma tentada. Já os crimes materiais unissubsistentes podem, sim, ser tentados: se o
resultado da conduta que foi praticada, mesmo sem ser esta fracionável, não ocorre, o crime
não está consumado, pois no crime material demanda-se o resultado para tanto.
Em síntese: crimes unissubsistentes formais ou de mera conduta não admitem
tentativa, mas unissubsistentes materiais a admitem, e crimes omissivos próprios, de mera
conduta, não admitem tentativa por serem unissubsistentes.

1.1.4. Crimes habituais

Classicamente, estes crimes são tidos por não passíveis de tentativa porque exigem a
reiteração da conduta para se consumar. Assim, se há uma só prática da conduta, o crime
não se consuma, mas não é tentado, sendo fato atípico; se reitera, há a habitualidade, e o
crime está consumado. Se tenta reiterar mas não consegue, ainda assim é atípico, pois não
se configurou a habitualidade. Assim se dá, por exemplo, no crime do artigo 282 do CP:

“Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica


Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou
farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também
multa.”

Ocorre que há doutrina moderna, capitaneada por Roxin e Zaffaroni, que entende
que os crimes habituais não precisam, necessariamente, da reiteração da conduta para serem
consumados. Entendem que a habitualidade não é um elemento objetivo, verificado na
prática concreta da conduta, mas sim na mente do sujeito ativo: a habitualidade é uma
tendência, um elemento subjetivo especial.
Sendo assim, interpretando que a habitualidade seja um elemento que se afere na
mente do agente – tornando o crime habitual em um delito de tendência –, poder-se-ia
pensar em tentativa de crime habitual.
Veja: o agente que se apresenta como médico, sem o ser, e instala consultório,
abrindo as portas para o atendimento público, está com a clara tendência em exercer
ilegalmente a medicina. Para a doutrina majoritária, este fato seria atípico até o agente
atender, ao menos, o seu terceiro paciente, configurando objetivamente a habitualidade;
mas para a doutrina moderna, ainda minoritária, a habitualidade estará configurada na
forma que o agente se comportou, ou seja, revelando intento subjetivo em proceder nas
conduta do exercício ilegal da medicina, mesmo antes de conseguir atender seu primeiro
paciente. Se algo o impedir de realizar o atendimento, estará tentado este crime habitual.

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP II Direito Penal II

Em síntese: modernamente, há este entendimento de que a habitualidade é elemento


subjetivo do tipo, configurando uma tendência do agente, e não uma circunstância objetiva,
possibilitando assim a tentativa, quando o agente inicia o primeiro ato com a tendência de
repeti-lo, mas é interrompido. Repita-se, porém, que é tese ainda minoritária, no Brasil.

1.1.5. Contravenções penais

A inadmissão de tentativa é expressamente consignada no artigo 4º do Decreto-Lei


3.688/41:

“Art. 4º Não é punível a tentativa de contravenção.”

Esta vedação legal tem por fundamento a baixa lesividade das contravenções, que,
mesmo consumadas, causam danos bastante leves aos bens jurídicos, pelo que a tentativa
seria de ínfimo potencial ofensivo.

1.1.6. Crimes de atentado

São crimes que o verbo núcleo do tipo é, por si só, uma tentativa, e por isso não é
lógico que haja tentativa de tentativa, nos próprios termos: “tentar tentar” é ato meramente
preparatório.
Não se confunda com o atentado violento ao pudor, cujo núcleo é “constranger”, e
por isso plenamente passível de tentativa.

1.1.7. Dolo eventual

Assim como nos crimes culposos, o dolo eventual não implica em vontade,
implicando apenas em assunção de risco. Sendo assim, a tentativa, para grande parte da
doutrina, seria impossível.
Contudo, o STJ tem precedentes de que há admissibilidade desta forma tentada. A
respeito, veja a ementa do RHC 6797:

“PENAL. PROCESSUAL. INEPCIA DA DENUNCIA. AUSENCIA DE


SUPORTE PROBATORIO PARA A AÇÃO PENAL. CRIME COMETIDO COM
DOLO EVENTUAL. POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA. "HABEAS
CORPUS". RECURSO.
1. NÃO HA QUE SE DIZER INEPTA A DENUNCIA QUE PREENCHE TODOS
OS REQUISITOS IMPOSTOS PELO CPP, ART. 41.
2. A AUSENCIA DE SUPORTE PROBATORIO PARA A AÇÃO PENAL NÃO
PODE SER VERIFICADA NA ESTREITA VIA DO "HABEAS CORPUS"; SO
APOS O REGULAR CURSO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PODERA SE
CHEGAR A CONCLUSÃO SOBRE SUA EFETIVA PARTICIPAÇÃO.
3. ADMISSIVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO
EVENTUAL, JA QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO;
INEGAVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMENTE A PRODUZIR UM
EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO.
4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO.” (grifo nosso)

1.2. Espécies de tentativa

Michell Nunes Midlej Maron 96


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tentativa inacabada, ou imperfeita, é aquela em que se inicia a execução, sem


sequer conseguir terminá-la. Ocorre quando o agente inicia a execução, mas não consegue
completá-la, ainda faltando atos a realizar.
Tentativa acabada, ou perfeita, chamada ainda por alguns autores de crime falho, é
aquela em que o agente inicia a execução, completa-a, mas não consegue obter a
consumação, por motivos alheios à sua vontade. Nem todo crime permite esta forma de
tentativa: o crime formal, por exemplo, se consuma na completitude da execução; sendo
esta fracionável ou não, se a completa, está consumado o crime. Toda tentativa no crime
formal é imperfeita.
Tentativa branca, ou incruenta, é aquela em que não há “derramamento de sangue”,
ou seja, aquela em que não se produz qualquer resultado lesivo concreto. Por exemplo, um
disparo de arma de fogo que não atinge a vítima. Seu oposto é a tentativa cruenta, que gera
alguma lesão material na vítima, diversa do resultado pretendido.

Casos Concretos

Questão 1

Preso com 1 kg de cocaína, para se livrar do flagrante, CAIO oferece aos policiais
a importância de cinco mil reais. Os policiais fingiram aceitar a oferta, tendo CAIO
convocado sua companheira ao local, ordenando que a mesma fosse em casa pegar o
dinheiro e o entregasse aos policiais. Quando o dinheiro foi entregue aos policiais, estes
também prenderam a esposa de CAIO. Responda:
a) O crime de corrupção ativa é de natureza formal ou material?
b) Admite-se a forma tentada?
c) Poderia a esposa de CAIO também responder pelo crime?
d) Qual a natureza jurídica da tentativa?
e) Como diferenciar os atos preparatórios dos executórios?
f) O crime qualificado pelo resultado admite a forma tentada? E o crime
preterdoloso?
g) Que crimes não admitem tentativa?

Resposta à Questão 1

a) Formal: basta o oferecimento da vantagem ilícita para consumá-lo. Não se exige


o resultado naturalístico, entrega do valor, que será mero exaurimento.

b) Não é admissível quando verbal, pois consiste em crime de consumação


antecipada, em que a conduta de execução consiste já na própria consumação. Já

Michell Nunes Midlej Maron 97


EMERJ – CP II Direito Penal II

se o oferecimento for conduta plurissubsistente – escreve e remete a oferta, por


exemplo –, é possível a tentativa.

c) Não. Sua conduta veio posteriormente à consumação do crime, e não no curso


da execução (quando, fosse o caso, teria aderido à execução, sendo punível).
Como o crime já se consumara antes da esposa se imiscuir, não há que se falar
em co-autoria e participação. Nilo Batista, isoladamente, entende que é, sim,
possível a co-autoria até o exaurimento, mesmo depois da consumação.

d) É norma incriminadora de extensão, norma de adequação típica mediata, pois do


contrário o fato seria atípico. Sem o conatus proximus, não seria punível a
execução, mas só a consumação. E é também, sob outra ótica, causa de
diminuição de pena.

e) Segundo o critério objetivo-individual, é ato executório aquele que inicia o


evento criminoso, quando o agente começa “o praticar” do crime, e não “a
praticar” o crime. Antes disso, é preparatório.

f) Se o resultado for doloso, é claramente possível a tentativa; se o resultado


qualificante é resultado culposo da consumação, não há como haver tentativa de
fato culposo: o fato conseqüente é culposo, e portanto impossível de ser tentado
(salvo algumas exceções, como o aborto qualificado pela morte da gestante,
artigo 127 do CP).

g) Culposos (exceto a culpa imprópria), formais unissubsistentes, de mera conduta


unissubsistentes, preterdolosos (salvo exceções), de atentado, em dolo eventual,
habituais, omissivos próprios, e contravenções penais (tudo segundo a doutrina
clássica).

Questão 2

JOÃO, após o término de um enlace amoroso, em conversa com PEDRO, delibera


sobre a possibilidade de ceifar a própria vida, tendo este reforçado a idéia verbalizada por
JOÃO, encorajando-o ao ato. De posse do armamento, JOÃO, então, dispara contra si
próprio. Pergunta-se:
a) Qual o delito eventualmente apurável na hipótese em que JOÃO sobreviva,
advindo-lhe lesões graves?
b) Com base na resposta anterior, discorra sobre a possibilidade de tentativa do
delito em comento;
c) Resultando apenas lesões de natureza leve, haveria delito apurável na hipótese?
Responda fundamentadamente.

Resposta à Questão 2

a) Instigação ao suicídio, do artigo 122 do CP.

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP II Direito Penal II

b) Não é cabível a tentativa. Este crime, peculiarmente, é formal que exige


resultado para se consumar, mesmo sendo um crime que naturalmente seria
formal. Por isso, se o agente instiga, auxilia ou induz ao suicídio, é imperativo
resultado naturalístico morte ou lesão, ou o fato é atípico.
Se se entender que este crime é material, e a consumação é o resultado
necessário, a tentativa é possível, mas é expressamente vedada a punição deste
delito.
Em suma, dependerá da natureza que se atribui ao crime; se for considerado
material, cabe tentativa, embora a lei preveja expressa vedação à sua punição.
Se for considerado formal, se consuma já na conduta de instigação, não cabendo
tentativa, se unissubsistente, e os resultados lesão grave ou morte são condições
objetivas de punibilidade.

c) Se for tido por material, sim, pois será este crime tentado, mas impunível; se for
tido por formal, há o crime consumado, mas impunível.

Tema XII

A Desistência Voluntária e o Arrependimento Eficaz. O Arrependimento Posterior. 1) Definição e requisitos


dos institutos. 2) Diferenças entre desistência voluntária e arrependimento eficaz e suas relações com a
tentativa perfeita e a tentativa imperfeita. 3) Crime impossível ou tentativa inidônea: a) Definição, natureza
jurídica e formas;b) Crime putativo. 4) Arrependimento posterior: análise da súmula 554 do STF.

Notas de Aula28

1. Desistência voluntária

Este instituto vem previsto na parte inicial do artigo 15 do CP:

“Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou


impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.” (grifo
nosso)

A definição deste instituto se amolda perfeitamente ao seu nomen juris: ocorre


quando o agente desiste de prosseguir, abandona voluntariamente a execução do crime,
quando podia terminá-la.
É fundamental, para se falar em desistência voluntária, que a etapa de execução
ainda esteja em curso, ou seja, o agente ainda esteja neste estágio do iter criminis, sem tê-lo
completado, sem alcançar a consumação. Por isso, pode-se traçar um paralelo com a
tentativa inacabada, em que o agente se encontra também ainda em fase de execução, com a

28
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares, em 12/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP II Direito Penal II

diferença de que não a completa, nesta tentativa, por força alheia a sua vontade, enquanto
na desistência a não completitude se dá por vontade própria.
O aspecto da voluntariedade nesta desistência é, de fato, o que merece maior
atenção. Veja que não se pode confundir voluntariedade com motivação da desistência: ser
voluntário é ter partido pelo arbítrio do agente, quer haja motivação íntima ou externa, ou
mesmo sem motivação aparente alguma. A voluntariedade da desistência não se confunde
com falta de motivação, pois pode haver conduta voluntária com motivo pessoal ou
externo. O importante será que ele tenha escolhido desistir, mesmo se foi levado a desistir
por um motivo externo qualquer.
O perigo em se confundir desistência voluntária com tentativa inacabada é pensar
que o motivo externo que compeliu à desistência tenha impedido a consumação: é muito
diferente deixar de praticar o restante da execução por força própria, mesmo que motivado
por situação externa, do que ser impedido de continuar na execução por esta força externa,
quando não foi o arbítrio do agente que tolheu suas ações.
A desistência voluntária guarda um intento do legislador em compelir o agente a
deixar de consumar o crime. Ao criar este benefício ao agente, o legislador dá a ele a
possibilidade de não responder pelo que pretendia consumar, nem a título de tentativa, e
sim pelo crime residual que porventura seus atos tenham revelado até aquele momento, e se
não houve crime residual, não responder por nada. Mesmo por isso, esta chance que o
legislador dá ao agente é chamada de ponte de ouro: o legislador estende esta ponte ao
agente em execução, para que ele, desistindo de sua conduta, volte à legalidade, sem
conseqüências mais graves do que aquelas que já tenham resultado de seus atos até então –
resultados que, se não há, não há crime algum.
Em suma, na desistência voluntária, o agente recebe a oportunidade de voltar à
legalidade, fazendo com que o agente não responda pelo fato, mas apenas por aquilo que já
tiver feito.
É claro que se o agente não escolhe desistir, pois o fator externo, mais do que
motivá-lo, tem poder de coação sobre sua vontade, não se aplica o instituto. Por exemplo,
se o agente deixa de terminar a subtração de um veículo porque ouve a sirene da polícia,
este fator o impediu de continuar, e não o motivou a desistir voluntariamente – sendo
tentativa inacabada, portanto.
Para diferenciar a desistência voluntária da tentativa, aplica-se a famosa fórmula de
Frank, que diz que quando o agente “quer prosseguir, mas não pode”, trata-se da tentativa;
quando “pode prosseguir, mas não quer”, trata-se da desistência voluntária.
Atrelado à desistência voluntária está o arrependimento eficaz. Vejamo-lo.

2. Arrependimento eficaz

O instituto é tão próximo à desistência voluntária que vem consignado no mesmo


artigo 15 do CP:

“Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou


impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.” (grifo
nosso)

Inclusive, as conseqüências de um e de outro são as mesmas: os agentes respondem


apenas pelos atos já praticados até então.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

Analisando o iter criminis como ele é, um “caminho do crime”, o arrependimento


eficaz se dá num momento imediatamente após a completitude da execução, e
imediatamente antes da consumação. O arrependimento eficaz ocorre quando após o
término da execução o agente atua de forma eficaz e suficiente, impedindo que ocorra a
consumação.
O paralelo aqui pode ser traçado com a tentativa perfeita, ou acabada: concluíram-
se os atos executórios, nada mais havendo a ser feito, mas o agente atua por sua vontade e
impede a consumação, no arrependimento, enquanto na tentativa perfeita alguma força
alheia a sua vontade impede que a consumação se dê.
A conseqüência, como dito na desistência, é impedir que haja imputação da
tentativa, respondendo apenas pelo eventual delito que já se consumou na conduta, até
então.
Imagine-se que o agente envenena a vítima, mas antes que ela morra, leva-a ao
hospital e a salva a vida. Está configurado o arrependimento eficaz, e não responderá pela
tentativa de homicídio. Contudo, imagine-se que a substância ingerida tenha causado uma
lesão estomacal: o agente responderá por ela, pela lesão consumada. Mas cuidado: mesmo
não havendo nenhuma lesão aparente, o agente ainda responderá pelo crime do artigo 132
do CP:

“Perigo para a vida ou saúde de outrem


Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da
vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a
prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo
com as normas legais.”

Veja que se a vítima morre, mesmo o agente tendo envidado os mais extremos
esforços para impedir a consumação, o crime originalmente intentado será consumado: o
arrependimento não foi eficaz, não sendo aplicável o instituto. Todavia, aplica-se a este
mero arrependimento (ineficaz) uma redução de pena, consignada no artigo 65, III, “b” do
CP:

“Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:


(...)
III - ter o agente:
(...)
b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime,
evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o
dano;
(...)”

O arrependimento eficaz só se aplica, por óbvio, aos crimes que dependem de


resultado, pois do contrário a conduta praticada até o fim da execução (o que é seu
pressuposto) terá correspondido, ela própria, à consumação, e por isso nada que o agente
faça será eficaz para impedir a consumação – esta já ocorreu na finalização da execução.
Por isso, por simples lógica, os crimes materiais são os únicos passíveis da aplicação do
arrependimento eficaz, não sendo cabível em crimes formais ou de mera conduta.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

Nos crimes formais, se o agente envidar esforços eficazes a fim de evitar o


exaurimento – que é o resultado naturalístico de tais crimes, como visto –, não se tratará de
arrependimento eficaz, e sim do mero arrependimento, causa de diminuição da pena,
porque o crime, mesmo sem exaurir-se, se consumou.
O legislador previu uma espécie de arrependimento eficaz especial para os crimes
contra a honra: a retratação. Na verdade, este evento consiste em um arrependimento
posterior com efeitos de arrependimento eficaz, sendo um instituto bem específico.

“Art. 143 - O querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou


da difamação, fica isento de pena.”

Diferenciar-se o arrependimento eficaz da desistência voluntária depende da correta


interpretação do momento em que se findaram, se completaram, os atos de execução. Para
delimitar a separação entre estes institutos, há uma fórmula semelhante à de Frank, que
pode ser aplicada: o agente “desiste daquilo que está fazendo, e se arrepende daquilo que já
fez”.
A natureza jurídica do arrependimento eficaz e da desistência voluntária é tema
disputado por duas correntes doutrinárias. A primeira, de Nélson Hungria, mais clássica,
entende que são causas pessoais de exclusão da punibilidade do fato, o que significa que o
indivíduo pratica os fatos, mas em razão de sua postura pessoal, não será punido como a
tipicidade imporia. A segunda corrente, mais moderna, e que hoje prevalece entre os autores
pátrios, diz que se tratam de causas de exclusão da tipicidade da conduta, fazendo com que
a conduta do agente seja atípica.
A conseqüência de se adotar uma ou outra natureza jurídica é relevante para a
questão da comunicabilidade do instituto aos demais participantes do fato. Adotando-se a
primeira posição, a desistência e o arrependimento não se comunicariam aos participantes,
enquanto na segunda tese, o afastamento da tipicidade leva a que a desistência ou o
arrependimento se comunique a todos os colaboradores do crime, e por isso esta tese é
majoritária.

3. Arrependimento posterior

Este instituto está previsto no artigo 16 do CP:

“Arrependimento posterior
Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado
o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato
voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”

Caminhando o iter criminis, este evento terá lugar após a consumação do fato.
Como se consumou, não há aplicabilidade do arrependimento eficaz, mas este
arrependimento posterior ainda será cabível.
O arrependimento posterior só pode ocorrer entre a consumação e o recebimento da
denúncia ou da queixa. Após o início do processo, não mais será cabível sua aplicação.
Além desse requisito, o arrependimento posterior só é aplicável em crimes sem
violência ou grave ameaça à pessoa, e desde que o dano causado tenha sido reparado, ou a
coisa restituída, integral ou parcialmente (neste caso, com a aceitação da vítima). Significa,
então, que três são os grandes requisitos cumulativos deste instituto: ser procedido até o

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

recebimento da denúncia ou queixa; ser o crime sem violência ou grave ameaça à pessoa; e
tenha havido a reparação do dano ou a restituição da coisa.
Se a reparação ou devolução da coisa for parcial, deve ser razoável, e só é relevante
se a vítima a aceita. A reparação ou devolução integral dispensa aceitação da vítima para
que a benesse do arrependimento seja aplicada. E, em um ou outro caso, pode haver
complemento na esfera cível, independente da esfera penal.
É claro que, nos casos de arrependimento posterior, o agente já consumou o fato, e
por isso não há que ser tão beneficiado quanto na desistência voluntária ou no
arrependimento eficaz. Por isso, como conseqüência, e por natureza jurídica, o
arrependimento posterior é uma causa de diminuição de pena, apenas, como visto no artigo,
a ser aplicada na terceira fase da dosimetria.
Curiosamente, esta redução de pena, de um a dois terços, é idêntica à da tentativa.
Esta equivalência não é mera coincidência. O legislador percebeu que, havendo o
arrependimento posterior, a situação fática se assemelhará bastante àquela que teria
ocorrido em caso de tentativa do mesmo delito. Veja: se o agente tenta furtar uma quantia
da vítima, a situação teria terminado os atos executórios, sem alcançar a consumação – a
pena do furto seria diminuída da minorante correspondente à tentativa; se o agente consuma
o furto daquela quantia, e posteriormente se arrepende, devolvendo-a integralmente, os
fatos se apresentarão da mesma forma: a vítima terá seu bem da vida, e o agente estará a
merecer a diminuição como se tentado fosse, pois voltou a status que tinha antes de
consumar o delito.
É por isso que não há este instituto em crimes com violência ou grave ameaça, pois
a situação fática nunca volta ao status quo ante nestes crimes: mesmo devolvendo o bem e
reparando o dano, a violência e a ameaça não têm como ser desfeitas.
O critério para a gradação da diminuição da tentativa é jurisprudencial: quanto mais
próximo da consumação, menor a diminuição, partindo sempre do valor maior para
diminuir (sendo que a adoção de diminuição menor deve ser motivada). O mesmo
raciocínio se transporta para o arrependimento posterior: quanto mais evidente a intenção
em sanar seus fatos ignóbeis, maior a diminuição da pena.
No arrependimento posterior, para que os demais participantes do crime mereçam a
atenuação, devem ter ativamente colaborado para a reparação do dano ou restituição da
coisa, pois não haverá comunicação do arrependimento do autor, pura e simplesmente. No
arrependimento posterior, apenas os participantes que tenham, eles próprios, demonstrado
arrepender-se, operado voluntariamente na reparação, merecerão a diminuição da pena.
Caberia arrependimento posterior no crime de roubo? A resposta depende da
ausência da violência e grave ameaça na consumação do roubo: há, como se pode ver na
parte final do artigo 157 do CP, roubo praticado quando o agente reduz a vítima à
impossibilidade de qualquer resistência, o que se dá sem qualquer violência real ou grave
ameaça:

“Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

Nesta situação, então, o roubo preenche o primeiro requisito de aplicabilidade do


arrependimento eficaz: a ausência de violência ou grave ameaça. Veja que a jurisprudência
inclui aqui, nesta parte final do artigo 157, a chamada violência imprópria, ou seja, o meio
de redução da capacidade de resistência da vítima, sem violência real – é o caso clássico da
dopagem da vítima, o famigerado “boa noite, Cinderela”.

3.1. Súmula 554 do STF

O crime de estelionato, praticado por meio de cheque sem fundos, não tem sua
persecução obstada pelo pagamento do cheque após o recebimento da denúncia, segundo
consta do teor da súmula 554 do STF:

“Súmula 554, STF: O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após
o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”

Por muito tempo se questionou se este enunciado impedia a aplicação, a esta


modalidade, do arrependimento posterior. Mas veja que o texto é claro: não se obsta ao
prosseguimento da ação penal, ou seja, se o dano for reparado antes do recebimento da
denúncia, quando a ação sequer teve início, não há qualquer óbice à aplicação do
arrependimento posterior, caindo na regra geral quanto ao momento da reparação.
Resulta, então, que não há qualquer óbice à aplicação do instituto neste caso.
Ademais, a súmula 554 do STF não impossibilita a aplicação do arrependimento posterior a
fraudes no crime de estelionato praticado por meio de cheques, já que se refere apenas à
hipótese de emissão de cheque sem provisão de fundos, e menciona o pagamento do
prejuízo após o início da ação penal, enquanto o arrependimento posterior se aplica a
qualquer modalidade de estelionato por meio de cheque (cheques falsos, por exemplo), e
sempre desde que a reparação do dano aconteça até o recebimento da denúncia.

4. Crime impossível

Encontra-se no artigo 17 do CP:

“Crime impossível
Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por
absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.”

Este instituto tem uma característica bem clara, que se demonstra no próprio nome:
o crime é impossível porque simplesmente não há hipótese em que seja possível se
consumar.
Pode acontecer por duas razões: ou porque o meio escolhido pelo agente para
perpetrar o delito é absolutamente ineficaz para produzir o resultado querido, ou porque o
objeto visado é absolutamente impróprio para sofrer aquele resultado. Por isso, a tentativa
praticada é inidônea para a aquisição do resultado.
No crime impossível, os elementos subjetivos estão perfeitos: o dolo está
absolutamente bem delineado. Ocorre que há algum defeito no âmbito objetivo, na
realização concreta do fato, quer porque o meio é inútil, quer porque o objeto alvejado é

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

impróprio. Por isso, trata-se de tentativa inidônea, incapaz de possibilitar o cometimento do


crime.
É por conta dessa inidoneidade da tentativa, pela absoluta impossibilidade de se
alcançar a consumação, que este fato é atípico, não podendo ser punido. O crime
impossível nasce de uma tentativa inidônea, ou seja, ineficaz e incapaz de produzir o
resultado pretendido. Por isso, não merece atenção pelo direito penal, este fato, sendo vista
esta conduta como atípica, e totalmente impunível, portanto.
No crime impossível, o problema encontra-se no plano objetivo, ou seja, na
realização da conduta, e o elemento subjetivo (o dolo) estará perfeito, intacto.
O agente que incide em crime impossível, em regra, tenta praticar o crime
impossível sem saber que o meio escolhido, ou que o objeto alvejado, é impróprio para
consumar o delito, e por isso seu dolo está perfeito. Exemplo claro seria o de um agente
que, tomando de uma arma de fogo carregada, dispara contra a vítima, intentando matá-la,
mas esta não sofre nada, porque os projéteis que preenchiam a arma eram de festim: jamais
causariam, mesmo sendo do intento do agente, qualquer possível dano à vítima. É claro
exemplo de tentativa inidônea, crime impossível quanto ao meio escolhido para
consumação.
Outro exemplo seria o de um agente que, intentando matar alguém, dispara contra a
vítima enquanto ela dormia, atingindo-a mortalmente, mas percebe-se, depois, que ela não
dormia, de fato: já estava morta por um enfarto coronário. Como o objeto alvejado – vida
alheia – não mais existia, era absolutamente impróprio, e por isso é claro crime impossível
por inidoneidade da tentativa.
Embora este instituto tenha sede natural em crimes materiais, há que se consignar
que nada impede que seja invocado em crimes formais cuja conduta seja impossível de
alcançar a consumação. Como exemplo, a injúria verbal contra uma pessoa absolutamente
surda: não há como se consumar, apenas pelo som, a injúria contra esta vítima, por
inidoneidade do meio escolhido.
Assim, quer seja por absoluta ineficácia do meio, quer por absoluta impropriedade
do objeto, o fato é atípico. Mas veja que se há impropriedade ou ineficácia relativas, não se
tratará, jamais, de crime impossível, e sim de tentativa, pois a consumação, de alguma
forma, mesmo remota, poderia ocorrer: o instituto não se trata de crime improvável, mas
sim de crime impossível. Bom exemplo é o de furto em loja com alto nível de segurança: a
extrema dificuldade da consumação não faz com que o crime seja impossível, mas apenas
improvável, havendo chance, mesmo remota, de haver consumação – sendo tentado se o
agente não conseguir consumá-lo.
Por isso se chama a teoria adotada para mensuração de crime impossível de teoria
objetiva temperada, porque se analisa objetivamente as condições de meio e de objeto, mas
se verifica também em tese a possibilidade, mesmo que remota, da consumação.

5. Delito putativo

Quando o agente crê que está praticando um crime, mas aquele fato, em verdade,
não é crime algum, não é um fato típico, diz-se em delito putativo. Veja: na cabeça do
agente, ele está praticando algo que é crime, mas a sua conduta não é típica, e por isso, por
ser indiferente penal, não tem absolutamente nenhuma conseqüência jurídico-penal para o
agente.

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Casos Concretos

Questão 1

JOSELITO inicia a execução de um homicídio, desferindo golpes de faca em sua


amante. Durante a execução, JOSELITO ouve pessoas se aproximando e foge apavorado,
não concluindo os atos criminosos. Preso em flagrante, contrata seus serviços para
defendê-lo. Qual a argumentação a ser utilizada? Explique. A situação se alteraria, se:
a) JOSELITO fugisse após terminar os atos executórios e a vítima não morresse?
b) No caso anterior, a vítima falecesse?
c) JOSELITO, mesmo ouvindo vozes, continuasse a esfaquear a vítima, sendo preso
quando desferia o último golpe?
d) JOSELITO, após concluir a execução, sem a interferência de qualquer outra
circunstância, concluísse que era apaixonado pela vítima e resolvesse salvar-lhe a
vida, levando-a a um hospital, onde ela fosse tratada e sobrevivesse?
e) No caso anterior, ela morresse?
f) JOSELITO, após conseguir o resultado morte da vítima, sinceramente se
arrependesse e decidisse doar todos os seus bens à família da vítima?

Resposta à Questão 1

Há duas argumentações possíveis: ou incorreu em tentativa inacabada, pois a não


conclusão da execução se deu pela força inibitória de terceiros sobre sua conduta; ou deu-se
a desistência voluntária, pois que, mesmo sem ser espontânea, para nosso ordenamento
basta que seja tomada a decisão, por livre arbítrio, em cessar a conduta, para que haja este

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

instituto – e a chegada dos terceiros não teria impedido a execução, mas sim apenas
motivado a desistência.

a) Seria, neste caso, crime falho, tentativa perfeita, porém sem atingir o resultado.

b) Seria crime consumado, pura e simplesmente.

c) Se a vítima morresse, seria homicídio consumado; se sobrevivesse, o homicídio


seria tentado.

d) Seria arrependimento eficaz, e ele responderia apenas pelas lesões.

e) Sendo arrependimento ineficaz, o autor mereceria apenas a atenuação da pena


prevista no artigo 65, III, “b”, do CP.

f) De nada lhe influenciaria a imputação sobre o homicídio, pois não se encarta na


hipótese de arrependimento posterior. No máximo, seria uma antecipação da
indenização cível.

Questão 2

CAIO, com o dolo de matar e em conluio com MÉVIO, que lhe emprestara a arma,
desfere um disparo de arma de fogo em TÍCIO. Contudo, quando nada lhe impedia de
prosseguir em sua empreitada homicida, CAIO desiste de prosseguir e presta socorro a
TÍCIO, evitando o resultado fatal. MÉVIO, ao saber do fato, mostrou-se contrariado, pois
desejava a morte de TÍCIO. Qual a situação jurídico-penal de CAIO e MÉVIO? .

Resposta à Questão 2

Caio procedeu em arrependimento eficaz, se for considerado que o ato executório se


extenuou, ou desistência voluntária (tese aparente no caso), se considera-se que ainda
estava em curso de execução (poderia, por exemplo, disparar outros tiros). De uma forma
ou de outra, receberá a benesse do artigo 15 do CP.
Mais complexa é a questão quando se a aborda em relação a Mévio. Veja: quem
desistiu (ou se arrependeu) foi Caio, e a comunicabilidade desta circunstância a Mévio
conta com duas correntes: a primeira entende se tratar de causa pessoal de exclusão da
punibilidade, e, por isso, não se comunicaria. A segunda corrente, porém, entende se tratar
de excludente da tipicidade, pelo que o fato seria atípico para todos, inclusive aquele que
não se arrependeu. Esta última parece mais coerente, pois como o instituto tem o condão de
afastar a tentativa, e a tentativa é o único elo entre este fato e a tipicidade, não haverá mais
tipicidade se não há incidência da tentativa.

Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

JOSÉ e PEDRO resolvem furtar um rádio. Enquanto PEDRO ficou vigiando do


lado de fora, JOSÉ entrou na loja Casa e Vídeo, por volta das 23 horas e apossou-se de
um rádio. PEDRO, tomado de remorso pela prática de seu ato, se aproxima de JOSÉ e o
aconselha a não levar o rádio, alegando, entre outras coisas, os ensinamentos da Igreja
Universal do Reino de Deus, religião que professava; JOSÉ, convencido, ainda que
frustrado, entra novamente e devolve o bem. Pergunta-se:
a) Qual o crime praticado pelos dois?
b) E se JOSÉ, mesmo diante da insistência de PEDRO, resolvesse levar o rádio,
responderiam por algum crime?
c) E se JOSÉ tivesse levado o rádio e PEDRO, ainda sob o efeito de seu remorso,
tivesse devolvido, dois dias depois, o rádio, qual o significado penal desta
devolução para ambos?
Resposta objetivamente justificada.

Resposta à Questão 3

a) O fato é atípico, pois a desistência ainda foi voluntária, mesmo que propugnada
por motivação externa, e não há crime residual evidente.

b) Sim, ambos responderiam por furto qualificado, José como autor, Pedro como
partícipe.
c) Configurar-se-ia arrependimento posterior, e ambos por ele seriam alcançados,
dado que é uma circunstância objetiva, comunicável. Poder-se-ia, até mesmo,
falar em furto de uso, mas não há elementos para tanto, no problema.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema XIII

Concurso de Pessoas I. 1) Considerações gerais: teorias e requisitos do concurso de pessoas. 2) A distinção


entre autoria e participação: teorias. Autoria direta e autoria mediata. Críticas e conseqüências. 3) Co-
autoria: conceito e requisitos. Domínio funcional do fato. O organizador. O vigia. O motorista. Aquele que
fornece os meios de execução. Co-autoria sucessiva. Desistência voluntária e arrependimento eficaz do co-
autor. Delitos especiais. Co-autoria mediata..

Notas de Aula29

1. Concurso de pessoas

Por conceituação clássica, o concurso de pessoas ocorre quando dois ou mais


agentes concorrem para a realização de um crime, sendo que o Brasil adotou a teoria
monista, através da qual todos os participantes (co-autores e partícipes) respondem pelo
mesmo fato, ou seja, pelo mesmo crime, na medida de sua culpabilidade pessoal. O artigo
29 do CP é a principal sede legal do tema:

“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de
um sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á
aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido
previsível o resultado mais grave.”

29
Aula proferida pelo professor Cristiano Soares, em 12/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP II Direito Penal II

A teoria monista apregoa que todos aqueles que colaboram para a realização de um
crime responderão pelo mesmo fato típico, ou seja, não há mais de uma adequação típica
para cada um dos concorrentes: todos incorrem na mesma tipificação. Aquele que dispara
arma de fogo matando alguém responde por homicídio, e aquele que lhe emprestou a arma
para tanto também responde pelo homicídio.
A expressão “na medida de sua culpabilidade”, de que se valeu o legislador,
significa que cada um dos concorrentes terá a sua reprovabilidade pessoal aferida
separadamente, sendo dosada sua responsabilidade e pena de acordo com suas
particularidades pessoais – mas sem que se tipifique sua conduta em outro crime. Aquele
que atirou em alguém terá medida sua culpabilidade diferentemente daquele que lhe
emprestou a arma, mas ambos cometeram homicídio.

2. Autoria

2.1. Critério restritivo de delimitação da autoria

O primeiro critério é o restritivo, assim chamado por restringir o conceito de autor,


exigindo bastante para que alguém seja chamado de autor. Este foi o primeiro critério
adotado no Brasil, e dizia que autor é apenas aquele que realizar a conduta típica, ou seja,
aquele que praticar o verbo núcleo do tipo penal.
Veja que este critério restringe mais do que razoavelmente o conceito, não sendo
muito preciso, sendo, de fato, critério muito pobre. Afinal, seguindo-se este critério, por
exemplo, apenas aquele que pratica o verbo “matar” seria autor do homicídio, ou seja,
geraria a hipótese absurda de quem domina a vítima para que outro a esfaqueie não ser
autor – somente o esfaqueador seria o autor, pois somente ele incide exatamente no verbo
“matar”. O segundo, que colaborar com o crime mas não realizar o verbo – no exemplo,
aquele que domina a vítima –, será considerado mero partícipe.
Este critério é fraco principalmente quando defronte de situações de autoria
intelectual, ou de autoria mediata. Nestes casos, o agente sequer está junto à vítima, mas é
ele quem tem a conduta mais relevante para o cometimento do crime. E justamente por não
trabalhar de forma adequada as hipóteses de autoria intelectual e autoria mediata, entre
outras, este critério perdeu aplicação e adeptos na doutrina e jurisprudência.

2.2. Critério do domínio final do fato

Tomando campo como o critério mais adotado, e realmente mais acurado, vem da
doutrina alemã o critério do domínio final do fato. Este critério, de Welzel, foi aprimorado
por Jakobs e Roxin, e é adotado de forma quase unânime no Brasil. Aqui, autor é todo
aquele que detém o controle da situação, o domínio sobre os fatos, podendo modificar ou
impedir a produção do resultado. Welzel sintetiza o critério dizendo que “autor é aquele que
detém as rédeas da situação”.
Destarte, é absolutamente irrelevante se o agente pratica ou não o verbo nuclear do
tipo penal. É relevante, somente, o domínio sobre os fatos, a possibilidade, nas mãos do
agente, de modificar ou impedir o curso dos fatos, até seu final. O autor possuirá as rédeas
da situação, controlando o final dos fatos, independentemente de realizar ou não o verbo.

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP II Direito Penal II

O partícipe, segundo este critério, logicamente, é aquele que contribui para o crime,
sem ter este domínio dos fatos. Por isso é que se diz que sua conduta é acessória, e por isso
as teorias da acessoriedade, que serão abordadas adiante.
Welzel sofreu algumas críticas em sua proposição, porque a co-autoria – que nada
mais é do que ser autor em conjunto com outro autor – não tem diferença em relação à
autoria, em si, e há casos em que a co-autoria não terá real domínio sobre os fatos. A
divisão de tarefas, por vezes, implica em que nenhum dos co-autores tenha o domínio final
do fato em suas mãos.
Suprindo as lacunas, a dogmática alemã trouxe a próxima proposição, a que se
chamou de critério do domínio funcional do fato. Este critério, na verdade, não é um
terceiro critério, e sim um desdobramento do domínio final do fato, específico para delitos
em que há divisão de tarefas essenciais. Vejamo-lo.

2.3. Critério do domínio funcional do fato

Este critério veio suplementar as falhas do critério do domínio final do fato. Nos
delitos em que há divisão de tarefas, cada um dos indivíduos cumpre uma função na prática
do crime. Por isso, entende-se que se todas as funções são essenciais ao cometimento do
crime, todos os agentes têm em suas mãos o domínio final do fato: se a função é essencial,
sem ela o fato não aconteceria, e por isso não pode ser tida por acessória.
Assim, quem domina sua função, e tem função essencial no delito, domina,
indiretamente, o final do fato. Veja que, assim, se complementa o critério do domínio final
do fato, sem elidi-lo, sanando as possíveis perplexidades diante de um crime que envolva
divisão de tarefas.
Em síntese, para resolver as críticas a respeito das hipóteses de co-autoria por
divisão de tarefas, surgiu esta teoria do domínio funcional do fato, desdobramento do
domínio final do fato, e que afirma que aquele que possui uma função essencial para a
realização do fato, ao dominar esta função, acaba também dominando o final dos fatos ele
mesmo, já que sem sua função o fato deixaria de ocorrer como ocorreu.

2.4. Espécies de autoria

2.4.1. Autoria direta

A primeira hipótese é a autoria direta: autor direto é aquele que está diretamente
ligado à realização do crime, possuindo domínio final do fato. Repare que é bastante
comum se confundir este conceito, quando se aplica a teoria do domínio final do fato, pois
é corriqueiro que se aplique este conceito e se fuja, sem querer, da aplicação do critério do
domínio final do fato, caindo inadvertidamente no critério restritivo.
Veja: é comum se dizer que autor direto é aquele que, “tendo o domínio final do
fato, executa o verbo”. Ora, nesta frase se apresenta uma confusão enorme entre os
critérios, pois ou se adota o critério restritivo, falando-se em executar o verbo, ou se adota o
domínio final do fato, para o qual é irrelevante a execução do verbo.
É por isso que há duas hipóteses bem claras de autoria direta, se for adotado o
critério do domínio final do fato (como deve ser): o autor direto executor, que é quem
pratica o verbo detendo o domínio final do fato; e o autor direto intelectual, que é quem

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP II Direito Penal II

possui o domínio final do fato, organiza, planeja, elabora o crime, mas não executa ele
próprio o verbo nuclear, utilizando-se de outro agente (o autor executor, que também possui
o domínio do fato), para realizar a conduta típica nuclear. Como exemplo, o mandante que
contrata o matador de aluguel: ambos são co-autores diretos, o primeiro sendo o autor
intelectual, e o segundo o autor direto executor – os dois tendo o domínio final do fato.

2.4.2. Autoria indireta , ou mediata

Autor indireto é aquele que, possuindo o domínio final do fato, se utiliza de um


terceiro, que não possua o domínio final do fato, para executar a conduta típica. Este agente
que executa o verbo sem domínio do fato não será autor, mas sim mero instrumento na
realização do crime, e portanto não responderá pelo fato praticado, o qual será imputado
apenas ao autor mediato.
Jakobs se utiliza do termo “autor por detrás do fato” para identificar este autor
mediato, pois que é ele o real – e único – autor do fato. O autor imediato, na verdade, não é
autor, por não ter domínio final do fato, sendo mera “marionete” nas mãos do autor mediato
– não é sequer partícipe. Mas repare que o fato de o agente-instrumento praticar o verbo
sem domínio final do fato não faz com que inexista dolo em sua conduta: o dolo natural
está claro, pois tanto o elemento cognitivo quanto o volitivo estão presentes, mesmo que
não se perquira, deste fato, o “porquê” e o “para quê” da conduta (o dolo é natural, sem
valoração alguma).
Há algumas hipóteses de autoria mediata aceitas na doutrina e jurisprudência,
mesmo que alheias às previsões expressas do CP (o que se deve à defasagem da parte geral
neste aspecto, visto que é de 1984). Na verdade, o CP é tremendamente lacunoso em
questões de autoria, e, a rigor, sequer contempla expressamente o critério do domínio final
do fato. Por isso, vale listar aqui as hipóteses peculiares de autoria mediata:

- Coação moral irresistível e obediência hierárquica: Veja que estas causas de


exclusão da culpabilidade daquele que pratica o verbo nuclear deixam bem claro
que ele não passou de instrumento para o crime nas mãos do agente mediato. Por
isso, o coator ou aquele que exarou a ordem é o autor mediato. Note que a conduta
do coagido ou do obediente é injusta: é típica, havendo dolo natural, e é ilícita, não
havendo justificante. Todavia, não é culpável, e esta exculpação por inexigibilidade
de conduta diversa retira-lhe a natureza de autor, ficando a autoria concentrada no
autor mediato.
Em suma, a presença destas circunstâncias afastará o domínio final do fato
do executor, e conseqüentemente afastará sua culpabilidade por inexigibilidade de
conduta diversa, imputando-se o crime apenas ao autor mediato.

- Erro determinado por terceiro: Aquele que atua em erro a respeito do que faz não
possui qualquer domínio sobre os fatos, não respondendo pelo crime, que será
imputado apenas àquele que determinou o erro, autor mediato.
A obediência hierárquica, diga-se, é um erro determinado por terceiro, pois o
agente só praticou a conduta por crer que a ordem recebida era legal (vez que, fosse
manifestamente ilegal, seria exigível que descumprisse a ordem). Incide, pois, o
artigo 20, § 2º, do CP:

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP II Direito Penal II

“Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
(...)
Erro determinado por terceiro
§ 2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.
(...)”

Veja que, nas relações privadas, a obediência hierárquica não é invocável,


como se sabe. Por isso, o que vai determinar a natureza do autor mediato nestas
relações é justamente esta conformação do erro induzido por terceiro: uma
enfermeira que recebe ordem do médico para aplicar medicamento que de fato é
veneno, por exemplo, não sendo o medicamento nada aberrante, não responderá se
ficar claro que este erro não podia ser vencido. O médico é o autor mediato, e a
enfermeira, executora, não é nada mais que instrumento, não respondendo por nada,
pois era inexigível que se conduzisse de outra forma, senão obedecer30.

- Uso de instrumento impunível: Na verdade, trata-se de instrumento inimputável:


ocorre quando o autor mediato se utiliza de um agente inimputável para a realização
da conduta, e este, que não possui o domínio final do fato, não responde pelo crime,
imputado apenas ao autor mediato.
A lógica desta hipótese é a seguinte: se o inimputável não pode discernir
aquilo que faz, a mando ou instigação do terceiro, este terceiro é o único que
realmente detém o domínio final do fato. Veja que o inimputável que realiza o fato
tem o dolo de fazê-lo, pois este é natural, mas como não tem culpabilidade, não
responde por nada.

Há certos aspectos desta espécie de autoria que precisam de atenção especial, por
apresentarem grave problemática. Um deles é o dos crimes de mão própria: para maioria da
doutrina, estes crimes não admitem autoria mediata, pois sua estrutura exige que o agente
pratique o fato pessoalmente, “com as próprias mãos”. Por exemplo, o falso testemunho,
em que somente o agente poderia prestar a falsa declaração em juízo.
Ocorre que esta tese está bem atrelada ao critério restritivo da autoria, pois se for
observada esta conduta do ponto de vista da teoria do domínio final do fato, fica bem claro
que pode um terceiro dominar a conduta do agente que pratica pela mão própria o verbo do
crime, e, portanto, somente este terceiro terá o domínio final do fato. Esta situação fica bem
fácil de ser enxergada num falso testemunho praticado propugnado por coação moral
irresistível, por exemplo. Contudo, ainda é majoritário que o crime de mão própria não
admite autoria mediata, por resquício de adoção do critério restritivo da autoria.
Os crimes próprios, por sua vez, são plenamente concebíveis em autoria mediata.

2.4.3. Co-autoria

Como o próprio nome indica, trata-se da autoria conjunta, em conjunto, daqueles


que concorrem para o crime. É a autoria coletiva, que ocorre quando dois ou mais agentes,
30
Os finalistas defendem que, de fato, mais do que inexigibilidade de conduta, está ausente o próprio dolo,
por falta do elemento cognitivo: a enfermeira, no exemplo, sequer sabia que estava causando a morte do
paciente.

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP II Direito Penal II

em comum resolução, ou seja, com acordo de vontades, atuam visando à prática de um


crime, podendo ocorrer de duas formas: cada um dos co-autores realiza diretamente a
conduta típica, ambos com domínio final do fato; ou quando há divisão de tarefas, quando
cada um dos co-autores possui uma função essencial, que dá a cada um dos co-autores o
domínio funcional do fato.
Assim, se resumem a duas hipóteses: ou os co-autores realizam toda a conduta
criminosa, com domínio do fato, ou cada um executa a sua tarefa essencial, com igual
domínio do fato.
A co-autoria exsurge do acordo de vontades já nos atos preparatórios, mas também
pode surgir no curso da execução por um deles, vindo o segundo a integrar a execução,
aderindo a esta, manifestando ali seu acordo de vontade na consecução do crime. Esta
segunda hipótese, em que há adesão do co-autor na execução, é a chamada co-autoria
sucessiva. A co-autoria sucessiva, em síntese, ocorre quando um agente ingressa na prática
do crime após o início da execução, com o acordo de vontades, e com o domínio do fato.
Esta modalidade é plenamente admitida no nosso ordenamento.
Mas veja que o ingresso do co-autor sucessivo só pode ser realizado até antes da
consumação. Todavia, Nilo Batista, enfrentando o instituto sob o prisma dos crimes
formais, entende que poderá haver esta adesão posteriormente à consumação, nestes delitos,
desde que antes do exaurimento.
Desta forma, por exemplo, o agente que pratica extorsão mediante seqüestro
consuma o fato na retirada da liberdade da vítima com esta finalidade, e a obtenção do
pagamento do resgate será mero exaurimento. Neste caso, a adesão de algum terceiro após
a captura da vítima, para, digamos, buscar o pagamento do resgate, segundo a tese
majoritária, apenas faria com que este terceiro respondesse por algum crime autônomo que
esta conduta indicasse, mas não seria co-autoria da extorsão mediante seqüestro – pois este
já se consumou na captura. Para Nilo Batista, porém, é co-autoria, mesmo após a
consumação, porque se inseriu no evento antes do exaurimento.
Em síntese, embora haja divergência, é possível a co-autoria sucessiva até o
exaurimento do crime, seguindo-se a posição de Nilo Batista.

2.4.3.1. Co-autoria, desistência voluntária e arrependimento eficaz

Quanto à co-autoria, em relação aos institutos do artigo 15 do CP, arrependimento


eficaz e desistência voluntária, há dois posicionamentos, como já se pôde adiantar: o
primeiro defende a comunicabilidade dos institutos aos co-autores, pois entende que são
causas de extinção da tipicidade; o segundo posicionamento, por seu turno, afasta a
comunicabilidade dos institutos, salvo se o co-autor também desistir ou se arrepender, pois
entende que estes institutos são causas de extinção da punibilidade.

2.4.3.2. Co-autoria mediata

Pode haver caso em que se conciliem os dois conceitos em uma mesma situação
fática. É possível que haja a própria co-autoria mediata quando dois agentes, em acordo de
vontades, dominam o fato, levando um terceiro, sem qualquer domínio do fato, a praticar a
conduta verbal do núcleo do crime.

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP II Direito Penal II

2.4.3.3. Co-autoria em crimes próprios e crimes de mão própria

A maioria da doutrina aceita que haja co-autoria em crimes próprios,


independentemente do co-autor possuir a característica específica exigida pelo tipo, em face
da comunicabilidade das circunstâncias subjetivas quando elementares de um crime, como
dispõe o artigo 30 do CP:

“Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,


salvo quando elementares do crime.”

Assim, se um crime exige qualidade de funcionário público, aquele que executa-o


em conjunto com o funcionário, detendo o domínio do fato, mas não é, ele próprio,
funcionário público, ainda assim será co-autor, porque esta qualidade é elementar do delito,
e a ele se comunica.
Porém, a maioria da doutrina não admite a co-autoria nos crimes de mão própria,
pelo mesmo motivo que não admite a autoria mediata, ou seja, um indevido resquício de
utilização do critério restritivo.

2.4.3.4. Autoria colateral

Ocorre quando dois agentes realizam simultaneamente determinado fato, sem que
haja qualquer vínculo entre eles, ou seja, um desconhece a existência do outro. Neste caso,
cada um responderá apenas por aquilo que tiver feito.
Em hipótese de autoria colateral, quando não for possível se identificar qual dos
agentes produziu o resultado, ambos deverão responder pela forma tentada.

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP II Direito Penal II

Casos Concretos

Questão 1

MÉVIO, enquanto vigia externo, atuou em um roubo a estabelecimento bancário,


que resultou bem sucedido, diante da subtração do numerário praticado por TÍCIO,
enquanto CAIO exercia a intimidação necessária com o aponte de arma de fogo, e LÚCIO,
menor inimputável, ficava de vigia nas cercanias, para avisar quanto à aproximação da
polícia.
a) Segundo o instituto do concurso de pessoas, como podem ser classificadas as
atuações de TÍCIO, CAIO e MÉVIO, a partir do disposto pela teoria do domínio
final do fato?
b) Haveria solução diversa caso MÉVIO já compusesse uma organização
criminosa também integrada por TÍCIO, CAIO e LÚCIO, especializada em roubos
a estabelecimentos bancários?
c) Qual o critério distintivo adotado por esta teoria para classificar autor, co-autor
e partícipe?
d) Qual a teoria relativa ao concurso de pessoas que foi adotada pelo CP vigente?

Resposta à Questão 1

a) Tício e Caio são co-autores do roubo, ambos detendo domínio funcional do fato,
pois cada um, com sua função fracionada, detinha o domínio final do fato.
Mévio, todavia, poderia ser co-autor, se evidente sua parcela fundamental na
formação do plano criminoso – quando então teria domínio funcional do fato,
também; ou partícipe, se sua conduta de vigia não fosse fundamental para a
possibilidade da execução do delito.

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP II Direito Penal II

b) Neste caso, seria tido sempre como co-autor, vez que sua conduta fracionária é
claramente necessária à execução do delito, além da própria inserção no crime
de quadrilha ou bando.

c) O critério é o já mencionado domínio funcional do fato, desdobramento do


domínio final do fato: se os agentes têm funções que, cada uma, de per si, é
essencial para que o crime se consume, é co-autor; se sua função não é
essencial, não detendo domínio final do fato, é partícipe. Se um só agente tem o
domínio do fato, só ele é autor.

d) Teoria monista, em que todos são capitulados no mesmo tipo penal (com raras
exceções em crimes específicos, como o aborto e a corrupção ativa e passiva).

Questão 2

CAIO e TÍCIO, com intenção de matar, ignorando cada um deles a conduta do


outro, mediante emboscada, desfecham disparos contra SEMPRÔNIO, que veio a ser
atingido pelo projétil de uma das armas, não se apurando, contudo, de qual. Momentos
antes, CAIO confidenciara seu propósito criminoso ao policial civil MÉVIO, que se achava
em serviço nas proximidades, sendo a conversa, sem que ambos percebessem, escutada
pelo bancário SÍLVIO da janela de sua casa. Do local onde se encontravam, MÉVIO e
SÍLVIO assistiram passivamente ao evento. Acreditando que SEMPRÔNIO estivesse morto,
CAIO, TÍCIO e MÉVIO saíram do local, enquanto SÍLVIO, ignorando o pedido de auxílio
da vítima, retirou-se para o interior de sua casa. Decorridos trinta minutos, SEMPRÔNIO
foi socorrido por terceiros, vindo a falecer, ao dar entrada no hospital, em conseqüência
dos ferimentos e da ausência de pronta assistência. Qual a adequação típica das condutas
descritas?

Resposta à Questão 2

Caio e Tício respondem por homicídio tentado, qualificado por emboscada. Não
havendo como se identificar quem efetuou o disparo fatal, não há como se imputar a
consumação nenhum deles, havendo o que se chama de autoria colateral.
Mévio, garantidor, responde por homicídio doloso por omissão, mas poderia ser
tentado, vez que só sabia da conduta de Caio, e esta veio a ser tentada.
Sílvio, não garantidor, responde apenas por omissão de socorro com resultado
morte.

Questão 3

FABIANO foi o mandante de homicídio praticado mediante emboscada. Em razão


disso, foi denunciado e pronunciado como incurso nas penas do art. 121, § 2º, I e IV, c/c o
art. 29 do CP. Inconformado, FABIANO interpôs recurso em sentido estrito contra a
decisão de pronúncia, alegando ser juridicamente impossível atribuir-se a ele o fato de ter
sido o homicídio praticado mediante paga, não devendo incidir, portanto, o artigo 121, §
2º, I, do CP, em função do que dispõe o artigo 30 do CP. Assiste-lhe razão? Por quê?

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP II Direito Penal II

Resposta à Questão 3

Há duas correntes. Para a jurisprudência, lhe assiste razão, porque a circunstância é


pessoal e alheia à elementar do tipo, não se comunicando; para a doutrina, o tipo
qualificado cria uma nova tipificação derivada, e desta tipificação se pode dizer que é
elementar, comunicando-se, portanto – não tendo razão, então.
Pela jurisprudência, vide o que diz o STJ no HC 11.764:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO


QUALIFICADO. PAGA E PROMESSA DE RECOMPENSA.
FUNDAMENTAÇÃO ACERCA DA ADMISSIBILIDADE DE
QUALIFICADORA.
I - Os dados que compõem o tipo básico ou fundamental (inserido no caput) são
elementares (essentialia delicti); aqueles que integram o acréscimo, estruturando o
tipo derivado (qualificado ou privilegiado) são circunstâncias (accidentalia delicti).
II - No homicídio, a qualificadora de ter sido o delito praticado mediante paga ou
promessa de recompensa é circunstância de caráter pessoal e, portanto, ex vi art. 30
do C.P., incomunicável.
III - Na pronúncia, o juiz deve manifestar-se, objetiva e sucintamente, também,
sobre a admissibilidade das qualificadoras que, somente, se totalmente incabíveis,
podem ser rejeitadas no iudicium accusationis.
IV - É nula a decisão de pronúncia que acolhe a comunicabilidade de circunstância
pessoal e deixa de motivar concretamente a admissibilidade de qualificadora.
Habeas Corpus concedido.”

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema XIV

Concurso de Pessoas II. 1) A participação: definição. A punibilidade da participação e o seu caráter doloso.
Princípios reitores. Tentativa de participação. 2) Desistência voluntária e arrependimento eficaz. A
cumplicidade necessária e a desnecessária (teorias e controvérsias). Diferença entre cumplicidade
necessária e co-autoria.

Notas de Aula31

1. Participação

O artigo 29 do CP é o dispositivo legal acerca do tema, prevendo:

“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um
sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á
aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido
previsível o resultado mais grave.”

Quanto à natureza jurídica, trata-se de norma de extensão, norma de adequação


típica por subordinação mediata por aplicação pessoal. Como exemplo, no crime de
homicídio, o tipo penal aplica-se diretamente somente àquele que pratica a conduta idônea
a causar o resultado morte; nesse sentido, para se ampliar o alcance da norma, utiliza-se das
normas de extensão, que, além deste artigo 29, são também os artigos 13, § 2º e 14, II do
CP.
A vantagem de ser tipificado como partícipe se encontra no § 1º deste artigo 29,
qual seja, a objetiva redução na pena, o que não ocorre em sede de cumplicidade
necessária (vista adiante) e co-autoria.

31
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 15/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP II Direito Penal II

1.1. Requisitos

O primeiro requisito para haver a participação, lato sensu, é o liame subjetivo.


Segundo parte da doutrina, a exigência do preenchimento deste requisito faz com que
somente seja permitida a participação em sede de crimes dolosos, ou seja, se exige o
concurso doloso em crime doloso, exigindo-se que o agente queira participar, aderir,
contribuir.
Segundo requisito inafastável é a relevância causal. Toda a participação deve ser
relevante. Não basta querer contribuir, deve efetivamente fazê-lo, e de forma relevante.
Como exemplo, o agente que empresta a arma para o executor, a fim de que este pratique
subtração. Se o executor realiza o roubo sem empregar a arma emprestada, não terá
qualquer relevância causal este empréstimo, e por isso não há participação.
Na prática, tal requisito tem sido deveras ignorado pela jurisprudência, que tem
aplicado o dispositivo em situações as quais a contribuição não foi relevante para o nexo
causal – o que, de forma implícita, acaba sendo a aplicação do chamado “direito penal do
autor”, onde não se verifica a parte objetiva, mas tão somente a subjetiva.
Em suma, por tal requisito deve ser analisado não quem a parte é, mas tão-somente
o que ela fez.

1.2. Conceito e fundamento do partícipe

Partícipe é aquele que, sem realizar a ação típica, bem como sem deter o domínio
final ou funcional do fato (autor ou co-autor), concorre de forma relevante para a
consecução do delito.
O fundamento do referido diploma nada mais é senão o de punir alguém por ter
colaborado para fato contrário ao ordenamento jurídico.

1.3. Formas de participação

Na vigência da teoria restritiva, o autor era tido como aquele que praticava o núcleo
verbal do tipo, sendo chamados de partícipes todos os demais. Com isso, as formas de
participação eram quatro: induzimento, determinação, instigação e auxílio.
Com o advento da teoria do domínio final do fato, a determinação deixou de
integrar uma forma de participação para ser promovida a modalidade de co-autoria, qual
seja, a intelectual.
Assim, as formas de participação são três: induzimento e instigação, participações
morais; e o auxílio, participação material.
Há diferença entre as duas formas de participação moral: induzir nada mais é senão
criar a idéia na mente do agente, ao passo que instigar é reforçar, incentivar a idéia já
existente.
A participação material, o auxílio, é aquela chamada pelo leigo de cumplicidade.
Veja um exemplo: uma pessoa empresta a outra chave mestra, capaz de abrir qualquer
porta, a fim de que seja cometido furto. Será considerado partícipe, auxiliar material, desde
que tenha havido a utilização da chave no crime, dada a exigência da relevância causal.

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Assim, partícipe material seria aquele que se intromete em processo físico na prática do
crime cometido por outrem.
Toda participação deve incidir sobre autores e fatos determinados. Se um agente
incita outros agentes indeterminados, responderá, talvez, pelo artigo 286 do CP, incitação
ao crime. No entanto, se este incitador soubesse que alguns dos incitados possuem um
sentimento revoltoso acerca do tema, ou seja, que há sério potencial de que estes venham a
cometer o crime incitado, poderá responder também pela participação nos crimes cometidos
por aqueles, em que pese o limite da responsabilidade penal, que de forma alguma poderá
ser objetiva.
Toda participação é acessória, ou seja, vigeria, aqui o princípio da gravitação
jurídica; logo, o participe está aderindo à conduta de um autor. No entanto, em sede de
participação não é aplicado este brocardo, pois sabemos que foi adotada a teoria da
acessoriedade limitada. Vejamos.

1.4. Teorias da acessoriedade

1.4.1. Acessoriedade Mínima

Para esta teoria, a simples ocorrência da tipicidade já seria suficiente para que se
possibilite a punição ao partícipe. Assim, mesmo se a conduta praticada pelo agente fosse
atípica, aquele que de qualquer modo concorreu, responderia.
Mas sabe-se que o fato é único, não se podendo diferenciar um fato para o autor e
outro para o partícipe, ante a aplicação e adesão à teoria monista. No entanto, segundo Nilo
Batista, na análise da tipicidade e ilicitude, o julgador se volta para o fato, ao passo que na
culpabilidade se volta para o agente e suas peculiaridades, sendo um juízo pessoal de
reprovabilidade. Logo, haveria espaço para o pluralismo, em que pese a adesão à tese
monista.

1.4.2. Acessoriedade Máxima

Para se punir o partícipe ou co-autor, o fato deveria ser típico, ilícito e culpável.
Assim, daria azo à impunidade ao traficante que utiliza inimputável para traficar droga.
Nesse sentido, as circunstancias pessoais do agente, mesmo sem serem elementares
do tipo, poderiam se comunicar com o partícipe, em que pese poder se tratar de autoria
mediata.

1.4.3. Acessoriedade Limitada

É a teoria adotada pelo ordenamento jurídico pátrio. Para esta, somente se comunica
o injusto (fato típico e ilícito), posto se tratar a culpabilidade de juízo pessoal de
reprovabilidade.
Importa ressaltar que, com base neste argumento, Damásio reforçaria sua tese da
teoria bipartida do crime, sendo crime, para ele, tão-somente o fato típico e ilícito.

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1.4.4. Hiper Acessoriedade

Por esta, eventuais aplicações de causas de extinção da punibilidade ao autor se


comunicariam com o partícipe. Esta tese beira ao ridículo: é só imaginar caso em que o
falecimento de um dos agentes seria causa de extinção de punibilidade de todos.

1.5. Momento da Participação

A participação ocorre no curso do iter criminis, salvo no caso da participação moral


por induzimento, caso este em que se daria antes mesmo do início do caminho do crime,
antes da cogitação.
Poderia haver participação após a consumação do crime? Como regra, não. Crimes
há que, no entanto, figuram como tipificação autônoma de fatos que, do contrário, seriam
participações após a consumação, posto só existirem em razão de crimes anteriores. Assim
são a ocultação de cadáver, a receptação, etc.
A exceção à referida afirmação, quando puder ser tido como partícipe posterior à
consumação, e aquele que previamente ajustou sua conduta ao crime, previamente aderiu
ao crime. Por exemplo, aquele que, antes do homicídio ser cometido, garantiu ao autor que
ocultaria o cadáver.
Em síntese, como regra a participação se dá durante o iter criminis, não obstante
este possa ocorrer antes da cogitação, posto haver a modalidade de participação moral por
induzimento. Ademais, acerca da participação em crime anterior ou cometimento do crime
autônomo, deve ser assentado que há entendimento no STJ no sentido de que, sendo bens
jurídicos distintos, haveria a possibilidade de concurso de crimes.

2. Participação e continuidade delitiva

Antes de analisarmos o tema, cumpre trazermos um exemplo: um agente pratica


vários estelionatos em continuidade delitiva, e um outro somente participa de um dos
crimes, isoladamente considerado. Como se resolve?
Veja que, enquanto o autor responde pela continuidade, o partícipe somente
responderá por aquele que incidiu, salvo se soubesse ou tivesse condições de saber de que
era partícipe de uma cadeia de ilícitos, quando, somente então, incide na continuidade
delitiva – sob pena de, do contrário, trazermos a famigerada responsabilidade penal
objetiva.
As controvérsias dobre o tema são dirimidas sob o prisma da natureza jurídica da
continuidade delitiva, que encontra duas conceituações: a da unidade real e a da ficção
jurídica.
Se fosse adotada a teoria da unidade real, sendo só um crime, porém partilhado em
vários atos, poderia ser aplicada ao partícipe a causa de aumento de pena da continuidade
delitiva, desde que ficasse robustamente comprovado que o participe conhecia o animus da
continuidade, e participasse em ao menos um ato com o agente principal.
De forma oposta, ante a adesão do ordenamento jurídico nacional à teoria da ficção
jurídica, não poderia se fazer uso da referida majorante em todos os crimes, posto ser a
continuidade uma ficção: tendo participado de somente um crime, só por este responderá o
partícipe.

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3. Participação em crimes habituais

Os crimes habituais, segundo o ordenamento criminal, se perfazem mediante a


reiteração da conduta criminosa. Mas há divergência acerca do tema, sendo dois
entendimentos, quais sejam: o majoritário assenta pela consumação após o cometimento da
terceira conduta reiterada, pouco importando as anteriores. Em sentido contrário, o segundo
entendimento, capitaneado por Zaffaroni, assenta que a consumação se daria tão-somente
com a exteriorização da tendência de prosseguir, logo, bastaria a primeira conduta com
tendência à habitualidade.
A depender da teoria adotada, a situação do colaborador difere. Se for adotada a
teoria que demanda a reiteração, o agente só será partícipe se efetivamente tomar parte na
reiteração. Sendo adotada a tese de que é delito de tendência, caso somente tenha ocorrido a
participação no primeiro ato, será perquirida a presença do elemento cognitivo: se o
partícipe sabia da tendência, será imputado; se colabora sem que tenha havido o
conhecimento da tendência do agente, não estaria preenchido o elemento cognitivo,
impedindo a participação.

4. Cumplicidade necessária

A doutrina majoritária não admite co-autoria em crimes de mão própria, posto ser
inadmissível a divisão de tarefas, salvo se forem analisados tais crimes sob o foco da teoria
vigente, qual seja, a do domínio funcional ou final do fato, e não sob o enfoque da
restritiva.
Ocorre que a doutrina majoritária adota o conceito restritivo, sendo autor somente
aquele que realiza o tipo; logo, não caberia a autoria mediata.
O cúmplice necessário é aquele que não preenche os requisitos da co-autoria em
crimes de mão-própria, mas a contribuição dada é tão importante, que possui o domínio
funcional do fato, sendo partícipe em alto grau: sem tal participação, o crime não seria
desta forma praticado. Estamos, então, diante de um paradoxo: veja que pela tese do
domínio funcional do fato tal conduta não seria participação, mas sim co-autoria funcional;
não obstante, a tese majoritária ainda tem o enfoque da tese restritiva para crimes de mão-
própria, vedando a co-autoria nos mesmos. Por isso, acabou criando este aberrante instituto
em análise, qual seja, cumplicidade necessária.

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Casos Concretos

Questão 1

CAIO e ANA ingressam num coletivo onde anunciam um assalto, cabendo ao


primeiro apontar a arma de fogo para todos que ali se encontravam, enquanto sua
comparsa subtrai, para ambos, os bens de quatro passageiros e do cobrador. Encerrada a
empreitada, agindo com desígnio autônomo, CAIO constrange uma mulher, que caminhava
pela rua, à conjunção carnal, passando a arma para ANA, que a mantém apontada para a
cabeça da referida vítima, durante a realização do coito. Analise a situação jurídico-penal
dos agentes, dando ênfase à questão do concurso de pessoas.

Resposta à Questão 1

Entendo que há concurso claro no primeiro delito: ambos, com unidade de


desígnios, consumaram o roubo, agindo cada um em parcela idêntica de domínio do fato.
Co-autoria inquestionável.
Quanto ao estupro, todavia, há que se cogitar qual a natureza da conduta de Ana. É
certo que sem seu auxílio não seria consumado o delito, pois ela foi a autora da grave
ameaça que fez a vítima ceder à conjunção – é co-autora. Todavia, para esta conclusão ser
possível, é necessário se admitir que este crime de mão própria possa admitir concurso. Se
não for admitido concurso, será a hipótese de cumplicidade necessária, instituto de frágil
sustentação. O estupro, mesmo sendo tido por crime de mão própria – o que não deveria ser
–, admitiria a co-autoria de Ana e do autor-executor Caio, ante a teoria vigente do domínio
final do fato. Do contrário, a conduta de Ana deveria ser enquadrada na famigerada
cumplicidade necessária.

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Tema XV

Concurso de Pessoas III. 1) Concurso de pessoas nos crimes omissivos: possibilidade de co-autoria e
participação nos crimes omissivos próprios e impróprios. Controvérsias na doutrina e na jurisprudência. 2)
Concurso de pessoas nos crimes culposos: possibilidade de co-autoria e participação. Teorias e
controvérsias. 3) Concurso de pessoas nos crimes próprios e nos crimes de mão própria: possibilidade de co-
autoria e participação.

Notas de Aula32

1. Comunicabilidade da desistência voluntária, do arrependimento eficaz e do


arrependimento posterior

Imagine-se que o autor desiste ou se arrepende de forma eficaz: mesma sorte terá o
partícipe, posto se tratar de conduta acessória, neste caso sendo aplicado o princípio da
gravitação jurídica.
Vale, portanto, a transcrição dos dispositivos acerca do tema, artigos 15 e 16 do CP:

“Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou


impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.”

“Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado
o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato
voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”

Mas veja que a comunicabilidade ou não destes eventos ao partícipe se dará de


acordo com a teoria adotada acerca da natureza jurídica dos institutos. Veja: para a tese de
serem excludentes de tipicidade, defendida por Zaffaroni e Hungria, entre outros, haveria a
comunicação. Tal tese se fundamenta no fato de somente se poder punir o agente pelo crime
consumado ou tentado; assim, como nos referidos institutos não ocorrera nem uma coisa
nem outra, não haveria tipicidade.

32
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 15/9/2008.

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O segundo entendimento, ao contrário, prega que são causas de extinção da


punibilidade, sendo pessoais, e somente beneficiando quem desistiu ou se arrependeu, ou
seja, o autor ou co-autor.
Para alcançar o partícipe, deve ele, em tempo hábil, retirar a relevância de sua
atuação. Veja um exemplo: o partícipe empresta arma de fogo para o autor matar a vítima;
em seguida, se arrepende, e retira o instrumento da posse de do autor, o qual, assim mesmo,
mata a vítima, mas com uma faca. Assim, se fosse tão-somente participação material,
ficaria fácil o entendimento, o que não ocorre em sede de participação moral, posto a
impossibilidade de se ingressar no imaginário do agente e subtrair a informação reforçada
ou criada pelo partícipe. Diante disto, ao participe moral caberia somente o arrependimento
eficaz, devendo evitar a produção do resultado, caso este em que seria o autor punido a
título de tentativa, e concedido o arrependimento eficaz ao partícipe.
Em apertada síntese, poderíamos afirmar que, em sede de participação material,
permite-se a ocorrência da desistência voluntária e do arrependimento eficaz para o
partícipe, ao passo que em matéria de participação moral, somente se permite a última.

2. Concurso de pessoas em crimes omissivos

Nos crimes omissivos, o tipo traz uma ordem, ao passo que no tipo comissivo é
trazida uma proibição. Por esta razão, os tipos omissivos são chamados de mandamentais 33
por descrever uma ação exigida.
Partamos de um exemplo: os pais, querendo matar o filho, resolvem abandoná-lo,
vindo a causar-lhe a morte por fome. Sua conduta incide claramente no homicídio doloso
omissivo por comissão, visto que ambos são garantidores que abandonaram seu dever de
agir, mas surge uma dúvida: agiram em co-autoria, ou cometeram cada um o homicídio?

2.1. Co-autoria em crime omissivo

Acerca do exemplo dado há ferrenha divergência na doutrina.


O primeiro entendimento, capitaneado por Roxin, assevera que havia o liame
subjetivo, mas mesmo assim o dever era de cada um dos pais. Diante disso, Nilo Batista
chama este dever de dever indecomponível, que não pode ser fracionado, decomposto, não
cabendo, portanto, a co-autoria em crimes omissivos, sob o fundamento de impossibilidade
de divisão de tarefas, posto cada um dos pais vir a violar seu próprio dever.
Em sentido contrário, Greco e Bittencourt entendem que, mesmo havendo a
impossibilidade de divisão de tarefas, há liame subjetivo, sendo suficiente para configurar a
co-autoria em crimes omissivos.
Mas mesmo para a primeira corrente há exceção, quando seria permitida a co-
autoria em crimes omissivos: quando o dever exigir uma atuação conjunta dos
garantidores. Como exemplo, se uma pessoa bastante pesada estiver se afogando, é
necessário que mais de um salva-vidas atue, e a quebra deste dever conjunto consiste em
co-autoria. Outro exemplo é o de médico e anestesista na cirurgia: o dever de cuidado é da
equipe, e se resolverem em conjunto não cumprir este dever, fica clara a co-autoria.

2.2. Participação em crime omissivo


33
Claus Roxin chama os crimes omissivos de delitos de dever.

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Juarez Cirino entende não ser possível, mas a doutrina majoritária entende pela
possibilidade, desde que seja participação comissiva em crime omissivo, posto ser vedado a
participação omissiva.
Somente será partícipe se não tiver o dever, sob pena de se tornar autor, quando
então passa-se à discussão da co-autoria em crime omissivo. Um exemplo: um sujeito
paraplégico convence seus amigos, estando todos em um barco, a não salvar pessoa que
está se afogando (desde que o barco não tenha rádio, pois do contrário o paraplégico teria
dever próprio de agir na suas possibilidades, ou seja, chamar o socorro).

3. Concurso de agentes em crimes culposos

O primeiro entendimento sobre o tema, representado por Nilo Batista e Roxin,


defende que somente haveria a possibilidade de concurso de agentes em caso de crimes
dolosos, ante a exigência do liame subjetivo, mesmo podendo haver a divisão de tarefas
(relação de causalidade). Ademais, Roxin entende que nos crimes omissivos, não caberia
co-autoria, posto ser o dever indecomponível, acrescentando este fundamento aos crimes
culposos.
O segundo entendimento, capitaneado por Greco e Bittencourt, com base na
doutrina espanhola, defende que haveria o concurso de agentes mediante a possibilidade de
divisão de tarefas, em que pese a ausência do preenchimento do liame subjetivo. Importa
salientar que, para estes, haveria o liame subjetivo em não observar o dever jurídico de
cuidado, possibilitando o concurso.
A doutrina nacional entende pela possibilidade de concurso de agentes em co-
autoria, mas não em participação, sempre que for possível a divisão de tarefas, ou seja, há
necessidade de atuação conjunta para ocorrência do resultado, sendo inócua a atuação
isolada. Logo, adota a segunda tese.
Há uma subdivisão na segunda teoria no tocante ao partícipe: há quem entenda que
cabe co-autoria, mas não participação. Veja: o tipo culposo é aberto, se enquadrando toda
e qualquer conduta que contribuir para o resultado. Assim, se o comportamento fora
descuidado, e contribuiu para ocorrência do resultado, não haveria que se falar em
partícipe, mas sim em autor.
Mas há quem entenda que cabe co-autoria e participação, tese esta agasalhada por
Greco e Bittencourt. Esta corrente admite a possibilidade de participação, desde que na
modalidade moral, instigação ou induzimento.
Em suma, para a primeira tese, não seria possível co-autoria ou participação, ante a
inexistência de liame subjetivo, tão-somente existente em sede de crimes dolosos. A
segunda corrente, porém, entende que a presença da divisão de tarefas vem a possibilitar a
co-autoria nos tipos culposos. A terceira corrente, por sua vez, desdobramento da segunda,
entende que seria possível somente a participação na modalidade moral (instigação e
induzimento). Por fim, a quarta corrente, outro desdobramento da segunda, entende que não
pode haver participação, mas somente a co-autoria, pois toda inobservância que contribua
para o resultado será típica, posto se tratar de tipo aberto, configurando co-autoria, e não
participação.

4. Concursos de agentes em crimes de mão própria

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP II Direito Penal II

Nestes crimes, se for analisado sob o prisma da teoria restritiva, não seria possível a
co-autoria, nem autoria mediata, mas sim a participação. Como exemplo deste
entendimento, os tribunais superiores têm entendido que os advogados poderão ser tidos
como participes em crimes de falso testemunho.

5. Concurso de agentes em crimes próprios

Deve ser salientado que há possibilidade de divisão de tarefas nestes crimes, sendo
possível a co-autoria. Já a autoria mediata é mais controvertida: nestes crimes, somente
quem pode ser autor imediato também poderá ser mediato. Como exemplo, o funcionário
público pode induzir em erro um particular para que se aproprie de verba pública, sendo
autor mediato, mas o contrário não procede: se o particular usa o funcionário público para
dar desfalque na administração, este particular não responderá pelo crime próprio, mas sim
pelo correspondente crime impróprio, qual seja, furto ou apropriação indébita.
Casos Concretos

Questão 1

Há possibilidade de co-autoria ou participação em crimes omissivos? A resposta


deve ser objetivamente justificada.

Resposta à Questão 1

Nos crimes de omissão não se pode admitir a co-autoria, em regra, porque cada
agente que incide em omissão comete crime próprio: cada um que deixa de agir quando
deveria incide em conduta própria, e não na participação da conduta do outro, e por isso
não está presente a divisão de tarefas, pressuposto da co-autoria. Esta é a posição de Nilo
Batista. Quanto à participação, prepondera a tese de que é cabível, desde que o partícipe
não tenha, ele próprio, o dever de agir, induzindo ou instigando a que não seja cumprido
por quem tenha.
Todavia, a questão é bastante controvertida, havendo quem defenda, como Rogério
Greco, que pode haver co-autoria, quando há comunhão entre os que detêm o dever em não
agir. Quanto à participação, as teses se coadunam, entendendo-a cabível.

Questão 2

Nos tipos culposos, quando a atividade é dividida por várias pessoas, o princípio
da confiança limita o dever objetivo de cuidado? Resposta com objetiva fundamentação.

Resposta à Questão 2

O princípio da confiança é aquele em que faz com que o indivíduo que se comporta
adequadamente venha a esperar que os demais assim também o farão: o direito não pode
fazer com que se espere o pior dos demais. Ainda que se gere um risco, há, sim, a limitação

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP II Direito Penal II

do dever jurídico de cuidado, pois se deve confiar nos demais indivíduos, salvo se estes se
comportar de forma a não merecer confiança.

Tema XVI

Concurso de pessoas IV. 1) A participação de menor importância: exame do artigo 29, §1º do Código Penal
Brasileiro. 2) Os desvios subjetivos entre os participantes: análise do artigo 29, §2º do Código Penal. 3) O
artigo 30 do Código Penal e suas controvérsias. 4) O artigo 31 do Código Penal como limitador da
responsabilidade penal.

Notas de Aula34

1. Participação de menor importância

O tema se concentra na análise do artigo 29, § 1º, do CP:

“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de
um sexto a um terço.
(...)”

O artigo 29 diz que o fato é um só para todos: a teoria monista é a que se aplica no
concurso de pessoas. Na aplicação da pena, porém, cada um dos concorrentes tem suas
peculiaridades, e o princípio da individualização da pena impõe que se analise a
reprovabilidade da conduta de cada um em separado – daí a expressão “na medida de sua
culpabilidade”. O artigo 30 do CP tem íntima ligação com esta medida de culpabilidade,
pois estabelece que não se comunicam as circunstâncias que só dizem respeito a um dos
agentes, circunstâncias subjetivas (a não ser que façam parte do próprio crime, sendo
elementares, quando então serão comunicáveis).
Mas, fora estas considerações, o § 1º deste artigo 29 estabelece uma causa de
diminuição de pena quando a participação do agente for considerada de menor importância.
A natureza jurídica desta previsão é justamente esta: causa de diminuição de pena,
incidindo na terceira fase da mensuração da pena.
34
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 17/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP II Direito Penal II

Para a participação ser de menor importância, é necessário, antes de tudo, que o


agente se trate de um partícipe, por óbvio, excluindo-se do alcance desta norma o autor ou
co-autores. Isso é bem lógico, mas vale consignar: se o agente é autor ou co-autor, sua
participação é sempre de alta relevância – tem o domínio final do fato, mesmo que domínio
funcional –, e mesmo se o artigo não consignasse o termo participação, seria inadmissível a
redução aos autores, pois nunca teriam papel de menor importância.
É claro que a ação de um co-autor pode ser de menor relevância do que a de outro,
mas nunca será de menor importância, nos termos do instituto – só o partícipe tem esta
possibilidade.
A participação, portanto, gradua desde a mais ínfima àquela em que o partícipe
tangencia a natureza de co-autor. A fórmula para aferir se a participação é de menor
importância ou não é a chamada fórmula dos bens escassos ou abundantes. Vejamos.

1.1. Fórmula dos bens escassos ou abundantes

Esta análise se faz melhor de uma forma indutiva, partindo de exemplos. Imagine
que para cometer o crime, o autor precise de cem mil reais emprestados: este bem é
claramente difícil de se conseguir. Imagine, de outro lado, que precise de apenas cinco
reais: a ajuda será muito mais facilmente encontrada. A primeira participação, de difícil
obtenção, jamais poderá ser tida por participação de menor importância; a segunda, sim.
Outro exemplo: o autor precisa de alguém que consiga abrir um cofre de segredo
bastante difícil. Outro autor precisa apenas de alguém que empurre uma porta pesada. Da
mesma forma, a primeira ajuda nunca será de menor importância, enquanto a segunda
poderá ser.
Assim se resume: se a contribuição do partícipe é de fácil obtenção, poderá ser
considerada de somenos importância. Se é de difícil obtenção, não será de menor
importância. E, diga-se, se a participação for de tão difícil obtenção que tangencie a quase
infungibilidade, poderá configurar mesmo a co-autoria.
Reforçando os exemplos: conseguir alguém para vigiar uma porta dos fundos para
um furto é fácil, mas conseguir alguém para arrombar a porta do cofre é difícil, e por isso,
respectivamente, serão condutas de menor e maior importância, dada a respectiva
abundância e escassez da contribuição.
Mas veja que não basta esta abundância do bem para que o partícipe mereça o
benefício. Se o bem for escasso, a análise pode parar por aí, mas se for abundante, nem
sempre merecerá o partícipe a benesse: há um segundo critério a ser observado,
denominado critério da eficiência causal. Vejamo-lo.

1.2. Critério da eficiência causal

Além do grau de dificuldade para obter a contribuição para o crime, que deve ser
baixo, é importante que esta contribuição não seja realmente importante para o deslinde da
execução. Veja: o bem pode ser abundante, mas ser de tal relevância que a benesse do § 1º
do artigo 29 do CP não possa ser conferida ao agente, por não ser sua participação de
menor importância.

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP II Direito Penal II

Veja um exemplo: se o partícipe é instado apenas a vigiar a porta dos fundos


enquanto o furto é realizado, mas o aviso de que a polícia estava chegando pela porta dos
fundos foi o evento determinante para o sucesso da empreitada criminosa, esta conduta do
partícipe é de tamanha relevância causal que não poderá ser considerada de menor
importância, mesmo sendo conduta passível de ser realizada por qualquer um (ou seja,
atendendo ao primeiro critério, da abundância dos bens).
Assim, são critérios sucessivos e cumulativos: se for escassa a contribuição, não há
que se falar em menor importância; se for abundante, ainda assim não pode ter tido papel
de alta relevância na execução do delito, ou não poderá, igualmente, ser chamada de
somenos importância.

2. Cooperação dolosamente distinta

O § 2º do artigo 29 do CP traz este instituto, cujas nuances são de grande


complexidade:
“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade.
(...)
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á
aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido
previsível o resultado mais grave.”

De início, nota-se diferença marcante deste dispositivo para o § 1º, que trata da
participação de menor importância: aqui, o legislador empregou o termo “concorrentes”,
significando que este dispositivo açambarca autor, co-autores e partícipes.
Este dispositivo trata do desvio subjetivo entre os concorrentes: os agentes que, até
certo ponto, cooperavam pelo mesmo intento, agora se vêem em ânimos diferentes, ou seja,
um deles mantém-se na consecução do crime mais brando, enquanto o segundo passa a
buscar um crime mais severo, sem que o primeiro compartilhe de sua intenção – ou seja,
sem que este primeiro saiba e coadune-se na busca pelo delito mais grave.
Veja que o liame subjetivo fica rompido, neste caso: o agente que busca o crime
mais leve não coaduna-se ao segundo, que passa a buscar o crime mais grave.
Novamente, os exemplos assumem função primacial. Imagine a situação em que
três meliantes adentram a casa de uma família, sendo que dois deles tomam mãe e filha por
reféns, e o terceiro sai com o pai em busca de dinheiro. Enquanto este terceiro e o pai
buscam dinheiro em caixas-eletrônicos, os dois que ficaram com a incumbência de manter
as reféns as estupraram e mataram. Aquele que saiu com o pai da família para buscar o
dinheiro responderá pelo estupro e homicídio?
Veja que o liame subjetivo que existia entre este agente que saiu e os dois que
ficaram era fundado apenas na extorsão: apenas quanto a esta havia a sua adesão prévia ao
concurso. Por isso, não se pode entender que este que saiu tenha tacitamente resolvido por
aceitar este resultado estupro e morte, vez que sua busca era exclusivamente por delito
patrimonial, não podendo sequer prevê-los – não ser-lhe-ão imputados estes crimes mais
graves.
Imagine-se agora o seguinte caso: dois agentes combinam roubo, valendo-se de
grave ameaça com arma de fogo. Um deles, inadvertidamente, atira e mata a vítima. O
segundo, que não atirou nem queria a morte da vítima, poderá estar incurso também no
latrocínio?

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP II Direito Penal II

Aqui, há a presença clara da previsibilidade deste encaminhamento: ao se coadunar


no furto de pessoas com emprego de arma de fogo, aquele que não atirou previu, ou deveria
prever, que o resultado morte poderia desencadear-se.
Pode ser traçado um raciocínio com base em três requisitos para que o desvio
subjetivo não se comunique ao co-concorrente que não foi o executor da ação mais grave,
considerado excesso pessoalmente imputável, portanto. Veja:

- Se o fato não estiver incluído, ainda que tacitamente, na comum resolução dos
agentes. Como exemplo, o furto de uma casa, em que, tacitamente, se resolvem os
co-autores a transmutar a conduta para roubo se houver alguém presente: estava
tacitamente incluída na resolução a possibilidade de que o furto se transformasse em
roubo. Neste caso, o excesso de um dos agentes, ao ameaçar vítima presente, se
impõe aos demais concorrentes, por ser tacitamente admitido por estes na formação
do liame subjetivo.
Se sequer houver esta resolução tácita pela conduta excessiva, o excesso será
imputado apenas àquele que o cometer, e não aos demais concorrentes, configurado
perfeitamente o desvio subjetivo pessoal. Como exemplo, se num furto de casa
vazia se percebe que há alguém, e o concorrente que entrou na casa decide estuprar
a mulher que lá estava, esta conduta excessiva não poderá ser imputada ao agente
que ficara de guarda na porta, pois não é conduta que fora tacitamente aceita por
este quando do ajuste criminoso, quando da formação do liame.

- Não significar um desvio possível na execução do fato. Não haverá excesso


pessoalmente imputado se o desvio procedido pelo agente for quantitativo, mas
apenas se for qualitativo. Assim, um furto se transformar em roubo é previsível, ou
seja o agente que não usar da violência mesmo assim será por ela imputado, pois
este desvio quantitativo foi por ele tacitamente aceito, assumido, quando da
formação do liame inicial – não há, portanto, a ruptura do liame, pois a título de
dolo eventual há imputação do agente que assumira este risco quando do início da
empreitada criminosa.
Veja: mesmo não tendo sido tacitamente admitido na resolução, se o agente
que sai em concurso com outro para roubar pode perfeitamente prever que uma
vítima seja morta, se algo der errado. Por isso, este desvio quantitativo na execução
ser-lhe-á imputável.
Imagine-se que o agente contrata outro para surrar a vítima, apenas causando
lesões leves ou, no máximo, graves. Se este contratado exacerbar sua conduta, e
matar o agredido, não será imputável ao concorrente contratante a morte, a não ser
que este pudesse prever este resultado, sabedor que era da alta carga de violência do
contratado: seria previsível a morte, e por isso será imputado. De fato, se assim for,
cai na regra do primeiro requisito, ou seja, o desvio é tacitamente aceito na
resolução pelo agente.

- Se o crime mais severo não ocorre na mesma ação conjunta dos agentes. Veja que
se o fato em que se coadunaram os concorrentes não fizer parte da mesma cadeia de
eventos para a qual se uniram, destacando-se lógica e temporalmente da ação
conjunta, não há como se imputar ao concorrente remissivo a responsabilidade pelo

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fato. Assim, se naquele exemplo da contratação para o espancamento, o agente


contratado finaliza a execução deixando lesões graves, e, mais tarde, por algum
motivo outro, volta e mata a vítima, não poderá o contratante ser imputado da
morte.
E veja que, mesmo se acoplada à ação original, se o desígnio do agente
executor for absolutamente autônomo, não se pode comunicar aos demais. Veja: se
ao ajustar concurso para roubo, um dos agentes identifica na vítima um desafeto
pessoal, e mata-a por isso, não pode o remissivo responder por esta morte. De fato,
sequer se trata de latrocínio, mas sim de roubo e homicídio autônomo, imputado
apenas ao que o cometeu.

Em síntese: se há o acordo tácito pelo resultado, o agente remissivo é imputado; se,


mesmo não havendo o acordo tácito, o resultado era previsível, também será imputado. Mas
se o agente ativo realiza a conduta de forma absolutamente autônoma, não poderá jamais o
agente remissivo ser imputado.
O excesso qualitativo do executor, em verdade, é mormente possível de ser admitido
como excludente da responsabilidade do agente remissivo, sendo o excesso quantitativo,
quase sempre, imputável ao que não executou a conduta. Mas veja que o excesso
qualitativo também pode ser imputável ao remissivo, se porventura ficar evidente que
assumiu tacitamente o resultado como possível desenrolar dos fatos: no exemplo do estupro
e morte, se o agente que saiu com o pai sabia da índole maníaca dos agentes que ficaram
com as reféns, mesmo este desvio qualitativo da conduta ser-lhe-á comunicável: aceitou
tacitamente a possibilidade do resultado. E mesmo que diga, e convença, que não esperava
aquele resultado, mesmo sabendo da índole dos agentes, estará incurso no segundo
requisito, ou seja, era-lhe previsível que assim se conduzissem os agentes, e por isso terá a
agravante da sua pena, prevista no dispositivo em comento.
Mais uma ilustração vem a calhar: imagine-se que o agente combina roubo com
outro, certificando-se que não será usada violência, e que nenhum dos dois estava armado.
Se, no curso do roubo, o outro agente saca de uma arma e mata a vítima, o primeiro não
poderá ser imputado pela morte, afinal não aceitara tacitamente este desenrolar, e tampouco
era um desvio possível, para ele, dos fatos ajustados. Não havia admissão subjetiva,
tampouco aceitação de que este desvio pudesse ocorrer.
Por isso é que não se trata de responsabilização penal objetiva: mesmo se
comprovada a não aceitação tácita (ou seja, ausência de dolo eventual), o agente que podia
prever responde pelo crime, ou seja, calca-se, a majorante, no juízo de previsibilidade35, do
segundo requisito. Se for eliminado qualquer aspecto subjetivo, ou seja, não aceitou
tacitamente nem era desvio previsível, não há imputação.
Em suma: se sequer previu o resultado mais grave, responde apenas pelo menos
grave. Se poderia prever, mas não previu, ou seja, se há desvio quantitativo, responde pelo
crime mais brando, mas agravado. Se previu o crime mais grave, ou seja, incide nos
requisitos mencionados, comunica-se a execução, e reponde também pelo mais grave. Em
35
Esta previsibilidade, a meu ver, tem ares de culpa, consciente ou inconsciente, e não de dolo eventual. Se o
agente pudesse prever o desenrolar dos fatos, mas não previu, há culpa inconsciente; se pudesse prever, e
efetivamente previu, mas escapa ao primeiro requisito por não ter aceitado tacitamente, será culpa consciente.
De uma ou de outra forma, seria responsabilizado pelo resultado, mas a título de culpa, pois do contrário será
responsabilização penal objetiva (estar-se-á atribuindo aceitação tácita sem que esta seja cabal). Todavia, esta
posição, que parece ser a de Bitencourt, não é acatada pela doutrina.

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regra, se o desvio for qualitativo, não se insere o remissivo no crime mais grave, incidindo
no § 2º; se for quantitativo, provavelmente responderá pelo crime, pois era desvio possível,
aceito tacitamente pelo remissivo.

3. Circunstâncias comunicáveis e incomunicáveis

O artigo 30 do CP assim estabelece:

“Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,


salvo quando elementares do crime.”

O grau de reprovabilidade de uma conduta, como é cediço, é medido na


culpabilidade, quando da análise estrutural do delito. Por isso, em atenção ao princípio da
individualização da pena, também as circunstâncias que pertinem apenas a um dos
concorrentes deverão ser consideradas apenas em relação a este, não se comunicando aos
demais. É assim que se verifica que as circunstâncias subjetivas não se comunicam, a não
ser se fizerem parte do próprio tipo penal, como elemento deste.
Veja um esquema gráfico sobre as circunstâncias:

Judiciais Agravantes
(artigo 59,
CP)
Circunstâncias Genéricas Atenuantes
(parte geral)
Legais
Causas de aumento ou diminuição da pena
Especiais (parte
especial)
Qualificadoras

As causas de aumento ou diminuição de pena, majorantes ou minorantes, como


regra, são identificadas por frações aplicáveis aos crimes; as qualificadoras, por seu lado,
trazem uma nova escala penal, uma nova pena em abstrato. É por isso que alguns autores,
como Zaffaroni e Nélson Hungria, defendem que a incidência de uma qualificadora, na
verdade, dá origem a um novo tipo penal, e por isso não seriam circunstâncias, e sim
elementares do novo tipo, qualificado.
Veja que a medida da reprovabilidade, então, é parcialmente dada ao legislador, e
parcialmente dada ao juiz: a pena é fixada pelo juiz, dentro dos limites impostos pelo
legislador, ao que a doutrina chama de sistema da relativa determinação – a pena é ato do
juiz, que deve contar com liberdade para individualizá-la, mas sem exacerbar os limites
traçados na política criminal legislativa.
As circunstâncias comuns a todos os concorrentes serão aquelas que, dentro desta
classificação, sejam objetivas. Circunstâncias objetivas são aquelas que se referem ao fato,
dizendo respeito ao tempo, lugar, maneira de execução da conduta, e condições da vítima.
As circunstâncias subjetivas, por sua vez, são aquelas que ligam o agente ao fato,
dizendo respeito às condições pessoais e internas do agente, do criminoso, tais como a
motivação, a relação deste com a vítima, etc. Mas repare que também não se comunicam as
condições de caráter pessoal do agente, e não apenas as circunstâncias subjetivas. Por
condições pessoais, subjetivas, entenda-se aquelas particularidades que não guardam
qualquer relação com o fato em si, mas apenas com o agente, com a natureza do agente.

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Exemplo de condição de caráter pessoal é a idade, a reincidência, etc. Não são


circunstâncias, mas sim características pessoais do agente, que, da mesma forma, não se
comunicam aos concorrentes.
Se o crime, ao contrário, traz a circunstância36 ou a condição de caráter pessoal
como uma elementar do tipo, a situação se mostra diferente: os concorrentes, mesmo não
compartilhando da circunstância ou condição pessoal no mundo fático, dela compartilharão
no mundo jurídico, sofrendo comunicação desta. Como exemplo, no crime de peculato, do
artigo 312 do CP, em que a condição pessoal de funcionário público de um agente se
comunica aos demais concorrentes que não sejam funcionários, por ser elementar do tipo:

“Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro


bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
(...)”

Repare, porém, que para incorrer na elementar, é necessário o preenchimento pleno


pelo partícipe dos elementos do crime, com o aperfeiçoamento do elemento volitivo e
cognitivo. Do contrário, mesmo sendo elementar do crime, esta condição subjetiva não
poderá se comunicar – por exemplo, se o comparsa do funcionário público sequer sabe que
este é funcionário público –, respondendo pelo crime comum, de furto ou apropriação
indébita.
E ressalte-se ainda que, no caso dos crimes como o peculato, se porventura a
retirada da comunicação elementar desnaturar qualquer tipicidade da conduta do
concorrente, este não responderá por nada. Veja: se a conduta só fosse imputável a
funcionário público, sem que, ausente esta condição, se demonstrasse preenchido outro
crime comum – como ocorre no peculato, em que o não funcionário responde por
apropriação indébita ou furto –, a conduta seria atípica.
O emprego de arma de fogo no roubo, por exemplo, é uma circunstância objetiva,
comunicando-se aos concorrentes que não se utilizaram do armamento, hipótese que é bem
clara. Mas imagine-se que o agente encomenda furto a outro, e este último realiza o furto
no período noturno: esta circunstância majorante, de furto noturno, seria comunicável ao
agente que encomendou o crime?
Como é objetiva, o primeiro impulso é dizer que sim, se comunica. Contudo, se
porventura o agente que encomendou não tivesse ciência nem previsibilidade de que o furto
seria realizado à noite, esta comunicação seria, de fato, responsabilização penal objetiva, no
que tange à majorante – pois o elemento cognitivo estaria afastado. Sendo assim, se a
possibilidade de que o furto fosse realizado à noite, ou seja, que a circunstância objetiva
fosse ocorrer, não fosse sequer previsível ao co-autor remisso, não ser-lhe-á comunicável.
Outro exemplo: o agente solicita a seu comparsa que vigie a porta enquanto estupra
uma mulher. Ocorre que, sem que este vigia soubesse, a mulher era uma criança de dez
anos de idade. Esta condição objetiva da vítima, que normalmente se comunicaria, não será
comunicável, pois o agente que vigiava a porta dela não conhecia, tampouco poderia
prever, vez que o executor o dissera tratar-se de mulher adulta.

36
Na verdade, a expressão “circunstância elementar” é contraditória em termos, pois ou se está no elemento
do tipo, sendo elementar, ou se está nas cercanias, sendo circunstância. A expressão é imprópria, portanto.

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Problema maior surge da divergência quanto às qualificadoras. Para quem as


entende como elementares do crime, criadoras de um novo tipo penal, como Zaffaroni e
Hungria, mesmo se forem de natureza subjetiva comunicar-se-ão aos concorrentes, pois
assim se dá quando elementar do crime, a teor do artigo 30 do CP (desde que, como dito,
haja o elemento cognitivo do comparsa, desde que saiba daquela circunstância). Como
exemplo, o homicídio qualificado por motivo fútil: se este motivo fútil de um dos agentes é
conhecido dos demais, mesmo sendo subjetivo, é elementar do homicídio qualificado,
segundo esta corrente, e por isso se comunica.
Já para a corrente majoritária, a qualificadora não é elementar, é circunstância, e
como tal deve ser tratada: não se comunicará, mesmo que o comparsa saiba de sua
existência, por não ser elementar. No homicídio qualificado por motivo fútil, então, só
incide na qualificadora aquele que tem este motivo pessoal, e não os comparsas. Esta
posição, diga-se, é adotada pelo STJ, e há bastante coerência, especialmente se analisarmos
as causas de aumento ou diminuição de pena especiais: no próprio homicídio, se fosse
seguida a linha de Zaffaroni, o motivo relevante, que torna o crime privilegiado, não se
comunicaria, por ser circunstância subjetiva e não ser elementar do crime, enquanto o
motivo torpe se comunica, somente porque chamado de qualificadora – há clara
desproporção nesta análise.

“Homicídio simples
Art 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo fútil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro
crime:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
(...)”

4. Impunibilidade do partícipe quando não há execução do delito

O artigo 31 do CP é bastante literal em vedar a punibilidade dos partícipes quando o


crime do qual participaram sequer chegou a ser tentado:

“Casos de impunibilidade
Art. 31 - O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição
expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser
tentado.”

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Toda participação é acessória, e por isso segue o princípio da gravitação jurídica: se


o autor, principal, não comete o crime, não pratica ao menos algum ato executório, o
partícipe, acessório, não poderá ser imputado por nada.
Ainda que nada mais haja a fazer, pelo partícipe – por exemplo, se seu auxílio
consistiu em emprestar a arma de fogo –, sua conduta, já finalizada, só passa a ter
relevância quando a própria conduta do autor passar a ter relevância, o que acontece assim
que inicia os atos executórios.

Casos Concretos

Questão 1

MARCELO foi condenado como incurso no art. 157, §2º, I e II do CP. Restou
provado que MARCELO ia à casa de ADRIANO, executor do crime - em relação a quem o
feito foi desmembrado - para combinar o roubo, valendo-se da condição de funcionário da
mercearia lesada para fornecer todas as informações relativas a questões de segurança,
horários etc., o que garantiu o sucesso da empreitada criminosa. MARCELO também
pediu um revólver emprestado a ALFREDO (sendo que este foi, ao final, absolvido), e
ficou com parte do produto do crime, tendo sido encontrados, em sua residência, os
tíquetes-refeição roubados. Em grau de apelação, MARCELO pede o reconhecimento da
acessoriedade de sua conduta, com a conseqüente redução da pena. O seu recurso deve ser
provido? Justifique.

Resposta à Questão 1

A conduta de Marcelo trata-se de conduta que pode ser considerada “bem escasso”,
e por isso, de plano, deve ser reconhecida como de alta relevância para o crime, tanto em
relação ao fornecimento das informações quanto da arma. A informação, então, é tão
relevante que provavelmente o crime sequer seria cometido sem ela, não sendo apenas
escassa como causalmente determinante.
Sendo assim, de forma alguma sua conduta pode ser considerada de somenos
importância, estando alheia à previsão minorante do artigo 29, § 1º, do CP. A bem da
verdade, sua conduta é de relevância tal, que poderia mesmo ser considerado co-autor do
delito, e não partícipe, dada a relevância de sua conduta, que poderia, de fato, ser entendida
como uma das que tinha domínio final do fato.
O TJ/RJ, na apelação criminal 2003.050.01587, reconheceu-lhe,
condescendentemente, a participação, e não co-autoria, mas sem aplicar o § 1º do artigo 29:

“ROUBO QUALIFICADO. PARTICIPACAO. PROVA SEGURA. ROUBO À


MÃO ARMADA PARTICIPAÇÃO Prova dando certeza que o apelante concorreu
de forma eficiente para o roubo realizado no estabelecimento comercial Rainha da

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Serra Cereais Ltda., onde trabalhava, fornecendo as informações; relativas a


questões de segurança, horários, etc., no seu comparsa, que mediante grave ameaça
exercido com emprego de arma de fogo subtraiu da mercearia dinheiro em espécie
e tíquetes-refeição. Desprovimento.”

Questão 2

SEBASTIÃO, RAIMUNDO e NEUZA planejaram a execução de um roubo, cabendo


ao primeiro fornecer a arma do crime; ao segundo, transportar em seu veículo seus
comparsas ao local do crime e dar-lhes fuga; e à terceira coube a tarefa de atrair e
conduzir a vítima para um local ermo, onde ocorreria o delito. Assim, no dia combinado,
RAIMUNDO, desempenhando a função de batedor, levou SEBASTIÃO e NEUZA ao lugar
da infração e ficou aguardando em local próximo para garantir-lhes a fuga. Estes
subtraíram do caminhoneiro JAIR um telefone celular e as importâncias de R$ 6,00, em
espécie, e R$ 10.000,00, em cheques. Ocorre que, inconformado com a agressão, JAIR
esboçou reação, o que fez com que SEBASTIÃO atirasse, causando a morte do
caminhoneiro. Tipifique as condutas realizadas por SEBASTIÃO, RAIMUNDO e NEUZA.
Diferencie participação de somenos importância da mera participação. Conceitue co-
autoria funcional.

Resposta à Questão 2

A morte da vítima, decerto, é decorrência que tacitamente fora admitida por todos, e
é um desvio perfeitamente possível da execução de roubo a mão armada. Por isso, todos
estão incursos em latrocínio.
A participação de somenos importância ocorre quando o agente tem papel que
poderia ser desempenhado por qualquer pessoa, sua conduta sendo tida por acessível,
abundante; e quando tem pouca relevância causal para o sucesso da empreitada. Já a mera
participação é a que ocorre quando estão presentes a escassez da conduta e a maior
relevância para a consecução do crime, mas sem alcançar o domínio do fato, pois aí seria
co-autoria.
A co-autoria funcional é a que ocorre quando o delito tem divisão de tarefas, sendo
que cada um dos concorrentes desempenha papel tal que, sozinho, pode ser entendido como
detentor do domínio final do fato. É, em verdade, um desdobramento desta teoria do
domínio final do fato, chamado de domínio funcional do fato.

Questão 3

Anunciando tratar-se de um assalto, LÚCIO, TÍCIA e MÉVIO subtraíram diversos


objetos das vítimas; em meio à subtração, vieram a saber que uma delas era delegado de
polícia, ocasião em que LÚCIO disparou contra ela, matando-a, gritando "polícia tem é
que morrer", apesar das ponderações das demais. Examine a situação dos envolvidos.

Resposta à Questão 3

Tícia e Mévio são incursos no roubo, sem ter qualquer responsabilidade pela morte
da vítima: não houve aceitação tácita daquele desenrolar do roubo, tampouco era um desvio

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admissível, previsível, pois que não decorreu de nenhuma atividade inerente ao roubo
(diverso do que seria se a morte viesse de reação da vítima). Mas veja que, mesmo este
homicídio não sendo um desvio admissível em concreto, dada a especial motivação em que
foi cometido, a análise em tese de qualquer roubo com emprego de arma de fogo torna
previsível, em abstrato, a morte de uma vítima, e por isso mereceriam, estes agentes, a
majorante prevista no artigo 29, § 2º, do CP.
De fato, não há latrocínio: há simples roubo, para eles. Já para Lúcio, a conduta é de
roubo em concurso material com homicídio, pois os desígnios são deveras autônomos,
especialmente o de matar, que é exclusivamente passado em sua esfera particular, dado a
sentimento íntimo, absolutamente desvinculado da conduta de roubo.
Em que pesem estas considerações, poderá haver quem entenda que a conduta de
Lúcio se trate de latrocínio, por entender que há certa vinculação entre o roubo doloso e a
morte dolosa. Diga-se, porém, que é entendimento bastante atécnico.

Tema XVII

Concurso de Crimes I. 1) Introdução: sistemas de aplicação da pena. Unidade e pluralidade de condutas. 2)


Espécies de concurso de crimes:a) Concurso material: pluralidade de condutas. Teorias. Espécies. b) A
aplicação da pena privativa de liberdade, da pena restritiva de direitos e da pena pecuniária.

Notas de Aula37

1. Concurso real de crimes

A relevância deste tema é solucionar situações em que há vários crimes derivados de


uma ou de várias condutas. Os crimes em concurso real estarão em um mesmo processo, e
por isso o problema não é da teoria do crime, e sim da teoria da pena. Já o concurso
aparente de crimes, ao contrário do concurso real, é de fato problema de tipicidade, e será
abordado em tema adiante.
O concurso real de crimes é a prática de mais de um delito por uma só conduta, ou
por mais de uma conduta em seqüência. Veja que, se fosse perguntado ao leigo o que fazer
quando há mais de um crime, este responderia que basta a soma das penas, e está resolvido
o problema. Ocorre que a aplicação pura e simples desta regra acarreta situações
extremamente desproporcionais, e por isso há critérios detalhados para que os ditames da
razoabilidade sejam atendidos.
Notadamente, o artigo 69 do CP traz a regra normal para solução do tema, atinente
ao concurso material. Os demais dispositivos pertinentes, artigos 70 e 71 do CP, dizem
respeito ao princípio da proporcionalidade, e por isso surge uma norma implícita
fundamental: só se aplicam os artigos 70 e 71 quando forem mais benéficos ao apenado.
Pelo ensejo, vejamos, desde logo, os artigos, que serão de novo analisados
pormenorizadamente, um por vez:

“Concurso material
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de
liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de
reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
37
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 17/9/2008.

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§ 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa
de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a
substituição de que trata o art. 44 deste Código.
§ 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá
simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.”

“Concurso formal
Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é
dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art.
69 deste Código.”

“Crime continuado
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do
art. 70 e do art. 75 deste Código.”

O ordenamento adota hoje dois sistemas para solucionar questões de concurso real
de crimes. O primeiro é o do cúmulo material, consistente no mero somatório das penas
cominadas aos crimes cometidos em concurso. Este sistema é adotado no concurso
material e no concurso formal imperfeito.
O segundo sistema é o da exasperação, que consiste não no somatório das penas,
mas sim na escolha de uma das penas cominadas, com a incidência de uma causa de
aumento, das previstas nos artigos 70 e 71. Este sistema é aplicado na continuidade delitiva
e no concurso formal perfeito.
Antigamente, havia outros dois sistemas, que não mais são adotados: o da absorção,
que consistia na simples opção pela pena mais grave, sendo as demais penas menores por
esta absorvidas (criando quase que um fomento aos menores delitos, quando se pratica um
mais gravemente punido); e o do cúmulo jurídico, que pregava que a pena aplicada deve ser
menor do que a soma de todas as penas cominadas para os crimes concorrentes, mas deve
ser também maior do que a maior das penas previstas. Por sua impropriedade, vê-se por
quê estes critérios foram abandonados.
A necessidade de se diferenciar, como hoje se diferencia, entre o cúmulo material e
a exasperação encontra fundamento na proporcionalidade, pois fatos há em que a
reprovabilidade da conduta no concurso de crimes é flagrantemente menor do que em
situações outras de concurso, e por isso o cúmulo material, então, se demonstraria
irrazoável.
Veja um exemplo: imagine-se que o agente atropela culposamente quatro pessoas,
em um só erro de direção; imagine-se, agora, que um agente atropela quatro pessoas, mas

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

em quatro oportunidades diferentes, no mesmo percurso, por quatro erros sucessivos e


destacados uns dos outros. É evidente que esta última situação é mais grave, pois envolve a
quebra de cuidado por quatro vezes, e por isso este concurso material merece o cúmulo
material, enquanto no concurso formal do único atropelamento de quatro pessoas merece a
exasperação.
Imagine outra hipótese: o agente que, em uma só oportunidade, atira em diversas
pessoas: não há, aprioristicamente, concurso material, por não haver condutas destacadas,
mas também não há concurso formal perfeito, porque a conduta não foi eivada de um só
desígnio comum. É por isso que se chama, esta situação, de concurso formal imperfeito, e
como é tão severa como no concurso material, aplica-se o sistema do cúmulo material, e
não da exasperação.
A continuidade delitiva, por sua vez, é conduta bastante peculiar. Trata-se, de fato,
de uma ficção jurídica em que se atribui a crimes que, naturalisticamente, seriam práticas
em concurso material, a natureza de uma só conduta contínua, com diversos crimes –
aplicando-se, então, a regra do concurso formal perfeito, que trata da conduta única com
vários resultados-crime.

1.1. Concurso material de crimes

É bem simples: as penas dos crimes cometidos em concurso material são somadas,
em cúmulo material.
Assim que fixar todas as penas, individualizando crime a crime, o juiz observará a
parte final do artigo 69 do CP, que determina que a reclusão será cumprida primeiro.
Suponha-se, então, que haja o cometimento de cinco crimes, três punidos com reclusão,
somando dez anos, e dois com detenção, somando cinco anos, totalizando quinze anos o
cúmulo de todas as penas. Como ficará o regime de cumprimento desta pena, se crimes de
detenção não podem ter o cumprimento da pena iniciado em regime fechado, como diz o
artigo 33 do CP?

“Reclusão e detenção
Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou
aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de
transferência a regime fechado.
§ 1º - Considera-se:
a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima
ou média;
b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou
estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento
adequado.
§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma
progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e
ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:
a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em
regime fechado;
b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não
exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;
c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos,
poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

§ 3º - A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com


observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código.
§ 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de
regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou
à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.”

Veja que a parte final do caput do artigo 33 determina que poderia haver a regressão
para regime fechado em crimes de detenção, mas o STF, em recente entendimento,
estabeleceu que não é possível esta regressão por se tratar de impropriedade, não cabendo
regredir para situação em que não se esteve jamais (pois detenção tem início em regime
semi-aberto).
A respeito, o artigo 111 da LEP assim determina:

“Art. 111. Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo
ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita
pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a
detração ou remição.
Parágrafo único. Sobrevindo condenação no curso da execução, somar-se-á a pena
ao restante da que está sendo cumprida, para determinação do regime.”

Então, assim fica a situação: somar-se-ão as penas, e o regime será fixado de acordo
com a natureza da pena. Será, no exemplo, regime fechado nos primeiros dez anos, e semi-
aberto, no mínimo, nos cinco últimos anos. E, diga-se, o juiz da execução penal tem
liberdade para alterar a situação, quando no curso da execução da pena sobrevier causa que
justifique esta alteração.
Veja que, outrora, fosse hediondo, haveria o já muito discutido problema do regime
integralmente fechado; hoje, a repercussão da hediondez, aqui, se resume à maior restrição
temporal à progressão.
Sobre o artigo 69 do CP, vale comentar que quando os crimes cometidos forem
idênticos, por óbvio, trata-se de concurso material homogêneo; quando forem diferentes, é
concurso material heterogêneo. Os crimes serão, sempre, conexos ou continentes, pois do
contrário sequer poderão estar em curso no mesmo processo.
As previsões sobre a vedação à conversão das penas em restrição de direitos, e sobre
a cumulação das penas restritivas de direitos são bem claras, não demandando análise
aprofundada.

1.2. Concurso formal

O concurso formal consiste no avilte a vários bens jurídicos com uma só conduta. o
conceito é simples, bem como a sua divisão em concurso formal perfeito e imperfeito: o
próprio artigo 70 do CP faz a diferenciação, trazendo o perfeito na primeira parte, e o
imperfeito na parte final. Veja:

“Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou


mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é
dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art.
69 deste Código.”

A regra, para o concurso formal perfeito, é a aplicação do sistema da exasperação da


pena, como se vê no texto do artigo: aplica-se a pena mais grave aumentada de um sexto até
a metade. Esta gradação do aumento da pena deve ser feita de forma o mais objetiva
possível: se há dois crimes, aumenta-se de um sexto; três crimes, um quinto; quatro crimes,
um quarto; cinco crimes, um terço, e se há seis crimes ou mais, aumenta-se da metade.
O concurso formal imperfeito, por sua vez, consiste na prática de uma conduta que
se destina, dolosamente, a mais de um resultado (limitada a crimes dolosos, portanto, sendo
então certo que concurso formal de crime culposo será sempre perfeito), sendo os desígnios
na aquisição de todos os resultados autônomos entre si. Neste caso, aplica-se o sistema do
cúmulo material, mas a casuística apresenta enormes dificuldades em se verificar estes
desígnios autônomos, especialmente em crimes mais graves: a jurisprudência tem resolvido
de forma casuística, entendendo que nos crimes mais graves se aplica o cúmulo material,
em concurso imperfeito, mas alguns crimes mais brandos sofrerão exasperação.

Michell Nunes Midlej Maron 14


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Casos Concretos

Questão 1

JOSÉ ingressa numa casa residencial para furtar jóias. Ao adentrar no escritório,
descobre muitas jóias num cofre, cujo segredo já conhecia em razão de ter sido o vendedor
do mesmo. Como sua mala ficara na cozinha, localizada no andar inferior da casa, faz dez
vezes o trajeto entre o escritório - no segundo andar - e a cozinha, e em cada vez carrega
em suas mãos um punhado das jóias, tudo em absoluto silêncio, pois os donos da casa
estavam dormindo. Após longo tempo, fecha a mala e vai embora com todas as jóias.
Responda:
a) Quantas condutas houve, e quantos crimes?
b) Se JOSÉ tivesse se dirigido dez vezes, não à cozinha, mas à sua própria
residência, localizada a poucos metros dali, com todo o cuidado, a resposta seria a
mesma?
c) Se JOSÉ tivesse se aproveitado do fato de a casa se encontrar vazia, no final de
semana, e tivesse praticado em cada dia uma subtração, a resposta seria a mesma?

Resposta à Questão 1

a) É claro que houve uma só conduta, com execução em vários atos. Por isso, há
um só crime.

b) Sim. Não há qualquer diferença no avilte final ao bem jurídico. Há um só crime.

c) Não: neste caso, há duas condutas diversas, separadas temporalmente de forma


que não é possível tratá-las como uma só. Entretanto, subjetivamente, as ações
poderiam ser consideradas uma só, e por isso o crime seria um só, podendo ser
considerado crime continuado.

Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

JÚLIO, intencionalmente, lesiona FÁBIO. FÁBIO, hemofílico - circunstância


conhecida por JÚLIO - internado por 40 dias, acaba não suportando os ferimentos que
são agravados pela sua anomalia e morre. O Ministério Público denuncia JÚLIO como
incurso nas penas do art. 129, § 1º, I e 121, § 3º, na forma do art. 70, 1ª parte, do Código
Penal. Está correta a classificação? Por quê?

Resposta à Questão 2

A conduta é única, mas incide apenas no artigo 129, § 3º, e mais nada. Não há
concurso de crimes, e sim a tipificação expressa deste dispositivo.

Questão 3

No tipo de injusto de latrocínio com pluralidade de vítimas fatais, admite-se o


concurso de tipos penais, o crime continuado ou há tão-só crime único? As respostas
deverão ser justificadas.

Resposta à Questão 3

O que regula esta questão é o bem jurídico protegido. Se bem jurídico é um só, o
crime é um só. E como este crime é contra o patrimônio, e este é um só, in casu, por mais
que seja estranho, a morte de várias pessoas não cria concurso de crimes, mas sim a
consumação do artigo 157, § 3º, do CP, com a majoração da pena trazida pelo artigo 59 do
CP. O crime é único.

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tema XVIII

Concurso de Crimes II. 1) Concurso formal:a) Unidade de condutas e o princípio da exasperação;b)


Concurso formal homogêneo e o heterogêneo, concurso formal perfeito e imperfeito (os desígnios
autônomos);c) Aplicação da regra do concurso formal nas hipóteses dos artigos 73 e 74 do Código Penal
Brasileiro;d) Forma de aplicação das penas privativa de liberdade, restritiva de direitos e pecuniária. 2)
Concurso formal e conflito aparente de normas:a) Semelhança pela unidade de conduta. Diferenças;b)
Concurso (conflito) aparente de tipos penais: origens e terminologia. Os princípios norteadores: princípio da
especialidade, princípio da subsidiariedade e princípio da consunção.

Notas de Aula38

1. Concurso formal e erro de tipo acidental

Os artigos 73 e 74 do CP tratam dos erros que incidem sobre elementos acidentais


do tipo, sobre aspectos circunstanciais da conduta típica. No erro de tipo essencial, a
percepção falsa da realidade fática sobre um elemento essencial do tipo é o que leva a que o
crime seja cometido, enquanto o erro sobre elemento acidental não tem tanta relevância
para a consumação. Veja os dispositivos:

“Erro na execução
Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao
invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde
como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º
do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente
pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”

“Resultado diverso do pretendido


Art. 74 - Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na
execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde
por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado
pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”

1.1. Aberratio ictus

38
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 18/9/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 14


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O artigo 73 cuida da aberratio ictus. Este dispositivo se divide em duas partes: na


primeira, terceiro ou terceiros são atingidos pelo erro, mas a vítima alvejada sai ilesa;
depois do ponto, na segunda parte, tanto os terceiros como a vítima são atingidos.
A primeira parte, quando apenas o terceiro for atingido, consiste no erro quanto à
pessoa, e faz aplicável o artigo 20, § 3º, já bem estudado: responde como se tivesse atingido
a vítima alvejada, aplicando ao agente os efeitos que aquela vítima possa trazer.
A segunda parte do artigo 73 trata exatamente de uma hipótese em que o erro induz
a um concurso formal: pretendendo acertar alguém, acerta-o, e também a terceiro não
alvejado. Por ser assim é que, formado concurso formal, o fato é encaminhado ao artigo 70
do CP.
Suponha-se, então, a seguinte situação: agente atira para matar uma vítima, e, além
dela, acerta e mata mais duas pessoas que passavam. A tipificação é simples: há um
homicídio doloso consumado em concurso formal com dois outros homicídios culposos,
sendo aplicável a exasperação da pena, em que é tomada a pena do primeiro, pois mais
grave, e majorada por conta dos dois resultados culposos.
Veja que se o golpe que acaba por atingir o terceiro for eivado de dolo eventual, a
situação simplesmente se alheia da aplicação da aberratio ictus: se há dolo, não há erro, e
aqui está clara a circunstância do erro quanto à pessoa como determinante do instituto. Se
for o caso, havendo o dolo eventual, há simples concurso formal imperfeito doloso de
crimes. E, se o acerto do terceiro for decorrência de enorme exagero no meio, suplanta-se o
dolo eventual, e passa mesmo a estar presente o dolo direto de segundo grau (em que mais
do que mero risco assumido, há certeza da conseqüência necessária do delito).
Aqui cabe um comentário específico: imagine-se um caso de homicídio doloso
qualificado em concurso formal com lesão culposa. A pena mínima desta lesão é de dois
meses; a do homicídio qualificado, doze anos. Sendo aplicável a regra do concurso formal,
que é a exasperação, a pena será de, no mínimo, doze anos mais um sexto, o que dará
quatorze anos. Ocorre que se fosse aplicada a regra do concurso material, que é o cúmulo
material, a pena resultante seria de doze anos e dois meses, ou seja, bem mais benéfica.
Por isso, em função da aplicação da norma mais benéfica, vez que o concurso
formal e o crime continuado são normas que vêm para premiar a razoabilidade, a conta
deverá ser feita pelo sistema do concurso material, mesmo sendo caso de concurso formal,
pois é mais benéfica – e a autorização para esta aplicação vem expressa no parágrafo único
do artigo 70 do CP.
O erro quanto à pessoa só se configura quando esta é objeto do crime. Se o erro
envolve bens jurídicos de outrem, alheios à vítima, não é erro quanto à pessoa, e sim
aberratio criminis, instituto visto no próximo tópico. Para ser erro quanto à pessoa, hão de
ser objetos do crime as pessoas envolvidas, e não seu patrimônio, por exemplo. É o
chamado erro de pessoa a pessoa.
O erro de coisa a coisa é irrelevante. Veja um exemplo: o agente que compra droga,
mas tem entregue a si entorpecente diferente do que pretendia, ainda assim estará incurso
no mesmo tipo penal.

1.2. Aberratio criminis

O artigo 74 do CP, por sua vez, trata da aberratio criminis: trata-se do erro de coisa
a pessoa. Imagine-se que um agente quer quebrar uma janela, mas, ao arremessar a pedra,

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EMERJ – CP II Direito Penal II

acerta pessoa que passava, sem quebrar a janela. O artigo 74 estabelece que responderá
apenas pela lesão culposa. Se, neste exemplo, acerta tanto a pessoa que passava como
também quebra a janela que pretendia, responde pela lesão culposa e pelo dano doloso, em
concurso formal. Simples assim.
É importante perceber que a regra do artigo 74 não pode jamais ser aplicada no erro
de pessoa a coisa, pois criar-se-iam situações absurdas. Imagine que o agente quer acertar
pedrada em uma pessoa, mas, ao arremessar o projétil, erra-a e acerta uma vidraça. Se for
aplicada a regra da aberratio criminis, responderia apenas pelo dano culposo, e como este
crime não admite modalidade culposa, não responderia por nada – sendo clara a sua
imputação pela tentativa de lesão corporal, neste exemplo.

2. Concurso aparente de crimes

Este tema, na verdade, não trata de concurso de crimes, nem de dosimetria de pena.
É, sim, um tema de tipicidade.
O concurso aparente de normas consiste na situação fática em que existe um só fato,
uma só conduta, uma só ação, desenhada no elemento subjetivo uno, mesmo que a conduta
se fracione em diversos atos. Exemplo em que esta fração fica evidente é a falsificação de
moeda, em que o agente não pode ser imputado por um crime a cada nota falsificada, mas
sim pelo falseio de todas, como um todo.
Por isso, Juarez Cirino diz que são crimes de repetição: a fabricação de drogas, ou
dos itens falsificados, consistem em uma só ação, movida por um só desígnio – mesmo que
inúmeros sejam os atos.
Além deste requisito da unidade de fato, o concurso requer que haja pluralidade de
normas que aparentemente alcançam aquele fato. É claro que se o fato é único, só pode ser
punido uma vez, sob pena de se violar o princípio do ne bis in idem. Por isso, se há
aparentemente uma subsunção daquela conduta única a mais de um tipo penal, é necessário
que haja a incidência de um só dos tipos, para não haver dupla punição, e por isso este tema
se constrói.
E, para solucionar este aparente conflito de normas, para determinar qual delas será
aplicada, aparecem três parâmetros principiológicos: a especialidade, a subsidiariedade e a
consunção. Vejamo-los.

2.1. Especialidade

Consiste no bom e velho conceito de que a norma especial prevalece sobre a geral.
Em direito penal, o tipo especial é aquele que contempla a norma geral, adicionada de um
elemento especializante (um plus).
Veja que se na casuística a norma imputável for uma especial, mas restar
demonstrado que o elemento especializante não estava realmente presente, a conduta
recairá na prevista no tipo considerado geral. Por exemplo, a mãe que tem a morte do filho
imputada a título de infanticídio: esta norma é especial em relação ao homicídio. Se
porventura ficar clara a ausência do estado puerperal, o tipo do infanticídio não se
preencheu, mas a conduta ainda é tipicamente enquadrada no homicídio, tipo geral.

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

A norma geral protege o bem jurídico da forma mais ampla possível. Dentro desta
gama de proteção, porém, há situações específicas que podem ser menos ou mais graves, e
para separar estas hipóteses das demais, é necessário que haja a norma especial, a adição do
elemento especializante.
O elemento especializante pode aumentar ou diminuir a reprovabilidade. O
infanticídio, por exemplo, nada mais é do que um homicídio acrescido do elemento
especializante redutor da reprovabilidade, qual seja, vitimar filho em estado puerperal.
Inexistindo este elemento, o crime não passa de um homicídio. Por isso, revogada a norma
especial, a norma geral aparece como tipificante da conduta.
Outro exemplo é o tipo penal do artigo 133 do CP, que é o crime geral: o artigo
seguinte, 134, é a norma especial, que acha na vítima e na motivação específicas o
elemento que majora a reprovabilidade:

“Abandono de incapaz
Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes
do abandono:
Pena - detenção, de seis meses a três anos.
(...)”

“Exposição ou abandono de recém-nascido


Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
(...)”

No conflito entre um tipo autônomo e uma circunstância da parte especial, prevalece


a circunstância da parte especial. Veja um exemplo: o roubo com arma de fogo, do artigo
157, § 2º, I, prevalecerá sobre o crime de posse irregular de arma, tipo autônomo do artigo
12 do Estatuto do Desarmamento:

“Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;
(...)”

“Posse irregular de arma de fogo de uso permitido


Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de
uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior
de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde
que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”

Para o roubo, a arma é a especialização; para qualquer outro propósito, é crime geral
do Estatuto.

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP II Direito Penal II

Outro exemplo: a extorsão mediante seqüestro de menor de treze anos será


tipificada no artigo 159, § 1º, do CP, e não da combinação do caput com o artigo 9º da lei
8.072/90:

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate:
Pena - reclusão, de oito a quinze anos.
§ 1o Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o seqüestrado é
menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido
por bando ou quadrilha.
(...)”

“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º,
158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o
limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”

Veja que o artigo 9º da Lei 8.072/90 é norma especial, mas que pertine a todos os
menores de dezoito anos, enquanto o § 1º do próprio artigo 159 é ainda mais especial, pois
mesmo dizendo respeito a todos os menores, só pertine àquele crime39.
Assim, as circunstâncias da parte especial são especialíssimas, por assim dizer, pois
dizem respeito a um só crime, em regra.

2.2. Subsidiariedade

Quando várias normas descrevem graus diferentes de violação do mesmo bem


jurídico, a mais grave, primária, prevalece sobre a menos grave. Esta é a subsidiariedade.
Veja um exemplo claro: o constrangimento ilegal é o crime que protege a liberdade
de forma mais ampla. Há diversos outros que protegem este mesmo bem jurídico de forma
mais contundente, por serem as condutas neles descritas graus diferentes, maiores, de
violação do mesmo bem jurídico. Como exemplo, o estupro, a extorsão, o atentado violento
ao pudor, todos são primários, enquanto o constrangimento ilegal é subsidiário.
Note que muito se assemelha à própria especialidade, pelo que há quem diga mesmo
que a subsidiariedade poderia ser tida por um princípio residual, sem vida própria. Isto
porque a única diferença entre o critério da especialidade e o da subsidiariedade, na verdade
– pois em ambos as normas conflitantes protegem o mesmo bem jurídico – é que na
especialidade, a norma especial pode tanto agravar como atenuar a reprovabilidade,
enquanto a norma subsidiária é invariavelmente mais branda do que a primária. Na
especialidade, há a descrição de diferentes formas de violação ao bem jurídico; na
subsidiariedade, a descrição é de diferentes graus de violação ao mesmo bem jurídico.
Há notas características que identificam subsidiariedade: os crimes de perigo são
sempre subsidiários aos crimes de dano, por exemplo, desde que mais graves. Veja: o CP
protege a vida de agressões em geral, quer sejam riscos, como nos artigos 130 e seguintes,
quer danos, como no artigo 121 e seguintes. No crimes de perigo, o dolo do agente não é de
39
Capez entende que se a vítima é menor de quatorze anos, aplica-se o artigo 9º da Lei 8.072, a este delito; se
é maior ou igual a quatorze e menor de dezoito, aplica-se o § 1º do artigo 159 do CP.

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP II Direito Penal II

dano, mas se causa este dano não desejado, este ser-lhe-á imputado a título de culpa, se for
mais grave; se for menos grave a forma culposa do dano causado do que o perigo doloso,
prevalece o crime de perigo, pois, como visto, a subsidiariedade tem sempre o crime mais
grave como principal.
Veja um exemplo prático: agente contaminado com o vírus HIV pratica sexo com
mulher, sem querer contaminá-la, e crendo realmente que não a contaminará. Estará, então,
incurso no crime do artigo 130 do CP:

“Perigo de contágio venéreo


Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso,
a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
§ 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 2º - Somente se procede mediante representação.”
Ocorre que este agente, mesmo sem querer, e acreditando que não o faria, acaba por
contaminar a vítima, causando-lhe lesão de natureza grave, por incapacitação para
ocupações habituais por mais de trinta dias. A lesão causada foi culposa, então se observa o
artigo 129, § 6º, do CP:

“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
(...)
§ 6° Se a lesão é culposa:
Pena - detenção, de dois meses a um ano.
(...)”

A regra geral, então, seria a incursão na lesão corporal, pois o crime de dano,
mesmo culposo, em regra é principal ao de perigo, subsidiário. Todavia, este exemplo deixa
claro que o fato será tipificado no perigo de contágio venéreo, pois a pena deste é superior à
da lesão culposa. Diferente seria se a vítima morresse: o homicídio culposo consumado tem
pena muito mais grave, e por isso é principal, prevalecendo sobre o perigo doloso:

“(...)
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
(...)”

Outro exemplo: o STF firmou entendimento que, no CTB, o crime de perigo do


artigo 309 cede lugar ao de dano, do artigo 302, quando o agente mata culposamente,
estando em direção perigosa sem habilitação:

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:


Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a
permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para
Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP II Direito Penal II

Veja que o crime do 309 é contra a coletividade, e o do 302 é contra a vida de um


ser específico, pelo que estaria havendo avilte a bens jurídicos diferentes, forçando
concurso, e não subsidiariedade, mas o STF entendeu que a vida daquela vítima estaria,
sim, inserta na coletividade protegida no artigo 309, e por isso haveria a gradação que
permite a substituição por subsidiariedade.
Repare que em todos os crimes até agora validos como exemplo a subsidiariedade é
tácita, depreendida das regras do princípio. Todavia, há também a subsidiariedade expressa
em alguns dispositivos, como no artigo 132 do CP:

“Perigo para a vida ou saúde de outrem


Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
(...) (grifo nosso)”
2.3. Consunção

Este princípio consiste na consumição, absorção, de um tipo por outro. Veja que não
há, aqui, nenhuma relação entre o bem jurídico, protegido de formas diferentes
(especialidade) ou em gradações diferentes (subsidiariedade). Os bens, na consunção, são
diferentes, havendo a relação de meio e fim entre os tipos, em regra.
Há crimes-fim que dependem necessariamente, ou ao menos normalmente, da
passagem por um crime-meio para se consumarem: há a relação de crimes progressivos.
Sempre que o crime-meio for fase normal ou necessária à consumação do crime-fim, há
relação de consunção, e o crime-fim absorve o crime-meio, ao qual se denominará ante
factum impunível.
A doutrina diverge em certa monta quanto a este requisito, no que tange à
necessidade ou mera normalidade do crime-meio como fase do crime-fim, sendo que uma
minoria defende que somente será ante factum impunível crime que seja fase necessária do
crime-fim, não bastando a normalidade. Exemplo em que um crime é fase necessária do
outro é a falsidade documental e a sonegação fiscal, pois não há sonegação que não seja
realizada por meio de falsidade documental. Outro exemplo é a lesão corporal, necessária à
consecução de qualquer homicídio. Fase que é simplesmente normal, e não necessária, seria
a falsidade documental e o estelionato: pode haver prática de estelionato por outros meios,
mas a falsificação é um meio normalmente utilizado.
O STJ, na súmula 17, apóia a tese da normalidade do meio como habilitante da
absorção, exatamente tratando do estelionato que absorve o falso:

“Súmula 17, STJ: Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais


potencialidade lesiva, é por este absorvido.”

O segundo requisito para a absorção pode também ser apontado nesta súmula: trata-
se da relação de dedicação de um crime ao cometimento do outro. O crime-meio deve
nascer e morrer em função do crime-fim. Um exemplo em que isso não ocorreria seria o de
uma falsificação documental que se presta ao estelionato (e seria absorvível, em regra), mas
o documento falso é guardado pelo agente para novos golpes. Outro exemplo é o de um
agente que porta arma de fogo ilegalmente constantemente, e, em evento não planejado,
mata alguém: este homicídio não absorve o porte de arma (diferente do que seria se o porte
só se fez para cometer o homicídio).

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP II Direito Penal II

Outro requisito é a necessidade de que o crime-meio seja mais leve que o crime-fim:
se o crime-meio for mais severo do que o crime-fim, não será aquele por este absorvido. Se
for de mesma gravidade, também admite-se a absorção.
O STJ tem mitigado este requisito, exatamente em caso de estelionato praticado por
meio de falso documento público: o STJ simplesmente não faz qualquer diferenciação,
aplicando normalmente a súmula 17, de forma que o estelionato continuará absorvendo o
falso, sem se importar que o crime-meio seja mais brando. Veja:

“Falsificação de documento público


Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar
documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
(...)”

“Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
(...)”

O entendimento mais correto, porém, seria o de que o crime punido fosse apenas o
falso público, do artigo 297, considerando-se o estelionato como mero exaurimento,
impunível. Se assim fizesse, a regra continuaria sem ser mitigada, e a situação ainda seria
técnica.
Outro requisito seria o de que crime-meio e crime-fim protejam o mesmo bem
jurídico. Esta regra, porém, não é correta, nem é aplicada, como se vê no próprio caso da
súmula 17, em que o crime contra a fé-pública é absorvido pelo crime contra o patrimônio.
Mas há quem consigne este requisito.

2.3.1. Post factum impunível

Quando um crime configurar mero exaurimento de outro, haverá, para a maior parte
da doutrina, a absorção, por se tratar de pós-fato impunível. Exemplo clássico é o do agente
que furta um bem, e em seguida o vende, enganando o comprador, dizendo-se dono do
bem: este estelionato posterior, para a maior parte da doutrina, seria exaurimento do crime
de furto, e por isso seria impunível, absorvido pelo furto.
Há quem entenda, porém, que o pós-fato só pode ser impunível, só pode ser
considerado mero exaurimento, se o bem jurídico afetado for o mesmo. Assim, se o furtador
não vende o bem, mas sim o destrói, este fato é exaurimento do furto, mas se vende o bem,
além do patrimônio do furtado, terá violado outro bem jurídico – a fé do adquirente –, e por
isso não seria exaurimento impunível, e sim crime autônomo, em concurso material.

2.3.2. Progressão criminosa

Suponha-se que o agente vai roubar a vítima, mas, no curso da execução do delito,
altera seu dolo, passando a praticar extorsão mediante seqüestro: haverá a progressão
criminosa, em que o crime mais brando será absorvido pelo mais severamente punido.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Em síntese, na progressão criminosa, o agente inicia o ataque ao bem jurídico


executando um crime e, no curso da execução, modifica-a de forma a atacar o mesmo bem
de forma mais grave: responderá apenas pelo crime mais grave.
Na progressão criminosa, não pode haver jamais diferença entre o bem jurídico
inicialmente alvejado e o que foi finalmente querido pelo agente. Trata-se de uma
progressão, como o próprio nome diz, no ataque ao mesmo bem jurídico. Assim, se no
exemplo o dinheiro do resgate for da vítima, há a progressão; se há o roubo de bens da
vítima, mas o resgate é exigido de seu pai, por exemplo, há concurso, e não progressão.

2.4. Alternatividade

Este princípio não é admitido na temática da solução de concurso de normas,


simplesmente por não haver concurso de normas: consiste num conflito interno em tipos
mistos alternativos. Veja: não há concurso de normas, e sim um conflito de verbos
nucleares em um mesmo tipo penal. Por isso, só existe esta discussão nos crimes
plurinucleares.
Sendo esta a situação, mesmo que o agente incorra em mais de um verbo constante
de um tipo penal, ele responderá apenas por um deles, ou melhor, pelo tipo em questão,
sem delimitar a um ou outro verbo. Exemplo claro é o de tráfico de entorpecentes:

“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a
1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
(...)”

Assim, se o agente transporta, fabrica, importa, ou seja, realiza diversos verbos


deste crime, ainda assim responderá apenas pelo tipo, de forma geral. A multiplicidade de
condutas do agente, a prática de diversos verbos, não modifica a tipificação, mas
repercutirá no seu grau de culpabilidade, na reprovabilidade de sua conduta, em proporção
direta à quantidade de verbos praticados na mesma situação fática.
Veja que se a incidência em mais de um verbo se dá em situações fáticas distintas,
não se trata desta circunstância, e sim de concurso: há várias condutas, e não uma só, e por
isso há concurso, e não conflito aparente.

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Casos Concretos

Questão 1

JÚLIO foi a uma festa de aniversário na casa de sua amiga JÚLIA. Em


determinada ocasião, desentendeu-se com a mesma, momento em que ela ordenou que ele
se retirasse de sua moradia. Ele, pretendendo permanecer ali porque não tinha como
voltar para casa àquela hora, agrediu-a violentamente causando-lhe lesões corporais
leves, e não saiu. Pergunta-se:
a) Há concurso de crimes ou um crime só?
b) Se ele tivesse entrado na casa dela sem o seu consentimento para furtar-lhe as
jóias, haveria concurso de crimes ou um crime só?
c) Se ele, pretendendo agredir JÚLIA, atirasse contra ela um jarro de flores, vindo
a lesioná-la e a mãe dela, haveria concurso de crimes ou um crime só?
d) Se na hipótese anterior, viesse a atingir JÚLIA e a janela da residência,
responderia por algum crime?

Resposta à Questão 1

a) Concurso claro entre violação de domicílio agravado pelo § 1º do artigo 150 do


CP, e lesões corporais, sem sombra de dúvida.

b) Neste caso, haveria somente o crime de furto, pois a violação de domicílio seria
absorvida como crime meio.

c) Concurso formal entre duas lesões corporais, uma culposa, contra a mãe, e uma
dolosa contra Júlia.

d) Somente pelo crime de lesão corporal, pois o erro de pessoa para coisa não é
relevante, neste caso, vez que o crime de dano culposo não é figura típica.

Questão 2

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EMERJ – CP II Direito Penal II

ALFREDO foi denunciado pelo Ministério Público como incurso nas penas do art.
121, § 2º, I e IV, combinado com o art. 14, II (duas vezes) e art. 69, todos do Código Penal,
pelos seguintes fatos: ao tentar atingir seu desafeto, JOÃO, com disparos de arma de fogo,
errou o alvo, alvejando vítima diversa. Em seguida, passou a perseguir JOÃO, disparando
várias vezes contra ele, não conseguindo atingi-lo. Agindo assim, sustentou o parquet, o
agente atentou duplamente contra o mesmo bem jurídico, pois atingiu, por erro, a primeira
vítima e em "tentativa branca", atentou contra a vida da segunda, a quem efetivamente
almejava matar. A defesa alega que ALFREDO deve ser punido por apenas um dos crimes,
sob pena de incorrer o Judiciário em bis in idem, o que é juridicamente inadmissível.
Decida a questão.

Resposta à Questão 2

Deve responder pelos dois crimes. O primeiro, por erro quanto à pessoa em
aberratio ictus, consumado: responde, aqui, como se houvesse atingido o alvo (artigo 73,
usque 20, §3º, CP); e o segundo, por tentativa, vez que a situação fática é absolutamente
distinta. É fato que ao lesionar o bem de terceiro, o fez por imperícia, mas o bem jurídico
foi lesionado, e a tentativa expôs a perigo outro bem, o do desafeto – e por esta dupla
periclitação deve o agente responder, sem haver bis in idem, por haver dupla conduta, e não
uma só apenada duas vezes.
O STJ, no REsp 439.058, assim se posicionou:

“RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. ABERRATIO ICTUS.


CONCURSO FORMAL DE DELITOS. PENA.
“Hipótese em que se atingiu não só a pessoa visada como também terceiro, por
erro de execução. Regência da espécie pela disciplina do concurso formal."
(Precedente do Supremo Tribunal Federal – HC 62655/BA, DJ de 07/07/85, Rel.
Min. Francisco Rezek) “Se por erro de execução, o agente atingiu não só a pessoa
visada, mas também terceira pessoa, aplica-se o concurso formal.” (STF: RT
598/420). Recurso conhecido e provido.”

Questão 3

MÁRCIO desejava matar JOSILENE, sua ex-namorada, que estudava na mesma


escola que ele. Aproveitando o intervalo do recreio, MÁRCIO entrou na sala de
JOSILENE, onde esta conversava em uma roda, animadamente, com outras duas amigas:
MARCILENE e MARINETE. As três amigas estranharam a entrada de MÁRCIO na sala de
aula; todavia, não houve tempo para que fizessem nada, pois MÁRCIO sacou de uma arma
e disparou vários tiros contra JOSILENE, sem preocupar-se com as conseqüências de seu
ato. Assim, JOSILENE foi ferida, e MARCILENE foi morta, nada tendo acontecido com
MARINETE. Tipifique a conduta.

Resposta à Questão 3

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EMERJ – CP II Direito Penal II

Márcio responde por homicídio doloso, em dolo eventual, consumado em relação a


Marcilene, em concurso com homicídio doloso tentado, em dolo direto, contra Josilene, e
ainda em concurso com um terceiro homicídio tentado, em dolo eventual, contra Marinete.
Não há grandes problemáticas em traçar esta tipificação, pois o erro quanto à pessoa
faz responder como se tivesse acertado aquela alvejada, e a causação de lesões à vítima
mirada é crime tentado autônomo.
A respeito, veja o REsp 138.557:

“CRIMINAL. RESP. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO E


CONSUMADO. RECURSO MINISTERIAL QUE PRETENDE A APLICAÇÃO
DA REGRA DO CONCURSO FORMAL IMPERFEITO. ABERRATIO ICTUS.
AUTONOMIA DE DESÍGNIOS CARACTERIZADA. RECURSO
MINISTERIAL PROVIDO.
I – O cometimento de uma só conduta, que acarreta em resultados diversos, um
dirigido pelo dolo direto e outro pelo dolo eventual, configura a diversidade de
desígnios. Precedente do STF.
II - Hipótese em que se verifica o concurso formal imperfeito, que se caracteriza
pela ocorrência de mais de um resultado, através de uma só ação, cometida com
propósitos autônomos.
III – Recurso Ministerial conhecido e provido, restabelecendo-se a sentença
proferida em primeiro grau de jurisdição.”

Mas é de se ressaltar que, para grande parte da doutrina, este terceiro homicídio
apontado, o tentado em dolo eventual, seria de fato um indiferente penal, pois assim como
nos crimes culposos, o dolo eventual não implica em vontade, implicando apenas em
assunção de risco – pelo que seria impossível a tentativa. Fica a ressalva.

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Tema XIX

Concurso de Crimes III. 1) Crime continuado:a) Origem do instituto e sua definição;b) Controvérsias sobre
sua natureza jurídica;c) Requisitos: discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a necessidade do
elemento subjetivo;d) Aplicação das penas privativas de liberdade, restritiva de direitos e pecuniária.

Notas de Aula40

1. Continuidade delitiva

Sempre houve severa discussão na doutrina sobre este instituto. O STF, entretanto,
apaziguou os ânimos, ao admitir continuidade delitiva em um crime do tipo “chacina”.
Como já se disse, a continuidade delitiva, assim como a solução dada ao concurso
formal de crimes, são benesses que só existem em prol da razoabilidade. Todavia, no Brasil,
a prevalência de teses liberais extremas acabou por exacerbar a aplicação do instituto do
crime continuado.
Entenda: há um duelo entre duas teorias, a da unidade real e a da ficção jurídica.
Segundo a unidade real, a continuidade é vista como um dado da realidade, e sua menor
reprovabilidade (comparada com um concurso material) vem da própria natureza das
coisas. Exemplo que fundamenta esta tese é o do funcionário de banco que, pretendendo
dar desfalque de um milhão de reais, procede em dez condutas de subtração de cem mil
cada, por ser mais seguro. Para esta corrente, o fato é o furto de um milhão, e não dez furtos
de cem mil – a continuidade é um fato, e não uma ficção. Há o projeto único, apenas
fragmentado em várias ações isoladas, e por haver este propósito único é que há
merecimento de ser reconhecida a benesse da continuidade (pois se fosse considerado
concurso material, a pena seria irrazoável).
Veja que o mote desta teoria é a necessidade de certificação do dolo unitário, dolo
global no elemento subjetivo do delito: é preciso que haja este propósito único na conduta
do agente para que haja a continuidade fática. Juarez Cirino chama este elemento subjetivo
de dolo de continuação. O fracionamento da conduta, estando esta ainda amalgamada pela
unidade do elemento subjetivo, atribui às frações uma unidade real, e por isso é que o nome

40
Aula proferida pelo professor Ricardo Martins, em 18/9/2008.

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da corrente condiz exatamente com o que apregoa. Zaffaroni, Welzel, dentre outros,
defendem esta tese, chamada de teoria subjetiva da continuidade delitiva.
A tese que defende que se trata de uma ficção jurídica, chamada de teoria objetiva
pura, assenta na inexistência de qualquer consideração por elementos de índole subjetiva na
estruturação deste instituto, no artigo 71 do CP. Por isso, somente através de uma união
fictícia seria possível a reunião dos fatos em um só. Veja que esta tese não diz que não há
elemento subjetivo de continuidade; apenas diz que é dispensável este elemento.

“Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois
ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do
art. 70 e do art. 75 deste Código.”

O dolo de continuação consiste no ânimo em completar uma cadeia de eventos


como um só projeto. É o dolo de realizar um processo inteiriço, e não uma série de delitos
autônomos.
Os dados objetivos necessários à configuração da continuidade são as condições de
tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, mencionadas no artigo 71. Os
crimes devem ser idênticos, por óbvio, pois do contrário o dolo não será unitário jamais.
Além disso, a realização deve ser similar – mesma maneira de execução.
Zaffaroni acresce um terceiro elemento: a repetida afetação do mesmo bem jurídico.
Imagine-se, por exemplo, a sonegação fiscal reiterada: trata-se de clara hipótese de
continuidade, inclusive contando com esta agressão a um só bem jurídico. Mas este
elemento nem sempre estará presente, e por isso é impreciso: pode haver continuidade
delitiva em crimes envolvendo várias vítimas, caso em que não será atingido o mesmo bem
jurídico, mas sim diversos, um de cada vítima. Por isso, Zaffaroni diz que o crime
continuado por nós adotado não é precisamente um crime continuado: é apenas um
concurso material benéfico, realmente uma ficção, enquanto o verdadeiro crime continuado
seria uma realidade, calcada no aspecto subjetivo e nos três aspectos objetivos mencionados
– respectivamente, unidade de dolo, identidade de crime, identidade de execução, e
reiteração do avilte a um mesmo bem jurídico.
A opção por uma ou outra tese abre ou fecha a porta para sua aplicação, em alguns
casos. Se se entender que o elemento subjetivo é fundamental, ou seja, se se aderir à tese da
unidade real, os crimes contra bens personalíssimos não serão passíveis de continuidade.
Veja: simplesmente não se poderá entender que a vida de uma vítima foi tirada em
continuação da retirada da vida de outra. Atacado um bem, e partindo-se ao segundo, a
unidade fica insanavelmente comprometida. Cada agressão é uma só. Neste sentido, os
serial killers, os estupradores em série, etc, todos estariam incursos em concurso de crimes,
e não em continuidade delitiva.
O STJ é adepto desta tese, como se pode ver no REsp 61.962 e no REsp 171.321,
cujas ementas seguem transcritas, na ordem:

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EMERJ – CP II Direito Penal II

“DIREITO PENAL. CRIME CONTINUADO. CARACTERIZAÇÃO.


EXIGENCIA DE UNIDADE DE DESIGNIO OU DOLO TOTAL. PARA A
CARACTERIZAÇÃO DO CRIME CONTINUADO TORNA-SE NECESSARIO
QUE OS ATOS CRIMINOSOS ISOLADOS APRESENTEM-SE ENLAÇADOS,
OS SUBSEQUENTES LIGADOS AOS ANTECEDENTES (ART. 71 DO CP:
"DEVEM OS SUBSEQUENTES SER HAVIDOS COMO CONTINUAÇÃO DO
PRIMEIRO"), OU PORQUE FAZEM PARTE DO MESMO PROJETO
CRIMINOSO, OU PORQUE RESULTAM DE ENSEJO, AINDA QUE
FORTUITO, PROPORCIONADO OU FACILITADO PELA EXECUÇÃO DESSE
PROJETO (APROVEITAMENTO DA MESMA OPORTUNIDADE). HIPOTESE
EM QUE A SENTENÇA CONDENATORIA CONSIDEROU EXISTENTE
CIRCUNSTANCIA FATICA QUE INDICA A UNIDADE DE DESIGNIO.
RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, MAS IMPROVIDO.”

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBOS. CONTINUIDADE DELITIVA.


REQUISITOS. Para a caracterização do crime continuado não basta a simples
reiteração dos fatos delitivos sob pena de tornar letra morta a regra do concurso
material. É necessário o preenchimento, entre outros, do requisito da denominada
unidade de desígnios ou do vínculo subjetivo entre os eventos. Precedentes.
Recurso provido.”

Para que a tese objetiva-subjetiva não apareça como mera negação de aplicabilidade
ao artigo 71, Juarez Cirino explica que a exigência do elemento subjetivo, que fundamenta
esta tese, não precisa vir consignada expressamente. Tanto é que a legítima defesa, por
exemplo, exige o dolo de defender-se, sem que seja expressa esta exigência na lei. A teoria
finalista exigiu este elemento subjetivo, não sendo necessário que a lei o expresse.
Há ainda um julgado do STF que traz uma frase emblemática: enquanto a
continuidade atenua, a habitualidade agrava. Significa, esta frase, que o criminoso
habitual merece é maior reprimenda do Estado, e não a benesse do crime continuado. Veja
que não se trata de crime habitual, e sim do criminoso habitual, contumaz, aquele que faz
do crime um meio de vida. Aquele que pratica a conduta diversas vezes, de forma isolada,
não está em continuidade delitiva, porque não estão preenchidos os elementos objetivos
desta continuidade. Veja a ementa:

“HC 74.066. EMENTA: HABEAS-CORPUS. PEDIDO DE UNIFICAÇÃO DE


PENAS IMPOSTAS EM CINCO PROCESSOS POR CRIMES DE ROUBO
DUPLAMENTE QUALIFICADOS, FUNDAMENTADO EM IGUAL
BENEFÍCIO CONCEDIDO A CO-RÉU. CRIME CONTINUADO.
REITERAÇÃO DELITIVA. INVOCAÇÃO DE PRECEDENTE DESTA CORTE,
CUJO EXCERTO TRANSCRITO NÃO CONSTA EXPRESSAMENTE DA RTJ
INDICADA. 1. Não há como acolher precedente desta Corte, invocado pelo
impetrante em favor do paciente, se o excerto transcrito na inicial não consta
expressamente do acórdão publicado na RTJ indicada. 2. Não se reconhece a
continuidade delitiva (CP, art. 71) para fins de unificação de 5 penas aplicadas ao
paciente por crimes de roubo duplamente qualificados, quando não há conexão
temporal e geográfica entre eles, vez que praticados em grande espaço de tempo e
em Comarcas diversas e distantes, com diversidade de vítimas e de comparsas.
Precedentes. 3. Quem faz do crime sua atividade comercial, como se fosse
profissão, incide nas hipóteses de habitualidade, ou de reiteração delitiva, que não
se confunde com a da continuidade delitiva. O benefício do crime continuado não
alcança quem faz do crime a sua profissão. Precedentes. 4. Não se aplica o
benefício da extensão do julgado favorável ao co-réu, quando requereram

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separadamente a unificação das penas e as decisões foram divergentes, porque as


disposições do art. 580 do CPP são aplicáveis a quem não o requereu e se encontra
nas mesmas condições objetivas. Precedentes. 5. O rito especial e sumário do
habeas-corpus não é compatível com o exame de matéria de fato e com o
aprofundado exame de provas para verificar a continuidade delitiva do paciente,
nem a extensão de julgado, quando exigem a verificação da homogeneidade das
condutas, salvo quando dependam de simples qualificação jurídica de fatos certos.
Precedentes. 6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido.”

Na mesma linha, o STJ, no REsp 54.834:

“RESP - PENAL - EXECUÇÃO PENAL - CRIME CONTINUADO - PENA –


UNIFICAÇÃO - HABITUALIDADE CRIMINOSA - O CRIME CONTINUADO
E MODALIDADE DE CONCURSO MATERIAL. O CODIGO PENAL
SUFRAGOU A TEORIA OBJETIVA (ART. 71).(LEVAM-SE EM CONTA AS
CONDIÇOES DE TEMPO, LUGAR, MANEIRA DE EXECUÇÃO E OUTRAS
SEMELHANTES PARA OS CRIMES SUBSEQUENTES SER HAVIDOS COMO
CONTINUAÇÃO DO PRIMEIRO.) O INSTITUTO RESULTOU DO
TRABALHO DOS PRAXISTAS E GLOSADORES QUE BUSCAVAM,
CONFORME, MAIS TARDE, PASSOU A SER CHAMADA "POLITICA
CRIMINAL", EVITAR A APLICAÇÃO DA PENA DE MORTE, NA
REITERAÇÃO DO CRIME DE FURTO DE PEQUENO VALOR. OS CODIGOS,
CONCOMITANTEMENTE, DISCIPLINAM A HABITUALIDADE
CRIMINOSA. A HABITUALIDADE E INCOMPATIVEL COM A
CONTINUIDADE. A PRIMEIRA RECRUDESCE, A SEGUNDA AMENIZA O
TRATAMENTO PENAL. EM OUTRAS PALAVRAS, A CULPABILIDADE (NO
SENTIDO DE REPROVABILIDADE) E MAIS INTENSA NA
HABITUALIDADE DO QUE NA CONTINUIDADE. EM SENDO ASSIM,
JURIDICO-PENALMENTE, SÃO SITUAÇOES DISTINTAS. NÃO PODEM,
OUTROSSIM, CONDUZIR AO MESMO TRATAMENTO. O CRIME
CONTINUADO FAVORECE O DELINQUENTE. A HABITUALIDADE IMPOE
REPROVAÇÃO MAIOR, DE QUE A PENA E EXPRESSÃO, FINALIDADE
(C.P., ART. 59 IN FINE) ESTABELECIDA SEGUNDO SEJA NECESSARIA E
SUFICIENTE PARA REPROVAÇÃO E PREVENÇÃO DO CRIME. NA
CONTINUIDADE, HA SUCESSÃO CIRCUNSTANCIAL DE CRIMES. NA
HABITUALIDADE, SUCESSÃO PLANEJADA, INDICIARIA DO MODUS
VIVENDI DO AGENTE. SERIA CONTRADITORIO, INSTITUTO QUE
RECOMENDA PENA MENOR SER APLICADA A HIPOTESE QUE
RECLAMA SANÇÃO MAIS SEVERA. CONCLUSÃO COERENTE COM
INTERPRETAÇÃO SISTEMATICA DAS NORMAS DO CODIGO PENAL.”

Em que pesem estes argumentos, a súmula 605 do STF, que em muito se coadunava
com tal postura, se vê hoje cancelada (ainda informalmente) pelo STF. Veja:

“Súmula 605, STF: Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida.”

Este enunciado foi posto abaixo no HC 77.786, do STF:

“COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA.


Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), entendimento em
relação ao qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo
e qualquer habeas corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha este, ou não,
qualificação de superior. CONTINUIDADE DELITIVA - HOMICÍDIO. Com a
reforma do Código Penal de 1984, ficou suplantada a jurisprudência do Supremo

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP II Direito Penal II

Tribunal Federal predominante até então, segundo a qual "não se admite


continuidade delitiva nos crimes contra a vida" - Verbete nº 605 da Súmula. A regra
normativa do § 2º do artigo 58 do Código Penal veio a ser aditada por referência
expressa aos crimes dolosos, alterando-se a numeração do artigo e inserindo-se
parágrafo - artigo 71 e parágrafo único do citado Código. CONTINUIDADE
DELITIVA - PARÂMETROS. Ante os pressupostos objetivos do artigo 71 do
Código Penal - prática de dois ou mais crimes da mesma espécie, condições de
tempo, lugar, maneira de execução e outras circunstâncias próximas - impõe-se a
unificação das penas mediante o instituto da continuidade delitiva. Repercussão do
crime no meio social - de que é exemplo o caso da denominada "Chacina de
Vigário Geral" - não compõe o arcabouço normativo regedor da matéria, muito
menos a ponto de obstaculizar a aplicação do preceito pertinente. PROVIMENTO
JUDICIAL CONDENATÓRIO - CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA -
DOSIMETRIA DA PENA - VÍCIO. O vício de procedimento concernente à
fixação da pena - inobservância da continuidade delitiva - alcança apenas o ato que
o encerra , do Presidente do Tribunal de Júri, não atingido o veredicto dos jurados,
por se tratar de matéria estranha à quesitação e respostas que lhe deram origem.”

Para fazer possível o reconhecimento da continuidade delitiva, sem se exigir o


elemento subjetivo, é muito fácil: basta que se preencham os elementos objetivos, e estará
configurada a continuidade. Ou seja, basta que haja crimes idênticos e realização similar -
o que abre portas a situações deveras injustas, em que a continuidade delitiva não poderia
ser reconhecida jamais, fosse considerado o elemento subjetivo.
Divergência surge, no entanto, quanto ao conceito de crimes de mesma espécie. Há
duas correntes, de fato, acerca da interpretação do que sejam crimes de mesma espécie. A
primeira corrente, que ainda prevalece tanto na doutrina quanto no STJ e no STF, defende
que são crimes de mesma espécie os crimes que estejam no mesmo tipo penal. São de
mesma espécie, portanto, somente os crimes idênticos. A respeito, veja o decisum no HC
91.342, do STF:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ACÓRDÃO


MAJORITÁRIO PROFERIDO EM APELAÇÃO DA DEFESA, ADMITINDO A
REGRA DA CONTINUIDADE DELITIVA NOS CRIMES DE ESTUPRO E
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. RECURSO ESPECIAL DO
MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDO PARA RESTABELECER O CONCURSO
MATERIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL DECORRENTE DO
CONHECIMENTO DE RECURSO ESPECIAL CONTRA ACÓRDÃO
PASSÍVEL DE EMBARGOS INFRINGENTES. INOCORRÊNCIA. 1. Paciente
condenado por estupro e atentado violento ao pudor, em concurso material.
Apelação provida, por maioria, reconhecendo a continuidade delitiva, com redução
da pena. 2. Recurso especial do Ministério Público Estadual que restabeleceu o
concurso material imposto na sentença. 3. Habeas corpus impetrado sob o
argumento de constrangimento ilegal, decorrente do conhecimento de recurso
especial interposto contra acórdão ainda passível de embargos infringentes
(Súmula 207/STJ). 4. Inocorrência de constrangimento ilegal: o parágrafo único do
art. 609 do CPP estabelece que "[q]uando não for unânime a decisão de segunda
instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade,
que poderão ser opostos dentro de dez dias, a contar da publicação de acórdão, na
forma do art. 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à
material objeto da divergência". 5. A decisão majoritária proferida na apelação foi,
no caso concreto, favorável ao réu. Ao prever o cabimento de embargos
infringentes exclusivamente quando a decisão for desfavorável ao réu, o preceito
processual conferiu legitimidade recursal somente a ele. 6. É correta a decisão que

Michell Nunes Midlej Maron 16


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admitiu recurso especial do Ministério Público Estadual, que não tinha


legitimidade para interpor embargos infringentes na apelação. Ordem denegada.”

Por isso, só poderia haver continuidade em diversos estupros, diversos furtos, etc,
mas nunca entre furtos e roubos, por exemplo.
A segunda corrente, por seu turno, entende que são crimes de mesma espécie
aqueles praticados de forma similar, e em face de um bem jurídico idêntico, mas não
necessariamente no mesmo tipo penal: basta que haja modus operandi semelhante, e que o
bem jurídico tutelado seja o mesmo. Sendo assim, segundo esta corrente, seria admissível a
continuidade do atentado violento ao pudor e do estupro, da apropriação indébita e do
estelionato, do furto mediante fraude e do estelionato, do roubo e da extorsão, etc, mas
jamais admitiria continuidade entre roubo e estelionato, por exemplo, pois a execução não é
nada similar.
Veja que a posição do STF, pela incidência do mesmo tipo penal, não está mais tão
pacífica quanto dantes, como se pode depreender de também recente julgado no HC
89.827:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. SUSPENSÃO DO PRAZO RECURSAL PARA


INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL. FÉRIAS FORENSES. RÉU
PRESO. PRECEDENTES DESTA CORTE. CRIMES DE ESTUPRO E
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR, PRATICADOS DE FORMA
INDEPENDENTE. RECONHECIMENTO DE CONTINUIDADE DELITIVA.
ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 2º DA LEI
Nº 8.072/90, QUE VEDA A PROGRESSÃO DE REGIME NA EXECUÇÃO DAS
PENAS DOS CONDENADOS POR CRIMES HEDIONDOS. PRECEDENTE
PLENÁRIO. RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE. 1. Esta
Corte já assentou o entendimento de que as férias forenses suspendem a contagem
dos prazos recursais, a teor do artigo 66 da LOMAN. O fato de o réu encontrar-se
preso não altera tal entendimento, pois o aparato judiciário em funcionamento em
tais períodos tem como escopo evitar abusos e ilegalidades irreparáveis. 2. A turma
entendeu pelo reconhecimento de continuidade delitiva entre os delitos de estupro
e atentado violento ao pudor, quando praticados de forma independente. Vencido,
neste ponto, o Relator, que afirmava a configuração de concurso material. 3.
Reconhecida a inconstitucionalidade do impedimento da progressão de regime na
execução das penas pelo cometimento de crime hediondo, impõe-se a concessão da
ordem para afastar a vedação que se impôs ao paciente. Ressalve-se que pretendida
progressão dependerá do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos que a
lei prevê; tudo a ser aferido pelo Juízo da execução. Writ parcialmente deferido.”

Em que pese o ganho de força desta segunda corrente, a primeira ainda se


demonstra mais coerente, porque é uma exigência do artigo 71 do CP que haja a mesma
maneira de execução do delito, e não maneira similar, o que se dá quando há diversidade de
tipos penais.
A segunda corrente tenta reforçar a própria tese ao argumento de que se o legislador
quisesse que os fatos fossem do mesmo tipo penal ele teria usado a expressão “crimes
idênticos”, assim como o fez nos artigos antecedentes, 69 e 70 do CP. A primeira tese refuta
este argumento dizendo que a expressão “crimes da mesma espécie” indica identidade de
tipo penal, e não bem jurídico, pois se o legislador quisesse apenas a identidade do bem
jurídico, teria consignado a expressão “crimes do mesmo gênero”, em seu lugar. Por isso é
que se vê que atentado violento ao pudor e estupro não são de mesma espécie, mas são do
mesmo gênero – crimes contra a liberdade sexual.

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Esta discussão, em verdade, é muito relevante e freqüente exatamente nestes dois


crimes, dos artigos 213 e 214 do CP. Quando há os dois tipos, a acusação geralmente
imputa concurso material, requerendo o cúmulo material da pena, e a defesa suscita a tese
da continuidade delitiva, pleiteando a exasperação.
Em defesa desta segunda tese, há ainda um outro argumento: o da
proporcionalidade. Veja que os crimes são realmente quase idênticos, e não há muita
razoabilidade em se imputar o agente com mais de um ato de estupro mais beneficamente
do que aquele que cumula estupro e atentado violento ao pudor.
Os demais requisitos, condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, são todos elementos objetivos, sem qualquer menção ao elemento subjetivo –
escorando mais ainda a tese objetivista deste instituto. A delimitação destes elementos vem
da casuística, sendo principal referencial a jurisprudência.
Acerca das condições de tempo, o STF entendeu que o limite máximo tolerável
entre uma ação e outra, para não fugir ao instituto, é de trinta dias. Intervalo maior que este
rompe o elo da continuidade, segundo o STF. Mas veja que este referencial é elucidativo,
porém não é absoluto: o norte do intérprete deve ser a cessação da oportunidade para o
crime, sendo que a casuística poderá demonstrar que esta se estendeu por períodos maiores
(como nos delitos de sonegação de impostos, por exemplo, que geralmente ocorrem, por
exemplo, em periodicidades até anuais). Veja, a respeito, a ementa do HC 70.174 do STF:

“Crime continuado: não reconhecimento integral, dado o intervalo superior a 30


dias entre alguns dos seis roubos praticados durante cerca de quatro meses: critério
jurisprudencial que, em si mesmo, não e ilegal nem incompativel com a concepção
objetiva do Código, não se tendo logrado demonstrar que sua aplicação, nas
circunstancias do caso, desnaturaria a definição legal do crime continuado.”

Sobre as condições de lugar, a jurisprudência criou como limitação normal a área de


um mesmo município. Novamente, é critério que não se demonstra objetivo, sendo razoável
a continuidade, por exemplo, em uma mesma região, mesma área contígua entre
municípios.
Por maneira de execução, entenda-se a mesma oportunidade, os mesmos meios, o
mesmo modus operandi. Por exemplo, uma série de estelionatos em que o ardil utilizado é
o mesmo, está em continuidade, quanto a este requisito; mas se o ardil se altera de fato para
fato, o crime é plural, é concurso material.
Veja que todos os elementos objetivos são cumulativos, e não alternativos: é
necessária a presença de todos, e não de um ou outro, ou então estaria aberto o instituto da
continuidade a uma enormidade de situações.

1.1. Superveniência de lex gravior no curso da continuidade delitiva

Se, no curso de um iter de crime continuado, houver a entrada em vigor de uma


nova lei penal mais gravosa, aplicar-se-á esta lei imediatamente, pois a continuidade é tida
por consumação estendida, assim como nos crimes permanentes. A respeito, veja a súmula
711 do STF:

“Súmula 711, STF: A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao
crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da
permanência.”

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1.2. Majorante nos crimes violentos

O artigo 71 estabelece que a pena será, em regra, majorada de um sexto a dois


terços, nos casos do caput. Contudo, o parágrafo único permite que o juiz venha até a
triplicar a pena, quando se tratar de crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos
com violência ou grave ameaça à pessoa.
Mas repare que esta majoração é tolhida pelo próprio dispositivo. Veja:
“(...)
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do
art. 70 e do art. 75 deste Código.”

Assim, se as condições do agente forem a ele favoráveis, o gravame fica vedado, e


mais: a necessária atenção ao artigo 75 do CP restringe demais o campo do aumento. Veja:

“Limite das penas


Art. 75 - O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser
superior a 30 (trinta) anos.
§ 1º - Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma
seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite
máximo deste artigo.
§ 2º - Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena,
far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já
cumprido.”

A limitação da pena é naturalmente dirigida ao juiz da execução penal, quando de


eventual unificação ou estipulação do cumprimento. Isto faz enorme diferença, porque a
condenação a mais de trinta anos é possível, e é sobre este tempo que incidirão os
benefícios, quando da unificação na execução, quando, somente então, o cumprimento é
limitado em trinta anos, mas sem que os benefícios tenham este número por base, e sim o
da condenação. Ao consignar esta limitação, aqui, o legislador impede que o juiz ultrapasse
este limite, já na condenação, fazendo com que os benefícios incidam sobre o limite
máximo de trinta anos, e não sobre o número maior que a condenação eventualmente
pudesse assumir – privilégio que não é previsto em qualquer outra oportunidade, a qualquer
outro delito.

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Casos Concretos

Questão 1

Há exigência de unidade de desígnio ou dolo total para a caracterização do crime


continuado?

Resposta à Questão 1

Não. O nosso CP adotou a teoria objetiva, apesar de a doutrina majoritária preferir, e


muito acertadamente, a teoria subjetiva-objetiva. Porém, por expressa menção na exposição
de motivos do CP, é fato que, de lege lata, basta o preenchimento dos elementos objetivos
para se reconhecer a continuidade delitiva.

Questão 2

RENATO, com dificuldade de arrumar emprego há algum tempo, passou a fazer do


estelionato o seu meio de vida, reiterando condutas delituosas como se fosse, o crime, sua
profissão. O Ministério Público ofereceu denúncia contra RENATO pela prática do crime
referido, da seguinte forma: art. 171, caput (5 vezes) e 171, c/c 14, II, na forma do art. 69,
todos do CP. A defesa sustentou a aplicação, à hipótese, da continuidade delitiva, em razão
da semelhança entre as condutas praticadas. Assiste-lhe razão? Por quê?

Resposta à Questão 2

Não tem razão a defesa. A continuidade delitiva tem expressa, no seu artigo sede,
que é necessária identidade de circunstâncias a fim de se considerar, por ficção, a realização
de uma só conduta estendida. Ao se acatar a tese da defesa, se estaria praticamente criando
crime permanente profissional, o que é uma aberração: o criminoso habitual não merece
reconhecimento da continuidade delitiva, mas, ao contrário, o agravamento de sua
reprovabilidade.
O STJ, no HC 33.891, assim se manifestou:

"HABEAS CORPUS. ARTIGOS 171, CAPUT (5 VEZES) E 171 C/C 14, II, NA
FORMA DO ART. 69, TODOS DO CP. ALEGAÇÃO DE CRIME
CONTINUADO. INOCORRÊNCIA. HABITUALIDADE CRIMINOSA.
Continuidade delitiva. Criminoso que faz do crime profissão não faz jus à

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aplicação do instituto. A habitualidade é incompatível com a continualidade. A


primeira recrudesce, a segunda ameniza o tratamento penal. Em outras palavras, a
culpabilidade (no sentido de reprovabilidade) é mais intensa na habitualidade do
que na continualidade. Impossibilidade de rever fatos e provas na via eleita. Ordem
denegada.”

Entretanto, há quem defenda que, pela estrita aplicação da regra objetiva a este
instituto, se ficar demonstrado o preenchimento dos critérios objetivos da continuidade, esta
deve ser reconhecida. Neste sentido, estaria correta a tese defensiva.

Questão 3

TAXIO, matador de aluguel, foi contratado para matar uma família composta de
sete pessoas. Numa madrugada, adentrou a residência e efetuou vários disparos no escuro,
enquanto as pessoas se encontravam dormindo, matando quatro delas e ferindo
gravemente as outras três. Condenado pela prática da chacina, que sempre negou ter
praticado, apelou sustentando a existência de continuidade delitiva. Pergunta-se:
a) É possível o reconhecimento de um crime único continuado, nestas
circunstâncias?
b) Se tivesse a intenção de matar somente três pessoas da família e, ao adentrar na
residência, tivesse resolvido lesionar as outras quatro, poderia haver o
reconhecimento da continuidade delitiva?

Resposta à Questão 3

a) Claro que não. O desígnio foi autônomo em matar cada uma das vítimas. Não
haveria, então, que se falar em continuidade delitiva. Contudo, o STF já
entendeu que é este caso passível da continuidade.

b) Se a tese majoritária for acatada, não há continuidade entre crimes capitulados


em tipos penais diversos. Segundo a corrente menor, porém, os crimes são de
mesma espécie, por atentarem contra o mesmo bem jurídico em gradações
diversas, e por isso poderiam ser continuados.

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