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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema I

Homicídio I.1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Homicídio privilegiado e qualificado. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3)
Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula1

1. Delitos em espécie

O Direito Penal se presta à proteção dos bens jurídicos mais importantes, mais caros
à sociedade. Os tipos penais, então, são as normas que identificam cada bem jurídico eleito
como relevante ao Direito Penal.
A primeira função do bem jurídico é justamente a de ser a razão de ser do Direito
Penal: é o norte que o orienta, pois sem que haja bem jurídico relevante a ser tutelado, não
se justifica a criação de nenhum tipo penal incriminador. Opera, então, uma função
limitadora da intervenção do Direito Penal. Quando se fala em lesividade, por exemplo, se
está tratando do potencial ofensivo que determinada conduta tem sobre o bem jurídico em
tela. Da mesma forma, a subsidiariedade e a fragmentariedade do Direito Penal são erigidas
exatamente em função dos bens jurídicos.
Além desta função limitadora e de garantia, o bem jurídico desempenha também
uma função teleológica, que impõe que toda interpretação sobre tipos incriminadores deve
visar à proteção do bem jurídico. Exemplo prático desta função teleológica do bem jurídico
é a leitura do artigo 159 do CP, em comparação com a do artigo 158 do mesmo diploma:

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
Pena - reclusão, de oito a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990)
(...)”

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)”

Veja que o artigo anterior, a extorsão, classifica a vantagem a ser obtida pelo
criminoso em indevida e econômica, enquanto na extorsão mediante sequestro a expressão
“qualquer vantagem” vem alheada de qualquer adjetivação. Por isso, se lido literalmente o
artigo 159, seria de se entender que não precisaria, a vantagem almejada, ser econômica ou
indevida para fazer ali subsumir-se a conduta. Destarte, se um seqüestrador exige como
resgate vantagem sexual (vantagem não econômica), ou exige dos parentes do seqüestrado
que lhe devolvam algo que já era seu (vantagem não indevida), por exemplo, estaria
incidindo no artigo 159, mesmo assim.

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Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 19/10/2009.

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Ocorre que esta interpretação gramatical não pode ser observada, porque, como se
disse, o bem jurídico é o norte da interpretação da norma, que deve ser teleológica, deve
buscar explicitar o alcance que o bem jurídico eleito impõe ao tipo. Destarte, mesmo que
não venha consignada a adjetivação “indevida” e “econômica” ao tipo do artigo 159, estas
qualidades são exigidas para que seja ali inserta a conduta, pelo seguinte raciocínio: o
dispositivo está inserido no capítulo dos crimes contra o patrimônio, e por isso o bem
jurídico que por ele é tutelado é o patrimônio, e não a liberdade individual ou sexual, ou a
administração da justiça, respectivamente tutelares daquilo que foi exigido como vantagem,
nos exemplos dados acima, sequestro e estupro, e sequestro e exercício arbitrário das
próprias razões.
Sendo assim, passemos à análise dos bens jurídicos eleitos pelo Direito Penal como
mais relevantes, a merecerem sua tutela e intervenção, começando pelo de mais alta
importância2: a vida.

2. Homicídio

A proteção do tipo penal homicídio se dedica à vida extrauterina. Para se delimitar


este conceito, porém, é preciso se abordar também a vidas intrauterina, pois quando cessa
esta é que surge aquela, sendo fundamental a definição exata da fronteira.
Há diversas correntes disputando o tema. A primeira, defende que o marco é o início
das contrações, das dores de expulsão do feto, para se considerar que a vida intrauterina
tenha cessado, dando início à extrauterina. A corrente majoritária, porém, entende que é no
rompimento da bolsa amniótica que cessa a vida intrauterina, pois é o primeiro ato em que
não mais será possível a manutenção da gravidez – surge a vida extrauterina, então.
Veja que a corrente majoritária encontra reforço no artigo 123 do CP: o crime de
infanticídio, que já protege a vida extrauterina, fala que a morte do filho “durante o parto ou
logo após” pode configurá-lo, o que significa que no início do curso do parto já se
considera a vida como extrauterina – pois do contrário o dispositivo falaria apenas em
“logo após”. Veja:

“Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o
parto ou logo após:
Pena - detenção, de dois a seis anos.”

Sendo o parto efetivado por cesariana, diz a corrente majoritária que a vida
extrauterina surge quando se dá a primeira incisão nas camadas abdominais, pelo
realizador do parto – o que é o equivalente cirúrgico ao rompimento da bolsa, no parto
natural, pois é o primeiro ato do parto.
A cessação da vida, a morte, por seu turno – o que, no homicídio, é o momento da
consumação –, também encontrava certa divergência, hoje um pouco amainada. Nélson
Hungria defendia que a morte se consumava quando havia a cessação das funções vitais
(cardíaca, circulatória, respiratória). Modernamente, porém, é praticamente pacífico o
entendimento de que a vida cessa quando há total inoperância da atividade encefálica. O

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A Parte Especial do CP é, para alguns, ordenada em grau decrescente de relevância dos bens jurídicos,
começando pela vida e terminando nas finanças públicas.

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artigo 3° da Lei 9.434/97, diploma que regula os transplantes de órgãos, é norma que traz
conceito legal de morte, podendo ser perfeitamente aplicado no Direito Penal:

“Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano


destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de
morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das
equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e
tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
§ 1º Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames
referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que
tratam os arts. 2º, parágrafo único; 4º e seus parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º,
e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e
enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2º por um
período mínimo de cinco anos.
§ 2º Às instituições referidas no art. 2º enviarão anualmente um relatório contendo
os nomes dos pacientes receptores ao órgão gestor estadual do Sistema único de
Saúde.
§ 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato
da comprovação e atestação da morte encefálica.”

Assim, a morte encefálica é o fim da vida. Morte encefálica, por conceito médico
abreviado, é a destruição das estruturas vitais do encéfalo necessárias para manter a
consciência e a vida vegetativa, o que não se confunde com a mera morte cerebral.
Entenda: o encéfalo é formado por duas grandes estruturas, cérebro e tronco
encefálico. O tronco é a estrutura responsável pelas funções vegetativas, aquelas que são
desempenhadas pelo organismo sem qualquer ingerência consciente do indivíduo – as
funções “automáticas”, por assim dizer. No cérebro, se comandam as funções conscientes,
cognitivas.
O indivíduo em coma não tem atividade cerebral, mas as funções vegetativas,
comandadas pelo tronco encefálico, estão em perfeita ordem e atividade. Por isso, estas
pessoas estão vivas. Quando, ao contrário, não há atividade encefálica alguma, ou seja, o
tronco está inoperante (e conseqüentemente o cérebro também estará), há a morte3.
Veja que nem sempre coincidirá, a morte encefálica, com a cessação das funções
biológicas do corpo humano. Podem as funções biológicas vegetativas permanecerem
ativas, por meio de instrumentos, mas sem atividade encefálica qualquer – o que para
Hungria faria a pessoa ser considerada viva, fazendo ver que sua corrente é superada.
A prova de que o feto esteja vivo, para o Direito Penal, é bastante flexível: qualquer
prova inequívoca será admissível (e não apenas aquelas provas vinculadas da medicina
legal, como a docimásia hidrostática de Galeno).
Esclarecido o momento em que a tutela da vida extrauterina tem lugar, passemos à
análise expressa do tipo penal do homicídio.

2.1. Estudo analítico do tipo

3
Vale mencionar, pelo ensejo, que este artigo supra oferece solução bastante clara para a questão do feto
anencefálico. Entenda: ao se extrair o feto anencefálico, simplesmente não se trata de aborto, sendo fato
claramente atípico: o feto anencefálico não tem atividade encefálica, por simples ausência de encéfalo; sendo
a inatividade encefálica o marco da morte, a vida intrauterina simplesmente não existe, e por isso a
interrupção daquela gravidez não é aborto, é mera cirurgia para retirada de ser sem vida.

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“Homicídio simples
Art 121. Matar alguem:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo futil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que
dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro
crime:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4° No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências
do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se
as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)”

O homicídio é um crime de dano, e não de perigo. É material, consumando-se com


o resultado naturalístico morte. É de forma livre, podendo ser praticado por qualquer meio,
qualquer conduta apta à produção do resultado morte (se o meio não for apto, o crime é
impossível, por absoluta impropriedade do meio empregado).
Trata-se também de crime comum, não sendo exigida nenhuma condição especial do
ser humano para que o possa praticar. É crime plurisubsistente, admitindo tentativa. É
instantâneo, porém com efeitos permanentes (a morte não se desfaz jamais).
O elemento subjetivo do homicídio é o dolo de matar, direto ou eventual, o animus
necandi.
A legislação extravagante também prevê o crime de homicídio, como se pode ver na
Lei de Segurança Nacional, Lei 7.170/83, no artigo 29, usque 26:
“Art. 29 - Matar qualquer das autoridades referidas no art. 26.
Pena: reclusão, de 15 a 30 anos.”

“Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o


da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato
definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

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Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da


imputação, a propala ou divulga.”

Também a Lei 2.889/56 trata do homicídio, ao criminalizar o genocídio buscado por


meio da morte, no artigo 1°, “a”:

“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional,


étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de
ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Será punido:
Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;
Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b;
Com as penas do art. 270, no caso da letra c;
Com as penas do art. 125, no caso da letra d;
Com as penas do art. 148, no caso da letra e;”

2.1.1. Circunstâncias do homicídio

As circunstâncias, aquilo que difere uma “causação de morte” de outra, se dividem


em judiciais, do artigo 59 do CP, e legais, que são aquelas estabelecidas pelo legislador, de
forma fixa. Vige, na individualização da pena, como se sabe, o sistema da relativa
determinação: a pena é aplicada pelo juiz, mas dentro dos limites traçados pelo legislador.
Assim, as circunstâncias judiciais emprestam ao juiz a possibilidade de oscilar na
reprovação do crime concretamente praticado. Veja o artigo 59 do CP:

“Fixação da pena
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;(Redação dada
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;(Redação dada
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de
pena, se cabível. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

As demais circunstâncias, legais, são expressamente impostas pelo legislador, tanto


na parte geral do CP – agravantes e atenuantes genéricas, e causas de aumento e diminuição
da pena – quanto na parte especial – causas especiais de aumento ou diminuição da pena.
Para boa parcela da doutrina, as qualificadoras são também circunstâncias do crime,
apesar de haver outra vertente que entende que a qualificadora é parte elementar do crime.
As causas de aumento ou diminuição são representadas por frações; as
qualificadoras, por alteração da escala penal.

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As circunstâncias, todas elas, se dividem em subjetivas e objetivas. Circunstâncias


objetivas, bem como as elementares de qualquer natureza (objetivas ou subjetivas) se
comunicam aos corréus, enquanto as circunstâncias subjetivas não se comunicam (o que faz
ainda mais importante posicionar-se corretamente sobre a natureza da qualificadora, porque
se for elementar, a subjetiva também se comunicará).
As circunstâncias são objetivas quando se referem ao fato em si, ao verbo do tipo,
ao tempo do crime (durante a noite), lugar, condições da vítima (idade, capacidade), meios
e modos de execução, e tudo mais que disser respeito ao fato e for relevante penalmente. As
circunstâncias subjetivas, por seu turno, dizem respeito não ao fato, apenas, mas sim à
relação do agente com o fato: o motivo de cometimento, o estado anímico, as suas relações
com a vítima (parentesco, relação de confiança), etc.
Dito isto, a natureza jurídica do § 1° do artigo 121 do CP é de causa de diminuição
de pena, baseada exclusivamente em circunstâncias subjetivas. Trata-se do homicídio
privilegiado. Didaticamente, vale a análise apartada de cada “subespécie” de homicídio, por
assim dizer.

2.1.2. Homicídio privilegiado

Reveja o §m 1° do artigo 121 do CP:

“(...)
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
(...)”

A primeira circunstância apontada no dispositivo como privilégio é o motivo de


relevante valor social ou moral. A motivação, o porquê do crime, é um aspecto que é
bastante considerado em nosso ordenamento, é sempre uma circunstância de grande
relevância. O artigo 67 do CP denuncia esta nossa preferência sociológica em atribuir maior
valor às circunstâncias subjetivas. Veja:

“Concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes


Art. 67 - No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do
limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as
que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da
reincidência. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Antes de analisar cada uma das causas de privilégio, é preciso diferenciar


brevemente três conceitos: a voluntariedade, a finalidade e o motivo. Voluntariedade é
elemento da conduta, porque é o que representa um atuar do agente, sem se cogitar da
finalidade de sua conduta. A finalidade, por sua vez, situa-se na tipicidade, porque nada
mais é do que expressão sinonímica do dolo. A motivação, por seu turno, é elemento que se
insere na culpabilidade, porque é medida da reprovabilidade da conduta do agente.
Como medida de culpabilidade, balança da reprovabilidade, a motivação pode ser
classificada, grosso modo, como torpe, neutra ou nobre. Para a torpeza, maior
reprovabilidade; para a neutralidade, nem aumento, nem minoração; para a nobreza,
privilégio.

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No § 1° do artigo 121 do CP, os motivos são nobres. O motivo de relevante valor


social ou moral só será assim considerado se se prestar à defesa de um valor positivo,
nobre, conceito que é objetivo e genérico, reconhecido em grande escala, e não individual.
Vejamos.

2.1.2.1. Relevante valor moral

Exemplo costumeiro em que há valor moral relevante é o do pai que, em defesa da


honra de sua filha estuprada, mata o criminoso estuprador (não é qualquer morte de
estuprador, veja, que privilegia o crime: é a morte dele praticada por quem tenha como
ânimo a defesa da honra maculada de sua filha).
Outro exemplo ainda mais claro de motivo de valor moral relevante é a eutanásia:
ao matar o ente querido que está em agonia, o agente está impelido, em verdade, por amor e
piedade, pelo que a sua culpabilidade deve ser reduzida.
Pelo ensejo, surge uma questão intrincada. A eutanásia é homicídio, ainda que
privilegiado. Pergunta-se: pode o médico interromper o tratamento de um paciente que
esteja com o processo de morte instalado? Trata-se do conceito de ortotanásia, que é
perfeitamente admitido, fato atípico. Entenda: a ortotanásia não é matar alguém; o médico
não está interrompendo um processo de vida. Ao contrário, está deixando de prolongar um
processo de morte, cujo curso é irreversível. Neste caso, ao invés de prolongar o processo
de morte agonizante, ministrando tratamento que cause ou prolongue sofrimento infrutífero,
o médico deve tentar promover ao máximo o conforto do paciente em curso de morte,
aplicando apenas medidas paliativas (as quais, porventura, poderão até mesmo acelerar o
processo de morte, sem configurar com isto eutanásia, eis que não são a causa da morte –
são métodos para tornar o processo de morte irreversível mais digno e suportável).
Um exemplo serve bem para aclarar o conceito: se um paciente padece de infecção
generalizada, septicemia, não mais sendo possível salvá-lo da morte, seria tremendamente
desumano aplicar-lhe o único tratamento possível, e que é absolutamente ineficaz para
salvar a vida da vítima, qual seja, a amputação gradual dos membros comprometidos pela
infecção. De qualquer forma, amputados ou não os membros, o processo de morte é
irreversível.
Note que há uma linha bastante tênue entre o conceito de processo de morte e
processo de vida. Traçar esta linha divisória, no caso concreto, incumbe exclusivamente ao
médico, que será quem terá capacidade de definir se o paciente é absolutamente fadado ao
óbito, não havendo absolutamente nenhum meio de salvar-lhe a vida – quando então o
processo é de morte –, ou se há ainda alguma terapia capaz de manter viva a pessoa, caso
em que esta deverá imperativamente ser feita, sob pena de se configurar eutanásia, eis que,
então, se estará diante de um processo de vida periclitada – e não de morte certa.
Em suma, a ortotanásia é o não prolongamento do processo de morte. O seu inverso,
o ato de prolongar o processo de morte, chama-se distanásia: no exemplo dado, do paciente
séptico, seria distanásia a realização de procedimentos de amputação dos membros
comprometidos, tratamento que não resultaria em qualquer benefício do paciente, fadado ao
óbito. Ambas são atípicas. E a eutanásia, por seu turno, difere da ortotanásia porque é a
interrupção do processo de vida, quando ainda havia chance de vida, por ação ou omissão,
mesmo que para evitar sofrimento do paciente – é homicídio privilegiado.

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A eutanásia ativa é a ação dedicada a interromper a vida, tal como ministrar uma
droga que leve a óbito indolor; a eutanásia passiva é a omissão em fornecer meios ao seu
alcance para que a vida se prolongue, como na interrupção de tratamento que manteria a
pessoa viva.
O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.805/06, que trata da
ortotanásia, instruindo aos médicos sobre sua admissibilidade. Esta resolução está suspensa,
por força de liminar em ação civil pública, porque entendeu, o MPF e o juízo federal
respectivo, que se trataria de um fomento à eutanásia passiva. Veja os artigos 1° e 2° desta
resolução:

“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos


que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e
incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal
as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma
segunda opinião médica.”

“Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar


os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto
físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta
hospitalar.”

Veja a decisão que suspendeu a resolução:

“PROCESSO Nº : 2007.34.00.014809-3
AUTOR : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU : CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
DECISÃO
Trata-se de ação civil pública, com pedido de antecipação detutela, ajuizada pelo
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra o CONSELHO FEDERAL DE
MEDICINA, questionando a Resolução CFM nº 1.805/2006,que regulamenta a
ortotanásia.
Aduz, em apertada síntese, que o Conselho Federal de Medicina não tem poder
regulamentar para estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada
como crime. O processo foi ajuizado em 09 de maio de 2007.
O ilustre Juiz Federal JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA - oficiando no feito
em virtude de minha designação para, com prejuízo das funções, prestar auxílio na
25a Vara (Juizado Especial Federal) desta Seção Judiciária do Distrito Federal no
período de 02 a 22 de maio de 2007 - despachou no dia 15 de maio de 2007
oportunizando a oitiva do Réu, no prazo de 72h, antes de apreciar a antecipação de
tutela.
Intimado, o Conselho Federal de Medicina protocolou as informações preliminares
no dia 31 de maio de 2007, asseverando a legitimidade da Resolução CFM nº
1.805/2006 e a inexistência dos requisitos necessários à concessão da antecipação
de tutela.
É o relatório. Decido.
Em questão de ordem, registro que as informações preliminares prestadas pelo Réu
somente foram juntadas efetivamente ao processo em 27 de agosto de 2007, em
virtude da necessidade de abertura de novo volume de autos, vindo então
conclusos para decisão em 17 de outubro de 2007.

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Daí, recomendo à Secretaria, dentro das possibilidades que decorrem naturalmente


da limitação de pessoal para fazer frente à pletora de processos que tramitam nesta
Vara, maior diligência na juntada de petições, abertura de volume de autos e
conclusão para decisão nas hipóteses em que existe pedido de tutela de urgência,
como no caso.
Pois bem.
A lide cinge-se à legitimidade da Resolução CFM nº 1.805/2006, que regulamenta
a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis.
Impende salientar, inicialmente, que a questão é complexa e polêmica, como se
infere da petição inicial desta ação civil pública, que tem nada menos que 129
folhas, vindo instruída com os documentos de fls. 133-296, bem assim das
informações preliminares do Réu, que têm 19 folhas e são instruídas com os
documentos encartados em dois volumes de autos, totalizando mais de 400 folhas.
Na verdade, trata-se de questão imensamente debatida no mundo inteiro.
Lembre-se, por exemplo, da repercussão do filme espanhol 'Mar Adentro' e do
filme americano 'Menina de Ouro'.
E o debate não vem de hoje, nem se limita a alguns campos do conhecimento
humano, como o Direito ou a Medicina, pois sobre tal questão há inclusive
manifestação da Igreja, conforme a 'Declaração sobre a Eutanásia' da Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada em 05 de maio de 1980, no sentido
de que 'na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em
consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um
prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados
normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem
motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa
em perigo'.
Entretanto, analisada a questão superficialmente, como convém em sede de tutela
de urgência, e sob a perspectiva do Direito, tenho para mim que a tese trazida pelo
Conselho Federal de Farmácia nas suas informações preliminares, no sentido de
que a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão-somente a
morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à
disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com
sofrimento e angústia para o doente e sua família, não elide a circunstância
segundo a qual tal conduta parece caracterizar crime de homicídio no Brasil, nos
termos do art. 121, do Código Penal.
E parece caracterizar crime porque o tipo penal previsto no sobredito art. 121,
sempre abrangeu e parece abranger ainda tanto a eutanásia como a ortotanásia, a
despeito da opinião de alguns juristas consagrados em sentido contrário.
Tanto assim que, como bem asseverou o representante do Ministério Público
Federal, em sua bem-elaborada petição inicial, tramita no Congresso Nacional o
'anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, colocando a eutanásia
como privilégio ao homicídio e descriminando a ortotanásia' (fl. 29).
Desse modo, a glosa da ortotanásia do mencionado tipo penal não pode ser feita
mediante resolução aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, ainda que essa
resolução venha de encontro aos anseios de parcela significativa da classe médica e
até mesmo de outros setores da sociedade.
Essa glosa há de ser feita, como foi feita em outros países, mediante lei aprovada
pelo Parlamento, havendo inclusive projeto-de-lei nesse sentido tramitando no
Congresso Nacional. Em última análise, para suprir a ausência de lei específica, a
glosa pode ser 'judicializada' mediante provocação ao Supremo Tribunal Federal,
como ocorreu, por exemplo, na Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54, ajuizada em 17 de junho de 2004 pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde e na qual se discute se ocorre crime de aborto no caso
de anencéfalo.

Michell Nunes Midlej Maron 9


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Registro, para efeito de documentação, a ementa do acórdão proferido em questão


de ordem na referida ação constitucional, litteris:
EMENTA: 'ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO
ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACRO PROCESSO. Tanto quanto
possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a
pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na
Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da
liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados
a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a
configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de
preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO
DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL- PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO.
Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental,
processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de
anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal.
ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ -
GLOSA PENAL- AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada
maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em
argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar
a glosa penal relativamente àqueles que venham aparticipar da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia'. (STF, ADPF-QO 54, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO, Plenário, J 27.04.2005, DJ 31.08.2007).
À luz dessas considerações, o aparente conflito entre a resolução questionada e o
Código Penal é bastante para reconhecer a relevância do argumento do Ministério
Público Federal.
Dizer se existe ou não conflito entre a resolução e o Código Penal é questão a ser
enfrentada na sentença.
Mas a mera aparência desse conflito já é bastante para impor a suspensão da
Resolução CFM nº 1.805/2006, mormente quando se considera que sua vigência,
iniciada com a publicação no DOU do dia 28 de novembro de 2006, traduz o placet
do Conselho Federal de Medicina com a prática da ortotanásia, ou seja, traduz o
placet do Conselho Federal de Medicina com a morte ou o fim da vida de pessoas
doentes, fim da vida essa que é irreversível e não pode destarte aguardar a solução
final do processo para ser tutelada judicialmente.
Do exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA para suspender os efeitos
da Resolução CFM nº 1.805/2006.
Intimem-se.
Cite-se.
Brasília, 23 de outubro de 2007.
ROBERTO LUIS LUCHI DEMO
Juiz Federal Substituto da 14ª Vara/DF”

Nota-se que há, portanto, entendimento de que a ortotoanásia seja ainda uma forma
de causação da morte, por omissão terapêutica, o que se vê nas palavras do juiz, supra, no
seguinte trecho:

“(...) tenho para mim que a tese trazida pelo Conselho Federal de Farmácia nas
suas informações preliminares, no sentido de que a ortotanásia não antecipa o
momento da morte, mas permite tão-somente a morte em seu tempo natural e sem
utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da
tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente
e sua família, não elide a circunstância segundo a qual tal conduta parece
caracterizar crime de homicídio no Brasil, nos termos do art. 121, do Código
Penal.” (grifo nosso)

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Há nesta decisão, a todo ver, certa confusão entre eutanásia passiva e ortotanásia,
justamente porque o juiz não diferencia o processo de morte do processo de vida. A linha é
mesmo tênue, mas existe, e por isso, reafirme-se, é posição mais acertada a de que a
ortotanásia é fato atípico. Cabe aqui trazer, porque muito elucidativa, a exposição de
motivos da Resolução 1.805/06 do CFM:

“EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS – Resolução CFM n° 1.805/06


A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação
médico-enfermo. A ética médica tradicional, concebida no modelo hipocrático, tem
forte acento paternalista. Ao enfermo cabe, simplesmente, obediência às decisões
médicas, tal qual uma criança deve cumprir sem questionar as ordens paternas.
Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato médico era julgado
levando-se em conta apenas a moralidade do agente, desconsiderando-se os valores
e crenças dos enfermos. Somente a partir da década de 60 os códigos de ética
profissional passaram a reconhecer o doente como agente autônomo.
À mesma época, a medicina passou a incorporar, com muita rapidez, um
impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e novas
metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis vitais ofereceram aos
profissionais a possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século
XX o tempo estimado para o desenlace após a instalação de enfermidade grave era
de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico
hoje disponível que não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer
sem a anuência do médico.
Bernard Lown, em seu livro A arte perdida de curar, afirma: “As escolas de
medicina e o estágio nos hospitais os preparam (os futuros médicos) para
tornarem-se oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas.
Muito pouco se ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem
pouquíssimo a lidar com a morte. A realidade mais fundamental é que houve uma
revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do morrer.”
O poder de intervenção do médico cresceu enormemente, sem que,
simultaneamente, ocorresse uma reflexão sobre o impacto dessa nova realidade na
qualidade de vida dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefícios auferidos
com as novas metodologias diagnósticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas
salvas em situações críticas, como, por exemplo, os enfermos recuperados após
infarto agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves distúrbios
hemodinâmicos que foram resgatados plenamente saudáveis por meio de
engenhosos procedimentos terapêuticos.
Ocorre que nossas UTIs passaram a receber, também, enfermos portadores de
doenças crônico-degenerativas incuráveis, com intercorrências clínicas as mais
diversas e que são contemplados com os mesmos cuidados oferecidos aos
agudamente enfermos. Se para os últimos, com freqüência, pode-se alcançar plena
recuperação, para os crônicos pouco se oferece além de um sobreviver precário e,
às vezes, não mais que vegetativo. É importante ressaltar que muitos enfermos,
vítimas de doenças agudas, podem evoluir com irreversibilidade do quadro. Somos
expostos à dúvida sobre o real significado da vida e da morte. Até quando avançar
nos procedimentos de suporte vital? Em que momento parar e, sobretudo, guiados
por que modelos de moralidade?
Aprendemos muito sobre tecnologia de ponta e pouco sobre o significado ético da
vida e da morte. Um trabalho publicado em 1995, no Archives of Internal
Medicine, mostrou que apenas cinco de cento e vinte e seis escolas de medicina
norte-americanas ofereciam ensinamentos sobre a terminalidade humana. Apenas
vinte e seis dos sete mil e quarenta e oito programas de residência médica tratavam
do tema em reuniões científicas.

Michell Nunes Midlej Maron 11


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o


conforto do enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e
sofrida agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e prolongado sofrimento
para o doente e sua família. A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada
pelo médico diante de um enfermo com doença grave e incurável; portanto,
entende-se que existe uma doença em fase terminal, e não um doente terminal.
Nesse caso, a prioridade passa a ser a pessoa doente e não mais o tratamento da
doença.
As evidências parecem demonstrar que esquecemos o ensinamento clássico que
reconhece como função do médico “curar às vezes, aliviar muito freqüentemente e
confortar sempre”. Deixamos de cuidar da pessoa doente e nos empenhamos em
tratar a doença da pessoa, desconhecendo que nossa missão primacial deve ser a
busca do bem-estar físico e emocional do enfermo, já que todo ser humano sempre
será uma complexa realidade biopsicossocial e espiritual.
A obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo nos conduz à obstinação
diagnóstica e terapêutica. Alguns, alegando ser a vida um bem sagrado, por nada se
afastam da determinação de tudo fazer enquanto restar um débil “sopro de vida”.
Um documento da Igreja Católica, datado de maio de 1995, assim considera a
questão: “Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso
terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real
do doente, porque não proporcionais aos resultados que se poderiam esperar ou
ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações,
quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar
a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida”.
Inevitavelmente, cada vida humana chega ao seu final. Assegurar que essa
passagem ocorra de forma digna, com cuidados e buscando-se o menor sofrimento
possível, é missão daqueles que assistem aos enfermos portadores de doenças em
fase terminal. Um grave dilema ético hoje apresentado aos profissionais de saúde
se refere a quando não utilizar toda a tecnologia disponível. Jean Robert Debray,
em seu livro L’acharnement thérapeutique, assim conceitua a obstinação
terapêutica: “Comportamento médico que consiste em utilizar procedimentos
terapêuticos cujos efeitos são mais nocivos do que o próprio mal a ser curado.
Inúteis, pois a cura é impossível e os benefícios esperados são menores que os
inconvenientes provocados”. Essa batalha fútil, travada em nome do caráter
sagrado da vida, parece negar a própria vida humana naquilo que ela tem de mais
essencial: a dignidade.
No Brasil, há muito o que fazer com relação à terminalidade da vida. Devem ser
incentivados debates, com a sociedade e com os profissionais da área da saúde,
sobre a finitude do ser humano. É importante que se ensine aos estudantes e aos
médicos, tanto na graduação quanto na pós-graduação e nos cursos de
aperfeiçoamento e de atualização, as limitações dos sistemas prognósticos; como
utilizá-los; como encaminhar as decisões sobre a mudança da modalidade de
tratamento curativo para a de cuidados paliativos; como reconhecer e tratar a dor;
como reconhecer e tratar os outros sintomas que causam desconforto e sofrimento
aos enfermos; o respeito às preferências individuais e às diferenças culturais e
religiosas dos enfermos e seus familiares e o estímulo à participação dos familiares
nas decisões sobre a terminalidade da vida. Ressalte-se que as escolas médicas
moldam profissionais com esmerada preparação técnica e nenhuma ênfase
humanística.
O médico é aquele que detém a maior responsabilidade da “cura” e, portanto, o que
tem o maior sentimento de fracasso perante a morte do enfermo sob os seus
cuidados. Contudo, nós, médicos, devemos ter em mente que o entusiasmo por
uma possibilidade técnica não nos pode impedir de aceitar a morte de um doente. E
devemos ter maturidade suficiente para pesar qual modalidade de tratamento será a
mais adequada. Deveremos, ainda, considerar a eficácia do tratamento pretendido,

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

seus riscos em potencial e as preferências do enfermo e/ou de seu representante


legal.
Diante dessas afirmações, torna-se importante que a sociedade tome conhecimento
de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser
humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos
e familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma
mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e sobre o
processo do morrer.
Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança
do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal,
para o qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os
cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto
dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças
que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento,
através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do
tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou
espiritual.”

Havendo chance de vida, ainda há uma questão a ser enfrentadas: a recusa do


paciente em receber tratamento. Se o paciente simplesmente se nega a ser tratado, mesmo
que o médico tenha certeza que ali não está instalado um processo de morte, ou seja, há
possibilidade de sobrevida, nada há que se fazer: a decisão do paciente deve ser respeitada,
não podendo se imputar ao médico a configuração do crime de auxílio ao suicídio, que será
estudado adiante, por omitir-se. Todavia, se o paciente não tem condições de se manifestar
positiva ou negativamente ao tratamento, a decisão recai exclusivamente sobre o médico: se
ele identificar que o estado do paciente é fadado ao óbito, ou seja, que há processo de morte
irreversível instalado, a ortotanásia tem lugar; se verificar que há qualquer terapia
vivificante possível, ela deve ser realizada, sob pena de se considerar sua omissão eutanásia
passiva.
Voltando à análise do § 1° do artigo 121 do CP, uma questão é relevante: este
dispositivo é aplicável a outros delitos de causação de morte, tais como o artigo 29 da Lei
7.170/83, já transcrito?
A aplicabilidade fica condicionada aos crimes remetidos, porque então há a previsão
legislativa da combinação dos dispositivos. No crime citado, não há esta remessa no
preceito primário, como se pode ver ao reler o dispositivo, pelo que a aplicação do
privilégio do homicídio não é possível:

“Art. 29 - Matar qualquer das autoridades referidas no art. 26.


Pena: reclusão, de 15 a 30 anos.”

Diferentemente seria se, a título de ilustração, o artigo 29 supra trouxesse a seguinte


redação:

“Art. 29 – Praticar o crime do artigo 121 do CP contra as autoridades referidas no


art. 26.
Pena: reclusão, de 15 a 30 anos.”

Neste caso hipotético, a expressa remessa do crime acima ao homicídio permitiria


que o dispositivo paradigma inteiro fosse aplicável, ou seja, tanto o privilégio como as
qualificadoras.

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

2.1.2.2. Relevante valor social

Aqui, o valor que privilegia o crime é diretamente caro à sociedade, e não apenas
reconhecido por ela como relevante, mas atinente apenas ao homicida, como ocorre no
relevante valor moral. É a sociedade quem tem interesse direto no valor aqui privilegiado, e
não apenas o criminoso, não sendo o privilégio fruto de mero reconhecimento social de que
o valor intimamente importante ao agente é moralmente relevante. Esta é a diferença entre
valor moral e valor socialmente relevante: no primeiro, o motivo é dedicado a interesse
intimo, mas reconhecido como moralmente relevante pela sociedade; no segundo, o motivo
é dedicado a interesse da própria sociedade.
Nélson Hungria traz exemplo clássico: o homicida que mata o traidor da pátria, em
tempos de guerra, para evitar que este forneça informações valiosas aos inimigos nacionais.
Outro exemplo, mais verossímil, é o do agente que matou um delinqüente que aterrorizava
toda uma comunidade, tendo sido motivado pelo intuito de restabelecer a paz e a
tranqüilidade social do lugar. Concretamente: o morador da favela que, cansado das
atrocidades feitas pelo “dono do tráfico”, mata o chefe do crime, com o fito de proteger sua
comunidade de novos atentados.

2.1.2.3. Violenta emoção

O dispositivo empresta privilégio ao agente que mata alguém após ser tomado pelo
domínio de violenta emoção logo após sofrer injusta provocação da vítima. Há que se ter
cuidado com diversos aspectos, aqui. Vejamos.
Domínio não é mera influência. A influência da emoção é circunstância atenuante,
como se vê no artigo 65, III, “c”, fine, do CP:
“Circunstâncias atenuantes
Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
(...)
III - ter o agente:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem
de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato
injusto da vítima;
(...)”

A influência da emoção é motivação parcial, enquanto o domínio é motivação total


para o crime.
A emoção é também mencionada no artigo 28, I, do CP:

“Emoção e paixão
Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
I - a emoção ou a paixão; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)”

O que o legislador quis retratar, neste artigo 28, I, do CP, é que a emoção, assim
como a paixão, são sensações e estados de espírito que acometem todos os indivíduos, e são

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

perfeitamente controláveis, e, se não forem controlados, levando o agente a cometer crime,


não excluirão a imputabilidade.
Ao contrário, se a emoção e a paixão criarem processos patológicos, capazes de
ilidir completamente a capacidade de discernimento, o agente será tido por inimputável,
mas esta constatação é técnica, pericial médica psiquiátrica.
Veja que, mesmo não excluindo a imputabilidade, a violenta emoção foi eleita como
causa de diminuição de pena no homicídio, mas a paixão não teve o mesmo tratamento. A
razão é técnica: enquanto a emoção é um sentimento perturbador e passageiro, que não
afasta a culpabilidade, mas a minora, a paixão é um sentimento não arrebatador, que
presume maturação da idéia, premeditação, e não um rompante causado por uma
obliteração momentânea da plenitude de consciência. Em verdade, o crime decorrente da
paixão tem maior probabilidade de ser qualificado do que privilegiado, eis que o agente
contaminado por este sentimento poderá incorrer em alguma das situações que qualificam o
homicídio, que serão adiante abordadas (emboscada, emprego de meio insidioso, etc).
Ademais, a violenta emoção só será causa de diminuição se for causada por uma
injusta provocação proveniente da vítima. Repare que nem tudo que o agente considerar
provocação por parte da vítima pode ser considerado injusto, e se justa for a suposta
provocação, a emoção não se justifica, e não há privilégio. A vítima terminar um
relacionamento amoroso com o agente, por exemplo, não é provocação injusta – é direito
dela. Por isso, não pode ser jamais ser considerada provocação injusta, esta circunstância, e
se o agente matar a vítima por esta motivação, mesmo que estivesse realmente sob violenta
emoção, não poderá ser privilegiado, eis que sua motivação não foi causada por provocação
injusta da vítima.
A emoção só será considerada minorante se o crime ocorrer logo em seguida à
injusta provocação que a despertou. O critério para identificar este momentum é a
razoabilidade: será considerado logo após o tempo casuístico suficiente para que a violenta
emoção não tenha cessado. Se o rompante não estiver mais presente, não mais há que se
considerar o domínio da emoção como motivação do delito.
A provocação não se confunde com a agressão: se o agente mata para repelir
agressão, é claro que se está tratando de legítima defesa, e não mais de mero privilégio.
Por curiosidade, vale mencionar que a doutrina chama os crimes praticados sob
domínio ou influência da emoção de ações em curto-circuito, que são reações momentâneas
e impulsivas do indivíduo, que o levam a praticar o crime. Trata-se de crime de ímpeto,
manifestação súbita e violenta, causada por impulso.
Em síntese: se o homicídio de ímpeto for praticado em total domínio da emoção,
como visto, há o privilégio; se praticado sob influência da emoção, e não total domínio, há
a atenuante genérica. E se a emoção evidenciar patologia psiquiátrica capaz de ilidir a
imputabilidade, não há culpabilidade, e o agente será alvo de medida de segurança.

2.1.3. Homicídio qualificado

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A discussão inicial é se as qualificadoras são elementares ou circunstâncias do


delito, como visto. Para o STF, Nelson Hungria, e Zaffaroni, são elementares, e por isso se
comunicam aos coautores de delitos. O STJ se divide: a Quinta Turma entende que são
circunstâncias, e por isso, quando subjetivas, são incomunicáveis; a Sexta Turma, por seu
turno, entende que são elementares do crime.
Da Quinta Turma do STJ, entendendo que são circunstâncias, veja o REsp. 467.810,
e, abaixo, da Sexta Turma desta Corte, entendendo que são elementares, veja o HC 78.643:

“REsp 467810 / SP. DJ 19/12/2003 p. 576.


PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO
QUALIFICADO. JÚRI. QUESITAÇÃO. SENTENÇA. MOTIVO TORPE.
I - Os dados que compõem o tipo básico ou fundamental (inserido no caput) são
elementares (essentialia delicti); aqueles que integram o acréscimo, estruturando
o tipo derivado (qualificado ou privilegiado) são circunstâncias (accidentalia
delicti).
II - No homicídio, a qualificadora de ter sido o delito praticado mediante paga ou
promessa de recompensa é circunstância de caráter pessoal e, portanto, ex vi art. 30
do C.P., incomunicável.
III - É nulo o julgamento pelo Júri em que o Conselho de Sentença acolhe a
comunicabilidade automática de circunstância pessoal com desdobramento na
fixação da resposta penal in concreto.
Recurso provido.” (grifo nosso)

“HC 78643 / PR. DJe 17/11/2008.


HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE
QUALIFICADO. PRONÚNCIA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.
ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE. EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS.
PAGA OU PROMESSA DE RECOMPENSA. COMUNICABILIDADE AO
MANDANTE DO CRIME. MEIO CRUEL E RECURSO QUE
IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. REVOLVIMENTO DO
CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO
DA CULPA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 21 DO STJ. PRISÃO
PREVENTIVA. MOTIVAÇÃO IDÔNEA. RÉU QUE RESPONDEU PRESO AO
PROCESSO. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA
(DEGRAVAÇÃO DE CD). CERCEAMENTO DE DEFESA INOCORRENTE.
1. O Magistrado de primeiro grau procedeu adequadamente e de maneira concreta
a fundamentação acerca da admissibilidade das qualificadoras do crime de
homicídio, contendo a decisão impugnada sucinto juízo de probabilidade em
respeito à competência do Conselho de Sentença, inexistindo, assim, a alegada
violação do art. 93, IX, da Constituição Federal.
2. No homicídio mercenário, a qualificadora da paga ou promessa de recompensa
é elementar do tipo qualificado e se estende ao mandante e ao executor do crime.
3. No que diz respeito às qualificadoras do meio cruel e do emprego de recurso que
dificultou a defesa da vítima, verificar a existência ou não das referidas
circunstâncias, bem como aferir se o paciente, na qualidade de co-autor, tinha
conhecimento da forma de execução do crime, demandaria o reexame da matéria
fático-probatória, procedimento inviável em sede de habeas corpus.
4. A prisão preventiva, mantida em sede de pronúncia, encontra-se razoavelmente
motivada na necessidade da segregação do acusado para se preservar a ordem
pública, em razão de sua periculosidade, evidenciada pelas circunstâncias do
crime, bem como para assegurar a futura aplicação da lei penal.
5. Quanto à alegação de excesso de prazo na formação da culpa, incide, no caso, o
enunciado da Súmula nº 21 desta Corte, impondo-se notar que o julgamento do
paciente, pelo Tribunal do Júri, está marcado para o mês de novembro/2008.

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

6. A integralidade das gravações da prova oral produzida na instrução criminal


restou entregue a todos os acusados, mediante a disponibilização da cópia do
respectivo CD-ROM (reprodução de som e imagem), portanto, não há se falar em
cerceamento de defesa, até porque o art. 405, §§ 1º e 2º, do Código de Processo
Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, prevê a adoção desse sistema
informatizado.
7. Habeas corpus denegado.” (grifo nosso)

Em que pese minoritária, a tese de que as qualificadora são circunstâncias parece ser
a mais coerente, por questão de justiça: se um dos agentes age com motivo torpe,
qualificando o homicídio, e o coautor não tinha seu dolo contaminado por aquele motivo
torpe, será alcançado por ele mesmo assim, qualificando seu delito, o que parece ser uma
espécie de responsabilização penal objetiva, de fato. Debalde, a maioria entende que a
qualificadora é elementar, STF inclusive, como dito.
Outro aspecto a ser explicitado é a pluralidade de qualificadoras em um mesmo
delito. Havendo mais de uma qualificadora, como individualizar a pena? Supondo-se um
homicídio triplamente qualificado, assim se capitulará para fins de pena: o crime será
qualificado, por uma das qualificadoras encontradas, e as demais serão computadas como
agravantes genéricas, se previstas; se não forem previstas como agravantes, serão
computadas como circunstâncias judiciais. Veja que não há qualquer impropriedade nesta
dinâmica, porque as agravantes são subsidiárias às qualificadoras, como se vê no caput do
artigo 61 do CP, que diz que há o agravamento quando a situação não qualificar o crime:

“Circunstâncias agravantes
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem
ou qualificam o crime:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)”

Ora, no cúmulo de qualificadoras, a primeira qualifica o crime, e por isso não pode
ser considerada agravante, mas as demais, quantas forem, não estão servindo para qualificar
o crime – papel que já foi desempenhado pela primeira –, podendo se enquadrar
perfeitamente como agravantes.
Outro aspecto, este bem simples, diz respeito ao cúmulo entre qualificadora e
privilégio: é perfeitamente possível haver homicídio qualificado-privilegiado, desde que
sejam, as qualificadoras consideradas na casuística, de natureza objetiva. Não se pode
compatibilizar uma qualificadora subjetiva com um privilégio, porque todos os privilégios
são subjetivos. Por exemplo, não há como a motivação de um homicídio ser de relevante
valor moral e, ao mesmo tempo, torpe, ou fútil. Nada impede, porém, que haja a
combinação entre motivo relevante moralmente e a qualificadora de asfixia, por exemplo,
fazendo configurado o homicídio qualificado e privilegiado.
Divergência surge, quanto a este homicídio qualificado-privilegiado, em relação à
sua hediondez ou não. A esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência defende que
não é hediondo, ao seguinte argumento:a Lei 8.072/90 diz que é hediondo o homicídio
qualificado, desde 1994, como se vê no artigo 1°, I, deste diploma:

“Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou
tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)

Michell Nunes Midlej Maron 17


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de


extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art.
121, § 2o, I, II, III, IV e V); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)”

Por assim prever, não pode haver interpretação extensiva de norma gravosa, como o
é a norma que atribui hediondez ao delito. Onde se lê qualificado, leia-se somente
qualificado, e nada mais. Ademais, é claramente contra a mens legis incriminar como
hediondo uma eutanásia, que é crime de amor, se esta for praticada com emprego de
asfixia, por exemplo.
Mas há corrente minoritária, com parca adesão no TJ/RJ (Quarta e Oitava Câmaras
Criminais), e com Rogério Greco na doutrina, que defende que ainda que seja privilegiado,
o crime é qualificado, e por isso é hediondo – sem mais argumentos. É fraca esta corrente,
diga-se.
Em prol da não hediondez do homicídio qualificado-privilegiado, veja o HC 43.043
do STJ:

“HC 43043 / MG. DJ 06/02/2006 p. 352.


HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-
PRIVILEGIADO. PROGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE.
1. O homicídio qualificado-privilegiado não é crime hediondo, não se lhe
aplicando norma que estabelece o regime fechado para o integral cumprimento da
pena privativa de liberdade (Lei nº 8.072/90, artigos 1º e 2º, parágrafo 1º).
2. Ordem concedida.”

Passaremos à análise de cada uma das qualificadoras do homicídio, apresentadas no


§ 2° do artigo 121 do CP, adiantando que as qualificadoras dos incisos I, II e V são
subjetivas, e as dos incisos III e IV são objetivas. Vale apenas mencionar a seguinte
peculiaridade: em diversos dos incisos enunciadores das qualificadoras – especificamente
os incisos I, III e IV do dispositivo em questão –, o legislador lançou mão de instrumento
interpretativo denominado interpretação analógica.
A interpretação analógica não se confunde com a analogia. Para evitar lacunas, e
não cair na armadilha que o rol taxativo por vezes planta, o legislador exemplifica uma
situação, e, ao redigir, autoriza a extensão por interpretação analógica, o que é
perfeitamente possível. Entenda: para que se enquadre, uma determinada conduta, no
dispositivo que qualifica o crime pelo emprego de meios cruel, a interpretação analógica é
o que permite analisar o caso concreto – o meio efetivamente empregado – e concluir que
está subsumido àquele conceito penal aberto, qual seja, “meio cruel”. A mesma lógica se
passa na interpretação do “motivo torpe”, conceito aberto a ser suprido por interpretação
analógica, na casuística.
Este recurso é perfeitamente válido, porque se fosse necessária a expressa previsão
de todos os meios cruéis, por exemplo, o artigo teria que trazer escrita em si uma infinita
listagem de instrumentos e métodos de eliminar a vida humana de forma cruel, o que
tornaria a norma praticamente inviável, e, o que é pior, permitiria que alguma circunstância
que houvesse escapado à previsão legislativa, mas que fosse igualmente cruel, ficasse
alheia à qualificadora – pois o rol seria taxativo.
Repare que a técnica legislativa, aqui, é primorosa, porque se o legislador colocasse
como qualificadora apenas a expressão “meio cruel”, esta norma seria por demais aberta,
escapando à legalidade penal na vertente lex stricta. Por isso, ao redigir a norma com o

Michell Nunes Midlej Maron 18


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

emprego de exemplos de meios cruéis, para somente ao final do dispositivo abrir o conceito
para os demais meios que assim possam ser enquadrados, traçou um limite satisfatório à
interpretação analógica, tornando a norma adequada ao princípio da taxatividade penal.
Esta dinâmica fica bem perceptível, também, na qualificadora do “motivo torpe”.
Assim quis dizer o legislador: cometer o homicídio por motivo vil, abjeto, torpe, tal como a
paga e a promessa de recompensa, é crime qualificado. O exemplo do mercenário serve
como parâmetro para a interpretação analógica a ser feita em casos em que a motivação
possa ser considerada vil, torpe.
A motivação fútil, do inciso II do dispositivo em questão, porém, não precisa de
exemplificação, podendo ser amplamente aberta sem violar o princípio da taxatividade,
porque a futilidade é de constatação mais evidente, menos relativa, do que a torpeza.
Regra geral que precisa ser consignada é que toda qualificadora, seja ela
considerada elementar ou circunstância, só pode ser imputada ao agente a título de dolo:
não há como se qualificar um crime se a causa da qualificação for culposa. Veja um
exemplo: não pode o agente que, desejando matar a vítima com brevidade, com um tiro
fatal, acaba por causar incêndio, matando-a com o fogo, ser imputado pelo uso do fogo
como instrumento do crime – o fogo foi culposo. É mera observância À responsabilidade
penal subjetiva. Esta é uma regra geral para qualquer gravame da pena, de qualquer crime,
diga-se. Contudo, há uma só exceção: a única circunstância que dispensa dolo do agente
para fazer-se incidir é a reincidência, que se constata objetiva e automaticamente4.
Dito isto, vejamos cada uma das qualificadoras.

2.1.3.1. Paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe

O inciso I do § 2°do artigo 121 trata da paga ou da promessa de recompensa como


exemplos de motivos torpes. A paga, por óbvio, revela que há conteúdo econômico na
vantagem prometida ao mercenário. A recompensa prometida, por seu turno, não demanda
natureza econômica, podendo ser favorecimento de qualquer natureza. A lógica é simples:
se a recompensa a que se refere o texto normativo fosse necessariamente econômica, a
redação seria imprecisa, pois bastaria ao legislador reduzir-se à paga. Se diferenciou os
termos, usando paga e recompensa, é porque desejava dar amplitude à vantagem
motivadora do crime.
Entra na qualificadora da paga aquele que recebe o pagamento para cometer o
delito, e entra também aquele que efetua o pagamento ao mercenário, entendimento este
que é sólido na jurisprudência, que atribui nota de elementar às qualificadora, como se viu.
Aqui surge um imbróglio, porém: e se o pagador tiver também um motivo nobre? Veja um
exemplo: alguém pretende cometer eutanásia de ente querido, por compadecer-se de seu
sofrimento extremo – motivo moral relevante, como visto –, mas não tem coragem
suficiente para executar o ato; sendo assim, esta pessoa contrata um terceiro, mercenário,
que mediante paga executa o ato de matar o paciente. A motivação do matador direto é
torpe, mas a do mandante é moralmente relevante. Sendo a qualificadora elementar do
crime, como quer a maioria da doutrina, como solucionar esta situação? Cumular-se-ão,

4
A reincidência, mais tecnicamente, deveria ser considerada não como circunstância do fato, mas sim como
condição pessoal do agente, diferença que é significativa, tanto teórica como empiricamente, porque as
condições de caráter pessoal do agente não guardam qualquer pertinência com o fato em si, e não se
comunicam aos corréus, senão quando elementares do delito.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

para o pagador, a motivação torpe da paga, eis que inserto na elementar, e o privilégio da
relevância moral? Não há, de fato, solução a este paradoxo.
O STF, alheio a esta possibilidade, simplesmente diz que quem paga também se
insere na qualificadora, como se vê no HC 66.571:

“HC 66571 / ES - ESPÍRITO SANTO. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


CELIO BORJA. Julgamento: 20/06/1989. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA.
Publicação: DJ 04-10-1991.
Ementa - HABEAS CORPUS. Júri. Homicidio. Agravantes qualificativas. As
circunstancias determinantes do evento expressamente previstas no art. 121, par-2.,
incisos I e II, do Código Penal, são, em tese, conceitos subjetivos independentes e
podem coexistir em uma mesma situação fatica. IN CASU, não há
incompatibilidade ou contradição no reconhecimento simultaneo pelo Júri das
agravantes do motivo torpe e futil. O comportamento torpe, consistente em
homicidio cometido "mediante paga ou promessa de recompensa", atribuivel tanto
a quem paga quanto a quem recebe (art. 29, do mesmo estatuto penal), não exclui a
futilidade do motivo que determinou o mandante a contratar o crime. Ordem
denegada unânimemente.”

2.1.3.2. Motivo fútil

Antemão, vale dizer que há quem critique a eleição da futilidade como motivo
separado do torpe, porque há quem diga que seja, de fato, apenas mais uma forma de
torpeza – tese que tem, de fato, coerência, mas não prejudica a aplicabilidade da norma.
Motivo fútil é aquele banal, propugnado por circunstância de somenos importância.
Surge a questão: a ausência de motivo se enquadra na qualificadora do motivo fútil?
Parte da doutrina entende que a carência absoluta de motivo faz com que o homicídio seja
considerado simples, podendo, no máximo, ser tomada em conta no cálculo da pena-base.
Esta corrente defende que se o legislador exigiu algum motivo para qualificar, é violação à
legalidade promover a qualificação daquele que age sem motivo algum.
Pelo outro lado, há quem entenda que a falta de motivo é qualificada como motivo
fútil. Rogério Greco defende que se a lei qualifica o motivo banal, com muito mais certeza
é intenção do legislador qualificar aquele que mata sem motivo algum – o que seria um
“motivo futilíssimo”, por assim dizer. A discussão, porém, é ferrenha.

2.1.3.3. Emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou
cruel, ou de que possa resultar perigo comum

A intenção do legislador, ao imprimir esta qualificadora objetiva, foi de punir com


mais rigor todo homicida que se utilizar de meios considerados ainda mais reprováveis no
cometimento do crime. Novamente, se valeu da técnica da interpretação analógica,
exemplificando alguns meios que reputa insidiosos, cruéis ou de perigo comum.
Meio cruel é aquele que vai provocar na vítima um sofrimento superior ao
necessário para causar a morte. É claro que toda morte proporciona certo nível de
sofrimento à vítima, mas há meios empregados que causam mais dor do que os meios de
execução “ordinários”, por assim dizer. Por exemplo, o tiro, em regra, se dado em área
letal, causa sofrimento breve, mas pode o tiro ser meio cruel, quando dado em área não
letal, causando o sofrimento prolongado até a morte por perda de sangue. Da mesma forma,

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

a facada: pode matar brevemente, mas se forem desferidos golpes repetidos em áreas não
letais, será meio cruel. A asfixia foi um exemplo encontrado pelo legislador como cruel.
O meio insidioso é aquele disfarçado em seu aspecto maléfico. O melhor exemplo é,
de fato, o veneno, depositado às escondidas na bebida da vítima. Repare que o conceito de
veneno é amplo: é qualquer substância que cause dano ao organismo da vítima, seja ela
ordinariamente tóxica ou não. Por exemplo, um torrão de açúcar pode ser fatal para uma
vítima diabética.
Mas repare que o veneno só será qualificador se entrar na regra geral desta
qualificadora, e não pelo simples fato de ser veneno: só será qualificado se for insidioso,
cruel, ou gerar perigo comum. Entenda: se o veneno for ministrado À revelia da vítima, é
insidioso; se for causador de severas dores, é cruel; e se for posto, por exemplo, na caixa
d’água do edifício, gera perigo comum – todos os casos qualificando o crime. Se, ao
contrário, o veneno não causa dor alguma, é de ciência da vítima que o está ingerindo, e sua
aplicação não causa perigo a ninguém mais do que a própria vítima, não há qualificadora.
Vale dizer que basta uma das circunstâncias, e não seu cúmulo, para qualificar o crime:
pode a vítima saber do veneno, quando não será insidioso,por exemplo, mas se as dores
forem violentas, será cruel, e será qualificado.
Meio de execução que gera perigo comum é aquele que acarreta perigo a um
número indeterminado de pessoas, indiscriminadamente. Exemplo é o agente que,
pretendendo matar a vítima, incendia o prédio em que ela reside, periclitando todos os
vizinhos. Da mesma forma, o emprego de explosivo é geralmente causa de perigo comum.
A tortura merece especial atenção. Não há relação entre esta tortura, empregada
como meio qualificador de cometimento do homicídio, com o crime de tortura, da Lei
9.455/97. No homicídio, a tortura objetiva unicamente levar à morte; no crime de tortura, a
finalidade é diversa. Veja o artigo 1° da Lei 9.455/97:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:


I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe
sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de
segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não
previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-
las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão
de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,
adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a


interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o
cumprimento da pena em regime fechado.”

O delito de tortura não envolve, em nenhum momento, o dolo de matar a vítima. O


resultado morte que pode ocorrer do crime de tortura, é preterdoloso, ou seja, só pode ser
imputado ao agente na forma culposa, na forma do § 3° do artigo supra. Nada obsta, porém,
que possa haver concurso entre o crime de tortura e o de homicídio, em concurso material:
findando a tortura, que tinha alguma das finalidades deste artigo supra, o agente decide-se
por matar a vítima: esta morte, dolosa, é animada pelo dolo de matar, completamente
apartado do dolo de torturar e da finalidade anteriormente buscada na tortura. E pode ainda
ocorrer situação peculiar, qual seja, o concurso material entre tortura e homicídio
qualificado por emprego de tortura, sem configurar bis in idem: o agente, inicialmente,
tortura a vítima com uma das finalidades do artigo supra. Em seguida, decide-se por matá-
la, e para tanto se vale do uso de mais tortura. Invertido o dolo, a tortura usada desde a
inversão passa a qualificar o crime, sem desnaturar a tortura inicial, movida por dolo
diverso.
E mais: pode haver ainda concurso formal entre tortura e homicídio qualificado por
tortura, quando, no mesmo ato, o agente tem dolo de matar por meio de tortura, e tem
também o dolo puro de torturar, com uma das finalidades do artigo supra (obter
informações, por exemplo).
Ainda quanto às qualificadoras, é interessante reparar que são elas que identificam o
exato momento do início da execução do crime. É quando se inicia a tortura, as práticas
dolorosas destinadas a matar, por exemplo, que tem início a execução do homicídio.

2.1.3.4. Cometido com traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou
torne impossivel a defesa do ofendido

Esta qualificadora é, de fato, bastante aberta, sobremaneira ao se referir a qualquer


meio que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima.
É importante não se confundir o emprego de meios de execução praticamente
irresistíveis, como armas de fogo, com a incidência de dificultar ou impossibilitar a defesa.
Isto porque estes meios de cometimento são o próprio meio de execução, e o que qualifica
o crime, neste aspecto, é a atuação diversa do meio de execução que, de alguma forma,
tenha reduzido a capacidade de resistência. Do contrário, não haveria homicídio que não
fosse inserto nesta qualificadora, porque, em última análise, qualquer meio de execução que
causou a morte se demonstra irresistível – ou a vítima teria resistido, e não haveria morte.
Alguns defendem que a surpresa da vítima pode ser considerada forma de dificultar
a sua defesa, qualificando o crime, pois mesmo o agente declarando para a vítima que a
matará, há a esperança de que não haverá a morte, por parte da vítima. Contudo, não parece
entendimento mais acertado, porque não há morte sem que haja surpresa, de fato. A
surpresa, para qualificar o crime, precisa ser real, como ocorre nos exemplos de que se
valeu o legislador – traição, emboscada, dissimulação.

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A traição é a quebra da confiança que a vítima depositava no homicida. Quem


confia não se protege, ficando mais exposto ao ataque, sendo, portanto, surpreendido
violentamente pelo golpe, não podendo esboçar qualquer defesa.
A emboscada é a tocaia, a espreita, que causará justamente a surpresa da vítima,
dificultando ou impedindo que esta tenha meios de se defender.
Dissimulação é disfarce, de qualquer meio que, novamente, surpreenda a vítima.
Como exemplo, o assassino que se veste como um entregador, a fim de que a vítima abra a
porta de sua casa para receber a encomenda.
A situação que dificulta ou impossibilita a defesa da vítima pode sequer ter sido
criada pelo homicida, mas ele se aproveita de tal circunstância para cometer o delito,
qualificando-o da mesma forma. Por exemplo, a vítima que se encontrava dormindo é
indefesa.

2.1.3.5. Cometido para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de


outro crime

O crime de homicídio, neste caso, é cometido com finalidade além da própria morte
da vítima. Não deixam, estas finalidades, de ser motivos torpes, mas há o enquadramento
específico neste artigo.
A primeira finalidade especial é assegurar a execução de crime que ainda está por
acontecer, ou seja, é o cometimento do crime para garantir que o outro crime, futuro, possa
ser praticado. A doutrina diz que há conexão teleológica entre o homicídio e o crime que
está no porvir, na forma do artigo 76, II, do CPP, inserto no termo “facilitar”:

“Art. 76. A competência será determinada pela conexão:


(...)
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as
outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
(...)”

Quando o crime já tiver ocorrido, precedendo ao homicídio, e a morte tem por


motivo a ocultação do crime anterior, a impunidade do agente que o praticou, ou garantir o
proveito que aquele crime gerou, se está incidindo nesta qualificadora. A conexão entre os
delitos, aqui, é chamada consequencial, em que o homicídio é consequência do crime já
praticado. É também prevista no mesmo inciso II do artigo 76 do CPP, supra, inserindo-se
nas demais hipóteses.

2.1.4. Causa de aumento de pena

A parte final do § 4° do artigo 121 fala que se a vítima do homicídio for menor de
quatorze anos ou maior de sessenta, a pena se aumenta de um terço. Na data do aniversário,
porém, a majorante não se aplica, porque a leitura da agravante deve ser restritiva – e o
legislador não falou em idade “igual ou menor de quatorze anos”, ou “igual ou maior de
sessenta anos”.
O referencial é o dia do aniversário. No dia seguinte, a idade é maior; no anterior, é
menor.

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A idade da vítima será aferida no momento da ação, pela mera observância da teoria
da atividade. É no momento do cometimento do delito que se verifica a idade da vítima,
ainda que a morte ocorra posteriormente, com maior idade.
O Estatuto do Idoso não operou qualquer alteração nestas circunstâncias penais, que
permanecem inalteradas.

Casos Concretos

Michell Nunes Midlej Maron 24


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Questão 1

CAIO vai ao supermercado comprar mantimentos para um churrasco e, ao


retornar para o estacionamento do estabelecimento comercial, percebe que sua esposa
MÉRCIA está beijando a boca de TÍCIO, deficiente físico, numa demonstração clara de
que tem um relacionamento extraconjugal. Enlouquecido com esta visão, CAIO pega o
álcool que havia comprado e derrama em TÍCIO, riscando a seguir um fósforo. O fogo
logo se alastra queimando a vítima que, não suportando a gravidade dos ferimentos,
acaba falecendo. Pergunta-se:
a) Qual a conduta típica praticada por CAIO?
b) É possível haver homicídio qualificado e privilegiado?
c) O crime é hediondo?
d) Se o fogo se alastrasse e causasse danos ao estabelecimento comercial, a
situação se modificaria?
e) Poderia CAIO alegar legítima defesa da honra?
f) Se ao invés de fogo, CAIO tivesse utilizado veneno, haveria a qualificadora do
homicídio?
g) Se CAIO tivesse levado TÍCIO para um local e o torturasse até a morte, teria
praticado o crime da Lei 9.455/97?
h) Se CAIO já soubesse do relacionamento amoroso e tivesse planejado a morte de
TÍCIO porque sabia que ele era testemunha importante contra ele, CAIO, num
processo que respondia por furto de automóvel, a situação se alteraria?

Resposta à Questão 1

a) Trata-se de homicídio duplamente qualificado e singularmente privilegiado,


capitulado no artigo 121, § 1° c/c § 2°, III e IV.
b) Sim, desde que a qualificadora seja de natureza objetiva, eis que as causas de
privilégio são todas subjetivas, neste crime.
c) Para a maior corrente, não: a tipicidade estrita não fala em homicídio qualificado-
privilegiado, mas apenas em qualificado, e, além disso, a mens do diploma da
hediondez não alcança aquele que pratica o crime subjetivamente movido por uma
das causas de privilégio.
d) Se o agente tem também o dolo de causação do incêndio, poderia sua conduta até
mesmo subsumir-se ao artigo 250 do CP, em concurso formal. E veja que o fogo
ainda estaria qualificando o homicídio, porque é meio cruel (e não pelo perigo
comum), sem configurar bis in idem.

“Incêndio
Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o
patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.”

e) A legítima defesa da honra é possível, em abstrato: a honra é um bem a ser


defendido. Contudo, a morte não é um meio de defesa proporcional, porque a
desproporção entre os bens jurídicos, vida e honra, é demasiada. Veja que se sabe
que a legítima defesa não exige a ponderação entre os bens conflitantes, como

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ocorre no estado de necessidade, mas a gritante desproporção impede sua alegação


– há o chamado excesso na causa, que obsta a legitimidade da defesa.
f) Depende das qualidades do veneno: se for insidioso ou cruel, ou causar perigo
comum, sim.
g) Não: seu dolo é de matar, pelo que incide na qualificadora do homicídio, e não no
crime de tortura.
h) Sim: o privilégio desapareceria, porque não mais seria conduzido pela emoção, e
sim por motivo torpe, incidindo também na qualificadora do inciso II do § 2° do
artigo 121 do CP.

Questão 2

Capitule os seguintes fatos, com suas agravantes e/ou atenuantes, e explicitando as


causas gerais/especiais de aumento/diminuição de penas acaso observáveis: Cinco
pessoas - AQUIBERTO, 32 anos; BENELÔNIO, 71 anos; CERIALDO, 17 anos;
DELEUTÉRIO, 20 anos; e EUSTÁQUIO, 39 anos, intitulando-se "AS - Anjos Saneadores",
e objetivando promover um "saneamento social" com a "limpeza da cidade" pela
eliminação de sua população miserável de rua, em dias diversos de julho e agosto de 2004,
matam a pauladas, na calada da noite e quando as vítimas dormiam, 6 pessoas, causando
lesões graves em outras 8, das quais 2 vieram a morrer, em datas subseqüentes às
agressões, uma delas por infecção hospitalar. Duas das outras vítimas fatais tinham mais
de 65 anos de idade, e uma delas tinha menos de 18 anos, além de encontrar-se grávida,
no sexto mês de gestação, certo que o feto não sobreviveu.

Resposta à Questão 2

Cerialdo não tem tratamento criminal, sendo encaminhado à vara da criança e da


juventude para que sejam-lhe aplicadas as medidas sócio-educativas cabíveis pelo ato
infracional.
Para os demais, há, de início, a associação para cometimento de crimes hediondos,
incidindo a previsão do artigo 8º da Lei 8.072/90:

“Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código
Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando
ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a
dois terços.”

Para todos, também, incide a qualificadora do meio cruel, pelas pauladas, e por
estarem as vítimas dormindo, indefesas, a qualificadora da impossibilidade de defesa da
vítima – previstas nos incisos III e IV do § 2° do artigo 121.
Incide, igualmente, a motivação torpe, porque se trata de grupo de extermínio.
A vítima que morreu pela infecção ainda é imputável aos agentes, por estar este
risco inserido no desenrolar das consequências do crime.
Duas das vítimas fatais inserem os criminosos no § 4° do artigo 121 do CP,
majorando a pena pela idade.

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A gravidez de uma das vítimas, se evidentemente conhecida pelos criminosos, como


parece ter sido – estava no sexto mês de gestação –, faz imputável o crime de aborto, do
artigo 125 do CP.
Há, portanto, oito mortes e seis lesões corporais imputáveis a todos os agentes,
sendo destas duas agravadas, e um aborto. Particularizando a capitulação, assim se verifica:
Aquiberto: 121, § 2°, I, III e IV, do CP, seis vezes; 121, § 2°, I, III e IV, c/c § 4° do
CP, duas vezes; e 121, § 2°, I, III e IV, c/c 14, II, do CP, seis vezes; e 125, uma vez, tudo
combinado com o artigo 8°, da Lei 8.072/90.
Benelônio: 121, § 2°, I, III e IV, do CP, seis vezes; 121, § 2°, I, III e IV, c/c § 4° do
CP, duas vezes; e 121, § 2°, I, III e IV, c/c 14, II, do CP, seis vezes, e 125, uma vez, tudo
combinado com o artigo 8°, da Lei 8.072/90, e ainda com o artigo 65, I, do CP, por sua
idade.
Deleutério: 121, § 2°, I, III e IV, do CP, seis vezes; 121, § 2°, I, III e IV, c/c § 4° do
CP, duas vezes; e 121, § 2°, I, III e IV, c/c 14, II, do CP, seis vezes, e 125, uma vez, tudo
combinado com o artigo 8°, da Lei 8.072/90, e ainda com o artigo 65, I, do CP, por sua
idade.
Eustáquio: 121, § 2°, I, III e IV, do CP, seis vezes; 121, § 2°, I, III e IV, c/c § 4° do
CP, duas vezes; e 121, § 2°, I, III e IV, c/c 14, II, do CP, seis vezes; e 125, uma vez, tudo
combinado com o artigo 8°, da Lei 8.072/90.
O concurso de crimes, aqui, é material, mas pode haver quem entenda que se trata
de continuidade delitiva, o que alteraria a fixação da pena em grande monta.

Questão 3

JOSÉ viveu em concubinato com RAQUEL por quatro anos, sendo que dessa união
nasceram três filhos. Durante o período em que moravam juntos, ele lhe infligia maus
tratos, agredindo-a. Após a separação do casal, JOSÉ reuniu-se com a vítima no antigo
lar, tentando a reconciliação, e, após ouvir de RAQUEL que ele era um "corno" e que os
filhos que ele acreditava serem seus, na verdade, não eram, estrangulou a vítima, com
vontade livre e consciente de matá-la. Isto feito, abriu uma cova rasa na residência e
enterrou-a no local, sendo este coberto com cimento. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação do fato?
b) Tal crime é hediondo? Fundamente.

Resposta à Questão 3

a) Cometeu homicídio privilegiado pelo domínio da emoção, e qualificado pelo


emprego da asfixia, meio cruel. Além disso, em concurso formal, cometeu o
crime de ocultação de cadáver. Sua capitulação, então, fica assim: artigo 121, §
1°, c/c § 2°, III, e c/c 211 do CP.
b) Para a maior corrente, não: a tipicidade estrita não fala em homicídio
qualificado-privilegiado, mas apenas em qualificado, e, além disso, a mens do
diploma da hediondez não alcança aquele que pratica o crime subjetivamente
movido por uma das causas de privilégio, mas há corrente que entende
hediondo, por não deixar de ser qualificado. A respeito, veja a Apelação

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Criminal 2004.050.04059, e a Apelação Criminal 2004.050.02057, do TJ/RJ,


retratando a divergência:

“Processo : 2004.050.04059. 1ª Ementa – APELACAO. DES. IVAN CURY -


Julgamento: 01/03/2005 - QUARTA CAMARA CRIMINAL. HOMICIDIO
QUALIFICADO. RECONHECIMENTO DO PRIVILEGIO. CRIME
HEDIONDO. NAO DESCARACTERIZACAO. REGIME INTEGRALMENTE
FECHADO.
APELAÇÃO CRIMINAL. PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI.
HOMICÍDIO QUALIFICADO / PRIVILEGIADO. REGIME DE
CUMPRIMENTO INICIALMENTE FECHADO. Recurso do MP, que entende que
em se tratando de Homicídio Qualificado, praticado por meio cruel, asfixia,
embora também reconhecido pelo Conselho de Sentença o Privilégio, que tal fato
não descaracteriza o crime hediondo, pois o homicídio qualificado será sempre
hediondo, independentemente da aplicação da redução da pena. Desta forma, o
regime de seu cumprimento há que ser integralmente fechado, não comportando a
progressão concedida pelo Magistrado. Com razão o MP, pois o reconhecimento
do privilégio apenas reduziu de um sexto a pena aplicada, sem afastar o caráter
hediondo do delito. Recurso provido.”

“Processo : 2004.050.02057. 1ª Ementa – APELACAO. DES. MAURILIO


PASSOS BRAGA - Julgamento: 28/09/2004 - SETIMA CAMARA CRIMINAL.
HOMICIDIO QUALIFICADO. PRIVILEGIO. CRIME HEDIONDO. NAO
CARACTERIZACAO. RECURSO PROVIDO.
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO
PRIVILEGIADO-QUALIFICADO. Os crimes, de ordinário, não têm a natureza de
hediondos, sendo a Lei nº 8072/90 uma regra de exceção e, como tal, de
interpretação restritiva, notadamente em tema penal, não se podendo estender a
definição de homicídio qualificado à figura de homicídio privilegiado-qualificado,
na medida em que isso traduziria alargamento de uma regra exceção. Afastada a
hediondez, imperativa a modificação do regime prisional para o inicialmente
fechado. Recurso conhecido e provido.”

Tema II

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Homicídio II. 1) Homicídio culposo: a estrutura típica. O crime culposo majorado. A vítima menor de 14
anos. 2) O perdão judicial. 3) Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.

Notas de Aula5

1. Homicídio culposo

Antes de tudo, vale tratar do esvaziamento, em termos estatísticos, provocado no


homicídio culposo, do artigo 121, § 3°, do CP, pelo crime de homicídio culposo de trânsito,
do artigo 302 do CTB:

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:


Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a
permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor,
a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima
do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de
transporte de passageiros.”

A maior incidência de mortes em razão da quebra do dever de cuidado vem do


trânsito, decerto. É preciso atenção a um detalhe, porém: o artigo 302 do CTB só se aplica
quando o agente estiver na direção de veículo automotor, ou seja, se o acidente ocorre com
veículos, mas sem que haja o condutor na direção, não há o crime deste dispositivo, e sim o
do artigo 121, § 3°, do CP. Veja um exemplo esdrúxulo: agente estaciona na ladeira, mas
não aciona o freio de mão; o carro desce a ladeira sozinho, e acerta um passante, que morre.
O crime é de homicídio culposo comum, e não de trânsito.
Note que o homicídio culposo de trânsito não precisa ocorrer na via pública para se
consumar: não há este elemento normativo do tipo, como o há no crime de embriaguez ao
volante, do artigo 306 do CTB:

“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração
de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre
distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado
neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)”

A morte no homicídio culposo deve resultar da quebra do dever de cuidado, ou seja,


deve decorrer do descuido. A relação de causalidade no crime culposo é diferente da do
crime doloso. Grosso modo, no crime doloso, o nexo é determinado pela ação, que causa o

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Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 20/10/2009.

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resultado – ação, somada a nexo causal, é igual ao resultado. Na culpa, o que se passa é a
ação descuidada, somada ao nexo causal, que enseja o resultado.
No crime doloso, o primeiro método de verificação do nexo causal é o processo
hipotético de eliminação, como se sabe: removendo-se a conduta do agente, se o resultado
desaparece, é porque a conduta foi causadora deste. No crime culposo, não se elimina a
ação do agente: se elimina a falta de cuidado. Veja: se o agente vinha dirigindo o veículo a
cento e vinte quilômetros por hora, em via em que o limite é cem, e atropela e mata alguém,
o nexo será determinado não pela hipotética eliminação da ação inteira do agente – dirigir o
veículo –, mas sim pela eliminação do seu descuido, da quebra do dever de cuidado. Assim,
o processo hipotético de eliminação deverá cogitar se este motorista, dirigindo a cem
quilômetros por hora, ou seja, dentro do limite de velocidade exigido como cautela,
deixaria de atropelar a vítima. Se a resposta for positiva, há nexo causal entre sua quebra de
dever de cuidado, ou seja, a superação do limite de velocidade, e o resultado. Se a resposta
for negativa – ainda que viesse a cem por hora a vítima seria atropelada –, não há nexo
entre o descuido e a morte, não podendo o agente ser responsabilizado por este resultado.
Destarte, vê-se que no crime culposo é o descuido que é vedado, e não a ação em si.
É a quebra do dever de cautela que, se causar o resultado, faz o agente imputável.
Revejamos os §§ 3° e 4° do artigo 121 do CP:

“(...)
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4° No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências
do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
(...)”

A doutrina entende desproporcional esta pena. Mesmo que ausente dolo de acabar
com a vida humana, a reprimenda àquele que o faz por inobservar dever de cuidado é muito
branda.
Quando a culpa causadora da morte for resultado de inobservância de regra técnica
de profissão, arte ou ofício, a pena será aumentada de um terço, como diz o § 4°, supra.
Trata-se do reconhecimento de uma maior gravidade no descumprimento do dever de
cuidado, uma maior intensidade na culpa, por assim dizer. Note que este dispositivo não
significa imperícia: imperito é aquele que não domina a técnica quando deveria dominá-la.
No caso, o agente domina a técnica, mas deixa de observá-la por descuido.
Também há o aumento se o agente deixar de prestar imediato socorro à vítima, ou
não procurar diminuir as conseqüências do seu ato. A omissão, neste consequente, deve ser
dolosa, não podendo o agente ter a pena majorada se deixou de prestar socorro porque
sequer percebeu que havia causado o dano. Cogitar-se-ia se não seria caso de aplicação do
artigo 13, § 2°, “c”, do CP, fazendo o agente responder pela omissão a título de dolo, ou
seja, o homicídio seria doloso por omissão:
“Relação de causalidade(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

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Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a


quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado
não teria ocorrido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
Relevância da omissão(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para
evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
(...)
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

O artigo supra não se aplica, à omissão dolosa no crime culposo, pela simples
observância da regra da especialidade: a norma do artigo 121, § 4°, do CP, é especial em
relação à do artigo 13. Não houvesse a previsão do artigo 121, a atitude da omissão do
socorro dolosa no homicídio culposo seria homicídio doloso, porque o agente se tornatria
garantidor da vítima.
Há uma outra polêmica: se a vítima teve morte instantânea, o agente que se omite
em socorrê-la incidirá na majorante? Há duas correntes sobre o tema: a primeira, mais
coerente, entende que a pena não poderá ser aumentada, porque o artigo 17 do CP esclarece
que é preciso que haja o bem jurídico presente para que haja qualquer repercussão penal, ou
o crime é impossível: se a vítima estava morta, não há como se majorar o crime porque se
omitiu, o agente, na proteção da vida – pois vida não havia.

“Crime impossível (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por
absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.(Redação
dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

E frise-se que sequer é necessário que o agente soubesse da morte instantânea da


vítima para que não responda pela omissão dolosa no socorro, porque o crime impossível é
de constatação objetiva: a impropriedade do objeto é objetivamente constatada, a fim de
afastar o crime.
Esta corrente exposta é majoritária na doutrina. O STF, ao lado de doutrina mais
conservadora, porém, tem outro posicionamento, como se vê no HC 84.380:

“HC 84380 / MG - MINAS GERAIS. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


GILMAR MENDES. Julgamento: 05/04/2005. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação: DJ 03-06-2005.
EMENTA: Habeas Corpus. 2. Homicídio culposo agravado pela omissão de
socorro. 3. Pedido de desconsideração da causa de aumento de pena prevista no art.
121, § 4o, do Código Penal, para que se opere a extinção da punibilidade, em face
da conseqüente prescrição da pretensão punitiva, contada pela pena concreta. 4.
Alegação de que, diante da morte imediata da vítima, não seria cabível a incidência
da causa de aumento da pena, em razão de o agente não ter prestado socorro.
Alegação improcedente. 5. Ao paciente não cabe proceder à avaliação quanto à
eventual ausência de utilidade de socorro. 6. Habeas Corpus indeferido.”

Dispõe o STF que não cabe ao réu decidir sobre a prestação do socorro, devendo
cumprir à risca a determinação legal para que o faça, mesmo porque há casos em que a
morte não está evidente.

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Poder-se-ia, aqui, trabalhar ainda com uma regra de interpretação autêntica, dada
pelo legislador, na leitura do artigo 304 do CTB:

“Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar


imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa,
deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir
elemento de crime mais grave.
Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo,
ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com
morte instantânea ou com ferimentos leves.”

Ganha reforço, ali, a vertente do STF, porque o legislador deixou claro que o
socorro é sempre devido. O legislador exige atenção ao dever moral de solidariedade.
Apesar da força destes argumentos, é difícil se entender que seja superada a desnecessidade
de socorro a um cadáver que teve morte instantânea, pois a lógica do crime impossível é
inegável.
Veja que o socorro exigido é formal, e não eficaz: a lei não exige que o socorro
tenha sucesso, salvando a vítima; exige apenas que o agente não se omita. O artigo 302 do
CTB, já transcrito, também conta com esta agravante.
Pelo ensejo, vale comentar brevemente sobre este artigo 304 do CTB, supra: trata-se
de hipótese peculiar, em que o condutor do veículo, que se envolveu no acidente sem
qualquer responsabilidade, deve ser responsabilizado pela omissão dolosa no socorro à
vítima. O terceiro, completamente alheio ao acidente, que se omitir, também tem
responsabilidade criminal, mas na forma do artigo 135 do CP:

“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

O § 4° do artigo 121 do CP ainda fala que há aumento da pena se o agente fugir para
evitar sua prisão em flagrante. Esta posição legislativa é criticável, porque em um sistema
em que não se obriga o agente a produzir prova contra si mesmo, estaria havendo aqui a
tipificação da fuga. Está, o dispositivo, exigindo que o agente colabore com a persecução
penal de si mesmo. A mesma crítica se repete, com maior afinco, no artigo 305 do CTB
(pois ali se está tratando de responsabilidade civil):

“Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à


responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

1.1. Perdão judicial

Reveja o § 5° do artigo 121 do CP:

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“(...)
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se
as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)”

O perdão judicial tem natureza jurídica de causa de extinção da punibilidade, e a


sentença que o concede tem natureza meramente declaratória desta extinção, e não
condenatória, apesar de haver divergentes que entendem-na condenatória, porque só se
perdoaria aquilo que foi reconhecidamente culposo. Veja a súmula 18 do STJ:

“Súmula 18, STJ: A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da


extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório.”

É mais razoável a tese do STJ, porque se a sentença não impõe pena, não há
exercício de jus puniendi, não há como se falar em condenação.
De qualquer forma, o perdão judicial é uma causa de extinção de punibilidade
realmente sui generis, porque é a única que não impede a análise do mérito pelo julgador.
Nos casos em que o perdão judicial é flagrante, o MP sequer denuncia, em regra,
por carência de justa causa. Mesmo se se entender que a sentença será condenatória, ainda
assim falta justa causa ao MP, porque o jus puniendi estará obstado de ser exercido.
Tampouco a busca do título executivo para indenizabilidade da vítima justifica a
propositura da ação, neste caso, porque o processo penal não se presta a tanto – este é um
efeito da condenação, e não o objetivo da persecução penal.
Este § 5° se aplica ao crime de homicídio culposo de trânsito, segundo o STJ, mas a
questão chegou a levantar polêmica. Veja: o CTB previa expressamente o perdão judicial
no artigo 300, mas este dispositivo foi vetado. Se assim ocorreu, entendeu-se que o
legislador não queria que o homicídio culposo de trânsito pudesse receber o perdão judicial.
Ocorre que, nas razões do veto, o que o motivou não foi esta vontade em vedar o perdão,
mas sim a má redação do dispositivo. Veja a redação original e as razões do veto:

“Art. 300. Nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa, o juiz
poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem,
exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou
afim em linha reta, do condutor do veiculo."
Razões do veto:
‘O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser
vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo
129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente.’”

Está claro que a restrição objetiva do artigo era absolutamente estúpida, pelo que o
veto foi ótima providência, e a intenção foi justamente fazer aplicável o perdão do CP ao
CTB, o que fica autorizado pelos artigos 291 do CTB e 12 do CP:

“Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos


neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de
Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº
9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 33


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“Legislação especial (Incluída pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 12 - As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei
especial, se esta não dispuser de modo diverso. (Redação dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)”

Há também outra tese, igualmente procedente, que permite a aplicação do perdão


aos crimes do CTB, que se fundamenta no conceito de crime remetido: trata-se, o crime
remetido, no direcionamento que um dispositivo faz a outro. E é exatamente isto que a (má)
redação do artigo 302 do CTB faz: ao dispor que o crime é “praticar homicídio culposo na
direção de veículo automotor”, e não “matar alguém culposamente na direção de veículo
automotor” (como seria mais correto, diga-se), o legislador remeteu diretamente ao artigo
121 do CP, fazendo-o plenamente aplicável, em todos os seus dispositivos, desde que não
sejam incompatíveis, e o perdão é perfeitamente compatível.
Sob um ou outro fundamento, o perdão judicial é aplicável ao CTB.
Ainda sobre o perdão judicial, há quem diga, equivocadamente, que o artigo 120 do
CP reforçaria a tese de que a sentença é condenatória. Veja:

“Perdão judicial
Art. 120 - A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para
efeitos de reincidência. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Ora, dizem eles, se a sentença de perdão fosse meramente declaratória, não


precisaria uma norma vir afastar seus efeitos sobre a reincidência, pois estes efeitos
naturalmente não se produziriam. Ocorre que o que este dispositivo fez foi, de fato,
simplesmente declarar o óbvio, e por razões nada técnicas: a topografia do CP, após a
reforma de 1984, restaria absolutamente alterada se este artigo não existisse, porque a parte
geral findaria no artigo 119. Assim, para não alterar toda a numeração da parte especial, o
que seria culturalmente prejudicial, o legislador inseriu norma realmente desnecessária, que
não acrescenta ou diminui nada ao ordenamento. Em verdade, porém, quem defende a
natureza condenatória desta sentença tem aqui um argumento.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

MÁRIO, médico anestesista, assistia RAFAEL durante operação de correção do


septo nasal. Ao final da cirurgia, ministrou o medicamento Tilatil sem a cobertura de
corticóides, o que levou o paciente a arritmia, seguida de parada cardíaca, em decorrência
de reação alérgica - o paciente morreu em conseqüência do choque anafilático. MÁRIO
havia realizado visita pré-anestésica a RAFAEL, durante a qual analisaram-se os exames
complementares, inteirando-se o médico do "risco cirúrgico", dos dados clínicos, das
alergias de RAFAEL e do uso de Hidrocin nasal (corticóide) que o mesmo vinha fazendo
nos últimos meses. Na hipótese específica do medicamento referido, há divergência na
doutrina médica: há posição no sentido da desnecessidade da cobertura de corticóides
quando do uso de Tilatil, se o paciente vinha fazendo uso de Hidracin via nasal (já que só
haveria obrigatoriedade, para essa corrente, se o paciente estivesse fazendo uso anterior
de corticóides via injetável ou oral); em sentido diametralmente oposto, há também
aqueles que entendem pela obrigatoriedade da cobertura de corticóides, ainda que o uso
anterior haja sido por via nasal. Pergunta-se: MÁRIO cometeu algum crime? Fundamente.

Resposta à Questão 1

Se a literatura científica embasa duas correntes médicas, não há como se imputar ao


médico qualquer responsabilidade a título de culpa. A medicina é atividade de riscos
permitidos, pelo que o erro que se situa nesta esfera de abrangência não implica em
responsabilidade.
No caso concreto, o médico chegou a ser condenado em duas instâncias, sendo
absolvido em embargos infringentes. Veja a Apelação Criminal 2002.050.05879, seguida
dos Embargos Infringentes 2003.054.00156:

“Processo: 2002.050.05879. 1ª Ementa – APELACAO. DES. VALMIR DE


OLIVEIRA SILVA - Julgamento: 24/06/2003 - TERCEIRA CAMARA
CRIMINAL. HOMICIDIO CULPOSO. SERVICOS DE ANESTESISTA.
IMPERICIA. BIS IN IDEM. NAO CONFIGURACAO.
Homicidio culposo ocorrido em clinica de cirurgia praticado por medico
anestesista que assistia a vitima durante operacao de correcao do septo nasal.
Ministracao do medicamento Tilatil sem a devida cobertura de corticoides,
ignorando-se as advertencias do fabricante. Anamnese da vitima conhecida do reu.
Inobservancia do dever objetivo de cuidado por parte do profissional. Incidencia da
causa de agravacao da pena. Nao constitui "bis in idem" a imputacao de homicidio
culposo praticado com inobservancia de regra tecnica de profissao se o agente, no
exercicio da medicina, deixa de adotar providencia exigida no desempenho de seu
mister, porquanto a causa de agravacao decorre de um "plus" de culpabilidade que
e' acrescida a falta do dever de cuidado objetivo do profissional. Demonstrado que
o acusado Luiz Carlos, no final da cirurgia realizada na vitima, administrou nela o
medicamento Tilatil sem proceder `a devida cobertura de corticoides, quando a
regra tecnica recomendava, ignorando as advertencias do fabricante contida na
bula, assumindo risco desnecessario que culminou por levar o paciente a arritmia
seguida de parada cardiaca em decorrencia da reacao alergica, proporcionando o
exito letal, resultado perfeitamente previsivel e que poderia ser evitado, tivesse
atuado observando regra tecnica da profissao, inquestionavel apresenta-se o
acolhimento da pretensao punitiva, merecendo tambem confirmacao a sentenca na
parte em que absolveu o acusado Geraldo Chini, que na condicao de medico da
familia da vitima elaborou o laudo de risco cirurgico, pois nenhuma prova existe
de que tenha ele concorrido para o resultado letal. Recursos improvidos. Vencido o
Des. Marcus Basilio.”

Michell Nunes Midlej Maron 35


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Processo: 2003.054.00156. 1ª Ementa - EMBARGOS INFRINGENTES E DE


NULIDADE. DES. FRANCISCO DE ASSIS PESSANHA - Julgamento:
28/09/2004 - SETIMA CAMARA CRIMINAL. HOMICIDIO CULPOSO. ERRO
MEDICO. FALTA DE PROVA. ABSOLVICAO.
EMBARGOS INFRINGENTES. HOMICÍDO CULPOSO. ERRO MÉDICO.
FALTA DE PROVA TÉCNICA SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO.
ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. A caracterização da responsabilidade criminal
decorrente de conduta culposa do profissional médico exige comprovação técnico-
científica extreme de dúvida, de modo que o conjunto probatório aponte para uma
única direção. Diante da insuficiência de provas e, mais do que isto, à luz dos
pareceres e artigos favoráveis ao acusado, impõe-se a sua absolvição. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO.”

Questão 2

CAIO resolveu limpar sua arma de fogo no horário de seu seriado preferido da
televisão. Distraído com a programação televisiva, não prestou a devida atenção no
manejo da arma e acabou efetuando um disparo de arma de fogo, que atingiu seu filho de
13 anos, que com ele assistia ao programa, matando-o. Assustado, embora o filho ainda
estivesse com vida, resolveu não socorrê-lo, porque não gostava de ver sangue. Pergunta-
se:
a) Qual o crime praticado por CAIO?
b) E se ele não tivesse percebido que tinha atingido o filho, mas tivesse suposto que
um cachorro é que fora atingido, alteraria a capitulação?
c) E se o projétil tivesse atingido um estranho que andava naquela rua, matando-o
e, além disso, tivesse ricocheteado em tal estranho e viesse a atingir a perna de
CAIO?
d) E se, além do filho, o mesmo projétil tivesse atingido também o estranho que
passava na rua, matando-o?

Resposta à Questão 2

a) Caio cometeu homicídio culposo, do artigo 121, § 3°, mas com a agravante do §
4°, pela omissão do socorro. O perdão judicial é cabível.
b) Apenas a omissão de socorro será afastada.
c) Haveria apenas homicídio culposo do estranho transeunte. Não caberá perdão
judicial.
d) Haveria dois crimes de homicídio em concurso formal, do filho e do estranho. O
primeiro, comporta perdão judicial; o segundo, não.

Tema III

Induzimento, Instigação ou Auxílio ao Suicídio. O Infanticídio. 1) Considerações gerais: definição e evolução


histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos
controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Michell Nunes Midlej Maron 36


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Notas de Aula6

1. Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio

O artigo 122 do CP intenta reprimir o suicídio, que é mais uma forma de atentado
contra o bem jurídico vida. O suicídio, para o legislador, é um ato ilícito, mas o suicida não
é punido: a pena sobre ele seria absolutamente isenta de suas funções, preventiva ou
repressiva.
Entretanto, o suicídio continua sendo um ato ilícito, e daí surge esta peculiaridade: o
autor do delito – o suicida – não é punível, não é criminalizado, mas os partícipes são.
Trata-se, portanto, de um crime especial em que apenas os partícipes são incriminados.

“Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio


Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o
faça:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a
três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
Parágrafo único - A pena é duplicada:
Aumento de pena
I - se o crime é praticado por motivo egoístico;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de
resistência.”

Suicídio, por óbvio, é a eliminação da própria vida. Nélson Hungria faz uma
diferenciação altamente relevante: suicídio não é só o ato de por fim à própria vida; é a
eliminação da própria vida por quem não quer mais viver.
Esta ressalva é fundamental, porque a ação daquele que termina a própria vida por
outros motivos, que não o puro desvalor pela existência, não é ilícita: a mãe que sacrifica a
própria vida para salvar a do seu filho não comete suicídio. Muito ao contrário, pratica um
ato heróico, exemplar, e não reprimível. Da mesma forma, o soldado que se lança sobre
uma granada para salvar a tropa da explosão. Veja que, nestes casos, aquele que se mata
tem vontade de viver, mas a vontade de salvar outrem é mais forte – daí o heroísmo, e não a
reprovabilidade.
Nestas hipóteses, se alguém se tornar partícipe da ação daquele que vem a se matar
por heroísmo não estará cometendo o crime do artigo supra. Se alguém auxilia a mãe que
quer se matar para salvar o filho não estará cometendo crime, simplesmente porque o ato
desta mãe está longe de ser ilícito.
Não há, ao contrário do que se pode pensar, um direito ao suicídio. Como dito, o
suicídio é um ato ilícito, somente sendo impunível criminalmente o autor. Repercussão da
ilicitude deste ato pode ser vista, por exemplo, no artigo 146, § 3°, II, do CP:

“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
(...)

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Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 20/10/2009.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:


(...)
II - a coação exercida para impedir suicídio.”

Passando à análise pontual do artigo 122 do CP, tem-se que o sujeito passivo do
crime deve ser alguém que tem capacidade para discernir. Do contrário, o crime daquele
que induz, instiga ou auxilia será de homicídio. Ao induzir um esquizofrênico, ou uma
criança, a se lançar da janela, convencendo-o de que sabe voar, estará o agente cometendo
homicídio.
O inciso II do parágrafo único do artigo 122 do CP determina aumento de pena se o
suicida for menor. O problema é delimitar com precisão a que menor está se referindo o
legislador. Veja: o critério a ser observado, na configuração deste delito, é a capacidade de
discernimento da vítima, como dito acima. Por isso, o termo menor não se refere à
menoridade pertinente à capacidade civil, somente. A capacidade que se deve auferir é a de
discernimento.
Veja que se não houver qualquer capacidade para discernir, não há o crime deste
artigo 122, como visto – o crime é de homicídio. O conceito de “menor”, para fins de
aumento da pena, é daquele que tem capacidade de discernimento, mas a tem reduzida, em
função da pouca idade.
Buscando elucidação do conceito no sistema penal, tem-se que o Direito Penal
reputa capaz de discernimento aquele menor de dezoito anos, mas maior de quatorze. O
marco mínimo biopsicológico, para o legislador penal, determinante da capacidade de
discernimento, é a idade de quatorze anos. Menor do que isso, interpreta o legislador, não
há qualquer capacidade de discernimento, e o crime será de homicídio.
Esta construção se colhe, por exemplo, do artigo 126, parágrafo único, do CP:

“Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:


Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de
quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido
mediante fraude, grave ameaça ou violência.”

O novel artigo 217-A do CP também aponta a idade de quatorze anos como medida
biopsicológica da capacidade de consentimento:

“Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)”

Em suma, o aumento de pena se imputa a quem tenha cometido o crime contra


pessoa com idade entre quatorze e dezoito anos. Se a vítima é menor de quatorze, o crime é
de homicídio.
O STJ, em julgado recente, mas pré-reforma dos crimes contra os costumes, emitiu
posicionamento em que reputava capaz de discernir aquela pessoa maior de doze anos,
porque a partir desta idade, a pessoa deixa de ser criança e passa a adolescente, sendo capaz
de discernir, inclusive, para efeitos de cometimento de ato infracional, segundo o Estatuto

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da Criança e do Adolescente. Todavia, a reforma colocou a idade de quatorze anos como


elementar do tipo, no artigo 217-A supra, pelo que tal raciocínio restou prejudicado, de fato.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo deste crime. Repare que a execução deste
crime deve se reduzir aos verbos do tipo, auxiliar, instigar ou induzir, nunca podendo o
autor realizar atos de execução da morte em si, pois senão estará praticando homicídio.
Qualquer ato de execução da morte indica prática, autoria da morte, e não auxílio,
instigação ou indução a que o agente realize a própria morte. O sujeito ativo é partícipe,
apenas. Sua contribuição para o ato deve ser meramente acessória, material ou moralmente
acessória, mas nunca executória.
Indução e instigação são participações psicológicas. Induzir difere de instigar:
induzir é fazer nascer na vítima a ideia de matar-se, enquanto instigar é reforçar a ideia de
matar-se que já existia na mente da vítima. Para considerar-se inserto no tipo, a conduta do
agente deve ser efetivamente relevante para a prática do suicídio pela vítima, ou seja, não é
qualquer instigação ou indução que preenche a tipicidade: precisa ser causadora,
determinante para a decisão da vítima em se matar.
Auxiliar, por seu turno, é toda contribuição material para a prática da morte: a
compra do veneno, o empréstimo da arma, etc. Repita-se que se o agente ajudar
materialmente a vítima – ministrando-lhe o veneno, por exemplo – se tratará de homicídio,
como visto.
Suponha-se que um garantidor qualquer se vê diante de um garantido que demonstra
intento em se matar. Por exemplo, um pai que vê o filho de quinze anos ameaçar de se
defenestrar. Se este pai queda-se inerte – não instiga, auxilia ou induz, mas também nada
faz para dissuadir o menor do intento suicida –, e o filho efetivamente se joga da janela para
a morte, o pai responderá criminalmente: ele não evitou uma morte, e esta ser-lhe-á
imputada por sua inércia quando deveria agir, na condição de garantidor. Ele podia e devia
evitá-la. Mas como a morte não evitada foi por suicídio, não estará incurso no homicídio, e
sim no suicídio. Sua capitulação será no artigo 122, combinado com o artigo 13, § 2°, “a”,
do CP, e não no homicídio. Veja que, fosse o filho menor de quatorze anos, haveria
homicídio, pela incapacidade de discernimento, tornando a morte não imputável ao menor,
ou seja, tecnicamente não seria suicídio.
Não só a menoridade majora o crime: também a reduzida capacidade de
discernimento causada por motivos outros, como a semi-imputabilidade da vítima, é causa
de majoração da pena.
Questão conhecida, nesta seara, é a do pacto de morte. Se dois agentes combinam o
suicídio conjunto, e os dois praticam atos de execução da morte própria – ambos abrem a
corrente de gás, por exemplo. Se ambos se salvarem, estarão incursos na tentativa de
homicídio um do outro – houve atos de execução da morte de ambos, por parte de ambos.
Suponha-se, agora, que um dos pactuantes, neste exemplo, morre, e o outro sobrevive:
aquele que sobreviveu responde por homicídio consumado, pois participou da execução do
ato de morte.
Suponha-se, agora que apenas um dos pactuantes realiza ato de execução da morte –
apenas um deles abre o gás letal. Se este executor sobreviver ao suicídio, e o outro
pactuante morrer, responderá por homicídio, como dito; se quem sobrevive é o outro
pactuante, aquele que não efetuou nenhum ato de execução da morte, ele não responderá
pelo homicídio do que morreu: responderá pelo artigo 122 do CP, porque a mera realização
do pacto é considerada indução ou instigação ao suicídio.

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Em suma, nos pactos de suicídio, a análise da tipificação da conduta do


sobrevivente deve se concentrar na realização da execução dos atos de morte: se os
praticou, e sobreviveu, será homicida; se não os praticou, será indutor ou instigador do
suicídio do pactuante.
A indução ou instigação indireta ao suicídio também é considerada típica. Consiste
na atuação sabidamente capaz de fomentar o suicídio, não diretamente expressada neste
sentido, mas com patente dolo de ver o agente se matar. Um exemplo é bem vindo: se o
marido, alertado pelo psiquiatra de sua mulher de que esta está com fortes tendências
suicidas, pratica atos tais que sabe que serão capazes de fomentar a tendência suicida da
mulher, com o dolo de vê-la se matar, estará certamente enquadrado neste artigo 122. como
exemplo, se este marido pede para uma conhecida ligar repetidamente para sua casa,
declarando-se sua amante para a sua mulher, levando-a ao suicídio, está clara a subsunção
ao dispositivo em tela.
Note que o dolo de ver a pessoa se matar deve estar presente, ou não há crime – não
há modalidade culposa. Aproveitando o exemplo do marido da mulher tendente ao suicídio,
se esta diz que se ele a deixar ela vai se matar, não estará o marido fadado a permanecer ao
seu lado para sempre. Ele poderá dela se separar, sem configurar o delito, se na separação
não for percebido o dolo de instigar a mulher a cometer suicídio. Não pode, a chantagem do
potencial suicida, obstar a prática de atos que são direitos do agente, desde que o exercício
deste direito não seja claramente dedicado a fomentar o suicídio do chantagista. A
tipificação está no dolo. Ademais, abstraindo-se do dolo, pela imputação objetiva o agente
que não cede à chantagem está praticando algo que o sistema jurídico lhe permite, está
exercendo direito seu.
O inciso I do parágrafo único majora o crime quando praticado por motivo
egoístico. Trata-se, esta motivação, de excessivo apego a bens próprios, apego este capaz de
fazer com que o agente despreze a vida humana em sua busca.

1.1. Natureza jurídica do resultado

O crime material, quando não ocorre o resultado naturalístico, remanesce tentado; o


crime qualificado pelo resultado, sem este, remanesce na forma simples; o crime
condicionado ao resultado, sem que este ocorra, é atípico, irrelevante penal. O resultado
morte ou a lesão grave são condições para que o crime ocorra. Se decorre apenas lesão leve,
a conduta é irrelevante penal.
Os crimes culposos, em geral, são também crimes condicionados ao resultado: não
há relevância penal se não advém resultado danoso da inobservância do dever de cuidado.
A natureza jurídica do resultado, no tipo do artigo 122 do CP, é disputada por duas
correntes. De qualquer forma, se trata de uma condição, restando saber se é condição para
que o crime ocorra, ou se é condição para que o agente seja punível.
Veja: este é um crime condicionado ao resultado, ou seja, sem resultado
naturalístico, o evento perde a relevância penal. A primeira corrente, portanto, defende que
o resultado é elementar do tipo, prevista no preceito secundário, mas elementar – sem ela,
não há crime, sendo condição de existência do delito. É a corrente majoritária.
Uma segunda corrente, capitaneada por Nélson Hungria, defende que neste crime o
resultado é mera condição objetiva de punibilidade. Veja: sem o resultado, o agente não
pode ser punido, mas o crime ocorreu quando houve a instigação, auxílio ou indução. Esta

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corrente repete este discurso nos crimes culposos, e lá se justifica com mais vigor, porque o
crime culposo reside, de fato, na inobservância do dever de cuidado. O desvalor do crime
culposo está na conduta descuidada, e o desvalor do resultado é exigido como condição de
punibilidade do agente.
Mas nos crimes culposos, a conduta não é eivada de dolo, por óbvio, e por isso a
condição objetiva é cabível como elemento de punibilidade do agente. No crime em tela, na
indução ao suicídio, o dolo deve estar presente na conduta, sendo incompatível a condição
de punibilidade ser objetiva, e pior, alheia ao tipo, como querem os que adotam esta tese. O
resultado está inserido no tipo, como elementar, condicionando a própria existência. É por
isso que a primeira corrente, de que o resultado é condição de existência do delito, é mais
coerente.
Por toda a lógica, não haveria de se cogitar de tentativa no crime do artigo 122 do
CP, tal como não há tentativa em crimes culposos. Contudo, Bitencourt, isoladamente, vê
possibilidade de tentativa neste crime, mas não na forma do artigo 14, II, do CP: a tentativa
se justifica pela previsão da condicionante não no preceito primário do tipo, mas sim no
secundário. Não é uma posição defensável, porém.

1.2. A imputação objetiva e o crime de indução ao suicídio

Para os finalistas, se o agente tem o dolo de ver a vítima se matar, está cometendo
este crime. A conduta eivada deste dolo, diga-se, deve ter o potencial de produzir o
resultado querido, ou seja, efetivamente levar a vítima ao suicídio. Não basta desejar esta
morte, se a influência para que ela ocorra inexistir – a conduta é atípica, se assim o for.
Dolo é querer o resultado, e saber da sua possível aquisição, sendo que querer precisa ter o
condão de causar o resultado – o mero desejo inerte não revela o elemento volitivo do dolo.
Para o funcionalismo, aplicando-se a imputação objetiva, nenhuma participação no
suicídio, mesmo dolosa, revela crime. Na teoria da imputação objetiva, não existe este
crime, ao seguinte argumento: cada um reponde pela auto-colocação de seus bens jurídicos
em risco, ou seja, sendo o agente capaz, ele responde por qualquer atentado que tenha
praticado contra sua própria vida.
No Brasil, o suicídio é um ato ilícito em si, e por isso a participação nele tem
relevância penal, apenas por eleição legislativa – a instigação ao suicídio, aqui, é conduta
que leva alguém a se colocar em situação de perigo juridicamente desaprovada. Não o
fosse, a aplicação da teoria da imputação objetiva poderia, de fato, tornar atípica qualquer
conduta auxiliar do suicídio.

2. Infanticídio

O crime do artigo 123 do CP desperta inúmeras considerações polêmicas, dados os


conceitos abertos de que se valeu o legislador nesta tipificação. Veja:

“Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o
parto ou logo após:

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Pena - detenção, de dois a seis anos.”

O primeiro conceito polêmico, neste delito, é o de estado puerperal. Na medicina


legal, este conceito simplesmente não existe na forma que o Direito Penal pretende. Toda
mulher tem estado puerperal, que é a fase de recomposição do estado pré-gravídico pelo
qual toda mulher que deu à luz necessariamente passará, mas cujas condições, por si só, não
são capazes de causar tamanha perturbação mental suficiente a ensejar o cometimento da
morte da criança pela mãe.
Assim, este estado de alta perturbação só ocorreria, a rigor, segundo a doutrina
médica, devido a alguma condição de desestabilização preexistente, ou devido a um parto
tremendamente traumático, circunstâncias estas que teriam, no nascimento da criança, no
puerpério, um gatilho para a conduta de matar o filho.
Hoje, a ocorrência de tais condições de alto estresse é mais rara, ante o
aprimoramento das técnicas de parto, especialmente o cirúrgico (cesariana). Inclusive,
mesmo quando presente o estresse, o tratamento psicológico automaticamente adotado
quando se percebe que a gestante está sob forte perturbação mental evita que a mãe possa
cometer tal ato.
O puerpério é o período compreendido entre o início do parto – o rompimento da
bolsa, como visto – e o retorno do corpo da mulher às condições pré-gravídicas. Este
período, geralmente, perdura por até oito semanas. Contudo, este período de oito semanas
não pode ser reconhecido como o “logo após” o parto, a que se refere o artigo 123 do CP:
somente a fase aguda do estado puerperal justifica seu reconhecimento como catalisador
da perturbação capaz de ensejar a prática da morte, e esta fase não supera oito dias. O ponto
mais alto da perturbação, de fato, é entre seis e oito dias do parto, mas se inicia logo no
rompimento da bolsa.
O sujeito passivo do infanticídio é o próprio filho. Note-se que há uma tendência a
se entender que seja apenas o próprio filho recém-nascido, pois é ele quem é o alvo da
rejeição induzida pelo puerpério. Contudo, é preciso se atentar para a técnica interpretativa
penal, aqui: o legislador não fez constar esta condição de recém-nascido como elementar do
crime, não podendo a interpretação ser extensiva, aqui, porque se o for estará agravando a
situação da mãe que mata o próprio filho diverso do recém-nascido, colocando-a no crime
de homicídio, mais grave.
Se a mãe mata criança diversa de seu filho por erro quanto à pessoa, uma vez que
acreditava ser aquele bebê seu filho, e não o era, responde como se tivesse matado o
próprio filho, na forma do artigo 20, § 3°, do CP:

“Erro sobre elementos do tipo(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,
mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
Erro sobre a pessoa(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena.
Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da
pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. (Incluído pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)”

A questão do recém-nascido não diz respeito ao erro de tipo. Se trata de dolo


dirigido a matar mesmo o filho próprio diverso do recém-nascido. Este fato será, ainda

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assim, incurso no infanticídio, porque se se exigir a condição de recém-nascido para que o


crime seja este, quando a lei não o fez expressamente, se estará agravando a situação do
agente ativo por interpretação teleológica in malam partem, o que não é possível. E veja
que quando quis, o legislador disse sobre a condição do recém-nascido, como se vê no
artigo 134 do CP:

“Exposição ou abandono de recém-nascido


Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
(...)”

Este raciocínio se aplica, inclusive, ao filho adotivo, ante a plena equiparação deste
ao filho próprio.
Como já se pôde depreender, o infanticídio baseia-se em critério fisiopsíquico. Nos
seus primórdios, porém, existia também o infanticídio honoris causa, fundamentado na
intenção da mãe em ocultar desonra própria decorrente do parto. Desde 1940, a ocultação
de desonra própria só é relevante na configuração do crime de abandono de recém nascido,
do artigo 134 supra.
O infanticídio é mais brandamente punido do que o homicídio porque revela uma
clara redução da capacidade de discernimento do agente ativo, aquele que mata. Esta
redução de capacidade é considerada fundamento do infanticídio pela doutrina, quando não
seja redução tão drástica que torne a agente semi-imputável ou mesmo inimputável.
Se a perícia deixar claro que a mãe estava com redução da capacidade de
discernimento tão severa que, além de incidir no crime de infanticídio, e não homicídio,
incida também no artigo 26, parágrafo único, do CP:

“Inimputáveis
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.(Redação dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)”

Se, mais do que isso, a perturbação for tão severa que leve a mãe à
inimputabilidade, o caput do artigo 26, supra, será aplicável – a mãe merecerá medida de
segurança, e não pena.
Frederico Marques não concorda com esta tese, porque entende que seria um bis in
idem benéfico, tão inadmissível quanto o maléfico: pela mesma circunstância – redução da
capacidade –, a mãe seria beneficiada duas vezes, ao deixar de ser capitulada no homicídio,
passando ao infanticídio, e ao receber as benesses do artigo 26 do CP. É isolado, porém,
porque a doutrina rechaça esta tese ao argumento de que há gradação na perda do
discernimento: a que leva ao infanticídio é de um patamar padrão, pericialmente
constatado, e se este patamar for superado, tornando-a absoluta ou relativamente incapaz de
discernir, merecerá a aplicação do artigo 26.

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Quanto a todas as classificações do delito, o infanticídio não passa de um


“homicídio desonerado”, por assim dizer, com a só diferença de que é crime próprio,
praticado pela mãe.

2.1. Concurso de pessoas

O terceiro que auxilia a mãe a cometer o infanticídio também está incurso no crime
de infanticídio, porque as condições e circunstâncias pessoais da mãe, que preenchem este
tipo, estão todas na parte elementar, e por isso se comunicam. Veja o artigo 30 do CP:

“Circunstâncias incomunicáveis
Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,
salvo quando elementares do crime. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)”

Nélson Hungria defendia que estas circunstâncias subjetivas, mesmo estando na


elementar do crime, não se comunicariam, porque se tratam de condições personalíssimas
da mãe, excepcionando a regra do artigo 30, supra. Ocorre que esta exceção simplesmente
não existe: não há, em qualquer lugar, a previsão de circunstâncias subjetivas
personalíssimas. Por isso, prevalece a comunicabilidade da elementar, neste caso.
Mais problemática é a situação quando assim se desenhar: a mãe, preenchendo
todos os elementos do infanticídio, mas sem coragem para executar os atos de morte do
filho próprio, induz um terceiro para tanto, para que mate seu filho. Tecnicamente, o crime
deste terceiro foi homicídio, e a mãe, ao induzir a prática do crime, incorreu em
participação no homicídio praticado por este terceiro.
Ora, esta configuração é de uma injustiça gritante: a mãe que teve coragem para
matar seu próprio filho em estado puerperal será imputada pelo infanticídio, mais
brandamente punido, enquanto a mãe que não teve tal coragem, ou seja, é pessoa mais
humana, será punida muito mais severamente, pois incidiu em homicídio. A despeito desta
injustiça patente, a técnica impõe esta dinâmica.
Contudo, para minorar os efeitos desta incongruência, a doutrina propõe soluções
diversas. Damásio e Rogério Greco, em nome da isonomia, defendem que sejam todos
capitulados no infanticídio, a mãe e o terceiro. Novamente, não é solução técnica, porque o
terceiro estará sendo beneficiado por tratamento que não merecia – ele cometeu homicídio.
Bitencourt, por seu turno, defende que a solução é dada pelo artigo 29, § 2°, do CP:

“Regras comuns às penas privativas de liberdade


Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um
sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á
aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido
previsível o resultado mais grave. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Destarte, estariam ambos incidentes no homicídio, mas como a mãe quis participar
de crime menos grave – infanticídio –, ser-lhe-á aplicada a pena deste. É pouco técnica, esta

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solução, porque em verdade a mãe sabia que participava de homicídio, não sendo caso de
aplicação deste dispositivo supra. Parece ser a tese mais coerente, apesar de seus defeitos7.
Luis Régis Prado, por sua vez, mantém a capitulação de ambos no homicídio, mas
determina a aplicação do § 1° do artigo 29, supra, à mãe: entende que sua participação foi
de menor importância. É tese inacatável, porque o crime só existiu por sua instigação.

Casos Concretos

Questão 1

O Ministério Público denunciou TONY pela prática da conduta descrita no artigo


122, parágrafo único, II, do Código Penal (induzimento ao suicídio de vítima menor) com
dolo eventual, alegando os seguintes fatos: o acusado, integrante de poderosa família da
cidade de Três Rios, em meados de 2004, passou a se relacionar sexualmente com a vítima
7
A aplicação da proporcionalidade, sozinha, em verdade, já permitiria a aplicação da pena do crime de
infanticídio para a mãe, mantendo-a na capitulação do homicídio, mas com a pena do infanticídio,
dispensando a invocação do artigo 29, § 2°, do CP. Há exemplos desta dinâmica no ordenamento, como
quando concorrem civil e militar em crime militar impróprio (como o estupro), sendo uma das penas menor
do que a outra: aplica-se a ambos a devida capitulação – o civil no CP, e o militar no CPM –, mas a ambos
aplica-se a pena do CPM, que é menor.

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ÍRIS, filha de um casal de empregados domésticos, ainda menor com a idade de 14 anos,
vindo a engravidá-la e a viver maritalmente com a moça. Desde o início a convivência foi
conturbada, pois o acusado submetia a jovem às mais infamantes humilhações, inclusive
espancamentos em via pública e outras agressões injustas e caprichosas, muitas vezes na
presença dos filhos, que na data do fato já eram três. As sevícias eram quase diárias por
parte do sádico companheiro de ÍRIS, de modo que o mundo foi perdendo o sentido para a
pobre menina que, diante da desgraçada vida que levava, optou pelo auto-extermínio.No
interrogatório, o acusado admite que efetivamente tornou a vida da vítima um martírio e
que, em várias ocasiões, ÍRIS tentou deixá-lo, voltando a residir com os pais. Porém
TONY, com sua força de persuasão sobre a humilde família e pessoa da vítima, a fazia
retornar para casa. Asseverou em seguida o réu que, de fato, desumana e reiteradamente,
infligia maus-tratos excessivos em sua mulher, com o objetivo de mantê-la fiel e de poder
continuar a dominá-la, coisa que, segundo afirmou, "era impossível nos dias de hoje, em
face do comportamento das mulheres modernas".Diante do exposto, o MP denunciou
TONY nos termos acima descritos para uma Vara Criminal do Tribunal do Júri, alegando
que o denunciado, com seu comportamento, assumiu o risco da produção do resultado,
qual seja, o suicídio da menor ÍRIS. O processo tramitou normalmente, chegando na fase
de pronúncia. Se fosse você o Juiz, como decidiria?

Resposta à Questão 1

No Código Penal Militar, o artigo 207, § 2°, prevê esta conduta específica de
provocação indireta ao suicídio como típica, expressamente:

“Art. 207. Instigar ou induzir alguém a suicidar-se, ou prestar-lhe auxílio para que
o faça, vindo o suicídio consumar-se:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Agravação de pena
§ 1º Se o crime é praticado por motivo egoístico, ou a vítima é menor ou tem
diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral, a pena é agravada.
Provocação indireta ao suicídio
2º Com detenção de um a três anos, será punido quem, desumana e reiteradamente,
inflige maus tratos a alguém, sob sua autoridade ou dependência, levando-o, em
razão disso, à prática de suicídio.
Redução de pena
3° Se o suicídio é apenas tentado, e da tentativa resulta lesão grave, a pena é
reduzida de um a dois terços.”

No CP, não existe tal fórmula, porém. O dolo do agente é exigido, mesmo na
modalidade do induzimento indireto, para configurar o delito. In casu, não se pode apontar
que houve dolo do agente, sequer na modalidade eventual, de levar a vítima ao suicídio. Por
isso, não pode ser imputado no artigo 122 do CP.
Veja o HC 72.049, do STF:

“HC 72049 / MG - MINAS GERAIS. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


MARCO AURÉLIO. Julgamento: 28/03/1995. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação: DJ18-05-2001
Ementa: SENTENÇA DE PRONÚNCIA - FUNDAMENTAÇÃO - TEOR. A
sentença de pronúncia deve consubstanciar a certeza quanto à materialidade do
delito e a revelação de indícios sobre a autoria. Não lhe é própria a utilização de

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tintas fortes quer relativamente à autoria, ou à personalidade do acusado, simples


acusado, quer às circunstâncias em que ocorrido o crime, sob pena de vício grave,
capaz de maculá-la, isto tendo em conta a competência dos jurados para o
julgamento e a necessidade de manutenção, pelo Juiz Presidente do Tribunal do
Júri, da eqüidistância desejável. A sentença de pronúncia não pode servir de
argumento à acusação, influenciando o ânimo dos jurados. O comedimento e a
sobriedade no emprego dos vocábulos hão de ser constantes. Descabe, a título de
fundamentação, tomar de empréstimo peça apresentada pela acusação. Precedente:
habeas-corpus nº 69.133, relatado pelo Ministro Celso de Mello perante a Primeira
Turma. SUICÍDIO - TIPICIDADE - ELEMENTO SUBJETIVO - O tipo do artigo
122 do Código Penal deve estar configurado em uma das três formas previstas na
norma - o induzimento, a instigação ou o auxílio ao suicídio, exsurgindo daí o dolo
específico. SUICÍDIO - MAUS TRATOS - LESÕES CORPORAIS. Em toda
ciência, e o Direito o é, os vocábulos, as expressões e os institutos têm sentido
próprio, cumprindo àqueles que deles se utilizam o apego à maior tecnicidade
possível. Ao contrário do que preceituado no artigo 207, § 2º, do Código Penal
Militar, o Diploma Penal Comum não contempla como tipo penal a provocação
indireta ao suicídio, de resto cogitada no § 2º do artigo 123 do que seria o Código
Penal de 1969, cuja vigência, fixada para 1º de agosto de 1970, jamais ocorreu.”

Questão 2

SOLON, na sala do seu apartamento, ouve, mais uma vez de ANA, sua mulher, que
se encontrava grávida, um propósito suicida. Descrente ao que ouvira, SOLON ausenta-se
do apartamento, do que se aproveita ANA, uma vez só, para atirar-se pela janela. Na
queda, vem a atingir com o próprio corpo um transeunte, MATIAS, que morre em
conseqüência do choque, enquanto ANA sobrevive, mas sofre lesões que dão origem a um
aborto. Analise penalmente as condutas de SOLON e ANA. RESPOSTA OBJETIVAMENTE
JUSTIFICADA.

Resposta à Questão 2

Sólon não cometeu crime algum, pois se não acreditava no suicídio de sua mulher,
não estava, esta atitude, em sua esfera de previsão e consciência, não incidindo no
homicídio por omissão como garantidor, tampouco no artigo 122 do CP, porque não
induziu, instigou ou auxiliou o ato, sequer indiretamente.
Ana, porém, responderá pela morte do transeunte Matias, a título de culpa, se as
circunstâncias demonstrarem que era previsível que houvesse alguém passando sob sua
janela (o que não ocorre se ficar demonstrado que Ana residia em local bastante ermo e
isolado). E responde também pelo aborto doloso, em dolo direto de segundo grau (quando o
resultado seria consequência necessária de seu ato) ou, no mínimo, eventual (assumindo o
severo risco de o aborto acontecer).

Questão 3

CÁSSIA deu à luz um menino, em parto originariamente programado para ser


normal, mas que em razão de complicações havidas, acabou por se estabelecer como
cesariana. Mãe e filho permaneceram internados, diante dos problemas havidos como
derivação das complicações ocorrentes no parto. Assim, e tendo decorrido uma semana
desde que o recém-nascido veio ao mundo, CÁSSIA, ao receber a visita no hospital de um

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

outro filho seu, menor, JOSUÉ, com dois anos de idade, ainda experimentando uma
condição depressiva pós-parto e aproveitando-se da desatenção de outras pessoas, veio a
matar, por sufocamento, este último, JOSUÉ. Para tanto, foi auxiliada por uma outra
mulher, MARIA, que estava ali internada em circunstâncias análogas.
a) Qual a capitulação correta do fato? Existe limitação precisa quanto à vítima de
um crime de infanticídio ser necessariamente um recém-nascido?
b) O período de tempo decorrido desde o parto até a ação punível impossibilitou a
caracterização do crime de infanticídio? Qual o limite admissível para se
interpretar a expressão "logo após o parto"?
c) Como responderá MARIA por sua participação nos fatos?
d) Admite-se o infanticídio honoris causa?

Resposta à Questão 3

a) O crime é de infanticídio. Não é possível acrescer ao artigo 122 do CP a


exigência de que o filho seja o recém-nascido, porque se estaria interpretando
gravosamente o dispositivo, onde o legislador não o fez.
b) Não, o período compreende o puerpério capaz de ensejar a capitulação, que se
inicia com o rompimento da bolsa e perdura até o oitavo dia.. O período agudo é
de seis a oito dias, diga-se.
c) Maria responde por infanticídio, tal como a mãe, porque as circunstâncias
subjetivas trazidas na elementar se comunicam ao partícipe.
d) Não: o infanticídio, hoje, se resume à causa fisiopsíquica, não sendo tolerada a
motivação social da defesa da honra como suficiente a ensejar o infanticídio.
Outrora, antes de 1940, era admissível esta causa.

Tema IV

Aborto. 1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito.
Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Espécies de aborto: o auto-aborto, o aborto consensual e o aborto
provocado sem o consentimento da gestante. 3) Aspectos controvertidos. 4) Forma qualificada de aborto:
crime preterintencional. Discussão sobre a admissibilidade da tentativa. 5) Concurso de crimes. 6) Pena e
ação penal.

Notas de Aula8

8
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 21/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1. Aborto: Considerações gerais

O aborto é a interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção. Veja


que não se fala apenas em feto, porque tecnicamente o feto só surge após o fim do terceiro
mês de gravidez. Nas três primeiras semanas de gravidez, trata-se se um óvulo fecundado;
da quarta semana até o fim do terceiro mês, é um embrião; dali em diante é que se fala em
feto. Para o Direito Penal, não há relevância nesta diferenciação, sendo os três momentos
apenas espécies do gênero produto da concepção, como dito.
O aborto é crime contra a vida, só que a intrauterina. Surge a questão: quando tem
início a vida intrauterina?
Nélson Hungria e Magalhães Noronha dizem que a vida começa na fecundação, que
é a união frutífera do espermatozóide e do óvulo. Estes autores, apesar de acompanhados
pela igreja, não parecem ter a tese mais acertada. É perfeitamente possível, por exemplo, a
utilização de métodos contraceptivos encontrados no mercado que atuam após este
momento, como a “pílula do dia seguinte”, ou certos tipos de dispositivos intrauterinos.
Tais métodos, seguindo-se à risca esta corrente, não poderiam sequer ser considerados
contraceptivos, e sim abortivos, eis que a gravidez já se iniciou com a mera fecundação.
Modernamente, então, o começo da gravidez não se dá na fecundação: se dá na
nidação, que é a fixação do óvulo fecundado na parede do útero, no endométrio. Esta é a
corrente amplamente majoritária, tanto na doutrina médica quanto na jurídica.
A fixação do óvulo, a nidação, se dá em até quatorze dias após a fecundação, e
somente a partir de então se pode falar em gravidez. Por isso, todos os métodos abortivos
criminalizados são aqueles que visam justamente a remover o produto da concepção que
esteja aderido ao útero.
Também por esta lógica, na fertilização in vitro, os óvulos fecundados que não
foram implantados podem ser descartados, pois se se considerasse que fossem vida, tais
produtos, precisariam de proteção jurídica especial – mesmo que não se tratasse de aborto,
porque mesmo que se fossem considerados vivos não seriam vida intrauterina.
O aborto é um crime material e de dano, que se consuma na morte do produto da
concepção. É crime de forma livre, podendo ser praticado por qualquer método idôneo
capaz de interromper a gravidez e causar a morte do seu produto. Há métodos físicos, como
a curetagem e a aspiração, e métodos químicos, como o uso do medicamento cytotec,
originalmente destinado ao tratamento de úlceras, mas que induz o aborto. E há também os
métodos menos eficazes e mais perigosos, como a perfuração por instrumentos
pontiagudos, a fim de que o organismo consuma e elimine o produto agora morto, ou a
indução térmica, que mata o produto pelo choque térmico – dentre outros tantos que a
malévola inventividade humana possa criar.
A prova da materialidade, como em qualquer delito material, consiste na perícia
identificadora da interrupção da gravidez e morte do seu produto. Com a aspiração, em
regra estes vestígios desaparecem, especialmente porque após expirados são triturados e
despejados na rede de esgoto – tornando processualmente difícil a condenação por este
crime. Repare que os demais vestígios, como um pequeno corte na parede do útero causado
pelo uso da máquina de aspiração como meio abortivo, não são capazes de demonstrar a
materialidade do crime. O ginecologista ter a máquina de aspiração, diga-se, é
perfeitamente legal, porque ele é quem faz os abortos legalmente permitidos, que serão
vistos.

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A despeito da quase imperiosa necessidade da prova material, da existência dos


restos do produto da concepção, é admissível a prova testemunhal substitutiva da perícia,
na forma do artigo 167 do CPP:

“Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.”

O crime é plurissubsistente, e por isso admite tentativa. O crime ocorre, por óbvio,
no curso da gravidez, pois só neste ínterim há vida intrauterina. Após o rompimento da
bolsa, para a maior doutrina, como visto, tem início a vida extrauterina, e a tipificação do
aborto, em qualquer ataque posterior a este momento, fica impossível.
Se, na prática do aborto, o feto nasce e vem a morrer fora do útero materno em
decorrência da intentada abortiva, o crime ainda é de aborto. O bem jurídico atacado pelo
agente foi a vida intrauterina, e a morte extemporânea não desconfigura o crime. Ao
contrário, se a morte do feto nascido ocorrer por motivo completamente desconexo ao
emprego do meio abortivo – causa superveniente absolutamente independente –, o crime é
de aborto tentado.
Quando o agente ataca mulher grávida, com a intenção de causar nela lesões
corporais, e acaba por causar aborto, a configuração do crime vai variar de acordo com o
dolo do agente e a previsibilidade deste resultado. Se o agressor não sabia da gravidez, nem
tinha condições de dela saber, responderá apenas pelas lesões corporais intentadas. Se sabia
da gravidez, mas não desejava o aborto, nem assumiu o resultado de produzi-lo, cometerá
apenas a lesão corporal qualificada pelo resultado aborto culposo. Se sabia da gravidez e
desejava o aborto e a lesão, é claro que se trata de lesão corporal e aborto em concurso
formal impróprio, ou imperfeito.
O agente que mata a gestante, que sabe grávida, querendo causar-lhe a morte e o
aborto, estará em concurso formal impróprio entre homicídio e aborto. Da mesma forma,
estará em concurso se mata a gestante, mesmo sem querer o aborto, mas sabendo da
gravidez: está em dolo direto de segundo grau quanto ao aborto, porque é consequência
necessária do homicídio da gestante9. Se mata a gestante sem saber e sem poder saber da
gravidez, responde apenas pelo homicídio.
O agente que quer apenas causar aborto, e para tanto se vale de lesões corporais
contra a mãe – chutes na barriga, por exemplo –, responde apenas pelo aborto, tentado ou
consumado, pois o meio de cometimento do crime, as lesões, resta absorvido.
Quanto à questão do feto anencefálico, esta já foi bastante dissecada no estudo do
homicídio privilegiado, para o qual se remete. Contudo, cabe aqui retratar apenas o que foi
pedido na petição inicial da ADPF 54, ação direta em que a permissão do aborto de
anencefálicos é o objetivo: A petição inicial contém o seguinte requerimento principal:

“(...) que essa Egrégia Corte, procedendo a uma interpretação conforme a


Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n.
2.848/40), declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a
interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do
parto em casos de gravidez do feto anencefálico, diagnosticados por médico
habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal

9
Se, morrendo a mãe, o produto for expelido e não morrer, o aborto será tentado, pois não se ilidiu o dolo
direto de segundo grau.

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou


qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

Alternativamente, e por eventualidade, na hipótese de descabimento da ADPF, pediu


o autor:
“(...) o seu recebimento como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), uma
vez que se pretende uma interpretação conforme a Constituição dos artigos 124,
126 e 128 do Código Penal, sem redução do texto, hipótese, portanto, que incidiria
a jurisprudência consagrada do STF relativamente à inadmissibilidade desse tipo
de ação em relação a direito pré-constitucional.”

O “crime de aborto” pode ser tido por gênero, havendo três modalidades típicas, que
serão abordadas de forma apartada. A estrutura das três é a mesma, variando apenas quanto
à titularidade do pólo ativo.

2. Autoaborto e aborto consentido

Este crime vem tratado no artigo 124 do CP:

“Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento


Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.”

Neste tipo, o sujeito ativo é somente a gestante: trata-se de crime de mão própria,
comportando participação, mas não coautoria. A gestante pode incidir neste crime se ela
mesma executa o meio abortivo escolhido – toma o cytotec, por exemplo –, ou se permite
que outra pessoa execute nela o meio abortivo – busca uma clínica para que um terceiro
proceda à curetagem, por exemplo.
Note que quando se tratar de aborto consentido, em que o terceiro provoca a morte
do produto da concepção, ocorre uma exceção à teoria monista da imputação: aquele que
pratica o aborto consentido pela gestante não se enquadra neste tipo penal, mas sim no
artigo 126 do CP, que será visto adiante. É uma das raras exceções dualistas no nosso
sistema penal.
Se o agente externo pratica a conduta de execução do aborto, incorre no crime do
artigo 126, a ser abordado; se auxilia a gestante a executar o crime – fornecendo-lhe o
medicamento para que ela ingira e execute ao aborto, por exemplo – será partícipe no
autoaborto, incidindo no artigo 124, supra. Da mesma forma ocorre com o médico que
receita o medicamento abortivo: é partícipe.
O agente que colabora com o executor do aborto consentido pela gestante não estará
incurso como partícipe do artigo 124: ele é partícipe do crime cometido pelo terceiro, que,
como visto, é capitulado no artigo 126 do CP, que será visto adiante.
Questão interessante figurou em concurso público para a Defensoria Pública do Rio
de Janeiro, há algum tempo: uma instituição pró-aborto holandesa, pondo em prática sua
defesa desta atividade, enviava um navio ao território brasileiro para captar mulheres
grávidas que desejassem abortar, e saia com elas embarcadas para o alto mar, além do mar
territorial brasileiro, quando então realizava o aborto em todas elas. Tratadas, o barco
privado holandês retornava ao Brasil e as mulheres desembarcavam. Há crime?

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O navio privado de bandeira holandesa em águas internacionais é considerado


território holandês – a territorialidade não permitiria a incriminação. As mulheres, porém,
são brasileiras, e a extraterritorialidade permite, em regra, a punição de brasileiros que
cometem crimes no exterior, como se vê no artigo 7°, II, “b”, do CP. Ocorre que o inciso II
do artigo 7° do CP trata de casos de extraterritorialidade condicionada, e, para que o
brasileiro que comete crime no exterior seja punível no Brasil, é preciso que preencha as
condições do § 2° do mesmo artigo 7°:

“Extraterritorialidade (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)


Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (Redação
dada pela Lei nº 7.209, de 1984)
(...)
II - os crimes: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
b) praticados por brasileiro; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
(...)
§ 2º - Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das
seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
a) entrar o agente no território nacional; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; (Incluído pela Lei nº
7.209, de 1984)
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a
extradição; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;
(Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar
extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. (Incluído pela Lei nº 7.209, de
1984)
(...)”

Ocorre que, no caso, a Holanda não criminaliza o aborto, e por isso a condição
expressa na alínea “b” do § 2° não está preenchida – as mulheres não podem ser punidas.
Veja que o embarque das mulheres em tal barco, com tal finalidade, não pode sequer
ser considerado início da execução de aborto consentido, porque a ligação deste ato com a
consumação é muito remota. O embarque é ato preparatório, e ainda assim é remoto.
Outro caso: a gestante percebe que está sofrendo um aborto espontâneo, e nada faz
para evitar que este ocorra, está cometendo algum crime? Esta gestante é garantidora da
vida intrauterina que carrega, e sua omissão é relevante, incidindo portanto no crime do
artigo 124 do CP por omissão. É claro que, para tanto, a omissão deve ser relevante, porque
se ficar claro que ainda que tomasse todas as providências a seu alcance a morte do produto
seria inevitável, não responderá.
Entenda: o nexo causal, nos crimes omissivos impróprios, é normativo,
demonstrando-se por meio do processo hipotético de acréscimo do comportamento exigido.
Se, mesmo que a mãe agisse, o aborto fosse ocorrer, sua omissão não é causa. Ao contrário,
se acrescida a atuação que dela fosse esperável em tentar evitar o aborto, restar claro que
muito provavelmente este seria evitado (e fala-se em probabilidade, apenas, porque a
certeza é impossível), a sua omissão é causa do aborto, devendo por ela responder.
Sujeito passivo deste crime é o produto da concepção, que é quem detém o bem
jurídico protegido, a vida intrauterina. A gestante, aqui, é sujeito ativo do crime, e não
vítima. E veja que a questão de ser o produto gestacional pessoa ou não, para fins de

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

titularizar direitos, é irrelevante ao Direito Penal: a vida intrauterina é o bem jurídico


protegido, e quem a possui é este produto.

3. Aborto sem consentimento da gestante

O crime de aborto praticado por terceiro, sem o consentimento da gestante, é


capitulado no artigo 125 do CP:

“Aborto provocado por terceiro


Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.”

Esta é a forma mais grave de aborto. Trata-se de crime comum, podendo estar no
pólo ativo qualquer pessoa, menos a própria gestante. No pólo passivo, figuram o produto
da concepção e a gestante, que não consentiu na interrupção da gravidez que ela carregava.

4. Aborto consentido praticado por terceiro

Diz o artigo 126 do CP:

“Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:


Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de
quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido
mediante fraude, grave ameaça ou violência.”

Como se antecipou, este artigo, coligado ao artigo 124 do CP, representa uma
quebra da teoria monista. O legislador, por política criminal, entendeu que a conduta do
agente que realiza o aborto com o consentimento da gestante deve figurar em tipo alheio ao
daquela, e receber pena maior, porque entendeu que sua conduta é mais reprovável do que a
da própria gestante.
O pólo ativo deste delito é comum, podendo qualquer pessoa praticar o crime. O
pólo passivo, aqui, é ocupado apenas pelo produto da concepção, eis que a gestante incorre
no artigo 124, como agente ativa, e não vítima.
Se a mulher que não tem capacidade para consentir no aborto, ou se de qualquer
forma o seu consentimento for viciado, o parágrafo único do artigo supra encaminha à
aplicação da pena do artigo 125 do CP, que se refere ao aborto praticado sem consentimento
da gestante. Esta previsão é um tanto estranha, sendo mesmo dispensável, porque o agente
que pratica aborto em gestante que não podia consentir, ou cujo consentimento foi viciado,
simplesmente praticou o aborto sem o consentimento desta, e estaria incurso,
originariamente, no artigo 125. Pela previsão deste parágrafo, o agente que assim atua será
capitulado no artigo 126 do CP, mas receberá a pena do artigo 125.
A alienação ou debilidade mental da vítima, para configurar a hipótese do parágrafo
do artigo 126, deve ser tal que elida qualquer validade em sua manifestação de
consentimento.
A grave ameaça e a violência são causas bem óbvias de invalidação de qualquer
consentimento, porque a coação é clara, vis efectiva ou vis compulsiva. A fraude, porém, é
de mais difícil percepção, podendo levar a enganos. Vejamos um exemplo: a mãe consente

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

no aborto porque o pai da criança conta para ela que seu filho nascerá com síndrome de
down, o que é mentira. Esta circunstância não consiste na fraude a que se refere o artigo: a
fraude que eiva o consentimento da vítima, levando ao reconhecimento legal de que não
houve consentimento, é a que induz aa vítima a crer que o aborto é permitido – e o aborto
do filho com doença mental, chamado aborto eugênico, não é permitido. No exemplo dado,
o pai responde pelo artigo 126, caput, se executa o aborto, ou se participa da execução por
terceiro; ou responde como partícipe do artigo 124, eis que induziu a gestante ao aborto
consentido. A mãe, responde sempre pelo artigo 124 do CP.
Fosse a hipótese diferente, o pai convencendo falsamente a gestante de que seu filho
era fruto de um estupro, e o consentimento dado por esta seria inválido. Neste caso, ela não
responderia por crime algum, e ele incidiria no parágrafo único do artigo 126, respondendo
com a pena do crime de aborto não consentido.

5. Aborto agravado

Diz o artigo 127 do CP:

“Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um
terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer
dessas causas, lhe sobrevém a morte.”

A lesão grave e a morte que agravam o aborto só podem ser culposas: trata-se de
resultado preterdoloso, pois se houver dolo não haverá incidência deste dispositivo, e sim o
concurso com o crime resultado, lesão ou homicídio. Guilherme Nucci, de forma pouco
técnica, defende isoladamente que este resultado pode ser tanto culposo como doloso,
incidindo neste dispositivo de qualquer forma.
Porque o resultado só se imputa a título de culpa, a seguinte situação pode ocorrer: a
gestante que sofre o aborto tem que ficar por quarenta dias de repouso, o que implicaria em
lesão grave, na forma do artigo 129, § 1°, I, do CP:

“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
(...)”

Ocorre que esta incapacidade para atividades habituais não é consequencia danosa
mais grave da lesão causada para o aborto: é consequência normal e correta da cirurgia,
pelo que não é um resultado atribuível ao agente a título de culpa.
Suponha-se que a mulher sofre a prática abortiva por terceiros, em qualquer das
formas; levada ao hospital, com complicações de tais práticas, o feto nasce e sobrevive,
mas a mãe morre. Qual é a capitulação do delito do terceiro?
O delito intentado foi o aborto, mas não se consumou; a morte da mulher foi causa
de aumento, culposa; assim, a capitulação fica sendo o crime de aborto tentado (consentido

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ou não), majorado pela morte. Capez, porém, discorda, e entende que deve ser aplicado o
raciocínio da súmula 610 do STF:

“Súmula 610, STF: Há o crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma,


ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima.”

Neste diapasão, o aborto restaria consumado se a gestante morre, mesmo que o feto
sobreviva.
E há ainda quem entenda que se trata de tentativa de preterdolo, ou seja, uma
aberração em que se puniria uma suposta tentativa de crime culposo – o que é
absolutamente impreciso, porque a tentativa é de aborto, e não da morte resultante do
aborto.
Outra questão polêmica é a seguinte: suponha-se que o agente auxilia a namorada a
praticar o autoaborto – é partícipe do artigo 124 do CP –, mas a namorada vem a morrer por
conta da prática abortiva a que ela própria se submeteu. Ele não se sujeita ao artigo 127 do
CP, porque este expressamente se destina aos artigos 126 e 125 do CP, mas haveria alguma
repercussão desta morte na responsabilização do partícipe?
Há duas posições na doutrina. A primeira entende que a conduta da gestante se trata
de auto colocação em perigo, e que por isso o partícipe não é por ela responsabilizado –
responde somente pelo aborto. Outra corrente, de Hungria e grande parte da doutrina,
entende que se trata de homicídio culposo, além da participação no autoaborto.
Entenda: para esta perspectiva clássica, aquele que de qualquer forma colabora para
que a pessoa se coloque em uma situação de risco juridicamente proibida deve responder
pelo resultado de tal colocação em risco. È similar ao exemplo em que um agente instiga
outro a dirigir com imprudência, e um acidente ocorre, vindo apenas o instigado a morrer:
para a corrente clássica, este perigo causador da morte foi decorrente da instigação, e há o
crime; para a corrente mais moderna, trata-se de auto exposição da vítima, o que afastaria a
responsabilidade do incitador.
Esta dinâmica diz respeito ao concurso de pessoas em crimes culposos, que é
questão bastante polêmica. Se duas pessoas, de forma imprudente, colaboram para um
resultado danoso, há que se cogitar se há a participação de uma na inobservância do dever
de cuidado da outra, ou se há dois crimes isolados, eis que cada um inobservou o próprio
dever de cuidado – inexistindo, neste caso, concurso. Há inúmeras discussões sobre o tema,
mas a corrente que entende inexistente o concurso, havendo crimes separados, é forte,
justamente porque cada um tinha seu dever de cuidado a ser observado, e não o fez; e se o
crime é culposo, é impossível se falar em liame subjetivo.
No caso do aborto, aquele que instigou a gestante a praticar o autoaborto está
fomentando a colocação da agente em risco proibido, e sua ação é imprudente; a da
gestante também é imprudente; sendo assim, ambos incidiram na conduta culposa em
relação à morte, e resta o crime de homicídio ao instigador supérstite.
Em que pese esta corrente clássica, da qual compartilha Hungria, ser bem coerente,
a novel corrente da imputação objetiva ilide a responsabilidade daquele que instiga alguém
a colocar a si próprio em situação de perigo. A auto colocação em risco é uma conduta que
somente a esta pessoa que assim se coloca é imputável, se se tratar de pessoa capaz. A
discussão ainda é ferrenha, mas a teoria da imputação objetiva, ganhando força, tende a
fazer prevalecer esta corrente moderna.

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6. Abortamentos legais

O artigo 128 do CP dispõe sobre situações em que o aborto é permitido, e esta


norma tem natureza jurídica de causa própria e especial de exclusão da ilicitude. Veja:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:


Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

É causa própria porque não se pune o aborto praticado por médico, somente, como
se vê no caput do artigo; e é excludente de ilicitude especial porque encontra-se na parte
especial do código penal, dedicada apenas a um delito ou grupo de delitos. Vejamos cada
um dos casos eleitos pelo legislador.

6.1. Aborto necessário, ou terapêutico

O inciso I do artigo supra é, em verdade, dispensável: se não existisse, a situação se


demonstraria simples estado de necessidade, tanto para o médico como para a gestante.
Tanto assim o é que se quem realizar o aborto for enfermeiro, e não médico, a atuação
estará acobertada pelo estado de necessidade, e não por este artigo.
A gestante tem a opção de não querer realizar o aborto necessário, preferindo a sua
morte em favor do salvamento do nascituro. Se ela não tiver condição de discernir, não
podendo validamente manifestar opinião sobre o seu sacrifício ou não, o médico é obrigado
a salvá-la, realizando o aborto – é dela garantidor. Submeter-se ao tratamento ou não é uma
opção da pessoa, mas se não pode manifestar-se em um sentido ou outro, o aborto é
mandatório, pesando mormente a vida da gestante em detrimento da vida intrauterina.
Ressalte-se, ainda, que a manifestação da gestante é personalíssima, não podendo ser
suprida por parentes ou responsáveis.
Como a circunstância que exige o aborto é de constatação médica, não se exige
autorização judicial para realizar tal procedimento abortivo. A premência é inerente à
situação em tela.

6.2. Aborto sentimental

O inciso II do artigo 128 do CP permite que a gestante autorize o médico a realizar


em si o aborto, eis que o legislador entendeu que não é exigível da mulher carregar consigo
o fardo e o trauma de uma gravidez decorrente de ato tão ignóbil contra si praticado.
Fundamenta-se, portanto, na inexigibilidade de conduta diversa.
O estupro que fundamenta pode ser de qualquer modalidade, pois se a lei não
diferenciou não cabe ao intérprete fazê-lo. Até mesmo a relação sem penetração, o coito
interfemural, se porventura causar a gravidez, é suficiente para configurar tal permissivo.
O médico não precisa de autorização judicial prévia para realizar o aborto
sentimental, bastando que seja convencido de que houve o estupro, por qualquer meio de
prova admitido em direito. O registro de ocorrência policial, em regra, é o documento hábil
a comprovar esta situação, mas não se pode dizer que seja imprescindível: pode a gestante

Michell Nunes Midlej Maron 56


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

não querer comunicar o fato à polícia, porque não deseja se expor a mais traumas do que já
foi exposta. Por isso, qualquer meio que convença o médico de que houve o estupro é
válido, e justifica o aborto.
O consentimento da gestante é exigência legal para a realização deste aborto. Se ela
não o quiser, não se o autoriza. Quando a gestante for incapaz, seu representante pode
suprir seu consentimento, mas repare numa diferença fundamental: o representante supre o
consentimento da vítima, e não a sua negativa. Entenda: se a vítima, incapaz, manifestar
que não deseja o aborto, não pode o representante contrariar sua vontade, ao argumento de
que está suprindo seu consentimento. Apenas quando a gestante incapaz desejar o aborto
sentimental é que o representante terá voz; se ela não o quiser, o representante não pode
contrapor sua vontade.

Casos Concretos

Questão 1

EFIRE, moradora de uma ilha isolada, solteira, constatando que está grávida de
seu namorado LIONARDO, dispõe-se a praticar abortamento, com receio da reação
familiar à gravidez. Pede a TÉTHYS que o provoque, o que é feito.
a) Que tipo ou tipos penais foram realizados por EFIRE e TÉTHYS?A solução se
alteraria, caso:
b) EFIRE praticasse os atos de abortamento, com o auxílio de TÉTHYS?
c) EFIRE não pretendesse abortar e LIONARDO, sob pretexto de exame pré-natal
a conduzisse a um consultório, onde o médico ÁCTEON, previamente ajustado com
LIONARDO, realizasse as manobras abortivas?
d) LIONARDO convencesse EFIRE de que havia consultado um oráculo e a
criança nasceria com grave defeito físico e somente por esta razão ela consentisse
no abortamento praticado por ÁCTEON, mediante pagamento feito por
LIONARDO?
e) Na hipótese anterior, ÁCTEON utilizasse material infectado e provocasse a
morte de EFIRE?

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

f) Na hipótese anterior, em razão da imperícia de ÁCTEON, EFIRE tivesse sofrido


lesões corporais graves?
g) LIONARDO, ao tomar conhecimento da gravidez de EFIRE, tivesse um acesso
de cólera e a agredisse, aplicando-lhe socos no rosto e chutes no ventre, daí
resultando lesões corporais graves e o abortamento?
h) EFIRE desejasse o abortamento e, sem o conhecimento de LIONARDO, fosse ao
consultório de ÁCTEON, onde este, auxiliado pela enfermeira ERICINA,
provocasse a expulsão do feto por meio químico, porém este não morresse?
i) EFIRE tivesse engravidado em razão de atentado violento ao pudor praticado
por LIONARDO e tivesse realizado o abortamento com a enfermeira ERICINA?

Resposta à Questão 1

a) Efire incide no autoaborto, do artigo 124 do CP, e Téthys no aborto consentido,


do artigo 126 do CP.
b) Efire ainda estaria no mesmo dispositivo, 124 do CP, mas Thétys, agora, se não
praticou atos de execução, incide como partícipe de Efire neste crime, também
sujeitando-se ao artigo 124 do CP. Se seu auxílio foi a execução de qualquer
manobra abortiva, porém, continuará no artigo 126 do CP.
c) Lionardo e Ácteon estão incursos no artigo 125 do CP, e Efire passa a ser vítima
do aborto.
d) Efire ainda está no artigo 124, porque mesmo que fosse verdade a situação da
criança, ainda seria proibido o aborto. O consentimento fraudado é irrelevante
para justificar a conduta de Efire, por isso, e os demais agentes, Lionardo e
Ácteon, estão incursos no artigo 126.
e) Estaria ele incurso no artigo 127 do CP, sendo agravado o aborto, sendo
necessária a constatação da culpa e seus elementos, especialmente a
previsibilidade do resultado.
f) Da mesma forma que na hipótese anterior, incidiria o artigo 127 do CP, devendo
ser constatadas as elementares da culpa.
g) Trata-se de concurso formal imperfeito entre lesões corporais graves e aborto
não consentido.
h) Trata-se de aborto tentado para todos: artigo 124 tentado para Efire, e artigo 126
tentado para os demais.
i) Efire estaria autorizada a abortar, pelo inciso II do artigo 128 do CP, e a
enfermeira, por não poder ser incluída (pois não é médica), responde pelo crime
do artigo 126 do CP, pois sua conduta abortiva não é a única exigível, não se
verificando inexigibilidade de conduta diversa.

Questão 2

O advogado CAIO impetrou Habeas Corpus em favor do feto em gestação no útero


de EFIRE, apontando como autoridade coatora o MM Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal
da Capital, que autorizou o abortamento do feto, com trinta semanas de gestação,
requerido pela gestante, em razão de suas dificuldades financeiras, sua saúde debilitada
pelo alcoolismo e por se tratar de mãe solteira que possui outros quatro filhos, com

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

genitores diversos. Na qualidade de Desembargador Relator, você votaria pela concessão


da ordem de Habeas Corpus em favor do feto? Fundamente.

Resposta à Questão 2

A ordem deve ser concedida, e o aborto vedado. O aborto econômico, sequer


quando forem percebidas condições de miserabilidade da mãe, não é tolerado em nosso
ordenamento.
Veja o HC 2000.059.01629, do TJ/RJ:

“2000.059.01629. 1ª Ementa - HABEAS CORPUS. DES. EDUARDO MAYR -


Julgamento: 04/07/2000 - SEXTA CAMARA CRIMINAL.
GRAVIDEZ. ABORTO. DIREITO DO NASCITURO. HABEAS CORPUS.
ORDEM CONCEDIDA
"Habeas-Corpus". Concessao. Os abortos eugenico e o economico nao sao
reconhecidos pelo Direito patrio, que considera impuniveis apenas os abortos
necessario e o sentimental, "ex-vi" art. 128, I e II do C.P. Ordem concedida em
favor do feto em gestacao para que nao seja dolosamente inviabilizado seu
nascimento.”

Questão 3

ANTÔNIO, médico, querendo dar fim a seu casamento para viver com a amante,
decide matar JOANA, sua esposa, que está grávida. Sabedor de que JOANA é portadora
de grave problema de saúde e se encontra em estado de depressão, convence-a à prática
do aborto, que sabe ser fatal. Pede então a um amigo de profissão, JONAS, que realize a
intervenção médica de interrupção da gravidez, da qual resulta a morte da gestante.
Analise penalmente as condutas de ANTÔNIO E JONAS. RESPOSTA OBJETIVAMENTE
JUSTIFICADA.

Resposta à Questão 3

Antônio responde por homicídio doloso, e responde também pelo aborto, no artigo
124, ante a natureza de sua participação, que foi indução ao aborto consentido. Até mesmo
para a corrente que adota a imputação objetiva, porque se instiga a mulher a se colocar em
uma situação de perigo, detendo uma informação fundamental que a pessoa que se coloca
em perigo não detém – o perigo de vida, no caso –, a auto colocação em perigo não é tese
que elida sua responsabilidade, porque se a gestante soubesse de todos os detalhes, não se
colocaria em tal risco. Assim, a auto colocação em risco foi eivada por desconhecimento do
real perigo.
Jonas responde da mesma forma, quanto ao homicídio, se for sabedor das condições
preexistentes da vítima; se não sabe, está isento deste crime. De qualquer forma, porém,
responde pelo aborto consentido, incidindo no artigo 126 do CP.

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema V

Lesão Corporal. 1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Tipicidade objetiva e subjetiva da lesão corporal simples e da lesão corporal grave e gravíssima. 2) O
problema da tentativa na lesão corporal. 3) Lesão corporal seguida de morte: tipicidade objetiva e subjetiva.
4) A participação no crime preterdoloso. O excesso nos meios e o excesso nos fins. 5) Hipóteses de
diminuição e substituição de pena (artigo 129, §§ 4º e 5º do Código Penal).6) Aspectos controvertidos .7)
Concurso de crimes. 8) Pena e ação penal.

Notas de Aula10

1. Lesão corporal

O artigo 129 do CP tutela a saúde e a integridade corporal: estes são os bens


jurídicos ali protegidos. Serão abordados todos os aspectos e modalidades de lesão, mas
vale, desde já, transcrever o artigo na íntegra:

“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
10
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 21/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - detenção, de três meses a um ano.


Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2° Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incuravel;
III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Lesão corporal seguida de morte
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quís o
resultado, nem assumiu o risco de produzí-lo:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Diminuição de pena
§ 4° Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Substituição da pena
§ 5° O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção
pela de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis:
I - se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior;
II - se as lesões são recíprocas.
Lesão corporal culposa
§ 6° Se a lesão é culposa: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)
Pena - detenção, de dois meses a um ano.
Aumento de pena
§ 7º - Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qualquer das hipóteses do art.
121, § 4º. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 1990)
§ 8º - Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121.(Redação dada pela
Lei nº 8.069, de 1990)
Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004)
§ 9° Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-
se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação
dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº
11.340, de 2006)
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as
indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). (Incluído pela
Lei nº 10.886, de 2004)
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o
crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº
11.340, de 2006)”

Lesão corporal é qualquer dano, interno ou externo, à normalidade funcional do


corpo humano, sob o ponto de vista anatômico (forma e estrutura corporal), fisiológico
(funções biológicas), ou mental (choques, convulsões, ou quaisquer formas de
desestabilização mental).

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A lesão corporal é um crime de dano, material, sendo necessária sua comprovação


por meio do laudo pericial, direto ou indireto. A simples inflição de dor não configura o
crime de lesões corporais. Pode até configurar outro crime, como a tortura, ou a
contravenção de vias de fato, do artigo 21 da Lei das Contravenções Penais, mas lesão
corporal não é.
Pelo ensejo, vale desde logo traçar a diferença entre lesão corporal e vias de fato, eis
que esta contravenção pode até mesmo, eventualmente, deixar vestígios danosos, sem
configurar lesão. Veja o artigo 21 do DL 3.688/41:

“Art. 21. Praticar vias de fato contra alguem:


Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um
conto de réis, se o fato não constitue crime.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é
maior de 60 (sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003).”

A contravenção se configura quando existe uma violência, mas não há dolo de


causar lesão, ou seja, não se pretende, com a violência, ferir a integridade física ou a saúde
da vítima. Se há a lesão, decorrente das vias de fato, pode até mesmo haver a imputação por
lesão culposa, em concurso com a contravenção. A diferença é puramente no dolo: na lesão
corporal, há o animus laedende, enquanto nas vias de fato o dolo não é de lesionar – há
dolo de empregar violência sem causar qualquer lesão.
Da mesma forma, não se confundem, a lesão corporal ou as vias de fato, com o
crime de injúria real, do artigo 140, § 2°, do CP:

“Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
(...)
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à
violência.”

Novamente, a diferença está no dolo: o agente que pratica a violência ou vias de


fato, aqui, não quer meramente usar de violência, tampouco causar lesão. Seu ânimo é de
humilhar, causar avilte vexaminoso à vítima.
Repare que o ato físico, a execução, pode ser a mesma em todos as três infrações:
um tapa no rosto pode ser qualquer das três tipificações, a depender do ânimo do agente. E
pode, inclusive, haver concurso na ação do agente.
Vejamos, então, pontualmente, todos os conceitos insertos no tipo genérico da lesão
corporal.

1.1. Lesão corporal leve

O conceito de lesão leve é extraído por exclusão: é leve a lesão que não for
tipificada como mais grave, enquadrada nos §§ 1°, 2° ou 3° do artigo 129 do CP.
O bem jurídico protegido na lesão pode ser considerado relativamente disponível,
como diz parte da doutrina, porque na lesão leve, mas nunca na grave, se considera que o
consentimento do seu titular como excludente da tipicidade. Não se preenche o tipo, sequer
formalmente, nas atividades que violam leve e consentidamente a integridade física do

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

agente, porque não se preenche o verbo “ofender”, elementar do tipo. O furo da orelha para
inserção do brinco requerido pela pessoa que se tem perfurada, por exemplo, simplesmente
não é ofensa ao bem jurídico.
Repare que, tecnicamente, não se trata sequer de disponibilidade do bem jurídico
para a lesão leve. Como não há ofensa, não precisou haver disposição da integridade para
que aquela atividade fosse atípica: ela é atípica por não haver ofensa ao bem jurídico, na
essência, e não porque o consentimento excluiu a tipicidade.
E há ainda a assertiva que o bem jurídico só será disponível, mesmo na lesão leve,
se não se ofender, com esta disposição, a moral e os costumes, o que só torna a defesa da
disponibilidade ainda mais estranha, ante a atecnia desta separação do que é ou não
disponível. Como diz Zaffaroni, não cabe ao Direito Penal traçar conceitos de moral e bons
costumes. É por isso que a lesão leve consentida, praticada no ato sexual, não pode ser
considerada típica11 (se praticada em público, pode até levar a outra capitulação, como ato
obsceno, mas em nada pertinente à lesão).
A lesão leve é um crime de dano, material, que se consuma na efetiva causação da
lesão. Por ser plurissubsistente, admite a tentativa, em nada se confundindo, a lesão leve
tentada, com a contravenção das vias de fato, porque o dolo difere, como dito.
É um crime de forma livre, podendo ser executado com qualquer meio hábil.
Arrancar os cabelos ou as unhas pode ou não configurar lesão, a depender do caso
concreto, por conta da aplicação do princípio da insignificância, que é perfeitamente
cabível. A análise é casuística.
1.2. Lesão corporal qualificada

Os §§ 1° a 3° do artigo 129 trazem dez possíveis resultados qualificadores da lesão


corporal. Destes, apenas três são necessariamente culposos, ou seja, o crime que os resulta é
preterdoloso: o resultado morte, do § 3°; o aborto, do § 2°, V; e o perigo de vida, do § 1°,
II. Estes resultados só podem ser imputados a título de culpa, enquanto nos demais
resultados, qualifica-se o crime com dolo ou culpa do agente.
A diferença é clara: se o agente pratica a lesão, e busca o resultado deformidade
permanente, com dolo, está incurso no § 2°, IV, do artigo 129; se a lesão causada acarreta
esta deformidade sem que fosse dolo do agente, o enquadramento é o mesmo. Pelo outro
lado, se a intenção do agente, ao praticar a lesão, é a morte da vítima, está claro que o
enquadramento é no homicídio. Por isso, este resultado só será qualificador da lesão se for
culposo.
É perfeitamente possível a tentativa de lesão corporal qualificada, quando se tratar
de um dos resultados que não são preterdolosos, ou seja, se o agente tem dolo de lesão
qualificada, dolo de alcançar um resultado que torne a lesão grave. Só não será possível a
tentativa de lesão corporal qualificada se o resultado fosse culposo – aborto, morte ou
perigo de vida –, porque a sua inocorrência simplesmente descaracteriza a qualificadora,
que depende do resultado para ser constatada. Se o agente desejava o resultado qualificador,
e não conseguiu alcançá-lo, está clara a tentativa da lesão qualificada pelo resultado doloso.
11
As lesões causadas nos esportes violentos são praticadas em exercício regular do direito, e por isso são
justificadas, no nosso sistema, e não atípicas. Em sendo adotada a teoria da tipicidade conglobante, porém, o
exercício regular do direito será excludente da tipicidade, eis que a conduta não será antinormativa. Como
exemplo, a conduta do boxeador ao ferir o adversário em conformidade com as regras do esporte
(normatividade do esporte, portanto), é atípica, assim como a do médico que segue o protocolo da cirurgia
necessária à cura – não há lesão corporal por atipicidade, nos dois casos.

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Os §§ do artigo 129 apresentam uma gradação em gravidade dos resultados


qualificadores, ou seja, há um resultado que torna a lesão grave e outro que, um pouco mais
severo, torna-a gravíssima. Por exemplo, a debilidade permanente de membro, sentido ou
função (§ 1°, III) é lesão grave; a perda ou inutilização do membro, sentido ou função (§
2°, III), por seu turno, é gravíssima. Havendo concurso aparente destes enquadramentos,
prepondera o mais severo.
Vejamos cada um dos resultados qualificadores da lesão.

1.2.1. Lesões corporais graves

1.2.1.1. Incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias

As ocupações habituais da vítima, para importarem nesta qualificadora do crime,


precisam ser lícitas: não pode o agente ter a pena agravada porque a vítima de seu ato de
lesão ficou sem poder praticar atos ilícitos por mais de trinta dias. Se a atividade habitual da
vítima for imoral, mas lícita, a qualificadora se aplica: o que a afasta é a ilicitude da
ocupação habitual. Como exemplo, a prostituição: a vítima, prostituta, que é obstada de
praticar tal atividade por mais de trinta dias implica qualificação do crime de lesão contra si
cometido.
É considerada ocupação habitual toda aquela que o agente desempenha
rotineiramente, cotidianamente, não necessariamente relacionada a atividades laborativas.
Freqüentar aulas, ir à academia, cuidar dos afazeres domésticos, tudo isto se presta a
qualificar o delito de lesão, se impedida a vítima de desempenhar tais ocupações. A
habitualidade é outro elemento relativo, eis que pode a vítima desempenhá-la diariamente,
ou de forma um pouco mais esparsa – a verificação é casuística.
Como a qualificadora impõe uma questão temporal objetiva – incapacitação por
mais de trinta dias –, o laudo pericial complementar, destinado a demonstrar justamente
este elemento objetivo, é geralmente necessário. O laudo complementar para prova do
tempo só será dispensado quando o prognóstico da lesão, já na realização do laudo inicial,
puder indicar que tal incapacidade perdurará por mais de trinta dias. Entenda: se o perito
que realiza o exame inicial do corpo de delito puder afirmar desde logo, sem qualquer
dúvida, que determinada lesão acarretará afastamento das atividades habituais por mais de
trinta dias, o laudo pericial complementar não é necessário. Se o perito disser, no exame
inicial, que não há como prever este afastamento, aí então o laudo complementar é
imperativo, ou a qualificadora não se comprova. Em síntese, o laudo complementar é
necessário, desde que não seja possível um prognóstico seguro da duração da incapacitação.

1.2.1.2. Perigo de vida

Perigo de vida se trata da probabilidade real e concreta de morte. A questão é


empírica e estatística: deve ser comprovado que a lesão causada, medicamente, tem
potencial para causar a morte.
Como dito, é uma qualificadora preterdolosa, porque se a intenção do agente era
atentar contra a vida da vítima, a tipificação é no homicídio. O perigo de morte, aqui, só
pode ser culposo.

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.2.1.3. Debilidade permanente de membro, sentido ou função

São membros do corpo humano apenas os braços e as pernas. Sentidos, todas


aquelas funções que nos permitem perceber o mundo exterior. E funções, todas as
atividades do corpo humano que refletem seu funcionamento pleno (função digestiva,
excretora, reprodutora, mastigatória, renal, pinça ou guindaste, etc).
A debilidade do membro deve ser permanente, o que não se confunde com perpétua.
Segundo Nelson Hungria, a debilidade é permanente quando não se consegue vislumbrar
seu final, mesmo que este seja eventualmente possível. Não necessariamente, então, será a
debilidade permanente irreversível: basta que não seja possível afirmar que a cura existirá.
Sendo impossível afirmar a cura, a debilidade se considera permanente.
Quanto aos sentidos ou funções, a debilidade representa uma redução de sua
capacidade funcional, e não perda – pois se há perda, a lesão é gravíssima, qualificando-se
pelo § 2°, III, do artigo 129, e não no § 1°, III.
A perda da mão inteira configura-se inutilização do braço, e não na mera debilidade
do membro, incidindo na lesão gravíssima, portanto. Isto porque a função do braço é
justamente estender o alcance da mão, e sem esta o braço perde sua utilidade principal.
Um golpe que resulte em perda de dentes é considerado lesão grave, porque gera
debilidade permanente da função mastigatória (havendo que se ter cuidado com a posição
de Nelson Hungria, que estranhamente entende que somente se restarem poucos dentes esta
situação se configura). Da mesma forma ocorre se há a perda de um dedo, porque este
resultado é debilidade da função pinça, ou guindaste, exercida pelas mãos12.
Havendo órgãos duplos, como os rins, olhos, ouvidos os pulmões, a perda de um
significa debilidade da função ou sentido correspondente. A perda de ambos, se não for
fatal (pois então será resultado morte, do § 3° do artigo 129), consiste em perda da função
ou sentido, por óbvio, e não mera debilidade.

1.2.1.4. Aceleração de parto

O legislador deveria ter empregado o termo “antecipação”, ao invés de “aceleração”


do parto, porque acelerar dá a entender que o parto já teve início, sendo a conduta do agente
apenas um evento precipitador. Na verdade, o que ocorre, nesta qualificadora, é oi início
prematuro do parto, ou seja, não havia parto em curso, para ser acelerado.
Se a lesão corporal que induz ao parto prematuro causar seqüelas na criança, o
agente responderá tanto pela lesão qualificada da gestante, apenas, mas as seqüelas serão
computadas no cálculo da pena-base, como consequências anormais do delito.

1.2.2. Lesões corporais gravíssimas

1.2.2.1. Incapacidade permanente para o trabalho


12
Curiosa situação que se pode cogitar é a da perda de um dos dedos por pessoa que possui anomalia física
consistente na presença de seis dedos por mão: se a lesão toma-lhe um dedo, estará configurada a
qualificadora da mesma forma, porque a função pinça, para esta pessoa, era composta por seis dedos, e não
cinco – e a perda de um debilitou a função como esta pessoa conhecia. Esta reflexão leva a concluir que
qualquer análise das qualificadoras deve ser feita de um ponto de vista subjetivo, tendo como foco a vítima e
suas condições pessoais, sob pena de se cometer injustiças, deixando de se computar uma qualificadora
porque uma vítima padece de alguma forma de anomalia qualquer.

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A doutrina se divide na análise desta qualificadora. Uma primeira corrente, de


Nelson Hungria, defende que a incapacidade deve ser constatada para qualquer trabalho, o
que acaba, de fato, por inviabilizar praticamente a aplicação deste inciso I do § 2° do artigo
129 do CP, porque não há quem não possa desempenhar qualquer atividade laborativa:
mesmo um tetraplégico pode desempenhar atividades intelectuais, por exemplo.
Por isso, há uma segunda corrente que é mais coerente, da qual comungam Greco,
Nucci e Bitencourt, que defende que a incapacidade permanente deve ser referente ao
trabalho que a vitima era apta a realizar.

1.2.2.2. Enfermidade incurável

É enfermidade incurável aquele resultado crônico de uma lesão. Por exemplo, uma
osteopatia, ou um reumatismo, que resulte da lesão e não tenha cura. É considerada
incurável a enfermidade que não tem tratamento curativo consolidado na doutrina médica
(não podendo ser considerada cura aquela terapia não comprovada cientificamente, por
métodos experimentais).
A aids é um caso especial, assim como qualquer enfermidade que é fatal e
incurável: o cometimento da lesão corporal que resulta em contaminação por uma destas
enfermidades letais, incuráveis, revela dolo de matar, e por isso o resultado morte é doloso,
sendo ele consumado ou tentado – há homicídio, e não lesão qualificada.

1.2.2.3. Perda ou inutilização de membro, sentido ou função

Como já se antecipou, a perda ou inutilização difere da debilidade pela sua


completitude: a perda da função renal se dá pela perda dos dois rins, por exemplo; a
inutilização do membro se dá pela perda da mão, ou dos movimentos do braço inteiro, por
secção dos nervos; a perda da função reprodutora ocorre pela perda da fertilidade; a
amputação de uma perna é perda do membro, etc.
Se uma lesão acarreta a perda dos globos oculares de uma pessoa que já era cega, há
a qualificadora? Veja que o sentido da visão já não existia, pelo que a perda dos globos
oculares não é perda de sentido, mas é claramente um caso de deformidade permanente,
qualificando-se a lesão pelo inciso IV do § 2° do artigo 129 do CP.
A cirurgia de mudança de sexo é uma questão peculiar. O Conselho Federal de
Medicina, na Resolução 1.652/02, especificou as condições para que tal cirurgia seja feita
no Brasil. Vale a transcrição deste ato normativo:

“RESOLUÇÃO CFM nº 1.652/2002


Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº
1.482/97.
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº
3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de
julho de 1958, e
CONSIDERANDO a competência normativa conferida pelo artigo 2º da
Resolução CFM nº 1.246/88, combinado ao artigo 2º da Lei nº 3.268/57, que

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

tratam, respectivamente, da expedição de resoluções que complementem o Código


de Ética Médica e do zelo pertinente à fiscalização e disciplina do ato médico;
CONSIDERANDO ser o paciente transexual portador de desvio psicológico
permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à
automutilação e ou auto-extermínio;
CONSIDERANDO que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da
genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de
mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal, visto que tem o propósito
terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico;
CONSIDERANDO a viabilidade técnica para as cirurgias de neocolpovulvoplastia
e ou neofaloplastia;
CONSIDERANDO o que dispõe o artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo
quarto, que trata da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de
transplante, pesquisa e tratamento, bem como o fato de que a transformação da
genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de pacientes com
transexualismo;
CONSIDERANDO que o artigo 42 do Código de Ética Médica veda os
procedimentos médicos proibidos em lei, e não há lei que defina a transformação
terapêutica da genitália in anima nobili como crime;
CONSIDERANDO que o espírito de licitude ética pretendido visa fomentar o
aperfeiçoamento de novas técnicas, bem como estimular a pesquisa cirúrgica de
transformação da genitália e aprimorar os critérios de seleção;
CONSIDERANDO o que dispõe a Resolução CNS nº 196/96;
CONSIDERANDO o estágio atual dos procedimentos de seleção e tratamento dos
casos de transexualismo, com evolução decorrente dos critérios estabelecidos na
Resolução CFM nº 1.482/97 e do trabalho das instituições ali previstas;
CONSIDERANDO o bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista estético
como funcional, das neocolpovulvoplastias nos casos com indicação precisa de
transformação o fenótipo masculino para feminino;
CONSIDERANDO as dificuldades técnicas ainda presentes para a obtenção de
bom resultado tanto no aspecto estético como funcional das neofaloplastias,
mesmo nos casos com boa indicação de transformação do fenótipo feminino para
masculino;
CONSIDERANDO que o diagnóstico, a indicação, as terapêuticas prévias, as
cirurgias e o prolongado acompanhamento pós-operatório são atos médicos em sua
essência;
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na Sessão Plenária de 6 de novembro
de 2002,
RESOLVE:
Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou
procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários
como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo
neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres
sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios
abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e
secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a
avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião,

Michell Nunes Midlej Maron 67


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo


definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só
poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados
para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino
poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da
atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional
de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe
citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica.
Parágrafo 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais,
inclusive contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a
ocupação do cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a
paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando
dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido.
Art. 8º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se a
Resolução CFM nº 1.482/97.
Brasília-DF, 6 de novembro de 2002.
EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE
Presidente
Secretário Geral RUBENS DOS SANTOS SILVA”

O médico que fizer esta cirurgia em desacordo com as especificações do CFM


estará incurso no inciso III, porque certamente implicará em perda ou inutilização de
funções. Há, porém, que se considerar que mesmo que haja a cirurgia sem observância da
resolução, o dolo do médico não é de lesionar; ao contrário, é de diminuir o sofrimento da
pessoa que está sob as circunstâncias do transexualismo.
Há inda outra tese defensiva que, por reputar a sexualidade como bem disponível, e
como a forma de expressão da sexualidade é feita mormente pelo aparelho sexual, a sua
alteração estaria abarcada nesta esfera de disponibilidade.
O mesmo raciocínio se repete nas cirurgias de esterilização, que devem observar as
regulamentação da Lei 9.263/96. Aqui, porém, há uma diferença: se a cirurgia não for
legalmente realizada, a tipificação recai no artigo 15 desta lei:
“Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art.
10 desta Lei. (Artigo vetado e mantido pelo Congresso Nacional) Mensagem nº
928, de 19.8.1997
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais
grave.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada:
I - durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10
desta Lei.
II - com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de
alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados
emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente;
III - através de histerectomia e ooforectomia;

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

IV - em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial;


V - através de cesária indicada para fim exclusivo de esterilização.”

A perda do hímen é lesão qualificada por perda da função, para a melhor corrente.
Mirabete e Hungria entendem que se trata de lesão simples, porque o hímen não teria
função; contudo, sua função existe: serve para a proteção do canal vaginal da mulher
virgem, que não tem a flora deste canal desenvolvida, estando mais suscetível a infecções,
se o hímen for rompido13.

1.2.2.4. Deformidade permanente

A deformidade permanente, assim como a debilidade permanente, não é


necessariamente perpétua. Inclusive, mesmo sendo possível sua reversão com cirurgias
plásticas, ninguém é obrigado a realizar um procedimento cirúrgico, e a deformidade ainda
será considerada permanente, se a vítima não o fizer.
Note que se a vítima efetuar cirurgia corretiva, sanando a deformidade, a
qualificadora se desconfigura. Se antes da condenação, haverá a desclassificação do crime
para lesão leve. Se a cirurgia corrige a deformidade após o trânsito em julgado da
condenação por lesão qualificada, pode-se até mesmo falar em revisão criminal, na forma
do artigo 621, III, do CPP:

“Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:


(...)
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do
condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da
pena.”

É deformidade qualificadora toda marca ou cicatriz vexatória decorrente da lesão,


tendo nuance eminentemente estético. Veja que o critério de mensuração do potencial
vexaminoso é objetivo, não podendo ser medido pelo índice de vaidade de cada um. O
constrangimento deve ser considerado evidente ao meio social, e não apenas ao senso
interno de vaidade da pessoa.
Da mesma forma, não se pode tomar em conta a maior ou menor importância da
estética para cada pessoa, para fins penais. Não é porque a vítima é uma modelo que um
pequeno corte no rosto será considerado deformidade permanente, se não o seria em pessoa
de outra profissão. Pode até reverberar na esfera cível, esta diferença pessoal de relevância
da estética, mas não para fins penais. Debalde, há quem entenda que esta cogitação pessoal
é cabível, como o faz Nelson Hungria – o que revela até mesmo um certo preconceito, ao se
atribuir mais importância ao mesmo bem jurídico de uma pessoa do que de outra.
A deformidade, por óbvio, deve ser visível, nas situações normais da vida. Por isso,
é claro que a deformidade em partes íntimas preenche esta qualificação, mesmo que estas
partes só sejam visíveis em situações de intimidade, mas que são normais da vida.

1.2.2.5. Aborto

13
Há tese estranha que fala em função social do hímen, porque atribui a virgindade à mulher. É tese
inacatável.

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Como o aborto já foi exaustivamente abordado, basta aqui reiterar a assertiva de que
o aborto que qualifica a lesão é sempre culposo, pois se trata de resultado necessariamente
preterdoloso, eis que se for doloso o crime é o próprio aborto.

1.2.3. Lesão corporal seguida de morte

O § 3° do artigo 129 dispõe que se da lesão resultou morte, sem dolo direto ou dolo
eventual na aquisição deste resultado, se preenche esta qualificadora. É o resultado morte,
atribuído ao agente a título de culpa, como consequência de uma lesão dolosa. Havendo
dolo, o crime é o homicídio.
Para a qualificadora ser incidente, a morte tem que decorrer da lesão: a lesão dolosa
evolui para a morte culposa. Se a conduta que leva à morte culposa não for a prática de uma
lesão dolosa, o crime que se preenche é o homicídio culposos. Veja: se o agente, irritado
com a vítima, dá-lhe um empurrão com o único intento de tirá-la de sua frente (e não causar
lesão alguma, o que configura vias de fato), mas deste empurrão a vítima escorrega, cai e
bate a cabeça fatalmente, não se trata de lesão corporal dolosa seguida de morte culposa,
porque lesão nunca houve: trata-se de homicídio culposo.
É claro que a morte só será imputável se houver culpa, ou seja, se se apresentar a
quebra de dever de cuidado com a previsibilidade deste resultado morte. Do contrário, se a
morte era imprevisível, não se pode imputar o agente, sob pena de configurar
responsabilização penal objetiva. O mesmo raciocínio se dá quando se verifica que causas
externas à lesão levaram à morte, como a falta de cuidado da vítima com sua própria vida:
um arranhão, lesão leve, que evolua para quadro fatal de septicemia por desídia da vítima
em tratar-se não pode fazer o autor da lesão responsável pela morte da vítima. A ampliação
do risco foi causada pela própria vítima.
Como qualquer crime preterdoloso, este não admite tentativa, eis que o resultado
culposo não pode ser tentado, por essência.
O ferimento culposo também pode resultar em morte culposa, mas neste caso não se
fala em lesão corporal culposa seguida de morte culposa: se trata puramente de homicídio
culposo, pois é claro que a leitura que deve ser feita é que a quebra do cuidado gerou a
morte, e não que gerou a lesão seguida da morte.

1.3. Lesão corporal privilegiada

O § 4° do artigo 129 do CP determina que se o agente comete o crime impelido por


motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Trata-se, aqui, da lesão corporal privilegiada, e o raciocínio para sua configuração é
exatamente o mesmo tecido acerca do homicídio privilegiado, o estas causas de privilégio,
todas elas, circunstâncias subjetivas do crime. Por isso, remete-se ao estudo do artigo 121, §
1°, do CP, anteriormente registrado.

1.4. Substituição da pena

O § 5° do artigo 129 do CP deixa ao critério do juiz a substituição da pena privativa


de liberdade pela pena de multa, nos casos de lesão leve, em duas situações: quando se

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

tratar de lesão leve privilegiada, na forma do § 4° do mesmo artigo; ou quando o caso


revele lesões leves recíprocas.
A lesão recíproca não se confunde com a legítima defesa: ao revide animado por
dolo de lesionar se atribui a imputação de lesão, porque o ânimo da legítima defesa é
justamente o de defender-se, fazendo cessar o ataque, e não o dolo de também atacar, em
contrapartida.
Não há qualquer aplicabilidade desta substituição em lesões graves ou gravíssimas,
ou naquelas seguidas de morte.

1.5. Lesão corporal culposa

A lesão corporal culposa, prevista no artigo 129, § 6°, do CP, segue a mesma linha
de raciocínio do homicídio culposo, pelo que se remete ao estudo deste delito anteriormente
realizado.
Vale apenas consignar que na lesão culposa, a gravidade dos ferimentos é
irrelevante: se for percebido qualquer resultado gravoso, daqueles arrolados nos §§ 1° e 2°
deste artigo 129, este não tem qualquer efeito sobre a capitulação. A lesão culposa é sempre
tipificada no § 6° do artigo 129, e as consequências do resultado gravoso poderão, no
máximo, repercutir na pena-base do agente.
Se o resultado da lesão culposa for a morte, não se fala em lesão culposa seguida de
morte, como dito: o crime é o homicídio culposo, se a lesão causada normalmente acarretar
tais resultados. Por exemplo, um tiro culposo, disparado ao limpar a arma: é homicídio
culposo, se a vítima morre, e não lesão corporal culposa. Se sobrevive, é lesão corporal
culposa. Ocorre que se a lesão causada não tenha o resultado morte sequer previsível, não
pode a morte ser imputada ao agente, sequer a título de culpa. Um corte leve no braço da
vítima, não intencional, por exemplo: se esta vem a óbito, por qualquer causa
extraordinária, o crime ainda será o de lesão corporal culposa.

1.6. Lesão corporal agravada

O § 7° do artigo 129 do CP determina que às lesões corporais se aplica a majorante


prevista no § 4° do artigo 121 do CP. Assim, a lesão corporal culposa terá a pena aumentada
de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou
ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as
conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante.
Se a lesão corporal for dolosa, a pena é aumentada de um terço se o crime é
praticado contra pessoa menor de quatorze ou maior de sessenta anos.

1.7. Perdão judicial

O § 8° do artigo 129 do CP diz que à lesão corporal culposa é aplicável o § 5° do


artigo 121 do CP, ou seja, torna possível o perdão judicial. Destarte, na hipótese de lesão
culposa, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o
próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

1.8. Violência doméstica

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O § 9° do artigo 129 do CP foi inscrito pela Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06. Se a
lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou
com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, trata-se de mais uma qualificadora
autônoma da lesão leve.
Veja que se já se tratar de lesão qualificada, não se aplica a pena prevista no § 9°: se
aplica a pena da lesão qualificada correspondente, aumentada de um terço, na forma do §
10 do mesmo artigo.
O legislador quis, aqui, reprimir a violência no âmbito doméstico e familiar, e não
apenas a violência contra a mulher. Por isso, a vítima, aqui, pode ser qualquer pessoa que se
encontre nas circunstâncias mencionadas no § 9°, e não só a mulher.
O § 11 deste artigo 129 comina ainda mais uma causa de aumento de pena em caso
de lesão corporal praticada no âmbito doméstico e familiar: a pena será aumentada de um
terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência, se esta lesão se der
nas situações de convívio ou parentesco que o § 9° menciona. A deficiência, para ser
considerada, deve ser a efetiva redução da capacidade da vítima.

1.9. Lesão corporal para fins de transplante de órgãos

A lesão provocada com o intuito de remoção de órgãos ou tecidos do corpo humano,


para fins de transplante, não é tipificada no CP, mas sim na Lei 9.434/97, no artigo 14, § 2°:

“Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em


desacordo com as disposições desta Lei:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa.
§ 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por
outro motivo torpe:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa.
§ 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido:
I - incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa
§ 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido:
I - Incapacidade para o trabalho;
II - Enfermidade incurável ;
III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa.
§ 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte:
Pena - reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa.”

Veja que o artigo supra reproduz bastante do artigo 129 do CP, mas com as penas
incrementadas, ante a finalidade normalmente espúria do agente que pratica tal crime.

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

Revoltado com o comportamento da cunhada que discutia com sua esposa, CAIO
desfere um chute na barriga da vítima que vem a sofrer uma lesão no local atingido, além
de ter sido obrigada a abortar, sendo certo que o agente desconhecia aquela gravidez.
Denunciado por aborto, a defesa critica aquela capitulação. Assiste-lhe razão?A solução
seria outra se CAIO soubesse que sua cunhada estava grávida?

Resposta à Questão 1

Se a gravidez não estava na esfera de conhecimento do réu, e tampouco podia se


exigir que estivesse, a defesa está correta. Sequer a título de preterdolo este aborto lhe pode
ser imputado, devendo responder apenas pela lesão simples.
É claro que se o réu soubesse da gravidez da vítima, sua imputação seria pelo
aborto, no mínimo tendo sido configurado o dolo eventual, quiçá direto.

Questão 2

Após contratar os serviços de uma profissional do sexo, RONALDO, não satisfeito


com o atendimento respectivo, com vontade de lesionar, desfere vários socos no rosto da

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

vítima, causando-lhe lesões que a deixaram impossibilitada de trabalhar por prazo


superior a trinta dias. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação para aquela conduta?
b) A atividade ilícita ou imoral é protegida no tipo derivado respectivo?
c) O laudo complementar, na hipótese, com a data de sua realização, é peça
essencial para o julgamento?

Resposta à Questão 2

a) Trata-se de lesão corporal grave, qualificada pela incapacidade para as


ocupações habituais por mais de trinta dias – artigo 129, § 1°, I, do CP.
b) A atividade imoral sim, mas não a ilícita. A atividade da prostituta é imoral, mas
não é ilícita, e por isso configura a qualificadora, pois é ocupação habitual que
merece proteção.
c) Depende: em regra, o laudo é necessário, mesmo que seja o laudo indireto,
baseado no Boletim de Atendimento Médico – Bam –, mas se o perito puder
exarar prognóstico seguro de que o prazo de trinta dias decorrerá, o laudo
complementar se torna dispensável.

Questão 3

Após breve discussão, duas mulheres (CONCEIÇÃO e FAUSTA) entram em luta


corporal, sendo separadas por vizinhos. No dia seguinte, uma delas, CONCEIÇÃO,
auxiliada por sua filha DEISE, esta com 18 anos, provocam a rival que se achava no
terreno vizinho. Inconformada, a última invade o quintal das provocadoras e novamente
entra em luta corporal com CONCEIÇÃO, fato que é assistido por diversos vizinhos,
inclusive o marido da provocada, que impedia qualquer intervenção de terceiro. Todavia,
DEISE, vendo que sua mãe estava perdendo a demanda, puxa os cabelos de FAUSTA,
vindo esta a ficar paralisada no chão. Em seguida, o marido de FAUSTA a socorre,
levando-a logo ao hospital público da localidade, onde permanece por três dias sem
qualquer tipo de reação. Chamado um ortopedista, é por este constatado que FAUSTA, em
razão daquele puxão de cabelo, teve fratura de uma das vértebras, vindo a falecer, dez dias
depois, em razão de parada respiratória decorrente daquela fratura. CONCEIÇÃO e sua
filha DEISE foram denunciadas pela prática do injusto do artigo 129, § 3º, do Código
Penal. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação do fato?
b) A defesa poderia alegar que as acusadas agiram em legítima defesa, já que a
vítima foi quem deu início às agressões?
c) A provocação exclui o direito de se alegar a excludente supra referida?
d) Em que consiste o chamado pretexto de legítima defesa?
e) O fato de a vítima somente ter sido atendida por um ortopedista três dias após o
fato, o que demonstra que ela foi pessimamente medicada ao dar entrada no
Hospital Público, é suficiente para afastar o nexo de causalidade?
f) Em que consiste a chamada previsibilidade objetiva? E a previsibilidade
subjetiva?

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Resposta à Questão 3

a) A capitulação não pode levar em conta o resultado morte, porque este não pode
ser imputado à autora a título de culpa: não é previsível que um puxão de
cabelos leve à morte.
b) Não: a legitima defesa não se verifica quando o ânimo é de ataque, mesmo que
este venha a ser praticado por conta de uma provocação prévia da vítima.
c) Sim, justamente porque se torna um elemento motivador do ataque.
d) A legitima defesa tem finalidade especifica de proteger o bem jurídico, além de
prevenir o ataque, porque o atacante sabe que a vítima é amparada pelo
ordenamento em seu ato de repelir a agressão. Não tem a finalidade de servir
como pretexto para uma agressão, porque neste caso o agente deseja agredir, e
não defender-se.
e) Sim: trata-se de causa superveniente absolutamente independente, capaz de ilidir
a responsabilidade dos autores da lesão pelo resultado morte.
f) A objetiva é aquela aferida à luz do homem médio, aquilo que alguns chamam
de consciência paralela no círculo do profano. A subjetiva, por seu turno, é
aquela que se analisa à luz da consciência daquela pessoa em concreto, daquele
indivíduo, particularizadamente. No crime culposo, a previsibilidade objetiva se
situa na tipicidade, eis que o que não é previsível objetivamente não é culpável;
a subjetiva, por seu turno, se situa na culpabilidade, eis que se superada a
objetiva – o homem médio poderia prever o resultado culposo –, a subjetiva é
que dará a nota de reprovabilidade da conduta do agente, naquele momento, e se
a situação tornar imprevisível ao agente, naquele momento, o resultado, exclui-
se a culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.
Zaffaroni, por seu lado, defende que a previsibilidade objetiva
simplesmente não existe: para ele, o conceito de homem médio é inconcebível,
porque se trata de uma abstração calcada em um parâmetro que simplesmente
não existe, e a utilização de um parâmetro de adequação típica que não existe é
uma grave falha no sistema. Sendo assim, só existiria, para ele, a previsibilidade
subjetiva. É tese singular, mas muito coerente, diga-se.

A respeito, veja a Apelação Criminal 1999.050.00708, do TJ/RJ:

“Processo. 1999.050.00708. 1ª Ementa – APELACAO.


DES. MARCUS BASILIO - Julgamento: 22/06/1999 - PRIMEIRA CAMARA
CRIMINAL. LESAO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE. LAUDO PERICIAL
PROVA DE DEFESA EXTEMPORANEA. DESENTRANHAMENTO
DETERMINADO PELO DR. JUIZ. PRETEXTO E PROVOCACAO. LEGITIMA
DEFESA NAO CONFIGURADA. DESCLASSIFICACAO DO CRIME. LESAO
CORPORAL. RECONHECIMENTO. ART. 13 C.P.
LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE - CERCEAMENTO DE DEFESA:
parecer médico anexado aos autos extemporaneamente; desentranhamento -
LEGÍTIMA DEFESA: provocação; pretexto de legítima defesa RELAÇÃO DE
CAUSALIDADE: teoria da equivalência dos antecedentes; causa superveniente;
mau atendimento médico - RESULTADO MORTE IMPREVISÍVEL:
responsabilidade objetiva; crime preterdoloso; previsibilidade. O Juiz, nos termos
do artigo 251 do Código de Processo Penal, deve prover à regularidade do
processo, não constituindo cerceamento de defesa a decisão que determinou o

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

desentranhamento de laudo médico particular juntado extemporaneamente,


inclusive após o Ministério Público já ter apresentado as suas razões finais,
mormente porque, nos momentos próprios (art° 395 e 499), não pugnou por aquela
prova pericial. A doutrina é firme no sentido de que a prévia provocação do agente,
mormente quando não constituir uma agressão, não exclui a legítima defesa
posterior, salvo, porém, quando não passa de um pretexto ardiloso para provocar o
ataque, tratando-se, na hipótese, de "pretexto de legítima defesa" ou "provocação
intencional de situação de legítima defesa ", o que efetivamente ocorreu na
hipótese vertente. (cf. Hungria e Assis Toledo).”

Tema VI

Da Periclitação da Vida e da Saúde I.1) Considerações gerais: a) Definição de perigo. Teorias; b) A


subsidiariedade em relação aos crimes de dano. Bem jurídico tutelado; c) Diferença entre crimes de perigo
abstrato e concreto; d) Diferença entre crimes de perigo individual e crimes de perigo comum; e) O elemento
subjetivo nos crimes de perigo individual. 2) Crimes de perigo individual (artigos 130 a 132 do CP): sujeitos
do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. 3) Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação
penal.

Notas de Aula14

1. Da periclitação da vida e da saúde

Este capítulo do CP, que trata da periclitação da vida e da saúde, introduz na parte
especial do código o tratamento dos crimes de perigo.
Perigo é a probabilidade real e concreta de dano. Perigo não é apenas algo que se
passa na mente do intérprete, não é algo que se imagina perigoso a um bem jurídico. Não é
subjetivo. O perigo é um dado da realidade, uma situação objetiva, que existe no mundo
dos fatos.
Criar perigo para o bem jurídico é colocá-lo em uma situação transitória de
instabilidade. Assim, é claro que o perigo não é tangível, mas pode ser faticamente
percebido, por análise justamente desta probabilidade objetiva de que aquela situação cause
14
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

danos ao bem jurídico. Se é concretamente existente esta probabilidade, no caso concreto, o


perigo existe.
A mera possibilidade do dano não pode ser considerada suficiente a consubstanciar
o perigo, mesmo que parte da doutrina entenda que sim. É preciso que haja mais que isso,
até mesmo porque o conceito de possível beira as raias do infinito, de tão amplo: a vida
cotidiana, nos menores detalhes, contém perigos possíveis.
A probabilidade é uma gradação evolutiva da possibilidade. Aquilo que é possível,
se for estatisticamente demonstrado, de forma empírica, que está mais próximo de
acontecer do que não acontecer, é provável. Esta mensuração decorre de uma análise
sistemática dos fatos, uma análise baseada na experiência diante de situações já conhecidas.
Probabilidade e perigo são conceitos reais, portanto. O perigo é um conceito que se
estabelece a partir de um juízo de probabilidade real de dano, juízo este intimamente ligado
a uma realidade estatística, apreendida a partir da experiência humana. Em síntese: se em
uma determinada situação um dano costuma acontecer com freqüência, ele é provável, e
não meramente possível.
O conceito de perigo ainda se divide: há o perigo concreto e o perigo abstrato. Em
breves termos, o perigo concreto é aquele verificado com base empírica, no caso concreto,
que realmente chegou a periclitar de dano o bem jurídico em questão. O perigo abstrato,
por seu turno, é aquele em que a exposição do bem jurídico à probabilidade de dano é
presumida, dispensando a sua concreta verificação casuística.
Há quem diga que o perigo abstrato é inconstitucional, porque se trata de uma
presunção de risco a bem jurídico que desfavorece o réu, e nada que figure no tipo penal
pode ser presumido – apenas o perigo concretamente aferido seria punível. Esta tese não
pode ter guarida. Entenda: o legislador, ao criar um crime de perigo qualquer, ao tipificar
condutas de perigo, intenta reprimir comportamentos humanos que coloquem o bem
jurídico em uma situação de instabilidade, originada justamente da probabilidade do dano.
Assim, pune-se o perigo para evitar o dano: é uma antecipação da tutela penal, ante a
vontade estatal de que aquele dano não venha a ocorrer.
O crime de perigo, portanto, tem sempre um forte viés preventivo, altamente caro à
sociedade. Há diplomas inteiros dedicados justamente a este viés preventivo, tal sua
relevância. Assim o é, por exemplo, o Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/03, que
destina-se a prevenir a prática de crimes bem mais graves, a serem cometidos com as armas
irregulares que este diploma pretende controlar. Por isso, o crime de perigo abstrato é
perfeitamente constitucional, justamente por ser presumida a exposição à probabilidade do
dano.
Veja um exemplo: a disseminação da droga na sociedade coloca em risco a saúde
pública, porque estudos estatísticos comprovam este risco. Por isso, a presunção de que o
dano à saúde pública vai ocorrer se o tráfico for praticado é perfeitamente fundamentada,
não havendo como se considerar inconstitucional tal premissa. A probabilidade de dano à
saúde pública pela prática do tráfico é real, e por isso o perigo abstrato, ali coibido, existe
de fato – não há qualquer inconstitucionalidade.
Destarte, sempre que um crime de perigo abstrato for calcado em bases estatísticas
de probabilidade da exposição do bem jurídico a dano, é constitucional. Assim ocorre,
portanto, com os crimes de repressão às armas, os crimes de repressão às drogas, os crimes
de repressão às condutas perigosas no trânsito (como a influência alcoólica ou a direção
perigosa), etc.

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A doutrina mais conservadora, inclusive, reputa esta presunção dos perigos abstratos
como absoluta, juris et de jure. É problemático entender que seja uma presunção absoluta,
em qualquer caso, porque se tolhe a defesa irrazoavelmente. Por isso, pode o réu comprovar
que a sua atuação típica não consubstanciou o perigo que a lei presumiu, o que já conta até
mesmo com alguns precedentes, a exemplo da arma desmuniciada: porte de arma sem
munição não expõe a segurança pública a perigo, como já entendeu o STJ, no HC 70.544:

“HABEAS CORPUS. 70.544 – RJ. JULGADO: 03⁄06⁄2008.


EMENTA: Arma de fogo (porte ilegal). Arma sem munição (caso). Atipicidade da
conduta (hipótese).
1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal
é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser
considerada arma.
2. Assim, não comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto na Lei nº
10.826⁄03, aquele que tem consigo arma de fogo desmuniciada.
3. Ordem de habeas corpus concedida.”

Se não houver base fática estatística sólida a fundamentar a tipificação de alguma


conduta abstratamente perigosa, o crime de perigo abstrato criado será, então sim,
inconstitucional.
Os bens jurídicos dos crimes de perigo abstrato geralmente são de titularidade
difusa, tal como a segurança e saúde públicas, a ordem financeira, ordem tributária, etc. São
por isso chamados de crimes vagos.
Nos crimes em que o perigo é concreto, é fundamental a demonstração de que a
conduta do agente efetivamente criou o risco ao bem jurídico, pois não há presunção, como
no crime de perigo abstrato, de que o risco tenha existido.

1.1. Crimes de perigo vs. crimes de dano

Para se identificar um crime de perigo, diferenciando-se do crime de dano, a


obviedade é crassa, ao menos do ponto de vista teórico: deve-se observar o dolo do agente:
ele deve ter dolo de perigo, enquanto o crime de dano demanda dolo de dano.
Ocorre que por vezes a situação externa, fática é exatamente a mesma, e a revelação
do crime de dolo ou de perigo é difícil, pois reduz-se exatamente à constatação do dolo do
agente. Veja um exemplo: o agente arremessa uma faca em direção à vítima. Esta situação,
em abstrato, pode se demonstrar o enquadramento no artigo 132 consumado, ou no artigo
129 tentado, ou ainda no artigo 121 tentado. Tudo dependerá do dolo do agente ao
arremessar a faca: se desejava acertar fatalmente a vítima, estará no artigo 121; se desejava
acertar a vítima apenas para lesioná-la, estará no artigo 129; e se desejava errar a vítima,
estará incurso no crime do artigo 132, porque a expôs ao perigo:
“Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
(...)”

Veja que a causação de dano pressupõe a causação do perigo. Não há dano sem que
haja perigo precedendo-o. Em todo dolo de dano há o de perigo, mas a recíproca não
procede.

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Quando o agente, com dolo de perigo, vem a causar o dano, como se configura sua
conduta? A relação entre crimes de dano e de perigo é peculiar, e precisa ser explicada
amiúde. A regra, porém, consubstancia-se em uma frase: os crimes de perigo são
subsidiários aos crimes de dano, quando este dano for mais gravemente punido.
Se o dolo é de perigo, ou seja, o agente não quer o dano, nem aceita a sua
ocorrência como consequência do perigo, o resultado só poderá ser-lhe imputado a título de
culpa. Imagine-se, portanto, que um atirador de facas, sem dolo de lesão ou morte, acaba
acertando a vítima, por sua quebra de dever de cuidado, causando-lhe lesão. Este resultado
danoso, culposo, ser-lhe-á imputável, mas como ficará sua capitulação?
O comportamento do atirador de facas atingiu o mesmo bem jurídico, a integridade
física, de duas formas: ao atirar a faca, colocou-o em perigo; ao acertar a vítima, causou-lhe
dano. A subsidiariedade do perigo, frente ao dano, faz com que em havendo um só bem
jurídico atacado pelo perigo e pelo dano, este último prevaleça, quando for mais
gravemente punido.
No exemplo dado, os delitos em cotejo são o do artigo 132, supra, e o da lesão
corporal culposa, do já visto artigo 129, § 6°, do CP. A pena da lesão culposa é de detenção
de dois meses a um ano. Ora, se a regra é a subsidiariedade do crime de perigo menos
grave, vê-se que, aqui, o crime do artigo 132 do CP é mais grave – sua pena mínima é de
três meses, contra dois do artigo 132. Sendo assim, prevalece, neste caso, o crime de
perigo, pelo sopesar das penas.
A lógica da não absorção do crime de perigo mais grave pelo menos grave é
simples: imagine-se que um outro agente atire a faca com dolo de perigo e erre a vítima –
seu crime é o do artigo 132. O agente que, com mesmo dolo de perigo, acaba por acertar a
vítima, causando lesão, se respondesse pela lesão culposa teria pena menor do que aquele
que ficou só na causação do perigo. A desproporção seria inadmissível. O dano absorvido
pelo perigo, diga-se, será computado como consequência negativa do delito, na pena-base;
o perigo absorvido pelo dano, não, porque este é sempre presente em qualquer crime de
dano.
O tipo subsidiário, portanto, só se afasta para dar lugar a crime primário mais grave.
O mesmo não acontece, por exemplo, na relação de especialidade: o tipo especial se aplica
sempre prioritariamente ao tipo genérico, quer seja ele mais severa ou mais brandamente
punido (como ocorre no homicídio e no infanticídio, ou na lesão comum e a lesão de
trânsito).
Há crimes de perigo em que sequer é necessário este cotejo, porque o legislador já
previu os resultados e os colocou como modalidades preterdolosas qualificadoras do crime,
ou seja, já cogitou do resultado danoso culposo, atribuindo ao crime de perigo doloso a
qualificação.
Vejamos, então, os crimes de perigo à vida e saúde, a começar pelo artigo 130 do
CP.

2. Perigo de contágio venéreo

Diz o artigo 130 do CP:

“Perigo de contágio venéreo


Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso,
a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.


§ 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 2º - Somente se procede mediante representação.”

O agente que atua no caput deste artigo é de perigo, e o seu autor não tem dolo de
dano: ele pretende apenas ter relações sexuais com a vítima, expondo-a ao perigo de
contágio. Veja que o autor não quer causar o dano, qual seja, a transmissão da moléstia, mas
tem dolo de perigo, porque a ocorrência do dano é provável, a sua probabilidade é real e
concreta.
Nelson Hungria e Mirabete defendem que se trata de crime de perigo abstrato,
sendo presumido o risco ao bem jurídico. Rogério Greco, por seu lado, entende que é de
perigo concreto (assim como entende que sejam todos os demais delitos deste capítulo, da
periclitação da vida e da saúde), ao argumento de que a prova de que tenha havido risco de
contágio é fundamental à configuração do crime.
A posição de Greco parece ser a mais acertada, porque há moléstias venéreas em
que a prevenção regular elimina completamente a chance de que o contágio ocorra – o uso
da camisinha, que elide o risco da gonorréia, por exemplo. Sendo assim, a presunção que
haja perigo, característica do crime de perigo abstrato, fica prejudicada. A relação sexual
segura afasta o perigo, em concreto.
O sujeito ativo deste crime é alguém que esteja contaminado com moléstia venérea.
Este elemento normativo deste tipo penal consiste na moléstia que só se transmite por meio
de relações sexuais. A aids não é moléstia venérea, porque mesmo que a transmissão se dê
por meio da relação sexual, ela também se transmite por outros meios, e o conceito, aqui, é
restrito às moléstias que somente por via sexual são transmissíveis (gonorréia, blenorragia,
cancro, etc.). Da mesma forma ocorre com a sífilis, ou qualquer outra moléstia
transmissível sexualmente e também por outros meios.
Veja que se trata de um conceito médico, buscado na doutrina médica, e não em atos
normativos de qualquer natureza, não sendo portanto uma norma penal em branco, mas sim
um tipo penal aberto.
O caput do artigo supra fala, na sua parte final, que o dolo depende da ciência, ou
potencial ciência do agente, de que está contaminado: moléstia de que sabe ou deve saber.
Isto revela, a todo ver, que se pune o crime caso haja dolo direto ou dolo eventual, mas há
quem entenda que a expressão “deve saber” comportaria a punição do agente também a
título de culpa. Não parece ser correto este entendimento, porque a culpa, como é
normativa, deve vir expressamente trazida no tipo, e a expressão “deve saber” não é
suficiente para criar a imputabilidade a título de culpa.
Veja: se o agente apresenta sinais de que tem a doença, deve procurar saber de sua
contaminação ou não; se não procura, não há culpa, e sim dolo eventual de ter a doença e
com isso causar perigo a quem com ele se relacionar sexualmente. Há a assunção do risco
de ter a doença, quando assim se conduzir o agente.
O crime é de forma vinculada: apenas com práticas sexuais, quaisquer que sejam –
atos libidinosos em geral, e não só a conjunção carnal. É claro que deve haver a
potencialidade de transmissão do contágio, para que o meio seja eficaz, ou se trata de crime
impossível, por absoluta impropriedade do meio.
A consumação se dá na prática do ato libidinoso, quando então houve a exposição
ao perigo. Como os atos sexuais, genericamente, são plurissubsistentes, este delito admite

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

tentativa, se a prática sexual com dolo de perigo for interrompida por força alheia à vontade
do agente.
Se, agindo com dolo de perigo, o autor acaba por contaminar a vítima efetivamente,
responderá por este resultado a título de culpa. Aplica-se a regra da subsidiariedade: o
crime de dano prevalecerá quando for mais gravemente punido do que o de perigo. Assim,
se a moléstia transmitida causar lesão culposa, vê-se que o crime de perigo é mais grave –
pena de três meses a um ano, enquanto a lesão culposa é de dois meses a um ano –, e por
isso prevalece o artigo 130 do CP. E nem se fale sobre a gravidade das lesões: na lesão
culposa, a gravidade é irrelevante.
Se das lesões da moléstia transmitida resulta a morte, é claro que prevalecerá o
dano, ou seja, o § 3° do artigo 129 do CP, porque é muito mais severamente punido do que
o crime de perigo do artigo 130.
Para Nelson Hungria, o consentimento da vítima na relação sexual é absolutamente
indiferente. A saúde e a vida não lhe são disponíveis para poder consentir em sua
exposição.

2.1. Dolo de contágio

O § 1° do artigo 130, supra, muda tudo. Se for intenção do agente transmitir a


moléstia venérea, está claro o dolo de dano. Nada mais que se refira ao perigo tem
relevância: o crime é de dano. Trata-se de crime formal, inclusive, sequer sendo necessário
a efetiva contaminação para que o crime se consume: basta o dolo de transmitir a doença
para que o crime se consume. Destarte, se realizar a conduta sexual com a intenção de
transmitir a moléstia, o crime de dano se consuma, dispensada a efetiva contaminação.
Repare que o legislador, neste § 1°, teve a intenção de reprimir de forma autônoma a
própria tentativa de causação de um dano maior: o dispositivo incrimina a tentativa de
contágio, e não o efetivo contágio. O que seria um ato executório da causação do dano, o
que, a rigor, seria capitulado no artigo 129 do CP tentado, se torna o momento de
consumação, neste dispositivo, em tipificação autônoma de ato que seria mera tentativa de
outro crime.
Se o agente efetivamente transmite esta moléstia, porém, não se dá o mesmo
tratamento ao conflito de normas que se dá quando se está diante de um crime de perigo e
um de dano, simplesmente porque não se trata de um crime de perigo: o dolo sempre foi de
dano, o autor sempre quis contagiar a parceira.
No entanto, a situação ainda é específica, não se podendo simplesmente afirmar que
o resultado danoso será o que tipificará a conduta. Entenda: o que resulta é o dano
consumado, em regra, mas se este resultado danoso for menos grave do que a tentativa de
dano punida autonomamente pelo artigo 130, § 1°, prevalecerá este último. Assim ocorre,
por exemplo, se da moléstia transmitida restarem lesões leves, porque a pena destas é mais
branda que a da transmissão dolosa. Ao contrário, se da transmissão resultarem lesões
graves ou morte, a reprimenda destes resultados é mais severa, e eles prevalecerão,
afastando o artigo 130, § 1°, do CP.
Em síntese, este crime do parágrafo primeiro, formal e de dano, sai de cena sempre
que a transmissão efetivada consistir em crime mais grave.

3. Perigo de contágio de moléstia grave

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Diz o artigo 131 do CP:

“Perigo de contágio de moléstia grave


Art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está
contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Este crime é de dano, e seu tratamento é muito similar ao que se disse sobre o § 1°
do artigo anterior, 130 do CP. A diferença, de fato, é que neste crime a moléstia não é
unicamente venérea, e sim qualquer moléstia grave, ou seja, não só aquelas doenças
transmitidas apenas por meio de ato sexual genérico são aqui enquadradas, mas sim
quaisquer atos capazes de produzir o contágio – pelo que é crime de forma livre, ao
contrário do delito do artigo 130 do CP. Veja que o ato sexual pode ser também o meio
empregado aqui, mas a doença deve ser considerada não venérea, ou a tipificação recai no
dispositivo anterior.
O conceito de moléstia grave é elemento normativo do tipo, que vai ser buscado na
doutrina médica, e pode variar de acordo com o momento e espaço. Uma gripe, por
exemplo, que é moléstia branda, poderá, no futuro, ser considerada grave, se sofrer mutação
que assim a configure.
O crime é formal, pois se consuma havendo ou não a contaminação. Se esta ocorre,
tal como se disse na análise do § 1° do artigo anterior, deve ser cotejada a pena de um e de
outro, do dano resultante e do crime em questão, prevalecendo a imputação mais grave.
Há quem enquadre aqui a aids como moléstia grave, mas, como já se disse, o
melhor entendimento é de que a contaminação dolosa desta doença revela ânimo de matar,
animus necandi, ante a severa letalidade desta doença, pelo que seria tipificada tal conduta
como homicídio. O STJ assim também entende, como se vê no HC 9.378:

“HC 9378 / RS. DJ 23/10/2000 p. 186.


HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. PORTADOR VÍRUS DA
AIDS. DESCLASSIFICAÇÃO. ARTIGO 131 DO CÓDIGO PENAL.
1. Em havendo dolo de matar, a relação sexual forçada e dirigida à transmissão do
vírus da AIDS é idônea para a caracterização da tentativa de homicídio.
2. Ordem denegada.”

A vítima que for imune à moléstia que o agente quer transmitir-lhe faz com que o
crime se torne impossível, por impropriedade do objeto.
O sujeito ativo deste crime é a pessoa contaminada. A doença que se quer transmitir
deve ser a própria, que se está contaminado. Ato que vise a transmitir doença alheia
enquadra-se no artigo 129 do CP, na gradação que for relativa ao caso concreto, ou mesmo
no artigo 121, se o ânimo for de matar.

4. Perigo para a vida ou saúde de outrem

Diz o artigo 132 do CP:

“Perigo para a vida ou saúde de outrem


Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

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Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da


vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a
prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo
com as normas legais. ( Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998).”

O crime é de perigo direto, concreto, e não abstrato, como o próprio tipo indica. A
função deste artigo 132 do CP é essencialmente preventiva, pois os bens jurídicos que
protege já são protegidos em outros crimes, mas aqui recebem guarida especialmente
preventiva. Não só o atentado contra estes bens é rechaçado: sequer a periclitação destes
bens é tolerada.
O perigo que não se admite é aquele que o ordenamento não tolera, por outras vias.
Por exemplo, a atividade de voar de asa-delta ou saltar de paraquedas é perigosa, mas é
permitida, e por isso não se configura o crime deste artigo aquela exposição ao perigo
permitido.
O consentimento da vítima é irrelevante, como o é nos demais tipos do capítulo em
questão, porque os bens lhe são indisponíveis.
O crime é de forma livre, pois qualquer forma de exposição de um ser humano a
perigo é capaz de preencher a conduta típica.
Uma vez causado o dano pela conduta de exposição ao perigo, o cotejo que se faz é
o mesmo que já foi mencionado nos delitos anteriormente abordados: prevalece a
tipificação mais gravosa. Neste crime, diga-se, esta subsidiariedade condicionada á
gravidade é prevista expressamente no preceito secundário do artigo, como se vê acima.
O artigo 15 do Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/03, traz uma situação
especial de exposição a perigo, que deve ser observada quando o meio utilizado para tal
exposição for arma de fogo:

“Disparo de arma de fogo


Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas
adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha
como finalidade a prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável. (Vide Adin 3112-
1)”

O parágrafo único do artigo 132 veio incluído na esteira de um caso concreto, em


que um acidente grave com um caminhão de bóias-frias morreram diversos trabalhadores.
A fim de reprimir com mais veemência esta situação de perigo, o legislador aumentou a
pena de quem assim se conduzir.

4.1. Perigo para a vida de outrem no Código de Trânsito Brasileiro

A conduta de quem dirige sem habilitação e causando perigo de dano subsume-se ao


artigo 309 do CTB:

“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para
Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O agente que se comporta como descreve o tipo acima e, por isso, acaba
efetivamente causando lesão a terceiros, tem este resultado inserto na previsão do artigo
303 do mesmo CTB:

“Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:


Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a
permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das
hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.”

O STF e o STJ têm entendido que sempre que esta dinâmica acima ocorrer, o artigo
309 deve ser afastado, restando apenas o enquadramento no artigo 303 do CTB, pois aplica
a subsidiariedade do perigo ao dano, quando este for mais grave. Mas repare no potencial
problema que este entendimento acarreta: o crime do artigo 303 depende de representação
da vítima para ser perseguido; se esta não representar, o MP não poderá ajuizar a ação penal
pública incondicionada em perseguição do crime do artigo 309, porque este se afastou para
dar lugar ao 303. O agente, então, restará impunível.
A solução para esta situação seria simples se se entendesse, como o faz parte da
doutrina, que neste caso há concurso material entre os delitos acima transcritos. Entenda: a
subsidiariedade, para ser constatada, precisa que o titular do bem jurídico seja o mesmo, e
nos crimes acima isto não ocorre. A vítima da lesão é titular de sua integridade física,
protegida pelo artigo 303 do CTB, mas o artigo 309 deste Código não protege apenas o
bem jurídico daquela vítima do perigo causado pelo motorista desabilitado e imprudente:
trata-se de crime de perigo coletivo, bem jurídico titularizado por uma parcela difusa da
sociedade. Por isso, quando se faz a absorção do perigo, neste caso, pelo dano causado a
uma só vítima, se está ignorando o perigo causado a todos os demais membros da
sociedade, fazendo-o igualmente absorvido pelo dano causado a um só membro da
coletividade.
Por isso, a lógica da absorção do perigo pelo dano mais grave é correta, mas quando
o bem jurídico periclitado e danificado seja o mesmo.
A lógica da absorção fica ainda mais estranha quando os crimes em cotejo são os
dos artigos 306 309 do CTB:

“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração
de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre
distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado
neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008).”

Seguindo-se a lógica do STF e do STJ, o agente que, na condução do veículo,


embriagado, causar lesão a alguém, responderá apenas pelo perigo coletivo da condução
embriagada, porque mais gravemente punido, absorvendo-se o dano individual causado.
Ressalte-se que não houve, ainda, esta manifestação das Cortes Maiores, sobre este artigo
306, mas a lógica do seu raciocínio indicaria esta conclusão. Esta crítica bastante coerente é
de Fernando Capez.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

CAIO mantém relação sexual com conhecida prostituta, sem adotar qualquer
medida protetiva. Posteriormente, se relaciona sexualmente com sua companheira.
a) Realizou CAIO algum tipo penal?A solução se alteraria, caso:
b) CAIO soubesse que a prostituta já tinha apresentado, antes, quadro de moléstia
venérea?
c) CAIO tivesse certeza de que tinha adquirido a DST e desejasse transmiti-la à sua
parceira?
d) CAIO tivesse adquirido o vírus HIV e desejasse transmiti-lo à sua parceira e ela
adquirisse a doença e morresse?
e) A companheira de CAIO fosse imune à doença?
f) A companheira de CAIO consentisse no contágio?
g) CAIO contaminasse sua companheira com uma roupa íntima?

Resposta à Questão 1

a) A simples relação sexual com prostituta, sem proteção, não é suficiente para
inserir a conduta de Caio na elementar “deve saber” do crime do artigo 130 do
CP. É preciso elementos concretos que levem à conclusão de que estava
contaminado para que seja incriminado pelo dolo eventual.
b) Da mesma forma, se não há sintomas de que haja contaminação, não se pode
entender que haja o dolo eventual de contaminar a parceira.

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

c) Neste caso, é clara a tipificação da conduta no artigo 130, § 1°, do CP. Há o dolo
de dano.
d) Neste caso, se trata de homicídio, porque a moléstia é letal e incurável. Se a
morte ocorreu, está consumado o homicídio.
e) Sendo imune, trata-se de crime impossível.
f) O consentimento é irrelevante: o bem jurídico é indisponível.
g) Como não há relação sexual, e o crime do artigo 130 exige esta forma de prática
do delito, não se configura, podendo a conduta recair no artigo 131 do CP, ou
mesmo no artigo 129, a depender do dolo.

Tema VII

Da Periclitação da Vida e da Saúde II. O crime de rixa. 1) Crimes de perigo individual (artigos 133 a 136 do
CP): sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4)
Pena e ação penal. 5) O crime de rixa: a) Considerações gerais; b) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; c) Aspectos controvertidos.

Notas de Aula15

1. Abandono de incapaz

Dispõe o artigo 133 do CP:

“Abandono de incapaz
Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes
do abandono:
Pena - detenção, de seis meses a três anos.
§ 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Aumento de pena
§ 3º - As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:
I - se o abandono ocorre em lugar ermo;
II - se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da
vítima.

15
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

III - se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos (Incluído pela Lei nº 10.741, de


2003).”

Neste crime, há entre o sujeito ativo e o passivo uma relação de dependência, que
nos remete à figura do garantidor. Isto poderia gerar confusões entre os §§ deste tipo e os
crimes correspondentes aos resultados ali traçados, que seriam comissivos por omissão. O §
2°, por exemplo, seria facilmente confundível com o crime de homicídio por omissão
imprópria.
Contudo, a solução é simples: nos casos dos §§ do artigo supra, os resultados que
são imputados ao agente não são sequer previsíveis a ele. O autor do abandono não prevê
nem poderia prever qualquer resultado danoso do abandono, aqui, porque senão estaria
incurso, de fato, nos crimes específicos, por omissão imprópria, em atenção ao artigo 13, §
2°, do CP.
No abandono de incapaz, o único intento do agente é exatamente o de abandonar o
incapaz em uma situação de perigo, sem que possa prever que tais resultados danosos
venham a ocorrer.
Imagine-se, por exemplo, uma mãe que deixa seus filhos pequenos trancados em
casa, dormindo sozinhos, enquanto sai para se divertir. Na sua ausência, a residência
incendiou-se, e as crianças morreram. Não se pode entender que a possibilidade de morte
tenha entrado na esfera de previsibilidade desta mãe, sequer a título de culpa, pois se
pudesse prever tal situação é certo que não sairia; por isso, somente se enquadra, sua
tipificação, no resultado morte previsto no § 2° deste artigo supra.
Repare que se nada acontecesse com as crianças, esta mãe ainda teria incorrido no
crime de abandono de incapaz, restando apenas enquadrada no caput, porque o alvo
preventivo deste crime é a mera exposição dos dependentes ao risco.
A posição de garantidor, aqui, também é fundamental, mas o que se proíbe no
dispositivo é que este coloque a pessoa garantida, ao abandoná-la, em risco. Os resultados
só lhe são imputáveis se decorrerem do risco, e sequer pudessem ser previstos pelo
garantidor.
É um crime de perigo concreto, porque o artigo exige que o abandono acarrete
riscos reais, concretos, ao garantido.
Se o abandono do garantido revelar que a situação demonstra risco severo aos bens
jurídicos mais caros ao abandonado, como a vida e a integridade física, o garantidor
respoderá pelo resultado, consumado ou tentado.
Caso concreto diverso que se poderia apontar é o da mãe que abandonou a filha com
poucos dias de vida em uma sacola plástica, dentro de uma lagoa: não há crime de
abandono, tampouco omissão imprópria. Sua conduta revela dolo de matar, sequer sendo
necessária a configuração de garantidora, ali. Há simples ação de execução homicida.
Questão concreta que poderia suscitar dúvida é a seguinte: criança nasce sem os
braços, e a mãe a rejeita, deixando à em um lixão. Esta criança morre pelo ataque de
roedores. A capitulação deste delito é a de abandono de incapaz com resultado morte, ou é
homicídio?
Ao abandonar esta criança que não pode sequer realizar gestos instintivos de defesa,
que poderiam afastar os roedores, esta mãe está cometendo, a todo ver, homicídio, pois é
absolutamente previsível que esta morte venha a ocorrer. Há, no mínimo, dolo eventual de
morte, e não o mero dolo de abandono.

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A mãe que abandona a criança no carro, enquanto vai ao shopping, está cometendo
o crime deste artigo 133 do CP. A situação de risco é clara. Em qualquer casuística, é o
risco que deve ser verificado, a fim de configurar o delito.
Abandonar é deixar de cuidar. O abandono pode ser comissivo ou omissivo:
comissivo é levar ao local de abandono, e lá deixar a vítima; omissivo é simplesmente
deixá-la, sem conduzi-la ao local de abandono com este fim.
A relação de garantidor é exemplificada no artigo, ao mencionar “cuidado, guarda,
vigilância ou autoridade”. Não se exige nenhuma relação formal para configurar a situação
de garantia, podendo ser assumida esta posição por qualquer meio. Por exemplo, aquele que
assume os cuidados de um amigo que se encontra completamente embriagado é seu
garantidor, e se o abandonar em situação de risco estará cometendo este crime.
Há quem diga que este crime é material, mesmo na situação do caput, porque o
perigo, em si, é um resultado naturalístico. É um dado objetivo, real, e por isso
concretamente aferível. Mas há quem entenda que seja formal, por não entender que o
perigo seja um resultado naturalístico em si. Qualquer que seja a posição, porém, é crime
plurissubsistente na modalidade comissiva, admitindo tentativa, mas na omissiva é
unissubsistente, pelo que não se fala em forma omissiva tentada de abandono.
Ocorrendo o dano, os §§ do artigo 133 do CP são aplicáveis, fazendo o crime
preterdoloso. Se se tratar de lesão grave ou morte preterdolosas, o crime é qualificado. O
dolo é de abandono, como dito, mas o resultado será imputável.
O § 3° deste artigo, no inciso I, traz aumento de pena para o abandono do incapaz
em lugar ermo, porque esta circunstância aumenta a situação de risco. No inciso II, o
aumento se dá pela relação legal de dependência, e maior reprovabilidade. No inciso III, o
aumento se dá pela maior vulnerabilidade da vítima, maior de sessenta anos.
Há que se atentar para o artigo 98 do Estatuto do Idoso, que cria uma regra especial
repressiva do abandono, mas que não se confunde com este abandono de incapaz agravado,
acima comentado. Veja:

“Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa


permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando
obrigado por lei ou mandado:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa.”

Neste crime da Lei 10.741/03, a conduta típica se perfaz sequer sendo exigida a
presença de qualquer risco ao idoso. Em uma das elementares, há o abandono material, eis
que o dispositivo fala em “não prover suas necessidades básicas”; contudo, nas demais
modalidades de abandono ali previstas, basta que o agente abandone o idoso que de si é
dependente sem atentar para cuidados afetivos de que este seja carente. É, de fato, uma
exigência de afeto que o Direito Penal impõe sobre os agentes, consubstanciando a
verdadeira criminalização do abandono afetivo, da falta de cuidado afetivo.

2. Exposição ou abandono de recém-nascido

Diz o artigo 134 do CP:

“Exposição ou abandono de recém-nascido


Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:


Pena - detenção, de um a três anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - detenção, de dois a seis anos.”

Este dispositivo guarda relação de gênero e espécie com o artigo 133 do CP,
anteriormente analisado: trata-se de uma espécie mais branda de abandono de incapaz. Os
elementos especializantes deste tipo, diante do genérico do artigo 133 do CP, são: o sujeito
passivo, que é apenas o recém-nascido; e o especial fim de agir, que é a ocultação de
desonra própria.
Recém-nascido é critério aberto, mas é relativamente pacífico na doutrina que se
trata daquela criança que ainda não teve o cordão umbilical removido. Após esta remoção,
não seria mais considerado recém-nascido.
O tipo subjetivo especial, a ocultação de desonra própria, só pode ser preenchido
pela mãe, segundo Bitencourt e a maior parte da doutrina. Para Hungria e Damásio, o pai
também se amoldaria a este tipo, mas em uma visão sociológica e temporal deste artigo,
quando de sua redação, o homem não teria, a todo ver, esta honra a ser protegida – apenas a
mulher teria tal honra passível de avilte pela sociedade, tendo um filho considerado espúrio,
fruto de uma gravidez indevida. Há as duas correntes, porém.
Nos dias de hoje, este tipo penal não teria muita lógica. Não há mais a necessidade
da proteção da honra como havia outrora, a merecer tratamento especial e privilegiado ao
agente que abandona o filho por esta finalidade.
A existência da honra sexual a ser protegida é de constatação concreta. Não se
justifica a subsunção ao tipo subjetivo especial quando a gravidez era conhecida da
sociedade, pelo que não há qualquer sentido em se entender que o abandono do filho de
uma gravidez por todos conhecida sirva para ocultar a suposta desonra: simplesmente não
há o que ser ocultado, neste caso.
Pode haver caso em que a gravidez, mesmo conhecida, ainda justifique a desonra,
pelo que se poderá entender que a motivação especial ainda possa existir, a ensejar
subsunção neste tipo: a gestante sabe que seu filho é fruto de uma relação adulterina, e que
se este filho vier a ser conhecido por todos, seu adultério será revelado. Pode-se entender
que a ocultação do filho, pelo abandono, é motivada para salvaguardar a honorabilidade
que seria perdida.
A prostituta não pode figurar no pólo ativo deste delito, porque o que justifica seu
tratamento especial é a existência da honra sexual a ser protegida pelo agente, o que de
certa forma é entendido pelo legislador como uma motivação que privilegia um pouco o
cometimento do abandono. Não se trata de dolo puro de abandonar, mas sim de um dolo de
abandonar especialmente eivado da finalidade de ocultar a desonra sexual.
Se a prostituta, ao assumir seu meio de vida, justamente abre mão da honorabilidade
sexual, não há desonra de que queira se proteger, a motivar especialmente o abandono. Seu
abandono será eivado do puro dolo de abandonar, recaindo no artigo 133, e não neste artigo
134 do CP. É claro que se a atividade de prostituição daquela gestante não for conhecida da
sociedade, agindo no anonimato, ainda preserva a honra sexual, podendo então ser
motivada ao abandono pela intenção em salvaguardar sua honra – recaindo, aí sim, neste
artigo 134 do CP.
Este crime é de perigo concreto, tal como o abandono de incapaz genérico.
Contudo, parte da doutrina clássica ainda reputa ser de perigo abstrato, pela condição de

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

recém-nascido do abandonado, que faz presumir o perigo. Embora não esteja dito no artigo,
o abandono deve também colocar a vítima em situação de risco, não configurando o crime
se o abandono se dá em local seguro – como quando a mãe deixa o filho aos cuidados de
um terceiro. Por isso, o perigo é claramente de natureza concreta.
Hungria defende que não há diferença entre expor e abandonar, mas há quem
entenda que, na exposição, se interrompe a guarda, mas não a vigilância, enquanto no
abandono, há interrupção da guarda e da vigilância.
Os §§ deste artigo 134 qualificam o crime pelo resultado lesão ou morte. Veja que
no artigo 133, o resultado morte atribui pena idêntica à da lesão corporal seguida de morte
– reclusão de quatro a doze anos –, mas no artigo 134, a pena quando há resultado morte é
menor, indo de dois a seis anos – idêntica à do infanticídio. Há uma identicidade de penas
que é referente à presença da situação especial da mãe, que lá está no estado puerperal, e
aqui está sob ameaça de desonra.

3. Omissão de socorro

Dispõe o artigo 135 do CP:

“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

Para se falar em omissão, pressupõe-se um dever. Toda omissão, para ser relevante
penalmente, deve ser acompanhada de um dever que foi inobservado. No crime comissivo,
o tipo descreve a ação proibida; no crime omissivo, o tipo descreve a ação exigida. O
legislador criminaliza a não realização da ação que descreveu como exigida.
O artigo 135 do CP é o tipo omissivo clássico, omissivo próprio, puro. Os crimes
omissivos impróprios, impuros, chamados comissivos por omissão, praticados por
garantidores, não se confundem com este crime de omissão própria.
O artigo 135 é um exemplo excepcional em que o Direito Penal assume caráter
constitutivo. Como se sabe, o Direito Penal é essencialmente sancionatório, e não
constitutivo: o Direito Penal não é a fonte da proibição, mas sim o ordenamento jurídico,
que, quando entende necessário, convoca o Direito Penal para reforçar esta proibição com a
imposição de uma pena. O tipo comissivo observa justamente esta dinâmica: ao descrever a
conduta ativa típica, o Direito Penal está reforçando uma ilicitude que o ordenamento já
atribui ao fato, sancionando-a penalmente. Quem constituiu a ilicitude foi o ordenamento
jurídico, em suas diversas facetas. Por exemplo, o crime de furto é a sanção pela violação
ao direito de propriedade, que já foi constituído pelo Direito Civil.

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Nos crimes omissivos próprios, como este artigo 135 do CP, porém, o Direito Penal
é excepcionalmente constitutivo, pois sem que esta tipificação imponha a conduta a ser
seguida, a inércia do agente não é repreendida. Imagine-se que não exista o artigo 135 do
CP: se uma pessoa esteja em situação de risco, e uma outra pessoa ignora-a, não prestando
qualquer auxílio que poderia prestar, não há qualquer reprimenda jurídica à sua omissão. A
relevância da sua omissão é meramente moral. Por isso, é o Direito Penal que constituiu o
dever legal de agir, neste caso, criando o dever de agir neste artigo 135 do CP – que tem
este caráter constitutivo excepcional, portanto.
A ação exigida pelo artigo em comento é a de prestar assistência, quando possível
fazê-lo sem risco pessoal, a quem dela precise, na forma do texto legal. Há uma ordem
legal para que se atue neste sentido. Por isso, tais crimes omissivos próprios são chamados
também de tipos mandamentais, pois contém uma ordem ao agente.
Se não for possível prestar a assistência por si próprio, o artigo conclama a que se
chame a autoridade para que esta o faça. Veja que não há uma alternatividade: não é dado
ao agente optar por socorrer a vítima ou chamar a autoridade. É imperativo que o faça,
quando puder, ele próprio, sendo também imperativo que chame a autoridade, se não puder
socorrer ele próprio o necessitado. A segunda hipótese só vem a ser uma possibilidade
quando a primeira não puder ser realizada.
O socorro só é exigido quando o agente puder prestá-lo, e se não existir exposição
própria a risco com esta prestação. Se o agente não sabe como prestar o socorro, não lhe é
possível prestá-lo, mas é-lhe exigido que chame a autoridade para fazê-lo. Caso não faça
esta notificação, sendo-lhe possível fazê-la, também incorre no crime de omissão de
socorro.
Sem possibilidade de atuação qualquer, a conduta do agente é atípica. Muitos
confundem a situação em que a não prestação de socorro se dá porque o agente estaria em
risco se o fizesse com estado de necessidade, mas não se chega a este ponto: a
impossibilidade de atuação gera atipicidade da conduta, eis que a possibilidade é elementar
do tipo. A tipicidade, aqui, só se preenche quando há o dever e a possibilidade de agir.
O dever imposto por este artigo é um exemplo clássico de obrigação solidária, nos
moldes do Direito Civil: se um indivíduo prestar o socorro eficazmente, os demais que
estiverem na posição de ajuda possível são isentos do dever de agir. O cumprimento de um
dos obrigados solidários aproveita aos demais, por mera questão de lógica. Mas veja a
seguinte nuance: se alguém se vê diante de uma pessoa necessitada de socorro, e abandona
seu dever de ajuda, sem saber que outrem virá em seguida e prestará o socorro, está
configurado o crime: a prestação de socorro posterior à consumação da omissão não isenta
o omisso de sua responsabilidade, pois o crime já se consumou. A solidariedade só o exime
de responsabilidade quando se verificar que o seu socorro não é mais necessário antes que o
agente se omita.
São sujeitos passivos deste crime a criança abandonada ou extraviada, a pessoa
inválida ou ferida, ou a pessoa ao desamparo ou em grave e iminente perigo. Nelson
Hungria, acompanhado pela doutrina maior, entende que quanto à criança abandonada ou
extraviada (perdida), o perigo é presumido, sendo hipótese de perigo abstrato. O simples
fato de estar abandonada ou extraviada é perigoso, diz a doutrina, merecendo incidir no
artigo 135 do CP todos aqueles que diante desta situação se omitirem. Nos demais casos, o
perigo é concreto, como o próprio artigo indica.

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Veja uma situação peculiar: suponha-se que uma pessoa esteja trancada dentro de
sua residência, e, só por este fato de estar presa, está pedindo socorro para se ver liberta. O
agente que, ouvindo os pedidos, não ajuda a pessoa a sair da residência, está incurso no
artigo 135 do CP? A resposta é negativa: a proteção do crime de omissão de socorro é para
os bens jurídicos vida e saúde, e não liberdade. Por isso, a omissão em libertar alguém não
é conduta típica. É claro que se a vida da pessoa que está trancafiada estiver em risco – está
sem água ou alimentos, por exemplo, estando em iminente perigo de morte –, a não
prestação do socorro será típica, porque então se estará diante de risco à saúde e vida
daquela vítima, não podendo ninguém se omitir diante de tal periclitação.
O crime omissivo próprio não admite tentativa, porque a conduta de deixar de
prestar socorro se consuma em um só ato, sendo unissubistente.
A presença física do agente não é necessariamente exigível para que se dê a omissão
de socorro. Pode o agente, à distância, cometer o crime. Veja um exemplo: pessoa reside
em local bastante ermo, e é a única que possui veículo automotor. Esta pessoa é chamada,
por rádio, a socorrer alguém que sofreu um acidente nas cercanias. Se esta pessoa se nega a
atender, podendo fazê-lo, estará incursa na omissão de socorro, mesmo estando ausente do
local do acidente.
Mesmo se a vítima não quiser ser socorrida, o socorro é imperioso: escapam, tais
bens jurídicos, da esfera de disponibilidade da vítima.
3.1. Omissão de socorro agravada

O parágrafo único do artigo 135 traz resultados preterdolosos, imputáveis ao


omitente a título de culpa. Veja que, para que estes resultados sejam imputáveis ao agente, é
necessário que, pelo processo hipotético de acréscimo, a conduta exigida do agente pudesse
evitá-los, com alto grau de probabilidade. Se, mesmo acrescendo a prestação do socorro, a
morte ou lesão não pudessem ser evitadas, com grau de probabilidade suficiente, o
resultado não pode ser imputado ao omisso.
A lei não cobra eficácia, diga-se; a lei cobra a ação do agente que podia agir. Mas se
ele não age, e sua ação, fosse feita, se demonstraria suficiente para evitar o resultado
danoso, a lei imputa maior reprovabilidade à sua omissão.

3.2. Omissão do médico

Muito se confunde a omissão de socorro praticada pelo médico com a omissão


imprópria, entendendo-se erroneamente que este personagem seja garantidor de todas as
pessoas, em todos os momentos de sua vida. Para quem assim entende, basta ser médico
que se figurará no artigo 13, § 2°, do CP, e a sua omissão implica responsabilidade pelo
crime resultante, consumado ou tentado. Este entendimento é francamente incompatível
com a realidade do nosso ordenamento jurídico, pelo seguinte raciocínio: se todo médico
for considerado garantidor universal, esta profissão é simplesmente a mais arriscada que se
pode conceber, porque qualquer morte que ocorra na presença de um médico omisso ser-
lhe-á imputada como homicídio.
A lógica correta, sobre o médico, é a de que ele será considerado pessoa comum,
respondendo por omissão própria, inserta neste artigo 135 do CP como qualquer outra
pessoa, se não figurar como garantidor por expressa figuração nas alíneas do artigo 13, §
2°, do CP, quando então será garantidor:

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Relação de causalidade(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a
quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado
não teria ocorrido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Superveniência de causa independente(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
Relevância da omissão(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para
evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”

Entenda: se o médico estiver, quando diante da pessoa necessitada de socorro,


investido da posição de obrigado legal ao socorro, como quando estiver em serviço em um
hospital público – e somente no curso do expediente ou quando ainda se encontrar nas
dependências do hospital – estará inserido na alínea “a” do dispositivo supra. Nesta
dinâmica, é garantidor, de fato. Da mesma forma, se o médico foi contratado para prestar
cuidados, como quando é empregado em um hospital privado, o médico será garantidor de
todos que neste hospital venham a precisar de socorro, enquanto ali estiver em serviço ou
ainda nas dependências – insere-se na alínea “b” do § supra.
Ao contrário, se o médico estiver em um passeio na praia, sem estar trabalhando sob
nenhum aspecto, e se vê diante de um indivíduo necessitado de socorro, ele não é
considerado garantidor deste indivíduo: se se omitir no socorro de tal vítima, responderá
pelo artigo 135, como qualquer pessoa responderia em seu lugar. A pessoa não está inserida
na posição de garantidor simplesmente por ser médica.
Veja que a obrigação de agir que torna o médico garantidor se configura sempre que
ele instaurar uma relação de dependência com o seu contratante, o que pode extrapolar os
limites do expediente e da área da sua prática hospitalar. Por exemplo, se a relação do
médico e sua vítima implicar em atenção a qualquer dia e hora, se esta vítima telefonar para
seu médico às quatro horas da madrugada de domingo para pedir-lhe socorro, deve atendê-
la, pois do contrário o resultado a que esta se submeter ser-lhe-á imputado como garantidor.
Por isso, se a vítima busca socorro em um hospital particular, mas não se dispõe a
pagar pelo serviço, a negativa de atendimento se enquadra na omissão de socorro, e não no
resultado que sobrevier à vítima. Se este necessitado morre, não podem os médicos serem
imputados por homicídio comissivo por omissão, porque não assumiram a posição de
garantidores do artigo 13, § 2°, “b”, do CP. Incorrem, porém, na omissão de socorro, se
nada fizerem.

3.3. Omissão do policial

O policial, tecnicamente, tem o mesmo tratamento legal do médico, em relação à


omissão de socorro. Mas há uma diferença fundamental, que o coloca na posição de
garantidor em qualquer tempo, a qualquer hora, em qualquer lugar, fazendo-o responsável

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

pelo resultado, diante de alguma omissão de sua parte: a imposição de atuação deste
profissional a qualquer tempo é prevista em lei, sendo que por isso está sempre inserido no
artigo 13, § 2°, “a”, do CP. Esta previsão legal é constante dos respectivos estatutos de
classe, podendo ser dado como exemplo o Estatuto dos Policiais Civis do Rio de Janeiro,
que assim dispõe em seu artigo 10, XVII:

“Art. 10° - O policial manterá observância, tanto mais rigorosa quanto mais
elevado for o grau hierárquico , dos seguintes preceitos de ética:
(...)
XVII - prestar auxílio, ainda que não esteja em hora de serviço:
1 - a fim de prevenir ou reprimir perturbação da ordem pública;
2 - quando solicitado por qualquer pessoa carente de socorro policial,
encaminhando-a à autoridade competente , quando insuficientes as providências de
sua alçada.”

Veja o comentário a este artigo supra que é trazido no próprio diploma legal, no
próprio Estatuto mencionado, Decreto-Lei estadual 218/75, como nota de rodapé:

“O servidor policial , por força deste dispositivo, é obrigado, ainda que não esteja
em horário de serviço, a interferir nas circunstâncias a que se refere o inciso. Se,
em decorrência de sua intervenção vem a sofrer ferimentos ou a falecer, o fato é
considerado como acidente em serviço, beneficiando o servidor ou seus familiares
- em caso de falecimento - detentores, assim, dos direitos daquele que sofre
acidente em serviço.”

Se porventura algum Estado-Membro da federação não previr esta responsabilidade


para os seus policiais, seu tratamento será idêntico ao do médico – só responderá como
garantidor quando em serviço, ou quando expressamente se colocar nesta posição.

3.4. Omissão de socorro de vítima idosa

O artigo 135 tem equivalente específico para a vítima idosa, trazido no artigo 97 da
Lei 10.741/03, Estatuto do Idoso, que deve ser observado quando a vítima for pessoa idosa:

“Art. 97. Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua
assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de
autoridade pública:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

4. Maus tratos

Diz o artigo 136 do CP:

“Maus-tratos
Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda
ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-
a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho
excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Michell Nunes Midlej Maron 94


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.


§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor
de 14 (catorze) anos. (Incluído pela Lei nº 8.069, de 1990).”

Antes de se adentrar na análise deste tipo, vale desde logo trazer o tipo especial que
se presta a proteger os idosos, previsto no artigo 99 do Estatuto do Idoso:

“Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso,


submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos
e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho
excessivo ou inadequado:
Pena – detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa.
§ 1° Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 2° Se resulta a morte:
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.”

O artigo 136 do CP também se destina a proteger os bens jurídicos vida e saúde. Por
isso, a exposição da vítima a constrangimentos psicológicos, por exemplo, se não acarreta
danos ao menos a sua saúde, não pode aqui se enquadrar.
É sujeito passivo do delito quem quer que esteja sob autoridade, guarda ou
vigilância do agente ativo. Aqui se enquadram pais, tutores, curadores, diretores de escola,
carcereiros, etc.
Este crime não se confunde com a tortura, do artigo 1°, II, da Lei 9.455/ 97, porque
a tortura precisa do elemento sofrimento físico ou mental, e a finalidade expressa de
castigar ou prevenir quaisquer condutas da vítima que desagradem ao torturador. Veja:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:


(...)
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
(...)”

Nos maus tratos, além de não se tratar de inflição de sofrimento físico ou mental,
mas sim de exposição a perigo da vida ou da saúde, a finalidade do sujeito ativo é educar,
ensinar, tratar ou custodiar, e não castigar com inflição de dano. Não há dolo de dano no
cometimento do crime de maus tratos.
O crime de maus tratos é de forma vinculada: diz a lei que o agente só o pratica por
meio da privação da alimentação ou dos cuidados indispensáveis, pela sujeição a trabalho
excessivo ou inadequado, ou ainda pelo abuso dos meios de correção ou disciplina. A
finalidade pode até ser educativa, como se vê, mas o abuso nos meios de correição e
disciplina é repreensível penalmente.
Este crime é de perigo concreto, pois a exposição da vida ou da saúde da vítima não
se presume das hipóteses ali arroladas como meio de cometimento.

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A humilhação da criança, a título de meio educativo, não se amolda ao tipo dos


maus tratos, tampouco da tortura, porque não há sofrimento físico ou moral e nem perigo à
vida ou saúde, mas se amolda ao tipo penal do artigo 232 do Estatuto da Criança e do
Adolescente:

“Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou


vigilância a vexame ou a constrangimento:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.”

Os §§ 1° e 2° do artigo 136 do CP prevêem os maus tratos qualificados, que são


resultados preterdolosos ao crime de maus tratos, sendo atribuíveis ao sujeito passivo
apenas a título de culpa.
É claro que quando a conduta de maus tratos for praticada com a finalidade de se
evitar um mal maior, o agente estará amparado pelo estado de necessidade. Mesmo nas
circunstâncias em que o resultado preterdoloso aconteça, a justificação se aplica. É o
exemplo daquele pai que, para salvar o filho das drogas, trancafia-o em casa, privando-o até
mesmo de alimentos, ante sua tremenda agressividade: está atuando em estado de
necessidade, podendo ter sua imputação excluída até mesmo se sobrevier a morte da vítima.
A verificação deve ser casuística, porém.
5. Rixa

Diz o artigo 137 do CP:

“Rixa
Art. 137 - Participar de rixa, salvo para separar os contendores:
Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único - Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se,
pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos.”

Rixa é a briga entre mais de duas pessoas – crime de concurso necessário, portanto
–, acompanhada de vias de fato ou violência física recíprocas, sem que haja grupos
definidos entre os contendores. É, em termos rasos, o tumulto violento em que cada um age
por si.
Os rixosos são ao mesmo tempo sujeitos ativos e passivos do crime. O crime é de
perigo, porque a rixa expõe a perigos diversos todos os participantes e os bens jurídicos que
os circundam.
Se, no curso da rixa, ocorre lesão corporal ou morte de um participante, sendo
identificado o causador da morte ou da lesão, este responderá pela rixa em concurso formal
com a morte ou lesão. E veja que sua imputação será na rixa qualificada do parágrafo único
deste artigo.
O parágrafo único do artigo supra é apontado pela doutrina como um resquício de
responsabilidade pena objetiva, porque a lesão e a morte ocorridas no bojo da contenda
serão causas de agravamento da pena de todos os envolvido na rixa, mesmo que não
tenham sido causadores daqueles resultados. Todos os rixosos, causadores ou não do
resultado gravoso, por ele responderão, apenas por participarem da rixa.
É claro que se forem identificados os autores dos golpes que resultaram na lesão ou
morte, eles respondem pelo crime cometido, ou seja, a lesão e a morte, em concurso com a
rixa qualificada. Aqui, há claro bis in idem, porque o mesmo ato que serve para imputar o

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

crime de lesão ou morte, serve também para imputar a qualificadora da rixa – deveriam,
estes causadores, responder apenas pelo crime de dano correspondente e pela rixa simples.
Todavia, a exposição de motivos do CP foi clara em dizer que não se trata de bis in idem, e
por isso a qualificadora se imputa.
O crime de rixa só admite tentativa quando se tratar de rixa preordenada. Há dois
tipos de rixa, segundo Hungria: a súbita e a preordenada. A rixa súbita é a que surge
inadvertidamente, ou seja, é unissubsistente: sem qualquer aviso ou pré-arranjo, estoura a
contenda. A preordenada, porém, se trata da rixa arranjada previamente, e por isso ela se
trata de conduta plurissubsistente, que pode ser fracionada, e portanto obstada por forças
alheias à vontade dos rixosos.
Há uma sutil diferença entre a participação da rixa e a participação do crime de
rixa: participar da rixa é figurar como um dos contendores, ser um dos rixosos, que estão
envolvidos no tumulto; participar do crime de rixa é ser partícipe do tumulto, sem dele
tomar parte, instigando, incentivando ou auxiliando materialmente os rixosos.

Casos Concretos

Questão 1

CAIO, em viagem para Curitiba, observa, à margem da rodovia, um ciclista ferido,


ao que tudo indica, vítima de atropelamento. O local é deserto e CAIO resolve seguir
viagem, com receio de ser responsabilizado pelo atropelamento.
a) Realizou CAIO algum tipo penal?A solução se alteraria, caso:
b) CAIO tivesse observado que outro motorista estava parando para socorrer a
vítima?
c) CAIO acreditasse que algum outro motorista pararia, o que não ocorreu?
d) CAIO fosse médico ou policial?
e) CAIO, 40 quilômetros adiante, solicitasse o auxílio da Polícia Rodoviária?
f) CAIO nada fizesse, vindo o ciclista a morrer sem socorro?
g) CAIO estivesse parando para socorrer a vítima e surgissem várias pessoas
armadas, dizendo que iriam linchá-lo, por acreditarem que ele era o atropelador?
h) CAIO intencionasse socorrer o ciclista, mas acabasse se omitindo, porque
TÍCIO, seu companheiro de viagem, o ameaçara com uma arma de fogo?

Resposta à Questão 1

a) Sim cometeu o crime do artigo 135 do CP, omissão de socorro.


b) Sim: se outra pessoa estiver prestando o devido socorro, não sendo mais
necessária a ajuda de Caio, este está desonerado da responsabilidade. A
obrigação é solidária, bastando que uma pessoa a cumpra.
c) Neste caso não: Caio só se desonera do dever de socorrer se se ausentar apenas
quando constatar efetivamente que seu socorro não é mais necessário.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

d) Se fosse médico, responderia pelo resultado, quando estivesse em serviço


público de atendimento ou se a vítima fosse sua contratante, mas se não for
nenhum dos casos, responde apenas pela omissão de socorro. Como policial,
porém, é sua obrigação legal, prevista no estatuto da polícia, atuar a qualquer
tempo e em qualquer lugar, sendo garantidor, portanto – responde pelo resultado
lesivo sofrido pela vítima, consumado ou tentado.
e) Caio já consumou, neste caso, a omissão de socorro, pois deveria ter
empreendido o socorro por mãos próprias, ou chamado a autoridade
imediatamente, se não pudesse socorrer ele mesmo.
f) O resultado preterdoloso é-lhe imputável, se ficar provado que o socorro poderia
ter evitado o resultado morte. Responde pelo artigo 135 agravado pelo resultado.
g) Neste caso, Caio passa a ter o risco pessoal a impedir que ele proceda ao
socorro, pelo que ao deixar de fazê-lo sua conduta é atípica. Contudo, deverá
ainda pedir o socorro à autoridade, assim que puder.
h) A questão trata da omissão de socorro daquele que coagiu Caio, coator este que
se torna o autor mediato do crime omissivo. Caio não responde pela sua
omissão, porque sua conduta foi a única exigível – exculpada, portanto –, mas
Tício responde pela omissão própria.
Aqui pode ser suscitada uma questão interessante: se a coação for a
causa da morte da vítima, porque se o coagido agisse o salvamento seria
altamente provável, esta coação se trata de uma ação causadora da morte: é
homicídio comissivo por omissão, porque foi esta ação de coação que,
impedindo o socorro, causou a morte.

Questão 2

Numa arquibancada de um estádio de futebol, de repente, surge uma briga


desordenada em que várias pessoas lutam entre si. Ao final, a polícia intervém para
desapartar os contendores, restando CAIO, MARIO, TÍCIO, MÉVIO, menor de 16 anos, e
SIMPRÔNIO presos em flagrante, tendo este último sofrido lesões de natureza grave. Não
ficou apurado o motivo da briga, mas sim que havia, pelo menos, uns quatro grupos
brigando entre si. Restou apurado, também que PAULO e JOÃO participaram da briga,
mas dela se afastaram antes da chegada da Polícia e antes da ocorrência da lesão
gravosa. Pergunta-se:
a) Qual o crime praticado pelos agentes?
b) Quem é o sujeito passivo deste crime?
c) A situação se modificaria se tivessem sido identificados dois grupos lutando
entre si?
d) A situação inicial se modificaria se fosse descoberto que CAIO foi o autor das
lesões graves contra SIMPRÔNIO?
e) A situação se modificaria se JOSÉ tivesse ficado fora da briga, orientando
MÁRIO, inclusive fornecendo-lhe um pedaço de pau para agredir MÉVIO, seu
inimigo?

Resposta à Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

a) Trata-se do crime de rixa, mas se os quatro grupos puderem ser delimitados, se


tratará de lesões recíprocas. Até mesmo Paulo e João estão enquadrados na rixa.
b) São os mesmos sujeitos ativos, todos os contendores.
c) Sim, como dito. Haveria imputação de crime a crime, lesão ou morte, que
ocorresse.
d) Caio responderia pelo crime de rixa agravada, em concurso com o crime de
lesões graves, em concurso formal.
e) José se enquadra como partícipe no crime de rixa agravada.

Tema VIII

Crimes contra a Honra I (Calúnia). 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) A exceção da verdade;c) A calúnia no Código
Eleitoral e na Lei de Segurança Nacional. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes.

Notas de Aula16

1. Crimes contra a honra – Notas introdutórias

Honra, na sua origem, é um direito personalíssimo do homem, e por isso sempre foi
objeto de proteção jurídica. Historicamente, no Direito Romano, os aviltes à honra de
algum cidadão só eram punidos quando se tratasse de alguma situação que gerasse clamor
público. É desta concepção que se guarda, até hoje, a noção de que o crime contra a honra,
em regra, se consuma apenas quando alcança o conhecimento de terceiros.
Os crimes contra a honra, em regra, segundo Pierangeli, assumem o chamado
caráter relativo, ou circunstanciado: eles dependem da época, lugar e conterxto em que a
suposta ofensa foi proferida para se configurar realmente uma ofensa. Como exemplço,
chamar-se alguém de fascista, ou mesmo nazista, na Europa do início do século, nada mais
era do que atribuir a alguém a condição de membro de um partido político. Hoje, são
claramente expressões carregadas de tom ofensivo.
A honra, enquanto atributo da personalidade, sempre foi objeto de proteção, e os
delitos contras a honra possuem sempre um caráter relativo ou circunstancial: a ofensa
depende do momento social.
Este caráter circunstanciado não se aplica ao crime de calúnia, porque este se trata
da falsa imputação de fato definido como crime. Por isso, a constatação nada tem de
relativa: ou o fato é tipificado naquele contexto, ou não há o crime de calúnia.

16
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Para Magalhães Noronha, “honra é o conjunto ou complexo de predicados de uma


pessoa que lhe conferem consideração social ou estima própria”. Este conceito é
encampado por quase toda a doutrina, diga-se. Partindo deste conceito se pode questionar
se existe mesmo uma honra objetiva e outra subjetiva, enquanto bens jurídicos penais
autônomos, ou se a honra é apenas um atributo geral da personalidade. Heleno Fragoso
explica bem esta questão, a dizer que honra, naturalmente, é uma coisa só, mas para fins de
compreensão de determinadas situações que se pretende reprimir, há a divisão doutrinária
em honra subjetiva e honra objetiva. Na essência, porém, é um só elemento da
personalidade.
É por isso que, se no mesmo contexto, duas ou mais agressões pelo mesmo fato
atacarem a honra do agente, o crime é único: se se imputar qualidade negativa ao agente, e
pelo mesmo ato imputar-lhe falsamente crime – chama o sujeito passivo de estelionatário e
o acusa de ter passado cheques sem fundos –, o agente está sofrendo injúria e calúnia, mas
o crime é um só, porque a honra, intrinsecamente, é uma só: prevalece a calúnia.
De qualquer forma, a doutrina identifica estas partições da honra para fins de
definição das condutas reprimíveis. Assim, há a primeira divisão clássica em honra
subjetiva e objetiva, sendo a subjetiva aquele juízo que o próprio agente faz de si mesmo, e
a objetiva aquela que se fundamente no juízo que as outras pessoas fazem de si. Na injúria,
o avilte é à honra subjetiva; na calúnia e na difamação, à objetiva.
Há também a classificação da honra em dignidade e decoro: honra-dignidade é
aquela que se refere aos sentimentos do indivíduo por si e da sociedade por ele quanto aos
seus atributos morais; honra-decoro, por seu turno, diz respeito aos atributos sociais, físicos
e de costumes que a sociedade faz do indivíduo.
E há, ainda, a honra comum, detida por todos os indivíduos, e a honra especial, que
é aquela que se refere a pessoas que, por determinada condição social, têm alguns valores
que a si são caros, mas que não o seriam às pessoas comuns. Exemplo de honra especial
tem o militar, pessoa de que se faz juízo de bravura tal que, chamando-o de cauteloso,
poder-se-ia estar injuriando-o.
A classificação mais importante, de fato, é a que difere honra subjetiva de objetiva,
porque é esta que possibilita diferenciar os três crimes contra a honra capitulados no CP.
Veja: a calúnia é a imputação falsa de um fato definido como crime, atingindo a honra
objetiva; na difamação, há a imputação de fato ofensivo à vítima, seja ele falso ou
verdadeiro, mas não criminoso, atingindo-lhe a honra objetiva. A injúria, por sua vez, se
trata de atribuição de qualidade negativa ao agente, ferindo-lhe o brio, atingindo-lhe a
honra subjetiva.

1.1. Consentimento do ofendido

A doutrina moderna, capitaneada por Zaffaroni, defende que o consentimento do


ofendido, sobre bens disponíveis, não é a disposição do próprio bem; ele dispõe do vínculo
que o direito lhe cria entre este bem e a situação de fasto juridicamente protegida. Dizem,
Zaffaroni e Juarez Cirino, que quando o agente dispõe de seu bem jurídico – por exemplo,
quando destrói um bem de sua propriedade –, ele não está dispondo da destruição do seu
direito de propriedade: houve lesão ao seu patrimônio. Ao fazer isto, ele está dispondo, na
verdade, da proteção que o direito lhe oferece contra aviltes ao patrimônio.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Por isso, para a doutrina moderna, o consentimento do ofendido sobre bem


disponível sempre caracterizará a atipicidade da conduta que atingir tal, bem, porque, de
fato, não houve agressão a tal bem que seja relevante ao Direito Penal. Falta ofensividade.
Veja um exemplo de Nélson Hungria: determinado noivo, visando romper o seu
noivado, autoriza que um amigo seu o difame para a sua noiva. Se o amigo proceder a esta
difamação, está claro que não há o crime, porque ele assim procedeu autorizado pelo titular
do bem jurídico.
Destarte, o fato é atípico, quando a ofensa à honra é autorizada, mesmo para a
doutrina clássica, que vê o consentimento como excludente de tipicidade apenas quando a
negativa da ofensa ao bem esteja expressa como elementar do delito (e que entende que,
quando não está, e o bem é disponível, é causa supralegal de exclusão da ilicitude).
Em síntese: segundo Pierangeli, a honra é um bem jurídico disponível, e o
consentimento na ofensa descaracteriza a tipicidade da conduta. Para a moderna doutrina
penal, o bem jurídico tutelado é a relação de disponibilidade que existe entre o homem e
uma situação de fato juridicamente protegida, sendo também o consentimento excludente
da tipicidade.
Se o bem é indisponível, o consentimento jamais terá efeito algum.
O consentimento emitido após a consumação da ofensa, porém, assume outra
natureza: passa a ser perdão da vítima, operado por meio de algum instituto processual –
expressamente consignado, ou pelo abandono da ação, por exemplo. Uma vez emitido este
consentimento, ele é irretratável, diga-se.

1.2. Delitos de tendência

Os crimes contra a honra são considerados delitos de tendência intensificada: para


que haja o crime contra a honra, não basta que haja a mera emissão da suposta ofensa: é
preciso que haja a finalidade especial de ofender. Trata-se, a tendência, de um dolo
específico, elemento subjetivo especial, que apesar de não estar expresso no tipo (como
vem expresso, ao contrário, nos crimes de intenção), é exigível para configurar o tipo penal.

1.3. Imunidade parlamentar

Os parlamentares têm imunidade material e formal, segundo o artigo 53 da CRFB:

“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por


quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 35, de 2001)
(...)”

Para estar acobertado pela imunidade em relação a opiniões, palavras e votos, no


que diz respeito a crimes contra a honra, é preciso nexo entre o mandato e a ofensa
proferida?
O STF tem entendido que, no recinto do parlamento, toda e qualquer ofensa está
protegida pela imunidade. Fora do parlamento, porém, é necessária a constatação de nexo
entre a ofensa e o exercício do mandato, para que haja acobertamento pela imunidade. Se a
ofensa for completamente alheada das funções do mandato político, não há imunidade.
Neste sentido clássico, veja a Apn 139 do STJ:

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Apn 139 / RS. DJ 14/02/2000 p. 14.


PENAL. LEI DE IMPRENSA. QUEIXA. DEPUTADO ESTADUAL.
IMUNIDADE MATERIAL. INOCORRÊNCIA. ENTREVISTA. OFENSAS
ATRIBUÍDAS A DOIS QUERELADOS. EXCLUSÃO DE UM. PRINCÍPIO DA
INDIVISIBILIDADE DA AÇÃO PENAL.
Somente caberia reconhecer imunidade material se houvesse relação entre os fatos
apontados como crime contra a honra do ofendido e o exercício do mandato
parlamentar pelo ofensor. Sendo as ofensas proferidas por ambos os querelados, a
não inclusão de um deles na queixa importa em renúncia em relação ao outro, a
impor-se o trancamento da queixa (art. 104, CP e art. 49, CPP). Fatos que, em tese,
se subsumem ao disposto nos arts. 21 e 22, da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).
Queixa recebida.”

Veja a posição do STF, no RE 226.643:

“RE 226643 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a):


Min. CARLOS VELLOSO. Julgamento: 03/08/2004. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Publicação: DJ 20-08-2004.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PARLAMENTAR: IMUNIDADE MATERIAL:
CF, ART. 53. RESPONSABILIDADE CIVIL: DANO MORAL: ATO OFENSIVO
EMANADO DE PARLAMENTAR: INOCORRÊNCIA DA IMUNIDADE
MATERIAL. I. - As manifestações dos parlamentares, ainda que feitas fora do
exercício estrito do mandato, mas em conseqüência deste, estão abrangidas pela
imunidade material, que alcança, também, o campo da responsabilidade civil.
Precedentes do STF: RE 210.917/RJ, Min. S. Pertence, "DJ" de 18.6.2001; RE
220.687/MG, Min. C. Velloso, 2ª T., "DJ" de 28.05.99; Inq 874-AgR/BA, Min. C.
Velloso, Plenário, "DJ" de 26.5.95. II. - As palavras dos parlamentares, que não
tenham sido proferidas no exercício e nem em conseqüência do mandato, não estão
abrangidas pela imunidade material. É que há de existir, entre a atividade
parlamentar e as declarações do congressista, nexo causal. Precedente do STF: Inq
1.710/SP, Min. S. Sanches, "DJ" de 28.6.2002. III. - No caso, não há nexo de
causalidade entre a atividade parlamentar e as declarações do congressista. IV. -
RE conhecido, mas improvido.”

O STF, no Inquérito 1.958, explana com perfeição sua tese de que na casa, o fato é
sempre atípico, e para ofensas seja fora dela, a conexão com o mandato é necessária. Veja:

“Inq 1958 / AC – ACRE. INQUÉRITO. Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO.


Relator(a) p/ Acórdão: Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 29/10/2003. Órgão
Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 18-02-2005.
EMENTA: INQUÉRITO. DENÚNCIA QUE FAZ IMPUTAÇÃO A
PARLAMENTAR DE PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A HONRA,
COMETIDOS DURANTE DISCURSO PROFERIDO NO PLENÁRIO DE
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA E EM ENTREVISTAS CONCEDIDAS À
IMPRENSA. INVIOLABILIDADE: CONCEITO E EXTENSÃO DENTRO E
FORA DO PARLAMENTO. A palavra "inviolabilidade" significa intocabilidade,
intangibilidade do parlamentar quanto ao cometimento de crime ou contravenção.
Tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função parlamentar, porque
em jogo a representatividade do povo. O art. 53 da Constituição Federal, com a
redação da Emenda nº 35, não reeditou a ressalva quanto aos crimes contra a
honra, prevista no art. 32 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Assim, é de se
distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do
Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

perquirir da chamada "conexão como exercício do mandato ou com a condição


parlamentar" (INQ 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das
Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão
com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal
seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais
excessos no desempenho dessa prerrogativa. No caso, o discurso se deu no
plenário da Assembléia Legislativa, estando, portanto, abarcado pela
inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas concedidas à imprensa pelo acusado
restringiram-se a resumir e comentar a citada manifestação da tribuna, consistindo,
por isso, em mera extensão da imunidade material. Denúncia rejeitada.”

Repare que se a ofensa for constatada, mas acobertada pela imunidade, nem mesmo
civilmente o parlamentar responderá: o caput do artigo 53 da CRFB, supra, elide a
responsabilidade penal e também a civil.
Repare que a imunidade parlamentar açambarca também os votos dos
parlamentares. Assim, se uma lei for aprovada com conteúdo criminoso, considerado
caluniador, difamador ou injuriante – o que é difícil de se conceber, mas possível –, os
parlamentares serão imunes a este suposto crime contra a honra escrito, porque os seus
votos são açambarcados na imunidade.
A responsabilidade administrativa, porém, é possível, caso signifique quebra de
decoro parlamentar.

1.4. Imunidade do advogado

Dispõe o artigo 133 da CRFB:

“Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável


por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

O advogado goza de imunidade, ao que o artigo 142, I, do CP, consigna que:

“Exclusão do crime
Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador;
(...)”

Repare que a ofensa que, na discussão da causa, é considerada atípica, é aquela


irrogada contra a parte ou o advogado contrário. Mas e quanto àquela dirigida ao juiz? A
ofensa ao juiz da causa está abrangida pela imunidade do advogado?
Há três correntes: Nelson Hungria sustenta que a imunidade do advogado tem por
função permitir que ele debata a causa com liberdade, diante do seu contendor. Por isso,
esta ofensa jamais poderia se dirigir ao juiz, que não tem qualquer envolvimento nos
debates – é figura eqüidistante. Da mesma forma, o MP que oficia como custos legis, que
em nada participa dos debates, não poderia sofrer ofensa pelo advogado.
Euclides da Silveira defende que esta ofensa ao juiz é alcançada pela imunidade do
advogado, sem maiores explicações.
A terceira corrente, mais razoável, majoritária e adotada pelas Cortes Superiores,
entende que a ofensa irrogada contra o juiz será tolerada, abarcada pela imunidade, se tiver
nexo com o tema em debate na causa, e o juiz tenha interferido de qualquer forma para ser

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

alvejado pela ofensa. Por exemplo, se o advogado precisa apontar o juiz como relapso,
desidioso, ou mesmo inapto a exercer a profissão, para, com estas ofensas, apontar o
motivo de sua irresignação com determinado efeito negativo que seu cliente tenha sofrido, a
ofensa está conectada à mens da imunidade, e por isso é por ela abarcada. Se se tratar de
ofensa ao juiz alheada da causa, a imunidade não socorre o advogado.
Veja, neste sentido, o RHC 4.979, do STJ, e o HC 69.085, do STF, pela ordem:

“RHC 4979 / MG. DJ 27/11/1995 p. 40906.


PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A HONRA DE
JUIZ, PRATICADO POR ADVOGADO.
1 - EXATA CLASSIFICAÇÃO DO CRIME. ADMISSIBILIDADE, EM TESE,
DE EXAME NA VIA ESTREITA DO HABEAS CORPUS DA EXATA
CLASSIFICAÇÃO DO CRIME, QUANDO, PARA TANTO, NÃO SE EXIJA
REEXAME DE PROVA E A QUESTÃO ESTEJA VINCULADA AO TEMA DA
AMPLA DEFESA. CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, NÃO
DE INJURIA, NA IMPUTAÇÃO DE FATOS ESPECIFICOS, OFENSIVOS A
HONRA.
2 - INVIOLABILIDADE E IMUNIDADE DO ADVOGADO (ARTS. 133 DA CF
E 142, I, DO CP). UTILIZAÇÃO DE LINGUAGEM EXCESSIVA E
DESNECESSARIA, QUE EXTRAVASA OS LIMITES RAZOAVEIS DA
DISCUSSÃO DA CAUSA. TANTO A INVIOLABILIDADE COMO A
IMUNIDADE JUDICIARIA ESTÃO CONTIDAS NOS LIMITES
ESTABELECIDOS EM LEI. EM MATERIA PENAL VIGE O ART. 142, I, DO
CP, QUE EXIGE SEJA A OFENSA IRROGADA "NA DISCUSSÃO DA
CAUSA". A JURISPRUDENCIA NÃO TEM, TODAVIA, ADMITIDO OFENSAS
AO JUIZ DA CAUSA. PRECEDENTES DO STF.
3 - EXCEÇÃO DA VERDADE NO CRIME DE DIFAMAÇÃO. TRATANDO-SE
DE CRIME DE DIFAMAÇÃO CONTRA FUNCIONARIO PUBLICO, EM
RAZÃO DO CARGO, ADMISSIVEL E A EXCEÇÃO DA VERDADE (ART.
139, PARAGRAFO UNICO, DO CP). RECURSO DE HABEAS CORPUS
CONHECIDO E PROVIDO PARA ALTERAR A CLASSIFICAÇÃO DO CRIME
DESCRITO NA DENUNCIA E DETERMINAR O PROCESSAMENTO DA
EXCEÇÃO DA VERDADE.”

“HC 69085 / RJ - RIO DE JANEIRO. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


CELSO DE MELLO. Julgamento: 02/06/1992. Órgão Julgador: PRIMEIRA
TURMA. Publicação: DJ 26-03-1993
"HABEAS CORPUS" - INVIOLABILIDADE DO ADVOGADO - CF/88, ART.
133 - OFENSAS MORAIS IRROGADAS EM JUÍZO E DIRIGIDAS AO
MAGISTRADO - VALOR RELATIVO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL -
INVIABILIDADE DO "HABEAS CORPUS" PARA EFEITO DE DISCUSSÃO
DAS EXCLUDENTES ANIMICAS - ORDEM INDEFERIDA. - A proclamação
constitucional da inviolabilidade do Advogado, por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, traduz uma significativa garantia do exercício pleno dos
relevantes encargos cometidos pela ordem jurídica a esse indispensavel operador
do direito. A garantia de intangibilidade profissional do advogado não se reveste,
contudo, de valor absoluto, eis que a cláusula assecuratoria dessa especial
prerrogativa jurídico-constitucional expressamente a submete aos limites da lei. A
invocação da imunidade constitucional, necessariamente sujeita as restrições
fixadas pela lei, pressupoe o exercício regular e legitimo da advocacia. Revela-se
incompativel, no entanto, com praticas abusivas ou atentatorias a dignidade da
profissão ou as normas etico-juridicas que lhe regem o exercício. O art. 142 do
Código Penal, ao dispor que não constitui injuria ou difamação punivel a ofensa
irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador -

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

excluidos, portanto, os comportamentos caracterizadores de calunia (RTJ 92/1118)


- estendeu, notadamente ao Advogado, a tutela da imunidade judiciária, desde que,
como ressalta a jurisprudência dos Tribunais, as imputações contumeliosas tenham
relação de pertinencia com o "thema decidendum" (RT 610/426 - RT 624/378) e
não se refiram ao próprio juiz do processo (RTJ 121/157 - 126/628). - O "Habeas
Corpus" não constitui meio processual adequado a analise das excludentes
animicas - "animus defendendi", "animus narrandi", "animus consulendi", v.g. -,
cuja concreta ocorrencia teria o efeito de descaracterizar a intenção de ofender. O
remedio heroico não se presta, em função de sua natureza mesma e do caráter
sumarissimo de que se reveste, a indagação probatoria efetivada com o objetivo de
apurar, a partir dos elementos instrutorios produzidos nos autos, a ocorrencia de
justa causa para a ação penal ou para a condenação criminal.”

O artigo 142 do CP, de fato, vem positivar como excludentes da tipicidade situações
que, por sua lógica, seriam exclusões da ilicitude, porque se tratariam de exercício regular
do direito, o que fica patente na imunidade do advogado, que é claramente uma situação em
que as ofensas estariam irrogadas no exercício do direito de advogar por seu cliente, da
melhor forma possível.
Para a calúnia contra o juiz, ou contra qualquer outro personagem processual, em
juízo, nada protege o advogado: o crime é punível, como faz depreender o próprio artigo
142, I, do CP, supra.

1.5. Crimes contra a honra no Código Eleitoral

Há um conflito aparente de normas entre o CP e o CE sobre crimes contra a honra,


eis que no diploma eleitoral são previstos tipos específicos de calúnia, injúria e difamação.
Este conflito se resolve pela simples especialidade: se o crime for cometido durante a
propaganda eleitoral, em qualquer meio, a norma aplicável é a do Código Eleitoral; se for
praticada fora destes momentos, é seguida a regra do CP.
Veja os artigos 324 a 326 do CE:

“Art. 324. Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de


propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 dias-multa.
§ 1° Nas mesmas penas incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou
divulga.
§ 2º A prova da verdade do fato imputado exclui o crime, mas não é admitida:
I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido, não foi
condenado por sentença irrecorrível;
II - se o fato é imputado ao Presidente da República ou chefe de governo
estrangeiro;
III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por
sentença irrecorrível.

“Art. 325. Difamar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de


propaganda, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção de três meses a um ano, e pagamento de 5 a 30 dias-multa.
Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se ofendido é
funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.”

“Art. 326. Injuriar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de


propaganda, ofendendo-lhe a dignidade ou o decôro:

Michell Nunes Midlej Maron 105


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - detenção até seis meses, ou pagamento de 30 a 60 dias-multa.


§ 1º O juiz pode deixar de aplicar a pena:
I - se o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;
II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
§ 2º Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção de três meses a um ano e pagamento de 5 a 20 dias-multa, além
das penas correspondentes à violência prevista no Código Penal.”

E há ainda uma particularidade importantíssima a ser observada: os crimes eleitorais


são todos de ação penal pública, na forma do artigo 355 do CE:
“Art. 355. As infrações penais definidas neste Código são de ação pública.”

Não há mitigação à natureza pública desta ação, como se vê no Inquérito 2.188 do


STF:
“Inq 2188 / BA – BAHIA. INQUÉRITO. Relator(a): Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE. Julgamento: 06/08/2006. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: DJ 15-12-2006.
EMENTA: Queixa-crime: ilegitimidade de parte: rejeição. Hipótese de delitos
contra a honra (calúnia e difamação) que, praticados "na propaganda eleitoral, ou
visando a fins de propaganda eleitoral" (C. El., arts. 324 a 326), tipificam crimes
eleitorais, perseqüíveis exclusivamente por ação penal pública (C. El. 355).”

1.6. Ação penal nos crimes contra a honra

O artigo 145 do CP dita a regra:

“Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante
queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Parágrafo único - Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do n.º I do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do
mesmo artigo.
Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do
ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3° do art.
140 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.033. de 2009)”

Assim, a ação é em regra privada, sendo pública apenas quando se tratar de injúria
real de que resulte lesão corporal, em qualquer intensidade, dolosa ou culposa. No TJ/RS,
se toma em conta a previsão do artigo 88 da Lei 9.099, fazendo com que se a lesão for leve,
a ação é pública condicionada a representação; se grave, incondicionada:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

O parágrafo do artigo 145 do CP foi recentemente alterado, para contemplar a


necessidade de representação do ofendido quando se tratar de injúria que consista na
utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de
pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.7. Crimes contra a honra de servidor público em razão do exercício das funções

A súmula 714 do STF assim dispõe:

“Súmula 714, STF: É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e


do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação
penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.”

O STF abriu uma hipótese extralegal de legitimação concorrente para a ação penal,
para que o agente que tenha sua honra atacada, juntamente com a ofensa perpetrada ao
Estado no mesmo ato, possa agir, sem depender do MP acatar ou não sua representação. E
veja que se trata de uma legitimidade alternativa, na verdade, porque se o agente público
primeiro representar, não mais pode ofertar queixa, e vice-versa. Optado por uma via, a
outra está fulminada. Veja o Inquérito 1.939, do STF:

“Inq 1939 / BA – BAHIA. INQUÉRITO. Relator(a): Min. SEPÚLVEDA


PERTENCE. Julgamento: 03/03/2004. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: DJ 02-04-2004.
EMENTA: I. Ação penal: crime contra a honra do servidor público, propter
officium: legitimação concorrente do MP, mediante representação do ofendido, ou
deste, mediante queixa: se, no entanto, opta o ofendido pela representação ao MP,
fica-lhe preclusa a ação penal privada: electa una via... II. Ação penal privada
subsidiária: descabimento se, oferecida a representação pelo ofendido, o MP não se
mantém inerte, mas requer diligências que reputa necessárias. III. Processo penal
de competência originária do STF: irrecusabilidade do pedido de arquivamento
formulado pelo Procurador-Geral da República, se fundado na falta de elementos
informativos para a denúncia.”

Destarte, se o agente representar, não mais poderá ajuizar a ação privada. Poderá,
outrossim, ajuizar a subsidiária da pública, da mesma forma que nas situações normais
surge esta faculdade para quaisquer ofendidos, ou seja, se o MP quedar-se inerte (e não se
este demorar, ou diligenciar, como se vê na ementa acima).

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

CLARA, colega de trabalho de JOANA, aproveita-se de momento em que as duas


estão sozinhas na sala e, dirigindo-se a JOANA, com o intuito de irritar a colega, de quem
não gostava, afirma, apesar de saber inverídica a irrogação, ter sido ela a autora de furto
ocorrido na empresa na semana anterior, ocasião em que foram subtraídos computadores e
material de informática. Analise penalmente a conduta de CLARA. Resposta objetivamente
fundamentada.

Resposta à Questão 1

Se o dolo é de irritar, o crime contra a honra está claramente afastado. Não haveria
calúnia jamais, porque a para que esta se consume é preciso que a falsa imputação chegue
ao conhecimento de terceiros – a honra é objetiva –, mas, no caso, sequer se pode entender
ter havido injúria, porque o intuito de irritar não configura ânimo de injuriar – não há o dolo
específico de caluniar ou injuriar.

Questão 2

Tendo sido caluniado por um funcionário de cartório, o magistrado ofendido


representou ao Promotor de Justiça com atribuição junto à 1ª Central de Inquéritos da
Capital, sendo ajuizada a competente ação penal contra o ofensor, que ofereceu exceção
da verdade. Neste contexto, indaga-se:
a) É cabível a exceptio veritatis na hipótese?
b) Qual o juízo competente para o julgamento da causa e da exceção da verdade?

Resposta à Questão 2

a) Sim, é expressamente admitida no artigo 138, § 3°, do CP. Se for procedente, a


exceptio veritatis, na calúnia, exclui a tipicidade (afasta a elementar “falsa” da
imputação).

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

b) O juízo competente para julgamento é o tribunal, eis que é lá o foro competente


para julgar delitos praticados por magistrados, o que se verificará caso a exceção
da verdade seja procedente. Contudo, o juízo da causa pela calúnia, em que é
réu o funcionário do cartório, ainda é o de primeira instância.
Pelo ensejo, vale dizer que ao tribunal só cabe julgar a exceção: a
instrução desta é feita na instância ordinária.

Tema IX

Crimes contra a Honra II (Difamação).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; b) A exceção da verdade; c)
Semelhanças e diferenças entre a calúnia e a difamação; d) A difamação no Código Eleitoral e na Lei de
Segurança Nacional. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes.

Notas de Aula17

1. Calúnia

Diz o artigo 138 do CP:

“Calúnia
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou
divulga.
§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.
Exceção da verdade
§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo:
I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi
condenado por sentença irrecorrível;
II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141;
III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por
sentença irrecorrível.”

O termo “alguém”, usado no caput do artigo 138, significa que a calúnia deve ter
destinatário definido, determinado, especificado.
Outro aspecto elementar deste tipo é a falsa imputação de “fato definido como
crime”, e não a falsa imputação de crime, diferença que é de uma nuance bastante diáfana:
o que se imputa é qualquer fato que seja definido como criminosos, e não um determinado
crime que foi cometido. Outra repercussão desta diferença é quando a vítima da calúnia for
um menor: se o menor não pratica crime, e sim ato infracional, se o tipo dissesse “falso
crime”, a imputação de ato infracional (que é conduta análoga aos crimes) não seria

17
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

abarcada pela tipificação da calúnia; como o ato infracional se subsume ao conceito de


“fato definido como crime”, a calúnia contra menor subsiste.
O § 1° traz a extensão da pena a quem, não tendo sido autor original da calúnia, a
propala ou divulga. Propalar é manifestar-se verbalmente; divulgar é disseminar aa calúnia
por qualquer outro meio.
Os requisitos da calúnia, portanto, são: a imputação de um fato (e não de uma
qualidade); que a imputação do fato seja falsa; e que seja ele descrito como crime.
Não é preciso que o fato falsamente imputado tenha realmente acontecido para que
haja o crime de calúnia. Mesmo que não tenha ocorrido concretamente, a narrativa de tal
fato, porém, deve ser suficientemente particularizada para que se configure o crime: a
narração deve ser de fato específico, como diz a doutrina e jurisprudência, capaz de fazer
crível a sua ocorrência. Veja, por exemplo, o Inquérito 2.582, do STF:

“Inq 2582 / RS - RIO GRANDE DO SUL. INQUÉRITO. Relator(a): Min.


RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 21/11/2007. Órgão Julgador: Tribunal
Pleno. Publicação: 22-02-2008
EMENTA: INQUÉRITO. OFENSAS IRROGADAS EM RÁDIO. LEI DE
IMPRENSA. IMPUTAÇÃO DE MOTIVAÇÃO POLÍTICA EM CONDUÇÃO DE
INVESTIGAÇÃO. CALÚNIA. INOCORRÊNCIA. ATIPICIDADE. ADJETIVOS
COMO COVARDE E IRRESPONSÁVEL. DIFAMAÇÃO. INOCORRÊNCIA.
ATIPICIDADE. INJÚRIA. OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA.
I - O tipo de calúnia exige a imputação de fato específico, que seja criminoso, e a
intenção de ofender a honra da vítima, não sendo suficiente o animus defendendi.
II - O tipo de difamação exige a imputação de fato específico. III - A atribuição da
qualidade de irresponsável e covarde é suficiente para a adequação típica face ao
delito de injúria. IV - Presente o animus injuriandi. V - Transcorridos dois anos
desde o fato ofensivo e à míngua de qualquer hipótese de interrupção da
prescrição, esta operou-se em 13 de junho de 2007. VI - Ação improcedente.”

No crime de calúnia, portanto, a imputação do fato não exige a sua ocorrência, mas
é necessário que o mesmo tenha a aparência de um fato existente. Veja também o julgado
da Apelação Criminal 70003470085, do TJ/RS:

“Apelação Crime. RELATOR: Luís Carlos Ávila de Carvalho Leite. DATA DE


JULGAMENTO: 12/06/2003.
CRIMES DE AMEAÇA E CONTRA A HONRA. Preclusa a matéria, uma vez
argüida exceção de suspeição somente em sede de razões recursais. Havendo
conexão entre crimes de competência do juizado especial e do juízo comum, a
competência é deste, inviável a cisão processual. Inexistente o menor vínculo a
prender as ofensas verbais à atividade funcional da vítima, é caso de ação penal
privada, configurada a ilegitimidade ministerial, decorrendo daí a decadência, por
já superado o prazo legal para a instauração da competente ação. Mas, imputada
proteção do agente ministerial a companheiros que praticam ilícitos penais, esta
acusação é de ser perseguida através de ação pública, mediante representação.
Ofensa que se limita genericamente a atingir a dignidade e o decoro da vítima,
sem imputar-lhe fato definido e concreto, configura o crime de injúria, exigível a
precisão de fato criminoso, para caracterizar a calúnia. Desclassificada a infração
penal, foi por este crime condenado o réu, vencido o Relator, que decretava a
prescrição, também vencido no reconhecimento da extinção da punibilidade pelo
crime de ameaça, com o que mantida a condenação, por este ilícito penal. Apelo
parcialmente provido, para desclassificar infração penal e absolver o acusado pelo
cometimento de difamação (art. 386, III, CPP), preliminar de ilegitimidade ativa

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

acolhida, demais prefaciais rejeitadas, e mantida a condenação por ameaça e


imposta, por injúria, por força de desclassificação.” (grifo nosso)

Segundo Pierangeli, haverá calúnia tanto quando o fato imputado não existiu, como
quando existiu mas a vítima não foi seu autor. Veja o seguinte julgado do TJ/RJ, na
Apelação Criminal 2003.050.00573:

“2003.050.00573 - APELACAO - 1ª Ementa. DES. NILDSON ARAUJO DA


CRUZ - Julgamento: 25/11/2003 -PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL.
CALUNIA. NAO CONFIGURACAO DO CRIME. ABSOLVICAO CRIMINAL.
REFORMA DA SENTENCA. APELACAO PROVIDA.
CRIME DE IMPRENSA. CALÚNIA. APELO DEFENSIVO. PRELIMINARES
DE INTEMPESTIVIDADE, DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA E
DE DESERÇÃO: REJEITADAS POR UNANIMIDADE. INEXISTÊNCIA DE
CRIME. APELO PROVIDO, POR MAIORIA, PARA ABSOLVER OS
APELANTES, NOS TERMOS DO ART. 386, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL. Das preliminares - O recurso é tempestivo. A sentença foi publicada no
Diário Oficial em 18 de outubro de 2002, sexta-feira, e o apelo foi interposto em
24 daquele mês, portanto antes do término do prazo. Não ocorreu a prescrição da
pretensão punitiva, eis que o recebimento da denúncia e a publicação da sentença
interromperam o fluxo do respectivo prazo. O disposto no art. 117, I e IV, do
Código Penal se aplica aos crimes de imprensa, tendo em vista a regra constante do
art. 48 da Lei nº 5.250/67. Também não se configura a deserção, considerando que
as custas pertinentes ao recurso foram recolhidas antes de seu julgamento, sendo
certo que deve ser preservado o princípio da ampla defesa. Preliminares rejeitadas
por unanimidade. Do mérito - A conduta do caluniador consiste ou em imputar à
vitima crime que saiba inexistente, ou em imputar à vítima crime existente,
sabendo que não foi cometido por ela. No caso, nem uma coisa, nem outra. A
matéria publicada, em verdade, acabou por preservara idoneidade do ofendido,
atribuindo-lhe gesto legal. Recurso provido, por maioria, para absolver os
apelantes, na forma do art. 386, III, do Código de Processo Penal.” (grifo nosso)

O fato imputado deve ser típico, deve ser crime. Quem imputa falsamente
contravenção penal está cometendo crime de difamação, e não calúnia, por falta de
adequação típica à calúnia, mas preenchimento da difamação: há imputação de fato
ofensivo, sem que este seja definido como crime.
Chamar alguém de ladrão não é imputar falso crime de furto ou roubo. Esta
assertiva feita pelo agente define-se como injúria, porque ao proferir tal impropério o
agente não está especificando um fato definido como crime com a devida particularização:
está é impingindo ao sujeito passivo a pecha desonrosa de pessoa que é dada a estes atos,
mas sem imputar-lhe concretamente um furto ou roubo. O que se passa, ali, é a imputação
de uma qualidade negativa ao agente, e por isso o crime que se configura é o de injúria.

1.1. Sujeitos ativo e passivo

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de calúnia. Cezar Roberto
Bitencourt, porém, não admite que inimputáveis possam ser sujeitos ativos da calúnia, ao
argumento de que não podem, eles, cometer crimes, pois lhes falta culpabilidade. Não há
qualquer lógica neste argumento, pois se respondem por ato infracional em qualquer ato
análogo a crime que cometam, aqui o raciocínio se repetiria.

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Na calúnia contra mortos, do § 2° deste artigo 138 do CP, o titular do bem jurídico,
por óbvio, não é o próprio morto, eis que todos os direitos deste se extinguem com a morte.
São titulares do direito à honra todos os familiares do morto, que prezam a honra própria,
afetada pela ofensa ao morto, à memória do morto.
O sujeito passivo é toda pessoa que tenha honra para ser atacada. Apesar de ser uma
assertiva óbvia, há casos em que esta percepção pode ser dificultosa. Menores e loucos
(inimputáveis de toda sorte), por exemplo, podem ser vítimas de calúnia?
Há quatro correntes a disputar o tema. Heleno Fragoso, por não ver diferença entre
honra subjetiva e objetiva, entende que loucos e menores são sujeitos passivos de quaisquer
crimes contra a honra. Para Bitencourt, como a calúnia afeta o conceito social, a honra
objetiva, os inimputáveis são, sim, passíveis de sofrer este ataque – é como pensa também
Hungria. Damásio diz que é irrelevante a inimputabilidade, porque em sua leitura causalista
do delito o crime já existe antes de se olhar para a culpabilidade – pode ser imputado crime
a menores e loucos, podendo estes serem falsamente imputados.
A melhor corrente, porém, a todo ver, é a de Mirabete. Diz este autor que o crime é
imputar um fato definido como crime, e não a imputação de um crime (diferença já
apontada neste estudo), e por isso é irrelevante se o inimputável pode ou não cometer
crime: a calúnia se consuma com a mera imputação de um fato definido como tal, mesmo
que não seja crime, e sim ato infracional.
Outro exemplo peculiar quanto à sujeição passiva da calúnia diz respeito às
prostitutas e os criminosos condenado: tais pessoas podem ser vítimas de calúnia? A
resposta é positiva: todas as pessoas têm honra a ser protegida, mesmo que seja esta uma
pequeníssima parcela de sua personalidade – o que Manzini chama de oasi morali, um
oásis moral, um mínimo de honra a ser resguardado.
Pessoas jurídicas podem ser sujeitos passivos de calúnia? Ora, em um ordenamento
em que a pessoa jurídica pode cometer crime, como no sabido caso do crime ambiental,
pode sofrer falsa imputação destes crimes, configurando a calúnia, portanto.
Há que se ressaltar, pelo ensejo, que o STJ tem entendido que a imputação pelo
crime ambiental não pode se concentrar apenas na pessoa jurídica: o MP deve denunciar
tanto a pessoa jurídica como as pessoas físicas que atuaram no crime, presentando a
sociedade. Trata-se da aplicação da teoria da dupla imputação18, em que o litisconsórcio
18
Em consignação pessoal, entendo que se trata, a dupla imputação, de uma manifestação daquilo que se
considera responsabilidade penal por ricochete. Assim entende Luiz Flávio Gomes, para quem:

“Pode-se afirmar que também houve plasmação e consagração na Lei 9.605/1998


(art. 3º) da chamada teoria da responsabilidade penal por ricochete (de empréstimo,
subseqüente ou por procuração), ou seja, a responsabilidade “penal” da pessoa
jurídica depende da prática de um fato punível por alguma pessoa física, que atua
em seu nome e em seu benefício. É uma responsabilidade por ricochete, porque
prioritariamente deve ser incriminada a pessoa física. Por reflexo a pessoa jurídica
acaba também sendo processada, desde que preenchidos os requisitos legais
(atuação em nome da pessoa jurídica, benefício da pessoa jurídica etc.). Quando
não se constata nenhum benefício para a pessoa jurídica, não há que se falar em
processo contra ela: TRF-2ª Região, MS 7.745, Quinta Turma, j. 30.04.02.”

Veja a ementa deste MS que o autor aponta:

“MS - MANDADO DE SEGURANÇA – 7745. Processo: 2001.02.01.046636-8.


Data Decisão: 30/04/2002.

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

passivo dos réus acusados é necessário. Se não houver a dupla imputação, recaindo a
denúncia apenas sobre a pessoa jurídica, o STJ tem admitido o mandado de segurança com
o fito de obter o trancamento da ação penal, diga-se.
Veja o RMS 16.696 do STJ, em que se fala da dupla imputação:
“RMS 16696 / PR. DJ 13/03/2006 p. 373.
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIZAÇÃO DA
PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
INÉPCIA DA DENÚNCIA. OCORRÊNCIA.
1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força de sua previsão
constitucional, requisita a actio poenalis, para a sua possibilidade, a imputação
simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata ou imediatamente, no
exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pela estatuto social, pratique o
fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen sine actio humana.
2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o
trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica, é de rigor.
3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício.”

Em síntese, excepcionalmente, as pessoas jurídicas podem praticar crime ambiental,


e por isso podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia.

1.2. Elemento subjetivo

O crime de calúnia demanda dolo específico? O tipo formal, como se vê, não
exprime literalmente nenhuma finalidade especial do agente ao imputar falsamente o crime
ao sujeito passivo. O tipo penal é se resume ao teor de “imputar falsamente fato definido
como crime”, e não “imputar falsamente fato definido como crime com o fim de ofender a
honra”. Por isso, surgem duas correntes na doutrina, acerca da exigibilidade deste dolo
específico ou não.
A primeira corrente, de Aníbal Bruno e Pierangeli, defende que o tipo penal da
calúnia só pede o dolo em preencher aquela conduta alio traçada, qual seja, imputar
falsamente fato considerado crime. Se o agente tem dolo de fazer exatamente isto, não há
que se cogitar de qualquer finalidade específica nesta conduta. Pierangeli diz, porém, que
ao lado deste dolo simples anda indissociável aquilo que se chama de teoria dos animi, que
consiste na apreciação do dolo do agente no momento em que dolosamente comete a
conduta tipificada.
Entenda: se o agente está prestando um testemunho em juízo sobre um fato que
supostamente tenha assistido, e ali narra a autoria de um crime que acredita ter visto, sendo
que o autor por ele apontado jamais cometera aquele crime: há crime de calúnia? Decerto

MANDADO DE SEGURANÇA. CRIME AMBIENTAL. PESSOA JURÍDICA.


LEI Nº 9.605/98. Ausência de normas disciplinadoras do processo penal na Lei nº
9.605/98. Não há ilegalidade, face o artigo 79 desse diploma, que prevê aplicação
subsidiária do C.P.C. Pessoa jurídica, ré no processo penal, onde se lhe
responsabiliza por crime ambiental. Em não tendo a infração sido cometida por
decisão do seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no
interesse ou benefício de entidade (art. 3º da Lei 9605/98), mas tratando-se de
acidente que em nada beneficiou a pessoa jurídica, não há justa causa para a ação
penal. Ação penal trancada, por maioria de votos, em relação à Petrobrás. Mandado
de segurança concedido.”

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

que não: o agente que faz esta falsa imputação de crime está formalmente preenchendo a
tipificação da calúnia – está imputando falso crime ao réu. Contudo, seu ânimo não é de
caluniar: está agindo com animus narrandi, apenas contando algo que acredita saber. Outro
exemplo é o de alguém que, com o ânimo de aconselhar alguém, recomenda que ela não
ande com determinada pessoa, dizendo que esta tem má reputação: não há animus
difamandi, e sim animus consulendi, ou seja, o agente quer aconselhar sua audiência, e não
difamar aquele terceiro. Outro: se o agente repreende o funcionário por uma desídia,
reputando-o relapso, está agindo com animus corrigendi, e não injuriante, pelo que não há
crime. Mencione-se, também, que a doutrina reconhece alguns outros animi: jocandi,
retorquendi, criticandi ou defendendi. Na calúnia, a teoria dos animi não é plenamente
aplicável na calúnia, justamente porque alguns destes animi são de difícil constatação em
uma conduta de imputar falsamente crime a outrem: é difícil conceber um animus jocandi
em uma conduta desta modalidade. Por isso, a regra, de fato (mas não em tese), é a
aplicabilidade desta teoria nos crimes de injúria e difamação.
Nestes casos, o tipo objetivo aparentemente se preenche, mas não há o dolo exigido
na calúnia. O dolo não é a especial finalidade de atingir a honra, mas sim o simples dolo de,
ao imputar o falso crime, não haver ânimo ulterior qualquer que não o de simplesmente
imputar falso crime. Se há apenas o dolo de imputar falso crime, sem nenhum dos animi
mencionados, há o crime.
Contudo, a corrente que prevalece é a de Nelson Hungria, seguido por Fragoso e
Damásio: é preciso o dolo específico, a especial finalidade de agir, para que o crime de
calúnia se consume. Para esta corrente, não basta que o agente se manifeste livre e
conscientemente na prática da conduta inscrita no tipo. É preciso que ao fazê-lo, haja
também a vontade de atingir a honra. Por isso, para eles, a leitura do artigo é a seguinte:
“caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, com a finalidade de
ofender-lhe a honra.”
Esta discussão, entre a teoria dos animi e a necessidade de dolo específico, diga-se,
aplica-se a qualquer crime contra a honra.
A jurisprudência adota a corrente de Hungria, entendendo necessário o dolo
específico de ofender a honra. Veja, a propósito, a Apn 165, do STJ, e o HC 86.466 do STF,
pela ordem:

“Apn 165 / DF. AÇÃO PENAL. DJ 28/03/2005 p. 173.


PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. CRIME
CONTRA A HONRA. CALÚNIA. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO
DO TIPO. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO PENAL.
1. O dolo específico nos crimes contra a honra na definição de Nelson Hungria
consubstancia-se, verbis: “na consciência e vontade de ofender a honra alheia
(reputação, dignidade ou decoro), mediante a linguagem falada, mímica ou escrita.
Ê indispensável a vontade de injuriar ou difamar, a vontade referida ao eventus
sceleris, que é no caso, a ofensa à honra.” (Nelson Hungria, Comentários ao
Código Penal, volume VI, arts 137 ao 154, 5 ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1982,
p. 53).
2. In casu, não-obstante o material fático-probatório dos autos deixe depreender
materialidade - existência do fato alegado - e autoria, não restou caracterizada a
adequação jurídico-penal do fato em relação ao delito previsto no artigo 138 do
Código Penal, porquanto ausente o elemento subjetivo do tipo, in casu, o dolo
específico, a vontade de caluniar, na esteira da melhor doutrina e da orientação
jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

(...)”

“HC 86466 / AC – ACRE. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. MENEZES


DIREITO. Julgamento: 30/10/2007. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação:
30-11-2007.
EMENTA Habeas corpus. Penal Militar e Processual Penal Militar. Condenação
pelo crime de calúnia praticado contra superior hierárquico (art. 214, caput, c/c art.
218, inc. II, do CPM). Legitimidade do Ministério Público Militar para ofertar
denúncia por crime contra a honra (art. 121 do CPM e art. 29 do CPPM). Falta de
justa causa. Atipicidade da conduta. Ausência de dolo. Trancamento da ação penal.
Habeas corpus concedido para trancar a ação penal. Precedentes.
1. É viável, no caso concreto, o ajuizamento e o processamento de ação penal,
independentemente de representação dos ofendidos, porque a ação penal militar - a
teor do art. 121 do CPM e do art. 29 do CPPM, e ao contrário da legislação penal
comum - é sempre incondicionada, sendo de atribuição exclusiva do Ministério
Público Militar o seu exercício. 2. Das informações contidas na denúncia e na
sentença condenatória, flagrantemente sem a necessidade de exame profundo dos
elementos de prova, não se revela, no comportamento do paciente, a existência da
intenção de caluniar, sem o que não se tem por configurado o elemento subjetivo
essencial à caracterização do tipo penal em causa. A busca de direito perante o
Poder Judiciário, considerando a realidade dos autos, não pode acarretar presunção
da existência do ânimo de caluniar.
3. Habeas corpus concedido para determinar o trancamento da ação penal.”

Veja um caso concreto peculiar, revelador desta adoção da corrente do dolo


específico. O membro do parquet manifesta, perante o Judiciário, que a defesa manipulou
documentos para, enganando o tribunal, obter um HC, eis que a denúncia originalmente era
acompanhada por diversas provas que foram retiradas quando as cópias foram remetidas ao
tribunal ad quem, que concedeu o HC justamente porque faltavam tais provas. Ora,
concluiu o parquet ao juntar as peças extraídas em seu pedido de reconsideração do HC,
retirar tais provas só interessava à defesa, e por isso fez tal afirmação. Esta alegação
consiste em calúnia, por imputar falsamente o crime de falsidade correspondente à
manipulação dos documentos?
O STJ entendeu que não, porque carecia, esta assertiva, do dolo específico de
caluniar: o parquet pretendia apenas reverter uma situação de erro do juízo induzida pela
falsidade, que reputou à defesa, tendo dolo de corrigir o processo, e não de caluniar quem
quer que fosse. Veja o julgado, na Apn 473, do STJ:

“Apn 473 / DF. DJe 08/09/2008.


CRIMINAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. CRIME CONTRA A HONRA
CALÚNIA. DOLO ESPECÍFICO. AUSÊNCIA. QUEIXA REJEITADA.
O dolo específico (animus calumniandi), ou seja, a vontade de atingir a honra do
sujeito passivo, é indispensável para a configuração do delito de calúnia.
Precedentes. Hipótese na qual Subprocuradores da República peticionam no
sentido de comunicar situação que gerou a ocorrência de erro material
determinante para a concessão de habeas corpus em favor dos pacientes assistidos
pelos querelantes. Na função de fiscal da lei, o representante do Ministério Público
tem o dever de relatar qualquer fato, relacionado à causa, que julgar relevante.
Descaracterizada a eventual ocorrência de crime de calúnia, rejeita-se a queixa nos
termos do inc. I do art. 43, do Código de Processo Penal Queixa rejeitada.”

Michell Nunes Midlej Maron 115


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A verdade, porém, é que tais teorias acabam por ser confundidas por nossas cortes,
pois que acabam entendendo que a presença de um dos animi é o que afasta o dolo
específico, e não que a mera inexistência de ânimo qualquer, mas a presença do animo puro
de caluniar (sem dolo especifico de ofender a honra) seja suficiente para configurar o
crime. Isto se ilustra pelo julgado da Apn 11, do STJ:

“Apn 11 / DF. DJ 30/03/1992 p. 3954.


PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL PRIVADA. CRIME CONTRA
A HONRA.
1. DESEMBARGADOR QUE, AO DEPOR COMO TESTEMUNHA E VÍTIMA
EM PROCESSO CRIMINAL, FEZ AFIRMAÇÕES QUE, AO VER DO
QUERELANTE, CONFIGURAM O CRIME DE CALÚNIA.
2. AS RESPOSTAS DADAS PELO INQUIRIDO AO JUIZ, NO CASO
CONCRETO, REVELAM A SIMPLES INTENÇÃO DE INFORMAR (ANIMUS
CONSULENDI).
3. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS CALUNIANDI),
INDISPENSÁVEL À CARACTERIZAÇÃO DO DELITO.
4. QUEIXA-CRIME REJEITADA, ANTE A FALTA DE JUSTIÇA CAUSA PARA
A INSTAURAÇÃO DA "PERSECUTIO CRIMINIS".”

Em outro aspecto, é possível a calúnia com dolo eventual? Veja: se o sujeito ativo
tem dúvidas sobre a falsidade da imputação de fato criminoso que fará, mas a faz assim
mesmo, há dolo eventual de caluniar?
Pierangeli faz a seguinte crítica: se se admitir que o crime é praticado apenas com o
dolo simples, dispensando o dolo específico de ofender a honra, o dolo eventual seria
possível: estaria o agente assumindo o risco de ser aquela imputação falsa ou não, ou seja,
há o dolo eventual da falsidade da imputação. Como nossa jurisprudência segue a corrente
majoritária, em que o dolo específico é exigência do tipo, ou seja, o especial fim de agir
para ofender a honra é necessário, não é possível se falar em dolo eventual – haveria
contradição entre desejar esta especial finalidade (dolo direto) e ser indiferente à sua
consecução (dolo eventual).
Nelson Hungria, porém, diz que tanto o dolo eventual quanto o direto podem
configurar o crime contra a honra, mesmo diante da especial finalidade de agir – o dolo é
um conceito indivisível, em Direito Penal, para tal autor19.
No TJ/RJ, é admitida a calúnia com dolo eventual, como se vê no acórdão da
Apelação Criminal 1999.050.00147:
“Processo: 1999.050.00147. 1ª Ementa – APELACAO. DES. JOAO ANTONIO -
Julgamento:29/04/1999 - OITAVA CAMARA CRIMINAL.
CALUNIA. FALSA IMPUTACAO. DOLO EVENTUAL. CHEQUE SEM
FUNDOS. ATA DE ASSEMBLEIA GERAL. ART. 138. ART. 141. INC. III. C.P.
Calunia. Falsa imputacao de emissao de cheque sem fundos. Dolo direto de
caluniar ou, no minimo, dolo indireto, por assumir o risco de atribuir falsamente

19
Pelo ensejo, vale dizer que a doutrina majoritária entende que é cabível a tentativa em crime praticado com
dolo eventual, porque o dolo é uma coisa só, variando apenas quanto à direção da vontade do agente, e dá um
exemplo: agente que está em fuga da polícia arremessa bomba em prédio habitado, a fim de que os policiais
sejam obstados em sua perseguição. Se ninguém morre da explosão, é clara a tentativa de dolo em matar
quem quer que estivesse no prédio. Mas há quem defenda, como Rogério Greco, que não é possível, porque
no dolo eventual há indiferença quanto ao resultado, e a sua não ocorrência não significa que a sua vontade
tenha sido obstada por forças alheias – pois vontade não houve.

Michell Nunes Midlej Maron 116


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um fato definido como crime. Declaracao feita em assembleia geral de


condominio, ficando registro na ata. "Animus narrandi" que nao se adequa ao fato.
Excecao da verdade nao provada. Emitir cheque sem fundos e'crime perante a
legislacao penal. Atribuir a alguem tal conduta, sem o fato ser verdadiero e', em
principio, crime de calunia. O fato de estar prestando contas de sua gestao, perante
os condominos, nao autoriza o sindico a fazer tal afirmacao, sem nenhuma
relevancia para apreciacao da materia, mesmo porque teria ocorrido antes de sua
administracao. Provada a inexistencia do fato, emissao de cheque sem fundos, e o
agir doloso do agente contra o ofendido, pessoa que contesta na Justica cobrancas
que considera indevidas, nao ha' como deixar de se reconhecer a pratica do crime
de calunia, na conduta dolosa direta, ou ate' mesmo na indireta, por assumir o
agente o risco de causar o mal a outrem.”

1.3. Adesão à calúnia

O § 1° do artigo 138 do CP incrimina, como visto, aquele que não tendo praticado a
a calúnia originalmente, a faz repercutir, ou seja, adere à conduta caluniosa originária,
passando a cometer calúnia própria, pelos atos de propalar ou divulgar a calúnia já
cometida.
Aqui, não se admite dolo eventual, porque o teor do dispositivo é expresso em
exigir que é punível aquele que propala ou divulga a imputação sabendo-a falsa – está
inserto na previsão do artigo 18, I, primeira parte, do CP (agente quis o resultado):

“Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Crime doloso(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)

1.4. Ânimo exaltado

A exaltação de ânimo do agente, o alto nervosismo, retira o dolo de caluniar?


A regra, como se sabe, é que a emoção e a paixão não descaracterizam o delito, e é
o que deve prevalecer Mas há quem entenda que para se verificar o dolo de calúnia, é
preciso o ânimo calmo e consciente de proferir a falsa imputação. Veja, por exemplo, o
julgado na Apelação Criminal 70004944831, do TJ/RS:
“Apelação Crime. 70004944831. RELATOR: Sylvio Baptista Neto. DATA DE
JULGAMENTO: 24/10/2002
EMENTA: CALÚNIA. OFENSAS IRROGADAS A POLICIAL. AGENTE
EMBRIAGADO E EXCITADO COM A SITUAÇÃO. AUSÊNCIA DE ANIMUS
CALUNIANDI. Corretamente, tem-se decidido que, para caracterizar o crime de
calúnia, ou outro contra a honra, não basta que as manifestações sejam ofensivas e
falsas. É indispensável que tenham sido exprimidas com intenção de denegrir a
honra alheia, tenham o animus caluniandi. Este fato não ficou esclarecido na
instrução. O apelado estava embriagado e, devido ao seu estágio de embriez, é
provável que sua intenção não fosse de ofender a vítima. Ademais, sua situação,
detido em delegacia e acusado de um crime, explica suas palavras e o desculpa,
pois pronunciadas em momento de exaltação emocional. Absolvição mantida.
Apelo ministerial improvido. Unânime. (Apelação Crime Nº 70004944831, Sexta

Michell Nunes Midlej Maron 117


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Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto,


Julgado em 24/10/2002).”

1.5. Tentativa e consumação

O crime de calúnia se consuma quando a honra objetiva for agredida. Este momento
se dá quando a narrativa do fato imputado alcança a ciência de terceiros.
Este crime será tentado, quando o meio empregado para a execução for escrito, pois
pode haver a interceptação da leitura da calúnia por qualquer força externa à vontade do
caluniador (desde que não seja a leitura por terceiros, o que já consumaria, de per si, a
calúnia). Esta corrente, majoritária, não admite tentativa de calúnia verbal.
Mas há quem entenda que até mesmo na forma verbal é possível a tentativa, como o
fazem Zaffaroni e Pierangeli. Assim defendem porque não acreditam que a conduta verbal
seja unissubsistente, como entende a corrente majoritária: é-lhes perfeitamente concebível a
calúnia seja consistente em diversas palavras, sendo o agente impedido de proferi-las todas
– configurando a tentativa. Percebido o dolo de caluniar, está tentado o crime. Estes
autores, diga-se, defendem esta possibilidade em qualquer crime verbal, pela
plurissubsistência das palavras.
Em síntese, o que prevalece é que admite-se a tentativa na forma escrita, mas não na
forma verbal. Contudo, os autores coitados admitem tentativa verbal, pois a calúnia não
reside em uma só palavra, e sim em uma narrativa de um falso crime.

1.6. Calúnia na Lei de Segurança Nacional

A Lei de Segurança Nacional, Lei 7.170/83, traz o seguinte tipo penal, no artigo 26:

“Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o


da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato
definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da
imputação, a propala ou divulga.”

Em se tratando de crime desta Lei 7.170/83, é imperiosa a presença da motivação


política: se o agente que calunia ou difama não tiver esta motivação ao caluniar ou difamar
as pessoas ali mencionadas, não se configura este crime, mas sim o genérico, do CP.

1.7. Calúnia vs. denunciação caluniosa

A denunciação caluniosa, tipo penal previsto no artigo 339 do CP, é por muitos
chamada de calúnia judiciária. Este crime, de fato, trata-se de uma calúnia à qual se agrega
a conduta de noticiar à autoridade tal imputação falsa, a fim de provocar a investigação
estatal do falso delito. É, por isso, não um crime contra a honra, um crime contra a
administração da justiça, como se vê em sua colocação topográfica.
“Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial,
instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade
administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente:
(Redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000)

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.


(...)”

Trata-se de um crime complexo em sentido amplo, porque a primeira conduta, a


calúnia, é um crime, mas a segunda que compõe a dinâmica não é: dar causa à instauração
de investigação ou processo não é ato ilícito penal, em si.
Quando se perceber calúnia e denunciação caluniosa no mesmo contexto fático, esta
segunda absorverá a calúnia, porque mais gravemente reprimida. Veja o RHC 6.2714, do
STF:

“RHC 62.714/PR – RECURSO DE HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A


HONRA NOTICIADOS MAS NÃO COMETIDOS PELO JORNAL NÃO
CONSTITUEM CRIMES DE IMPRENSA. A DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA
PRESSUPÕE A CALÚNIA E, PORTANTO, ABSORVE-A. A INJÚRIA E A
DIFAMAÇÃO NÃO CONSTITUEM CAMINHO QUE CONDUZA À
DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. RECURSO DE HABEAS CORPUS
IMPROVIDO. (STF-PRIMEIRA TURMA- DJ 28-06-1985)”

Veja que os demais delitos contra a honra não são absorvidos, em regra, pela
denunciação caluniosa, mas se todas as ofensas se referirem ao mesmo fato criminoso,
umas atribuindo qualidades (injúria), outras atribuindo fatos correlatos ofensivos não
criminosos (difamação), serão sim absorvidas pela denunciação caluniosa: há uma
progressão criminosa nesta dinâmica.

1.8. Calúnia vs. falso testemunho

Se a testemunha, em um processo judicial, assevera falsamente que o réu cometeu o


crime investigado, sabedora da falsidade de sua declaração, é claro que não há calúnia: há o
crime de falso testemunho, do artigo 342 do CP:

“Falso testemunho ou falsa perícia


Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha,
perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo,
inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de
28.8.2001)
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
(...)”

É claro que, para se responder pelo falso testemunho, ou mesmo pela denunciação
caluniosa, o bem jurídico por estes crimes tem que ser minimamente perturbado, ou há
crime impossível: se a testemunha, ou o denunciante calunioso, reportarem declaração
esdrúxula, incapaz de levar qualquer um a nelas crer, ocorrerá crime impossível, por
impropriedade do meio utilizado.
Se, diferentemente, a testemunha, em sua narrativa, fizer afirmações que sabe falsas
sobre outros crimes alheios àquele para o qual está convocada como testemunha, estará
cometendo o crime de calúnia ou denunciação caluniosa, a depender do dolo que a
propugna. Só é falso testemunho aquilo que pertine ao processo; o restante, pode ser crime
contra a honra ou denunciação caluniosa, dependendo do caso.

2. Difamação

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Difamação
Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Exceção da verdade
Parágrafo único - A exceção da verdade somente se admite se o ofendido é
funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.”

A difamação é a imputação de fato ofensivo, o qual pode até mesmo ser verdadeiro:
a falsidade da imputação não é elementar do crime.
Na difamação, não há a previsão da conduta daquele que propala ou divulga, como
há no § 1° do artigo 138 do CP. Por isso, surgem duas correntes sobre a tipicidade destes
atos: Magalhães Noronha entende que por não ter adequação típica, o fato é atípico.
Contudo, a posição que prevalece, de Damásio e Mirabete, reputa estas condutas como
típicas, porque quem divulga ou propala comete simplesmente o crime do caput, incidindo
em difamação própria, e não aderida, como na calúnia.
A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo de difamação? Há duas correntes: se a
honra em jogo, na difamação, é a a objetiva, aquele juízo que o meio externo faz da pessoa,
esta honra é detida pela pessoa jurídica, e portanto pode ser aviltada. A jurisprudência adota
esta corrente com tranqüilidade, havendo até mesmo a súmula 227 do STJ para amparar tal
tese:

“Súmula 227, STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”

Magalhães Noronha defende que pessoa jurídica não tem honra, e como o crime é
contra este bem jurídico (e não imagem, ou bom nome), não pode ser sujeito passivo. É
minoritário.

2.1. Difamação vs. injúria

A diferença da difamação para a injúria é que na primeira, o que se imputa é um fato


ofensivo, enquanto na injúria a imputação é de uma qualidade negativa, que ofende a
honorabilidade interna, a honra subjetiva da vítima. Sobre a diferença, veja o Inquérito
2.582 do STF:

“Inq 2582 / RS - RIO GRANDE DO SUL. INQUÉRITO. Relator(a): Min.


RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 21/11/2007. Órgão Julgador: Tribunal
Pleno. Publicação: 22-02-2008.
EMENTA: INQUÉRITO. OFENSAS IRROGADAS EM RÁDIO. LEI DE
IMPRENSA. IMPUTAÇÃO DE MOTIVAÇÃO POLÍTICA EM CONDUÇÃO DE
INVESTIGAÇÃO. CALÚNIA. INOCORRÊNCIA. ATIPICIDADE. ADJETIVOS
COMO COVARDE E IRRESPONSÁVEL. DIFAMAÇÃO. INOCORRÊNCIA.
ATIPICIDADE. INJÚRIA. OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA.
I - O tipo de calúnia exige a imputação de fato específico, que seja criminoso, e a
intenção de ofender a honra da vítima, não sendo suficiente o animus defendendi.
II - O tipo de difamação exige a imputação de fato específico. III - A atribuição da
qualidade de irresponsável e covarde é suficiente para a adequação típica face ao
delito de injúria. IV - Presente o animus injuriandi. V - Transcorridos dois anos
desde o fato ofensivo e à míngua de qualquer hipótese de interrupção da
prescrição, esta operou-se em 13 de junho de 2007. VI - Ação improcedente.”

Michell Nunes Midlej Maron 120


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Se no mesmo contexto fático, o sujeito imputa um fato ofensivo e uma qualidade


negativa, há concurso? Veja um exemplo: “Mévio é um prefeito omisso, não sabe governar.
Também, ignorante como é, nem deve perceber suas falhas”. Veja: se for pela mesma
questão – no exemplo, a suposta inaptidão do agente –, há absorção do crime mais grave
pelo menos grave: a difamação prevalece, absorvendo a injúria. Se as ofensas em nada
guardam pertinência com o mesmo tema, uma da outra, o concurso é possível. Veja um
exemplo: “Mévio é um prefeito omisso, não sabe governar. Também, feio e burro como é,
só podia ser mal governante”. Neste caso, há o concurso. Veja a Apelação Criminal
70007186315, do TJ/RS:
“Apelação Crime. 70007186315. RELATOR: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira.
DATA DE JULGAMENTO: 24/03/2004
(...)
INJÚRIA E DIFAMAÇÃO. CONFIGURAÇÃO. `Injúria é a manifestação, por
qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou
vilipêndio contra alguém¿ (Lição de Nelson Hungria ). Difamação é a imputação
de fato determinado e ofensivo à reputação de alguém (Lição de Darci Arruda
Miranda). CRIME DE IMPRENSA ¿ INJÚRIA E DIFAMAÇÃO ¿ UTILIZAÇÃO
DE MEIOS GROSSEIROS E SUMAMENTE OFENSIVOS EM
MANIFESTAÇÃO VEICULADA POR EMISSORA RADIOFÔNICA, ATRAVÉS
DOS QUAIS PROCURA O AGENTE PÔR EM DÚVIDA A IDONEIDADE
MORAL E A CAPACITAÇÃO TÉCNICA DA VÍTIMA. DOLO ESPECÍFICO
CARACTERIZADO. CONDENAÇÃO MANTIDA. ABSORÇÃO DA INJÚRIA -
EM DELITOS CONTRA A HONRA, ADMITIDA A FIGURA DA DIFAMAÇÃO,
NÃO SE PODE ADMITIR CUMULATIVAMENTE A OCORRÊNCIA DE
INJÚRIA, LEVANDO-SE EM CONTA O MESMO FATO, JÁ QUE, SENDO A
DIFAMAÇÃO CRIME MAIS GRAVE QUE A INJÚRIA, ESTA É ABSORVIDA
POR AQUELA. Rejeitadas as preliminares, apelação parcialmente provida.
(Apelação Crime Nº 70007186315, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 24/03/2004).”

E se a difamação for dirigida a fatos distintos contra a mesma pessoa, haverá um


crime para cada fato imputado, devendo ser reconhecido concurso formal. Havendo vítimas
diferentes, pode-se aplicar a continuidade delitiva, se preenchidos seus pressupostos de
configuração. Veja a Apelação Criminal 296032402, do TJ/RS:

“Apelação Crime. 296032402. RELATOR: Luiz Lúcio Merg. DATA DE


JULGAMENTO: 26/09/1996.
EMENTA: CRIMES CONTRA A HONRA. O CRIME DE INJURIA,
PRATICADO NA MESMA OPORTUNIDADE E CONTRA AS MESMAS
VITIMAS, SENDO DE MENOR GRAVIDADE, E ABSORVIDO PELO DELITO
DE DIFAMACAO, COMETIDO DO MESMO CONTEXTO.
CARACTERIZACAO, TAMBEM, DA CONTINUIDADE DELITIVA.
PROVIMENTO PARCIAL PARA DAR A APELANTE COMO INCURSA
SOMENTE NO CRIME DE DIFAMACAO E APLICAR-LHE SOMENTE PENA
PECUNIARIA. (Apelação Crime Nº 296032402, Segunda Câmara Criminal,
Tribunal de Alçada do RS, Relator: Luiz Lúcio Merg, Julgado em 26/09/1996).”

2.2. Exceção da verdade na calúnia e na difamação

Michell Nunes Midlej Maron 121


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Dizem os artigos 138, § 3°, e 139, § único, do CP, que a exceção da verdade é
admissível. Na calúnia, a natureza jurídica da exceção da verdade procedente é de
excludente de tipicidade, porque se se provar a verdade, a elementar da falsidade da
acusação, presente no tipo, deixa de existir – faltando o preenchimento formal do tipo.
Quando o fato for de persecução em ação penal privada, esta persecução só pertine
ao ofendido. Por isso, se este tiver perseguido o agente em ação penal privada, e obtido
condenação final, a pessoa que imputa aquele fato ao condenado não está praticando
calúnia, e se o condenado ajuizar ação contra este suposto caluniador, é claro que cabe
exceção da verdade, bastando exibir a condenação. Contudo, se alguém imputa crime que é
perseguido em ação penal privada a outrem, e este outrem entender-se caluniado, não pode
aquele que lhe imputou esta suposta calúnia alegar a exceção da verdade, porque estaria,
com isso, fazendo as vezes de promotor da ação penal privada, que seria realizada, por via
oblíqua, nesta exceção que fosse encontrada procedente – e a persecução só pertine ao
ofendido. Esta é a mens do artigo 138, § 3°, I, do CP.
Em síntese: se o crime envolvido é de ação privada, a exceção da verdade é vedada,
pois violaria o princípio da oportunidade em relação ao crime que foi objeto da calúnia.
Outra ressalva ao cabimento da exceção da verdade na calúnia, que é vedada
quando se tratar, o caluniado, de Presidente da República ou Chefe de Estado estrangeiro,
trata-se de mera política criminal, impedindo que o Presidente e as outras autoridades
trazem para juízo muito aquém do competente a discussão da responsabilidade criminal
destas pessoas. Esta é a mens do inciso II do § 3° do artigo 138 do CP.
Mas veja que não é porque não pode haver exceção da verdade contra o Presidente,
por exemplo, que a condenação do suposto caluniador é imperativa. Pierangeli diz que se
este agente comprovar que acredita realmente que aquilo que imputou seja verdadeiro, será
absolvido, mas não porque houve prova da verdade no processo, o que seria a exceção da
verdade, e sim porque o autor da calúnia está em erro de tipo, sobre a elementar
“falsamente” da imputação.
O inciso III do § 3° do artigo 138 do CP determina que não se admite a exceção da
verdade, na calúnia, quando o ofendido da calúnia tiver sido absolvido definitivamente.
Significa que a imputação de um crime de que outrora o caluniado foi suspeito é falsa, e de
nada adianta provar que houve o processo, pois isto não torna a imputação verdadeira. E
repare que qualquer que tenha sido o motivo da absolvição, não se admite a exceção:
mesmo que tenha sido absolvido por falta de provas, isto não legitima uma argumentação
de exceção da verdade. A absolvição, de qualquer tipo, é igual, para todos os efeitos penais,
quando transitada materialmente em julgado.
Na difamação, a exceção da verdade tem natureza de excludente da ilicitude, porque
se trata do exercício regular do direito de comunicar, sobre funcionário público, algum fato
relativo ao mau exercício de suas funções, mesmo que este fato seja tomado por ofensivo.
Diz Nelson Hungria que os funcionários públicos estão sempre sujeitos a um juízo de
censura por parte da população, e que as ofensas referentes à atividade na função, se se
demonstrarem verdadeiras, excluem a ilicitude (porque a falsidade não é elemento do tipo
da difamação).

2.2.1. Contraditório na exceção da verdade

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A exceção da verdade não é uma ação, é mero incidente processual defensivo.


Contudo, a jurisprudência tem exigido que o excepto, autor da ação penal por calúnia ou
difamação, seja citado, a fim de ofertar contraditório à exceção. Veja o HC 3.458, do STJ:

“HC 3458 / PE. DJ 25/09/1995 p. 31057.


CRIME CONTRA A HONRA. EXCEÇÃO DA VERDADE. AÇÃO PUBLICA
CONDICIONADA POR SER O OFENDIDO FUNCIONARIO PUBLICO.
1. CITAÇÃO DO EXCEPTO. NECESSIDADE POR APLICAÇÃO ANALOGICA
DO ART. 523 DO CPP. OPOSTA A EXCEÇÃO DA VERDADE, NÃO TEM O
MINISTERIO PUBLICO LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINARIA PARA
FIGURAR NO POLO PASSIVO, SENDO, PORTANTO, NECESSARIA A
CITAÇÃO DA PESSOA A QUEM O QUERELADO ATRIBUIU A PRATICA DO
CRIME, PARA PRESERVAÇÃO DO PRINCIPIO DO CONTRADITORIO.
2. COMPETENCIA. EXCEÇÃO DA VERDADE EM PROCESSO NO QUAL
FIGURA, COMO EXCEPTO, AUTORIDADE QUE GOZA DE COMPETENCIA
POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. A COMPETENCIA DO TRIBUNAL, NESSA HIPOTESE,
RESTRINGE-SE AO JULGAMENTO DA EXCEÇÃO DA VERDADE,
COMPETINDO AO JUIZ DO PROCESSO A DECISÃO DE
ADMISSIBILIDADE DA EXCEÇÃO E O PROCEDIMENTO DE COLETA DAS
PROVAS.
HABEAS CORPUS PARCIALMENTE DEFERIDO.”

2.2.2. Exceção da verdade e foro privilegiado

Diz o artigo 85 do CPP:

“Art. 85. Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes as
pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais de Apelação, àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e
admitida a exceção da verdade.”

Se uma pessoa que tem foro privilegiado ajuíza ação penal perseguindo este crime
contra a honra, a exceção da verdade deverá ser julgada no juízo em que o querelante,
ofendido, tiver seu foro privilegiado. Veja: se um juiz for o ofendido em crime contra a
honra, se o réu da ação penal referente opuser a exceção da verdade, esta deverá ser
deslocada para o foro que seria competente para investigar o querelante, ou seja, o
respectivo tribunal de justiça.
A primeira informação importante que deve ser ressaltada é quanto à competência
para a instrução desta exceção da verdade: se o processo contra o caluniador, em que o juiz
é querelante, corre em vara criminal, e o réu opõe a exceção, é esta vara criminal que
realizará a instrução da exceção, porque o artigo 85, supra, fala que “caberá o julgamento”
ao foro por prerrogativa, e não que “caberá a instrução e julgamento”. Após o fim da
instrução, será remetida esta exceção para o tribunal. Tourinho critica este entendimento,
mas é a posição tranqüila do STF.
A exceção da verdade só cabe em calúnia e difamação, como se viu. Na calúnia, o
seu deslocamento é induvidoso, porque a exceção consiste na investigação de um crime
praticado ou não pelo detentor da prerrogativa, ora querelante-excepto. Na difamação,
porém, há divergências, surgindo três posicionamentos.

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tourinho Filho entende que se o CPP prevê que a exceção sobe ao foro da
prerrogativa nos casos em que é cabível, em qualquer caso que seja cabível deve ser
deslocada – em qualquer difamação ou calúnia, portanto, haverá o deslocamento. É posição
minoritária, mas conta até mesmo com um precedente no STJ, no Ag.Rg. na Ex.Verd. 22:

“AgRg na ExVerd 22 / ES. DJ 28/02/2000 p. 29.


PENAL - EXCEÇÃO DA VERDADE - DIFAMAÇÃO - EXCIPIENTE COM
FORO PRIVILEGIADO.
1. No crime de difamação cabe exceção da verdade quando o ofendido é
funcionário público e agiu no exercício de suas funções (art. 139, parágrafo único
do Código Penal).
2. Quando o ofendido é membro do Tribunal Regional do Trabalho e o crime de
difamação foi praticado por juiz do trabalho, deve a exceção da verdade ser julgada
pelo STJ (art. 105, I, "a" da CF).
3. Agravo regimental improvido.”

A Segunda corrente, de Frederico Marques, é a que prevalece na jurisprudência,


tanto do STF quanto do STJ. Para esta corrente, o foro por prerrogativa de função é uma
garantia para julgamento de crimes, e como só na calúnia há discussão de crime, somente
nesta modalidade é que a exceção da verdade será julgada pelo foro da prerrogativa, e nuca
quando se tratar de difamação. Veja:

“STJ. HC 29862 / SP. DJ 06/02/2006 p. 328.


HABEAS CORPUS. DIFAMAÇÃO PRATICADA POR ADVOGADO CONTRA
JUIZ DE DIREITO. ARTIGOS 21 E 23, II, DA LEI Nº 5.250/67. EXCEÇÃO DA
VERDADE. OFENDIDO COM PRERROGATIVA DE FORO ESPECIAL.
INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 85 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
IMUNIDADE PROFISSIONAL. ART. 133 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
EXCESSO PUNÍVEL. ALEGAÇÃO DE OFENSA À COISA JULGADA.
INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO.
EXAME DE PROVA. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA.
1. Conforme entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal, ainda que o
ofendido goze de foro especial por prerrogativa de função, não se aplica o disposto
no artigo 85 do Código de Processo Penal quando o fato imputado não for definido
como crime, mas apenas ofensivo à sua reputação.
2. "A imunidade profissional contemplada no art. 133, da Constituição Federal, não
é absoluta, sofrendo restrições legais. A lei apenas protege o advogado com relação
às ofensas irrogadas no exercício da profissão em razão de discussão da causa, não
socorrendo os seus excessos (art. 142, I, do CP e art. 7º, § 2º, da Lei 8.906/94)"
(RHC nº 12.458/SP, Relator o Ministro Jorge Scartezzini, DJU 29/9/2003)
3. Ordem denegada.”

“STF. EV 541 QO / DF - DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM NA


EXCEÇÃO DA VERDADE. Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE.
Julgamento: 22/10/1992. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 02-04-
1993.
Ementa: STF: competência originaria: julgamento da exceção da verdade da
imputação da pratica de fato criminoso oposta a titular do foro do STF por
prerrogativa de função. 1. Reafirmação, por maioria de votos, da jurisprudência
que extrai, da competência penal originaria do STF para julgar determinadas
autoridades (CF, art. 102, I, "b" e "c"), a legitimidade constitucional do art. 85 C.
Pr. Pen., quando lhe atribui competência para julgar a exceção da verdade oposta
aqueles dignitarios. 2. Dado, porem, esse fundamento da validade constitucional

Michell Nunes Midlej Maron 124


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

essa competência do STF se restringe a hipótese em que a exceção da verdade


tenha por objeto a imputação da pratica de fato criminoso a titular de foro por
prerrogativa de função, ou seja, quando O excipiente esteja a responder por calunia
e não por simples DIFAMAÇÃO.”

Guilherme Nucci, por sua vez, faz uma ponderação, criando uma terceira corrente,
em que entende que se o fato ofensivo imputado for uma contravenção penal, o que
configura difamação, o deslocamento da exceção se justificará, porque haverá o julgamento
de infração penal praticada pelo excepto, qual seja, a contravenção, se a exceção for
procedente.
A regra do deslocamento da exceção da verdade, do artigo 85 do CPP, incide para
ações penais públicas, mesmo que o artigo fale apenas em “querelante”. Isto porque o que
justifica o deslocamento é a imputação, e não a natureza da ação.
Subindo a exceção, o tribunal julgará apenas a exceção, segundo o STF, e Frederico
Marques. Assim entendem porque se assim não o fosse, o querelado estaria ganhando o
foro por prerrogativa a que não faz jus, apenas por ter oposto a exceção. Tourinho defende
que o tribunal deveria julgar toda a ação, tanto a exceção quanto a ação penal, por entender
estranha a composição de duas decisões para a resolução final, uma do tribunal, outra do
juízo a quo.
Se o tribunal julgar improcedente a exceção, não significa que o querelado será
condenado – ele poderá ser absolvido por outro motivo, que não a verdade dos fatos, pois
isto é matéria preclusa. Se não houver outra causa de absolvição, o réu será condenado.
Julgada procedente a exceção, o juízo a quo deverá, obrigatoriamente, absolver o
querelado, por esta razão. Ato contínuo, o processo será remetido ao foro da prerrogativa,
para que haja a persecução daquilo que foi imputado e encontrado verdadeiro.

2.3. Retratação

Diz o artigo 143 do CP:

“Retratação
Art. 143 - O querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou
da difamação, fica isento de pena.”

Hungria diz que se trata de uma causa especial de exclusão ou extinção da


punibilidade. Funcionaria, para este autor, como o arrependimento eficaz, ao que Perangeli
critica, dizendo que o crime já se consumou, não podendo haver arrependimento
verdadeiramente eficaz. Assumiria, então, natureza de arrependimento posterior, mas com o
efeito de extinção da punibilidade. A retratação é suficiente quando proferida, prescindindo
de aceitação pelo ofendido.
Discussão que se impõe, aqui, é sobre o cabimento da retratação na ação penal
pública, eis que o dispositivo fala apenas em querelado. Na essência, não há porque se
vedar a retratação na ação pública, e por isso é perfeitamente admissível esta “reparação do
dano”.
Em suma, para Pierangeli, a retratação tem o sentido de uma reparação do dano
causado à honra, o que seria próximo do arrependimento posterior. Não há restrição à
retratação em ações públicas, pois a mesma razão para que ocorra se passa nestas, tal como
nas ações privadas.

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A retratação de um coautor comunica-se aos demais ou aos partícipes? Damásio


defende que as causas de extinção da punibilidade sempre se comunicam aos partícipes, em
razão de sua acessoriedade imanente, sendo discutível apenas quanto aos coautores. Veja: o
partícipe sequer tem a aptidão para se retratar, pois como quem conduziu a empreitada –
quem caluniou ou difamou, efetivamente – foi o autor, e só ele tem como se retratar. Não há
como se conceber, por exemplo, que o instigador à calúnia possa dela se retratar em nome
do autor do crime, e por isso a sua acessoriedade o leva a ter o mesmo tratamento que for
dado ao autor.
O coautor não será beneficiado pela exclusão de punibilidade quando ainda puder,
ele próprio, sozinho, prosseguir na ofensa. Imagine-se, por exemplo, a desistência
voluntária de um dos autores, enquanto o segundo ainda pode prosseguir sozinho no delito,
mantendo-se no iter: a desistência de um coautor não se estende ao segundo.
2.4. Pedido de explicações

Diz o artigo 144 do CP:

“Art. 144 - Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou


injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se
recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.”

O pedido de explicações não se trata de uma condição de procedibilidade da ação


nos crimes contra a honra: trata-se de mera faculdade do ofendido, que pode dispensá-lo, a
seu livre critério. Inclusive, não há julgamento das explicações apresentadas: quem decide
se são satisfatórias ou não é o próprio ofendido. Se o juiz manifestar algum juízo de valor
sobre as explicações, diga-se, o STF e o STJ entendem que se trata de causa de nulidade do
processo que vier a ter curso.
Em suma, o pedido de explicações é uma faculdade do ofendido, que em juízo
recebe a resposta do ofensor, e somente o ofendido pode decidir se foram ou não
satisfatórias tais explicações.

Michell Nunes Midlej Maron 126


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

O Juiz de Direito ALFREDO encaminhou representação à Ordem dos Advogados


do Brasil contra MAX, tendo sido instaurado, então, processo disciplinar contra este. A
relatora do processo disciplinar votou acolhendo a representação, para aplicar a pena de
suspensão por 30 dias, prevista no artigo 37 da Lei 8.906/94, em razão da infração aos
incisos XV e XXV, do artigo 34 da mesma lei, enfatizando que o linguajar utilizado por
MAX foi "acintoso" e "desrespeitoso", e que a forma pela qual o advogado se dirigiu ao
Magistrado desmerecia toda a classe, no que foi acompanhada pela Turma do Tribunal de
Ética e Disciplina da OAB, por unanimidade. A relatora, porém, se equivocou quanto à
adequação da conduta de MAX à norma legal o que, posteriormente, foi corrigido pelo
Conselho Pleno, que modificou a punição para censura, considerando que MAX infringira
os artigos 44 e 45 do Código de Ética e Disciplina. MAX ajuizou, então, queixa-crime
contra os integrantes da Turma do Tribunal de Ética e Disciplina que o julgaram,
imputando a eles o crime de difamação. A queixa deve ser recebida? Fundamente.

Resposta à Questão 1

Não há especial finalidade de agir na conduta do agente. No âmbito de uma


apuração, falta, a rigor, o elemento subjetivo especial que é exigido nos crimes contra a
honra, o que faz com que a conduta seja atípica.

Michell Nunes Midlej Maron 127


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema X

Crimes contra a Honra III (Injúria).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica do crime de
injúria. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidades objetiva e subjetiva;b) A injúria real;c)
Semelhanças e diferenças com os outros crimes contra a honra;d) Disposições comuns e hipóteses de
exclusão do crime. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal nos crimes
contra a honra.

Notas de Aula20

1. Injúria

Diz o artigo 140 do CP:

“Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:
I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;
II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à
violência.
§ 3° Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
(Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)”

A tutela deste dispositivo é sobre a honra subjetiva, o sentimento, o juízo que cada
um faz de si próprio.
Menores e loucos de toda sorte não podem ser injuriados, se não tiverem o mínimo
discernimento para saber que sua honra subjetiva está sendo aviltada. Se há capacidade de
se sentir ultrajados, porém, podem sim ser sujeitos passivos deste crime.
O crime de desacato, do artigo 331 do CP, crime contra a Administração Pública,
não passa de uma injúria praticada em face de funcionário público, e em razão das funções

20
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 28/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 128


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

– é uma injúria com destinatário e modo de execução especiais. Com esta ofensa, o autor
agride também a dignidade da Administração. Veja:

“Desacato
Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

O tipo penal do desacato não exige que o sujeito ativo esteja na presença do
funcionário público. A doutrina, porém, à unanimidade, defende que este crime só se
configura quando a ofensa é proferida na presença do funcionário. Hungria traz esta
interpretação do direito italiano, e, por assim adotar a doutrina, quando a ofensa, mesmo
que contra funcionário público e em razão de suas funções, for irrogada na sua ausência, o
crime será de injúria, que é de forma livre, e não de desacato.
Em síntese, o desacato não passa de uma injuria contra funcionário, na sua
presença; estando ausente este elemento, o delito configurado será o de injúria.

1.1. Perdão judicial

O § 1º, I, deste artigo 140 diz que o juiz pode deixar de aplicar a pena quando o
ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria. Esta provocação reprovável
da vítima da injúria, segundo Capez e Damásio, pode se dar por qualquer meio – palavras,
gestos, ou até mesmo pela prática de um delito contra o injuriador –, justificando que o juiz
conceda o perdão judicial. Imagine-se, então, que alguém cause uma lesão corporal leve em
outrem, e este outrem retorna uma injúria contra aquele que o lesionou: o injuriador não
responderá, merecendo o perdão, e o injuriado ainda responderá pela lesão.
No inciso II deste § 1°, porém, o legislador permitiu o perdão judicial no caso de
retorsão imediata que consista em outra injúria. Há, portanto, duas injúrias cometidas. Daí
surge uma divergência doutrinária: a quem se dirige o perdão, ao segundo injuriador,
apenas, ou a ambos?
Para Rogério Sanchez Cunha, o perdão alcança ambos os envolvidos. Para ele, o
legislador deixa de considerar relevantes tanto a injuria quanto a sua retorsão. Para
Pierangeli e Bitencourt, contudo, apenas a segunda injúria é abrangida pelo perdão, pois
não se pode entender que o cometimento de um crime – a segunda injúria – tenha o poder
de desfazer o crime que já se consumou, a primeira ofensa proferida.
O crime de desacato, supra, não comporta este perdão por retorsão imediata, por
analogia. Contudo, o que pode se configurar, quando um particular redargúi com desacato a
uma ofensa contra si praticada por um funcionário público, é a legítima defesa da honra: o
agente usa do desacato como meio de defender sua honra contra ataque injusto.

1.2. Injuria real

O § 2º do artigo 140 do CP diz que se a injúria consiste em violência ou vias de fato,


que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes a pena aumenta,
passando a ser de detenção de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente
à violência.
Esta parte final do preceito secundário indica uma regra de concurso material de
crimes, fazendo absorvida a lesão, com o cúmulo da sua pena à da injúria. As vias de fato,

Michell Nunes Midlej Maron 129


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

porém, são absorvidas pela injúria real, e sua pena não é somada à da injúria. Esta é uma
regra geral das contravenções penais, diga-se: são sempre absorvidas, quando forem meio
para o cometimento de um outro crime.
A injúria real se apresenta por atos físicos que objetivem atacar a honra da vítima –
o dolo é de humilhar. Exemplos mais comuns são o tapa no rosto, o arremesso de ovos, etc.

1.3. Injúria racial

O § 3° do artigo 140 do CP comina escala penal bem mais severa quando a injúria
consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Trata-se da injúria racial, que não se confunde com os crimes de racismo, da Lei
7.716/89. Segundo a doutrina, na injúria, o ofensor utiliza da raça para atingir a pessoa,
enquanto no crime de racismo, ele se utiliza da pessoa para discriminar toda a raça. A linha
divisória é tênue, mas há como se identificar o destinatário da ofensa, que é o que traça a
distinção.
O crime de racismo pode absorver a injúria racial, ou, quando praticados no mesmo
contexto, há sempre o concurso? O STF tem entendido que há uma progressão criminosa,
da injúria progredindo para o racismo, e não um concurso material de crimes. Embora
tutelem bens jurídicos distintos, a jurisprudência admite a absorção da injúria racial pelo
racismo, reconhecendo a progressão criminosa, em que o agente tinha dolo de injuriar, no
início da execução, mas no seu curso migrou para o dolo de cometer racismo.
A injúria racial é prescritível, mas o racismo não. Pelo ensejo, vale mencionar que a
lei pode criar casos de imprescritibilidade, pois a CRFB não vedou esta criação legal.
Contudo, não é o caso da injúria racial.

2. Causas de aumento de pena comuns aos crimes contra a honra

O artigo 141 do CP traz causas de aumento de pena dos crimes contra a honra
capitulados nos artigos anteriores, 138 a 140 do CP. Veja:

“Disposições comuns
Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se
qualquer dos crimes é cometido:
I - contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro;
II - contra funcionário público, em razão de suas funções;
III - na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da
calúnia, da difamação ou da injúria.
IV - contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto
no caso de injúria. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003)
Parágrafo único - Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de
recompensa, aplica-se a pena em dobro.”

Michell Nunes Midlej Maron 130


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A Lei de Imprensa foi revogada recentemente, mas os crimes contra a honra que lá
eram previstos não foram alvo de abolitio criminis. Na verdade, com a revogação da Lei
5.250/67, as condutas que lá eram tipificadas passaram a ser enquadradas nos crimes contra
a honra comuns, e com isso a seguinte peculiaridade ocorreu: como os crimes de lá eram
executados por meios de divulgação em massa, as condutas que por lá respondiam
passaram a ter-se subsumidas à causa de aumento de pena do inciso III deste artigo supra.
Em síntese: os crimes contra a honra, quando cometidos por meio da imprensa, são
tipificados agora no CP, com a capitulação pertinente, em combinação com este inciso III
do artigo 141, supra.
O inciso IV do artigo supra foi inserido pelo estatuto do Idoso. Vale mencionar que
neste diploma há o artigo 96, § 1°, que é norma típica especial em relação aos crimes do
CP, se ali se enquadrar a conduta. Se não se subsumir ao tipo especial, ainda será típica,
caindo na capitulação do CP pertinente, combinada com este inciso IV do artigo 141.

“Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a


operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por
qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por
motivo de idade:
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.
§ 1° Na mesma pena incorre quem desdenhar, humilhar, menosprezar ou
discriminar pessoa idosa, por qualquer motivo.
§ 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) se a vítima se encontrar sob os
cuidados ou responsabilidade do agente.”

3. Exclusão dos crimes de injúria e difamação

O artigo 142 do CP, que já foi superficialmente abordado, trata da exclusão dos
crimes de injúria e difamação:

“Exclusão do crime
Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador;
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando
inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou
informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação
quem lhe dá publicidade.”

Quanto à natureza jurídica deste dispositivo, há três correntes. Para Nelson Hungria,
sempre que o legislador exclui a punição de um fato que preenche os requisitos para
configurar crime, estaremos diante de uma causa especial de exclusão ou extinção da
punibilidade. Mirabete e Delmanto, seguindo a doutrina européia, entendem que as
hipóteses estariam relacionadas a condutas permitidas pelo ordenamento, alcançadas pelo
exercício regular de direito, só que em norma especial.
A melhor posição, porém, é a de Pierangeli, que entende que aquilo que for
realizado dentro dos limites destas condutas ali mencionadas, na verdade é isento de dolo, e
por isso são causas de exclusão da tipicidade. Para estes autores, falta o dolo específico de
ofender a honra alheia, quando os agente se portam nestes limites.

Michell Nunes Midlej Maron 131


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Um bom exemplo é o da crítica de teatro, em que o crítico comenta duramente a


performance de um ator, chamando-o de todos os impropérios habituais quando se há
crítica negativa de uma obra teatral, e também chamando o ator principal de “pessoa que é
dada a hábitos escusos, freqüentador de zonas de meretrício”. Quanto às críticas, por mais
duras que fossem, estaria a conduta abrangida pela exclusão do crime, mas quanto à ofensa
pessoal, haveria o crime de injúria.
Pelo ensejo, vale mencionar que o advogado não tem imunidade perante o crime de
desacato, como pretendeu a OAB, ao estender esta imunidade no Estatuto. É a decisão da
ADI 1.127, incidente sobre o artigo 7°, § 2°, do Estatuto da OAB. Veja o artigo e logo
abaixo a ementa:

“Art. 7º - São direitos do advogado:


(...)
§ 2º - O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação
ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua
atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a
OAB, pelos excessos que cometer.
(...)”

“ADI 1127 MC / DF - DISTRITO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO


DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. PAULO
BROSSARD. Julgamento: 06/10/1994. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: 29-06-2001.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ESTATUTO DA
ADVOCACIA E DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - Lei 8.906/94.
Suspensão da eficácia de dispositivos que especifica. LIMINAR. AÇÃO DIRETA.
Distribuição por prevenção de competência e ilegitimidade ativa da autora.
QUESTÕES DE ORDEM. Rejeição. MEDIDA LIMINAR. Interpretação conforme
e suspensão da eficácia até final decisão dos dispositivos impugnados, nos termos
seguintes: Art. 1º, inciso I - postulações judiciais privativa de advogado perante os
juizados especiais. Inaplicabilidade aos Juizados de Pequenas Causas, à Justiça do
Trabalho e à Justiça de Paz. Art. 7º, §§ 2º e 3º - suspensão da eficácia da expressão
"ou desacato" e interpretação de conformidade a não abranger a hipótese de crime
de desacato à autoridade judiciária. Art. 7º, § 4º - salas especiais para advogados
perante os órgãos judiciários, delegacias de polícia e presídios. Suspensão da
expressão "controle" assegurado à OAB. Art. 7º, inciso II - inviolabilidade do
escritório ou local de trabalho do advogado. Suspensão da expressão "e
acompanhada de representante da OAB" no que diz respeito à busca e apreensão
determinada por magistrado. Art. 7º, inciso IV - suspensão da expressão "ter a
presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado
ao exercício da advocacia, para a lavratura do auto respectivo, sob pena de
nulidade". Art. 7º, inciso v - suspensão da expressão "assim reconhecida pela
OAB", no que diz respeito às instalações e comodidades condignas da sala de
Estado Maior, em que deve ser recolhido preso o advogado, antes de sentença
transitada em julgado. Art. 20, inciso II - incompatibilidade da advocacia com
membros de órgãos do Poder Judiciário. Interpretação de conformidade a afastar
da sua abrangência os membros da Justiça Eleitoral e os juizes suplentes não
remunerados. Art. 50 - requisição de cópias de peças e documentos pelo Presidente
do Conselho da OAB e das Subseções. Suspensão da expressão "Tribunal,
Magistrado, Cartório e". Art. 1º, § 2º - contratos constitutivos de pessoas jurídicas.
Obrigatoriedade de serem visados por advogado. Falta de pertinência temática.
Argüição, nessa parte, não conhecida. Art. 2º, § 3º - inviolabilidade do advogado
por seus atos e manifestação, no exercício da profissão. Liminar indeferida. Art. 7º,

Michell Nunes Midlej Maron 132


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

inciso IX - sustentação oral, pelo advogado da parte, após o voto do relator. Pedido
prejudicado tendo em vista a sua suspensão na ADIn 1.105. Razoabilidade na
concessão da liminar.”

Casos Concretos

Questão 1

MARDOQUEU, cientista político, em palestra com mais três amigos, chamou


ANDRELINO de canalha, desmoralizado e vagabundo.
a) Examinar se a conduta de MARDOQUEU está tipificada como crime e, na
afirmativa, qual o tipo incriminador.
b) Imagine-se que ANDRELINO fosse portador de oligofrenia, em grau de idiotia.
c) Suponha-se que ANDRELINO, ao tomar conhecimento da ofensa vários dias
depois do fato, tenha retribuído as ofensas, na mesma medida.
d) Imagine se, realmente, ANDRELINO fosse conhecido por todos, em seu grupo
social, como pessoa de comportamento desajustado moralmente. A conduta de
MARDOQUEU seria justificável juridicamente?
e) Suponha-se que o agente tenha injuriado a vítima com bofetadas ou empurrões.
f) A situação se modificaria, se houvesse retorsão imediata do ofendido?

Resposta à Questão 1

a) O crime cometido foi de injúria, praticada em meio que facilita a difusão,


capitulando-se no artigo 140, c/c 141, III, do CP.
b) Neste caso, a análise depende da capacidade de entendimento do sujeito passivo:
se não há qualquer discernimento, não há crime, pois não há avilte à honra
subjetiva.
c) Não se pode entender que tenha havido aqui a retorsão imediata, pois esta é
imediata apenas quando realizada logo após a prática da primeira injúria, e não
após o conhecimento desta prática pelo sujeito passivo. Há injúrias puníveis
para ambos, então.
d) Não: mesmo aqueles que têm uma persona considerada desonrada ainda têm um
oásis de moral, oasi morali, a ser protegido, um mínimo resquício de honra que
pode torná-lo vítima de delitos contra a honra.
e) O crime seria de injúria real, capitulado no artigo 140, § 2°, do CP.
f) Sim: seria cabível o perdão judicial do segundo injuriador, segundo a maior
doutrina, ou para ambos, segundo corrente minoritária.

Michell Nunes Midlej Maron 133


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Questão 2

MÁRCIA recebeu de seu filho a notícia de que, no período de aula, teria levado
uma mordida de outra criança. No dia seguinte, acompanhou-o até a escola, e foi
conversar com a professora, para que aquilo não mais se repetisse. Passados alguns dias,
MÁRCIA dirigiu-se novamente à escola e, na sala da Direção, onde havia várias pessoas,
desferiu um tapa no rosto de JOANA, Diretora da Instituição. Ao descer do prédio,
MÁRCIA encontrou DAMIANA, mãe de um coleguinha de seu filho, que lhe perguntou o
que havia ocorrido, tendo MÁRCIA respondido, de forma cínica, que havia "dado na cara
da Diretora", a fim de que esta "aprendesse a melhor dirigir seu estabelecimento".Capitule
os fatos.
Resposta à Questão 2

Trata-se do crime de injúria real, praticado por meios físicos, na forma do artigo
140, § 2°, do CP.

Questão 3

Um Magistrado de Vara Cível, sentindo-se agredido moralmente pelos termos


utilizados por advogado de uma das partes, no arrazoado do Recurso de Apelação quanto
à Ação de Despejo antes intentada, representou criminalmente em face daquele causídico,
destacando as diversas expressões que considerou ofensivas as suas honras objetiva e
subjetiva.
a) É aqui aplicável a ritualística especial no tocante à realização da audiência de
tentativa de conciliação? Por quê?
b) A imunidade judiciária prevista no art. 142, I, do CP, derivada de preceito
constitucional é aplicável à espécie? Quais os seus efeitos?
c) Em havendo Exceção da Verdade, quais os seus limites e efeitos, bem como qual
o Órgão Julgador competente para a apreciação de recurso intentado contra a
Decisão proferida nesta?

Resposta à Questão 3

a) Se a ofensa é contra funcionário público, não cabe a realização de audiência de


conciliação: o bem jurídico não é plenamente disponível à vítima, pois a
Administração é também afetada, e não só a honra da vítima.
b) Depende: se a ofensa ao juiz estiver abrangida no seio do debate da causa, sendo
necessária à defesa processual dos interesses do representado, há a imunidade;
se não, não há. Seus efeitos são de exclusão do crime, quer por exclusão da
tipicidade, para alguns, quer por exclusão da ilicitude, para outros.
c) Sendo o querelante juiz, a exceção é julgada no tribunal respectivo, e o recurso
será aquele dedicado a atacar o acórdão que decidir a questão.

Michell Nunes Midlej Maron 134


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XI

Crimes contra a Liberdade Individual I (Constrangimento ilegal e ameaça).1) Considerações gerais:a)


Definição e evolução histórica;b) Conceito de liberdade pessoal e individual. Bem jurídico tutelado;c)
Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. Dos crimes de constrangimento ilegal e ameaça.
Diferenças .2) Aspectos controvertidos .3) Concurso de crimes .4) Pena e ação penal.

Notas de Aula21

1. Crimes contra a liberdade individual

Os crimes contra a liberdade individual tutelam a liberdade do homem em si


mesma: protegem o sentimento de tranqüilidade e sua autodeterminação. Esses crimes têm
sempre como objeto material o homem.
São crimes comuns quanto ao sujeito ativo, e se este for funcionário público, a
tipicidade ficará deslocada para o abuso de autoridade, ou outro delito especial que se
vislumbrar. Há também uma certa divergência sobre o crime relacionado ao trabalho
escravo, havendo quem entenda, minoritariamente, que apenas o empregador pode ser
sujeito ativo.
Para ser sujeito passivo destes crimes, é imperativo que o indivíduo tenha
capacidade de autodeteminação. Os loucos que não têm qualquer discernimento, ou os
menores em igual condição, não tem esta autodeterminação, e por isso não são vítimas
destes crimes. O sujeito passivo é sempre uma pessoa física com capacidade de
entendimento, que é comprometida em sua autodeterminação.
Pessoas jurídicas, por óbvio, não são sujeitos passivos destes delitos, assim como
aqueles que não têm capacidade de compreender. Veja o RMS 15.627, do STJ:

“RMS 15627 / SP RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.


DJ 08/09/2003 p. 343.
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENAL. CRIME DE
AMEAÇA – ART. 147. DO C.P. SUJEITO PASSIVO. PESSOA JURÍDICA.
IMPOSSIBILIDADE.
O Hospital impetrante, na qualidade de pessoa jurídica, não temqualquer direito,
muito menos líquido e certo, em ser incluído na relação penal que busca
averiguação do crime de ameaça – art. 147 do Código Penal. Não obstante, pode
acionar procedimento administrativo com vistas à possível punição das
funcionárias envolvidas na esfera administrativa. Recurso desprovido.”
21
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 28/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 135


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Passemos, então, ao estudo pontual de cada um dos tipos penais deste capítulo.

2. Constrangimento ilegal

Diz o artigo 146 do CP:

“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução
do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir suicídio.”

Constranger é obrigar, coactar, compelir. Constranger alguém a tolerar alguma


coisa é também conduta típica, aqui: embora este verbo não esteja expresso, considera-se
inserido sob a tipificação de “não fazer o que a lei permite”.
Quando a ameaça é de levar a cabo algo que seja justo – por exemplo, cobrar uma
dívida vencida – há crime de constrangimento ilegal? O que é tutelado, aqui, é a liberdade
individual, e por isso qualquer forma de se tolher esta liberdade recai sob esta tipificação,
inclusive a ameaça de mal justo. Mesmo a ameaça justa, quando afeta a liberdade
individual, caracteriza o crime.
Não há, inclusive, qualquer relevância em ser relativa ou absolutamente ilegítimo
aquilo que serve de base criadora do temor infundido na vítima, a fim de constrangê-la. Por
exemplo, se o agente ameaça cobrar uma dívida de jogo – que é relativamente ilegítima, eis
que pode ser paga, mas não executada –, há ameaça, e há constrangimento ilegal; se a
ameaça é de cobrar dívida de drogas, idem: há o constrangimento ilegal, da mesma forma.
Quando alguém tem pretensão legítima a ser exercida, mas busca a sua satisfação
por meio de uma coação, desenha-se o crime de exercício arbitrário das próprias razões, e
não o constrangimento ilegal. Não se preenche a elementar do tipo consistente em fazer o
que a lei não manda: se a pretensão é legítima, ela consiste em exigir que se faça o que a lei
manda, e por isso a coação se torna uma substituição ao Estado. Segundo Nelson Hungria,
se a vantagem a que a vítima é constrangida a prestar é legítima, o crime que se configura
não é o de constrangimento ilegal, e sim o de exercício arbitrário das próprias razões. A
cobrança de dívida por meio de violência ou grave ameaça configura este outro delito, e
não o constrangimento ilegal.
Um exemplo peculiar é o da exigência, por uma prostituta, do pagamento por seus
serviços por um cliente inadimplente, para isto se valendo da retenção de um documento
daquele, exercendo assim a coação: a cobrança de dívida de prostituição configura
constrangimento ilegal, e não extorsão (a vantagem não é indevida, só é inexigível)
tampouco exercício arbitrário das próprias razões (pois este crime é contra a administração
da justiça, substituindo-se o seu autor ao Estado, e o Estado não tutelaria, aqui, a cobrança

Michell Nunes Midlej Maron 136


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

judicial desta dívida, inexigível judicialmente). Em suma, haverá constrangimento ilegal na


conduta de tentar obter o pagamento de uma dívida que não pode ser cobrada
judicialmente, como a de jogo ou a de prostituição.
Se o sujeito ativo, com uma única ameaça, impede que a vítima exerça duas
atividades que lhe são de direito, há crime único ou há concurso de crimes? Veja um
exemplo: agente, com um só ato, ameaça a vítima de cobrar-lhe dívida se ela se inscrever
em dois concursos públicos. A doutrina entende que há tantos delitos quantos sejam os atos
que são impedidos de serem praticados: haverá tantos constrangimentos ilegais quantas
forem as condutas visadas pelo agente em sua ameaça. No exemplo, há dois crimes, em
concurso formal.
A contrário senso, se o agente se vale de mais de um meio de coação, mas a conduta
a que quer coactar a vítima é uma só, há crime único: não importa quantas sejam as
ameaças, é a coação almejada que fixa quantos crimes foram cometidos.
Os crimes contra a liberdade individual são, como regra, subsidiários de crimes
mais graves, quando praticados no mesmo contexto fático. O constrangimento ilegal, por
exemplo, é subsidiário ao crime de extorsão, ao estupro e ao roubo, sendo por estes
absorvido quando cometidos. Por isso, pode-se concluir que se há desistência voluntária do
crime principal, há ainda a consumação do constrangimento ilegal que porventura tenha
sido praticado na execução do crime desistido. É por esta peculiaridade que Nelson Hungria
chama este delito de soldado de reserva da imputação penal.
Se o constrangimento ilegal for praticado no mesmo contexto fático do roubo, por
exemplo, será tido por meio de cometimento, como dito. Mas há casos em que poderá haver
a imputação autônoma do constrangimento ilegal e do roubo: quando o constrangimento
não for o meio usado para garantir a detenção do bem subtraído, ou a impunidade, mas sim
com algum desígnio autônomo no desenrolar dos fatos, pode ser punido de forma
autônoma. O constrangimento só é absorvido se estiver diretamente ligado à execução do
crime-fim. Segundo Damásio, portanto, o constrangimento é absorvido sempre que visar a
detenção ou a impunidade, no contexto do roubo; se o contexto fático for diverso, pode
haver concurso.
Veja um exemplo relacionado ao estupro: se o agente constrange a vítima a entrar
em um matagal para estuprá-la, mas desiste quando lá estava, ainda responderá pelo
constrangimento. Veja, a respeito, os Embargos Infringentes 70010310480, do TJ/RS:
“Embargos Infringentes 70010310480. RELATOR: Nereu José Giacomolli.
EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. ESTUPRO TENTADO.
DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA. Quando o agente, após puxar o cobertor e a calça
comprida da vítima, sem êxito, de agarrá-la e beijá-la, sem tentar tirar-lhe a
calcinha, levanta-se e vai embora, desiste voluntariamente de prosseguir no iter
criminis. Vítima que diz, expressamente, que o réu ¿desistiu de incomodá-la por
conta própria¿. Responsabilização criminal pelo delito residual que, em face da
proporcionalidade, é o de constrangimento ilegal. EMBARGOS ACOLHIDOS.
POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 70010310480, Quarto Grupo de
Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli,
Julgado em 22/03/2005). DATA DE JULGAMENTO: 22/03/2005.

Se o crime de roubo deixa de se consumar porque a vítima não tinha bens consigo,
quando abordada e ameaçada, resta ainda a imputação pelo crime tentado, e não pelo

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

constrangimento ilegal: não há que se falar em crime impossível quanto ao roubo 22, porque
já ingressa na lesão de um dos bens jurídicos tutelados no roubo – a liberdade individual.
Veja o REsp. 897.373:

“REsp 897373 / SP. DJ 14/05/2007 p. 396.


RECURSO ESPECIAL. PENAL. ROUBO. CRIME COMPLEXO. AUSÊNCIA
DE BENS. TENTATIVA. INEXISTÊNCIA DE CRIME IMPOSSÍVEL.
DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL COMPROVADA.
1. A divergência jurisprudencial restou devidamente comprovada.
2. Tratando-se o crime de roubo de delito complexo, tem-se por iniciada a
execução tão-logo praticada a violência ou grave ameaça à vítima. O fato de
inexistir bens materiais em poder da vítima, não desnatura a ocorrência do crime
em sua modalidade tentada.
3. Recurso conhecido e provido.”

O constrangimento é um crime doloso, exigindo que o agente constranja a vítima a


não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda, o que é tido por um especial
fim de agir: trata-se de um elemento subjetivo especial que é exigido, tornando-se este
crime um exemplo de crime de tendência. Esta é a posição de Capez, Pierangeli e Mirabete,
mas Nucci discorda: ele entende que as expressões “o que a lei permite” e “o que ela não
manda” são elementos normativos do tipo, elementos objetivos.
O crime é material, para a maior parcela da doutrina, mas esta parece ser uma
construção um tanto estranha. Veja: nem sempre há resultado naturalístico presente no ato
de constrangimento, pelo que a consumação ficaria, a rigor, prejudicada – afinal, apenas
com resultado naturalístico crimes materiais se consumam. Entenda: qual é o resultado
naturalístico que existe quando a seguinte ameaça é proferida: “fique onde está ou eu te
mato”. A vítima restará inerte, e o crime se consumará, sem que haja qualquer alteração no
mundo dos fatos. A doutrina entende que há alteração no mundo dos fatos, mesmo que o
comando seja de nada fazer: há a alteração prospectiva, por assim dizer, o que consistiria na
movimentação da vítima, no exemplo. Esta é a posição majoritária, mas seria mais correto
entender que se trata de um crime formal, de lesão ao bem jurídico, independente de
resultado fático constatável. A respeito, veja o REsp. 29.587, que trata de extorsão, mas é
relevante ao tema:

“REsp 29587 / RJ. DJ 02/08/1993 p. 14287.


RESP - PENAL - EXTORSÃO - TENTATIVA - A MODERNA DOUTRINA DE
DIREITO PENAL CONSIDERA O RESULTADO NORMATIVAMENTE. O
ASPECTO FISICO E SECUNDARIO. ENTENDE-SE-LHE COMO DANO OU
PERIGO AO BEM JURIDICAMENTE TUTELADO. O PERIGO, POR SEU
TURNO, PROBABILIDADE (NÃO GERA POSSIBILIDADE) DE DANO. COM
ISSO, RENEGAM-SE OS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. CUMPRE
REVER A CLASSICA DISTINÇÃO ENTRE CRIME FORMAL E CRIME
MATERIAL, BASTANDO, PARA O PRIMEIRO, A SIMPLES CONDUTA. NO
DELITO DE EXTORSÃO (CP ART. 158), A CONDUTA E ESPECIFICADA
COM O ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO - "COM O INTUITO DE". BASTA,
POIS, A AÇÃO VOLTADA - CONTRA O PATRIMONIO. OS ELEMENTOS
CONSTITUTIVOS DO CRIME NÃO INCLUEM O DANO PATRIMONIAL. SE

22
Veja que difere do furto, porque a ausência de bens neste é sim suficiente a configurar o crime impossível,
eis que há a absoluta impropriedade do objeto, não havendo lesão qualquer a configurar execução frustrada,
como o há no roubo.

Michell Nunes Midlej Maron 138


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ESTE OCORRER, CONFIGURA - EXAURIMENTO. NA ESPECIE, O CODIGO


PENAL DA ITALIA NÃO SERVE DE PRECEDENTE PORQUE IMPÕE, NO
TIPO, "INJIUSTO PROFITTO CON ALTRUI DANNO". ASSIM, INOCORRE
TENTATIVA QUANDO O CONSTRANGIMENTO, COM O INTUITO
REFERIDO, NÃO PRODUZ A INDEVIDA VANTAGEM ECONOMICA. RESTA
CARACTERIZADO O CRIME CONSUMADO. CUMPRE REGISTRAR A
SEGUINTE DISTINÇÃO: SE O AGENTE CONSTRANGE A VITIMA (PARA
AQUELE FIM) E ESTA, ATEMORIZADA, COMO ULTIMA INSTANCIA,
PARA LIVRAR-SE DO CONSTRANGIMENTO SOLICITA A AJUDA DE
TERCEIRO, INCLUSIVE DA POLICIA, CONSEGUINDO A PRISÃO DO
DELINQUENTE, A HIPOTESE E DE CRIME CONSUMADO.
DIVERSAMENTE, SE A VITIMA REPELE O CONSTRANGIMENTO (NÃO
RESTA, POIS, CONSTRANGIDA), E O AGENTE, POR CIRCUNSTANCIAS
ALHEIAS A SUA VONTADE, NÃO ULTRAPASSA ESSA RESISTENCIA,
TER-SE-A A TENTATIVA. NÃO SE CONFUNDE COM O CRIME
IMPOSSIVEL. AQUI, A CONDUTA DO AGENTE ERA ABSOLUTAMENTE
INIDONEA PARA CONSTRANGER.”

Se a vítima repele o constrangimento, o crime não se consuma, restando a tentativa.


Note que mesmo que a vítima não ceda totalmente à coação, mas realize qualquer atividade
diferente do que pretendia, o crime resta consumado.
Quem constrange uma prostituta a não se prostituir está também cometendo o crime
de constrangimento ilegal. Assim também ocorre com quem constrange alguém a não ir a
uma casa de swing. A imoralidade dos atos não é ilegalidade, e por isso o tipo está
perfeitamente preenchido quando há a coação: há a coação a não fazer o que a lei permite.
O sujeito que constrange a vítima a cometer um delito responde pelo
constrangimento em si, em concurso com o crime cometido pelo constrangido. Esta vítima,
porém, não responde por nada, eis que ao ser constrangido se torna um instrumento do
autor do crime, sua conduta sendo exculpada pelo artigo 22 do CP:

“Coação irresistível e obediência hierárquica (Redação dada pela Lei nº 7.209, de


11.7.1984)
Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a
ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da
coação ou da ordem.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

2.1. Constrangimento ilegal agravado

O § 1° do artigo 146 do CP diz que as penas aplicam-se cumulativamente e em


dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego
de armas.
Para a maior parte da doutrina, a reunião deste § 1° não afasta a configuração, em
concurso, do crime de quadrilha ou bando. Vitor Eduardo Dias Gonçalves, isoladamente,
entende que há bis in idem, porque quem se associa em quadrilha é porque vai com os
associados cometer crimes; se a quadrilha é crime permanente, o fato de cometer crimes
com os associados estaria, então, sendo duplamente valorado. A corrente majoritária vem e
diz que, na verdade, a paz pública é o bem jurídico tutelado na quadrilha, e por isso é um
ato preparatório quem foi elevado à condição de crime autônomo, devendo ser punido de
forma autônoma.

Michell Nunes Midlej Maron 139


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Para que se configure esta causa de aumento, é preciso que aqueles que concorram
estejam presentes na execução da coação, pois a mens da maior reprovabilidade, aqui, é
justamente o maior poder de intimidação que a pluralidade de agentes acarreta, segundo
Hungria.

2.1.1. Emprego de arma

O dispositivo também agrava o crime por emprego de armas. Veja que não é por
estar o termo “armas” no plural que significa que deve haver uso de mais de uma: armas,
ali, é significativo de gênero, bastando uma para configurar a circunstância. Estão ali
abrangidas tanto as próprias quanto as impróprias (facas de cozinha, chaves-de-fenda, etc.).
O emprego de arma consiste em qualquer uso que desta se faça no constrangimento,
bastando inclusive o porte ostensivo.
Problema que surge aqui diz respeito à relação entre o uso da arma, no
constrangimento ilegal, e os delitos de porte de arma de fogo ou disparo de arma de fogo,
do Estatuto do Desarmamento: há concurso de crimes?
Quanto ao porte, a situação é complicada, eis que mereceria absorção, por ser crime
meio, mas o constrangimento agravado ainda tem a pena menor do que o crime de porte,
como se vê no artigo 14 da Lei 10.826/03:

“Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido


Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,
ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou
ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e
em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma
de fogo estiver registrada em nome do agente. (Vide Adin 3112-1)

No crime de disparo, por seu turno, é ainda mais estranha a subsidiariedade: ela é
expressa, fazendo-o subsidiário a “outro crime”, nada falando se este é mais ou menos
grave para tanto. Veja o artigo 15 do Estatuto:

“Disparo de arma de fogo


Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas
adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha
como finalidade a prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável. (Vide Adin 3112-1)”

E há ainda o porte de arma branca, que é contravenção capitulada no artigo 19 do


Decreto-Lei 3.688/41:

“Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da
autoridade:
Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a
três contos de réis, ou ambas cumulativamente.
§ 1º A pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em
sentença irrecorrivel, por violência contra pessoa.

Michell Nunes Midlej Maron 140


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

§ 2º Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de


duzentos mil réis a um conto de réis, quem, possuindo arma ou munição:
a) deixa de fazer comunicação ou entrega à autoridade, quando a lei o determina;
b) permite que alienado menor de 18 anos ou pessoa inexperiente no manejo de
arma a tenha consigo;
c) omite as cautelas necessárias para impedir que dela se apodere facilmente
alienado, menor de 18 anos ou pessoa inexperiente em manejá-la.”

Se as armas forem brancas ou impróprias, a solução é mais simples, então: para as


impróprias, não há tipicidade que possa interferir na prevelência do crime de
constrangimento ilegal, eis que não se pune o seu porte; para as armas brancas, há a
consunção, prevalecendo o crime do artigo 146, § 1°, do CP, sobre esta contravenção supra,
que resta absorvida por sua menor gravidade, e por ser regra geral a de que as
contravenções sempre são absorvidas.
O problema surge é no emprego da arma de fogo, que quer no porte, quer no
disparo, têm pena maior. No disparo, o entendimento é que o crime é essencialmente
subsidiário, independentemente da gravidade, porque assim fez constar o legislador. Veja
um exemplo em que a jurisprudência considerou esta subsidiariedade do disparo ante crime
menos grave (no caso, lesões corporais leves):

“Apelação Crime. 70015526312. RELATOR: João Batista Marques Tovo.


EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA. DISPARO DE ARMA DE
FOGO E LESÕES CORPORAIS. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA
FALTA DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO EM RELAÇÃO ÀS LESÕES
CORPORAIS. ABSORÇÃO DO CRIME-MEIO, DISPARO DE ARMA DE
FOGO, PELO CRIME-FIM, LESÃO CORPORAL. ABSOLVIÇÃO. Apelo
defensivo provido. (Apelação Crime Nº 70015526312, Sexta Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em
26/04/2007). DATA DE JULGAMENTO: 26/04/2007.

Em se tratando de disparo de arma de fogo 23 no contexto do constrangimento


agravado, aquele crime é expressamente subsidiário a este, o que leva Gilberto Tums a
sustentar sua absorção, mesmo por um crime menos grave. Damásio, por seu turno, defende
que o que a norma expressa quis dizer é que a subsidiariedade se impõe apenas quanto a
crimes mais graves – o que parece ser uma interpretação extensiva contrária aos interesses
defensivos.
Quanto ao porte, há severa controvérsia. Capez entende que ele só poderá ser
punido de forma autônoma quando ocorrer em contexto diverso do ato de constranger, o
que o faz absorvido mesmo sendo mais grave. Capez sustenta, portanto, que o sujeito
responderá pelo constrangimento agravado, sendo impossível a punição do porte quando
realizados no mesmo contexto estes dois crimes, constrangimento e porte.
O STJ tem um julgado que trata de situação análoga, entre porte e exercício
arbitrário, e neste crime entende que a absorção do porte, mais grave, pelo exercício
arbitrário, muito mais leve, é impossível:

“REsp 878.897 / SP. DJ 16/04/2007 p. 224.

23
É claro que, havendo disparo e porte no mesmo contexto, este último resta absorvido, pois é crime-meio
necessário ao cometimento do disparo.

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

RECURSO ESPECIAL. PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. ABSORÇÃO


DO DELITO DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO PELO DE EXERCÍCIO
ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES. IMPOSSIBILIDADE.
De acordo com o princípio da consunção, haverá a relação de absorção quando
uma das condutas típicas for meio necessário ou fase normal de preparação ou
execução do delito de alcance mais amplo, sendo, portanto, incabível o
reconhecimento da absorção de um crime mais grave pelo mais leve (Precedentes
do STF e do STJ). Recurso provido.”

2.2. Concurso entre constrangimento e lesões

O § 2º do artigo 146 do CP diz que, além das penas cominadas, aplicam-se as


correspondentes à violência. Isto significa que há concurso material entre os crimes lesivos
à integridade física e o constrangimento, devendo cumularem-se as penas, na forma do
artigo 69 do CP:
“Concurso material
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de
liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de
reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
(...)”

2.3. Excludentes do § 3° do artigo 146 do CP

O § 3º do artigo 146 do CP determina que não se compreendem na disposição deste


artigo a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; e a coação exercida para
impedir suicídio.
Este dispositivo apresenta situações que assumem natureza jurídica de estado de
necessidade especial. Capez e Damásio entendem que se tratam, ambas, de excludentes da
tipicidade, pois retratam condutas fomentadas, que não podem ser ao mesmo tempo
consideradas típicas.
Pelo ensejo, o suicídio, para Hungria, é um ato ilícito. Não é típico, mas é ilícito,
pois o suicida não tem o direito de dispor da própria vida – nada no direito ampara esta
conduta.

2.4. Constrangimento ilegal vs. tortura

A Lei 9.455/97 dispõe, no seu artigo 1°, que:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:


I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe
sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Michell Nunes Midlej Maron 142


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - reclusão, de dois a oito anos.


(...)”

A diferença entre os crimes de tortura e de constrangimento reside na intensidade do


sofrimento impingido à vítima. Se o sofrimento é brando e incidental, há o
constrangimento; se é severo e essencial ao crime, há tortura.

2.5. Constrangimento ilegal vs. artigo 107 do Estatuto do Idoso

O artigo 107 da Lei 10.741/97 prevê um crime de constrangimento ilegal específico,


cujo objeto material é delimitado apenas à coação para doação, contratação, testamento ou
outorga de procuração:

“Art. 107. Coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar
procuração:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”

Este crime supra se distingue da extorsão, segundo Delmanto, porque na extorsão a


vantagem obtida tem que ser necessariamente econômica, e tem que ser também
necessariamente indevida – o que não ocorre neste crime supra. A relevância, neste crime
contra o idoso, é da constrição moral. Se estiverem presentes as elementares da vantagem
indevida e econômica, o crime será de extorsão.

3. Ameaça

Este crime consta do artigo 147 do CP:

“Ameaça
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio
simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

A primeira nota distintiva da ameaça é a ausência de finalidade específica: trata-se


de conduta que se consuma na única finalidade de perturbar o estado psíquico da vítima,
sem que com isso pretenda, o agente, obter qualquer fim ulterior. Se a finalidade do agente,
ao ameaçar, for qualquer intuito além da própria perturbação psicológica, o crime passa a
ser de constrangimento ilegal.
Capez diz que o termo violência, presente na Lei Maria da Penha, alcança também a
ameaça, fazendo as condutas desta lei se consumarem não só com atos físicos, mas também
com a ameaça.
O bem jurídico, portanto, é a liberdade pessoal, manifestada na tranqüilidade
psíquica. A vítima só pode ser pessoa física, pois a pessoa jurídica não possui este bem
jurídico para ser afetado.
A ameaça não precisa necessariamente se dirigir à pessoa: pode se dirigir a algo ou
alguém que lhe seja caro, consumando o delito. Por exemplo, a ameaça de matar um animal
de estimação é claramente apta a perturbar o estado mental de seu dono. É o que se chama
de ameaça indireta, ou reflexa.

Michell Nunes Midlej Maron 143


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O mal prometido na ameaça deve ser presente ou futuro? Para Nucci, o mal tem que
ser sempre futuro, pois a ameaça de mal presente é execução de algum outro delito. Para
Damásio, porém, tanto pode ser presente quanto futuro.
A ameaça deve ser grave e séria, e verossímil. A intenção de realmente levar a cabo
o que foi ameaçado não é exigida, consumando-se a ameaça quando esta ocorrer, de forma
verossímil.
Há ameaça condicional? Mirabete faz a distinção entre ameaça condicionada a
evento futuro e incerto, e a ameaça condicionada a alguma conduta da vítima. A ameaça
condicionada a evento futuro e incerto consiste em crime de ameaça, sem qualquer
problema; já a que depende de conduta da vítima poderia ser outro fato típico – o
constrangimento ilegal.
Veja: há crime de ameaça em se dizer, por exemplo, “vou te matar se meu time
perder o campeonato”, mas não há ameaça em se dizer “vou te matar se você vier até aqui”.
Neste segundo caso, está claro o constrangimento ilegal, e não a mera ameaça.
A ameaça comporta tentativa, unanimemente na forma escrita, e para alguns, quanto
na verbal, se se considerar plurissubsistente esta execução. Não se confunda esta
possibilidade de tentativa com a necessidade de que haja a efetiva intimidação da vítima:
esta não é exigida para a consumação, bastando haver a conduta de ameaçar para restar
consumado este crime.
O crime de ameaça é subsidiário por natureza, sempre sendo absorvido por delitos
mais graves de que faça parte na execução.
O agente precisa estar calmo quando profere a ameaça, para esta ser típica, ou
também configura o crime a ameaça proferida em ânimo exaltado? Há duas correntes
doutrinárias: Hungria defende que o ânimo calmo é necessário, pois sem ele não há o
condão de a ameaça oferecer intimidação. A corrente majoritária, porém, é a de Damásio,
Bitencourt e Mirabete, que entendem que a emoção e a paixão, que levam à exaltação de
ânimo, não desnaturam o delito, havendo a potencialidade de intimidação.
Se a ameaça for cometida por meio de arma de fogo, como não se vê o emprego da
arma como elementar do tipo (diferentemente do constrangimento ilegal agravado, como
visto), é perfeitamente possível o concurso de crimes, entre porte e ameaça. Neste sentido,
veja o REsp. 481.985:

“REsp 481985 / SP. DJ 16/06/2003 p. 385.


CRIMINAL. RESP. AMEAÇA E PORTE ILEGAL DE ARMA. SUSPENSÃO
CONDICIONAL DO PROCESSO. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES.
MÍNIMO EXIGIDO ULTRAPASSADO. SÚM. 243/STJ. LEI 10.259/01.
REQUISITOS PARA A SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO QUE
PERMANECEM INALTERADOS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
I – A suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95, é
inaplicável aos crimes cometidos em concurso material, formal, ou em
continuidade, quando a soma das penas mínimas cominadas a cada crime, a
consideração do aumento mínimo de 1/6, ou o cômputo da majorante do crime
continuado, conforme o caso, ultrapassar o quantum de 01 ano. Incidência da Súm.
nº 243/STJ.
II – O instituto da suspensão condicional do processo não sofreu qualquer alteração
com o advento da Lei nº 10.259/01, sendo permitido apenas para os crimes que
tenham pena mínima não superior a 01 ano.
III – Não se perquire a respeito do menor potencial ofensivo da infração – o que só
é exigido para a transação penal – instituto diverso.

Michell Nunes Midlej Maron 144


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

IV – Acórdão impugnado que deve ser cassado, restabelecendo-se a decisão de 1º


grau de jurisdição.
IV - Recurso conhecido e provido, nos termos do voto do relator.”

Casos Concretos

Questão 1

Houve a lavratura de boletim de ocorrência a fim de que fossem apuradas as


ameaças que vinham sendo feitas ao Hospital DODÓI - onde seria colocada uma bomba -
e a uma funcionária, CLAUDETE, por meio de telefonemas anônimos. Após as
investigações, foi apurado que outra funcionária, CARLOTA, de sua própria residência,
teria feito as ligações e posteriormente confessou-as, sob a alegação de que pretendia
ajudar CLAUDETE, a fim de que a mesma fosse demitida e, com o pagamento da
indenização, resolvesse seus problemas financeiros. O Promotor de Justiça requereu
designação de audiência preliminar mas, entendendo que o crime de ameaça teria sido
praticado por CARLOTA contra CLAUDETE, excluiu o Hospital DODÓI, devidamente
representado, da demanda. Para anular o procedimento criminal, o Hospital impetrou
Mandado de Segurança, afirmando que a ameaça de colocação de bomba poderá trazer
conseqüências que ultrapassam a esfera penal, causando-lhe prejuízos de ordem
administrativa e civil, especialmente por não poder participar no processo criminal para
resguardar interesses não-penais. Aduziu que a posição da vítima no processo penal já
deixou, há muito, de ser meramente abstrata, considerada como simples sujeito passivo de
delito - pessoa jurídica é detentora dos direitos inerentes à vítima. Por fim, requereu a
concessão da ordem, com esteio no direito líquido e certo que afirma ter, de ser incluído no
pólo ativo da relação processual e, conseqüentemente, considerado vítima da conduta
ilícita praticada e confessada pela ex-funcionária.
a) Deve a ordem ser concedida? Por quê?
b) A hipótese seria a mesma, se ao invés de simples ameaça, houvesse a promessa
de colocação de uma bomba, colimando a obtenção de vantagem indevida?

Resposta à Questão 1

a) Não: o delito de ameaça foi praticado apenas contra a pessoa física, não
podendo a pessoa jurídica ser sujeito passivo de crime contra a liberdade
individual. Não há interesse jurídico justificável do hospital em figurar como
litigante, assistente de acusação, in casu.

Michell Nunes Midlej Maron 145


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

b) O crime, aqui, seria de extorsão, e deste delito a pessoa jurídica pode ser sujeito
passivo, eis que é crime contra o patrimônio. Sendo assim, poderia a ordem ser
concedida, fosse esta a hipótese.

Questão 2

AMARILDA, durante uma discussão com seu ex-namorado, disse: "venha até aqui
que eu vou cortar a sua cara com gilete", fato este presenciado por dois vizinhos da
mesma. Em razão disso, o Ministério Público ofereceu denúncia contra ela, pela prática
do crime previsto no artigo 147 do Código Penal. A peça acusatória deve ser recebida?
Por quê?

Resposta à Questão 2

A ameaça de mal que depende de conduta da vítima não se configura crime de


ameaça: o fato seria atípico. Mirabete, porém, entende que poderia se desenhar, aqui,
constrangimento ilegal, eis que a vítima está sendo coagida a não fazer algo que lhe é
facultado em lei (ir ou vir onde bem entender).

Questão 3

O Ministério Público denunciou LATRICÉRIA, auxiliar de enfermagem do hospital


DOA A QUEM DOER, pela prática do injusto do art. 146 do Código Penal, porque raspou
a cabeça da paciente ERNESTA - que se achava internada no hospital aguardando
possível cirurgia de hérnia de disco, o que, segundo a imputação, já significaria a redução
da capacidade de resistência da vítima, seguindo orientação equivocada que constava na
ficha médica da paciente. Mesmo após o protesto da vítima, LATRICÉRIA continuou o
procedimento, chegando a dizer que, naquele local, a paciente não mandava nada. A
denúncia deve ser recebida? Fundamente. Resposta objetivamente fundamentada em, no
máximo, 15 linhas.

Resposta à Questão 3

Não há dolo de constranger a pessoa ilegalmente. A enfermeira, em tese, está agindo


conforme o procedimento pré-operatório, e por isso está ausente o dolo de constrangimento,
sendo atípico o fato. A denúncia não deve ser recebida.

Michell Nunes Midlej Maron 146


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XII

Crimes contra a Liberdade Individual II (Seqüestro, cárcere privado, redução à condição análoga à de
escravo e situações equiparadas - Lei 10.803/03).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica.
Bem jurídico tutelado;b) Sujeitos do delito;c) Tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes de seqüestro, cárcere
privado, redução à condição análoga à de escravo e equiparados. Diferenças. 2) Aspectos controvertidos. 3)
Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal. 5) Crimes contra a inviolabilidade do domicílio, da
correspondência e dos segredos:a) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Conceito de
domicílio. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Aspectos
controvertidos;c) Concurso de crimes;d) Pena e ação penal.

Notas de Aula24

1. Sequestro e cárcere privado

O artigo 146 do CP, já abordado, é o dispositivo que protege genericamente o direito


constitucional impresso no artigo 5°, II, da CRFB – a liberdade individual. Por esta
generalidade, este artigo 146, constrangimento ilegal, era chamado por Hungria de soldado
de reserva na proteção da liberdade.

“(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
(...)”

Na verdade, a maioria dos artigos deste capítulo, especialmente 146 a 149, são tipos
penais subsidiários por natureza. Isto porque, ao longo do CP, há outros tipos penais
dedicados a proteger com mais vigor estes bens jurídicos relativos à liberdade, em situações
mais específicas nas quais a violação precisa de maior reprimenda, e que prevalecem sobre
os tipos deste capítulo.
Enquanto o artigo 146 do CP tutela a liberdade individual sob o prisma de “fazer ou
não fazer”, o artigo que agora será analisado, 148 do CP, tutela a liberdade de ir e vir.
Vejamos:

“Seqüestro e cárcere privado


24
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 27/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 147


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Art. 148 - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:
I - se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou
maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
II - se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou
hospital;
III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº
11.106, de 2005)
V - se o crime é praticado com fins libidinosos. (Incluído pela Lei nº 11.106, de
2005)
§ 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção,
grave sofrimento físico ou moral:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.”
O bem jurídico tutelado é a liberdade ambulatorial, liberdade de ir, vir ou
permanecer. Trata-se de bem jurídico perfeitamente disponível, desde que não represente,
esta disposição, ofensa à dignidade da pessoa humana. Nada impede, por exemplo, que
alguém se encarcere voluntariamente, como o fazem as freiras nos conventos, ou mesmo a
mulher que voluntária e manifestamente se deixe prender em casa, por vontade do marido.
Neste exemplo da mulher que se deixa prender, porém, se se verificar que esta
disposição de sua liberdade lhe afeta a saúde, física ou mental, de forma irrazoável, estará
claro o excesso, e a conduta passa a alcançar bens jurídicos indisponíveis, não mais sendo
tolerada. O parâmetro da tolerância ao consentimento sobre a restrição da liberdade é a
dignidade da pessoa.
Qualquer pessoa pode ser vítima deste crime, ao contrário do artigo 146 do CP, que,
como se viu, exige algum discernimento por parte da vítima. Aqui, a privação da liberdade
pode alvejar qualquer pessoa, quer esta tenha consciência ou não desta situação.
Sequestro é a detenção ou a retenção de uma pessoa, por determinado período de
tempo, no qual fica sob inteiro domínio do seqüestrador. Reter é manter coativamente a
pessoa em local em que já esteja; deter é tomar ativamente a liberdade de alguém que não
estava já no local da retenção.
Cárcere privado, por sua vez, é a limitação ainda mais severa da liberdade,
diferindo do sequestro apenas quanto à intensidade, havendo mesmo quem defenda que esta
separação conceitual não tem qualquer valor. Um bom exemplo seria a retenção de alguém
trancado em uma casa, o que é sequestro, enquanto a retenção da pessoa em um banheiro
desta casa seria cárcere privado – eliminando quase que por completo a liberdade de
locomoção. A linha diferenciadora é bem tênue, como se vê.
Veja que o cárcere pode ser configurado mesmo em situações em que a liberdade já
é limitada. Por exemplo, se os presos de uma cela amarram um de seus companheiros de
cela à cama, impedindo-o de locomover-se pela cela, há a limitação indevida da já pouca
liberdade que ele tinha.
O sequestro se consuma, tem início, quando a pessoa se vê impossibilitada de sair
do local em que está, por força alheia. Qualquer que seja a força, diga-se: pode ser o
trancafiamento em local fechado, ou mesmo a coação de pessoa armada, mesmo estando o
local aberto. Hungria dá exemplo curioso: a mulher está tomando banho nua no lago,
quando vem o agente ativo e lhe toma as roupas: ela não poderia sair do lago, porque o
vexame representaria grave risco moral, ou mesmo risco pessoal de ser atacada, o que
configuraria sequestro por aquele que lhe toma as vestes.

Michell Nunes Midlej Maron 148


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O momento consumativo do sequestro e do cárcere privado é a retenção ou


detenção da pessoa, por um período razoável, e é um crime permanente, se estendendo sua
consumação desde o primeiro momento até cessar a retenção ou detenção. O período
mínimo para se configurar o sequestro ou o cárcere é absolutamente casuístico, mas pode-
se falar que é necessária a constrição por um tempo juridicamente relevante, o que é
também um conceito aberto.
Como a conduta de seqüestrar ou encarcerar uma pessoa é claramente
plurissubsistente, o crime admite tentativa.
O delito tem forma livre: qualquer que seja o meio utilizado para se tolher a
liberdade da vítima pode configurar o sequestro ou o cárcere.
Questão que se coloca é se o dependente químico agudo poderia ser internado para
desintoxicação contra a sua vontade, ou se esta situação desenharia sequestro ou cárcere
privado. Formalmente, esta internação involuntária preencheria o tipo, mas há uma
excludente que socorre quem procede a esta internação forçada: o estado de necessidade.
Aquela vítima do cárcere está tendo sua liberdade tolhida em nome de um bem maior, qual
seja, a sua própria vida, que está em risco pela dependência química que o leva a uso
desenfreado da droga25.
É possível o cometimento destes crimes por omissão: basta que o agente não liberte
a pessoa que está seqüestrada ou encarcerada, tendo sido presa por terceiros.

1.1. Sequestro e cárcere e a Lei de Abuso de Autoridade

O carcereiro que não liberta o preso, quando era seu dever fazê-lo, responderá de
acordo com a Lei 4.898/65 – abuso de autoridade. Sua conduta, assim como a de qualquer
autoridade policial, se enquadra no artigo 4°, “a”, deste diploma, quando há uma ordem de
prisão a ser executada, mas ele a executa com abuso de poder ou quebra das formalidades:

“Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:


a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as
formalidades legais ou com abuso de poder;
(...)”

Se o ato é de atacar, sob qualquer forma, a liberdade de locomoção da pessoa, quer


seja deixando de libertar o preso, quer seja impedindo-o de se locomover minimamente no
espaço carcerário, ou quando atua arbitrariamente contra pessoa livre, tolhendo-lhe
irregularmente a liberdade a qualquer pretexto, enquadra-se no artigo 3º, “a”, deste
diploma. Veja:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


a) à liberdade de locomoção;
(...)”

Veja que só se subsume à lei em questão o funcionário público detento de parcela do


poder do Estado, no exercício da função, ou invocando esta função. É crime próprio,
portanto.
25
Esta situação se evidencia especialmente diante do crack: esta droga é tão poderosa que pode levar a óbito
bem breve tempo, e por isso qualquer internação forçada de usuários desta droga poderia ser acobertada pelo
estado de necessidade, sem sombra de dúvidas.

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.2. Sequestro e cárcere no Estatuto da Criança e do Adolescente

O ECA, no seu artigo 230, fala da apreensão ilegal de menor::

“Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua


apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da
autoridade judiciária competente:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem
observância das formalidades legais.”

Trata-se de uma forma específica de sequestro, em que a constrição da liberdade se


dá por meio da apreensão irregular do menor supostamente infrator. Na verdade, há uma
série de previsões do ECA que são especiais em relação ao CP e também em relação à Lei
4.898/65, que se destinam a reprimir com especificidade os abusos contra menores.

1.3. Formas qualificadas

Segundo o § 1°, I, do artigo 148 do CP, o crime é qualificado se a vítima é


ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente, ou é maior de sessenta anos.
Basta que seja objetivamente constatada esta situação pessoal da vítima para haver a
qualificadora.
Se o indivíduo seqüestrado ou encarcerado tinha cinquenta e nove anos quando do
início do crime, mas completou sessenta no curso do aprisionamento, o crime se torna
qualificado. Afinal, é crime permanente, de consumação estendida no tempo, e está se
consumando, agora, contra pessoa maior de sessenta anos. Rememorando, é maior de
sessenta apenas desde o dia seguinte ao aniversário: no dia do aniversário, é igual a
sessenta, não se aplicando, ali, a qualificadora.
O inciso II deste mesmo § 1° do artigo 148 determina que se o modo de
aprisionamento for a internação indevida em casa de saúde ou hospital, também se qualifica
o delito. É claro que esta internação, mor das vezes, terá o médico ou o responsável pelo
nosocômio como coautor, eis que a determinação médica é necessária para qualquer
internação.
O inciso III qualifica a privação de liberdade que perdure mais de quinze dias – do
décimo-sexto dia em diante, portanto. O dia se conta por inteiro, mesmo que tenha ocorrido
o sequestro no último minuto do dia, computando-se para a qualificadora este dia como
completo.
Também qualifica o crime se praticado contra menor de dezoito anos, segundo o
inciso IV deste artigo. Aplica-se a mesma lógica daquela vítima maior de sessenta, só que
invertida: se completar dezoito anos no cárcere, houve consumação prévia do delito contra
menor; mesmo que agora a consumação seja contra maior, pela permanência, ainda há que
se levar em conta a consumação anterior ao aniversário como qualificadora do crime.
O inciso V do artigo trata da finalidade especial do sequestro ou cárcere: se o
criminoso tem fins libidinosos no aprisionamento da vítima, o crime se qualifica. Esta
figura qualificadora veio em substituição à revogada tipificação do artigo 219 do CP, o
antigo rapto violento ou mediante fraude:

Michell Nunes Midlej Maron 150


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Rapto violento ou mediante fraude(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)


Art. 219 - Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude,
para fim libidinoso:(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
Pena - reclusão, de dois a quatro anos.(Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005).”

Se o seqüestrador realiza efetivamente, com o seqüestrado, o ato libidinoso que


almejava, haverá concurso material entre o sequestro qualificado e o crime sexual
correspondente. Não há absorção do sequestro, porque não se trata de crime-meio para o
cometimento do ato libidinoso.
O § 2° do artigo 148 traz outra qualificadora, esta ainda mais grave: quando a
natureza da detenção ou dos maus-tratos causar grave sofrimento mental ou físico, o crime
é qualificado. Se houver lesão ou morte, porém, não se fala nesta qualificadora: há
concurso material entre o sequestro e o dano correspondente.

2. Redução a condição análoga à de escravo

Diz o artigo 149 do CP:

“Redução a condição análoga à de escravo


Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei
nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1° Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o
fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos
ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
(Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2° A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº
10.803, de 11.12.2003)
I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela
Lei nº 10.803, de 11.12.2003).”

As Cortes Maiores têm entendido que este crime é de competência da Justiça


Federal. Veja o RE 398.041, e o CC 62.156, do STJ, pela ordem:

“RE 398041 / PA – PARÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min.


JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 30/11/2006. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: 19-12-2008
EMENT VOL-02346-09 PP-02007
EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO
PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO.
TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS
FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS
TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO
PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à

Michell Nunes Midlej Maron 151


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de


trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total
violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a
organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como
violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para
proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios
trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a
Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos
crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de
trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal
(Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a
organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art.
109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário
conhecido e provido.”

“CC 62156 / MG. CONFLITO DE COMPETENCIA. DJ 06/08/2007 p. 464.


CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ART. 149 DO CP. DELITO
CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. ART. 109, INCISO VI, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. Na esteira do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e desta Corte, o
crime de redução a condição análoga à de escravo, ainda que praticado contra
determinados grupos de trabalhadores, por se enquadrar na categoria de delitos
contra a organização do trabalho, é de competência da Justiça Federal, nos termos
do art. 109, inciso VI, da Constituição Federal.
2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal, o suscitante.”

Este crime é chamado de plágio, termo que é muito usado em outros contextos
como o ato de copiar alguma coisa. O plágio, aqui, é a sujeição de uma pessoa ao domínio
de outra.
Outrora, quando a escravidão era uma instituição tolerada, o escravo era um ser
despido de personalidade, e sua natureza jurídica era de coisa, tal como um semovente. O
que o artigo quer é vedar que este tratamento, que reduz alguém a uma condição de não-
pessoa, seja praticado.
É um crime de forma vinculada, só podendo ser praticado por meio das condutas
arroladas no caput e no § 1° do artigo em comento. Escravo é o elemento normativo do
tipo, sendo considerado aquela pessoa que se vê tratada como coisa, sem qualquer
reconhecimento de personalidade.
Submeter a pessoa a trabalhos forçados é subjugá-lo a trabalhar contra sua vontade.
Repare que, nem sempre, o fato de trabalhar contra a vontade será constatado de plano:
pode o trabalhador supostamente declarar que está ali consentidamente, mas é fundamental
se perceber que o consentimento, na situação fática do trabalho forçado, análogo ao de
escravos, não é válido – o bem é indisponível ao sujeito passivo.
O mesmo raciocínio se repete nas demais modalidades de cometimento do delito:
não pode o sujeito passivo consentir em jornadas exaustivas, exacerbadas, ou em condições
degradantes de trabalho (como exemplo destas, as carvoarias).
A forma de cometimento do crime que se consubstancia na restrição de locomoção
do sujeito passivo, em razão de dívida por este contraída com o empregador ou preposto,
pode gerar confusão entre este artigo 149 do CP e o crime do artigo 203 do mesmo Código,
especialmente nas condutas do § 1°:

“Frustração de direito assegurado por lei trabalhista

Michell Nunes Midlej Maron 152


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela


legislação do trabalho:
Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à
violência. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
§ 1º Na mesma pena incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento,
para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; (Incluído pela
Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante
coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.
(Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito
anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.
(Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998).”

Este crime supra é contra a organização do trabalho, e não contra a liberdade


individual. Ademais, no artigo 203 do CP, a vítima sequer passa perto da condição de
escravo, que é o elemento diferenciador fundamental do artigo 149 do CP. Note que as
condutas do artigo 203 podem ser subsidiárias às do artigo 149, pois se forem idênticas, e
não houver a condição de escravo, há este crime residual.
Trata-se de um crime permanente, e é plurissubsistente – podendo ser tentado,
portanto. É crime comum, e o sujeito passivo é o trabalhador, de qualquer natureza.
Se o crime envolve violência de qualquer sorte, o próprio preceito secundário do
artigo 149 dispõe que responde em concurso material pelos dois crimes, este, contra a
liberdade, e o correspondente à violência, contra a integridade.
Os incisos I e II do artigo 149, então, estes são condutas ainda mais similares às do
artigo 203, supra: comete o crime da redução à condição análoga à de escravo quem cerceia
o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local
de trabalho, e quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. A
diferença, como dito, é que estas condutas são dirigidas a pessoa que se encontra sob as
condições do caput do artigo 149, ou seja, tal qual um escravo.
O § 2° do artigo 149 do CP majora a pena em relação a qualidade pessoal da vítima
– ser criança ou adolescente (inciso I) –, ou quando a motivação do sujeito ativo é
considerada abjeta, desprezível, ainda mais reprovável, o que ocorre quando comete o
crime por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (inciso II).
Nucci tem posição isolada em que defende que este inciso II, esta prática motivada
por animo abjeto, é imprescritível, porque se configura racismo, o qual é
constitucionalmente imprescritível. Esta posição é isolada porque, em verdade, racismo é
aquilo que consta da Lei 7.716/89, que é o diploma dedicado a regulamentar a previsão
constitucional sobre o racismo.

3. Violação de domicílio

Diz o artigo 5°, XI, da CRFB:

“(...)
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Michell Nunes Midlej Maron 153


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

(...)”

O Direito Penal reprime a violação a este direito fundamental, no artigo 150 do CP:

“Violação de domicílio
Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a
vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas
dependências:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego
de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à
violência.
§ 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário
público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades
estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.
§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas
dependências:
I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou
outra diligência;
II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali
praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º - A expressão "casa" compreende:
I - qualquer compartimento habitado;
II - aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou
atividade.
§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta,
salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.”

A Lei 4.898/65 traz repressão correspondente, em que considera abuso de


autoridade a violação ao domicílio, como se vê no artigo 3°, “b”, deste diploma:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


(...)
b) à inviolabilidade do domicílio;
(...)”

Veja que este artigo fala em qualquer atentado à inviolabilidade do domicílio,


enquanto o CP fala em entrar ou permanecer. Por isso, o tipo especial do abuso de
autoridade é muito mais amplo, e por isso se deve entender que uma observação externa
(lunetas, vigilância eletrônica, ou algo do gênero) consiste, sim, em atentado contra a
inviolabilidade de domicílio, perfazendo o crime de abuso. Na verdade, este raciocínio se
aplica a todos os crimes de abuso, que são muitíssimo amplos em sua elementar “qualquer
atentado”.
Analisando, agora, detalhadamente, o artigo 150 do CP, temos que a conduta de
“entrar” consiste na ultrapassagem dos limites de um domicílio, enquanto “permanecer”
consiste em deixar de sair quando for instado a fazê-lo. Na modalidade “entrar”, o crime é
instantâneo; na “permanecer”, é permanente.

Michell Nunes Midlej Maron 154


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A entrada ou a permanência podem ser clandestinas ou astuciosas, o que gera uma


presunção de dissenso do titular do domicílio, ou, mesmo que a entrada seja a olhos vistos e
declarada, ser contra a vontade expressa do titular. Nas primeiras formas, presume-se o
dissenso; nesta última, o dissenso é expresso. Quando há consentimento do ofendido, do
titular do domicílio, é claro que resta excluída a tipicidade da conduta, porque o dissenso é
elementar do tipo, presumido ou expresso.
A entrada pode ser legítima, e depois o ato de permanecer se torna ilegítimo, quando
a autorização para entrar foi dada, mas cessou a autorização para permanecer.
É perfeitamente concebível a tentativa, tanto na modalidade entrar quanto na de
permanecer. Quanto à permanência, é fácil ver que é plurissubsistente; quanto à entrada, se
esta conduta pode ser fracionada, pode ser cortado o iter, e por isso pode ser tentada.
Exemplo simples é o da pessoa que, em cima do muro para invadir uma casa, é obstada por
força alheia a sua vontade.
Se a casa estiver desabitada, mas estiver devidamente fechada, é clara suposição de
que haja dissenso pelo titular na entrada de qualquer pessoa. Contudo, se estiver desabitada
e completamente aberta, ao léu, não se pode falar que haja inviolabilidade a ser protegida.
Pode até ser considerada, a permanência de alguém ali, como esbulho possessório – afinal,
a coisa tem possuidor legítimo, que não é o invasor –, mas violação de domicílio não há.
Terrenos de grande extensão, como fazendas e sítios muito grandes, a entrada de
alguém em sua área, se não constituir perturbação alguma à tranqüilidade ou intimidade dos
titulares do domicílio, não se configura este crime do artigo 150 do CP. Novamente, pode
até ser considerada ocorrência de esbulho possessório, a depender do animus de quem
entra.
O artigo fala em “casa alheia ou em suas dependências”. São dependências as áreas
contíguas, os jardins, e similares, sempre verificadas na casuística. A doutrina tem
entendido que quando a dependência não tenha proteção qualquer da entrada, não se pode
configurar como área tutelada pelo dispositivo. É o caso, por exemplo de jardins de casas
que não são murados: não há privacidade traçada sobre aquela parte da propriedade, pelo
que não há qualquer ofensa à privacidade.

3.1. Titular do direito de consentir

Há dois sistemas possíveis para a definição de quem, em um domicílio coabitado,


tem o direito à inviolabilidade. O primeiro é o regime de subordinação: apenas a um dos ali
co-domiciliados tem o poder de consentir na entrada ou permanência. Por exemplo, os pais,
sobre a casa da família; os reitores, sobre entidades de ensino; os diretores, sobre os
estabelecimentos de empresa, etc.
E há o sistema da igualdade, em que qualquer um dos co-ocupantes é titular do
direito de consentir ou proibir a entrada: assim ocorre em repúblicas, em partes comuns de
condomínios, em quartos coletivos de albergues, etc. Entre marido e mulher, vige a
igualdade: qualquer dos dois pode permitir ou consentir na entrada ou permanência.
No sistema da igualdade, se há empate entre os titulares da proibição e permissão de
entrada ou permanência, prevalece a proibição: é razoável que, se apenas um dos titulares
não consente na presença do terceiro, seu direito à inviolabilidade seja resguardado,
prevalecendo sobre o direito do outro titular em consentir.

Michell Nunes Midlej Maron 155


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

3.2. Conceito legal de “casa”

O § 4° do artigo 150 do CP traz uma norma explicativa, de interpretação autêntica,


para o conceito de casa. Dali se tira, por exemplo, que não há qualquer restrição material à
definição de um lugar como casa: pode a habitação ser de alvenaria, ou de sapé, madeira,
tapumes, ou mesmo papelão. Não se pode discriminar, de forma alguma, qualquer modo de
habitação, pois a intimidade e a vida privada, protegidas na inviolabilidade, são direitos
fundamentais titularizados por todos.
Cavernas, grutas, barracas de camping, boléias de caminhões, ou mesmo carros, são
locais que, se habitados por seres humanos, tornam-se suas casas, reconhecidamente. Da
mesma forma, quartos de hotéis, pousadas, motéis, albergues, todos são domicílios
daqueles que os ocupam, pelo período no qual se intitularem ocupantes – mesmo que
tenham saído, e a reserva perdure, por exemplo.
Repare que o fato de o domicílio se estabelecer em bem público não lhe retira a
proteção. A caverna e a gruta em parque público, ou o barraco sob o viaduto, são exemplos
de ocupações irregulares de bens públicos, mas ainda são insertos no conceito de “casa”,
merecendo a proteção.
O inciso III deste § 4° define como compreendido na inviolabilidade o
estabelecimento profissional não aberto ao público, incluindo na proteção os escritórios,
consultórios, etc. Se se tratar de uma loja aberta à freqüência pública, é claro que não há a
proteção.
O § 5°, do artigo 150, por seu turno, determina o que não é protegido pela
inviolabilidade. Hospedarias, estalagens ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto
aberta, não são tuteladas pelo tipo – exceto nas partes privadas destes lugares, ou seja, os
quartos, como dito. Também as tavernas, cassa de jogo e outras do mesmo gênero são
alheias à proteção do tipo.

3.3. Violação de domicílio qualificada

O § 1° do artigo 150 do CP comina escala penal maior para a violação cometida


durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas
ou mais pessoas.
Noite, para a qualificadora da violação de domicílio, é um conceito mais relativo do
que a mera ausência de luz natural, que é o conceito naturalístico de noite. Para ser
qualificadora do crime, aqui, é preciso que a noite seja elemento fundamental para
incrementar a vulnerabilidade do domicílio. Aquele que penetra em uma casa durante uma
festa noturna, por exemplo, está em violação de domicílio, mas não qualificada pelo
período noturno – a noite não oferece incremento à vulnerabilidade da casa, neste caso.
O lugar ermo é aquele que é notória e habitualmente desocupado, desabitado,
distante de qualquer atividade social, e por isso mais sujeito ao ataque.
Qualquer emprego de violência contra quem quer que se encontre no caminho do
violador é qualificadora do delito. A arma que qualifica o crime, também, é qualquer uma,
própria ou imprópria, desde que possa oferecer maior risco na conduta do violador.
O concurso que qualifica este crime é aquele formado por mais de duas pessoas, ou
seja, ao menos três.

Michell Nunes Midlej Maron 156


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Havendo violência, o preceito secundário do § 1° deste artigo comina a sua pena em


concurso à da própria violação qualificada.

3.4. Violação de domicílio e abuso de poder

O § 2° do artigo 150 diz que a pena aumenta-se de um terço, se o fato é cometido


por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades
estabelecidas em lei, ou com abuso do poder. Grande parte da doutrina – por todos, Capez –
entende que este dispositivo foi revogado pelo artigo 3°, “b”, da Lei 4.898/65, há pouco
transcrito, que considera abuso de poder qualquer atentado contra a inviolabilidade do
domicílio.
É o entendimento mais correto, porque a norma da Lei 4.898/65 é especial em
relação a este § 2°, mas Damásio e Luiz Régis Prado entendem que não houve a revogação,
porque pode haver funcionário público que se enquadre neste § 2°: aquele que não é
detentor de poder algum, para poder deste abusar. É colocação até certo ponto pertinente,
mas não se encontra exemplo de funcionário público que não tenha um mínimo poder para
dele abusar.

3.5. Exclusão do crime

O § 3° do artigo 150 dispõe que não constitui crime a entrada ou permanência em


casa alheia ou em suas dependências durante o dia, com observância das formalidades
legais, para efetuar prisão ou outra diligência.
Esta outra diligência, aqui, não é somente a do oficial de justiça em cumprimento de
mandado: pode ser de qualquer natureza que o poder de polícia estatal demande, inclusive a
inspeção sanitária, quando necessária à saúde pública.
O inciso II diz que a entrada não é criminosa se, a qualquer hora do dia ou da noite,
o agente adentra porque algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser. Este
termo “iminência” deve ser entendido como fase de execução do crime, e não mera
preparação, porque nesta não há flagrante que justifique a entrada – não há conduta
penalmente relevante, em regra, na preparação de um crime. Veja que se a preparação de
um crime já revelar situação que coloque a pessoa que está dentro da casa ao menos em
estado de necessidade, já se justifica a entrada, mas por esta excludente da ilicitude, e não
pela subsunção ao termo “iminência” deste § 3°, II, do artigo 150.

4. Inviolabilidade de correspondência

Diz o artigo 151 do CP:

“Violação de correspondência
Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada,
dirigida a outrem:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Sonegação ou destruição de correspondência
§ 1º - Na mesma pena incorre:
I - quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada
e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;
Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica

Michell Nunes Midlej Maron 157


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

II - quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente


comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação
telefônica entre outras pessoas;
III - quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;
IV - quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de
disposição legal.
§ 2º - As penas aumentam-se de metade, se há dano para outrem.
§ 3º - Se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal,
telegráfico, radioelétrico ou telefônico:
Pena - detenção, de um a três anos.
§ 4º - Somente se procede mediante representação, salvo nos casos do § 1º, IV, e
do § 3º.”

Este artigo sofreu severas alterações informais por parte de outras leis. Vale pontuar
expressamente cada uma.

4.1. Violação de correspondência

O caput do artigo 151 foi revogado pelo artigo 40 da Lei 6.538/78, Lei dos Serviços
Postais:

“VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Art. 40º - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida
a outrem:
Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa.
SONEGAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de
correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo
ou em parte.
AUMENTO DE PENA
§ 2º - As penas aumentam-se da metade se há dano para outrem.”

Rogério Greco entende que, na medida que o caput foi revogado, nada mais que
nele se escorava pode sobreviver – todo o artigo teria sido revogado. Contudo, não é o
entendimento prevalente na doutrina.
Este artigo 40 fala em “correspondência”, e este conceito vem explicitado no artigo
47 do mesmo diploma:

“Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
(...)
CORRESPONDÊNCIA - toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta,
através da via postal, ou por telegrama.
(...)”

O que se quer proteger, portanto, é a correspondência por meio do serviço postal, e


não qualquer troca de mensagens escritas (bilhetes passados mão-a-mão, por exemplo).
Luiz Régis Prado coloca, aqui, o e-mail, mas como o conceito de correspondência é legal,
seria, uma ampliação típica sem lei que a permita.
Por ser o serviço postal de abrangência nacional, se a carta violada estiver em
trânsito, a competência é da Justiça Federal. Se a carta estiver já no destinatário, ou ainda
com o remetente, quando violada, a competência é da Justiça Estadual respectiva.

Michell Nunes Midlej Maron 158


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Devassar” é tomar conhecimento, de qualquer forma. Se for possível fazê-lo sem


abrir a carta, ainda assim há a violação da correspondência.
Veja que o artigo 40 em análise fala em devassar “indevidamente”, o que dá a deixa
para que se entenda que haja devassamento que seja devido, e os há, de fato: os pais podem
perscrutar as correspondências dos filhos menores, para fins de controle e educação. Da
mesma forma, diretores de presídios podem abrir as correspondências dos presos, se
devidamente motivada tal intrusão, por ordem de segurança. A respeito, veja o HC 70.814
do STF:
“HC 70814 / SP - SÃO PAULO. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CELSO
DE MELLO. Julgamento: 01/03/1994. Órgão Julgador: Primeira Turma.
Publicação: DJ 24-06-1994.
E M E N T A: HABEAS CORPUS - ESTRUTURA FORMAL DA SENTENÇA E
DO ACÓRDÃO - OBSERVANCIA - ALEGAÇÃO DE INTERCEPTAÇÃO
CRIMINOSA DE CARTA MISSIVA REMETIDA POR SENTENCIADO -
UTILIZAÇÃO DE COPIAS XEROGRAFICAS NÃO AUTENTICADAS -
PRETENDIDA ANALISE DA PROVA - PEDIDO INDEFERIDO. - A estrutura
formal da sentença deriva da fiel observancia das regras inscritas no art. 381 do
Código de Processo Penal. O ato sentencial que contem a exposição sucinta da
acusação e da defesa e que indica os motivos em que se funda a decisão satisfaz,
plenamente, as exigencias impostas pela lei. - A eficacia probante das copias
xerograficas resulta, em princípio, de sua formal autenticação por agente público
competente (CPP, art. 232, paragrafo único). Pecas reprograficas não autenticadas,
desde que possivel a aferição de sua legitimidade por outro meio idoneo, podem
ser validamente utilizadas em juízo penal. - A administração penitenciaria, com
fundamento em razoes de segurança pública, de disciplina prisional ou de
preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que
respeitada a norma inscrita no art. 41, paragrafo único, da Lei n. 7.210/84,
proceder a interceptação da correspondencia remetida pelos sentenciados, eis que a
cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir
instrumento de salvaguarda de praticas ilicitas. - O reexame da prova produzida no
processo penal condenatório não tem lugar na ação sumarissima de habeas
corpus.”

Veja que a Lei 4.898/65 também traz norma de proteção à correspondência, no


artigo 3°, “c”, que é especial em relação a esta Lei 6.358/78, quando se tratar de
funcionário público:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


(...)
c) ao sigilo da correspondência;
(...)”

Assim, se o diretor do presídio abrir indevidamente, injustificadamente, a


correspondência, recairá nesta lei especial, e não no tipo genérico.
Para Luiz Régis Prado, dentre outros, não se pressupõe consentimento tácito para o
escrutínio recíproco da correspondência entre os cônjuges: há, portanto, crime, se um viola
a correspondência do outro. Contudo, Damásio, Mirabete, Rogério Greco, entre outros,
entendem que há, sim, este consentimento tácito entre os cônjuges, desnaturando o crime –
corrente que não parece a melhor, apesar de seus adeptos de peso.
É claro que a correspondência aberta – cartas abertas, panfletos, etc. – não são
objetos de proteção do tipo em questão.

Michell Nunes Midlej Maron 159


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

4.2. Sonegação ou destruição de correspondência

O § 1°, I, do artigo 151 do CP foi revogado pelo § 1° deste artigo 40, supra, que diz
que quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para
sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte, responde com a mesma pena do caput.
Veja que não se trata da conduta de apenas devassar a correspondência, tomando
ciência de seu conteúdo. As condutas deste § 1° do artigo 40 podem sequer fazer com que o
autor do delito tome conhecimento do conteúdo da carta – pode simplesmente destruí-la
sem lê-la. E veja que aqui se insere como objeto de proteção também a correspondência
aberta.
As mesmas situações em que o devassamento é devido podem justificar a destruição
da correspondência: pode um pai destruir correspondência endereçada ao filho menor,
quando perceber que se trata de um conteúdo pornográfico, ou criminoso, por exemplo.
Há uma diferença extremamente importante entre a redação do revogado artigo 151,
§ 1°, I, do CP, para o artigo 40, § 1°, da Lei 6.538/78, que lhe tomou o lugar: enquanto o CP
falava na conduta de quem se apossa indevidamente de correspondência alheia e a sonega
ou destrói, a Lei 6.538/78 fala em “para sonegá-la ou destruí-la”. Assim, o crime que era
material no CP, passou a ser formal, na lei que assumiu a tipificação.

4.3. Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica.

O § 1°, II, do artigo 151 do CP, teve apenas a parte final revogada pelo artigo 10 da
Lei 9.296/96:
“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial
ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”

Veja: o artigo 151, § 1°, II, diz que quem indevidamente divulga, transmite a outrem
ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou
conversação telefônica entre outras pessoas, comete este crime. A Lei 9.296/96 apenas
revogou a parte final do dispositivo, que se refere à “conversação telefônica entre outras
pessoas”. Sendo assim, a conduta do artigo que se refere às comunicações telegráficas e
radioelétricas ainda é típica segundo o artigo do CP, mas aquilo que se refere à
comunicação telefônica é tipificado no artigo 10, supra.
O § 1°, III, do artigo 151 do CP não foi revogado, permanecendo vigente. Por isso,
quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior, de qualquer
forma, responde neste artigo. É o caso, por exemplo, de quem corta os fios do telefone,
interfere em ondas de rádio, e condutas assemelhadas.

4.4. Rádio-pirata

O § 1°, IV, do artigo 151 do CP foi revogado pelo artigo 70 da Lei 4.117/62:

“Art. 70. Constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois)
anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de

Michell Nunes Midlej Maron 160


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

telecomunicações, sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos.


(Substituído pelo Decreto-lei nº 236, de 28.2.1967)
Parágrafo único. Precedendo ao processo penal, para os efeitos referidos neste
artigo, será liminarmente procedida a busca e apreensão da estação ou aparelho
ilegal.”

A rádio-pirata, instalação de telecomunicação clandestina, se subsume a este artigo


supra.
4.5. Agravamento das penas

O § 2° do artigo 151 do CP foi revogado pelo § 2° do artigo 40 da Lei 6.358/78,


supra. A redação dos dispositivos é idêntica, como se vê.
O § 3º do artigo 151 do CP, que também fala em agravamento de pena, foi revogado
pelo artigo 43 da Lei 6.358/78:

“AGRAVAÇÃO DE PENA
Art. 43º - Os crimes contra o serviço postal, ou serviço de telegrama quando
praticados por pessoa prevalecendo-se do cargo, ou em abuso da função, terão
pena agravada.”

Mas veja que neste caso só está incurso o agente que não é autoridade, pois se o for,
estará incurso no artigo 3°, “c”, da Lei 4.898/65, já transcrito.

5. Correspondência comercial

Diz o artigo 152 do CP:

“Correspondência comercial
Art. 152 - Abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento
comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou
suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo:
Pena - detenção, de três meses a dois anos.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Este crime é uma modalidade especial da violação de correspondência, dedicada à


correspondência comercial.
Trata-se de crime próprio, que só pode ser praticado pelo sócio ou empregado de
estabelecimento comercial ou industrial. É delito de intenção, em que há a especial
finalidade de agir expressa no tipo, qual seja, abusar da sua condição para, desviar, sonegar,
subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo, no todo ou em
parte.

6. Divulgação de segredo

Diz o artigo 153 do CP:

“Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou
de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja
divulgação possa produzir dano a outrem:

Michell Nunes Midlej Maron 161


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.


§ 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado
pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 1°-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim
definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados
da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
§ 2° Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será
incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000).”

O sujeito ativo é o destinatário da correspondência ou documento particular, que lhe


foi confiado com o caráter de confidencialidade.
Divulgar é fazer chegar ao conhecimento de terceira pessoa. O crime conta com
elemento normativo negativo – ausência de justa causa –, que deve ser preenchido na
casuística, e consiste, por exemplo, na permissão de divulgação por quem de direito, ou
quando houver alguma justificante, como quando o documento revela a prova do
cometimento de um crime, mesmo que ainda no porvir.
“Documento particular” é conceito preenchido por exclusão: é particular aquele que
não é público. É documento público, por sua vez, aquele que for elaborado por funcionário
público, no exercício da função.
A divulgação, por si só, não é suficiente para configurar o crime: preciso que esta
tenha o condão, a potencialidade, de causar dano a outrem.
O § 1°-A do artigo em comento veda a divulgação de informações sigilosas ou
reservadas que a lei assim tenha definido. É norma penal em branco, suprida pela Lei
8.159/91, expressamente no artigo 23:

“Art. 23. Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos
órgãos públicos na classificação dos documentos por eles produzidos.
§ 1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do
Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente
sigilosos.
§ 2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do
Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de
sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual
período.
§ 3º O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas
será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de
produção.”

Se quem opera esta divulgação do § 1°-A for funcionário público, subsume-se ao


tipo especial do artigo 313-A do CP:

“Inserção de dados falsos em sistema de informações (Incluído pela Lei nº 9.983,


de 2000)
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados
falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados
ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem
indevida para si ou para outrem ou para causar dano: (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000))

Michell Nunes Midlej Maron 162


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000).”

Exemplo de dados sigilosos contidos em bancos da Administração são as anotações


da folha de antecedentes criminais daquele que teve a pena cumprida ou extinta,
especialmente protegidos pela Lei de Execuções Penais no artigo 202:

“Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou
certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer
notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de
nova infração penal ou outros casos expressos em lei.”

7. Violação de segredo profissional

Diz o artigo 154 do CP:

“Violação do segredo profissional


Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão
de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a
outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Função é termo genérico, podendo indicar qualquer incumbência especial dada ao


detentor do segredo. Ministério é o sacerdócio, ou qualquer função atrelada à religiosidade.
Ofício ou profissão são termos referentes ao conhecimento tomado em razão do trabalho –
aqui se inserindo o psicólogo, por exemplo.
O elemento negativo justa causa é abrangido por situações em que a motivação da
divulgação subjugue a proteção ao segredo.
A consumação ocorre quando um terceiro tome conhecimento do segredo. É preciso
que a revelação tenha potencial para causar dano, pois do contrário o tipo não se preenche.
Se o agente for funcionário público, o crime é o do artigo 325 do CP. Está aqui, por
exemplo, o membro da banca de concurso público que revela gabarito a um dos candidatos
a fim de favorecê-lo no certame. Veja:

“Violação de sigilo funcional


Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva
permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime
mais grave.
§ 1° Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou
qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de
informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
§ 2° Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:
(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000).”

Michell Nunes Midlej Maron 163


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

TÍCIO foi internado numa clínica psiquiátrica em razão de uma crise psicótica, por
seus familiares. Debelada a crise e já tendo obtido condições de alta hospitalar, o
internado deixou de ser liberado em razão dos seus familiares terem alegado não
possuírem condições econômicas para o pagamento da conta de internação, condição
imposta pelo gerente daquele frenocômio para tal liberação. Minutos após e com a
chegada de policiais, cuja presença foi solicitada pelos familiares do internado, este foi
encontrado isolado em determinado compartimento da clínica, tendo sido alegado que a
justificativa para isto se devia a ter sido ele identificado como portador de doença
contagiosa.
a) Existe delito a ser identificado? Em caso afirmativo, qual?
b) Caso não houvesse o problema do pagamento da conta de internação e a não-
liberação de TÍCIO se devesse a expediente desenvolvido por um dos seus
familiares com a direção da clínica, haveria diferença para efeito de eventual
tipificação penal?
c) O fato de a ausência de liberação do internado ter se verificado por poucos
minutos, caracterizaria a tentativa ou a consumação do ilícito?
d) A justificativa apresentada para a não liberação do interno, após a chegada da
polícia, se verdadeira, seria relevante?

Resposta à Questão 1

a) Há o crime de sequestro qualificado, do artigo 148, § 1°, II, do CP. Contudo,


poder-se-ia entender que há exercício arbitrário das próprias razões, do artigo
345 do CP, eis que a pretensão é devida. Esta segunda corrente, porém, mesmo
que majoritariamente, esbarra na necessidade de que o agente se substitua ao
Estado, fazendo a chamada “justiça com as próprias mãos”, o que não pareceria
ser exatamente o caso.
b) Não, se se considerar que o crime é o de sequestro qualificado. Se se entender
tratar-se do artigo 345 do CP, aí então incidiria este crime em concurso com o
mencionado sequestro qualificado, do artigo 148, § 1°, II, do CP.
c) A restrição da liberdade deve se dar por período juridicamente relevante.
“Poucos minutos”, portanto, é período que provavelmente configura tentativa.
d) Sim: haveria a justa causa a ensejar a conduta, ou então o estado de necessidade
em se manter a liberdade restrita, a fim de não gerar perigo a terceiros.

Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 164


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JOÃO foi preso em flagrante porque, em razão de uma notícia veiculada através do
disque-denúncia, mantinha em sua casa objetos que eram produto de roubos praticados
por uma quadrilha especializada na prática de crimes patrimoniais. Levado para a
delegacia e autuado em flagrante delito, foi ele encaminhado à carceragem e colocado
numa cela onde já se encontrava um antigo desafeto, de nome PEDRO. PEDRO,
aproveitando-se de sua influência sobre os demais detentos, querendo vingar-se de JOÃO,
determina que ele seja amarrado a uma das grades por tempo indeterminado. Duas horas
depois, o carcereiro percebeu o que estava acontecendo e nada fez, por entender que seria
melhor não intrometer-se nas questões pessoais entre os aprisionados.
a) Analise a situação, especificando se houve cometimento de algum crime por
parte dos detentos;
b) Igualmente examine o comportamento do carcereiro e explique se ele praticou
algum delito.
c) A situação se alteraria, se PEDRO e os demais presos, considerando ser JOÃO
inimigo do primeiro, submetessem João a grave sofrimento físico ou mental? Neste
caso, como ficaria a situação do carcereiro?

Resposta à Questão 2

a) A restrição da já pequena parcela de liberdade configura o crime de cárcere


privado.
b) Como o agente é autoridade garantidora, responde pelo artigo 3°, “a”, da Lei
4.898/65 – abuso de autoridade – combinado com o artigo 13, § 2°, “a”, do CP.
c) O crime dos presos seria de tortura ou lesões, a depender do tipo de dolo e
sofrimento infligido. O carcereiro, garantidor, terá o mesmo resultado a si
imputado, pela não evitação, se possível.

Questão 3

MARIA, casada com CORNÉLIO, na ausência do marido, constantemente recebe


na residência do casal seu amante RICARDO. Em certa ocasião, ao chegar mais cedo do
trabalho, CORNÉLIO encontra sua esposa assustada na sala, vindo, posteriormente, a
ouvir um barulho de porta fechando em seu quarto, para lá se dirigindo, acabando por
encontrar RICARDO escondido no banheiro da suíte, prontamente o expulsando de sua
residência, mas não sendo atendido, uma vez que RICARDO afirmava que somente dali
sairia na companhia de MARIA. A polícia foi chamada e RICARDO acabou retirado do
local. Pergunta-se:
a) A conduta de RICARDO de não atender à ordem de CORNÉLIO de se retirar de
sua residência tipifica algum crime?
b) Da mesma forma, a conduta de RICARDO de ter entrado na residência sem o
consentimento do marido tipifica algum crime?
c) Caso os amantes estivessem em um quarto de motel, o ingresso do marido, sem a
autorização do casal, tipificaria alguma infração?
d) O consentimento da vítima exclui a tipicidade ou a ilicitude?

Michell Nunes Midlej Maron 165


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Resposta à Questão 3

a) Está permanecendo contra a vontade de quem é de direito, e ainda que haja


empate entre os titulares, no regime de igualdade, que aqui vige, prevalece a
vontade de quem proíbe a permanência. Há a violação de domicílio, portanto.
b) Se Maria era a única presente, e por isso sua permissão era suficiente para
desnaturar crime na entrada. Contudo, há quem defenda que,, nesta
circunstância, o amante sabe da negativa de entrada pelo marido, havendo um
dissenso presumido de que tem ciência – configurando o crime, portanto.
c) Sim: o quarto de motel é domicílio, e por isso tem a mesma proteção de uma
casa. Naquele momento, os amantes estão em regime de igualdade sobre aquele
domicílio, e a negativa de entrada por qualquer deles é suficiente para fazer com
que o marido incida em violação de domicílio.
d) Exclui a tipicidade, pois é elemento do tipo a negativa de permissão.

Michell Nunes Midlej Maron 166


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Tema XIII

Furto I.1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Conceito de patrimônio;b) Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva do furto simples;c) O furto agravado;d) O furto
privilegiado;e) O furto de energia. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula26

1. Furto

A tutela do patrimônio envolve tudo que o compõe, induvidosamente a propriedade


e a posse. Bitencourt e Luiz Régis Prado defendem que se tutela também a detenção, mas
Hungria, Nucci e Greco entendem que não. Isto porque o detentor não é vítima do furto,
mas sim o proprietário ou possuidor da coisa detida. Afinal, a tutela é do patrimônio, e o
detentor jamais tem a res furtiva em seu patrimônio – é apenas um servo da posse. É
realmente mais coerente esta segunda corrente, pois se se entender que o detentor é vítima,
aquele dono do lava-jato, que guarda o carro enquanto o lava, será vítima do furto, e não o
dono do carro, o que é de clara incorreção.
O artigo 155 inaugura os crimes contra o patrimônio na parte especial do CP:

“Furto
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou
aplicar somente a pena de multa.
§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha
valor econômico.
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III - com emprego de chave falsa;
IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.
§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo
automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)”

1.1. Verbo nuclear

A grande nota característica do furto, aquilo que o isola com bastante peculiaridade
dos demais crimes de ordem patrimonial, está no verbo “subtrair”. Subtrair é pegar, sacar,
26
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 27/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 167


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

tirar. Neste crime, a vítima nada faz, em princípio: é o agente que vai até seu patrimônio e
de lá retira o bem.
Disso se conclui, por exemplo, que quando o bem é entregue ao sujeito ativo pela
vítima, não há subtração, e não há furto, em regra. É por isso que o guardador de carros que
recebe o veículo do seu dono, e foge com o carro, não comete furto – não há subtração. Por
isso, poderá se configurar uma série de outros delitos, que ainda serão estudados, como a
apropriação indébita, o estelionato, mas furto não houve.
Ocorre que esta regra da subtração é de uma nuance por vezes muito frágil. A
doutrina registra alguns exemplos em que esta subtração pode não ocorrer, ao menos da
forma direta como se a entende. É o caso, por exemplo, da detenção vigiada, que traz para
o furto uma conduta que seria, se desvigiada, apropriação indébita. Vejamos.
O artigo 168 do CP traz o crime de apropriação indébita:

“Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
(...)”

Neste crime, o agente ativo tem a coisa de outrem consigo por uma relação qualquer
de confiança, e se aproveita desta posse ou detenção surgida licitamente para ficar com a
coisa, negando-se a restituí-la. A posse ou detenção, aqui, é desvigiada, ou seja, o dono da
coisa confia-a ao criminoso sem plantar guarda sobre a detenção que este agora exerce. É,
em síntese, o empréstimo em confiança, por assim dizer.
Quando a posse ou detenção é dada ao agente, mas o dono guarda vigilância sobre o
detentor – a chamada detenção vigiada –, não se preenche o tipo da apropriação indébita,
quando o bem não lhe é entregue: há furto. Entenda-se com um exemplo: se o dono do
veículo leva-o à oficina, e lá o deixa desvigiado, voltando para casa, há clara apropriação
indébita se o mecânico desaparece com o veículo. Se, contudo, o dono do carro leva-o à
oficina, entrega o carro ao mecânico, e permanece lá aguardando o fim do serviço, se o
mecânico desaparecer com o carro, há furto: mesmo não tendo havido, criteriosamente, a
subtração das mãos do dono, houve a subtração do bem à sua vigilância, pois estava
presente a detenção vigiada pelo dono, configurando furto. A subtração do bem por meio da
burla à vigilância do dono da coisa, pelo detentor vigiado, é furto, e não apropriação
indébita, mesmo que o bem tenha sido entregue ao detentor – há subtração do bem, e não
apropriação indébita.
Outra situação similar é a do test-drive: quando o veículo é entregue ao suposto
comprador para proceder ao teste, e este desaparece com o carro, há furto, porque o
vendedor manteve a vigilância sobre o bem entregue – há detenção vigiada, portanto.
Assim entendem Mirabete e Magalhães Noronha, além do STJ, mas seria de se cogitar se
não houve, de fato, estelionato, porque o agente se passou fraudulentamente por cliente
potencial para obter a entrega do veículo, mas prevalece a posição de que se trata, este caso,
de furto. Veja o REsp. 226.222:

“REsp 226222 / RJ. DJ 17/12/1999 p. 380.


DIREITOS CIVIL E PENAL. SEGURO DE AUTOMÓVEL. FURTO
QUALIFICADO. SEGURADO VÍTIMA DE TERCEIRO QUE, A PRETEXTO
DE TESTAR VEÍCULO POSTO A VENDA, SUBTRAI A COISA. DOUTRINA.
PRECEDENTE DO TRIBUNAL. INDENIZAÇÃO PREVISTA NA APÓLICE.

Michell Nunes Midlej Maron 168


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

PERDA TOTAL DO BEM. INDENIZAÇÃO. PAGAMENTO DO VALOR


AJUSTADO NO CONTRATO (APÓLICE). ORIENTAÇÃO DA SEGUNDA
SEÇÃO. RECURSO PROVIDO. JULGAMENTO DA CAUSA. ART. 257, RISTJ.
I - Segundo doutrina de escol, a fraude, no furto, "é o emprego de meios ardilosos
ou insidiosos para burlar a vigilância do lesado. Não se identifica com a fraude
característica do estelionato, isto é, com a fraude destinada, não a iludir a vigilante
oposição do proprietário, mas a captar-lhe o consentimento, viciado pelo erro a que
é induzido".
II - Para fins de pagamento de seguro, ocorre furto mediante fraude, e não
estelionato, o agente que, a pretexto de testar veículo posto à venda, subtrai o
veículo. Neste sentido, aliás, precedente deste Tribunal (HC 8.179-GO, DJ de
17.5.99).
III - Sendo o segurado vítima de furto, é devido o pagamento da indenização pela
perda do veículo, nos termos previstos na apólice.
III - Nos termos da jurisprudência que veio a consolidar-se na Segunda Seção,
tratando-se de perda total do veículo, a indenização a ser paga pela seguradora
deve tomar como base a quantia corrigida ajustada na apólice (art. 1.462, CC),
sobre a qual cobrado o prêmio.”

Outra situação peculiar, que a doutrina reputa como furto, mesmo que a subtração
não esteja evidente, é o da incapacidade total de resistência da vítima. Veja: se o agente
induz uma criança pequena, sem qualquer discernimento, ou um deficiente mental, também
sem discernimento, a entregar-lhe alguma coisa pelo emprego de algum ardil, não há
estelionato: há furto.
Isto porque para que haja estelionato, é preciso que o golpe seja capaz de enganar
pessoa que tenha capacidade de resistência psicológica a ardis, e os incapazes não podem
efetuar esta entrega viciada: não há a burla à resistência psicológica, porque esta
simplesmente inexiste. Há a subtração indireta, portanto. Veja o tipo do estelionato, pelo
ensejo:

“Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
(...)”

O hacker que invade eletronicamente a conta bancária de alguém, de lá retirando


valores, nada mais é do que um furtador: está subtraindo bens alheios, ainda que de forma
virtual.
O falso guardador de carros, quando desaparece com o veículo, provavelmente está
cometendo estelionato, e não furto. Neste caso, há de fato a criação de um ardil prévio para
levar o proprietário do veículo a entregar seu bem ao estelionatário, o que define o dolo do
estelionato, e não do furto – e simplesmente não há subtração, há entrega do bem.
O agente que se vale da boa-fé da vítima para obter seu cartão e senha bancária – o
bandido que se presta, no caixa eletrônico, a ajudar a vítima, ficando astuciosamente com
seu cartão e senha – está cometendo furto, e não estelionato. Realmente, ao assim proceder,
parece que há a definição de estelionato – age, o meliante, através de uma situação ardilosa
–, mas a obtenção dos bens se dá por meio de uma subtração: após conseguir cartão e
senha, o bandido subtrai o dinheiro da conta bancária, enquanto no estelionato este dinheiro

Michell Nunes Midlej Maron 169


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ser-lhe-ia entregue pela vítima. Há furto, portanto, tendo a vítima sido induzida em erro,
mas não disponibilizado voluntariamente seu patrimônio ao bandido.
Qual a definição jurídica do furto de um bem em poder do furtador? Suponha-se que
alguém furte um veículo; em seguida, um terceiro vem e furta o mesmo veículo, que estava
em poder do primeiro furtador. Esta dinâmica consiste em dois furtos do mesmo bem,
contra a mesma vítima – o proprietário original. Veja que o primeiro furtador, ao ter o bem
de si subtraído, não foi furtado, ele próprio: ele nunca teve direitos patrimoniais sobre o
bem. Por isso, quem furta o bem que o furtador havia subtraído nada mais faz do que furtar,
ele próprio, o mesmo bem da vítima original – há dois crimes apartados, apenas
coincidindo a vítima.
Questão importantíssima é a que se refere ao arrebatamento com lesão. Quando o
furtador impõe violência contra a coisa, mas acaba causando, com isso, lesão à vítima, qual
a definição do delito? Suponha-se que um bandido queira levar o cordão de ouro que está
no pescoço da vítima. Ao executar a subtração, puxa-lhe o cordão com certa violência,
causando pequena escoriação no pescoço. O STJ tem decidido que esta situação se trata de
roubo, e não de mero furto: a violência é dirigida contra a coisa, mas se a vítima é atingida,
há roubo, e não furto. Veja o REsp. 6.436:

“REsp 6436 / SP. DJ 17/12/1990 p. 15390.


PENAL. ROUBO. ARREBATAMENTO DE JOIAS PRESAS AO CORPO DA
VITIMA, ACARRETANDO LESÕES CORPORAIS. ACORDÃO QUE,
CONFIRMANDO SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU, MANTEM
DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME PARA FURTO QUALIFICADO (ART. 155,
PAR-4, IV). CARACTERIZAÇÃO, CONTUDO, DO ROUBO PROPRIO, JA
QUE AS LESÕES, NO CASO, FORAM A CONDITIO SINE QUA NON DA
CONSUMAÇÃO DA SUBTRAÇÃO. PROVIMENTO AO RECURSO
ESPECIAL DO MINISTERIO PUBLICO PARA CONDENAÇÃO POR ROUBO,
NOS TERMOS DA DENUNCIA.”

Há quem entenda, porém, que para haver roubo é necessário que a violência seja
dirigida contra a pessoa, diretamente, e não atingindo-a como mero colateral da execução
da subtração, pois do contrário seria furto. Quando a lesão é fundamental para a obtenção
do bem – o ladrão que quer o brinco da vítima sabe que terá que rasgar sua orelha –, é claro
que o roubo se configura, pois não se pode entender que esta lesão seja mero colateral do
furto.
Outro exemplo: quando o ladrão, para tomar a bolsa da vítima, tem que puxá-la,
derrubando e ferindo a vítima, está claro o roubo, porque a violência se dirige diretamente à
pessoa. Se, porém, a lesão for superficial e praticamente acidental – ao puxar a bolsa, que
estava folgada nos ombros, o ladrão causa leves escoriações na vítima –, seria mais
razoável entender que há mero furto, pois a ação violenta foi dirigida à coisa, apenas
resvalando, acidentalmente, sobre a vítima. O STJ, ressalte-se, não faz esta diferença: para
esta Corte, se há arrebatamento violento, de qualquer forma, há roubo.
O esbarrão, a trombada, pode configurar uma ou outra situação. Se o encontrão do
meliante com a vítima serve apenas como método de distração desta, a fim de que o agente
ativo possa subtrair um bem desta, quando causada a confusão, há furto: a trombada é mero
ato de destreza na execução da subtração, levando a vítima a quebrar sua atenção e
vigilância. Outrossim, quando o bandido se choca com a vítima violentamente, até mesmo

Michell Nunes Midlej Maron 170


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

para derrubar a vítima, e com isso captar-lhe os bens, não se fala mais em destreza na
quebra da vigilância: se fala em violência, e com isso se configura o roubo.

1.2. Especial fim de agir

Além do verbo nuclear do tipo do furto, a subtração, outra nota distintiva deste
delito reside no especial fim de agir constante de sua redação, o que para Zaffaroni é o
elemento subjetivo do tipo distinto do dolo, além do dolo: o animus rem sibi habendi,
presente na expressão “para si ou para outrem”. O furto é um dos tipos denominados delitos
de intenção, que têm esta especial finalidade de agir expressa em seu teor.
Veja: o tipo do furto é daqueles que a doutrina chama de tipos penais incongruentes,
justamente por esta presença de um “dolo adicional”, por assim dizer. O dolo do furto é o
de realizar a ação descrita no tipo, a subtração de coisa alheia móvel. Este é o dolo
ordinário, por assim dizer, de quem pratica o furto. O tipo objetivo, a subtração de coisa
alheia móvel, está preenchida quando o agente pratica esta conduta com este dolo. Até aí,
há congruência entre o tipo objetivo e o subjetivo.
Ocorre que o legislador fez constar no tipo mais do que este dolo, para configurar o
delito: fez presente também um elemento subjetivo adicional, um dolo adicional,
consistente na finalidade de haver o bem para si ou para outrem, e somente assim
configurando o delito. O furtador tem que agir com “dois dolos”, por assim dizer: tem que
ter a intenção de subtrair coisa alheia móvel, e fazer esta coisa incorporar-se ao seu
patrimônio ou o de outrem.
É por isso que se diz incongruente, este tipo: há um elemento objetivo, apenas –
subtrair coisa alheia móvel –, mas há dois elementos subjetivos: o dolo de subtrair e o dolo
de haver a coisa em patrimônio diverso do seu titular.
Por conta disso, se o agente preenche um dos elementos subjetivos, mas não
preenche o outro, o crime não se delineia. É o caso em que o agente subtrai
intencionalmente coisa alheia móvel, mas não pretende com isso fazê-la integrada ao seu
patrimônio ou o de outrem, que não o titular original. Por exemplo, quando o agente subtrai
um bem com o ânimo de destruí-lo: preenchido está o dolo de subtração, mas não o de
haver a coisa em patrimônio próprio ou de terceiros – há o crime de dano. Diferentemente
ocorreria se, com o dolo de haver a coisa para si, o agente a destrói: o agente comporta-se
como dono, furtando a coisa para si. A destruição posterior, por qualquer motivo que seja,
não desnatura seu dolo de apoderar-se da coisa; ao contrário, revela que se achava
realmente dono desta, podendo dela fazer o que bem entender, inclusive destruí-la.
A falta deste ânimo de apoderamento definitivo da coisa, para si ou para outrem, é
que desnatura a tipicidade do furto de uso: é atípica a conduta daquele que subtrai coisa
alheia móvel dolosamente, mas com o ânimo de restituí-la tal como tomada, exatamente
como subtraída. É fundamental, porém, para que se configure com precisão a ausência do
animus rem sibi habendi, tornando atípica a conduta do furto de uso, que se preencham
alguns requisitos. Senão vejamos.
Primeiro requisito é que o bem tem que ser infungível, particularizável, pois do
contrário haverá a transmissão deste ao patrimônio do agente, e retorno posterior ao

Michell Nunes Midlej Maron 171


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

patrimônio do subtraído. Entenda: se o agente subtrai dinheiro, por exemplo, e o gasta, para
depois restituir a quantia exata ao proprietário, não se pode falar em furto de uso. O bem, o
dinheiro, incorporou-se ao patrimônio do furtador, pelo tempo em que ali ficou, e depois
retornou ao proprietário original. O dinheiro não foi usado, no teor criterioso da palavra: foi
consumido e depois substituído27. Houve, nesta transferência de patrimônio temporária, a
finalidade de haver o bem para si, mesmo que pro um determinado período.
Segundo requisito, que já se pôde vislumbrar, é que o uso seja momentâneo. O
período do uso não pode perturbar de forma significativa a posse da vítima, o que é uma
equação extremamente casuística. Nucci traça um critério para a definição do que se
enquadre neste aspecto da momentaneidade: só é assim considerado o furto no qual a
restituição ocorreu antes da vítima perceber que havia perdido a coisa.
Este critério não é muito técnico, sendo preferível a verificação de prejuízo ou não à
vítima. Veja: o uso de um carro por um dia pode não perturbar relevantemente a
disponibilidade deste bem por um proprietário – particular que tem dois ou três carros –,
mas pode perturbar outro, para quem um dia é fundamental – um taxista, por exemplo. A
questão é de bom senso.
Último requisito para configurar o ânimo de uso, e não de apoderamento pelo
sujeito ativo e extrusão patrimonial da vítima, é a restituição da coisa íntegra. O agente que
destrói a coisa, ou a desgasta, age como se dela fosse dono, o que desnatura o ânimo de
mero uso. O agente que subtrai a coisa e depois a abandona, igualmente está se
comportando como se dono fosse, e por isso não se fala em furto de uso – há furto. É de se
considerar com razoabilidade este requisito, porém, eis que no campo da existência física,
tudo se altera a todo instante, e por isso a restituição de uma coisa jamais poderá ser feita da
exata forma em que esta foi subtraída. O furto de um carro para dar uma volta no
quarteirão, por exemplo: ao restituir o bem, mesmo que se reponha a mínima gasolina e
óleo consumidos, as peças sofreram um mínimo desgaste, o que, em se levando este
requisito ao pé-da-letra, desnaturaria o uso, fazendo ocorrer furto. É claro que assim não
ocorre: o mínimo desgaste da coisa não consubstancia o furto.
Outrossim, se o agente furta o carro com o tanque cheio, e o restitui com o tanque
vazio, está claro que não houve furto do carro – quanto a este, houve mero ânimo de uso –,
mas não se pode deixar de observar que houve o furto da gasolina: este bem, fungível, foi
consumido e não retornado ao proprietário.
Um exemplo discutido na doutrina é o de uma empregada doméstica que, para ir a
uma festa, subtrai jóia de sua patroa. Usa-a na festa, mas, no caminho de volta, é roubada,
não conseguindo restituir o bem à proprietária. Para a doutrina maior, careceu a situação,
aqui, do terceiro requisito, o que fez configurar-se o furto, especialmente porque a agente
colocou a coisa em risco, o que de certa forma indica que se apoderou da coisa como se
dona fosse. A crítica que se pode fazer a este entendimento é a de que a empregada, na
verdade, jamais teve dolo de apoderar-se da coisa, e ao se imputá-la por este dolo, se estaria
criando responsabilização por um dolo especial que ela nunca teve – o que enuncia, de certa
forma, responsabilização penal objetiva. Diferentemente ocorreria se ela abandonasse a
coisa: este ato de disponibilidade revela ânimo de dono. Prevalece, porém, o primeiro
entendimento.
27
Exemplo simplório, mas que serve bem para ilustrar o alcance do uso, especialmente no que tange ao
dinheiro, é o seguinte: se o dinheiro furtado foi uma moeda, e esta foi usada para fixar um parafuso, servindo
como chave de fenda, para após ser devolvida ao proprietário, é caso de furto de uso do dinheiro. Não houve
consumo do dinheiro, e sim verdadeiro uso do bem físico. Este é o sentido do uso, aqui.

Michell Nunes Midlej Maron 172


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.3. Coisa alheia móvel

Todo e qualquer bem móvel corpóreo pode ser objeto de furto. O bem incorpóreo é
também alvo de proteção penal, enquadrando-se nos crimes do Título III da parte especial
do CP, que trata dos crimes contra a propriedade imaterial. O direito corporificado em um
título, porém, pode representar furto, quando o que for subtraído for o título.
Assim o é pois o bem só pode ser alvo de furto se for fisicamente apreensível: não é
possível se falar em subtração, atividade física, quando o bem não for igualmente físico.
Objetos ilícitos não são tutelados pelo direito, e por isso não se pode falar em furto
de um bem criminoso, como o furto de entorpecentes, por exemplo.
Os semoventes são coisas móveis, e por isso são claramente passíveis de furto. Há
até nomenclatura própria para o furto de semoventes, quando se trata de gado: chama-o de
furto abigeato.
Tudo que assim se configurar, e tiver valor economicamente apreciável, é passível
de subtração. Gás, por exemplo, é material apto a ser furtado, eis que tem natureza
comercial.
O cadáver pode ou não ser objeto de furto: aquele que é pertencente a alguma
instituição de estudo, por exemplo, é passível de furto. O cadáver de pessoa afetado aos
seus familiares, porém, não é economicamente apreciável, e não pode ser objeto de furto (o
que não significa que não tenha proteção, pois o CP dedica todo um capítulo aos crimes
contra o respeito aos mortos). Recentemente, houve exposição artística em que as obras
eram feitas de partes de corpos humanos: cada “obra” destas é coisa alheia móvel, passível
de furto.
Os bens que foram enterrados com o cadáver – alianças, roupas, dentes de ouro –, se
subtraídos, não configuram furto. Isto porque aqueles bens não estão mais integrando o
patrimônio de ninguém, não sendo mais preenchida a elementar “coisa alheia”. Há crimes
do capítulo mencionado – violação de sepultura, vilipêndio a cadáver – mas não há furto.
Veja que se poderia entender que os bens integravam o patrimônio dos herdeiros, mas ao
enterrá-los com o cadáver, os herdeiros os abandonaram, tornando-se tais bens res
derelicta.
Como o crime é contra o patrimônio, a coisa tem que ter valor economicamente
apreciável. A falta de valor desnatura o crime. Veja que não se está falando em valor
irrisório, que leva à aplicação da teoria da insignificância; se está falando em ausência de
valor, o que desconfigura a necessidade de proteção do direito penal sobre o bem. Um
clipe, um copo plástico descartável, um lápis usado, tudo isso não tem valor econômico
relevante algum, e por isso não há o crime – não há ataque ao patrimônio.
É diferente o enfoque quando se está falando do bem que não tem valor econômico,
mas tem valor afetivo. Estes bens integram o patrimônio do proprietário, e por isso, mesmo
que não sejam economicamente avaliáveis, pode-se falar em crime contra o patrimônio.
Coisas que não têm valor econômico ou afetivo, mas que representam grande
utilidade para a vítima, podem ser objeto de furto? Como exemplo, os cartões de crédito, os
talões de cheque, etc. O STJ entende que estes bens não têm valor econômico, e por isso a
sua subtração não configura furto. Veja o REsp. 256.160:

Michell Nunes Midlej Maron 173


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“REsp 256160 / DF. DJ 15/04/2002 p. 268


RECURSO ESPECIAL. RECEPTAÇÃO. TALONÁRIO DE CHEQUES E
CARTÃO DE CREDITO. VALOR ECONÔMICO. INEXISTÊNCIA.
VIOLAÇÃO AO ART. 384 DO CPP. NÃO OCORRÊNCIA. DISSÍDIO
JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO.
1. A divergência jurisprudencial não resta demonstrada, pois o acórdão paradigma
refere-se ao crime de furto, enquanto o recorrido trata de receptação.
2. Não há falar em violação ao art. 384 do CPP, porquanto o acórdão está em
harmonia com o entendimento jurisprudencial dominante, a teor do disposto na
súmula 453 do Supremo Tribunal Federal.
3. Talonário de cheques e cartão de crédito não podem ser objeto de receptação,
por não possuírem, em si, o valor econômico indispensável à caracterização de
crime contra o patrimônio. Precedente.
4. Recurso não conhecido.”

O STF, porém, tem precedente antigo em sentido oposto (RE 100.106), datado de
1984, cuja ementa não é sequer acessível, em que defende que estes bens têm, sim, valor
apreciável. Diz o STF que, em razão da utilidade do bem na gestão do patrimônio, o
talonário de cheques é passível de furto. Veja que há decisões em tribunais estaduais que
reputam que o talonário tem valor, não porque é útil na gestão patrimonial, mas sim porque
é um bem cobrado pelo banco, tarifado por esta instituição financeira, representando
prejuízo a sua subtração. Prevalece, porém, a tese de que não há crime: é um mero bloco de
papel sem valor (podendo no máximo se configurar ato preparatório para outro crime, como
o estelionato).
O cheque assinado, estando com o valor preenchido ou não, é considerado res
passível de furto. Como dito, é um título que representa um valor, e por isso é
economicamente apreciável. Veja o HC 110.587:

“HC 110587 / DF. DJe 02/02/2009.


PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO
QUALIFICADO PELO ABUSO DE CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE CRIME IMPOSSÍVEL. IMPROPRIEDADE
ABSOLUTA DO OBJETO NÃO VERIFICADA. CÁRTULA DE CHEQUE
ASSINADA MAS NÃO PREENCHIDA. TÍTULO AO PORTADOR. VALOR
ECONÔMICO INTRÍNSECO.
I - A cártula de cheque assinada, ainda que não preenchida, pode ser objeto de
crime contra o patrimônio, eis que nessas condições, diferente do cheque
totalmente em branco, assume feição de título ao portador, dotado assim de valor
econômico intrínseco.
II - A caraterização de crime impossível, por absoluta impropriedade do objeto,
requer, nos delitos patrimoniais, que a res seja completamente destituída de valor
econômico, situação, por sua vez, não verificada na hipótese.
Ordem denegada.”

Documentos sem valor intrínseco não são tutelados no tipo do furto: a subtração de
documentos enquadra-se no artigo 305 do CP:

“Supressão de documento
Art. 305 - Destruir, suprimir ou ocultar, em benefício próprio ou de outrem, ou em
prejuízo alheio, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia
dispor:

Michell Nunes Midlej Maron 174


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, se o documento é público, e reclusão,


de um a cinco anos, e multa, se o documento é particular.”

Imagine-se, agora, a seguinte situação: locador de imóvel, imotivadamente, vai até o


bem e de lá retira uma benfeitoria qualquer, de sua propriedade, mas que a ele é integrada
desde sempre – uma bomba d’água, por exemplo. Esta situação não pode ser configurada
como furto – não há coisa alheia, pois o bem é próprio. Há, porém, o crime do artigo 346
do CP:

“Art. 346 - Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em
poder de terceiro por determinação judicial ou convenção:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”

E se o locador tomar esta atitude porque o locatário está inadimplente em sua


obrigação de pagar os aluguéis, o crime é o do artigo 345 do CP, pois há uma razão a
motivá-lo na autotutela.

“Exercício arbitrário das próprias razões


Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora
legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente
à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante
queixa.”

Sob a tutela do artigo 346 do CP, supra, se encontra também, por exemplo, o bem
empenhado, dado em penhor contratual, que é subtraído pelo proprietário.
Coisas que não têm dono, as chamadas res nullius, não podem ser alvo de furto: não
há subtração, porque esta coisa não integra o patrimônio de ninguém. O mesmo se dá com a
res derelicta, já mencionada, porque mesmo que outrora integrasse um patrimônio, foi
abandonada pelo seu ex-titular, podendo ser apoderada por quem quer que seja, sem que
haja crime. Diferentemente ocorre com a res disperdita, que é a coisa perdida: esta tem
dono, mas não está em seu poder; sua apropriação, portanto, é crime, mas não há subtração,
não havendo furto, porque o dono não a tem em sua esfera de vigilância. O crime, então, é
de apropriação indébita, do artigo 169 do CP:

“Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza


Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso
fortuito ou força da natureza:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Na mesma pena incorre:
Apropriação de tesouro
I - quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da
quota a que tem direito o proprietário do prédio;
Apropriação de coisa achada
II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente,
deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade
competente, dentro no prazo de 15 (quinze) dias.”

Michell Nunes Midlej Maron 175


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.4. Consumação e tentativa

O furto é claramente plurissubsistente, admitindo tentativa. Há duas teorias bem


definidas na doutrina para identificar, portanto, quando é que o furto restou tentado, e
quando já se pode entendê-lo consumado: a teoria da amotio e a teoria da ablatio. Há, na
verdade, outras teorias, mas que têm melhor análise no crime de roubo, e lá serão
explicitadas.
Pela teoria da amotio, o crime se consuma no momento em que ocorre a subtração
do bem. Removida a coisa da disponibilidade da pessoa, está consumado o crime. Na
ablatio, além da remoção da coisa do poder da vítima, é necessário, para a consumação,
que o agente mantenha a posse pacífica ao menos por um curto período de tempo. A teoria
da ablatio é a majoritariamente adotada, mas a jurisprudência das Cortes Superiores tem
adotado a teoria da amotio: STF e STJ têm entendido que a simples subtração da coisa é
suficiente para a consumação.
Parece mais coerente a teoria da ablatio, contudo, especialmente se se considerar a
posse em seu conceito técnico: o agente que subtrai a coisa, mas não consegue manter
qualquer poder de disposição ou uso, por estar em fuga, não tem efetivamente a posse da
coisa. É preciso que haja uma certa tranqüilidade para dispor da coisa, para se configurar a
posse. Todavia, como dito, tem prevalecido na jurisprudência a amotio, mesmo que a
doutrina maior pugne pela ablatio.
De uma ou de outra forma, a coisa deve ter sido retirada da esfera de
disponibilidade da vítima. Este fator é comum a ambas as teorias. O que varia, como visto,
é a necessidade ou não da posse tranqüila pelo furtador.
Veja que a esfera de disponibilidade da vítima pode ter sido afastada sem que sequer
a coisa tenha saído de seu alcance físico: pode o furtador subtrair a coisa e escondê-la em
local absolutamente próximo à vítima, mas por esta desconhecido, para posteriormente
levá-la consigo: a consumação se deu quando escondeu, e não quando levou efetivamente
embora, porque desde então a vítima não mais dispunha da coisa.
Há um caso concreto clássico, que narra a seguinte dinâmica: agentes adentram
fazenda e, com o intuito de haver para si uma vaca, matam-na, esquartejam-na e colocam-
na na caçamba de um carro utilitário. Antes de conseguir sair da fazenda, porém, o
proprietário aparece, e frustra a sua saída, fugindo os agentes sem a coisa que objetivavam.
Como se capitula este delito?
Trata-se de furto consumado, para isto bastando que tenha havido perda total ou
parcial da coisa. Veja: não restou tentado, apesar de os furtadores não terem conseguido
obter benefício do ato criminoso, pois aqui se deve olhar para o prejuízo da vítima. O dolo
dos agentes era de subtração para si (afastando qualquer possibilidade de configuração do
crime de dano), e a destruição fez consumado este intento, na medida em que a vítima não
mais disporá do bem como dantes o dispunha.
É o mesmo caso do agente que subtrai uma carteira da vítima, e, na fuga, vendo que
ia ser pego e a fim de evitar o flagrante, como entende a cultura leiga, atira a coisa num
bueiro, vindo esta a se perder: o crime é consumado, qualquer que seja o ponto de vista,
pois não é porque o meliante não conseguiu obter os benefícios do crime que o prejuizo da

Michell Nunes Midlej Maron 176


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

vítima deve ser desconsiderado. Há consumação quando a vítima não mais dispõe do bem,
mesmo que o agente ativo também não tenha o indevido proveito.

1.5. Furto agravado pelo repouso noturno

Diz o § 1° do artigo 155 do CP que a pena se aumenta de um terço quando o crime é


cometido durante o repouso noturno. A tese majoritária, sobre esta circunstância, entende
que basta que o fator noite gere uma maior vulnerabilidade para o bem jurídico – o que já
se comentou quando da análise da violação de domicílio cometida durante o repouso
noturno. Trata-se do critério psico-sociológico, adotado em detrimento da mera constatação
físico-astronômica do período noturno.
Há, porém, uma segunda corrente, minoritariíssima, defendida isoladamente por
Álvaro Mayrink, que entende que como o dispositivo fala em “repouso” noturno, é
necessário, para se configurar esta causa de aumento de pena, que haja pessoas em estado
de repouso. Não merece acolhida, esta corrente, por ser claramente obtusa:
estabelecimentos comerciais, por exemplo, jamais seriam alvos deste ataque noturno.
A causa de aumento em questão só se aplica ao caput do artigo, por sua colocação
topográfica no tipo: a causa de aumento de pena só se aplica ao dispositivo acima dela. Esta
dinâmica só é mitigada para as causas de diminuição da pena, como ocorre, por exemplo,
no homicídio, em que um delito qualificado pelo § 2° pode ser também privilegiado pelo §
1°, como visto.

1.6. Furto de pequeno valor

O § 2º do artigo 155 do CP estabelece que se o criminoso é primário, e é de pequeno


valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la
de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
É primário aquele que não é reincidente. É de pequeno valor, para a doutrina e
jurisprudência tranqüilas, aquilo que não excede a um salário-mínimo.
Quando o réu for primário, e a coisa de pequeno valor, o juiz, na verdade, deve
adotar uma das benesses do dispositivo, e não apenas pode, como indica o texto legal. Sua
discricionariedade recai apenas na escolha de uma delas, o que fará com base na casuística,
atento ao artigo 59 do CP – podendo até mesmo cumular as benesses, se o réu for
merecedor.
Questão polêmica que se coloca é se este § 2°, um privilégio ao furtador, pode ser
combinado com as qualificadoras do § 4° do mesmo artigo 155 do CP. O posicionamento
mais recente, segundo ambas as Cortes Maiores, é que é possível esta combinação, se
compatibilizadas as previsões. Não é pacífico, porém. Vejamos.
A primeira corrente defende que basta a compatibilidade entre a qualificadora e o
privilégio em questão, tal como ocorre no homicídio. Nada impede, por exemplo que duas
pessoas, ambas primárias, furtem em concurso coisa de pequeno valor – aplicando-se tanto
a qualificadora do concurso quanto o privilégio do pequeno valor. Neste sentido, Damásio,
Bitencourt e Nucci, além do próprio STF, como se vê no HC 98.220:

“HC 98220 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


ELLEN GRACIE. Julgamento: 23/06/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação: 07-08-2009.

Michell Nunes Midlej Maron 177


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE FURTO. PRINCÍPIO DA


INSIGNIFICÂNCIA. QUESTÃO NÃO APRECIADA PELAS INSTÂNCIAS
INFERIORES. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO PELO STF.
APLICAÇÃO DO PRIVILÉGIO PREVISTO NO § 2º DO ART. 155 DO CP AO
FURTO QUALIFICADO. PRECEDENTES. WRIT CONHECIDO EM PARTE.
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. Inicialmente, verifico que a
alegação referente ao princípio da insignificância, sequer foi analisada pelas
instâncias inferiores. 2. Inviável, portanto, a análise deste pedido pelo Supremo
Tribunal Federal, sob pena de supressão de instância, em afronta às normas
constitucionais de competência. 3. Considero que o critério norteador deve ser o da
verificação da compatibilidade entre as qualificadoras (CP, art. 155, § 4°) e o
privilégio (CP, art. 155, § 2°). E, a esse respeito, no segmento do crime de furto,
não há incompatibilidade entre as regras constantes dos dois parágrafos referidos.
4. Levando em consideração a primariedade dos pacientes e o pequeno valor da
coisa furtada, entendo aplicável ao caso concreto a causa de diminuição prevista no
§ 2º do art. 155 do Código Penal. 5. Ante o exposto, conheço em parte do presente
habeas corpus e, na parte conhecida, concedo parcialmente a ordem, somente para
aplicar a causa de diminuição prevista no § 2º do art. 155 do Código Penal.”

A corrente contrária, de Luiz Régis Prado, Mirabete e Hungria, defende que não se
pode nunca aplicar o privilégio ao furto qualificado, sob dois argumentos: o primeiro,
frágil, é o topográfico, pois a qualificadora vem posterior ao privilégio. O segundo
argumento, porém, é bastante interessante: quando se qualifica e privilegia
concomitantemente um homicídio, por exemplo, se está sempre diante de análises de
reprovabilidade da conduta que indicam que o sujeito ativo agiu com mais reprovabilidade
por um lado, mas com menos por outro. Ou seja: se está diante da análise do nível de
desvalor da conduta, apenas. No furto qualificado, há incompatibilidade deste elemento
qualificador com o privilégio do pequeno valor porque nas qualificadoras se tem a análise
do desvalor da conduta, mas no priuvilégio, aqui, só se olha para o resultado – e o resultado
menos severo não influencia no desvalor da conduta mais reprovável, indicado pelas
qualificadoras. Daí a incompatibilidade.
Em síntese: o resultado menos lesivo não diminui a reprovabilidade da conduta. O
menor desvalor do resultado não diminui o desvalor da conduta. Este segundo argumento
conta até mesmo com um precedente do STJ, no REsp. 931.733:

“REsp 931733 / RS. DJ 01/10/2007 p. 365.


PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. CONSUMAÇÃO.
RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO DO ART. 155, § 2º, DO CP.
IMPOSSIBILIDADE.
I - O delito de furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor
da res subtraída, pouco importando que a posse seja ou não mansa e pacífica.
II - Para que o agente se torne possuidor, é prescindível que a res saia da esfera de
vigilância da vítima, bastando que cesse a clandestinidade. (Precedentes do STJ e
do c. Pretório Excelso).
III - "A jurisprudência do STF (cf. RE 102.490, 17.9.87, Moreira; HC 74.376, 1ª
T., Moreira, DJ 7.3.97; HC 89.653, 1ª T., 6.3.07, Levandowski, DJ 23.03.07),
dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da
chamada "esfera de vigilância da vítima" e se contenta com a verificação de que,
cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da "res
furtiva", ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata" (cf. HC
89958/SP, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 27/04/2007).

Michell Nunes Midlej Maron 178


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

IV - Ao furto qualificado não se aplica a minorante da forma privilegiada. O menor


desvalor de resultado, desde que não seja insignificante, carece de relevância
jurídica no sentido de afetar o desvalor da ação na figura típica do furto
qualificado. (Precedentes).
Recurso especial provido.”
1.6.1. Princípio da insignificância

Aqui cumpre tratar do famigerado princípio da insignificância, teoria da bagatela,


que tem sido realmente vulgarizado em nosso ordenamento, por verdadeiros erros em sua
concepção. Erro mais absurdo sobre este princípio era a objetivização de seu parâmetro:
considerar-se algo como insignificante de forma objetiva, ou seja, estabelecer um patamar
concreto fixo para o que se considera ínfimo, é discriminatório e atentatório ao que o
próprio princípio deseja. Dizer-se que um salário-mínimo é o limite da significância, como
chegam a dizer julgados e autores, é simplesmente discriminar de forma até fascista aqueles
que têm pouco patrimônio, pois estes nunca serão vítimas de furto – seus bens são
geralmente de valor menor do que o de um salário-mínimo. Adotar-se uma lógica objetiva,
aqui, é de tal forma absurdo, que inviabiliza o sistema penal de proteção à propriedade,
gerando verdadeira crise social em potencial.
O que se deve observar, a fim de se aplicar o princípio da insignificância, é a
reprovabilidade social da conduta, a necessidade de resposta penal, e a efetiva violação do
bem jurídico daquela pessoa vitimada. Neste último aspecto, é de se notar que se para uma
pessoa a subtração de cinquenta reais, por exemplo, é insignificante, para outra, que tem
parcos recursos, é altamente significativo – devendo ser considerado o crime quando esta
segunda pessoa, pobre, for vítima de furto deste valor.
Da mesma forma, a resposta penal pode se demonstrar necessária mesmo quando o
valor for realmente irrisório, ante a alta reprovabilidade da conduta. Como exemplo, se o
agente subtrai uma mala crendo nela haver cem mil reais, e quando preso verifica-se que lá
havia meros cem reais, a resposta penal ainda é devida, porque é clara a intenção de furtar
montante muito superior.
Pode ser que a sanção penal se faça necessária mesmo que a res furtiva seja de valor
irrisório, quando a sociedade local precisa de uma resposta ao crime, sendo demandado da
pena, em grau prevalente, o seu caráter preventivo. Veja um exemplo: em uma cidade
pequena, na qual há uma só loja de roupas, uma pessoa furta um par de meias que estava no
balcão de promoções, por um real e noventa centavos. O valor é objetivamente ínfimo, mas
se aquela conduta não for reprimida, se estará abrindo um precedente perigoso,
demonstrando aos membros daquela comunidade que não há problemas em se proceder
daquela forma – o que pode, em grau último, inviabilizar o comércio naquele lugar.
Diferentemente ocorreria se a loja fosse uma de uma infinidade, como ocorre no Rio de
Janeiro. Sobre este aspecto, Zaffaroni diz com precisão: a teoria da insignificância só pode
ser invocada quando sua aplicação não conduzir à ausência de tutela penal sobre os bens
jurídicos envolvidos. O patrimônio das pessoas não pode ser legado à própria sorte.

1.7. Furto de energia

Diz o § 3° do artigo 155 do CP que equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou


qualquer outra que tenha valor econômico. A primeira diferenciação que se deve fazer,
aqui, é quanto ao estelionato na obtenção de energia elétrica impaga. Veja: quando a

Michell Nunes Midlej Maron 179


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

concessionária de energia elétrica entrega a energia ao consumidor, e este engana a


fornecedora, fazendo-a crer que ele recebeu menos do que foi efetivamente entregue, há
estelionato, e não furto. Veja, neste sentido, o HC 67.829:

“HC 67829 / SP. DJ 10/09/2007 p. 260.


HABEAS CORPUS. APELAÇÃO. MATÉRIA NÃO SUSCITADA NO
TRIBUNAL A QUO. DEVOLUÇÃO INTEGRAL DO TEMA. INÉPCIA DA
DENÚNCIA. ADULTERAÇÃO NO QUADRO DE ENERGIA ELÉTRICA.
CRIME DE ESTELIONATO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E,
NESSA EXTENSÃO, CONCEDIDA.
1. Não há falar em supressão de instância quando o habeas corpus impugna decisão
proferida em recurso de apelação, cuja devolutividade do tema é integral.
Precedentes do STJ.
2. Não há falar em inépcia da denúncia por haver capitulação legal diversa, já que
o réu defende-se dos fatos a ele imputados e da norma legal.
3. Também não é inepta a denúncia que, narrando a conduta delituosa de modo a
permitir o exercício da ampla defesa, deixa de descrever de modo pormenorizado a
conduta de cada sócio.
4. Configura o delito de estelionato a adulteração no medidor de energia elétrica,
de modo a registrar menos consumo do que o real, fraudando a empresa
fornecedora.
5. O rito célere do habeas corpus não possibilita aprofundado exame do contexto-
fático probatório, competindo ao Tribunal de origem analisar se houve o
pagamento dos danos causados à vítima, de modo a possibilitar a aplicação do art.
16 do Código Penal.
6. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida para determinar ao
Tribunal de origem que redimensione a pena cominada ao paciente, como entender
de direito, e analise a possibilidade de ter ocorrido arrependimento posterior, de
acordo com o art. 16 do Código Penal.”

Mas há quem defenda que, neste caso, não há estelionato, e sim furto mediante
fraude. É a posição de Hungria, por exemplo. É corrente minoritária, diga-se.
O furto de energia ocorre quando se dá o chamado “gato”: trata-se da conduta ativa
do agente que, inserindo cabos ou qualquer outro meio de extração de energia da rede da
concessionária, de lá a extrais, sem por ela nada pagar.
A jurisprudência tem entendido que aqui se enquadra, como furto de energia, o
“gato” de TV . Veja o HC 17.867, do STJ:

“HC 17867 / SP. DJ 17/03/2003 p. 243.


CRIMINAL. HC. RECEPTAÇÃO DE SINAL DE TV A CABO. NET. LIGAÇÃO
CLANDESTINA. FURTO DE COISA ALHEIA MÓVEL. TRANCAMENTO DE
AÇÃO PENAL PELA ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUTORIA E
MATERIALIDADE DEMONSTRADAS, EM TESE. AUSÊNCIA DE JUSTA
CAUSA NÃO-EVIDENCIADA DE PLANO. IMPROPRIEDADE DO WRIT.
ORDEM DENEGADA.
I. Inexistência de imprecisão quanto aos fatos atribuídos aos pacientes,
devidamente amparados em elementos de prova – tanto que houve sua condenação
nas instâncias ordinárias, estando os autos em vias de serem remetidos para
apreciação de recurso perante o Tribunal a quo.
II. Denúncia imputando ao paciente a subtração, em tese, de coisa alheia móvel,
consistente em energia elétrica de sinal de áudio e vídeo da empresa "NET São
Paulo LTDA".

Michell Nunes Midlej Maron 180


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

III. Indícios apontando o uso irregular de sinas de TV a Cabo por um período de


cerca de 01 ano e 09 meses, sem o pagamento da taxa de assinatura ou as
mensalidades pelo uso, apesar da cientificação pela empresa vítima da
irregularidade da forma como recebiam o sinal, tendo sido refeita, inclusiva, a
ligação clandestina após a primeira desativação pela NET.
IV. A falta de justa causa para a ação penal só pode ser reconhecida quando, de
pronto, sem a necessidade de exame valorativo dos elementos dos autos,
evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a
acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.
V. O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de questões que
exijam o exame do conjunto fático-probatório tendo em vista a incabível dilação
que se faria necessária.
VI. Ordem denegada.”

Esta questão é polêmica, na medida em que a definição de “energia”, para alguns,


não comporta o sinal de TV a cabo, desnaturando o crime. Há quem diga, sob este
argumento, que o que se dá, no “gato” de TV, é a violação de direitos autorais, enquadrando
a conduta no artigo 164 do CP, pois há o consumo das obras ali veiculadas sem o devido
pagamento.

“Violação de direito autoral


Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei
nº 10.695, de 1º.7.2003)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Redação dada pela Lei
nº 10.695, de 1º.7.2003)
(...)”

O uso de sinal telefônico sem pagamento também seria furto de energia, mas pode-
se suscitar a mesma polêmica do furto de sinal de TV.
Uma outra questão envolvendo furto de energia é o furto de sêmen de animais
reprodutores: o legislador, no item 56 da Exposição de Motivos do CP, disse expressamente
tratar-se de furto da energia genética destes reprodutores. Na verdade, não seria preciso
esta equiparação, porque o sêmen é coisa alheia móvel ele próprio, é bem corpóreo, e por
isso seria furto, por natureza, de qualquer forma.

Michell Nunes Midlej Maron 181


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

MÉVIO, gerente de um restaurante situado no centro desta cidade, ao verificar que


um funcionário de uma empresa prestadora de serviços à Telemar fazia consertos num
aparelho de telefonia público, vulgarmente conhecido como "orelhão", solicitou que o
mesmo promovesse uma ligação, por extensão, com o interior de sua loja, de forma a que
pudesse utilizar o sinal próprio conectado em máquinas que processam autorização em
compras com cartão de crédito, sustentando para tanto que, como tais ligações são
vinculadas a prefixo 0800, e, portanto, gratuitas, não haveria prejuízo para aquela
concessionária de serviço público, nem tal iniciativa configuraria crime. A conexão foi
feita, tendo sido suscitado pela Telemar que tal procedimento causava prejuízo coletivo
pelo desvio de sinal, já tão concorrido no centro desta cidade, como também,
indiretamente, a ela própria, em face daquele estabelecimento comercial, que, desta forma,
deixava de efetuar o pagamento correspondente pela assinatura de uma linha telefônica
convencional, concluindo por apontar que, desta forma, haveria a prática de delito.
Decida a questão.

Resposta à Questão 1

Os pulsos telefônicos são passíveis de furto, equiparados coisa alheia móvel pelo
artigo 155, § 3°, do CP. Há prejuízo material, consubstanciado naquilo que a concessionária
deixou de receber – sequer se falando em insignificância, aqui, pois se não houver punição
o bem estará sujeito à própria sorte, o que inviabilizaria a atividade, em última análise.

Questão 2

JOSENILDO foi denunciado pelo MP pela prática de furto qualificado pelo


concurso de pessoas. O fato se deu da seguinte forma: o réu, acompanhado de um
comparsa, subtraiu uma bolsa contendo R$ 56,00 de dentro de um automóvel que se
encontrava parado com o vidro aberto. A defesa pleiteou a absolvição do acusado por
entender que na hipótese incide o princípio da insignificância ou da bagatela, pelo ínfimo
valor da importância subtraída ou, na eventualidade de o Juiz assim não entender,
requereu a aplicação do privilégio de que trata o parágrafo 2º do art. 155 do CP. Decida a
questão.

Resposta à Questão 2

Segundo a maior corrente, está configurado o furto qualificado privilegiado, pois há


concurso de pessoas e há a res de pequeno valor. Por isso, a tipificação é no artigo 155, §§

Michell Nunes Midlej Maron 182


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1° e 2°, do CP. Esta conjunção é perfeitamente admissível, pois há compatibilidade fática


pro reo em sua combinação, mesmo que haja corrente minoritária que nega esta
possibilidade.
Veja que o STJ, porém, entende incompatíveis tais circunstâncias, e seu argumento
é igualmente coerente. Veja o REsp. 443.550:
“REsp 443550 / RS DJ 02/06/2003 p. 326. PENAL E PROCESSUAL PENAL.
RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. FORMA PRIVILEGIADA.
ACÓRDÃO DE APELAÇÃO. EMBARGOS INFRINGENTES. PENA AQUÉM
DO MÍNIMO.
Ao furto qualificado não se aplica a minorante da forma privilegiada. O menor
desvalor de resultado, desde que não seja insignificante, carece de relevância
jurídica no sentido de afetar o desvalor de ação na figura típica do furto
qualificado. (Precedentes do STJ e do Pretório Excelso).
Recurso parcialmente conhecido e, aí, provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 183


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XIV

Furto II. 1) O furto qualificado:a) Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Espécies;c) O furto de coisa comum. 2)
Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula28

1. Furto qualificado

Antes de adentrar no estudo, vale rever os §§ 4° e 5° do artigo 155 do CP, que são a
sede do furto qualificado:

“Furto
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou
aplicar somente a pena de multa.
§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha
valor econômico.
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III - com emprego de chave falsa;
IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.
§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo
automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)”

Como visto, prevalece na jurisprudência a teoria da amotio para a identificação da


consumação do delito de furto, bastando a retirada da posse da coisa de seu titular para
consumar-se o delito, dispensada a aquisição da posse tranqüila pelo meliante (que é a
teoria da ablatio, defendida por boa parte da doutrina).
Primeira discussão que se impõe sobre o furto qualificado do § 4° do artigo supra é
sobre a possibilidade ou não de se aplicar a causa de aumento de pena do § 1° deste artigo
sobre o furto qualificado. O entendimento praticamente uníssono é que não: aplica-se a
causa de aumento de pena apenas ao que venha consignado antes dela, ou seja, ao furto
simples, do caput.
A causa de diminuição de pena do § 2°, porém, pode ser aplicada ao furto
qualificado, se houver compatibilidade, segundo julgados mais recentes das Cortes
Maiores. Veja que isto revela uma mudança de posição jurisprudencial, pois há pouco
28
Aula ministrada pela professora Cláudia das Graças Mattos de Oliveira Barros, em 29/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 184


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

tempo atrás a orientação era igualmente topográfica, ou seja, a causa de diminuição da pena
só poderia ser aplicada aos preceitos que a precedessem, ou seja, ao caput e ao § 1°, no
caso.
Veja que ao posicionar-se pela admissibilidade do furto qualificado com pena
diminuída, e ao mesmo tempo pela inadmissibilidade do furto qualificado com aumento de
pena pelo repouso noturno, parece que surge uma certa contradição, mas esta contradição é
apenas aparente. Entenda: a topografia legislativa é um argumento que logo cede lugar,
quando a interpretação principiológica toma campo, e por isso a interpretação pro reo tem
mais peso do que este argumento, justificando a melhor leitura do artigo em favor do réu,
suficiente a afastar o argumento topográfico, mas não justifica a leitura mais gravosa, pois
nenhum princípio a ampara.
Vejamos, então, as qualificadoras de forma apartada, uma a uma.

1.1. Destruição ou rompimento de obstáculo

Obstáculo à subtração da coisa é algo externo a esta, que foi colocado justamente
para dificultar o acesso a esta coisa. O cofre, por exemplo, é um obstáculo claro à
subtração. As redomas de vidro, ao redor de itens expostos em museus, também assim se
configuram.
A questão mais problemática, aqui, diz respeito ao furto de bens em interior de
veículo. A jurisprudência atual é pacífica no sentido de entender que o arrombamento do
veículo para furtar as coisas que lá dentro estão é qualificado por este inciso I, do § 4° do
artigo 155 do CP, pois o carro forma um invólucro em torno das coisas, consubstanciando
obstáculo para que o meliante as alcance.
O problema é a desproporção casuística que este entendimento acarreta: a subtração
do próprio veículo é furto simples, porque a destruição do vidro, ou qualquer forma de
arrombamento, é feita na própria coisa, e não em obstáculo existente à subtração desta.
Debalde, a jurisprudência é firme.
A incursão em uma casa, por arrombamento da porta, para furtar bens que lá dentro
estejam, incide nesta qualificadora. Imagine-se agora a seguinte situação: o agente adentra
furtivamente na casa que estava com as portas abertas, e lá dentro se esconde; quando todos
saem, subtrai os bens que desejava, e arromba a porta na saída. Há a qualificadora, neste
caso?
Há duas correntes: para a primeira, só se pode aplicar a qualificadora quando o
rompimento do obstáculo se presta para que o agente possa chegar até a coisa, pelo que este
rompimento posterior, na fuga, não configuraria a qualificadora – tratar-se-ia do crime de
dano, que, in casu, é post factum impunível. A segunda corrente, porém, entende que a
qualificadora se impõe mesmo com o rompimento posterior do obstáculo: desde que este
rompimento seja necessário para se consumar o crime, há a qualificadora. Prepondera a
primeira corrente.
A configuração da qualificadora em análise depende, inexoravelmente, da
realização do exame de corpo de delito. Sem o obstáculo rompido, não há como se imputar
tal qualificadora objetiva, vestigial.
O furto de um cofre lacrado, com o seu posterior arrombamento para colher o
conteúdo, pode ser considerado furto com rompimento de obstáculo, mesmo que parte

Michell Nunes Midlej Maron 185


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

majoritária da doutrina assim não o entenda, por reputar que há o furto do continente e do
conteúdo, o que se configura furto simples.

1.2. Abuso de confiança, fraude, escalada ou destreza

A escalada, segundo a doutrina majoritária, se configura pela entrada por meio


anormal do autor do crime, no lugar em que se encontre a coisa, superando algum elemento
que dificulte esta entrada. Pode ser, por exemplo, a escalada do muro para adentrar na
residência, ou, para a doutrina, a escavação de um túnel para alcançar o local em que a
coisa se encontra.
Este alargamento do sentido da palavra escalada, dado pela doutrina, parece ser uma
interpretação extensiva de um dispositivo gravoso ao réu, o que não se afeiçoa, de fato, ao
ordenamento. Afinal, o valor dicionário da palavra não comporta outro sentido, que não o
de alguma entrada por meio ascendente na coisa. Veja:

“Escalada: (francês escalade)


1. Ato de escalar. = escalamento
2. Assalto a uma casa, praça ou fortaleza por meio de escadas. = escalamento
3. Escada de mão, escada portátil.
4. Desp. atividade desportiva que consiste em trepar por superfícies verticais ou
muito íngremes.
5. Subida ou aumento progressivo (ex.: escalada de preços, escalada de
violência).”

A doutrina, porém, faz esta interpretação extensiva, de forma unânime.


A escalada nem sempre deixa vestígios, e por isso não é imperativa a realização de
exame de corpo de delito para comprová-la. Qualquer meio de prova idôneo o será.
A qualificadora da destreza, por sua vez, consiste na especial habilidade para o
furto. Trata-se de uma especial habilidade, na qual alguém consegue, por exemplo, subtrair
a carteira da vítima de seu bolso sem que esta perceba – se percebe, não houve destreza,
não se qualificando o crime. Note-se, porém, que é perfeitamente possível a tentativa de
furto: se a vítima perceber a tentativa, e o punguista não consegue levar a cabo a subtração,
é claro que a tentativa é simples, pois não houve destreza suficiente; mas se quem percebe
for terceira pessoa, já se poderia entender que a destreza foi suficiente para enganar a
vítima, e há a tentativa do furto qualificado, então.
A fraude, porém, é a qualificadora que gera maiores controvérsias. O estudo do
furto mediante fraude demanda sua diferenciação dos crimes de estelionato e apropriação
indébita, ante a fina linha que os separa. Vejamos.
O furto e o estelionato têm um ponto em comum, que já os diferencia bastante da
apropriação indébita: o dolo é anterior à apreensão do bem almejado, enquanto na
apropriação o dolo é subsequente à posse. No furto e no estelionato, qualquer posse que o
agente venha a ter será sempre ilícita; na apropriação, a posse surge lícita, e se torna ilícita
após a sua inversão pelo agente, quando demonstra ânimo de dono.
Assim, a diferença entre furto mediante fraude e estelionato é que é mais tênue,
residindo em um aspecto primordial: no estelionato, a vítima entrega a coisa ao agente,
porque acreditou no engodo criado pelo estelionatário para obter tal coisa; no furto
mediante fraude, a coisa é subtraída pelo agente, e não entregue, sendo que a subtração é

Michell Nunes Midlej Maron 186


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

facilitada pelo emprego do ardil, do meio fraudulento, que leva a vítima a cessar ou
diminuir sua vigilância sobre a coisa.
Como exemplo, a vítima que se vê diante de um falso guardador de carros, lhe
entregando o veículo, é certamente alvo de estelionato. Diferentemente, a vítima que se vê
distraída por um falso mecânico, que se aproveita de sua distração – eis que confia que o
mecânico está ali a fazer consertos em seu carro, diminuindo a resistência –, para subtrair o
veículo: há furto mediante fraude.
Esta é a orientação geral da doutrina. Há, porém, que se mencionar um segundo
entendimento, minoritário, que ainda exige uma segunda nuance para diferenciar o furto
com fraude do estelionato, e que, por vezes, inverte a capitulação: no estelionato, a entrega
da coisa pela vítima é feita sem que a pessoa espere a sua restituição; pode até esperar uma
contraprestação, mas não a restituição daquela coisa entregue. Se não há a contraprestação,
há o estelionato. No furto, não só não há entrega, como não há expectativa de
contraprestação alguma. Esta perspectiva, porém, é minoritariíssima.
Sobre o exemplo do manobrista, vale consignar que há possibilidade de que se
configure a apropriação indébita: se o guardador é alguém que de fato exerce aquela
profissão, e, vendo-se na detenção desvigiada de um carro, decide-se, apenas após obtida a
detenção, havê-lo para si, há a apropriação indébita – o dolo é subsequente.
Há ainda, aqui, o furto qualificado mediante abuso de confiança, que é configurado
quando a vítima, por alguma relação pretérita, confia no agente, e este se vale deste
afrouxamento da vigilância que é induzido pela confiança para cometer a subtração. Um
exemplo: à secretária é confiada a senha da conta bancária de seu patrão, eis que este nela
confia, para proceder a um saque de cem reais. A secretária, então, saca duzentos, e fica
com cem para si. Está clara a situação de furto dos cem reais excedentes, com abuso de
confiança, e não apropriação indébita, pois daqueles cem que ela sacou excedentes nunca
lhe foi dada a posse ou detenção, como foi dada a detenção dos cem reais originais que o
patrão solicitou.

1.3. Chave falsa

O inciso III do § 4° do artigo 155 do CP traz a qualificadora do emprego de chave


falsa. Considera-se chave falsa aquela que se presta a abrir qualquer porta, como as gazuas,
chaves michas, etc. O emprego de chave verdadeira, obtida à revelia da vítima, segundo a
jurisprudência majoritária, não pode ser considerado furto com emprego de chave falsa:
trata-se de furto com fraude, talvez, a depender do meio de obtenção da chave.
O STF entende que, para que se configure a chave falsa, é essencial a perícia do
objeto, a fim de identificá-lo precisamente como chave falsa.
A ligação direta, no furto de automóveis, não configura a qualificadora da chave
falsa, para a maioria dos intérpretes, porque simplesmente não se trata de chave alguma.
Pode até ser considerada destreza, mas não emprego de chave falsa.
Os artigos 24 e 25 da Lei de Contravenções Penais apresentam tipificações que
guardam pertinência com esta qualificadora:

“Art. 24. Fabricar, ceder ou vender gazua ou instrumento empregado usualmente


na prática de crime de furto:
Pena – prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de trezentos mil réis a
três contos de réis.”

Michell Nunes Midlej Maron 187


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Art. 25. Ter alguem em seu poder, depois de condenado, por crime de furto ou
roubo, ou enquanto sujeito à liberdade vigiada ou quando conhecido como vadio
ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados
usualmente na prática de crime de furto, desde que não prove destinação legítima:
Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, e multa de duzentos mil réis a dois
contos de réis.”

Veja, então, que a mera posse destes instrumentos já pode ser uma infração penal,
desde que não haja furto em curso, pois se há a contravenção resta absorvida.

1.4. Concurso de pessoas

O artigo 155, § 4°, IV, diz que o furto se qualifica quando há o concurso de duas ou
mais pessoas. Esta qualificadora é mais intrincada do que pode parecer, demandando uma
análise sistemática do tipo. Vejamos.
O artigo 157, § 2°, II, e o artigo 158, § 1°, também contemplam o concurso de
pessoas como elementos de maior reprovabilidade da conduta, trazendo-o como causa de
aumento.

“Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
(...)
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;
(...)”

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
(...)”

Veja que no furto e no roubo, o termo empregado para o gravame é “concurso” de


duas ou mais pessoas, enquanto na extorsão o legislador empregou a expressão “cometido
por duas ou mais pessoas”. Esta diferença não é em vão, segundo a doutrina e a
jurisprudência majoritárias. Ao usar o termo “concurso”, o legislador pretendeu deixar claro
que se trata de qualquer concorrência para o delito, ou seja, a participação ou a coautoria, o
que não se dá quando emprega o termo “cometido”, que delimita a concorrência à
coautoria.
Destarte, para esta corrente, sempre que há duas pessoas ou mais atuantes na
execução do delito, quer como coautores, quer como partícipes, há o furto qualificado deste
tópico. Todavia, há uma segunda corrente, minoritária, mas com representação no STJ, que
defende que há a qualificadora apenas quando se tratar de coautoria, e não de participação.

Michell Nunes Midlej Maron 188


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Há, porém, fundamentos hábeis a se criticar ambas as teses. Isto porque a


terminologia “coautoria” e “participação” deveria ser desconsiderada, aqui, calcando-se o
raciocínio apenas na interpretação sobre qual é o maior desvalor do resultado ou da conduta
que a majorante ou qualificadora quer reprimir.
Entenda: o maior desvalor que esta qualificadora do concurso de pessoas quer
reprimir é na conduta. O legislador entende mais reprovável o crime em que há reunião de
pessoas para seu cometimento, porque torna a subtração mais fácil, deixando a coisa mais
vulnerável. Por isso, surge uma terceira corrente que defende que, para que se constate esta
qualificadora, é preciso que seja visualizado, no caso concreto, que por ter sido o furto
praticado em concurso de pessoas é que a coisa ficou mais vulnerável, facilitando sua
subtração. Se há o concurso, mas não há esta influência na vulneração da res furtiva, não há
a incidência da qualificadora. Debalde, como dito, o posicionamento amplamente
majoritário é o de que a qualificadora se impõe qualquer que seja a reunião de pessoas,
qualquer que seja a concorrência de condutas.
Outra questão que se impõe aqui é se é possível o concurso de crimes entre este
furto qualificado e o crime de quadrilha ou bando. O STF entende, corretamente, que o
concurso de crimes é possível, não havendo bis in idem, porque a quadrilha é um crime
autônomo, independente dos crimes que venham a ser efetivamente praticados pelos
quadrilheiros: sua objetividade jurídica é completamente diversa da do furto, por exemplo.
A formação da quadrilha para furtos ataca a paz pública; o furto, em si, ataca o patrimônio.

1.5. Remessa de veículo para outro Estado ou país

O § 5° do artigo 155 do CP qualifica o crime se a subtração for de veículo


automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior. A inclusão
desta qualificadora se deve a uma onda de crimes praticados neste modelo típico, à época
da sua inclusão pela Lei 9.426, em 1996, modelo de execução este que dificulta a
recuperação da res furtiva.
A mesma Lei impôs esta dinâmica como causa de aumento no crime de roubo. Por
isso, há quem diga que este dispositivo do furto é inconstitucional: se no crime de roubo,
mais grave, a destinação do veículo é apenas causa de aumento de pena, para o furto,
menos grave, a cominação de qualificadora é desproporcional, e poderia gerar a absurda
situação de um furto apenado mais gravemente do que um roubo, nas mesmas
circunstâncias.
Os tribunais superiores já enfrentaram esta tese, e entenderam que não há qualquer
inconstitucionalidade, tendo sido apenas uma opção legislativa, que se repete em outros
tipos, como no já visto furto qualificado por concurso de pessoas, em que há a exata mesma
diferença de tratamento: é qualificadora do furto, mas é mera causa de aumento no roubo.
De qualquer forma, esta qualificadora é objetiva, e só se aplica quando o veículo
efetivamente for destinado a outro Estado ou país. Veja que pouco importa se o autor tinha
ou não a intenção em remeter o veículo a tais lugares, quando da subtração: é preciso que
tenha efetivamente conseguido levar o bem, ou não há a qualificadora. Pode acontecer,
portanto, o inverso, em relação ao dolo: se o agente não tinha a idéia de remeter o veículo, à
época da subtração, mas acaba fazendo esta remessa posteriormente, a qualificadora incide
mesmo assim.

Michell Nunes Midlej Maron 189


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Este crime qualificado seria passível de tentativa? Veja que é uma circunstância que
sobrevém à própria consumação do delito: se o bem foi retirado da esfera de vigilância da
vítima, consumou-se, segundo a teoria da amotio. Daí em diante é que se verifica se a
qualificadora se implementou ou não, ou seja, verificar-se-á se houve a transposição da
divisa ou não. Se houve, qualificou-se o crime consumado; se não houve, o crime
consumado foi simples.
Veja um exemplo: agente furta veículo, e segue na estrada, sendo perseguido por
policiais. No percurso, antes de passar a fronteira de outro Estado, é interceptado. O crime
se consumou, na forma simples pela teoria da amotio. Se ultrapassa a fronteira, o crime se
consuma na forma qualificada.
Se se utilizar da teoria da ablatio, a situação pode ser diferente. Se estava sendo
perseguido, e foi interceptado antes de cruzar a fronteira, o crime é tentado – não houve
posse tranqüila – e é da forma simples. Se ultrapassou a fronteira, e ali foi interceptado, o
crime é tentado, segundo a ablatio, e há a qualificadora.

Michell Nunes Midlej Maron 190


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

CAIO penetra no interior do veículo de TÍCIO, estacionado na Rua São Clemente,


mediante arrombamento da porta, de onde subtrai o toca-CDs. Consegue evadir-se e vende
o aparelho para um conhecido receptador.
a) Que tipo ou tipos penais foi (ram) realizado(s) por CAIO?A solução se alteraria,
caso:
b) CAIO tivesse subtraído o veículo e tivesse sido preso, por acaso, a caminho da
residência do receptador, situada a 30 quilômetros do local da subtração?
c) O veículo fosse alugado ou estivesse emprestado a TÍCIO? Haveria modificação
do sujeito passivo?
d) CAIO tivesse subtraído o veículo para vendê-lo no Piauí?
e) Na hipótese anterior, CAIO fosse preso em Campos dos Goytacazes? E se fosse
preso em Belo Horizonte?
f) Durante a subtração do toca-CDs, CAIO fosse surpreendido e preso em
flagrante?
g) Durante a subtração do veículo, CAIO fosse surpreendido pela polícia e fugisse
a pé, atirando contra o policial, ferindo-o levemente?
h) Na hipótese anterior, CAIO fugisse com o carro?
i) Na hipótese anterior, CAIO fugisse com o carro, matasse o policial e restasse
preso em um cerco policial a dois quilômetros do local da subtração?

Resposta à Questão 1

a) Há o crime de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo.


b) Seria, primeiro, de se constatar que se tratas então de furto simples, eis que não
mais há obstáculo rompido na consumação. Quanto à consumação, qualquer que
seja a teoria adotada – ablatio ou amotio –, o crime está consumado, pois houve
a retirada do bem da esfera de domínio da vítima, e houve também a posse
tranqüila.
c) Não: o sujeito passivo é o proprietário, possuidor ou mesmo o detentor vigiado.
d) Se não chegou a remeter o veículo efetivamente ao Piauí, não há a qualificadora
referente à extrapolação de fronteiras.
e) Se há a prisão em Campos, nada se modifica; se foi em Belo Horizonte, porém,
há a qualificadora do § 5° do artigo 155, a extrapolação de fronteiras.
f) Haveria o furto tentado, por óbvio, simples se não chegou a romper o veículo,
ou qualificado, se chegou a entrar no carro.
g) O crime seria de roubo impróprio. Há quem diga, porém, que o crime é de furto
tentado cumulado com lesão corporal e resistência. Para a maior parte da

Michell Nunes Midlej Maron 191


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

jurisprudência, se a violência é dedicada unicamente para a fuga, abandonando a


coisa, há tentativa de furto cumulada com lesão corporal e resistência.
h) Há a consumação do roubo impróprio, independentemente de obter o benefício
do ato ou não.
i) Trata-se de latrocínio, consumado pela morte do policial. Há quem diga, porém,
que se trata de roubo e homicídio em concurso, mas é corrente um tanto
desacertada.

Questão 2

MÁRCIA encontrava-se no interior de um supermercado, onde fazia compras


tranqüilamente. AUGUSTA dela se aproximou e, sem fazer-se notar, cortou a bolsa de
MÁRCIA e subtraiu outra pequena bolsa que estava em seu interior, encaminhando-se, em
seguida, para a saída do estabelecimento. Na saída do supermercado, foi surpreendida
pelos seguranças. Qual o crime cometido por AUGUSTA? Fundamente.

Resposta à Questão 2

No caso em tela, houve claro emprego de destreza, pelo que a capitulação


necessariamente deve passa pelo artigo 155, § 4°, II, do CP. Cabe, agora, identificar a
consumação ou tentativa. Segundo a teoria da ablatio, este furto restaria tentado, mas como
nossa jurisprudência adota a teoria da amotio, ou aprehensio – em que basta a subtração da
esfera de vigilância da vítima, desprezando-se a tranqüilidade na posse pelo furtador –,
restou consumado.
A bolsa poderia ser considerada obstáculo, também, sendo o crime considerado
qualificado por rompimento do obstáculo. Contudo, esta qualificadora, neste caso, é
absorvida pela destreza, restando qualificado, tecnicamente, apenas por esta.
A respeito, veja a Apelação Criminal 2003.050.05900, do TJ/RJ:

“Processo: 2003.050.05900. APELACAO. DES. NILDSON ARAUJO DA CRUZ -


Julgamento: 17/08/2004 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL. FURTO.
TENTATIVA. CONCURSO DE PESSOAS. ESTADO DE NECESSIDADE.
INOCORRENCIA.
FURTO TENTADO, PRATICADO POR DUAS PESSOAS EM CONCURSO E
COM DESTREZA. - APELOS DEFENSIVO E MINISTERIAL. - RECURSOS
CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. - INADMISSÃO DE ALEGADO ESTADO
NECESSÁRIO. EXCLUÍDA, DE OFÍCIO, A QUALIFICADORA RELATIVA AO
ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO, QUE RESTOU ABSORVIDA PELA
DESTREZA. - PENAS BEM DOSADAS, UNANIMIDADE. Não se admite o
estado de necessidade, quando não evidenciada a causa que o teria determinado.
Não se considera consumado o furto, quando a agente é imediatamente presa e não
fica esclarecido se todos os bens foram ou não recuperados. A dúvida favorece a
defesa. Também não se podem considerar de pequeno valor os bens, eis que só os
óculos da vítima foram avaliados em R$150,00 (cento e cinqüenta reais). Quando
a agente corta a bolsa da vitima e de lá retira uma outra, sem que esta sequer o
perceba, o rompimento do obstáculo é absorvido pela destreza. Apelos conhecidos
e não providos, mas, de ofício, se exclui a qualificadora do rompimento de
obstáculo. Unanimidade.” (grifo nosso)

Michell Nunes Midlej Maron 192


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pelo ensejo, vale consignar que os furtos no interior de supermercados, de bens do


supermercado (diferente do caso em tela, em que a vítima foi uma cliente), abstraindo-se
qualquer cogitação de insignificância, sequer pode ser considerado tentado enquanto não
for ultrapassada a área dos caixas: o autoserviço possibilita que a vítima coloque o bem
dentro de sua bolsa, e, enquanto ela não efetivamente passar pela área de pagamento sem
pagar pelo bem, não se pode apontar sequer tentativa. O mesmo se dá em lojas de
departamento.
E não há que se falar em crime impossível, por eventual existência de câmeras de
segurança: o crime é de mais difícil consumação, quando há estes aparatos, mas é possível.

Questão 3

MARIANA acabara de obter um extrato impresso de sua conta bancária em um


caixa eletrônico e, conferindo-o, se preparava para fazer um saque, quando RODOLFO
dela se aproximou.Com ares de pessoa prestativa e gentil, RODOLFO avisou-lhe que
fizera tudo errado. MARIANA ficou impressionada e nervosa. Imaginou que estivesse
acontecendo alguma coisa com sua conta. RODOLFO puxou o cartão de suas mãos e
conseguiu um extrato mais longo do que o dela e se afastou. Foi então que MARIANA
percebeu ter havido uma troca de cartão, pois o que tinha nas mãos não era o seu, mas um
outro em nome de JUSSARA. MARIANA pediu socorro e populares seguiram a direção
tomada pelo agente, que, localizado no Shopping Center Tem Tudo, acabou preso. Perto
dele foi arrecadado o cartão de MARIANA. Indaga-se: qual a conduta típica praticada por
RODOLFO?

Resposta à Questão 3

Rodolfo cometeu o crime de furto qualificado mediante fraude, tentado: não chegou
a sacar o dinheiro, apesar de empregar a fraude na execução do crime, sendo frustrado antes
de conseguir a efetiva subtração dos valores pretendidos.
Veja a Apelação Criminal 2004.050.00380, do TJ/RJ:

“Processo : 2004.050.00380. APELACAO. DES. NILDSON ARAUJO DA CRUZ


- Julgamento: 24/08/2004 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL.
FURTO QUALIFICADO. SUSPENSAO CONDICIONAL DA PENA.
DOSIMETRIA DA PENA. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO PELA
FRAUDE, CRIME QUE NÃO SE CONFUNDE COM O ESTELIONATO.
PENAS BEM DOSADAS. - APELO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO
PARA CONCEDER SURSIS AO RECORRENTE. UNANIMIDADE. Trata-se de
furto qualificado pela fraude, eis que o agente, mediante um embuste, criou um
clima confuso e plantou insegurança no espírito da ingênua vítima e, aproveitando-
se de seu nervosismo, subtraiu-lhe o cartão bancário, retirou um extrato e lhe
devolveu cartão diverso. Posteriormente, sacaria da conta bancária da vítima as
importâncias desejadas. Isto não se confunde com o estelionato, em que a própria
vítima, enganada, transfere para o agente o bem por ele pretendido. E, ficou
provado que o fato ocorreu e que seu autor foi o apelante. Penas no mínimo, pelo
inviável a incidência de qualquer atenuante (STJ, súmula 231), tendo sido a
redução de um terço proporcional à realização parcial do tipo. Apelo conhecido e
parcialmente provido, para conceder sursis ao recorrente. Unanimidade.”

Michell Nunes Midlej Maron 193


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Poder-se-ia cogitar se a obtenção do cartão não seria um mero ato preparatório, mas
parece que está claro que se trata de um ato inicial de execução, sob qualquer perspectiva.
Do ponto de vista da teoria objetiva-material, não apenas o início da prática do verbo
nuclear do tipo é início de execução – in casu, “subtrair” –, mas também a realização de
qualquer conduta necessariamente ligada ao verbo típico, sem a qual não é possível levar a
cabo a empreitada. Do ponto de vista da teoria objetiva-individual, igualmente há a
execução iniciada, porque segundo esta a prática de qualquer ato que, segundo o plano
individual do agente, signifique a execução do crime almejado, é ato executório.
De qualquer forma, é importante perceber que a subtração do cartão, em si, não
configura o furto consumado: o cartão não é o bem alvo do furto, e sim o dinheiro que ele
permite acessar.

Michell Nunes Midlej Maron 194


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XV

Roubo I.1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito.
Tipicidade objetiva e subjetiva do roubo próprio. Formas de violência;b) Tipicidade objetiva e subjetiva do
roubo impróprio. A controvérsia quanto à possibilidade da tentativa. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso
de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula29

1. Roubo

Veja o artigo 157 do CP:

“Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega
violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do
crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro.
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;
III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal
circunstância.
IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para
outro Estado ou para o exterior; (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a
quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos,
sem prejuízo da multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996) Vide Lei nº
8.072, de 25.7.90.”

De início, cumpre deixar claro que a maioria da doutrina entende descabida a figura
do roubo de uso. Mas há quem entenda que, se preenchidos os requisitos – uso
momentâneo, restituição íntegra, falta de ataque ao patrimônio –, estaria configurada a
situação de uso, sem dolo de apropriação da coisa. Assim entende Capez e Rogério Greco.
Todavia, prevalece a corrente que entende incabível, eis que não há no roubo o meio de a
vítima não saber, de antemão, que há a subtração, ante a violência ou grave ameaça
empreendidas.
Outra tese que se entende inaplicável, no roubo, por conta da violência ou grave
ameaça, é a da insignificância, mas há alguns julgados reputando cabível esta tese da
bagatela, entendendo que o agente que rouba coisa insignificante não responde por este
29
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 29/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 195


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

roubo, e sim pelo constrangimento ilegal da vítima, praticado na subtração. Contudo, é


majoritaríssima a inadmissibilidade da tese, como se vê, por exemplo, no HC 96.671, do
STF:

“HC 96671 / MG - MINAS GERAIS. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


ELLEN GRACIE. Julgamento: 31/03/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação: 24-04-2009.
Ementa: HABEAS CORPUS. CRIME DE ROUBO. PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. LESÃO AO PATRIMÔNIO E À
INTEGRIDADE FÍSICA DA VÍTIMA. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
1. A questão tratada no presente writ diz respeito à possibilidade de aplicação do
princípio da insignificância ao crime de roubo. 2. Como é cediço, o crime de roubo
visa proteger não só o patrimônio, mas, também, a integridade física e a liberdade
do indivíduo. 3. Deste modo, ainda que a quantia subtraída tenha sido de pequena
monta, não há como se aplicar o princípio da insignificância diante da evidente e
significativa lesão à integridade física da vítima do roubo. 4. Ante o exposto,
denego a ordem de habeas corpus.”

Dito isto, passemos à análise detalhada do tipo.


O verbo “subtrair”, empregado no tipo, oferece uma problemática que não se reprisa
do furto, pois, como visto, neste tipo do artigo 155 do CP não há maiores controvérsias. No
crime de roubo, a subtração, propriamente dita – a tomada do bem pela mãos do meliante –
não ocorre, mor das vezes: mediante a grave ameaça, o dono da coisa entrega-a ao
roubador, o que, na literalidade do texto, escaparia ao conceito de subtração. Há, por isso,
duas correntes a disputar o tema.
A primeira, de Nelson Hugria, diz que de fato não há roubo, quando há esta entrega:
há extorsão, do artigo 158 do CP.

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
(...)”

A segunda corrente, mais coerente, defende que o roubo está configurado, ao


seguinte argumento: a extorsão se caracteriza quando se coage a vítima a realizar um
determinado comportamento imprescindível à obtenção da vantagem almejada. No ato de
ameaçar com arma a vítima para que lhe entregue a carteira, por exemplo, não há conduta
imprescindível desta vítima para obtenção do bem: o agente poderia tomar-lhe a carteira
com as próprias mãos, o que configura o roubo. Entenda: se a entrega, a conduta da vítima,
é meramente circunstancial, não se pode entender que seja suficiente a desnaturar a
subtração – a entrega forçada poderia ser substituída pela subtração forçada. Na extorsão, a
entrega da vítima é a única possibilidade de o agente obter o bem, não podendo ser
empreendida a subtração.
Rogério Greco adere a esta corrente, mas agrega um outro requisito diferenciador:
na extorsão, a promessa deve ser de mal futuro, enquanto no roubo, a promessa é de mal
iminente, contemporâneo ao ato de entrega – ainda que o comportamento da vítima tenha
sido imprescindível.
Veja a situação recorrente em que esta divisão doutrinária se desenha com clareza: o
assalto em caixa-eletrônico, no qual a vítima tem que fazer o saque. Esta conduta da vítima

Michell Nunes Midlej Maron 196


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

é imprescindível, e por isso o crime é de extorsão. Rogério Greco, aqui, entende que há
roubo, porque a promessa de mal é iminente, e não futuro, inviabilizando a tipificação em
extorsão.
O STJ adota a corrente que entende que a entrega forçada, sendo mero incidente
prescindível do crime, pois que poderia ser procedida a subtração por mão própria do
meliante. A respeito, veja o julgado do REsp. 697.622:

“REsp 697622 / SP. DJ 02/05/2005 p. 404.


PENAL. ROUBO E EXTORSÃO. CONCURSO MATERIAL. PRECEDENTES
DO STF E DO STJ.
1. A jurisprudência desta Corte e do STF entende que incorre nas penas dos crimes
de roubo e extorsão, em concurso material, o agente que, ao roubar bens da vítima,
a obriga a sacar dinheiro em caixas eletrônicos. Precedentes do STF e do STJ.
2. Recurso especial conhecido e provido.”

O roubo exige, para sua configuração, a violência ou a grave ameaça. A violência


pode ser real, vis efectiva, ou também aquela conhecida como violência imprópria, que é a
redução da capacidade de resistência da vítima por qualquer meio. Vale consignar que a
lesão leve causada no cometimento do roubo será sempre absorvida por este.
Bom exemplo de violência imprópria é o famigerado golpe do “boa noite
Cinderela”, em que é ministrada droga incapacitante da vítima, para então subtrair-lhe os
bens. Fugindo do óbvio, veja o seguinte exemplo: se alguém tranca a vítima no banheiro de
uma casa, para após subtrair-lhe os bens, há a exata mesma dinâmica da violência
imprópria, pois impossibilitou qualquer meio de defesa contra a subtração ao trancafiar-lhe
naquele cômodo, previamente à colheita dos bens.
Diferentemente ocorre se a vítima já estava em situação de impossibilidade de
resistência, e o agente disso se vale para subtrair seus bens: se a vítima já estava dormindo,
por exemplo, quando o agente a encontra, e este subtrai-lhe os bens sem que a vítima
acorde, o crime é de furto – não houve violência imprópria por parte deste agente.
Havendo violência imprópria, a este criminoso não se veda a pena restritiva de
direitos, como se veda ao que comete o crime com violência real. Mesmo que o artigo 44, I,
do CP, fale genericamente em “violência”, o que se deve depreender dali é a real, eis que é
uma norma restritiva de direitos, devendo ser interpretada restritivamente:

“Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas


de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não
for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena
aplicada, se o crime for culposo; (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)
(...)”

Capez, por seu turno, defende que qualquer forma de violência é suficiente para
vedar o benefício da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.
A grave ameaça não precisa ser verídica: basta que seja crível aos olhos da vítima.
Um bom exemplo em que a ameaça é falsa, mas crível, é no crime de extorsão: a extorsão
praticada pelo filho que simula falso sequestro. Se o pai cede à grave ameaça à vida do
filho, mesmo que falsa, está sendo extorquido, pois aquela ameaça se demonstrou
acreditável.

Michell Nunes Midlej Maron 197


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.1. Roubo próprio e impróprio

O caput do artigo 157 trata do roubo próprio, que é aquele em que a violência ou
ameaça precede a subtração. O § 1°, por seu turno, trata do roubo impróprio, em que a
violência ou ameaça é posterior à subtração, ou ao menos concomitante com esta.
O problema é que, em se adotando a teoria da amotio, há muito pouco espaço para
se constatar o roubo impróprio. Entenda: quando se dá a subtração, no roubo impróprio,
ainda não há violência ou grave ameaça cometida. Parando-se a análise neste momento do
tempo, já há o furto consumado, porque a teoria da amotio assim o diz. Destarte, para se
configurar o roubo impróprio, uma conduta que, a todo ver, representa um furto
consumado, seria convertida, pela violência posterior, em roubo. É algo que, certamente,
causa alguma estranheza.
Por isso, na verdade, o que se passa no roubo impróprio não é a consumação da
subtração e a posterior violência, como dito acima. Esta dinâmica é a narrativa de furto em
concurso com a ameaça, do artigo 147 do CP, com a lesão, ou mesmo em concurso com o
homicídio, se for o caso. O roubo impróprio ocorrerá quando, após iniciada a subtração,
mas antes que esta se perfaça totalmente, o agente empregue violência ou ameaça. A
diferença é muito sutil, especialmente em se considerando a teoria da amotio.
A violência ou ameaça que configuram o roubo impróprio só podem ter por única
finalidade assegurar a subtração. Qualquer propósito ulterior ou diverso no emprego destas
medidas merece tipificação autônoma.
Se, no curso da subtração, antes de empregar qualquer violência ou grave ameaça, e
mesmo que fosse fazê-lo, o agente é obstado em seu propósito, há tentativa de furto: a
violência imprópria sequer chegou a ser tentada, tampouco a subtração sem violência ou
grave ameaça prévias. Havendo o furto tentado deste exemplo, se o agente, após abandonar
o projeto de subtração (simplesmente deixou de continuar a subtrair), emprega de violência
ou ameaça com a única finalidade de evadir-se, é claro que não configura roubo impróprio:
responde pelo furto tentado, em concurso material com crime que houver cometido na fuga
– ameaça, lesão ou mesmo homicídio.
Veja que a expressão “a fim de assegurar a impunidade do crime”, usada no texto do
§ 1°, é lida pela doutrina como “a fim de assegurar o sucesso no crime”, e por isso aquela
violência ou ameaça em fuga em que se abandonou o projeto criminoso não configura o
roubo impróprio.
Voltando à análise do roubo próprio, em que a violência ou ameaça é empregada
previamente à subtração, qual é o momento em que se considera consumado o delito?
Novamente, se divide a explicação sobre este momentum nas duas teorias já abordadas no
furto, a amotio e a ablatio. O roubo se consuma, no Brasil, no momento em que o roubador
tem consigo a posse da coisa, mesmo que intranqüila – sendo claramente adotada, aqui, a
teoria da amotio. Veja, a respeito, o RE 102.490:

“RE 102490 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a):


Min. MOREIRA ALVES. Julgamento: 17/09/1987. Órgão Julgador: Tribunal
Pleno. Publicação:16-08-1991.

Michell Nunes Midlej Maron 198


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Ementa: Roubo. Momento de sua consumação. O roubo se consuma no instante em


que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave
ameaça ou violência. - Para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em
nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao
contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de
fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao
antigo possuidor retomá-la pela violência, por si ou por terceiro, em virtude de
perseguição imediata. Aliás, a fuga com a coisa em seu poder traduz
inequivocamente a existência de posse. E a perseguição - não fosse a legitimidade
do desforço imediato - seria ato de turbação (ameaça) à posse do ladrão. Recurso
extraordinário conhecido e provido.”

Esta decisão antiga do STF ainda reflete a jurisprudência dominante, mas não custa
repetir que a doutrina, em peso, defende a ablatio como tese mais coerente.
O momento consumativo do roubo impróprio é problemático, como se pôde notar. A
maior parte da doutrina e jurisprudência entende que é incabível a tentativa, no roubo
impróprio, ao seguinte argumento: a conduta está em empregar violência após a subtração.
O tipo do roubo impróprio tem por verbo nuclear o termo “emprega”, e é neste ato, com a
finalidade de ficar com a coisa (e não com o efetivo sucesso em com a coisa ficar), que se
verifica o roubo impróprio, e não na subtração. Por isso, é simples: ou se emprega a
violência ou grave ameaça, e o roubo é consumado; ou não se emprega, e há o furto tentado
ou consumado.
Veja, neste sentido, o REsp. 1.025.162:

“REsp 1025162 / SP DJe 10/11/2008


PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 157, §§ 1º E 2º, INCISO I, DO CÓDIGO
PENAL. ROUBO IMPRÓPRIO MAJORADO. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA.
O crime previsto no art. 157, § 1º, do Código Penal consuma-se no momento em
que, após o agente tornar-se possuidor da coisa, a violência é empregada, não se
admitindo, pois, a tentativa (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte).
Recurso provido para restabelecer a r. sentença condenatória que reconheceu a
ocorrência do crime de roubo na forma consumada.”

Parte da doutrina rebate este argumento, entendendo que é sim possível o roubo
impróprio tentado, por questão de isonomia: se há a percepção de que haveria a ameaça ou
violência, e não houve, há a tentativa de roubo impróprio.

Michell Nunes Midlej Maron 199


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

MÁRIO ingressa numa residência, durante uma festa, e dirige-se ao quarto de


CAIO, dono da casa, onde estão guardadas várias jóias. Localiza-as, acomoda todas numa
bolsa e, ao se retirar do quarto se surpreende com a chegada de CAIO, que o impede de
sair. MÁRIO, então, ameaça CAIO com um revólver que trazia, para qualquer
eventualidade, e foge com as jóias. Pergunta-se:
a) Qual o crime praticado por MÁRIO?
b) Seria possível a tentativa, neste caso?
c) Quantos crimes haveria se as jóias pertencessem a três pessoas?
d) E se não houvesse nenhuma jóia guardada no quarto porque CAIO, naquela
mesma noite, já tivesse sido subtraído por outra pessoa?
e) E se MÁRIO tivesse ingressado na casa anunciando com o revólver o roubo,
haveria alteração na tipificação?
f) E se MÁRIO não tivesse sido surpreendido por CAIO no quarto, mas sim numa
esquina de rua próxima, já depois de ter saído da residência calmamente, quando
então, CAIO reconhecendo as suas jóias, interpelasse MÁRIO, momento em que
vem a ser agredido por este?

Resposta à Questão 1

a) Trata-se do roubo impróprio consumado, ante o uso da grave ameaça para


assegurar a detenção da coisa. Artigo 157, § 1°, do CP.
b) A doutrina amplamente majoritária entende que não, porque se se considerar o
momento consumativo como o do emprego da violência ou ameaça, não é
possível a tentativa: ou há emprego destas medidas, e o roubo se consuma; ou
não há, e o furto se consuma.
c) Se há um só bem em condomínio, o patrimônio é um só, e o crime é igualmente
único. No caso, se há mais de um bem, cada um com mais de um dono, a
configuração de um ou mais crimes dependerá do elemento cognitivo do dolo do
agente: se ele sabe que há pluralidade de titulares, há quantos crimes haja
patrimônios, em concurso formal; se não sabe que há vários donos, há um só
crime.
d) O crime seria impossível por ausência do objeto, pois não há bem jurídico a ser
afetado. Contudo, se usa da violência ou ameaça, por estes atos responderá, na
capitulação autônoma correspondente.
e) Haveria roubo próprio, do caput do artigo 157 do CP.
f) Neste caso, a subtração já se aperfeiçoou, já tendo sido consumado o furto. A
violência, destacada do contexto da subtração, deve ser autonomamente punida,
como lesão corporal, na gravidade que for casuística.

Michell Nunes Midlej Maron 200


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Questão 2

AUGUSTO, pretendendo roubar um automóvel, procura seu amigo JOSÉ e pede


sua ajuda. JOSÉ se recusa a acompanhar AUGUSTO na conduta de subtração, mas
oferece a garagem de sua casa para que o veículo seja ocultado. Ante essa promessa,
AUGUSTO subtrai um automóvel e, quando chega a casa de JOSÉ, este se diz
impossibilitado de cumprir o prometido porque seu pai havia estacionado seu automóvel
na garagem oferecida. Na qualidade de Promotor de Justiça defina penalmente as
condutas de AUGUSTO e JOSÉ. RESPOSTA OBJETIVAMENTE JUSTIFICADA.

Resposta à Questão 2

Augusto responde, sem qualquer dúvida, pela subtração cometida, a todo ver furto.
A questão é capciosa quanto a José. Veja: para que se possa falar em concurso de pessoas, é
preciso que haja três requisitos: pluralidade de agentes, liame subjetivo entre eles, e
relevância causal das condutas, todas elas, cada qual em certa monta. No caso concreto, há
dois requisitos bem configurados: a pluralidade e o liame; o terceiro, antecipe-se logo, está
também presente: há relevância causal. Senão, vejamos.
Aparentemente, o fato de José não ter guardado o carro parece ter sido determinante
para excluir qualquer relevância de sua conduta. Porém, veja a seguinte peculiaridade:
Augusto só agiu, como se vê no enunciado, “ante essa promessa” (de ocultação do carro
por José), o que identifica uma alta relevância da conduta de José, no plano moral, para a
empreitada criminosa de Augusto. Em verdade, pode-se dizer que foi mesmo um incentivo
determinante para existir o crime.
Destarte, não importa se a promessa será cumprida ou não: a relevância surgiu no
plano moral, antes mesmo da subtração. Está perfeitamente configurado, portanto, o
concurso de pessoas, e José é partícipe por instigação, devendo responder pelo mesmo
delito, na medida de sua culpabilidade.
A título de exercício hipotético, se José e Augusto não se falassem antes do crime, e,
posteriormente, José aceitasse guardar o carro furtado por Augusto, qual seria a capitulação
da conduta de José? Ele se enquadraria em receptação ou em favorecimento real, a
depender do seu dolo: se há dolo de lucro, em proveito próprio ou alheio, há receptação; se
o dolo fosse de ajudar o meliante, apenas, sem finalidade alguma em se favorecer ou a
outrem, senão o próprio furtador, há favorecimento real.

Questão 3

LUCIANA trabalhava em uma joalheria. Certo dia, WLADIMIR chegou à loja, e


pediu a ela que lhe mostrasse algumas jóias, o que fez imediatamente, colocando o
mostruário sobre o balcão quando, então, o suposto cliente anunciou o assalto, tendo dito
que estava armado, e que poderia matá-la. LUCIANA notou, contudo, que o assaltante não
tinha qualquer arma e agarrou-se ao mostruário; WLADIMIR conseguiu pegar algumas

Michell Nunes Midlej Maron 201


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

peças e saiu correndo, com a vendedora em seu encalço, gritando "pega ladrão", o que
levou à prisão do assaltante e à recuperação das jóias. Capitule os fatos.

Resposta à Questão 3

Estaria configurado, a todo ver, o roubo próprio tentado. Entretanto, a


jurisprudência já enfrentou o caso, entendendo que o fato em questão configurou furto, ao
seguinte argumento: a ameaça, no caso, foi inidônea, inapta a causar temor à vítima. Se a
vítima reagiu, seria porque não acreditou na ameaça, e por isso é como se esta não houvesse
existido – restando o furto.
Esta posição é um tanto estranha, porque o enfoque, na verdade, deveria ser outro:
se houve reação por parte da vítima, é justamente porque esta acreditou que havia ameaça,
mas achou que poderia suplantá-la. Se achasse que não havia ameaça, não haveria reação; a
vítima simplesmente ignoraria o agente, desconsiderando qualquer conduta deste como
ameaçadora. Em verdade, o que este entendimento faz é criar a seguinte premissa, bastante
perigosa: se a vítima é corajosa o suficiente para reagir, toda ameaça contra ela será
inidônea, e ela simplesmente nunca poderá ser vítima de roubo, mas somente furto.
Ameaça inidônea, tecnicamente, é aquela que não provoca qualquer temor na
vítima, que sequer reagirá porque simplesmente não entende que haja ameaça alguma.
Como exemplo, o meliante que diz para um ateu “me dê sua bolsa ou Deus lhe mandará
para os terrenos áridos dos domínios de Lúcifer”: não há a menor chance de que esta vítima
se sinta intimidade por esta “ameaça”, pelo que esta sim é considerada inexistente – se há
subtração, aqui, há furto.
Debalde, a tese de que houve furto preponderou na casuística em questão, como se
vê na Apelação Criminal 2003.050.04460, do TJ/RJ:

“Processo 2003.050.04460. 1ª Ementa – APELACAO. DES. PAULO CESAR


SALOMAO - Julgamento: 30/03/2004 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL.
ROUBO. TENTATIVA. DESCLASSIFICACAO DO CRIME. FURTO.
SUBSTITUICAO DA PENA. ROUBO TENTADO. GRAVE AMEAÇA:
INTELIGÊNCIA. APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA DESCLASSIFICAR A
CONDUTA DO APELANTE PARA AQUELA OUTRA TIPIFICADA NO ART.
155, CAPUT, COMBINADO COM O ART. 14, II, DO CÓDIGO PENAL, NOS
TERMOS DO VOTO DO REVISOR. MAIORIA. Grave ameaça, elemento do tipo
do crime roubo, é aquela capaz de paralisar a vítima, reduzindo-a à impossibilidade
de resistência. Quando a ofendida percebe a tibieza do agente e resiste à sua
investida sobre os objetos sem qualquer temor, para impedir a subtração, não há
grave ameaça, nem roubo, mas apenas furto. Recurso provido por maioria, com a
divergência do relator.”

Michell Nunes Midlej Maron 202


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XVI

Roubo II. 1) O roubo circunstanciado. Espécies. 2) Aspectos controvertidos .3) Concurso de crimes. 4) Pena
e ação penal.

Notas de Aula30

1. Roubo circunstanciado

O § 2° do artigo 157 do CP trata do roubo majorado, arrolando cinco hipóteses, que


serão abordadas de forma individualizada. Antes, porém, cabe trazer aqui a discussão que
vige sobre a própria natureza destas circunstâncias, que são causas de aumento de pena,
enquanto algumas delas têm natureza de qualificadoras do crime de furto.
O concurso de pessoas, por exemplo, é uma qualificadora do furto, dobrando a
escala penal, como visto; no roubo, é causa de aumento de pena, que apenas permite ao juiz
majorar a pena de um terço à metade. A mesma situação fática – a reunião de pessoas no
cometimento do delito – tem natureza diversa nos crimes, sendo mais branda sua
consideração no crime mais grave, o que gera discussões doutrinárias severas, ante a
suposta desproporção.
Ocorre que não há qualquer desproporção, se for analisada a questão do ponto de
vista matemático. Enquanto no furto há duplicação porque a escala penal passa de um a
quatro para dois a oito anos, se esta fórmula fosse utilizada no roubo, a pena seria de oito a
vinte anos, eis que a ordinária é de quatro a dez. Aí, sim, a desproporção seria gritante, ao
se punir um roubo em concurso de pessoas com pena desta amplitude. Por isso, a tese é
fraca, pois a dobra da escala, no roubo em concurso, seria absurdamente desproporcional
ante a reprovabilidade que se quer estampar neste delito. Se a base de cálculo é distinta,
nada impede que a natureza do aumento da pena seja igualmente distinta.
Neste sentido, descartando a tese de incompatibilidade das naturezas diversas das
circunstâncias nos crimes de roubo e furto, veja o HC 92.628, do STF, do qual consta uma
frase que resume bem a questão: “A diversidade dos parâmetros confere integral
legitimidade à diferença das frações de aumento”. Veja:

“HC 92628 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 19/08/2008. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Publicação:19-12-2008.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE BAGATELA. TESE NÃO
SUBMETIDA ÀS INSTÂNCIAS INFERIORES. NÃO CONHECIMENTO.
CRIME DE FURTO E CRIME DE ROUBO. CONCURSO DE AGENTES.
AUMENTOS DE PENA DIFERENCIADOS. PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE. VIOLAÇÃO INOCORRENTE. DIVERSIDADE DOS
PARÂMETROS. IMPOSSIBILIDADE DE COMBINAÇÃO ENTRE
PRECEITOS NORMATIVOS. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E
DA RESERVA LEGAL. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E
DENEGADA. 1. A alegação de insignificância da conduta por cuja prática o
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Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 30/10/2009.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

paciente foi condenado não foi objeto de impugnação nas instâncias inferiores,
razão pela qual o pleito não pode ser conhecido, nesta parte. 2. Não se constata a
alegada desproporcionalidade da pena imposta pelo legislador ao furto qualificado
pelo concurso de agentes, quando comparada ao roubo agravado pela mesma
circunstância (art. 155, §4º, e art. 157, §2º, do Código Penal). 3. O parâmetro
adotado pelo legislador para a elevação da pena no crime de roubo é a pena
prevista para o referido delito, praticado na modalidade simples. 4. Por esta razão,
é impossível aplicar, à pena do furto simples, a fração prevista pelo legislador para
incidir sobre uma pena muito maior, que é a do roubo simples. A diversidade dos
parâmetros confere integral legitimidade à diferença das frações de aumento. 5.
Ademais, não é dado ao Poder Judiciário combinar previsões legais, criando uma
terceira espécie normativa, não prevista no ordenamento, sob pena de ofensa ao
princípio da Separação de Poderes e da Reserva Legal. Não há pena sem prévia
cominação legal. É um atentado contra a própria democracia permitir que o Poder
Judiciário institua normas jurídicas primárias, criadoras de direitos ou obrigações.
Ausência de legitimidade democrática. 6. Ordem parcialmente conhecida e, nesta
parte, denegada.”

A pena do roubo circunstanciado, então, é aumentada de um terço à metade, como


diz o § 2° em comento. Ali, como dito, há cinco hipóteses em que se constata o roubo
majorado, mas repare em um detalhe fundamental: há uma só causa de aumento de pena,
qual seja, a do § 2° como um todo. Isto é absolutamente relevante pois, mesmo que haja
mais de uma incidência nos incisos deste dispositivo, há um só aumento da pena, de um
terço à metade. O que vai variar, quando ocorrer, na casuística, mais de uma das
circunstâncias, é a gradação entre a majoração de um terço à metade da pena, e não a
incidência de mais de um aumento de um terço à metade.
Veja: se o crime é cometido com arma de fogo (inciso I) e em concurso de pessoas
(inciso II), não se pode jamais entender que se majorará a pena de um terço à metade, por
conta da arma, e mais um terço à metade, por conta do concurso; majora-se uma vez só, e
como há duas hipóteses, provavelmente o aumento será de mais de um terço. Esta é a
lógica, aqui.
Repare que o termo provavelmente foi utilizado acima, e não o termo certamente,
porque a jurisprudência, neste ponto, tem orientado que não basta que ocorra mais de uma
hipótese das majorantes para que o aumento seja, necessariamente, acima do mínimo. Por
isso, se há concurso de pessoas e emprego de arma, ainda assim o aumento poderá ser de
apenas um terço. A verificação tem que ser casuística, e não objetiva, não sendo automática
a majoração em gradação maior do que a mínima pela só presença de duas ou mais
hipóteses da causa de aumento de pena. Veja, neste sentido, o HC 45.875 do STJ:

“HC 45875 / SP. DJ 27/03/2006 p. 308.


CRIMINAL. HC. ROUBO QUALIFICADO. REGIME PRISIONAL FECHADO.
GRAVIDADE DO CRIME. IMPROPRIEDADE DA FUNDAMENTAÇÃO.
PACIENTE PRIMÁRIO E SEM ANTECEDENTES. CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS FAVORÁVEIS. PENA-BASE NO MÍNIMO LEGAL. DIREITO AO
REGIME SEMI-ABERTO. DUAS MAJORANTES. CONCURSO DE AGENTES.
EMPREGO DE ARMA. EXASPERAÇÃO ATÉ METADE. POSSIBILIDADE.
NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE RAZÕES
CONCRETAS PARA O AUMENTO. MANUTENÇÃO NO PATAMAR MÍNIMO.
ORDEM CONCEDIDA.
I. Se o paciente preenche os requisitos para o cumprimento da pena em regime
semi-aberto, em função da quantidade de pena imposta e diante do reconhecimento
da presença de circunstâncias judiciais favoráveis na própria dosimetria da

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

reprimenda, como a primariedade e a ausência de maus antecedentes, não cabe a


imposição de regime fechado com fundamento exclusivo na gravidade do delito
praticado. Precedentes desta Corte.
II. Entendimento consolidado nas Súmulas n.º 718 e n.º 719 do STF.
III. O concurso de agentes e o emprego de arma de fogo tratam de causas especiais
de aumento de pena e ensejam a dupla valoração e a exasperação da pena em até a
metade, nos termos da previsão legal para tanto.
IV. O entendimento de que a presença de duas qualificadoras pode levar a
majoração da reprimenda além de 1/3, devido ao maior grau de reprovabilidade da
conduta do agente, não implica em dizer que a simples presença das majorantes
justifica, por si só, a majoração da pena acima do mínimo previsto, para o qual
deve haver devida fundamentação.
V. Diante da falta de referência, no acórdão impugnado, de qualquer fato que
evidencie a necessidade de aumento da pena acima do mínimo legal, o mesmo
deve permanecer à razão de 1/3, conforme fixado pela sentença de primeiro grau,
mesmo diante da presença de duas majorantes.
VI. Deve ser determinado o regime semi-aberto para o cumprimento da reprimenda
imposta ao paciente e o restabelecimento da sentença de primeiro grau no tocante
ao aumento de 1/3 relativo às duas qualificadoras dos crimes de roubo.
VII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.”

Mesmo que a posição acima exposta seja predominante na jurisprudência, é de se


criticar tal entendimento, porque seria, sim, bastante para justificar um aumento maior a
ocorrência de duas ou mais circunstâncias que o legislador considerou mais reprováveis. É
claro que a casuística demanda análise subjetiva da reprovabilidade, mas poder-se-ia partir
de um patamar objetivo de maior reprovação da conduta que incide em mais de uma
hipótese de aumento, sem com isso ferir o princípio da responsabilidade penal objetiva.
O raciocínio da jurisprudência, porém, apresenta um aspecto positivo, em sua leitura
transversa: nada impede que, havendo uma só hipótese de aumento da pena, esta possa ser
majorada acima do mínimo de um terço, chegando mesmo ao teto, de metade da pena. Se o
emprego de arma for extremamente violento e acintoso, por exemplo, pode o juiz,
justificadamente, com base em esta única hipótese legal de aumento, majorar a pena acima
de um terço.
Passemos, agora, à análise de cada um dos incisos desta majorante do roubo.

1.1. Emprego de arma

O inciso I do § 2° do artigo 157 do CP dispõe que a pena se majora se a violência ou


ameaça é exercida com emprego de arma. Uma primeira observação, aqui, é que a presença
de uma arma é imperativa, por conta da reserva legal: sem arma, não há a configuração da
majorante. Por isso, não configura esta hipótese o simulacro de arma, ou seja, a arma de
brinquedo, por mais similar que aparente ser. Não há mais esta discussão sobre arma de
brinquedo ser ou não majorante do crime, hoje, pois o próprio STJ cancelou a sua súmula
174, desde 2001, que dizia em sentido contrário ao exposto:

“Súmula 174, STJ: No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo
autoriza o aumento da pena..(*)
(*) Julgando o RESP 213.054-SP, na sessão de 24/10/2001, a Terceira Seção
deliberou pelo CANCELAMENTO da súmula n. 174.”

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O conceito de arma, portanto, é bem restrito, aqui. Há a taxatividade a demandar


esta adequação típica. Não havendo arma, o roubo é simples, ainda que a vítima tenha
acreditado estar diante de uma arma. Esta lógica se repete para todas as causas de aumento
de pena, pois, do contrário, em um exemplo extremado, se poderia entender que um boneco
faria incidir o aumento de pena pelo concurso de pessoas: se a vítima acreditasse que um
boneco, bastante realista, fosse uma pessoa, enquanto um agente dela subtrai coisa sob
ameaça, haveria concurso de pessoas. É claro que assim não ocorre.
O conceito de arma, porém, é abrangente em relação à sua natureza intrínseca, ou
seja, comporta arma própria ou imprópria. Arma própria é aquele objeto que é designado
com a causar ferimentos, mesmo que possa ser usado de outra forma – uma faca, ou uma
arma de fogo; arma imprópria, por sua vez, é aquele que não é originalmente destinado a
este propósito, mas tem potencial para servir como arma – uma garrafa quebrada, uma
chave de fenda, etc.
Discussão que está em voga, hoje, é a que diz respeito à potencialidade ofensiva da
arma: é preciso que a arma realmente tenha este potencial, para haver a causa de aumento,
ou não? Se se tratar de arma de fogo, precisa estar municiada e operante, ou basta que seja
arma de fogo, mesmo sem munição ou com algum defeito que impeça a sua potencialidade
ofensiva?
Duas correntes disputam o tema, hoje. A primeira, objetiva, demanda análise da
causa de aumento sob uma interpretação teleológica, investigadora do escopo da norma.
Esta corrente entende que a finalidade desta norma de aumento de pena, ao reprimir o
roubo com arma, é prevenir que os crimes com maior potencialidade de causação de danos
sejam cometidos: o emprego da arma, no crime de roubo, aumenta em muito o perigo de
que a vítima seja ferida ou morta. Por isso esta corrente é objetiva: ela se preocupa, para
definir o alcance da norma, com a possibilidade de ocorrer dano.
Em se adotando a corrente objetiva, portanto, a potencialidade lesiva é determinante
para a existência da maior reprovabilidade, e, com isso, para a incidência da majorante.
Sendo assim, se a arma não for apreendida, sequer se pode falar nesta majorante, porque
somente com a perícia no instrumento se saberá se ele tinha potencial ofensivo ou não. É
preciso, então, que a arma de fogo esteja municiada, pois sem balas não há a potencialidade
ofensiva a justificar a majorante; e que seja perfeitamente operante, hábil a disparar, pois se
defeituosa, a lesividade não existe, e a majorante igualmente não incide.
Repare, porém, que a perícia pode não ser necessária na casuística, especialmente
quando se tratar de arma de fogo, por uma peculiaridade: se não for encontrada a arma, mas
restar comprovado que houve disparos por parte dos roubadores, está clara a potencialidade
ofensiva objetiva da arma, e por isso a majorante deve incidir. Esta corrente encontra
amparo nos autores mais liberais, diga-se.
A segunda corrente, subjetiva, defendida por Nelson Hungria, entende que a causa
de aumento não se justifica pela potencialidade lesiva, mas sim pelo maior poder de
intimidação que o emprego de arma causa à vítima. com o uso de arma, o roubo se torna
mais eficaz, mais apto ao sucesso, reduzindo ainda mais a capacidade de defesa da vítima,
que, mor das vezes, fica paralisada pelo uso da arma. Sendo assim, basta que fique
comprovada a existência da arma, própria ou imprópria, mesmo que a sua potencialidade
lesiva esteja comprometida – por ausência de munição, sendo arma de fogo, ou por
qualquer causa que torne a arma inoperante.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A corrente objetiva tem prevalecido na Segunda Turma do STF, mas a questão é tão
controvertida, que até mesmo no próprio STF há entendimentos contrários, adotando a
corrente subjetiva. Em prol da corrente objetiva, veja o HC 93.105, da Segunda Turma do
STF:
“HC 93105 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.
CEZAR PELUSO. Julgamento: 14/04/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação:15-05-2009.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Condenação. Delito de roubo. Art. 157, § 2º, I e II, do
Código Penal. Pena. Majorante. Emprego de arma de fogo. Instrumento não
apreendido nem periciado. Ausência de disparo. Dúvida sobre a lesividade. Ônus
da prova que incumbia à acusação. Causa de aumento excluída. HC concedido, em
parte, para esse fim. Precedentes. Inteligência do art. 157, § 2º, I, do CP, e do art.
167 do CPP. Aplicação do art. 5º, LVII, da CF. Não se aplica a causa de aumento
prevista no art. 157, § 2º, inc. I, do Código Penal, a título de emprego de arma de
fogo, se esta não foi apreendida nem periciada, sem prova de disparo.”

A Primeira Turma do STF, por seu turno, tem julgado adotando a corrente subjetiva,
de certa forma. Não é que dispense a lesividade da arma, nem que esta seja esta lesividade
desprezada como mens da causa de aumento: exige lesividade, sim31 – no que se aproxima
da corrente objetiva. Porém, cria uma espécie de presunção de lesividade imanente a
qualquer arma, dispensando a prova pericial, ou dos disparos, no caso de arma de fogo.
Veja, o HC 94.237, da Primeira Turma do STF:

“HC 94237 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 16/12/2008. Órgão Julgador: Primeira
Turma. Publicação: 20-02-2009.
EMENTA: ROUBO QUALIFICADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO.
APREENSÃO E PERÍCIA PARA A COMPROVAÇÃO DE SEU POTENCIAL
OFENSIVO. DESNECESSIDADE. CIRCUNSTÂNCIA QUE PODE SER
EVIDENCIADA POR OUTROS MEIOS DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I -
Não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo empregada no
roubo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que tal qualidade integra a
própria natureza do artefato. II - Lesividade do instrumento que se encontra in re
ipsa. III - A qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal, pode ser
evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima -
reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente - ou pelo depoimento de
testemunha presencial. IV - Se o acusado alegar o contrário ou sustentar a ausência
de potencial lesivo da arma empregada para intimidar a vítima, será dele o ônus de
produzir tal prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. V - A arma
de fogo, mesmo que não tenha o poder de disparar projéteis, pode ser empregada
como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves. VI - Hipótese que
não guarda correspondência com o roubo praticado com arma de brinquedo. VII -
Precedente do STF. VIII - Ordem indeferida.”

1.2. Concurso de pessoas

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A adoção da corrente subjetiva pura, de Nelson Hungria, a meu ver, parece entrar em contradição com a
desconsideração da arma de brinquedo enquanto arma, para efeitos legais, o que impede a aplicação desta
corrente. Veja: se se concentrar a análise do conceito de “arma” na sua potencialidade intimidadora, ou seja,
aos olhos da vítima, não se poderá defender que uma arma de brinquedo extremamente realista não se
enquadre nesta causa de aumento. Por isso, me parece que a posição da Primeira Turma do STF, que entende
que a lesividade é necessária, mas pode ser presumida, é a melhor. Ressalto que é conclusão pessoal.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O inciso II do § 2° do artigo 157 do CP determina que o roubo é majorado quando


há, no seu cometimento, o concurso de duas ou mais pessoas. Discussão empreendida no
furto qualificado por concurso de pessoas, que se reprisa, aqui, é sobre a necessidade ou
não da presença dos agente plurais no ato núcleo do tipo, ou seja, na subtração.
Há duas correntes: a primeira defende que é necessário, para se configurar o
concurso, que todos os agentes participem diretamente do ato de subtrair com violência ou
grave ameaça. Por isso, como exemplo, se alguém fornece as informações sobre a vítima, e
um outro agente, com base nestas informações, procede sozinho à subtração com violência,
não haveria a majorante do concurso de pessoas. Assim entende Nelson Hungria, pois
entende que a maior reprovabilidade do concurso de agentes, no furto ou no roubo, só se
exibe quando a ação nuclear é praticada por duas ou mais pessoas, porque o que o concurso
de agentes empresta ao fato é uma maior facilidade de obtenção de sucesso na empreitada
criminosa – o que fica mais evidente no roubo, ante a maior intimidação da vítima quando
há mais de um roubador a seus olhos.
A segunda corrente, porém, defende que qualquer participação plural de pessoas no
crime, qualquer que seja sua forma ou intensidade, é suficiente para configurar a majorante,
aqui, e a qualificadora, no furto. Isto porque há um termo legal, empregado em ambos os
casos, que dá a nota: a palavra “concurso”. Este termo legal tem um significado técnico,
dado pelo artigo 29 do CP, e assim deve ser interpretado:

“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
(...)”

Ora, o concurso é, por definição, a participação “de qualquer modo” na empreitada


criminosa. Se o legislador empregou o termo “concurso”, esta é sua intenção, e é bastante
coerente com a conclusão que até mesmo a primeira corrente chegou, diga-se, sobre a mens
do dispositivo – evitar o meio de cometimento que cria maior chance de sucesso no delito.
Veja o exemplo dado acima: se alguém fornece informações sobre a vítima, e com base
nestas, outro roubador a ataca com violência, subtraindo os bens, a participação do
informante foi determinante para o sucesso da empreitada, mesmo que não estivesse
presente no momento da subtração, praticando o ato nuclear. Por isso, o concurso foi um
elemento de incremento da chance de sucesso, e por isso a reprovabilidade da conduta é
maior, despertando a incidência da majorante. Esta corrente, de Capez, Damásio, entre
outros, é claramente mais coerente.
Repare, inclusive, que o legislador sabe bem o significado técnico da expressão
“concurso”, pois quando quer que seja outra a interpretação, não emprega este termo. Veja,
por exemplo, o § 1° do artigo 146, já abordado:

“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução
do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
(...)”

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O legislador não usou o termo concurso, o que significa, neste crime supra, que para
que haja o aumento de pena, é preciso que haja a reunião presencial de mais de três
pessoas, no cometimento do verbo nuclear. Aqui, sim, despreza-se a participação de pessoas
que não estejam realizando a conduta nuclear.
Outro exemplo que pode ser apontado é o da extorsão majorada, do artigo 158, § 1°,
do CP:

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
(...)”

O legislador poderia ter redigido, ali, o seguinte teor: “se o crime é cometido em
concurso...”. Quando preferiu escrever “se o crime é cometido por duas ou mais pessoas...”,
quis dizer que a execução do verbo nuclear com pluralidade de agentes é que é mais
repreensível, e não qualquer forma de participação. Aqui, também, a eliminação da palavra
concurso faz desprezível a participação alheia à nuclear.
Debalde a coerência desta segunda corrente, o STJ, no REsp. 90.451, adota a tese da
necessidade de realização da conduta típica diretamente por todos, para que se reconheça o
concurso. Note que se trata de julgado referente a furto, mas a discussão é a mesma no
roubo, como dito. Veja:

“REsp 90451 / MG. DJ 30/06/1997 p. 31090.


PENAL - FURTO SIMPLES - CONCURSO DE PESSOAS - APELAÇÃO DO
MP IMPROVIDA - RECURSO ESPECIAL - NEGATIVA DE VIGENCIA AOS
ARTS. 155, PAR. 4., IV C/C 29 DO CP.
1. A QUALIFICADORA DO CONCURSO DE PESSOAS TEM LUGAR EM
FACE DA MAIOR AMEAÇA AO BEM JURIDICO TUTELADO.
2. NO CASO DE FURTO ONDE APENAS UM DOS AGENTES SUBTRAI A
COISA, CABENDO AO OUTRO OCULTA-LA, NÃO SE CONFIGURA A
QUALIFICADORA DO CONCURSO DE PESSOAS.
3. SERIA NECESSARIO QUE OCORRESSE A COOPERAÇÃO DE AMBOS
NA SUBTRAÇÃO DA COISA PARA QUE FOSSE APLICADA A
QUALIFICADORA.
4. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.”

Em outra questão sobre o concurso, é preciso deixar claro que a participação do


menor é suficiente para configurar a majorante para aquele roubador que a ele se reúne para
a prática do crime. Afinal, menor é pessoa, e o dispositivo exige a participação plural de
pessoas para configurar a causa de aumento. É claro que é preciso que haja o liame
subjetivo entre o agente e o menor, sendo óbvio, por exemplo, que a mãe que carrega a
criança no colo ao roubar alguém não está inserida no concurso de pessoas.
Outra questão é a existência ou não de bis in idem na imputação simultânea desta
causa de aumento de pena e do crime de quadrilha ou bando. É majoritário o entendimento
de que não há qualquer óbice a esta imputação simultânea, não configurando bis in idem,

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

porque os bens jurídicos protegidos são completamente distintos: há aqui a proteção ao


patrimônio, enquanto na quadrilha ou bando a proteção é da paz pública.

1.3. Vítima em transporte de valores

O inciso III do § 2° do artigo 157 do CP diz que o roubo é majorado se a vítima está
em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância.
A tutela do legislador, aqui, certamente se dirigiu aos carros-fortes, mas não se
restringe exclusivamente a este transporte profissional de valores. Nada impede, por
exemplo, que o office-boy que é incumbido rotineiramente pelo patrão de levar a féria do
dia ao banco seja roubado no caminho, por alguém que sabia de sua condição de
transportador de valores, naquele momento – configurando a majorante.
Veja que é preciso que a vítima esteja em serviço de transporte, mas não que seja
esta a sua única profissão, como dos transportadores em carros-fortes. Basta que esteja nas
suas atribuições, e não que seja sua única função.
Uma única polêmica surge quanto a esta majorante: pode o dono do dinheiro ser
vítima deste delito majorado? Veja um exemplo: pode o dono de uma sociedade comercial,
que é quem leva a féria do dia ao banco, ser considerado transportador de valores, para
efeitos da majorante?
A doutrina se divide: há quem diga que, se é o próprio dono dos valores quem está
realizando o seu transporte, não está em serviço de transporte – não pode trabalhar para ele
mesmo –, pelo que se desnaturaria a majorante. Outra parcela da doutrina defende que, se o
dinheiro é da féria da empresa, o dono que o transporta, na verdade, está sim a serviço de
transporte, porque aqueles valores pertencem à pessoa jurídica, e não a ele próprio. Não é
dono, na verdade, até que haja a sua retirada oficial do valor como pro labore.

1.4. Remessa de veículo automotor para outro Estado ou país

Diz o inciso IV do § 2° do artigo 157 do CP que a pena se majora se a subtração for


de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
Aqui, se repete toda a digressão tratada no furto, em que há esta mesma causa de maior
reprovabilidade na conduta, como qualificadora.
A doutrina tem entendido, após muita polêmica, que esta situação só se configura
quando o veículo for efetivamente levado para outro Estado ou para o exterior, não havendo
que se perquirir se o agente tem ou não esta intenção quando da subtração.
A mens, do dispositivo, é prevenir a dificuldade de possível localização destes
veículos, que se majora quando há a remessa destes bens aos locais mencionados. Por isso,
é de se refletir sobre a seguinte situação: se o agente roubar um bem, levá-lo a outro Estado
ou país, mas retornar com este bem ao local de origem, a incidência da majorante perderia
sentido – sua mens ficando prejudicada, eis que não haverá a maior dificuldade em localizar
o veículo. Contudo, não há acolhimento desta reflexão, na doutrina ou jurisprudência.
A maior polêmica, aqui, porém, reside na admissibilidade ou não de tentativa. A
corrente majoritária entende-a descabida, mas há quem defenda que, se o agente está em
fuga, sendo preso antes de cruzar a fronteira, estaria configurada a tentativa de roubo
majorado nesta causa do inciso IV, mas é minoritária. É mesmo mais coerente a corrente

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

que entende incabível. Para maior aprofundamento, remete-se ao estudo realizado no tipo
penal do furto qualificado.

1.5. Restrição da liberdade da vítima

Diz o inciso V do § 2° do artigo 157 do CP que a pena é majorada se o agente


mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.
O principal problema, aqui, é comparativo, eis que da casuística pode surgir
bastante confusão entre este roubo majorado e o sequestro relâmpago, do artigo 158, § 3°,
do CP, ou a extorsão mediante sequestro, do artigo 159 do CP:

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
(...)
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
Pena - reclusão, de oito a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990)
(...)”

O primeiro passo é saber se se trata de roubo ou extorsão. Definido isto, ao se


entender que não é roubo, se pode passar à análise da casuística, a fim de definir se o
enquadramento é em um ou outro tipo dos acima transcritos, ou, se for roubo, se há ou não
a incidência da majorante.
Portanto, a primeira diferenciação que se faz é se há roubo ou se há extorsão. Para
tanto, é fundamental
Definido que há roubo, há duas questões a se verificar para a incidência ou não da
majorante do inciso V. O primeiro aspecto a ser constatado é se a intenção, o propósito da
restrição da liberdade da vítima, é tão-somente garantir o sucesso da subtração: somente
com este único propósito é o que faz incidir nesta majorante, e não configurar um crime
autônomo. Se o propósito passar disso, há crime autônomo de, no mínimo, com o
sequestro, do artigo 148 do CP, em concurso com o roubo simples. Um exemplo em que a
restrição da liberdade traz a incidência da majorante, por este aspecto, é o daquela vítima
que é contida enquanto roubam-lhe o carro, e depois é libertada em local ermo, a fim de
que demore a acionar socorro.
No sequestro relâmpago, bem como na extorsão, os propósitos da restrição de
liberdade da vítima são diversos desta asseguração da subtração.

Michell Nunes Midlej Maron 211


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Segundo aspecto do roubo circunstanciado pela restrição da liberdade da vítima é se


há esta restrição por um tempo juridicamente relevante. Esta definição é bastante casuística,
diga-se.

Casos Concretos

Questão 1

PEDRO foi denunciado pelo órgão do Ministério Público nas sanções do artigo
157, § 2º, I, II e V, do Código Penal, porque, nos exatos termos da denúncia, no dia
20/03/2001, com emprego de um revólver e em concurso com três menores, roubou o
automóvel de MIGUEL, que estava parado no sinal existente entre as ruas Bartolomeu
Mitre e Humberto de Campos, no Leblon. Dando continuidade ao delito, PEDRO e seus
comparsas puseram MIGUEL no porta-malas e o levaram para a favela do Jacarezinho,
onde ele foi colocado, amarrado, no interior de uma casa. Em seguida, PEDRO e seus
asseclas pegaram o automóvel e saíram para praticar roubos a postos de gasolina da
região, sendo que, no caminho, como não era habilitado nem sabia dirigir direito, PEDRO
perdeu a direção do carro e colidiu com um muro existente próximo a um ponto de ônibus,
onde se encontravam diversas pessoas. Chamada a polícia, rapidamente foi descoberto
que o carro era roubado e uma hora depois os policiais chegaram ao cativeiro, resgatando
MIGUEL. Finda a instrução criminal, os fatos articulados pelo Ministério Público
resultaram integralmente provados. Pergunta-se: está correta a classificação conferida aos
fatos pelo órgão acusador?

Resposta à Questão 1

A capitulação está errada apenas quanto à incidência do inciso V do artigo 157,


porque a restrição da liberdade da vítima superou, em larga monta, o propósito de apenas
assegurar a subtração: há, por isso, concurso entre o roubo majorado pelos incisos I e II do
§ 2° do artigo 157, mas em concurso com o crime de cárcere privado, do artigo 148 do CP.
Há também a capitulação do artigo 309 do CTB, ante as condutas desastradas dos
agentes na condução do veículo, posterior ao roubo de que este carro foi objeto.

“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para
Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

Por fim, há a capitulação da conduta de corromper os menores, que se verifica no


artigo 244-B do ECA:

“Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos,


com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Michell Nunes Midlej Maron 212


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

§ 1o Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali
tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-
papo da internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2o As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço no caso
de a infração cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1o da Lei no 8.072,
de 25 de julho de 1990. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)”

Questão 2

O Ministério Público denunciou LEONARDO e ALDO pela prática dos delitos de


roubo com emprego de arma e concurso de agentes, tentado, em concurso material com o
porte de arma proibida. A mecânica do evento se deu da seguinte forma: os réus chegaram
em uma agência bancária e anunciaram o "assalto". Ato contínuo, iniciou-se a troca de
tiros, pois os seguranças do estabelecimento reagiram ao crime; LEONARDO e ALDO
"bateram em retirada" e foram perseguidos pela polícia, que logrou prendê-los 2 horas
após o fato. Diante do acontecido, o MP denunciou os acusados nos termos acima
expostos, argumentando que, se o uso de arma foi causa de incidência da majorante do
crime de roubo, o mesmo não pode ser considerado em relação ao momento em que os
réus foram presos (duas horas após), pois, nessa ocasião, o evento "roubo tentado" já
havia ocorrido e, no momento da prisão, aí sim, estavam somente na situação flagrancial
do crime de porte de arma proibida (art. 16, caput da lei 10.826/03). A defesa pleiteia a
absolvição e, socorrendo-se da eventualidade, requer que, no caso de haver condenação,
que esta se dê somente em relação ao crime de roubo majorado, tentado. Decida a
questão.

Resposta à Questão 2

O porte de arma não se desprendeu da conduta do roubo, e por isso é por este
absorvida. Não se pode falar, no caso, que houve desígnio autônomo em portar a arma, pelo
que está certa a defesa quanto a sua tese subsidiária.
A respeito, veja a Apelação Criminal 2001.050.3691, do TJ/RJ:

“Processo: 2001.050.3691. 1ª Ementa – APELACAO. DES. EDUARDO MAYR -


Julgamento: 17/07/2002 - SEXTA CAMARA CRIMINAL.
ROUBO. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. CONDENACAO MANTIDA.
PORTE DE ARMA. EXCLUSAO. PREVALENCIA DA MAIORIA.
ROUBO. EMPREGO DE ARMA. Se o agente é preso logo após o roubo em que
houve emprego de arma, com esta, há que se reconhecer apenas o crime contra o
patrimônio, absorvido o porte ilegal, pois do contrário, em todos os crimes onde
houver a exibição ou uso de arma, como o homicídio, estupro, atentado ao pudor,
etc... haveria que se reconhecer o cúmulo de delitos. Apelo defensivo parcialmente
provido. Voto vencido.”

Veja que o que se entendeu, neste acórdão, é que a absorção do porte é sempre
necessária, quando a exibição da arma for o meio utilizado para cometer o delito. Isto é
óbvio, e não é o que está em discussão, aqui. Parece que o cerne real da questão é o
destacamento contextual, do porte da arma, da conduta criminosa em que esta foi
empregada: se há porte da arma em contexto separado do crime, há punição autônoma, e

Michell Nunes Midlej Maron 213


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

não é o que se deu no caso, porque os agentes ainda estavam no contexto do roubo tentado,
quando capturados. Fossem pegos em momento muito posterior, ou mesmo neste mesmo
tempo, mas claramente alheados do roubo – estavam em uma festa, já despreocupados, por
exemplo – e o porte seria punível.

Questão 3

Um casal de namorados se encontra em um motel, quando é surpreendido por dois


assaltantes. Ameaçando-os de morte, os assaltantes lhes exigem todo o dinheiro que
possuíam, o que importava, afinal, em R$ 100,00 (cem reais). Insatisfeitos com o montante
arrecadado, os assaltantes decidem que o namorado deveria fazer algumas retiradas em
caixas eletrônicos acompanhado de um deles, enquanto a mulher permaneceria no motel
sob a ameaça do outro até que aquele regressasse com uma quantia maior em dinheiro.
Assim o fazem. Enquanto o assaltante A fica com a mulher em seu poder, o assaltante B sai
com a outra vítima para efetuar os saques. Depois de arrecadar em dois caixas com o uso
do cartão da vítima R$ 500,00, o assaltante B resolve também violar uma agência
bancária, vindo a ser preso justamente na hora em que rompia com uma pedra a porta de
entrada da agência da Caixa Econômica Federal situada na Avenida Rio Branco. Indique
os crimes que devem ser imputados aos assaltantes A e B.

Resposta à Questão 3

O roubo majorado pelo concurso está claramente configurado, e a segunda conduta


se desenha como extorsão qualificada. A capitulação, portanto, é no artigo 157, § 2°, II, em
concurso com o sequestro relâmpago, do artigo 158, § 3°, do CP.
Minoritariamente, há quem entenda que, subtraído o bem, e só após decide o agente
que a vítima será levada a sacar valores em caixa-eletrônico, há a progressão criminosa de
roubo para extorsão, respondendo só por esta, e não concurso entre roubo e extorsão: é o
mesmo bem jurídico – patrimônio da vítima – sendo atacado na mesma dinâmica fática.

Michell Nunes Midlej Maron 214


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XVII

Roubo qualificado (lesão corporal grave e morte). Latrocínio. 1) Considerações gerais: a) Definição e
evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) A tentativa
nestas modalidades de crime complexo. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação
penal.

Notas de Aula32

1. Roubo qualificado

Diz o § 3° do artigo 157 do CP que, no curso do roubo com emprego de violência,


se desta violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos,
além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa.
Quando se tratar deste resultado morte, o crime recebe a alcunha de latrocínio.
A primeira menção que se deve fazer, aqui, é que quando há o resultado morte, o
crime é hediondo, na forma do artigo 1°, II, da Lei 8.072/90:

“Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou
tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)
II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de
6.9.1994)
(...)”

Estes resultados qualificam o delito tanto a título de dolo quanto de culpa, e não
apenas quando culposos, como na maioria dos delitos. Não só a forma preterdolosa,
portanto – com culpa no resultado consequente – é punível nesta forma, mas também a
dolosa. Assim ocorre porque é preciso atentar, aqui, para o princípio da proporcionalidade.
Entenda: os crimes mais brandos, em princípio, são os culposos, sendo os dolosos
mais graves. Entre eles, em nível de gravidade, está o crime preterdoloso, que é o doloso
que tem resultado mais gravoso ocorrido a título de culpa. Por isso, não se pode ter um
crime preterdoloso mais brandamente punido do que um culposo, ou mais severamente
punido do que um crime doloso, por pura coerência sistêmica.
Dito isto, se a pena do latrocínio tem início em vinte anos, no mínimo, se se atribuir
qualidade de preterdolosa a esta morte, ou seja, entender que ali se amolda apenas o crime
culposo, se estará criando violação flagrante do princípio da proporcionalidade, porque o
roubo consumado e o homicídio doloso consumado – o que seria a situação se o resultado
morte doloso fosse alheado deste § 3° do artigo 157 –, em cúmulo material, partiria de pena

32
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 30/10/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 215


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

mínima de dezesseis anos, quatro do roubo e doze do homicídio. Enquanto isto, no roubo
com resultado morte culposo, a pena mínima partiria de vinte anos, como reputa o
dispositivo em comento. Ou seja, dois crimes dolosos – roubo e homicídio – teriam pena
inferior a um crime doloso e um culposo – latrocínio preterdoloso. Daí a desproporção, e
daí o entendimento de que, no roubo seguido de morte, tanto faz se esta morte é culposa ou
dolosa: o enquadramento é no § 3° do artigo 157, havendo sempre o latrocínio.
Há, no entanto, que se apontar que há, mesmo assim, uma quebra da
proporcionalidade, porque há a mesma punição para quem causa a morte dolosa e
culposamente – a escala penal é a mesma, iniciada em vinte anos. Esta dissonância só pode
ser solucionada pelo juiz, no cômputo da pena, quando da mensuração das circunstância
judiciais para definir a pena-base: a pena daquele que tem dolo na morte será mais
reprovável, e sua pena será maior do que aquele que causou a morte culposamente, no
roubo.
É claro que, não havendo dolo ou culpa, não há que se falar em imputação deste
resultado ao agente, a qualquer título. O crime será somente o de roubo, por óbvio.
Veja que, curiosamente, há aqui a estranha situação em que há um crime em que há
dolo de matar, e que não será julgado pelo tribunal do júri. Isto porque o bem jurídico
tutelado, neste capítulo e neste delito, é o patrimônio, e não a vida. Veja a súmula 603 do
STF:

“Súmula 603, STF: A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do


juiz singular e não do tribunal do júri.”

Aberta que está a possibilidade de morte dolosa, aqui, abre-se também uma
possibilidade que não há quando há apenas culpa, quando o crime é preterdoloso: passa a
ser possível a tentativa.
As causas de aumento de pena do roubo circunstanciado, trazidas no já abordado §
2° do artigo 157 do CP, não podem ser aplicadas ao latrocínio. A questão já foi abordada,
quando da análise da privilegiante e das qualificadoras do furto, tratando-se da situação
topográfica do dispositivo, que não pode sofrer a incidência de majorante que o antecede.
O latrocínio, e o resultado lesão grave, se configura quer seja cometido o roubo
próprio ou impróprio, sem qualquer problemática. A qualificadora não alcança, porém, a
violência imprópria, que é aquela constatada na elisão da capacidade de defesa da vítima,
alcançando apenas a violência real. Entenda: o resultado qualificador, seja ele a lesão grave
ou a morte, deve ser uma decorrência direta da lesão causada no cometimento do roubo,
como diz o dispositivo, ao trazer expresso que “se da violência resulta lesão corporal grave
(...); se resulta morte (...)”. A violência imprópria, enquanto redução da capacidade de
resistência da vítima, não tem este potencial, não decorrendo dela a lesão grave ou a morte.
Veja que se o legislador empregasse a redação “se do fato resulta morte (...)”, como o fez
no artigo 159, §§ 2° e 3°, qualquer morte dolosa ou culposa, resultante de qualquer forma
de violência empregada no roubo, seria incidente na qualificadora do § 3° do artigo 157.
Em síntese: só há a qualificadora se o resultado é de violência real. Note que se a
vítima tem lesão grave, ou morre, em decorrência indireta da violência imprópria, não há o
latrocínio, mas pode haver o concurso do roubo com o crime que tenha ocorrido. Veja um
exemplo: aplicado o “boa noite Cinderela”, a vítima tem os bens subtraídos, e é abandonada
ao relento, em lugar ermo. Ocorre que a dose da droga ministrada foi excessiva, mas não o
suficiente para matar ou debilitar permanentemente a vítima. Porém, como foi abandonada

Michell Nunes Midlej Maron 216


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ao relento, passou por dias desacordada, morrendo em decorrência da desidratação. Este


resultado pode ser imputado aos roubadores, mas não a título de latrocínio, e sim a título de
homicídio culposo, ou, quiçá, em dolo eventual – em concurso com o roubo por violência
imprópria previamente consumado.
O evento morte, para configurar latrocínio, não necessariamente precisa ser da
própria vítima. Um bom exemplo é o de assaltantes que, em roubo a banco, matam dois
seguranças: há um só latrocínio, pois a vítima é o banco, e por isso há um só roubo, mesmo
que haja dois resultados morte. Repise-se: o crime é contra o patrimônio, e não contra a
vida, em essência. A capitulação seria a mesma se, ao invés do segurança, morresse um
cliente e um transeunte, culposa ou dolosamente, neste roubo – há um só latrocínio.
É claro que se há roubo de mais de uma vítima, com a morte de todas elas, há a
pluralidade de latrocínios. Se há dois roubos – pois há dois patrimônios – e há duas mortes,
há dois crimes em concurso, com dois resultados morte igualmente em concurso.
Mais curioso ainda é o fato de que, se a morte que se passa é a de um dos
roubadores, ainda assim há o crime de latrocínio: a morte de um dos concorrentes do crime
ainda configura o crime de latrocínio.

1.1. Momento consumativo

O § 3° do artigo 157 do CP só pode se consumar quando o resultado ali previsto


acontecer efetivamente. Ocorre que há uma enorme discussão doutrinária sobre esta
situação, em relação à consumação do latrocínio, quando se tem em mente situação em que
a subtração não foi bem sucedida, não tendo se consumado. Vejamos.
Se há a subtração consumada, e a morte consumada, não restam dúvidas: o
latrocínio está consumado. Se há a subtração consumada, e a morte tentada, igualmente não
há dúvidas: há latrocínio tentado. Ainda sem problemas é o caso em que há subtração
tentada e morte tentada – há também latrocínio tentado. O problema surge mesmo é quando
estamos diante de subtração tentada, mas com morte consumada.
O artigo 14, I, do CP, dispõe que diz-se o crime “consumado, quando nele se
reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Ora, os elementos da definição legal do
latrocínio são a subtração e a morte. Tomando-se este dispositivo à risca, o crime só poderia
ser considerado consumado quando tudo que o descreve estivesse consumado – a subtração
e a morte. Do contrário, restando tentado qualquer destes elementos, todo o crime de
latrocínio restaria tentado.
Mas esta posição acima é uma só das diversas correntes que existem sobre o tema. A
segunda corrente, que, diga-se, é a prevalente, é a que está sumulada no enunciado 610 do
STF:

“Súmula 610, STF: Há o crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma,


ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima.”

A tese adotada nesta súmula, e por esta corrente, é a de que nos crimes complexos,
como o é o latrocínio, se a vertente da conduta que agride o bem jurídico mais valioso
restar consumada, todo o crime está consumado. Este raciocínio é bastante utilizado em
crimes complexos, diga-se.
A explicação dada pela corrente que se funda no artigo 14, I, do CP, parece ser mais
técnica, de fato, mas perde em adesões para a corrente do STF ante o peso político desta

Michell Nunes Midlej Maron 217


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

vertente sumulada: o homicida, que mata para roubar, teria a pena muito minorada pela
tentativa, se não conseguisse subtrair os bens.
Hungria diz, em outra tese, que o crime mais grave desperta a punibilidade, ou seja,
há o crime de homicídio consumado, em concurso material com o crime de roubo tentado.

Casos Concretos

Questão 1

CAIO abordou nas proximidades do Campo de Santana uma família de quatro


pessoas, sendo o casal de pais e um casal de filhos, todos já exercendo atividade
laborativa lícita. Quando da abordagem, CAIO, que se encontrava empunhando um
revólver, e diante da manifestação das vítimas que não queriam entregar os seus pertences,
veio a disparar contra todos eles, produzindo nos mesmos, em conseqüência, lesões
corporais de natureza grave, conforme depois foi atestado pelos autos de lesões
correspondentes. No entanto, diante da intervenção de populares, CAIO não conseguiu
subtrair qualquer daqueles pertences, vindo a ser detido mais adiante.
a) Qual a capitulação da conduta imputada a CAIO, determinando-se se o fato
punível em questão deve ser considerado como tentado ou consumado?
b) Diante da multiplicidade de resultados ofensivos, como deve ser definida a
hipótese: como crime único, como concurso formal de delitos ou como crime
continuado?
c) E se CAIO tivesse lesionado apenas uma das vítimas, mas subtraído os pertences
das quatro, a situação se alteraria?
d) Qual a diferença entre o roubo qualificado pela lesão grave e a tentativa de
latrocínio na qual ocorre a subtração porém a vítima sobrevive, com lesões
corporais graves?

Resposta à Questão 1

a) O crime é de roubo qualificado por lesões corporais graves, quantos sejam os


patrimônios alvejados – quatro vezes, no caso –, na forma tentada. Poder-se-ia
dizer, porém, que se configura o latrocínio tentado, e não as lesões consumadas,
devendo-se, para tanto, constatar dolo de matar na conduta de Caio.
b) Há concurso formal de quatro crimes, e não crime único. Cada vítima tem um
patrimônio apartado das demais, e este é o definidor de quantos crimes contra o
patrimônio ocorreram. No máximo, poder-se-ia entender que o patrimônio do
casal de pais é um só, e com isto cairia, a imputação, para três crimes, mas a tese
mais coerente é a de que haja quatro patrimônios diversos.
Acerca da possibilidade de continuidade delitiva, não se demonstra, no
caso: há uma única ação de roubo, dirigida a quatro bens diversos, o que é
precisamente a definição do concurso formal imperfeito (ante a clara definição
dos quatro patrimônios a serem atingidos, revelando desígnios autônomos).

Michell Nunes Midlej Maron 218


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

c) Sim: a capitulação seria de roubo consumado para cada um dos subtraídos –


quatro vezes –, mas apenas um crime de roubo qualificado, contra aquela que
foi gravemente lesionada.
d) A diferença é clara: reside no ânimo do agente, em seu dolo de m atar ou
lesionar. Se tem dolo de matar, e lesiona, há latrocínio tentado; se tem dolo de
lesionar, há roubo qualificado consumado.

Questão 2

Quando chegaram ao Aeroporto Internacional do Galeão, o casal francês JEAN e


MARIE foi abordado por BERNARD, também francês, que lhes ofereceu a corrida até o
hotel em que ficariam hospedados. Ingressaram, todos, em um táxi, postando-se
BERNARD ao lado de seu comparsa ROBSON, motorista e proprietário do veículo, e as
vítimas no banco de trás. No trajeto, empunhando uma arma, o francês que havia
oferecido a carona, anunciou o assalto. Daí por diante, BERNARD e ROBSON subtraíram
dólares, cartões de crédito, cheques de viagens e relógios de ambas as vítimas. Efetuaram
saques em caixas eletrônicos, após obterem as senhas por coação, mediante emprego de
arma de fogo. Ao final, conduziram as vítimas até um local distante e ermo e, com o intuito
de manterem-se impunes, ROBSON efetuou disparos, sendo MARIE executada de forma
absolutamente violenta com um disparo à queima roupa em sua cabeça. JEAN, logrou
êxito em escapar da morte, por ter corrido em fuga, embrenhando-se mata adentro.
Importante destacar que BERNARD foi capturado quando estava em fuga, noutro estado
da Federação e que ROBSON, possuidor de maus antecedentes criminais, apesar de sua
FAC não representar esta realidade, também foi capturado, tendo ele mesmo reconhecido
ter sido preso na Itália por trafico ilícito de entorpecentes. Além disso, foram encontrados
em sua casa pertences de outras pessoas, vítimas de crimes contra o patrimônio. Capitule
os fatos praticados por BERNARD e ROBSON, realizando a dosimetria da pena.

Resposta à Questão 2

Há dois crimes em concurso formal perfeito: um latrocínio consumado, de Marie, e


um tentado, de Jean. Sobre a dosimetria da pena, veja a Apelação Criminal
2004.050.05316, do TJ/RJ:

“Processo: 2004.050.05316. 1ª Ementa – APELACAO. DES. MAURILIO


PASSOS BRAGA - Julgamento: 22/03/2005 - SETIMA CAMARA CRIMINAL.
LATROCINIO. CONSUMACAO. TENTATIVA. CONCURSO FORMAL.
REGIME INTEGRALMENTE FECHADO.
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. Concurso formal entre um crime de
latrocínio consumado e outro tentado. A prova é soberba no sentido de que os
Apelantes, em comunhão de ações e desígnios, fazendo-se passar por motoristas de
táxi, colocaram-se a postos no Aeroporto Internacional do Galeão e, quando as
vitimas, vindo da França, desembarcaram naquele aeroporto, eles ofereceram-lhes
seus serviços como taxistas, dando início ao transporte das vítimas e, no curso
desse transporte, com emprego de arma de fogo, subjugaram-nas, delas subtraindo
bens e cartões de crédito e, a seguir, com o propósito de garantirem a impunidade
do crime de roubo, seqüestraram-nas, levando-as para lugar distante e ermo, onde
mataram a vítima chamada Martine, consumando, em relação a ela, o crime de

Michell Nunes Midlej Maron 219


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

latrocínio, enquanto que a outra vítima, chamada Sr. Yves, conseguiu fugir e,
embora contra ela tenha havido disparo de arma de fogo, esse segundo crime de
latrocínio não se consumou. Provadas a autoria e a materialidade, afastada fica a
possibilidade da absolvição. A prova produzida é no sentido de que Yves não
passou da condição de vitima, não tendo qualquer participação no planejamento e
ou execução dos crimes. As circunstancias e as conseqüências dos crimes, assim
como, a situação pessoal de cada um dos apelantes, impe a fixação da pena-base
acima do mínimo legal, porém, abaixo de seu máximo, sendo fixada em 25 anos de
reclusão e 300 dias-multa, no seu valor mínimo. Em razão do concurso formal, a
pena privativa de liberdade é aumentada em 1/6, aquietando-se em 29 anos e dois
meses de reclusão. À pena de multa, por força da regra do art. 72 do CP, não se
aplica o instituto do concurso formal, e assim, quanto ao crime consumado, resta
aplicada a pena de 300 dias-multa no seu valor unitário mínimo e, quanto ao crime
tentado, é ela aplicada, por força da redução em 1/3, em 200 dias-multa, no seu
valor unitário mínimo. Recursos conhecidos e parcialmente providos, apenas para
modificar a dosimetria da pena, na forma supra.

A crítica que se pode fazer a este julgado é sobre o entendimento de que houve
concurso formal perfeito. Na verdade, estão claros os desígnios autônomos perante as duas
vítimas, o que configura o concurso forma imperfeito, levando à aplicação do cúmulo
material das penas, e não a mera exasperação da maior. No mais, está correta a posição do
TJ/RJ.

Questão 3

BRENO e ALFREDO, após subtraírem o tênis e o relógio de RAFAEL, agrediram-


no e efetuaram disparos contra ele; ao final, acreditaram que ele estivesse morto. Não
sabiam eles, todavia, que RAFAEL sobrevivera com lesões leves na caixa torácica. Diante
destes fatos, o Ministério Público ofereceu denúncia pela prática do crime previsto no
artigo 157, § 3º, c/c 14, II, ambos do CP, tendo havido condenação nesse sentido. Em grau
de apelação, houve a desclassificação para o crime previsto no artigo 157, § 2º, I e II do
CP, na forma consumada, pois segundo o Tribunal a quo, admitir latrocínio sem morte, até
mesmo na forma tentada, fere o texto legal. O Ministério Público interpôs recurso especial,
sustentando negativa de vigência ao artigo 157, § 3º c/c o artigo 14, II, ambos do CP, já
que, consoante fundamentou, houve tentativa de latrocínio. O recurso especial deve ser
provido? Justifique.

Resposta à Questão 3

É claro que há o latrocínio tentado, in casu, pois evidenciado do dolo de matar do


agente, no contexto do roubo. Só não alcançou a morte por causas externas à sua vontade, e
por isso deve responder pela sua tentativa. O recurso deve ser provido.
Veja o REsp. 601.871:

“REsp 601871 / RS. DJ 02/08/2004 p. 536.


CRIMINAL. RESP. TENTATIVA DE LATROCÍNIO. SUBTRAÇÃO
CONSUMADA E HOMICÍDIO TENTADO. CONFIGURAÇÃO DO DELITO.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
Evidenciado o dolo de matar por parte do réu, não há como se afastar a ocorrência
da tentativa de latrocínio. A subtração consumada, aliada ao homicídio tentado,

Michell Nunes Midlej Maron 220


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

caracteriza a tentativa de latrocínio. A magnitude da lesão corporal causada é de


somenos importância para a configuração do crime de tentativa de latrocínio.
Precedente do STF. Irresignação que merece ser provida, para restabelecer a
sentença monocrática. Recurso especial conhecido e provido, nos termos do voto
do relator.”

Tema XVIII

Extorsão, Extorsão Mediante Seqüestro e Extorsão Indireta. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução
histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes de extorsão e
extorsão mediante seqüestro;b) Diferença entre roubo e extorsão;c) A Lei 8.072/90. 2) A extorsão indireta. 3)
Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.

Notas de Aula33

1. Extorsão

A grande característica da extorsão, para a doutrina amplamente majoritária, é a


necessidade imperativa do comportamento da vítima para o sucesso da empreitada
criminosa. É imprescindível que a vítima faça a entrega da coisa, quer porque o agente não
tem a opção por subtrair, quer porque não quer subtrair – seu dolo é de receber a vantagem,
e não de subtraí-la.
Rogério Greco entende que a extorsão só se configura quando a promessa de mal
feita pelo agente for referente a mal futuro. Se o mal prometido for iminente, sequer há
como a vítima adotar o comportamento que o agente precisa para ter sua pretensão indevida
satisfeita. É só imaginar a seguinte situação: agente ameaça a vítima de morte, se esta não
sacar o dinheiro que tem na poupança. Se a ameaça for de morte imediata, não haverá
sequer como a vítima proceder ao saque, sem que a ameaça se cumpra – não há extorsão,
mas há roubo. Por isso, é preciso um certo deslocamento temporal entre o mal prometido e
a conduta exigida da vítima. Este mínimo de liberdade de ação da vítima, para este autor, é
fundamental para a configuração da extorsão.
A respeito, reveja o julgado do REsp. 697.622:

“REsp 697622 / SP. DJ 02/05/2005 p. 404.


PENAL. ROUBO E EXTORSÃO. CONCURSO MATERIAL. PRECEDENTES
DO STF E DO STJ.
1. A jurisprudência desta Corte e do STF entende que incorre nas penas dos crimes
de roubo e extorsão, em concurso material, o agente que, ao roubar bens da vítima,
a obriga a sacar dinheiro em caixas eletrônicos. Precedentes do STF e do STJ.
2. Recurso especial conhecido e provido.”

Esta distinção é fundamental, inclusive, para se abordar o já mencionado crime


alcunhado de sequestro relâmpago, do § 3° do artigo supra, porque pela só alocação deste
dispositivo sob o tipo da extorsão, já não se pode confundir a conduta ali descrita com a do
roubo circunstanciado, do artigo 157, § 2°, V, já estudado. Havendo roubo, não há que se
falar em sequestro relâmpago, no mesmo contexto fático.

33
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 3/11/2009.

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EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Por isso, a imprescindibilidade do comportamento da vítima é um método seguro de


identificação deste delito.
Dito isto, vejamos o artigo 158 do CP:

“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
§ 2º - Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do
artigo anterior. Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”

A extorsão pode se configurar, como se vê, ao se determinar que a vítima deixe de


fazer alguma coisa, se omita em algum sentido. Um exemplo: o devedor que constrange seu
credor, mediante grave ameaça, a não cobrar-lhe judicialmente a sua dívida vencida. Há a
extorsão praticada por meio de omissão forçada da vítima.
O crime é delito formal, pois exige apenas a finalidade de obter a vantagem, e não
que esta seja efetivamente obtida, como se vê no caput. A respeito, veja a súmula 96 do
STJ:

“Súmula 96, STJ: O crime de extorsão consuma-se independentemente da


obtenção da vantagem indevida.”

O momento da consumação, porém, é mais complexo do que se pensa. Não basta,


por ser formal, que o agente promova o constrangimento para que o crime reste consumado.
O que o tipo exige é que haja o constrangimento que leve a vítima a fazer, não fazer ou
tolerar alguma coisa. Se op constrangimento é completamente inapto a promover qualquer
destas reações pela vítima, não há a consumação, restando o crime tentado. Veja: se a
coação é destinada a forçar a vítima a fazer alguma coisa, que levará à obtenção da
vantagem indevida pelo agente, e ela simplesmente não se movimenta, o crime é tentado –
não porque não obteve a vantagem, mas sim porque a vítima sequer se movimentou diante
da ameaça empreendida.
Um exemplo vem a calhar: se o falso seqüestrador disca para a vítima, ameaçando
matar sua filha, e a vítima chega a se vestir para ir ao banco sacar o dinheiro, mas antes de
sair de casa sua filha chega, revelando o golpe, ainda assim se consumou o crime de
extorsão. A mãe tomou atitudes que não tomaria, se não fosse o constrangimento – já estava
em direção ao banco –, e por isso está consumado o crime. Se, ao contrário, ao receber a
ligação ameaçadora, a mãe simplesmente ignora-a, mesmo quer haja uma possibilidade de
ser verdadeira, há o crime tentado. E vale deixar claro, ainda que se a ameaça empreendida

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não tinha absolutamente nenhuma chance de sucesso, por ser absolutamente inverossímil –
a vítima sofre ameaça de morte de sua filha, sendo que nem filha tem –, o crime não é
tentado, mas sim impossível, por absoluta impropriedade do meio. A vítima simplesmente
não se sentiria coagida, jamais.
O que não se exige é que haja a efetiva obtenção da vantagem – isso é mero
exaurimento. Fazer, não fazer ou tolerar alguma coisa (o que quer que seja), porém, são
elementares que são fundamentais para a consumação.
A violência a que se refere o tipo é a real. A grave ameaça, por seu turno, pode ser
configurada qualquer que seja seu conteúdo, desde que bastante para intimidar a vítima a
ponto de fazê-la acatar o constrangimento. Pode, inclusive, se tratar de ameaça de mal
justo. Imagine-se a seguinte situação: particular prende meliante em flagrante, e exige deste
que lhe pague uma quantia para não levá-lo à delegacia. O mal ameaçado é justo, afinal,
estava mesmo em flagrante delito; porém, ainda estará cometendo extorsão o particular que
prendeu o bandido.
A ameaça prometida não precisa ser verídica, como já se antecipou: basta ser crível,
aos olhos da vítima. Como exemplo, o falso sequestro, já mencionado, em que a ameaça é
falsa, mas é acreditável – há a extorsão, ao menos tentada. Se a ameaça é carente de
qualquer potencial de credibilidade, repita-se, há crime impossível.
O referencial de crível, para adjetivar a ameaça, é subjetivo: os olhos do intérprete
devem se voltar para a vítima. Se, para aquela pessoa ameaçada, a ameaça tem potencial
para que ela ceda ao constrangimento, o crime se configura, mesmo que para o famigerado
homem-médio não haja este potencial. Um bom exemplo é a ameaça ao católico fervoroso,
que é extorquido mediante ameaça de punição severa de Deus: se a vítima é crente o
suficiente para que esta ameaça tenha potencial para constrangê-la, há o crime.
Não se confundem, os casos de falsa ameaça, com o estelionato, porque neste crime
o agente entrega os bens por estar em erro quanto a alguma situação, criada por ardil do
agente, e, na extorsão, há como centro da conduta criminosa a coação, mesmo que baseada
em um erro a que a vítima foi induzida: há o erro e a coação, enquanto no estelionato há
somente o erro.
Quando o autor da extorsão for policial, funcionário público, no exercício da função
ou em razão desta, sua conduta tem tipificação especial, no crime do artigo 316 do CP – a
concussão:

“Concussão
Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.”

A concussão, portanto, pode ser descrita como a extorsão praticada por funcionário
público, no exercício da função ou em razão dela 34. É claro que, mesmo sendo funcionário
34
A doutrina clássica entende que, no crime de concussão, a vantagem exigida precisa ser econômica, precisa
ter cunho patrimonial, mesmo que o dispositivo não diga isto expressamente. Se a vantagem não é
patrimonial, diz esta corrente, o crime que se configurará é aquele que ataca o bem jurídico ameaçado. Há,
porém, corrente mais moderna, que entende que qualquer vantagem indevida, tal como diz o dispositivo, é
suficiente a configurar o delito de concussão. Um exemplo, que parece tornar mais coerente a corrente
clássica, é o do policial que exige favores sexuais da mulher traficante que, para não ser presa, cede à
exigência indevida, que nada tem de patrimonial. Se se adotar a corrente modernista, há concussão; se se
adotar a corrente clássica, reponde por estupro – o que parece mais correto.

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público, se coação não se dá em razão da função, ou no exercício desta, o crime é o comum,


a extorsão, do artigo 158 do CP.
O artigo 158 do CP diz, no caput, que a vantagem exigida deve ser indevida, para
configurar o crime. Se a vantagem for devida, diz a maioria da doutrina, o crime será de
exercício arbitrário das próprias razões, na forma do artigo 345 do CP, já visto. Há, porém,
quem defenda que se enquadre a exigência neste caso, de vantagem devida, como crime de
constrangimento ilegal, do já abordado artigo 146 do CP. Esta segunda corrente assim
argumenta: se a vantagem é devida, o ato de exigi-la mediante grave ameaça ou violência
não consubstancia exercício arbitrário das próprias razões, porque este crime demanda um
ato de “justiça com as próprias mãos”, ou seja, o agente atua como o Judiciário atuaria – e o
Judiciário não usaria de grave ameaça ou violência na exigência da vantagem devida (uma
dívida vencida, por exemplo). A justiça tiraria o bem da vítima forçosamente, de fato, mas
por meios legais – tomar-lhe-ia os bens por mandado –, e se o agente subtrai estes bens,
está incurso, de fato, no artigo 345 – substituiu-se, aí sim, ao que o Judiciário faria, mas não
quando emprega a violência ou ameaça.
Por isso, o ato de constrangimento para obtenção de vantagem devida, praticado por
meio de violência ou grave ameaça, seria melhor enquadrado no constrangimento ilegal, do
artigo 146 do CP, e não no artigo 345. Esta tese é minoritariíssima, diga-se, sendo maciça a
defesa de que se trata mesmo de exercício arbitrário das próprias razões.
A vantagem indevida não pode ser de qualquer natureza: deve ser de natureza
econômica.
O iter deste crime, apesar de extremamente compacto, admite a tentativa, quando a
vítima cederia ao constrangimento empreendido, mas não o faz, por forças alheias à
vontade do agente.

1.1. Extorsão majorada

O § 1° do artigo supra determina que se o crime é cometido por duas ou mais


pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade. São duas as
causas de aumento de pena possíveis, portanto: a prática do crime por duas ou mais
pessoas, ou o emprego de arma.
Veja que o legislador não empregou, aqui, o termo “concurso de pessoas”, dizendo,
isto sim, que majora-se a pena se o crime “é cometido por duas ou mais pessoas”. A
diferença, que já se pôde antever, é significativa: se o artigo falasse em concurso, como
fazem outros tipos penais, qualquer forma de participação ensejaria a causa de aumento de
pena, pois a definição de concurso é abrangente de toda e qualquer forma de participação.
Como o crime fala em cometimento, e não em concurso, parece que o legislador quis
reduzir o alcance da majorante àquela reunião de pessoas no momento de execução do
verbo nuclear do tipo, excluindo daqui as participações de pessoas alheias ao verbo, como
os partícipes em geral. Aqui, a falta da palavra “concurso”, faz prevalecer como mais
coerente a tese de que só há a majorante quando há mais de uma pessoa praticando a ação
de constranger. Assim entende, por todos, Hungria.
Destarte, a extorsão que foi praticada por um agente, baseada em informações
cedidas por um outro, não tem incidente a majorante. Há uma só pessoa praticando o verbo,
mesmo que haja mais de uma envolvida no delito.

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Veja que, se se tratar de autoria colateral, não há a causa de aumento aqui retratada;
se não há liame entre dois agentes que praticam, concomitantemente, a extorsão, mesmo
que a lei não fale em “concurso”, não há o crime majorado – há dois crimes autônomos,
cada um com seu autor. Do contrário, se se considerasse esta pluralidade de autores como
causa de aumento, mesmo sem liame para reunirem-se os agentes (porque se há liam, não
há autoria colateral, e sim coautoria), se estaria imputando responsabilidade penal objetiva
a cada um deles, em relação à circunstância majorante, o que não se pode conceber.
Quanto ao emprego de arma, remete-se ao estudo da mesma circunstância majorante
do roubo, pois as discussões apenas reprisam-se, especialmente quanto ao termo “arma”.
Havendo reunião de pessoas no cometimento e emprego de arma, repita-se também,
a causa de aumento é uma só, podendo ou não ser a majorante medida além do mínimo.

1.2. Extorsão qualificada por lesão grave ou morte

O § 2° do artigo 150 determina que aplica-se à extorsão praticada mediante


violência o disposto no § 3º do artigo anterior, o qual diz que se da violência resulta lesão
corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além da multa; se resulta morte,
a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa.
A extorsão desta capitulação, quando resulta em morte, é crime hediondo, na forma
do artigo 1°, III, da Lei 8.072/90:

“Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou
tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)
III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); (Inciso incluído pela Lei nº
8.930, de 6.9.1994)
(...)”

Sobre este crime qualificado hediondo, reprisa-se toda a discussão que se fez sobre
o latrocínio, no que for pertinente.

1.3. Sequestro relâmpago

Diz o § 3° do artigo 158 do CP que s o crime é cometido mediante a restrição da


liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica,
a pena é de reclusão, de seis a doze anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou
morte, aplicam-se as penas previstas no artigo 159, §§ 2° e 3°, respectivamente.
A primeira crítica que se pode fazer a esta inovação legislativa é que as condutas
que ela reprime já se amoldariam, com toda a perfeição e adequação típica, ao artigo 159 do
CP, à extorsão mediante sequestro, que será estudada logo adiante. Veja o caput do artigo
159 do CP:

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
(...)”

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Assim, é, no mínimo, desnecessário o § 3° do artigo 158 do CP. Outra evidência


desta desnecessidade é o enquadramento no próprio caput do artigo 158, quando o bandido
mantém consigo a vítima, sob ameaça, colhendo valores em caixas de bancos: está clara a
extorsão. E veja que, se fosse capitulada a extorsão simples, se ocorresse resultado morte, o
crime seria hediondo; no crime de sequestro relâmpago, não há hediondez por morte da
vítima, por simples falta de previsão legal no artigo 1°, III, supra, da Lei 8.072/90, que
aponta apenas para o § 2°, e não para o § 3° do artigo 158 do CP.
A confusão gerada por este tipo perante outros, como se vê, é de fato bem grande,
cabendo aqui analisar com muito cuidado seus termos. Vale, por isso, rever o seu teor:

“(...)
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”

Há que se dividir a dinâmica, aqui, em três aspectos: há a extorsão, como impõe o


caput; há a restrição da liberdade da vítima, por tempo juridicamente relevante; e esta
restrição é necessária para a obtenção da vantagem econômica. O problema é que a mesma
dinâmica se enquadraria com a mesma perfeição já no caput deste artigo, se criteriosamente
observada.
Note-se que o diferenciador desta dinâmica narrada para a extorsão mediante
sequestro é que não há, em momento algum, a negociação da liberdade da vítima como
elemento de coação. O que exerce coação, aqui, é a ameaça ou violência à própria vítima. O
cerceamento da liberdade é necessário para a consecução do delito, mas no artigo 159 do
CP a libertação condicionada à obtenção da vantagem a título de resgate.
Entenda :no artigo 158, § 3°, a restrição da liberdade é passageira por natureza, ou
seja, perdurará pelos momentos em que a vítimas estiver sendo extorquida, sendo a
restrição um meio de execução da conduta – sem a colaboração da vítima não há como
executar o crime. No artigo 159, não há este mesmo iter: o pagamento do resgate é conditio
sine qua non para que haja a libertação, havendo uma natureza visivelmente diferente no
iter criminis, no que se refere à restrição da liberdade da vítima. No sequestro relâmpago, a
supressão da liberdade é uma circunstância da execução, que é centrada na violência ou
grave ameaça; na extorsão mediante sequestro, a restrição é a essência do delito.
Hungria traz uma explicação sobre a extorsão mediante sequestro, baseada em puro
empirismo, que aclara bem a diferença entre esta e o sequestro relâmpago. A extorsão
mediante sequestro consiste na manutenção da vítima em lugar ignorado, pois só assim há
como se negociar a liberdade como moeda de troca pelo resgate, o que não se passa, jamais,
no sequestro relâmpago. Estes são bons moduladores para se identificar a extorsão
mediante sequestro, diga-se: a ocultação da vítima e o elemento resgate.
E a diferença desta conduta do sequestro relâmpago para o roubo com restrição da
liberdade da vítima, do já visto artigo 157, § 2°, V, do CP, é quase pueril: o sequestro
relâmpago, a restrição da liberdade se presta a garantir a extorsão, pois sem a colaboração
vítima não se consegue a vantagem. No roubo circunstanciado, porém, a restrição se presta
para garantir o roubo, a subtração forçada, e não a colaboração da vítima.

2. Extorsão mediante sequestro

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Diz o artigo 159 do CP:

“Extorsão mediante seqüestro


Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem, como condição ou preço do resgate: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
Pena - reclusão, de oito a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990)
§ 1° Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o seqüestrado é
menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido
por bando ou quadrilha. Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90 (Redação dada pela Lei nº
10.741, de 2003)
Pena - reclusão, de doze a vinte anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990)
§ 2º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Vide Lei nº 8.072, de
25.7.90
Pena - reclusão, de dezesseis a vinte e quatro anos. (Redação dada pela Lei nº
8.072, de 25.7.1990)
§ 3º - Se resulta a morte: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
Pena - reclusão, de vinte e quatro a trinta anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990)
§ 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à
autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a
dois terços. (Redação dada pela Lei nº 9.269, de 1996)”

Como já se adiantou, a condicionante do resgate, colocada pelo legislador no caput


deste artigo, é um elemento identificador fundamental deste crime. Além deste, há também
o elemento do cativeiro, sendo imperativo que a pessoa cuja liberdade é tolhida seja
ocultada em local desconhecido por quem será responsabilizado pelo resgate. No conceito
parafraseado de Hungria, sequestro é a retenção ou detenção arbitrária de uma pessoa em
um lugar ignorado ou oculto, e se a condição para libertar esta pessoa é a colheita de um
resgate, há o crime que está em análise.
A extorsão mediante sequestro é um exemplo categórico de crime permanente. O
momento consumativo deste crime, então, tem início quando há a tomada da liberdade da
pessoa, e perdura até o momento em que esta for liberta. O crime admite tentativa, decerto,
pois é claramente plurissubsistente o iter deste delito.
Trata-se de crime formal, pois o resultado naturalístico buscado pelo agente – a
violação patrimonial – não precisa ser obtido para consumar o crime: a consumação se dá
na restrição da liberdade, e não na obtenção do resultado material que é a finalidade da
conduta.
Há que se interpretar teleologicamente a expressão “qualquer vantagem”, colocada
no caput deste artigo. A doutrina majoritária – por todos, Hungria – defende que esta
vantagem aqui exigida tem que ter cunho patrimonial, econômico, pois se trata de crime
contra o patrimônio, e este é o bem jurídico que é primacialmente protegido, aqui. Também,
a vantagem tem que ser indevida, por uma razão muito simples: se a vantagem for devida, o
ato do sujeito ativo não configura um ataque ao patrimônio da vítima, pois o que lhe é
exigido não era mesmo dela, originalmente.
Esta interpretação não é unânime, porém. Damásio e Bitencourt entendem que o uso
pelo legislador do termo “condição”, alternativo ao termo “preço”, no artigo, configura a
possibilidade de que a vantagem exigida tenha cunho não patrimonial – pois para a

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exigência econômica se presta o termo “preço”, restando o termo “condição” às vantagens


de outra natureza.
Mirabete, adepto da primeira corrente, rebate esta tese, dizendo que a condição a
que se refere o legislador é aquela que se destina a possibilitar uma vantagem patrimonial
futura. Como exemplo, a exigência, pelo extorsionário, de que uma nota promissória seja
emitida em seu favor. A primeira corrente, por tudo, é a majoritária, e mais correta, de fato.

2.1. Formas qualificadas

O § 1° do artigo 159 do CP apresenta qualificadoras que elevam a escala penal do


crime à casa de doze a vinte anos. A primeira qualificadora é referente ao tempo de
constrição da vítima: se perdurar, o sequestro mais de vinte e quatro horas, o crime se
qualifica; a segunda qualificadora se verifica quando o seqüestrado é menor de dezoito ou
maior de sessenta anos; e a última, deste dispositivo, é a qualificadora imposta quando o
crime é cometido por bando ou quadrilha.
Ocorrendo mais de uma destas qualificadoras, no mesmo contexto fático, é claro
que só há a aplicação da escala penal maior uma vez, computando-se as demais
qualificadoras como causas motivadoras de incremento da pena, usadas pelo juiz na
primeira fase, na pena-base.
As formas qualificadas de extorsão mediante sequestro são crimes hediondos, na
forma do artigo 1°, IV, da Lei 8.072/90:

“Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou
tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)
IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo,
2o e 3o); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)”

Esta hediondez levaria, inclusive, à aplicação do artigo 9° desta mesma lei dos
crimes hediondos, quando a vítima se encontrasse sob as circunstâncias do artigo 224 do
CP:

“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º,
158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o
limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”

Cumpre trazer, aqui, uma recentíssima polêmica, começando logo pela sua
conclusão majoritária: este artigo 9° foi tacitamente revogado pela Lei 12.015/09, que
revogou o artigo 224 do CP, ao qual remete o artigo 9° supra. Veja:

“Presunção de violência (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)

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b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado


pela Lei nº 12.015, de 2009)
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. (Revogado pela Lei nº
12.015, de 2009)”

Tal conclusão se deve ao fato de que esta norma remetida, o artigo 224, era a sede
única das hipóteses de presunção de violência, e se foi revogada, não mais encontra objeto
a norma do artigo 9°. Há quem diga, minoritariamente, que a reforma da Lei 12.015/09 não
acabou com a essência do artigo 224 do CP, tendo levado-a espargida pelos dispositivos
referentes aos crimes praticados contra as pessoas que se encontram naquelas condições ali
mencionadas, como no novel artigo 217-A, do CP:

“Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1° Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
(...)”

A orientação que tem vingado, porém, é a da revogação tácita do artigo 9° da Lei


8.072/90. Veja, a respeito, o REsp. 1.102.005:

“REsp 1102005 / SC DJe 19/10/2009


PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. AUMENTO PREVISTO NO ART.
9º DA LEI Nº 8.072/90. VIOLÊNCIA REAL E GRAVE AMEAÇA.
INCIDÊNCIA. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009.
I - Esta Corte firmou orientação de que a majorante inserta no art. 9º da Lei nº
8.072/90, nos casos de presunção de violência, consistiria em afronta ao princípio
ne bis in idem. Entretanto, tratando-se de hipótese de violência real ou grave
ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a referida causa de aumento.
(Precedentes).
II - Com a superveniência da Lei nº 12.015/2009 restou revogada a majorante
prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo mais admissível a sua
aplicação para fatos posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce a maior
reprovabilidade da conduta, pois a matéria passou a ser regulada no art. 217-A do
CP, que trata do estupro de vulnerável, no qual a reprimenda prevista revela-se
mais rigorosa do que a do crime de estupro (art. 213 do CP).
III - Tratando-se de fato anterior, cometido contra menor de 14 anos e com
emprego de violência ou grave ameaça, deve retroagir o novo comando normativo
(art. 217-A) por se mostrar mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º, parágrafo
único, do CP.
Recurso parcialmente provido.”

Antes desta revogação, havia a seguinte discussão: quando a vítima se encontrasse


nas condições do artigo 9°, e também na qualificadora do § 1° do artigo 159, qual se
aplicaria? Prevalecia, à luz do princípio da especialidade, a aplicação do § 1°, pois que é
norma especial para este delito, sendo o artigo 9° uma norma mais ampla, abrangendo
diversos delitos. A discussão cessou, porém, com a extinção do artigo 9°.

Michell Nunes Midlej Maron 229


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Quando o crime é cometido em quadrilha ou bando, qualifica-se, mas há também a


imputação no artigo 288 do CP, em concurso formal, sem que se configure esta punição
plural como bis in idem. Veja:
“Quadrilha ou bando
Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim
de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos. (Vide Lei 8.072, de 25.7.1990)
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”

Não ocorre o bis in idem pela só razão de que os bens jurídicos tutelados, na
qualificadora da quadrilha ou bando e no crime autônomo de quadrilha ou bando são
diferentes: na qualificadora, a proteção ainda é ao patrimônio, e a reunião é mais reprovável
porque o ataque a este é mais eficaz; já no artigo 288, a proteção se destina à paz pública. A
cumulação é perfeitamente possível.

2.2. Extorsão mediante sequestro qualificada por lesão grave ou morte

O § 2º do artigo 159 do CP diz que se do fato resulta lesão corporal de natureza


grave, a pena de reclusão é de dezesseis a vinte e quatro anos, e o § 3º diz que se resulta a
morte, a pena é de vinte e quatro a trinta anos.
Veja que o legislador, nestas qualificadoras, optou por usar a expressão “se do fato
resulta” a lesão ou a morte, e o fato a que se refere é o sequestro, e não qualquer violência
empregada. Isto significa que não é necessário que a lesão ou a morte decorram da
violência empregada, se é que houve violência; não se exige este nexo causal (como é
exigido no latrocínio, como visto). O que se exige é que, havendo lesão ou morte, estes
resultados sejam decorrentes da sua restrição de liberdade, qualquer que seja a ligação que
haja entre este fato – o sequestro, a privação da liberdade – e tais resultados.
Por isso, mesmo que não tenha havido qualquer tipo de violência do extorcionário
seqüestrador para com a vítima, se as más condições do cativeiro, ou a falta de um
medicamento necessário para a sobrevida da vítima, por exemplo, são as causas da lesão ou
morte, estes resultados são levados à conta do agente, a título de culpa ou dolo.
Hungria diz, ao interpretar estes dispositivos, que as lesões ou mortes que os
configuram só podem ser aquelas causadas ao seqüestrado, pois que resultam do fato, como
disse o legislador. Sendo assim, se na empreitada da captura da vítima, o agente mata um
dos seus seguranças, não se trata de enquadrar esta morte no § 3° do artigo 159 do CP. Esta
conduta será imputada de forma autônoma, como homicídio, em concurso com o sequestro.
Há quem alegue que a pena do § 3° deste artigo 159, de vinte e quatro a trinta anos,
seria inconstitucional, porque é muito curta a margem de individualização dada ao julgador
– apenas seis anos. É tese incipiente, porém.

2.3. Delação premiada

Diz o § 4° do artigo 159 do CP que se o crime é cometido em concurso, o


concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua
pena reduzida de um a dois terços. Trata-se da delação premiada.
Este instituto tem previsão na Lei 9.807/99, que estabelece normas para a
organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas

Michell Nunes Midlej Maron 230


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ameaçadas, e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham


voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo
criminal. Veja o artigo 14 desta lei:

“Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a


investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores
ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou
parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a
dois terços.”

O juiz, tanto o julgador quanto o da execução, tem que ter especial cautela no
tratamento dado aos réus colaboradores, por uma questão pragmática: este sujeito é sério
candidato a padecer de agressões, ou mesmo morte, quando levado à prisão, pois os demais
presos abominam a pecha que ele carrega consigo, qual seja, a de delator. Por isso, por
vezes, é mais interessante que o potencial delator, para ser incentivado a contribuir com a
justiça, receba algum tratamento descarceirizador – a conversão da pena em restritiva de
direitos, ou o perdão judicial, quando cabíveis.

3. Extorsão indireta

Diz o artigo 160 do CP:

“Extorsão indireta
Art. 160 - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da situação de
alguém, documento que pode dar causa a procedimento criminal contra a vítima ou
contra terceiro:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.”

O sujeito passivo deste delito é alguém que está em uma situação de penúria, pois é
um devedor em dificuldades, e o legislador quis evitar que o seu credor exerça um subjugo
abusivo sobre este devedor. O que se quer, aqui, é tutelar a normalidade na relação entre
devedor e credor, evitando que a situação de superioridade do credor possa levar o devedor
a praticar algo de que a Constituição o resguarda, a auto-incriminação; ou a incriminar um
terceiro, que, não fosse a superioridade do credor perante si, não incriminaria.
Veja: o credor que aqui se coloca exige do devedor a entrega de algum documento
que, por si só, é indício suficiente para a persecução penal de si ou de terceiros. Exemplos
de documentos que aqui se enquadram são um documento falso que o devedor tenha
produzido, a confissão de um crime por ele assinada, um cheque sem fundos por ele
emitido, etc.
A extorsão é indireta, porque há, como pano de fundo, uma dívida realmente
existente entre os personagens, mas há um subjugo injusto por parte do credor sobre o
devedor. A reprovabilidade é menor, por certo, mas ainda é fato típico este abuso na
conduta da relação de crédito e débito. A exigência não é feita sob grave ameaça ou
violência, e sim por meio do abuso da situação de maior poder que a posição de credor lhe
confere. É comum, aqui, o enquadramento do agiota, que, ao invés de exigir meios normais
de garantia de dívida, exige do devedor uma confissão escrita de um crime, por exemplo.
Há uma modalidade formal deste crime, na conduta de exigir o documento; e uma
modalidade material, que se preenche na conduta de receber tal documento.

Michell Nunes Midlej Maron 231


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A vítima deste crime não poderá ser processada com base no documento que foi
exigido. Esta prova, por óbvio, é absolutamente ilícita, obtida por meio de uma conduta
criminosa.

Casos Concretos

Questão 1

TÍCIO e CAIO abordaram a vítima LÚCIA quando a mesma estava parada em um


sinal. Levada para local desabitado, a vítima é obrigada a fornecer a senha do seu cartão,
tendo TÍCIO se dirigido ao banco 24 horas visando à retirada do dinheiro, enquanto CAIO
mantinha a vítima detida até o retorno de seu comparsa. TÍCIO, porém, antes de sacar a
importância almejada, é preso por policiais militares que coincidentemente passavam pelo
local, logo os levando ao ponto onde seu comparsa se achava com LÚCIA, sendo o outro
também preso, justamente no momento em que, com emprego de uma arma de fogo, a
mesma utilizada quando da abordagem, constrangia a vítima a tirar a roupa para dar
início ao estupro. Qual a correta capitulação do fato?

Resposta à Questão 1

Trata-se do famigerado sequestro relâmpago, do artigo 158, § 3°, do CP, consumado


para ambos – pois a obtenção da vantagem é mero exaurimento –, em concurso, e, para
Caio, imputa-se também o estupro tentado, do artigo 213 do CP.

Questão 2

PEDRO e PAULO estão sendo processados pela prática do crime de extorsão


mediante seqüestro. A denúncia descreve os seguintes fatos: os réus seqüestraram o
funcionário de uma instituição bancária responsável pelo segredo da senha de acesso ao
caixa eletrônico, cuja chave era guardada pelos vigilantes; o seqüestrado revelou as
senhas aos réus que, após chegarem à porta do referido caixa eletrônico para realizar a
retirada do dinheiro, receosos com a eventual reação dos vigilantes, retornaram ao
cativeiro e libertaram a vítima. O MP requereu a condenação, nos termos da denúncia. A
defesa alega a desistência voluntária, pois os réus renunciaram voluntariamente ao
propósito criminoso. Se fosse você o Juiz, como decidiria?

Resposta à Questão 2

Trata-se do sequestro relâmpago, do artigo 158, § 3°, do CP, e não do artigo 159,
como quer o MP, pois a tipificação hoje é expressa naquele novel dispositivo.
Ademais, não há que se falar, aqui, em desistência voluntária. Os meliantes só não
empreenderam a intentada até o final por temor da reação dos vigilantes, e não por não
mais quererem proceder à consumação do delito. Quando a desistência se dá porque o
agente pondera a chance de enorme desvantagem que terá se continuar, isto não é uma
conduta voluntária que revele arrependimento, merecedor do benefício dado à desistência
voluntária. Neste sentido, mesmo a desistência da consumação de um delito por medo de

Michell Nunes Midlej Maron 232


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

um processo criminal, fadado ao sucesso, decorrente da conduta, não pode ser considerada
desistência voluntária – o que ocorre, como exemplo, quando o agente percebe que a vítima
reconhece sua identidade, o que fará prova forte quando capturado.
Veja a Apelação Criminal 2000.050.04972, do TJ/RJ, que enquadrou o fato no
artigo 159 do CP, por ser julgado anterior à inclusão do § 3° ao artigo 158 do CP:

“Processo 2000.050.04972. APELACAO. DES. SERGIO DE SOUZA VERANI -


Julgamento: 31/01/2002 - QUINTA CAMARA CRIMINAL. EXTORSAO
MEDIANTE SEQUESTRO. CONSUMACAO. CRIME FORMAL.
DESISTENCIA VOLUNTARIA. NAO CONFIGURACAO. VOTO VENCIDO.
Extorsao mediante sequestro (art. 159, CP). Consumacao. Crime formal.
Desistencia voluntaria nao configurada, vencido nesta parte o relator. Intempestivo
o recurso do MP, dele nao se conhece. Demonstrada a participacao dos quatro
apelantes no fato criminoso, mantem-se a condenacao. O crime de extorsao
mediante sequestro e' formal, consumando-se com o sequestro da vitima para cujo
resgate e' exigida a vantagem ilicita (Hungria), independente da obtencao dessa
vantagem patrimonial. Agentes que sequestram funcionario de Banco, responsavel
pelo segredo da senha de acesso ao caixa eletronico, cuja chave era guardada pelos
vigilantes, para reposicao de dinheiro: se o sequestrado fornece a senha aos
agentes, o crime esta' consumado, mesmo se estes nao se encontram com os
vigilantes para a retirada do dinheiro, liberando a vitima. Vencido nesta parte o
Relator, que entendia configurada a desistencia voluntaria, desclassificando a
imputacao para o tipo do art. 148, par. 2., do CP (sequestro), com a seguinte
ementa: Tratando-se de crime formal, a consumacao ocorre com a realizacao da
conduta constrangida da vitima. Na hipotese, porem, a revelacao da senha constitui
apenas parte da conduta constrangida, que so' teria realizacao integral com a
possibilidade de acesso tambem `as chaves do caixa eletronico, em poder dos
vigilantes. Se os agentes, por medo, nao comparecem ao encontro marcado com os
vigilantes, e resolvem, voluntariamente, soltar a vitima, renunciando ao proposito
criminoso, ocorre ai' a desistencia voluntaria; nao houve qualquer obstaculo
externo `a vontade dos agentes, de modo a impedir o prosseguimento da atividade
criminosa. Os agentes optaram pelo caminho da ponte de ouro, "no sentido de
fazer parar a roda ja' em movimento das relacoes causais" (Von Liszt). Recurso do
MP nao conhecido. Recursos defensivos desprovidos, parcialmente provido apenas
o de Ocimar.”

Questão 3

WALKIRIA, de 17 anos, filha do industrial XERXES, e seu namorado YEDO, de 19


anos, resolveram obter indevida vantagem econômica em prejuízo de XERXES. Para isto,
contando com o auxílio de Vantuil, de 16 anos, primo de YEDO, simulam o seqüestro de
WALKIRIA, a qual se esconde na casa de campo de YEDO. Isto ocorre na véspera de
WALKIRIA completar 18 anos de idade. No dia seguinte, VANTUIL telefona para
XERXES, cobrando a importância de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) para a
liberação da "vítima", ameaçando matá-la caso o "resgate" não fosse pago. Acertados o
pagamento e o local respectivo para a entrega do dinheiro, a autoridade policial, avisada
por XERXES, vem a deter YEDO, sendo então descoberta toda a farsa, pois YEDO
informou onde WALKIRIA se encontrava escondida.
1 - Capitule os fatos com relação a cada um dos envolvidos, e esclareça qual a
pena mínima aplicável, se for o caso. Verifique a eventual ocorrência de alguma
escusa absolutória, ou delação premiada.

Michell Nunes Midlej Maron 233


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

2 - Esclareça o que é crime putativo.

Resposta à Questão 3

1 – Trata-se do crime de extorsão, do artigo 158 do CP, consumado, podendo ser


considerada ou não a pluralidade de agentes como causa de aumento do § 1° deste
artigo, a depender da corrente que se adote sobre a necessidade da presença de mais
de um extorcionário perante a vítima. Somente Yedo é imputável, pois os outros
agentes são adolescentes. Yedo, menor de vinte e um anos, tem atenuada sua
reprovabilidade, pelo artigo 65, I, do CP.
Sendo extorsão, e não estelionato, como se poderia confundir, não se aplica
qualquer escusa absolutória.
Não há enquadramento da delação procedida naquela que é premiada no §
4° do artigo 158 do CP, mas pode haver-se configurada a do artigo 14 da Lei
9.807/99.

2 – Crime putativo é aquele que se passa unicamente na imaginação do agente, ou


seja, é aquele fato que não é criminoso, apesar de o agente crer que o seja. Há crime
putativo por erro de tipo ou erro de proibição. Neste último, o agente pratica o fato
achando que este é criminoso, mas não o é. Como exemplo, o incesto praticado por
agente que crê ser crime, quando o ordenamento não incrimina esta conduta – este
erro não tem nenhuma repercussão jurídica.
O crime putativo por erro de tipo nada mais é do que o crime impossível: é
aquele que ocorre quando o agente crê estar praticando conduta criminosa, que sabe
ser criminosa, mas não está praticando porque seus atos não a preenchem
totalmente. Em outras palavras, o agente crê estar praticando um crime, mas quer
porque o meio empregado para a execução é impróprio, quer porque o objeto
alvejado não existe, não comete crime algum. Como exemplos, a mulher que pratica
aborto, sendo que não estava grávida – impropriedade do objeto, pois inexiste vida
intrauterina; ou a mulher que pratica aborto com medicamento que não causa
abortamento – havendo clara impropriedade do meio.

A respeito, veja a Apelação Criminal 1997.050.00494, do TJ/RJ:


“Processo 1997.050.00494 – APELACAO. DES. ALVARO MAYRINK DA
COSTA - Julgamento: 17/02/1998 - TERCEIRA CAMARA CRIMINAL.
SEQUESTRO. SIMULACAO. ROUBO QUALIFICADO. EXTORSAO.
RECURSO DESPROVIDO.
Penal. Falso sequestro. Roubo qualificado em concurso real heterogenio com
injusto do tipo de extorsao consumado. Se da analise dos elementos de prova
colhidos no curso de pormenorizada instrucao criminal resulta comprovado que o
filho se acumpliciou para simular o seu sequestro, objetivando extorquir de seu
genitor o dinheiro pretendido sob o biombo de resgate, configura-se o injusto de
extorsao, na forma consumada, pois houve o percurso tradicional de negociacao do
preco e da forma de pagamento, inexistindo em qualquer momento repelimento do
extorquido. Recurso improvido.”

Michell Nunes Midlej Maron 234


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XIX

Apropriação Indébita. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado.
Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Diferença entre apropriação indébita e furto qualificado
pelo abuso de confiança;c) Diferença entre apropriação indébita e estelionato. 2) As outras espécies de
apropriação indébita:a) Apropriação indébita previdenciária;b) Apropriação de coisa havida por erro, caso
fortuito ou força da natureza;c) Apropriação de tesouro;d) Apropriação indébita de coisa achada;e)
Apropriação indébita qualificada;f) Apropriação indébita privilegiada. 3) Aspectos controvertidos. 4)
Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.

Notas de Aula35

1. Apropriação indébita

Diz o artigo 168 do CP:

“Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Aumento de pena
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:
I - em depósito necessário;
II - na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante,
testamenteiro ou depositário judicial;
III - em razão de ofício, emprego ou profissão.”

Este tipo acima, no direito comparado, é chamado de crime de abuso de confiança,


o que já é um esclarecedor para o que se trata esta conduta. Este crime pressupõe, de fato,
uma relação de confiança entre o titular do patrimônio lesado e o sujeito ativo, afinal é
desta confiança, a qualquer título, que surge a posse ou detenção lícita a permitir que haja a
apropriação indevida.
A grande característica deste crime, então, é justamente a posse ou detenção
desvigiada lícita do bem pelo sujeito ativo. Em momento algum, porém, esta dinâmica se
confunde com o furto praticado com abuso de confiança, na forma do artigo 155, § 4°, II,
do CP. No furto, há a subtração do bem, que é facilitada pela confiança que a vítima
depositava no furtador, mas que nunca lhe entregou a posse ou a detenção desvigiada.
A detenção só permite a configuração deste delito quando desvigiada, como se vê.
Se a detenção for vigiada, o detentor que ficar com o bem para si estará, de fato, cometendo
subtração, configurando furto, e não apropriação indébita.
A apropriação indébita pode se aproximar bastante do estelionato, em sua
verificação fática, havendo um aspecto apenas que os diferenciará de forma clara: a posição
do dolo do agente. A cena objetiva pode ser exatamente a mesma, mas a configuração de
um ou outro delito dependerá do momento do dolo de apoderar-se da coisa: no estelionato,
este dolo preexiste à obtenção da posse ou detenção desvigiada; na apropriação indébita, o
agente obtém a coisa de forma lícita, e somente após estar com a sua posse ou detenção
35
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 3/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 235


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

desvigiada é que surge o dolo de apoderar-se de tal coisa. No estelionato, a posse ou


detenção são frutos do erro a que o titular da coisa foi induzido pelo sujeito ativo; na
apropriação indébita, a posse ou detenção é licitamente entregue ao sujeito ativo, e só após
ele forma em sua mente a intenção criminosa de não restituir, de com a coisa ficar como se
sua fosse.
A tipificação da apropriação indébita exige também o animus rem sibi habendi, ou
seja, é preciso que o agente queira ter a coisa para si ou para outrem.
A diferença entre posse e detenção é irrelevante para o crime, porque ambas as
situações conferem ao agente ativo o poder de fato sobre a coisa. Basta que a detenção seja
desvigiada, como dito, porque se for vigiada o crime é de furto. A posse, por óbvio, é
sempre desvigiada, porque o agente recebe do proprietário o poder de exercer alguns dos
atributos da propriedade, como usar e fruir da coisa, portando-se naturalmente, aos olhos
externos, como se proprietário fosse – mas nunca aos olhos do real proprietário.
A detenção, por seu turno, é a situação em que o agente tem a coisa consigo em
nome do titular, e apenas para dar destinação a esta coisa sob ordens daquele titular. Nunca
se mostra aos terceiros como se proprietário fosse, nem mesmo se a detenção for
desvigiada. Veja exemplos bem claros da diferença: o dono de um carro empresta-o a um
amigo, para que use enquanto viaja: há situação de posse, e a relação jurídica é de
verdadeiro comodato, podendo o possuidor usar o carro como se seu fosse, mas devendo
restituí-lo ao proprietário quando solicitado. Já o dono do carro que deixa-o na oficina
mecânica para a execução de um reparto, e vai embora,m está deixando o veículo em
detenção desvigiada, o que significa que o mecânico não pode usar o carro a seu critério,
mas apenas no que for relevante à ordem de serviço dada pelo proprietário.
Em ambos os casos, se o possuidor ou o detentor inverte seu ânimo em relação ao
bem, há a apropriação indébita. Se o amigo, comodatário do carro, forma em sua mente a
idéia de que o carro é seu, e que não mais o devolverá, portando-se desde então como se
dono fosse, aos olhos do real proprietário, está consumada a apropriação indébita. Se o
mecânico, da mesma forma, passa a ter o bem como seu, está consumado este crime.
Vejamos um exemplo capaz de gerar confusão: o automóvel é deixado em um
estacionamento com manobristas, e um dos manobristas que ali trabalham se apodera do
bem, havendo-o como se seu fosse. Há crime de apropriação indébita?
A resposta é negativa: ao deixar o veículo neste estacionamento, a detenção
desvigiada foi passada à pessoa jurídica, ao estabelecimento mantenedor do serviço de
estacionamento, e os manobristas passam a exercer, agora, detenção vigiada, em nome da
pessoa jurídica, que tem a detenção desvigiada em nome do proprietário – pois exatamente
nisto consiste parte deste tipo de serviço, deter o bem em guarda, em segurança. O
funcionário que se apropria do bem nunca recebeu, pessoalmente, a detenção desvigiada do
carro. Ao se apoderar do veículo, ele estará burlando a detenção vigiada que lhe foi
conferida pelos prepostos da pessoa jurídica, e por isso a situação que se configura é de
furto: havia a vigilância sobre sua detenção, exercida não pelo proprietário em si, mas pelos
prepostos contratados pelo proprietário do carro.
Se quem recebe o carro das mãos do proprietário for um falso manobrista, já com o
dolo de apoderar-se do bem mediante a indução do dono em erro, o crime é de estelionato:
o dolo é anterior à obtenção da detenção, e não posterior, como se dá na apropriação.
A elementar “coisa alheia móvel” tem sido interpretada pela doutrina como reduzida
a bens infungíveis, como regra. Veja: se o agente recebe dinheiro emprestado, por exemplo,

Michell Nunes Midlej Maron 236


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

não restituir este dinheiro não configura apropriação indébita, porque ao receber o dinheiro
há a transferência do próprio domínio deste valor ao seu patrimônio, e não da mera posse
ou detenção. Mas veja uma situação escapatória à regra: se o agente recebe o dinheiro de
alguém, para entregá-lo a um terceiro, se deixar de repassar este bem, mantendo-o como
seu, estará cometendo o crime há o crime de apropriação indébita, porque este bem, mesmo
fungível, jamais integrou seu patrimônio – nunca houve a transferência de domínio, e por
isso havia simples detenção. Um bom exemplo disso é o dinheiro que é entregue ao office-
boy para realizar pagamentos no banco: jamais lhe foi dado o domínio, e se este detentor
ficar com o dinheiro para si, há apropriação indébita.
A interpretação do verbo “apropriar”, núcleo do tipo, é problemática quando se
cogita da tentativa. É possível tentar apropriar-se? A doutrina, quase que de forma unânime,
entende que é possível a forma tentada, porque o verbo “apropriar” seria plurissubsistente,
mas é difícil encontrar exemplos. Hungria traz o seguinte: a vítima emprestou um veículo
ao agente, e, durante o período regular do empréstimo, vê seu veículo anunciado para
venda, pelo possuidor. Antes de qualquer ato de disposição efetivo, a vítima busca o veículo
de volta, configurando a tentativa.
Este exemplo é criticável, porque não se mostra correto ante o que se entende que
seja o exato momento consumativo da apropriação indébita: este crime se consuma no
momento em que se inverte a posse ou detenção, tornando-se em propriedade
indevidamente. Esta inversão se opera exclusivamente na mente do autor, não precisando
demonstrar-se em atos externos para considerar-se consumado – os atos externos são mera
comprovação daquela consumação que se deu na mente do agente.
Destarte, no exemplo, o ato de disposição potencial do bem – o anúncio no jornal –
na verdade está apenas comprovando que na mente do agente ele já inverteu a sua condição
de possuidor para a de proprietário. Esta conduta revela, por parte do agente ativo, ato de
disposição do bem que é compatível com a inversão da posse para a propriedade,
demonstrando que o agente já passou a comportar-se como se dono fosse – ou seja, o crime
já estava consumado, não restando tentado apenas porque o real proprietário buscou o bem
antes da venda efetiva.
Outro exemplo de suposta tentativa, este mais estranho ainda, é o do office-boy que
é incumbido de realizar pagamentos, e, no caminho, quando ia se desviar da rota do banco
para apoderar-se do dinheiro que lhe foi confiado, é impedido por um segurança que vinha
lhe seguindo. Ora, aqui se repete a crítica: assim que, na mente do agente, operou-se a
inversão do estado de detentor para proprietário, está consumado o crime; o desvio da rota,
ato externo, apenas revelaria a consumação já ocorrida em sua mente, não sendo ele próprio
a consumação.
É, de fato, muito difícil se constatar algum exemplo em que a tentativa seja
percebida, porque a consumação se dá a nível mental, na inversão do estado de possuidor
ou detentor para proprietário – é de então que está executado, plenamente, o verbo
“apropriar”. Contudo, a doutrina reiteradamente afirma cabimento de tentativa, neste delito.
Em outro aspecto do tipo, vale trazer aqui um exemplo que pode gerar dificuldade
de entendimento: proprietário entrega ao agente um cofre trancado, para que este seja
transportado. No percurso, o agente arromba o cofre, e toma para si o conteúdo. Há
apropriação indébita?

Michell Nunes Midlej Maron 237


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A resposta é negativa: há o crime de furto, pois o conteúdo do cofre não foi dado à
detenção ou posse do agente, e sim o próprio cofre. Ao tomar o conteúdo, o agente está
subtraindo coisa alheia, e não apropriando-se de algo que lhe foi confiado licitamente.
A diferenciação entre apropriação indébita e furto com abuso de confiança é difícil,
por vezes. Reveja um exemplo: o patrão entrega seu cartão e senha, pedindo à secretária
que lhe saque cem reais. Esta, quando procede ao saque, retira duzentos, ficando com cem
para si. Esta conduta capitula-se no furto de cem reais com abuso de confiança, porque o
patrão não lhe deu a posse ou detenção de duzentos, e sim a mera detenção de cem – os
outros cem foram subtraídos dele, com abuso da confiança nela depositada.
Diferentemente, em um outro exemplo, se um empresário confia todas as suas
contas a uma secretária, a qual desempenha real papel de administradora de bens, ele
entrega a esta pessoa a detenção, desvigiada, de todos os seus bens. Se esta administradora
de bens, no manuseio das contas, toma bens para si, estará, de fato, cometendo apropriação
indébita, pois qualquer bem que tomar é bem que já estava em sua detenção.
O simples atraso na restituição de bem que lhe foi confiado não revela cometimento
do crime de apropriação: se não há a inversão da posse ou detenção, o animus rem sibi
habendi, não há o crime. Há mero ilícito civil.
Se o agente que se apodera de bem que tem posse ou detenção for funcionário
público, e o bem lhe foi confiado em razão da função, há o crime de peculato, do artigo
312, caput, que mesmo por isso é chamado de peculato-apropriação:

“Peculato
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
(...)”

A apropriação poderia ser cometida na forma omissiva? Em tese, sim, mas a


dificuldade é de constatar-se tal forma em exemplos concretos. Um exemplo aparentemente
possível seria o do devedor, executado em processo judicial, que vê o oficial de justiça
penhorar bem de terceiro que está em sua posse, e nada faz para desfazer o equívoco,
pretendendo, com isso, ver parte de sua obrigação judicial quitada com aquele bem de
terceiro – o que revelaria a inversão da posse em sua mente, consubstanciada em ma
tolerância. Em verdade, novamente, há crítica a este exemplo: a conduta que seria omissiva,
aqui, é a externa, o ato que revela a inversão da posse, que já se operou, ativamente, na
mente do agente, quando viu a penhora ter início.

1.1. Forma majorada

O § 1° do artigo 168 apresenta causa de aumento de pena quando o agente recebeu a


coisa em razão de situações especiais, que aumentam sua reprovabilidade.
No inciso I deste § 1°, diz o legislador que é mais grave a conduta de quem recebeu
o bem em depósito necessário. Há duas hipóteses de depósito necessário: o depósito legal e
o miserável, respectivamente consignados no artigo 647, I e II, do CC:

“Art. 647. É depósito necessário:


I - o que se faz em desempenho de obrigação legal;

Michell Nunes Midlej Maron 238


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

II - o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incêndio, a


inundação, o naufrágio ou o saque.”

Se o agente recebe o bem em um destes casos, haveria maior reprovabilidade em


ficar com o bem para si. A doutrina, no entanto, tem lido como depósito necessário, no
artigo 168, § 1°, I, do CP, apenas o depósito miserável, do inciso II do artigo supra,
entendendo que o depósito legal não configuraria a majorante, porque quando há depósito
legal, na verdade, há sempre uma hipótese de peculato: o agente que recebe o depósito legal
é sempre funcionário público.
O inciso II do artigo em análise, 168, § 1°, do CP, diz que tem a pena aumentada
aquele que se apropria de bem de que recebeu a posse ou detenção por ser tutor, curador,
síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial. Todas estas
figuras têm em comum o fato de, não sendo funcionários públicos (pois senão seria
peculato, e não apropriação indébita), não exercem função pública, mas sim múnus público
na administração de interesses privados, administrando bens de terceiros. É situação mais
reprovável porque a força do compromisso firmado com o magistrado é maior do que a
usual confiança depositada em quem recebe a posse ou detenção.
O inciso III do mesmo dispositivo aumenta a pena de quem tem a posse ou detenção
em razão de ofício, emprego ou profissão, e do bem se apropria. Aqui está enquadrada a
conduta do pessoal em serviço de hotelaria, que se apodera da bagagem dos hóspedes, por
exemplo. Também se enquadra aqui a figura do advogado ou defensor dativo, que se
apodera de valores do patrocinado que lhe foram confiados por sua relação de patrocínio (e
não do defensor público, que se assim se porta incide em peculato, pois é funcionário
público). De fato, qualquer pessoa que está em poder da coisa para serviços, como os
mecânicos de automóveis, se enquadram nesta majorante.

2. Apropriação indébita previdenciária

Veja o artigo 168-A do CP:

“Apropriação indébita previdenciária (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)


Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos
contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
§ 1° Nas mesmas penas incorre quem deixar de: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à
previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a
terceiros ou arrecadada do público; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado
despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de
serviços; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já
tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
§ 2° É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e
efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as

Michell Nunes Midlej Maron 239


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou


regulamento, antes do início da ação fiscal. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 3° É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o
agente for primário e de bons antecedentes, desde que: (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o
pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou (Incluído
pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior
àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o
mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)”

O artigo tem bastante correlação com o artigo 337-A do CP, devendo ser feita uma
análise comparada dos dispositivos:

“Sonegação de contribuição previdenciária (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)


Art. 337-A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer
acessório, mediante as seguintes condutas: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I - omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações
previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário,
trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem
serviços; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa
as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo
tomador de serviços; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
III - omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas
ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias:
(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
§ 1° É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara e confessa as
contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à
previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da
ação fiscal. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2° É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o
agente for primário e de bons antecedentes, desde que: (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
I - (VETADO) (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior
àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o
mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)
§ 3° Se o empregador não é pessoa jurídica e sua folha de pagamento mensal não
ultrapassa R$ 1.510,00 (um mil, quinhentos e dez reais), o juiz poderá reduzir a
pena de um terço até a metade ou aplicar apenas a de multa. (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
§ 4° O valor a que se refere o parágrafo anterior será reajustado nas mesmas datas
e nos mesmos índices do reajuste dos benefícios da previdência social. (Incluído
pela Lei nº 9.983, de 2000)”

Ambos os tipos têm em comum que são da competência da Justiça Federal, vez que
tutelares da previdência social, interesse gerido pelo INSS.

Michell Nunes Midlej Maron 240


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O artigo 337-A, por sua vez, é um exemplo claro de sonegação fiscal, tal como
tipificadas as condutas do artigo 1° da Lei 8.137/90, e por isso atrai para cá a análise
conjunta também deste tipo:
“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou
contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei
nº 9.964, de 10.4.2000)
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo
operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer
outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva
saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento
equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente
realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10
(dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor
complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência,
caracteriza a infração prevista no inciso V.”

Todas as condutas do artigo 337-A se enquadram como falsidades ideológicas ou


materiais, assim como na sonegação fiscal da lei extravagante, supra. Isto porque, sem que
haja algum falso, as leis estariam incriminando a mera inadimplência fiscal. É preciso se
configurar sonegação, e não mera inadimplência, nos crimes do artigo 337-A e 1° da Lei
8.137/90.
Além de serem idênticos, estes são crimes materiais, que precisam da produção
naturalística do resultado – a supressão do valor devido ao fisco – para se configurarem. A
respeito, o STF, no HC 81.611, passou a exigir a condução do procedimento administrativo
até o final, a fim de se apurar a efetiva sonegação – tornando este processo administrativo
uma condição objetiva de punibilidade, quiçá elemento normativo do tipo da sonegação
(tanto o do artigo 1° da Lei 8.137/90 quanto o do artigo 337-A do CP). Veja:

“HC 81611 / DF - DISTRITO FEDERAL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 10/12/2003. Órgão Julgador: Tribunal
Pleno. Publicação: 13-05-2005.
EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º):
lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo:
falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição
enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora
não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571),
falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L.
8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do
processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo
uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por
outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do
tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e
garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura
da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para
questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se
devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo
criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo

Michell Nunes Midlej Maron 241


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a


ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.”

O entendimento acima esposado se aplica perfeitamente ao artigo 337-A do CP,


bastando ler-se “previdência” onde se vê “receita”.
A Lei 10.684/03, que trata dos programas de parcelamento, faz suspensa a pretensão
punitiva do Estado sobre aquele sonegador que aderir a tais programas, enquanto durar o
parcelamento, extinguindo a punibilidade quando paga a última parcela. Este ingresso do
devedor pode ser feito a qualquer tempo, antes da sentença definitiva (pois após esta, há
pretensão executória da pena). Esta lei se aplica a ambos os crimes de sonegação, o da Lei
8.137/90 e o do artigo 337-A do CP.
Estas considerações foram todas para destacar eventuais confusões que os tipos
acima poderiam gerar em relação ao artigo 168-A do CP. Mas resta ainda uma outra
comparação a fazer, pois o artigo 2°, II, da Lei 8.137/90, diz o seguinte:

“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)


(...)
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria
recolher aos cofres públicos;
(...)”

Veja que este dispositivo tem exatamente a mesma estrutura do artigo 168-A do CP,
só que referente a tributos, e repare que ambos têm por regra um detalhe fulcral: eles não
consistem em sonegações, propriamente ditas, mas apenas inadimplemento de obrigações
fiscais, pelo que surgiu tese de que seriam, ambos os tipos, inconstitucionais, por
consistirem em verdadeiras criações legais de hipóteses de prisão por dívida, o que é
inadmissível. O STF, enfrentando esta tese em questionamento expresso ao dispositivo
supra, artigo 2°, II, da Lei 8.1378/90, rejeitou a tese, como se vê no HC 78.234 e no HC
76.978, pela ordem:

“HC 78234 / PA – PARÁ. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. OCTAVIO


GALLOTTI. Julgamento: 02/02/1999. Órgão Julgador: Primeira Turma.
Publicação: 21-05-1999.
EMENTA: Omissão do recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas
dos empregados. Figura de caráter criminal inconfundível com a da prisão por
dívida. Alegação de indisponibilidade de recursos, cuja comprovação está a
depender do regular processamento da ação penal, sendo insusceptível de exame
em habeas corpus impetrado contra o recebimento da denúncia.”

“HC 76978 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.


MAURÍCIO CORRÊA. Julgamento: 29/09/1998. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação: 19-02-1999.
EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
PRATICADO EM CONTINUIDADE DELITIVA: NÃO RECOLHIMENTO DE
CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DESCONTADA DE EMPREGADOS.
ALEGAÇÕES DE: EXCLUSÃO DA ILICITUDE POR INEXISTÊNCIA DE
DOLO; EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PARCELAMENTO DO
DÉBITO; INEXISTÊNCIA DE MORA POR VÍCIO NA NOTIFICAÇÃO
ADMINISTRATIVA, PORQUE DIRIGIDA À PESSOA JURÍDICA;
ATIPICIDADE DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA; E DE
APLICAÇÃO DA LEX GRAVIOR EM DETRIMENTO DA LEX MITIOR:

Michell Nunes Midlej Maron 242


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

ULTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL QUANDO, APÓS O INÍCIO DE CRIME


CONTINUADO, SOBREVEM LEI MAIS SEVERA. 1. Dolo genérico
caracterizado: alegação de inexistência de recursos financeiros não comprovada
suficientemente no processo- crime. 2. A punibilidade é extinta quando o agente
promove o pagamento integral do débito antes do recebimento da denúncia, o que
não ocorre enquanto não solvida a última prestação de pagamento parcelado,
possibilitando, neste período, o recebimento da denúncia. Precedentes. 3.
Improcedência da alegação de irregularidade da notificação expedida em nome da
pessoa jurídica: há comprovação de que a correspondência foi entregue e de que o
paciente dela teve ciência, sendo, assim, constituído em mora. 4. Alegação
improcedente de atipicidade do delito de apropriação indébita (crime de resultado),
porque o paciente foi condenado por crime contra a ordem tributária: não
recolhimento de contribuição previdenciária descontada de empregados, que é
crime omissivo puro, infração de simples conduta, cujo comportamento não traduz
simples lesão patrimonial, mas quebra do dever global imposto
constitucionalmente a toda a sociedade; o tipo penal tutela a subsistência financeira
da previdência social. Inexistência de responsabilidade objetiva. 5. Direito
intertemporal: ultra-atividade da lei penal quando, após o início do crime
continuado, sobrevem lei mais severa. 5.1 Crime continuado (CP, art igo 71,
caput): delitos praticados entre março de 1991 e dezembro de 1992, de forma que
estas 22 (vinte e duas) condutas devem ser consideradas, por ficção do legislador,
como um único crime, iniciado, portanto, na vigência de lex mitior (artigo 2º, II, da
Lei nº 8.137, de 27.12.90) e findo na vigência de lex gravior (artigo 95, d e § 1º, da
Lei nº 8.212, de 24.07.91). 5.2 Conflito de leis no tempo que se resolve mediante
opção por uma de duas expectativas possíveis: retroatividade da lex gravior ou
ultra-atividade da lex mitior, vez que não se pode cogitar da aplicação de duas
penas diferentes, uma para cada período em que um mesmo e único crime foi
praticado. Orientação jurisprudencial do Tribunal no sentido da aplicação da lex
gravior. Ressalva do ponto de vista do Relator, segundo o qual, para o caso de
crime praticado em continuidade delitiva, em cujo lapso temporal sobreveio lei
mais severa, deveria ser aplicada a lei anterior - lex mitior - reconhecendo-se a sua
ultra-atividade por uma singela razão: a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu (Constituição, artigo 5º, XL). 6. Habeas-corpus conhecido, mas
indeferido.”

O caráter criminoso do artigo 168-A, e do artigo 2°, II, da Lei 8.137/90, está na
apropriação indébita, está no próprio nomen do dispositivo, sendo por isso dispensável o
engodo, elementar do artigo 337-A do CP e do artigo 1°, da Lei 8.137/90. Não é prisão por
dívida: apesar de parecer óbvio, é prisão por apropriação indébita de valores do fisco.
Concentrando o estudo, agora, no artigo 168-A do CP, vê-se que o sujeito ativo não
é o contribuinte, a pessoa que deve a contribuição previdenciária (como o é no artigo 337-A
do CP): é sujeito ativo deste delito o substituto tributário, aquele que é incumbido pelo fisco
de recolher o tributo, mas que não suporta o ônus tributário ele próprio. Veja o artigo 30, I,
“a” e “b”, da Lei 8.212/91

“Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras


importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:
(Redação dada pela Lei nº 8.620, de 5.1.93)
I - a empresa é obrigada a: (Vide Medida Provisória nº 351, de 2007)
a) arrecadar as contribuições dos segurados empregados e trabalhadores avulsos a
seu serviço, descontando-as da respectiva remuneração;
(...)
b) recolher o produto arrecadado na forma da alínea a deste inciso, a contribuição a
que se refere o inciso IV do caput do art. 22 desta Lei, assim como as contribuições

Michell Nunes Midlej Maron 243


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

a seu cargo incidentes sobre as remunerações pagas, devidas ou creditadas, a


qualquer título, aos segurados empregados, trabalhadores avulsos e contribuintes
individuais a seu serviço até o dia 10 (dez) do mês seguinte ao da competência;
(Redação dada pela lei nº 11.488, de 2007)
(...)”

Este crime é de conduta mista: para se aperfeiçoar, há a necessária conjugação de


uma conduta comissiva e uma omissiva, ou seja, deve haver uma ação e uma omissão para
que o tipo se preencha. A ação está em recolher a contribuição, e a omissão está em não
repassá-la ao INSS.
Há, portanto, a exigência de uma ação para criar o dever inobservado em segundo
momento: se o agente não recolhe, não surge para ele o dever de repassar nada ao fisco. É
um delito omissivo de conduta mista, iniciado na ação de recolher, e aperfeiçoado na
omissão do repasse ao fisco.
Repare que ao deixar de descontar a contribuição do salário do empregado, o
empregador não está adimplindo sua obrigação previdenciária, mas não ocorre o crime do
artigo em tela: a obrigação de repassar à previdência nasce do recolhimento, e se não existe
este recolhimento, há mera inadimplência da obrigação tributária. É muito lógica esta
dinâmica:se o agente não recolhe a parcela do empregado, ele não está na posse de valores
que são da previdência, e por isso não está se apoderando de nada indevidamente – não
havendo apropriação indébita.
Por ser um crime omissivo de conduta mista – se aperfeiçoa na omissão em repassar
–, este crime não admite tentativa, pois a omissão é unisubsistente.
As Cortes Superiores entendem com tranqüilidade que este crime não exige dolo
específico de se apoderar do valor (ausente, por exemplo, quando o agente estava em
dificuldade financeira, retendo a contribuição consigo), como se vê no HC 96.092 do STF,
e HC 128.672, do STJ, pela ordem:

“HC 96092 / SP - SÃO PAULO. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CÁRMEN


LÚCIA. Julgamento: 02/06/2009. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação:
01-07-2009.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO
INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL.
ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS REM SIBI
HABENDI). IMPROCEDÊNCIA DAS ALEGAÇÕES. ORDEM DENEGADA. 1.
É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que para a
configuração do delito de apropriação indébita previdenciária, não é necessário um
fim específico, ou seja, o animus rem sibi habendi (cf., por exemplo, HC 84.589,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10.12.2004), "bastando para nesta incidir a vontade
livre e consciente de não recolher as importâncias descontadas dos salários dos
empregados da empresa pela qual responde o agente" (HC 78.234, Rel. Min.
Octavio Gallotti, DJ 21.5.1999). No mesmo sentido: HC 86.478, de minha
relatoria, DJ 7.12.2006; RHC 86.072, Rel. Min. Eros Grau, DJ 28.10.2005; HC
84.021, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14.5.2004; entre outros). 2. A espécie de
dolo não tem influência na classificação dos crimes segundo o resultado, pois
crimes materiais ou formais podem ter como móvel tanto o dolo genérico quanto o
dolo específico. 3. Habeas corpus denegado.”

“HC 128672 / SP. DJe 18/05/2009.


PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA.
PREVIDENCIÁRIA. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL.

Michell Nunes Midlej Maron 244


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

PROCESSO ADMINISTRATIVO PENDENTE. DISCUSSÃO DO DÉBITO.


AUSÊNCIA DE ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO. ATIPICIDADE. ORDEM
CONCEDIDA. 1. Enquanto houver processo administrativo questionando a
existência, o valor ou a exigibilidade de contribuição social, atípica é a conduta
prevista no artigo 168-A do Código Penal que tem, como elemento normativo do
tipo a existência da contribuição devida a ser repassada.
2. Não importa violação à independência das esferas administrativa e judiciária o
aguardo da decisão administrativa, a quem cabe efetuar o lançamento definitivo.
3. Ordem concedida para suspender o inquérito policial até o julgamento definitivo
do processo administrativo.”

No artigo 168-A do CP, a pendência de processo administrativo para comprovar a


situação do agente é impedimento para a persecução: é preciso que haja processo
administrativo findo, o que se desenha, como dito, em condição especial de punibilidade,
na forma que se mencionou sobre o artigo 337-A do CP.
Em que pese ser aplicável ao artigo 168-A do CP quase tudo que já se disse que é
aplicável ao artigo 337-A deste Código, não se aplica, aqui, a suspensão da pretensão
punitiva por conta do parcelamento, em se tratando de contribuição descontada de segurado
empregado.
Sujeito passivo deste crime é só a previdência social, e não o empregado quer teve o
valor descontado de seu salário. Isto significa, portanto, que estes empregados não perdem
o direito ao benefício previdenciário correspondente, vez que se entende que eles são
adimplentes, tendo o fisco sido lesado pelo substituto tributário, que reteve valores que
pertencem ao fisco.
Mesmo que não haja necessidade de dolo específico, não podendo a escusa de
dificuldades financeiras legitimarem a retenção, há casos em que tem sido aceita a tese de
que o agente não repassou porque havia outras obrigações mais importantes a adimplir: é o
caso, por exemplo, de quando o agente deixou de repassar para pagar salários devidos a
seus empregados. Neste caso, se entende que haja um valor mais alto do que o tributo – o s
alimentos são mais importantes do que o tributo –, e por isso a conduta é exculpada:
reconhece-se a inexigibilidade de conduta diversa do não repasse. É claro que deve haver
cabal comprovação contábil desta situação.

2.1. Formas equiparadas

O § 1° do artigo 168-A do CP traz condutas que se equiparam ao crime do caput. O


inciso I, porém, poderia ser tido por redundante: a conduta ali descrita já seria típica, na
forma do caput, afinal deixar de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância
destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a
segurados, a terceiros ou arrecadada do público, é exatamente o mesmo ato do caput.
Já no inciso II deste artigo, há de fato uma situação diferente, que precisa da
equiparação legal para ser típica, pois não se enquadraria no caput – não há ali a figura do
contribuinte, dizendo o dispositivo que é crime deixar de recolher contribuições devidas à
previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de
produtos ou à prestação de serviços.
O inciso III é ainda mais relevante, pois determina que comete o crime que deixar
de pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem
sido reembolsados à empresa pela previdência social. Aqui se enquadra, por exemplo, o

Michell Nunes Midlej Maron 245


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

pagamento de salário-família, que é adiantado pela previdência ao empregador, para ser


repassado ao empregado, e não o é.
Esta última forma equiparada é de difícil ocorrência prática, porque a Lei 8.213/91
opera compensação destes valores a serem pagos pela previdência com valores que o
empregador lhe deve. Mas se o empregador opera a compensação, e não paga nada ao
empregado, está configurado o crime deste inciso III.

2.2. Causa especial de extinção da punibilidade

O § 2° do artigo 168-A determina que se o agente espontaneamente declara,


confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as
informações devidas à previdência social, antes do início da ação fiscal, está extinta a
punibilidade.
Há quem diga que este artigo é letra morta, ante a aplicabilidade do artigo 337-A,
que determina claramente que o pagamento pode ser feito a qualquer tempo, tendo como
efeito esta extinção. Contudo, não é inútil esta previsão, porque antecipa formalmente o
momento em que se extinguirá a punibilidade.
A expressão “ação fiscal” não se refere à execução fiscal do débito: trata-se de
qualquer atividade fiscalizadora, que tem início quando há o primeiro ato de notificação de
que haverá a instauração de procedimento de fiscalização.
De qualquer forma, a Lei 10.684/03 garante a extinção da punibilidade com o
pagamento a qualquer tempo, antes da condenação definitiva.

2.3. Pena de multa ou perdão judicial

Diz o § 3° do artigo 168-A que é facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou


aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que tenha
promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da
contribuição social previdenciária, inclusive acessórios – teor do inciso I –, o que é letra
morta, de fato: este pagamento extingue a punibilidade, de qualquer forma.
Já o inciso II do dispositivo dispõe que se o valor das contribuições devidas,
inclusive acessórios, for igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social,
administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais,
também ocorrerá a conversão ou o perdão – e este sim é um dispositivo relevante.
O preenchimento destas causas de conversão em multa, ou perdão judicial, garante
ao réu tais benesses, e não apenas faculta ao juiz, como dispõe o dispositivo: há um direito
subjetivo do réu.
O valor mínimo para ajuizamento de execuções fiscais está na Lei 9.441/97, e é de
mil reais, o que se vê no REsp. 1.013.584:

“REsp 1013584 / SC. DJe 21/09/2009.


CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. VALOR SUPERIOR ÀQUELE
PREVISTO NO ART. 1.º, § 1.º, DA LEI N.º 9.441/97.
1. Não é possível utilizar o art. 4.º da Portaria n.º 4.910/99 do Ministério da
Previdência e Assistência Social como parâmetro para aplicar o princípio da
insignificância, já que o mencionado dispositivo se refere ao não-ajuizamento de
ação de execução, e não de causa de extinção de crédito.

Michell Nunes Midlej Maron 246


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

2. O melhor parâmetro para afastar a relevância penal da conduta é justamente


aquele utilizado para extinguir todo e qualquer débito oriundo de contribuições
sociais junto ao Instituto Nacional de Seguro Social, consoante dispõe o art. 1.º, §
1.º, da Lei n.º 9.441/97, que determina o cancelamento da dívida igual ou inferior a
R$ 1.000,00 (mil reais). Precedentes.
3. Recurso provido.”

3. Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza

Diz o artigo 169, caput, do CP:

“Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza


Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso
fortuito ou força da natureza:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
(...)”

Se o agente que se apropria contribuir de qualquer forma para o erro de quem


titularizava a coisa, o crime é de estelionato. Se não contribuiu para surgir o erro, mas
contribuiu para mantê-la em erro, está igualmente cometendo estelionato.
Se o agente não sabe a quem pertence a coisa, nem tem meios para identificar quem
o seja, ele pode ficar com ela para si, não havendo a necessidade de entregar a coisa à
autoridade, como existe no crime de apropriação de coisa achada, que será visto, do inciso
II do parágrafo único deste artigo 169 do CP.
O agente que vê alguém perdendo um bem, e dele se apropria, comete este crime –
transeunte que deixa cair uma carteira, por exemplo –, pois a coisa veio a seu poder por
erro do titular. Se, ao contrário, o agente vê a carteira caindo, e a esconde do alcance da
vítima, não mais há este crime: há furto, pois o agente contribuiu para que a perda se
configurasse irreversível, elidindo a esfera de vigilância da vítima.

4. Apropriação de tesouro

Diz o artigo 169, parágrafo único, I, do CP:

“(...)
Parágrafo único - Na mesma pena incorre:
Apropriação de tesouro
I - quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da
quota a que tem direito o proprietário do prédio;
(...)”

Este dispositivo se refere ao artigo 1.265 do CC:

“Art. 1.265. O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for


achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado.”

5. Apropriação de coisa achada

Diz o artigo 169, parágrafo único, II, do CP:

Michell Nunes Midlej Maron 247


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“(...)
Apropriação de coisa achada
II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente,
deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade
competente, dentro no prazo de 15 (quinze) dias.
(...)”

Este dispositivo é um bom exemplo em que o desconhecimento da lei pode exculpar


o agente, faltando o potencial conhecimento da ilicitude, porque não há código moral que
suporte a entrega do bem achado a uma autoridade: é dissonante da ética geral que haja esta
conduta. É fato que, sabendo-se quem é o dono ou o possuidor, o código ético geral
determina que todos saibam que deve haver esta devolução – e sendo assim, há o crime.
Contudo, se não se sabe ou pode saber quem é este dono, a entrega à autoridade não é um
comportamento que se deva saber ser a ordem moral, a fim de preencher o potencial
conhecimento da ilicitude.

Michell Nunes Midlej Maron 248


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Casos Concretos

Questão 1

TICIO é o melhor amigo de CAIO, a quem pede emprestado um livro de doutrina


de Direito Penal para estudar uma determinada matéria. CAIO empresta-lhe o livro, que é
raro, para que o devolva tão logo faça a pesquisa. TICIO leva o livro para casa e gosta
tanto do mesmo que resolve ficar com ele, dizendo a CAIO que foi roubado e que os
ladrões teriam levado o seu livro. Dois meses depois, CAIO descobre a verdade. Pergunta-
se:
a) TICIO praticou furto mediante abuso de confiança? Justifique.
b) Qual a diferença estrutural entre o furto e a apropriação indébita?
c) A situação se alteraria se TICIO pedisse a CAIO para olhar o livro na casa deste
e, depois, a pretexto de estar com sede, pedisse um copo d'água a CAIO e
aproveitasse o momento em que este se afastasse da sala e fosse embora levando o
livro?
d) A situação se alteraria se TICIO pedisse a CAIO para olhar o livro na casa deste
e, aproveitando-se da distração de CAIO, colocasse o livro na bolsa e fosse embora
com ele?
e) Se CAIO emprestasse o livro e também uma arca lacrada para serem devolvidos
juntos e TICIO, além de ficar com o livro também tivesse conseguido abrir a arca
descobrindo que a mesma continha algumas jóias, tirando-as e devolvendo apenas
a arca vazia? Como adequar sua conduta?
f) É possível apropriação indébita por omissão?

Resposta à Questão 1

a) Não, o crime é de apropriação indébita, eis que o agente tinha a posse lícita do
bem, invertendo seu sentido posteriormente.
b) A diferença, no que se poderia confundir os crimes, é que no furto, há detenção
vigiada; na apropriação, a detenção é desvigiada.
c) Sim, pois aqui haveria detenção vigiada, ocorrendo o furto mediante fraude.
d) Sim, haveria o furto, mas agora com abuso de confiança.
e) Há apropriação indébita do livro, e furto das jóias, porque estas nunca lhe foram
dadas em detenção ou posse, ante o lacre imposto ao conteúdo da arca.
f) Além da apropriação do artigo 168-A do CP, que é omissiva de conduta mista,
poder-se-ia entender que há também a apropriação indébita ordinária, do artigo
168 do CP, por omissão, mas os exemplos são dificultosos.

Michell Nunes Midlej Maron 249


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Tema XX

Estelionato. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; b) Diferença entre o estelionato e o furto qualificado pela fraude;c)
Diferença entre o estelionato e a apropriação indébita;d) Crimes previstos no artigo 171, § 2º, do CP;e) As
outras espécies de fraude. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula36

1. Estelionato

Veja o artigo 171 do CP:

“Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode
aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.
§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:
Disposição de coisa alheia como própria
I - vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia
como própria;
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável,
gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante
pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;
Defraudação de penhor
III - defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a
garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;
Fraude na entrega de coisa
IV - defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a
alguém;
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo
ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro;
Fraude no pagamento por meio de cheque
VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe
frustra o pagamento.
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de
entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social
ou beneficência.”

O termo vem de stellio (camaleão que muda de cor para enganar a presa). Na
origem de sua tipificação, o stellionatus era considerado um delito extraordinário e
abrangia todos os casos em que houvesse fraude, mas que não se amoldasse dentre os
crimes patrimoniais. Tratava-se, portanto, de uma espécie de delito subsidiário, de definição
genérica.
36
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 5/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 250


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Antes de ser tipificado como delito extraordinário e genérico, já se admitia, no


Direito Privado de Roma, sua punição através da actio doli, caracterizada como uma ação
penal de dolo, que seria a possibilidade de o magistrado discricionariamente fixar uma pena
em casos não previstos expressamente como crimes. Ou seja, condutas genéricas, não
abrangidas pelos tipos penais, poderiam ser punidas sem que houvesse correspondência na
lei. A maioria dessas condutas era tida como obtenções de vantagens patrimoniais por meio
de fraude. Com base em tais ocorrências, acaba por surgir no Direito Público de Roma,
segundo século do Império, a figura do stellionatus, que abrangia todos os tipos de fraudes
não previstas especificamente na lei, daí a origem do nome stellius. Ressalte-se que esta
primeira modalidade de previsão legal do delito abrangia todas as fraudes, se afastando em
muitos casos do delito hoje conhecido por estelionato, já que no Direito Romano era muito
mais genérico e abrangente.
Apenas nos meados do século XVIII, o estelionato passou a ser considerado como
crime autônomo, recebendo diversas denominações: escroquerie, na França; truffa, na
Itália; estafa, na Espanha; burla, em Portugal; e betrug, na Alemanha.
No século XIX, passou a ser considerado delito patrimonial. O conceito de delito de
estelionato, que inclusive serviu de modelo para muitas legislações foi o do Código
Francês, de 1810. No entanto, recentemente, tem sido adotada a conceituação sintética do
Código Penal Alemão, de 1871 ou do Código Penal Italiano, também de 1871. O nosso CP
de 1940 optou por seguir a conceituação do Código Penal Italiano de 1930.
A expressão estelionato, no nosso ordenamento jurídico penal, surgiu pela primeira
vez no Código Criminal de 1830, dentre os crimes contra a propriedade. O Código de 1890
seguiu a previsão anterior, mas trouxe onze modalidades de estelionato, no título referente
aos crimes contra a propriedade pública e particular, no capítulo referente aos crimes de
estelionato, abuso de confiança e outras fraudes. Posteriormente, em 1912, foi incluída a
emissão fraudulenta de cheques sem provisão de fundos.
O atual artigo 171 trouxe um aperfeiçoamento em relação aos códigos anteriores.
Vejamos o item 61 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal:

“61. O estelionato é assim definido: ‘Obter, para si ou para outrem, vantagem


ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante
artifício, ardil ou outro meio fraudulento’. Como se vê, o dispositivo corrige em
três pontos a fórmula genérica do inciso 5 do art. 338 do Código atual: contempla a
hipótese da capitação de vantagem para terceiro, declara que a vantagem deve ser
ilícita e acentua que a fraude elementar do estelionato não é somente a empregada
para induzir alguém em erro, mas também a que serve para manter (fazer subsistir,
entreter) um erro preexistente.
Com a fórmula do projeto, já não haverá dúvida de que o próprio silêncio, quando
malicioso ou intencional, acerca do preexistente erro da vítima, constitui meio
fraudulento característico do este-lionato. Entre tais crimes, são incluídos alguns
não contemplados na lei em vigor, como, exempli gratia, a fraude relativa a seguro
contra acidentes (art. 171, § 2º, V) e a “frustração de pagamento de cheques” (art.
171, § 2º, VI).
A incriminação deste último fato, de par com a da emissão de cheque sem fundo,
resulta do raciocínio de que não há distinguir entre um e outro caso: tão criminoso
é aquele que emite cheque sem provisão como aquele que, embora dispondo de
fundos em poder do sacado, maliciosamente os retira antes da apresentação do
cheque ou, por outro modo, ilude o pagamento, em prejuízo do portador.

Michell Nunes Midlej Maron 251


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O ‘abuso de papel em branco’, previsto atualmente como modalidade do


estelionato, passa, no projeto, para o setor dos crimes contra a fé pública (art.
299).”

O crime de estelionato é facilmente confundido com outros tipos penais realmente


semelhantes, tais como o furto mediante fraude, a apropriação indébita, e a apropriação de
coisa havida por erro. Todos eles são crimes contra o patrimônio, mas o estelionato tem
uma característica singular: ofende não só o patrimônio, como bem jurídico, mas também o
interesse social, representado pela confiança recíproca que deve presidir os
relacionamentos patrimoniais individuais e comerciais, quanto o interesse público de
reprimir a fraude causadora de dano alheio.
O estelionato é crime comum, podendo ser sujeito ativo qualquer pessoa. O sujeito
passivo, porém, por vezes é de difícil identificação, especialmente quando a fraude for
empregada contra uma pessoa, e o patrimônio de outra for o atingido. Isto porque o crime
consiste na obtenção de uma vantagem ilícita em prejuízo alheio, quando se induz ou
mantém alguém em erro, utilizando-se como meio algum artifício, ardil, ou qualquer outro
meio fraudulento – o que pode acarretar a dinâmica dual acima descrita, se a pessoa
ludibriada for diversa daquela em prejuízo de quem se obteve a vantagem ilícita. Exemplo
claro é o de um vendedor que é enganado pelo estelionatário: é o dono da loja quem padece
do prejuízo, mesmo que a fraude tenha sido empregada contra seu funcionário, e não contra
si.
Por isso, a doutrina, majoritariamente, tem entendido haver duplicidade
vitimológica neste crime, quando assim cometido: são dois os sujeitos passivos quando a
fraude atinge um, e a perda patrimonial outro.
Exemplo que tem sido comentado é o do frentista do posto de gasolina que recebe
um cheque sem fundos de um estelionatário, e tem de si cobrado o valor do cheque impago
mediante desconto no salário. Neste caso, somente ele é a vítima, porque concentrou em si
a ofensa ao patrimônio e a ofensa à confiança.
Ressalte-se que se a vantagem for dirigida a terceira pessoa e ela tiver ciência disso,
será considerada co-autora do delito, ainda que dele não tenha participado ativamente. Não
se deve confundir sua conduta posterior de receber a referida vantagem com o crime de
receptação, pois quando atua em concurso de agentes no crime de estelionato, sua conduta
de receber a vantagem é combinada anteriormente com o autor da fraude, enquanto no
delito de receptação o recebimento da vantagem é posterior, tendo ciência após a prática do
crime.
Indaga-se se proprietário pode ser sujeito ativo do crime de estelionato. É possível,
se presentes os requisitos do tipo penal e ele obtiver a vantagem em prejuízo de seu sócio,
condômino, co-herdeiro, desde que não ultrapasse sua cota parte. Sustenta Luiz Regis
Prado:

“Mesmo o co-proprietário da coisa sobre a qual se deu a ação material pode ser
sujeito ativo do crime em epígrafe, se obteve vantagem ilícita sobre a sua quota
excedente.”

O sujeito passivo deve ser pessoa determinada. Se a fraude for direcionada de forma
genérica, haverá um delito contra a economia popular ou contra as relações de consumo, e
não estelionato.

Michell Nunes Midlej Maron 252


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O sujeito passivo deve ter, ainda, capacidade de discernimento, já que a conduta é


de ludibriar, enganar. Se a vítima for criança, pessoa inimputável, não há estelionato por
estar caracterizado crime impossível por absoluta impropriedade do objeto material (pessoa
ou coisa sobre a qual recai a conduta). Neste caso, a conduta do sujeito ativo pode
configurar abuso de incapazes, na forma do artigo 173 do CP, ou furto, devendo a análise
ser feita casuisticamente.

“Abuso de incapazes
Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou
inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem,
induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em
prejuízo próprio ou de terceiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.”

A vantagem ilícita exigida para consumar o delito precisa ser necessariamente


patrimonial, vantagem econômica, porque o crime é essencialmente contra o patrimônio.
Mas há que se diferenciar uma nuance bastante específica que parte da doutrina aponta:
dizem que, na verdade, o prejuízo precisa ser patrimonial, e não a vantagem obtida, que
pode ser de qualquer natureza. É certo que, mor das vezes, há coincidência: o prejuizo
causado é a vantagem auferida, e por isso se diz que a vantagem precisa ser econômica –
porque o prejuizo necessariamente o será. Contudo, se o prejuizo for de cunho patrimonial,
e a vantagem não, ainda assim haverá estelionato.

1.1. Fraude civil vs. fraude penal

Outra questão de importância é a tentativa em tentar estabelecer uma diferença segura


entre fraude penal e fraude civil. O problema é saber quando a fraude terá repercussão no
direito penal. A dificuldade é esta: saber quando a fraude tem relevância penal e quando é
apenas uma malicia necessária à arte de negociar, não caracterizando crime, porque toda
transação comercial envolve uma certa malícia, e todo negócio envolve um certo risco.
Hungria dizia que a natureza e a dimensão do dano não podem ser critério. O que
caracteriza o estelionato é o dolo de fraudar e de obter vantagem indevida em prejuízo
alheio. A diferença está na certeza do prejuizo: a vitima penal não corre risco nenhum, ela
já se sabe que vai ter prejuízo. Quando o agente faz desaparecer o risco, há estelionato. A
fraude retirou da vítima a possibilidade de fazer negócio arriscado: ela simplesmente foi
enganada.
É por isso que a quebra do comerciante não é estelionato, se se tratar de um infortúnio
comercial. Diferentemente, se algum lojista não paga ninguém de propósito, fecha a loja e
some, é estelionato. A distinção há de ser aferida casuisticamente, não havendo fórmula
para identificar a fraude que importa ao Direito Penal.
Bitencourt sustenta que:

“Na verdade, não há diferença ontológica entre fraude civil e fraude penal, sendo
insuficientes todas as teorias que – sem negar-lhes importância – procuraram
estabelecer in abstracto um princípio que as distinguisse com segurança; não se
pode, responsavelmente, firmar a priori um juízo definitivo sobre o tema. Fraude é
fraude em qualquer espécie de ilicitude – civil ou penal -, repousando eventual
diferença entre ambas tão somente em grau de intensidade.

Michell Nunes Midlej Maron 253


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Na fraude civil, objetiva-se o lucro do próprio negócio, enquanto na fraude penal


se visa o “lucro ilícito”. A inexistência de dano civil impede que se fale em
prejuízo ou dano penal. Essa distinção, além de complexa, não é nada pacífica.
Não há critério científico que abstrata ou concretamente distinga, com segurança
uma fraude da outra!”

Concluindo, este autor defende que não se pode estabelecer um critério abstrato, mas
tão somente fixar algumas diretrizes para orientar o aplicador da norma no caso concreto.
Outro não é o entendimento de Luiz Regis Prado:

“Na realidade, a fraude é única, e a propalada diferença é apenas de grau, de


quantidade”

Com isso em mente, é seguro afirmar que não há crime de estelionato quando o
ardil, a fraude, traduzido na maquiagem de fatos (como o exagero quanto aos danos morais
sofridos), se destina a triunfar em uma lide judicial: se o agente provoca o erro do juiz,
causando a prolação de uma sentença a si favorável, não se pode entender que haja o
chamado estelionato contra o Judiciário, ou estelionato judicial. Veja o HC 136.038, e o
REsp. 878.469, ambos do STJ:

“HABEAS CORPUS Nº 136.038 - RS (2009/0090144-1). RELATOR: MINISTRO


NILSON NAVES.
EMENTA: Estelionato/estelionato judicial. Processo/representação/provas em
juízo. Responsabilidade dos procuradores. Ausência de fato típico.
1. Quanto aos acontecimentos do processo judicial (deveres e responsabilidade),
hão de vir a pelo, preferencialmente, os arts. 14 a 18 do Cód. de Pr. Civil.
2. Os sucessivos atos processuais estão fora da lei penal; o processo, já de natureza
dialética, gerado, pois, por oposições, está continuamente sujeito ao controle das
partes, às quais se asseguram o contraditório e a ampla defesa, bem como uma
série de recursos.
3. Tal o caso, falta-lhe a ilicitude da vantagem, também lhe falta o meio
fraudulento (artifício, ardil, etc.). Enfim, o denominado estelionato judicial
juridicamente não é fato penal; falta-lhe, assim, tipicidade.
4. Não é penalmente punível a conduta de quem procura em juízo.
5. Habeas corpus deferido a fim de se extinguir a ação penal.”

A questão não é exatamente pacífica, porém. O emprego de uma fraude, praticada


por meio da falsificação de um documento qualquer acostado aos autos – uma falsa
certidão, uma identidade falsa, ou qualquer outra falsidade – poderia desconfigurar a
situação acima considerada atípica, e para alguns, haveria, sim, estelionato judicial, porque
então haverá ilicitude na vantagem, e haverá emprego de meio fraudulento. Neste sentido,
veja o parecer do Subprocurador de Justiça oficiante no HC 136.038, supra (parecer que
não foi acolhido, como se viu, mas que ilustra bem a posição contrária):

“O presente habeas corpus não merece prosperar. Está correta a conclusão adotada
pelo Tribunal de origem, porque a descrição legal do estelionato, um dos crimes
por cuja suposta prática o Paciente foi denunciado, descartada aqui a menção às
demais imputações não impugnadas, não exclui da incidência do tipo penal a
fraude praticada em juízo, porque não faz distinções relativas à sede em que
praticado o crime e à qualidade do sujeito passivo, que pode ser qualquer pessoa,
inclusive o juiz, que, obviamente, também é passível de ser induzido ou mantido
em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

Michell Nunes Midlej Maron 254


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O fato de o processo judicial permitir o exercício do contraditório e da ampla


defesa não suprime a possibilidade de as partes, se imbuídas de má-fé, trazerem
aos autos fatos inverídicos e fraudarem documentos e certidões, sem que o
magistrado, a despeito do zelo na condução do processo, consiga identificar sinais
de fraude, em especial se os documentos juntados aos autos são laudos periciais,
documentos cujo caráter eminentemente técnico descarta, como regra,
desconfiança sobre sua veracidade.
Na hipótese dos autos, extrai-se do relatório do Acórdão atacado o seguinte:
‘(...) a denúncia imputa ao paciente a prática de estelionato contra a União, que
teria sido cometido através de dois instrumentos: 1º) que teria havido cobrança
dúplice através de certidão falsa que, omitindo informação sobre o objeto da
primeira causa, permitiu que o judiciário fosse induzido em erro; 2º) induzimento
do juízo em erro no que toca ao laudo pericial aceito como verdadeiro. (...)’
Assim, nada impede que um magistrado, a despeito da liberdade de formação do
seu convencimento, e talvez até mesmo por isso, seja induzido em erro por
documentos trazidos pelas partes, reputando-os verdadeiros sob a premissa, que
deve ser a regra, de que as partes agem com lealdade processual.
(...)
Por fim, não procede a alegação dos Impetrantes de que, se a conduta do Paciente
for considerada típica, o crime por ele supostamente praticado não seria
estelionato, mas fraude processual. Consoante se extrai dos autos, a conduta por
cuja suposta prática foi o Paciente denunciado consistiu em induzir em erro o juiz,
mediante juntada aos autos de documentos inverídicos, com o intuito de obter a
condenação da União ao pagamento de valores já recebidos em demanda anterior.
Portanto, o quadro fático constante nos autos revela uma suposta pretensão de, nos
termos do caput do artigo 171 do Código Penal, 'obter, para si ou para outrem,
vantagem ilícita, em prejuízo alheio', elementares que não constam na descrição
típica do crime de fraude processual, previsto no artigo 347 do Código Penal.
Portanto, não merece acolhida a pretensão dos Impetrantes de trancamento da ação
penal quanto à imputação da prática do crime de estelionato pelo Paciente.
Diante do exposto, opino pela denegação da ordem.”

Permito-me, ainda, trazer aqui o voto-vista do Ministro Og Fernandes neste mesmo


julgado, que colaciona a tese de Nilo Batista sobre a existência do estelionato judiciário,
com maestria:

“Com efeito, escassa é a doutrina que trata sobre o chamado estelionato judiciário.
Nilo Batista, em dedicado trabalho, coleta a criminalização da conduta no direito
comparado. Confiram-se, a respeito, estas passagens:

‘A admissão do estelionato judiciário, é hoje, posição doutrinal


predominante . Na Alemanha, tal posição, unânime na jurisprudência,
remonta a Binding e von Liszt, adotada entre outros por Maurach,
Schönke-Schröder, Wessels e Welzel, que o conceitua genericamente
como a hipótese na qual o juiz é enganado por uma parte e profere uma
decisão injurídica em prejuízo da parte adversa ("der Richter wird durch
die eine Partei getäuscht und verfügt durch unrichtiges Urteil zu Lasten
der Gegenpartei"). Na Itália, onde os tribunais sistematicamente negavam
a hipótese, surgindo mais recentemente decisões isoladas a admiti-la, a
posição é sustentada por inúmeros autores, seja em estudos específicos
(Martucchi, Battaglini, Boscarelli etc.), seja em obras gerais, como
Antolisei e Maggiore. Em valiosa monografia, Giuseppe Ragno assinala
que o agente do estelionato judiciário se serve do juiz por ele induzido a
erro como instrumento da atuação de seu fim antijurídico ("strumento per
Pattuazione del suo fine antigiuridico"), acrescentando que negar essa

Michell Nunes Midlej Maron 255


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

possibilidade é, de certa forma, negar o Artigo 48 do CP (italiano), que


corresponde ao nosso Artigo 20, § 2º, onde se prevê o erro determinado
por terceiro. Na Espanha, o notável Quintano Ripollés, diante de uma
jurisprudência vacilante, com decisões em ambos os sentidos, não via
impropriedade em que "se utilice el proceso o las autoridades judiciales
como vehículo del engaño, susceptible, como cualquier outro, de integrar
estafa", opinião minuciosamente perfilhada por Oliva García em brilhante
trabalho monográfico, em cujo Prólogo obteve o endosso de Juan del
Rosal. Tal entendimento foi recebido na América Latina. No México, foi
ele defendido ardorosamente por Jimémez Huerta, consignando que
"conlamentable frecuencia en la actualidad se acude a los tribunales con
fines ilícitos y lesivos para el patrimonio ajeno". Na Argentina, referindo-
se à situação em que o enganado é pessoa distinta do lesado, afirmava
Soler que o caso mais típico desse desdobramento está constituído "por la
estafa ejecutada induziendo en error al juez mediante falsedades". No
Brasil esta é a opinião de Magalhães Noronha, desde seu meticuloso
Crimes contra o patrimônio até seu Direito Penal: "Da própria Justiça se
pode valer o estelionatário". (BATISTA, Nilo. Novas tendências do direito
penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, pág. 27-28)’

Mais adiante, o nobre Doutrinador rebate as críticas lançadas contra o estelionato


judiciário, assentando o seguinte:

‘São três os argumentos daqueles que negam a viabilidade jurídica do


estelionato judiciário, e merecem exame individualizado. Em primeiro
lugar temos o argumento da inidoneidade presuntiva do juiz para ser
enganado, bem representado na opinião de Heleno Fragoso: "É
inconcebível o estelionato na afirmação mendaz feita ao julgador ou com
a prova falsa a ele apresentada pelo litigante ímprobo. Compete ao juiz,
na aplicação do direito, interpretar a lei, o contrato ou a sentença
invocados pelo litigante em prol da sua causa, fixando-lhes o alcance e a
significação'". Em 1940 a Cassação italiana afirmava que admitir o juiz
como sujeito passivo de meios fraudulentos equivaleria à negação do juiz.
A uma, o argumento é falso: como lembra Oliva García, o contraditório
não funciona como um "filtro depurador de todo engano", bastando que se
pense em casos de colusão das partes, de revelia ou jurisdição voluntária.
A duas, o argumento conduziria, como percebeu Ragno, a um corolário
absurdo: adotada a tese da inidoneidade do juiz para ser enganado, a
quase totalidade dos crimes contra a administração da justiça, inclusive e
principalmente a fraude processual e o falso testemunho, tornar-se-iam
impossíveis. A três, é o próprio CPC, em seu Artigo 485, Inciso III, que
admite a possibilidade de ação rescisória para a hipótese na qual, segundo
Barbosa Moreira, "a parte vencedora, faltando ao dever de lealdade e boa-
fé", tenha " influenciado o juízo do magistrado, em ordem a afastá-lo da
verdade". Por certo, a fraude criminal é um plus com relação ao dolo
processual, como o é em relação à fraude civil, mas a possibilidade
teórica do estelionato é indiscutível . Por fim, esse argumento da
inidoneidade presuntiva do juiz funda-se numa concepção arcaica,
"liberal, de marca individualista", na precisa observação do mesmo
Barbosa Moreira, na qual o magistrado seria um "espectador frio e
distante do duelo das partes". Tal concepção do processo como uma luta,
"come un torneo in cui si combatte con le armi dell'astuzia, della mala
fede, dell'inganno e della frode" - tal como a verberaram as célebres
palavras do Guardasigilli - é, ademais, incompatível com o Código de
Processo Civil brasileiro, como veremos. Transigir com o estelionato

Michell Nunes Midlej Maron 256


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

judiciário, de qualquer forma, seria admitir que essa luta pertença ao


gênero "vale tudo".
O segundo argumento procura excluir estelionato judiciário sob a
condição de que a sentença é um resultante multifária das alegações e das
provas , na qual confluem a diligência das partes, a habilidade dos
advogados e a perspicácia do julgador, sendo sua veracidade sempre
relativa, condicionada "a lo ocurrido en el proceso". A fragilidade do
argumento evidência-se por dois ângulos. Inicialmente, não passa pela
cabeça de ninguém que a simples postulação desprovida de fundamento
ou meras inexatidões configurem o elemento central da fraude criminal .
Recorda Jiménez Huerta que "una cosa es sostener frente al magistrado
uma pretensión absurda y contrária a la verdad, y outra hacer uso de
artificios y maquinaciones dirigidos a engañar al juez". Recorda Soler que
"no hasta que se afirmen inexactitudes en juicio ni que se demande un
derecho inexistente o excesivo". O estelionatário judicial não é um
delirante como Calígula , que postulava a lua, nem um "desobediente
civil", como Thoreau, que questionava a lei: é um espertalhão que
apresenta ao juiz um elemento falso ou omite um elemento verdadeiro -
em ambos os casos, violando os deveres de lealdade e verdade - levando-
o a uma decisão que não seria prolatada sem a consideração desse
elemento . E aí chegamos ao segundo ângulo que vulnera esse argumento:
Ele se esquece da causalidade que deve mediar entre a fraude e a
disposição patrimonial. Essa causalidade, reconhecida por todos os
autoresinclusive o próprio Rodriguez Devesa -, impediria, tal como em
qualquer estelionato (o exemplo mais recordado é o da falsa
mendicância), a punição quando o artifício entregado pelo litigante-
estelionatário não fundamentasse causalmente a decisão do juiz.
Prevalece, aí, a lição comum, enunciada por Welzel: a causalidade entre o
erro e a disposição falta quando o enganado mesmo sem o erro teria
disposto do bem ("die Kausalität zwischen Irrtum und Verfügung fehlt,
wenn der Getäuschte auch ohne den Irretum verfügt hätte").
Por último temos o argumento da fraude processual (Artigo 347 CP),
circunscrito aos sistemas que conhecem este delito contra a administração
da justiça, como o nosso. Para os que o adotam, como Manzini, "com a
limitada incriminação da fraude processual o legislador manifestou
claramente sua vontade de não incriminar outras possíveis fraudes
processuais, desde que não cometidas com um meio punível por si mesmo
("con un mezzo punibile per se stesso"), como as falsidades judiciais ou
documentais. Este argumento é técnicamente falacioso, sendo
incompreensível o relativo sucesso de que desfrutou. Todos os autores
assinavam a natureza subsidiaria do crime de fraude processual, que,
como diz Hugria, "não será identificado se o fato constituir crime mais
grave", bem seu caráter formal, consumando-se "no momento e no lugar
em que se completa a inovação artificiosa independente de qualquer outro
resultado". Parece claro que o legislador, na tutela da administração da
justiça, adiantou, como diria Berisstain, as barreiras da proteção penal -
precisamente o oposto de restringi-las como supôs Manzini. A evidente
subsidiariedade implica que tal tipo cederá sempre diante de um tipo
concorrente principal, seja a supressão ou alteração de marca em animais
(Artigo 162 CP), seja a falsidade documental (Artigos 296 ss. CP), seja a
corrupção de substância alimentícia (Artigo 272 CP) etc.: por que não
diante de um estelionato?
Tomemos à Hungria o exemplo de fraude processual: "suprimem-se,
mediante operação plástica, certo sinais característicos de um indivíduo
procurado pela polícia". nada além dos interesses gerais da reta
administração da justiça está afetado por esta conduta, que inovou

Michell Nunes Midlej Maron 257


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

artificiosamente o estado de pessoa que o réu em ação penal não está


distrito ao dever de verdade. Suponha-se, agora, uma cirurgia plástica que
objetive estabelecer semelhança física com terceiro e que se converta no
elemento central e decisivo de uma ação de reconhecimento de
paternidade envolvendo elevados interesses, cuidadosamente planejada
(compatibilidade hemotípica, testemunhas etc.) e executada. Então, ao
prever a fraude processual, quis o legislador deixar este estelionato em
pune? Lograssem seus autores convencer extrajudicialmente o terceiro de
que estava diante de seu filho, dele extraindo vantagem patrimonial,
ninguém ousaria negar o estelionato. Como, ao invés de "induzirem ou
manterem alguém em erro" (Artigo 171 CP), induziram e mantiveram o
juiz, não há estelionato! O juiz não é juridicamente alguém? Estranho
argumento, estranha teoria. Como bem assinalou Antolisei, a previsão do
crime de fraude processual não exclui a aplicabilidade da norma geral do
estelionato ("non esclude l'applicabilità della norma generale sulla
truffa"), desde que seus requisitos típicos estejam presentes. (op. cit., pág.
29-31).

Batista arremata, escrevendo "ser inadmissível e grotesco (...) supor que o foro seja
um espaço no qual o dever – mesmo geral, mesmo moral – da verdade seja menos
intenso ou distinto daquele que se exige nas relações sociais privadas" (op. cit., p.
33).
Já em artigo intitulado "Do estelionato processual na Justiça do Trabalho" (que,
mutatis mutandis, pode ser aqui aplicado), Sérgio Luiz dos Santos Filho escreve
que:

‘Não se pode descuidar do fato de que, por inúmeras vezes, processos são
solucionados por equívoco do juízo, posteriormente confirmado em sede
de Ação Rescisória, o que nos leva a crer que o mero engodo é
plenamente capaz de desviar o órgão judicante do caminho da Justiça .
(...) Ninguém, nem mesmo o magistrado, está imune a tal prática. Visível,
pois, que qualquer ato ou fato da causa que, vontade de uma das partes,
imbuída de má-fé, tenha culminado com sentença dissociada da realidade
fática, à exceção dos crimes já tipificados em dispositivos penais diversos
do artigo 171, logra caracterizar o estelionato processual consumado.
(SANTOS FILHO, Sérgio Luiz dos. Do Estelionato processual na Justiça
do Trabalho. In Jornal Trabalhista Consulex, ano XXII, nº 1.076, pág. 8-
10).’

Após a leitura dos precedentes desta Casa e também dos ensinamentos


doutrinários, convenci-me de que a figura do estelionato judiciário nada mais é que
o próprio estelionato. Assim, a meu sentir, não haveria amarras ao reconhecimento
da tipicidade da conduta.
Vejamos, então, quais as razões que me levam a tal entendimento:
O art. 171 da Lei Penal define o estelionato desta forma:

‘Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo


alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil,
ou qualquer outro meio fraudulento.’

A dificuldade encontrada por alguns para reconhecer como típica a conduta do


estelionato judiciário seria a de que o Juiz não poderia ser vítima desse delito.
Ora, dúvidas não tenho de que quando o dispositivo legal alude a alguém , esse
alguém poderia ser também o Magistrado.
Há, ainda, aqueles que defendem a tese segundo a qual o processo judicial, por ser
orientado pelo princípio do contraditório, não comportaria esse crime.

Michell Nunes Midlej Maron 258


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Uma vez mais, entendo ser indevida essa ponderação. Isso porque o princípio do
livre convencimento motivado apregoa que o Magistrado deverá fundamentar sua
decisão – favorável a uma ou a outra parte – com base nas provas, nos documentos
constantes nos autos.
De se ver que a imputação que pesa sobre o ora paciente – e também sobre os
corréus – é, exatamente, de ter-se valido de documentos sabidamente
inconsistentes.
Na hipótese, tenho que o convencimento do julgador partiu de falsa premissa,
inculcada em sua mente por documentos que não refletiam a verdade. O artifício
de que, supostamente, se valeram os acusados era, com base nesse conjunto
probatório que sabiam ser materialmente falso, levar o Estado-Juiz a uma decisão
viciadamente favorável. Decisão esta, diga-se de passagem, confirmada pelo
Tribunal local, que também foi ardilosamente levado a erro.
Entendo serem adequadas e oportunas as razões do ilustre parecerista, que assim se
manifestou (fls. 305/8):
(...) (já transcritas)
Por fim, tenho que se mostra descabida a pretensão desclassificatória, pois o crime
previsto no art. 347 do Código Penal é subsidiário, o que implica dizer: somente
ocorrerá o delito de fraude processual se a conduta não constituir sanção mais
grave.
A esse respeito, leia-se o que escreveu Paulo José da Costa Jr.:

‘O presente delito, até então desconhecido, surgiu no Código Rocco (art.


374), onde o legislador foi buscar inspiração. Aproxima-se do crime de
falsidade, ou mesmo do de estelionato, quando visar vantagem
patrimonial. Como se trata de delito de fraude, só se apresentará na falta
de outro tipo penal específico. (Código Penal Comentado. 8ª ed. São
Paulo: DPJ Editora, 2005, p. 1.128)’

Em igual sentido, é a lição de Nucci:

‘Absorção por crime mais grave: se a fraude processual se confundir com


o cometimento de delito mais grave, deve ser por este absorvida.
(NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 8ª ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1.152)’

Por todo o exposto, renovando as vênias devidas ao Ministro Relator, voto pela
denegação da ordem.”

Vê-se, então, que mesmo tendo sido o julgado favorável à inexistência do


estelionato judiciário, não se pode afirmar tal conclusão com plena certeza.

1.2. Distinções

A principal problemática do estelionato, como visto, é mesmo a sua distinção de


crimes com dinâmicas similares. Um exemplo disso, que a jurisprudência tem enfrentado, é
a tipificação do ato de obter energia elétrica sem por ela pagar, mediante alteração no
relógio medidor: há furto mediante fraude ou estelionato?
No furto, qualquer que o seja, o verbo subtrair é nuclear inafastável. Sem esta
subtração, não pode haver furto. Assim, na adulteração de relógio medidor de energia
elétrica, que resulta em pagamento de muito menos energia do que aquela que foi realmente
fornecida, não há subtração: há o cometimento de uma fraude para obtenção de vantagem
indevida – há estelionato.

Michell Nunes Midlej Maron 259


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Já quando o agente promover a instalação de um “gato”, passando fiação


clandestina nas centrais da concessionária do serviço público, está realmente subtraindo
energia que não lhe pertence – há furto simples, sequer havendo fraude.
O desenho do elemento fraude é também fundamental para distinguir furto mediante
fraude e estelionato: no primeiro crime, ela se destina a distrair a vítima, a fim de que,
relaxando sua esfera de vigilância, possa a subtração ser empreendida. No estelionato, a
fraude se destina a produzir na vítima confiança suficiente a que ela entregue a coisa ao
criminoso, não havendo subtração.
O agente que, de boa-fé, pede de empréstimo um bem de outrem, e, após haver a
posse, cria em si a idéia de não restituir tal bem ao dono, estará cometendo apropriação
indébita. Já o agente que, antes mesmo de receber o bem do seu dono, tem a idéia de que
não o restituirá, estará cometendo estelionato. Nestes dois crimes, a diferença está no
momento do surgimento do dolo: se antes da obtenção da posse, há estelionato; se posterior,
há apropriação indébita. Nelson Hungria, ao analisar este aspecto do estelionato, dizia que
há neste crime um inadimplemento pré-concebido, ou seja, há um dolo de inadimplir o
dever de restituição antes mesmo de se obter a posse do bem.
Se há dolo inicial, e há a fraude, mas a conduta que se pratica para obter a vantagem
é a de subtrair o bem, o crime é de furto mediante fraude. Veja um exemplo: o agente
informa à vítima que o prédio em que se encontram está em chamas, o que é mentira. A
vítima, então, aterrorizada, sai do recinto em fuga das falsas chamas; aproveitando-se deste
momento, o criminoso colhe os pertences que a vítima deixou para trás, e evade-se – o
crime é de furto mediante fraude, e não de estelionato, pois a fraude empregada se destinou
a facilitar a subtração, e não a entrega do bem pela burla da confiança.
Em suma: só haverá furto mediante fraude se houver subtração, e para empreendê-la
o sujeito utiliza fraude. No estelionato, o que ocorre é a obtenção da vantagem, pelo que
jamais se pode pensar em subtração do bem que a representa. Outro fator essencial ao
estelionato é o dolo inicial, ab initio, ab ovo, de haver a vantagem ilícita, o que o
distinguirá da apropriação indébita – é este inadimplemento pré-concebido que vai
diferenciar o estelionato deste outro crime.
Outro caso peculiar: pessoa recebe bem entregue por uma loja, que a si foi
encaminhado erroneamente, e com ele fica, sabendo do engano no envio a si daquele bem.
Apropria-se indevidamente do bem havido por erro, na forma do artigo 169 do CP, ou
comete estelionato?

“Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza


Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso
fortuito ou força da natureza:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
(...)”

Neste caso, o crime é de estelionato, na modalidade de manter em erro. Entenda:


antes que a coisa viesse à posse do agente, houve o surgimento do dolo de havê-la para si.
O destinatário erroneamente apontado deveria ter dito ao entregador que não era o
adquirente daquela coisa, e que por isso não poderia recebê-la; se não o fez, agiu com dolo
inicial de haver o bem para si, mantendo o entregador no erro em que estava, pelo meio
fraudulento do silêncio.

Michell Nunes Midlej Maron 260


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Diferentemente seria a seguinte situação: o agente é adquirente de um bem em uma


loja, e aguarda sua entrega. Chegando o entregador, é-lhe entregue a caixa do bem, e
somente após abri-la, já a tendo recebido, constata que veio coisa mais valiosa do que a que
comprara. Neste ponto, o agente decide ficar com a coisa para si. Está configurado, aqui, o
crime do artigo 169 do CP: o sujeito houve para si o bem que não lhe pertencia, mas seu
dolo foi posterior à obtenção da posse, que, ab initio, lhe parecia legítima (a caixa deveria
conter o bem que efetivamente comprara). O dolo foi posterior, dolo de não restituir coisa
que lhe chegou por erro.
O mesmo ocorreria se, no exemplo em que não esperava nenhuma entrega, um
terceiro de boa-fé foi responsável pelo recebimento errôneo (o porteiro recebeu a coisa, por
exemplo). Há o crime do artigo supra, e não estelionato, se o agente não desfizer o engano:
o dolo foi posterior à obtenção da posse, que a si veio por meios fora do seu controle.
Em síntese: o estelionato pode se confundir com a apropriação por erro. No entanto,
nos casos em que o sujeito perceber o erro, e se utilizar do silêncio como meio fraudulento,
antes de haver a posse da coisa, mantendo alguém naquele erro através do silêncio, o crime
será estelionato.
Mais uma distinção que na casuística pode oferecer dificuldades ocorre entre o
estelionato e o tráfico de influência. Veja o artigo 332 do CP:

“Tráfico de Influência (Redação dada pela Lei nº 9.127, de 1995)


Art. 332 - Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou
promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário
público no exercício da função: (Redação dada pela Lei nº 9.127, de 1995)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
9.127, de 1995)
Parágrafo único - A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que
a vantagem é também destinada ao funcionário. (Redação dada pela Lei nº 9.127,
de 1995)”

Veja um exemplo que bem ilustra a confusão que pode surgir entre este delito supra
e o estelionato: sujeito diz a outro que, mediante pagamento de determinada quantia,
conseguirá obter sucesso em determinado ato administrativo, porque é bastante amigo do
funcionário público por ele responsável; ocorre que o promitente do exemplo sequer
conhece o funcionário que menciona, ou seja, está agindo com ardil suficiente a levar o
agente a entregar-lhe o pagamento. A rigor, estariam presentes todos os elementos do
estelionato – a vantagem indevida, o prejuizo, a fraude –, mas o exemplo subsume-se ao
crime de tráfico de influência, porque o artigo 332 do CP não demanda que haja efetiva
influência sobre o funcionário público, mas sim apenas que se obtenha a vantagem a
pretexto de influir na consecução do ato. Assim, mesmo que também fosse possível
configurar o estelionato, o crime de tráfico de influência é especial em relação ao artigo 171
do CP. Quando não há realmente a influência, como no caso narrado, o tráfico de influência
não passa de um crime de estelionato especializado.
A mesma dinâmica distintiva se pode repetir em relação ao crime do artigo 357 do
CP e o estelionato:

“Exploração de prestígio
Art. 357 - Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, a pretexto de
influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito,
tradutor, intérprete ou testemunha:

Michell Nunes Midlej Maron 261


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.


Parágrafo único - As penas aumentam-se de um terço, se o agente alega ou insinua
que o dinheiro ou utilidade também se destina a qualquer das pessoas referidas
neste artigo.”

Há ainda um outro dispositivo que pode ser considerado, em certos casos, um


estelionato especializado: trata-se do peculato mediante erro de outrem, do artigo 313 do
CP. Veja:

“Peculato mediante erro de outrem


Art. 313 - Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do
cargo, recebeu por erro de outrem:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Quando o agente for funcionário público, e além da vítima estiver sendo


prejudicada a moralidade administrativa, pode haver a configuração deste delito em
situação muito similar à que configuraria o estelionato. Repare que, aqui, não há a conduta
de induzir a vítima a erro prevista como elementar: o erro já existia na vítima, deste se
aproveitando o funcionário, não tendo sido criada esta situação por ele – pois se houver esta
indução, há mesmo o estelionato do artigo 171 do CP. Este crime do artigo 313 do CP,
portanto, só se configura na mantença da vítima em erro, e não na indução.
É um bom exemplo deste crime aquele em que o caixa de um banco público, vendo
que a pessoa se enganou acerca do montante a pagar por uma conta, se aproveita e embolsa
o valor excedente. Diferentemente, se é este funcionário quem faz surgir de qualquer forma
o engano sobre o valor a ser pago, dizendo-lhe que é mais do que o é na verdade, e retendo
o excedente, estará cometendo o crime do artigo 171 do CP, porque a indução a erro não é
elementar do artigo 313.
Destarte, vê-se que estes crimes distintos do estelionato só diferem deste em razão
da aplicação do princípio da especialidade. Se não existissem tais tipos penais especiais,
mais específicos, e a exata mesma conduta seria tipificada como estelionato. Este conflito
aparente de normas, a especialidade soluciona.
Distinção mais simples de ser traçada se dá entre a extorsão e o estelionato. Tanto
no estelionato quanto na extorsão, a vítima entrega a res; no entanto, no primeiro, o meio é
a fraude, ao passo que no segundo, o meio é a violência ou grave ameaça. A entrega no
estelionato baseia-se no engano da vítima, que na maioria das vezes acredita na boa-fé do
sujeito ativo. Na extorsão, o sujeito passivo age por medo ou forçado, enquanto no
estelionato, ele age enganado pela fraude empregada pelo sujeito ativo.
Há que se ter cuidado, na casuística, com a previsão do artigo 176 do CP,
especialmente no que se refere ao elemento “sem dispor de recursos para efetuar o
pagamento”, dali constante:
“Outras fraudes
Art. 176 - Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio
de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento:
Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação, e o juiz pode,
conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.”

Michell Nunes Midlej Maron 262


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Aqui se enquadra aquele que não paga porque não dispõe dos recursos, portanto. Se
o agente dispuser dos meios para pagar, mas não o faz, está inserto no artigo 171 do CP,
pois estão previstas todas as suas elementares. Destarte, o famigerado “dia do pendura” é
típico – é estelionato.

1.3. Concurso de crimes

Há casos em que a especialidade não resolve a casuística, porque o que se questiona


é se há concurso de crimes ou não. Não se questiona se está preenchido o estelionato ou
outro tipo penal, e sim se há subsunção ao artigo 171 do CP e também a outro tipo penal.
A identificação do concurso formal, material, ou da continuidade delitiva, é
problemática que se expõe forte no estudo do estelionato. O emprego de documentos falsos
no cometimento do estelionato, por exemplo, é corriqueiro, o que sempre levantará a
questão acerca de qual a correta tipificação atinente, se o estelionato solo, ou concurso entre
este e o falso, ou somente o falso.
Este é, de fato, o maior imbróglio a ser solucionado quanto a concurso de crimes no
estelionato: a prática do estelionato por meio de um crime de falso. Há cinco correntes
doutrinárias disputando o tema.
A primeira solução é dada pelo STJ, na forma do enunciado 17 da sua súmula:

“Súmula 17, STJ: Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais


potencialidade lesiva, é por este absorvido.”

O STJ aplica o critério da consunção, da absorção, prevalecendo o estelionato,


crime-fim, sobre o falso, crime-meio, quando não mais puder ser utilizado o meio
empregado em outros crimes. Assim ocorre, por exemplo, quando o estelionatário emprega
cheque falso no cometimento do crime: aquele cheque cessa, no uso, a potencialidade
lesiva, sendo por isso absorvido. O uso de uma identidade falsa,de outro lado, não será
absorvido pelo estelionato, porque este documento ainda pode ser utilizado no cometimento
de outros delitos.
Nelson Hungria, de outro lado, defendia que a falsidade é mais grave que o
estelionato, muitas das vezes, e por isso entendia que o que deveria ser absorvido é o
estelionato: responderá pelo falso, tornando-se o estelionato um post factum impunível.
Terceira corrente defende que simplesmente não há que se falar em absorção,
havendo que se entender que há o concurso formal. Há julgados no STF que seguem esta
tese.
Quarta corrente defende o concurso material entre os crimes de falso e estelionato.
Também há decisões do STF adotando esta corrente.
Quinta corrente, capitaneada por Rogério Greco, defende a aplicação irrestrita do
princípio da consunção: independentemente de qualquer potencialidade ofensiva que reste
no falso, este será absorvido pelo estelionato. É entendimento muito mais amplo do que o
do STJ, sumulado no enunciado 17. A sua lógica é simples: não se pode condicionar a
existência ou não da tipificação em um delito – o falso – à existência de um potencial delito
futuro, pois o agente que usou o falso ainda capaz de lesar futuramente outros bens
jurídicos pode, simplesmente, nunca mais fazê-lo. Mesmo porque, cometendo novos delitos
com aquele meio, estará simplesmente cometendo novos crimes autônomos, sendo por eles
punidos.

Michell Nunes Midlej Maron 263


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.4. Estelionatos especiais

O § 2° do artigo 171 trata de diversas hipóteses de estelionato especial, geralmente


variantes em relação ao meio empregado. Em verdade, estas previsões não seriam
necessárias, pois todas as condutas ali trazidas são subsumíveis ao caput, e não há qualquer
incremento na punição de tais condutas em relação ao estelionato comum. Trata-se, de fato,
de um excesso de zelo do legislador, temeroso de que alguma destas situações escapasse à
tipicidade, por alguma nuance.
Detalhe importante reside na fraude na entrega de coisa, do inciso IV deste § 2°, que
dispõe que comete estelionato aquele que defrauda substância, qualidade ou quantidade de
coisa que deve entregar a alguém. O termo alguém indica a especificação da vítima, ou
seja, se não se tratar de uma pessoa especificamente afetada, a ela tendo sido dirigida a
fraude, mas sim a uma gama genérica de pessoas, o crime não é este: é crime contra a
relação de consumo.
Danificar coisa própria, ou se autolesionar, em regra, não é crime; contudo, este
dispositivo apresenta casos em que esta atuação assume tipicidade, porque sua finalidade é
obter vantagem contra o prejuizo alheio. Assim ocorre, por exemplo, na fraude para
recebimento de indenização ou valor de seguro, na qual o agente destrói, total ou
parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as
conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro.
Se o agente emite um cheque sem fundos, sabendo desta condição, estará praticando
estelionato, mas nem sempre se enquadrará no inciso VI deste artigo, que diz que há fraude
no pagamento por meio de cheque quando o agente emite cheque, sem suficiente provisão
de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento. Nem sempre será, tal o uso do
cheque, enquadrado neste inciso, sendo tipificado no caput, pela seguinte peculiaridade: o
cheque a que se refere o inciso VI é ordem de pagamento à vista, e por isso quando se tratar
de cheque sem fundos emitido a prazo, cheque pré-datado, o crime é de estelionato comum.
Veja o HC 96.132 do STJ:

“HC 96132 / SP. DJe 24/11/2008. Cheque (garantia de dívida). Estelionato (não-
configuração). Extinção da ação penal (caso).
1. É da jurisprudência do Superior Tribunal o entendimento segundo o qual a
emissão de cheque como garantia de dívida não configura o crime do art. 171,
caput, do Cód. Penal (estelionato).
2. No caso, o paciente nem sequer era o devedor, tendo sido os cheques que deram
origem à persecução criminal emitidos como garantia da dívida de outrem.
Descaracterizado, portanto, está o crime de estelionato.
3. Ordem concedida com a finalidade de se extinguir a ação penal, estendendo-se
os efeitos a co-réu.”

1.5. Consumação

O crime de estelionato é um delito instantâneo de efeitos permanentes, na forma da


última leitura feita pelo STJ e pelo STF. Isto é absolutamente relevante para identificação
da prescrição do crime, porque sendo instantâneo, o recebimento da vantagem posterior
somente caracteriza os efeitos permanentes a que se refere esta classificação, e não a
consumação estendida do delito. A respeito, veja o REsp. 689.926:

Michell Nunes Midlej Maron 264


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“REsp 689926 / PE. DJe 19/10/2009. PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO


ESPECIAL. ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL. ART. 171, §
3º, DO CP. CRIME INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES.
PRESCRIÇÃO. OCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA
SEGUIMENTO.
1. O denominado estelionato contra a Previdência Social tem natureza de crime
instantâneo de efeitos permanentes e, dessa forma, consuma-se com o recebimento
da primeira prestação do benefício indevido, contando-se daí o prazo de prescrição
da pretensão punitiva
2. Recurso Especial a que se nega provimento.”

O tipo penal fala na “obtenção da vantagem ilícita, em prejuízo alheio”. É


importante destacar que a vantagem não tem que ser patrimonial, mas tão somente o
prejuízo causado. Normalmente, as duas coisas coincidem. Ou seja, quando visualizamos o
prejuízo patrimonial, a vantagem também o é. Sustenta Luiz Regis Prado:

“Prevalece o entendimento doutrinário de que a referida vantagem não precisa ser


econômica, já que o legislador não restringiu o seu alcance como o fez no tipo
penal que define o crime de extorsão”.

Ressalte-se que a expressão “vantagem ilícita” é elemento normativo jurídico, trata-se


de qualquer vantagem contrária ao direito. Importante destacar ainda que se a vantagem for
lícita, justa, amparável pelo direito, o crime praticado pode ser de exercício arbitrário das
próprias razões, do conhecido artigo 345 do CP.
Luiz Regis Prado afirma que no delito de estelionato há um duplo nexo de
causalidade: fraude como causa e engano como efeito, para posteriormente surgir o
segundo nexo, o erro como causa e obtenção da vantagem como efeito, posicionamento
também adotado por Paulo José da Costa Júnior.
Juntamente à obtenção da vantagem deve estar presente o prejuízo alheio, devendo
este prejuízo ser economicamente apreciável, como dito, já que estamos diante de um delito
patrimonial. Sem um dos elementos, a conduta será atípica, salvo para os que admitem
tentativa quando o sujeito obtém a vantagem, sem causar prejuízo alheio. Veja um exemplo
disso: alguém, utilizando-se de um cheque que sabe não ter provisão de fundos, dirige-se a
uma loja e adquire um bem, o que causaria grande prejuízo ao dono da loja. No entanto,
quando o cheque é depositado, o gerente do banco compensa-o, acreditando que o
correntista vai depositar o dinheiro, já que este sempre teve excelentes movimentações
bancárias e nunca havia emitido um cheque sem fundos. Neste exemplo, há quem fale em
tentativa do crime de estelionato.
É indicado como momento da consumação aquele em que o agente obtém a vantagem
em prejuízo alheio, o que via de regra ocorre no mesmo momento, trata-se, portanto, de
duplo resultado, salvo o exemplo acima citado, em que como dissemos, para alguns
caracterizaria tentativa, muito embora a maioria da doutrina cite como exemplo de tentativa
de estelionato os casos em que o sujeito emprega a fraude, mas não obtém vantagem e nem
causa prejuízo por circunstâncias alheias a sua vontade, pois neste caso, a utilização da
fraude representa o início da execução, caso em que houve fracionamento dos atos de
execução, sendo plenamente possível a tentativa.
A maioria da doutrina não admite a figura da tentativa quando houver vantagem sem
prejuízo alheio. Luiz Regis Prado sustenta:

Michell Nunes Midlej Maron 265


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Para que se configure o estelionato, faz-se mister a presença de ambos os


elementos (vantagem ilícita e prejuízo alheio), sem os quais a ação será atípica”

Neste sentido, também, Bitencourt:

“À vantagem ilícita deve corresponder, simultaneamente, um prejuízo alheio; a


ausência de qualquer dos dois descaracteriza o crime de estelionato”.

O artigo traz como núcleos os verbos “induzindo ou mantendo alguém em erro”:


induzir é colocar a pessoa na situação de erro; manter é quando a pessoa já está em erro, e
se impede ela de sair desta condição. O erro, per si, é a falsa representação da verdade da
situação fática.
O dispositivo fala em “artifício”, o que é toda astuta alteração da verdade. O artifício
se reveste de natureza material, e pressupõe a encenação, aparato, disfarce, teatralização.
Bons exemplos são o documento falso e o disfarce.
“Ardil” é a aplicação de meios enganosos, mas de forma intelectual, agindo sobre o
psiquismo da vítima. Exemplos são a boa conversa, a simulação de doença.
Ao trazer a expressão “qualquer outro meio fraudulento”, o legislador possibilita a
interpretação analógica. Sendo assim, até formas omissivas, como a mentira e o silêncio,
podem caracterizar o estelionato.
Luiz Regis Prado menciona o silêncio, afirmando que:
“Em face do alcance da norma, até o malicioso silêncio e a mentira podem ser
utilizados como meios fraudulentos (crime omissivo), como no caso da reticência
do colecionador que adquire de uma pessoa inexperiente, por preço irrisório, um
objeto precioso pela sua raridade ou antiguidade”. Cite-se ainda como exemplo de
silêncio fraudulento, o fato de um credor “A”, após receber uma dívida de “B”, não
lhe conceder recibo e, tempos depois, este, olvidando-se do pagamento, procura
novamente A, e paga-lhe pela segunda vez a mesma dívida, em face do silêncio
doloso do aludido credor.”

O estelionato pode se dar também por meios eletrônicos, como a alteração de


programas de máquinas de jogos. Ressalte-se que em legislações mais modernas, este tipo
de estelionato já configura delito autônomo. O Código Penal Português consagra a burla
informática:

“Artigo 221º
Burla informática e nas comunicações
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento
de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização
incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou
intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido
com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para
terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando
programas, dispositivos electrónicos ou outros meios que, separadamente ou em
conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o
normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.”

Michell Nunes Midlej Maron 266


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

O Código Penal Espanhol também prevê a conduta eletrônica de forma apartada da


modalidade principal de estelionato.
Ressalte-se que o meio fraudulento deve ser idôneo. É questão controvertida, no
entanto, se essa idoneidade deve ser verificada em relação à vítima ou em relação a
qualquer pessoa prudente. A primeira posição, que foca na vítima, é mais adequada, pois os
sujeitos ativos do estelionato procuram como tais justamente as pessoas mais ingênuas.
Este é o posicionamento adotado, por exemplo, por Luiz Regis Prado.
Se o meio é inidôneo, o crime é impossível por ineficácia absoluta do meio. Se o
patrimônio não corre risco, o crime é impossível por impropriedade absoluta do objeto.
Ressalte-se que essa distinção só deve ser indagada para verificar se há tentativa ou se a
conduta não é punida, pois se houver o prejuízo com a obtenção da vantagem, haverá o
crime consumado, ou seja, naqueles casos em que o sujeito empregou a fraude, mas não
obteve a vantagem, em regra haverá tentativa (desde que por circunstâncias alheias a sua
vontade a vantagem não se alcançou). No entanto, se não houve a obtenção da vantagem
por ser considerado inidôneo o meio fraudulento, não se punirá a tentativa, por se tratar de
hipótese de crime impossível.

1.5.1. Arrependimento posterior no estelionato praticado por meio de cheque

O artigo 16 do CP traz causa de diminuição da pena para casos em que ocorre a


reparação do dano – é o arrependimento posterior:

“Arrependimento posterior(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado
o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato
voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”

Neste caso, o agente responderá pelo crime, apenas tendo reduzida a pena. Ocorre
que no estelionato especial praticado por meio de cheque à vista sem fundos, cometido na
forma do artigo 171, § 2°, VI do CP, recebe um tratamento bem mais brando por parte da
jurisprudência, quando se constatar esta circunstância de arrependimento. Veja a súmula
554 do STF:

“Súmula 554, STF: O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após
o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”

Destarte, se antes do recebimento da ação penal o cheque é pago, a jurisprudência


entende que se torna impossível comprovar que havia dolo de não pagar, ou seja, carece a
persecução penal de um lastro probatório mínimo a ensejar tal persecução – há falta da
justa causa para recebimento da denúncia.

1.6. Torpeza bilateral, fraude bilateral ou fraude recíproca

A questão é controvertida. Nelson Hungria sustentava que em havendo torpeza


bilateral não estará caracterizado o delito de estelionato, pois somente goza de proteção o
patrimônio que serve a um fim legítimo, só existindo estelionato quando alguém é iludido
em sua boa-fé. Luiz Regis Prado entende em sentido contrário, o que nos parece mais

Michell Nunes Midlej Maron 267


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

correto, principalmente por inexistir no direito penal a compensação de culpas. A má-fé do


sujeito passivo não pode ter o condão de afastar a conduta típica do sujeito ativo, desde que
ele obtenha uma vantagem ilícita em prejuízo alheio.

1.7. Estelionato privilegiado

Quando o criminoso for primário e de pequeno valor o prejuízo, aplica-se o disposto


no artigo 155, § 2º, do CP, ou seja, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de
detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
Este privilégio também é aplicado aos estelionatos especiais. Ressalte-se que
estando presentes as duas elementares acima descritas, a diminuição da pena configura
direito público subjetivo do réu e não mera discricionariedade do magistrado.
A distinção do furto privilegiado para o estelionato privilegiado encontra-se no
objeto alvo do pequeno valor. No furto, analisa-se o pequeno valor da coisa furtada,
enquanto no estelionato, o que é analisado é o valor do prejuízo causado, suportado pela
vítima do crime.
Quanto ao parâmetro para a caracterização do que seria pequeno valor, nossos
tribunais têm considerado o valor do salário mínimo. Seria de pequeno valor o prejuízo de
até um salário mínimo, considerados de forma objetiva, muito embora haja posicionamento
na doutrina no sentido de que a análise deve ser subjetiva. Luiz Regis Prado sustenta:

“Objeta-se, contudo, que tal valor, para um operário de baixa remuneração, é


considerável e, portanto, na aferição deve-se levar em consideração também a
situação econômica da vítima”.

Bitencourt pondera que tem predominado o entendimento (mais liberal) de que o


limite de um salário mínimo não é intransponível.

1.8. Causa especial de aumento de pena

Diz o § 3° do artigo 171 do CP que A pena aumenta-se de um terço, se o crime é


cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular,
assistência social ou beneficência.
Se a entidade de direito público for da esfera federal, desta esfera igualmente será a
competência. Veja o Conflito de Competência 43.283, do STJ

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 43.283 - SP (2004/0063533-6). RELATOR:


MINISTRO OG FERNANDES.
EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL.
ESTELIONATO. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO A BENS OU SERVIÇOS DA
UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
1. Em que pese o fato de o bem, objeto do estelionato, ao tempo do crime, estar em
poder da autoridade policial, não há nos autos informação de que tenha havido o
seu perdimento em favor da União e a consequente incorporação ao patrimônio do
ente federal, ato de competência exclusiva do Juízo da causa que ensejou a
apreensão do veículo.
2. O prejuízo advindo da conduta do acusado não alcançou a esfera de interesse da
União, seus bens ou serviços, estando comprovada a prática de estelionato

Michell Nunes Midlej Maron 268


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

cometido em desfavor do particular, pelo que afastada está a competência da


Justiça Federal para o processo e julgamento do feito.
3. Conflito conhecido para determinar competente o suscitante, Juízo de Direito da
26ª Vara Criminal de São Paulo.”

Veja a súmula 24 do STJ:

“Súmula 24, STJ: Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima
entidade autárquica da Previdência Social, a qualificadora do § 3° do art. 171 do
CP.”

1.9. Ação penal

Em regra, o estelionato é perseguido em ação penal pública incondicionada, mas há


caso em que se a condicionará à representação, assim como outros crimes patrimoniais: são
as imunidades relativas, presentes nos artigos 181 a 183 do CP, e que serão adiante
abordadas.

1.10. Jurisprudência específica

Veja alguns julgados, súmulas e informativos relevantes sobre o tema.

1.10.1. TJ/RJ

“TJ-RJ - 2005.050.03087 - APELACAO CRIMINAL. DES. ADILSON VIEIRA


MACABU - Julgamento: 17/01/2006- SEGUNDA CAMARA CRIMINAL.
ESTELIONATO TENTADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. RÉU QUE, NO
INTERIOR DE AGÊNCIA BANCÁRIA, SE FEZ PASSAR POR FUNCIONÁRIO
E, A PRETEXTO DE AUXILIAR O CLIENTE, SE APODEROU DO SEU
CARTÃO DE FGTS, REALIZANDO OPERAÇÕES FRAUDULENTAS.
ABSOLVIÇÃO, SOB A ALEGAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE MEROS ATOS
PREPARATÓRIOS. IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA DEVIDAMENTE
TIPIFICADA. PROVA FIRME E HARMÔNICA, SUFICIENTE PARA ENSEJAR
DECRETO CONDENATÓRIO. PRETENSÃO DEFENSIVA VISANDO
REDUÇÃO DA PENA E APLICAÇÃO DE REGIME PRISIONAL MAIS
BRANDO. REPRIMENDA FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL, COM
BASE EM DECISÃO FUNDAMENTADA. AGENTE QUE OSTENTA MAUS
ANTECEDENTES E ELEVADA PERICULOSIDADE. INEXISTÊNCIA DE
PROVA ATESTANDO A REINCIDÊNCIA. REGIME DE CUMPRIMENTO DE
PENA QUE DEVE SER MODIFICADO PARA O SEMI-ABERTO.
PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO DEFENSIVO PARA TAL FIM.
Típica, antijurídica e culpável a conduta do acusado, prevista no art. 171, caput, do
Código Penal, na forma tentada. Iter criminis percorrido a justificar a redução pela
metade, consoante efetivada na decisão condenatória, que não merece reparo.
Provimento parcial do recurso defensivo, apenas para modificar o regime prisional
para o semi-aberto.”

“TJ-RJ - 2003.050.00748 - APELACAO CRIMINAL. DES. ADILSON VIEIRA


MACABU - Julgamento: 19/10/2004 - SEGUNDA CAMARA CRIMINAL.
Uso de documento falsificado por terceiro e estelionato, em concurso material.
Incabivel a absorcao pelo estelionato. O uso de documento falso constitui delito
autonomo, quando terceira pessoa, diversa do falsario dele se utiliza, como no caso
em tela. Se o uso do referido documento serviu de meio para a execucao de outro

Michell Nunes Midlej Maron 269


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

delito, estelionato, o agente deve responder por este crime em concurso material
com aquele. Delitos praticados em momentos distintos. Acusada que fez uso de
documento falso, adquirido de terceiro e que ja' fora utilizado para outros fins,
tendo sido obstada de consumar o seu objetivo ao tentar a abertura de conta
corrente junto a outro estabelecimento bancario, pratica em relacao a este tentativa
de estelionato. O crime de uso de documento falso se consuma com a apresentacao
do documento, independentemente de qualquer lesao ou prejuizo que venha a
produzir. Desde que apresente potencialidade de lesao `a fe' publica, o delito
resulta consumado. Inexistencia de consuncao. As penas devem ser aplicadas
cumulativamente. Prova consistente e harmonica. Substituicao da pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direito, na forma a ser estabelecida pelo juizo da
execucao. Provimento parcial do apelo ministerial.”

“TJ-RJ - 2000.050.02752 - APELACAO CRIMINAL. DES. ADILSON VIEIRA


MACABU - Julgamento: 09/10/2001 - SEGUNDA CAMARA CRIMINAL.
USO DE DOCUMENTO FALSO E ESTELIONATO, EM CONCURSO
MATERIAL. ABSORÇÃO PELO ESTELIONATO. INOCORRÊNCIA.
NULIDADE DA SENTENÇA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE
ENFRENTAMENTO DE TESE DEFENSIVA. PRELIMINAR
INCONSISTENTE. CRIMES PRATICADOS EM MOMENTOS DISTINTOS.
AGENTE QUE USA DOCUMENTOS FALSOS COM A FINALIDADE DE
ABERTURA DE CONTA BANCÁRIA, CONSUMANDO O TIPO PENAL
PREVISTO NO ART. 304 DO CP, E, POSTERIORMENTE, UTILIZA-SE DE
UM DOS CHEQUES PARA OBTER VANTAGEM JUNTO A OUTREM,
PRATICA O CRIME DO ART. 171 CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. IN CASU, A
REPARAÇÃO DO DANO ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA NÃO
DESCARACTERIZA O CRIME JÁ CONSUMADO. INAPLICABILIDADE DE
INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA DA SÚMULA 554 DO STF. EM
CONSONÂNCIA COM AS DIRETRIZES DO ESTATUTO PENAL, ESTANDO
EVIDENCIADO QUE O AGENTE TEM PERSONALIDADE VOLTADA PARA
O CRIME, OBJETIVANDO A OBTENÇÃO DE VANTAGEM INDEVIDA.
IMPOSSÍVEL, SE MOSTRA O BENEFÍCIO DO ESTELIONATO
PRIVILEGIADO, CUJO RECONHECIMENTO CONSTITUI UMA MERA
FACULDADE DO JULGADOR, E NÃO UM DIREITO SUBJETIVO DO
ACUSADO. O CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO SE CONSUMA
COM A APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO FALSO,
INDEPENDENTEMENTE DE QUALQUER LESÃO OU PREJUÍZO QUE
VENHA A RESULTAR. DESDE QUE APRESENTE POTENCIALIDADE DE
LESÃO À FÉ PUBLICA, O CRIME RESULTA CONSUMADO. PROVA
CONSISTENTE E HARMÔNICA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE
LIBERDADE PELA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE, NA
FORMA DO ART. 44 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO DA PENA
PECUNIÁRIA, TENDO EM VISTA A INCIDÊNCIA DE ERRO EM SUA
FIXAÇÃO FINAL. PROVIMENTO PARCIAL DO APELO DEFENSIVO.”

“TJ-RJ - 1999.050.04827 - APELACAO CRIMINAL. DES. ADILSON VIEIRA


MACABU - Julgamento: 03/04/2001 - SEGUNDA CAMARA CRIMINAL.
ACUSADA PROCESSADA PELA PRÁTICA DE VÁRIOS CRIMES.
FALSIDADE IDEOLÓGICA, ESTELIONATO, FALSIFICAÇÃO - DE
DOCUMENTO PÚBLICO E USO DE DOCUMENTO FALSO EM CONCURSO
MATERIAL. RECURSO DEFENSIVO PLEITEANDO A ABSOLVIÇÃO OU,
ALTERNATIVAMENTE, A DIMINUIÇÃO DA PENA IMPOSTA.
OCORRÊNCIA DA CONSUNÇÃO. NO CASO EM TELA, O CRIMEN FALSI
CONSTITUIU MERO INSTRUMENTO EMPREGADO PARA LOGRAR O FIM
PRETENDIDO PELA APELANTE, RESTANDO TIPIFICADA SOMENTE A
FIGURA DO ESTELIONATO, QUE ABSORVEU A FALSIDADE, NA MEDIDA

Michell Nunes Midlej Maron 270


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

EM QUE ESTA FOI O MEIO FRAUDULENTO UTILIZADO PARA A


OBTENÇÃO DO OBJETIVO COLIMADO. CONFIGURADA A EXISTÊNCIA
DE TIPICIDADE DA CONDUTA PREVISTA NO ART. 304 DO CÓDIGO
PENAL. O CRIME É INSTANTÂNEO, SE CONSUMA COM A
APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO FALSO, INDEPENDENTEMENTE DE
QUALQUER LESÃO OU PREJUÍZO QUE VENHA A RESULTAR DESDE
QUE APRESENTE POTENCIALIDADE DE LESÃO À FÉ PÚBLICA, O
CRIME. SE CONSUMA. CONCURSO MATERIAL ENTRE O ESTELIONATO
E O USO DE DOCUMENTO PÚBLICO FALSO DEVIDAMENTE
CARACTERIZADO. PROVA ROBUSTA E HARMÔNICA.DOSIMETRIA
CORRETA. ACUSADA OSTENTA PÉSSIMOS ANTECEDENTES, TENDO EM
VISTA A PERSONALIDADE VOLTADA PARA A PRÁTICA REITERADA DE
ATOS TENDENTES A ENGANAR TERCEIROS, EM DIVERSOS ESTADOS
DA FEDERAÇÃO, OBETIVANDO OBTER VANTAGEM INDEVIDA.
DECISUM FUNDAMENTADO. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO,
PARA OS FINS ACIMA ENUNCIADOS. SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE
DEVE SER MANTIDA, EXCLUINDO-SE, APENAS, O CRIME DO ART. 299
DO CÓDIGO PENAL, QUE RESTOU ABSORVIDO PELO ESTELIONATO E A
ADEQUAÇÃO DO REGIME PRISIONAL, QUE DEVE SER O SEMI-ABERTO.
Prova induvidosa. Reprimenda fixada de forma adequada, que não está a merecer
reparo, salvo quanto ao crime de falsidade ideológica, que restou absorviído pelo
estelionato, ante a existência da consunção que deve ser reconhecida e a
modificação do regime de cumprimento da pena, para o semi-aberto, por ser o
mais adequado para o caso vertente. Provimento parcial do recurso.”

“TJ-RJ - 2002.050.05575 - APELACAO CRIMINAL. DES. MARIO


GUIMARAES NETO - Julgamento: 15/05/2003 - SEXTA CAMARA CRIMINAL.
APELAÇÃO CRIMINAL - DIREITO PENAL - QUADRILHA OU BANDO -
ESTELIONATO - FALSIDADE IDEOLOGICA CONTINUIDADE DELITIVA -
CÚMULO MATERIAL DE INFRAÇÕES PENAIS - SÚMULA 17 DO STJ -
Restando delineado nos autos a associação perene à prática de crimes, inolvidável
é a materialização do tipo penal do art. 288 do Código Penal - Crime de falsidade
ideológica que resta absorvido pelo estelionato, porquanto atividade meio à
consecução fim, que era o delito patrimonial - Continuidade delitiva que resta
provada, porquanto presentes seus requisitos objetivos e subjetivo Reprimendas
estatuídas acima do mínimo legal, devidamente fundamentadas Regime prisional,
pelo crime do art. 288 do Código Penal estatuído de conformidade ao art. 10 da Lei
9.034/95 - Regime semi-aberto pelo delito patrimonial - Conhecimento do apelo e
seu provimento parcial.”

“TJ-RJ - 2002.050.02921 - APELACAO CRIMINAL. DES. MARIO


GUIMARAES NETO - Julgamento: 07/11/2002 - SEXTA CAMARA CRIMINAL.
ESTELIONATO. CONTINUIDADE DELITIVA. MAJORACAO DA PENA
Apelação Criminal. Penal. Três crimes de estelionato em continuidade delitiva.
Ressarcimento parcial do prejuízo não acarreta qualquer benesse ao agente.”

1.10.2. STF
“STF: Informativo 440 (Ext-1029). Extradição e Burla Informática.
O Tribunal deferiu, em parte, pedido de extradição, formalizado pelo Governo de
Portugal, de nacional português condenado pela prática dos crimes de falsidade
informática e de burla informática, previstos, respectivamente, no art. 4º, nº 1, da
Lei 109/91 e no art. 221, nºs 1 e 5, alínea a, do Código Penal português (CP
português, art. 221: “1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro
enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo

Michell Nunes Midlej Maron 271


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

no resultado do tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de


programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de
dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no
processamento...”). Entendeu-se que o crime de burla informática, apesar de ser
delito de execução vinculada, equipara-se ao crime de burla tipificado, em termos
genéricos, no art. 217 do CP português, e se amolda ao crime de estelionato,
previsto no art. 171 do Código Penal brasileiro. Asseverou-se que esse tipo
específico supõe que a fraude, enquanto requisito elementar do delito, ocorra
mediante meio engenhoso capaz de enganar ou induzir a erro, e tem como
elemento subjetivo o dolo, consistente na intenção de enriquecimento ilícito em
prejuízo patrimonial alheio. Por outro lado, considerou-se que o crime de falsidade
informática, em face da especialidade dos elementos normativos que o compõem,
não encontra correspondente na legislação brasileira. Ext 1029/República
Portuguesa, rel. Min. Cezar Peluso, 13.9.2006. (Ext-1029).

“STF. Informativo 395 (INQ-1145). Cola Eletrônica e Tipificação Penal – 2.


O Tribunal retomou julgamento de denúncia apresentada contra deputado federal,
atual Secretário de Estado, em razão de ter despendido quantia em dinheiro na
tentativa de obter, por intermédio de cola eletrônica, a aprovação de sua filha e
amigos dela no vestibular, conduta essa tipificada pelo Ministério Público Federal
como crime de estelionato, posteriormente alterada para falsidade ideológica (CP,
art. 299) - v. Informativo 306. O Min. Gilmar Mendes, em voto-vista, acompanhou
o Min. Maurício Corrêa, relator, no sentido de rejeitar a denúncia. Tendo em conta
o princípio da legalidade estrita na esfera penal, considerou atípica a conduta do
denunciado, não a enquadrando no tipo penal de falsidade ideológica, mesmo sob a
modalidade inserir. Ressaltou que, embora reprovável a prática da cola eletrônica,
a persecução penal não pode ser legitimamente instaurada. Também seguiu o voto
do relator o Min. Joaquim Barbosa. Após,o julgamento foi adiado em virtude do
pedido de vista do Min. Carlos Britto (CP, art. 299: "Omitir, em documento público
ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir
declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar
direitos, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.").
Inq 1145/PB, rel. Min. Maurício Corrêa, 3.8.2005. (INQ-1145).”

“STF. Informativo 388 (HC-84735. Estelionato e Competência da Justiça Militar.


Com base no art. 9º, III, a, do Código Penal Militar (“Art. 9º. Consideram-se
crimes militares, em tempo de paz: ... III – os crimes praticados por militar da
reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-
se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos
seguintes casos: a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a
ordem administrativa militar”), a Turma indeferiu habeas corpus impetrado em
favor de denunciada pela suposta prática de estelionato (CPM, art. 215),
consistente no recebimento de proventos de pensão militar especial de pensionista
falecida, por meio da falsificação da assinatura desta. Pretendia-se, na espécie, a
decretação da competência da Justiça Federal para o julgamento da paciente, sob o
argumento de que os valores pertenciam à União e que o lesado fora o Banco do
Brasil. Considerou-se que os recursos repassados pela União para o pagamento da
pensionista estavam sob a administração militar, sendo, portanto, da competência
da Justiça Militar o julgamento do crime, haja vista que o citado dispositivo alude
a “patrimônio sob a administração militar” e não a patrimônio de que as entidades
militares sejam titulares da propriedade, pela simples razão de que elas não têm
patrimônio próprio, que é do Estado, que o coloca sob a administração das
entidades militares para que estas possam exercer as suas atribuições.”

1.10.3. STJ

Michell Nunes Midlej Maron 272


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

“Súmula 244, STJ: Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime
de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos.”

“Súmula 107, STJ: Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de
estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das
contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão a autarquia federal.”

“Súmula 73, STJ: A utilização de papel moeda grosseiramente falsificado


configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual.”

“Súmula 48, STJ: Compete ao juízo do local da obtenção da vantagem ilícita


processar e julgar crime de estelionato cometido mediante falsificação de cheque.”

“STJ CRIME. INTERNET. TIPIFICAÇÃO.


Trata-se de crimes praticados pela internet por uma organização que atuava no
norte do País. Os denunciados foram presos em flagrante e acusados de estelionato,
à falta de uma tipificação, ainda, de um delito próprio para os cometimentos
virtuais e de formação de quadrilha. A Turma, ao prosseguir o julgamento e por
maioria, concedeu a ordem por entender que permanece o excesso de prazo, uma
vez que o paciente está preso há dois anos e há algumas provas para serem
produzidas. O Min. Relator enfatizou que o paciente assumirá o compromisso de
comparecer a todos os atos do processo sob pena de nova prisão. Precedentes
citados: RHC 17.145-BA, DJ 6/3/2006, e HC 36.096-PE, DJ 6/9/2004. HC 50.615-
CE, Rel. Min. Nilson Naves, julgado em 17/10/2006. (Informativo 301).”

“STJ. Informativo 298. Período: 25 a 29 de setembro de 2006. Quarta Turma.


SEGURO. FURTO QUALIFICADO. TESTE. CARRO. VENDA.
A pretexto de testar o carro da recorrente posto à venda, o meliante, após deixar
como depósito valor próximo a mil e setecentos reais, desapareceu juntamente com
o veículo. Negou-se a seguradora a honrar o contrato de seguro realizado, ao alegar
que o sucedido se encaixa no tipo de estelionato, sem cobertura no contrato. Isso
posto, a Turma entendeu que a modalidade que mais se amolda ao quadro fático
apresentado é a do furto qualificado (art. 155, § 4º, II, do CP), de cobertura
contratualmente assegurada no caso. Precedente citado: REsp 226.222-RJ, DJ
8/5/2000. REsp 672.987-MT, Rel. Min. Jorge Scartezzini, julgado em 26/9/2006.”

“STJ. Informativo 283. Período: 2 a 5 de maio de 2006. Sexta Turma.


COLA ELETRÔNICA. ESTELIONATO.
Em habeas corpus com pedido de trancamento da ação penal por atipicidade da
chamada “cola eletrônica”, discutiu-se se a imputação feita ao paciente: o
“fornecimento”, mediante paga, de gabarito de vestibular por meio de
comunicação por dispositivo eletrônico se subsume à descrição típica do art. 171
do CP. A denúncia imputa ao paciente e a mais 9 pessoas a conduta de formação de
associação criminosa, liderada pelo paciente, e especializada em fraude de
vestibular, que, em determinada ocasião, possibilitou o ingresso de 28 alunos no
curso de medicina. Note-se que já há sentença condenatória. Para a tese vencedora,
há o tipo legal de crime a que se referiu a denúncia (art. 171 do CP). Para o Min.
Paulo Medina, vencido, a denominada “cola eletrônica” não estaria adequada ao
tipo do art. 171 do CP. Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria,
considerou, em parte, prejudicado o pedido de habeas corpus e o denegou quanto
ao restante. HC 41.590-AC, Rel. Min. Paulo Gallotti, julgado em 4/5/2006.”

“STJ. Informativo 272. Período: 1º a 3 de fevereiro de 2006. Sexta Turma.


CONTINUIDADE DELITIVA. FURTO. ESTELIONATO.

Michell Nunes Midlej Maron 273


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

A Turma, ao prosseguir o julgamento, entendeu, por maioria, que não é possível


reconhecer-se a continuidade delitiva, com a conseqüente unificação de penas (art.
111 da LEP), quanto aos crimes de furto e estelionato, pois, embora pertençam ao
mesmo gênero, são delitos de espécies diversas ao possuírem elementos objetivos e
subjetivos distintos. Precedentes citados do STF: HC 67.181-RS, DJ 30/6/1989; do
STJ: REsp 704.932-SP, DJ 15/8/2005. HC 28.579-SC, Rel. originário Min. Paulo
Medina, Rel. para acórdão Min. Hélio Quaglia Barbosa, julgado em 2/2/2006.”

“STJ. Informativo 151. Período: 14 a 18 de outubro de 2002. Sexta Turma.


ESTELIONATO. APLICAÇÃO. SÚM. N. 554-STF.
O ressarcimento do prejuízo antes do recebimento da denúncia não exclui o crime
de estelionato tipificado no caput do art. 171 do CP, apenas influindo na fixação da
pena. A Súm. n. 554-STF só é aplicada quando o estelionato for praticado na
emissão de cheque sem fundos, previsto no art. 171, § 2º, VI, do referido Código.
Precedente citado: RHC 8.917-SP, DJ 13/3/2000. HC 22.666-SP, Rel. Min.
Fernando Gonçalves, julgado em 17/10/2002.”

Casos Concretos

Michell Nunes Midlej Maron 274


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Questão 1

O advogado MÉLVIO recebe de seu cliente certa importância em dinheiro para dar
início a um processo de inventário, deixando de promover a ação respectiva, sempre
dizendo para o cliente que o processo já teria sido iniciado e que os autos estariam com o
Juiz para decidir. Descoberto o fato, veio o advogado a ser denunciado. Qual a correta
capitulação, ciente de que MÉLVIO se achava previamente suspenso pela OAB pela
prática de conduta semelhante?

Resposta à Questão 1

Está clara a tipificação em estelionato. Se o advogado sabia da impossibilidade de


adimplir sua obrigação, agiu ardilosamente, obtendo vantagem indevida à custa do prejuízo
da vítima.

Questão 2

DEOCLÉCIO ESPERTALHÃO foi ao balcão de empresa aérea, no Aeroporto


Internacional do Rio de Janeiro, dirigiu-se ao funcionário MARIOVALDO, e comprou duas
passagens aéreas em nome de terceiros. Para tanto, usou um cheque preenchido por ele,
apocrifamente, assinando-se como sendo TIBÚRCIO LARANJA e apresentou, nessa
mesma ocasião, cédula de identidade com este nome, contendo seu retrato.
Posteriormente, ao voltar ao local por razões não conhecidas, DEOCLÉCIO
ESPERTALHÃO foi detido. Diante do Inspetor de Polícia ABELARDO, DEOCLÉCIO
ESPERTALHÃO apresentou-se como ROMUALDO SILVA, o que quis provar, pedindo a
um amigo que buscasse, em sua casa, um envelope que continha uma cédula de identidade
com sua foto, em cópia xerox autenticada, com o nome de "ROMUALDO SILVA".O
Inspetor de Polícia ABELARDO constatou, então, que ROMUALDO SILVA havia sido
anteriormente autuado na 21ª DP, e que na verdade se trataria de DEOCLÉCIO
ESPERTALHÃO - o nome "ROMUALDO SILVA" era de pessoa já falecida. DEOCLÉCIO
ESPERTALHÃO esclareceu que havia comprado uma certidão de nascimento falsa e de
posse dela, fizera confeccionar uma cédula de identidade ideologicamente falsa. O valor
do cheque não chegou a ser recebido pela empresa aérea. Capitule os fatos.

Resposta à Questão 2

Em relação à compra da passagem, há severa discussão sobre sua configuração,


pendendo a corrente majoritária à absorção do falso pelo estelionato, se não há mais
potencialidade lesiva no meio empregado no falso – conforme súmula 17 do STJ –, ou
absorção em qualquer caso, como diz Rogério Greco.
Na segunda há uso de documento falso, sem qualquer relação com o estelionato,
não havendo que se falar em absorção do falso pelo estelionato, portanto. O que há, nesta
conduta, é a absorção da falsificação pelo uso, como é regra da consunção, nestes casos.
A respeito, veja a Apelação Criminal 2003.050.02094, do TJ/RJ:

“Processo: 0041661-52.2003.8.19.0000 (2003.050.02094). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. EDUARDO MAYR - Julgamento: 08/06/2004 - SETIMA

Michell Nunes Midlej Maron 275


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

CAMARA CRIMINAL. ESTELIONATO. TENTATIVA. RECONHECIMENTO.


USO DE DOCUMENTO FALSO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
ESTELIONATO. FALSUM. USO DE DOCUMENTO FALSO. No concurso entre
o falsum e o estelionato, orienta-se a doutrina e a jurisprudência no sentido de
fazer prevalecer o crime patrimonial, que exterioriza o desideratum do agente.
Igualmente, no concurso entre o falsum e o uso de documento falso, da mesma
forma se orienta a doutrina e a jurisprudência no sentido de fazer prevalecer o uso,
pois não seria crível houvesse uma falsificação sem a intenção de o agente usar o
documento apócrifo. Apelo desprovido.”

Tema XXI

Receptação e Disposições Gerais. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. Autonomia da receptação;b) Espécies de

Michell Nunes Midlej Maron 276


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

receptação. 2) Aspectos controvertidos. 3) Imunidades materiais (as escusas absolutórias).4) Imunidades


formais. 5) Concurso de crimes. 6) Pena e ação penal.

Notas de Aula37

1. Receptação

Dispõe o artigo 180 do CP:

“Receptação
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio
ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-
fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de
1996)
Receptação qualificada(Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar,
montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em
proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa
que deve saber ser produto de crime: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de
1996)
§ 2º - Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer
forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência.
(Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o
valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por
meio criminoso: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. (Redação
dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do
crime de que proveio a coisa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 5º - Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz, tendo em
consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na receptação dolosa
aplica-se o disposto no § 2º do art. 155. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 6º - Tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado,
Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia
mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro. (Incluído pela Lei
nº 9.426, de 1996)”

Na primeira parte do caput do dispositivo, está consignada a receptação própria,


cujos verbos são “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar” coisa que sabe ser
produto de crime. Dali em diante, a parte final do caput traz a receptação imprópria, que é
a influência, exercida sobre terceiro de boa-fé, para que este pratique um dos verbos
mencionados acima.
A receptação implica necessariamente a existência de crime anterior, do qual surgiu
a res que se sabe ser produto do crime. Daí surge uma diferenciação tênue a ser feita em
relação à conduta do receptador, porque esta pode se confundir com a coautoria no crime
predecessor, ou com o crime de favorecimento real, do artigo 349 do CP:

“Favorecimento real
37
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 5/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 277


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Art. 349 - Prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação,


auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime:
Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.”

Partamos de exemplos para identificar as situações diversas. Imagine, num primeiro


caso, que o agente, instado pelo furtador de um carro posteriormente ao furto, se dispõe a
guardar para ele o veículo em sua garagem, por pura camaradagem. O crime é claramente o
favorecimento real. Suponha agora que o furtador de um veículo entra em contato com o
agente, solicitando a mesma ocultação do bem. O agente, agora, se dispõe a guardar o
carro, porque seu irmão vai adquirir esta res furtiva. O crime, aqui, é de receptação. A
diferença está na elementar “proveito próprio ou alheio”, que identifica a finalidade do
agente em praticar os verbos nucleares do tipo: quando o proveito for em prol de terceiro, o
crime ainda se configura, somente não podendo ser este terceiro o próprio criminoso que
fez surgir a coisa como produto do crime, pois se assim o for, o crime é do artigo 349,
supra.
Diferentemente ocorre quando o agente contribui, de qualquer forma, para a prática
do crime precedente: não haverá receptação, se for praticada qualquer conduta nuclear
deste tipo, porque o agente, neste caso, é coautor ou partícipe do crime anterior. Veja: se o
agente for instado pelo furtador do veículo a guardá-lo, antes mesmo de consumado o
crime, o assentimento nesta ocultação é participação no furto, porque possibilitou o próprio
cometimento do crime – é auxílio material do furto. Se ocorre o furto, e o agente ainda vem
a efetivamente ocultar o bem, como prometera, não há concurso entre furto e receptação
para si: há apenas furto, a ocultação tornando-se post factum impunível38.
Sintetizando: o verbo “ocultar” só caracteriza receptação quando não houver
concurso do agente no crime anterior, tendo em vista que aquele que responde pelo crime
anterior não pratica receptação. Caso quem oculte a res esteja visando a favorecer o próprio
autor do crime, haverá favorecimento real; nos demais casos, haverá receptação. O terceiro
beneficiado na receptação não pode ser o autor do crime antecedente, assim como este
sujeito não poderá ser sujeito ativo da receptação.
A receptação própria é crime material. É também crime acessório e autônomo, porque
precisa do crime anterior, embora seja punido independente da punição do crime anterior.
Ressalte-se que se a coisa for produto de contravenção, quem adquire a coisa não pratica
receptação.
A receptação própria admite tentativa; a imprópria não admite porque é crime formal
e unissubsistente.
O autor do crime antecedente não pode ser autor da receptação, mas pode o próprio
proprietário da coisa praticar receptação? A doutrina é praticamente unânime em dizer que
sim. Imagine a seguinte situação: o dono de veículo subtraído o adquire das mãos do
bandido. Esta situação identifica a receptação, por mais estranho que pareça: o proprietário
deveria ter se valido dos meios legais para reaver o bem, e não da aquisição do bem. Poder-
se-ia, até, falar em alguma excludente de ilicitude ou culpabilidade, mas a tipicidade formal
está preenchida.
Sujeito passivo é aquele que foi vitima do crime anterior. Há coincidência. O crime
anterior pode ser qualquer um, não necessariamente contra o patrimônio.
38
No crime de lavagem de dinheiro esta dinâmica não ocorre: neste, mesmo sendo participante do crime
antecedente, se o agente oculta ou s]dissimula o dinheiro, ainda assim incorre na lavagem. É um post factum
punível por expressa previsão legal. O crime será estudado em momento posterior.

Michell Nunes Midlej Maron 278


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

É possível receptação de receptação, desde que quem receba esteja ciente de que o
produto é oriundo de crime.
Se uma pessoa recebe jóias que foram furtadas, e depois foram fundidas em objetos,
quem adquire os objetos pode responder por receptação. Mesmo que alterado, o produto do
crime ainda está ali presente.
Questão objeto de duvida na doutrina é se o bem imóvel pode ser objeto do crime.
Quando se fala transportar, conduzir e ocultar fica difícil imaginar o bem imóvel sendo
objeto deste delito. Na modalidade adquirir, porém, não há problema: se o legislador não
distinguiu entre bens móveis e imóveis, não nos cabe distinguir. Hungria, entretanto,
entende que o bem imóvel não pode ser objeto de receptação, porque essa pressupõe o
deslocamento da coisa.

1.1. Receptação qualificada

O § 1° do artigo 180 do CP traz a modalidade qualificada da receptação, consistente


em adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar,
remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou
alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto
de crime.
Esta modalidade é crime próprio: só quem está no exercício de atividade comercial ou
industrial pode praticar. E veja que não se trata do industrial ou comerciante esporádico; é
exigida uma efetiva a habitualidade neste exercício.
O dispositivo fala que o agente “deve saber” que a coisa é produto de crime, o que
significa dolo eventual. Por lógica, se é punido o dolo eventual, com muito mais razão o
direto, pelo que aquele comerciante ou industrial que efetivamente sabe que é produto do
crime estará certamente incurso neste parágrafo. A conduta de quem sabe está logicamente
englobada pela elementar “deve saber”. Este é o entendimento mais atual do STF, que
interpreta teleologicamente a norma: é claro que o legislador viu maior reprovabilidade
naquele que comercia ou industrializa bens e, nesta condição, pratica receptação, do que
aquele receptador casuístico.
Existe entendimento contrário, porém: há quem defenda que não podemos usar
analogia aqui, porque tal exegese feriria a reserva legal. Assim, seria punido só o dolo
eventual. O mais grave, que é o direto, não se pune. É corrente frágil, porque evidencia
clara desproporção.
O § 2° do artigo em tela equipara, com muita coerência, para efeitos da qualificadora,
qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência. É
claro que não seria lógico se favorecer o comerciante irregular, que de outra forma ficaria
isento da qualificadora, enquanto o regular nela se insere.
Em suma, muito embora tenha existido ampla controvérsia doutrinária e
jurisprudencial acerca do § 1° do artigo 180 do CP, o STF entende hoje que esta receptação
qualificada engloba tanto o dolo eventual quanto o direto, e é mais grave, em razão das
condições de quem a pratica, não ofendendo o princípio da proporcionalidade.
O § 6° do artigo 180 do CP, acrescentado pela Lei 9.426/96, é outra hipótese de
receptação qualificada, de caráter objetivo: tratando-se de bens e instalações do patrimônio
da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de
economia mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro.

Michell Nunes Midlej Maron 279


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

1.2. Receptação culposa

Veja um exemplo peculiar: pessoa tem jóia subtraída de sua casa, pela empregada
doméstica, mas não sabe deste fato. Esta pessoa, casualmente, passava por uma feira livre,
quando vê uma jóia idêntica sendo oferecida a preço muito inferior do que sabe valer, e a
adquire. Ocorre que a jóia era a sua própria, que havia sido furtada anteriormente. Esta
pessoa está cometendo o crime de receptação, na modalidade culposa, do artigo 180, § 3°,
do CP: deveria saber que o bem é produto do crime.
Os tipos culposos são abertos, em regra, mas esse não: é fechado, porque só tem três
indícios reveladores da culpa aqui: a natureza do objeto material; a desproporção entre o
valor real da coisa o e o preço pago; ou a condição de quem oferece.
O tipo culposo é apenas para adquirir ou receber; para transportar, conduzir ou
ocultar, a conduta é atípica.

1.3. Autonomia

Por ser a receptação delito autônomo, não precisa estar comprovada a prática do
crime anterior: bastam indícios, como o registro de ocorrência policial, a existência da ação
penal, notícia de que aquilo foi objeto de crime, etc.
Diz ainda o § 4° do artigo 180 do CP que a receptação é punível, ainda que
desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. Este parágrafo
serve de lacuna para Damásio ter o seu famoso entendimento diverso, causalista, no que
tange ao conceito de crime.
Damásio diz que a receptação é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o
autor do crime, o que para ele revela que a culpabilidade não está inserta no conceito
analítico do crime: criem é ato típico e ilícito, sendo a culpabilidade mera condição de
punibilidade. Isto porque quando fala em isenção de pena, o legislador teria colocado de
forma separada a culpabilidade do conceito de crime, por isso ele diz que crime é fato
típico e ilícito, dispensada a culpabilidade, por conta desse parágrafo.
A interpretação deste dispositivo revela apenas que, mesmo que o crime anterior reste
insolúvel, ou que seu autor tenha recebido alguma benesse exculpante – desnaturando o
crime como um todo (quando for menor, por exemplo, trazendo o crime para ato
infracional), ainda assim a receptação será punível.

1.4. Perdão judicial e formas privilegiadas

Diz o § 5° do artigo 180 do CP que na hipótese da receptação culposa, se o criminoso


é primário, pode o juiz, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
Trata-se do simples perdão judicial.
Diz ainda que, quando nestas circunstâncias, se a receptação for dolosa aplica-se o
disposto no § 2º do artigo 155 do CP, ou seja, ante a primariedade, o crime passa a ser
privilegiado.

2. Imunidades relativas e escusas absolutórias

Michell Nunes Midlej Maron 280


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

Quando se fala em imunidades, nos crimes patrimoniais, se pode dividi-las em


absolutas e relativas. As absolutas, chamadas escusas absolutórias, fazem com que o agente
se torne isento de pena, enquanto as relativas transformam a natureza da ação, que era
pública incondicionada, em condicionada à representação.
O artigo 181 do CP traz imunidade absoluta:

“Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste
título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja
civil ou natural.”

Nestes casos, o crime existe: há fato típico, ilícito e culpável. Contudo, o agente
simplesmente não será punido, em atenção à escusa absolutória que o alcance. Estamos
diante de causas pessoais de exclusão da pena, aferidas objetivamente.
No inciso I, apresenta-se a exclusão da punibilidade daquele cônjuge que pratica
delito patrimonial contra o outro. Assim, se a esposa furta dinheiro da carteira do marido,
não será punida. Mas há que se enfrentar um questionamento, aqui: se o marido retira
dinheiro da carteira da esposa, a toda vista está também açambarcado pela imunidade
absoluta deste dispositivo; contudo, a Lei Maria da Penha prevê que a violência patrimonial
contra a mulher deve ser reprimida. Surge, portanto, esta controvérsia: estará o marido
ainda a merecer a escusa absolutória em questão?
Sabe-se que a Lei 11.340/06, veio a regular os casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher. Tal diploma conceituou a violência doméstica e familiar, dividindo-a em
cinco espécies: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência
patrimonial e violência moral. Por isso, alguns entendem que não mais são aplicáveis as
imunidades do CP nos casos em que haja violência patrimonial contra a mulher. Tal é o
entendimento de Maria Berenice Dias:

“A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da sua
mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de
violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é
mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se
aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal.
Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a
condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f).”

Um dos argumentos a favor de tal entendimento seria a interpretação sistemática,


analisando a proibição de aplicação das imunidades pelo Estatuto do Idoso, diploma com
intenção semelhante a da Lei Maria da Penha, qual seja, conferir maior proteção ao sujeito
passivo do crime. Outro argumento seria de que a nova lei teria derrogado tacitamente as
imunidades, pois se essas pudessem ser aplicadas teriam esvaziado o conteúdo do artigo 7º,
IV, da Lei 11.340/06, donde consta esta violência patrimonial:
“Art. 7° São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
(...)
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

Michell Nunes Midlej Maron 281


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

(...)”

Para aqueles que sustentam que as imunidades devem ainda ser aplicadas, elencam,
dentre outros fundamentos, que na verdade a violência patrimonial contra a mulher poderia
ser objeto de repressão penal regular em muitos casos em que as imunidades não têm
atuação: em casos de violência ou grave ameaça, nos crimes contra vítima idosa e nos casos
do artigo 182 do CP, quando a vítima desejasse oferecer representação.
Ademais, se o legislador quisesse elidir a aplicação da escusa ao marido, tê-lo-ia
feito expressamente no artigo 183 do CP, quando, com o Estatuto do Idoso, incluiu ali a
previsão do inciso III, logo abaixo visto. Prevalece esta leitura, diga-se: a maior corrente é a
que reputa que o marido ainda é merecedor da escusa absolutória.
Quando analisamos a expressão “sociedade conjugal”, seria possível estender a
escusa absolutória aos companheiros? Há autores que dizem que não, porque são critérios
pessoais de exclusão da pena, pelo que só o cônjuge poderia ingressar aqui. Mas há dois
argumentos fortes contra isso: o artigo 226, § 3°, da CRFB, que protege a instituição da
união estável; e o fato de ser norma permissiva, diante da qual se pode aplicar a analogia,
para estendê-la ao companheiro.

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
(...)”

Se autor e vítima estão casados de direito, e separados de fato, aplica-se o artigo 181
ou 182 do CP? A sociedade conjugal persiste, para fins penais, mesmo que o direito civil
seja diverso. Por isso, a interpretação deve ser sempre a mais favorável ao réu: se estão
casados legalmente, aplica-se a escusa absolutória; se judicialmente separados, há
imunidade relativa.
Veja que, havendo escusa absolutória, não pode sequer ser instaurado o inquérito,
muito menos a ação penal. O crime está caracterizado, mas não se pode sequer instaurar
inquérito.
Quanto ao inciso II do artigo 181 do CP, deve-se salientar que não há mais distinção
entre os filhos, naturais ou adotivos, como se sabe: qualquer filho que subtrair bem dos
ascendentes é isento de pena.
No artigo 182 do CP, há a imunidade relativa, como dito, que significa que o agente
ter-se-á perseguido em ação penal condicionada à representação, e não incondicionada,
como é a regra:

“Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste


título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.”

É relativa porque se a vítima o quiser, a persecução penal será instaurada. A


representação é condição de procedibilidade da ação penal, mas é também condição de

Michell Nunes Midlej Maron 282


EMERJ – CP IV Direito Penal IV

persequibilidade: sequer poderá haver instauração de inquérito sem que a vítima se


manifeste.
Excetuando ambos os casos – escusas absolutórias e imunidades relativas –, o artigo
183 do CP estabelece alguns casos em que não se aplicam as disposições dos artigos
precedentes:

“Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:


I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de
grave ameaça ou violência à pessoa;
II - ao estranho que participa do crime.
III - se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003)”

A previsão do inciso I do artigo supra não é redundante: não seria suficiente dizer
que não se aplicam as escusas ou as imunidades se houver emprego de grave ameaça ou
violência. A menção expressa ao roubo é necessária, por conta da existência da violência
imprópria do roubo, que estaria elidida caso não fosse este mencionado expressamente.
Quanto à extorsão, parece ser redundante, de fato.

Casos Concretos

Questão 1

CAIO adquiriu de MÉLVIO arma de fogo de uso restrito, estando ciente de que a
numeração daquela arma estava raspada. MÉLVIO afirmou para CAIO que aquela arma

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lhe pertencia, tendo-a recebido de seu pai, sendo acertado o preço justo de mercado,
inclusive. Meses depois, em diligência realizada na casa de CAIO, com autorização
judicial, foi a arma apreendida, sendo o mesmo preso por receptação, além do crime
correspondente, previsto no Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03). Comente a
hipótese.

Resposta à Questão 1

A arma, quando tem numeração raspada, já é consumação de crime autônomo:


quem raspa pratica crime, e quem guarda idem. E mesmo não sendo, na essência, arma de
uso restrito, a arma com registro raspado é equiparada a armas restritas.
Há concurso entre a posse da arma de uso restrito, do artigo 16 do Estatuto do
Desarmamento, e o crime de receptação, não havendo que se falar em bis in idem, porque
não há relação intrínseca entre os delitos, sendo distintos os bens jurídicos aviltados.

“Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito


Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter
sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de
arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a
arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer
modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com
numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou
adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório,
munição ou explosivo a criança ou adolescente; e
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de
qualquer forma, munição ou explosivo.”

A respeito, veja a Apelação Criminal 2007.050.02373, do TJ/RJ:

“Processo: 0002382-24.2006.8.19.0204 (2007.050.02373). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. MARCUS BASILIO - Julgamento: 31/07/2007 - PRIMEIRA
CAMARA CRIMINAL.
EMENTA: DENÚNCIA - SENTENÇA - CORRELAÇÃO RECEPTAÇÃO -
PORTE DE ARMA - ABSORÇÃO - PROVA ORIGEM CRIMINOSA -
ELEMENTO SUBJETIVO - PENA ATENUANTE – REGIME. Narrando a
denúncia que com o acusado foi encontrada uma moto de origem criminosa, o que
não restou configurado ao final da instrução, porquanto aquele veículo não foi
apreendido com o acusado, apenas a documentação respectiva, não merece
prosperar a sentença condenatória neste ponto. Certo de que com o acusado foi
apreendida arma de fogo de uso permitido municiada e em condições de efetuar
disparos, e não tendo o agente autorização para portar arma, correta se apresenta a
condenação pelo crime do artigo 14 da Lei 10826/03. Tratando-se de arma de

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origem criminosa e havendo indícios de que o acusado tinha ciência de tal


circunstância, também correta a condenação pelo crime de receptação, não
podendo tal infração ser absorvida por aquela relativa ao porte de arma, eis que
distintos os bens jurídicos protegidos. Sendo o acusado menor de 21 anos,
impunha-se o reconhecimento da atenuante respectiva, com a conseqüente redução
da pena intermediária, abrando-se o regime para o semi-aberto e negada a
substituição da pena detentiva por restritiva de direitos, eis que tal medida
alternativa não se mostra suficiente, no caso concreto, como resposta penal do
Estado ao ilícito comportamento do acusado. Fixado o valor do dia multa acima do
mínimo legal sem qualquer fundamentação, impõe-se a redução respectiva, eis que
o critério a ser adotado é o da situação econômica do agente, devendo ser
consideradas as circunstâncias da infração e as demais do artigo 59 do Código
Penal no calibramento do número de dias multa.”

Questão 2

JAIME, comerciante, recebe de MÁRIO diversas caixas de vinho de cuja origem


criminosa desconfiava. JAIME não questionou o vendedor sobre tal circunstância. Preso
dias depois, veio a ser denunciado pelo Ministério Público. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação do fato?
b) O fato de o acusado saber da origem ilícita da coisa pode fazer com que a
capitulação seja alterada?
c) Como diferenciar a hipótese do § 1º daquela prevista no § 3º?

Resposta à Questão 2

a) Trata-se do delito de receptação qualificada, na qual agiu com dolo eventual em


relação à origem criminosa da coisa. Capitula-se no artigo 180, § 1°, do CP.
b) Não: mesmo que passasse, neste caso, a agir com dolo direto, estaria ainda
inserto no mesmo dispositivo penal, segundo orientação corrente do STF.
Devendo saber ou efetivamente sabendo, insere-se no artigo 180, § 1°, do CP.
c) A diferença esta na ausência de dolo. O § 3° do artigo 180 do CP só pune a título
de culpa, pela negligência em aferir sobre a origem do bem, ante as espécies de
culpa fechadas ali previstas, enquanto no § 1° há dolo, eventual ou direto.

Questão 3

PERCIVAL obtinha o seu sustento informalmente, através da prática de comércio


clandestino de peças de reposição de telefone celular, e não recusava qualquer serviço
para aumentar seus rendimentos. Certa vez, PERCIVAL foi convidado a participar de uma
operação, que consistiria na venda de cinqüenta e oito kits - de conhecida origem
criminosa - para que carros a gasolina também pudessem consumir gás. Diante desta
oportunidade de obter um lucro de R$ 500,00, ele não hesitou: recebeu e transportou a
mercadoria, que não tinha nota fiscal, para que fosse vendida, por ele ou por terceiros,
praticando, assim, atos clandestinos de comércio. Em razão de tais fatos, PERCIVAL foi
denunciado e condenado pela prática do crime previsto no artigo 180, §§ 1º e 2º do
Código Penal. Está correta a capitulação dos fatos? Fundamente.

Resposta à Questão 3

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É preciso que haja um nexo entre a conduta praticada na receptação e a atividade


comercial que o agente desenvolve. Por isso, no caso em tela, se o agente era comerciante
de peças de celular, em nada pertine, sua qualidade de comerciante, à receptação em tela,
por absoluta ausência de nexo entre a coisa receptada e sua comerciação. Destarte, a
receptação praticada é a simples, da primeira parte do caput do artigo 180 do CP.

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