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Tema I
Homicídio I.1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Homicídio privilegiado e qualificado. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3)
Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.
Notas de Aula1
1. Delitos em espécie
O Direito Penal se presta à proteção dos bens jurídicos mais importantes, mais caros
à sociedade. Os tipos penais, então, são as normas que identificam cada bem jurídico eleito
como relevante ao Direito Penal.
A primeira função do bem jurídico é justamente a de ser a razão de ser do Direito
Penal: é o norte que o orienta, pois sem que haja bem jurídico relevante a ser tutelado, não
se justifica a criação de nenhum tipo penal incriminador. Opera, então, uma função
limitadora da intervenção do Direito Penal. Quando se fala em lesividade, por exemplo, se
está tratando do potencial ofensivo que determinada conduta tem sobre o bem jurídico em
tela. Da mesma forma, a subsidiariedade e a fragmentariedade do Direito Penal são erigidas
exatamente em função dos bens jurídicos.
Além desta função limitadora e de garantia, o bem jurídico desempenha também
uma função teleológica, que impõe que toda interpretação sobre tipos incriminadores deve
visar à proteção do bem jurídico. Exemplo prático desta função teleológica do bem jurídico
é a leitura do artigo 159 do CP, em comparação com a do artigo 158 do mesmo diploma:
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)”
Veja que o artigo anterior, a extorsão, classifica a vantagem a ser obtida pelo
criminoso em indevida e econômica, enquanto na extorsão mediante sequestro a expressão
“qualquer vantagem” vem alheada de qualquer adjetivação. Por isso, se lido literalmente o
artigo 159, seria de se entender que não precisaria, a vantagem almejada, ser econômica ou
indevida para fazer ali subsumir-se a conduta. Destarte, se um seqüestrador exige como
resgate vantagem sexual (vantagem não econômica), ou exige dos parentes do seqüestrado
que lhe devolvam algo que já era seu (vantagem não indevida), por exemplo, estaria
incidindo no artigo 159, mesmo assim.
1
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 19/10/2009.
Ocorre que esta interpretação gramatical não pode ser observada, porque, como se
disse, o bem jurídico é o norte da interpretação da norma, que deve ser teleológica, deve
buscar explicitar o alcance que o bem jurídico eleito impõe ao tipo. Destarte, mesmo que
não venha consignada a adjetivação “indevida” e “econômica” ao tipo do artigo 159, estas
qualidades são exigidas para que seja ali inserta a conduta, pelo seguinte raciocínio: o
dispositivo está inserido no capítulo dos crimes contra o patrimônio, e por isso o bem
jurídico que por ele é tutelado é o patrimônio, e não a liberdade individual ou sexual, ou a
administração da justiça, respectivamente tutelares daquilo que foi exigido como vantagem,
nos exemplos dados acima, sequestro e estupro, e sequestro e exercício arbitrário das
próprias razões.
Sendo assim, passemos à análise dos bens jurídicos eleitos pelo Direito Penal como
mais relevantes, a merecerem sua tutela e intervenção, começando pelo de mais alta
importância2: a vida.
2. Homicídio
“Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o
parto ou logo após:
Pena - detenção, de dois a seis anos.”
Sendo o parto efetivado por cesariana, diz a corrente majoritária que a vida
extrauterina surge quando se dá a primeira incisão nas camadas abdominais, pelo
realizador do parto – o que é o equivalente cirúrgico ao rompimento da bolsa, no parto
natural, pois é o primeiro ato do parto.
A cessação da vida, a morte, por seu turno – o que, no homicídio, é o momento da
consumação –, também encontrava certa divergência, hoje um pouco amainada. Nélson
Hungria defendia que a morte se consumava quando havia a cessação das funções vitais
(cardíaca, circulatória, respiratória). Modernamente, porém, é praticamente pacífico o
entendimento de que a vida cessa quando há total inoperância da atividade encefálica. O
2
A Parte Especial do CP é, para alguns, ordenada em grau decrescente de relevância dos bens jurídicos,
começando pela vida e terminando nas finanças públicas.
artigo 3° da Lei 9.434/97, diploma que regula os transplantes de órgãos, é norma que traz
conceito legal de morte, podendo ser perfeitamente aplicado no Direito Penal:
Assim, a morte encefálica é o fim da vida. Morte encefálica, por conceito médico
abreviado, é a destruição das estruturas vitais do encéfalo necessárias para manter a
consciência e a vida vegetativa, o que não se confunde com a mera morte cerebral.
Entenda: o encéfalo é formado por duas grandes estruturas, cérebro e tronco
encefálico. O tronco é a estrutura responsável pelas funções vegetativas, aquelas que são
desempenhadas pelo organismo sem qualquer ingerência consciente do indivíduo – as
funções “automáticas”, por assim dizer. No cérebro, se comandam as funções conscientes,
cognitivas.
O indivíduo em coma não tem atividade cerebral, mas as funções vegetativas,
comandadas pelo tronco encefálico, estão em perfeita ordem e atividade. Por isso, estas
pessoas estão vivas. Quando, ao contrário, não há atividade encefálica alguma, ou seja, o
tronco está inoperante (e conseqüentemente o cérebro também estará), há a morte3.
Veja que nem sempre coincidirá, a morte encefálica, com a cessação das funções
biológicas do corpo humano. Podem as funções biológicas vegetativas permanecerem
ativas, por meio de instrumentos, mas sem atividade encefálica qualquer – o que para
Hungria faria a pessoa ser considerada viva, fazendo ver que sua corrente é superada.
A prova de que o feto esteja vivo, para o Direito Penal, é bastante flexível: qualquer
prova inequívoca será admissível (e não apenas aquelas provas vinculadas da medicina
legal, como a docimásia hidrostática de Galeno).
Esclarecido o momento em que a tutela da vida extrauterina tem lugar, passemos à
análise expressa do tipo penal do homicídio.
3
Vale mencionar, pelo ensejo, que este artigo supra oferece solução bastante clara para a questão do feto
anencefálico. Entenda: ao se extrair o feto anencefálico, simplesmente não se trata de aborto, sendo fato
claramente atípico: o feto anencefálico não tem atividade encefálica, por simples ausência de encéfalo; sendo
a inatividade encefálica o marco da morte, a vida intrauterina simplesmente não existe, e por isso a
interrupção daquela gravidez não é aborto, é mera cirurgia para retirada de ser sem vida.
“Homicídio simples
Art 121. Matar alguem:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo futil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que
dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro
crime:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4° No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências
do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se
as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)”
“Fixação da pena
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;(Redação dada
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;(Redação dada
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de
pena, se cabível. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”
“(...)
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
(...)”
A eutanásia ativa é a ação dedicada a interromper a vida, tal como ministrar uma
droga que leve a óbito indolor; a eutanásia passiva é a omissão em fornecer meios ao seu
alcance para que a vida se prolongue, como na interrupção de tratamento que manteria a
pessoa viva.
O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.805/06, que trata da
ortotanásia, instruindo aos médicos sobre sua admissibilidade. Esta resolução está suspensa,
por força de liminar em ação civil pública, porque entendeu, o MPF e o juízo federal
respectivo, que se trataria de um fomento à eutanásia passiva. Veja os artigos 1° e 2° desta
resolução:
“PROCESSO Nº : 2007.34.00.014809-3
AUTOR : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU : CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
DECISÃO
Trata-se de ação civil pública, com pedido de antecipação detutela, ajuizada pelo
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra o CONSELHO FEDERAL DE
MEDICINA, questionando a Resolução CFM nº 1.805/2006,que regulamenta a
ortotanásia.
Aduz, em apertada síntese, que o Conselho Federal de Medicina não tem poder
regulamentar para estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada
como crime. O processo foi ajuizado em 09 de maio de 2007.
O ilustre Juiz Federal JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA - oficiando no feito
em virtude de minha designação para, com prejuízo das funções, prestar auxílio na
25a Vara (Juizado Especial Federal) desta Seção Judiciária do Distrito Federal no
período de 02 a 22 de maio de 2007 - despachou no dia 15 de maio de 2007
oportunizando a oitiva do Réu, no prazo de 72h, antes de apreciar a antecipação de
tutela.
Intimado, o Conselho Federal de Medicina protocolou as informações preliminares
no dia 31 de maio de 2007, asseverando a legitimidade da Resolução CFM nº
1.805/2006 e a inexistência dos requisitos necessários à concessão da antecipação
de tutela.
É o relatório. Decido.
Em questão de ordem, registro que as informações preliminares prestadas pelo Réu
somente foram juntadas efetivamente ao processo em 27 de agosto de 2007, em
virtude da necessidade de abertura de novo volume de autos, vindo então
conclusos para decisão em 17 de outubro de 2007.
Nota-se que há, portanto, entendimento de que a ortotoanásia seja ainda uma forma
de causação da morte, por omissão terapêutica, o que se vê nas palavras do juiz, supra, no
seguinte trecho:
“(...) tenho para mim que a tese trazida pelo Conselho Federal de Farmácia nas
suas informações preliminares, no sentido de que a ortotanásia não antecipa o
momento da morte, mas permite tão-somente a morte em seu tempo natural e sem
utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da
tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente
e sua família, não elide a circunstância segundo a qual tal conduta parece
caracterizar crime de homicídio no Brasil, nos termos do art. 121, do Código
Penal.” (grifo nosso)
Há nesta decisão, a todo ver, certa confusão entre eutanásia passiva e ortotanásia,
justamente porque o juiz não diferencia o processo de morte do processo de vida. A linha é
mesmo tênue, mas existe, e por isso, reafirme-se, é posição mais acertada a de que a
ortotanásia é fato atípico. Cabe aqui trazer, porque muito elucidativa, a exposição de
motivos da Resolução 1.805/06 do CFM:
Aqui, o valor que privilegia o crime é diretamente caro à sociedade, e não apenas
reconhecido por ela como relevante, mas atinente apenas ao homicida, como ocorre no
relevante valor moral. É a sociedade quem tem interesse direto no valor aqui privilegiado, e
não apenas o criminoso, não sendo o privilégio fruto de mero reconhecimento social de que
o valor intimamente importante ao agente é moralmente relevante. Esta é a diferença entre
valor moral e valor socialmente relevante: no primeiro, o motivo é dedicado a interesse
intimo, mas reconhecido como moralmente relevante pela sociedade; no segundo, o motivo
é dedicado a interesse da própria sociedade.
Nélson Hungria traz exemplo clássico: o homicida que mata o traidor da pátria, em
tempos de guerra, para evitar que este forneça informações valiosas aos inimigos nacionais.
Outro exemplo, mais verossímil, é o do agente que matou um delinqüente que aterrorizava
toda uma comunidade, tendo sido motivado pelo intuito de restabelecer a paz e a
tranqüilidade social do lugar. Concretamente: o morador da favela que, cansado das
atrocidades feitas pelo “dono do tráfico”, mata o chefe do crime, com o fito de proteger sua
comunidade de novos atentados.
O dispositivo empresta privilégio ao agente que mata alguém após ser tomado pelo
domínio de violenta emoção logo após sofrer injusta provocação da vítima. Há que se ter
cuidado com diversos aspectos, aqui. Vejamos.
Domínio não é mera influência. A influência da emoção é circunstância atenuante,
como se vê no artigo 65, III, “c”, fine, do CP:
“Circunstâncias atenuantes
Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
(...)
III - ter o agente:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem
de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato
injusto da vítima;
(...)”
“Emoção e paixão
Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
I - a emoção ou a paixão; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)”
O que o legislador quis retratar, neste artigo 28, I, do CP, é que a emoção, assim
como a paixão, são sensações e estados de espírito que acometem todos os indivíduos, e são
Em que pese minoritária, a tese de que as qualificadora são circunstâncias parece ser
a mais coerente, por questão de justiça: se um dos agentes age com motivo torpe,
qualificando o homicídio, e o coautor não tinha seu dolo contaminado por aquele motivo
torpe, será alcançado por ele mesmo assim, qualificando seu delito, o que parece ser uma
espécie de responsabilização penal objetiva, de fato. Debalde, a maioria entende que a
qualificadora é elementar, STF inclusive, como dito.
Outro aspecto a ser explicitado é a pluralidade de qualificadoras em um mesmo
delito. Havendo mais de uma qualificadora, como individualizar a pena? Supondo-se um
homicídio triplamente qualificado, assim se capitulará para fins de pena: o crime será
qualificado, por uma das qualificadoras encontradas, e as demais serão computadas como
agravantes genéricas, se previstas; se não forem previstas como agravantes, serão
computadas como circunstâncias judiciais. Veja que não há qualquer impropriedade nesta
dinâmica, porque as agravantes são subsidiárias às qualificadoras, como se vê no caput do
artigo 61 do CP, que diz que há o agravamento quando a situação não qualificar o crime:
“Circunstâncias agravantes
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem
ou qualificam o crime:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)”
Ora, no cúmulo de qualificadoras, a primeira qualifica o crime, e por isso não pode
ser considerada agravante, mas as demais, quantas forem, não estão servindo para qualificar
o crime – papel que já foi desempenhado pela primeira –, podendo se enquadrar
perfeitamente como agravantes.
Outro aspecto, este bem simples, diz respeito ao cúmulo entre qualificadora e
privilégio: é perfeitamente possível haver homicídio qualificado-privilegiado, desde que
sejam, as qualificadoras consideradas na casuística, de natureza objetiva. Não se pode
compatibilizar uma qualificadora subjetiva com um privilégio, porque todos os privilégios
são subjetivos. Por exemplo, não há como a motivação de um homicídio ser de relevante
valor moral e, ao mesmo tempo, torpe, ou fútil. Nada impede, porém, que haja a
combinação entre motivo relevante moralmente e a qualificadora de asfixia, por exemplo,
fazendo configurado o homicídio qualificado e privilegiado.
Divergência surge, quanto a este homicídio qualificado-privilegiado, em relação à
sua hediondez ou não. A esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência defende que
não é hediondo, ao seguinte argumento:a Lei 8.072/90 diz que é hediondo o homicídio
qualificado, desde 1994, como se vê no artigo 1°, I, deste diploma:
Por assim prever, não pode haver interpretação extensiva de norma gravosa, como o
é a norma que atribui hediondez ao delito. Onde se lê qualificado, leia-se somente
qualificado, e nada mais. Ademais, é claramente contra a mens legis incriminar como
hediondo uma eutanásia, que é crime de amor, se esta for praticada com emprego de
asfixia, por exemplo.
Mas há corrente minoritária, com parca adesão no TJ/RJ (Quarta e Oitava Câmaras
Criminais), e com Rogério Greco na doutrina, que defende que ainda que seja privilegiado,
o crime é qualificado, e por isso é hediondo – sem mais argumentos. É fraca esta corrente,
diga-se.
Em prol da não hediondez do homicídio qualificado-privilegiado, veja o HC 43.043
do STJ:
emprego de exemplos de meios cruéis, para somente ao final do dispositivo abrir o conceito
para os demais meios que assim possam ser enquadrados, traçou um limite satisfatório à
interpretação analógica, tornando a norma adequada ao princípio da taxatividade penal.
Esta dinâmica fica bem perceptível, também, na qualificadora do “motivo torpe”.
Assim quis dizer o legislador: cometer o homicídio por motivo vil, abjeto, torpe, tal como a
paga e a promessa de recompensa, é crime qualificado. O exemplo do mercenário serve
como parâmetro para a interpretação analógica a ser feita em casos em que a motivação
possa ser considerada vil, torpe.
A motivação fútil, do inciso II do dispositivo em questão, porém, não precisa de
exemplificação, podendo ser amplamente aberta sem violar o princípio da taxatividade,
porque a futilidade é de constatação mais evidente, menos relativa, do que a torpeza.
Regra geral que precisa ser consignada é que toda qualificadora, seja ela
considerada elementar ou circunstância, só pode ser imputada ao agente a título de dolo:
não há como se qualificar um crime se a causa da qualificação for culposa. Veja um
exemplo: não pode o agente que, desejando matar a vítima com brevidade, com um tiro
fatal, acaba por causar incêndio, matando-a com o fogo, ser imputado pelo uso do fogo
como instrumento do crime – o fogo foi culposo. É mera observância À responsabilidade
penal subjetiva. Esta é uma regra geral para qualquer gravame da pena, de qualquer crime,
diga-se. Contudo, há uma só exceção: a única circunstância que dispensa dolo do agente
para fazer-se incidir é a reincidência, que se constata objetiva e automaticamente4.
Dito isto, vejamos cada uma das qualificadoras.
4
A reincidência, mais tecnicamente, deveria ser considerada não como circunstância do fato, mas sim como
condição pessoal do agente, diferença que é significativa, tanto teórica como empiricamente, porque as
condições de caráter pessoal do agente não guardam qualquer pertinência com o fato em si, e não se
comunicam aos corréus, senão quando elementares do delito.
para o pagador, a motivação torpe da paga, eis que inserto na elementar, e o privilégio da
relevância moral? Não há, de fato, solução a este paradoxo.
O STF, alheio a esta possibilidade, simplesmente diz que quem paga também se
insere na qualificadora, como se vê no HC 66.571:
Antemão, vale dizer que há quem critique a eleição da futilidade como motivo
separado do torpe, porque há quem diga que seja, de fato, apenas mais uma forma de
torpeza – tese que tem, de fato, coerência, mas não prejudica a aplicabilidade da norma.
Motivo fútil é aquele banal, propugnado por circunstância de somenos importância.
Surge a questão: a ausência de motivo se enquadra na qualificadora do motivo fútil?
Parte da doutrina entende que a carência absoluta de motivo faz com que o homicídio seja
considerado simples, podendo, no máximo, ser tomada em conta no cálculo da pena-base.
Esta corrente defende que se o legislador exigiu algum motivo para qualificar, é violação à
legalidade promover a qualificação daquele que age sem motivo algum.
Pelo outro lado, há quem entenda que a falta de motivo é qualificada como motivo
fútil. Rogério Greco defende que se a lei qualifica o motivo banal, com muito mais certeza
é intenção do legislador qualificar aquele que mata sem motivo algum – o que seria um
“motivo futilíssimo”, por assim dizer. A discussão, porém, é ferrenha.
2.1.3.3. Emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou
cruel, ou de que possa resultar perigo comum
a facada: pode matar brevemente, mas se forem desferidos golpes repetidos em áreas não
letais, será meio cruel. A asfixia foi um exemplo encontrado pelo legislador como cruel.
O meio insidioso é aquele disfarçado em seu aspecto maléfico. O melhor exemplo é,
de fato, o veneno, depositado às escondidas na bebida da vítima. Repare que o conceito de
veneno é amplo: é qualquer substância que cause dano ao organismo da vítima, seja ela
ordinariamente tóxica ou não. Por exemplo, um torrão de açúcar pode ser fatal para uma
vítima diabética.
Mas repare que o veneno só será qualificador se entrar na regra geral desta
qualificadora, e não pelo simples fato de ser veneno: só será qualificado se for insidioso,
cruel, ou gerar perigo comum. Entenda: se o veneno for ministrado À revelia da vítima, é
insidioso; se for causador de severas dores, é cruel; e se for posto, por exemplo, na caixa
d’água do edifício, gera perigo comum – todos os casos qualificando o crime. Se, ao
contrário, o veneno não causa dor alguma, é de ciência da vítima que o está ingerindo, e sua
aplicação não causa perigo a ninguém mais do que a própria vítima, não há qualificadora.
Vale dizer que basta uma das circunstâncias, e não seu cúmulo, para qualificar o crime:
pode a vítima saber do veneno, quando não será insidioso,por exemplo, mas se as dores
forem violentas, será cruel, e será qualificado.
Meio de execução que gera perigo comum é aquele que acarreta perigo a um
número indeterminado de pessoas, indiscriminadamente. Exemplo é o agente que,
pretendendo matar a vítima, incendia o prédio em que ela reside, periclitando todos os
vizinhos. Da mesma forma, o emprego de explosivo é geralmente causa de perigo comum.
A tortura merece especial atenção. Não há relação entre esta tortura, empregada
como meio qualificador de cometimento do homicídio, com o crime de tortura, da Lei
9.455/97. No homicídio, a tortura objetiva unicamente levar à morte; no crime de tortura, a
finalidade é diversa. Veja o artigo 1° da Lei 9.455/97:
2.1.3.4. Cometido com traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou
torne impossivel a defesa do ofendido
O crime de homicídio, neste caso, é cometido com finalidade além da própria morte
da vítima. Não deixam, estas finalidades, de ser motivos torpes, mas há o enquadramento
específico neste artigo.
A primeira finalidade especial é assegurar a execução de crime que ainda está por
acontecer, ou seja, é o cometimento do crime para garantir que o outro crime, futuro, possa
ser praticado. A doutrina diz que há conexão teleológica entre o homicídio e o crime que
está no porvir, na forma do artigo 76, II, do CPP, inserto no termo “facilitar”:
A parte final do § 4° do artigo 121 fala que se a vítima do homicídio for menor de
quatorze anos ou maior de sessenta, a pena se aumenta de um terço. Na data do aniversário,
porém, a majorante não se aplica, porque a leitura da agravante deve ser restritiva – e o
legislador não falou em idade “igual ou menor de quatorze anos”, ou “igual ou maior de
sessenta anos”.
O referencial é o dia do aniversário. No dia seguinte, a idade é maior; no anterior, é
menor.
A idade da vítima será aferida no momento da ação, pela mera observância da teoria
da atividade. É no momento do cometimento do delito que se verifica a idade da vítima,
ainda que a morte ocorra posteriormente, com maior idade.
O Estatuto do Idoso não operou qualquer alteração nestas circunstâncias penais, que
permanecem inalteradas.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
“Incêndio
Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o
patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.”
Questão 2
Resposta à Questão 2
“Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código
Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando
ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a
dois terços.”
Para todos, também, incide a qualificadora do meio cruel, pelas pauladas, e por
estarem as vítimas dormindo, indefesas, a qualificadora da impossibilidade de defesa da
vítima – previstas nos incisos III e IV do § 2° do artigo 121.
Incide, igualmente, a motivação torpe, porque se trata de grupo de extermínio.
A vítima que morreu pela infecção ainda é imputável aos agentes, por estar este
risco inserido no desenrolar das consequências do crime.
Duas das vítimas fatais inserem os criminosos no § 4° do artigo 121 do CP,
majorando a pena pela idade.
Questão 3
JOSÉ viveu em concubinato com RAQUEL por quatro anos, sendo que dessa união
nasceram três filhos. Durante o período em que moravam juntos, ele lhe infligia maus
tratos, agredindo-a. Após a separação do casal, JOSÉ reuniu-se com a vítima no antigo
lar, tentando a reconciliação, e, após ouvir de RAQUEL que ele era um "corno" e que os
filhos que ele acreditava serem seus, na verdade, não eram, estrangulou a vítima, com
vontade livre e consciente de matá-la. Isto feito, abriu uma cova rasa na residência e
enterrou-a no local, sendo este coberto com cimento. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação do fato?
b) Tal crime é hediondo? Fundamente.
Resposta à Questão 3
Tema II
Homicídio II. 1) Homicídio culposo: a estrutura típica. O crime culposo majorado. A vítima menor de 14
anos. 2) O perdão judicial. 3) Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.
Notas de Aula5
1. Homicídio culposo
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração
de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre
distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado
neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)”
5
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 20/10/2009.
resultado – ação, somada a nexo causal, é igual ao resultado. Na culpa, o que se passa é a
ação descuidada, somada ao nexo causal, que enseja o resultado.
No crime doloso, o primeiro método de verificação do nexo causal é o processo
hipotético de eliminação, como se sabe: removendo-se a conduta do agente, se o resultado
desaparece, é porque a conduta foi causadora deste. No crime culposo, não se elimina a
ação do agente: se elimina a falta de cuidado. Veja: se o agente vinha dirigindo o veículo a
cento e vinte quilômetros por hora, em via em que o limite é cem, e atropela e mata alguém,
o nexo será determinado não pela hipotética eliminação da ação inteira do agente – dirigir o
veículo –, mas sim pela eliminação do seu descuido, da quebra do dever de cuidado. Assim,
o processo hipotético de eliminação deverá cogitar se este motorista, dirigindo a cem
quilômetros por hora, ou seja, dentro do limite de velocidade exigido como cautela,
deixaria de atropelar a vítima. Se a resposta for positiva, há nexo causal entre sua quebra de
dever de cuidado, ou seja, a superação do limite de velocidade, e o resultado. Se a resposta
for negativa – ainda que viesse a cem por hora a vítima seria atropelada –, não há nexo
entre o descuido e a morte, não podendo o agente ser responsabilizado por este resultado.
Destarte, vê-se que no crime culposo é o descuido que é vedado, e não a ação em si.
É a quebra do dever de cautela que, se causar o resultado, faz o agente imputável.
Revejamos os §§ 3° e 4° do artigo 121 do CP:
“(...)
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4° No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime
resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente
deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências
do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de
14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
(...)”
A doutrina entende desproporcional esta pena. Mesmo que ausente dolo de acabar
com a vida humana, a reprimenda àquele que o faz por inobservar dever de cuidado é muito
branda.
Quando a culpa causadora da morte for resultado de inobservância de regra técnica
de profissão, arte ou ofício, a pena será aumentada de um terço, como diz o § 4°, supra.
Trata-se do reconhecimento de uma maior gravidade no descumprimento do dever de
cuidado, uma maior intensidade na culpa, por assim dizer. Note que este dispositivo não
significa imperícia: imperito é aquele que não domina a técnica quando deveria dominá-la.
No caso, o agente domina a técnica, mas deixa de observá-la por descuido.
Também há o aumento se o agente deixar de prestar imediato socorro à vítima, ou
não procurar diminuir as conseqüências do seu ato. A omissão, neste consequente, deve ser
dolosa, não podendo o agente ter a pena majorada se deixou de prestar socorro porque
sequer percebeu que havia causado o dano. Cogitar-se-ia se não seria caso de aplicação do
artigo 13, § 2°, “c”, do CP, fazendo o agente responder pela omissão a título de dolo, ou
seja, o homicídio seria doloso por omissão:
“Relação de causalidade(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
O artigo supra não se aplica, à omissão dolosa no crime culposo, pela simples
observância da regra da especialidade: a norma do artigo 121, § 4°, do CP, é especial em
relação à do artigo 13. Não houvesse a previsão do artigo 121, a atitude da omissão do
socorro dolosa no homicídio culposo seria homicídio doloso, porque o agente se tornatria
garantidor da vítima.
Há uma outra polêmica: se a vítima teve morte instantânea, o agente que se omite
em socorrê-la incidirá na majorante? Há duas correntes sobre o tema: a primeira, mais
coerente, entende que a pena não poderá ser aumentada, porque o artigo 17 do CP esclarece
que é preciso que haja o bem jurídico presente para que haja qualquer repercussão penal, ou
o crime é impossível: se a vítima estava morta, não há como se majorar o crime porque se
omitiu, o agente, na proteção da vida – pois vida não havia.
Dispõe o STF que não cabe ao réu decidir sobre a prestação do socorro, devendo
cumprir à risca a determinação legal para que o faça, mesmo porque há casos em que a
morte não está evidente.
Poder-se-ia, aqui, trabalhar ainda com uma regra de interpretação autêntica, dada
pelo legislador, na leitura do artigo 304 do CTB:
Ganha reforço, ali, a vertente do STF, porque o legislador deixou claro que o
socorro é sempre devido. O legislador exige atenção ao dever moral de solidariedade.
Apesar da força destes argumentos, é difícil se entender que seja superada a desnecessidade
de socorro a um cadáver que teve morte instantânea, pois a lógica do crime impossível é
inegável.
Veja que o socorro exigido é formal, e não eficaz: a lei não exige que o socorro
tenha sucesso, salvando a vítima; exige apenas que o agente não se omita. O artigo 302 do
CTB, já transcrito, também conta com esta agravante.
Pelo ensejo, vale comentar brevemente sobre este artigo 304 do CTB, supra: trata-se
de hipótese peculiar, em que o condutor do veículo, que se envolveu no acidente sem
qualquer responsabilidade, deve ser responsabilizado pela omissão dolosa no socorro à
vítima. O terceiro, completamente alheio ao acidente, que se omitir, também tem
responsabilidade criminal, mas na forma do artigo 135 do CP:
“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”
O § 4° do artigo 121 do CP ainda fala que há aumento da pena se o agente fugir para
evitar sua prisão em flagrante. Esta posição legislativa é criticável, porque em um sistema
em que não se obriga o agente a produzir prova contra si mesmo, estaria havendo aqui a
tipificação da fuga. Está, o dispositivo, exigindo que o agente colabore com a persecução
penal de si mesmo. A mesma crítica se repete, com maior afinco, no artigo 305 do CTB
(pois ali se está tratando de responsabilidade civil):
“(...)
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se
as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)”
É mais razoável a tese do STJ, porque se a sentença não impõe pena, não há
exercício de jus puniendi, não há como se falar em condenação.
De qualquer forma, o perdão judicial é uma causa de extinção de punibilidade
realmente sui generis, porque é a única que não impede a análise do mérito pelo julgador.
Nos casos em que o perdão judicial é flagrante, o MP sequer denuncia, em regra,
por carência de justa causa. Mesmo se se entender que a sentença será condenatória, ainda
assim falta justa causa ao MP, porque o jus puniendi estará obstado de ser exercido.
Tampouco a busca do título executivo para indenizabilidade da vítima justifica a
propositura da ação, neste caso, porque o processo penal não se presta a tanto – este é um
efeito da condenação, e não o objetivo da persecução penal.
Este § 5° se aplica ao crime de homicídio culposo de trânsito, segundo o STJ, mas a
questão chegou a levantar polêmica. Veja: o CTB previa expressamente o perdão judicial
no artigo 300, mas este dispositivo foi vetado. Se assim ocorreu, entendeu-se que o
legislador não queria que o homicídio culposo de trânsito pudesse receber o perdão judicial.
Ocorre que, nas razões do veto, o que o motivou não foi esta vontade em vedar o perdão,
mas sim a má redação do dispositivo. Veja a redação original e as razões do veto:
“Art. 300. Nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa, o juiz
poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem,
exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou
afim em linha reta, do condutor do veiculo."
Razões do veto:
‘O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser
vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo
129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente.’”
Está claro que a restrição objetiva do artigo era absolutamente estúpida, pelo que o
veto foi ótima providência, e a intenção foi justamente fazer aplicável o perdão do CP ao
CTB, o que fica autorizado pelos artigos 291 do CTB e 12 do CP:
“Perdão judicial
Art. 120 - A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para
efeitos de reincidência. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
CAIO resolveu limpar sua arma de fogo no horário de seu seriado preferido da
televisão. Distraído com a programação televisiva, não prestou a devida atenção no
manejo da arma e acabou efetuando um disparo de arma de fogo, que atingiu seu filho de
13 anos, que com ele assistia ao programa, matando-o. Assustado, embora o filho ainda
estivesse com vida, resolveu não socorrê-lo, porque não gostava de ver sangue. Pergunta-
se:
a) Qual o crime praticado por CAIO?
b) E se ele não tivesse percebido que tinha atingido o filho, mas tivesse suposto que
um cachorro é que fora atingido, alteraria a capitulação?
c) E se o projétil tivesse atingido um estranho que andava naquela rua, matando-o
e, além disso, tivesse ricocheteado em tal estranho e viesse a atingir a perna de
CAIO?
d) E se, além do filho, o mesmo projétil tivesse atingido também o estranho que
passava na rua, matando-o?
Resposta à Questão 2
a) Caio cometeu homicídio culposo, do artigo 121, § 3°, mas com a agravante do §
4°, pela omissão do socorro. O perdão judicial é cabível.
b) Apenas a omissão de socorro será afastada.
c) Haveria apenas homicídio culposo do estranho transeunte. Não caberá perdão
judicial.
d) Haveria dois crimes de homicídio em concurso formal, do filho e do estranho. O
primeiro, comporta perdão judicial; o segundo, não.
Tema III
Notas de Aula6
O artigo 122 do CP intenta reprimir o suicídio, que é mais uma forma de atentado
contra o bem jurídico vida. O suicídio, para o legislador, é um ato ilícito, mas o suicida não
é punido: a pena sobre ele seria absolutamente isenta de suas funções, preventiva ou
repressiva.
Entretanto, o suicídio continua sendo um ato ilícito, e daí surge esta peculiaridade: o
autor do delito – o suicida – não é punível, não é criminalizado, mas os partícipes são.
Trata-se, portanto, de um crime especial em que apenas os partícipes são incriminados.
Suicídio, por óbvio, é a eliminação da própria vida. Nélson Hungria faz uma
diferenciação altamente relevante: suicídio não é só o ato de por fim à própria vida; é a
eliminação da própria vida por quem não quer mais viver.
Esta ressalva é fundamental, porque a ação daquele que termina a própria vida por
outros motivos, que não o puro desvalor pela existência, não é ilícita: a mãe que sacrifica a
própria vida para salvar a do seu filho não comete suicídio. Muito ao contrário, pratica um
ato heróico, exemplar, e não reprimível. Da mesma forma, o soldado que se lança sobre
uma granada para salvar a tropa da explosão. Veja que, nestes casos, aquele que se mata
tem vontade de viver, mas a vontade de salvar outrem é mais forte – daí o heroísmo, e não a
reprovabilidade.
Nestas hipóteses, se alguém se tornar partícipe da ação daquele que vem a se matar
por heroísmo não estará cometendo o crime do artigo supra. Se alguém auxilia a mãe que
quer se matar para salvar o filho não estará cometendo crime, simplesmente porque o ato
desta mãe está longe de ser ilícito.
Não há, ao contrário do que se pode pensar, um direito ao suicídio. Como dito, o
suicídio é um ato ilícito, somente sendo impunível criminalmente o autor. Repercussão da
ilicitude deste ato pode ser vista, por exemplo, no artigo 146, § 3°, II, do CP:
“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
(...)
6
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 20/10/2009.
Passando à análise pontual do artigo 122 do CP, tem-se que o sujeito passivo do
crime deve ser alguém que tem capacidade para discernir. Do contrário, o crime daquele
que induz, instiga ou auxilia será de homicídio. Ao induzir um esquizofrênico, ou uma
criança, a se lançar da janela, convencendo-o de que sabe voar, estará o agente cometendo
homicídio.
O inciso II do parágrafo único do artigo 122 do CP determina aumento de pena se o
suicida for menor. O problema é delimitar com precisão a que menor está se referindo o
legislador. Veja: o critério a ser observado, na configuração deste delito, é a capacidade de
discernimento da vítima, como dito acima. Por isso, o termo menor não se refere à
menoridade pertinente à capacidade civil, somente. A capacidade que se deve auferir é a de
discernimento.
Veja que se não houver qualquer capacidade para discernir, não há o crime deste
artigo 122, como visto – o crime é de homicídio. O conceito de “menor”, para fins de
aumento da pena, é daquele que tem capacidade de discernimento, mas a tem reduzida, em
função da pouca idade.
Buscando elucidação do conceito no sistema penal, tem-se que o Direito Penal
reputa capaz de discernimento aquele menor de dezoito anos, mas maior de quatorze. O
marco mínimo biopsicológico, para o legislador penal, determinante da capacidade de
discernimento, é a idade de quatorze anos. Menor do que isso, interpreta o legislador, não
há qualquer capacidade de discernimento, e o crime será de homicídio.
Esta construção se colhe, por exemplo, do artigo 126, parágrafo único, do CP:
O novel artigo 217-A do CP também aponta a idade de quatorze anos como medida
biopsicológica da capacidade de consentimento:
corrente repete este discurso nos crimes culposos, e lá se justifica com mais vigor, porque o
crime culposo reside, de fato, na inobservância do dever de cuidado. O desvalor do crime
culposo está na conduta descuidada, e o desvalor do resultado é exigido como condição de
punibilidade do agente.
Mas nos crimes culposos, a conduta não é eivada de dolo, por óbvio, e por isso a
condição objetiva é cabível como elemento de punibilidade do agente. No crime em tela, na
indução ao suicídio, o dolo deve estar presente na conduta, sendo incompatível a condição
de punibilidade ser objetiva, e pior, alheia ao tipo, como querem os que adotam esta tese. O
resultado está inserido no tipo, como elementar, condicionando a própria existência. É por
isso que a primeira corrente, de que o resultado é condição de existência do delito, é mais
coerente.
Por toda a lógica, não haveria de se cogitar de tentativa no crime do artigo 122 do
CP, tal como não há tentativa em crimes culposos. Contudo, Bitencourt, isoladamente, vê
possibilidade de tentativa neste crime, mas não na forma do artigo 14, II, do CP: a tentativa
se justifica pela previsão da condicionante não no preceito primário do tipo, mas sim no
secundário. Não é uma posição defensável, porém.
Para os finalistas, se o agente tem o dolo de ver a vítima se matar, está cometendo
este crime. A conduta eivada deste dolo, diga-se, deve ter o potencial de produzir o
resultado querido, ou seja, efetivamente levar a vítima ao suicídio. Não basta desejar esta
morte, se a influência para que ela ocorra inexistir – a conduta é atípica, se assim o for.
Dolo é querer o resultado, e saber da sua possível aquisição, sendo que querer precisa ter o
condão de causar o resultado – o mero desejo inerte não revela o elemento volitivo do dolo.
Para o funcionalismo, aplicando-se a imputação objetiva, nenhuma participação no
suicídio, mesmo dolosa, revela crime. Na teoria da imputação objetiva, não existe este
crime, ao seguinte argumento: cada um reponde pela auto-colocação de seus bens jurídicos
em risco, ou seja, sendo o agente capaz, ele responde por qualquer atentado que tenha
praticado contra sua própria vida.
No Brasil, o suicídio é um ato ilícito em si, e por isso a participação nele tem
relevância penal, apenas por eleição legislativa – a instigação ao suicídio, aqui, é conduta
que leva alguém a se colocar em situação de perigo juridicamente desaprovada. Não o
fosse, a aplicação da teoria da imputação objetiva poderia, de fato, tornar atípica qualquer
conduta auxiliar do suicídio.
2. Infanticídio
“Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o
parto ou logo após:
Este raciocínio se aplica, inclusive, ao filho adotivo, ante a plena equiparação deste
ao filho próprio.
Como já se pôde depreender, o infanticídio baseia-se em critério fisiopsíquico. Nos
seus primórdios, porém, existia também o infanticídio honoris causa, fundamentado na
intenção da mãe em ocultar desonra própria decorrente do parto. Desde 1940, a ocultação
de desonra própria só é relevante na configuração do crime de abandono de recém nascido,
do artigo 134 supra.
O infanticídio é mais brandamente punido do que o homicídio porque revela uma
clara redução da capacidade de discernimento do agente ativo, aquele que mata. Esta
redução de capacidade é considerada fundamento do infanticídio pela doutrina, quando não
seja redução tão drástica que torne a agente semi-imputável ou mesmo inimputável.
Se a perícia deixar claro que a mãe estava com redução da capacidade de
discernimento tão severa que, além de incidir no crime de infanticídio, e não homicídio,
incida também no artigo 26, parágrafo único, do CP:
“Inimputáveis
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.(Redação dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984)”
Se, mais do que isso, a perturbação for tão severa que leve a mãe à
inimputabilidade, o caput do artigo 26, supra, será aplicável – a mãe merecerá medida de
segurança, e não pena.
Frederico Marques não concorda com esta tese, porque entende que seria um bis in
idem benéfico, tão inadmissível quanto o maléfico: pela mesma circunstância – redução da
capacidade –, a mãe seria beneficiada duas vezes, ao deixar de ser capitulada no homicídio,
passando ao infanticídio, e ao receber as benesses do artigo 26 do CP. É isolado, porém,
porque a doutrina rechaça esta tese ao argumento de que há gradação na perda do
discernimento: a que leva ao infanticídio é de um patamar padrão, pericialmente
constatado, e se este patamar for superado, tornando-a absoluta ou relativamente incapaz de
discernir, merecerá a aplicação do artigo 26.
O terceiro que auxilia a mãe a cometer o infanticídio também está incurso no crime
de infanticídio, porque as condições e circunstâncias pessoais da mãe, que preenchem este
tipo, estão todas na parte elementar, e por isso se comunicam. Veja o artigo 30 do CP:
“Circunstâncias incomunicáveis
Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,
salvo quando elementares do crime. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)”
Destarte, estariam ambos incidentes no homicídio, mas como a mãe quis participar
de crime menos grave – infanticídio –, ser-lhe-á aplicada a pena deste. É pouco técnica, esta
solução, porque em verdade a mãe sabia que participava de homicídio, não sendo caso de
aplicação deste dispositivo supra. Parece ser a tese mais coerente, apesar de seus defeitos7.
Luis Régis Prado, por sua vez, mantém a capitulação de ambos no homicídio, mas
determina a aplicação do § 1° do artigo 29, supra, à mãe: entende que sua participação foi
de menor importância. É tese inacatável, porque o crime só existiu por sua instigação.
Casos Concretos
Questão 1
ÍRIS, filha de um casal de empregados domésticos, ainda menor com a idade de 14 anos,
vindo a engravidá-la e a viver maritalmente com a moça. Desde o início a convivência foi
conturbada, pois o acusado submetia a jovem às mais infamantes humilhações, inclusive
espancamentos em via pública e outras agressões injustas e caprichosas, muitas vezes na
presença dos filhos, que na data do fato já eram três. As sevícias eram quase diárias por
parte do sádico companheiro de ÍRIS, de modo que o mundo foi perdendo o sentido para a
pobre menina que, diante da desgraçada vida que levava, optou pelo auto-extermínio.No
interrogatório, o acusado admite que efetivamente tornou a vida da vítima um martírio e
que, em várias ocasiões, ÍRIS tentou deixá-lo, voltando a residir com os pais. Porém
TONY, com sua força de persuasão sobre a humilde família e pessoa da vítima, a fazia
retornar para casa. Asseverou em seguida o réu que, de fato, desumana e reiteradamente,
infligia maus-tratos excessivos em sua mulher, com o objetivo de mantê-la fiel e de poder
continuar a dominá-la, coisa que, segundo afirmou, "era impossível nos dias de hoje, em
face do comportamento das mulheres modernas".Diante do exposto, o MP denunciou
TONY nos termos acima descritos para uma Vara Criminal do Tribunal do Júri, alegando
que o denunciado, com seu comportamento, assumiu o risco da produção do resultado,
qual seja, o suicídio da menor ÍRIS. O processo tramitou normalmente, chegando na fase
de pronúncia. Se fosse você o Juiz, como decidiria?
Resposta à Questão 1
No Código Penal Militar, o artigo 207, § 2°, prevê esta conduta específica de
provocação indireta ao suicídio como típica, expressamente:
“Art. 207. Instigar ou induzir alguém a suicidar-se, ou prestar-lhe auxílio para que
o faça, vindo o suicídio consumar-se:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Agravação de pena
§ 1º Se o crime é praticado por motivo egoístico, ou a vítima é menor ou tem
diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral, a pena é agravada.
Provocação indireta ao suicídio
2º Com detenção de um a três anos, será punido quem, desumana e reiteradamente,
inflige maus tratos a alguém, sob sua autoridade ou dependência, levando-o, em
razão disso, à prática de suicídio.
Redução de pena
3° Se o suicídio é apenas tentado, e da tentativa resulta lesão grave, a pena é
reduzida de um a dois terços.”
No CP, não existe tal fórmula, porém. O dolo do agente é exigido, mesmo na
modalidade do induzimento indireto, para configurar o delito. In casu, não se pode apontar
que houve dolo do agente, sequer na modalidade eventual, de levar a vítima ao suicídio. Por
isso, não pode ser imputado no artigo 122 do CP.
Veja o HC 72.049, do STF:
Questão 2
SOLON, na sala do seu apartamento, ouve, mais uma vez de ANA, sua mulher, que
se encontrava grávida, um propósito suicida. Descrente ao que ouvira, SOLON ausenta-se
do apartamento, do que se aproveita ANA, uma vez só, para atirar-se pela janela. Na
queda, vem a atingir com o próprio corpo um transeunte, MATIAS, que morre em
conseqüência do choque, enquanto ANA sobrevive, mas sofre lesões que dão origem a um
aborto. Analise penalmente as condutas de SOLON e ANA. RESPOSTA OBJETIVAMENTE
JUSTIFICADA.
Resposta à Questão 2
Sólon não cometeu crime algum, pois se não acreditava no suicídio de sua mulher,
não estava, esta atitude, em sua esfera de previsão e consciência, não incidindo no
homicídio por omissão como garantidor, tampouco no artigo 122 do CP, porque não
induziu, instigou ou auxiliou o ato, sequer indiretamente.
Ana, porém, responderá pela morte do transeunte Matias, a título de culpa, se as
circunstâncias demonstrarem que era previsível que houvesse alguém passando sob sua
janela (o que não ocorre se ficar demonstrado que Ana residia em local bastante ermo e
isolado). E responde também pelo aborto doloso, em dolo direto de segundo grau (quando o
resultado seria consequência necessária de seu ato) ou, no mínimo, eventual (assumindo o
severo risco de o aborto acontecer).
Questão 3
outro filho seu, menor, JOSUÉ, com dois anos de idade, ainda experimentando uma
condição depressiva pós-parto e aproveitando-se da desatenção de outras pessoas, veio a
matar, por sufocamento, este último, JOSUÉ. Para tanto, foi auxiliada por uma outra
mulher, MARIA, que estava ali internada em circunstâncias análogas.
a) Qual a capitulação correta do fato? Existe limitação precisa quanto à vítima de
um crime de infanticídio ser necessariamente um recém-nascido?
b) O período de tempo decorrido desde o parto até a ação punível impossibilitou a
caracterização do crime de infanticídio? Qual o limite admissível para se
interpretar a expressão "logo após o parto"?
c) Como responderá MARIA por sua participação nos fatos?
d) Admite-se o infanticídio honoris causa?
Resposta à Questão 3
Tema IV
Aborto. 1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito.
Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Espécies de aborto: o auto-aborto, o aborto consensual e o aborto
provocado sem o consentimento da gestante. 3) Aspectos controvertidos. 4) Forma qualificada de aborto:
crime preterintencional. Discussão sobre a admissibilidade da tentativa. 5) Concurso de crimes. 6) Pena e
ação penal.
Notas de Aula8
8
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“Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.”
O crime é plurissubsistente, e por isso admite tentativa. O crime ocorre, por óbvio,
no curso da gravidez, pois só neste ínterim há vida intrauterina. Após o rompimento da
bolsa, para a maior doutrina, como visto, tem início a vida extrauterina, e a tipificação do
aborto, em qualquer ataque posterior a este momento, fica impossível.
Se, na prática do aborto, o feto nasce e vem a morrer fora do útero materno em
decorrência da intentada abortiva, o crime ainda é de aborto. O bem jurídico atacado pelo
agente foi a vida intrauterina, e a morte extemporânea não desconfigura o crime. Ao
contrário, se a morte do feto nascido ocorrer por motivo completamente desconexo ao
emprego do meio abortivo – causa superveniente absolutamente independente –, o crime é
de aborto tentado.
Quando o agente ataca mulher grávida, com a intenção de causar nela lesões
corporais, e acaba por causar aborto, a configuração do crime vai variar de acordo com o
dolo do agente e a previsibilidade deste resultado. Se o agressor não sabia da gravidez, nem
tinha condições de dela saber, responderá apenas pelas lesões corporais intentadas. Se sabia
da gravidez, mas não desejava o aborto, nem assumiu o resultado de produzi-lo, cometerá
apenas a lesão corporal qualificada pelo resultado aborto culposo. Se sabia da gravidez e
desejava o aborto e a lesão, é claro que se trata de lesão corporal e aborto em concurso
formal impróprio, ou imperfeito.
O agente que mata a gestante, que sabe grávida, querendo causar-lhe a morte e o
aborto, estará em concurso formal impróprio entre homicídio e aborto. Da mesma forma,
estará em concurso se mata a gestante, mesmo sem querer o aborto, mas sabendo da
gravidez: está em dolo direto de segundo grau quanto ao aborto, porque é consequência
necessária do homicídio da gestante9. Se mata a gestante sem saber e sem poder saber da
gravidez, responde apenas pelo homicídio.
O agente que quer apenas causar aborto, e para tanto se vale de lesões corporais
contra a mãe – chutes na barriga, por exemplo –, responde apenas pelo aborto, tentado ou
consumado, pois o meio de cometimento do crime, as lesões, resta absorvido.
Quanto à questão do feto anencefálico, esta já foi bastante dissecada no estudo do
homicídio privilegiado, para o qual se remete. Contudo, cabe aqui retratar apenas o que foi
pedido na petição inicial da ADPF 54, ação direta em que a permissão do aborto de
anencefálicos é o objetivo: A petição inicial contém o seguinte requerimento principal:
9
Se, morrendo a mãe, o produto for expelido e não morrer, o aborto será tentado, pois não se ilidiu o dolo
direto de segundo grau.
O “crime de aborto” pode ser tido por gênero, havendo três modalidades típicas, que
serão abordadas de forma apartada. A estrutura das três é a mesma, variando apenas quanto
à titularidade do pólo ativo.
Neste tipo, o sujeito ativo é somente a gestante: trata-se de crime de mão própria,
comportando participação, mas não coautoria. A gestante pode incidir neste crime se ela
mesma executa o meio abortivo escolhido – toma o cytotec, por exemplo –, ou se permite
que outra pessoa execute nela o meio abortivo – busca uma clínica para que um terceiro
proceda à curetagem, por exemplo.
Note que quando se tratar de aborto consentido, em que o terceiro provoca a morte
do produto da concepção, ocorre uma exceção à teoria monista da imputação: aquele que
pratica o aborto consentido pela gestante não se enquadra neste tipo penal, mas sim no
artigo 126 do CP, que será visto adiante. É uma das raras exceções dualistas no nosso
sistema penal.
Se o agente externo pratica a conduta de execução do aborto, incorre no crime do
artigo 126, a ser abordado; se auxilia a gestante a executar o crime – fornecendo-lhe o
medicamento para que ela ingira e execute ao aborto, por exemplo – será partícipe no
autoaborto, incidindo no artigo 124, supra. Da mesma forma ocorre com o médico que
receita o medicamento abortivo: é partícipe.
O agente que colabora com o executor do aborto consentido pela gestante não estará
incurso como partícipe do artigo 124: ele é partícipe do crime cometido pelo terceiro, que,
como visto, é capitulado no artigo 126 do CP, que será visto adiante.
Questão interessante figurou em concurso público para a Defensoria Pública do Rio
de Janeiro, há algum tempo: uma instituição pró-aborto holandesa, pondo em prática sua
defesa desta atividade, enviava um navio ao território brasileiro para captar mulheres
grávidas que desejassem abortar, e saia com elas embarcadas para o alto mar, além do mar
territorial brasileiro, quando então realizava o aborto em todas elas. Tratadas, o barco
privado holandês retornava ao Brasil e as mulheres desembarcavam. Há crime?
Ocorre que, no caso, a Holanda não criminaliza o aborto, e por isso a condição
expressa na alínea “b” do § 2° não está preenchida – as mulheres não podem ser punidas.
Veja que o embarque das mulheres em tal barco, com tal finalidade, não pode sequer
ser considerado início da execução de aborto consentido, porque a ligação deste ato com a
consumação é muito remota. O embarque é ato preparatório, e ainda assim é remoto.
Outro caso: a gestante percebe que está sofrendo um aborto espontâneo, e nada faz
para evitar que este ocorra, está cometendo algum crime? Esta gestante é garantidora da
vida intrauterina que carrega, e sua omissão é relevante, incidindo portanto no crime do
artigo 124 do CP por omissão. É claro que, para tanto, a omissão deve ser relevante, porque
se ficar claro que ainda que tomasse todas as providências a seu alcance a morte do produto
seria inevitável, não responderá.
Entenda: o nexo causal, nos crimes omissivos impróprios, é normativo,
demonstrando-se por meio do processo hipotético de acréscimo do comportamento exigido.
Se, mesmo que a mãe agisse, o aborto fosse ocorrer, sua omissão não é causa. Ao contrário,
se acrescida a atuação que dela fosse esperável em tentar evitar o aborto, restar claro que
muito provavelmente este seria evitado (e fala-se em probabilidade, apenas, porque a
certeza é impossível), a sua omissão é causa do aborto, devendo por ela responder.
Sujeito passivo deste crime é o produto da concepção, que é quem detém o bem
jurídico protegido, a vida intrauterina. A gestante, aqui, é sujeito ativo do crime, e não
vítima. E veja que a questão de ser o produto gestacional pessoa ou não, para fins de
Esta é a forma mais grave de aborto. Trata-se de crime comum, podendo estar no
pólo ativo qualquer pessoa, menos a própria gestante. No pólo passivo, figuram o produto
da concepção e a gestante, que não consentiu na interrupção da gravidez que ela carregava.
Como se antecipou, este artigo, coligado ao artigo 124 do CP, representa uma
quebra da teoria monista. O legislador, por política criminal, entendeu que a conduta do
agente que realiza o aborto com o consentimento da gestante deve figurar em tipo alheio ao
daquela, e receber pena maior, porque entendeu que sua conduta é mais reprovável do que a
da própria gestante.
O pólo ativo deste delito é comum, podendo qualquer pessoa praticar o crime. O
pólo passivo, aqui, é ocupado apenas pelo produto da concepção, eis que a gestante incorre
no artigo 124, como agente ativa, e não vítima.
Se a mulher que não tem capacidade para consentir no aborto, ou se de qualquer
forma o seu consentimento for viciado, o parágrafo único do artigo supra encaminha à
aplicação da pena do artigo 125 do CP, que se refere ao aborto praticado sem consentimento
da gestante. Esta previsão é um tanto estranha, sendo mesmo dispensável, porque o agente
que pratica aborto em gestante que não podia consentir, ou cujo consentimento foi viciado,
simplesmente praticou o aborto sem o consentimento desta, e estaria incurso,
originariamente, no artigo 125. Pela previsão deste parágrafo, o agente que assim atua será
capitulado no artigo 126 do CP, mas receberá a pena do artigo 125.
A alienação ou debilidade mental da vítima, para configurar a hipótese do parágrafo
do artigo 126, deve ser tal que elida qualquer validade em sua manifestação de
consentimento.
A grave ameaça e a violência são causas bem óbvias de invalidação de qualquer
consentimento, porque a coação é clara, vis efectiva ou vis compulsiva. A fraude, porém, é
de mais difícil percepção, podendo levar a enganos. Vejamos um exemplo: a mãe consente
no aborto porque o pai da criança conta para ela que seu filho nascerá com síndrome de
down, o que é mentira. Esta circunstância não consiste na fraude a que se refere o artigo: a
fraude que eiva o consentimento da vítima, levando ao reconhecimento legal de que não
houve consentimento, é a que induz aa vítima a crer que o aborto é permitido – e o aborto
do filho com doença mental, chamado aborto eugênico, não é permitido. No exemplo dado,
o pai responde pelo artigo 126, caput, se executa o aborto, ou se participa da execução por
terceiro; ou responde como partícipe do artigo 124, eis que induziu a gestante ao aborto
consentido. A mãe, responde sempre pelo artigo 124 do CP.
Fosse a hipótese diferente, o pai convencendo falsamente a gestante de que seu filho
era fruto de um estupro, e o consentimento dado por esta seria inválido. Neste caso, ela não
responderia por crime algum, e ele incidiria no parágrafo único do artigo 126, respondendo
com a pena do crime de aborto não consentido.
5. Aborto agravado
“Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um
terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer
dessas causas, lhe sobrevém a morte.”
A lesão grave e a morte que agravam o aborto só podem ser culposas: trata-se de
resultado preterdoloso, pois se houver dolo não haverá incidência deste dispositivo, e sim o
concurso com o crime resultado, lesão ou homicídio. Guilherme Nucci, de forma pouco
técnica, defende isoladamente que este resultado pode ser tanto culposo como doloso,
incidindo neste dispositivo de qualquer forma.
Porque o resultado só se imputa a título de culpa, a seguinte situação pode ocorrer: a
gestante que sofre o aborto tem que ficar por quarenta dias de repouso, o que implicaria em
lesão grave, na forma do artigo 129, § 1°, I, do CP:
“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
(...)”
Ocorre que esta incapacidade para atividades habituais não é consequencia danosa
mais grave da lesão causada para o aborto: é consequência normal e correta da cirurgia,
pelo que não é um resultado atribuível ao agente a título de culpa.
Suponha-se que a mulher sofre a prática abortiva por terceiros, em qualquer das
formas; levada ao hospital, com complicações de tais práticas, o feto nasce e sobrevive,
mas a mãe morre. Qual é a capitulação do delito do terceiro?
O delito intentado foi o aborto, mas não se consumou; a morte da mulher foi causa
de aumento, culposa; assim, a capitulação fica sendo o crime de aborto tentado (consentido
ou não), majorado pela morte. Capez, porém, discorda, e entende que deve ser aplicado o
raciocínio da súmula 610 do STF:
Neste diapasão, o aborto restaria consumado se a gestante morre, mesmo que o feto
sobreviva.
E há ainda quem entenda que se trata de tentativa de preterdolo, ou seja, uma
aberração em que se puniria uma suposta tentativa de crime culposo – o que é
absolutamente impreciso, porque a tentativa é de aborto, e não da morte resultante do
aborto.
Outra questão polêmica é a seguinte: suponha-se que o agente auxilia a namorada a
praticar o autoaborto – é partícipe do artigo 124 do CP –, mas a namorada vem a morrer por
conta da prática abortiva a que ela própria se submeteu. Ele não se sujeita ao artigo 127 do
CP, porque este expressamente se destina aos artigos 126 e 125 do CP, mas haveria alguma
repercussão desta morte na responsabilização do partícipe?
Há duas posições na doutrina. A primeira entende que a conduta da gestante se trata
de auto colocação em perigo, e que por isso o partícipe não é por ela responsabilizado –
responde somente pelo aborto. Outra corrente, de Hungria e grande parte da doutrina,
entende que se trata de homicídio culposo, além da participação no autoaborto.
Entenda: para esta perspectiva clássica, aquele que de qualquer forma colabora para
que a pessoa se coloque em uma situação de risco juridicamente proibida deve responder
pelo resultado de tal colocação em risco. È similar ao exemplo em que um agente instiga
outro a dirigir com imprudência, e um acidente ocorre, vindo apenas o instigado a morrer:
para a corrente clássica, este perigo causador da morte foi decorrente da instigação, e há o
crime; para a corrente mais moderna, trata-se de auto exposição da vítima, o que afastaria a
responsabilidade do incitador.
Esta dinâmica diz respeito ao concurso de pessoas em crimes culposos, que é
questão bastante polêmica. Se duas pessoas, de forma imprudente, colaboram para um
resultado danoso, há que se cogitar se há a participação de uma na inobservância do dever
de cuidado da outra, ou se há dois crimes isolados, eis que cada um inobservou o próprio
dever de cuidado – inexistindo, neste caso, concurso. Há inúmeras discussões sobre o tema,
mas a corrente que entende inexistente o concurso, havendo crimes separados, é forte,
justamente porque cada um tinha seu dever de cuidado a ser observado, e não o fez; e se o
crime é culposo, é impossível se falar em liame subjetivo.
No caso do aborto, aquele que instigou a gestante a praticar o autoaborto está
fomentando a colocação da agente em risco proibido, e sua ação é imprudente; a da
gestante também é imprudente; sendo assim, ambos incidiram na conduta culposa em
relação à morte, e resta o crime de homicídio ao instigador supérstite.
Em que pese esta corrente clássica, da qual compartilha Hungria, ser bem coerente,
a novel corrente da imputação objetiva ilide a responsabilidade daquele que instiga alguém
a colocar a si próprio em situação de perigo. A auto colocação em risco é uma conduta que
somente a esta pessoa que assim se coloca é imputável, se se tratar de pessoa capaz. A
discussão ainda é ferrenha, mas a teoria da imputação objetiva, ganhando força, tende a
fazer prevalecer esta corrente moderna.
6. Abortamentos legais
É causa própria porque não se pune o aborto praticado por médico, somente, como
se vê no caput do artigo; e é excludente de ilicitude especial porque encontra-se na parte
especial do código penal, dedicada apenas a um delito ou grupo de delitos. Vejamos cada
um dos casos eleitos pelo legislador.
não querer comunicar o fato à polícia, porque não deseja se expor a mais traumas do que já
foi exposta. Por isso, qualquer meio que convença o médico de que houve o estupro é
válido, e justifica o aborto.
O consentimento da gestante é exigência legal para a realização deste aborto. Se ela
não o quiser, não se o autoriza. Quando a gestante for incapaz, seu representante pode
suprir seu consentimento, mas repare numa diferença fundamental: o representante supre o
consentimento da vítima, e não a sua negativa. Entenda: se a vítima, incapaz, manifestar
que não deseja o aborto, não pode o representante contrariar sua vontade, ao argumento de
que está suprindo seu consentimento. Apenas quando a gestante incapaz desejar o aborto
sentimental é que o representante terá voz; se ela não o quiser, o representante não pode
contrapor sua vontade.
Casos Concretos
Questão 1
EFIRE, moradora de uma ilha isolada, solteira, constatando que está grávida de
seu namorado LIONARDO, dispõe-se a praticar abortamento, com receio da reação
familiar à gravidez. Pede a TÉTHYS que o provoque, o que é feito.
a) Que tipo ou tipos penais foram realizados por EFIRE e TÉTHYS?A solução se
alteraria, caso:
b) EFIRE praticasse os atos de abortamento, com o auxílio de TÉTHYS?
c) EFIRE não pretendesse abortar e LIONARDO, sob pretexto de exame pré-natal
a conduzisse a um consultório, onde o médico ÁCTEON, previamente ajustado com
LIONARDO, realizasse as manobras abortivas?
d) LIONARDO convencesse EFIRE de que havia consultado um oráculo e a
criança nasceria com grave defeito físico e somente por esta razão ela consentisse
no abortamento praticado por ÁCTEON, mediante pagamento feito por
LIONARDO?
e) Na hipótese anterior, ÁCTEON utilizasse material infectado e provocasse a
morte de EFIRE?
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Questão 3
ANTÔNIO, médico, querendo dar fim a seu casamento para viver com a amante,
decide matar JOANA, sua esposa, que está grávida. Sabedor de que JOANA é portadora
de grave problema de saúde e se encontra em estado de depressão, convence-a à prática
do aborto, que sabe ser fatal. Pede então a um amigo de profissão, JONAS, que realize a
intervenção médica de interrupção da gravidez, da qual resulta a morte da gestante.
Analise penalmente as condutas de ANTÔNIO E JONAS. RESPOSTA OBJETIVAMENTE
JUSTIFICADA.
Resposta à Questão 3
Antônio responde por homicídio doloso, e responde também pelo aborto, no artigo
124, ante a natureza de sua participação, que foi indução ao aborto consentido. Até mesmo
para a corrente que adota a imputação objetiva, porque se instiga a mulher a se colocar em
uma situação de perigo, detendo uma informação fundamental que a pessoa que se coloca
em perigo não detém – o perigo de vida, no caso –, a auto colocação em perigo não é tese
que elida sua responsabilidade, porque se a gestante soubesse de todos os detalhes, não se
colocaria em tal risco. Assim, a auto colocação em risco foi eivada por desconhecimento do
real perigo.
Jonas responde da mesma forma, quanto ao homicídio, se for sabedor das condições
preexistentes da vítima; se não sabe, está isento deste crime. De qualquer forma, porém,
responde pelo aborto consentido, incidindo no artigo 126 do CP.
Tema V
Lesão Corporal. 1) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Tipicidade objetiva e subjetiva da lesão corporal simples e da lesão corporal grave e gravíssima. 2) O
problema da tentativa na lesão corporal. 3) Lesão corporal seguida de morte: tipicidade objetiva e subjetiva.
4) A participação no crime preterdoloso. O excesso nos meios e o excesso nos fins. 5) Hipóteses de
diminuição e substituição de pena (artigo 129, §§ 4º e 5º do Código Penal).6) Aspectos controvertidos .7)
Concurso de crimes. 8) Pena e ação penal.
Notas de Aula10
1. Lesão corporal
“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
10
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 21/10/2009.
“Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
(...)
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à
violência.”
O conceito de lesão leve é extraído por exclusão: é leve a lesão que não for
tipificada como mais grave, enquadrada nos §§ 1°, 2° ou 3° do artigo 129 do CP.
O bem jurídico protegido na lesão pode ser considerado relativamente disponível,
como diz parte da doutrina, porque na lesão leve, mas nunca na grave, se considera que o
consentimento do seu titular como excludente da tipicidade. Não se preenche o tipo, sequer
formalmente, nas atividades que violam leve e consentidamente a integridade física do
agente, porque não se preenche o verbo “ofender”, elementar do tipo. O furo da orelha para
inserção do brinco requerido pela pessoa que se tem perfurada, por exemplo, simplesmente
não é ofensa ao bem jurídico.
Repare que, tecnicamente, não se trata sequer de disponibilidade do bem jurídico
para a lesão leve. Como não há ofensa, não precisou haver disposição da integridade para
que aquela atividade fosse atípica: ela é atípica por não haver ofensa ao bem jurídico, na
essência, e não porque o consentimento excluiu a tipicidade.
E há ainda a assertiva que o bem jurídico só será disponível, mesmo na lesão leve,
se não se ofender, com esta disposição, a moral e os costumes, o que só torna a defesa da
disponibilidade ainda mais estranha, ante a atecnia desta separação do que é ou não
disponível. Como diz Zaffaroni, não cabe ao Direito Penal traçar conceitos de moral e bons
costumes. É por isso que a lesão leve consentida, praticada no ato sexual, não pode ser
considerada típica11 (se praticada em público, pode até levar a outra capitulação, como ato
obsceno, mas em nada pertinente à lesão).
A lesão leve é um crime de dano, material, que se consuma na efetiva causação da
lesão. Por ser plurissubsistente, admite a tentativa, em nada se confundindo, a lesão leve
tentada, com a contravenção das vias de fato, porque o dolo difere, como dito.
É um crime de forma livre, podendo ser executado com qualquer meio hábil.
Arrancar os cabelos ou as unhas pode ou não configurar lesão, a depender do caso
concreto, por conta da aplicação do princípio da insignificância, que é perfeitamente
cabível. A análise é casuística.
1.2. Lesão corporal qualificada
É enfermidade incurável aquele resultado crônico de uma lesão. Por exemplo, uma
osteopatia, ou um reumatismo, que resulte da lesão e não tenha cura. É considerada
incurável a enfermidade que não tem tratamento curativo consolidado na doutrina médica
(não podendo ser considerada cura aquela terapia não comprovada cientificamente, por
métodos experimentais).
A aids é um caso especial, assim como qualquer enfermidade que é fatal e
incurável: o cometimento da lesão corporal que resulta em contaminação por uma destas
enfermidades letais, incuráveis, revela dolo de matar, e por isso o resultado morte é doloso,
sendo ele consumado ou tentado – há homicídio, e não lesão qualificada.
A perda do hímen é lesão qualificada por perda da função, para a melhor corrente.
Mirabete e Hungria entendem que se trata de lesão simples, porque o hímen não teria
função; contudo, sua função existe: serve para a proteção do canal vaginal da mulher
virgem, que não tem a flora deste canal desenvolvida, estando mais suscetível a infecções,
se o hímen for rompido13.
1.2.2.5. Aborto
13
Há tese estranha que fala em função social do hímen, porque atribui a virgindade à mulher. É tese
inacatável.
Como o aborto já foi exaustivamente abordado, basta aqui reiterar a assertiva de que
o aborto que qualifica a lesão é sempre culposo, pois se trata de resultado necessariamente
preterdoloso, eis que se for doloso o crime é o próprio aborto.
O § 3° do artigo 129 dispõe que se da lesão resultou morte, sem dolo direto ou dolo
eventual na aquisição deste resultado, se preenche esta qualificadora. É o resultado morte,
atribuído ao agente a título de culpa, como consequência de uma lesão dolosa. Havendo
dolo, o crime é o homicídio.
Para a qualificadora ser incidente, a morte tem que decorrer da lesão: a lesão dolosa
evolui para a morte culposa. Se a conduta que leva à morte culposa não for a prática de uma
lesão dolosa, o crime que se preenche é o homicídio culposos. Veja: se o agente, irritado
com a vítima, dá-lhe um empurrão com o único intento de tirá-la de sua frente (e não causar
lesão alguma, o que configura vias de fato), mas deste empurrão a vítima escorrega, cai e
bate a cabeça fatalmente, não se trata de lesão corporal dolosa seguida de morte culposa,
porque lesão nunca houve: trata-se de homicídio culposo.
É claro que a morte só será imputável se houver culpa, ou seja, se se apresentar a
quebra de dever de cuidado com a previsibilidade deste resultado morte. Do contrário, se a
morte era imprevisível, não se pode imputar o agente, sob pena de configurar
responsabilização penal objetiva. O mesmo raciocínio se dá quando se verifica que causas
externas à lesão levaram à morte, como a falta de cuidado da vítima com sua própria vida:
um arranhão, lesão leve, que evolua para quadro fatal de septicemia por desídia da vítima
em tratar-se não pode fazer o autor da lesão responsável pela morte da vítima. A ampliação
do risco foi causada pela própria vítima.
Como qualquer crime preterdoloso, este não admite tentativa, eis que o resultado
culposo não pode ser tentado, por essência.
O ferimento culposo também pode resultar em morte culposa, mas neste caso não se
fala em lesão corporal culposa seguida de morte culposa: se trata puramente de homicídio
culposo, pois é claro que a leitura que deve ser feita é que a quebra do cuidado gerou a
morte, e não que gerou a lesão seguida da morte.
A lesão corporal culposa, prevista no artigo 129, § 6°, do CP, segue a mesma linha
de raciocínio do homicídio culposo, pelo que se remete ao estudo deste delito anteriormente
realizado.
Vale apenas consignar que na lesão culposa, a gravidade dos ferimentos é
irrelevante: se for percebido qualquer resultado gravoso, daqueles arrolados nos §§ 1° e 2°
deste artigo 129, este não tem qualquer efeito sobre a capitulação. A lesão culposa é sempre
tipificada no § 6° do artigo 129, e as consequências do resultado gravoso poderão, no
máximo, repercutir na pena-base do agente.
Se o resultado da lesão culposa for a morte, não se fala em lesão culposa seguida de
morte, como dito: o crime é o homicídio culposo, se a lesão causada normalmente acarretar
tais resultados. Por exemplo, um tiro culposo, disparado ao limpar a arma: é homicídio
culposo, se a vítima morre, e não lesão corporal culposa. Se sobrevive, é lesão corporal
culposa. Ocorre que se a lesão causada não tenha o resultado morte sequer previsível, não
pode a morte ser imputada ao agente, sequer a título de culpa. Um corte leve no braço da
vítima, não intencional, por exemplo: se esta vem a óbito, por qualquer causa
extraordinária, o crime ainda será o de lesão corporal culposa.
O § 9° do artigo 129 do CP foi inscrito pela Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06. Se a
lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou
com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, trata-se de mais uma qualificadora
autônoma da lesão leve.
Veja que se já se tratar de lesão qualificada, não se aplica a pena prevista no § 9°: se
aplica a pena da lesão qualificada correspondente, aumentada de um terço, na forma do §
10 do mesmo artigo.
O legislador quis, aqui, reprimir a violência no âmbito doméstico e familiar, e não
apenas a violência contra a mulher. Por isso, a vítima, aqui, pode ser qualquer pessoa que se
encontre nas circunstâncias mencionadas no § 9°, e não só a mulher.
O § 11 deste artigo 129 comina ainda mais uma causa de aumento de pena em caso
de lesão corporal praticada no âmbito doméstico e familiar: a pena será aumentada de um
terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência, se esta lesão se der
nas situações de convívio ou parentesco que o § 9° menciona. A deficiência, para ser
considerada, deve ser a efetiva redução da capacidade da vítima.
Veja que o artigo supra reproduz bastante do artigo 129 do CP, mas com as penas
incrementadas, ante a finalidade normalmente espúria do agente que pratica tal crime.
Casos Concretos
Questão 1
Revoltado com o comportamento da cunhada que discutia com sua esposa, CAIO
desfere um chute na barriga da vítima que vem a sofrer uma lesão no local atingido, além
de ter sido obrigada a abortar, sendo certo que o agente desconhecia aquela gravidez.
Denunciado por aborto, a defesa critica aquela capitulação. Assiste-lhe razão?A solução
seria outra se CAIO soubesse que sua cunhada estava grávida?
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Questão 3
Resposta à Questão 3
a) A capitulação não pode levar em conta o resultado morte, porque este não pode
ser imputado à autora a título de culpa: não é previsível que um puxão de
cabelos leve à morte.
b) Não: a legitima defesa não se verifica quando o ânimo é de ataque, mesmo que
este venha a ser praticado por conta de uma provocação prévia da vítima.
c) Sim, justamente porque se torna um elemento motivador do ataque.
d) A legitima defesa tem finalidade especifica de proteger o bem jurídico, além de
prevenir o ataque, porque o atacante sabe que a vítima é amparada pelo
ordenamento em seu ato de repelir a agressão. Não tem a finalidade de servir
como pretexto para uma agressão, porque neste caso o agente deseja agredir, e
não defender-se.
e) Sim: trata-se de causa superveniente absolutamente independente, capaz de ilidir
a responsabilidade dos autores da lesão pelo resultado morte.
f) A objetiva é aquela aferida à luz do homem médio, aquilo que alguns chamam
de consciência paralela no círculo do profano. A subjetiva, por seu turno, é
aquela que se analisa à luz da consciência daquela pessoa em concreto, daquele
indivíduo, particularizadamente. No crime culposo, a previsibilidade objetiva se
situa na tipicidade, eis que o que não é previsível objetivamente não é culpável;
a subjetiva, por seu turno, se situa na culpabilidade, eis que se superada a
objetiva – o homem médio poderia prever o resultado culposo –, a subjetiva é
que dará a nota de reprovabilidade da conduta do agente, naquele momento, e se
a situação tornar imprevisível ao agente, naquele momento, o resultado, exclui-
se a culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.
Zaffaroni, por seu lado, defende que a previsibilidade objetiva
simplesmente não existe: para ele, o conceito de homem médio é inconcebível,
porque se trata de uma abstração calcada em um parâmetro que simplesmente
não existe, e a utilização de um parâmetro de adequação típica que não existe é
uma grave falha no sistema. Sendo assim, só existiria, para ele, a previsibilidade
subjetiva. É tese singular, mas muito coerente, diga-se.
Tema VI
Notas de Aula14
Este capítulo do CP, que trata da periclitação da vida e da saúde, introduz na parte
especial do código o tratamento dos crimes de perigo.
Perigo é a probabilidade real e concreta de dano. Perigo não é apenas algo que se
passa na mente do intérprete, não é algo que se imagina perigoso a um bem jurídico. Não é
subjetivo. O perigo é um dado da realidade, uma situação objetiva, que existe no mundo
dos fatos.
Criar perigo para o bem jurídico é colocá-lo em uma situação transitória de
instabilidade. Assim, é claro que o perigo não é tangível, mas pode ser faticamente
percebido, por análise justamente desta probabilidade objetiva de que aquela situação cause
14
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/10/2009.
A doutrina mais conservadora, inclusive, reputa esta presunção dos perigos abstratos
como absoluta, juris et de jure. É problemático entender que seja uma presunção absoluta,
em qualquer caso, porque se tolhe a defesa irrazoavelmente. Por isso, pode o réu comprovar
que a sua atuação típica não consubstanciou o perigo que a lei presumiu, o que já conta até
mesmo com alguns precedentes, a exemplo da arma desmuniciada: porte de arma sem
munição não expõe a segurança pública a perigo, como já entendeu o STJ, no HC 70.544:
Veja que a causação de dano pressupõe a causação do perigo. Não há dano sem que
haja perigo precedendo-o. Em todo dolo de dano há o de perigo, mas a recíproca não
procede.
Quando o agente, com dolo de perigo, vem a causar o dano, como se configura sua
conduta? A relação entre crimes de dano e de perigo é peculiar, e precisa ser explicada
amiúde. A regra, porém, consubstancia-se em uma frase: os crimes de perigo são
subsidiários aos crimes de dano, quando este dano for mais gravemente punido.
Se o dolo é de perigo, ou seja, o agente não quer o dano, nem aceita a sua
ocorrência como consequência do perigo, o resultado só poderá ser-lhe imputado a título de
culpa. Imagine-se, portanto, que um atirador de facas, sem dolo de lesão ou morte, acaba
acertando a vítima, por sua quebra de dever de cuidado, causando-lhe lesão. Este resultado
danoso, culposo, ser-lhe-á imputável, mas como ficará sua capitulação?
O comportamento do atirador de facas atingiu o mesmo bem jurídico, a integridade
física, de duas formas: ao atirar a faca, colocou-o em perigo; ao acertar a vítima, causou-lhe
dano. A subsidiariedade do perigo, frente ao dano, faz com que em havendo um só bem
jurídico atacado pelo perigo e pelo dano, este último prevaleça, quando for mais
gravemente punido.
No exemplo dado, os delitos em cotejo são o do artigo 132, supra, e o da lesão
corporal culposa, do já visto artigo 129, § 6°, do CP. A pena da lesão culposa é de detenção
de dois meses a um ano. Ora, se a regra é a subsidiariedade do crime de perigo menos
grave, vê-se que, aqui, o crime do artigo 132 do CP é mais grave – sua pena mínima é de
três meses, contra dois do artigo 132. Sendo assim, prevalece, neste caso, o crime de
perigo, pelo sopesar das penas.
A lógica da não absorção do crime de perigo mais grave pelo menos grave é
simples: imagine-se que um outro agente atire a faca com dolo de perigo e erre a vítima –
seu crime é o do artigo 132. O agente que, com mesmo dolo de perigo, acaba por acertar a
vítima, causando lesão, se respondesse pela lesão culposa teria pena menor do que aquele
que ficou só na causação do perigo. A desproporção seria inadmissível. O dano absorvido
pelo perigo, diga-se, será computado como consequência negativa do delito, na pena-base;
o perigo absorvido pelo dano, não, porque este é sempre presente em qualquer crime de
dano.
O tipo subsidiário, portanto, só se afasta para dar lugar a crime primário mais grave.
O mesmo não acontece, por exemplo, na relação de especialidade: o tipo especial se aplica
sempre prioritariamente ao tipo genérico, quer seja ele mais severa ou mais brandamente
punido (como ocorre no homicídio e no infanticídio, ou na lesão comum e a lesão de
trânsito).
Há crimes de perigo em que sequer é necessário este cotejo, porque o legislador já
previu os resultados e os colocou como modalidades preterdolosas qualificadoras do crime,
ou seja, já cogitou do resultado danoso culposo, atribuindo ao crime de perigo doloso a
qualificação.
Vejamos, então, os crimes de perigo à vida e saúde, a começar pelo artigo 130 do
CP.
O agente que atua no caput deste artigo é de perigo, e o seu autor não tem dolo de
dano: ele pretende apenas ter relações sexuais com a vítima, expondo-a ao perigo de
contágio. Veja que o autor não quer causar o dano, qual seja, a transmissão da moléstia, mas
tem dolo de perigo, porque a ocorrência do dano é provável, a sua probabilidade é real e
concreta.
Nelson Hungria e Mirabete defendem que se trata de crime de perigo abstrato,
sendo presumido o risco ao bem jurídico. Rogério Greco, por seu lado, entende que é de
perigo concreto (assim como entende que sejam todos os demais delitos deste capítulo, da
periclitação da vida e da saúde), ao argumento de que a prova de que tenha havido risco de
contágio é fundamental à configuração do crime.
A posição de Greco parece ser a mais acertada, porque há moléstias venéreas em
que a prevenção regular elimina completamente a chance de que o contágio ocorra – o uso
da camisinha, que elide o risco da gonorréia, por exemplo. Sendo assim, a presunção que
haja perigo, característica do crime de perigo abstrato, fica prejudicada. A relação sexual
segura afasta o perigo, em concreto.
O sujeito ativo deste crime é alguém que esteja contaminado com moléstia venérea.
Este elemento normativo deste tipo penal consiste na moléstia que só se transmite por meio
de relações sexuais. A aids não é moléstia venérea, porque mesmo que a transmissão se dê
por meio da relação sexual, ela também se transmite por outros meios, e o conceito, aqui, é
restrito às moléstias que somente por via sexual são transmissíveis (gonorréia, blenorragia,
cancro, etc.). Da mesma forma ocorre com a sífilis, ou qualquer outra moléstia
transmissível sexualmente e também por outros meios.
Veja que se trata de um conceito médico, buscado na doutrina médica, e não em atos
normativos de qualquer natureza, não sendo portanto uma norma penal em branco, mas sim
um tipo penal aberto.
O caput do artigo supra fala, na sua parte final, que o dolo depende da ciência, ou
potencial ciência do agente, de que está contaminado: moléstia de que sabe ou deve saber.
Isto revela, a todo ver, que se pune o crime caso haja dolo direto ou dolo eventual, mas há
quem entenda que a expressão “deve saber” comportaria a punição do agente também a
título de culpa. Não parece ser correto este entendimento, porque a culpa, como é
normativa, deve vir expressamente trazida no tipo, e a expressão “deve saber” não é
suficiente para criar a imputabilidade a título de culpa.
Veja: se o agente apresenta sinais de que tem a doença, deve procurar saber de sua
contaminação ou não; se não procura, não há culpa, e sim dolo eventual de ter a doença e
com isso causar perigo a quem com ele se relacionar sexualmente. Há a assunção do risco
de ter a doença, quando assim se conduzir o agente.
O crime é de forma vinculada: apenas com práticas sexuais, quaisquer que sejam –
atos libidinosos em geral, e não só a conjunção carnal. É claro que deve haver a
potencialidade de transmissão do contágio, para que o meio seja eficaz, ou se trata de crime
impossível, por absoluta impropriedade do meio.
A consumação se dá na prática do ato libidinoso, quando então houve a exposição
ao perigo. Como os atos sexuais, genericamente, são plurissubsistentes, este delito admite
tentativa, se a prática sexual com dolo de perigo for interrompida por força alheia à vontade
do agente.
Se, agindo com dolo de perigo, o autor acaba por contaminar a vítima efetivamente,
responderá por este resultado a título de culpa. Aplica-se a regra da subsidiariedade: o
crime de dano prevalecerá quando for mais gravemente punido do que o de perigo. Assim,
se a moléstia transmitida causar lesão culposa, vê-se que o crime de perigo é mais grave –
pena de três meses a um ano, enquanto a lesão culposa é de dois meses a um ano –, e por
isso prevalece o artigo 130 do CP. E nem se fale sobre a gravidade das lesões: na lesão
culposa, a gravidade é irrelevante.
Se das lesões da moléstia transmitida resulta a morte, é claro que prevalecerá o
dano, ou seja, o § 3° do artigo 129 do CP, porque é muito mais severamente punido do que
o crime de perigo do artigo 130.
Para Nelson Hungria, o consentimento da vítima na relação sexual é absolutamente
indiferente. A saúde e a vida não lhe são disponíveis para poder consentir em sua
exposição.
Este crime é de dano, e seu tratamento é muito similar ao que se disse sobre o § 1°
do artigo anterior, 130 do CP. A diferença, de fato, é que neste crime a moléstia não é
unicamente venérea, e sim qualquer moléstia grave, ou seja, não só aquelas doenças
transmitidas apenas por meio de ato sexual genérico são aqui enquadradas, mas sim
quaisquer atos capazes de produzir o contágio – pelo que é crime de forma livre, ao
contrário do delito do artigo 130 do CP. Veja que o ato sexual pode ser também o meio
empregado aqui, mas a doença deve ser considerada não venérea, ou a tipificação recai no
dispositivo anterior.
O conceito de moléstia grave é elemento normativo do tipo, que vai ser buscado na
doutrina médica, e pode variar de acordo com o momento e espaço. Uma gripe, por
exemplo, que é moléstia branda, poderá, no futuro, ser considerada grave, se sofrer mutação
que assim a configure.
O crime é formal, pois se consuma havendo ou não a contaminação. Se esta ocorre,
tal como se disse na análise do § 1° do artigo anterior, deve ser cotejada a pena de um e de
outro, do dano resultante e do crime em questão, prevalecendo a imputação mais grave.
Há quem enquadre aqui a aids como moléstia grave, mas, como já se disse, o
melhor entendimento é de que a contaminação dolosa desta doença revela ânimo de matar,
animus necandi, ante a severa letalidade desta doença, pelo que seria tipificada tal conduta
como homicídio. O STJ assim também entende, como se vê no HC 9.378:
A vítima que for imune à moléstia que o agente quer transmitir-lhe faz com que o
crime se torne impossível, por impropriedade do objeto.
O sujeito ativo deste crime é a pessoa contaminada. A doença que se quer transmitir
deve ser a própria, que se está contaminado. Ato que vise a transmitir doença alheia
enquadra-se no artigo 129 do CP, na gradação que for relativa ao caso concreto, ou mesmo
no artigo 121, se o ânimo for de matar.
O crime é de perigo direto, concreto, e não abstrato, como o próprio tipo indica. A
função deste artigo 132 do CP é essencialmente preventiva, pois os bens jurídicos que
protege já são protegidos em outros crimes, mas aqui recebem guarida especialmente
preventiva. Não só o atentado contra estes bens é rechaçado: sequer a periclitação destes
bens é tolerada.
O perigo que não se admite é aquele que o ordenamento não tolera, por outras vias.
Por exemplo, a atividade de voar de asa-delta ou saltar de paraquedas é perigosa, mas é
permitida, e por isso não se configura o crime deste artigo aquela exposição ao perigo
permitido.
O consentimento da vítima é irrelevante, como o é nos demais tipos do capítulo em
questão, porque os bens lhe são indisponíveis.
O crime é de forma livre, pois qualquer forma de exposição de um ser humano a
perigo é capaz de preencher a conduta típica.
Uma vez causado o dano pela conduta de exposição ao perigo, o cotejo que se faz é
o mesmo que já foi mencionado nos delitos anteriormente abordados: prevalece a
tipificação mais gravosa. Neste crime, diga-se, esta subsidiariedade condicionada á
gravidade é prevista expressamente no preceito secundário do artigo, como se vê acima.
O artigo 15 do Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/03, traz uma situação
especial de exposição a perigo, que deve ser observada quando o meio utilizado para tal
exposição for arma de fogo:
“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para
Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”
O agente que se comporta como descreve o tipo acima e, por isso, acaba
efetivamente causando lesão a terceiros, tem este resultado inserto na previsão do artigo
303 do mesmo CTB:
O STF e o STJ têm entendido que sempre que esta dinâmica acima ocorrer, o artigo
309 deve ser afastado, restando apenas o enquadramento no artigo 303 do CTB, pois aplica
a subsidiariedade do perigo ao dano, quando este for mais grave. Mas repare no potencial
problema que este entendimento acarreta: o crime do artigo 303 depende de representação
da vítima para ser perseguido; se esta não representar, o MP não poderá ajuizar a ação penal
pública incondicionada em perseguição do crime do artigo 309, porque este se afastou para
dar lugar ao 303. O agente, então, restará impunível.
A solução para esta situação seria simples se se entendesse, como o faz parte da
doutrina, que neste caso há concurso material entre os delitos acima transcritos. Entenda: a
subsidiariedade, para ser constatada, precisa que o titular do bem jurídico seja o mesmo, e
nos crimes acima isto não ocorre. A vítima da lesão é titular de sua integridade física,
protegida pelo artigo 303 do CTB, mas o artigo 309 deste Código não protege apenas o
bem jurídico daquela vítima do perigo causado pelo motorista desabilitado e imprudente:
trata-se de crime de perigo coletivo, bem jurídico titularizado por uma parcela difusa da
sociedade. Por isso, quando se faz a absorção do perigo, neste caso, pelo dano causado a
uma só vítima, se está ignorando o perigo causado a todos os demais membros da
sociedade, fazendo-o igualmente absorvido pelo dano causado a um só membro da
coletividade.
Por isso, a lógica da absorção do perigo pelo dano mais grave é correta, mas quando
o bem jurídico periclitado e danificado seja o mesmo.
A lógica da absorção fica ainda mais estranha quando os crimes em cotejo são os
dos artigos 306 309 do CTB:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração
de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre
distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado
neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008).”
Casos Concretos
Questão 1
CAIO mantém relação sexual com conhecida prostituta, sem adotar qualquer
medida protetiva. Posteriormente, se relaciona sexualmente com sua companheira.
a) Realizou CAIO algum tipo penal?A solução se alteraria, caso:
b) CAIO soubesse que a prostituta já tinha apresentado, antes, quadro de moléstia
venérea?
c) CAIO tivesse certeza de que tinha adquirido a DST e desejasse transmiti-la à sua
parceira?
d) CAIO tivesse adquirido o vírus HIV e desejasse transmiti-lo à sua parceira e ela
adquirisse a doença e morresse?
e) A companheira de CAIO fosse imune à doença?
f) A companheira de CAIO consentisse no contágio?
g) CAIO contaminasse sua companheira com uma roupa íntima?
Resposta à Questão 1
a) A simples relação sexual com prostituta, sem proteção, não é suficiente para
inserir a conduta de Caio na elementar “deve saber” do crime do artigo 130 do
CP. É preciso elementos concretos que levem à conclusão de que estava
contaminado para que seja incriminado pelo dolo eventual.
b) Da mesma forma, se não há sintomas de que haja contaminação, não se pode
entender que haja o dolo eventual de contaminar a parceira.
c) Neste caso, é clara a tipificação da conduta no artigo 130, § 1°, do CP. Há o dolo
de dano.
d) Neste caso, se trata de homicídio, porque a moléstia é letal e incurável. Se a
morte ocorreu, está consumado o homicídio.
e) Sendo imune, trata-se de crime impossível.
f) O consentimento é irrelevante: o bem jurídico é indisponível.
g) Como não há relação sexual, e o crime do artigo 130 exige esta forma de prática
do delito, não se configura, podendo a conduta recair no artigo 131 do CP, ou
mesmo no artigo 129, a depender do dolo.
Tema VII
Da Periclitação da Vida e da Saúde II. O crime de rixa. 1) Crimes de perigo individual (artigos 133 a 136 do
CP): sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4)
Pena e ação penal. 5) O crime de rixa: a) Considerações gerais; b) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; c) Aspectos controvertidos.
Notas de Aula15
1. Abandono de incapaz
“Abandono de incapaz
Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes
do abandono:
Pena - detenção, de seis meses a três anos.
§ 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Aumento de pena
§ 3º - As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:
I - se o abandono ocorre em lugar ermo;
II - se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da
vítima.
15
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/10/2009.
Neste crime, há entre o sujeito ativo e o passivo uma relação de dependência, que
nos remete à figura do garantidor. Isto poderia gerar confusões entre os §§ deste tipo e os
crimes correspondentes aos resultados ali traçados, que seriam comissivos por omissão. O §
2°, por exemplo, seria facilmente confundível com o crime de homicídio por omissão
imprópria.
Contudo, a solução é simples: nos casos dos §§ do artigo supra, os resultados que
são imputados ao agente não são sequer previsíveis a ele. O autor do abandono não prevê
nem poderia prever qualquer resultado danoso do abandono, aqui, porque senão estaria
incurso, de fato, nos crimes específicos, por omissão imprópria, em atenção ao artigo 13, §
2°, do CP.
No abandono de incapaz, o único intento do agente é exatamente o de abandonar o
incapaz em uma situação de perigo, sem que possa prever que tais resultados danosos
venham a ocorrer.
Imagine-se, por exemplo, uma mãe que deixa seus filhos pequenos trancados em
casa, dormindo sozinhos, enquanto sai para se divertir. Na sua ausência, a residência
incendiou-se, e as crianças morreram. Não se pode entender que a possibilidade de morte
tenha entrado na esfera de previsibilidade desta mãe, sequer a título de culpa, pois se
pudesse prever tal situação é certo que não sairia; por isso, somente se enquadra, sua
tipificação, no resultado morte previsto no § 2° deste artigo supra.
Repare que se nada acontecesse com as crianças, esta mãe ainda teria incorrido no
crime de abandono de incapaz, restando apenas enquadrada no caput, porque o alvo
preventivo deste crime é a mera exposição dos dependentes ao risco.
A posição de garantidor, aqui, também é fundamental, mas o que se proíbe no
dispositivo é que este coloque a pessoa garantida, ao abandoná-la, em risco. Os resultados
só lhe são imputáveis se decorrerem do risco, e sequer pudessem ser previstos pelo
garantidor.
É um crime de perigo concreto, porque o artigo exige que o abandono acarrete
riscos reais, concretos, ao garantido.
Se o abandono do garantido revelar que a situação demonstra risco severo aos bens
jurídicos mais caros ao abandonado, como a vida e a integridade física, o garantidor
respoderá pelo resultado, consumado ou tentado.
Caso concreto diverso que se poderia apontar é o da mãe que abandonou a filha com
poucos dias de vida em uma sacola plástica, dentro de uma lagoa: não há crime de
abandono, tampouco omissão imprópria. Sua conduta revela dolo de matar, sequer sendo
necessária a configuração de garantidora, ali. Há simples ação de execução homicida.
Questão concreta que poderia suscitar dúvida é a seguinte: criança nasce sem os
braços, e a mãe a rejeita, deixando à em um lixão. Esta criança morre pelo ataque de
roedores. A capitulação deste delito é a de abandono de incapaz com resultado morte, ou é
homicídio?
Ao abandonar esta criança que não pode sequer realizar gestos instintivos de defesa,
que poderiam afastar os roedores, esta mãe está cometendo, a todo ver, homicídio, pois é
absolutamente previsível que esta morte venha a ocorrer. Há, no mínimo, dolo eventual de
morte, e não o mero dolo de abandono.
A mãe que abandona a criança no carro, enquanto vai ao shopping, está cometendo
o crime deste artigo 133 do CP. A situação de risco é clara. Em qualquer casuística, é o
risco que deve ser verificado, a fim de configurar o delito.
Abandonar é deixar de cuidar. O abandono pode ser comissivo ou omissivo:
comissivo é levar ao local de abandono, e lá deixar a vítima; omissivo é simplesmente
deixá-la, sem conduzi-la ao local de abandono com este fim.
A relação de garantidor é exemplificada no artigo, ao mencionar “cuidado, guarda,
vigilância ou autoridade”. Não se exige nenhuma relação formal para configurar a situação
de garantia, podendo ser assumida esta posição por qualquer meio. Por exemplo, aquele que
assume os cuidados de um amigo que se encontra completamente embriagado é seu
garantidor, e se o abandonar em situação de risco estará cometendo este crime.
Há quem diga que este crime é material, mesmo na situação do caput, porque o
perigo, em si, é um resultado naturalístico. É um dado objetivo, real, e por isso
concretamente aferível. Mas há quem entenda que seja formal, por não entender que o
perigo seja um resultado naturalístico em si. Qualquer que seja a posição, porém, é crime
plurissubsistente na modalidade comissiva, admitindo tentativa, mas na omissiva é
unissubsistente, pelo que não se fala em forma omissiva tentada de abandono.
Ocorrendo o dano, os §§ do artigo 133 do CP são aplicáveis, fazendo o crime
preterdoloso. Se se tratar de lesão grave ou morte preterdolosas, o crime é qualificado. O
dolo é de abandono, como dito, mas o resultado será imputável.
O § 3° deste artigo, no inciso I, traz aumento de pena para o abandono do incapaz
em lugar ermo, porque esta circunstância aumenta a situação de risco. No inciso II, o
aumento se dá pela relação legal de dependência, e maior reprovabilidade. No inciso III, o
aumento se dá pela maior vulnerabilidade da vítima, maior de sessenta anos.
Há que se atentar para o artigo 98 do Estatuto do Idoso, que cria uma regra especial
repressiva do abandono, mas que não se confunde com este abandono de incapaz agravado,
acima comentado. Veja:
Neste crime da Lei 10.741/03, a conduta típica se perfaz sequer sendo exigida a
presença de qualquer risco ao idoso. Em uma das elementares, há o abandono material, eis
que o dispositivo fala em “não prover suas necessidades básicas”; contudo, nas demais
modalidades de abandono ali previstas, basta que o agente abandone o idoso que de si é
dependente sem atentar para cuidados afetivos de que este seja carente. É, de fato, uma
exigência de afeto que o Direito Penal impõe sobre os agentes, consubstanciando a
verdadeira criminalização do abandono afetivo, da falta de cuidado afetivo.
Este dispositivo guarda relação de gênero e espécie com o artigo 133 do CP,
anteriormente analisado: trata-se de uma espécie mais branda de abandono de incapaz. Os
elementos especializantes deste tipo, diante do genérico do artigo 133 do CP, são: o sujeito
passivo, que é apenas o recém-nascido; e o especial fim de agir, que é a ocultação de
desonra própria.
Recém-nascido é critério aberto, mas é relativamente pacífico na doutrina que se
trata daquela criança que ainda não teve o cordão umbilical removido. Após esta remoção,
não seria mais considerado recém-nascido.
O tipo subjetivo especial, a ocultação de desonra própria, só pode ser preenchido
pela mãe, segundo Bitencourt e a maior parte da doutrina. Para Hungria e Damásio, o pai
também se amoldaria a este tipo, mas em uma visão sociológica e temporal deste artigo,
quando de sua redação, o homem não teria, a todo ver, esta honra a ser protegida – apenas a
mulher teria tal honra passível de avilte pela sociedade, tendo um filho considerado espúrio,
fruto de uma gravidez indevida. Há as duas correntes, porém.
Nos dias de hoje, este tipo penal não teria muita lógica. Não há mais a necessidade
da proteção da honra como havia outrora, a merecer tratamento especial e privilegiado ao
agente que abandona o filho por esta finalidade.
A existência da honra sexual a ser protegida é de constatação concreta. Não se
justifica a subsunção ao tipo subjetivo especial quando a gravidez era conhecida da
sociedade, pelo que não há qualquer sentido em se entender que o abandono do filho de
uma gravidez por todos conhecida sirva para ocultar a suposta desonra: simplesmente não
há o que ser ocultado, neste caso.
Pode haver caso em que a gravidez, mesmo conhecida, ainda justifique a desonra,
pelo que se poderá entender que a motivação especial ainda possa existir, a ensejar
subsunção neste tipo: a gestante sabe que seu filho é fruto de uma relação adulterina, e que
se este filho vier a ser conhecido por todos, seu adultério será revelado. Pode-se entender
que a ocultação do filho, pelo abandono, é motivada para salvaguardar a honorabilidade
que seria perdida.
A prostituta não pode figurar no pólo ativo deste delito, porque o que justifica seu
tratamento especial é a existência da honra sexual a ser protegida pelo agente, o que de
certa forma é entendido pelo legislador como uma motivação que privilegia um pouco o
cometimento do abandono. Não se trata de dolo puro de abandonar, mas sim de um dolo de
abandonar especialmente eivado da finalidade de ocultar a desonra sexual.
Se a prostituta, ao assumir seu meio de vida, justamente abre mão da honorabilidade
sexual, não há desonra de que queira se proteger, a motivar especialmente o abandono. Seu
abandono será eivado do puro dolo de abandonar, recaindo no artigo 133, e não neste artigo
134 do CP. É claro que se a atividade de prostituição daquela gestante não for conhecida da
sociedade, agindo no anonimato, ainda preserva a honra sexual, podendo então ser
motivada ao abandono pela intenção em salvaguardar sua honra – recaindo, aí sim, neste
artigo 134 do CP.
Este crime é de perigo concreto, tal como o abandono de incapaz genérico.
Contudo, parte da doutrina clássica ainda reputa ser de perigo abstrato, pela condição de
recém-nascido do abandonado, que faz presumir o perigo. Embora não esteja dito no artigo,
o abandono deve também colocar a vítima em situação de risco, não configurando o crime
se o abandono se dá em local seguro – como quando a mãe deixa o filho aos cuidados de
um terceiro. Por isso, o perigo é claramente de natureza concreta.
Hungria defende que não há diferença entre expor e abandonar, mas há quem
entenda que, na exposição, se interrompe a guarda, mas não a vigilância, enquanto no
abandono, há interrupção da guarda e da vigilância.
Os §§ deste artigo 134 qualificam o crime pelo resultado lesão ou morte. Veja que
no artigo 133, o resultado morte atribui pena idêntica à da lesão corporal seguida de morte
– reclusão de quatro a doze anos –, mas no artigo 134, a pena quando há resultado morte é
menor, indo de dois a seis anos – idêntica à do infanticídio. Há uma identicidade de penas
que é referente à presença da situação especial da mãe, que lá está no estado puerperal, e
aqui está sob ameaça de desonra.
3. Omissão de socorro
“Omissão de socorro
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal,
à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo
ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”
Para se falar em omissão, pressupõe-se um dever. Toda omissão, para ser relevante
penalmente, deve ser acompanhada de um dever que foi inobservado. No crime comissivo,
o tipo descreve a ação proibida; no crime omissivo, o tipo descreve a ação exigida. O
legislador criminaliza a não realização da ação que descreveu como exigida.
O artigo 135 do CP é o tipo omissivo clássico, omissivo próprio, puro. Os crimes
omissivos impróprios, impuros, chamados comissivos por omissão, praticados por
garantidores, não se confundem com este crime de omissão própria.
O artigo 135 é um exemplo excepcional em que o Direito Penal assume caráter
constitutivo. Como se sabe, o Direito Penal é essencialmente sancionatório, e não
constitutivo: o Direito Penal não é a fonte da proibição, mas sim o ordenamento jurídico,
que, quando entende necessário, convoca o Direito Penal para reforçar esta proibição com a
imposição de uma pena. O tipo comissivo observa justamente esta dinâmica: ao descrever a
conduta ativa típica, o Direito Penal está reforçando uma ilicitude que o ordenamento já
atribui ao fato, sancionando-a penalmente. Quem constituiu a ilicitude foi o ordenamento
jurídico, em suas diversas facetas. Por exemplo, o crime de furto é a sanção pela violação
ao direito de propriedade, que já foi constituído pelo Direito Civil.
Nos crimes omissivos próprios, como este artigo 135 do CP, porém, o Direito Penal
é excepcionalmente constitutivo, pois sem que esta tipificação imponha a conduta a ser
seguida, a inércia do agente não é repreendida. Imagine-se que não exista o artigo 135 do
CP: se uma pessoa esteja em situação de risco, e uma outra pessoa ignora-a, não prestando
qualquer auxílio que poderia prestar, não há qualquer reprimenda jurídica à sua omissão. A
relevância da sua omissão é meramente moral. Por isso, é o Direito Penal que constituiu o
dever legal de agir, neste caso, criando o dever de agir neste artigo 135 do CP – que tem
este caráter constitutivo excepcional, portanto.
A ação exigida pelo artigo em comento é a de prestar assistência, quando possível
fazê-lo sem risco pessoal, a quem dela precise, na forma do texto legal. Há uma ordem
legal para que se atue neste sentido. Por isso, tais crimes omissivos próprios são chamados
também de tipos mandamentais, pois contém uma ordem ao agente.
Se não for possível prestar a assistência por si próprio, o artigo conclama a que se
chame a autoridade para que esta o faça. Veja que não há uma alternatividade: não é dado
ao agente optar por socorrer a vítima ou chamar a autoridade. É imperativo que o faça,
quando puder, ele próprio, sendo também imperativo que chame a autoridade, se não puder
socorrer ele próprio o necessitado. A segunda hipótese só vem a ser uma possibilidade
quando a primeira não puder ser realizada.
O socorro só é exigido quando o agente puder prestá-lo, e se não existir exposição
própria a risco com esta prestação. Se o agente não sabe como prestar o socorro, não lhe é
possível prestá-lo, mas é-lhe exigido que chame a autoridade para fazê-lo. Caso não faça
esta notificação, sendo-lhe possível fazê-la, também incorre no crime de omissão de
socorro.
Sem possibilidade de atuação qualquer, a conduta do agente é atípica. Muitos
confundem a situação em que a não prestação de socorro se dá porque o agente estaria em
risco se o fizesse com estado de necessidade, mas não se chega a este ponto: a
impossibilidade de atuação gera atipicidade da conduta, eis que a possibilidade é elementar
do tipo. A tipicidade, aqui, só se preenche quando há o dever e a possibilidade de agir.
O dever imposto por este artigo é um exemplo clássico de obrigação solidária, nos
moldes do Direito Civil: se um indivíduo prestar o socorro eficazmente, os demais que
estiverem na posição de ajuda possível são isentos do dever de agir. O cumprimento de um
dos obrigados solidários aproveita aos demais, por mera questão de lógica. Mas veja a
seguinte nuance: se alguém se vê diante de uma pessoa necessitada de socorro, e abandona
seu dever de ajuda, sem saber que outrem virá em seguida e prestará o socorro, está
configurado o crime: a prestação de socorro posterior à consumação da omissão não isenta
o omisso de sua responsabilidade, pois o crime já se consumou. A solidariedade só o exime
de responsabilidade quando se verificar que o seu socorro não é mais necessário antes que o
agente se omita.
São sujeitos passivos deste crime a criança abandonada ou extraviada, a pessoa
inválida ou ferida, ou a pessoa ao desamparo ou em grave e iminente perigo. Nelson
Hungria, acompanhado pela doutrina maior, entende que quanto à criança abandonada ou
extraviada (perdida), o perigo é presumido, sendo hipótese de perigo abstrato. O simples
fato de estar abandonada ou extraviada é perigoso, diz a doutrina, merecendo incidir no
artigo 135 do CP todos aqueles que diante desta situação se omitirem. Nos demais casos, o
perigo é concreto, como o próprio artigo indica.
Veja uma situação peculiar: suponha-se que uma pessoa esteja trancada dentro de
sua residência, e, só por este fato de estar presa, está pedindo socorro para se ver liberta. O
agente que, ouvindo os pedidos, não ajuda a pessoa a sair da residência, está incurso no
artigo 135 do CP? A resposta é negativa: a proteção do crime de omissão de socorro é para
os bens jurídicos vida e saúde, e não liberdade. Por isso, a omissão em libertar alguém não
é conduta típica. É claro que se a vida da pessoa que está trancafiada estiver em risco – está
sem água ou alimentos, por exemplo, estando em iminente perigo de morte –, a não
prestação do socorro será típica, porque então se estará diante de risco à saúde e vida
daquela vítima, não podendo ninguém se omitir diante de tal periclitação.
O crime omissivo próprio não admite tentativa, porque a conduta de deixar de
prestar socorro se consuma em um só ato, sendo unissubistente.
A presença física do agente não é necessariamente exigível para que se dê a omissão
de socorro. Pode o agente, à distância, cometer o crime. Veja um exemplo: pessoa reside
em local bastante ermo, e é a única que possui veículo automotor. Esta pessoa é chamada,
por rádio, a socorrer alguém que sofreu um acidente nas cercanias. Se esta pessoa se nega a
atender, podendo fazê-lo, estará incursa na omissão de socorro, mesmo estando ausente do
local do acidente.
Mesmo se a vítima não quiser ser socorrida, o socorro é imperioso: escapam, tais
bens jurídicos, da esfera de disponibilidade da vítima.
3.1. Omissão de socorro agravada
pelo resultado, diante de alguma omissão de sua parte: a imposição de atuação deste
profissional a qualquer tempo é prevista em lei, sendo que por isso está sempre inserido no
artigo 13, § 2°, “a”, do CP. Esta previsão legal é constante dos respectivos estatutos de
classe, podendo ser dado como exemplo o Estatuto dos Policiais Civis do Rio de Janeiro,
que assim dispõe em seu artigo 10, XVII:
“Art. 10° - O policial manterá observância, tanto mais rigorosa quanto mais
elevado for o grau hierárquico , dos seguintes preceitos de ética:
(...)
XVII - prestar auxílio, ainda que não esteja em hora de serviço:
1 - a fim de prevenir ou reprimir perturbação da ordem pública;
2 - quando solicitado por qualquer pessoa carente de socorro policial,
encaminhando-a à autoridade competente , quando insuficientes as providências de
sua alçada.”
Veja o comentário a este artigo supra que é trazido no próprio diploma legal, no
próprio Estatuto mencionado, Decreto-Lei estadual 218/75, como nota de rodapé:
“O servidor policial , por força deste dispositivo, é obrigado, ainda que não esteja
em horário de serviço, a interferir nas circunstâncias a que se refere o inciso. Se,
em decorrência de sua intervenção vem a sofrer ferimentos ou a falecer, o fato é
considerado como acidente em serviço, beneficiando o servidor ou seus familiares
- em caso de falecimento - detentores, assim, dos direitos daquele que sofre
acidente em serviço.”
O artigo 135 tem equivalente específico para a vítima idosa, trazido no artigo 97 da
Lei 10.741/03, Estatuto do Idoso, que deve ser observado quando a vítima for pessoa idosa:
“Art. 97. Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua
assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de
autoridade pública:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”
4. Maus tratos
“Maus-tratos
Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda
ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-
a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho
excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Antes de se adentrar na análise deste tipo, vale desde logo trazer o tipo especial que
se presta a proteger os idosos, previsto no artigo 99 do Estatuto do Idoso:
O artigo 136 do CP também se destina a proteger os bens jurídicos vida e saúde. Por
isso, a exposição da vítima a constrangimentos psicológicos, por exemplo, se não acarreta
danos ao menos a sua saúde, não pode aqui se enquadrar.
É sujeito passivo do delito quem quer que esteja sob autoridade, guarda ou
vigilância do agente ativo. Aqui se enquadram pais, tutores, curadores, diretores de escola,
carcereiros, etc.
Este crime não se confunde com a tortura, do artigo 1°, II, da Lei 9.455/ 97, porque
a tortura precisa do elemento sofrimento físico ou mental, e a finalidade expressa de
castigar ou prevenir quaisquer condutas da vítima que desagradem ao torturador. Veja:
Nos maus tratos, além de não se tratar de inflição de sofrimento físico ou mental,
mas sim de exposição a perigo da vida ou da saúde, a finalidade do sujeito ativo é educar,
ensinar, tratar ou custodiar, e não castigar com inflição de dano. Não há dolo de dano no
cometimento do crime de maus tratos.
O crime de maus tratos é de forma vinculada: diz a lei que o agente só o pratica por
meio da privação da alimentação ou dos cuidados indispensáveis, pela sujeição a trabalho
excessivo ou inadequado, ou ainda pelo abuso dos meios de correção ou disciplina. A
finalidade pode até ser educativa, como se vê, mas o abuso nos meios de correição e
disciplina é repreensível penalmente.
Este crime é de perigo concreto, pois a exposição da vida ou da saúde da vítima não
se presume das hipóteses ali arroladas como meio de cometimento.
“Rixa
Art. 137 - Participar de rixa, salvo para separar os contendores:
Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único - Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se,
pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos.”
Rixa é a briga entre mais de duas pessoas – crime de concurso necessário, portanto
–, acompanhada de vias de fato ou violência física recíprocas, sem que haja grupos
definidos entre os contendores. É, em termos rasos, o tumulto violento em que cada um age
por si.
Os rixosos são ao mesmo tempo sujeitos ativos e passivos do crime. O crime é de
perigo, porque a rixa expõe a perigos diversos todos os participantes e os bens jurídicos que
os circundam.
Se, no curso da rixa, ocorre lesão corporal ou morte de um participante, sendo
identificado o causador da morte ou da lesão, este responderá pela rixa em concurso formal
com a morte ou lesão. E veja que sua imputação será na rixa qualificada do parágrafo único
deste artigo.
O parágrafo único do artigo supra é apontado pela doutrina como um resquício de
responsabilidade pena objetiva, porque a lesão e a morte ocorridas no bojo da contenda
serão causas de agravamento da pena de todos os envolvido na rixa, mesmo que não
tenham sido causadores daqueles resultados. Todos os rixosos, causadores ou não do
resultado gravoso, por ele responderão, apenas por participarem da rixa.
É claro que se forem identificados os autores dos golpes que resultaram na lesão ou
morte, eles respondem pelo crime cometido, ou seja, a lesão e a morte, em concurso com a
rixa qualificada. Aqui, há claro bis in idem, porque o mesmo ato que serve para imputar o
crime de lesão ou morte, serve também para imputar a qualificadora da rixa – deveriam,
estes causadores, responder apenas pelo crime de dano correspondente e pela rixa simples.
Todavia, a exposição de motivos do CP foi clara em dizer que não se trata de bis in idem, e
por isso a qualificadora se imputa.
O crime de rixa só admite tentativa quando se tratar de rixa preordenada. Há dois
tipos de rixa, segundo Hungria: a súbita e a preordenada. A rixa súbita é a que surge
inadvertidamente, ou seja, é unissubsistente: sem qualquer aviso ou pré-arranjo, estoura a
contenda. A preordenada, porém, se trata da rixa arranjada previamente, e por isso ela se
trata de conduta plurissubsistente, que pode ser fracionada, e portanto obstada por forças
alheias à vontade dos rixosos.
Há uma sutil diferença entre a participação da rixa e a participação do crime de
rixa: participar da rixa é figurar como um dos contendores, ser um dos rixosos, que estão
envolvidos no tumulto; participar do crime de rixa é ser partícipe do tumulto, sem dele
tomar parte, instigando, incentivando ou auxiliando materialmente os rixosos.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Tema VIII
Crimes contra a Honra I (Calúnia). 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) A exceção da verdade;c) A calúnia no Código
Eleitoral e na Lei de Segurança Nacional. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes.
Notas de Aula16
Honra, na sua origem, é um direito personalíssimo do homem, e por isso sempre foi
objeto de proteção jurídica. Historicamente, no Direito Romano, os aviltes à honra de
algum cidadão só eram punidos quando se tratasse de alguma situação que gerasse clamor
público. É desta concepção que se guarda, até hoje, a noção de que o crime contra a honra,
em regra, se consuma apenas quando alcança o conhecimento de terceiros.
Os crimes contra a honra, em regra, segundo Pierangeli, assumem o chamado
caráter relativo, ou circunstanciado: eles dependem da época, lugar e conterxto em que a
suposta ofensa foi proferida para se configurar realmente uma ofensa. Como exemplço,
chamar-se alguém de fascista, ou mesmo nazista, na Europa do início do século, nada mais
era do que atribuir a alguém a condição de membro de um partido político. Hoje, são
claramente expressões carregadas de tom ofensivo.
A honra, enquanto atributo da personalidade, sempre foi objeto de proteção, e os
delitos contras a honra possuem sempre um caráter relativo ou circunstancial: a ofensa
depende do momento social.
Este caráter circunstanciado não se aplica ao crime de calúnia, porque este se trata
da falsa imputação de fato definido como crime. Por isso, a constatação nada tem de
relativa: ou o fato é tipificado naquele contexto, ou não há o crime de calúnia.
16
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/10/2009.
O STF, no Inquérito 1.958, explana com perfeição sua tese de que na casa, o fato é
sempre atípico, e para ofensas seja fora dela, a conexão com o mandato é necessária. Veja:
Repare que se a ofensa for constatada, mas acobertada pela imunidade, nem mesmo
civilmente o parlamentar responderá: o caput do artigo 53 da CRFB, supra, elide a
responsabilidade penal e também a civil.
Repare que a imunidade parlamentar açambarca também os votos dos
parlamentares. Assim, se uma lei for aprovada com conteúdo criminoso, considerado
caluniador, difamador ou injuriante – o que é difícil de se conceber, mas possível –, os
parlamentares serão imunes a este suposto crime contra a honra escrito, porque os seus
votos são açambarcados na imunidade.
A responsabilidade administrativa, porém, é possível, caso signifique quebra de
decoro parlamentar.
“Exclusão do crime
Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador;
(...)”
alvejado pela ofensa. Por exemplo, se o advogado precisa apontar o juiz como relapso,
desidioso, ou mesmo inapto a exercer a profissão, para, com estas ofensas, apontar o
motivo de sua irresignação com determinado efeito negativo que seu cliente tenha sofrido, a
ofensa está conectada à mens da imunidade, e por isso é por ela abarcada. Se se tratar de
ofensa ao juiz alheada da causa, a imunidade não socorre o advogado.
Veja, neste sentido, o RHC 4.979, do STJ, e o HC 69.085, do STF, pela ordem:
O artigo 142 do CP, de fato, vem positivar como excludentes da tipicidade situações
que, por sua lógica, seriam exclusões da ilicitude, porque se tratariam de exercício regular
do direito, o que fica patente na imunidade do advogado, que é claramente uma situação em
que as ofensas estariam irrogadas no exercício do direito de advogar por seu cliente, da
melhor forma possível.
Para a calúnia contra o juiz, ou contra qualquer outro personagem processual, em
juízo, nada protege o advogado: o crime é punível, como faz depreender o próprio artigo
142, I, do CP, supra.
“Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante
queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.
Parágrafo único - Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do n.º I do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do
mesmo artigo.
Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso
do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do
ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3° do art.
140 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.033. de 2009)”
Assim, a ação é em regra privada, sendo pública apenas quando se tratar de injúria
real de que resulte lesão corporal, em qualquer intensidade, dolosa ou culposa. No TJ/RS,
se toma em conta a previsão do artigo 88 da Lei 9.099, fazendo com que se a lesão for leve,
a ação é pública condicionada a representação; se grave, incondicionada:
“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”
1.7. Crimes contra a honra de servidor público em razão do exercício das funções
O STF abriu uma hipótese extralegal de legitimação concorrente para a ação penal,
para que o agente que tenha sua honra atacada, juntamente com a ofensa perpetrada ao
Estado no mesmo ato, possa agir, sem depender do MP acatar ou não sua representação. E
veja que se trata de uma legitimidade alternativa, na verdade, porque se o agente público
primeiro representar, não mais pode ofertar queixa, e vice-versa. Optado por uma via, a
outra está fulminada. Veja o Inquérito 1.939, do STF:
Destarte, se o agente representar, não mais poderá ajuizar a ação privada. Poderá,
outrossim, ajuizar a subsidiária da pública, da mesma forma que nas situações normais
surge esta faculdade para quaisquer ofendidos, ou seja, se o MP quedar-se inerte (e não se
este demorar, ou diligenciar, como se vê na ementa acima).
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Se o dolo é de irritar, o crime contra a honra está claramente afastado. Não haveria
calúnia jamais, porque a para que esta se consume é preciso que a falsa imputação chegue
ao conhecimento de terceiros – a honra é objetiva –, mas, no caso, sequer se pode entender
ter havido injúria, porque o intuito de irritar não configura ânimo de injuriar – não há o dolo
específico de caluniar ou injuriar.
Questão 2
Resposta à Questão 2
Tema IX
Crimes contra a Honra II (Difamação).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; b) A exceção da verdade; c)
Semelhanças e diferenças entre a calúnia e a difamação; d) A difamação no Código Eleitoral e na Lei de
Segurança Nacional. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes.
Notas de Aula17
1. Calúnia
“Calúnia
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou
divulga.
§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.
Exceção da verdade
§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo:
I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi
condenado por sentença irrecorrível;
II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141;
III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por
sentença irrecorrível.”
O termo “alguém”, usado no caput do artigo 138, significa que a calúnia deve ter
destinatário definido, determinado, especificado.
Outro aspecto elementar deste tipo é a falsa imputação de “fato definido como
crime”, e não a falsa imputação de crime, diferença que é de uma nuance bastante diáfana:
o que se imputa é qualquer fato que seja definido como criminosos, e não um determinado
crime que foi cometido. Outra repercussão desta diferença é quando a vítima da calúnia for
um menor: se o menor não pratica crime, e sim ato infracional, se o tipo dissesse “falso
crime”, a imputação de ato infracional (que é conduta análoga aos crimes) não seria
17
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/10/2009.
No crime de calúnia, portanto, a imputação do fato não exige a sua ocorrência, mas
é necessário que o mesmo tenha a aparência de um fato existente. Veja também o julgado
da Apelação Criminal 70003470085, do TJ/RS:
Segundo Pierangeli, haverá calúnia tanto quando o fato imputado não existiu, como
quando existiu mas a vítima não foi seu autor. Veja o seguinte julgado do TJ/RJ, na
Apelação Criminal 2003.050.00573:
O fato imputado deve ser típico, deve ser crime. Quem imputa falsamente
contravenção penal está cometendo crime de difamação, e não calúnia, por falta de
adequação típica à calúnia, mas preenchimento da difamação: há imputação de fato
ofensivo, sem que este seja definido como crime.
Chamar alguém de ladrão não é imputar falso crime de furto ou roubo. Esta
assertiva feita pelo agente define-se como injúria, porque ao proferir tal impropério o
agente não está especificando um fato definido como crime com a devida particularização:
está é impingindo ao sujeito passivo a pecha desonrosa de pessoa que é dada a estes atos,
mas sem imputar-lhe concretamente um furto ou roubo. O que se passa, ali, é a imputação
de uma qualidade negativa ao agente, e por isso o crime que se configura é o de injúria.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de calúnia. Cezar Roberto
Bitencourt, porém, não admite que inimputáveis possam ser sujeitos ativos da calúnia, ao
argumento de que não podem, eles, cometer crimes, pois lhes falta culpabilidade. Não há
qualquer lógica neste argumento, pois se respondem por ato infracional em qualquer ato
análogo a crime que cometam, aqui o raciocínio se repetiria.
Na calúnia contra mortos, do § 2° deste artigo 138 do CP, o titular do bem jurídico,
por óbvio, não é o próprio morto, eis que todos os direitos deste se extinguem com a morte.
São titulares do direito à honra todos os familiares do morto, que prezam a honra própria,
afetada pela ofensa ao morto, à memória do morto.
O sujeito passivo é toda pessoa que tenha honra para ser atacada. Apesar de ser uma
assertiva óbvia, há casos em que esta percepção pode ser dificultosa. Menores e loucos
(inimputáveis de toda sorte), por exemplo, podem ser vítimas de calúnia?
Há quatro correntes a disputar o tema. Heleno Fragoso, por não ver diferença entre
honra subjetiva e objetiva, entende que loucos e menores são sujeitos passivos de quaisquer
crimes contra a honra. Para Bitencourt, como a calúnia afeta o conceito social, a honra
objetiva, os inimputáveis são, sim, passíveis de sofrer este ataque – é como pensa também
Hungria. Damásio diz que é irrelevante a inimputabilidade, porque em sua leitura causalista
do delito o crime já existe antes de se olhar para a culpabilidade – pode ser imputado crime
a menores e loucos, podendo estes serem falsamente imputados.
A melhor corrente, porém, a todo ver, é a de Mirabete. Diz este autor que o crime é
imputar um fato definido como crime, e não a imputação de um crime (diferença já
apontada neste estudo), e por isso é irrelevante se o inimputável pode ou não cometer
crime: a calúnia se consuma com a mera imputação de um fato definido como tal, mesmo
que não seja crime, e sim ato infracional.
Outro exemplo peculiar quanto à sujeição passiva da calúnia diz respeito às
prostitutas e os criminosos condenado: tais pessoas podem ser vítimas de calúnia? A
resposta é positiva: todas as pessoas têm honra a ser protegida, mesmo que seja esta uma
pequeníssima parcela de sua personalidade – o que Manzini chama de oasi morali, um
oásis moral, um mínimo de honra a ser resguardado.
Pessoas jurídicas podem ser sujeitos passivos de calúnia? Ora, em um ordenamento
em que a pessoa jurídica pode cometer crime, como no sabido caso do crime ambiental,
pode sofrer falsa imputação destes crimes, configurando a calúnia, portanto.
Há que se ressaltar, pelo ensejo, que o STJ tem entendido que a imputação pelo
crime ambiental não pode se concentrar apenas na pessoa jurídica: o MP deve denunciar
tanto a pessoa jurídica como as pessoas físicas que atuaram no crime, presentando a
sociedade. Trata-se da aplicação da teoria da dupla imputação18, em que o litisconsórcio
18
Em consignação pessoal, entendo que se trata, a dupla imputação, de uma manifestação daquilo que se
considera responsabilidade penal por ricochete. Assim entende Luiz Flávio Gomes, para quem:
passivo dos réus acusados é necessário. Se não houver a dupla imputação, recaindo a
denúncia apenas sobre a pessoa jurídica, o STJ tem admitido o mandado de segurança com
o fito de obter o trancamento da ação penal, diga-se.
Veja o RMS 16.696 do STJ, em que se fala da dupla imputação:
“RMS 16696 / PR. DJ 13/03/2006 p. 373.
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIZAÇÃO DA
PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
INÉPCIA DA DENÚNCIA. OCORRÊNCIA.
1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força de sua previsão
constitucional, requisita a actio poenalis, para a sua possibilidade, a imputação
simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata ou imediatamente, no
exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pela estatuto social, pratique o
fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen sine actio humana.
2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o
trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica, é de rigor.
3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício.”
O crime de calúnia demanda dolo específico? O tipo formal, como se vê, não
exprime literalmente nenhuma finalidade especial do agente ao imputar falsamente o crime
ao sujeito passivo. O tipo penal é se resume ao teor de “imputar falsamente fato definido
como crime”, e não “imputar falsamente fato definido como crime com o fim de ofender a
honra”. Por isso, surgem duas correntes na doutrina, acerca da exigibilidade deste dolo
específico ou não.
A primeira corrente, de Aníbal Bruno e Pierangeli, defende que o tipo penal da
calúnia só pede o dolo em preencher aquela conduta alio traçada, qual seja, imputar
falsamente fato considerado crime. Se o agente tem dolo de fazer exatamente isto, não há
que se cogitar de qualquer finalidade específica nesta conduta. Pierangeli diz, porém, que
ao lado deste dolo simples anda indissociável aquilo que se chama de teoria dos animi, que
consiste na apreciação do dolo do agente no momento em que dolosamente comete a
conduta tipificada.
Entenda: se o agente está prestando um testemunho em juízo sobre um fato que
supostamente tenha assistido, e ali narra a autoria de um crime que acredita ter visto, sendo
que o autor por ele apontado jamais cometera aquele crime: há crime de calúnia? Decerto
que não: o agente que faz esta falsa imputação de crime está formalmente preenchendo a
tipificação da calúnia – está imputando falso crime ao réu. Contudo, seu ânimo não é de
caluniar: está agindo com animus narrandi, apenas contando algo que acredita saber. Outro
exemplo é o de alguém que, com o ânimo de aconselhar alguém, recomenda que ela não
ande com determinada pessoa, dizendo que esta tem má reputação: não há animus
difamandi, e sim animus consulendi, ou seja, o agente quer aconselhar sua audiência, e não
difamar aquele terceiro. Outro: se o agente repreende o funcionário por uma desídia,
reputando-o relapso, está agindo com animus corrigendi, e não injuriante, pelo que não há
crime. Mencione-se, também, que a doutrina reconhece alguns outros animi: jocandi,
retorquendi, criticandi ou defendendi. Na calúnia, a teoria dos animi não é plenamente
aplicável na calúnia, justamente porque alguns destes animi são de difícil constatação em
uma conduta de imputar falsamente crime a outrem: é difícil conceber um animus jocandi
em uma conduta desta modalidade. Por isso, a regra, de fato (mas não em tese), é a
aplicabilidade desta teoria nos crimes de injúria e difamação.
Nestes casos, o tipo objetivo aparentemente se preenche, mas não há o dolo exigido
na calúnia. O dolo não é a especial finalidade de atingir a honra, mas sim o simples dolo de,
ao imputar o falso crime, não haver ânimo ulterior qualquer que não o de simplesmente
imputar falso crime. Se há apenas o dolo de imputar falso crime, sem nenhum dos animi
mencionados, há o crime.
Contudo, a corrente que prevalece é a de Nelson Hungria, seguido por Fragoso e
Damásio: é preciso o dolo específico, a especial finalidade de agir, para que o crime de
calúnia se consume. Para esta corrente, não basta que o agente se manifeste livre e
conscientemente na prática da conduta inscrita no tipo. É preciso que ao fazê-lo, haja
também a vontade de atingir a honra. Por isso, para eles, a leitura do artigo é a seguinte:
“caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, com a finalidade de
ofender-lhe a honra.”
Esta discussão, entre a teoria dos animi e a necessidade de dolo específico, diga-se,
aplica-se a qualquer crime contra a honra.
A jurisprudência adota a corrente de Hungria, entendendo necessário o dolo
específico de ofender a honra. Veja, a propósito, a Apn 165, do STJ, e o HC 86.466 do STF,
pela ordem:
(...)”
A verdade, porém, é que tais teorias acabam por ser confundidas por nossas cortes,
pois que acabam entendendo que a presença de um dos animi é o que afasta o dolo
específico, e não que a mera inexistência de ânimo qualquer, mas a presença do animo puro
de caluniar (sem dolo especifico de ofender a honra) seja suficiente para configurar o
crime. Isto se ilustra pelo julgado da Apn 11, do STJ:
Em outro aspecto, é possível a calúnia com dolo eventual? Veja: se o sujeito ativo
tem dúvidas sobre a falsidade da imputação de fato criminoso que fará, mas a faz assim
mesmo, há dolo eventual de caluniar?
Pierangeli faz a seguinte crítica: se se admitir que o crime é praticado apenas com o
dolo simples, dispensando o dolo específico de ofender a honra, o dolo eventual seria
possível: estaria o agente assumindo o risco de ser aquela imputação falsa ou não, ou seja,
há o dolo eventual da falsidade da imputação. Como nossa jurisprudência segue a corrente
majoritária, em que o dolo específico é exigência do tipo, ou seja, o especial fim de agir
para ofender a honra é necessário, não é possível se falar em dolo eventual – haveria
contradição entre desejar esta especial finalidade (dolo direto) e ser indiferente à sua
consecução (dolo eventual).
Nelson Hungria, porém, diz que tanto o dolo eventual quanto o direto podem
configurar o crime contra a honra, mesmo diante da especial finalidade de agir – o dolo é
um conceito indivisível, em Direito Penal, para tal autor19.
No TJ/RJ, é admitida a calúnia com dolo eventual, como se vê no acórdão da
Apelação Criminal 1999.050.00147:
“Processo: 1999.050.00147. 1ª Ementa – APELACAO. DES. JOAO ANTONIO -
Julgamento:29/04/1999 - OITAVA CAMARA CRIMINAL.
CALUNIA. FALSA IMPUTACAO. DOLO EVENTUAL. CHEQUE SEM
FUNDOS. ATA DE ASSEMBLEIA GERAL. ART. 138. ART. 141. INC. III. C.P.
Calunia. Falsa imputacao de emissao de cheque sem fundos. Dolo direto de
caluniar ou, no minimo, dolo indireto, por assumir o risco de atribuir falsamente
19
Pelo ensejo, vale dizer que a doutrina majoritária entende que é cabível a tentativa em crime praticado com
dolo eventual, porque o dolo é uma coisa só, variando apenas quanto à direção da vontade do agente, e dá um
exemplo: agente que está em fuga da polícia arremessa bomba em prédio habitado, a fim de que os policiais
sejam obstados em sua perseguição. Se ninguém morre da explosão, é clara a tentativa de dolo em matar
quem quer que estivesse no prédio. Mas há quem defenda, como Rogério Greco, que não é possível, porque
no dolo eventual há indiferença quanto ao resultado, e a sua não ocorrência não significa que a sua vontade
tenha sido obstada por forças alheias – pois vontade não houve.
O § 1° do artigo 138 do CP incrimina, como visto, aquele que não tendo praticado a
a calúnia originalmente, a faz repercutir, ou seja, adere à conduta caluniosa originária,
passando a cometer calúnia própria, pelos atos de propalar ou divulgar a calúnia já
cometida.
Aqui, não se admite dolo eventual, porque o teor do dispositivo é expresso em
exigir que é punível aquele que propala ou divulga a imputação sabendo-a falsa – está
inserto na previsão do artigo 18, I, primeira parte, do CP (agente quis o resultado):
O crime de calúnia se consuma quando a honra objetiva for agredida. Este momento
se dá quando a narrativa do fato imputado alcança a ciência de terceiros.
Este crime será tentado, quando o meio empregado para a execução for escrito, pois
pode haver a interceptação da leitura da calúnia por qualquer força externa à vontade do
caluniador (desde que não seja a leitura por terceiros, o que já consumaria, de per si, a
calúnia). Esta corrente, majoritária, não admite tentativa de calúnia verbal.
Mas há quem entenda que até mesmo na forma verbal é possível a tentativa, como o
fazem Zaffaroni e Pierangeli. Assim defendem porque não acreditam que a conduta verbal
seja unissubsistente, como entende a corrente majoritária: é-lhes perfeitamente concebível a
calúnia seja consistente em diversas palavras, sendo o agente impedido de proferi-las todas
– configurando a tentativa. Percebido o dolo de caluniar, está tentado o crime. Estes
autores, diga-se, defendem esta possibilidade em qualquer crime verbal, pela
plurissubsistência das palavras.
Em síntese, o que prevalece é que admite-se a tentativa na forma escrita, mas não na
forma verbal. Contudo, os autores coitados admitem tentativa verbal, pois a calúnia não
reside em uma só palavra, e sim em uma narrativa de um falso crime.
A Lei de Segurança Nacional, Lei 7.170/83, traz o seguinte tipo penal, no artigo 26:
A denunciação caluniosa, tipo penal previsto no artigo 339 do CP, é por muitos
chamada de calúnia judiciária. Este crime, de fato, trata-se de uma calúnia à qual se agrega
a conduta de noticiar à autoridade tal imputação falsa, a fim de provocar a investigação
estatal do falso delito. É, por isso, não um crime contra a honra, um crime contra a
administração da justiça, como se vê em sua colocação topográfica.
“Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial,
instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade
administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente:
(Redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000)
Veja que os demais delitos contra a honra não são absorvidos, em regra, pela
denunciação caluniosa, mas se todas as ofensas se referirem ao mesmo fato criminoso,
umas atribuindo qualidades (injúria), outras atribuindo fatos correlatos ofensivos não
criminosos (difamação), serão sim absorvidas pela denunciação caluniosa: há uma
progressão criminosa nesta dinâmica.
É claro que, para se responder pelo falso testemunho, ou mesmo pela denunciação
caluniosa, o bem jurídico por estes crimes tem que ser minimamente perturbado, ou há
crime impossível: se a testemunha, ou o denunciante calunioso, reportarem declaração
esdrúxula, incapaz de levar qualquer um a nelas crer, ocorrerá crime impossível, por
impropriedade do meio utilizado.
Se, diferentemente, a testemunha, em sua narrativa, fizer afirmações que sabe falsas
sobre outros crimes alheios àquele para o qual está convocada como testemunha, estará
cometendo o crime de calúnia ou denunciação caluniosa, a depender do dolo que a
propugna. Só é falso testemunho aquilo que pertine ao processo; o restante, pode ser crime
contra a honra ou denunciação caluniosa, dependendo do caso.
2. Difamação
“Difamação
Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Exceção da verdade
Parágrafo único - A exceção da verdade somente se admite se o ofendido é
funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.”
A difamação é a imputação de fato ofensivo, o qual pode até mesmo ser verdadeiro:
a falsidade da imputação não é elementar do crime.
Na difamação, não há a previsão da conduta daquele que propala ou divulga, como
há no § 1° do artigo 138 do CP. Por isso, surgem duas correntes sobre a tipicidade destes
atos: Magalhães Noronha entende que por não ter adequação típica, o fato é atípico.
Contudo, a posição que prevalece, de Damásio e Mirabete, reputa estas condutas como
típicas, porque quem divulga ou propala comete simplesmente o crime do caput, incidindo
em difamação própria, e não aderida, como na calúnia.
A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo de difamação? Há duas correntes: se a
honra em jogo, na difamação, é a a objetiva, aquele juízo que o meio externo faz da pessoa,
esta honra é detida pela pessoa jurídica, e portanto pode ser aviltada. A jurisprudência adota
esta corrente com tranqüilidade, havendo até mesmo a súmula 227 do STJ para amparar tal
tese:
Magalhães Noronha defende que pessoa jurídica não tem honra, e como o crime é
contra este bem jurídico (e não imagem, ou bom nome), não pode ser sujeito passivo. É
minoritário.
Dizem os artigos 138, § 3°, e 139, § único, do CP, que a exceção da verdade é
admissível. Na calúnia, a natureza jurídica da exceção da verdade procedente é de
excludente de tipicidade, porque se se provar a verdade, a elementar da falsidade da
acusação, presente no tipo, deixa de existir – faltando o preenchimento formal do tipo.
Quando o fato for de persecução em ação penal privada, esta persecução só pertine
ao ofendido. Por isso, se este tiver perseguido o agente em ação penal privada, e obtido
condenação final, a pessoa que imputa aquele fato ao condenado não está praticando
calúnia, e se o condenado ajuizar ação contra este suposto caluniador, é claro que cabe
exceção da verdade, bastando exibir a condenação. Contudo, se alguém imputa crime que é
perseguido em ação penal privada a outrem, e este outrem entender-se caluniado, não pode
aquele que lhe imputou esta suposta calúnia alegar a exceção da verdade, porque estaria,
com isso, fazendo as vezes de promotor da ação penal privada, que seria realizada, por via
oblíqua, nesta exceção que fosse encontrada procedente – e a persecução só pertine ao
ofendido. Esta é a mens do artigo 138, § 3°, I, do CP.
Em síntese: se o crime envolvido é de ação privada, a exceção da verdade é vedada,
pois violaria o princípio da oportunidade em relação ao crime que foi objeto da calúnia.
Outra ressalva ao cabimento da exceção da verdade na calúnia, que é vedada
quando se tratar, o caluniado, de Presidente da República ou Chefe de Estado estrangeiro,
trata-se de mera política criminal, impedindo que o Presidente e as outras autoridades
trazem para juízo muito aquém do competente a discussão da responsabilidade criminal
destas pessoas. Esta é a mens do inciso II do § 3° do artigo 138 do CP.
Mas veja que não é porque não pode haver exceção da verdade contra o Presidente,
por exemplo, que a condenação do suposto caluniador é imperativa. Pierangeli diz que se
este agente comprovar que acredita realmente que aquilo que imputou seja verdadeiro, será
absolvido, mas não porque houve prova da verdade no processo, o que seria a exceção da
verdade, e sim porque o autor da calúnia está em erro de tipo, sobre a elementar
“falsamente” da imputação.
O inciso III do § 3° do artigo 138 do CP determina que não se admite a exceção da
verdade, na calúnia, quando o ofendido da calúnia tiver sido absolvido definitivamente.
Significa que a imputação de um crime de que outrora o caluniado foi suspeito é falsa, e de
nada adianta provar que houve o processo, pois isto não torna a imputação verdadeira. E
repare que qualquer que tenha sido o motivo da absolvição, não se admite a exceção:
mesmo que tenha sido absolvido por falta de provas, isto não legitima uma argumentação
de exceção da verdade. A absolvição, de qualquer tipo, é igual, para todos os efeitos penais,
quando transitada materialmente em julgado.
Na difamação, a exceção da verdade tem natureza de excludente da ilicitude, porque
se trata do exercício regular do direito de comunicar, sobre funcionário público, algum fato
relativo ao mau exercício de suas funções, mesmo que este fato seja tomado por ofensivo.
Diz Nelson Hungria que os funcionários públicos estão sempre sujeitos a um juízo de
censura por parte da população, e que as ofensas referentes à atividade na função, se se
demonstrarem verdadeiras, excluem a ilicitude (porque a falsidade não é elemento do tipo
da difamação).
“Art. 85. Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes as
pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais de Apelação, àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e
admitida a exceção da verdade.”
Se uma pessoa que tem foro privilegiado ajuíza ação penal perseguindo este crime
contra a honra, a exceção da verdade deverá ser julgada no juízo em que o querelante,
ofendido, tiver seu foro privilegiado. Veja: se um juiz for o ofendido em crime contra a
honra, se o réu da ação penal referente opuser a exceção da verdade, esta deverá ser
deslocada para o foro que seria competente para investigar o querelante, ou seja, o
respectivo tribunal de justiça.
A primeira informação importante que deve ser ressaltada é quanto à competência
para a instrução desta exceção da verdade: se o processo contra o caluniador, em que o juiz
é querelante, corre em vara criminal, e o réu opõe a exceção, é esta vara criminal que
realizará a instrução da exceção, porque o artigo 85, supra, fala que “caberá o julgamento”
ao foro por prerrogativa, e não que “caberá a instrução e julgamento”. Após o fim da
instrução, será remetida esta exceção para o tribunal. Tourinho critica este entendimento,
mas é a posição tranqüila do STF.
A exceção da verdade só cabe em calúnia e difamação, como se viu. Na calúnia, o
seu deslocamento é induvidoso, porque a exceção consiste na investigação de um crime
praticado ou não pelo detentor da prerrogativa, ora querelante-excepto. Na difamação,
porém, há divergências, surgindo três posicionamentos.
Tourinho Filho entende que se o CPP prevê que a exceção sobe ao foro da
prerrogativa nos casos em que é cabível, em qualquer caso que seja cabível deve ser
deslocada – em qualquer difamação ou calúnia, portanto, haverá o deslocamento. É posição
minoritária, mas conta até mesmo com um precedente no STJ, no Ag.Rg. na Ex.Verd. 22:
Guilherme Nucci, por sua vez, faz uma ponderação, criando uma terceira corrente,
em que entende que se o fato ofensivo imputado for uma contravenção penal, o que
configura difamação, o deslocamento da exceção se justificará, porque haverá o julgamento
de infração penal praticada pelo excepto, qual seja, a contravenção, se a exceção for
procedente.
A regra do deslocamento da exceção da verdade, do artigo 85 do CPP, incide para
ações penais públicas, mesmo que o artigo fale apenas em “querelante”. Isto porque o que
justifica o deslocamento é a imputação, e não a natureza da ação.
Subindo a exceção, o tribunal julgará apenas a exceção, segundo o STF, e Frederico
Marques. Assim entendem porque se assim não o fosse, o querelado estaria ganhando o
foro por prerrogativa a que não faz jus, apenas por ter oposto a exceção. Tourinho defende
que o tribunal deveria julgar toda a ação, tanto a exceção quanto a ação penal, por entender
estranha a composição de duas decisões para a resolução final, uma do tribunal, outra do
juízo a quo.
Se o tribunal julgar improcedente a exceção, não significa que o querelado será
condenado – ele poderá ser absolvido por outro motivo, que não a verdade dos fatos, pois
isto é matéria preclusa. Se não houver outra causa de absolvição, o réu será condenado.
Julgada procedente a exceção, o juízo a quo deverá, obrigatoriamente, absolver o
querelado, por esta razão. Ato contínuo, o processo será remetido ao foro da prerrogativa,
para que haja a persecução daquilo que foi imputado e encontrado verdadeiro.
2.3. Retratação
“Retratação
Art. 143 - O querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou
da difamação, fica isento de pena.”
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Tema X
Crimes contra a Honra III (Injúria).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica do crime de
injúria. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidades objetiva e subjetiva;b) A injúria real;c)
Semelhanças e diferenças com os outros crimes contra a honra;d) Disposições comuns e hipóteses de
exclusão do crime. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal nos crimes
contra a honra.
Notas de Aula20
1. Injúria
“Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:
I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;
II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou
pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à
violência.
§ 3° Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
(Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)”
A tutela deste dispositivo é sobre a honra subjetiva, o sentimento, o juízo que cada
um faz de si próprio.
Menores e loucos de toda sorte não podem ser injuriados, se não tiverem o mínimo
discernimento para saber que sua honra subjetiva está sendo aviltada. Se há capacidade de
se sentir ultrajados, porém, podem sim ser sujeitos passivos deste crime.
O crime de desacato, do artigo 331 do CP, crime contra a Administração Pública,
não passa de uma injúria praticada em face de funcionário público, e em razão das funções
20
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 28/10/2009.
– é uma injúria com destinatário e modo de execução especiais. Com esta ofensa, o autor
agride também a dignidade da Administração. Veja:
“Desacato
Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”
O tipo penal do desacato não exige que o sujeito ativo esteja na presença do
funcionário público. A doutrina, porém, à unanimidade, defende que este crime só se
configura quando a ofensa é proferida na presença do funcionário. Hungria traz esta
interpretação do direito italiano, e, por assim adotar a doutrina, quando a ofensa, mesmo
que contra funcionário público e em razão de suas funções, for irrogada na sua ausência, o
crime será de injúria, que é de forma livre, e não de desacato.
Em síntese, o desacato não passa de uma injuria contra funcionário, na sua
presença; estando ausente este elemento, o delito configurado será o de injúria.
O § 1º, I, deste artigo 140 diz que o juiz pode deixar de aplicar a pena quando o
ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria. Esta provocação reprovável
da vítima da injúria, segundo Capez e Damásio, pode se dar por qualquer meio – palavras,
gestos, ou até mesmo pela prática de um delito contra o injuriador –, justificando que o juiz
conceda o perdão judicial. Imagine-se, então, que alguém cause uma lesão corporal leve em
outrem, e este outrem retorna uma injúria contra aquele que o lesionou: o injuriador não
responderá, merecendo o perdão, e o injuriado ainda responderá pela lesão.
No inciso II deste § 1°, porém, o legislador permitiu o perdão judicial no caso de
retorsão imediata que consista em outra injúria. Há, portanto, duas injúrias cometidas. Daí
surge uma divergência doutrinária: a quem se dirige o perdão, ao segundo injuriador,
apenas, ou a ambos?
Para Rogério Sanchez Cunha, o perdão alcança ambos os envolvidos. Para ele, o
legislador deixa de considerar relevantes tanto a injuria quanto a sua retorsão. Para
Pierangeli e Bitencourt, contudo, apenas a segunda injúria é abrangida pelo perdão, pois
não se pode entender que o cometimento de um crime – a segunda injúria – tenha o poder
de desfazer o crime que já se consumou, a primeira ofensa proferida.
O crime de desacato, supra, não comporta este perdão por retorsão imediata, por
analogia. Contudo, o que pode se configurar, quando um particular redargúi com desacato a
uma ofensa contra si praticada por um funcionário público, é a legítima defesa da honra: o
agente usa do desacato como meio de defender sua honra contra ataque injusto.
porém, são absorvidas pela injúria real, e sua pena não é somada à da injúria. Esta é uma
regra geral das contravenções penais, diga-se: são sempre absorvidas, quando forem meio
para o cometimento de um outro crime.
A injúria real se apresenta por atos físicos que objetivem atacar a honra da vítima –
o dolo é de humilhar. Exemplos mais comuns são o tapa no rosto, o arremesso de ovos, etc.
O § 3° do artigo 140 do CP comina escala penal bem mais severa quando a injúria
consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Trata-se da injúria racial, que não se confunde com os crimes de racismo, da Lei
7.716/89. Segundo a doutrina, na injúria, o ofensor utiliza da raça para atingir a pessoa,
enquanto no crime de racismo, ele se utiliza da pessoa para discriminar toda a raça. A linha
divisória é tênue, mas há como se identificar o destinatário da ofensa, que é o que traça a
distinção.
O crime de racismo pode absorver a injúria racial, ou, quando praticados no mesmo
contexto, há sempre o concurso? O STF tem entendido que há uma progressão criminosa,
da injúria progredindo para o racismo, e não um concurso material de crimes. Embora
tutelem bens jurídicos distintos, a jurisprudência admite a absorção da injúria racial pelo
racismo, reconhecendo a progressão criminosa, em que o agente tinha dolo de injuriar, no
início da execução, mas no seu curso migrou para o dolo de cometer racismo.
A injúria racial é prescritível, mas o racismo não. Pelo ensejo, vale mencionar que a
lei pode criar casos de imprescritibilidade, pois a CRFB não vedou esta criação legal.
Contudo, não é o caso da injúria racial.
O artigo 141 do CP traz causas de aumento de pena dos crimes contra a honra
capitulados nos artigos anteriores, 138 a 140 do CP. Veja:
“Disposições comuns
Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se
qualquer dos crimes é cometido:
I - contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro;
II - contra funcionário público, em razão de suas funções;
III - na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da
calúnia, da difamação ou da injúria.
IV - contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto
no caso de injúria. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003)
Parágrafo único - Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de
recompensa, aplica-se a pena em dobro.”
A Lei de Imprensa foi revogada recentemente, mas os crimes contra a honra que lá
eram previstos não foram alvo de abolitio criminis. Na verdade, com a revogação da Lei
5.250/67, as condutas que lá eram tipificadas passaram a ser enquadradas nos crimes contra
a honra comuns, e com isso a seguinte peculiaridade ocorreu: como os crimes de lá eram
executados por meios de divulgação em massa, as condutas que por lá respondiam
passaram a ter-se subsumidas à causa de aumento de pena do inciso III deste artigo supra.
Em síntese: os crimes contra a honra, quando cometidos por meio da imprensa, são
tipificados agora no CP, com a capitulação pertinente, em combinação com este inciso III
do artigo 141, supra.
O inciso IV do artigo supra foi inserido pelo estatuto do Idoso. Vale mencionar que
neste diploma há o artigo 96, § 1°, que é norma típica especial em relação aos crimes do
CP, se ali se enquadrar a conduta. Se não se subsumir ao tipo especial, ainda será típica,
caindo na capitulação do CP pertinente, combinada com este inciso IV do artigo 141.
O artigo 142 do CP, que já foi superficialmente abordado, trata da exclusão dos
crimes de injúria e difamação:
“Exclusão do crime
Art. 142 - Não constituem injúria ou difamação punível:
I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador;
II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando
inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou
informação que preste no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único - Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação
quem lhe dá publicidade.”
Quanto à natureza jurídica deste dispositivo, há três correntes. Para Nelson Hungria,
sempre que o legislador exclui a punição de um fato que preenche os requisitos para
configurar crime, estaremos diante de uma causa especial de exclusão ou extinção da
punibilidade. Mirabete e Delmanto, seguindo a doutrina européia, entendem que as
hipóteses estariam relacionadas a condutas permitidas pelo ordenamento, alcançadas pelo
exercício regular de direito, só que em norma especial.
A melhor posição, porém, é a de Pierangeli, que entende que aquilo que for
realizado dentro dos limites destas condutas ali mencionadas, na verdade é isento de dolo, e
por isso são causas de exclusão da tipicidade. Para estes autores, falta o dolo específico de
ofender a honra alheia, quando os agente se portam nestes limites.
inciso IX - sustentação oral, pelo advogado da parte, após o voto do relator. Pedido
prejudicado tendo em vista a sua suspensão na ADIn 1.105. Razoabilidade na
concessão da liminar.”
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
MÁRCIA recebeu de seu filho a notícia de que, no período de aula, teria levado
uma mordida de outra criança. No dia seguinte, acompanhou-o até a escola, e foi
conversar com a professora, para que aquilo não mais se repetisse. Passados alguns dias,
MÁRCIA dirigiu-se novamente à escola e, na sala da Direção, onde havia várias pessoas,
desferiu um tapa no rosto de JOANA, Diretora da Instituição. Ao descer do prédio,
MÁRCIA encontrou DAMIANA, mãe de um coleguinha de seu filho, que lhe perguntou o
que havia ocorrido, tendo MÁRCIA respondido, de forma cínica, que havia "dado na cara
da Diretora", a fim de que esta "aprendesse a melhor dirigir seu estabelecimento".Capitule
os fatos.
Resposta à Questão 2
Trata-se do crime de injúria real, praticado por meios físicos, na forma do artigo
140, § 2°, do CP.
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XI
Notas de Aula21
Passemos, então, ao estudo pontual de cada um dos tipos penais deste capítulo.
2. Constrangimento ilegal
“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução
do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir suicídio.”
Se o crime de roubo deixa de se consumar porque a vítima não tinha bens consigo,
quando abordada e ameaçada, resta ainda a imputação pelo crime tentado, e não pelo
constrangimento ilegal: não há que se falar em crime impossível quanto ao roubo 22, porque
já ingressa na lesão de um dos bens jurídicos tutelados no roubo – a liberdade individual.
Veja o REsp. 897.373:
22
Veja que difere do furto, porque a ausência de bens neste é sim suficiente a configurar o crime impossível,
eis que há a absoluta impropriedade do objeto, não havendo lesão qualquer a configurar execução frustrada,
como o há no roubo.
Para que se configure esta causa de aumento, é preciso que aqueles que concorram
estejam presentes na execução da coação, pois a mens da maior reprovabilidade, aqui, é
justamente o maior poder de intimidação que a pluralidade de agentes acarreta, segundo
Hungria.
O dispositivo também agrava o crime por emprego de armas. Veja que não é por
estar o termo “armas” no plural que significa que deve haver uso de mais de uma: armas,
ali, é significativo de gênero, bastando uma para configurar a circunstância. Estão ali
abrangidas tanto as próprias quanto as impróprias (facas de cozinha, chaves-de-fenda, etc.).
O emprego de arma consiste em qualquer uso que desta se faça no constrangimento,
bastando inclusive o porte ostensivo.
Problema que surge aqui diz respeito à relação entre o uso da arma, no
constrangimento ilegal, e os delitos de porte de arma de fogo ou disparo de arma de fogo,
do Estatuto do Desarmamento: há concurso de crimes?
Quanto ao porte, a situação é complicada, eis que mereceria absorção, por ser crime
meio, mas o constrangimento agravado ainda tem a pena menor do que o crime de porte,
como se vê no artigo 14 da Lei 10.826/03:
No crime de disparo, por seu turno, é ainda mais estranha a subsidiariedade: ela é
expressa, fazendo-o subsidiário a “outro crime”, nada falando se este é mais ou menos
grave para tanto. Veja o artigo 15 do Estatuto:
“Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da
autoridade:
Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a
três contos de réis, ou ambas cumulativamente.
§ 1º A pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em
sentença irrecorrivel, por violência contra pessoa.
23
É claro que, havendo disparo e porte no mesmo contexto, este último resta absorvido, pois é crime-meio
necessário ao cometimento do disparo.
“Art. 107. Coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar
procuração:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”
3. Ameaça
“Ameaça
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio
simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”
O mal prometido na ameaça deve ser presente ou futuro? Para Nucci, o mal tem que
ser sempre futuro, pois a ameaça de mal presente é execução de algum outro delito. Para
Damásio, porém, tanto pode ser presente quanto futuro.
A ameaça deve ser grave e séria, e verossímil. A intenção de realmente levar a cabo
o que foi ameaçado não é exigida, consumando-se a ameaça quando esta ocorrer, de forma
verossímil.
Há ameaça condicional? Mirabete faz a distinção entre ameaça condicionada a
evento futuro e incerto, e a ameaça condicionada a alguma conduta da vítima. A ameaça
condicionada a evento futuro e incerto consiste em crime de ameaça, sem qualquer
problema; já a que depende de conduta da vítima poderia ser outro fato típico – o
constrangimento ilegal.
Veja: há crime de ameaça em se dizer, por exemplo, “vou te matar se meu time
perder o campeonato”, mas não há ameaça em se dizer “vou te matar se você vier até aqui”.
Neste segundo caso, está claro o constrangimento ilegal, e não a mera ameaça.
A ameaça comporta tentativa, unanimemente na forma escrita, e para alguns, quanto
na verbal, se se considerar plurissubsistente esta execução. Não se confunda esta
possibilidade de tentativa com a necessidade de que haja a efetiva intimidação da vítima:
esta não é exigida para a consumação, bastando haver a conduta de ameaçar para restar
consumado este crime.
O crime de ameaça é subsidiário por natureza, sempre sendo absorvido por delitos
mais graves de que faça parte na execução.
O agente precisa estar calmo quando profere a ameaça, para esta ser típica, ou
também configura o crime a ameaça proferida em ânimo exaltado? Há duas correntes
doutrinárias: Hungria defende que o ânimo calmo é necessário, pois sem ele não há o
condão de a ameaça oferecer intimidação. A corrente majoritária, porém, é a de Damásio,
Bitencourt e Mirabete, que entendem que a emoção e a paixão, que levam à exaltação de
ânimo, não desnaturam o delito, havendo a potencialidade de intimidação.
Se a ameaça for cometida por meio de arma de fogo, como não se vê o emprego da
arma como elementar do tipo (diferentemente do constrangimento ilegal agravado, como
visto), é perfeitamente possível o concurso de crimes, entre porte e ameaça. Neste sentido,
veja o REsp. 481.985:
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
a) Não: o delito de ameaça foi praticado apenas contra a pessoa física, não
podendo a pessoa jurídica ser sujeito passivo de crime contra a liberdade
individual. Não há interesse jurídico justificável do hospital em figurar como
litigante, assistente de acusação, in casu.
b) O crime, aqui, seria de extorsão, e deste delito a pessoa jurídica pode ser sujeito
passivo, eis que é crime contra o patrimônio. Sendo assim, poderia a ordem ser
concedida, fosse esta a hipótese.
Questão 2
AMARILDA, durante uma discussão com seu ex-namorado, disse: "venha até aqui
que eu vou cortar a sua cara com gilete", fato este presenciado por dois vizinhos da
mesma. Em razão disso, o Ministério Público ofereceu denúncia contra ela, pela prática
do crime previsto no artigo 147 do Código Penal. A peça acusatória deve ser recebida?
Por quê?
Resposta à Questão 2
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XII
Crimes contra a Liberdade Individual II (Seqüestro, cárcere privado, redução à condição análoga à de
escravo e situações equiparadas - Lei 10.803/03).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica.
Bem jurídico tutelado;b) Sujeitos do delito;c) Tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes de seqüestro, cárcere
privado, redução à condição análoga à de escravo e equiparados. Diferenças. 2) Aspectos controvertidos. 3)
Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal. 5) Crimes contra a inviolabilidade do domicílio, da
correspondência e dos segredos:a) Considerações gerais: definição e evolução histórica. Conceito de
domicílio. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Aspectos
controvertidos;c) Concurso de crimes;d) Pena e ação penal.
Notas de Aula24
“(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
(...)”
Na verdade, a maioria dos artigos deste capítulo, especialmente 146 a 149, são tipos
penais subsidiários por natureza. Isto porque, ao longo do CP, há outros tipos penais
dedicados a proteger com mais vigor estes bens jurídicos relativos à liberdade, em situações
mais específicas nas quais a violação precisa de maior reprimenda, e que prevalecem sobre
os tipos deste capítulo.
Enquanto o artigo 146 do CP tutela a liberdade individual sob o prisma de “fazer ou
não fazer”, o artigo que agora será analisado, 148 do CP, tutela a liberdade de ir e vir.
Vejamos:
Art. 148 - Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:
I - se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou
maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
II - se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou
hospital;
III - se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº
11.106, de 2005)
V - se o crime é praticado com fins libidinosos. (Incluído pela Lei nº 11.106, de
2005)
§ 2º - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção,
grave sofrimento físico ou moral:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.”
O bem jurídico tutelado é a liberdade ambulatorial, liberdade de ir, vir ou
permanecer. Trata-se de bem jurídico perfeitamente disponível, desde que não represente,
esta disposição, ofensa à dignidade da pessoa humana. Nada impede, por exemplo, que
alguém se encarcere voluntariamente, como o fazem as freiras nos conventos, ou mesmo a
mulher que voluntária e manifestamente se deixe prender em casa, por vontade do marido.
Neste exemplo da mulher que se deixa prender, porém, se se verificar que esta
disposição de sua liberdade lhe afeta a saúde, física ou mental, de forma irrazoável, estará
claro o excesso, e a conduta passa a alcançar bens jurídicos indisponíveis, não mais sendo
tolerada. O parâmetro da tolerância ao consentimento sobre a restrição da liberdade é a
dignidade da pessoa.
Qualquer pessoa pode ser vítima deste crime, ao contrário do artigo 146 do CP, que,
como se viu, exige algum discernimento por parte da vítima. Aqui, a privação da liberdade
pode alvejar qualquer pessoa, quer esta tenha consciência ou não desta situação.
Sequestro é a detenção ou a retenção de uma pessoa, por determinado período de
tempo, no qual fica sob inteiro domínio do seqüestrador. Reter é manter coativamente a
pessoa em local em que já esteja; deter é tomar ativamente a liberdade de alguém que não
estava já no local da retenção.
Cárcere privado, por sua vez, é a limitação ainda mais severa da liberdade,
diferindo do sequestro apenas quanto à intensidade, havendo mesmo quem defenda que esta
separação conceitual não tem qualquer valor. Um bom exemplo seria a retenção de alguém
trancado em uma casa, o que é sequestro, enquanto a retenção da pessoa em um banheiro
desta casa seria cárcere privado – eliminando quase que por completo a liberdade de
locomoção. A linha diferenciadora é bem tênue, como se vê.
Veja que o cárcere pode ser configurado mesmo em situações em que a liberdade já
é limitada. Por exemplo, se os presos de uma cela amarram um de seus companheiros de
cela à cama, impedindo-o de locomover-se pela cela, há a limitação indevida da já pouca
liberdade que ele tinha.
O sequestro se consuma, tem início, quando a pessoa se vê impossibilitada de sair
do local em que está, por força alheia. Qualquer que seja a força, diga-se: pode ser o
trancafiamento em local fechado, ou mesmo a coação de pessoa armada, mesmo estando o
local aberto. Hungria dá exemplo curioso: a mulher está tomando banho nua no lago,
quando vem o agente ativo e lhe toma as roupas: ela não poderia sair do lago, porque o
vexame representaria grave risco moral, ou mesmo risco pessoal de ser atacada, o que
configuraria sequestro por aquele que lhe toma as vestes.
O carcereiro que não liberta o preso, quando era seu dever fazê-lo, responderá de
acordo com a Lei 4.898/65 – abuso de autoridade. Sua conduta, assim como a de qualquer
autoridade policial, se enquadra no artigo 4°, “a”, deste diploma, quando há uma ordem de
prisão a ser executada, mas ele a executa com abuso de poder ou quebra das formalidades:
Este crime é chamado de plágio, termo que é muito usado em outros contextos
como o ato de copiar alguma coisa. O plágio, aqui, é a sujeição de uma pessoa ao domínio
de outra.
Outrora, quando a escravidão era uma instituição tolerada, o escravo era um ser
despido de personalidade, e sua natureza jurídica era de coisa, tal como um semovente. O
que o artigo quer é vedar que este tratamento, que reduz alguém a uma condição de não-
pessoa, seja praticado.
É um crime de forma vinculada, só podendo ser praticado por meio das condutas
arroladas no caput e no § 1° do artigo em comento. Escravo é o elemento normativo do
tipo, sendo considerado aquela pessoa que se vê tratada como coisa, sem qualquer
reconhecimento de personalidade.
Submeter a pessoa a trabalhos forçados é subjugá-lo a trabalhar contra sua vontade.
Repare que, nem sempre, o fato de trabalhar contra a vontade será constatado de plano:
pode o trabalhador supostamente declarar que está ali consentidamente, mas é fundamental
se perceber que o consentimento, na situação fática do trabalho forçado, análogo ao de
escravos, não é válido – o bem é indisponível ao sujeito passivo.
O mesmo raciocínio se repete nas demais modalidades de cometimento do delito:
não pode o sujeito passivo consentir em jornadas exaustivas, exacerbadas, ou em condições
degradantes de trabalho (como exemplo destas, as carvoarias).
A forma de cometimento do crime que se consubstancia na restrição de locomoção
do sujeito passivo, em razão de dívida por este contraída com o empregador ou preposto,
pode gerar confusão entre este artigo 149 do CP e o crime do artigo 203 do mesmo Código,
especialmente nas condutas do § 1°:
3. Violação de domicílio
“(...)
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
(...)”
O Direito Penal reprime a violação a este direito fundamental, no artigo 150 do CP:
“Violação de domicílio
Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a
vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas
dependências:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego
de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à
violência.
§ 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário
público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades
estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.
§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas
dependências:
I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou
outra diligência;
II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali
praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º - A expressão "casa" compreende:
I - qualquer compartimento habitado;
II - aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou
atividade.
§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta,
salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.”
4. Inviolabilidade de correspondência
“Violação de correspondência
Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada,
dirigida a outrem:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Sonegação ou destruição de correspondência
§ 1º - Na mesma pena incorre:
I - quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada
e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;
Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica
Este artigo sofreu severas alterações informais por parte de outras leis. Vale pontuar
expressamente cada uma.
O caput do artigo 151 foi revogado pelo artigo 40 da Lei 6.538/78, Lei dos Serviços
Postais:
“VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Art. 40º - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida
a outrem:
Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa.
SONEGAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de
correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo
ou em parte.
AUMENTO DE PENA
§ 2º - As penas aumentam-se da metade se há dano para outrem.”
Rogério Greco entende que, na medida que o caput foi revogado, nada mais que
nele se escorava pode sobreviver – todo o artigo teria sido revogado. Contudo, não é o
entendimento prevalente na doutrina.
Este artigo 40 fala em “correspondência”, e este conceito vem explicitado no artigo
47 do mesmo diploma:
“Art. 47º - Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
(...)
CORRESPONDÊNCIA - toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta,
através da via postal, ou por telegrama.
(...)”
O § 1°, I, do artigo 151 do CP foi revogado pelo § 1° deste artigo 40, supra, que diz
que quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para
sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte, responde com a mesma pena do caput.
Veja que não se trata da conduta de apenas devassar a correspondência, tomando
ciência de seu conteúdo. As condutas deste § 1° do artigo 40 podem sequer fazer com que o
autor do delito tome conhecimento do conteúdo da carta – pode simplesmente destruí-la
sem lê-la. E veja que aqui se insere como objeto de proteção também a correspondência
aberta.
As mesmas situações em que o devassamento é devido podem justificar a destruição
da correspondência: pode um pai destruir correspondência endereçada ao filho menor,
quando perceber que se trata de um conteúdo pornográfico, ou criminoso, por exemplo.
Há uma diferença extremamente importante entre a redação do revogado artigo 151,
§ 1°, I, do CP, para o artigo 40, § 1°, da Lei 6.538/78, que lhe tomou o lugar: enquanto o CP
falava na conduta de quem se apossa indevidamente de correspondência alheia e a sonega
ou destrói, a Lei 6.538/78 fala em “para sonegá-la ou destruí-la”. Assim, o crime que era
material no CP, passou a ser formal, na lei que assumiu a tipificação.
O § 1°, II, do artigo 151 do CP, teve apenas a parte final revogada pelo artigo 10 da
Lei 9.296/96:
“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial
ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”
Veja: o artigo 151, § 1°, II, diz que quem indevidamente divulga, transmite a outrem
ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou
conversação telefônica entre outras pessoas, comete este crime. A Lei 9.296/96 apenas
revogou a parte final do dispositivo, que se refere à “conversação telefônica entre outras
pessoas”. Sendo assim, a conduta do artigo que se refere às comunicações telegráficas e
radioelétricas ainda é típica segundo o artigo do CP, mas aquilo que se refere à
comunicação telefônica é tipificado no artigo 10, supra.
O § 1°, III, do artigo 151 do CP não foi revogado, permanecendo vigente. Por isso,
quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior, de qualquer
forma, responde neste artigo. É o caso, por exemplo, de quem corta os fios do telefone,
interfere em ondas de rádio, e condutas assemelhadas.
4.4. Rádio-pirata
O § 1°, IV, do artigo 151 do CP foi revogado pelo artigo 70 da Lei 4.117/62:
“Art. 70. Constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois)
anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de
“AGRAVAÇÃO DE PENA
Art. 43º - Os crimes contra o serviço postal, ou serviço de telegrama quando
praticados por pessoa prevalecendo-se do cargo, ou em abuso da função, terão
pena agravada.”
Mas veja que neste caso só está incurso o agente que não é autoridade, pois se o for,
estará incurso no artigo 3°, “c”, da Lei 4.898/65, já transcrito.
5. Correspondência comercial
“Correspondência comercial
Art. 152 - Abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento
comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou
suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo:
Pena - detenção, de três meses a dois anos.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”
6. Divulgação de segredo
“Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou
de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja
divulgação possa produzir dano a outrem:
“Art. 23. Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos
órgãos públicos na classificação dos documentos por eles produzidos.
§ 1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do
Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente
sigilosos.
§ 2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do
Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de
sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual
período.
§ 3º O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas
será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de
produção.”
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000).”
“Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou
certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer
notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de
nova infração penal ou outros casos expressos em lei.”
Casos Concretos
Questão 1
TÍCIO foi internado numa clínica psiquiátrica em razão de uma crise psicótica, por
seus familiares. Debelada a crise e já tendo obtido condições de alta hospitalar, o
internado deixou de ser liberado em razão dos seus familiares terem alegado não
possuírem condições econômicas para o pagamento da conta de internação, condição
imposta pelo gerente daquele frenocômio para tal liberação. Minutos após e com a
chegada de policiais, cuja presença foi solicitada pelos familiares do internado, este foi
encontrado isolado em determinado compartimento da clínica, tendo sido alegado que a
justificativa para isto se devia a ter sido ele identificado como portador de doença
contagiosa.
a) Existe delito a ser identificado? Em caso afirmativo, qual?
b) Caso não houvesse o problema do pagamento da conta de internação e a não-
liberação de TÍCIO se devesse a expediente desenvolvido por um dos seus
familiares com a direção da clínica, haveria diferença para efeito de eventual
tipificação penal?
c) O fato de a ausência de liberação do internado ter se verificado por poucos
minutos, caracterizaria a tentativa ou a consumação do ilícito?
d) A justificativa apresentada para a não liberação do interno, após a chegada da
polícia, se verdadeira, seria relevante?
Resposta à Questão 1
Questão 2
JOÃO foi preso em flagrante porque, em razão de uma notícia veiculada através do
disque-denúncia, mantinha em sua casa objetos que eram produto de roubos praticados
por uma quadrilha especializada na prática de crimes patrimoniais. Levado para a
delegacia e autuado em flagrante delito, foi ele encaminhado à carceragem e colocado
numa cela onde já se encontrava um antigo desafeto, de nome PEDRO. PEDRO,
aproveitando-se de sua influência sobre os demais detentos, querendo vingar-se de JOÃO,
determina que ele seja amarrado a uma das grades por tempo indeterminado. Duas horas
depois, o carcereiro percebeu o que estava acontecendo e nada fez, por entender que seria
melhor não intrometer-se nas questões pessoais entre os aprisionados.
a) Analise a situação, especificando se houve cometimento de algum crime por
parte dos detentos;
b) Igualmente examine o comportamento do carcereiro e explique se ele praticou
algum delito.
c) A situação se alteraria, se PEDRO e os demais presos, considerando ser JOÃO
inimigo do primeiro, submetessem João a grave sofrimento físico ou mental? Neste
caso, como ficaria a situação do carcereiro?
Resposta à Questão 2
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XIII
Furto I.1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Conceito de patrimônio;b) Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva do furto simples;c) O furto agravado;d) O furto
privilegiado;e) O furto de energia. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.
Notas de Aula26
1. Furto
“Furto
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou
aplicar somente a pena de multa.
§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha
valor econômico.
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III - com emprego de chave falsa;
IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.
§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo
automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)”
A grande nota característica do furto, aquilo que o isola com bastante peculiaridade
dos demais crimes de ordem patrimonial, está no verbo “subtrair”. Subtrair é pegar, sacar,
26
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 27/10/2009.
tirar. Neste crime, a vítima nada faz, em princípio: é o agente que vai até seu patrimônio e
de lá retira o bem.
Disso se conclui, por exemplo, que quando o bem é entregue ao sujeito ativo pela
vítima, não há subtração, e não há furto, em regra. É por isso que o guardador de carros que
recebe o veículo do seu dono, e foge com o carro, não comete furto – não há subtração. Por
isso, poderá se configurar uma série de outros delitos, que ainda serão estudados, como a
apropriação indébita, o estelionato, mas furto não houve.
Ocorre que esta regra da subtração é de uma nuance por vezes muito frágil. A
doutrina registra alguns exemplos em que esta subtração pode não ocorrer, ao menos da
forma direta como se a entende. É o caso, por exemplo, da detenção vigiada, que traz para
o furto uma conduta que seria, se desvigiada, apropriação indébita. Vejamos.
O artigo 168 do CP traz o crime de apropriação indébita:
“Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
(...)”
Neste crime, o agente ativo tem a coisa de outrem consigo por uma relação qualquer
de confiança, e se aproveita desta posse ou detenção surgida licitamente para ficar com a
coisa, negando-se a restituí-la. A posse ou detenção, aqui, é desvigiada, ou seja, o dono da
coisa confia-a ao criminoso sem plantar guarda sobre a detenção que este agora exerce. É,
em síntese, o empréstimo em confiança, por assim dizer.
Quando a posse ou detenção é dada ao agente, mas o dono guarda vigilância sobre o
detentor – a chamada detenção vigiada –, não se preenche o tipo da apropriação indébita,
quando o bem não lhe é entregue: há furto. Entenda-se com um exemplo: se o dono do
veículo leva-o à oficina, e lá o deixa desvigiado, voltando para casa, há clara apropriação
indébita se o mecânico desaparece com o veículo. Se, contudo, o dono do carro leva-o à
oficina, entrega o carro ao mecânico, e permanece lá aguardando o fim do serviço, se o
mecânico desaparecer com o carro, há furto: mesmo não tendo havido, criteriosamente, a
subtração das mãos do dono, houve a subtração do bem à sua vigilância, pois estava
presente a detenção vigiada pelo dono, configurando furto. A subtração do bem por meio da
burla à vigilância do dono da coisa, pelo detentor vigiado, é furto, e não apropriação
indébita, mesmo que o bem tenha sido entregue ao detentor – há subtração do bem, e não
apropriação indébita.
Outra situação similar é a do test-drive: quando o veículo é entregue ao suposto
comprador para proceder ao teste, e este desaparece com o carro, há furto, porque o
vendedor manteve a vigilância sobre o bem entregue – há detenção vigiada, portanto.
Assim entendem Mirabete e Magalhães Noronha, além do STJ, mas seria de se cogitar se
não houve, de fato, estelionato, porque o agente se passou fraudulentamente por cliente
potencial para obter a entrega do veículo, mas prevalece a posição de que se trata, este caso,
de furto. Veja o REsp. 226.222:
Outra situação peculiar, que a doutrina reputa como furto, mesmo que a subtração
não esteja evidente, é o da incapacidade total de resistência da vítima. Veja: se o agente
induz uma criança pequena, sem qualquer discernimento, ou um deficiente mental, também
sem discernimento, a entregar-lhe alguma coisa pelo emprego de algum ardil, não há
estelionato: há furto.
Isto porque para que haja estelionato, é preciso que o golpe seja capaz de enganar
pessoa que tenha capacidade de resistência psicológica a ardis, e os incapazes não podem
efetuar esta entrega viciada: não há a burla à resistência psicológica, porque esta
simplesmente inexiste. Há a subtração indireta, portanto. Veja o tipo do estelionato, pelo
ensejo:
“Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
(...)”
ser-lhe-ia entregue pela vítima. Há furto, portanto, tendo a vítima sido induzida em erro,
mas não disponibilizado voluntariamente seu patrimônio ao bandido.
Qual a definição jurídica do furto de um bem em poder do furtador? Suponha-se que
alguém furte um veículo; em seguida, um terceiro vem e furta o mesmo veículo, que estava
em poder do primeiro furtador. Esta dinâmica consiste em dois furtos do mesmo bem,
contra a mesma vítima – o proprietário original. Veja que o primeiro furtador, ao ter o bem
de si subtraído, não foi furtado, ele próprio: ele nunca teve direitos patrimoniais sobre o
bem. Por isso, quem furta o bem que o furtador havia subtraído nada mais faz do que furtar,
ele próprio, o mesmo bem da vítima original – há dois crimes apartados, apenas
coincidindo a vítima.
Questão importantíssima é a que se refere ao arrebatamento com lesão. Quando o
furtador impõe violência contra a coisa, mas acaba causando, com isso, lesão à vítima, qual
a definição do delito? Suponha-se que um bandido queira levar o cordão de ouro que está
no pescoço da vítima. Ao executar a subtração, puxa-lhe o cordão com certa violência,
causando pequena escoriação no pescoço. O STJ tem decidido que esta situação se trata de
roubo, e não de mero furto: a violência é dirigida contra a coisa, mas se a vítima é atingida,
há roubo, e não furto. Veja o REsp. 6.436:
Há quem entenda, porém, que para haver roubo é necessário que a violência seja
dirigida contra a pessoa, diretamente, e não atingindo-a como mero colateral da execução
da subtração, pois do contrário seria furto. Quando a lesão é fundamental para a obtenção
do bem – o ladrão que quer o brinco da vítima sabe que terá que rasgar sua orelha –, é claro
que o roubo se configura, pois não se pode entender que esta lesão seja mero colateral do
furto.
Outro exemplo: quando o ladrão, para tomar a bolsa da vítima, tem que puxá-la,
derrubando e ferindo a vítima, está claro o roubo, porque a violência se dirige diretamente à
pessoa. Se, porém, a lesão for superficial e praticamente acidental – ao puxar a bolsa, que
estava folgada nos ombros, o ladrão causa leves escoriações na vítima –, seria mais
razoável entender que há mero furto, pois a ação violenta foi dirigida à coisa, apenas
resvalando, acidentalmente, sobre a vítima. O STJ, ressalte-se, não faz esta diferença: para
esta Corte, se há arrebatamento violento, de qualquer forma, há roubo.
O esbarrão, a trombada, pode configurar uma ou outra situação. Se o encontrão do
meliante com a vítima serve apenas como método de distração desta, a fim de que o agente
ativo possa subtrair um bem desta, quando causada a confusão, há furto: a trombada é mero
ato de destreza na execução da subtração, levando a vítima a quebrar sua atenção e
vigilância. Outrossim, quando o bandido se choca com a vítima violentamente, até mesmo
para derrubar a vítima, e com isso captar-lhe os bens, não se fala mais em destreza na
quebra da vigilância: se fala em violência, e com isso se configura o roubo.
Além do verbo nuclear do tipo do furto, a subtração, outra nota distintiva deste
delito reside no especial fim de agir constante de sua redação, o que para Zaffaroni é o
elemento subjetivo do tipo distinto do dolo, além do dolo: o animus rem sibi habendi,
presente na expressão “para si ou para outrem”. O furto é um dos tipos denominados delitos
de intenção, que têm esta especial finalidade de agir expressa em seu teor.
Veja: o tipo do furto é daqueles que a doutrina chama de tipos penais incongruentes,
justamente por esta presença de um “dolo adicional”, por assim dizer. O dolo do furto é o
de realizar a ação descrita no tipo, a subtração de coisa alheia móvel. Este é o dolo
ordinário, por assim dizer, de quem pratica o furto. O tipo objetivo, a subtração de coisa
alheia móvel, está preenchida quando o agente pratica esta conduta com este dolo. Até aí,
há congruência entre o tipo objetivo e o subjetivo.
Ocorre que o legislador fez constar no tipo mais do que este dolo, para configurar o
delito: fez presente também um elemento subjetivo adicional, um dolo adicional,
consistente na finalidade de haver o bem para si ou para outrem, e somente assim
configurando o delito. O furtador tem que agir com “dois dolos”, por assim dizer: tem que
ter a intenção de subtrair coisa alheia móvel, e fazer esta coisa incorporar-se ao seu
patrimônio ou o de outrem.
É por isso que se diz incongruente, este tipo: há um elemento objetivo, apenas –
subtrair coisa alheia móvel –, mas há dois elementos subjetivos: o dolo de subtrair e o dolo
de haver a coisa em patrimônio diverso do seu titular.
Por conta disso, se o agente preenche um dos elementos subjetivos, mas não
preenche o outro, o crime não se delineia. É o caso em que o agente subtrai
intencionalmente coisa alheia móvel, mas não pretende com isso fazê-la integrada ao seu
patrimônio ou o de outrem, que não o titular original. Por exemplo, quando o agente subtrai
um bem com o ânimo de destruí-lo: preenchido está o dolo de subtração, mas não o de
haver a coisa em patrimônio próprio ou de terceiros – há o crime de dano. Diferentemente
ocorreria se, com o dolo de haver a coisa para si, o agente a destrói: o agente comporta-se
como dono, furtando a coisa para si. A destruição posterior, por qualquer motivo que seja,
não desnatura seu dolo de apoderar-se da coisa; ao contrário, revela que se achava
realmente dono desta, podendo dela fazer o que bem entender, inclusive destruí-la.
A falta deste ânimo de apoderamento definitivo da coisa, para si ou para outrem, é
que desnatura a tipicidade do furto de uso: é atípica a conduta daquele que subtrai coisa
alheia móvel dolosamente, mas com o ânimo de restituí-la tal como tomada, exatamente
como subtraída. É fundamental, porém, para que se configure com precisão a ausência do
animus rem sibi habendi, tornando atípica a conduta do furto de uso, que se preencham
alguns requisitos. Senão vejamos.
Primeiro requisito é que o bem tem que ser infungível, particularizável, pois do
contrário haverá a transmissão deste ao patrimônio do agente, e retorno posterior ao
patrimônio do subtraído. Entenda: se o agente subtrai dinheiro, por exemplo, e o gasta, para
depois restituir a quantia exata ao proprietário, não se pode falar em furto de uso. O bem, o
dinheiro, incorporou-se ao patrimônio do furtador, pelo tempo em que ali ficou, e depois
retornou ao proprietário original. O dinheiro não foi usado, no teor criterioso da palavra: foi
consumido e depois substituído27. Houve, nesta transferência de patrimônio temporária, a
finalidade de haver o bem para si, mesmo que pro um determinado período.
Segundo requisito, que já se pôde vislumbrar, é que o uso seja momentâneo. O
período do uso não pode perturbar de forma significativa a posse da vítima, o que é uma
equação extremamente casuística. Nucci traça um critério para a definição do que se
enquadre neste aspecto da momentaneidade: só é assim considerado o furto no qual a
restituição ocorreu antes da vítima perceber que havia perdido a coisa.
Este critério não é muito técnico, sendo preferível a verificação de prejuízo ou não à
vítima. Veja: o uso de um carro por um dia pode não perturbar relevantemente a
disponibilidade deste bem por um proprietário – particular que tem dois ou três carros –,
mas pode perturbar outro, para quem um dia é fundamental – um taxista, por exemplo. A
questão é de bom senso.
Último requisito para configurar o ânimo de uso, e não de apoderamento pelo
sujeito ativo e extrusão patrimonial da vítima, é a restituição da coisa íntegra. O agente que
destrói a coisa, ou a desgasta, age como se dela fosse dono, o que desnatura o ânimo de
mero uso. O agente que subtrai a coisa e depois a abandona, igualmente está se
comportando como se dono fosse, e por isso não se fala em furto de uso – há furto. É de se
considerar com razoabilidade este requisito, porém, eis que no campo da existência física,
tudo se altera a todo instante, e por isso a restituição de uma coisa jamais poderá ser feita da
exata forma em que esta foi subtraída. O furto de um carro para dar uma volta no
quarteirão, por exemplo: ao restituir o bem, mesmo que se reponha a mínima gasolina e
óleo consumidos, as peças sofreram um mínimo desgaste, o que, em se levando este
requisito ao pé-da-letra, desnaturaria o uso, fazendo ocorrer furto. É claro que assim não
ocorre: o mínimo desgaste da coisa não consubstancia o furto.
Outrossim, se o agente furta o carro com o tanque cheio, e o restitui com o tanque
vazio, está claro que não houve furto do carro – quanto a este, houve mero ânimo de uso –,
mas não se pode deixar de observar que houve o furto da gasolina: este bem, fungível, foi
consumido e não retornado ao proprietário.
Um exemplo discutido na doutrina é o de uma empregada doméstica que, para ir a
uma festa, subtrai jóia de sua patroa. Usa-a na festa, mas, no caminho de volta, é roubada,
não conseguindo restituir o bem à proprietária. Para a doutrina maior, careceu a situação,
aqui, do terceiro requisito, o que fez configurar-se o furto, especialmente porque a agente
colocou a coisa em risco, o que de certa forma indica que se apoderou da coisa como se
dona fosse. A crítica que se pode fazer a este entendimento é a de que a empregada, na
verdade, jamais teve dolo de apoderar-se da coisa, e ao se imputá-la por este dolo, se estaria
criando responsabilização por um dolo especial que ela nunca teve – o que enuncia, de certa
forma, responsabilização penal objetiva. Diferentemente ocorreria se ela abandonasse a
coisa: este ato de disponibilidade revela ânimo de dono. Prevalece, porém, o primeiro
entendimento.
27
Exemplo simplório, mas que serve bem para ilustrar o alcance do uso, especialmente no que tange ao
dinheiro, é o seguinte: se o dinheiro furtado foi uma moeda, e esta foi usada para fixar um parafuso, servindo
como chave de fenda, para após ser devolvida ao proprietário, é caso de furto de uso do dinheiro. Não houve
consumo do dinheiro, e sim verdadeiro uso do bem físico. Este é o sentido do uso, aqui.
Todo e qualquer bem móvel corpóreo pode ser objeto de furto. O bem incorpóreo é
também alvo de proteção penal, enquadrando-se nos crimes do Título III da parte especial
do CP, que trata dos crimes contra a propriedade imaterial. O direito corporificado em um
título, porém, pode representar furto, quando o que for subtraído for o título.
Assim o é pois o bem só pode ser alvo de furto se for fisicamente apreensível: não é
possível se falar em subtração, atividade física, quando o bem não for igualmente físico.
Objetos ilícitos não são tutelados pelo direito, e por isso não se pode falar em furto
de um bem criminoso, como o furto de entorpecentes, por exemplo.
Os semoventes são coisas móveis, e por isso são claramente passíveis de furto. Há
até nomenclatura própria para o furto de semoventes, quando se trata de gado: chama-o de
furto abigeato.
Tudo que assim se configurar, e tiver valor economicamente apreciável, é passível
de subtração. Gás, por exemplo, é material apto a ser furtado, eis que tem natureza
comercial.
O cadáver pode ou não ser objeto de furto: aquele que é pertencente a alguma
instituição de estudo, por exemplo, é passível de furto. O cadáver de pessoa afetado aos
seus familiares, porém, não é economicamente apreciável, e não pode ser objeto de furto (o
que não significa que não tenha proteção, pois o CP dedica todo um capítulo aos crimes
contra o respeito aos mortos). Recentemente, houve exposição artística em que as obras
eram feitas de partes de corpos humanos: cada “obra” destas é coisa alheia móvel, passível
de furto.
Os bens que foram enterrados com o cadáver – alianças, roupas, dentes de ouro –, se
subtraídos, não configuram furto. Isto porque aqueles bens não estão mais integrando o
patrimônio de ninguém, não sendo mais preenchida a elementar “coisa alheia”. Há crimes
do capítulo mencionado – violação de sepultura, vilipêndio a cadáver – mas não há furto.
Veja que se poderia entender que os bens integravam o patrimônio dos herdeiros, mas ao
enterrá-los com o cadáver, os herdeiros os abandonaram, tornando-se tais bens res
derelicta.
Como o crime é contra o patrimônio, a coisa tem que ter valor economicamente
apreciável. A falta de valor desnatura o crime. Veja que não se está falando em valor
irrisório, que leva à aplicação da teoria da insignificância; se está falando em ausência de
valor, o que desconfigura a necessidade de proteção do direito penal sobre o bem. Um
clipe, um copo plástico descartável, um lápis usado, tudo isso não tem valor econômico
relevante algum, e por isso não há o crime – não há ataque ao patrimônio.
É diferente o enfoque quando se está falando do bem que não tem valor econômico,
mas tem valor afetivo. Estes bens integram o patrimônio do proprietário, e por isso, mesmo
que não sejam economicamente avaliáveis, pode-se falar em crime contra o patrimônio.
Coisas que não têm valor econômico ou afetivo, mas que representam grande
utilidade para a vítima, podem ser objeto de furto? Como exemplo, os cartões de crédito, os
talões de cheque, etc. O STJ entende que estes bens não têm valor econômico, e por isso a
sua subtração não configura furto. Veja o REsp. 256.160:
O STF, porém, tem precedente antigo em sentido oposto (RE 100.106), datado de
1984, cuja ementa não é sequer acessível, em que defende que estes bens têm, sim, valor
apreciável. Diz o STF que, em razão da utilidade do bem na gestão do patrimônio, o
talonário de cheques é passível de furto. Veja que há decisões em tribunais estaduais que
reputam que o talonário tem valor, não porque é útil na gestão patrimonial, mas sim porque
é um bem cobrado pelo banco, tarifado por esta instituição financeira, representando
prejuízo a sua subtração. Prevalece, porém, a tese de que não há crime: é um mero bloco de
papel sem valor (podendo no máximo se configurar ato preparatório para outro crime, como
o estelionato).
O cheque assinado, estando com o valor preenchido ou não, é considerado res
passível de furto. Como dito, é um título que representa um valor, e por isso é
economicamente apreciável. Veja o HC 110.587:
Documentos sem valor intrínseco não são tutelados no tipo do furto: a subtração de
documentos enquadra-se no artigo 305 do CP:
“Supressão de documento
Art. 305 - Destruir, suprimir ou ocultar, em benefício próprio ou de outrem, ou em
prejuízo alheio, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia
dispor:
“Art. 346 - Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em
poder de terceiro por determinação judicial ou convenção:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”
Sob a tutela do artigo 346 do CP, supra, se encontra também, por exemplo, o bem
empenhado, dado em penhor contratual, que é subtraído pelo proprietário.
Coisas que não têm dono, as chamadas res nullius, não podem ser alvo de furto: não
há subtração, porque esta coisa não integra o patrimônio de ninguém. O mesmo se dá com a
res derelicta, já mencionada, porque mesmo que outrora integrasse um patrimônio, foi
abandonada pelo seu ex-titular, podendo ser apoderada por quem quer que seja, sem que
haja crime. Diferentemente ocorre com a res disperdita, que é a coisa perdida: esta tem
dono, mas não está em seu poder; sua apropriação, portanto, é crime, mas não há subtração,
não havendo furto, porque o dono não a tem em sua esfera de vigilância. O crime, então, é
de apropriação indébita, do artigo 169 do CP:
vítima deve ser desconsiderado. Há consumação quando a vítima não mais dispõe do bem,
mesmo que o agente ativo também não tenha o indevido proveito.
A corrente contrária, de Luiz Régis Prado, Mirabete e Hungria, defende que não se
pode nunca aplicar o privilégio ao furto qualificado, sob dois argumentos: o primeiro,
frágil, é o topográfico, pois a qualificadora vem posterior ao privilégio. O segundo
argumento, porém, é bastante interessante: quando se qualifica e privilegia
concomitantemente um homicídio, por exemplo, se está sempre diante de análises de
reprovabilidade da conduta que indicam que o sujeito ativo agiu com mais reprovabilidade
por um lado, mas com menos por outro. Ou seja: se está diante da análise do nível de
desvalor da conduta, apenas. No furto qualificado, há incompatibilidade deste elemento
qualificador com o privilégio do pequeno valor porque nas qualificadoras se tem a análise
do desvalor da conduta, mas no priuvilégio, aqui, só se olha para o resultado – e o resultado
menos severo não influencia no desvalor da conduta mais reprovável, indicado pelas
qualificadoras. Daí a incompatibilidade.
Em síntese: o resultado menos lesivo não diminui a reprovabilidade da conduta. O
menor desvalor do resultado não diminui o desvalor da conduta. Este segundo argumento
conta até mesmo com um precedente do STJ, no REsp. 931.733:
Mas há quem defenda que, neste caso, não há estelionato, e sim furto mediante
fraude. É a posição de Hungria, por exemplo. É corrente minoritária, diga-se.
O furto de energia ocorre quando se dá o chamado “gato”: trata-se da conduta ativa
do agente que, inserindo cabos ou qualquer outro meio de extração de energia da rede da
concessionária, de lá a extrais, sem por ela nada pagar.
A jurisprudência tem entendido que aqui se enquadra, como furto de energia, o
“gato” de TV . Veja o HC 17.867, do STJ:
O uso de sinal telefônico sem pagamento também seria furto de energia, mas pode-
se suscitar a mesma polêmica do furto de sinal de TV.
Uma outra questão envolvendo furto de energia é o furto de sêmen de animais
reprodutores: o legislador, no item 56 da Exposição de Motivos do CP, disse expressamente
tratar-se de furto da energia genética destes reprodutores. Na verdade, não seria preciso
esta equiparação, porque o sêmen é coisa alheia móvel ele próprio, é bem corpóreo, e por
isso seria furto, por natureza, de qualquer forma.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Os pulsos telefônicos são passíveis de furto, equiparados coisa alheia móvel pelo
artigo 155, § 3°, do CP. Há prejuízo material, consubstanciado naquilo que a concessionária
deixou de receber – sequer se falando em insignificância, aqui, pois se não houver punição
o bem estará sujeito à própria sorte, o que inviabilizaria a atividade, em última análise.
Questão 2
Resposta à Questão 2
Tema XIV
Furto II. 1) O furto qualificado:a) Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Espécies;c) O furto de coisa comum. 2)
Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.
Notas de Aula28
1. Furto qualificado
Antes de adentrar no estudo, vale rever os §§ 4° e 5° do artigo 155 do CP, que são a
sede do furto qualificado:
“Furto
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou
aplicar somente a pena de multa.
§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha
valor econômico.
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III - com emprego de chave falsa;
IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.
§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo
automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)”
tempo atrás a orientação era igualmente topográfica, ou seja, a causa de diminuição da pena
só poderia ser aplicada aos preceitos que a precedessem, ou seja, ao caput e ao § 1°, no
caso.
Veja que ao posicionar-se pela admissibilidade do furto qualificado com pena
diminuída, e ao mesmo tempo pela inadmissibilidade do furto qualificado com aumento de
pena pelo repouso noturno, parece que surge uma certa contradição, mas esta contradição é
apenas aparente. Entenda: a topografia legislativa é um argumento que logo cede lugar,
quando a interpretação principiológica toma campo, e por isso a interpretação pro reo tem
mais peso do que este argumento, justificando a melhor leitura do artigo em favor do réu,
suficiente a afastar o argumento topográfico, mas não justifica a leitura mais gravosa, pois
nenhum princípio a ampara.
Vejamos, então, as qualificadoras de forma apartada, uma a uma.
Obstáculo à subtração da coisa é algo externo a esta, que foi colocado justamente
para dificultar o acesso a esta coisa. O cofre, por exemplo, é um obstáculo claro à
subtração. As redomas de vidro, ao redor de itens expostos em museus, também assim se
configuram.
A questão mais problemática, aqui, diz respeito ao furto de bens em interior de
veículo. A jurisprudência atual é pacífica no sentido de entender que o arrombamento do
veículo para furtar as coisas que lá dentro estão é qualificado por este inciso I, do § 4° do
artigo 155 do CP, pois o carro forma um invólucro em torno das coisas, consubstanciando
obstáculo para que o meliante as alcance.
O problema é a desproporção casuística que este entendimento acarreta: a subtração
do próprio veículo é furto simples, porque a destruição do vidro, ou qualquer forma de
arrombamento, é feita na própria coisa, e não em obstáculo existente à subtração desta.
Debalde, a jurisprudência é firme.
A incursão em uma casa, por arrombamento da porta, para furtar bens que lá dentro
estejam, incide nesta qualificadora. Imagine-se agora a seguinte situação: o agente adentra
furtivamente na casa que estava com as portas abertas, e lá dentro se esconde; quando todos
saem, subtrai os bens que desejava, e arromba a porta na saída. Há a qualificadora, neste
caso?
Há duas correntes: para a primeira, só se pode aplicar a qualificadora quando o
rompimento do obstáculo se presta para que o agente possa chegar até a coisa, pelo que este
rompimento posterior, na fuga, não configuraria a qualificadora – tratar-se-ia do crime de
dano, que, in casu, é post factum impunível. A segunda corrente, porém, entende que a
qualificadora se impõe mesmo com o rompimento posterior do obstáculo: desde que este
rompimento seja necessário para se consumar o crime, há a qualificadora. Prepondera a
primeira corrente.
A configuração da qualificadora em análise depende, inexoravelmente, da
realização do exame de corpo de delito. Sem o obstáculo rompido, não há como se imputar
tal qualificadora objetiva, vestigial.
O furto de um cofre lacrado, com o seu posterior arrombamento para colher o
conteúdo, pode ser considerado furto com rompimento de obstáculo, mesmo que parte
majoritária da doutrina assim não o entenda, por reputar que há o furto do continente e do
conteúdo, o que se configura furto simples.
facilitada pelo emprego do ardil, do meio fraudulento, que leva a vítima a cessar ou
diminuir sua vigilância sobre a coisa.
Como exemplo, a vítima que se vê diante de um falso guardador de carros, lhe
entregando o veículo, é certamente alvo de estelionato. Diferentemente, a vítima que se vê
distraída por um falso mecânico, que se aproveita de sua distração – eis que confia que o
mecânico está ali a fazer consertos em seu carro, diminuindo a resistência –, para subtrair o
veículo: há furto mediante fraude.
Esta é a orientação geral da doutrina. Há, porém, que se mencionar um segundo
entendimento, minoritário, que ainda exige uma segunda nuance para diferenciar o furto
com fraude do estelionato, e que, por vezes, inverte a capitulação: no estelionato, a entrega
da coisa pela vítima é feita sem que a pessoa espere a sua restituição; pode até esperar uma
contraprestação, mas não a restituição daquela coisa entregue. Se não há a contraprestação,
há o estelionato. No furto, não só não há entrega, como não há expectativa de
contraprestação alguma. Esta perspectiva, porém, é minoritariíssima.
Sobre o exemplo do manobrista, vale consignar que há possibilidade de que se
configure a apropriação indébita: se o guardador é alguém que de fato exerce aquela
profissão, e, vendo-se na detenção desvigiada de um carro, decide-se, apenas após obtida a
detenção, havê-lo para si, há a apropriação indébita – o dolo é subsequente.
Há ainda, aqui, o furto qualificado mediante abuso de confiança, que é configurado
quando a vítima, por alguma relação pretérita, confia no agente, e este se vale deste
afrouxamento da vigilância que é induzido pela confiança para cometer a subtração. Um
exemplo: à secretária é confiada a senha da conta bancária de seu patrão, eis que este nela
confia, para proceder a um saque de cem reais. A secretária, então, saca duzentos, e fica
com cem para si. Está clara a situação de furto dos cem reais excedentes, com abuso de
confiança, e não apropriação indébita, pois daqueles cem que ela sacou excedentes nunca
lhe foi dada a posse ou detenção, como foi dada a detenção dos cem reais originais que o
patrão solicitou.
“Art. 25. Ter alguem em seu poder, depois de condenado, por crime de furto ou
roubo, ou enquanto sujeito à liberdade vigiada ou quando conhecido como vadio
ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados
usualmente na prática de crime de furto, desde que não prove destinação legítima:
Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, e multa de duzentos mil réis a dois
contos de réis.”
Veja, então, que a mera posse destes instrumentos já pode ser uma infração penal,
desde que não haja furto em curso, pois se há a contravenção resta absorvida.
O artigo 155, § 4°, IV, diz que o furto se qualifica quando há o concurso de duas ou
mais pessoas. Esta qualificadora é mais intrincada do que pode parecer, demandando uma
análise sistemática do tipo. Vejamos.
O artigo 157, § 2°, II, e o artigo 158, § 1°, também contemplam o concurso de
pessoas como elementos de maior reprovabilidade da conduta, trazendo-o como causa de
aumento.
“Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
(...)
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
(...)
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;
(...)”
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
(...)”
Este crime qualificado seria passível de tentativa? Veja que é uma circunstância que
sobrevém à própria consumação do delito: se o bem foi retirado da esfera de vigilância da
vítima, consumou-se, segundo a teoria da amotio. Daí em diante é que se verifica se a
qualificadora se implementou ou não, ou seja, verificar-se-á se houve a transposição da
divisa ou não. Se houve, qualificou-se o crime consumado; se não houve, o crime
consumado foi simples.
Veja um exemplo: agente furta veículo, e segue na estrada, sendo perseguido por
policiais. No percurso, antes de passar a fronteira de outro Estado, é interceptado. O crime
se consumou, na forma simples pela teoria da amotio. Se ultrapassa a fronteira, o crime se
consuma na forma qualificada.
Se se utilizar da teoria da ablatio, a situação pode ser diferente. Se estava sendo
perseguido, e foi interceptado antes de cruzar a fronteira, o crime é tentado – não houve
posse tranqüila – e é da forma simples. Se ultrapassou a fronteira, e ali foi interceptado, o
crime é tentado, segundo a ablatio, e há a qualificadora.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Questão 3
Resposta à Questão 3
Rodolfo cometeu o crime de furto qualificado mediante fraude, tentado: não chegou
a sacar o dinheiro, apesar de empregar a fraude na execução do crime, sendo frustrado antes
de conseguir a efetiva subtração dos valores pretendidos.
Veja a Apelação Criminal 2004.050.00380, do TJ/RJ:
Poder-se-ia cogitar se a obtenção do cartão não seria um mero ato preparatório, mas
parece que está claro que se trata de um ato inicial de execução, sob qualquer perspectiva.
Do ponto de vista da teoria objetiva-material, não apenas o início da prática do verbo
nuclear do tipo é início de execução – in casu, “subtrair” –, mas também a realização de
qualquer conduta necessariamente ligada ao verbo típico, sem a qual não é possível levar a
cabo a empreitada. Do ponto de vista da teoria objetiva-individual, igualmente há a
execução iniciada, porque segundo esta a prática de qualquer ato que, segundo o plano
individual do agente, signifique a execução do crime almejado, é ato executório.
De qualquer forma, é importante perceber que a subtração do cartão, em si, não
configura o furto consumado: o cartão não é o bem alvo do furto, e sim o dinheiro que ele
permite acessar.
Tema XV
Roubo I.1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito.
Tipicidade objetiva e subjetiva do roubo próprio. Formas de violência;b) Tipicidade objetiva e subjetiva do
roubo impróprio. A controvérsia quanto à possibilidade da tentativa. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso
de crimes. 4) Pena e ação penal.
Notas de Aula29
1. Roubo
“Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega
violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do
crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro.
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;
II - se há o concurso de duas ou mais pessoas;
III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal
circunstância.
IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para
outro Estado ou para o exterior; (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.
(Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a
quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos,
sem prejuízo da multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996) Vide Lei nº
8.072, de 25.7.90.”
De início, cumpre deixar claro que a maioria da doutrina entende descabida a figura
do roubo de uso. Mas há quem entenda que, se preenchidos os requisitos – uso
momentâneo, restituição íntegra, falta de ataque ao patrimônio –, estaria configurada a
situação de uso, sem dolo de apropriação da coisa. Assim entende Capez e Rogério Greco.
Todavia, prevalece a corrente que entende incabível, eis que não há no roubo o meio de a
vítima não saber, de antemão, que há a subtração, ante a violência ou grave ameaça
empreendidas.
Outra tese que se entende inaplicável, no roubo, por conta da violência ou grave
ameaça, é a da insignificância, mas há alguns julgados reputando cabível esta tese da
bagatela, entendendo que o agente que rouba coisa insignificante não responde por este
29
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 29/10/2009.
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
(...)”
é imprescindível, e por isso o crime é de extorsão. Rogério Greco, aqui, entende que há
roubo, porque a promessa de mal é iminente, e não futuro, inviabilizando a tipificação em
extorsão.
O STJ adota a corrente que entende que a entrega forçada, sendo mero incidente
prescindível do crime, pois que poderia ser procedida a subtração por mão própria do
meliante. A respeito, veja o julgado do REsp. 697.622:
Capez, por seu turno, defende que qualquer forma de violência é suficiente para
vedar o benefício da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.
A grave ameaça não precisa ser verídica: basta que seja crível aos olhos da vítima.
Um bom exemplo em que a ameaça é falsa, mas crível, é no crime de extorsão: a extorsão
praticada pelo filho que simula falso sequestro. Se o pai cede à grave ameaça à vida do
filho, mesmo que falsa, está sendo extorquido, pois aquela ameaça se demonstrou
acreditável.
O caput do artigo 157 trata do roubo próprio, que é aquele em que a violência ou
ameaça precede a subtração. O § 1°, por seu turno, trata do roubo impróprio, em que a
violência ou ameaça é posterior à subtração, ou ao menos concomitante com esta.
O problema é que, em se adotando a teoria da amotio, há muito pouco espaço para
se constatar o roubo impróprio. Entenda: quando se dá a subtração, no roubo impróprio,
ainda não há violência ou grave ameaça cometida. Parando-se a análise neste momento do
tempo, já há o furto consumado, porque a teoria da amotio assim o diz. Destarte, para se
configurar o roubo impróprio, uma conduta que, a todo ver, representa um furto
consumado, seria convertida, pela violência posterior, em roubo. É algo que, certamente,
causa alguma estranheza.
Por isso, na verdade, o que se passa no roubo impróprio não é a consumação da
subtração e a posterior violência, como dito acima. Esta dinâmica é a narrativa de furto em
concurso com a ameaça, do artigo 147 do CP, com a lesão, ou mesmo em concurso com o
homicídio, se for o caso. O roubo impróprio ocorrerá quando, após iniciada a subtração,
mas antes que esta se perfaça totalmente, o agente empregue violência ou ameaça. A
diferença é muito sutil, especialmente em se considerando a teoria da amotio.
A violência ou ameaça que configuram o roubo impróprio só podem ter por única
finalidade assegurar a subtração. Qualquer propósito ulterior ou diverso no emprego destas
medidas merece tipificação autônoma.
Se, no curso da subtração, antes de empregar qualquer violência ou grave ameaça, e
mesmo que fosse fazê-lo, o agente é obstado em seu propósito, há tentativa de furto: a
violência imprópria sequer chegou a ser tentada, tampouco a subtração sem violência ou
grave ameaça prévias. Havendo o furto tentado deste exemplo, se o agente, após abandonar
o projeto de subtração (simplesmente deixou de continuar a subtrair), emprega de violência
ou ameaça com a única finalidade de evadir-se, é claro que não configura roubo impróprio:
responde pelo furto tentado, em concurso material com crime que houver cometido na fuga
– ameaça, lesão ou mesmo homicídio.
Veja que a expressão “a fim de assegurar a impunidade do crime”, usada no texto do
§ 1°, é lida pela doutrina como “a fim de assegurar o sucesso no crime”, e por isso aquela
violência ou ameaça em fuga em que se abandonou o projeto criminoso não configura o
roubo impróprio.
Voltando à análise do roubo próprio, em que a violência ou ameaça é empregada
previamente à subtração, qual é o momento em que se considera consumado o delito?
Novamente, se divide a explicação sobre este momentum nas duas teorias já abordadas no
furto, a amotio e a ablatio. O roubo se consuma, no Brasil, no momento em que o roubador
tem consigo a posse da coisa, mesmo que intranqüila – sendo claramente adotada, aqui, a
teoria da amotio. Veja, a respeito, o RE 102.490:
Esta decisão antiga do STF ainda reflete a jurisprudência dominante, mas não custa
repetir que a doutrina, em peso, defende a ablatio como tese mais coerente.
O momento consumativo do roubo impróprio é problemático, como se pôde notar. A
maior parte da doutrina e jurisprudência entende que é incabível a tentativa, no roubo
impróprio, ao seguinte argumento: a conduta está em empregar violência após a subtração.
O tipo do roubo impróprio tem por verbo nuclear o termo “emprega”, e é neste ato, com a
finalidade de ficar com a coisa (e não com o efetivo sucesso em com a coisa ficar), que se
verifica o roubo impróprio, e não na subtração. Por isso, é simples: ou se emprega a
violência ou grave ameaça, e o roubo é consumado; ou não se emprega, e há o furto tentado
ou consumado.
Veja, neste sentido, o REsp. 1.025.162:
Parte da doutrina rebate este argumento, entendendo que é sim possível o roubo
impróprio tentado, por questão de isonomia: se há a percepção de que haveria a ameaça ou
violência, e não houve, há a tentativa de roubo impróprio.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Augusto responde, sem qualquer dúvida, pela subtração cometida, a todo ver furto.
A questão é capciosa quanto a José. Veja: para que se possa falar em concurso de pessoas, é
preciso que haja três requisitos: pluralidade de agentes, liame subjetivo entre eles, e
relevância causal das condutas, todas elas, cada qual em certa monta. No caso concreto, há
dois requisitos bem configurados: a pluralidade e o liame; o terceiro, antecipe-se logo, está
também presente: há relevância causal. Senão, vejamos.
Aparentemente, o fato de José não ter guardado o carro parece ter sido determinante
para excluir qualquer relevância de sua conduta. Porém, veja a seguinte peculiaridade:
Augusto só agiu, como se vê no enunciado, “ante essa promessa” (de ocultação do carro
por José), o que identifica uma alta relevância da conduta de José, no plano moral, para a
empreitada criminosa de Augusto. Em verdade, pode-se dizer que foi mesmo um incentivo
determinante para existir o crime.
Destarte, não importa se a promessa será cumprida ou não: a relevância surgiu no
plano moral, antes mesmo da subtração. Está perfeitamente configurado, portanto, o
concurso de pessoas, e José é partícipe por instigação, devendo responder pelo mesmo
delito, na medida de sua culpabilidade.
A título de exercício hipotético, se José e Augusto não se falassem antes do crime, e,
posteriormente, José aceitasse guardar o carro furtado por Augusto, qual seria a capitulação
da conduta de José? Ele se enquadraria em receptação ou em favorecimento real, a
depender do seu dolo: se há dolo de lucro, em proveito próprio ou alheio, há receptação; se
o dolo fosse de ajudar o meliante, apenas, sem finalidade alguma em se favorecer ou a
outrem, senão o próprio furtador, há favorecimento real.
Questão 3
peças e saiu correndo, com a vendedora em seu encalço, gritando "pega ladrão", o que
levou à prisão do assaltante e à recuperação das jóias. Capitule os fatos.
Resposta à Questão 3
Tema XVI
Roubo II. 1) O roubo circunstanciado. Espécies. 2) Aspectos controvertidos .3) Concurso de crimes. 4) Pena
e ação penal.
Notas de Aula30
1. Roubo circunstanciado
paciente foi condenado não foi objeto de impugnação nas instâncias inferiores,
razão pela qual o pleito não pode ser conhecido, nesta parte. 2. Não se constata a
alegada desproporcionalidade da pena imposta pelo legislador ao furto qualificado
pelo concurso de agentes, quando comparada ao roubo agravado pela mesma
circunstância (art. 155, §4º, e art. 157, §2º, do Código Penal). 3. O parâmetro
adotado pelo legislador para a elevação da pena no crime de roubo é a pena
prevista para o referido delito, praticado na modalidade simples. 4. Por esta razão,
é impossível aplicar, à pena do furto simples, a fração prevista pelo legislador para
incidir sobre uma pena muito maior, que é a do roubo simples. A diversidade dos
parâmetros confere integral legitimidade à diferença das frações de aumento. 5.
Ademais, não é dado ao Poder Judiciário combinar previsões legais, criando uma
terceira espécie normativa, não prevista no ordenamento, sob pena de ofensa ao
princípio da Separação de Poderes e da Reserva Legal. Não há pena sem prévia
cominação legal. É um atentado contra a própria democracia permitir que o Poder
Judiciário institua normas jurídicas primárias, criadoras de direitos ou obrigações.
Ausência de legitimidade democrática. 6. Ordem parcialmente conhecida e, nesta
parte, denegada.”
“Súmula 174, STJ: No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo
autoriza o aumento da pena..(*)
(*) Julgando o RESP 213.054-SP, na sessão de 24/10/2001, a Terceira Seção
deliberou pelo CANCELAMENTO da súmula n. 174.”
A corrente objetiva tem prevalecido na Segunda Turma do STF, mas a questão é tão
controvertida, que até mesmo no próprio STF há entendimentos contrários, adotando a
corrente subjetiva. Em prol da corrente objetiva, veja o HC 93.105, da Segunda Turma do
STF:
“HC 93105 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min.
CEZAR PELUSO. Julgamento: 14/04/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma.
Publicação:15-05-2009.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Condenação. Delito de roubo. Art. 157, § 2º, I e II, do
Código Penal. Pena. Majorante. Emprego de arma de fogo. Instrumento não
apreendido nem periciado. Ausência de disparo. Dúvida sobre a lesividade. Ônus
da prova que incumbia à acusação. Causa de aumento excluída. HC concedido, em
parte, para esse fim. Precedentes. Inteligência do art. 157, § 2º, I, do CP, e do art.
167 do CPP. Aplicação do art. 5º, LVII, da CF. Não se aplica a causa de aumento
prevista no art. 157, § 2º, inc. I, do Código Penal, a título de emprego de arma de
fogo, se esta não foi apreendida nem periciada, sem prova de disparo.”
A Primeira Turma do STF, por seu turno, tem julgado adotando a corrente subjetiva,
de certa forma. Não é que dispense a lesividade da arma, nem que esta seja esta lesividade
desprezada como mens da causa de aumento: exige lesividade, sim31 – no que se aproxima
da corrente objetiva. Porém, cria uma espécie de presunção de lesividade imanente a
qualquer arma, dispensando a prova pericial, ou dos disparos, no caso de arma de fogo.
Veja, o HC 94.237, da Primeira Turma do STF:
31
A adoção da corrente subjetiva pura, de Nelson Hungria, a meu ver, parece entrar em contradição com a
desconsideração da arma de brinquedo enquanto arma, para efeitos legais, o que impede a aplicação desta
corrente. Veja: se se concentrar a análise do conceito de “arma” na sua potencialidade intimidadora, ou seja,
aos olhos da vítima, não se poderá defender que uma arma de brinquedo extremamente realista não se
enquadre nesta causa de aumento. Por isso, me parece que a posição da Primeira Turma do STF, que entende
que a lesividade é necessária, mas pode ser presumida, é a melhor. Ressalto que é conclusão pessoal.
“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
(...)”
“Constrangimento ilegal
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução
do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
(...)”
O legislador não usou o termo concurso, o que significa, neste crime supra, que para
que haja o aumento de pena, é preciso que haja a reunião presencial de mais de três
pessoas, no cometimento do verbo nuclear. Aqui, sim, despreza-se a participação de pessoas
que não estejam realizando a conduta nuclear.
Outro exemplo que pode ser apontado é o da extorsão majorada, do artigo 158, § 1°,
do CP:
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
(...)”
O legislador poderia ter redigido, ali, o seguinte teor: “se o crime é cometido em
concurso...”. Quando preferiu escrever “se o crime é cometido por duas ou mais pessoas...”,
quis dizer que a execução do verbo nuclear com pluralidade de agentes é que é mais
repreensível, e não qualquer forma de participação. Aqui, também, a eliminação da palavra
concurso faz desprezível a participação alheia à nuclear.
Debalde a coerência desta segunda corrente, o STJ, no REsp. 90.451, adota a tese da
necessidade de realização da conduta típica diretamente por todos, para que se reconheça o
concurso. Note que se trata de julgado referente a furto, mas a discussão é a mesma no
roubo, como dito. Veja:
O inciso III do § 2° do artigo 157 do CP diz que o roubo é majorado se a vítima está
em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância.
A tutela do legislador, aqui, certamente se dirigiu aos carros-fortes, mas não se
restringe exclusivamente a este transporte profissional de valores. Nada impede, por
exemplo, que o office-boy que é incumbido rotineiramente pelo patrão de levar a féria do
dia ao banco seja roubado no caminho, por alguém que sabia de sua condição de
transportador de valores, naquele momento – configurando a majorante.
Veja que é preciso que a vítima esteja em serviço de transporte, mas não que seja
esta a sua única profissão, como dos transportadores em carros-fortes. Basta que esteja nas
suas atribuições, e não que seja sua única função.
Uma única polêmica surge quanto a esta majorante: pode o dono do dinheiro ser
vítima deste delito majorado? Veja um exemplo: pode o dono de uma sociedade comercial,
que é quem leva a féria do dia ao banco, ser considerado transportador de valores, para
efeitos da majorante?
A doutrina se divide: há quem diga que, se é o próprio dono dos valores quem está
realizando o seu transporte, não está em serviço de transporte – não pode trabalhar para ele
mesmo –, pelo que se desnaturaria a majorante. Outra parcela da doutrina defende que, se o
dinheiro é da féria da empresa, o dono que o transporta, na verdade, está sim a serviço de
transporte, porque aqueles valores pertencem à pessoa jurídica, e não a ele próprio. Não é
dono, na verdade, até que haja a sua retirada oficial do valor como pro labore.
que entende incabível. Para maior aprofundamento, remete-se ao estudo realizado no tipo
penal do furto qualificado.
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
(...)
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”
Casos Concretos
Questão 1
PEDRO foi denunciado pelo órgão do Ministério Público nas sanções do artigo
157, § 2º, I, II e V, do Código Penal, porque, nos exatos termos da denúncia, no dia
20/03/2001, com emprego de um revólver e em concurso com três menores, roubou o
automóvel de MIGUEL, que estava parado no sinal existente entre as ruas Bartolomeu
Mitre e Humberto de Campos, no Leblon. Dando continuidade ao delito, PEDRO e seus
comparsas puseram MIGUEL no porta-malas e o levaram para a favela do Jacarezinho,
onde ele foi colocado, amarrado, no interior de uma casa. Em seguida, PEDRO e seus
asseclas pegaram o automóvel e saíram para praticar roubos a postos de gasolina da
região, sendo que, no caminho, como não era habilitado nem sabia dirigir direito, PEDRO
perdeu a direção do carro e colidiu com um muro existente próximo a um ponto de ônibus,
onde se encontravam diversas pessoas. Chamada a polícia, rapidamente foi descoberto
que o carro era roubado e uma hora depois os policiais chegaram ao cativeiro, resgatando
MIGUEL. Finda a instrução criminal, os fatos articulados pelo Ministério Público
resultaram integralmente provados. Pergunta-se: está correta a classificação conferida aos
fatos pelo órgão acusador?
Resposta à Questão 1
“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para
Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”
§ 1o Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali
tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-
papo da internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2o As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço no caso
de a infração cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1o da Lei no 8.072,
de 25 de julho de 1990. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)”
Questão 2
Resposta à Questão 2
O porte de arma não se desprendeu da conduta do roubo, e por isso é por este
absorvida. Não se pode falar, no caso, que houve desígnio autônomo em portar a arma, pelo
que está certa a defesa quanto a sua tese subsidiária.
A respeito, veja a Apelação Criminal 2001.050.3691, do TJ/RJ:
Veja que o que se entendeu, neste acórdão, é que a absorção do porte é sempre
necessária, quando a exibição da arma for o meio utilizado para cometer o delito. Isto é
óbvio, e não é o que está em discussão, aqui. Parece que o cerne real da questão é o
destacamento contextual, do porte da arma, da conduta criminosa em que esta foi
empregada: se há porte da arma em contexto separado do crime, há punição autônoma, e
não é o que se deu no caso, porque os agentes ainda estavam no contexto do roubo tentado,
quando capturados. Fossem pegos em momento muito posterior, ou mesmo neste mesmo
tempo, mas claramente alheados do roubo – estavam em uma festa, já despreocupados, por
exemplo – e o porte seria punível.
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XVII
Roubo qualificado (lesão corporal grave e morte). Latrocínio. 1) Considerações gerais: a) Definição e
evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) A tentativa
nestas modalidades de crime complexo. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação
penal.
Notas de Aula32
1. Roubo qualificado
Estes resultados qualificam o delito tanto a título de dolo quanto de culpa, e não
apenas quando culposos, como na maioria dos delitos. Não só a forma preterdolosa,
portanto – com culpa no resultado consequente – é punível nesta forma, mas também a
dolosa. Assim ocorre porque é preciso atentar, aqui, para o princípio da proporcionalidade.
Entenda: os crimes mais brandos, em princípio, são os culposos, sendo os dolosos
mais graves. Entre eles, em nível de gravidade, está o crime preterdoloso, que é o doloso
que tem resultado mais gravoso ocorrido a título de culpa. Por isso, não se pode ter um
crime preterdoloso mais brandamente punido do que um culposo, ou mais severamente
punido do que um crime doloso, por pura coerência sistêmica.
Dito isto, se a pena do latrocínio tem início em vinte anos, no mínimo, se se atribuir
qualidade de preterdolosa a esta morte, ou seja, entender que ali se amolda apenas o crime
culposo, se estará criando violação flagrante do princípio da proporcionalidade, porque o
roubo consumado e o homicídio doloso consumado – o que seria a situação se o resultado
morte doloso fosse alheado deste § 3° do artigo 157 –, em cúmulo material, partiria de pena
32
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 30/10/2009.
mínima de dezesseis anos, quatro do roubo e doze do homicídio. Enquanto isto, no roubo
com resultado morte culposo, a pena mínima partiria de vinte anos, como reputa o
dispositivo em comento. Ou seja, dois crimes dolosos – roubo e homicídio – teriam pena
inferior a um crime doloso e um culposo – latrocínio preterdoloso. Daí a desproporção, e
daí o entendimento de que, no roubo seguido de morte, tanto faz se esta morte é culposa ou
dolosa: o enquadramento é no § 3° do artigo 157, havendo sempre o latrocínio.
Há, no entanto, que se apontar que há, mesmo assim, uma quebra da
proporcionalidade, porque há a mesma punição para quem causa a morte dolosa e
culposamente – a escala penal é a mesma, iniciada em vinte anos. Esta dissonância só pode
ser solucionada pelo juiz, no cômputo da pena, quando da mensuração das circunstância
judiciais para definir a pena-base: a pena daquele que tem dolo na morte será mais
reprovável, e sua pena será maior do que aquele que causou a morte culposamente, no
roubo.
É claro que, não havendo dolo ou culpa, não há que se falar em imputação deste
resultado ao agente, a qualquer título. O crime será somente o de roubo, por óbvio.
Veja que, curiosamente, há aqui a estranha situação em que há um crime em que há
dolo de matar, e que não será julgado pelo tribunal do júri. Isto porque o bem jurídico
tutelado, neste capítulo e neste delito, é o patrimônio, e não a vida. Veja a súmula 603 do
STF:
Aberta que está a possibilidade de morte dolosa, aqui, abre-se também uma
possibilidade que não há quando há apenas culpa, quando o crime é preterdoloso: passa a
ser possível a tentativa.
As causas de aumento de pena do roubo circunstanciado, trazidas no já abordado §
2° do artigo 157 do CP, não podem ser aplicadas ao latrocínio. A questão já foi abordada,
quando da análise da privilegiante e das qualificadoras do furto, tratando-se da situação
topográfica do dispositivo, que não pode sofrer a incidência de majorante que o antecede.
O latrocínio, e o resultado lesão grave, se configura quer seja cometido o roubo
próprio ou impróprio, sem qualquer problemática. A qualificadora não alcança, porém, a
violência imprópria, que é aquela constatada na elisão da capacidade de defesa da vítima,
alcançando apenas a violência real. Entenda: o resultado qualificador, seja ele a lesão grave
ou a morte, deve ser uma decorrência direta da lesão causada no cometimento do roubo,
como diz o dispositivo, ao trazer expresso que “se da violência resulta lesão corporal grave
(...); se resulta morte (...)”. A violência imprópria, enquanto redução da capacidade de
resistência da vítima, não tem este potencial, não decorrendo dela a lesão grave ou a morte.
Veja que se o legislador empregasse a redação “se do fato resulta morte (...)”, como o fez
no artigo 159, §§ 2° e 3°, qualquer morte dolosa ou culposa, resultante de qualquer forma
de violência empregada no roubo, seria incidente na qualificadora do § 3° do artigo 157.
Em síntese: só há a qualificadora se o resultado é de violência real. Note que se a
vítima tem lesão grave, ou morre, em decorrência indireta da violência imprópria, não há o
latrocínio, mas pode haver o concurso do roubo com o crime que tenha ocorrido. Veja um
exemplo: aplicado o “boa noite Cinderela”, a vítima tem os bens subtraídos, e é abandonada
ao relento, em lugar ermo. Ocorre que a dose da droga ministrada foi excessiva, mas não o
suficiente para matar ou debilitar permanentemente a vítima. Porém, como foi abandonada
A tese adotada nesta súmula, e por esta corrente, é a de que nos crimes complexos,
como o é o latrocínio, se a vertente da conduta que agride o bem jurídico mais valioso
restar consumada, todo o crime está consumado. Este raciocínio é bastante utilizado em
crimes complexos, diga-se.
A explicação dada pela corrente que se funda no artigo 14, I, do CP, parece ser mais
técnica, de fato, mas perde em adesões para a corrente do STF ante o peso político desta
vertente sumulada: o homicida, que mata para roubar, teria a pena muito minorada pela
tentativa, se não conseguisse subtrair os bens.
Hungria diz, em outra tese, que o crime mais grave desperta a punibilidade, ou seja,
há o crime de homicídio consumado, em concurso material com o crime de roubo tentado.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
latrocínio, enquanto que a outra vítima, chamada Sr. Yves, conseguiu fugir e,
embora contra ela tenha havido disparo de arma de fogo, esse segundo crime de
latrocínio não se consumou. Provadas a autoria e a materialidade, afastada fica a
possibilidade da absolvição. A prova produzida é no sentido de que Yves não
passou da condição de vitima, não tendo qualquer participação no planejamento e
ou execução dos crimes. As circunstancias e as conseqüências dos crimes, assim
como, a situação pessoal de cada um dos apelantes, impe a fixação da pena-base
acima do mínimo legal, porém, abaixo de seu máximo, sendo fixada em 25 anos de
reclusão e 300 dias-multa, no seu valor mínimo. Em razão do concurso formal, a
pena privativa de liberdade é aumentada em 1/6, aquietando-se em 29 anos e dois
meses de reclusão. À pena de multa, por força da regra do art. 72 do CP, não se
aplica o instituto do concurso formal, e assim, quanto ao crime consumado, resta
aplicada a pena de 300 dias-multa no seu valor unitário mínimo e, quanto ao crime
tentado, é ela aplicada, por força da redução em 1/3, em 200 dias-multa, no seu
valor unitário mínimo. Recursos conhecidos e parcialmente providos, apenas para
modificar a dosimetria da pena, na forma supra.
A crítica que se pode fazer a este julgado é sobre o entendimento de que houve
concurso formal perfeito. Na verdade, estão claros os desígnios autônomos perante as duas
vítimas, o que configura o concurso forma imperfeito, levando à aplicação do cúmulo
material das penas, e não a mera exasperação da maior. No mais, está correta a posição do
TJ/RJ.
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XVIII
Extorsão, Extorsão Mediante Seqüestro e Extorsão Indireta. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução
histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes de extorsão e
extorsão mediante seqüestro;b) Diferença entre roubo e extorsão;c) A Lei 8.072/90. 2) A extorsão indireta. 3)
Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.
Notas de Aula33
1. Extorsão
33
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 3/11/2009.
“Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma,
aumenta-se a pena de um terço até metade.
§ 2º - Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do
artigo anterior. Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”
não tinha absolutamente nenhuma chance de sucesso, por ser absolutamente inverossímil –
a vítima sofre ameaça de morte de sua filha, sendo que nem filha tem –, o crime não é
tentado, mas sim impossível, por absoluta impropriedade do meio. A vítima simplesmente
não se sentiria coagida, jamais.
O que não se exige é que haja a efetiva obtenção da vantagem – isso é mero
exaurimento. Fazer, não fazer ou tolerar alguma coisa (o que quer que seja), porém, são
elementares que são fundamentais para a consumação.
A violência a que se refere o tipo é a real. A grave ameaça, por seu turno, pode ser
configurada qualquer que seja seu conteúdo, desde que bastante para intimidar a vítima a
ponto de fazê-la acatar o constrangimento. Pode, inclusive, se tratar de ameaça de mal
justo. Imagine-se a seguinte situação: particular prende meliante em flagrante, e exige deste
que lhe pague uma quantia para não levá-lo à delegacia. O mal ameaçado é justo, afinal,
estava mesmo em flagrante delito; porém, ainda estará cometendo extorsão o particular que
prendeu o bandido.
A ameaça prometida não precisa ser verídica, como já se antecipou: basta ser crível,
aos olhos da vítima. Como exemplo, o falso sequestro, já mencionado, em que a ameaça é
falsa, mas é acreditável – há a extorsão, ao menos tentada. Se a ameaça é carente de
qualquer potencial de credibilidade, repita-se, há crime impossível.
O referencial de crível, para adjetivar a ameaça, é subjetivo: os olhos do intérprete
devem se voltar para a vítima. Se, para aquela pessoa ameaçada, a ameaça tem potencial
para que ela ceda ao constrangimento, o crime se configura, mesmo que para o famigerado
homem-médio não haja este potencial. Um bom exemplo é a ameaça ao católico fervoroso,
que é extorquido mediante ameaça de punição severa de Deus: se a vítima é crente o
suficiente para que esta ameaça tenha potencial para constrangê-la, há o crime.
Não se confundem, os casos de falsa ameaça, com o estelionato, porque neste crime
o agente entrega os bens por estar em erro quanto a alguma situação, criada por ardil do
agente, e, na extorsão, há como centro da conduta criminosa a coação, mesmo que baseada
em um erro a que a vítima foi induzida: há o erro e a coação, enquanto no estelionato há
somente o erro.
Quando o autor da extorsão for policial, funcionário público, no exercício da função
ou em razão desta, sua conduta tem tipificação especial, no crime do artigo 316 do CP – a
concussão:
“Concussão
Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.”
A concussão, portanto, pode ser descrita como a extorsão praticada por funcionário
público, no exercício da função ou em razão dela 34. É claro que, mesmo sendo funcionário
34
A doutrina clássica entende que, no crime de concussão, a vantagem exigida precisa ser econômica, precisa
ter cunho patrimonial, mesmo que o dispositivo não diga isto expressamente. Se a vantagem não é
patrimonial, diz esta corrente, o crime que se configurará é aquele que ataca o bem jurídico ameaçado. Há,
porém, corrente mais moderna, que entende que qualquer vantagem indevida, tal como diz o dispositivo, é
suficiente a configurar o delito de concussão. Um exemplo, que parece tornar mais coerente a corrente
clássica, é o do policial que exige favores sexuais da mulher traficante que, para não ser presa, cede à
exigência indevida, que nada tem de patrimonial. Se se adotar a corrente modernista, há concussão; se se
adotar a corrente clássica, reponde por estupro – o que parece mais correto.
Veja que, se se tratar de autoria colateral, não há a causa de aumento aqui retratada;
se não há liame entre dois agentes que praticam, concomitantemente, a extorsão, mesmo
que a lei não fale em “concurso”, não há o crime majorado – há dois crimes autônomos,
cada um com seu autor. Do contrário, se se considerasse esta pluralidade de autores como
causa de aumento, mesmo sem liame para reunirem-se os agentes (porque se há liam, não
há autoria colateral, e sim coautoria), se estaria imputando responsabilidade penal objetiva
a cada um deles, em relação à circunstância majorante, o que não se pode conceber.
Quanto ao emprego de arma, remete-se ao estudo da mesma circunstância majorante
do roubo, pois as discussões apenas reprisam-se, especialmente quanto ao termo “arma”.
Havendo reunião de pessoas no cometimento e emprego de arma, repita-se também,
a causa de aumento é uma só, podendo ou não ser a majorante medida além do mínimo.
Sobre este crime qualificado hediondo, reprisa-se toda a discussão que se fez sobre
o latrocínio, no que for pertinente.
“(...)
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa
condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de
reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal
grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o,
respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)”
Esta hediondez levaria, inclusive, à aplicação do artigo 9° desta mesma lei dos
crimes hediondos, quando a vítima se encontrasse sob as circunstâncias do artigo 224 do
CP:
“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º,
158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o
limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”
Cumpre trazer, aqui, uma recentíssima polêmica, começando logo pela sua
conclusão majoritária: este artigo 9° foi tacitamente revogado pela Lei 12.015/09, que
revogou o artigo 224 do CP, ao qual remete o artigo 9° supra. Veja:
Tal conclusão se deve ao fato de que esta norma remetida, o artigo 224, era a sede
única das hipóteses de presunção de violência, e se foi revogada, não mais encontra objeto
a norma do artigo 9°. Há quem diga, minoritariamente, que a reforma da Lei 12.015/09 não
acabou com a essência do artigo 224 do CP, tendo levado-a espargida pelos dispositivos
referentes aos crimes praticados contra as pessoas que se encontram naquelas condições ali
mencionadas, como no novel artigo 217-A, do CP:
Não ocorre o bis in idem pela só razão de que os bens jurídicos tutelados, na
qualificadora da quadrilha ou bando e no crime autônomo de quadrilha ou bando são
diferentes: na qualificadora, a proteção ainda é ao patrimônio, e a reunião é mais reprovável
porque o ataque a este é mais eficaz; já no artigo 288, a proteção se destina à paz pública. A
cumulação é perfeitamente possível.
O juiz, tanto o julgador quanto o da execução, tem que ter especial cautela no
tratamento dado aos réus colaboradores, por uma questão pragmática: este sujeito é sério
candidato a padecer de agressões, ou mesmo morte, quando levado à prisão, pois os demais
presos abominam a pecha que ele carrega consigo, qual seja, a de delator. Por isso, por
vezes, é mais interessante que o potencial delator, para ser incentivado a contribuir com a
justiça, receba algum tratamento descarceirizador – a conversão da pena em restritiva de
direitos, ou o perdão judicial, quando cabíveis.
3. Extorsão indireta
“Extorsão indireta
Art. 160 - Exigir ou receber, como garantia de dívida, abusando da situação de
alguém, documento que pode dar causa a procedimento criminal contra a vítima ou
contra terceiro:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.”
O sujeito passivo deste delito é alguém que está em uma situação de penúria, pois é
um devedor em dificuldades, e o legislador quis evitar que o seu credor exerça um subjugo
abusivo sobre este devedor. O que se quer, aqui, é tutelar a normalidade na relação entre
devedor e credor, evitando que a situação de superioridade do credor possa levar o devedor
a praticar algo de que a Constituição o resguarda, a auto-incriminação; ou a incriminar um
terceiro, que, não fosse a superioridade do credor perante si, não incriminaria.
Veja: o credor que aqui se coloca exige do devedor a entrega de algum documento
que, por si só, é indício suficiente para a persecução penal de si ou de terceiros. Exemplos
de documentos que aqui se enquadram são um documento falso que o devedor tenha
produzido, a confissão de um crime por ele assinada, um cheque sem fundos por ele
emitido, etc.
A extorsão é indireta, porque há, como pano de fundo, uma dívida realmente
existente entre os personagens, mas há um subjugo injusto por parte do credor sobre o
devedor. A reprovabilidade é menor, por certo, mas ainda é fato típico este abuso na
conduta da relação de crédito e débito. A exigência não é feita sob grave ameaça ou
violência, e sim por meio do abuso da situação de maior poder que a posição de credor lhe
confere. É comum, aqui, o enquadramento do agiota, que, ao invés de exigir meios normais
de garantia de dívida, exige do devedor uma confissão escrita de um crime, por exemplo.
Há uma modalidade formal deste crime, na conduta de exigir o documento; e uma
modalidade material, que se preenche na conduta de receber tal documento.
A vítima deste crime não poderá ser processada com base no documento que foi
exigido. Esta prova, por óbvio, é absolutamente ilícita, obtida por meio de uma conduta
criminosa.
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Trata-se do sequestro relâmpago, do artigo 158, § 3°, do CP, e não do artigo 159,
como quer o MP, pois a tipificação hoje é expressa naquele novel dispositivo.
Ademais, não há que se falar, aqui, em desistência voluntária. Os meliantes só não
empreenderam a intentada até o final por temor da reação dos vigilantes, e não por não
mais quererem proceder à consumação do delito. Quando a desistência se dá porque o
agente pondera a chance de enorme desvantagem que terá se continuar, isto não é uma
conduta voluntária que revele arrependimento, merecedor do benefício dado à desistência
voluntária. Neste sentido, mesmo a desistência da consumação de um delito por medo de
um processo criminal, fadado ao sucesso, decorrente da conduta, não pode ser considerada
desistência voluntária – o que ocorre, como exemplo, quando o agente percebe que a vítima
reconhece sua identidade, o que fará prova forte quando capturado.
Veja a Apelação Criminal 2000.050.04972, do TJ/RJ, que enquadrou o fato no
artigo 159 do CP, por ser julgado anterior à inclusão do § 3° ao artigo 158 do CP:
Questão 3
Resposta à Questão 3
Tema XIX
Apropriação Indébita. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado.
Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;b) Diferença entre apropriação indébita e furto qualificado
pelo abuso de confiança;c) Diferença entre apropriação indébita e estelionato. 2) As outras espécies de
apropriação indébita:a) Apropriação indébita previdenciária;b) Apropriação de coisa havida por erro, caso
fortuito ou força da natureza;c) Apropriação de tesouro;d) Apropriação indébita de coisa achada;e)
Apropriação indébita qualificada;f) Apropriação indébita privilegiada. 3) Aspectos controvertidos. 4)
Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.
Notas de Aula35
1. Apropriação indébita
“Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Aumento de pena
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:
I - em depósito necessário;
II - na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante,
testamenteiro ou depositário judicial;
III - em razão de ofício, emprego ou profissão.”
não restituir este dinheiro não configura apropriação indébita, porque ao receber o dinheiro
há a transferência do próprio domínio deste valor ao seu patrimônio, e não da mera posse
ou detenção. Mas veja uma situação escapatória à regra: se o agente recebe o dinheiro de
alguém, para entregá-lo a um terceiro, se deixar de repassar este bem, mantendo-o como
seu, estará cometendo o crime há o crime de apropriação indébita, porque este bem, mesmo
fungível, jamais integrou seu patrimônio – nunca houve a transferência de domínio, e por
isso havia simples detenção. Um bom exemplo disso é o dinheiro que é entregue ao office-
boy para realizar pagamentos no banco: jamais lhe foi dado o domínio, e se este detentor
ficar com o dinheiro para si, há apropriação indébita.
A interpretação do verbo “apropriar”, núcleo do tipo, é problemática quando se
cogita da tentativa. É possível tentar apropriar-se? A doutrina, quase que de forma unânime,
entende que é possível a forma tentada, porque o verbo “apropriar” seria plurissubsistente,
mas é difícil encontrar exemplos. Hungria traz o seguinte: a vítima emprestou um veículo
ao agente, e, durante o período regular do empréstimo, vê seu veículo anunciado para
venda, pelo possuidor. Antes de qualquer ato de disposição efetivo, a vítima busca o veículo
de volta, configurando a tentativa.
Este exemplo é criticável, porque não se mostra correto ante o que se entende que
seja o exato momento consumativo da apropriação indébita: este crime se consuma no
momento em que se inverte a posse ou detenção, tornando-se em propriedade
indevidamente. Esta inversão se opera exclusivamente na mente do autor, não precisando
demonstrar-se em atos externos para considerar-se consumado – os atos externos são mera
comprovação daquela consumação que se deu na mente do agente.
Destarte, no exemplo, o ato de disposição potencial do bem – o anúncio no jornal –
na verdade está apenas comprovando que na mente do agente ele já inverteu a sua condição
de possuidor para a de proprietário. Esta conduta revela, por parte do agente ativo, ato de
disposição do bem que é compatível com a inversão da posse para a propriedade,
demonstrando que o agente já passou a comportar-se como se dono fosse – ou seja, o crime
já estava consumado, não restando tentado apenas porque o real proprietário buscou o bem
antes da venda efetiva.
Outro exemplo de suposta tentativa, este mais estranho ainda, é o do office-boy que
é incumbido de realizar pagamentos, e, no caminho, quando ia se desviar da rota do banco
para apoderar-se do dinheiro que lhe foi confiado, é impedido por um segurança que vinha
lhe seguindo. Ora, aqui se repete a crítica: assim que, na mente do agente, operou-se a
inversão do estado de detentor para proprietário, está consumado o crime; o desvio da rota,
ato externo, apenas revelaria a consumação já ocorrida em sua mente, não sendo ele próprio
a consumação.
É, de fato, muito difícil se constatar algum exemplo em que a tentativa seja
percebida, porque a consumação se dá a nível mental, na inversão do estado de possuidor
ou detentor para proprietário – é de então que está executado, plenamente, o verbo
“apropriar”. Contudo, a doutrina reiteradamente afirma cabimento de tentativa, neste delito.
Em outro aspecto do tipo, vale trazer aqui um exemplo que pode gerar dificuldade
de entendimento: proprietário entrega ao agente um cofre trancado, para que este seja
transportado. No percurso, o agente arromba o cofre, e toma para si o conteúdo. Há
apropriação indébita?
A resposta é negativa: há o crime de furto, pois o conteúdo do cofre não foi dado à
detenção ou posse do agente, e sim o próprio cofre. Ao tomar o conteúdo, o agente está
subtraindo coisa alheia, e não apropriando-se de algo que lhe foi confiado licitamente.
A diferenciação entre apropriação indébita e furto com abuso de confiança é difícil,
por vezes. Reveja um exemplo: o patrão entrega seu cartão e senha, pedindo à secretária
que lhe saque cem reais. Esta, quando procede ao saque, retira duzentos, ficando com cem
para si. Esta conduta capitula-se no furto de cem reais com abuso de confiança, porque o
patrão não lhe deu a posse ou detenção de duzentos, e sim a mera detenção de cem – os
outros cem foram subtraídos dele, com abuso da confiança nela depositada.
Diferentemente, em um outro exemplo, se um empresário confia todas as suas
contas a uma secretária, a qual desempenha real papel de administradora de bens, ele
entrega a esta pessoa a detenção, desvigiada, de todos os seus bens. Se esta administradora
de bens, no manuseio das contas, toma bens para si, estará, de fato, cometendo apropriação
indébita, pois qualquer bem que tomar é bem que já estava em sua detenção.
O simples atraso na restituição de bem que lhe foi confiado não revela cometimento
do crime de apropriação: se não há a inversão da posse ou detenção, o animus rem sibi
habendi, não há o crime. Há mero ilícito civil.
Se o agente que se apodera de bem que tem posse ou detenção for funcionário
público, e o bem lhe foi confiado em razão da função, há o crime de peculato, do artigo
312, caput, que mesmo por isso é chamado de peculato-apropriação:
“Peculato
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
(...)”
O artigo tem bastante correlação com o artigo 337-A do CP, devendo ser feita uma
análise comparada dos dispositivos:
Ambos os tipos têm em comum que são da competência da Justiça Federal, vez que
tutelares da previdência social, interesse gerido pelo INSS.
O artigo 337-A, por sua vez, é um exemplo claro de sonegação fiscal, tal como
tipificadas as condutas do artigo 1° da Lei 8.137/90, e por isso atrai para cá a análise
conjunta também deste tipo:
“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou
contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei
nº 9.964, de 10.4.2000)
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo
operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer
outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva
saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento
equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente
realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10
(dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor
complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência,
caracteriza a infração prevista no inciso V.”
Veja que este dispositivo tem exatamente a mesma estrutura do artigo 168-A do CP,
só que referente a tributos, e repare que ambos têm por regra um detalhe fulcral: eles não
consistem em sonegações, propriamente ditas, mas apenas inadimplemento de obrigações
fiscais, pelo que surgiu tese de que seriam, ambos os tipos, inconstitucionais, por
consistirem em verdadeiras criações legais de hipóteses de prisão por dívida, o que é
inadmissível. O STF, enfrentando esta tese em questionamento expresso ao dispositivo
supra, artigo 2°, II, da Lei 8.1378/90, rejeitou a tese, como se vê no HC 78.234 e no HC
76.978, pela ordem:
O caráter criminoso do artigo 168-A, e do artigo 2°, II, da Lei 8.137/90, está na
apropriação indébita, está no próprio nomen do dispositivo, sendo por isso dispensável o
engodo, elementar do artigo 337-A do CP e do artigo 1°, da Lei 8.137/90. Não é prisão por
dívida: apesar de parecer óbvio, é prisão por apropriação indébita de valores do fisco.
Concentrando o estudo, agora, no artigo 168-A do CP, vê-se que o sujeito ativo não
é o contribuinte, a pessoa que deve a contribuição previdenciária (como o é no artigo 337-A
do CP): é sujeito ativo deste delito o substituto tributário, aquele que é incumbido pelo fisco
de recolher o tributo, mas que não suporta o ônus tributário ele próprio. Veja o artigo 30, I,
“a” e “b”, da Lei 8.212/91
4. Apropriação de tesouro
“(...)
Parágrafo único - Na mesma pena incorre:
Apropriação de tesouro
I - quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da
quota a que tem direito o proprietário do prédio;
(...)”
“(...)
Apropriação de coisa achada
II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente,
deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade
competente, dentro no prazo de 15 (quinze) dias.
(...)”
Casos Concretos
Questão 1
Resposta à Questão 1
a) Não, o crime é de apropriação indébita, eis que o agente tinha a posse lícita do
bem, invertendo seu sentido posteriormente.
b) A diferença, no que se poderia confundir os crimes, é que no furto, há detenção
vigiada; na apropriação, a detenção é desvigiada.
c) Sim, pois aqui haveria detenção vigiada, ocorrendo o furto mediante fraude.
d) Sim, haveria o furto, mas agora com abuso de confiança.
e) Há apropriação indébita do livro, e furto das jóias, porque estas nunca lhe foram
dadas em detenção ou posse, ante o lacre imposto ao conteúdo da arca.
f) Além da apropriação do artigo 168-A do CP, que é omissiva de conduta mista,
poder-se-ia entender que há também a apropriação indébita ordinária, do artigo
168 do CP, por omissão, mas os exemplos são dificultosos.
Tema XX
Estelionato. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do
delito. Tipicidade objetiva e subjetiva; b) Diferença entre o estelionato e o furto qualificado pela fraude;c)
Diferença entre o estelionato e a apropriação indébita;d) Crimes previstos no artigo 171, § 2º, do CP;e) As
outras espécies de fraude. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.
Notas de Aula36
1. Estelionato
“Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode
aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.
§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:
Disposição de coisa alheia como própria
I - vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia
como própria;
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável,
gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante
pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;
Defraudação de penhor
III - defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a
garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;
Fraude na entrega de coisa
IV - defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a
alguém;
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo
ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro;
Fraude no pagamento por meio de cheque
VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe
frustra o pagamento.
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de
entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social
ou beneficência.”
O termo vem de stellio (camaleão que muda de cor para enganar a presa). Na
origem de sua tipificação, o stellionatus era considerado um delito extraordinário e
abrangia todos os casos em que houvesse fraude, mas que não se amoldasse dentre os
crimes patrimoniais. Tratava-se, portanto, de uma espécie de delito subsidiário, de definição
genérica.
36
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 5/11/2009.
“Mesmo o co-proprietário da coisa sobre a qual se deu a ação material pode ser
sujeito ativo do crime em epígrafe, se obteve vantagem ilícita sobre a sua quota
excedente.”
O sujeito passivo deve ser pessoa determinada. Se a fraude for direcionada de forma
genérica, haverá um delito contra a economia popular ou contra as relações de consumo, e
não estelionato.
“Abuso de incapazes
Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou
inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem,
induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em
prejuízo próprio ou de terceiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.”
“Na verdade, não há diferença ontológica entre fraude civil e fraude penal, sendo
insuficientes todas as teorias que – sem negar-lhes importância – procuraram
estabelecer in abstracto um princípio que as distinguisse com segurança; não se
pode, responsavelmente, firmar a priori um juízo definitivo sobre o tema. Fraude é
fraude em qualquer espécie de ilicitude – civil ou penal -, repousando eventual
diferença entre ambas tão somente em grau de intensidade.
Concluindo, este autor defende que não se pode estabelecer um critério abstrato, mas
tão somente fixar algumas diretrizes para orientar o aplicador da norma no caso concreto.
Outro não é o entendimento de Luiz Regis Prado:
Com isso em mente, é seguro afirmar que não há crime de estelionato quando o
ardil, a fraude, traduzido na maquiagem de fatos (como o exagero quanto aos danos morais
sofridos), se destina a triunfar em uma lide judicial: se o agente provoca o erro do juiz,
causando a prolação de uma sentença a si favorável, não se pode entender que haja o
chamado estelionato contra o Judiciário, ou estelionato judicial. Veja o HC 136.038, e o
REsp. 878.469, ambos do STJ:
“O presente habeas corpus não merece prosperar. Está correta a conclusão adotada
pelo Tribunal de origem, porque a descrição legal do estelionato, um dos crimes
por cuja suposta prática o Paciente foi denunciado, descartada aqui a menção às
demais imputações não impugnadas, não exclui da incidência do tipo penal a
fraude praticada em juízo, porque não faz distinções relativas à sede em que
praticado o crime e à qualidade do sujeito passivo, que pode ser qualquer pessoa,
inclusive o juiz, que, obviamente, também é passível de ser induzido ou mantido
em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.
“Com efeito, escassa é a doutrina que trata sobre o chamado estelionato judiciário.
Nilo Batista, em dedicado trabalho, coleta a criminalização da conduta no direito
comparado. Confiram-se, a respeito, estas passagens:
Batista arremata, escrevendo "ser inadmissível e grotesco (...) supor que o foro seja
um espaço no qual o dever – mesmo geral, mesmo moral – da verdade seja menos
intenso ou distinto daquele que se exige nas relações sociais privadas" (op. cit., p.
33).
Já em artigo intitulado "Do estelionato processual na Justiça do Trabalho" (que,
mutatis mutandis, pode ser aqui aplicado), Sérgio Luiz dos Santos Filho escreve
que:
‘Não se pode descuidar do fato de que, por inúmeras vezes, processos são
solucionados por equívoco do juízo, posteriormente confirmado em sede
de Ação Rescisória, o que nos leva a crer que o mero engodo é
plenamente capaz de desviar o órgão judicante do caminho da Justiça .
(...) Ninguém, nem mesmo o magistrado, está imune a tal prática. Visível,
pois, que qualquer ato ou fato da causa que, vontade de uma das partes,
imbuída de má-fé, tenha culminado com sentença dissociada da realidade
fática, à exceção dos crimes já tipificados em dispositivos penais diversos
do artigo 171, logra caracterizar o estelionato processual consumado.
(SANTOS FILHO, Sérgio Luiz dos. Do Estelionato processual na Justiça
do Trabalho. In Jornal Trabalhista Consulex, ano XXII, nº 1.076, pág. 8-
10).’
Uma vez mais, entendo ser indevida essa ponderação. Isso porque o princípio do
livre convencimento motivado apregoa que o Magistrado deverá fundamentar sua
decisão – favorável a uma ou a outra parte – com base nas provas, nos documentos
constantes nos autos.
De se ver que a imputação que pesa sobre o ora paciente – e também sobre os
corréus – é, exatamente, de ter-se valido de documentos sabidamente
inconsistentes.
Na hipótese, tenho que o convencimento do julgador partiu de falsa premissa,
inculcada em sua mente por documentos que não refletiam a verdade. O artifício
de que, supostamente, se valeram os acusados era, com base nesse conjunto
probatório que sabiam ser materialmente falso, levar o Estado-Juiz a uma decisão
viciadamente favorável. Decisão esta, diga-se de passagem, confirmada pelo
Tribunal local, que também foi ardilosamente levado a erro.
Entendo serem adequadas e oportunas as razões do ilustre parecerista, que assim se
manifestou (fls. 305/8):
(...) (já transcritas)
Por fim, tenho que se mostra descabida a pretensão desclassificatória, pois o crime
previsto no art. 347 do Código Penal é subsidiário, o que implica dizer: somente
ocorrerá o delito de fraude processual se a conduta não constituir sanção mais
grave.
A esse respeito, leia-se o que escreveu Paulo José da Costa Jr.:
Por todo o exposto, renovando as vênias devidas ao Ministro Relator, voto pela
denegação da ordem.”
1.2. Distinções
Veja um exemplo que bem ilustra a confusão que pode surgir entre este delito supra
e o estelionato: sujeito diz a outro que, mediante pagamento de determinada quantia,
conseguirá obter sucesso em determinado ato administrativo, porque é bastante amigo do
funcionário público por ele responsável; ocorre que o promitente do exemplo sequer
conhece o funcionário que menciona, ou seja, está agindo com ardil suficiente a levar o
agente a entregar-lhe o pagamento. A rigor, estariam presentes todos os elementos do
estelionato – a vantagem indevida, o prejuizo, a fraude –, mas o exemplo subsume-se ao
crime de tráfico de influência, porque o artigo 332 do CP não demanda que haja efetiva
influência sobre o funcionário público, mas sim apenas que se obtenha a vantagem a
pretexto de influir na consecução do ato. Assim, mesmo que também fosse possível
configurar o estelionato, o crime de tráfico de influência é especial em relação ao artigo 171
do CP. Quando não há realmente a influência, como no caso narrado, o tráfico de influência
não passa de um crime de estelionato especializado.
A mesma dinâmica distintiva se pode repetir em relação ao crime do artigo 357 do
CP e o estelionato:
“Exploração de prestígio
Art. 357 - Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, a pretexto de
influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito,
tradutor, intérprete ou testemunha:
Aqui se enquadra aquele que não paga porque não dispõe dos recursos, portanto. Se
o agente dispuser dos meios para pagar, mas não o faz, está inserto no artigo 171 do CP,
pois estão previstas todas as suas elementares. Destarte, o famigerado “dia do pendura” é
típico – é estelionato.
“HC 96132 / SP. DJe 24/11/2008. Cheque (garantia de dívida). Estelionato (não-
configuração). Extinção da ação penal (caso).
1. É da jurisprudência do Superior Tribunal o entendimento segundo o qual a
emissão de cheque como garantia de dívida não configura o crime do art. 171,
caput, do Cód. Penal (estelionato).
2. No caso, o paciente nem sequer era o devedor, tendo sido os cheques que deram
origem à persecução criminal emitidos como garantia da dívida de outrem.
Descaracterizado, portanto, está o crime de estelionato.
3. Ordem concedida com a finalidade de se extinguir a ação penal, estendendo-se
os efeitos a co-réu.”
1.5. Consumação
“Artigo 221º
Burla informática e nas comunicações
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento
de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização
incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou
intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido
com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para
terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando
programas, dispositivos electrónicos ou outros meios que, separadamente ou em
conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o
normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.”
Neste caso, o agente responderá pelo crime, apenas tendo reduzida a pena. Ocorre
que no estelionato especial praticado por meio de cheque à vista sem fundos, cometido na
forma do artigo 171, § 2°, VI do CP, recebe um tratamento bem mais brando por parte da
jurisprudência, quando se constatar esta circunstância de arrependimento. Veja a súmula
554 do STF:
“Súmula 554, STF: O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após
o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”
“Súmula 24, STJ: Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima
entidade autárquica da Previdência Social, a qualificadora do § 3° do art. 171 do
CP.”
1.10.1. TJ/RJ
delito, estelionato, o agente deve responder por este crime em concurso material
com aquele. Delitos praticados em momentos distintos. Acusada que fez uso de
documento falso, adquirido de terceiro e que ja' fora utilizado para outros fins,
tendo sido obstada de consumar o seu objetivo ao tentar a abertura de conta
corrente junto a outro estabelecimento bancario, pratica em relacao a este tentativa
de estelionato. O crime de uso de documento falso se consuma com a apresentacao
do documento, independentemente de qualquer lesao ou prejuizo que venha a
produzir. Desde que apresente potencialidade de lesao `a fe' publica, o delito
resulta consumado. Inexistencia de consuncao. As penas devem ser aplicadas
cumulativamente. Prova consistente e harmonica. Substituicao da pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direito, na forma a ser estabelecida pelo juizo da
execucao. Provimento parcial do apelo ministerial.”
1.10.2. STF
“STF: Informativo 440 (Ext-1029). Extradição e Burla Informática.
O Tribunal deferiu, em parte, pedido de extradição, formalizado pelo Governo de
Portugal, de nacional português condenado pela prática dos crimes de falsidade
informática e de burla informática, previstos, respectivamente, no art. 4º, nº 1, da
Lei 109/91 e no art. 221, nºs 1 e 5, alínea a, do Código Penal português (CP
português, art. 221: “1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro
enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo
1.10.3. STJ
“Súmula 244, STJ: Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime
de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos.”
“Súmula 107, STJ: Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de
estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das
contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão a autarquia federal.”
Casos Concretos
Questão 1
O advogado MÉLVIO recebe de seu cliente certa importância em dinheiro para dar
início a um processo de inventário, deixando de promover a ação respectiva, sempre
dizendo para o cliente que o processo já teria sido iniciado e que os autos estariam com o
Juiz para decidir. Descoberto o fato, veio o advogado a ser denunciado. Qual a correta
capitulação, ciente de que MÉLVIO se achava previamente suspenso pela OAB pela
prática de conduta semelhante?
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Tema XXI
Receptação e Disposições Gerais. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem jurídico
tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. Autonomia da receptação;b) Espécies de
Notas de Aula37
1. Receptação
“Receptação
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio
ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-
fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de
1996)
Receptação qualificada(Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar,
montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em
proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa
que deve saber ser produto de crime: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de
1996)
§ 2º - Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer
forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência.
(Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o
valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por
meio criminoso: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. (Redação
dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do
crime de que proveio a coisa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 5º - Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz, tendo em
consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na receptação dolosa
aplica-se o disposto no § 2º do art. 155. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 6º - Tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado,
Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia
mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro. (Incluído pela Lei
nº 9.426, de 1996)”
“Favorecimento real
37
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 5/11/2009.
É possível receptação de receptação, desde que quem receba esteja ciente de que o
produto é oriundo de crime.
Se uma pessoa recebe jóias que foram furtadas, e depois foram fundidas em objetos,
quem adquire os objetos pode responder por receptação. Mesmo que alterado, o produto do
crime ainda está ali presente.
Questão objeto de duvida na doutrina é se o bem imóvel pode ser objeto do crime.
Quando se fala transportar, conduzir e ocultar fica difícil imaginar o bem imóvel sendo
objeto deste delito. Na modalidade adquirir, porém, não há problema: se o legislador não
distinguiu entre bens móveis e imóveis, não nos cabe distinguir. Hungria, entretanto,
entende que o bem imóvel não pode ser objeto de receptação, porque essa pressupõe o
deslocamento da coisa.
Veja um exemplo peculiar: pessoa tem jóia subtraída de sua casa, pela empregada
doméstica, mas não sabe deste fato. Esta pessoa, casualmente, passava por uma feira livre,
quando vê uma jóia idêntica sendo oferecida a preço muito inferior do que sabe valer, e a
adquire. Ocorre que a jóia era a sua própria, que havia sido furtada anteriormente. Esta
pessoa está cometendo o crime de receptação, na modalidade culposa, do artigo 180, § 3°,
do CP: deveria saber que o bem é produto do crime.
Os tipos culposos são abertos, em regra, mas esse não: é fechado, porque só tem três
indícios reveladores da culpa aqui: a natureza do objeto material; a desproporção entre o
valor real da coisa o e o preço pago; ou a condição de quem oferece.
O tipo culposo é apenas para adquirir ou receber; para transportar, conduzir ou
ocultar, a conduta é atípica.
1.3. Autonomia
Por ser a receptação delito autônomo, não precisa estar comprovada a prática do
crime anterior: bastam indícios, como o registro de ocorrência policial, a existência da ação
penal, notícia de que aquilo foi objeto de crime, etc.
Diz ainda o § 4° do artigo 180 do CP que a receptação é punível, ainda que
desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. Este parágrafo
serve de lacuna para Damásio ter o seu famoso entendimento diverso, causalista, no que
tange ao conceito de crime.
Damásio diz que a receptação é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o
autor do crime, o que para ele revela que a culpabilidade não está inserta no conceito
analítico do crime: criem é ato típico e ilícito, sendo a culpabilidade mera condição de
punibilidade. Isto porque quando fala em isenção de pena, o legislador teria colocado de
forma separada a culpabilidade do conceito de crime, por isso ele diz que crime é fato
típico e ilícito, dispensada a culpabilidade, por conta desse parágrafo.
A interpretação deste dispositivo revela apenas que, mesmo que o crime anterior reste
insolúvel, ou que seu autor tenha recebido alguma benesse exculpante – desnaturando o
crime como um todo (quando for menor, por exemplo, trazendo o crime para ato
infracional), ainda assim a receptação será punível.
“Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste
título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja
civil ou natural.”
Nestes casos, o crime existe: há fato típico, ilícito e culpável. Contudo, o agente
simplesmente não será punido, em atenção à escusa absolutória que o alcance. Estamos
diante de causas pessoais de exclusão da pena, aferidas objetivamente.
No inciso I, apresenta-se a exclusão da punibilidade daquele cônjuge que pratica
delito patrimonial contra o outro. Assim, se a esposa furta dinheiro da carteira do marido,
não será punida. Mas há que se enfrentar um questionamento, aqui: se o marido retira
dinheiro da carteira da esposa, a toda vista está também açambarcado pela imunidade
absoluta deste dispositivo; contudo, a Lei Maria da Penha prevê que a violência patrimonial
contra a mulher deve ser reprimida. Surge, portanto, esta controvérsia: estará o marido
ainda a merecer a escusa absolutória em questão?
Sabe-se que a Lei 11.340/06, veio a regular os casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher. Tal diploma conceituou a violência doméstica e familiar, dividindo-a em
cinco espécies: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência
patrimonial e violência moral. Por isso, alguns entendem que não mais são aplicáveis as
imunidades do CP nos casos em que haja violência patrimonial contra a mulher. Tal é o
entendimento de Maria Berenice Dias:
“A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da sua
mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de
violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é
mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se
aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal.
Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a
condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f).”
(...)”
Para aqueles que sustentam que as imunidades devem ainda ser aplicadas, elencam,
dentre outros fundamentos, que na verdade a violência patrimonial contra a mulher poderia
ser objeto de repressão penal regular em muitos casos em que as imunidades não têm
atuação: em casos de violência ou grave ameaça, nos crimes contra vítima idosa e nos casos
do artigo 182 do CP, quando a vítima desejasse oferecer representação.
Ademais, se o legislador quisesse elidir a aplicação da escusa ao marido, tê-lo-ia
feito expressamente no artigo 183 do CP, quando, com o Estatuto do Idoso, incluiu ali a
previsão do inciso III, logo abaixo visto. Prevalece esta leitura, diga-se: a maior corrente é a
que reputa que o marido ainda é merecedor da escusa absolutória.
Quando analisamos a expressão “sociedade conjugal”, seria possível estender a
escusa absolutória aos companheiros? Há autores que dizem que não, porque são critérios
pessoais de exclusão da pena, pelo que só o cônjuge poderia ingressar aqui. Mas há dois
argumentos fortes contra isso: o artigo 226, § 3°, da CRFB, que protege a instituição da
união estável; e o fato de ser norma permissiva, diante da qual se pode aplicar a analogia,
para estendê-la ao companheiro.
Se autor e vítima estão casados de direito, e separados de fato, aplica-se o artigo 181
ou 182 do CP? A sociedade conjugal persiste, para fins penais, mesmo que o direito civil
seja diverso. Por isso, a interpretação deve ser sempre a mais favorável ao réu: se estão
casados legalmente, aplica-se a escusa absolutória; se judicialmente separados, há
imunidade relativa.
Veja que, havendo escusa absolutória, não pode sequer ser instaurado o inquérito,
muito menos a ação penal. O crime está caracterizado, mas não se pode sequer instaurar
inquérito.
Quanto ao inciso II do artigo 181 do CP, deve-se salientar que não há mais distinção
entre os filhos, naturais ou adotivos, como se sabe: qualquer filho que subtrair bem dos
ascendentes é isento de pena.
No artigo 182 do CP, há a imunidade relativa, como dito, que significa que o agente
ter-se-á perseguido em ação penal condicionada à representação, e não incondicionada,
como é a regra:
A previsão do inciso I do artigo supra não é redundante: não seria suficiente dizer
que não se aplicam as escusas ou as imunidades se houver emprego de grave ameaça ou
violência. A menção expressa ao roubo é necessária, por conta da existência da violência
imprópria do roubo, que estaria elidida caso não fosse este mencionado expressamente.
Quanto à extorsão, parece ser redundante, de fato.
Casos Concretos
Questão 1
CAIO adquiriu de MÉLVIO arma de fogo de uso restrito, estando ciente de que a
numeração daquela arma estava raspada. MÉLVIO afirmou para CAIO que aquela arma
lhe pertencia, tendo-a recebido de seu pai, sendo acertado o preço justo de mercado,
inclusive. Meses depois, em diligência realizada na casa de CAIO, com autorização
judicial, foi a arma apreendida, sendo o mesmo preso por receptação, além do crime
correspondente, previsto no Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03). Comente a
hipótese.
Resposta à Questão 1
Questão 2
Resposta à Questão 2
Questão 3
Resposta à Questão 3