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Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Tensões Entre os Saberes Tradicionais e Científicos: uma análise das


práticas das vendedoras de ervas medicinais da Feira do João Paulo

Aluno: Ciro Leonardo Campos Pinheiro


Tensões Entre os Saberes Tradicionais e Científicos: uma análise das
práticas das vendedoras de ervas medicinais da Feira do João Paulo

Resumo

A emergência de grupos sociais, reconhecidos pelo Estado como sendo portadores de


identidade étnica, permitiu que suas práticas, saberes e fazeres fossem tutelados e
garantidos como fundamentais para sua manutenção. As atividades tradicionais de
venda de ervas, “benzeduras” e outras práticas que conectam catolicismo popular,
costumes das religiões afro-brasileiras e do conhecimento indígena aos saberes ditos
eruditos, estão inseridos nesse processo. Nota-se, então, que esses saberes
tradicionais, bem como o científico, merecem a atenção da sociedade, entes públicos
e sistemas legais, porque representam parte daquilo que compõe a identidade de um
povo.

1. Introdução

A partir do séc. XVIII, o culto ao conhecimento científico, e a crença


nele como única forma de conhecimento – ou conhecimento verdadeiro – foi se
difundindo e ganhando os espaços. Com isso, o “saber” foi se tornando restrito
ao meio intelectual e acadêmico, e todo o conhecimento que fugisse desse
círculo passou a ser desconsiderado. Uma das razões para isso pode ser vista
no entendimento de que “saber” também é instrumento de “poder”. Foucault
fala que

“Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de


região [...] pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona
com um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma administração
do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo
saber [...] (FOUCAULT, 1988, p. 158).
Nota-se que, em havendo poder, o saber – ou controle do saber – se
dá como objeto de dominação. Essa dominação é um importante instrumento
de criação de uma consciência hegemônica e única dos povos. Acontece que,
na prática, o que existe é uma grande heterogeneidade e que, sendo assim,
requer um aparato de regulações também heterogêneo. Em tempos de
reconhecimento de direitos, elevar uma única forma de saber ao patamar de
exatidão é dar margem àquele processo de dominação e opressão.
Não obstante ao fato de que os saberes e fazeres tradicionais vêm
encontrando barreiras em seu exercício, a Constituição Brasileira de 1988
reconhece essas práticas como fazendo parte do patrimônio cultural imaterial
brasileiro. O artigo 215 confere ao Estado o dever de proteger todas as formas
de manifestação das culturas populares e a criação de instrumentos de
valorização da diversidade étnica e regional. Já no artigo 216, a Constituição
elenca os bens que compõem o patrimônio cultura material e imaterial do
Brasil, e inclui “as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer e viver”
nesse rol.
No plano internacional, o saber tradicional também encontra
garantias legais. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho,
de 1989, e a Convenção sobre Diversidade Biológica, são importantes
instrumentos de reconhecimento das práticas tradicionais como sendo
fundamentais ao contexto em que se inserem.
Considerando isso, se julgou interessante “compreender” a atividade
das vendedoras de ervas medicinais e benzedeiras da Feira do João Paulo, em
São Luís do Maranhão. Detentoras de conhecimento sobre rezas, ervas
curativas, doenças etc., essas pessoas mantém, mesmo com a elevação do
conhecimento científico ao mais alto nível de aprovação legítima, práticas
tradicionais que são passadas de geração em geração e que, teoricamente,
conflitam com o conhecimento erudito (medicina moderna, ciência etc.).
O objetivo da análise das práticas de venda de ervas e benzedura é
entender se o conflito teórico entre o conhecimento tradicional e o erudito
realmente existe e em que termos. Evans-Pritchard (2005), ao estudar os
oráculos e a bruxaria entre os Azande, no Sudão, diz que não existem conflitos
ou lógicas diferentes entre o conhecimento “erudito” e o conhecimento de
povos tradicionais, mas sim, um ponto de partida diferente, já que, em ambos
os casos, o que se busca é compreender algo. Manuela Carneiro da Cunha
(2015) também encontra semelhanças entre os saberes tradicional e científico
no que diz respeito à proposta de entender e agir sobre o mundo, e ao fato de
que ambos são abertos e inacabados.
Sobre essa última afirmação, Manuela Carneiro da Cunha já
consegue ver conflitos. Mas são conflitos que surgem do contato terceirizado
com os dois conhecimentos, isso porque a média compreende o conhecimento
científico como algo que, apesar de ser visto como verdade absoluta no
momento em que vige, é sempre mutável e passível de ser substituído por uma
perspectiva científica mais nova. O contrário acontece com o saber tradicional,
que é visto como algo imutável e que deve ser mantido estático, sem
acréscimo de nada (CUNHA, 2015).
Para essa observação, usaremos, como meio metodológico, a
etnografia. A proposta é que se relacionem os estudos de Edmund Leach sobre
“Os Sistemas Políticos da Alta Birmânia”, onde se rompe com alguns aspectos
da Antropologia Clássica e cria-se uma teoria dinâmica da Antropologia Social;
“O Processo Ritual: Estrutura e Antriestrutura”, do Victor Turner; e modelo
etnográfico proposto por Marilyn Strathern em seu ensaio sobre “O Efeito
Etnográfico”.

2. Nos pés, muita lama; na cabeça, muita curiosidade

São Luís, 9 de março de 2016, Feira do João Paulo. Chego sob forte
chuva. A lama formada pela água e lixo era muita, o chão de azulejos
vermelhos escorregava e o cheiro de peixe era quase que insuportável. Andei
alguns bons e longos corredores até encontrar meu destino.
De longe avistei o tabuleiro grande, cheio de plantas e ervas da, até
então, sem nome, Dona Maria dos Anjos. Parei a certa distância pensando no
“problema da abordagem”. Pensamentos vão, pensamentos vêm, e o que
salvou mesmo foi uma milagrosa dor de barriga que eu sentia. Oportunidade
perfeita: falaria sobre a dor na barriga e pediria alguma sugestão, a fim de que
conseguisse certa intimidade para falar da tal etnografia.
Apresentei-me, coloquei o plano em prática e fui tentando alavancar
alguma conversa. Dona Maria dos Anjos parecia não muito disposta – sem má
educação, respondendo às perguntas, mas do tipo que talvez pense “não
preciso de novos amigos”.
Apenas prejuízo inicial, pois Dona Maria dos Anjos, depois de alguns
minutos, já falava de tudo que tinha em seu tabuleiro de ervas, indicava chás,
banhos, cheiros e tudo quanto baste para uma saúde de ferro, tal qual a de
uma senhora de cabelos brancos, rosto marcado, 85 anos de idade, vinda da
Baixada Maranhense ainda criança, e de uma agilidade mental e física de
causar inveja a qualquer um que a veja.
Conversa fluindo, eis que surge a informação: “Dona Maria dos
Anjos, sou estudante e estou aqui para fazer uma observação das suas
atividades”. Um silêncio impera e nem o som dos facões cortando carne e o
grito dos pregoeiros se ouve mais.
O silêncio só é quebrado com Dona Maria dos Anjos perguntando “o
que tu quer com isso?” Respondi, expliquei como funcionaria a observação, e a
proposta de mostrar o cotidiano de alguém que, supostamente, não se
enquadrava no padrão erudito de produzir ciência e conhecimento. Titubeando,
meio relutante, Dona Maria dos Anjos parou um pouco, pensou, me olhava com
um sorriso entremeio, mas disse que aceitava fazer parte da observação e dar
voz e vida ao trabalho desse novo aventureiro da etnografia.
O alívio chegou e, junto, a hora de olhar o fazer de Dona Maria dos
Anjos. Encostei-me a um “box” abandonado que ficava à frente do tabuleiro das
ervas, e fiquei observando as pessoas que chegavam, como Dona Maria dos
Anjos os tratava, recomendava o uso do que vendia e reclamava do mormaço
que surgira após a chuva. Essa manhã, no entanto, serviria apenas com uma
primeira ambientação e oportunidade de ter alguma ideia do que veria depois.
O trabalho começaria mesmo só no dia seguinte, queria chegar à feira junto
com Dona Maria dos Anjos. Ver um dia nascendo e indo embora.
Falei com a dona do tabuleiro e disse que o trabalho começaria no
dia seguinte. Perguntei a que horas ela chegava à feira e se poderia
acompanhá-la no momento de abertura da barraca de venda. Dona Maria dos
Anjos prontamente atendeu ao pedido e disse que me esperaria na manhã
seguinte. Já ia indo embora, quando ela gritou: “Ei, tu não tava (sic) com dor de
barriga? Não vai levar ao meno (sic) uma folha de boldo?” Voltei meio
envergonhado e comprei a erva indicada por Dona Maria dos Anjos. Fui
embora levando uma sacola com um punhado de boldo e uma certeza: eu não
era o único observador, ela também me via.

3. As ervas ajudam quem cedo madruga


No dia seguinte, 10 de março, cheguei bem cedo à feira. Eram
05h30min da manhã e Dona Maria dos Anjos ainda não havia chegado. O
cheiro de peixe continuava o mesmo, forte, e parecia ter vida ao percorrer toda
a extensão do lugar. Esperei por mais ou menos meia-hora, tentando esquecer
o cheiro que me rondava, até que Dona dos Anjos chegou. Cumprimentou-me
com certa pressa, enquanto, meio atarantada, procurava a chave da barraca
dentro do sutiã.
Chave encontrada, portas abertas, Dona dos Anjos entra e acende
as velas de um altar que fica na barraca. Santos católicos, um Gentil, uma
imagem de Iemanjá e outra, um tanto grande, de São Lázaro: a escolta de
Dona dos Anjos era formada por nomes ilustres. Sentada em um banquinho,
rezou e ficou introspectiva por alguns instantes. Passado um tempo, virou-se
para nós, sorrindo, e dizendo: “tá na hora (sic)”. O dia parecia que ia começar.
Dona dos Anjos colocou o tabuleiro fora da barraca, dispôs a grande
quantidade de plantas por ele e sentou ao lado. Ela parecia ser bem conhecida.
Os outros vendedores, de todas as variedades, vinham cumprimentá-la,
falavam do dia-a-dia, do que acontecia em casa, das novidades da feira, da
estrutura dela, das promessas de reforma do ambiente. A vida do lugar era
intensa. Os sons também o eram. Um facão tinindo; uma serra cortando osso;
uma banca de CDs piratas tocando o forró do momento; o cachorro latindo; o
pedido de moedas; o carro de mão passando; os 10 quiabos por R$1,00: tudo
se comunicava bem, tudo se completava. Uma orquestra sem intenção de ser.
Não muito depois da abertura da barraca, uma mulher, com muitas
sacolas, chega e pede ajuda à Dona dos Anjos. Ela tem um ferimento na perna
que, há tempos, não cicatriza. A senhorinha olha para a mulher por um tempo e
pede a ela que sente. Dona dos Anjos balbucia alguma coisa e põe a mão
sobre a cabeça da mulher. Pergunta mais algumas coisas, sempre falando algo
difícil de compreender. Consulta feita, o indicado é uma garrafada de Matruz.
Tentei conversar com Dona dos Anjos, mas a manhã é
movimentada, a orquestra de sons da feira não para de tocar e me conformei
em observar. Conversar parecia privilégio. Crianças, homens, mulheres,
idosos, o público era vasto. Nem todos queriam indicações do que fazer,
alguns já sabiam o que comprar. Mas sempre que precisavam, Dona dos Anjos
assumia a postura altiva, sentava-as, balbuciava aquelas palavras indecifráveis
e segurava as suas cabeças. Isso se repetiu insistentemente durante toda a
manhã.
A hora do almoço era quando Dona dos Anjos ia embora. Na feira, o
dia começa e também termina cedo. Plantas e ervas guardadas no cofo,
tabuleiro colocado pra dentro, é hora de fechar a barraca. Não antes sem
completar o ciclo diário: a reza aos santos protetores deve se repetir pra
encerrar o dia de trabalho. Velas apagadas, portão de rolo baixado, chave no
sutiã e é hora de ir embora.
Eu voltava com as ideias prefixadas na mente – normal, talvez seja
esse o trabalho daquele que interpreta a categoria tão complexa chamada
“outro”. Eu, o iniciante da etnografia, já havia classificado a abertura e o
fechamento da barraca, acompanhado das rezas, como um processo ritual. É a
necessidade de classificar. Agora, então, eu só precisava matar a curiosidade
sobre o que Dona dos Anjos tanto falava enquanto examinava alguém.
Perguntei e ela disse que não era nada de mais, apenas falava com São
Lázaro, que era quem a acompanhava.
Segundo contou, começou o ofício de vender as ervas curativas e
ajudar àqueles que têm alguma enfermidade por desígnio do santo que, em
suas palavras, é o “médico dos pobres”. Também disse que, ao tocar a cabeça
da pessoa, é que consegue identificar quais problemas ela tem porque é ela
quem detém todas as informações sobre o resto de corpo e o comanda. Nessa
prática, Dona dos Anjos diz estabelecer uma ligação direta com o divino que,
segundo ela, é quem trabalha. Seu ofício é apenas mediar as relações do povo
com o santo. Segundo ela, as ervas são materiais essenciais para a
manutenção do bem estar físico e psíquico da pessoa. Quando faltam, é a
cabeça – que talvez tenha uma dimensão mais ampla não expressa
diretamente na fala de Dona dos Anjos – começa a não conseguir “gerir o bom
funcionamento” do organismo.
Então, quando o divino fala por intermédio dela, o faz direto com a
“cabeça” do paciente. Por isso, as ervas não têm uma funcionalidade
preestabelecida, mas sim, adquirida de acordo com a necessidade para
manutenção da saúde da pessoa. Não é uma parte do corpo (como a perna
ferida daquela primeira mulher que chegou à banca de Dona dos Anjos) que
sofre algo, mas sim, a “cabeça”, que, em falta das propriedades dadas pelas
ervas, somatiza essa falta produzindo alguma doença ou mal estar.
No Maranhão, a presença de religiões que mesclam o catolicismo
popular às religiões de matriz africanas e práticas ameríndias é bem
expressiva. Aqui, segundo Sérgio Ferretti (2013), existem duas religiões
específicas, que são o Tambor de Mina e a Cura ou Pajelança – além do
Candomblé e Umbanda, que foram incorporados à cultura local depois de um
tempo. O Tambor de Mina tem maior representatividade na capital, São Luís.
Já a Cura ou Pajelança encontra mais base, justamente, nas regiões da
Baixada e Litoral Maranhense, onde fica a cidade de Anajatuba, em que Dona
Maria dos Anjos nasceu – também se encontra a manifestação em terreiros da
capital, mas em menor proporção.
Na Cura ou Pajelança, como explica Mundicarmo Ferretti (2014), é
comum a indicação de remédios caseiros e a realização de cura de doenças –
adquiras por meio de feitiços ou não. Não se sabe em que ponto pode-se
classificar as práticas de Dona dos Anjos como sendo influenciadas pela Cura
ou Pajelança. Porém, em se tratando de Maranhão, onde é comum a
convergência de várias manifestações da cultura popular na construção do
saber e fazer, o fato de ela se identificar como mediadora entre o mundo
terreno e divino para realizar curas e indicar remédios, pode ser visto como
comparativo, principalmente, se quisermos traçar um paralelo entre a
repressão que acontecia aos rituais de cura entre o fim do século XIX e início
do século XX, e a exaltação ao cientificismo erudito – pelo menos em um plano
local.
A dificuldade de se encontrar, dentro de um contexto sincrético,
elementos que podem servir como demarcadores de fronteiras étnicas, talvez
não nos permita dar – se é que existe necessidade – alguma explicação sobre
a natureza das práticas de Dona dos Anjos, mas nos permite imaginar o quão
rica em trocas é a construção do saber popular e tradicional.
Mas voltando ao campo, a informação que Dona Maria dos Anjos
deu sobre o fato de consultar e receitar ervas sob influência de um ser divino,
deu uma virada no modo de observar a prática. Quando o divino fala com a
“cabeça” do paciente, realiza uma espécie de negociação, uma compensação.
São Lázaro, sendo esse “médico popular”, é quem detém o conhecimento da
cura para os males do povo e, por isso, é quem se responsabiliza pela
ministração dos medicamentos.

4. São Lázaro e as “cabeças”: um diálogo ritual


Na interpretação de Dona dos Anjos, uma doença ou mal estar
surgem quando há falta de alguma propriedade conferida por uma erva.
Quando esta falta ocorre, a “cabeça” da pessoa fica sem possibilidade de
manter o bom funcionamento do organismo, fazendo com que haja um
desequilíbrio. Para que a ordem seja retomada, é necessário que aquela
propriedade faltosa seja reposta, e isso, claro, só pode ser feito quando se
sabe o que está faltando. Quem consegue saber o que falta é a entidade que
acompanha a Dona Maria dos Anjos, no caso, São Lázaro.
Isso se faz mediante uma conversa, onde, Dona dos Anjos, em
contato direto com a parte física da cabeça, por meio das mãos, media a
conversa entre o santo e a “cabeça”, em sentido complexo, daquele que
apresenta algum desequilíbrio. A partir daí, um diálogo é travado, a fim que
haja alguma compensação daquilo que falta. A finalidade desse processo ritual
é, portanto, restabelecer o equilíbrio natural do organismo.
Dona Maria dos Anjos, sem perceber – ou percebendo -, personifica
o próprio ambiente ritualístico, onde seu corpo funciona como uma ponte entre
mundos.
Infelizmente, talvez devido à impossibilidade temporal de se fazer a
observação nesse campo, algumas conceituações, como essa da “cabeça”,
ficaram um tanto quanto vagas e incompreensíveis. Não se sabe também nem
se é conveniente que conheçamos todas as conceituações propostas por Dona
dos Anjos. Talvez o segredo também faça parte da construção desse saber.

6. Ciência e Saber Tradicional: tensões?


Quando se trata de conhecimento tradicional, ainda se guarda uma
tendência hierarquizante, colocando-o abaixo do conhecimento científico. No
caso dos rituais de cura, em contexto local, Mundicarmo Ferretti (2014) nos dá
dicas sobre o porquê de haver tal posicionamento. Nos idos do século XIX, a
medicina era pouco desenvolvida e restrita às elites, fazendo com que as
classes menos elitizadas buscassem, nos rituais de cura e uso de ervas,
saídas para suas enfermidades. Daí, talvez, por se entender que tais rituais
eram ligados às classes menos favorecidas, ao povo negro e de origem
indígena, tenha se mantido essa hierarquização entre os saberes, muito
baseada em preconceitos. Claro que essa hierarquização também acontece
em planos internacionais, onde esse contexto específico não é encontrado.
Mas fazendo um recorte local, essa pode ser uma explicação do por que haver
essa distinção pejorativa.
Vem de Mary Douglas (1991), em seu ensaio sobre “Pureza e
Perigo” outra possível explicação para essa hierarquização. No caso de Dona
dos Anjos, seu atendimento é feito dentro de uma feira, seguindo padrões que
não obedecem às regras impostas ao conhecimento científico, e, por isso,
pode-se interpretar suas práticas como sendo causas de desordem nas
estruturas vigentes. Segundo nos relatou, diversas vezes foi atacada
moralmente, caluniada e acusada de cometer atos de feitiçaria. Isso pode ser
visto como uma tentativa de restabelecer a ordem e higienizar as relações,
tentando-se anular manifestações que são vistas como destoantes do cenário
padrão.
Manuela Carneiro da Cunha (2009) não vê motivo para essa
distinção – pelo menos hierarquicamente -, já que ambas não existem em um
vácuo político e social. Apesar de partirem de pressupostos diferentes, as duas
formas buscam soluções para possíveis problemas do mundo. As tensões
metodológicas, que, aí sim, podem ser vistas com mais facilidade, não
pressupõem, entretanto, que exista uma tensão real entre saber científico e
tradicional.
Ainda segundo a autora, uma diferença, que não necessariamente
representa tensão, entre os dois saberes, é o fato de que, o científico, tem
pretensão de ser universal. Isso talvez, como diz, talvez derive da influência
medieval, onde a missão da ciência era “encontrar” o plano divino. Já o
conhecimento tradicional não se pretende universal, já que é muito mais aberto
a explicações divergentes.
Citando Claude Lévi-Strauss, Cunha (2009) diz que o antropólogo vê
as diferenças entre o conhecimento científico e tradicional advindas de níveis
estratégicos de aplicação. O conhecimento tradicional se constitui a partir de
unidades perceptuais (cores, cheiros, sabores, etc.); já o conhecimento
científico se constrói a partir de conceitos.
Ao que parece, as tensões são fruto de produções egoístas, que
buscam reproduzir, em todas as esferas sociais, classificações hierarquizantes.
Nesse contexto, o conhecimento tradicional, por, medianamente, não ter
respaldo no meio intelectual elitizado, é quem mais corre riscos, haja vista que
necessita de lógicas diferentes de produção. No fim, o que faz bastante sentido
é a análise do Evans-Pritchard (2005) já usada na introdução deste trabalho. O
que difere conhecimento tradicional de ciência é uma questão metodológica –
que claramente envolve outros fatores mais complexos, como os de relação -,
porque, o que buscam mesmo, é transformar o mundo.

7. Considerações Finais
Na análise sobre as práticas de venda de ervas e cura, realizadas
por Dona Maria dos Anjos, um característica se mostrou bastante interessante.
Ao mediar as relações entre o mundo terreno e divino, ela, no processo ritual,
se põe na categoria de “liminaridade”, proposta por Victor Turner (1974). Essa
categoria representa um estado, digamos, híbrido. É um entremeio que não
permite enquadramento em uma classificação. Como nos diz, em algumas
comunidades, pode ser visto em alegorias de morte, eclipses, bissexualidade,
invisibilidade, ect. O que se torna novo nesse caso é que, diferente da
conceituação proposta por Turner, Dona Maria dos Anjos não “passa” por um
processo de vácuo – temporal, social, político, ect -, mas sim, transita entre os
pólos intermediários desse vácuo.
E aqui se vê algo também interessante porque, se não
conseguirmos identificar em que lugar Dona dos Anjos se encontra nesse
processo, mais ainda ela responde às características das categorias liminares.
Para essa etnografia, a “liminaridade” parece ser bem proveitosa.
Baseados na teoria proposta por Marilyn Strathern sobre o Efeito Etnográfico
(2014), acreditamos, como ela mesma diz, que toda organização social pode
ser vista como um sistema em constante evolução, fazendo com que os
indivíduos produzam e se relacionem de maneiras diferentes e acarretem
resultados das mais diversas espécies. Consideramos que qualquer tentativa
de demonstrar alguma resultado pode ser falho já que nem mesmo o
pesquisador é capaz de ter total domínio sobre aquilo que toma nota ou tenta
interpretar.
O fato de termos dificuldade de compreender o que é essa
personagem “Dona Maria dos Anjos” é um indicativo da imprevisibilidade da
observação de campo. A necessidade de se “classificar” é, como já dito em
capítulo anterior, apenas uma necessidade. As classificações, no final, ficam a
cargo do leitor, de terceiros, daquele que foi objeto, e não apenas do etnógrafo.
As classificações derivam da conferência de graus de importância à descrições
daquilo que é observado e que, realmente, foge da tentativas de propositura de
teses.
Ver, então, o ofício de Dona Maria dos Anjos a partir da liminaridade
de Turner é deixar, sabiamente – talvez-, que ela não seja classificada. Que
transite, que seja híbrida, que seja incompreensível. Que tenha a possibilidade
de atuar em planos materiais ou transcendentais. Que seja Dona dos Anjos,
que seja intérprete, que seja duas. Que seja várias.
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