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Marcos Rohling
Professor do Instituto Federal Catarinense – IFC, Câmpus Videira. Graduado em
Filosofia (UFSC), graduando em Direito (UNISUL), mestre em Ética e Filosofia Política
(UFSC), doutorando em Educação (UFSC). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1426156565430729. E-mail: marcos_roh@yahoo.com.br
Resumo
O presente artigo versa sobre a crítica que Hart faz à doutrina clássica do
direito natural. Para tanto, o artigo articula quatro momentos: no primeiro,
tem-se a apresentação da teoria do direito de Hart, como descrita em The
Concept of Law; na sequência, expõe-se a doutrina clássica do direito natural,
destacando as figuras de Cícero e de Tomás de Aquino; discute-se, em terceiro
lugar, a crítica de Hart ao direito natural propriamente, pondo em relevo duas
noções: a de teleologia humana e a da validade de leis injustas; por fim, no
quarto momento, argumenta-se especificamente sobre a relação entre direito
e moral, apontando, notadamente, para o conteúdo mínimo do direito natural.
Palavras-chaves: positivismo jurídico. direito natural. Hart.
Abstract
This article deals with the critique Hart makes of doctrine of natural law. To
this end, the article puts forward four moments: first is the presentation of
Hart’s Theory of Law, as described in The Concept of Law; following the
classical doctrine of natural law is presented, highlighting the figures of Cicero
and Aquinas; it is discussed, thirdly, Hart’s critique to natural law itself, while
emphasizing two notions: a human teleology and the validity of unjust laws;
and, finally, in fourth, it is argued specifically about the relationship between
law and morality, pointing, especially, toward the minimum content of natural
law.
Keywords: Legal positivism. Natural law. Hart.
Introdução
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Doravante, CD para: HART, The Concept of Law. 2ª. Ed. Oxford: OUP, 1998, tradução
portuguesa: O Conceito de Direito. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001; AANR
para: Are There Any Natural Rigths? The Philosophical Review. Vol. 64, nº 2, p. 175-91, Apr.,
1955.
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Nesse texto, serão tomadas como sinônimas as expressões direito natural e lei natural. Sabe-
se, contudo, que essas terminologias, no interior das discussões jusnaturalistas, se não em todo
caso, não podem ser tratadas sempre como sinônimas.
Vista sob esse matiz, de acordo com o que sugere Volpato Dutra, a
teoria de Hart explica que o direito é uma convenção que pode ser estudada
como um fato, ao mesmo tempo em que enfatiza o seu caráter hermenêutico,
baseado na perspectiva do participante – o ponto de vista interno ao direito
(VOLPATO DUTRA, 2013, p. 195). Nesse sentido, remetendo-se ao aspecto dos
conteúdos da lei, Hart constata que nem todas elas são formadas por
mandatos que afixam sanções, no caso de desobediência. Inequivocamente,
existem leis cujas existências se justificam na não prescrição de sanções, como
é o caso do direito penal, mas na delegação de poder para que se leve a cabo
Com efeito, Hart defende que, na maior parte dos casos, a regra do
reconhecimento não se encontra enunciada de modo evidente; não obstante,
sua existência é manifesta no modo por meio do qual as regras concretas são
identificadas em todas as instâncias que se envolvam com o direito,
abarcando, assim, os tribunais e os seus funcionários, bem como os cidadãos
particulares e aqueles que tomam para consultores. Esse aspecto corresponde
àquilo que se denomina ponto de vista interno, que, em geral, quer dizer
justamente a aceitação do uso das regras como regras de orientação por parte
das pessoas (HART, 2001, p. 131).
Esses são os aspectos mais sobressalientes da teoria positivista do
direito de Hart. Evidentemente, sua obra não permite um enfoque tão
unilateral e, em função disso, uma abordagem mais profunda seria essencial
para a compreensão de muitos dos termos acima referidos. No próximo
tópico, por seu turno, serão vistas as críticas que o pensador inglês faz ao
direito natural.
Para melhor entender a crítica de Hart, vale a pena evocar algumas ideias
gerais feitas pelos filósofos do direito não simpáticos ao positivismo jurídico.
Em termos gerais, existem alguns pontos concordes nas teorias clássicas da lei
natural, os quais podem ser indicados na ordem que se segue: i) a teoria da lei
natural afirma existirem diversos princípios que, segundo algumas vertentes de
ambos os lados, são inconciliáveis com o positivismo jurídico; além disso, ii)
para os teóricos jusnaturalistas, existe uma necessária (isto é, não contingente)
relação entre direito e moral, de tal modo que, quando há um conflito entre a
lei natural e a lei humana, o direito natural deve prevalecer e, nesse sentido, a
lei natural determina que todas as leis feitas pelo homem devem estar de
acordo com os seus princípios fundamentais, como alguns princípios da lei
natural de Tomás de Aquino, tais como fazer o bem, evitar o mal e promover o
bem comum; iii) o proponente da lei natural acredita que toda lei deve ser
moralmente justificada se for para ser, em todo caso, legitimamente chamada
de lei. Assim, qualquer ordem jurídica moralmente aceitável deve reconhecer
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São muitos os pensadores identificados como jusnaturalistas, incluindo Platão e Aristóteles. No
entanto, em Cícero mais ostensivamente, essa doutrina é formulada, ao passo que Tomás de
Aquino é visto como seu grande baluarte. Por isso, a apresentação dessa doutrina clássica será
dada a partir desses dois pensadores. Em geral, as ideias e os pontos que seguem são tomados
de empréstimo do meu artigo: Natureza, Direito e Justiça. O Fundamento da Lei Natural na
Natureza Humana em Cícero. Cultura e Fé. Revista de Humanidades (Porto Alegre). n. 145, Ano
37, Abril-Jun., p. 165-179, 2014.
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As interpretações recorrentes da passagem acima não são reticentes em afirmar haver certa
identidade entre essa posição e aquela que tinham os estoicos. Não entanto, muitos críticos e
especialistas têm relutado e oferecido interpretações diferentes. Entre esses teóricos,
notadamente, encontram-se STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009;
NICGORSKI, Walter. Cicero’s Paradoxes and His Idea of Utility. Political Theory, 12, 557-578,
Nov., 1984; HORSLEY, Richard A. The Law of Nature in Philo and Cicero. The Harvard Theological
Review, 71, 35-59, January-April, 1978; HOLTON, James E. Marco Túlio Cicerón. In: Historia de la
Filosofía Política, 158-176; CROSSON, Frederick. Religion and Natural Law. American Journal of
Jurisprudence, 33, 1-17, 1988; e ARKES, Hadley. That ‘Nature Herself Has Placed in Our Ears a
Power of Judging:’ Some Reflections on the ‘Naturalism’ of Cicero. In: Natural Law Theory:
Contemporary Essays, 245-277.
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É preciso dizer que a obra de Tomás de Aquino tem suscitado um caloroso debate no que se
refere à compreensão de suas teorias ética, jurídica e política e da doutrina da lei natural. Nesse
campo, não se tem hoje um posicionamento concorde e pacífico. Entre as diferentes leituras,
têm-se as de: FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: OUP, 1998;
GEACH, Peter. The Virtues. Londres: Cambrige University Press, 1977; GOYETTE, John, LATKOVIC,
Mark S., MYERS, Richard S. St. Thomas Aquinas & the Natural Law Tradition: Contemporary
Perspectives. Washington: The Catholic University of America Press, 2004; LISSKA, Anthony.
Aquina’s Theory of Natural Law: An Analytic Reconstruction. Oxford: Oxford University Press,
1996; MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001; PIZZORNI, Reginaldo. Il
Diritto Naturale – dalle origini a S Tomamaso d’Aquino. Bologna: Edizioni Studio Domenicano,
2000; VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
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Substancialmente falando, essa é a base da crítica de Hart à teoria da lei natural. Na seção
seguinte, esse tópico será mais bem visto.
Hart é um crítico da teoria do direito natural, embora admita que ela tenha um
núcleo de verdades, as quais são descritas como conteúdo mínimo do direito
natural. Hart afirmou que a teoria do direito natural, em todas as suas variadas
roupagens, tenta asseverar que os seres humanos são igualmente dedicados e
concordes a suas concepções de objetivos outros (a busca do conhecimento,
justiça para seus semelhantes) que não os da sobrevivência (HART, 1958, p.
623). A ideia de Hart, no entanto, é que a doutrina jusnaturalista não oferece
uma explicação aceitável do que é um sistema jurídico no sentido de
estabelecer a validade de suas normas. Em CD, o autor aborda a divergência
teórica entre a doutrina do direito natural e a do positivismo jurídico
desenvolvendo uma análise sobre a falácia da expressão direito natural, com
base na crítica de Mill a Montesquieu, associada à distinção entre leis
descritivas, estabelecidas pela ciência, e leis prescritivas, enderaçadas aos
seres humanos.
No que se refere à questão do direito natural, Hart a aborda no Capítulo
IX, de CD, situando-a, nos termos dessa relação, no terreno da moral, no
sentido de que o direito natural pertence à esfera moral. Nesse particular, o da
pertença do direito natural à moral, Hart constata haver muitos diferentes
tipos de relação entre direito e moral, os quais, no entanto, não podem ser
isoladas com proveito para efeito de estudos. Ainda assim, entre os modos de
conexão mediante os quais o direito tenha sido influenciado pela moral, Hart
nomeia alguns, a saber: i) quando o direito é influenciado pela moral
convencional; ii) ou pelos ideais de grupos sociais particulares; ou, uma vez
mais, iii) por formas de crítica moral esclarecidas, as quais podem ser
sustentadas por indivíduos, cujos horizontes morais tenham transcendido a
moral corretamente aceita. Dessa conexão verdadeiramente estabelecida,
Hart afirma que muitos teóricos, em muitos casos, tomam-na ilicitamente
como justificação de afirmações, as quais (i) o sistema jurídico deve mostrar
conformidade com a moral e (ii) deve repousar sobre a convicção de há uma
obrigação moral de lhe obedecer (HART, 2001, p. 201).
i. teleologia humana
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Esses princípios ou regras de condutas são os truísmos do conteúdo mínimo do direito natural
que Hart defende, como núcleo de bom senso presente na doutrina da lei natural. Mais adiante,
esses princípios serão vistos com mais atenção.
Quer dizer, assim, mesmo que exista uma lei natural, coisa que Hart não
diz, que o conceito de direito por ele firmado sustenta que as leis são
determinadas pelos preceitos estabelecidos de acordo com a regra de
reconhecimento, de tal forma que, nesse sentido, inexiste uma obrigação
moral de obedecer ou desobedecer ao direito, no caso de leis injustas,
estritamente falando. Nesse particular, há, todavia, um aspecto a ser
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Nesse sentido, é oportuno indicar que prevalece, para Hart (tal como descreve em AANR, de
1955, artigo que posteriormente foi rejeitado em sua tese básica, a de que existe pelo menos
um direito natural), a ideia de que os vínculos com a sociedade e com o direito estariam
acentados consistentemente nos benefícios recíprocos e mútuos que um sistema social
cooperativo pode proporcionar. Ao beneficiarem-se desse sistema, mediante a sujeição dos
outros às regras, os indivíduos estariam, pois, comprometidos com ele, tal como é evidente no
princípio do fair play. Esse é o mesmo princípio que opera no estabelecimento de vínculos de
obrigação e obediência ao direito no artigo Legal Obligation and the Duty of Fair Play, de Rawls.
Sobre esse tema, recomendo meu texto: ROHLING, M. Hart e Rawls. “Fair Play”, Obediência ao
Direito e Obrigação Política. Lex Humana (Petrópolis), Vol. 5, nº. 2, p. 121-141, 2013.
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Para uma introdução à visão do aspecto moral que envolve o direito, em Hart, ver:
MACCORMICK, 2010, p. 206-9.
Não é verdade, por sua vez, que dessa necessidade se infira a obrigação
moral de obediência como condição lógica e necessária da existência da ordem
jurídica. Conclusivamente, então, leis injustas continuam a ser leis válidas, se
produzidas de acordo com as regras, embora moralmente reprováveis, e não
existe uma obrigação moral de obediência ao direito no interior do próprio
direito, ainda que existam moralmente razões que levem os indivíduos a
obedecer a demanda jurídica que sobre eles recai.
Deveras, para Hart, esses truísmos não apenas revelam o núcleo de bom
senso da doutrina do direito natural, mas, uma vez alçados à condição de
elementos de importância vital para a compreensão do direito e da moral, são
fundamentais para explicar a razão de a definição das formas fundamentais
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
______. Suma Teológica. Trad. Aimom - Marie Roguet et al. 9 volumes. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.
FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. Oxford: OUP, 1998.
______. Collected Essays of John Finnis. Volumes I–V. Oxford, Oxford University
Press, 2011.
______. Natural Law and Natural Rights. Oxford: Clarendon Press, 1980.
______. Natural Law and Natural Rights. 2ª ed. Oxford: Oxford University
Press, 2011.
HART, H. L. A. Are There Any Natural Rights? In: WALDRON, Jeremy (Ed.).
Theory of rights. Oxford: Oxford University Press, 1984.
______. Are There Any Natural Rigths? The Philosophical Review. Vol. 64, nº 2,
p. 175-91, Apr., 1955.
______. Positivism and Separation of Law and Moral. Harvard Law Review, vol.
71, nº 4, 1958.
HUME, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
RAWLS, John. Legal Obligation and the Duty of Fair Play. In: RAWLS, J. (Org.
Samuel Freeman). Collected Papers. Cambridge, Harvard University Press,
1999.