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Sociolinguística in: Introdução

às Ciências da Linguagem:
LINGUAGEM, HISTORIA e
CONHECIMENTO
Emílio Pagotto

Introdução

Como muitos outros campos das ciências, a sociolinguística é uma área na qual um
rótulo - sociolinguística - é disputado por diversas abordagens diferentes que constroem, por
sua vez, um mundo referencial diferente a ser abarcado por tal rótulo. Nesse caso específico,
temos ainda um complicador porque o rótulo pressupõe a existência de outros campos que se
entrecruzam: o social e o linguístico. O rótulo poderia ser outro, se é um composto isto se dá
porque o surgimento do que veio a ser conhecido como sociolinguística ocorre a partir da
tensão com a linguística - com uma certa linguística - e, como outras abordagens, procura
colocar em questão as teses de cunho imanentista do estruturalismo, ou naturalistas, do
gerativismo. Historicamente, temos que localizar a sociolinguística a partir de uma linguística
estabelecida. Estamos nos anos 60, o estruturalismo proclama a sua vitória, sem perceber que
seus alicerces são roídos e abalados por movimentos teóricos que buscam recolocar o
funcionamento social como parte do funcionamento linguístico ou que procurarão, como é o
caso do gerativismo, investir em um sistema linguístico que explicite a criatividade linguística.

É claro que não pretendo nesse texto chegar à relação verdadeira, como se o
conhecimento fosse apenas a atribuição correta do nome à coisa. Pretendo apenas fazer o
exercício de descrever determinadas práticas científicas normalmente cobertas pelo rótulo de
sociolinguística procurando ver o que elas têm em comum e o que as diferencia.

O que identifica tais abordagens é o fato de que, como o próprio nome diz, propõe-se
investigar a relação entre o mundo linguístico e o mundo social. Há, porém, inúmeras
abordagens que trabalham a partir do pressuposto de que há uma relação entre o corpo da
língua e seu exterior. Por que todas elas não são reunidas sob o rótulo de sociolinguística? Seria
apenas uma questão de rótulo? Parece que não.

Um dos traços fundamentais das abordagens sob o rótulo "sociolinguística" é o fato de


que pressupõem a autonomia do sistema linguístico para depois proporem a inter-relação com
o mundo social. Assim, diferentemente da análise do discurso, da semântica da enunciação,
das gramáticas funcionais, as abordagens conhecidas como sociolinguísticas trabalham com a
ideia - implícita ou explicitamente - de que o sistema linguístico tem um funcionamento
próprio, independente do mundo social, embora submetido a ele. Isto pode parecer
contraditório - isto é, a ideia de que a sociolinguística depende crucialmente da visão de língua
à qual procura se opor mas decorre de momentos e lugares onde nascem as abordagens
científicas.
Assim, a área conhecida como sociolinguística propõe-se a pensar a relação entre a
estrutura linguística e a sociedade de uma maneira bastante específica, isto (Pag.51) é,
pressupondo a existência e a autonomia do sistema linguístico, o que a coloca, de saída, no
lugar da contradição: como é possível o sistema linguístico ser, ao mesmo tempo, autônomo e
dependente com relação à estrutura social na qual está engendrado? Qualquer abordagem que
se diga sociolinguística e não se proponha a dar uma resposta satisfatória à questão de como a
estrutura linguística se engendra na estrutura social está, de saída, claudicante com relação às
tarefas que propõe investigar.

1. O objeto desdobrado
Metodologicamente, o que se faz em sociolinguística é buscar lugares de intersecção
entre o mundo social e a dimensão linguística. Estas intersecções podem ser definidas a partir
do funcionamento social ou a partir do funcionamento linguístico, normalmente a partir deste
último. As diversas linhas de pensamento usualmente reunidas sob rótulo de sociolinguística se
estabelecem a partir do lugar que privilegiam para as intersecções entre língua e sociedade,
podendo -se distinguir três grandes áreas: a Teoria da Variação e Mudança, a Etnografia da Fala
e a Sociologia da Linguagem. Todas estudam aspectos relevantes do funcionamento da língua
em sociedade. No caso da sociologia da linguagem, estudam-se relações "maiores" da língua
com a sociedade, isto é, normalmente não se desce a detalhes no âmbito do funcionamento
linguístico, mas busca-se muito mais entender como uma língua se espalha por uma
determinada comunidade e quais as relações entre esse espalhamento e as estrutura s de
poder. Podemos incluir nessa linha de pensamento, tanto os trabalhos sobre comunidades
plurilíngues, que tem em John Fishmann o grande pensador, como trabalhos como o de Pierre
Bourdieu, que constrói um a sociologia da linguagem profundamente calcada no marxismo. 1 Já
as áreas cobertas pela Teoria da Variação e da Mudança e pela Etnografia da Fala estão mais
interessadas no funcionamento linguístico, propriamente, isto é, interessam-se
primordialmente pelo funcionamento da língua e como este é afetado pela sua relação com a
sociedade. O que distingue uma área da outra, neste último caso, tem a ver tanto com os
fenômenos que elege para investigação quanto pelo tipo de questão que coloca para este
funcionamento. A Etnografia da Fala, rótulo que hoje cobriria áreas com o a sociolinguística
interacional, se interessa em chegar a uma competência comunicativa dos falantes
descrevendo cenas enunciativas nas quais eles revelam de que maneira está organizada a
comunidade; o foco central é o conhecimento das regras sociais que norteiam o emprego das
formas linguísticas, como parte do funcionamento social da comunidade. A Teoria da Variação
e da Mudança, também conhecida como sociolinguística quantitativa, procura discutir de que
maneira o sistema linguístico, no seu núcleo gramatical, é afetado pelas relações com a
sociedade, pensando, dessa maneira, não somente as relações no plano da cena enunciativa
com o também a organização da sociedade em classes e outros grupos sociais. (p.52)

O trabalho em sociolinguística costuma operar, inicialmente, com essas duas


dimensões: a linguística e a não linguística (ou extralinguística). Em cada uma dessas ordens se
costumam organizar os fenômenos segundo o seu raio de abrangência. Na prática isso quer
dizer que, na dimensão linguística, os níveis de análise são extremamente relevantes para
definir os limites do fenômeno estudado. Assim, é comum isolar fenômenos sociolinguísticos
fonéticos, morfológicos, sintáticos, lexicais, semânticos e assim por diante. Conforme o nível

1 O leitor pode encontrar em português Fishman, J. A. (1974) A sociologia da linguagem. In Fonseca,


M.S. e Neves, M.F. (orgs.) Sociolinguística. Rio de Janeiro, Eldorado; e Bourdieu, P. (1996) A Economia das
Trocas Linguísticas. São Paulo, Edusp.
em que se trabalha costumam aparecer dificuldades de acordo com a sociolinguística que se
faz, de tal forma que, embora os autores não o revelem, é comum que as diversas linhas de
trabalham elejam certos níveis como privilegiados, por apresentarem processos linguísticos
mais transparentes para o tipo de relação que tais linhas propõem para a tensão entre língua e
sociedade.

Na dimensão não linguística, é comum isolar três planos de correlação para o


funcionamento linguístico: o plano espacial, o plano social e o plano contextual. Agrega-se a
esses planos um plano temporal ou histórico.

O plano espacial tem a ver com a correlação que fazemos entre as formas linguísticas e
espaço geográfico, isto é, o que tradicionalmente conhecemos como dialetos. Quanto à
dimensão social, procura-se investigar até que ponto o funcionamento da estrutura social
reflete-se ou interfere na estrutura linguística. Neste caso, cada sociedade define os
parâmetros relevantes, em função da maneira como as relações sociais estão estruturadas. É
comum tomar parâmetros como idade, classe social, gênero, grau de escolaridade e assim por
diante, quando se consideram sociedades urbanas ocidentais ou ocidentalizadas. A dimensão
social costuma ser vista como uma extensão da visão dialetológica para a dimensão social. A
última dimensão é a do contexto de enunciação. Como o próprio rótulo já indica, trata-se de
correlacionar o funcionamento linguístico ao funcionamento do processo de comunicação.
Para a sociolinguística, contraditoriamente, temos aqui o lugar mais problemático de
correlação, em parte porque diversas outras áreas da linguística, que não costumam ser
entendidas como pertencentes à sociolinguística, têm estudado a relação entre o
funcionamento linguístico e o processo enunciativo. Qual é a especificidade desta relação na
sociolinguística? Talvez a grande diferença seja a de que não é objeto imediato da
sociolinguística uma relação constitutiva, digamos assim, entre o processo enunciativo e a
estrutura social (isto é, a sociolinguística não parte do pressuposto de que o funcionamento
linguístico é uma função do processo enunciativo, mas a ele pode estar correlacionado). Para a
sociolinguística, como a estrutura da língua é prévia ao momento de enunciação, interessam as
maneiras pelas quais os falantes se delimitam, se identificam ou se excluem no processo
comunicativo, por meio do uso de determinadas marcas linguísticas. Nesse sentido, o contexto
de comunicação é na verdade o lugar em que as dimensões social e geográfica se atualizam,
definindo quem é quem.

Isto posto, cabe perguntar o que amarraria todos essas dimensões e intersecções, já
que, da forma como apresentamos, fica a ligeira impressão de que não haveria um elo entre
todas essas possibilidades. É possível dizer, no entanto, que há um conceito básico por meio do
qual é possível visualizar todas essas inter-relações: o conceito de variantes linguísticas. Toda
língua seria constituída de possibilidades formais diferentes para a mesma função
comunicativa. Assim, as formas variantes seriam as marcas pelas quais a língua pode expressar
as dimensões fora dela, como a espacial ou a social. (p.53)

2. Formas variantes linguísticas


Toda língua é heterogênea, o que significa que toda língua comporta no seu interior
formas em variação. O que são formas em variação? A grosso modo, formas em variação são
maneiras diferentes de dizer "a mesma coisa". É o fato de comportar variação que faz com que
a língua seja capaz de expressar no seu interior a estrutura social, valores sociais externos a ela
e separados do conteúdo referencial do léxico. De maneira mais precisa, formas variantes são
expressões diferentes de um mesmo lugar funcional no sistema linguístico. Tomemos um
enunciado qualquer, numa mesa de restaurante, por exemplo:

(1) “_O senhor poderia me passar o sal e os palitos de dente, por favor?"

O primeiro fato para o qual se deve chamar a atenção é o de que à sociolinguística não
interessa teorizar sobre a natureza deste enunciado como um ato de fala, ou como um ato de
discurso. Isto é, à sociolinguística só tem interessado a teorização sobre as condições de
produção dos enunciados quando, de alguma maneira, tais condições se entrecruzam com as
formas variantes que a língua disponibiliza para a expressão de tais condições. Por exemplo,
não é objeto de estudo da sociolinguística o fato de que o enunciado tem a forma de pergunta
mas funciona como um ato ilocucionário de pedido. Do mesmo modo, não é de interesse
primeiro da sociolinguística o fato de que não se costuma pedir sal e palitos de dente ao
mesmo tempo. Que condições de produção deste enunciado teriam motivado um pedido tão
estranho? No entanto, pode interessar à sociolinguística a forma de polidez utilizada no final do
enunciado, bem como a forma de tratamento do começo, as quais obviamente, têm íntima
relação com as regras de convivência social, bem como com a estrutura social que dá origem a
tais regras.

A ideia básica da sociolinguística é a de que a língua abre em vários lugares estruturais


ou lexicais a possibilidade da utilização de uma outra forma. Assim, a sentença acima tem
vários lugares nos quais haveria a possibilidade de ocorrência de uma outra forma linguística;
assim, por exemplo:

1. A posição do sujeito poderia ser após o verbo auxiliar "Poderia o senhor me


passar....";
2. No sujeito - a expressão "o senhor" poderia ser substituída por outras como
"você", "tu";
3. A forma verbal poderia eventualmente poderia ser substituída por podia;
4. A posição do pronome oblíquo me poderia ser antes do auxiliar ou depois do
verbo principal;
5. As palavras senhor, passar, favor poderiam ter o /R/ final expresso de muitas
formas diferentes ou eventualmente não apresentá-lo;
6. Na expressão "os palitos de dente" poderíamos ter "os palito de dente" sem a
marca de plural na palavra palito; (p.54)
7. Em de e dente a vogal final poderia se realizar como [e] ou [i]. Neste último
caso, a consoante /d/ e a consoante Itl poderiam se realizar como africadas
palatalizadas ou não.

Esse exame superficial nos mostra que a cada enunciado é possível tropeçar em
inúmeros lugares para o processo de variação. Praticamente a cada palavra temos a abertura
de possibilidades de utilizar uma ou outra forma linguística. Essa constatação pode levar à
conclusão falsa de que a língua é um fenômeno de tal sorte heterogêneo que se tornaria
praticamente impossível estudar tal heterogeneidade de maneira sistemática e consequente.
Um exame mais detido nas possibilidades aventadas acima pode mostrar que não é o caso.

A proliferação que mencionamos se dá, em primeiro lugar, porque a língua se organiza


numa estrutura em níveis, ou componentes, com um funcionamento relativamente
independente. Como a estrutura linguística abre possibilidades de variação, isso implica que
cada um desses componentes - de maneira mais ou menos independente - vai abrir seus
próprios espaços de variação. Assim, no caso do enunciado acima, poderíamos isolar:
No componente fonológico:

1. A realização de /R/ em posição pós-vocálica, em especial final de palavra;


2. A realização das vogais pós-tônicas /e/ e /o/;
3. A realização das oclusivas alveolares li/ /d/, diante de [i];
4. A realização da consoante lateral /l/ em final de sílaba;
5. A realização da consoante /s/ em final de sílaba.
No componente morfológico:

1. A alternância entre as formas do futuro do pretérito e pretérito imperfeito;


2. A flexão de número.

No componente sintático:

1. A posição do sujeito na sentença;


2. A posição dos pronomes oblíquos átonos em locuções verbais;
3. A concordância no interior do sintagma verbal;
4. A concordância do verbo com o sujeito.

No componente lexical:

1. As formas de tratamento.

Como um enunciado é a manifestação conjunta de todos esses componentes, é óbvio


que, a cada enunciado que proferimos, os lugares de variação são inúmeros, o que faz com que
uma única conversação cotidiana que tenhamos comporte uma quase infinidade de lugares
nos quais fazemos, consciente ou inconscientemente (na maioria das vezes inconscientemente)
opções linguísticas por esta ou aquela forma. (p. 55)

Em função disto, é preciso que pensemos com bastante cuidado a maneira como
estudar o processo de variação, do contrário podemos nos enredar n uma teia sem fim de
formas variantes, sem chegar a nenhuma explicação satisfatória.

O que vimos acima justifica o fato de termos afirmado na introdução que a área da
sociolinguística trabalha - implícita ou explicitamente - com a ideia de que, em alguma medida
a língua é uma estrutura independente da estrutura social (isto é, não é completamente
definida a partir dela). No exame que fizemos acima dos possíveis lugares de variação, temos
que lançar mão da ideia da língua como uma estrutura organizada em níveis independentes, do
contrário não poderíamos diferenciar os fenômenos. Por exemplo, é somente pensando no
componente fonológico que podemos associar as palavras senhor, passar, por, favor, chegando
à conclusão de que a possibilidade de mais de uma pronúncia, para cada uma delas, se deve a
um único fenômeno: a realização da consoante /R/ em final de sílaba e de palavra. Isto implica
que as palavras isoladamente não estão em variação, mas o fenômeno de variação é algo que
interage com a própria estrutura da língua (veja, por exemplo, que temos que pensar na
estrutura da sílaba, já que em outras posições o /R/ não estaria em variação, isto é, não coloca
a língua sujeita à significação social)

Se consideramos o emprego da forma senhor em oposição à forma você, por exemplo,


estaremos lidando com um fenômeno de natureza muito diferente, que não tem n e n h uma
ligação com o plano fonológico da língua. Trata-se do léxico específico para tratamento de que
a língua dispõe. Do mesmo modo, se pensamos na possibilidade de a expressão o senhor vir
posposta ao verbo auxiliar, estaremos, agora, na sintaxe, e como tal, não se trata mais da forma
de tratamento, mas do sujeito da sentença, mais propriamente, da posição do sujeito na
sentença.

Assim, podemos chegar à conclusão de que o campo da sociolinguística, ao eleger


como seu objeto as relações entre língua e sociedade, deve necessariamente partir do
princípio de que a língua tem sua própria ordem interna. Isto não quer dizer tomar por
princípio que esta ordem está completamente alheia à estrutura social. Pelo contrário, é tarefa
da sociolinguística precisar as formas pelas quais essas duas ordens se relacionam, o que, aliás,
tem sido um desafio constante na pesquisa na área. O reconhecimento dessa relativa
autonomia da estrutura linguística pode ser constatado por meio de uma observação quase
simplória: nem tudo na estrutura linguística está em variação. Apenas para dar um exemploT
veja-se que a consoante /s/ está em variação em posição de final de sílaba em português, mas
em posição de começo de sílaba, não. (ou seja, numa palavra como sapo não temos a
possibilidade de ausência, ou a de palatalização). Constitui ainda um mistério a razão pela qual
determinados lugares da língua se abrem para o processo de variação enquanto outros se
mantêm estáveis ao longo de séculos.

Mas por que razão as formas variantes são o lugar privilegiado para observar as
relações entre língua e sociedade? Não seriam elas apenas flutuações estruturais ou lexicais de
natureza aleatória que integrariam nosso repertório linguístico? A linguística estruturalista
acreditou durante muito tempo nisso, da mesma maneira que a linguística histórica do século
XIX, de mãos dadas com o evolucionismo naturalista do período, também trabalhava com o
pressuposto de que as únicas leis que governariam tal processo seriam leis também de
natureza linguística.

Hoje temos já bastante pesquisa desenvolvida para dizer que o processo de variação é
claramente um dos lugares por meio do qual o funcionamento social interage (p.56) com o
funcionamento linguístico, de tal sorte que, no processo enunciativo, ou seja, no ato de dizer
alguma coisa para alguém em algum lugar específico - no evento histórico de dizer algo - as
formas em variação portam significados sociais os mais diversos.

2.1 Significado social das formas variantes


Voltemos ao nosso almoço no restaurante em questão. Vimos que o enunciado
apresenta diversos lugares nos quais o falante deve fazer uma opção - e de fato o faz, de
maneira consciente ou inconsciente. É bom que isso esteja claro para o leitor ainda não
familiarizado: quando falamos de formas variantes não estamos nos referindo a opções que
eventualmente podem ocorrer. Sempre fazemos opções; quando elas não são muito
adequadas é que costumam chamar a atenção, mas sempre fazemos opções. Ao almoço, pois.

O momento da enunciação é aquele em que para cada lugar de variação da língua o


falante faz uma escolha. Essa escolha se dá em função da relação de interlocução na qual é
posto. Em função dela, o falante revela quem ele é (ou quem ele quer parecer que é), para
alguém que ele imagina ser, em função do lugar onde se encontram. Aqui é importante
lembrar que a enunciação não interessa pelo que tem de particular, o momento único na vida
dos interlocutores, mas pela maneira como o que está antes determina a maneira pela qual se
dá a relação.

Em primeiro lugar, por que nosso falante fala em português? Essa resposta é óbvia se
tomamos falantes monolíngues da cidade de Vitória, por exemplo; é menos óbvia se tomamos
a cidade de Pomerode, em Santa Catarina, que tem um bilinguismo relativamente forte. N u m
caso como esse último, poderíamos nos perguntar quais são as condições que definem a opção
por uma ou outra língua, numa comunidade bilíngue. Os estudos da área da sociologia da
linguagem se ocupam em especial de comunidades plurilíngues e procuram determinar como
se dão essas condições, que são afetadas pelos mais diversos fatores (apenas para dar um
exemplo de tal complexidade: em muitas das cidades bilíngues em Santa Catarina, pais e filhos
têm, mais e mais, usado o português em comunicações no interior de casa).
Da mesma maneira que há um conjunto complexo de condições que numa
comunidade bilíngue vai determinar a opção por uma ou outra língua, no interior de uma dada
língua, há uma série de condições que vão determinar a opção por uma ou outra forma
variante. Essas condições decorrem de como está organizado o que é conhecido na literatura
como a comunidade linguística.

2.1.1 A noção de comunidade linguística


A noção de comunidade linguística é muito elástica e depende muito do recorte que
estamos fazendo, como assinala Alckmin, (2001). Por que tal noção nos interessa aqui? Por que
é nela que se vai localizar, como enfatiza Labov (1972) o sistema variável que coloca à
disposição do falante as formas em variação. Podemos pensar o conjunto de falantes de uma
língua como a comunidade linguística, ou podemos pensar apenas os surfistas da praia da
Joaquina como uma comunidade linguística. Tudo depende dos fenômenos linguísticos que
estamos destacando, mas sobretudo dos valores sociais que pretendemos colocar em
destaque.

Labov (1972) define uma comunidade linguística como um conjunto de falantes que
compartilham os mesmos valores com relação à língua. Isso implica que os (p.57) falantes, de
alguma maneira, reconhecem, mesmo que eventualmente possam não concordar, o que se
costuma chamar de significado social das formas variantes. Cada comunidade linguística atribui
às formas variantes significados que têm a ver com identidades sociais as mais diversas.
Podemos dizer que esses significados operam no eixo da dimensão prestígio X estigma
dependendo do rótulo associado a cada uma das formas variantes. Esses significados sociais,
ainda segundo o mesmo autor, podem ser de conhecimento consciente dos falantes ou podem
operar sem que os falantes tenham qualquer controle consciente sobre eles. Assim, a
dimensão externa, a que aludimos anteriormente, pode ser agora entendida como resultante
da maneira como uma comunidade linguística organiza os significados sociais e os atrela às
formas variantes.

Tais significados sociais podem ser entendidos na dimensão espacial do processo de


variação, quando costumam ser associados a dialetos definidos regionalmente; podem ser
entendidos na dimensão social, quando são associados a índices demarcatórios de grupos os
mais diversos, tais como classe social, nível de escolaridade, tipo de emprego, idade, gênero,
que têm a ver com os papéis sociais que os indivíduos desempenham nas relações sociais; ou
têm ainda a ver com contextos de comunicação, definidos como os lugares em que tais papéis
se confrontam.

2.1.2 A dimensão espacial


Uma comunidade linguística pode ser concebida espacialmente. E espacialmente é a
forma pela qual uma comunidade mais é vista de maneira fragmentária. Assim, se retornamos
ao nosso exemplo e tomamos a realização de /r/ ou /l/ em posição de final de sílaba (no
primeiro caso, palavras como senhor, favor, por; no segundo caso, a palavra sal) podemos
pensar que as possíveis variantes podem se definir regionalmente:
/R/ > realização retroflexa

> realização como fricativa velar

> realização como fricativa glotal

> realização como vibrante alveolar

Teremos a possibilidade de relacionar cada uma dessas variantes a uma determinada


região geográfica do Brasil. Assim, a variante retroflexa se espalha pelo interior do país, em
especial nos estados de São Paulo, Paraná e Minas Gerais (mas há registros dela em outros
pontos do território nacional); a variante vibrante alveolar estaria associada a determinadas
regiões do estado do Rio Grande do Sul; já as variantes fricativas se espalhariam pelo restante
do território brasileiro.

Veja o leitor que há uma outra possibilidade de realização, que é o apagamento da


consoante /R/. Em contraste com as demais, essa variante não está - até onde se sabe -
associada a nenhum território específico, mas ocorre como uma concorrente em todas as
regiões mencionadas acima. Seria, portanto, uma forma variante não rotulada espacialmente,
geograficamente, mas estaria definida a partir de parâmetros sociais. Voltaremos a eles na
seção seguinte.

A dimensão espacial do processo de variação tem sido a mais estudada, sendo anterior
ao próprio advento da sociolinguística nos anos 60. Tem comportado uma tradição especial de
estudo, conhecida como dialetologia ou geografia linguística. (p.58)

Como já se disse, a dimensão geográfica do processo de variação está fortemente


associada ao termo dialeto, o qual costuma dar margem a vários equívocos, razão pela qual
deveríamos nos deter mais proximamente nele.

2.1.2.1 O conceito de dialeto


No senso comum, o conceito de dialeto costuma ser identificado a um desvio da língua,
encontrado em uma determinada região geográfica. É comum, uma vez que o conceito está
associado a um desvio com relação à língua, tomar dialeto, nessa acepção, como algo inferior à
língua.

Na moderna dialetologia, dialeto é uma noção relativa, tanto do ponto de vista


geográfico quanto do ponto de vista linguístico. Do ponto de vista geográfico, falaremos
sempre de um dialeto com relação a um outro. Isto implica que, se tomamos o território do
Brasil e supomos no seu interior um processo de dialetação, deveremos dizer que há pelo
menos dois dialetos (isto é, não diremos que em uma região se encontra a língua e,
eventualmente em outra, o dialeto). Se comparamos Brasil e Portugal, poderíamos falar em
dois dialetos diferentes - o de Portugal e o do Brasil (e não imaginar que no Brasil temos o
dialeto e em Portugal, a língua). Do ponto de vista linguístico, um dialeto seria um sistema
caracterizado por um conjunto de variantes linguísticas específicas - em contraste com outro (s)
dialeto (s) que se caracterizariam por outras variantes. Assim, podemos comparar a região
serrana e o litoral de Santa Catarina com relação ao emprego do pronome de segunda pessoa
para tratamento íntimo. No litoral, encontraremos o predomínio do pronome TU; na cidade de
Lages, na região serrana do estado, encontraremos a forma VOCÊ. Ao mesmo tempo, as duas
regiões apresentam diferentes maneiras de realizar as consoantes oclusivas /t/ /d/ diante de
[i]. Na região serrana, temos a realização africada [tò], como na região sudeste do Brasil,
enquanto no litoral, temos a realização não africada [t], muito comum também em cidades
como Recife. A consequência disso é que temos que trabalhar com a noção de dialeto como
algo relativo, também do ponto de vista linguístico. Se consideramos as duas características
linguísticas acima - a forma de tratamento íntimo e a realização das consoantes oclusivas
alveolares diante de [i] - podemos afirmar que a região serrana e o litoral catarinense
constituem dois dialetos diferentes. Porém, se tomarmos outros traços linguísticos, essas duas
regiões poderiam ser incluídas no mesmo dialeto, em oposição a uma outra região. Por
exemplo, se tomamos a realização das vogais pós-tônicas /e/ e /o/, tanto o litoral de Santa
Catarina quanto a região serrana do estado não se diferenciam uma da outra; em ambas, tais
vogais se elevam, como na maioria das regiões brasileiras. Podemos dizer que essas duas
regiões integram um mesmo dialeto - quanto a esse traço específico - se colocamos em
oposição a região compreendida pela capital do Paraná e arredores. Nesta última, tais vogais
costumam não se elevar, realizando-se como [e] e [o] respectivamente.

Se você me perguntar quantos traços são suficientes para definir um dialeto em


oposição a um outro, direi apenas que quanto maior a quantidade de traços considerados,
mais acentuada será a fronteira linguística em consideração, mas nunca temos uma
diferenciação absoluta entre duas regiões dialetais. Sempre haverá traços linguísticos em
comum (na maior parte das vezes, muito mais traços cm comum do que diferentes). (p.59)

Uma segunda consideração a respeito da noção de dialeto, que de certa maneira já se


encontra entrevista na elaboração anterior é a de que quando recortamos no mapa um certo
conjunto de regiões dialetais, estamos fazendo uma abstração da realidade, como acentua
Langacker (1973)2 com muita propriedade. Trata-se de uma abstração de duas naturezas:
geográfica e linguística. Regiões dialetais não se isolam umas das outras como o fazem as
fronteiras políticas. Quando estabelecemos acima duas regiões dialetais no estado de Santa
Catarina, isso não implica que elas tenham fronteiras nítidas. E do ponto de vista linguístico,
quando afirmamos que uma determinada forma variante caracteriza uma região, isto não quer
dizer que de maneira absoluta aquela região só terá aquela forma. O que se tem é uma
tendência à sua ocorrência que deverá ser forte o suficiente para que o pesquisador chegue à
conclusão de que tal traço caracteriza tal região. Também não implica, como vimos, que quanto
a outros traços não haja variação ou identidade com outras regiões.

Dialeto deve ser entendido, assim, como uma noção relativa. Quando usamos a
expressão "o dialeto de Salvador" ou "o dialeto do Rio de Janeiro" estamos fazendo uma
aproximação superficial do fenômeno de variação, definido a partir da dimensão geográfica.
Tanto Salvador quanto o Rio de Janeiro (quanto qualquer outra cidade, ou região) comporta
um grau de complexidade nas relações sociais e na sua composição que levarão seguramente a
um forte grau de variação interna.

2.1.2.2 A dimensão espacial e a identidade do


sujeito
Quando se discutiu a noção de dialeto mais acima, não se enfatizou um fato óbvio que
agora destaco: o que faz com que duas regiões geográficas diferentes tendam a desenvolver
formas dialetais diferentes? Essa questão tem a ver com um ponto

2 O livro a que me refiro é uma introdução é linguística, mas seu capítulo 3 elabora de maneira muito
precisa os conceitos de dialeto e língua e é uma leitura que recomendo ao leitor.
central do processo de variação n uma língua: a variação é algo inerente aos sistemas
linguísticos. Não há língua que não tenha processos de variação. O que não temos condições
de responder, ainda hoje, é por que determinados processos de variação ocorrem em certas
regiões e não ocorrem em outras, dadas condições históricas e linguísticas semelhantes.

Seguramente, as variantes dialetais não são devidas à região geográfica, tomada como
entidade física, isto é: o clima, o relevo não produzem variação. Sendo você um leitor mais bem
informado, pode estar achando meio ridícula a minha preocupação, mas de vez em quando
ainda prosperam visões - em geral preconceituosas -que procuram relacionar o clima às formas
variantes. Já ouvi mais de uma vez que o ritmo e a entonação de certos dialetos do nordeste do
Brasil se deveriam ao clima quente da região, que tornaria os indivíduos mais calmos - para não
usar preguiçoso, que é o termo preconceituoso normalmente utilizado. 3

A geografia linguística trabalha com a hipótese central de que o processo de


colonização de uma dada região e o grau de isolamento em que ela se encontra, ou encontrou
no passado, são as explicações mais imediatas que se pode alcançar. Assim, regiões em que
houve muito contato entre línguas diferentes serão mais (p.60) propensas a desenvolver
formas variantes provenientes da aquisição de uma língua por falantes de outra 4. Regiões
colonizadas em períodos mais afastados no tempo poderão apresentar formas linguísticas
características de períodos anteriores da língua, e assim por diante. O grau de isolamento de
uma região é importante para o desenvolvimento de formas dialetais, uma vez que quanto
maior o grau de isolamento mais imune a região ficará às eventuais inovações de outras
regiões (o que não impede que desenvolva as mesmas formas variantes que outras regiões
com as quais não tenha contato).

O interessante a destacar é que determinados traços linguísticos, quando de natureza


dialetal geográfica, tendem a marcar profundamente os falantes. De um lado, processos de
identidade local podem acentuar tais traços nos falantes; por outro lado, mesmo que um
falante rejeite conscientemente uma determinada característica de seu dialeto, costuma ser
muito difícil o abandono completo de tal característica, especialmente se se trata de marca
fonológica. Assim, no processo de interação social, nos momentos de enunciação, tais marcas
linguísticas aparecerão, no jogo da interlocução, como características definidoras de cada
interlocutor. No caso da conversação no restaurante, se os falantes provêm de regiões que
adotam diferentes realizações do /R/ pós-vocálico - digamos que um use o retroflexo e o outro
a fricativa velar - se produzirá um estranhamento de identidades. Esse estranhamento de
identidades tem a ver com o significado social que tais variantes dialetais - demarcadas
geograficamente - assumem no âmbito da comunidade linguística brasileira, em contraponto
com a comunidade linguística específica na qual se dá a conversação. O que estou querendo
dizer é que há mais ou menos o seguinte: o Irl retroflexo, popularmente conhecido como /r/
caipira, tem no Brasil um certo significado social estereotipado (é usado nos programas
humorísticos, não é usado por locutores de telejornais, não é usado no teatro, a menos que se
queira caracterizar um personagem especial). Esse significado social é disseminado entre todos
os falantes, mesmo naquelas regiões onde tal forma é amplamente usada. Assim, se o

3 Há hipóteses mais absurdas que são difundidas sem muito pudor. Já assisti a uma "assessora
linguística" de uma grande rede de TV atribuir ao balanço do cavalo a curva melódica e a estrutura
rítmica do dialeto gaúcho de fronteira.
4 Já tivemos oportunidade de mencionar as situações de bilinguismo. Não é o foco de nossa discussão
aqui, mas uma das maneiras pelas quais uma dada situação de bilinguismo se resolve é absorção de uma
língua pela outra. Quando isto se dá, é comum que a língua "absorvida" deixe marcas na língua
vencedora.
restaurante em questão fica em Sorocaba, cidade que apresenta uma forte presença da
variante retroflexa, a maneira como a sua ocorrência é tomada se operará diferentemente de
se o restaurante está no Rio de Janeiro. As duas cidades desenvolvem valores diferentes com
relação a essas formas, que por sua vez dialogam com os sentidos atribuídos na comunidade
linguística brasileira.

Veja o leitor que passamos das formas variantes definidas geograficamente para a
dimensão simbólica, digamos assim, em que a região dialetal de uma forma linguística ganha
um certo estatuto - positivo ou negativo - em função de processos históricos, econômicos e
sociais maiores. Esses valores são percebidos em interações específicas e vão obviamente criar
efeitos de identidade entre os falantes, a depender da comunidade em que se insere a
conversação e dos falantes que interagem. (p.61)

2.1.3 A dimensão social


Nosso restaurante é uma fonte inesgotável de questões. Vimos como um único
enunciado pode ser a amostra de vários pontos de variação no sistema linguístico; vimos como
as formas variantes desses pontos de variação são veículo de informação geográfica e como
tais informações geográficas adquirem, no âmbito de uma dada comunidade, um certo valor
positivo ou negativo, segundo condições históricas as mais diversas. Já deixamos entrever, no
entanto, que nem todo processo de variação se reduz à dimensão espacial, isto é, nem todo
processo de variação está relacionado à distribuição de uma dada população por um certo
território.

- O senhor poderia me passar o sal e os palitos de dente, por favor?

Sem dúvida, a expressão que mais chama atenção para os papéis sociais dos
interlocutores é a forma senhor. De fato, expressões como você, senhor, tu têm um
funcionamento todo especial, já que permitem referir o interlocutor de várias maneiras
diferentes. O interessante em tais pronomes é que, cumprindo todos a mesma função
comunicativa básica - fazer referência à segunda pessoa - têm inscrito no seu sentido o que
aqui estamos chamando de significado social, isto é: no sentido da palavra senhor está inscrita
uma série de condições que definem na referência a quem deve ser empregado; o mesmo se
aplica a tu, ou você. Expressões como essas que destacamos, pelo seu caráter também
gramatical, é que fazem com que levemos a sério a ideia de que a língua não é uma estrutura
alheia ao mundo social do qual deriva e onde é empregada e, para muitos pesquisadores, é, ao
contrário, totalmente determinada pelas condições que estão fora dela.

Não vou detalhar aqui o funcionamento das formas de tratamento, que constitui um
problema de análise muito interessante (remeto o leitor a Faraco, 1995), mas somente anotar
que a forma senhor pressupõe uma série de papéis - ou funções sociais, tanto para o locutor
quanto para o destinatário. Assim, embora seja conhe-

cida como forma de tratamento da segunda pessoa, o pronome pessoal de segunda


pessoa, leva em consideração, no seu funcionamento, a díade comunicativa formada pelo
locutor e destinatário. Assim, temos que pensar tanto a primeira quanto a segunda pessoa
segundo o que as caracteriza socialmente; por exemplo, algo como:
Esta é obviamente uma classificação simplificada, mas já podemos extrair conclusões
muito interessantes. Suponha que o locutor tenha uma idade muito inferior ao destinatário,
por exemplo: o locutor tenha 18 anos e o destinatário 60 anos. Seria isso suficiente, na sua
comunidade, leitor, para que o destinatário fosse referido com a forma senhor? Se a resposta
for positiva, temos uma comunidade em que a idade (p.62) define lugares simbólicos bem
marcados para os indivíduos; mais que isso, uma comunidade em que tais lugares simbólicos
se sobrepõem a todos os outros, na relação de interlocução. Se a resposta for negativa,
podemos nos perguntar quanto os demais índices interferem. O sexo do locutor e do
destinatário, por exemplo: mantida a mesma relação de idade anterior L - 18 anos e D - 60
anos, se o locutor for mulher o destinatário, homem, talvez o tratamento usado seja você (nas
comunidades que usam essa forma), mas se o locutor for um homem e o destinatário, uma
mulher, talvez o tratamento seja senhor. Neste caso, diremos que os papéis dos gêneros,
quanto interagem com os de idade, teriam ainda um peso muito grande nas relações sociais e
estariam impregnados nas formas de tratamento. Porém, é possível que a situação seja
invertida. Consideremos então a classe social. Mantenhamos os índices anteriores:

Locutor - 18 anos mulher

Destinatário — 60 anos, homem

Se o locutor (no caso, locutora) estiver situada nas classes mais altas da sociedade,
enquanto o destinatário na classe trabalhadora, é possível que o tratamento seja senhor, mas
se a situação for oposta, é possível que ocorra a forma você. Isso implicaria que os papéis
conferidos pela classe social seriam bem mais demarcatórios do que idade e sexo.

Suponha agora que a conversação hipotética não tenha nenhuma assimetria, isto é:
locutor e destinatário têm a mesma idade, são do mesmo sexo e pertencem à mesma classe
social. Muito provavelmente o tratamento que um dispensaria ao outro seria o mesmo. Mas
qual, você ou senhor? Fundamentalmente, isto dependeria do contexto de comunicação, que
define, no fundo, qual é o grau de intimidade entre os falantes. Assim, dois homens, da idade
de 40 anos numa sessão no fórum, muito provavelmente se tratariam com senhor. Já dois
homens (até os mesmos), da mesma idade numa academia de ginástica, muito provavelmente
se tratariam por você (mesmo que não tenham nenhuma intimidade). O contexto de
enunciação costuma ser descrito em termos do grau de formalidade, mas observe que esse
grau de formalidade é, no fundo, uma função de todos os outros índices, isto é, o contexto é o
conjunto de determinações sociais que age sobre o processo de comunicação definindo e
tipificando situações de comunicação que passam, elas próprias, a ter uma espécie de
significado próprio.

De posse da informação contextual, poderíamos voltar ao nosso exemplo e brincar com


os índices já utilizados em situações assimétricas de comunicação e provavelmente obteríamos
outros resultados. Deixo ao leitor a brincadeira.
De tudo o que dissemos, chegamos à conclusão de que os significados sociais que
decorrem dos papéis sociais podem determinar o funcionamento das formas linguísticas,
quando se trata de partes da língua cuja função é, por exemplo, a referência aos participantes
da enunciação. Esse tipo de investigação é predominantemente abordado pelas teorias ligadas
à etnografia da fala, área na qual a preocupação central é justamente o conjunto de "regras
sociais" que determinam funcionamentos linguísticos, o qual faria parte do conhecimento
linguístico do falante. No caso, os pronomes pessoais de segunda pessoa são fortemente
marcados pelos papéis sociais relevantes em cada comunidade. Mas o leitor deve ter
percebido como é complicado (p.63) fazer uma descrição sistemática desse funcionamento, em
especial porque as posições sociais não agem sozinhas, individualmente, mas trata-se de um
jogo de forças entre eles. Outra observação importante é que já deve ter ficado claro que o
indivíduo está submetido a essa série de papéis, sendo assim, ele não conta como uma
unidade, mas é a expressão de todos os lugares sociais a que está associado.

Se de um lado as formas de tratamento são, em essência, a expressão de papéis


sociais, o que dizer dos demais lugares da gramática? Eles não são " feitos para isso", ou seja,
são a parte da estrutura da língua, como vimos. No entanto, abrem lugar para a variação. De
que maneira se dá a interação entre os papéis sociais e esses outros lugares estruturais?

Assim, que determinações sociais poderíamos aventar para a utilização do futuro do


pretérito, em oposição ao imperfeito do indicativo? Ou seja, usar poderia tal como está em
lugar de podia, o que revela do falante? Em primeiro lugar que ele tem um certo grau de
escolaridade. Sabe-se que as formas simples do futuro são muito pouco utilizadas na fala
cotidiana e são, hoje em dia, típicas dos textos escritos. Ou seja, são formas que são
aprendidas no contato com o texto escolar. Assim, quanto maior o contato com a escolaridade,
maior a possibilidade de utilização de tais formas. Conforme o caso, a escolaridade pode ser
um sinal de distinção social; assim, muito provavelmente o falante se encontraria acima
situado na classe média ou acima dela, embora se ressalve que a localização do indivíduo
numa classe, no caso do Brasil, tenha sérios problemas, uma vez que, se tomarmos o fator
renda, eventualmente seja possível encontrar indivíduos de alto poder aquisitivo, mas baixa
escolaridade.

O mesmo se poderia dizer da possibilidade de ênclise ao verbo principal passarme, ao


invés de me passar, como está. Muito provavelmente revelaria um falante de alto índice de
escolaridade, já que tal forma, pouco usual nas conversações no Brasil, é aprendida
especialmente em contato com o texto escolar normalmente escrito.

O que estamos entrevendo aqui? Que no interior de uma dada comunidade, é possível
associar as formas variantes a uma série de rótulos de natureza social, que têm a ver com
papéis ou grupos sociais, que tanto são tomados como grupos com interesses específicos e
com uma rede de contatos específica, como são tomados sim-

bolicamente, sem que necessariamente constituam grupos específicos. Não estamos

afirmando que necessariamente as variantes acima estão somente associadas à


escolaridade, mas que uma associação com a escolaridade é inevitável. Por outro lado, não me
parece ser possível fazer qualquer associação entre as formas variantes desta-

cadas e o gênero, isto é, não me parece que a utilização do futuro do pretérito ou a


ênclise ao verbo principal tenham a ver com o fato de o falante ser homem ou mulher, em
comunidades de fala brasileiras (ao menos não conheço nenhuma pesquisa que tenha revelado
isso, mas o tema está aí...).

Podemos continuar nossa brincadeira de levantamento de hipóteses pensando a


relação de concordância no interior do sintagma nominal. No nosso enunciado, temos a
expressão: os palitos de dente. O português apresenta a possibilidade de termos os palito de
dente, na qual, como se vê, o núcleo do sintagma não apresenta a marca de plural. A que
índices sociais poderíamos correlacionar cada forma variante: a presença da marca de plural e
sua ausência? Muito provavelmente ao grau de escolaridade e à classe social. Muito pouco
provável que tenha relação com o sexo do indivíduo. Com a idade? As pesquisas indicam que
não. (p.64)

Mas gostaria de chamar a atenção do leitor para o seguinte: tanto no caso da


colocação pronominal, quanto no caso da marcação de plural, as formas variantes apresentam
uma característica interessante: de um lado, podem estar associadas a rótulos sociais como
escolaridade ou classe social, mas de outro podem depender de condições contextuais.

Esse tipo de processo de variação costuma ser chamado de estilístico, ou variação


determinada pelo registro da conversação. Significa que indivíduos de um mesmo grupo social
aumentarão ou diminuirão a frequência de uso desta ou daquela forma variante em função do
contexto de enunciação. Assim, além de as formas estarem associadas a grupos ou rótulos
sociais com valor simbólico na comunidade, são controladas com algum grau de consciência
pelos falantes - por todos os grupos em função das condições contextuais em que os falantes
se encontram. Os contextos costumam ser estudados numa gradação de formalidade, ou seja,
falamos em contextos mais formais ou menos formais. Não há uma separação absoluta entre o
que é formal e o que informal, mas um eixo em que graduamos a formalidade. Isto pode ser
feito com maior ou menor detalhe, depende da quantidade de informação que podemos
reunir para delimitar um contexto do outro (o que não é uma tarefa muito simples, confira na
metodologia).

Por fim, veja que interessante o leitor: se de um lado a presença ou ausência da marca
de plural no núcleo do sintagma pode estar associada a índices de natureza social e ao
contexto, por outro lado, quando realizada, temos também possibilidade de variação, agora no
plano fonético. O interessante é que, neste último caso, parece que o fenômeno não tem uma
correlação com grupos definidos socialmente ou o contexto, mas com a dimensão espacial. O
mesmo se poderia dizer da realização de /R/ - a consoante pode estar realizada ou não.
Quando realizada, pode apresentar formas variantes que apresentam uma correlação com a
dimensão geográfica, como vimos. Já a realização versus não realização parece estar muito
mais ligada a fatores contextuais, isto é, podemos formular a hipótese de que quanto mais
formal o contexto de enunciação, maior vai ser a probabilidade de empregarmos essa
consoante, cuja presença parece ter relação com o nosso contato, maior ou menor, com a
escrita.

2.1.4 A dimensão temporal


A forma como vínhamos trabalhando o problema da relação entre o sistema linguístico
e a sociedade se pautou, até agora, pela ideia de que uma comunidade linguística marca na
língua os espaços que a constituem, tanto os espaços geográficos, como os espaços sociais,
traduzindo-os na forma de significados sociais que se colam e se misturam em cada uma das
formas linguísticas postas em variação. Mas estávamos trabalhando como se a sociedade e a
língua estivessem congeladas no tempo. Ainda que tomássemos o momento da enunciação
como aquele em que o processo de variação e suas determinações sociais se manifestam, com
a complexidade que lhes é inerente, não tínhamos mencionado um último elemento nesse
jogo complexo, que é o fato de que as sociedades mudam e as línguas também mudam, no
correr do tempo.

A mudança linguística é um dos fenômenos mais fascinantes e misteriosos que há.


Fascinante, porque ao lado da possibilidade ou da ilusão de uma mesma língua, convivemos,
de alguma maneira, com o fato de que essa mesma língua está em (p.65) mutação; misterioso,
já que ainda não se sabe com clareza por que um fenômeno de mudança começa, sabe-se hoje
com o acaba, especialmente depois que acaba.

Este texto não pretende esgotar o assunto, até por que a mudança linguística costuma
ser estudada no ramo dos estudos da linguagem conhecido como linguística histórica. Mas
dada a sua íntima relação com os processos sociolinguísticos, algumas palavras são inevitáveis.
O ramo da sociolinguística que tem se ocupado dessa inter-relação é a Teoria da Variação e da
Mudança, ou sociolinguística quantitativa.

Em primeiro lugar, o que é uma mudança linguística? Para a Teoria da Variação e da


Mudança, a mudança linguística deve ser entendida no interior de uma dada com unidade
linguística. A mudança é um dos resultados possíveis de um processo de variação. Ou seja,
dado que duas ou mais variantes linguísticas estejam em competição pelo mesmo lugar no
sistema linguístico de uma determinada com unidade, dois resultados são possíveis: ou as duas
formas se mantêm em variação ao longo do tempo, ou uma das formas acaba se tornando
majoritária, ampliando seu uso até que a b a r que toda a com unidade e todos os contextos,
resultando que as variantes "perdedoras" apenas tenham usos "residuais". A possibilidade de
mudança coloca um problema interessante a respeito do significado social das formas
variantes: se inicialmente uma forma linguística é rotulada a um ou mais significados sociais,
Quando o processo resulta em mudança, isso implica que todos esses significados foram
anulados e aquela marca : ou não identifica nenhum grupo social - nem a própria com unida de
linguística - ou pode eventualmente passar a funcionar como marca de toda a comunidade, em
oposição a outras comunidades.

O principal problema de investigar a mudança linguística é tentar observar de que


maneira uma variante inovadora se espalha e toma lugares de variantes conservadoras, isto é,
que existiam anteriormente no sistema da comunidade. Essa investigação deverá levar em
consideração toda a sorte de significados sociais que tanto uma quanto a outra têm na
comunidade, no processo de variação. Dito de outra maneira, uma variante inovadora terá
maior probabilidade de expandir sua frequência de uso quanto maiores forem os contextos
sociais de uso e maior o seu prestígio, embora o jogo social seja complexo o suficiente para
pregar peças nessas categorizações. Cada caso é um caso.

Mas pode acontecer de o processo de variação não resultar em mudança - nesse caso
se costuma falar em variação estável - cada variante mantém sua trincheira de usos sociais no
correr do tempo, servindo aos jogos enunciativos que as comunidades se dão. Porém, se de um
lado a variação pode resultar estável, de outro, todo processo de mudança havido implica o
estágio anterior da variação e da concorrência entre formas.
3. Metodologia
Uma vez que tem a pretensão de investigar de que maneira se relacionam estrutura
linguística e estrutura social, a sociolinguística devota atenção especial ao problema
metodológico: com o ter à disposição para análise dados linguísticos de situações
comunicativas relevantes? O advento do gravador portátil facilitou enormemente o registro e o
acesso à fala, no entanto, ele próprio é um empecilho, uma vez que a presença de gravador
gera uma situação comunicativa especial e indesejada.(p.66) Esse efeito ficou conhecido na
literatura como o paradoxo do observador: é preciso observar e registrar situações reais de
comunicação; no entanto a presença do observador - e seu indefectível gravador - altera
profundamente as condições sob as quais a conversação se constrói.

Cada pesquisa vai definir a metodologia final a ser utilizada, mas pode-se dizer que ela
obedecerá a alguns princípios:

1) os dados deverão estar disponíveis, o que implica algum tipo de registro;


2) o grau de interferência do observador deve ser o menor possível;
3) o falante precisa saber que está sendo gravado e que será objeto de análise;
4) o anonimato do falante deve ser preservado.

O objeto específico de pesquisa costuma determinar fortemente a maneira de


conseguir os dados. Por exemplo, as formas de tratamento costumam dar muito trabalho aos
pesquisadores. Como envolvem muitas condicionantes (a idade, o sexo, o contexto de
comunicação, hierarquia social) é praticamente impossível reproduzir numa entrevista gravada
as condições reais de uso. Por conta disso, exigem muita criatividade do pesquisador para
encontrar as formas adequadas de conseguir os dados. Já um trabalho voltado para variantes
fonéticas deve contar com um processo de gravação mais cuidadoso, a fim de preservar
informações úteis no desenrolar da pesquisa (uma situação banal: a presença de ruído de
fundo, num caso como esse, costuma estragar horas de gravação. Uma vez um bolsista fez
gravações muito interessantes com rendeiras na Ilha de Santa Catarina. Ele fez as gravações
enquanto elas trabalham com a renda de bilro. Do ponto de vista etnogrático ficou muito
interessante, o problema eram os estalidos que os bilros fazem ao trançar a renda. Durante
toda a gravação. E como estava interessado na realização das oclusivas /t/ e /d/ diante de [i],
ficava quase impossível distinguir o que eram os pauzinhos se chocando e o que eram as
oclusivas).

O anedotário metodológico é bastante grande e todo sociolingUista seguramente tem


um caso interessante para relatar. E preciso prestar muita atenção ao problema das entrevistas,
para que não percamos de vista o falante como um sujeito no mundo. Ao mesmo tempo, não
podemos esquecer do objeto linguístico que nos interessa mais de perto. É preciso, portanto,
equilibrar os dois interesses: fazer o sujeito no mundo dizer e fazer o sujeito falante falar. 5

A fim de minimizar os efeitos da presença do observador, uma série de técnicas foi


desenvolvida. Elas tentam levar o falante a se distanciar da monitoração da fala típica das
situações de entrevistas, fazendo com que ele mergulhe no conteúdo do que diz. Essas técnicas
podem ser resumidas a um princípio: o entrevistador deve de fato interessar-se pelo que o
falante diz. O entrevistado, por sua vez, deve ser levado a falar de temas que lhe interessem e
que não tenham, naquela comunidade, interdição social. Por exemplo, uma entrevistadora
conversando com um senhor de mais de sessenta anos numa comunidade de pescadores,
5 Souza (2000) faz uma análise muito instigante da entrevista sociolinguística tocando exatamente nesta
questão
muito provavelmente não deverá abordar temas como o casamento, ou relacionamentos
amorosos.

(p.67)

Por fim, as linhas teóricas no interior da sociolinguística definirão metodologias a partir


de seu objeto e interesse. No caso da Teoria da Variação e Mudança, como há o interesse em
determinar padrões frequenciais que definem grupos sociais na comunidade, bem como o
avanço das formas variantes com vistas à mudança linguística, refinadas técnicas de estatística
são empregadas, a fim de medir, com maior grau de detalhe, as possíveis correlações. 6 (p.68)

6 Remeto o leitor a livros como:


A pesquisa sociolinguística, de Fernando Tarallo e, em especial, a Introdução à Sociolinguística
Variacionista, org. M.C. Mollica, que expõe detalhadamente os aspectos teóricos e metodológicos da
Teoria da Variação e Mudança.
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Programa de Apoio à Produção de Material Didático - UFRJ, 1992.

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VANDRESEN, P. (Org.) Variação e Mudança no Português falado da Região Sul. Pelotas,


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(p.72)

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