Vous êtes sur la page 1sur 270

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL


PÓS-GRADUAÇÃO EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

DO HAITI AO BRASIL:
ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE E PERMANÊNCIA EM GRUPOS MIGRANTES

Isis do Mar Marques Martins

Orientador: Prof. Dr. Helion Póvoa Neto

Rio de Janeiro
2018
ISIS DO MAR MARQUES MARTINS

DO HAITI AO BRASIL
Estratégias de mobilidade e permanência em grupos migrantes

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do


Programa de Pós- Graduação em Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutora em
Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Helion Póvoa Neto

Rio de Janeiro
2018
ISIS DO MAR MARQUES MARTINS

DO HAITI AO BRASIL:

Estratégias de mobilidade e permanência em grupos migrantes

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do


Programa de Pós- Graduação em Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutor em
Planejamento Urbano e Regional, sob orientação
do Professor Helion Póvoa Neto.

Aprovado em: 26/04/2018

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof. Dr Helion Póvoa Neto
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

__________________________________________________
Profa. Dra Luciana Corrêa Lago
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

__________________________________________________
Profa. Dra. Gislene Aparecida dos Santos
Departamento de Geografia - UFRJ

________________________________________________
Prof. Dr. Jones Dari Goettert
Departamento de Geografia – UFGD

________________________________________________
Prof. Dr. Handerson Josefh
Departamento de Ciências Sociais – UNIFAP
Dedico a todos os migrantes,
que fazem, perfazem e alimentam suas estratégias com vida.
À Luisa do Mar, com todo amor e carinho,
por ter me guiado ainda pequena nessa jornada.
À Rafael Zilio, ao nosso encontro e às nossas potências juntos.
CELEBRAR E AGRADECER...

Todos os sonhos do mundo. Fernando Pessoa, em um de seus heterônimos, nos deu de


presente essa rima, que ainda que isolada, sem todo o sentido do poema Tabacaria, tem todo o
seu mais belo significado. “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo...”.
O significado deste trabalho foi para mim, por muitos e muitos anos, um sonho. O que
me moveu para muitos lugares e muitas migrações. Era tudo e todo o sonho do meu mundo.
Para quem começou a vida em um lugar marcado por vários estigmas e pela distância do
chamado centro de decisões do país, seguir a carreira acadêmica era quase uma impossibilidade,
um devaneio, uma utopia, um sonho. Um sonho pouco realizável.
E ele está aqui. O sonho realizado.
Obviamente, esse sonho passou por muitas pessoas, e por isso não é só um trabalho meu,
nem um sonho meu. É parte de muita gente que acreditou e ajudou no meu caminhar, na minha
trajetória até aqui. Formam assim pequenos trechos dessa estória sem fim que terminou, mas
ainda está começando em outros rumos, e em outros sonhos.
Em primeiro, agradecer o cuidado, a paciência e os diálogos com meu orientador,
professor Helion Póvoa Neto, que foram cruciais para a existência desse trabalho. As disciplinas
oferecidas por ele no IPPUR e as leituras sugeridas, nas aulas ou nas conversas de orientação,
me ajudaram a ter mais foco, disciplina e vontade. Saravá!
Agradecer ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR, aos
professores e aos secretários, uma família acadêmica, sempre muito atenciosa e muito paciente.
Mesmo com a carga extenuante de leituras e disciplinas, são pessoas que sempre ajudam,
procuram e estimulam.
Agradeço também ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios e as reuniões
maravilhosas que abarcavam as várias facetas da migração no Brasil, assim como na coleta de
material de pesquisa pelas informações da rede virtual. Saravá!
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – pela
bolsa durante o doutorado, que foi fundamental para a dedicação à pesquisa e para a execução
dos trabalhos de campo. Que não percamos isso, em momentos de tantas incertezas... Saravá!
Aos colegas que entraram junto comigo no doutorado, em especial aos amigos Autenir
e Frederica, pelas conversas e trocas, feijoadas, angústias e ideias que tivemos nesses quatro
anos. Muito sucesso e muitos sonhos. Saravá!
Aos companheiros saudosos do Acre, Ane, Michele, Ana Paula, Átila, Ana Jansen,
Cláudio, Vi, dentre outros que estão no coração. Em especial agradeço Luciano... Quantas
saudades das cotidianas conversas que me faziam rir em momentos de tão desespero, quantas
discussões que me fizeram pensar e amadurecer. Guardo com muito carinho tudo! Meu muito
obrigada! Saravá!
Aos familiares que ajudaram materialmente nessa trajetória, principalmente Amanda e
Datan. Agradeço minha avó querida, Creuza, por todo afeto e carinho em suas palavras, por me
vestir de autonomia e independência desde muito cedo para buscar meus sonhos, me estimular
e me fazer dançar, seguir e viver, mesmo que por muitas vezes ter de interromper meus
devaneios angustiantes, meus “pensamentos ruins” para agir, falar e sair dos momentos tristes.
Saravá!
Na transição para uma migrante, agradeço Jorge e André, pelo apoio e compreensão.
Do Rio, agradeço a todos os amigos que fiz na consolidação de minhas estratégias de
permanência, na UERJ, onde concluí minha graduação até os lugares por onde trabalhei e
estudei após me tornar geógrafa.
Agradeço o professor Miguel Ângelo Ribeiro, meu orientador na graduação, que me
incentivou a continuar trabalhando com migração. A todos os colegas do PET-UERJ que
também auxiliaram na minha formação e a todos os colegas que fizeram parte deste caminho.
Aos meus grandes parceiros de trabalho do Territórios da Paz, com quem tive uma
profunda amizade para a vida. Em especial, Mari, Lu, André Lobo, Vivian, Livia e Jader. Sem
vocês, sem nossas conversas lindas e sonhadoras, eu não seria metade do que sou hoje. Não
tenho palavras suficientes para demonstrar minha gratidão e meu carinho, mesmo com a
distância e as novas trajetórias... Saravá!
Também, à Aline e seus filhos, Anderson, Chico, dona Thereza (também meu muito
obrigada pela hospitalidade em São Paulo), Bia, Julia, Livia Vargas, Nat, Thiago Machado,
dentre muitos outros... Saudades muitas... Saravá!
Aos amigos do Instituto Pereira Passos, em especial Vanilda, Marilda, Leozin, Gabriel,
Bolinho, Renatildo e Andreinha... Sejam sempre felizes! Saravá!
Em especial, celebrar junto e agradecer com Gabriel Falca Júnior e Diana, pela
cumplicidade e amizade construídas desde o mestrado. Que venham muitos churrascos e muitas
conversas... E que dominemos o mundo! Saravá!
Dos amigos das plagas migrantes, agradeço Marcos Mondardo, pelo diálogo incessante
e pelas tentativas de enlevar um pouco essa vida cheia de durezas. Por perceber que enquanto
migrantes, não só geográficos, mas considerados estrangeiros nos lugares habitados, as
conquistas são mais suadas, mas também mais felizes. Saravá!
Agradeço também o companheiro Jones Dari Goettert e sua família. Foi onde tudo
começou. Foi onde eu percebi que era possível sonhar. Muito obrigada... Saravá!
À Daniel Vallerius pelo apoio nessa reta final, bem como à solidariedade e
compreensão. Como já falei, é necessário humanidade, em todos os sentidos, para seguirmos
em frente... Saravá!
Agradeço Fernanda e Lucas pelas conversas entre “Erre esse e Bê Agá”. Que vocês
transpassem sempre a beleza de vocês e diminuam as tensões cotidianas nos encontros. Saravá!
Agradeço novamente à Luisa, minha flor morena tão necessária nisso tudo. Não tenho
dimensão para te dizer o quanto você me ensina sobre a vida, e o quanto esse sonho se deve a
sua existência... Eu sei que nunca é pleno, sempre é uma parte e não o todo... Os dias eram
assim... Mas onde estiver, estarei ao seu lado, e sei que serás linda, feliz e plena para plantar
suas sementes além do que eu aprendo contigo...
Não menos importante, agradeço ao Rafa, meu amigo, companheiro, profissional
maravilhoso e dedicado. Nosso encontro se deu no meio de tantos avessos das nossas vidas, e
me vi pela primeira vez plenamente feliz ao teu lado. Obrigada por tudo, e obrigada por me
ouvir, ler e reler essa tese, obrigada por me ensinar a estudar, obrigada por todo carinho, atenção
e amor construídos nesse processo...
Por fim, agradeço a esses migrantes haitianos além mar. Não só os que tive a
oportunidade de conversar, e onde vi profunda solidariedade e afeto nos olhares. Mas agradeço
a todos que aqui estão e aqui passaram. É preciso coragem, sobretudo é preciso paixão para
buscar seus sonhos, ainda que com muito chão a pisar, e muito de semear. Saravá!
Apenas nos pusimos en dos pies
Comenzamos a migrar por la sabana
Siguiendo la manada de bisonte
Más allá del horizonte, a nuevas tierras lejanas
Los niños a la espalda y expectantes
Los ojos en alerta, todo oídos
Olfateando aquel desconcertar
Paisaje nuevo, desconocido

Somos una especie en viaje


No tenemos pertenencias, sino equipaje
Vamos con el polen en el viento
Estamos vivos porque estamos en movimiento
Nunca estamos quietos
Somos trashumantes, somos
Padres hijos nietos y biznietos de inmigrantes
Es más mío lo que sueño, que lo que toco

Yo no soy de aquí, pero tu tampoco


De ningún lado, de todo y, de todos
Lados un poco

Atravesamos desierto, glaciares, continentes


El mundo entero de extremo a extremo
Empecinados, supervivientes
El ojo en el viento y en las corrientes
La mano firme en el remo
Cargamos con nuestras guerras
Nuestras canciones de cuna
Nuestro rumbo hecho de versos
De migraciones, de hambrunas
Así ha sido desde siempre, desde el infinito
Fuimos la gota de agua, viajando en el meteorito
Cruzamos galaxias, vacíos, milenios
Buscamos oxigeno, encontramos sueños

Apenas nos pusimos en dos pies


Y vivimos en la sombra de la hoguera
Escuchamos la voz del desafió
Siempre miramos al río, pensando en la otra rivera

Los mismos con las canciones


Los pájaros, los alfabetos
Si quieres que algo se muera
Déjalo quieto

Jorge Drexler - Movimiento


RESUMO

O percurso de haitianos para o Brasil, intensificado a partir de 2010, apontou a necessidade de


um debate importante e provocou uma série de mudanças na postura e na concepção de políticas
públicas para imigrantes no país. Este trabalho discorre sobre esse processo, procurando
entender no tempo e no espaço a emigração de haitianos em paralelo às políticas de imigração
no Brasil, para então construir as amarrações possíveis que a diáspora haitiana promoveu no
século XXI a partir das ideias de agenciamentos, geometrias de poder e redes sociais de
imigração, pois assim se vislumbra os vários caminhos discursivos do Estado, dos imigrantes e
da sociedade em geral, quando se cruzam ou quando se distanciam. Tal análise foi possível a
partir das múltiplas escalas das estratégias de mobilidade e permanência, que no caso dos
haitianos tornam-se mais complexas pela forma e pela função de seu processo migratório no
decorrer de suas diásporas. O imigrante haitiano, dessa maneira, não é e nem deve ser visto
como um problema para o lugar que chega nem para as políticas que são implementadas para
garantir legitimamente sua cidadania. Ele é parte integrante da construção dessa própria
sociedade.

Palavras-chave: Haitianos no Brasil. Estratégias de mobilidade e permanência. Migração.


Agenciamentos. Geometrias de Poder.
ABSTRACT

The route of Haitians to Brazil intensified as of 2010 appointed the necessity of an important
debate and caused some changes in posture and conception of public policies for immigrants in
the country. This thesis discusses this process aiming to understand in time and space the
emigration of Haitians in parallel with immigration policies in Brazil, to make the possible
connections that the Haitian Diaspora promoted on the 21st century from the ideas of agencies,
geometries of power and social networks of immigration. This is how it is understood the
various discourses of the State, of the immigrants and of the society in general when crossing
or distancing. Such analysis was possible due to the multiple scales of the strategies of mobility
and permanency, that in the case of Haitians are more complex by the form and function of
them migratory process during their Diaspora. On this way, the Haitian immigrant is not and
should not be seen as a problem to the place he arrives not even to the policies implemented to
guarantee the legitimacy of his citizenship. He is a part of the construction of society itself.

Key words: Haitians in Brazil. Strategies of mobility and permanency. Migration. Agencies.
Geometries of power.
RÉSUMÉ

Le parcours des Haïtiens vers le Brésil, intensifié pour 2010, a souligné lae besoin d'un
discussión important et a provoqué une série de changements dans la posture et la conception
des politiques publiques pour les immigrés dans le pays. Cette travaill traite dans processus,
regarder la compreension in le temps et le space des migration pour les haitien et pour le Brésil,
pour la construction les mouillages possibles qui les diaspora haitian promi dans siécle XXI
pour les idées des agenciament, géométrie du povoir et réseaux sociaux dans migration, car on
peut entrevoir ainsi les différentes voies discursives de l'Etat, des immigrés et de la société en
général, quand ils se croisent ou quand ils se distancient. Une telle analyse était possible à partir
des échelles multiples des stratégies de mobilité et de permanence qui, dans le cas des Haïtiens,
deviennent plus complexes par la forme et la function dans leur processus migratoire aproche
pour les diasporas. L'immigré haïtien, de cette façon n'est pas être ne devrait comme un
problème pour le lieu qui arrive ni pour les politiques qui sont mises en œuvre pour garantir
légitimement leur citoyenneté. C'est une partie intégrante de la construction de notre société.

Mót-clés: Haitiens ou Brésil. Estratégie dans mobilité et permanence. Migration. Agenciement.


Géométrie du povoir.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

MAPA 1 - principais comunas/cidades afetadas pelo terremoto no Haiti


MAPA 2 - Principais cidades de origem de imigrantes haitianos no Brasil
MAPA 3 - Diáspora Haitiana
MAPA 4 – Capilaridade haitiana
MAPA 5– Pretensão de destino de Haitianos em Rio Branco/AC: 2010-2015
MAPA 6 – Regionalização da concentração de haitianos por destino e ocupação no Estado do
Rio Grande do Sul.
MAPA 7 – Novas rotas de haitianos dos últimos 3 anos (2015-2018)
MAPA 8 – Níveis de relação entre agentes sociais selecionados.
MAPA 9 – Níveis de interação entre agentes sociais selecionados
MAPA 10 – Relação em que se constroi o encontro político entre agentes.
QUADRO 1 – Geometrias de poder a partir do Estado (Acre e Governo Federal)
QUADRO 2 – Geometrias de poder a partir dos imigrantes haitianos
QUADRO 3 – Haitianos acolhidos na Rodoviária Barra Funda – São Paulo em julho de 2015
QUADRO 4 - Missão Paz – Estrutura de acolhimento a haitianos (Espaço e atividades)
QUADRO 5 – Mapa da periodização da imigração haitiana no Brasil
QUADRO 6 - Haitianos quanto a chegada
QUADRO 7 - Haitianos quanto à mobilidade
QUADRO 8- Haitianos quanto à permanência
QUADRO 9 - Haitianos quanto às redes.
QUADRO 10 – Geometrias de poder a partir de agenciamentos para com haitianos no Brasil
QUADRO 11 - Agenciamentos das geometrias de poder entre mobilidade e permanência de
haitianos no Brasil
FOTO 1 – Haitianos na Chácara Aliança
FOTO 2 – Haitianos na Chácara Aliança
FOTO 3 – Haitianos na Chácara Aliança
FOTO 4: Placa homenageando imigrantes no séc. XIX no estado do Rio Grande do Sul
FOTO 5 – Bairro Navegantes, em Encantado - RS
FOTO 6 – Igreja Scalabriniana São Pedro, em Encantado - RS
FOTO 7 – Baz no centro de Caxias do Sul - RS
FIGURA 1 – Imigrantes no Estado do Rio Grande do Sul

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – Total de imigrantes que entraram pelo Acre


TABELA 2 - Haitianos na indústria da alimentação do RS – 2014
TABELA 3 – Haitianos na América Latina entre 2011-2016
LISTA DE ABREVIAÇÕES

Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR


Agência Brasileira de Inteligência - ABIN
Comunidade e Mercado Comum do Caribe - CARICOM
Centro de Estudos Migratórios - CEM
Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes - CRAI
Conselho de Imigração e Colonização – CIC
Comitê Intergovernamental para Migrações Européias - CIME
Conselho Nacional de Imigração – CNIg
Conselho Nacional de Refugiados – CONARE
Força Interina Multinacional de Pacificação - FIMP
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
Institut Haïtien de Statistique et D’Informatique - IHSI
Mercado Comum do Sul - Mercosul
Ministério da Justiça e Negócios Interiores - MJNI
Ministério do Trabalho e da Justiça - MTJ
Ministério do Trabalho e Previdência Social - MTPS
Ministério Público do Trabalho - MPT
Ministérios das Relações Exteriores - MRE
Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haiti - MINUSTAH
Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios - NIEM
Office Français de Protection dês Refugiés et Apatrides - OFPRA
Organização das Nações Unidas - ONU
Organização Internacional da Migração – OIM
Organização Internacional para Refugiados - OIR
Organizações Não Governamentais - ONGs
Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB
Projeto de Lei - PL
Polícia Federal - PF
Interim Cooperation Framework – ICF
Resolução Normativa - RN
Serviço Nacional da Indústria - SENAI
Society for Intercultural Educations Training and Research Brasil - SIETAR Brasil
Universo On Line - UOL
SUMÁRIO

Mapa do Haiti ...................................................................................................................................... 18


INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 19
1 CAPÍTULO I CAMINHOS METODOLÓGICOS ...................................................................... 25
1.1 Objetivos ........................................................................................................................................ 33
1.2 Questões e indicações metodológicas .......................................................................................... 33
2 CAPÍTULO II IMIGRANTES ESTRANGEIROS NO BRASIL, AS POLÍTICAS E AS
RELAÇÕES: CARTOGRAFIAS DESDE O HAITI ....................................................................... 49
2.1 Brasil e Haiti – Século XIX: das transformações políticas, sociais e econômicas .................... 49
2.1.1 O Brasil no século XIX ................................................................................................................... 49
2.1.2 O Haiti no século XIX ................................................................................................................... 54
2.2 O Século XX para o Brasil e para o Haiti: principais consequências da imigração e da
emigração ............................................................................................................................................. 59
2.2.1 O Brasil no século XX .................................................................................................................... 60
2.2.2 O Haiti no século XX ..................................................................................................................... 66
2.3 O Brasil e o Haiti no Século XXI ................................................................................................. 75
2.3.1 O Brasil e a MINUSTAH: contextos e perspectivas ...................................................................... 77
2.3.2 As primeiras estratégias haitianas versus as heranças sociais no Brasil: alguns apontamentos . 85
3 CAPÍTULO III CONFLITOS E CONTRADIÇÕES: GEOMETRIAS DE PODER E
HAITIANOS NO BRASIL ................................................................................................................. 88
3.1 Chegada ao Brasil: as relações e os processos de mobilidade ................................................... 89
3.1.1 As estratégias de mobilidade ....................................................................................................... 91
3.1.2 A viagem por el Sur ....................................................................................................................... 93
3.1.3. A presença dos atravessadores (raketés ou coiotes) na viagem até o Brasil ............................. 96
3.1.4 A fronteira acreana como ponto de passagem .......................................................................... 100
3.2 As ações da política brasileira .................................................................................................... 108
3.2.1 O papel do governo do Acre ...................................................................................................... 110
3.2.2 O papel do CONARE e do CNIg ................................................................................................... 115
3.3 A capilaridade dos imigrantes haitianos ................................................................................... 120
3.3.1 O trânsito e a diáspora, o regular e o irregular .......................................................................... 122
3.3.2 Corrupção, violência, dependência: cicatrizes profundas ......................................................... 124
4 CAPÍTULO IV AS TÁTICAS DE CONSOLIDAÇÃO DOS HAITIANOS NO BRASIL: SÃO
PAULO COMO REFERÊNCIA...................................................................................................... 128
4.1 A saída de haitianos do Acre para São Paulo ........................................................................... 129
4.1.1 As alternativas da vinda: trajetórias desde a chegada ao Acre.................................................. 130
4.1.2 Estratégias de mobilidade em São Paulo ................................................................................... 135
4.1.3 O papel do Estado ...................................................................................................................... 137
4.1.4 O papel das Organizações Não Governamentais ....................................................................... 140
4.1.5 Trabalho, Estado e entidades: o problema migrante-problema complexifica-se ...................... 143
4.2 Estratégias de mobilidade cruzam estratégias de permanência.............................................. 146
4.2.1 Estratégias de permanência ....................................................................................................... 147
4.2.2 Diálogos entre mobilidade e permanência 1 ............................................................................. 151
4.3 Perspectivas da política brasileira via novos processos de mobilidade .................................. 154
4.3.1 Do Projeto de Lei 2.516/2015 até a Lei N° 13.445 ..................................................................... 155
4.3.2 A permanência como resistência: diálogos entre mobilidade e permanência 2 ....................... 160
4.3.3 Da permanência à mobilidade: entre redes e territórios .......................................................... 165
5 CAPÍTULO V AS ESTRATÉGIAS DE PERMANÊNCIA E AS ESTRATÉGIAS DE
MOBILIDADE: CAMINHOS CRUZADOS .................................................................................. 170
5.1 Trabalho e moradia: os haitianos no sul do Brasil e a permanência consolidada ................. 172
5.1.1 Diálogos entre mobilidade e permanência 3 ............................................................................. 173
5.1.2 Panorama do Sul do Sul e as estratégias migrantes ................................................................... 178
5.2 As estratégias de permanência via frentes de resistência ........................................................ 182
5.2.1 Condições de vida dos haitianos no Rio Grande do Sul ............................................................. 184
5.2.2 O caráter associativista da migração haitiana............................................................................ 188
5.3 As estratégias de mobilidade via frentes de resistência ........................................................... 192
5.3.1 Novas mobilidades haitianas...................................................................................................... 192
CONSIDERAÇÕES FINAIS Mobilidade e permanência como estratégias - Desafios e
perspectivas........................................................................................................................................ 197
REFERÊNCIA .................................................................................................................................. 205
ANEXO 1 – Imigrantes no Estado do Rio Grande do Sul ............................................................. 217
ANEXO 2 – Ficha de compromisso ético às entrevistas com haitianos no Brasil ....................... 218
ANEXO 3 – Declaração de solicitação de informações no Abrigo Chácara Aliança, em Rio Branco
- Acre .................................................................................................................................................. 219
ANEXO 4 – Declaração de solicitação de informações no Centro de Referência de Apoio ao
Imigrante, em São Paulo, São Paulo ................................................................................................ 220
ANEXO 5 – Ficha – Roteiro de Entrevista para imigrantes haitianos em São Paulo ................. 221
ANEXO 6 – Roteiro de entrevista para instituições/Assistentes Sociais/Representantes ........... 223
ANEXO 7 – Ficha de identificação preenchida por imigrantes no Abrigo Chácara Aliança, em Rio
Branco - Acre ..................................................................................................................................... 224
ANEXO 8 - Entrevista Pascal Chateleur, Presidente da Associação de Imigrantes Haitianos em
Caxias do Sul ..................................................................................................................................... 225
ANEXO 9 - Entrevista com Maria, Responsável pelo acolhimento de haitianos na Igreja São Pedro
– cidade de Encantado, Rio Grande do Sul..................................................................................... 229
ANEXO 10 - Relatório Haitianos Brasiléia – Acre ........................................................................ 231
ANEXO 11 – Relatórios produzidos pela Missão Paz.................................................................... 240
ANEXO 12 – Relatório produzido pelo Centro de Acolhimento e Apoio ao Imigrantes, em São
Paulo, São Paulo ................................................................................................................................ 266
Mapa do Haiti

Fonte: IHSI Haiti. (Elaboração nossa).


19

INTRODUÇÃO

Muita e necessária atenção tem sido dada à condição de imigrantes de outras


nacionalidades vindos principalmente no século XXI para o Brasil, sobretudo de imigrantes
haitianos, seja por parte de pesquisadores, entidades sociais ou governamentais, a mídia, dentre
outros. O que a imigração haitiana tem a nos dizer, a nos ensinar? Esta é a pergunta apropriada
ao intento deste trabalho.
É possível apreender cinco perspectivas mais comuns encontradas em pesquisas e
opiniões sobre migração haitiana hoje no Brasil. A primeira perspectiva trata da travessia e das
dificuldades da vinda. Apontam os problemas enfrentados a partir de diversos atores, dando
ênfase aos chamados coiotes, que aqui nesta tese se propõe chamar de agiotas da mobilidade.
Em junção à questão do tráfico e à promulgação de uma chamada “crise imigratória”, ocorrida
devido à chegada de cerca de 50.000 haitianos em 3 anos de intensificação da entrada no país,
essas pesquisas avançam nas propostas de mitigação da irregularidade de rotas que deflagram
muita violência e muita displicência em relação a imigrantes.
A segunda perspectiva trata dos números da migração e dos níveis de assistência
revelados no processo de entrada e permanência de haitianos no país. É comum ver em
compêndios de entidades de acolhimentos relatórios que ajudam com detalhes a compreensão
da diáspora haitiana no Brasil. É também onde se localizam as informações quantitativas da
comunidade acadêmica e de entidades governamentais, bem como relatórios integrados, de
pesquisadores e governo, a fim de apoiar políticas efetivas.
A terceira perspectiva aponta as ações dos governos e o reflexo durante e posterior à
intensificação da entrada de imigrantes no Brasil. As mudanças ocorridas no processo da
chegada e na regularização de grupos migrantes foram árduas e cheias de asperezas, o que
revelou a necessidade de apontamentos críticos, principalmente às definições de imigrante e
refugiado, e as imbricações políticas que desfecham tais definições no caso dos haitianos.
Contribuições principalmente na seara do direito e das relações internacionais elucidam o
contexto político mundial da entrada de haitianos aqui, além dos interesses políticos no início
do século XXI pelo governo brasileiro em construir de forma mais ampla a discussão da
migração e da globalização.
20

A quarta perspectiva ressalta as práticas dos haitianos enquanto diáspora e suas redes
peculiares de migração, reveladas em uma história de muita luta e muita perda. Em especial,
destacam-se as contribuições de Handerson (2015), como se verá no decorrer deste trabalho,
tanto do cunho subjetivo - já que é um imigrante haitiano no Brasil - quanto o amarrado teórico-
metodológico de sua pesquisa, que analisa o intrínseco da diáspora haitiana ser um sujeito, e
não uma atitude. No Haiti, é somente o ser sujeito diáspora, e não a o haitiano diaspórico.
Outras contribuições em relação à linguagem, aos corpos e à produção cultural de imigrantes
haitianos também são incluídos nessa perspectiva, cujas redes de atuação são o tema central.
É a quinta perspectiva a mais encontrada em pesquisas que analisam a migração haitiana
no Brasil: a que trata da força de trabalho. O imigrante haitiano perfaz-se em diáspora e sempre
veremos em sua resposta a necessidade de encontrar um trabalho para enviar dinheiro para a
família no Haiti, para construir seu projeto de vida, ou mesmo para pagar as dívidas da viagem.
A necessidade de permanência aliadas à necessidade de recursos financeiros muitas vezes o
leva a condições severas de exploração e subordinação, onde questões de toda ordem
obviamente são levantadas. Pesquisas importantes apontam, na escala global e local, a denúncia
da exploração e a necessidade de avançar no debate crítico, quando o sofrimento e a displicência
das condições de imigrantes não param ao se efetivar sua permanência. Elas perduram nas
condições da qualidade de vida destes imigrantes, e estes trabalhos acrescentam muito nessa
reflexão.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende avançar na discussão dessas cinco
perspectivas, e propõe a análise da interação entre imigrantes e suas transformações espaciais
que afetam socialmente e se relacionam com outros agentes sociais. Essa reflexão acompanha
a necessidade de analisar o processo da entrada de haitianos no Brasil e de pensar em todas
essas contribuições que estão interligadas.
Essa interação não é simples nem uniforme. Ela é fruto de um amarrado histórico e
espacial, tanto por parte do Brasil quanto por parte do Haiti. É nesse amarrado histórico-espacial
que é possível observar a construção das estratégias múltiplas dos imigrantes, do Estado
haitiano, do Estado brasileiro, as heranças sociais construídas nas políticas de imigração no
Brasil, até a chegada de imigrantes haitianos de forma mais contundente, a partir de 2010.
Essas estratégias - estudadas e analisadas a partir dessas interações - aqui são
denominadas de estratégias de mobilidade e estratégias de permanência. Essas estratégias
vindas do migrante trazem todo o potencial de transformação política, trazem o embate e o
conflito à norma conservadora, ao preconceito e ao que formatamos como certo ou como
21

verdade. Qual é a verdade de cada migrante que chega? Essas estratégias trazem um pouco
dessa emoção de cada um, aquela lágrima que não cai, mas que fica ali na garganta e segue com
a vida, com a sua diáspora.
As estratégias – de mobilidade e permanência – são múltiplas e mutantes. A
multiplicidade delas requer uma reflexão que vai além da relação com o Estado ou da relação
trabalho. Para compreendê-las na sua complexidade, a reflexão geográfica é fundamental, pois
o espaço requer que essas estratégias coexistam com as demais – do Estado, da sociedade, de
outros agentes que se cruzem com os imigrantes. A coexistência das ações de cada agente revela
as dificuldades de apreender todo um jogo de relações de poder.
Nesse sentido, esta tese analisa tais estratégias na ótica dos agenciamentos, das
geometrias de poder e das redes sociais de migração. Essas perspectivas terminológicas, de
diferentes autores, servem como construção teórico-metodológica porque revelam os espaços e
os tempos dos desejos dos imigrantes, mas que em muitos casos convivem com a frustração e
a crítica de suas próprias ações.
Para tal, a organização deste trabalho foi pensada seguindo a cronologia da diáspora
haitiana no Brasil. O primeiro capítulo é o caminho metodológico da tese, as perguntas e
respostas mais afinadas e com mais detalhes.
O segundo capítulo aponta os processos histórico-espaciais que levaram às políticas de
imigração no Brasil se tornarem o que são hoje e as respostas da diáspora haitiana desde a
revolução que resultou em sua independência, em 1804. Para os dois países, o século XIX foi
a melhor escolha para esse caminho, que revela os agenciamentos e as estratégias que viriam
culminar na imigração haitiana no Brasil.
O terceiro capítulo trata da chegada de imigrantes pela fronteira do estado do Acre, na
região amazônica brasileira. Nesse capítulo, conforme também a chegada e os acontecimentos
revelados nesse processo, ficam claros as estratégias de mobilidade, amarradas de maneira mais
clara para o leitor.
As estratégias de permanência são reveladas no quarto capítulo, quando os haitianos
consolidam, na saída do estado do Acre para outros estados do território brasileiro. Elas serão
articuladas de maneira muito conflituosa pelos diversos agentes que se encontram durante a
trajetória de grupos migrantes.
No quinto capítulo há a nova contextualização das estratégias de mobilidade e
permanência, quando haitianos promovem novos caminhos de sua diáspora, seja no reencontro
com suas famílias no Brasil, ou suas tentativas, nas condições de trabalho e vida, ou nas novas
22

mobilidades consolidadas após a crise política neste país, que culminou em uma crise
econômica e afetou a maioria dos imigrantes que aqui vivem.
Migrar é migrar a ideia do migrante também. Mobilizar é pensar não necessariamente
na ideia de migrar ou de onde migrou, mas de um contexto em como esse migrante se constrói
no espaço que chega. Permanecer, da mesma maneira, não significa desconstruir todo o
passado. O passado está no espraiamento das relações sociais, sejam as de vizinhança, as de
poder, ou as tentativas de apropriação de espaços que também são múltiplos. O tempo e o
espaço se fazem e refazem conforme as trajetórias surgem e apontam novos caminhos.

***

Nesses quatro anos de doutorado, entre angústias e caminhos de muita meditação e


leitura, comuns ao processo de pesquisa, creio que a questão que sempre viria quando
finalizasse o trabalho era: por que estudar a diáspora haitiana no Brasil? Para tanto, creio que
percorrer minha trajetória faz-se necessário.
Sou filha de uma carioca e um paranaense que se conheceram depois de idas e vindas e
vidas migrantes em uma colônia de agricultura familiar alternativa na franja rural da então vila
de Porto Acre, transformada em município somente em 1992, no estado do Acre. Na década de
1980, a intensificação da agropecuária e da concentração fundiária consolida-se na região,
provocando a expulsão da população ribeirinha e o esfacelamento da economia autossustentável
pelos pequenos agricultores. Uma década antes, conflitos de diversas frentes sacudiram o estado
a fim de melhores condições de renda, terra e trabalho. Um movimento social fortalecido por
imagens e sujeitos numa frente de oposição ao cenário político nacional.
Nasci em um bairro chamado Bosque, na capital Rio Branco. Em 1990, depois de vários
lugares, dos primeiros passos e das primeiras palavras, nos mudamos para um conjunto
habitacional, onde fiquei até 2004. Meu pai, lanterneiro e pedreiro, possuía somente o Ensino
Fundamental completo (antigo ginásio). Com o nascimento do terceiro filho, resolveu terminar
a escola básica a partir de um método supletivo e ingressou, em 1993, no curso de Ciências
Sociais, com minha mãe seguindo para o mesmo caminho no ano seguinte.
Assim, da mesma maneira que vivíamos a precarização de um estado periferizado e
distante de todos os cheiros, as vontades e as possibilidades que a mídia alardeava no chamado
centro do país, tínhamos e ouvíamos discussões profundas sobre a sociedade e o mundo, sobre
Gramsci e o Estado, sobre o Capital e a mais-valia, sobre Casa Grande e Senzala. E mesmo sem
23

tocar, sem sentir materialmente a história e a geografia das coisas, a poesia das canções que
eram entoadas nas histórias que eram contadas e discutidas tinha um peso tanto quanto.
Acredito que o entoar e o cantarolar desses primeiros sons de sociedade e de vivências, que não
foram minhas, foi minha primeira migração.
A segunda migração, já na adolescência, foi a literatura e a paixão pelo sentir aquilo que
não se podia tocar, mas podia vivenciar mesmo que pela emoção das palavras. Da mesma
maneira, a transformação de Rio Branco, o Partido dos Trabalhadores e o discurso de
Desenvolvimento Sustentável e Economia Verde, o encantamento de palavras que soavam
tamanha esperança para uma população sem emprego, sem renda, em crescimento, em demanda
de assistência social básica e de direito, como saúde, educação, moradia, renda etc. Um
momento de transformação política que mais tarde seria alvo de críticas pela sua própria
conspiração de omissão e incoerência com a vontade da coisa pública.
Esse caminho de idas e vindas me levou ao Rio de Janeiro na metade da graduação,
quando já pesquisava e apreendia processos migratórios na fronteira do Acre, e quando também
senti na pele a condição de migrante. São cheiros e toques se cruzando, e sempre a nostalgia
advinda das experiências que surgiam.
Finalizo a graduação e entro no mestrado em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, concomitante ao primeiro emprego como assistente de gestão pública para
programas sociais em favelas na cidade do Rio de Janeiro. Essa experiência me marcou
profundamente porque estava ali, vendo os cotidianos migrantes, sendo nocauteada por práticas
que eu representava, mas tentando com o pouco de experiência prática alguma mudança, algum
sinal.
Revelaram-me as discrepâncias das práticas e dos discursos de agentes sociais diversos,
e do Estado e seu papel de absorver e conhecer muito das vivências e das experiências
corriqueiras, mas sequer considerá-las como pauta e processo político. Nessa preocupação em
compreender as relações entre política pública, estratégia de resistência de migrantes apartados
de seu processo inerente de construção do espaço, encaro com profunda relevância e
necessidade entender que as estratégias de permanência e mobilidade nos espaços que estes
aportam como seus novos lugares são também processos legítimos de construção política e de
relação com a coisa pública.
Nesse sentido também, a continuidade de pensar com mais cuidado para outras
produções de cidade pelo migrante em suas estratégias de resistência continua sendo
profundamente caro, porque visibiliza um processo que não tem sido uma marca do presente,
24

muito pelo contrário, é e continua sendo um espaço de legitimidade e de marcas muito


profundas na sociedade brasileira.
A formação em Geografia aponta também a necessidade de interlocução com estas
problemáticas quando categorias de análise tais como território, espaço, cidade e gestão se
articulam para compreender as relações com o espaço, eminentemente político, já que é
construído de maneira política, em relações políticas coordenadas às relações sociais.
25

1 CAPÍTULO I
CAMINHOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa contempla três bases de interesse: primeiro, o papel das escolhas do
imigrante haitiano, entendendo que estas atravessam as relações de poder do Haiti até as
fronteiras brasileiras; segundo, o papel do Estado brasileiro diante dessa escolha, suas posições
e ações de interesse público na organização e gestão, social e/ou administrativa para com as
cidades de fronteira, sua população e seus novos habitantes, itinerantes ou não; e terceiro, as
práticas sociais que os imigrantes haitianos produzem a partir de suas próprias escolhas e a
gestão pública ausente e não implicada nessa relação diretamente, porém implicada nos
atravessamentos e agenciamentos relativos ao jogo do Estado quanto às relações de migração1.
Há relações plurais peculiares a cada continente, país etc. O processo de urbanização,
por exemplo, foi paulatino conforme a sofisticação dos sistemas técnicos de sociedades
eminentemente autóctones em parte da Europa e Ásia, isto é, a sociedade foi se transformando
conforme as relações foram se complexificando. Diferentemente ocorreu na América do Sul,
em que tal processo vincula-se a uma série de questões que envolviam imigração maciça e
espacialidades de fora para dentro, isto é, originárias de diversas heranças continentais e
principalmente, de relações de poder entre outras nações, colonizadoras, a fim de propósitos e
interesses alheios à realidade da sociedade.
Nessa perspectiva, os processos, sejam eles de urbanização ou de crescimento de
cidades, envolvem a produção da sociedade. Entendemos que produzir espaço é produzir-se.
Elevar a ideia de produção ao sentido norteador do conceito é também reflexão e
aprimoramento, já que a construção desta, no decorrer da história ocidental, se alicerça ora nas
relações de poder, ora no embate necessário para legitimar mudanças que vem para melhoria
da qualidade de vida. Há a necessidade, portanto, de priorizar os construtores e produtores do
espaço de fato, no âmbito do poder legislativo, onde representantes são eleitos
democraticamente.
Mas e o migrante? E o papel do migrante na construção da vida, das sociedades, das
relações? E mais: Por que um papel para o migrante se estar em um determinado espaço, em

1
Tal como aponta Sayad (2000): “Pensar a imigração (ou emigração), é pensar o Estado. É o Estado que se pensa
a si mesmo, termina por se enunciar aquilo que tem de mais essencial e, ao mesmo tempo, enunciar de maneira
mais evidente as regras de seu funcionamento e revelar as bases de suas instituições.” (SAYAD, p. 2000, p. 20).
26

uma determinada cidade, já o insere nos processos da cidade? Dessa maneira, como o migrante
é visto no momento em que, seja no emigrar ou no imigrar, ele torna-se o outro do lugar?
Albert Camus, no romance “O estrangeiro”, aponta um pouco essa angústia do outro,
que vai muito além do protagonista ser um migrante. Ele é um migrante do mundo, com uma
visão diferente do seu lugar, e por isso, tem de ser condenado, tem de ser visto como o outro e
servir de exemplo como tal.
É também na relação trabalho que o migrante tem seu maior destaque. Tanto no discurso
do seu dia-a-dia, no discurso dos governantes, nos locais propriamente de trabalho, na
justificativa entre seus amigos não migrantes em colocar sua permanência como fato.
Se o trabalho – e a força de trabalho – são essenciais para compreendermos o processo
migratório, os migrantes aliam a importância do fator trabalho às novas atividades cotidianas
inseridas no espaço a que se chega, mesmo de forma restrita. O trabalho e sua força não esgotam
a compreensão do migrante inserido no movimento do espaço e de si mesmo, somente ressaltam
(e por muitas vezes, de forma superficial) o papel político e social do ato de migrar e sua
relevância em entender o processo de acumulação capitalista, mas não apontam o paradoxo da
migração e a compreensão do outro e de si na partida, na chegada e no retorno, assim como nos
espaços aí envolvidos pelas relações.
Nossa ideia é de que a análise da dinâmica social da migração somente pela relação
trabalho e pela força de trabalho ainda não ressalta todos os elementos dispostos na complexa
rede social que envolvem os processos migratórios. Muito se dá, acreditamos, por um discurso
que não constroi o espaço e o tempo como preceitos de análise dos processos sociais, mas
hierarquiza-os, sem admitir uma análise conjunta. O espaço dos acontecimentos ainda é
secundário nessa compreensão, e é no espaço que as resistências e as formações do cotidiano
se apontam, se destacam.
Esse espaço dos acontecimentos se dá por duas inseparáveis escalas: a escala da
multiplicidade do espaço, que decorre na diferenciação do sentido de espaço para cada sujeito;
e na escala do desejo, da ação de cada sujeito neste espaço a partir de seus desejos e de suas
produções desejantes.
Nessa perspectiva, existe um desencontro de expectativas entre o discurso das
autoridades e o discurso/desejo/objetivo dos haitianos quanto à migração: da parte do Estado
brasileiro, destaca-se sempre a necessidade de força de trabalho, de integração ao país através
da inserção no mercado de trabalho. Da parte do migrante haitiano, a dimensão coletiva da
migração, o desejo de saída do Haiti pelas fragilidades sociais, políticas, ambientais do país,
27

em que o trabalho é apenas a mediação para se obter isso, mas não necessariamente o objetivo
último.
Uma hipótese seria de que esse desencontro tem uma origem histórica que, mais que a
simples busca de “antecedentes”, ajudaria a entender o significado presente tanto da emigração
para os haitianos quanto o da imigração para o Estado brasileiro. Assim, existe um preconceito
histórico no Brasil especificamente quanto ao Haiti, mas, além disso, quanto a toda imigração
que não seja branca ou européia. Paralelamente, para os haitianos, a emigração sempre teve um
sentido político e coletivo para além do mercado de trabalho.
Outro aspecto importante são as características do que podemos considerar na
mobilidade de haitianos: uma imensa maioria da população mulata ou negra, migrando na ilusão
de um país “livre de preconceitos” (já que o Brasil possui heranças europeia, africana e
indígena), economicamente fortalecido e socialmente “harmonioso”. Ao cruzar os limites sul-
americanos, além de esbarrar nos velados discursos desse país, cruzam a fronteira da fragilidade
legislativa, política e social que essas singelas e complexas fronteiras denunciam. A violência
gerada por esse discurso é muito também a violência paradoxal da mobilidade e da migração
que esbarra nos múltiplos processos desencadeados pelo capitalismo e pela contradição dos
espaços que este se entremeia.
É também por violência que o Estado brasileiro é impulsionado, muitas vezes, quando
se exime das responsabilidades frente aos direitos dos migrantes. Qual a perspectiva e qual as
potencialidades invisibilizadas desse migrante e dessa fronteira tanto por parte do poder
público, quanto da sociedade civil – brasileira, mas também continental e mundial? Conforme
Sayad:
Um imigrante não é apenas o indivíduo que é; ele é também, através de sua pessoa, e
pelo modo como foi produzido como imigrante, o seu país. Assim o quer a lógica das
relações internacionais, a própria razão de ser dessas relações. A dimensão
internacional da imigração perpassa assim todo o fenômeno (SAYAD, 1998, p. 241).

Dessa forma, o processo migratório, assim como seus constantes fenômenos não
somente prescindem, isto é , só podem ser analisados dentro de uma perspectiva temporal.
Muito porque brechas na análise podem desviar o foco do entendimento do processo migratório,
e culpabilizar, por exemplo, o migrante.
Há um risco muito grande em analisar os fenômenos da migração partindo da
perspectiva que a mobilidade seja um problema da sociedade e das representações sociais, e,
mesmo que esse problema seja uma ideologia, se estabelece como um discurso de que a
migração deve ser, no mínimo, um perigo para as sociedades.
28

É, na verdade, um perigo que se corre quando se analisa o espaço de forma estática,


salvaguardado de elementos imóveis. Analisar dessa forma possibilita hierarquizar espaços a
partir das relações de poder, impedindo, de forma paradoxal, a reflexão da complexidade que é
a espacialidade2.
Se o espaço for, genuinamente, a esfera da multiplicidade, se for o reino das trajetórias
múltiplas, então haverá, também, multiplicidades de imaginações, teorizações,
compreensões, significados. Qualquer ‘simultaneidade’ de estórias-até-agora será uma
simultaneidade distinta de um ponto de observação particular. (MASSEY, 2008, p.
136).

O presente trabalho engloba a migração haitiana no Brasil, mas atravessa uma discussão
acerca das relações estabelecidas entre a mobilidade internacional no país, os agenciamentos
revelados na relação com essa mobilidade a partir das fronteiras, e o processo pelo qual os
imigrantes escolhem e possibilitam estar no país de chegada.
Salienta-se que, quando tratamos de imigração e políticas imigratórias no Brasil, temos
alguns apontamentos importantes, principalmente ao se tratar de imigração por vezes dita
indocumentada, isto é, fora de qualquer vigência determinada pela normatização nacional, na
chegada de qualquer estrangeiro ao território brasileiro. A Lei do Estrangeiro de 1980 é o
documento normativo para o caso de imigrantes no Brasil, e a partir desse documento e da
Constituição Federal de 1988 se criou o Conselho Nacional de Imigração - CNIg, tributário ao
atual Ministério do Trabalho e Previdência Social; meados da década de 1990, para analisar os
casos de refúgio, surge o Conselho Nacional de Refugiados - CONARE, tributário ao Ministério
da Justiça. Juntos, eles promovem a gestão das migrações no Brasil.
Dos imigrantes que chegam ao Brasil, imensa maioria encontra-se em dificuldades
econômicas e em busca de um trabalho e uma qualidade de vida que minimamente contemple
a existência, mesmo que na lógica do sistema capitalista no qual vivemos.3 O migrante pobre
abarca a essência do paradoxo da mobilidade, pois migra também sua força de trabalho no
momento da busca por melhores condições na relação de produção de bens – de consumo, de
trabalho, de produção etc. – mas atravessa a rigidez e a relação da vulnerabilidade gerada pela
sua própria condição de indocumentação na relação com o capital, pois não possui bens, nem
está contemplado aos ditames inseridos na lógica do Estado capitalista.

2
Ver Massey: 2008.
3
“Devemos começar por lembrar que a figura do migrante é extremamente diversa, envolvendo múltiplas culturas
e classes sociais, e que a própria migração é movida pelos mais diferentes fatores e visa aos mais diversos
objetivos.” (HAESBAERT, 2007, p. 36).
29

Nesta perspectiva, há uma repartição de competências que faz com que o CONARE e o
CNIg encarem de maneira diversa a entrada de imigrantes no país, um do ponto de vista do
refúgio e outro do ponto de vista do trabalho. Uma conquista importante foi a promulgação de
um decreto, em 2009, pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva, que concedeu anistia aos
estrangeiros que residiam no país de maneira irregular até o primeiro dia de fevereiro do
respectivo ano (10 de fevereiro de 2009).
Ainda assim, o Brasil é um dos países cuja restrição aparenta ser menor quando se trata
da entrada de imigrantes. É contudo uma flexibilidade aparente, pois o Estado brasileiro, ao
mesmo tempo em que possibilita a entrada e a permanência de imigrantes pobres e da classe
trabalhadora, os insere em um processo de apartamento social e espacial nos lugares em que
chegam. Também, as mudanças decorridas nas atuais frentes de imigração nas fronteiras são
confluências mútuas de múltiplos fatores e mudanças decorridas no mundo globalizado4.
Da mesma maneira, há uma questão diplomática para o Brasil quando se trata no apoio
aos países mais pobres do continente americano, como no caso do Haiti. Em 2004 o Brasil já
integrava a Força Interina Multinacional de Pacificação, que logo após se tornou a conhecida
Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haiti (MINUSTAH). Criada pela
Organização das Nações Unidas para suplantar uma série de conflitos políticos oriundos de
fissuras de ordem representativa dos governos nacionais. Destaca-se que o quadro de refugiados
haitianos é, das últimas décadas do século XX até o atual, parte de uma intensidade de relações
vinculadas às ordens globais e locais. Conforme Chaves Júnior (2008), antes do terremoto:

Mesmo considerando-se a diminuição do refúgio em várias regiões, o fenômeno ainda


persiste de forma intensa e crônica em países como o Haiti. Nas Américas, aliás, o
Haiti é um dos raros a produzir, continuamente, numerosos contingentes de
refugiados, apresentando uma situação de constante e repetida incapacidade de
garantia de direitos por parte de suas estruturas nacionais (CHAVES JÚNIOR, 2008,
p. 48).

Diante deste cenário, em 12 de Janeiro de 2010 ocorre no Haiti, país insular localizado
na Ilha de Santo Domingo, na América Central, na região do Caribe, um terremoto que marcou
profundamente uma sociedade economicamente frágil e politicamente conflituosa. Há registros

4
“As mudanças no mercado de trabalho nos países industrializados e a crise dos “estados de bem estar social”
devem ser consideradas como importantes motores na dinâmica das migrações internacionais e na motivação das
políticas de imigração. Ocorrem, em primeiro lugar devido a crises econômicas e a mudanças na organização das
forças produtivas (tecnificação e automatização, “reengenharias do trabalho”, terceirização) dos países centrais
(PÓVOA NETO, 2005, p. 306). ”.
30

de mais de quarenta mil mortos devido ao terremoto5. O país e sua capital, Porto Príncipe, bem
como seus representantes, ainda não possuem previsão de recuperação mínima da estrutura
espacial e urbana dos mesmos6.
Um país desestruturado, cujos desastres não necessariamente são desencadeados por um
fato alheio aos processos políticos e sociais existentes no lugar, mas o resultado complexo de
políticas que atingiram – e agora atingem com maior vulto – o próprio sentido de política e de
democracia com a coisa pública. Conforme Chaves Júnior (p. 49, 2008), baseado em relatório
da Organização as Nações Unidas, antes do terremoto, a expectativa de vida para ambos os
sexos no Haiti era de 51 anos. Da mesma maneira, a população haitiana triplicou em cinco
décadas (de 1950 a 2005, foram contados cerca de cinco milhões a mais de pessoas).
O Brasil passa a ser destino da emigração pelas ligações humanitárias já desenvolvidas
no país e pela situação economicamente favorável no decorrer dessa década no cenário
nacional. Do decorrer de 2010 a meados de 2011, se intensifica a chegada de haitianos nas
fronteiras da região Norte do país, em especial por Tabatinga, no Estado do Amazonas, cidade
gêmea de Letícia, na Colômbia e por Brasiléia, no Estado do Acre, cidade gêmea de Cobija, no
Departamento de Pando, Bolívia.
Os problemas, tanto no aumento das restrições para a permanência quanto no aumento
do número de chegada de haitianos pela fronteira amazônica, começaram a surgir, de maneira
mais incisiva, em 2012. Logo nos primeiros dias deste ano, uma Resolução Normativa é criada
pelo CNIg, no limite de 1200 vistos – 100 por mês - de permanência por ano para imigrantes
haitianos, estabelecendo um visto de natureza humanitária com validade de cinco anos7.

5
“A situação social no Haiti vem desde muito se deteriorando e apresenta-se como uma das maiores catástrofes
humanitárias das Américas. Como se não bastasse a crise política que o país vive há mais de 20 anos, situações
de extrema gravidade como intempéries climáticas e, mais recentemente, um terremoto, que matou mais de 48.000
pessoas, tem contribuído para a deterioração do tecido social e ampliado a extrema miséria que vive a maior parte
da população. Neste quadro, a busca de saídas inclui, naturalmente, a emigração. O Banco Mundial (2011) estima
que, aproximadamente, 10% da população do país (1.009.400) tenha emigrado e outras fontes afirmam que a
diáspora haitiana já teria passado a casa dos 3,0 milhões de emigrantes (Haitian Diáspora- 2011). Este contingente
se espalha pelos Estados Unidos e pelo Caribe, principalmente a República Dominicana.” (PATARRA, 2012, p.
13)

6
“Um terremoto de magnitude 7 na Escala Richter atingiu o Haiti nesta terça-feira, às 16h53 no horário local,
19h53 em Brasília. Com epicentro a 15 Km da capital, Porto Príncipe, segundo o Serviço Geológico Norte
Americano, o terremoto é considerado pelo órgão o mais forte a atingir o país nos últimos 200 anos. Dezenas de
prédios da capital caíram e deixaram moradores sob escombros. Importantes edificações foram atingidas, como
prédios das Nações Unidas e do governo do país. O presidente haitiano, René Préval, afirmou que pelo menos 7
mil pessoas mortas no terremoto já foram enterradas em uma vala comum. O Haiti é o país mais pobre do
continente americano.” (Notícia do Portal Terra, em 15/10/11. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/o-
pais-acabou-diz-haitiano-no-brasil.e9f86355ccaea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html).
7
“... Parágrafo Único. Poderão ser concedidos até 1200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma
média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições
legais do país...” Disponível em: http://acesso.mte.gov.br/cni/2013.htm.
31

A resolução veio com intuito de resolver o impasse, muitas vezes agenciados no


percurso por grupos que se aproveitam dos migrantes em troca de dinheiro, comumente
chamados nesse caso de coiotes (conforme veremos no decorrer do trabalho). Também, as
autoridades de fronteira não davam apoio necessário, sequer informação dos procedimentos no
qual fariam.
Essa medida, portanto, é resultado essencialmente de dois motivos: primeiro, a chegada
de imigrantes haitianos agenciados por coiotes, que cobram preços abusivos e prometem
emprego e visto na chegada ao Brasil; e, segundo, a constituição das redes de migração que
possibilitaram a intensificação da mobilidade do Haiti para o Brasil.
Interessante ressaltar o espraiamento de grupos imigrantes haitianos ao se estabelecer
em vários locais do país, a acrescentar o estado do Mato Grosso do Sul, tal como aponta
Handerson (2015):

Uma das singularidades da mobilidade haitiana no Brasil é o seu atingir rápido os


estados geográficos (sic). Em quatro anos, os haitianos já estão em aproximadamente
15 estados dos 26 existentes, além do Distrito Federal. Geralmente, para os grandes
centros do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio
Grande do Sul etc. A difusão espacial da mobilidade haitiana no país merece uma
análise aprofundada. (HANDERSON, 2015, p. 168)

Segundo tanto o Governo do Estado do Acre quando o do Amazonas, a maciça


imigração de haitianos, tem sido pauta de reivindicações para o Governo Federal iniciativas
mais consolidadas aos problemas de ordem estrutural que já atingiam essas cidades e que se
tornaram críticos.
Nas palavras de um imigrante haitiano, sobre o galpão de alojamento da Polícia Federal,
localizado em Brasiléia, no Estado do Acre, que comportava em média duzentas pessoas onde,
em 2013, se encontravam cerca de oitocentos haitianos, segundo a reportagem citada:
Posso dizer que o que vivemos aqui em Brasiléia não é para um ser humano. Eles nos
colocaram de novo no Haiti que tínhamos logo após o terremoto: a mesma sujeira, o
mesmo tipo de abrigo, de água, de comida. Isso me machuca e me apavora. Eu sabia
que o caminho até aqui seria duro, porque você está lidando com criminosos, mas, ao
chegar aqui no Brasil, estar em um lugar desses é inacreditável. Disse o haitiano
Osanto Georges, de 19 anos.8

Em abril de 2013, o parágrafo da Resolução número 97 que previa cotas foi revogado,
e em maio o CNIg aprovou outra resolução normativa9, que eliminava o limite de vistos para

8
Fonte: Portal Midia News do Acre, em 14/08/13.
9
Conforme Resolução Normativa do Conselho Nacional de Imigração No 102 de26/04/2013:
“Altera o art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012.
32

haitianos, concedendo assim cinco anos de permanência no Brasil, o que organizou o


procedimento sem a demora no processo de articulação da legitimidade da chegada do
imigrante.
Dessa maneira, tais fluxos revelam a necessidade de um novo debate na estrutura e no
investimento da questão do migrante no Brasil. Nos traz a questão das medidas – ou desmedidas
– da imigração, que ao que parece, ainda não avançou na produção de políticas públicas
efetivas. Há problemas também, para visibilizar o imigrante como aquele dotado de escolhas,
mesmo que atravessadas por relações e agenciamentos, mas que são escolhas políticas e de
resistência a sua condição atual da cidade que emigra – no caso, as cidades haitianas, para a
cidade a que chega, as cidades brasileiras.
Trata-se também do papel da gestão pública no trato da escolha do migrante haitiano,
na sua opção por migrar para o Brasil, que não deixa de ser uma escolha pontualmente forçada
por várias razões, mas é também uma estratégia de resistência.

Acreditamos também que a vontade de permanência é um ato de resistência porque o


desenraizamento já existe no lugar chegado. Não a tornar a questão tão superficial e
lógico-racional, mas na compreensão de que o direto à cidade, e o desejo do habitar e
construir são também inerentes a vontade de mobilidade (MARTINS, 2013, p. 103).

É salutar compreender que a escolha não é considerada nas pautas da gestão pública e
na política de permanência de imigrantes refugiados, em grande medida desconsideram a
necessidade do migrante, e em casos extremos utilizam-se do discurso da invasão. Tal discurso
impulsiona frentes políticas e sociais da imigração, seja nas heranças sociais depreendidas dos
processos migratórios passados, seja nas políticas restritivas que acompanham tais processos,
como o caso do Brasil.

O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 e organizado pela Lei nº
10.683, de 28 de maio de 2003, no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993,
Resolve:
Art. 1º. O caput do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012, passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 2º. O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério
das Relações Exteriores."
Art. 2º. Fica revogado o parágrafo único do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 2012.”
(Disponível em: http://acesso.mte.gov.br/cni/2013.htm). (Grifo meu).
33

1.1 Objetivos

Temos como alicerce, como objetivo principal nesta tese:

Compreender as relações de mobilidade e de permanência de imigrantes haitianos no Brasil,


ao analisar a relação migrante-trabalho-direito à migração e suas escalas espaciais e temporais.

Como objetivos específicos, temos:

1 – Caracterizar os principais itinerários de ingresso, passagem e permanência dos haitianos no


território brasileiro, mapeando-os e compreendendo seus projetos de mobilidade e permanência
no país;

2 – Percorrer os processos históricos e geográficos que culminaram tanto nas políticas de


imigração e nas heranças sociais destas no Brasil, tanto no histórico processo de emigração
haitiana, pensado hoje em uma perspectiva política e coletiva;

3 – Analisar os contextos políticos tanto dos imigrantes haitianos quanto da política brasileira,
e cruzá-los às respectivas estratégias a partir de quatro perspectivas-chave: geometrias de poder,
agenciamentos, diáspora e redes sociais de imigração.

1.2 Questões e indicações metodológicas

Um dos principais pesquisadores contemporâneos que analisa processos migratórios,


autor do livro traduzido em português como Mobilidade do trabalho e acumulação do capital,
Jean Paul de Gaudemar, é referência entre os defensores da tese de que a mobilidade do trabalho
foi alicerçada pelo capital para suprir suas necessidades de lucro e assim dinamizá-lo conforme
a necessidade do capitalista em diferença ao consumidor e ao trabalhador:

Eis então um primeiro elemento que indica a conformação do trabalho como


mercadoria implica a sua mobilidade (...) é o complemento indispensável de toda a
boa proporcionalidade na divisão do trabalho (...) ela é portanto mobilidade de
capitais através do espaço e do tempo econômicos (...) Sendo mobilidade dos seus
trabalhadores ela é mobilidade dos seus serviços, mantendo-se os próprios homens
‘imóveis’ e conduz assim às formas quotidianas da divisão e organização do trabalho,
à circulação dos trabalhadores no interior de um mesmo espaço de trabalho
(GAUDEMAR, 1977, p. 114).
34

Trata-se da migração por sua necessidade ao trabalho como forma de satisfazer às


necessidades do capitalismo, discussão pertinente na economia política, principalmente naquilo
que Marx aponta em relação ao trabalho concreto e ao trabalho abstrato.
Gaudemar diz que há mobilidade através do espaço (e do tempo) econômico, mas que
essa mobilidade é dos serviços, isto é, embora o trabalhador migre, a necessidade inerente ao
capital e ao trabalho é que será móvel, e o trabalhador, embora migrante, estará sempre num
espaço nas relações de subserviência e subalternidade.
É interessante ainda que o autor trate de conceitos econômicos clássicos e neoclássicos
para ratificar sua base essencialmente marxista, bem como refuta as teses e as fórmulas criadas
para determinar fluxos migratórios a partir de conceitos positivistas e neopositivistas que,
segundo ele, deixam ainda mais confusa a inserção espacial da mobilidade e o processo dentro
da história do capital bem como a inerência ao trabalho como móvel.
Outra contribuição de Gaudemar à reflexão sobre migrações e mobilidade está no papel
crítico de tais fórmulas pretensamente explicativas da migração que configuram a mesma como
um papel de equilíbrio de forças, criticando tais fórmulas, resultante da conformação das
relações de trabalho alienantes.
Gaudemar atribui os equívocos da demografia e da economia à visão dos pesquisadores
(sejam eles clássicos ou neoclássicos etc.) servis às elites e para o poder, constituindo assim
uma ciência e um olhar da migração para a necessidade dessa migração forçada, que nada tem
de uma mobilidade social. Mas o autor, ao mesmo tempo em que faz a crítica às formulações
do equilíbrio, aponta que esse é um processo que de fato ocorreu na formação do capitalismo.
Desse modo, o autor nos ajuda a entender a migração como aparato de manutenção das
elites, independente dos períodos e dos métodos em que ele percorre, mas também torna a
análise como forma de denúncia ao que ocorre nos estudos demográficos e também sociais no
que diz respeito à migração como um fenômeno a partir da industrialização, ou até antes, no
capitalismo mercantil.
Becker (1997) ressalta as principais perspectivas do pensamento de Gaudemar sobre a
migração relativa à mobilidade do trabalho.

Conforme essa visão, a mobilidade do trabalho reúne duas dimensões: a espacial


(horizontal) e a social (vertical). Como mobilidade espacial ou migração, pode ser
considerada a capacidade da força de trabalho de conquistar vastas extensões, o
espaço geoeconômico, isto é, o espaço através do qual o trabalho se expande para
formar o mercado de trabalho. Entretanto, ao mesmo tempo que a força de trabalho
35

se estende sobre o espaço, ela precisa se concentrar em pontos específicos, aqueles


que forem mais úteis à produção capitalista (BECKER, 1997, p. 334-335).

Porém, entendemos que a mobilidade é do trabalho não somente pelo processo histórico
e inerente do desenvolvimento do capitalismo, mas, sobretudo pelas relações estabelecidas nas
diversas formas do poder em espaços distintos10.
Singer11 (1980) estrutura as bases do capitalismo a partir da industrialização como um
fator essencial para entender a complexidade das migrações em um processo social. Em seu
livro “Economia política da urbanização”, o autor pensa acerca dos processos migratórios no
Brasil e os define a partir dos fatores de atração e expulsão, considerando a demanda por força
de trabalho (e não mais o trabalho ou a força e em si) como atração (o imigrar), e fatores de
mudança e/ou fatores de estagnação como expulsão (emigrar). Segundo ele:

Os fatores de mudança fazem parte do próprio processo de industrialização, na


medida em que este atinge a agricultura, trazendo consigo mudanças de técnica, e em
consequência aumento da produtividade do trabalho. Os fatores de estagnação
resultam da incapacidade dos produtores em economia de subsistência de elevarem
a produtividade da terra. Os fatores de mudança provocam um fluxo maciço de
emigração que tem por consequência reduzir o tamanho absoluto da população rural.
Os fatores de estagnação levam à emigração de parte ou da totalidade do acréscimo
populacional devido ao crescimento vegetativo da população rural, cujo tamanho
absoluto se mantém estagnado ou cresce apenas vagarosamente (SINGER, 1980, p.
38).

Compreender a migração dessa forma (salienta o autor) é descobrir o fenômeno


migratório como processo social, e em análise deve ser abordado como estudo de determinação
de classes e variações do processo capitalista para sua ascensão. Também a marginalização do
migrante não se daria de forma generalizada, mas complementaria o que Marx (como o autor
salienta) chama de exército industrial de reserva, e a possibilidade de problematizar a inclusão
de parte da sociedade migrante à margem das relações sociais.
É preciso assinalar, desde já, que a ‘marginalidade’ é, em geral, conceituada como
não integração na economia capitalista e não participação em organizações sociais e
no usufruto de certos serviços urbanos (...) É sabido que o capitalismo industrial,

10
Essa reflexão é importante porque, como veremos adiante quanto ao caso do Haiti, a fragilidade política e social
no Haiti remonta relações de poder que se cruzam com mais duas frentes: a corrupção estrutural e a extrema
dependência externa. Tais elementos trazem outras complexidades, como fragilidade do papel da sociedade
haitiana no seu papel de escolha política e social dentro de seu país, o qual conforme elementos neste trabalho
percebem-se o quão se torna mínima a participação social nas principais decisões do Estado. Tais referenciais
denotam essa necessidade paradoxal dos Estados que pode ser compreendida através das suas relações de força
que se situam no seio do processo de migração e na constituição do migrante.

11
Vale ressaltar que o autor aponta questões referentes à migração interna, e que não levam em consideração os
elementos da migração internacional.
36

desde sua origem, requer e, por isso, constitui reservas de capacidade produtiva e de
força de trabalho, que somente são utilizadas nos momentos em que a economia se
expande com maior vigor. Conviria examinar a ‘marginalização’ sob este ângulo
antes de se saltar à conclusão de que uma parte da oferta de força de trabalho,
constituída sobretudo por migrantes, simplesmente não é aproveitada pelo sistema
(SINGER, 1980, p. 60).

A associação dos fenômenos migratórios com a perspectiva a partir dos moldes


capitalistas de acumulação se transforma com o passar do tempo e reconfigura espaços e tempos
diversos e, embora a ideologia seja sempre a da igualdade e liberdade, ocorre o inverso, mais
relações hegemônicas e de aprisionamento ideológico. A perspectiva crítica de Paul Singer nos
possibilita entender o caráter crítico da migração interna na visão da sociedade e dos problemas
advindos do poder do capitalismo e da industrialização maciça do século XX, bem como suas
transformações. O autor, embora procure ser bastante didático, salienta que todas essas
transformações, tal como Marx aponta, são processos sociais e históricos e historicizados a
partir de pontos não de ruptura espontânea, mas sim a partir do Estado como ente de potência
e razão.

A industrialização em moldes capitalistas está longe de ser um processo espontâneo,


promovido exclusivamente pelo espírito de iniciativa de ‘entrepreneurs’ inovadores.
Ela só se torna possível mediante arranjos institucionais que permitem, de um lado,
acelerar a acumulação do capital e, do outro, encaminhar o excedente acumulável às
empresas, que incorporam os novos métodos industriais de produção (SINGER, 1980,
p. 33).

Essa construção historicizada reflete a influência marxista na obra, considerando o


materialismo histórico dialético, e nos auxilia a pensar diferente da perspectiva (embora os dois
utilizem as mesmas referências conceituais) de Gaudemar, que procura desvelar a própria
centralidade da mobilidade do trabalho no processo de acumulação capitalista e menos
específico para países como o Brasil, cuja industrialização ocorreu a partir de um processo
tardio e subserviente, e, mesmo considerando que ele também trate de países desenvolvidos,
percebem-se lacunas das questões entre mobilidade e percepção do complexo social e da
inserção política e subjugada pelo capitalismo.
A questão é que ao analisar tais processos sob o auspício do tempo, o espaço muitas
vezes é deixado de lado, assim como os múltiplos processos em que tempo e espaço se cruzam
nos fenômenos sociais. Ora, mas se o tempo é motivo e participação, mesmo que abstrata, do
complexo social e de suas relações de trabalho e coletividade, o espaço não deixa de ser, mesmo
em seus condicionantes físico-estruturais, constituinte da reflexão geográfica. Essa é a grande
37

questão discutida por muitos pesquisadores quando se trata de espaço e espacialidade. As


transformações ditas por Singer não se manifestam a partir apenas de tempos que se sucedem
dialeticamente, mas também pela multiplicidade espacial que produz conteúdos a partir dos
seres viventes, e no caso da urbanização, dos sujeitos sociais. É interessante o que Becker
salienta acerca dos estudos relativos à migração:

Em relação aos níveis de explicação da realidade, ambos os métodos ate então


utilizados nos estudos de migração (o neoclássico e o neomarxista) pretendem explicar
os fatos através de um enfoque extremamente geral [...] Quanto às generalizações
marxistas, permitem apenas atingir certos níveis de explicação. Desta forma, parece
essencial que se considere com maior cuidado as abstrações e que se trabalhe com um
montante maior de dados empíricos em espaços diferenciados. Assim, estar-se-ia
considerando o ‘particular’ juntamente com o geral na análise dos deslocamentos
espaciais da população (BECKER, 1997, p. 358).

Sendo assim, pensar uma geografia a partir do movimento na perspectiva do migrante


não é um trabalho fácil, e requer uma reflexão não só dos processos sociais inseridos na escala
temporal, mas no bojo do movimento espacial.
Também, na perspectiva política da migração – e do migrante, não podemos deixar de
tratá-lo como inserido nas transformações do espaço em que está, bem como de seu movimento.
É aí que salientamos a questão do olhar pré-concebido do migrante como afastado do espaço
que também é construído por ele e pelos que se estabelecem donos – mesmo que
simbolicamente – desse espaço.
Mas (e principalmente) nos faz pensar que os movimentos produzidos no espaço são
diversos e plurais. E quando consideramos essa pluralidade em eventos distintos, é possível
minimamente compreender a necessidade de reflexão de um espaço constantemente produzido
por diversidades e diferenças entre sujeitos e produção pelos sujeitos. O espaço “são espaços”,
isto é, com várias facetas, e mesmo que o tempo seja um só, isto é, em um mesmo tempo o
espaço vivido para uma pessoa é completamente diferente do espaço de outra pessoa. O
processo dialético do espaço, nessa perspectiva transpõe o dualismo tempo-espaço na
consideração da temporalidade como fundamental para compreender as transformações e o
processo de produção de uma sociedade, já que o entendimento dessas relações é também mais
sofisticado quando tratamos numa outra forma de pensar o espaço.
Faz-se necessário, portanto, responder às questões do tempo e do espaço de uma maneira
interligada. Tais perspectivas utilizados e/ou de interesse para a pesquisa propõe uma tentativa
neste sentido.
38

Quando se trata de pensar o migrante, incluímos várias questões de ordem conceitual


crítico-reflexiva, que encaram a cidadania do migrante enquanto problemática de uma relação
de troca, já que sua migração foi forçada devido ao acúmulo do trabalho e relações entre capital
e lucro.
Uma outra forma, aliás, de encarar as migrações é, do ponto de vista humano, a
ausência de direito a um entorno permanente. Cada vez mais no Brasil, as pessoas
mudam de lugar ao longo da existência, o número dos que vivem fora do lugar onde
nasceram aumenta de ano para ano, de um recenseamento a outro. Condenar os
indivíduos à imobilidade seria igualmente injusto. Mas as migrações brasileiras,
vistas pelo ângulo da sua causa, são verdadeiras migrações forçadas, provocadas pelo
fato de que o jogo do mercado não encontra qualquer contrapeso nos direitos dos
cidadãos. São frequentemente também migrações ligadas ao consumo e à
inacessibilidade de bens e serviços essenciais (SANTOS, 2000, p. 44).

A priori, portanto, o migrante é visto sem cidadania na execução de políticas públicas,


por ser considerado efêmero. Para parte da intelectualidade o migrante é desprovido de
cidadania pelo seu vínculo à necessidade de consumo e superficial apropriação de bens e
serviços que acarretem diretamente numa mudança maior e mais complexa de sua realidade.
Ora, nos atinge saber se realmente é esse o ocorrido. É certo que muitos discursos próximos
legitimam para a sociedade o atributo de troca e de compra em relação ao termo cidadania.
Embora a migração e os processos migratórios se desenhem e se ambientem no espaço,
o estudo das espacialidades do migrante continua a merecer aprofundamento e debate,
sobretudo na ciência geográfica, que considera o espaço como categoria de análise. Não pela
carência de estudos, mas pelas novas categorias de análise que depreendem as relações com
pluralidade, e abarcam os processos nos quais Abdelmalek Sayad aponta em seus estudos, o
duplo emigração-imigração como interrelacionados. Vê-se uma importante análise em que
contemple o espaço como metodologia de análise, conforme Massey (2008):
As especificidades do espaço são um produto de inter-relações – conexões e
desconexões – e seus efeitos (combinatórios). Nem sociedade nem lugares são vistos
como tendo qualquer autenticidade atemporal. Eles são e sempre foram
interconectados e dinâmicos [...] a diferença espacial era concebida em termos de
sequência temporal [...] Requalificar eufemisticamente ‘atrasado’ como em
‘desenvolvimento’ e assim por diante, não contribui em nada para alterar o
significado, e a importação da manobra fundamental: a de tornar a heterogenia
espacial coexistente uma única série temporal [...] Nessas concepções de progresso
singular (quaisquer que sejam suas nuanças), a própria temporalidade não é
efetivamente aberta. O futuro já está contado, de antemão, inscrito na estória. Essa é,
portanto, uma temporalidade que, de qualquer forma, não tem nenhuma das
características de eventualidade, ou de novidade. Nem corresponde às exigências de
que o espaço seja sempre e para sempre aberto, em um constante processo de fazer-
se (MASSEY, 2008, p. 106-107).
39

Doreen Massey aponta essa necessidade de pensarmos o espaço como movimento


intrínseco ao seu próprio processo de construção, e possibilita assim a compreensão de seu
movimento que parte individual e subjetivamente para um determinado grupo e uma
determinada espacialidade. Para ela, não existe a máxima do espaço como palimpsesto, e sim
um espaço de devir, de possibilidades criadas a partir do agora, contudo não desconsiderando
os resquícios do passado nem as possibilidades do futuro.
Há uma proposta central nessa perspectiva: a de que um paradoxo das posições
construídas pela ciência geográfica que estabelece um alheamento entre múltiplas formas de
conhecimento geográfico pelo mundo, denotando um movimento articulado entre
conhecimento, prática, poder e ciência.
Isto se dá, em grande medida, pela construção de uma compreensão verticalizada das
relações entre ciência e sociedade, a partir daquilo que vemos, percebemos, compreendemos e
construímos como ciência, e muitas vezes é escamoteado por uma relação de poder dialética.
É também um construto social e histórico que remete às intrínsecas relações
homogeneizantes que existem entre o saber e o poder alijadas a um processo de produção a
partir de uma sistematização de formas de poder impostas, negligenciando práticas e
conhecimentos, mas também conhecimentos e ciências de um mesmo tempo, porém de
múltiplos espaços.
Essa compreensão da geografia como busca pela multiplicidade do espaço e seus
movimentos destaca que sua responsabilidade política refere-se ao processo de conjuntura e
transformação espaço/temporal abarcando de alguma maneira a multiplicidade. Para Massey,
há a interpretação errônea de que o tempo possui movimento e é múltiplo diversamente oposto
ao espaço. A heterogeneidade do espaço até circularia por um só tempo, porém, a partir e pelo
espaço encontramos múltiplas formas de interpretar espaço e tempo.
O espaço então estaria associado ao que Massey entende como errôneas: a primeira em
que o espaço se sobrepõe ao tempo, a segunda que opõe espaço e tempo e a terceira que o tempo
se sobrepõe o espaço.
O espaço é tão impossível de representar quanto o tempo [...] arrancando o espaço dessa
cadeia imobilizante de conotações, ambos, potencialmente, contribuem para as
desarticulações necessárias para a existência do político e abrem o próprio espaço para
um discurso político mais apropriado (MASSEY, 2008, p. 80).

Portanto, se pensarmos na constituição do ser a partir de sua temporalidade sem abrir


mão de uma dialética múltipla da espacialidade, abriremos a esse ser o constante
amadurecimento e reconhecimento de si mesmo no espaço, e não mais somente pelo tempo.
40

Talvez, o que se requeira seja incutir uma (noção de) subjetividade que não seja
exclusivamente temporal, que não seja a projeção de um interior – conceitual,
introspectivo, mas, antes, uma subjetividade que seja também espacial, olhando
abertamente em suas perspectivas e na consciência de sua própria constituição
relacional. (MASSEY, 2010, p. 124).

O espaço – e o lugar, envolvem sociabilidade, mas o indivíduo não deixa de existir, pelo
contrário, reflete e absorve outras espacialidades e territorialidades. O político se faz em todas
as perspectivas, seja na interseção, nas laterais etc... Pois, de todas as formas, o sujeito não deixa
de ser participante. Porém, há as configurações de poder estabelecidas por organizações,
corporações e elites minoritárias que em cada particularidade do espaço, manifesta conforme
suas peculiaridades.
A globalização, por exemplo, ideologicamente exposta como a abertura dos espaços e
um tempo diferenciado para tais espaços, mascara desigualdades e o movimento real, pois tal
desigualdade, além de temporal (no sentido da multiplicidade do espaço no tempo) é espacial
no tocante ao significado, ou seja, na interpretação hegemônica dos sujeitos.

O espaço global, como o espaço de modo mais geral, é um produto de práticas de poder
material. O que está em questão não é apenas a abertura e o fechamento ou a ‘extensão’
das conexões através das quais nós, ou o capital financeiro, ou o que quer que seja...
presta atenção às nossas coisas. O que está em questão são as novas geometrias de
poder constantemente-sendo-produzidas, as mutantes geografias das relações-de-
poder (MASSEY, 2010, p. 130). (Grifo meu).

Essas geometrias de poder seriam articulações político-espaço-temporais que atuam


nas necessidades reais, múltiplas, mas sempre formas de dominação, e se encontram em todas
as esferas e/ou corpus sociais.

Para uma compreensão relacional da globalização neoliberal, os ‘lugares’ são linhas


cruzadas nas mais amplas geometrias de poder que constituem tanto eles próprios
quanto o ‘global’. Nesta abordagem, lugares locais não são sempre simplesmente as
vítimas do global, nem são, sempre baluarte politicamente defensáveis contra o global
[...] ‘lugares’ diferentes ficarão em posições contrastantes em relação ao global. Eles
estão localizados de modo diferenciado dentro das mais amplas geometrias de poder
(MASSEY, 2010, p. 152).

Massey entende essas geometrias de poder como parte do que ela refere a stories-so-
far, estórias-até-agora que remetem à própria multiplicidade do pensamento e das
possibilidades quiçá peculiares e constantes, e por isso estórias. Já que serão sempre geometrias
de poder, frente à constatação de que nem o espaço nem o pensamento são palpáveis e
41

determinados. A globalização seria uma dessas geometrias de poder, pois compreende as


formas de territorializar tal globalização pelos diferentes espaços.12
Nas entrelinhas, portanto, nota-se que há uma nova noção de lugar a partir dessas
“stories-so-far”. O lugar passa a ser o estar aqui, neste momento, e é a negociação social com
as diferenças, bem como seu devir, não mais analisando negócio como trabalho enfadonho e
estranho ao ser, mas negociação como construção contínua num processo em que a própria
noção de ócio é transformada. Uma abertura a essa negociação seria pensar dentro das
geometrias de poder, em uma nova política dos lugares, preocupada em estabelecer essas
negociações e trabalhar em função do devir delas.
O sujeito encontra e é encontrado em produções para si e para o outro, num momento e
em vários momentos, assim como em vários espaços. Não há um só sentido. Fazer e estar em
movimento já é resultado de suas próprias cartografias, pois o movimento é gerado por uma
opção. A opção é gerada por um pensamento que se expressa a partir de um ato. Ato e fato se
constroem concomitantemente à opção, que já se estabelece como ser politicamente optante. A
questão que se produz é: até que ponto essa opção vem do processo de produção de um
conhecimento legítimo e subjetivo? Ou se essa produção é uma expressão de um pensamento
construído por uma alteridade desigual e conflitante. Ou os dois se juntam? De onde vem a
opção e quando ela, em um finalmente expresso, transforma efetivamente as relações políticas
do sujeito enquanto produtor de um meio e de uma interação com esse meio e com essa
natureza?
É interessante pensar, como exemplo prático, a relação entre o migrante no espaço
migrante, isto é, o lugar em que está (em relação ao lugar de partida). Tem-se, por vários
pesquisadores – dentre geógrafos, sociólogos, psicólogos etc. – a visão de que a migração é
estabelecida por uma opção de surgimento de necessidades aferidas por relações contraditórias
e desiguais em um espaço calçado por políticas e demandas para uma minoria, vinculado a um
Estado também desigual. Tal perspectiva crítica é, para tanto, o principal foco de análise, pois
é dela que se tiram as principais relações espaciais que produzem e reproduzem espaços
escamoteados nas metrópoles brasileiras (tomando como exemplo o caso do Brasil). A
migração é, muitas vezes, analisada como relação de reprodução de forças abstraídas pela
demanda do sistema capitalista de produção.
Nesse sentido é que Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) nos propõem a pensar que
sociedade vivemos, quando o poder soberano incita a responder que cidadania está vinculado

12
Ver também: MASSEY,2007, p. 142-155.
42

não aos direitos de uma outra liberdade e de tornar-se político legitimamente e consciente de
sua produção espacial na cidade, mas vincula uma ideia de família, de propriedade dos espaços,
de confinamento e de dividir financeiramente. A partir daquilo que Foucault (2008) apontará
como transição entre sociedades disciplinares para sociedades de segurança, Deleuze irá
redefinir como sociedade de controle:
Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem
um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades
disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da
integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras,
que marcam o acesso à informação, ou rejeição. Não se está mais diante do par
massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas
tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor
exprima a distinção entre as duas sociedades [...] A velha toupeira monetária é o
animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.
Passamos de um animal a outro, no regime em que vivemos, mas também na nossa
maneira de viver e nas relações com outrem (DELEUZE, 2011, p. 226-227).

Tal perspectiva alinha-se com a questão da mudança, do devir conceitual da palavra


cidadania nas esferas políticas e sociais, pois a reprodução e o acoplamento da palavra aos
ditames da financeirização do processo (tanto do Estado e de seus convenientes interesses por
parte dos seus representantes quanto das novas elites que em certa escala determinam o que se
deve ou não fazer nos espaços, quiçá nos chamados espaços urbanos) arraiga e estabelece
ditames de cidadania13.
Propomos pensar tal como Deleuze e Guattari (1995, 2008, 2010) quando é tratado o
bloco de agenciamentos que são construídos com base no processo de produzir conhecimento.
Para pensar esses agenciamentos, os autores começaram a propor outras perspectivas da noção
de desejo e produção desejante. Para eles, o desejo não é ligado nem fincado a nenhum processo,
ele é o processo em si.
O corpo produz formas e forças produtivas a partir do desejo, mas os corpos procuram
uma “harmonia ao caos” das máquinas desejantes. A máquina desejante se liga ao que os
autores denominam de máquina paranoica do corpo sem órgãos, que é um mecanismo de
interação com as relações externas. O corpo sem órgãos, embora pareça uma expressão
estranha, significa que um corpo que recebe informações é um corpo que produz desejo a partir
destas. Se as informações recebidas estiverem se baseando na produção capitalista, esse corpo
produz desejos que estão diretamente ligados ao sistema capitalista (para eles, a máquina

13
Estamos certos ao dizer (e faremos com mais detalhes posteriormente) que esses ditames tornam-se
agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
43

capitalista). Essa produção torna o desejo um desejo dos outros, porque não é legítimo ao
sujeito. Por isso a máquina capitalista é esquizofrênica, pois ela depende do corpo sem órgãos
para produzir sua própria fonte, sendo assim uma ilusão de desejo.
Ao mesmo tempo, esse corpo não deixa nunca de produzir desejos, que estão associados
a essa máquina capitalista ou não. Ou desvirtuam-se da esquizofrenia da máquina capitalista e
reincorporam novas fontes de desejo. Se na relação que se procede a máquina desejante, a
fluidez é contínua e múltipla, na máquina paranóica, a relação se torna contraproducente ao
desejo do corpo, para um corpo do desejo, tornando-se registro. A contraprodução é, na
realidade, a expressão de uma das múltiplas produções do desejo.
Os agenciamentos, produtos e produtores do desejo, assim como possibilitam diversas
fontes de querer, desejar e fortalecer as vontades, também alimentam discursos e produtos de
discursos que engendram determinadas funções e determinados atos para a sociedade. O desejo
aqui pode ser tanto do migrante, que agencia possibilidades do viver ou constroi suas
amarrações políticas, quanto do Estado em aprimorar suas máquinas políticas e seus discursos
que na maioria das vezes subjuga e subordina o migrante. Agenciar não é somente um ato
nebuloso, que alimenta ideologias, mas um processo de produzir desejos que se expressam a
partir de um conteúdo, que pode ser falar, mas pode ser também gestos ou até silêncios14.
Cogo e Gorczevski (2012) também ressaltam a importância desse sentido de
agenciamento proposto por Deleuze e Guattari na compreensão das subjetividades e relações
políticas entre grupos migrantes, que acenam a todas as formas de relações existentes, no
sentido diverso e múltiplo.
Analisar um ou mais migrantes narrarem seus argumentos atravessados por relações
familiares e afetivas, na verdade, como advertem Deleuze e Guattari, é indicativo de
composição de agenciamentos. O desejo não se situa, assim, no plano da
representação, mas da criação de agenciamentos.[...] Os agenciamentos podem ser
solitários, a dois, sendo, ao mesmo tempo, coletivos. Seguimos, então, nos
perguntando como as relações com o “outro” foram decisivas para potencializar
fluxos e mudanças (COGO; GORCZEVSKI, 2012, p. 151).

14
Vale ressaltar que os agenciamentos também não são únicos. São sobretudo resultantes de um contexto, de uma
configuração que envolve uma relação que é múltipla. “É somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como
substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como
realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo [...] Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto,
mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de
combinação crescem então com a multiplicidade) [...] Um agenciamento é precisamente este crescimento das
dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões.
Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem
somente linhas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16-17) ”.
44

Surgem conforme se expressa uma ordem, um ditame, mesmo em movimentos que


como veremos, podem vincular-se a causas opostas do Estado. Os agenciamentos são as
conjugações sociais de palavras e significados que resultam em um processo de produção do
conhecer a partir de um grupo. Outros agenciamentos se transformam e surgem nas
transformações internas, no fundo do desejo de sair do lugar que nasceu, por exemplo.
É nesse sentido que pensamos que ocorrem agenciamentos, pois se o termo possui vários
critérios que partilham a construção de espaços conforme os ditames de determinados discursos
e enunciados, e tais vão produzir atos concretos no espaço e na cidade, construir cidadania ainda
é uma utopia, tal qual ela é referida tanto no aparato da força da lei, quanto na sua exceção, e
mais ainda na sua busca conceitual para compreender o seu papel no espaço e/ou no território.
Não esqueçamos que, quando falamos em qualidade de vida, não é possível apartá-la ao
ponto de mascarar as discrepâncias sociais e espaciais da desigualdade e do bem viver.
Qualidade de vida envolve e permeia todo um espaço de equipamentos que funcionam e que
efetivamente constroem e garantem a vida de um ser humano, não por assistencialismo ou
necessidade, mas porque somos também parte desse mecanismo, desse aparato quando
elegemos representantes e seja lá como for, provemos e construímos dia a dia, no nosso
cotidiano, nossa própria cidadania, seja formal, informal emergente, insurgente ou
simplesmente contestada enquanto força arbitrária.
Os agenciamentos, tal como expostos, se associam também à pesquisa dos imigrantes
agenciados por circunstâncias, múltiplos fatores, mas também por pessoas. É importante
destacar o papel das rotas agenciadas para a fronteira acreana15, de 2011 a 2015, na qual a
participação de coiotes denota também uma série de complexidades. Tais análises são
necessárias metodologicamente para entendermos tais processos de permanência a mobilidade.
No Haiti, esses processos acompanham um percurso longo, de muita dor e muita luta,
no qual a migração, conforme o espaço e o tempo incitam outras dinâmicas, constitutivas e
principalmente a esperança de um caminho que não a pobreza, a busca coletiva e política por
algo melhor. Os agenciamentos começam na concepção do fazer político das haitianas e dos
haitianos, e como esse fazer desdobra no projeto do migrar, cruzando outros múltiplos
agenciamentos nos lugares em que imigrantes haitianos chegam. É nesse sentido que a

15
De acordo com o novo acordo ortográfico, o gentílico do Estado do Acre passaria a ser “acriano”, em
normatização com outros gentílicos (como iraquiano ou jordaniano). Contudo, o termo acreano data de antes da
indexação do Acre ao Brasil, o que foi motivo de consulta pública pelo governo do Estado do Acre, que promulgou
em julho de 2016 a Lei No 3.148, re-instituindo o termo acreano. Dessa maneira, nesta tese utilizar-se-á o gentílico
com e, e não de acordo com a norma gramatical.
45

diáspora, percebida e concebida tal como Handerson (2015) aponta quanto aos imigrantes
haitianos, que os agenciamentos também são conduzidos nesse espaço e nesse tempo.
Depreende-se, a partir dos ricos apontamentos de Handerson (2015), que os haitianos
constituem um processo diaspórico que vai além do uso corrente do termo, pois no Haiti é
relacional e co participante, isto é, conforme o autor, eles atribuem-se a si mesmos a própria
diáspora assim como seus processos de mobilidade vão ao encontro de uma causa maior,
coletivizada no espaço e no grupo ao qual pertencem. Não é à toa a participação e criação de
associações políticas e culturais via acesso e acolhimento entre haitianos desde o início do
chamado fluxo para o Brasil.
Possuir familiares na diáspora não significa, necessariamente, ser aquele
provavelmente que viaja ou ser o primeiro na cronologia das viagens. Pois, “ter
familiares” não garante a mobilidade dos que ficam. Isso exige disposições internas
(capacidade da pessoa mobilizar as redes) e disposições externas (recursos dispostos
ao indivíduo). São duas dimensões essenciais do capital social dos candidatos à
viagem, mas não são as únicas.
A decisão (e também a escolha) de quem viaja é pragmática, algumas características
do candidato são levadas em conta pelos familiares. Alguns parentes residentes
aletranje, para decidir quem vão “mandar buscar” primeiro (na cronologia), levam em
conta as condições de possibilidade de inserção rápida do viajante no mercado de
trabalho aletranjee, também, se este possui um espírito coletivo, de respeitabilidade,
para guardar a reputação da família, se é generoso para cumprir com as obrigações
com aqueles que ficaram, não deixar de participar da vida ativa familiar, tanto entre
os que estão na diáspora quanto entre os que ficam no Haiti (HANDERSON, 2015,
p. 185).

Esse “ser diáspora”16 promove não só a mobilidade em si, mas possibilita um conjunto
de interesses que vão mobilizar o grupo como um todo. O fracasso do ser diáspora é também o
fracasso para o grupo. Da mesma maneira, sua inserção em espaços distintos, ainda que não
corra o retorno para o Haiti, não implica no desprendimento de suas relações.
Por esse sentido coletivo de diáspora, pelos agenciamentos ocorridos no processo de
partida e de chegada do migrante haitiano, entendemos que a metodologia de análise deva se
aproximar ao estudo das redes sociais de migração, muito também por compartilhar a ideia de
espaço de uma maneira mais ampla, entendendo a participação de tal categoria na formulação
e na exposição de uma pesquisa.

As condições que dão origem à migração podem ser totalmente diferentes das
condições que a perpetuam no tempo. Ao passo que transformações estruturais nas
sociedades de origem e de destino respondem pelo início dos fluxos migratórios
internacionais, as redes sociais conferem a tais fluxos estabilidade, transformando-os
em movimento de massa. [...] Essas relações não são criadas pelo processo migratório,
mas são adaptadas por ele e, no decorrer do tempo, são reforçadas pela experiência
comum da migração. (SOARES, 2003, p. 240).

16
Tal expressão foi adotada a partir de Handerson (2015), conforme se explicará adiante.
46

Nessa perspectiva, as relações aí inseridas ao processo diaspórico haitiano são


fundamentais. Em artigo de Ramella (1995), depreendemos algumas notas de análise para
compreender este enfoque. Sobretudo, para nós, ele é uma resposta à questão do tempo e do
espaço de maneira relacionais, no qual Doreen Massey aponta quanto ao espaço relacional,
contudo sob o enfoque dos migrantes. Dessa maneira, a análise das redes sociais possibilita
visualizar o migrante numa gama de relações (dentre elas, a comunicação, os cenários políticos,
as interfaces sociais), e admite a análise relacional em plenitude.

Los investigadores que han utilizado el enfoque de la red han demostrado la


importancia fundamental del estudio analítico para comprender los procesos sociales
a través de los cuales de la información pasa e se difunde. Em el tema que nos ocupa,
son estos procesos sociales – y no el encuentro abstracto entre demanda y oferta – los
que influyen directamente, por una parte, la naturaleza y la composición de la
emigración, y por otra, la colocación de los emigrados en el mercado de trabajo de los
países receptores, es decir, sus posiciones y recompensas. Para nosotros, son dos –
entre otros – los temas relevantes que el enfoque de la red nos permite reintroducir y
profundizar: em el primer lugar, el carácter no indiferenciado de los flujos
migratorios; y, em segundo lugar, las oportunidades a las que los emigrados tienen
acceso (RAMELLA, 1995, p. 19).

As redes sociais implicam um processo de articulação entre sociedade e ação, isto é, do


momento da decisão de migrar, seus sentidos e suas perspectivas sociais e subjetivas de quem
migra, e que constituem socialmente relações de vida, e mobilizam não só o sentido de migrante
no lugar que chega, como suas relações interpessoais, sua condição de sujeito e de grupo
coletivo, suas articulações de sobrevivência e de escolhas.
Essas redes, vale ressaltar, são articulações que promovem, no espaço de grupos
migrantes, processos e relações, assim como agenciamentos. Diferenciá-las das demais redes é
necessário, no sentido de que o conceito de rede pode abrir um debate mais amplo, no qual não
abarcamos aqui.
As redes sociais de migração, em conceito estimulam estudos no campo da geografia e
das relações de poder, em especial ao estudo das redes globais e locais entre espaços, lugares e
territórios, se alimentando mas também formando novas maneiras de visualização: o espaço de
hoje poderá ser o lugar de amanhã, assim como um território e vice-versa.
As redes, dessa maneira, são as que costuram oportunidades para os migrantes. Fica
claro essa análise ao ouvirmos os haitianos e suas formas de representatividade no Brasil,
facilitando não só o acesso a condições de trabalho, como também a moradia, inserção nos
grupos e no sentido de diáspora remetido por Handerson.
47

Autores como Soares (2003), Ramella (1995) e Massey (1987) são essenciais ao
entendimento dos processos histórico e geográfico que culmina nas redes de imigração de
haitianos no Brasil.
Encerrando a parte conceitual, quanto à operacionalização, vemos a importância de
entrevistas semiestruturadas, isto é, que possuem uma rota comum a partir da hipótese do
pesquisador. Ela não segue um roteiro detalhado de perguntas, mas uma direção que facilita o
processo da entrevista. Diante das dificuldades entre imigrantes de compreensão de
determinadas palavras em português, assim como da facilidade na transcrição destas, seja em
francês ou em português, a liberdade das perguntas, ainda que seguindo determinada direção,
facilita a prática de pesquisa conforme o enunciado.
***
Foram elaboradas entrevistas in loco, tanto com haitianos, quanto com representantes
que auxiliaram no processo de inserção política e social dos imigrantes haitianos no Brasil em
lugares de passagem e de permanência de grupos haitianos, em especial Acre como lugar de
chegada, São Paulo como cruzamento entre mobilidade e permanência e Rio Grande do Sul
como cruzamentos de permanência e mobilidade. As mesmas se deram com imigrantes
haitianos, representantes de instituições ligadas aos imigrantes e gestores locais, na proposta
também de entender coletivamente e auxiliar a partir de mecanismos analíticos o papel da
gestão pública e da coisa pública no cenário da imigração no Brasil, na realidade e no contexto
vivido por essa sociedade.
Optou-se pela não utilização de gravador na maioria das entrevistas. Essa alternativa,
assumida com risco se justifica pelo caráter invasivo em que muitas vezes a conversa gravada
afeta o conteúdo e a empatia nas conversas para a pesquisa, ainda mais no caso em que grupos
migrantes sofrem adversidades em várias camadas do tempo e do espaço. Isso possibilitou
também a tradução simultânea de boa parte das conversas em francês para o português, como
se verá nos capítulos adiante.
Os trabalhos de campo se dividiram em três momentos: houve um trabalho de campo
na cidade de Rio Branco, Estado do Acre, utilizando entrevistas informais com representantes
do governo e da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Acre, uma das responsáveis pelo
Abrigo na cidade, bem como a obtenção de dados importantes sobre entrada e saída de
imigrantes de diversas nacionalidades, que foram compiladas, trabalhadas e expostas no
decorrer da tese. Esse trabalho de campo ocorreu em Fevereiro de 2015. Esse campo foi
importante para conhecer parte importante da rota pela fronteira brasileira, assim como os
48

desdobramentos da imigração haitiana. Desse trabalho de campo, obtivemos informações e


dados muito importantes para as análises empíricas do processo.
Em São Paulo ocorreram dois trabalhos de campo que fazem parte das entrevistas e
relatos obtidos: o primeiro em novembro de 2014, em ocasião ao Seminário Vozes e Olhares
Cruzados, executado pela Missão Paz e Casa do Migrante, e um trabalho de campo mais focado
aos relatos da conjuntura do Estado e das organizações bem como entrevistas com imigrantes
haitianos em Março de 2017, realizado na Casa do Migrante e na Missão Paz, assim como no
Centro de Referência e Apoio ao Imigrante – CRAI, administrado pela da Prefeitura de São
Paulo, em grande medida no Bairro Liberdade.
Outro importante trabalho de campo foi no Estado do Rio Grande do Sul, onde
obtivemos entrevistas abertas com lideranças locais, grupos haitianos de mobilização e
representantes associados ao tema, percorrendo parte da chamada Serra Gaúcha, importante
ponto de chegada e permanência de haitianos no Brasil. Nesse trabalho, percorreu-se um trajeto
feito pelos imigrantes tanto para deslocar-se aos locais de trabalho, em geral fábricas e
frigoríficos, quanto encontrar amigos, parentes e familiares que estaria em locais próximos,
passando por Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha, Encantado e Lajeado. Esse percurso
se deu parando por Caxias do Sul e Encantado por 1 a 3 dias, e percorrendo de ônibus as demais
cidades. Houve também uma passagem para Nova Petrópolis em 2018, para ratificar
informações do capítulo 5.
Optou-se em utilizar o máximo possível das impressões, dos relatos e das perspectivas
tanto dos migrantes quanto dos seus gestos no ato das entrevistas. Por isso, o recurso mais fácil
para alcançar essa gama de considerações foi o formato de relato, que será visto principalmente
na ida de campo ao Acre, mais delineada no terceiro capítulo deste trabalho. Para tanto, utilizou-
se, especialmente para versar tais relatos, o uso da primeira pessoa.
No caso dos campos da cidade de São Paulo e das cidades visitadas no estado do Rio
Grande do Sul, o relato mescla com entrevistas mais consolidadas no formato semiestruturado,
e o recurso aí empregado para obter o máximo possível destas foi o jogo entre agenciamentos
e geometrias de poder, delineado de forma mais sistemática no quarto capítulo.
Tais perspectivas não são nem estão paradas em um tempo e/ou em um espaço, elas se
mobilizam e se movimentam tal como as pessoas também. O movimento da cidade é inerente
ao movimento de transformação da própria cidade e no como, onde e pelo que ela se movimenta
cotidianamente, coetaneamente.
49

2 CAPÍTULO II
IMIGRANTES ESTRANGEIROS NO BRASIL, AS POLÍTICAS E AS
RELAÇÕES: CARTOGRAFIAS DESDE O HAITI

2.1 Brasil e Haiti – Século XIX: das transformações políticas, sociais e econômicas

No século XIX ocorreram várias transformações temporais e espaciais do mundo


ocidental, decorrentes das revoluções burguesa e industrial, que acarretaram novas formas de
conhecimento e de dimensão do mundo. As disputas políticas tornaram-se mais sutis conquanto
maior o avanço das estratégias e dos mecanismos de atuação e forma do poder.
Essa porção do assim chamado Velho Mundo não é nem metade da porção conhecida,
entre Oriente e Ocidente. Com diversidades culturais, problemáticas e complexidades que vão
desde a sua exploração pelas metrópoles aos desencadeamentos que levam a transformações
culturais e sociais, países como, por exemplo, da porção do Caribe e da América Latina, tratados
como colônias de exploração, obtiveram conquistas, autonomia e liberdade anos após suas
ocupações. Ocupação por sinal violenta e opressora, com o massacre de milhares de nativos e
destruição de muitos grupos culturais distintos.
É nesse sentido que para contextualizarmos Brasil e Haiti no século XIX, precisamos
entender seus contextos de exploração e submissão frente a um conhecimento e um poder não
maior que o desses países, contudo que define e determina sua superioridade por razões que
levarão às diferentes matizes dos processos políticos de ambos os países.

2.1.1 O Brasil no século XIX

No Brasil, as políticas imigratórias passam por um percurso histórico – e geográfico –


que começa ainda no seu processo de “colonização” e se intensifica ainda no período
escravocrata. A ascensão do capitalismo industrial a partir do século XVIII possibilita, na lógica
da produção e reprodução do capital e do trabalho, o movimento mais dinâmico de migrantes
entre outras fronteiras e continentes, em especial, da classe trabalhadora da Europa para a
América do Norte e do Sul, entre 1810 a 1930. Por essa época que o Brasil recebe,
especialmente no auge do sistema cafeicultor, maciços fluxos de estrangeiros do continente
europeu.
50

Mas esses movimentos e suas estratégias políticas no Brasil são processos decorridos
de várias articulações. Eles representam processo de povoamento induzido desde as origens de
sua ocupação pelos portugueses, e que no século XIX torna-se latente com o processo político
que culminou na chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Além disso, ocorre
o crescimento da ideia de liberdade entre negros e mulatos, acentuada entre o início e a primeira
metade do século XIX17, até a sua Abolição em 1888.
Contudo, o número de negros escravos, ou mesmo os alforriados em situação de tortura
física ou psicológica não deve ser esquecido, ainda mais pelo seu papel constituinte na atuação
e no funcionamento da economia exploratória como no Brasil. A chegada dos europeus não
atingiu a subserviência e os sucessivos descasos para com a maioria negra do país, no mais
escamoteou relações conforme um projeto conveniente para países europeus e para e elite
imperial brasileira.
Azevedo (1987, p. 109) em seu clássico “Onda negra, medo branco” analisa as práticas
e discursos que motivaram a aceitação do movimento imigrantista europeu para o Brasil. Uma
das principais causas era o movimento cada vez maior da “onda negra” iminente e
revolucionária que acarretaria em conflitos entre escravos negros e senhores brancos nas
fazendas. A necessidade, portanto, de definir e avaliar qual imigrante deveria trabalhar nessas
fazendas de café do país tornou-se necessária a fim de conter maiores riscos, o “medo branco”.
Para Seyferth (1999; 2002; 2014), existe uma diferença importante entre a chegada de
europeus antes do século XIX e durante esse período. Primeiro, pela forma e pela importância
dada aos imigrantes, suas definições sob várias complexidades. É notório que a partir do século
XIX, com a chegada da Corte portuguesa, se classifica o imigrante, isto é, se caracteriza e se
compõe um imigrante, um estrangeiro no Brasil. Em segundo, da mesma maneira que se define
e se “amarra” uma ideia de imigrante, escamoteia-se uma maioria da população negra, migrante
e forçada no país: os escravos traficados eminentemente a partir do século XVII para o Brasil.

17
“Em que pesem as variações de capitania a capitania (no extremo norte e no extremo sul, por exemplo, havia
predomínio indígena) e as imprecisões dos dados demográficos disponíveis, a população colonial brasileira no
início do século XIX guardava as seguintes proporções: 28% de brancos, 27,8% de negros e mulatos livres, 38,5%
de negros e mulatos escravizados, 5,7% de índios[...] A gênese dessa grande população livre negra e mulata se
deu, fundamentalmente, pela dinâmica do tráfico transatlântico de escravos acoplada à dinâmica da alforria. A
escravização dos africanos, seu transporte para o Brasil, as atividades que aqui desempenharam como escravos
(em geral, nas tarefas rurais e urbanas que não exigiam qualificação), a recomposição dos laços familiares e
culturais, a produção de descendentes, que, em uma ou mais geração, certamente obteriam a liberdade via
manumissão: todos esses movimentos e outros mais podem ser tidos como parte de um processo institucional em
larga escala de transformação de status.” (MARQUESE, não paginado, 2006).
51

Essas duas perspectivas e diferenças irão tensionar em todas as escalas até o século XXI,
pois são constituintes de políticas completamente distintas de imigração. Da mesma maneira,
portugueses e espanhóis formam no início do século XIX os principais grupos migrantes. Tal
como Azevedo (1987) aponta:

Assim como os escravos, também os trabalhadores estrangeiros constituíam motivo


de alarme para os deputados, na medida em que duas greves e atos de insubordinação
tornavam a tão propalada superioridade do trabalho livre sobre o escravo, ou do
trabalhador branco sobre o negro, uma quimera de mau gosto (AZEVEDO, 1987, p.
123).

As políticas de imigração começam a ser restritivas neste momento. A restrição na


política imigratória no Brasil é uma marca que se define pela recorrência de suas ações. Sua
presença, ainda que mais ou menos acentuada pelo tempo, nunca cessa. É ainda em 1818 que
surge o primeiro decreto autorizando suíços a estabelecer pequenas colônias de produção
agrícola na Bahia e no Rio de Janeiro, sob ordens de Dom João VI. Nessa primeira formalização
de uma política para imigrantes que o caráter restritivo transparece, conforme Seyferth (2002,
2014), essa política propulsionou a associação do imigrante ao colono, atribuindo-o às
atividades não só de colonização, mas de interesse agrário, como direcionou a entrada de
imigrantes a políticas de desenvolvimento agrário e trabalho, as quais vamos analisar mais a
fundo posteriormente.
Outra característica importante apontada pela autora, é a demanda por imigrantes
adeptos à religião católica. E é nessa demanda, tal como a de ser uma nacionalidade branca e
europeia, que se apontam as primeiras restrições. A recepção de imigrantes torna-se tributária
à restrição.

A questão racial emerge no discurso imigrantista, inicialmente de modo indireto, mas


bem preciso, quando são hierarquizados os imigrantes ideais. Ao condenar o poder
temporal da Igreja católica, ao pedir liberdade de culto, casamento civil, o fim da
escravidão para melhorar a imagem do Brasil no exterior, os partidários da
colonização com pequena propriedade familiar tinham em vista o branco europeu,
inclusive o protestante dos países germânicos e nórdicos [...] A qualificação do
imigrante passava, em primeiro lugar, pela condição de agricultor: a natureza do
trabalho no sistema de colonização e na grande propriedade cafeeira exigia lavradores
e artesãos, profissões privilegiadas na legislação imigratória, inclusive no Estado
Novo. Mas, também, não existiam dúvidas quanto à cor da pele do imigrante ideal,
pois a maioria dos que trataram do problema imigratório descartaram como
inconveniente, e até perniciosa, qualquer imigração asiática, africana e de negros
americanos, com o argumento, qualquer que fosse a época, da ameaça à “formação
nacional”. Em suma, negros e amarelos, para usar categorias consensuais de cor, eram
vistos como elementos perturbadores do processo de formação de uma nação branca
e civilizada (SEYFERTH, 1999, p. 211).
52

Após a independência do Brasil, em 1824, chegam os primeiros grupos alemães “a


serviço do imperador”18. Tais grupos se estabeleceram, conforme a via pública em terras de até
setenta e cinco hectares em áreas de assentamento do Rio Grande do sul. Nota-se que tal posição
tornara-se estratégica para o império, muito pelas insurgências transfronteira decorridas na
região, principalmente pela forte ligação entre os países “hispanohablantes” Argentina e
Uruguai. Contudo, vários fatores impulsionaram a entrada via agenciamento da vinda de
imigrantes pelo Estado.
Vale destacar que à época acontecimentos na Europa como um todo mobilizam uma
série de relações antes estabelecidas, como por exemplo o imperialismo vinculado ao
capitalismo mercantil e o discurso de nação, que são trocadas pela ascensão das burguesias e o
nascente capitalismo industrial. A liberdade agora é um valor, e portanto deve-se pagar por ela.
O sistema escravagista torna-se obsoleto nesse sentido, e politicamente ocorre um
tensionamento entre nações europeias tanto para mitigar o tráfico negreiro quanto para escoar
uma nascente produção industrial.
Não obstante, no Brasil acaba-se gerando um debate entre o uso da força de trabalho
europeia em detrimento da força de trabalho do escravo. Todo o processo institucional
apropriado desse discurso de desenvolvimento do capitalismo, sobretudo da Inglaterra e da
recente independência dos Estados Unidos, marcam profundamente o século XIX.
Importante também é a relação com outros acontecimentos no continente americano,
em especial na região caribenha, na Ilha de São Domingos: a revolução que tornou em 1804,
os negros livres. Esse movimento trouxe à tona uma série de questões quanto à evolução e
manutenção do trabalho escravo, e fundamentalmente da ascensão da população negra como
força de trabalho assalariada. Diferente da recorrente assertiva de inferioridade intelectual e
moral entre as "raças" branca e negra, o medo é o mote das relações de subserviência que
acentuam os processos de subjetivação. E é desse medo que o capitalismo, na ascendente crise
imanente, se retroalimenta.
Não à toa, também, as primeiras colônias de imigrantes no Brasil são incentivadas para
“civilizar” a cultura negra e cabocla, antes mesmo de 1888 (Lei da Abolição). Porém, em 1850
é assinada a Lei Eusébio de Queiros19, que paulatinamente finaliza o comércio de negros via
tráfico negreiro. Essa década foi a de intensificação na entrada de imigrantes alemães e de
origem latina (sobretudo italianos, portugueses e espanhóis). Contudo, o tráfico interprovincial

18
Considerando uma população européia de maioria protestante, contradizendo as primeiras políticas instituídas
para migrantes, neste momento. Para maiores informações sobre a imigração alemã: Seyferth (1999; 2002; 2014).
19
Lei 581 de 4 de Setembro de 1850.
53

permanecia rumo às principais fazendas de café do Rio de Janeiro e de São Paulo.


Outro aspecto que apontamos é que a questão imigrante permaneceu sempre tributaria
de um determinado setor ou ministério do aparelho de Estado, conveniente aos interesses e
prioridades do momento. Se hoje (como veremos adiante) o atual Ministério do Trabalho e
Previdência Social é responsável pela regularização de imigrantes (os refugiados são regidos
pelo Ministério da Justiça), no século XIX era o Ministério da Agricultura, isto é, as ações
políticas eram convenientes conforme situações emergiam, mas não consideravam os processos
e as práticas dos imigrantes.
Afora o Brasil, países como Alemanha e Itália passavam por uma série de
transformações ligadas às mudanças do capitalismo industrial, dentre elas a rápida urbanização,
o que gerava angústias e inseguranças a esta liberdade da mão de obra, que se destituía dos seus
meios de apropriação rural para as fábricas na cidade. A migração nesses países começava
localmente com fluxos internos, além dos tensionamentos políticos que tais países culminaram
no século XX para as duas Guerras Mundiais.
As políticas de subvenção a imigrantes italianos começam por volta de 1870, e a
preferência por estes, conforme aponta Seyferth (2014), se dá por uma crítica ao
“enquistamento” étnico intensificado pelos primeiros grupos alemães, tal como as contradições
culturais e as exigências proibitivas de incentivo a tais movimentos.

A preponderância de imigrantes alemães em áreas de colonização até a década de


1870, e o empenho do governo imperial para atrair colonos dessa origem – avaliados
por ministros e altos funcionários públicos como excelentes agricultores – foram
criticados por nacionalistas preocupados com um possível “desvio” da formação
nacional luso-brasileira e católica, em razão do distanciamento cultural, lingüístico e
religioso dos alemães. Nesse caso, a “onda germânica e protestante”, imaginada como
uma invasão, era considerada um risco à integridade territorial do país devido às
supostas dificuldades de assimilação (SEYFERTH, 1999, p. 119).

As reações não pararam por aí. O interesse ao branqueamento do nacional a fim de


espraiar a lógica do trabalho impulsionou dois grupos étnicos e seus respectivos ethos que
incutem pré-conceitos entre nações diversas: por um lado, os alemães com seu ethos da nação,
no qual se faz um ser alemão a partir de sua cultura fortificada independente do lugar em que
estiver, e os italianos com seu ethos do trabalho, superiorizando sua forma de visualização do
mundo e das práticas de diferentes culturas. Tais ethos se complementam no que se trata às
raízes culturais de um país marcado pela imigração via interesses personalistas do Estado, mas
ao mesmo tempo se embatem com preconceitos e pré-julgamentos.
Trabalhadores alemães inferiorizando trabalhadores italianos inferiorizando
54

trabalhadores brasileiros.
E todos, sem exceção, a ignorar os negros.
Existia, portanto, uma série de fragilidades no processo de inserção dos imigrantes no
Brasil que começam a despontar na segunda metade do século XIX, sobretudo as noções de
cidadania e participação já crescentes na Europa pós-revoluções burguesas, assim como uma
massa de migrantes pobres e escravos que sobreviviam frente a todos os tipos de adversidades.
Enquanto tais processos eram mediados com decisões frágeis e carimbados pelos interesses das
elites agrícolas, individualistas frente às suas demandas, os países de ascendente capitalismo
industrial tentavam contraditoriamente escoar sua produção industrial.
Observa-se algo mais amplo frente à criação das políticas de imigração no Brasil que
formam um processo que tem repercussões até os dias atuais. A função e a forma da imigração,
e seu investimento, tinham dois alicerces principais: a raça e o trabalho. Elas irão mais à frente
se intensificar, à medida que os interesses representativos aos diversos processos de acumulação
se diversificam.
Faz-se necessário depreender a relação entre as políticas de imigração no Brasil e as
heranças sociais indicadas nesta linha – políticas direcionadas eminentemente para a relação
trabalho e exploração de recursos materiais no país. Essas políticas promoveram um processo
de estratificação social e do trabalho e se tornaram produtos de uma série de discursos que
futuramente inferiorizariam e marcariam estereótipos com determinados grupos migrantes,
dentre eles, os haitianos. Tais reflexos marcariam diretamente suas estratégias de permanência
no Brasil.

2.1.2 O Haiti no século XIX

Para a independência do Haiti ser ratificada e este ser considerado livre das ordens
coloniais, um lento e gradual processo de abertura com muito sangue e muita guerra foi
necessário. O cenário é que levou à independência de um país com economia fundada pelo
latifúndio e pela exploração do trabalho escravo.
Ainda no século XVIII, a escravidão tinha traços de profundo massacre e subserviência
vinda das classes mais nobres comandadas pela França. Alguns aspectos foram importantes
para os movimentos insurgentes no final deste século:
1 – As revoltas parisienses que culminaram na fragmentação social e política entre jacobinos e
girondinos, resultando mais tarde na chamada Revolução Francesa;
55

2– A criação em seguida da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão;


3– A ascensão da classe formada sobretudo por mulatos a partir de tratados acordados com a
assembleia francesa.
Contudo, o levante contra os colonizadores não aprofundou as principais reivindicações
entre a população caribenha, em sua maioria negra e privada da liberdade tanto civil quanto
política. Diante do descaso e das torturas sofridas pelos escravos, em contradição a uma
realidade que apregoava liberdade, fraternidade e igualdade, os movimentos insurgentes negros
tomaram cada vez mais força a partir de uma palavra em comum: liberdade. C. R. L. James
(2010), em “Os jacobinos negros”, aponta que essas revoltas negras são em grande medida um
movimento que é preciso entender como de classe em relação à discussão racial. Não que essa
discussão seja escamoteada, mas ela advém de uma complexidade maior, pois os escravos,
diferentemente dos mulatos e dos brancos, eram destituídos de si mesmos.
A influência das ideologias da Revolução Francesa foi crucial no entendimento dessa
liberdade, na apreensão disso. Mas, ainda que os brancos, colonizadores e os mulatos,
detentores de parte do poder de São Domingos, se promovessem à custa das “carcaças”
jacobinas e girondinas, a liberdade dos negros sempre era uma discussão secundária, ao ponto
de estar sempre fora de cogitação por parte do próprio movimento revolucionário francês. O
século XIX nasce para o Haiti com um amargo gosto de uma revolução que acentuou as
discrepâncias sociais, paulatinamente demarcando classes sociais muito distintas.

A colônia fora devastada por doze anos de guerra civil e contra a ofensiva estrangeira.
Dos trinta mil homens brancos que havia na colônia em 1789, uma parte havia sido
morta e outra emigrara, de tal forma que então restavam apenas dez mil. Dos quarenta
mil mulatos e negros livres, sobraram ainda trinta mil; enquanto, dos quinhentos mil
negros escravos, talvez uma terça parte tivesse perecido. As fazendas e os cultivos
foram arruinados em larga escala. Por aproximadamente dez anos, a população,
anteriormente já bastante corrompida, havia sido treinada para matanças e impregnada
de violência. Hordas de saqueadores vagavam pelo campo. A única força disciplina
era o exército. E Toussaint instituiu uma ditadura militar (JAMES, 2010, p. 222).

Toussaint L’Ouverture tornou-se o protagonista da revolta, incialmente uma pequena


insurgência, mas recorrentemente vitoriosa às tentativas inglesas, espanholas e sobretudo
francesas de “recolonização” da Ilha de São Domingos, que contemplava Haiti e a posterior
República Dominicana. Não era previsível às elites eurocêntricas um soldado negro, ainda no
século XVIII, construir um grupo extremamente organizado e consciente da necessidade de
liberdade. Contudo, a organização dos soldados haitianos dava frente à miserabilidade da
população negra, ex-escrava, à procura de uma liberdade já distante.
56

Nesse sentido, o mais interessante aspecto da política haitiana no século XIX é a


consolidação das elites, elites essas negras, generais e soldados do alto escalão de L’Ouverture.
A educação de seus filhos era francesa, portanto europeia e branca. A desigualdade era
acentuada diante do caos de uma guerra por uma liberdade de cor e classe. A violência era,
portanto, o mote da causa. E, conforme a França se posicionava a fim de destituir o governo
insurgente e retomar a escravidão, mais essa violência marca as almas dos negros.
Não por acaso, ao conversar com um haitiano no Abrigo da cidade de Rio Branco, a
primeira pergunta foi se conhecia a história de luta do povo negro do Haiti. Ao afirmar
positivamente, notava-se a emoção àquela história que marca seus ancestrais, com lágrimas de
morte e de vida.
O início do século XIX, ainda pela busca da independência no Haiti também tem uma
reviravolta política: com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, os ideais revolucionários
entram em apatia na França. A ilha caribenha era a principal colônia francesa, e entre o
imperialismo do imperialista e o posicionamento de negras e negras, Bonaparte não hesitara em
comandar com os mesmos ritos de violência relatados pelos primeiros negros levados para a
Ilha, em resposta à destituição de sua condição de livres. Acaba por não reconhecer a
Constituição do Haiti promulgada por Toussaint em 1802, e manda tropas francesas aos montes
para a ilha. Sob auspício de seus comandantes mais leais, Dessalines e Christophe, Toussaint é
preso em 7 de Junho de 1802, e acabou morrendo em 1803.
Em direção à França, Toussaint L’Ouverture disse: “Ao me depor, cortastes em São
Domingos apenas o tronco da árvore da liberdade. Ela brotará novamente pelas raízes, pois
estas são numerosas e profundas (JAMES: 2010).”
Ao mesmo tempo, Dessalines ascende como principal líder, e é o mesmo que declama
a independência em 1 de Fevereiro de 1804.

A ilha recupera seu nome indígena, Haiti, que significa país das montanhas. Surge a
bandeira nacional, simbolizando a união entre os negros, representados pela cor preta,
e os mulatos, cujo símbolo é o vermelho. A divisa: A liberdade ou a morte
(SEITENFUS, 1994, p. 31).

Vale destacar o papel dos Estados Unidos, não só no financiamento direto e indireto de
São Domingos, quanto da região da América Central, que se intensificará no século seguinte de
uma forma mais incisiva na dependência para com os norteamericanos. As estratégias do
governo americano se aproximam ao ditado “comer pelas beiradas”, pois ao mesmo tempo em
que davam instrumentos e investimento para o loteamento de terras entre a população haitiana,
57

subsidiava a guerra em todos os lados, para posteriormente a definir e definir politicamente os


países o qual se tornavam colônias ianques20.
No decorrer do século XIX, o poder permuta entre os principais nomes de confiança da
revolução, todos ex-escravos, generais e soldados desta: Dessalines, Christophe, Pétion e
Boyer. Este último consegue novamente a unificação do que mais tarde será a República
Dominicana, parte hispânica da ilha, em 1818, além do finalmente reconhecimento do governo
francês à independência da mesma.

Ele consegue estabelecer uma ordem jurídica mínima e obtém o reconhecimento de


jure da independência haitiana, mediante o pagamento de uma indenização de 150
milhões de francos à França. Mas sua grande vitória foi a anexação da parte oriental
da ilha, de influência espanhola, ao Estado do Haiti. Boyer será destituído por um
golpe militar, apoiado pela aristocracia do norte. Esse grande erro provoca, no ano
seguinte, uma revolta em São Domingos que declara a secessão e funda a República
Dominicana em 27 de Fevereiro de 1844. (SEITENFUS, 1994, p. 34).

Haiti e República Dominicana tiveram marcas no processo de independência e


perspectivas diferentes deste. A segunda, após sua fundação, torna-se detentora de uma
organizada produção de cana-de-açúcar. Hoje a principal rota de haitianos, que por sua vez,
após um século e meio de interferências e paulatino processo de violência interna e externa, se
vê mais fragilizado. É, aliás, no governo do General Boyer que se criam as primeiras milícias
do Haiti, os Zinglins, precursores dos Toutons-Macoutes, a polícia paralela da “dinastia” dos
Duvalier, no século XX.
A consolidação das redes de violência, tanto na fase imperialista quanto na guerra da
independência, da mesma maneira que constituíram um senso de liberdade para a sociedade,
cristalizaram o formato europeu de classes sociais, e principalmente, a militarização do sistema
político. Esse sistema político abraçava a corrupção desde sua dependência francesa, e deixou
suas heranças, como veremos adiante. Interessante são os apontamentos de Marcelin (2010)
sobre o legado político e econômico do Haiti que tornou o terremoto de 2010 uma tragédia em
relação a outros países que sofrem tais abalos ambientais: a fragilidade histórica marcada pela
corrupção, pela violência e pela dependência21.

20
Os apontamentos de James (2010), Marcelin (2010), Grondin (1985), dentre outros que ressaltam o papel dos
Estados Unidos no final da revolução, em 1804, até mesmo quando presenteia o então imperador, Jean-Jaques
Dessalines com a própria coroa, e financia terras para os proprietários vencedores, isto é, membros do alto exército
revolucionário.
21
"Com uma estimativa de 100 escravos por amo ou capataz em uma típica plantation de cana de açúcar, os perigos
implícitos nas circunstâncias precisaram ser fortemente destacados para aqueles cujos poderes coercitivos foram
virtualmente as únicas coisas que ficaram entre eles e a ameaça presente de rebelião aberta por uma população
inquieta. [...] Isto, de fato, foi a marca, o sine qua non, do status e do poder do 'mestre' enquanto fiador, por quase
58

Também ocorrem no século XIX as primeiras emigrações do Haiti. Elas possuíram em


grande medida três frentes. A primeira ligada aos franceses e brancos que viviam na ilha, após
anos de violência ativa para com negros forçados à escravidão, se viram amedrontados
conforme as ameaças destes. Estima-se que 80% de imigrantes europeus saíram ou foram
mortos durante a revolução e após a independência. Coincidentemente, Dessalines, já como
imperador, relevou a presença de americanos e ingleses.
Já a segunda frente, de escravos à mercê dos processos revolucionários e das ordens
francesas, foram desembarcados em Cuba, e lá constituíram a massa de trabalhadores na
produção canavieira. Tal rota também foi utilizada no início da década de 1800 para negros
desertores da revolução a fim de chegar aos Estados Unidos.
Os Estados Unidos são, dessa maneira, a principal frente e talvez a mais importante.
Além dos negros que se refugiavam muito alheiamente aos acontecimentos de São Domingos,
houve os que fugiram das progressivas mortes e questões envolvidas com uma guerra
revolucionária. Uma parte usou essa rota para retorno à África, assim como para chegar às
cidades francesas. Uma maioria se instalou nos Estado da Lousiana, e em cidades como Nova
York, Nova Orleans, dentre outras. Várias organizações filantrópicas aportaram a entrada
destes imigrantes e os mesmos até obtiveram certo prestígio político e social, que foi sucumbido
pelas questões raciais afloradas neste país. A citação a seguir, de Laguerre (2005), embora
longa, é essencial para se ter uma análise do contexto desses emigrantes fora do Haiti:

As comunidades diaspóricas Haitiano-Americanas do século XIX deixaram sua marca


em algumas cidades onde residiam. Por exemplo, elas fundaram conventos católicos
para mulheres religiosas em New Orleans, Louisiana; Baltimore, Maryland; e
Monroe, Michigan; bem como escolas nesses estados. [...] Adicionalmente, tais
mulheres religiosas estiveram envolvidas em cuidados médicos nestas comunidades.
Em New Orleans, a comunidade Haitiano-Americana proveu uma base organizacional
e litúrgica para a Igreja Voodoo de Louisiana e através do seu Comite des Citoyens
(Comitê de Cidadãos), proveu as principais reivindicações na Suprema Corte, no caso
Plessy V. Ferguson, o qual culminou na decisão "separado mas igual" de 1986. Entre
1820 e 1870, aproximadamente 1000 haitianos que se assentaram nos Estados Unidos
voltaram para o Haiti. [...] A segunda geração começou a concorrer a cargos políticos
eletivos após a Guerra Civil. Alguns destes foram eleitos para o Congresso, como
foram os casos de Robert C. De Large (1868 a 1870) e Alonzo Jacob Ransier (1873 a

100 anos, de seu sucessivo controle sobre o que foi intrinsecamente uma profunda e volátil configuração sócio-
demográfica. Isto é um legado cultural do regime de plantation que não foi derrubado pela Revolução nem caiu
nos anos subsequentes. Hoje a afirmação atávica de dominância pessoal através de excessiva arbitrariedade do
poder - seja por exações físicas ou outras formas de violência - permanece nas dinâmicas sociais e políticas
haitianas em diversos níveis, da família ao Estado. [...] Como haitianos frequentemente colocam, é melhor ser
temido que respeitado. Na violência do período revolucionário (1791-1804), a arbitrária brutalidade do regime de
plantation foi mantida, em parte, por aqueles que por tanto tempo a perpetraram, incluindo não-combatentes.
Todos os lados, cada um com suas razões, sucumbiram a este impulso mais do que resistiram" (MARCELIN,
2010, p. 6, tradução minha).
59

1875), os quais eram da Carolina do Sul, e para legislaturas estaduais, caso de Cesar
C. Antoine (1868 a 1872) em Louisiana. Entretanto, devido às leis de Jim Crow e às
atividades criminosas da Klu Klux Klan durante o último quartel do século XIX,
Haitiano-Americanos do Sul profundo foram re-marginalizados, tornando-os
inelegíveis para cargos estaduais e nacionais como antes, devido em parte à retirada
de seus direitos de voto. [...] Durante um agudo período de tensão "racial" em
Charleston resultante da repressão da Conspiração Versey (1822), imigrantes
haitianos foram alvos da comunidade euroamericana enquanto potenciais
colaboradores dos conspiradores, então alguns imigrantes buscaram refúgio no norte,
onde outras comunidades haitianas apareceram. A comunidade haitiana da
Philadelphia proveu um nicho para a maioria destes novatos (LAGUERRE, 2005, p.
829, tradução minha).

As situações de conflito e violência, aliadas ao medo de nações no suporte e acolhimento


de imigrantes pobres e negros não são exceções à regra. Como vimos no tópico anterior, alguns
países como o Brasil foram muito claros em sua política para imigrantes. Deram todo o suporte
material e financeiro a fim de um objeto de interesse muito explicado: o branqueamento
biológico e social da população. O preconceito e a desonestidade presentes nesse lema abriram
espaços cada vez mais tensos entre as definições de migrante, conforme noções muito
distorcidas de política e democracia no mundo. A própria objetivação de imigrante conforme
uma cifra, para cima ou para baixo, caracteriza parte desse processo.
Não nos cabe analisar uma revolução que reivindicava liberdade com violência e no
qual houve seus erros, sem entendermos toda a violência gerada quando tratamos a cor, a raça
de um determinado ser como potencialmente perigosa ou amedrontadora. Eis a essência dos
conflitos que culminam nas principais adversidades de grupos haitianos no Brasil hoje, como
adiante se trará.

2.2 O Século XX para o Brasil e para o Haiti: principais consequências da imigração e da


emigração

Tanto as políticas de imigração no Brasil, como as complexidades que envolvem a


emigração dos haitianos são produzidas a partir de vários outros protagonistas, que na realidade,
somos todos nós. Isso fica claro quando intensificam-se nas décadas finais do século XX, as
medidas restritivas à migração internacional.
Ao mesmo tempo, a formação de grandes Estados aliados ao capitalismo e à
financeirização das relações políticas e econômicas que acabam transformando as relações
sociais promove novas problemáticas e novos conflitos principalmente entre os mais
desfavorecidos, onde os migrantes são os mais atingidos
60

2.2.1 O Brasil no século XX

Ao traçarmos um histórico mais analítico das políticas brasileiras no século XX,


endossamos que a política ativa de imigração até a Segunda Guerra era uma política eugenista.
Após a Segunda Guerra a política passa a ser principalmente passiva, por dois motivos
principais: pela continuidade dos interesses personalistas e pelo tratamento de acomodação
frente aos imigrantes.
A partir do século XX, o discurso do branqueamento torna-se mais claro, ainda mais ao
imigrante para o trabalho. O final do século XIX foi marcado pelo fim da escravidão e pela
recente proclamada República. Ratifica-se neste momento a entrada de estrangeiros para o
desenvolvimento econômico e social, onde os “nacionais” e a população negra nada alteraria
essa questão. Negras e negros foram calados física e politicamente por toda a história política
nacional.
Para Koifman (2012), Lesser (2001) e Seyferth (1999; 2014), o imigrante ideal no início
do século XX possuía quatro principais condições: ser agricultor (portanto o colono), ser branco
e cristão, não possuir deficiências físicas e “morais” e não apresentar antecedentes de
insubordinação. De alguma maneira grupos migrantes de diversas nacionalidades contestavam
as intransigências dos grandes proprietários, ainda sob a égide da casa grande.
Nesse contexto e contraditoriamente é assinado em 1895 o primeiro tratado que permitia
a entrada de imigrantes japoneses no Brasil. Conforme Jeffrey Lesser (2001), de 1908 a 1914
entraram mais de quinze mil japoneses, atingindo seu auge entre 1924 a 1935, quase cento e
cinquenta mil imigrantes em uma década.

Um certo número de fatores explica o espetacular aumento da entrada de japoneses.


Nos primeiros anos do período entre-guerras, agricultores italianos, em números cada
vez maiores, trocaram as fazendas pelas cidades, e a agitação trabalhista levou os
fazendeiros paulistas a buscar uma força de trabalho mais “dócil”. As políticas de
imigração, nos Estados Unidos, fecharam ainda mais as portas do país aos imigrantes
asiáticos, culminando com a Lei da Origem Nacional, de 1924. As relações
econômicas entre o Japão e o Brasil vinham-se expandindo com rapidez. [...] No
Japão, a economia rural em vias de estagnação aumentava as pressões emigratórias,
enquanto os formuladores de políticas tentavam fazer que deixar o país fosse visto
como um ato nacionalista (LESSER, 2001, p. 171).

Há uma desconfiança mais clara quanto à subvenção de imigrantes no Brasil por parte
dos outros países, ainda que a entrada de imigrantes até 1945 tenha sido significativa. É no
Estado Novo, na ditadura de Getúlio Vargas, que as mudanças no cenário das políticas
61

imigratórias tornam-se significativas por frentes até mesmo divergentes: a entrada de migrantes
em adição à restrição mais marcada por princípios políticos. Outra característica importante são
as relações internacionais dessa época, fechadas pelos conflitos das seguidas guerras mundiais
e pelas relações mais contundentes quanto ao imperialismo e o racismo.
Ainda que os imigrantes japoneses tivessem um senso de “organização” condizente com
os interesses para o Brasil e a política restritiva, o papel do governo japonês a fim de garantir
os direitos dos emigrados foi fundamental para a reivindicação por melhores condições de
trabalho nas fazendas22. Porém, isso aumentou a desconfiança, já presente diante do cenário de
fragmentação nos chamados quistos étnicos. Outro aspecto que se mistura aos eventos desta
época foram as tentativas políticas de caldeamento de grupos migrantes subvencionados pelo
Estado, ora para ratificar os interesses de diversidade e de branqueamento da nação, ora para
restringir tais grupos contestatórios.

Essa forma mais racista de pensar a nação não é única, mas dominou o pensamento
social brasileiro até a década de 30 e, de modo mais subjetivo e eufemístico, persistiu
no Estado Novo, influindo na política imigratória. De qualquer modo, a breve menção
ao ideal de branqueamento é significativa porque ele é incompatível com as
etnicidades formalizadas no Brasil pelos diferentes grupos de imigrantes e chegou a
ser repudiado com veemência em algumas publicações teuto-brasileiras. A partir da
década de 30, diversos recursos de retórica são utilizados para diluir o discurso racial,
mas as práticas voltadas para a imigração e os imigrantes mostram a persistência do
mito e a preocupação com a homogeneidade nacional — cultural e racial. Daí a ênfase
na necessidade de assimilação e caldeamento que redundou na campanha de
nacionalização implantada após 1937 (SEYFERTH, 1999, p. 212).

Mais que incompatibilizar etnicamente o estrangeiro, começara no início do século XX,


ainda que na tentativa de "civilizar" uma população diversa e dotada de escolhas, mesmo
escamoteadas politicamente, a ideia de que o migrante não poderia participar efetivamente
como cidadão no Brasil, simplesmente porque para a política brasileira o migrante não era, clara
e concisamente, um cidadão.

22
“Quando os imigrantes japoneses começaram a entrar no Brasil, em 1908, eles eram vistos como substitutos
dóceis para os militantes europeus. Uma década depois, a lua-de-mel havia chegado ao fim: embora alguns
integrantes da elite continuassem a insistir na perfeição dos novos imigrantes, um movimento antijaponês começou
a surgir. Em fins da década de 1920, a Campanha Anti-Nipônica estava a pleno vapor, frequentemente tendo como
alvo principal as nibonjin-kai (as associações japonesas), que patrocinavam escolas e contribuíam para a
manutenção da cultura pré-migratória, o mesmo papel desempenhado pelas igrejas, no caso dos imigrantes
europeus. Os políticos nativistas centravam-se, em boa medida, em pôr fim a uma “invasão” japonesa, impedindo
os assentamentos na região amazônica, o ‘Brasil original’” (LESSER, 2001, p. 194).
62

Fica muito clara a dicotomia nacional-não nacional com a criação do Conselho de


Imigração e Colonização, responsável por avaliar e julgar os processos de entrada de migrantes
ao Brasil, e fundamentalmente a criação da Revista de Imigração e Colonização, entre 1945 e
1955, responsáveis por disseminar as ideias ratificadas em um século de políticas restritivas,
ainda com a entrada de suíços em 1818. Para se ter uma ideia, Peres (1997), ao analisar os
artigos da revista, encontra análises até médicas para tentar ratificar o migrante como o outro,
o diferente:

Os médicos psiquiatras colaboradores da revista viam com terror a possibilidade da


entrada de “elementos indesejáveis” caracterizados como “a escória da humanidade”.
Esses indivíduos eram representados como tarados, perturbados, neurosados e até
“psicopatas incubados” (PERES, 1997, p. 94).
E ainda:
A política imigratória transformou-se, portanto, em garantia para um futuro
promissor. O Brasil deveria se posicionar como avesso ao “estranho” buscando a
homogeneidade racial que, por sua vez, sustentaria a nação que se formava. A ciência
atrelada ao Estado seria a responsável pela criação do futuro Brasil, livre dos entraves
representados pelos “maus elementos” que vinham de fora, mas também pela
permanência de uma população nativa fraca e doente. A solução era a seleção
eugênica e racial dos imigrantes e o abandono das populações a sua própria sorte,
levando-as a extinção. (PERES, 1997, p. 96),

Ao mesmo tempo em que as restrições se ratificavam sob justificativas eugenistas dos


representantes do Conselho de Imigração e Colonização, o personalismo era bem comum às
práticas de autorização, tal como aponta Koifman (2012). Para além da investigação detalhada
de antecedentes somente àqueles que o governo brasileiro classificava como ameaças e ligadas
a organizações comunistas, ao de família com antecedentes somente em determinados países, a
autorização dependia muitas vezes de cartas pessoais ao presidente Getúlio Vargas, o que
muitas vezes facilitou a entrada de estrangeiros, como também restringiu conforme convinha
politicamente.
Em seu livro “O imigrante ideal”, Koifman analisa documentos e informações
referentes ao auge da política do Estado Novo de restrição à migração e das análises via
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, cuja política imigratória restringiu ativamente “a
entrada de estrangeiros no Brasil tendo como parâmetros critérios eugênicos que abrangiam
valorações, inclusões e exclusões baseadas em uma presumida diferenciação étnica” (2012, p.
39). Para ele, de forma até irônica, o imigrante ideal na política brasileira entre os séculos XVIII
e XIX eram os portugueses, colonizadores do país, e principalmente os suecos, cujos processos
praticamente não existiram e a entrada destes no Brasil foi completamente liberada.
63

Nesse contexto, a imigração japonesa já estava desmontada como política de subvenção.


Conforme Seyferth (1999):

As pretensões de branqueamento não mudaram desde o século XIX; e mais uma vez
são usados critérios pretensamente científicos para especular sobre a inferioridade dos
asiáticos, mudando apenas a etnia perturbadora — entra em cena o japonês, presente
nas estatísticas imigratórias desde 1908 [...] As implicações racistas desse temor são
atenuadas ao sugerir que um “enxerto maciço” de nipônicos só seria admissível após
exaustivos estudos antropológicos para avaliar seus efeitos sobre a população
brasileira. Afinal, o “desejo” do branqueamento prevalece sobre qualquer ciência
(SEYFERTH, 1999, p. 215-216).

A partir de 1934, foi estabelecido o sistema de cotas para migrantes estrangeiros, que
não poderia passar de uma determinada porcentagem e privilegiaria os estrangeiros latinos, bem
como estabelecia as comunidades mistas de imigrantes. Acirra-se a restrição nos termos mais
hostis, e pior, em uma clareza e transparência por parte do processo político.
O final do Estado Novo converge também com o final da Segunda Guerra Mundial, mas
o trabalho do Conselho de Imigração e Colonização, embora substituído pelo Departamento de
Imigração e Colonização em 1952, continuara com a prática personalista de escolher qual
migrante é ideal. Recorrente também foi a pauta na escala mundial, e sob paradigmas de
considerar o refugiado como o europeu. A criação da Organização Internacional dos Refugiados
e do Comitê Intergovernamental para Migrações Européias – CIME, atentando aos interesses
das novas migrações consolidou o vínculo do Estado e da migração.

Os deslocamentos sob os auspícios do CIME tinham uma relação direta com o novo
contexto de desenvolvimento econômico no pós Segunda Guerra Mundial, como
afirmado anteriormente. O estabelecimento de empresas multinacionais na América
Latina, Oceania e África, reincorporou regiões à nova lógica da expansão capitalista.
Concomitantemente, à migração de capitais e empresas seguiu-se à migração de
trabalhadores oriundos de áreas com desenvolvimento industrial mais pretérito cuja
força de trabalho não era necessária dado o processo de reorganização produtiva da
Europa Ocidental no pós Guerra. Assim, o velho binômio exclusão/incorporação,
presente nos deslocamentos populacionais desde o século XIX, foi reatualizado com
o objetivo de fortalecer os laços de (inter)dependência econômica do mundo
capitalista (PAIVA, 2008, p. 8).

O final da Segunda Guerra Mundial (1945) veio com uma série de impasses e debates
quanto às novas mudanças globais, que possibilitariam a ascensão de determinadas nações no
cenário internacional – com Estados Unidos e União Soviética -, e novos fluxos migratórios
ainda oriundos dos conflitos que destituíram milhares de grupos judeus em vários países da
Europa, além dos grupos dizimados por uma guerra de grandes proporções. A necessidade de
um discurso alinhado quanto ao futuro do mundo faz-se urgente nesse cenário.
64

É importante aí destacar o papel do Brasil, de forma pública corroborando com o apoio


humanitário a grupos internacionais, se integrando. Esse destaque é importante pois as
conjunturas do presente entram em sintonia com o processo de interesses e conflitos no Brasil
desde a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945. Não à toa a criação de
uma comissão e sai participação na criação e consolidação da Organização Internacional para
Refugiados (OIR) e futuro Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

A recepção de refugiados e deslocados não era só interessante para a execução da


política exterior brasileira. Outro motivo que levara o Brasil a buscar a imigração
daqueles que não desejavam regressar aos seus países de origem após a Segunda
Grande Guerra era a conveniente convergência de sentimentos e princípios
humanitários – não externados no período entreguerras, ao menos vis-à-vis os
refugiados que recorreram à proteção internacional àquela época -, com a
oportunidade de receber mão-de-obra qualificada que viesse a suprir a demanda
doméstica. Essa demanda era evidente, em especial após tantos anos de política
imigratória restritiva, e os ganhos econômicos do Brasil com a imigração eram óbvios
(ANDRADE, 2005, p. 87).

Ainda assim, o CIME, em sua participação às discussões da OIR, destacava a


importância dos imigrantes a fim de desenvolver o país a partir da relação trabalho. E seguiu
com uma série de exigências nos quais destacava determinadas nacionalidades para atender aos
pedidos de refúgio, o que alimentou ainda a restrição. Conforme documentos do CIME, a
categoria de refugiado, ou displaced persons somente era considerada para o imigrante de
nacionalidade europeia, considerando que a Convenção de Genebra, assim como à criação em
1952 do ACNUR, e mesmo na formalização de concessões para refugiados ainda pela OIR, a
principal mudança se dava no método individual para considerar cada processo, isto é, cada
pedido seria analisado e avaliado conforme a situação de risco ser iminente no caso do
imigrante, e é o que se estabelece até hoje.

Alguns pontos merecem destaque na configuração da política imigratória depois do


Estado Novo (inclusive as permanências). De acordo com a constituição Federal de
1946, a união manteve a competência de legislar sobre a imigração, regulando a
entrada e a expulsão de estrangeiros (SEYFERTH, 2014, p. 126).

Ainda segundo Seyferth, até 1960, as cotas para estrangeiros e as restrições para
entradas de outras nacionalidades “mal-vistas” à política e principalmente às elites,
permaneceram. Ora, se não houve uma pressão para mudanças sérias com a criação de
organizações internacionais, bem como as intervenções mais diretas das alas progressistas
religiosas - em grande medida do catolicismo, não seria na ditadura militar brasileira (1964 -
1985) que se mudaria o cenário.
65

Ainda que com a ideia de bipolarização do mundo pela Guerra Fria, a pauperização dos
chamados países subdesenvolvidos e o deslocamento em diversas vias, como por exemplo as
conflagrações no Leste Europeu, ou as tensões nacionalistas e étnicas africanas, bem como as
ditaduras e intervenções militares em países do Caribe e da América Latina tenham
intensificado a discussão dos refugiados, asilados, exilados e imigrantes em geral, a concepção
da “segurança nacional”23 foi levada em conta nas mudanças em definição à criação de novos
mecanismos jurídicos para entrada de estrangeiros no Brasil. Com isso, em 1980, já no final do
período ditatorial, entra em vigor, após muitas discussões e contradições, o Projeto de Lei que
se tornará a Lei 6.815 de 1980, ou a Lei do Estrangeiro, que ainda está em vigor, apesar de
todas as suas ideologias calçadas nesse ideário de segurança nacional.
É também no Estatuto do Estrangeiro que se formaliza o papel do migrante como força
de trabalho, condição para entrada e permanência no Brasil. Isto é um diferencial por ratificar
um processo iniciado ainda no século XIX quanto à entrada subvencionada. Se agora não se
mede a condição do imigrante pela sua força, se estabelece que é da força de trabalho que ele
deve entrar e ficar no país.
A Lei de Estrangeiros em vigor até 2017 (Lei 6815, de 19 de Agosto de 1980, alterada
pela Lei 6964, de 09 de Janeiro de 1981)24 possui duas dimensões: a securitária e a
desenvolvimentista, no sentido de chamar migrantes conforme a demanda das empresas e várias
falhas no que se trata a garantir direitos básicos a migrantes estrangeiros. O contexto de sua
discussão e criação se alia a tentativa de expulsar frentes progressistas acusadas de conspiração
comunista (o caso dos padres estrangeiros) e de estrangeiros acusados em países também em
ditadura sul-americana (os casos dos uruguaios, paraguaios, argentinos, chilenos, peruanos,
venezuelanos etc). Também sobressai o poder da justiça e da polícia em decidir parcialmente,
conforme tal lei, a entrada e a saída de imigrantes, o que abre precedentes muito mais violentos
na ordem dos direitos humanos.
Ao mesmo tempo, se intensifica na década de 1980 um fluxo Sul-Sul, de peruanos e
bolivianos para o sudeste do Brasil. Coincidentemente é pensado, já na abertura política, em

23
Ver mais em: SPRANDEL, Márcia Anita. Migração e Crime: A Lei 6.815, de 1980. REMHU, Brasília:
JUL/Dez 2015, p. 145-168.
24
As alterações foram, conforme Sprandel: “1) Introdução do Inciso VIII no art. 13, incluindo os ministros de
confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa entre os
estrangeiros com direito a visto temporário; 2) Incluido no art. 46 (agora 47) a expressão ‘quando requisitados’ ;
e 3) modificando o art. 74 (transformando em 75), para determinar que não se procederá à expulsão quando o
estrangeiro tiver cônjuge brasileiro do qual não esteja divorciado ou separado, de fato ou de direito, e desde que o
casamento tenha sido celebrado há mais de 5 (cinco) anos; ou filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob
sua guarda e dele dependa economicamente (SPRANDEL, 2015, p. 163) .”.
66

1985, o programa Calha Norte25, a fim de promover a segurança das fronteiras entre países
latinoamericanos. Os preceitos geopolíticos de acirramento das fronteiras também são sinais
aos imigrantes pobres, que não seriam bem-vindos. As impressões entre habitantes das
fronteiras, principalmente Peru e Bolívia, ainda hoje denotam o extremo preconceito das duas
partes, muito em razão do consenso político de fechamento interno.
Ainda que com muitas ressalvas, o estatuto do Estrangeiro foi importante para construir
uma base de instrumentalização normativa para imigrantes no Brasil com participação de
imigrantes e entidades ligadas às questões referentes à imigrante sno Brasil. Em 1991 é
reconsiderado e dado poderes para o Conselho Nacional de Imigração – CNIg – existir.
Somente na década de 1990, a questão do refugiado é acenada na inscrição política. O Conselho
Nacional de Refugiados (CONARE) é criado para garantir os direitos dos refugiados no Brasil,
sob o comando do Ministério da Justiça. Sua criação possui um contexto muito específico, em
relação ao aumento de angolanos refugiados, seguido pelos colombianos desde o início da
década de 1990.
Apesar dos avanços, a criminalização do imigrante é parte do tom da política brasileira,
e sua naturalização incitada pela burocracia e personalismo é fonte de embate e conflito para
quem ainda luta e pede conquistas por direitos e cidadania.

2.2.2 O Haiti no século XX

Se pensarmos na perspectiva da emigração haitiana, o século XX é o que consolida os


principais elementos para a chamada diáspora haitiana. Dentre os fluxos mais importantes, estão
aqueles para a República Dominicana e para os Estados Unidos, embora toda a região caribenha
tenha participado direta e indiretamente das relações políticas e sociais no Haiti.
No final do século XIX ocorre a tomada do poder pelos mulatos e um período profundo
de instabilidade política, ainda resquício das relações entre França, Inglaterra e Estados Unidos

25
“Podemos identificar algumas ideias que orientam a formulação do programa. Em primeiro lugar, a soberania e
o desenvolvimento ordenado estão associados à maior presença do Estado, que possibilita, por meio da assistência
às populações, “fixar o homem na região” – ideia que permanece como elemento simbólico do controle combinado
sobre o território e a população na Amazônia. Em segundo lugar, existe a percepção de que os problemas que
deram origem ao PCN se agravaram, o que justifica a ampliação de sua área de abrangência para além da faixa de
fronteira da Calha Norte, definida inicialmente. Enquanto o “esvaziamento demográfico” permanece como
preocupação seguindo uma visão tradicional das concepções de segurança e defesa, a “intensificação das práticas
ilícitas” assume uma importância cada vez maior como elemento de insegurança. Em terceiro lugar, pode-se notar
a incorporação de um discurso que valoriza questões ambientais, justiça social e características regionais, o que
pode ser interpretado como uma tentativa de renovação da imagem conservadora tradicionalmente vinculada às
Forças Armadas (MONTEIRO, 2011, p. 118-119) .”.
67

e principalmente no acirramento dos conflitos internos entre a elite negra e a elite mulata. Tais
conflitos geraram também uma constante intervencionista pelas principais potências da época.
Para o governo estadunidense, o Haiti era um ponto estratégico de trânsito e rota para seu
mercado em ascensão, assim como Cuba, Panamá e Porto Rico, posteriormente, tal como Haiti,
ocupados e dominados política e economicamente pelos norte-americanos.
É importante refletir sobre esse caráter intervencionista, que esconde uma série de
discursos e ideologias frente à própria identidade política e social haitiana. Autores como
Marcelin (2010), Polyné (2010) e Matijastic (2009) apontam os interesses por trás do discurso
da necessidade de intervenção, que promove uma inexistente insegurança da constituição de
um grupo com raízes e uma identidade muito peculiar como os haitianos. Esses discursos
partem da fragilidade política até ao senso de negritude de sua sociedade. Intelectuais e
políticos, sobretudo americanos, a partir do século XX apontam essas fragilidades e acabam por
inferiorizar tais peculiaridades, ou mesmo escamotear suas diferenças.
Nessa perspectiva, a construção de um Estado e de um modelo ideal de Estado embutido
e propagandeado para o Haiti por essas potências era o Estado colonizado, recebendo subsídios
para a dominação frente à exploração de suas próprias riquezas e de seus habitantes. Entre o
final do século XIX e início do século XX, as interferências na cultura e na educação no Haiti
são exemplos desse ideal de dominação, que em todos os sentidos contradizia a realidade e o
cotidiano local. Sem considerar que não era de interesse o conhecimento dos conflitos internos,
muito menos suas relações sociais por parte de países como França, Estados Unidos, Inglaterra
e Alemanha, mas, como apontado, era uma estratégia política e econômica promovida para o
favorecimento unicamente das potências do Hemisfério Norte.
Essas interferências ratificaram a concentração de políticas e fornecimento básico dessa
política, isto é, a consolidação de políticas públicas tais como educação, saúde, moradia e
manutenção de direitos básicos somente na capital Porto Príncipe, que possui uma pequena
parte da população haitiana. Com a sua independência, a população permaneceu
fundamentalmente envolvida em atividades agrárias, o que gerou uma disparidade mais grave26.

26
Essa concentração foi-se intensificando até os dias atuais, e com o terremoto em Janeiro de 2010, se agravou, já
que Porto Príncipe foi uma das cidades mais afetadas, seu epicentro localizava-se amenos de quinze quilômetros.
Conforme Marcelin (2010): “The administrative centralization and the restructuration of Haitian infrastructure
toward the consolidation of Port-au-Prince have led ultimately to the current concentration of Haiti’s public
services and institutions. In 1950, already 60% of public institutions were concentrated in Port-au-Prince. By 1968,
more than 90% of all essential public services, except for secondary schools, were located in port-au- Prince.
Concentration found its paroxysm under the Duvalier regime: Port-au-Prince was to be called “The Republic of
Port-au-Prince” not just because of centralization but also the excessive concentration of services, institutions
power and wealth. It was not surprising that all major institutions private or public, because of access, had to be
located in Port-au-Prince. Thus, not surprisingly, when the earthquake hit Port-au-Prince in January 12, 2010, it
68

Por outro lado, a independência dominicana foi crucial para o desenvolvimento da


lógica produzida por tais países colonizadores, que apoiaram a economia açucareira, na
condição de escoamento pontual, o que acarretou certo prestígio político e econômico em
relação à porção vizinha da Ilha de Santo Domingo. Isso não significa que, em detrimento ao
Haiti, os dominicanos foram superiores ou mais inteligentes. Simplesmente coube à lógica
produtivista do capital, naquele momento, a consolidação de sua economia açucareira. Contudo,
esse crescimento econômico promoveu um importante fluxo de migrantes haitianos para a
República Dominicana ainda no final do século XIX e por todo o século XX. Os acirramentos
entre os dois Estados também acompanham as duras questões e relações entre haitianos e
dominicanos, tais como o preconceito, a subserviência e práticas desumanas de trabalho e
tortura, em muitos casos no século XX, em especial à ditadura de Trujillo, como veremos
adiante.
Nesse contexto é que, na década de 1910, explode uma série de disputas internas entre
representantes políticos e conturbados movimentos de violência entre comunidades haitianas e,
sob o pretexto da ideologia protecionista, Alemanha e Estados Unidos tentam por meio de
estratégias políticas uma nova tomada para dependência política e econômica do Haiti. A
Alemanha via o país como ponto geopolítico de dominação das Américas e os Estados Unidos,
tanto promovendo o sentido de americanismo quanto ao receio à “ameaça vermelha” de Cuba
e União Soviética, via como forte base de escoamento produtivo entre o Canal do Panamá e a
proteção de suas fronteiras.

A disputa entre as potências pautada pela justificativa de proteção de cidadãos


camuflava o interesse em manter o Haiti sob dependência político-econômica. As
tropas que entraram em 1914 não visavam, em realidade, “proteger seus cidadãos”,
mas disputavam a posse do Haiti no contexto de Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). Certamente os pedidos dos governos haitianos para que ocorressem
intervenções em assuntos domésticos contribuiu para a presença de Estados Unidos,
Alemanha, Inglaterra e França. Porém, o contexto internacional é que foi decisivo
para que os Estados Unidos interviessem no país em 1915 (MATIJASCIC, 2009, p.
5).

A intervenção estadunidense atingiu também a evolução do corpo militar nos portos e


nas fronteiras marinas haitianas com a presença dos marines, oficiais da guarda norteamericana,
a fim de proteger os principais portos na passagem entre Cuba e Panamá, que possibilita a
evolução do corpo militar haitiano. Sem a preocupação com as disputas tanto de classe quanto

was Haiti’s nervous system that was hit. Eighty five percent of all government buildings were destroyed. Close to
90% of Haiti’s higher education institutions were literally destroyed and in many cases with much of the remaining
brainpower of the country along with them (MARCELIN, 2010, p. 10) .”.
69

de raça – entre negros e mulatos – favoreceu determinadas esferas em detrimento a outras e


acentuou as desigualdades. Da mesma maneira, a política estadunidense causou mais
instabilidade ao processo político e democrático fragilizado no país.
Ao mesmo tempo em que a emigração para a República Dominicana se intensifica, da
mesma maneira que a política restritiva e desconfiada quanto à entrada de haitianos, o fluxo
para os Estados Unidos se consolida na formação de núcleos em Nova York, Harlem, Lousiana
e na Flórida, principalmente de pequenos comerciantes haitianos, que dotados de algum poder
aquisitivo, investem na economia estadunidense. Fluxo que se diversificará após 1950, com a
ameaça a intelectuais e a oposição a François Duvalier.

A história dessas ocorrências individuais é menos conhecida, e o foi até 1915 quando
outro grupo de refugiados começou a se reinstalar no Harlem como resultado da
ocupação dos EUA no Haiti (1915 a 1934). A atração do Harlem como local de
assentamento para imigrantes de origens africanas era oriunda da visibilidade da área
provocada pelo movimento Renascimento do Harlem dos anos 1920. A nova
migração para Nova Iorque foi realizada por haitianos urbanos bem instruídos e, em
certos casos, pessoas de negócios com família, tanto quanto estudantes, alguns os
quais tiveram sua escolaridade subsidiada pelo governo dos EUA em universidades
estadunidenses. No Harlem eles estabeleceram firmas de importação/exportação, lojas
de propriedade familiar, associações de cidade natal e clubes sociais. Durante o século
XX, Louisiana foi o principal local de atração para estes imigrantes; contudo, a cidade
de Nova Iorque atraiu o maior número de imigrantes haitianos durante os séculos XX
e XXI (LAGUERRE, 2005, p. 829, tradução minha).

Na outra frente migratória, a República Dominicana por mais de um século é ponto de


travessia e permanência de haitianos, principalmente na fronteira entre ambos os países. Um
diferencial no fluxo entre haitianos no país vizinho é o histórico descaso político,
principalmente quanto aos filhos de haitianos não reconhecidos pelo governo como
dominicanos, mas nascidos na República Dominicana, contudo sem nenhuma referência do país
de origem de seus ascendentes. Conforme Wooding e Mosseley-Williams (2004):

Anteriormente, la contratación de braceros haitianos se hacía mediante acuerdos entre


los dos gobiernos o bien lo hacían directamente los ingenios privados a través de
intermediarios haitianos. En la actualidad, La mayor parte de la mano de obra
migrante es “informal” y no regulada, tanto en lo que respecta a la salida de Haití y al
cruce de la frontera – escasamente vigilada – sin permisos o visas, como en lo
relacionado a las actividades laborales que desempeñan en la República Dominicana.
La tendencia más reciente es que los migrantes haitianos permanezcan em el país,
trasladándose de un lugar a otro en busca de trabajo y de mayor protección frente a
las detenciones y deportaciones. Este prolongado proceso migratorio ha tenido
consecuencias importantes. En términos demográficos ha dado lugar a una población
considerable de residentes de ascendencia haitiana e inmigrantes recientes, cuyo
tamaño es difícil de precisar Si la cifra alcanza las 500,000 personas, como a menudo
se señala, ésta representaría alrededor del 6% de La población dominicana, estimada
en 8.6 millones (WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004, p. 14).
70

O poder político e administrativo dos dominicanos se deu pela elite branca e mulata, o
que ratificou a questão de cor como questão de classe de uma maneira muito mais incisiva. O
preconceito com relação aos haitianos, não somente pelo recorte de cor, como pela ideia de
fragilidade que esse país possuía, refletiu e ainda reflete no descaso quanto às políticas
migratórias27.
O auge não só da omissão, como da violência, considerada como as primeiras evidências
mais radicais do anti-haitianismo dominicano se dá na década de 1930, com a ascensão de
Rafael Leónidas Trujillo.
Trujillo implementou uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos até 1961, quando foi
assassinado em uma emboscada. Em 1937 ele ordena uma operação, denominada Operación
Perejil, que consistia na expulsão e sobretudo assassinato de migrantes haitianos em massa.
Eles deveriam repetir a palavra perejil, e no que a pronúncia fosse diferente da do espanhol,
ocorria a morte. O número de mortos é incerto, mas estima-se cerca de doze mil haitianos
brutalmente assassinados nesta operação (SEITENFUS, 1994). Tal operação consolidou a
política de dominicanização da fronteira (dominicanización de la frontera).

En 1939 se promulgó una nueva ley de migración, cuyo propósito principal era
impedir la entrada de haitianos al país excepto cuando fueran necesarios para el corte
de la caña. Se crearon y promovieron colonias agrícolas para atraer inmigrantes
blancos de Europa. Se construyeron carreteras hacia la zona fronteriza, anteriormente
aislada del resto del país. Éstas no eran medidas excepcionales en el contexto
latinoamericano de entonces, como tampoco lo era la deportación de haitianos.
Durante La depresión de los años 30, por ejemplo, los ingenios cubanos deportaron a
más de 35,000 braceros haitianos. Lo que resulta particular en el caso dominicano es
que la “dominicanización” pasó a formar parte de La ideología racista promovida por
la dictadura después de la masacre (WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004,
p. 21).

Vale lembrar que além de República Dominicana e Haiti, Cuba, Panamá e Porto Rico
também estavam sob domínio estadunidense, direta e indiretamente. O cenário se modifica com
a Revolução Cubana em 1959, que agita também algumas questões frente ao Caribe e sua
representatividade.

27
“ Los conflictos armados entre ambos países durante la primera mitad del siglo XIX generaron en los
dominicanos un sentimiento de nacionalismo hispánico y de desconfianza frente a Haití. No obstante, La mayoría
de estudiosos modernos señalan que el racismo y la xenofobia que en la actualidad caracterizan al sentimiento
anti-haitiano son resultado de procesos políticos del siglo XX, particularmente los acontecidos durante la dictadura
de Rafael Leonidas Trujillo entre 1930 y 1961. Esas actitudes no se originaron con la llegada de los migrantes
haitianos, que se inició unos 20 años antes de llegar Trujillo al poder y que en su momento no generó un rechazo
mayor que el recibido por trabajadores migrantes de otras nacionalidades y culturas que vinieron a trabajar en los
campos de caña procedentes del Caribe inglés(WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004, p. 19).”.
71

É nessa época que no Haiti ocorre o fortalecimento do nacionalismo, inverso a essa


relação de dependência, o que acarreta pequenas rebeliões e ascendendo nomes como os de
François Duvalier. Médico das comunas rurais do país, possuía abertura entre a intelectualidade
e a elite, e pelos serviços e carisma, alcançou uma série de cargos políticos de ajuda a políticas
para a saúde comunitária, e com acordos entre os Estados Unidos, movimentos culturais e a
elite negra haitiana, subiu à presidência do país, depois de anos de soberania entre mulatos, em
1957, com pactos de apoio entre movimentos autoritários e religiosos, como no caso dos
hougans, integrantes do culto vodu. Vale destacar que os mulatos eram apoiados pela igreja
católica e repreendiam seriamente a manifestação e o culto ao vodu, apontados como atrasado
e retrógrado.
A repressão pelos dois lados, no caso do vodu acarretou uma ligação direta a suas
manifestações à ditadura duvalierista (1957 - 1986), que compreende tanto a ele quanto ao seu
filho, comumente chamados de Papa Doc e Baby Doc, e resultou no escamoteamento de uma
história cultural muito rica no Haiti, esquecida tanto pelos intelectuais e pelas elites quanto
pelas políticas intervencionistas desde o século passado.
Conforme Grondin (1989) e Seitenfus (1994), é considerável a retomada da violência
via Estado, nos ditames da revolução dos escravos. O regime de Duvalier, além de assassinar e
destituir todos seus opositores produziu um discurso do medo e do ódio frente a insurgências e
até mesmo ao sentido de democracia no Haiti.
A vitória de Duvalier sobre o candidato mulato Dejoie [que inicialmente era “o
candidato” para os Estados Unidos] e sobre o candidato negro Fgnolé, da corrente
trabalhista, provocou a reação desses dois setores: o primeiro apoiado por uma parte
importante dos oficiais do exército, e o segundo pelo nascente movimento operário e
por pequenos grupos políticos de esquerda. Diante dessa ameaça, Duvalier, apoiado
pela elite negra e pela pequena burguesia, estabeleceu um regime de força: acabou
com a oposição do exército eliminando os oficiais favoráveis ao setor mulato e
substituindo-os por oficiais de sua corrente, treinados por oficiais americanos; criou o
corpo de milícias “populares”, os temidos Toutons-Macoutes [...] Adotando uma série
de medidas cada vez mais autoritárias, estabeleceu um modelo fascista de dominação
política: encarcerou, torturou e exilou seus adversários políticos, assassinou e fuzilou
publicamente líderes dos grupos de oposição, mulatos influentes e intelectuais
progressistas (GRONDIN, 1989, p. 47).

Essa postura autoritária não só afetou as práticas sociais, a relação com a cultura e com
o cotidiano da população, como estimulou a migração de uma classe média intelectualizada e
de oposição aos regimes de François e Jean Claude Duvalier, filho que antidemocraticamente
sucedeu o poder do pai em 1971. Vários professores, poetas e partidários de esquerda se
refugiaram em países como Estados Unidos e Canadá, formando comunidades como em
Quebéc, Nova Iorque e Miami. A quem não tinha recursos, como a maioria dos haitianos,
72

restara o papel dos raketés, coiotes haitianos que, entre outras funções, pediam dinheiro em
troca de saídas via marítima em barcos, em grande medida para os Estados Unidos e para a
Guiana Francesa28. Os migrantes, sobretudo pobres, foram denominados boat-peoples. O termo
refugiado se atrela a esse estigma da pobreza e miséria, daqueles que perderam tudo e correm
em desespero por uma vida melhor.
O aumento dos boat-peoples se dá no governo de Jean Duvalier (1971-1986), com o
alto índice de pobreza e instabilidade que se tornam críticos após a morte de François, não pela
sua morte em si, mas pela sua política aumentar a dívida externa e a opressão acentuar as
desigualdades entre classes, aumentando também a concentração de renda.

Os primeiros refugiados que deixaram o Haiti em 1957 eram majoritariamente


políticos e profissionais, que depois levaram suas famílias após François "Papa Doc"
Duvalier tornar-se presidente vitalício em 1964. A maioria dos imigrantes de classes
alta e média foram para Nova Iorque, enquanto outros foram para a região
metropolitana de Miami. Um contingente diferente chegou em e após 1971 quando
Jean Claude "Baby Doc" Duvalier substituiu seu pai e tornou-se presidente vitalício.
Esse novo grupo de imigrantes mais pobres - conhecidos como "boat people" - vieram
de barco e se assentaram principalmente na Flórida (LAGUERRE, 2010, p. 830,
tradução minha).

Após a fuga de Baby Doc, em 1986, o general Henri Namphy assume interinamente,
porém na primeira tentativa de eleições presidenciais, o alto escalão do exército mais uma vez
destitui as tentativas de inserir um processo democrático. Interessante que ao mesmo tempo em
que repetidamente o poder político no Haiti se vê fragilizado até chegar a um estado de sítio em
1990, imposto pelo general Prosper Avril (que fugiu no mesmo ano), a República Dominicana
ainda não amadurece as políticas de imigração para haitianos, mesmo após as atrocidades de
Trujillo (SEITENFUS, 1994). Os migrantes haitianos e seus descendentes ainda são vistos
como o outro, o pobre, o negro, o diferente.

En varias ocasiones durante los períodos presidenciales de Balaguer, lãs autoridades


azusaron el sentimiento anti-haitiano y realizaron deportaciones masivas, entre las
cuales destacan las de 1991. En otras ocasiones, como durante la campaña electoral
de 1990, Balaguer y su Partido Reformista Social Cristiano distribuyeron actas de
nacimiento em los bateyes a fin de ganar votos. Cabe destacar que durante el
desarrollo del actual sistema tripartito, Balaguer nunca obtuvo una mayoría absoluta
de votos. En las elecciones de 1994, cuando se llevó a cabo una campaña abiertamente

28
Conforme Handerson (2015), a migração de grupos haitianos para a Guiana Francesa, principalmente oriundos
do sul do país inicia-se meados da década de 1960: “As primeiras famílias haitianas chegadas à Guiana em 1963
e 1965, respectivamente, viajaram de barco com blan Lili. Sob a ditadura do François Duvalier (nascido em abril
de 1907 – falecido em abril de 1971), apelidado Papa Doc, blan Lili recebeu um documento autorizando a viagem
com o grupo. Um ano antes da primeira viagem, em 1962, blan Lili foi à Paris, pedindo autorização para levar os
haitianos à Guiana Francesa. Na viagem para Paris, foi acompanhado por Augustin, haitiano, seu braço direito,
tendo este se tornado o marinheiro do barco junto com o capitão da embarcação chamado Goullier, um martinicano
(HANDERSON, 2015, p. 228)”.
73

racista contra el Partido Revolucionario Dominicano y su candidato, José Francisco


Peña Gómez, un hombre negro de ascendência haitiana, Balaguer tuvo que recurrir al
fraude para ganar las elecciones. Este hecho en sí mismo indica el grado de apoyo que
los votantes dominicanos están dispuestos a dar al racismo y al anti-haitianismo
(WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004, p. 22).

A complexidade da alteridade, conforme Sayad (1998), é que o migrante é estranho


como imigrante e torna-se o estranho como emigrante, isto é, quando ele emigra ou sai do seu
lugar e se insere em outro, ele torna-se diferente em ambos os espaços de convivência, seja por
desconhecer o lugar chegado ou seja por não conhecer mais o lugar deixado. Essa relação no
Haiti é característica constituinte de seu povo, no momento em que paulatinamente não é
reconhecido como povo, nem pelo seu governo, nem pelos que gerem seu país. Isso não implica
que este não seja um povo haitiano, mas a carência de um objetivo para com a sociedade de um
Estado é o que fomenta sucessivas práticas de opressão e alheamento político e que, para esse
governo, para seus mandantes, uma hierarquia entre quem é mais povo e menos povo sobressai
a preocupação com um governo do e para o povo em si. Alheamento esse que, ao contrário do
propalado, está nos seus representantes cegos pela ganância.
Nesse sentido também, a presença da igreja católica após os regimes dos Duvalier foi
importante para abrir espaço a essa consciência, embora de uma forma muito parcial no Haiti,
sobretudo a corrente progressista da igreja, sob influência dos movimentos eclesiais de base no
Brasil. Os padres católicos no Haiti, presentes de maneira muito intensa nas comunas rurais,
construíram uma base de aprendizado inspirado em uma esquerda religiosa, e teve como um de
seus principais representantes políticos Jean-Bertrand Aristide, primeiro presidente eleito no
Haiti, porém deposto em setembro de 1991 pelo chefe das forças armadas Raoul Cédras.
Aristide, embora considerado progressista, não era e nem tinha um programa político
comunista. Uma de suas primeiras ações, além dos tratados constitucionais que exigiam direitos
humanos e abertura de um diálogo com relação aos haitianos na República Dominicana, fora a
privatização dos principais sistemas públicos haitianos. Seitenfus (1994) aponta para seu
“esquerdismo superficial”, o que não descaracteriza o processo no qual ele foi eleito e suas
qualidades frente aos inúmeros ditadores e/ou generais.
É importante também diferenciar essa ascensão da igreja após a repressão por Duvalier
da corrente ligada aos mulatos e aos norte americanos até 1950 no Haiti. Isso porque, embora
a presença do grupo progressista tenha se inserido pelo país, principalmente na alfabetização
da população carente, o Vaticano detém acordos e tutelas do governo norte americano, bem
como negociações escusas com vários outros governos ditatoriais latino americanos. Como
aponta Seitenfus (1994):
74

A estratégia do Vaticano, no caso específico do Haiti, pode ser percebida também no


momento do golpe militar de 30 de setembro de 1991. De imediato, forma-se o cordão
sanitário imposto pela comunidade internacional, cujo liame é rompido
exclusivamente pelo Vaticanos, único Estado a reconhecer de jure o governo golpista.
[...] Certamente não está na pauta de preocupações do Vaticano o respeito à teoria da
efetividade, pela qual o reconhecimento de um governo está vinculado à realidade
objetiva (SEITENFUS, 1994, p. 53).

Raoul Cédras, embora não tivera obtido o reconhecimento internacional, protelava a


entrada de Aristide no país para que o mesmo declarasse a sua renúncia. Enquanto isso,
alimentou o exército pessoal com força de polícia, estimulou os acordos obscuros com redes de
narcotráfico, principalmente com a Colômbia, e embora não tivesse o reconhecimento formal
do governo norteamericano – no qual Bill Clinton era presidente – tinha uma série de
concessões firmadas em acordos “por baixo dos panos” com o mesmo, em aliança a República
Dominicana.
Ao mesmo tempo, a saída de haitianos em condições precárias aumentou na década de
1990, na travessia pelos Estados Unidos e pela Guiana Francesa. No caso do primeiro, entre
1991 e 1992, “quarenta mil pessoas fugiram pelo mar em frágeis embarcações com destino à
Flórida. Segundo estimativas prudentes, dois mil entre eles morreram afogados” (SEITENFUS,
1994, p.66). Essas mortes foram maiores pelo bloqueio naval desde o primeiro governo Bush,
com o intuito de impedir a passagem de imigrantes.
No caso da Guiana Francesa, é na década de 1990 que se intensifica o fluxo, mas
também aumenta e intensifica a segurança nas fronteiras, bem como o impedimento a
autorizações de entrada em território francês. Handerson (2015) enfatiza essa diáspora em sua
tese, entendendo que após sucessivas frustrações em outros países, e com a ascensão
democrática na década de 1990 em vários países da América do Sul, acerca de todas as
adversidades de uma economia deteriorada e um poder político reduzido às elites, era uma saída
possível.
Em 1994, o exército dos Estados Unidos ocupa o Haiti e reinsere Aristide ao posto de
presidente. Mas dois séculos de ingerência frágil e repressora não acabam assim tão fácil nas
duas décadas seguintes. Em janeiro de 2010, sob a intervenção da MINUSTAH, o reflexo dessa
história atinge não só seu maior sofrimento, mas também uma nova luta.
75

2.3 O Brasil e o Haiti no Século XXI

No Brasil, de um lado, os macroinvestimentos setoriais do Estado, de outro, as


privatizações no período em que Fernando Henrique Cardoso fora presidente são definidores
da relação do capital incorporador bancário financeirizado, às relações globais intensificadas,
o capital exportador dependente, concomitante à injeção a investimentos públicos. De outro,
com a ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência, ocorreu a intensificação da
macroeconomia financeira dos períodos do governo Lula, fases distinguíveis por fatores como
a injeção de taxas de juro para alcançar maior liquidez e taxas maiores de exportação, injeção
de superávit primário e estímulo ao mercado interno, para acarretar a injeção de processos de
desenvolvimento que culminaram na consolidação de projetos de crescimento.
Contudo, se por um lado o Brasil passou por transformações e consolidou o projeto de
inserção no mercado global, por outro manteve os padrões desiguais de industrialização que
geram claramente desequilíbrios quando se trata na regulação econômica e financeira, e atua
diretamente na autonomia do desenvolvimento. No continuísmo da relação de acordos e
negociação com o capital externo, não promoveu a independência frente a este, e
principalmente, seu crescimento das trocas entre mercado e Estado a partir de um partido que
inicia sua atuação política na classe trabalhadora industrial ascendente na região metropolitana
de São Paulo, reproduz os ditames da lógica do capital financeiro das grandes corporações.
No contraponto, como reforço à política macroeconômica, não só pelo lulismo29 –
expressão atribuída às mudanças do governo Luís Inácio Lula da Silva, mas apoiada pelos
poderes políticos em um movimento de contestação ao movimento neoliberal -, possibilita
perspectivas distintas ao que vinha ocorrendo na década de 1990, com a política forçadamente
neoliberal de entrega ao capital externo. O investimento em bancos públicos, por exemplo, bem
como a construção e plataformas de crédito a partir destes, é uma das principais marcas do
lulismo, com a finança menos direta, contudo ainda pouco participativa quando se trata na
escala do desenvolvimento político e social.
A política que “mistura” movimentos neoliberais, capitalismo financeirizado e
intensificação macroeconômica tornou-se promissora em um contexto global conveniente de
crescimento, que possibilitou ao Brasil durante a crise do capital financeiro, já em meados do
século XXI, uma estabilidade nas contas e na poupança interna para angariar valor à moeda

29
Expressão popularizada por André Singer (2009).
76

pelo capital externo. A crise também desperta o mercado e a imperialização de um novo


mercado em ascensão: a China.
Sendo o Brasil um dos principais centros de negociação com tal país, a política de
dependência às faixas de exportação de commodities mais matéria-prima para obtenção de
insumos, como, por exemplo, na inovação do setor agrícola – predominante se pensarmos
nacionalmente – na incorporação de novos arranjos produtivos industriais – ainda contudo
incipientes se pensarmos em mercado internacional, o que vários autores definirão de inserção
ao mercado financeiro e desindustrialização da economia, deturpando os índices de liquidez –
ou como na importação maciça de produtos industriais a preços inferiores.
Essas são as principais características econômicas que caracterizam o Brasil em um
cenário diferenciado no século XXI. Contudo, essas referências, se dão base para uma ascensão
internacional tanto de caráter diplomático quanto nas relações de cunho puramente econômicas,
muito promovida pelo governo Lula a partir de 2002, elas escamoteiam toda uma herança
histórica e social de políticas frágeis, pautadas no interesse o qual convinha o período.
O processo de dependência cíclica referente a países como os da América Latina e
Caribe, portanto, estão - como diria Fernando Pessoa – em acordo com o mundo, mas em
desacordo com si mesmo, característica central do poder capitalista em monopolizar a relação
por agentes específicos que tornam-se detentos de poder em favor de uma regulação dos
mercados frente às políticas nacionais.
Tal processo é como gradiente do sistema a acumulação espoliativa por expropriação,
isto é, a acumulação gerada e que gera paradoxalmente o uso de mecanismos de destituição de
riqueza para aportar um projeto oligopolista de estrutura do capital30.
Ao mesmo tempo, o século XXI no Haiti inicia-se com uma mascarada guinada
política sob a segunda vitória de Aristide em 2001, porém com cerca de 10% da população
votando sob a pressão dos partidos de oposição, principalmente o corpo militar e a direita,
representada, sobretudo pela elite mulata. Conforme Valler Filho (2007), a máquina política,
absorvida pela falta de um projeto nacional e pela disputa política pelas elites cristalizou suas
fissuras profundas. Aristide não foi capaz de articular uma economia e uma política que pusesse
a população como principal prioridade. A corrupção foi o principal mote para tal, o que
culminou na saída e na inserção da MINUSTAH em 2004.
Sua economia, da mesma maneira que dependente como o Brasil, possui também uma
ascensão do setor de serviços, principalmente entre o litoral e a capital Porto Príncipe, e o setor

30
Em inspirações do geógrafo David Harvey (2003).
77

agrícola muito presente na maior parte do país. A educação, saúde e serviços públicos básicos
são defasados, e ainda, como apontados por Valler Filho (2007), símbolos de ameaça por
determinados grupos políticos. O senso de cidadania não foi apreendido nem na coisa pública,
nem no discurso entre partidos, nem nos movimentos partidários. Mas a presença da
coletividade, do processo social coletivo contradiz o senso político administrativo do país.

2.3.1 O Brasil e a MINUSTAH: contextos e perspectivas

As tensões políticas que levaram à Mission des Nations Unies pour le Stabilisation en
Haiti (MINUSTAH), como apontado, foram um crescente entre fragilidade política e
soberania, seja das elites haitianas, do exército, ou da determinação de outros países a fim de
interesses outros de desenvolvimento. Na percepção da mobilidade haitiana para o Brasil, nossa
maior preocupação são as geometrias de poder estabelecidas por dois contextos relacionados: a
participação do Brasil como uma das principais lideranças na frente da missão no Haiti e
segundo os acordos e as relações que levaram à mobilidade em si.
Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, mudanças importantes ocorrem no
tocante a relações entre as principais fronteiras brasileiras na década de 1990. Ações como o
início da construção da ponte que liga Oiapoque (Amapá) a Saint Georges (Guiana Francesa),
e dispersos acordos diplomáticos. Em 1998, pouco antes da consolidação do Conselho Nacional
de Refugiados, foi regulamentada a Lei número 9.675, que concedera anistia a estrangeiros em
situação irregular no país.
Uma série de eventos em escala global foi importante para a definição de uma política
mais restritiva em fronteiras internacionais, em grande medida ao avanço dos deslocamentos
das populações mais pobres do mundo. Dentre eles, é notória a importância do atentado em
Nova Iorque em setembro de 2001 para ratificar uma política mais preconceituosa e violenta.
Atentados no decorrer do século XXI, em países da Europa e ameaças a uma soberania entre as
principais nações modernas era uma ferida muito grande para ser arriscada, sem ser considerada
a morte de milhares de imigrantes pelos mares de acesso a essas principais fronteiras.
Dentre as políticas restritivas de entrada de imigrantes em países dotados como
potências mundiais, destaca-se, principalmente como atuante para as diásporas haitianas, o
acirramento das políticas da Agência Frontex, isto é, os limites do denominado acordo – ou
espaço – Schengen. Em 2009 se intensificam as decisões para fechamento das fronteiras
78

europeias, o que reflete na entrada de imigrantes na Guiana Francesa 31. Nesse aspecto,
Handerson (2015) aponta a relevância dessa política de restrição frente aos movimentos dos
haitianos para a Guiana Francesa antes e após o terremoto em 2010:

Boa parte dos pedidos é indeferida pelo OFPRA [Escritório Francês de Proteção a
Refugiados e Apátridas, sigla em francês]. De acordo com essa última instituição, em
2006, os haitianos constituíam os primeiros nacionais solicitantes de asilos políticos
nos territórios franceses. De 2004 a 2005, respectivamente 119 e 170 solicitações de
refúgios foram realizados na Guiana (HANDERSON, 2015, p. 219).

Ao mesmo tempo, também o Brasil teve nos anos 1990 e até o final dos anos 2000 um
crescimento na sua emigração ao exterior, facilitado por novos acordos. Ainda antes do
aumento do fluxo de caribenhos e africanos, após 2010, o fluxo de emigração para países da
Europa e Estados Unidos cresceu de forma significativa. Conforme Fernandes (2015):

Dados do Ministério das Relações Exteriores levantados junto aos consulados


brasileiros indicam que, em 1997, 1,5 milhão de brasileiros viviam fora do país e que,
em 2002, este número havia aumentado para 2,0 milhões. Outras fontes indicam que
este contingente teria chegado, no ano de 2006, à casa de 4,0 milhões. Estes brasileiros
residiam em sua maioria nos Estados Unidos, aproximada mente 30% do total,
seguido pelo Paraguai (11% do total); Japão (9% do total) e no conjunto dos países
europeus (25% do total) (FERNANDES, 2015, p. 22).

Dessa maneira, a inserção internacional do país continua sendo secundária subordinada.


A participação do Brasil em acordos no exterior foi importante, mas a volta para o mundo não
se dá, como vimos em todo o processo tanto no Brasil quanto no Haiti, de forma unilateral.
Negociações são sempre importantes no capitalismo vigente. Por parte do Brasil, a política de
diplomacia era importante para o escoamento da produção interna, também nas trocas para a
tão desejada cadeira no Conselho de Segurança das Organização das Nações Unidas. Países da
Europa, Estados Unidos e sobretudo China viam o Brasil como fonte de escoamento de
finanças, capital financeiro, extratos da produção e aumento da liquidez dos produtos
internacionais.
O crescimento, ainda que virtual, isto é, um crescimento dotado de dependência externa,
possibilitou não só a saída de brasileiros, mas paulatinamente a entrada de imigrantes sul-
americanos de forma mais enfática a partir da primeira década do século XXI. A década de

31
Mais sobre a discussão entre os representantes europeus do fechamento do frontex:
http://www.swissinfo.ch/por/europa-preocupada-com-suas-fronteiras/30223962
79

1990 foi marcada por um decréscimo da entrada de imigrantes no Brasil, ainda que o
contingente de bolivianos, peruanos, chineses, japoneses e colombianos tenham se acentuado
nesse período (FERNANDES: 2015).
Outra questão em comum que se reflete a esses imigrantes são as formas em que se
encontram no Brasil, sua condição deslegitimada por uma política que se exime a este próprio
migrante - muito se dá pelas respostas antecedentes a como se tratavam os imigrantes, dotado
da força de trabalho. Sem mudanças estruturais no Estatuto do Estrangeiro, as concepções da
ditadura permaneceram, e o domínio das decisões por parte da polícia federal caracteriza ainda
mais o processo de violência da entrada, principalmente dos imigrantes pobres.
Duas decisões ainda na década de 2000 foram importantes para amenizar não só
divergências quanto à entrada e a permanência precarizada de migrantes sul-americanos, como
ratificá-los enquanto suas estratégias de permanência, dotados de cidadania também: em 2004,
o Plano México de reassentamento a refugiados, cuja participação do Brasil foi definidora, e
em 2009, foi disposto anistia para todos os migrantes em situação irregular no Brasil (lei número
11.961, de 02 de julho de 2009);e o Acordo de Residência do Mercado Comum do Sul
(Mercosul), de 07 de Outubro de 2009, que possibilitou a livre entrada de sulamericanos cujos
países integram o mesmo, promovendo a circulação de pessoas de maneira mais ampla.
A Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos
Refugiados na América Latina prevê garantia básica aos imigrantes latino-americanos no
trânsito e no refúgio para países do continente americano, sob os preceitos da ACNUR, das
convenções de Genebra (1951) e Cartagena (1984). O Brasil foi o principal representante a
propor uma política conjunta de assentamento a refugiados.
Como se vê, ao mesmo tempo em que o Brasil costura relações que indicam certa
flexibilidade e garantia para imigrantes que chegam ao país, a realidade torna-se bem distinta a
estes migrantes. Há falta de apoio em todos os sentidos, seja em ratificar sua escolaridade na
possibilidade de melhores condições, seja no mercado de trabalho em ilusório crescimento, já
que o setor da construção civil é o que maior demanda grupos de outras nacionalidades – o que
torna um círculo vicioso, já que eles não conseguem comprovar sua escolaridade, vão ao
encontro de serviços mais precários – ou na garantia básica de direitos, até chegar ao latente
preconceito da população, cravando uma marca social histórica pautada nesse preconceito
desde o século XIX.
O terremoto que ocorreu no Haiti em 10 de janeiro de 2010 agravou mais ainda essa
situação, em pelo menos três elementos: primeiro, o fato de boa parte dos equipamentos
80

públicos se encontrarem em Porto Príncipe, um dos lugares mais afetados, segundo, a tríade
corrupção-violência-dependência destacou as fragilidades políticas, e econômicas e sociais do
país e terceiro, o preconceito e as estratégias de interesse de países como Estados Unidos ou
França mas também do Brasil promoveram abismos mais complexos na escala social do Haiti.
Ao mesmo tempo, a injeção de investimentos faz com que o mercado de trabalho se
diversifique, necessitando de mão-de-obra qualificada e especializada. Chamam-se os
migrantes sul-americanos? Não. A mão-de-obra qualificada é procurada pelas grandes
corporações sobretudo para europeus e norteamericanos, contratados por empresas
multinacionais.
No que se refere à construção da política de diplomacia, Valler Filho (2007), sobre a
contribuição do professor Ricardo Seitenfus quanto ao termo diplomacia solidária, ao tratar da
política no século XXI aponta que:
A diplomacia solidária pode ser compreendida como sendo a aplicação de uma ação
coletiva internacional feita por países intervenientes num conflito interno ou
internacional, sem que haja interesses de ordem material ou estratégica, e movidos
por dever de consciência. No caso haitiano, a política externa brasileira aportaria uma
“valiosa e original contribuição” à teoria da diplomacia solidária, na medida em que
houve o reconhecimento explícito a razões de ordem moral, espontânea, incoercível
– em que não estaria excluída a hipótese de tê-la fundamentada na idéias clássicas do
direito kantiano – para uma intervenção que foi definida pelo Ministro das Relações
Exteriores como expressão do profundo comprometimento do País em termos
“políticos e emocionais” (VALLER FILHO, 2007, p. 224).

Nesse sentido, Valler Filho ressalta os registros das relações entre Brasil e Haiti, que
não começaram no século XXI, nem a construção da política diplomática brasileira. As
inserções dotaram o Brasil de uma política até certo ponto inovadora, construída no diálogo
internacional. Contudo, as tensões internas e as conturbações nos processos políticos e
econômicos do país paulatinamente contradisseram este aspecto.
Tal como a política de diplomacia solidária consolidou o Plano México, a Missão das
Nações Unidas pela Estabilização do Haiti foi outro fator preponderante na execução dessa
política internacional para o Brasil. O país participou diretamente em boa parte das ações
prevista pela missão.
A MINUSTAH surge na visão saturada das ações políticas no Haiti. As eleições de 2001
apontaram o reflexo dessa saturação, aliada à extrema pobreza de sua população e a
intensificação das milícias tanto ligadas ao Estado quanto as que promovem violência e super
exploração das comunas rurais. A “guinada democrática” não só dificultou o acesso
democrático da coisa pública como o afastou ainda mais. Aristide, preocupado com os conflitos
81

internos difundidos e multiplicados pela oposição conservadora, ratificou o poder e a


propriedade concentradora do país32.

Com receio de um eventual ataque à capital, o ambiente em Porto Príncipe deteriou-


se significativamente. As gangues armadas iniciaram a construção de barricadas em
diversas ruas, impedindo a circulação de veículos. A partir do sábado, dia 28 de
fevereiro, a situação política evoluiu com grande rapidez e os embaixadores dos
Estados Unidos e da França se reuniram com o Presidente. Na iminência de um banho
de sangue anunciado pelos representantes desses dois países, que previam a tomada
da capital do país pelas forças rebeldes, na manhã seguinte - 29 de fevereiro de 2004
- o Presidente Aristide renunciou e partiu para o exílio. Com sua queda, o país
retomaria seu espaço como um dos temas principais das agendas diplomáticas
regional e internacional (VALLER FILHO, 2007, p. 153).

Com a segunda renúncia de Aristide, a perspectiva de esperança e segurança


democrática de seu governo, no cenário nacional e internacional começam a preocupar as alas
mais progressistas e organizações mundiais. Porém, ao mesmo tempo em que países como
França e Estados Unidos renovam os acordos de intervenção política no Haiti, como vimos
anteriormente, acirram o fechamento de suas fronteiras, cientes da fragilidade social e
conseqüente fluxo migratório de haitianos para tais regiões.
Seguidos ao reflexo de todo um conjunto de medidas que visou a acumulação de riqueza
pelas elites, a pobreza, a falta de serviços básicos de assistência, a Missão de Estabilização
pretendia, portanto, promover mudanças estruturais de promoção à construção de um estado
minimamente democrático. Em aliança ao bloco Comunidade do Caribe (CARICOM),
Organização das Nações Unidas (ONU) e países apoiadores do processo de construção e
estabilização do Haiti, estabeleceram prioridade conforme o Quadro de Cooperação Interina
(Interim Cooperation Framework – ICF) em um plano de Metas do milênio para 2015, que
previa mudanças - até essa data - de ordem econômica política e social33.

O Governo transitório iniciaria diálogo para o processo de reconciliação nacional,


com vistas, sobretudo, à realização das eleições presidenciais, municipais e locais,
inicialmente previstas para 2005, para que o processo eleitoral pudesse completar-se

32
Vale ressaltar que na política de Aristide não houve nenhum mudança às outras gestões do Haiti, conforme
Montenegro (2013): “O descontentamento com o governo de Aristide crescia vertiginosamente, assim como as
ondas de protesto. No final de 2003, homens da polícia e do grupo chimères mataram vários opositores políticos,
incluindo um estudante universitário, em Porto Príncipe. Aristide apenas condenava esses atos, mas não tomava
medidas concretas para acabar com esses crimes (MONTENEGRO, 2013, p. 47).”.

33
Respectivamente, as oito metas do milênio previam: Erradicar a extrema pobreza e a fome; Atingir o ensino
básico universal; Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; Reduzir a mortalidade infantil;
Melhorar a saúde materno-infantil; Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; Garantir a sustentabilidade
ambiental e Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
82

sem incidentes. A presença da MINUSTAH foi essencial para que fosse assegurado o
calendário eleitoral. Apesar das eleições terem sido adiadas para 2006, transcorreriam
dentro da normalidade. O Brasil colaboraria com um milhão de dólares para a
organização das eleições presidenciais e mais outro milhão de dólares para as eleições
locais e legislativas (VALLER FILHO, 2007, p. 157-158).

A colaboração direta do Brasil, como já apontado, não foi somente financeira. O Brasil
ficou responsável pela inserção militar da missão como um todo, cujos números chegam e em
muitos casos superam os enviados da Segunda Guerra Mundial. Ficou também responsável pela
estrutura material das eleições, com a presença da urna eletrônica; firmou um acordo trilateral
com o Canadá na área principalmente da saúde, levando a estrutura de vacinação e saúde
pública e financiando materialmente o aprendizado do Sistema Único de Saúde para o Haiti.
Paulatinamente, problemas como o sistema prisional e as organizações paramilitares
entraram no diálogo entre a sociedade haitiana. A presença da MINUSTAH, embora muito
criticada pelos representantes políticos do país, promoveu mudanças importantes, inclusive na
legitimidade da eleição que elegeu pela segunda vez o presidente René Préval, cujo primeiro
mandato foi o único democrático e chegado até o final (1996-2001, e o então mandato 2006-
2011). O diálogo de sua gestão possibilitou incluir na pauta política do Haiti importantes
transformações.

No fim do mês de agosto de 2006, Préval nomeou uma Comissão Nacional para o
Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração, formada por sete membros e que
seria responsável pela implementação do programa de desarmamento do governo. A
proposta central do programa era basicamente oferecer oportunidades de emprego
para membros de grupos armados em troca do fim de suas atividades ilegais e da
entrega de suas armas. Segundo Kofi Annan, até dezembro de 2006 apenas dois
grupos com 104 membros aceitaram participar do programa de desarmamento, o que
representava uma parcela ainda muito pequena do total de grupos armados. Estima-se
que existam entre oito e doze grupos armados, mas o número de armas pôde chegar a
treze mil segundo levantamento feito em conjunto pela Anistia Internacional, pela
Rede de Ação Internacional sobre Pequenas Armas (IANSA) e pela Oxfam
Internacional (MONTENEGRO, 2013, p. 60).

As organizações armadas vinculadas ao narcotráfico foram os principais gargalos da


MINUSTAH desde sua consolidação e renovação, principalmente nas transições eleitorais,
onde até 2015 afetou as definições e alterou os calendários eleitorais. A partir de 2007,
conforme Valler Filho e Montenegro a situação se agrava na proximidade do período de
transição eleitoral do senado haitiano, e se repete até 2010. Se intensifica em 10 de janeiro de
2010, com um terremoto de magnitude 7.3 na escala Ritcher34, que não só afetou as mudanças

34
“O tamanho relativo dos sismos é chamado de magnitude. Ela é medida usando-se a chamada Escala Richter,
criada em 1935, por Charles Richter. Essa escala é logarítmica, ou seja, de um grau para o grau seguinte a diferença
83

de ordem estrutural, bem como as frentes de atenção do novo governo de Préval e da


MINUSTAH. Como vemos no mapa 1, as principais comunas afetadas são as mais
centralizadas do Haiti, isto é, a que compreende os principais componentes econômicos,
comerciais e políticos do país.

MAPA 1: principais comunas/cidades afetadas pelo terremoto no Haiti

Fonte: IHSI Haiti (Elaboração nossa)

É interessante ressaltar o processo de mobilidade haitiana e posicioná-la em um


percurso histórico e geográfico que se intensifica conforme as fragilidades sociais e políticas,
que afetam diretamente a população local. Ainda que a MINUSTAH abrandasse parte dos
problemas de cunho processual, isto é, provocadas por uma série de fatores concatenados –
políticas mascaradas por interesses de grupos individuais, corrupção, problemas estruturais na
coisa pública, processos de extrema exploração social e violência ocasionada em grande medida
pela estrutura competente não ser apoiada, sequer discutida, entre muitos outros – elas não
sucumbiriam tão facilmente, ainda mais vindo de uma interferência de fora novamente, outros

na amplitude das vibrações é de dez vezes. E a diferença da quantidade de energia liberada é de 30 vezes. Isso
significa que um terremoto de magnitude 6 tem vibrações dez vezes menores que um terremoto de magnitude 7 e
cem vezes menores que um cuja magnitude é 8 (In.: http://www.cprm.gov.br/publique/Redes-Institucionais/Rede-
de-Bibliotecas---Rede-Ametista/Canal-Escola/Terremotos-1052.html).”
84

países promovendo um discurso de estabilização tal como desde a independência haitiana no


século XIX.
O mapa a seguir, produzido pelo então Ministério do Trabalho e Emprego (hoje
Ministério do Trabalho e Previdência Social), aponta as comunas/cidades de origem dos
haitianos que chegaram ao Brasil em 2012, que em contraponto ao mapa dos locais mais
atingidos pelo terremoto, apresentam analiticamente que o terremoto não necessariamente foi
justificativa para a migração, mas um dos instrumentos possíveis da mobilidade haitiana.

MAPA 2 - Principais cidades de origem de imigrantes haitianos no Brasil (2012)

Fonte: Ministério do Trabalho e Previdência Social – PUC Minas

A diáspora haitiana vem, portanto, do processo e de uma estratégia maior de


sobrevivência e melhoria da qualidade de vida que atinge os emigrados ao conquistar a
permanência em países com melhores garantias que o próprio país. Nesse sentido, Handerson
(2015) assinala o papel e o sentido diaspórico na escala do sujeito haitiano, enquanto produtor
de seu próprio caminho, herança não só da resiliência de um processo de massacres, mas
também da tentativa de autonomia de escolha.
85

A maioria dos que estavam na Guiana vinha do interior do Haiti, boa parte era
cultivador, trabalhava nas plantações e na criação de animais. Quando se perguntava
o que explicaria o fato de uma pessoa do interior, sem nunca ter saído do próprio país
decidir realizar a viagem para Brasil e/ou Guiana Francesa, recebia rápido a resposta:
um sorriso (porque a mobilidade faz parte da vida das pessoas que veem o ato de se
deslocar como algo natural), diziam: “Você sabe que os haitianos adoram pati” (ou
konnen ayisien renmen pati). A mobilidade aparecia como constitutiva da trajetória
de vida das pessoas e dos horizontes de possibilidades delas (HANDERSON, 2015,
p. 225).

Nesse sentido também, atentamos para não associarmos unicamente ao terremoto a


responsabilidade maior da diáspora haitiana (como veremos nos capítulos adiante) não só no
Brasil como em outros lugares do mundo, que obviamente cresceram após 2010, mas um
conjunto de processos que advém do sentido de responsabilidade e escolha de haitianos a essas
fragilidades. Se pensarmos e analisarmos os principais fluxos de haitianos e os países para os
quais eles escolhem migrar, o tronco comum se passa nas referências os quais eles possuem
(Estados Unidos, República Dominicana e França acabam sendo as primeiras referências). A
dimensão de mundo se alarga, tal como a concepção do migrar, da diáspora – e do sujeito
diáspora – também. A MINUSTAH e a participação do Brasil foram cruciais, portanto, para a
representatividade do país frente a certa identificação, a certa referência diaspórica.

2.3.2 As primeiras estratégias haitianas versus as heranças sociais no Brasil: alguns


apontamentos

Nesse sentido, apontamos algumas direções e analisamos alguns processos importantes


para a compreensão atual tanto da emigração haitiana quanto sua posição e contexto no Brasil.
Como vimos, o Brasil em um primeiro momento estimulou o tráfico – a escravidão
negra, atribuído a uma relação de superexploração que resultou não só a ausência de políticas
para os negros após a escravidão, como o total escamoteamento, produzindo uma série de
estigmas do negro, descasos históricos e sociais em todos os sentidos. A partir do século XIX
a migração subvencionada e a tentativa de branqueamento, intensificada enquanto política
nacional até os anos 1980, resultaram na produção de mais estigmas não só com o migrante,
mas com as diferentes formas de ver o outro, isto é, heranças de uma migração também
colonizada pelas ideias do migrante. Uma política que separa o migrante negro do branco, de
suas concepções, seus ideais e sua performance a determinada função – o trabalho, no mínimo
denota uma visão de objetividade a um complexo de fatores que levam à migração.
86

Dessa maneira, vemos que essa objetivação do migrante produz sentidos,


principalmente a partir da intensificação da política restritiva no início do século XX, sentidos
esses dualizados em dimensões da política. No caso das políticas de imigração no Brasil, essas
possuem três dualidades principais, isto é, se posicionam em três dualidades: o negro
trabalhador x o branco trabalhador, o branco etnicamente nacionalizante x outras etnias-nações
que inviabilizam esse projeto de nacional, o trabalho x a procura por melhor condição de
existência.
Estas dualidades se articulam espacial e temporalmente, mas suas raízes se enlaçam nas
características primeiras dos dispositivos políticos que ressaltavam a raça e o trabalho como
principal aspecto de constituição de fluxos migratórios para o Brasil. Interesses individuais
sempre pairaram no processo de construção de políticas de imigração no Brasil.
Na perspectiva das políticas haitianas, como vimos, há uma séria contradição entre o
sentido de ação. Por parte do espírito revolucionário do século XIX, interesses solitários de
ascensão, que envolviam um grupo, sem a preocupação com as ações políticas da sociedade
haitiana, envolvidas em muitos casos no medo e na preocupação de sua própria vida. O fim da
escravidão não levou necessariamente ao fim da exploração, do descaso e da ausência de
compreensão da pluralidade de um país etnicamente e conceitualmente plural. A emigração,
e/ou a diáspora haitiana como subjetividade marcam um sentido de coletividade primeiro pela
sua própria busca, mas também pelo seu resgate enquanto prática, enquanto ação.
Na imigração de haitianos para o Brasil, não somente a busca e a tentativa da ação
diáspora são apontadas, como – e principalmente – os mecanismos que essa prática de ser
diáspora são espraiados conforme estratégias de um grupo, de um apoio de toda uma família,
e ainda que novas redes de antigos desconhecidos que se encontram vão surgindo, as famílias,
no seu sentido mais amplo vão se comunicando, se articulando a partir da migração. Esse
sentido diaspórico e parte dessa ação que era um desacordo de suas próprias articulações
políticas entre grupos minoritários urbanos e ricos tornam-se uma ação, um verbo a partir do
migrar de grupos pobres, das zonas rurais.
Mas as geometrias de poder acontecem. O desacordo das políticas de migração e das
heranças sociais que produzem e reproduzem estigmas para com a migração e o migrante,
aliadas ao conceito de um Brasil dotado de inúmeras possibilidades e escolhas,
representatividades construídas ainda no Haiti. A configuração do país para se tornar uma
grande nação em desenvolvimento equiparado aos grandes estados nacionais. Para tanto, copiou
a mesma fórmula apontada pelos seus colonizadores.
87

A entrada recente de imigrantes no Brasil, tal o caso dos haitianos, mas também
senegaleses, ganeses, angolanos, sírios, dominicanos, equatorianos, colombianos, peruanos,
bolivianos, e muitos outros possuem múltiplas facetas que questionam essas dualidades da
política e da constituição social que traz como reflexo dessas políticas. Não só pelo fato do país
estar em um contexto no qual faz jus anos de tentativa de progressão ao seu crescimento – o
que acarreta, tal como em países chamados desenvolvimentistas – na entrada de imigrantes
pobres à procura de qualidade de vida, mas também porque suas relações não foram e nunca
serão duais.
Essa dualidade tem como exemplo, inclusive, o fator no trabalho muito presente no
discurso e nas legislações que priorizavam o branco-europeu-sem-deficiências e o discurso da
imigração qualificada, isto é, o trabalho como influência da chegada de imigrantes ainda parece
presente no discurso do Estado, enquanto no discurso do imigrante é uma das diversas presenças
que constituem, em grande medida, a garantia de uma qualidade de vida em detrimento a um
passado de instabilidade e sobrevivência.
Por outro lado, as estratégias haitianas enfrentam as adversidades dessas heranças e
possibilitam desdobramentos, no associativismo e nas redes de migração que promovem
caminhos de permanência. É importante ressaltar que essas relações ainda possuem rusgas
muito profundas: seja nas dificuldades da língua, no preconceito, nas relações do trabalho,
muitas vezes considerado árduo para suas formações/escolaridades, até as dificuldades de
economizar dinheiro para a família que ficou no Haiti. As redes haitianas parecem, até o
presente, muito espessas e culturalmente contundentes enquanto estratégia de permanência no
Brasil.
88

3 CAPÍTULO III
CONFLITOS E CONTRADIÇÕES: GEOMETRIAS DE PODER E
HAITIANOS NO BRASIL

O caso do Brasil é peculiar quanto às políticas de mobilidade. Embora haja um consenso


discursivo de abertura das portas para estrangeiros, os atravessamentos são contraditórios. No
caso dos haitianos no Brasil, por exemplo, todo o processo da entrada pela fronteira boliviana
e peruana, a passagem pelo Sudeste e Sul até suas condições de permanência no país é marcado
por um longa e cansativa série de tentativas de inserção. Isso acontece tanto na relação com a
sociedade local, quanto com os diversos dispositivos políticos que o acolhem, mas ao mesmo
tempo marcam a sua diferença.
Um exemplo é sua condição entre o legal e o ilegal, e as garantias de sobrevivência no
lugar em que se instalam aonde na maioria das vezes, e por várias razões, vão para as periferias.
Também, a falta de diálogo recorrente com o poder local em garantir o acesso à “cidadania” em
amplo sentido. Da mesma maneira que os muros físicos, as fronteiras da política que apartam e
ratificam a segregação e o discurso de “invasão” são partes desse processo apresentado.
Essas geometrias de poder se cruzam com os mecanismos que os imigrantes haitianos
encontram para se constituir no país. O difícil processo da saída da fronteira acreana para outros
pontos do Brasil, seja financiada ou autônoma, deu visibilidade aos haitianos não só das suas
contradições políticas e sociais, mas das próprias estratégias de permanência e mobilidade no
Brasil.
Conforme apontado, as geometrias de poder são resultados das interações sócio-
espaciais de grupos migrantes, o processo de chegada e de permanência no lugar em que
chegam. Tal processo não se dá sem disputas territoriais, ainda que nas escalas micro, inclusive
nos processos corpo-a-corpo. A negociação da identidade para com o lugar, conforme Doreen
Massey, é ampla, amarga e enlarguecida pelas diferenças culturais e territoriais entre
estrangeiros e nascidos no Brasil.
O objetivo deste capítulo, portanto, é apreender a repercussão política e social das
estratégias de mobilidade de haitianos no Brasil versus estratégias de mobilidade do Estado
brasileiro para com migrantes haitianos. Tais repercussões são pensadas de maneira intrínseca?
Tais estratégias formam e conformam a melhoria da permanência e da inserção de haitianos no
Brasil? A política do Estado compreende e possibilita as estratégias de mobilidade e
89

permanência desses grupos migrantes? São alguns questionamentos desdobrados da pesquisa


que aporta este capítulo.
Seu eixo no espaço e no tempo, ou sua periodização cruza o caminho do terremoto, data
em que se intensifica a diáspora haitiana no Brasil (cf. Handerson, 2015), em janeiro de 2010;
a instalação das duas principais rotas de acesso de haitianos, entre a fronteira amazônica (Acre
e Amazonas), e em especial a entrada de haitianos pela fronteira acreana, visualizado por um
trabalho de campo onde se produziu algumas reflexões, em Fevereiro de 2015.
O eixo deste capítulo é concluído com as respostas à intensificação da entrada de
haitianos, assim como com os desdobramentos do Estado brasileiro em promover e crescer o
debate sobre políticas de imigração no Brasil.

3.1 Chegada ao Brasil: as relações e os processos de mobilidade

No capítulo anterior, foi apontada a trajetória das políticas de imigração no Brasil, donde
o personalismo e o desencontro às demandas e necessidades de migrantes era o tom na maioria
dos acontecimentos. A trajetória de emigração, refletidas no ser diáspora haitiano, até os
acontecimentos de janeiro de 2010, é marcada pela violência, corrupção e dependência
ratificadas como fortes reflexos que acarretaram a crise política, econômica e social no Haiti. É
analisado e compreendido que o papel da MINUSTAH e dos atravessamentos da realidade
política e econômica brasileira contribuíram para o Brasil ser uma das rotas propícias da
diáspora de haitianos.
Nesse sentido, é importante acrescermos dois elementos que interagem no processo da
imigração haitiana recente: a perspectiva do ser diáspora e os reais interesses da diáspora
atravessar a América do Sul, nas perspectivas de Joseph Handerson (2015) e Saskia Sassen
(1996).
Para Handerson, o processo de diáspora haitiana envolve o conjunto indissociável de
relações entre as concomitantes crises que afetam estruturalmente o Haiti e, sobretudo a
esperança pela melhoria da qualidade de vida, donde fora da capital Porto Príncipe o quadro é
agravado. Essa diáspora, ou esse processo de diáspora haitiana como vimos, permeia a
construção do próprio Haiti como país independente.
Isso nos leva a Saskia Sassen (1996), quando observa em Losing Control? Sovereignty
in an age of globalization que o reflexo de uma nova reconfiguração da soberania está nas
90

migrações, principalmente entre países subordinados economicamente às novas grandes


nações. Há dois elementos chave que marcam as maneiras de visualizar as políticas de
imigração em países altamente desenvolvidos e seu sentido de soberania, impondo mais ou
menos controle conforme convém a determinados países: o primeiro são as formas de regulação
e controle de suas fronteiras em pontos estratégicos e segundo, as estratégias políticas
oferecidas em acordo ou desacordo com as políticas oficiais de organizações mundiais (como
a Organização das Nações Unidas) para imigrantes e refugiados.
Para esses Estados nos quais historicamente se construiu a ideia de soberania e um alto
sentido de Estado-Nação, a migração é vista de forma isolada e individual, o que a torna também
cada vez mais discriminada e intolerada por esses países. Sassen aponta vários exemplos de
tentativa de restringir via negociações indiretas a acordos internacionais e leis fragmentadas
que inviabilizam cada vez mais a entrada de imigrantes e refugiados. É o caso por exemplo dos
Estados Unidos e da Alemanha.
Mas são esses conceitos, e essa ideia de Estado-Nação, que se tornam referência no caso
de países cuja soberania e poder estatal foram subordinados a outras potências – como o caso
do Haiti e de certa forma no Brasil. E é no controle e na ajuda militar que o reflexo dessa
referência mais se denota. A autora traz alguns exemplos de países que deram suporte ao
controle das fronteiras, sobretudo por interesse próprio, e que após alguns anos tornaram-se o
principal fluxo migratório dos países em que houve esse suporte militar.
As relações entre emigração e imigração, a escolha entre os países imigrados e as
influências de grandes potências a países mais pobres são alguns dos vários fatores de ordem
geopolítica que promovem a migração. O que gera um paradoxo e por si só uma contradição
quanto às políticas restritivas, porque também acabam por ser a principal representação seja
política, militar, ou mesmo de soberania inscritos em uma perspectiva individual e restritiva da
globalização em oferecer muito para uns e pouco para a maioria.
Podemos depreender com o que ocorreu no Haiti historicamente, no caso da emigração
para os Estados Unidos, da qual há mais registros até hoje, e no caso dos haitianos no Brasil a
partir de 2012. Diversas concepções de diplomacia, cultura, economia foram reproduzidas após
a entrada do Brasil pela Mission des Nations Unies pour la Stabilization em Haiti
(MINUSTAH). Nota-se que não foi um caso isolado, mas um conjunto de fatores que são
apontados por Saskia Sassen, e que desencadearam um fluxo migratório. Políticas de restrição
não podem ser pensadas, portanto, sob o caráter peculiar de um determinado ponto de vista do
91

processo de globalização. Elas são um conjunto de agenciamentos e referenciais advindos do


reflexo de suas próprias estratégias territoriais.

3.1.1 As estratégias de mobilidade

Nesse sentido - e na tentativa de não ser maniqueísta – por um lado temos as


idiossincrasias do “processo diáspora” donde emigração e imigração fazem parte da mesma
sessão de estratégias da população haitiana, que conforme Handerson articula a mobilidade
como estratégia de ascensão econômica e social. Por outro lado, temos a articulação de uma
rede de espacialidades que constituem uma estratégia migratória por vezes até peculiar no caso
dos haitianos. Isso se dá pela profunda capilaridade demonstrada histórica e espacialmente do
ser haitiano diáspora, conforme mapa a seguir:

MAPA 3 - Diáspora Haitiana

Fonte: HANDERSON (2015); ROSA (2015); CONTIGUIBA (2014). (Elaboração nossa).


92

Decorre da imagem uma reflexão de ordem geopolítica, quanto às influências de países


assentados pela ideia de soberania moderna foram importantes para o senso do sujeito diáspora
ratificados por Handerson (2015), cujas mobilidades tendem a percorrer tais influências e outras
além (França, Estados Unidos, República Dominicana, Cuba, Bahamas e África dentre outros)
e uma reflexão de ordem sócio-espacial, quanto à construção de redes e zonas políticas de apoio,
espraiamento e novas estratégias diásporas.
É nisso que consiste o que se trata por estratégia de mobilidade.
Elas – as estratégias de mobilidade – tornam-se o conjunto de fatores que promovem as
espacialidades de grupos migrantes nos lugares escolhidos para ser parte de sua mobilidade.
Elas possibilitam não só a permanência, a formação de novas redes migrantes, a novas
estratégias de mobilidade. Elas permitem a consolidação de um processo político baseado e
iniciado pela escolha, pela própria opção de migrar. Da mesma maneira que elas não finalizam
na formação de um grupo político intrínseco e consequente a essas estratégias, como elas
continuam ainda que um migrante permaneça em um determinado lugar, no lugar chegado.
Elas são indissociadas do processo próprio de mobilidade de cada migrante. Destarte
Sayad (1998), que compreende emigração e imigração como parte do paradoxo do migrante –
no sentido de que ele é um emigrante e torna-se estranho no lugar que nasceu ou no lugar
deixado bem como não é considerado nas políticas e na sociedade local no lugar chegado – elas
não se sobrepõem na constituição ou na possível consolidação como cidadão em outro lugar. O
migrante tem no seu processo de mobilidade, por base de sua própria opção de mover, deslocar,
o senso político de suas estratégias.
Da mesma maneira em que o sujeito migrante constrói estratégias de mobilidade, o
Estado – capitalista e instituição normativa – constrói também suas estratégias de mobilidade,
ainda que para arrefecer as estratégias de grupos migrantes35.
No caso dos haitianos, a capilaridade e a peculiar espacialidade modeladas pelo ser
diáspora, a diáspora como próprio sujeito haitiano, são parte de suas estratégias de mobilidade.
Não à toa, as relações entre o interesse dos haitianos em migrar para o Brasil se cruzam com o
interesse do Brasil em se alargar diplomaticamente.
Tal como apontado no capítulo anterior, acordos de ordem multilateral do que se define
como diplomacia solidária a partir do início do século XXI, impulsionam a visibilidade do Brasil
por países em fragilidade política e social. No Haiti há um fator a mais, que essa visibilidade
coincide com a participação direta do Brasil na MINUSTAH, no que Sassen (1996) depreende

35
Conforme abordar-se-á no decorrer deste capítulo.
93

sobre as influências da ordem da soberania e suas táticas na escala global em promover e


mobilizar agentes inclusive dos Direitos Humanos (ONU e ACNUR são alguns dos exemplos)
às influências das estratégias de mobilidade de grupos migrantes, sobretudo oriundos de países
considerados pobres.
Vale ressaltar que a Guiana Francesa, Equador e Panamá já integravam rotas conhecidas
pelos haitianos, sobretudo a primeira. Tal como apontado por Handerson (2015), Contiguiba
(2014), Vieira (2014), Thomaz (2015), dentre outros pesquisadores, a entrada à fronteira
brasileira se deu por uma série de fatores, e um deles a busca para a entrada pela Guiana
Francesa, território da França na América do Sul.

Respectivamente, 119 e 170 solicitações de refúgios foram realizados na Guiana. Em


dezembro de 2005, o diretor geral do OFPRA declarou que 4.718 solicitantes
haitianos depositaram a documentação na França, dos quais 3.348 em Guadalupe, 125
na Martinica e 173 na Guiana Francesa (HANDERSON, 2015, p. 219).

É essa capilaridade, esse poder de espraiamento como tática – poderíamos dizer–


territorial que constitui a primeira estratégia de mobilidade de haitianos no Brasil.

3.1.2 A viagem por el Sur

Conforme Handerson, a migração para a Guiana Francesa no século XXI data de bem
antes do terremoto de 2010. Em trabalho de campo ali realizado, Handerson ressalta que a rede
de relações para aquele espaço encontrava-se extremamente consolidada, e que o papel
associativista e político dessa rede se notavam em grande medida nas rádios comunitárias
principalmente nas áreas de concentração de imigrantes haitianos36.
Tal fluxo, conforme capítulo anterior, é consolidado em primeiro lugar a partir da
intensificação das redes de violência, seja nas comunas rurais ou no raio da capital Porto
Príncipe, seja na profunda desigualdade espacial promovida entre a capital e as demais
localidades do país. Junto a isso, as políticas hostis legitimadas de Papa Doc e Baby Doc, bem

36
“No caso dos haitianos na Guiana [Francesa], além de associações, também criaram rádios comunitárias para
fins de comunicação, de educação, para fè politik (fazer política), além de transmitir elementos culturais haitianas
através delas. Uma das primeiras é denominada Rádio Mosaïques” (In.: HANDERSON, 2015).
94

como a ditadura de Cedrás, já no final do século XX contribuíram para a formação de milícias


que até hoje atuam no Haiti e inclusive interferem no processo democrático37.
Em segundo lugar, a capilaridade migratória de imigrantes haitianos participa de uma
conjuntura da política do medo de países atuantes politicamente no Haiti, como Estados Unidos,
República Dominicana e França, dentre outros que promovem uma série de entraves no sentido
de conter a mobilidade para tais países.
No tocante à capilaridade da migração de haitianos via América do Sul, tomemos três
elementos importantes para situar não só as potencialidades, mas as relações de poder contidas
no processo, seja dos grupos migrantes seja sobretudo dos agentes pelos quais esses migrantes
passam.
O primeiro elemento refere-se ao que significa essa política do medo. Possui pelo menos
duas escalas importantes: primeira, a escala do migrante haitiano e o medo do fracasso no
trânsito ao lugar chegado. Ele se reflete na multiplicação das trajetórias e das possibilidades de
fluxos entre Américas; segunda, a escala dos países cuja importância política é intrínseca à
migração, como no caso de Estados Unidos e França no sentido da primazia política e
econômica para o Haiti, e República Dominicana no sentido da articulação política, social e
geográfica como país vizinho. Tanto EUA e França quanto República Dominicana reduzem,
desde meados da década de 2010 – e no transcurso da década, como agora em 2017/2018 – a
entrada de haitianos em seus territórios. Fica claro no relato de Handerson (2015), quanto ao
trajeto de um de seus entrevistados em uma ilha caribenha que também recebe imigração
haitiana:

Quando James chegara a Grand Turck, decepcionara-se com a infraestrutura, melhor


dizer, a falta dela, comparando com a República Dominicana onde residira. Segundo
ele, a Ilha “era no meio do mato” (nan rak bwa), as construções de madeira e precárias.
O fato de ser um lugar pequeno (18 km²) nos termos dele, “era possível passar de uma
ponta da Ilha a outra em dez minutos”, já logo queria deixar o local. Somando-se a
isso os dias passando sem trabalho ou dinheiro e o medo de serem deportados pelos
policiais, eles evitavam circular nas ruas de Grand Turck. Nessa época, os policiais
ingressavam nas casas para procurar pessoas em situações indocumentadas para

37
Temos como exemplo notícia de final de 2016, onde ocorreu a última eleição no Haiti, em volta a uma série
de conflitos entre milícias locais controlando as principais favelas de Porto Príncipe até o caráter duvidoso do
resultado da maior parte das eleições haitianas neste século: “La tension est montée au cours des vingt-quatre
dernières heures dans l’attente des résultats. Des tirs d’armes automatiques ont résonné tôt, lundi matin, dans les
quartiers populaires de Belair, de Solino et de Delmas, à Port-au-Prince, la capitale. Une barricade de pneus
enflammés a interrompu la circulation sur une artère fréquentée [...]Venus des quartiers les plus -pauvres de Port-
au-Prince, des partisans de Maryse Narcisse ont manifesté en début de semaine, dénonçant « un coup d’Etat
électoral » en préparation. Rudy Hérivaux, le porte-parole du PHTK, le parti fondé par l’ancien président Michel
Martelly, avait proclamé la victoire de Jovenel Moïse, violant la règle interdisant aux partis d’annoncer des
résultats avant le CEP.” Disponível em : http://www.lemonde.fr/ameriques/article/2016/11/29/jovenel-moise-
petit-paysan-qui-reussit-nouveau-president-haitien_5040106_3222.html.
95

deportá-las e, ao mesmo tempo, multavam o proprietário da casa onde elas se


abrigavam. Por conta disso, James ficara uma semana dormindo no carro do amigo
(HANDERSON, 2015, p. 207).

Essa política do medo, que se pode perceber de processos emigratórios do Haiti resulta
de um projeto maior de construção de barreiras à migração de oriundos de países pobres/e ou
em conflito e /ou discordantes a lógica global financeira (SASSEN, 1989, 1996, 2016;
HARVEY, 2013; BROWN, 2011 etc), que acentuam as desigualdades e intensificam a relação
de poder que esses países possuem em relação ao mundo. É um jogo de cartas bem marcadas.
O segundo elemento refere-se aos trâmites à rota sul-americana. Podemos apontar os
acordos multilaterais que envolvem os países do Mercado Comum do Sul - Mercosul e o Plano
de Ação do México de 2004, sendo que o Brasil assumiu um como impulsionadores a entrada
de novos migrantes, mencionados no capítulo anterior. Eles facilitaram as possibilidades de
passagem para países como Equador, Colômbia, Peru e Bolívia. Essa política vinculada à
diplomacia solidária consolidada na gestão do governo de Luis Inácio Lula da Silva no Brasil
e às ressignificâncias dos percursos migratórios devido ao enrijecimento das fronteiras no
mundo, que possibilitou novas referências para rotas migratórias. Não que as atitudes
diplomáticas da América do Sul acolheram e aportaram imigrantes durante esse período que
vai do fim do século XX ao início do século XXI, pelo contrário. Como veremos adiante, as
estratégias de mobilidade do Estado podem ser o revés das dos migrantes. Nesse sentido:

No caso dos haitianos, há um duplo nível: 1) os agentes estatais brasileiros, peruanos,


equatorianos, franceses e surinameses constituíram mecanismos e dispositivos de
barreiras para controlar a chegada de novos migrantes; 2) os haitianos desenvolviam
novas estratégias, criando novos circuitos e rotas migratórias para alcançar os lugares,
constituindo novos territórios da mobilidade [...] O conjunto dos lugares constitutivos
de um território da mobilidade não são pontos isolados, eles se interligam através dos
circuitos e das redes de mobilidade (HANDERSON, 2015, p. 181).

O terceiro elemento é a ingerência dos agenciadores na diáspora haitiana, conhecida


como raketés38 no Haiti e coiotes no Brasil, tema que pela sua complexidade será desdobrado
no tópico a seguir.

38“A mobilidade dos haitianos se constitui através de diferentes redes de relações familiares, amizades, solidariedade e raketè.
Raketè é uma categoria de acusação. O uso dela no Haiti não está restrito ao campo da migração e da mobilidade. Serve para
denominar qualquer pessoa que cobra dinheiro de outra para efetuar vários tipos de transação. Geralmente, raketè é considerado
um esperto que usa vários mecanismos e artimanhas para lucrar na informalidade ou até indevidamente. O raketè que agencia
a viagem, por vezes, trata-se de um familiar, amigo ou desconhecido.”. In.: HANDERSON, 2015, p. 171.
96

3.1.3 A presença dos atravessadores (raketés ou coiotes) na viagem até o Brasil

Eis um ponto de muita controvérsia entre pesquisadores e processos de ordem político-


jurídica no Brasil, sobretudo na fronteira de chegada de haitianos. Mesmo definir a partir da
conversa – quando é possível aproximar o diálogo que viabilize atravessar todo o trauma de
uma viagem marcada pela violência e pela exploração como o caso de imigrantes haitianos até
o Brasil – quem são esses coiotes e o que de fato se define e se constitui para eles ingressarem
em determinados países é delicado e requer uma análise pormenorizada dos fatos. Comecemos
com Handerson:
Há ajans ou raketè no Haiti atuantes em mais de um circuito da mobilidade. Enviam,
ao mesmo tempo, pessoas para os Estados Unidos, França e Canadá. Outros
encaminham somente para Guiana Francesa ou Bahamas. Poder enviar e saber enviar
pessoas para mais de um circuito é fazer parte de mais redes e ter mais conhecimentos
dos circuitos da mobilidade haitiana. Também é mobilizar recursos como papéis e
documentos dessas localidades, visto haver ajans e raketè que organizam os
documentos, para os candidatos poderem solicitar seus vistos legalmente nas
embaixadas. Enquanto ajans está associado aos documentos verdadeiros, raketè é
reconhecido pelos documentos falsos (HANDERSON, 2015, p. 174).

Os raketés no Haiti podem servir a uma série de agenciamentos que não somente para
o atravessamento de migrantes. Conforme adiantamos, a intensificação de sua atuação ocorre
quando o perfil da diáspora haitiana se diversifica, não somente por imigrantes comerciantes
ou refugiados políticos, mas principalmente pelos imigrantes em busca de trabalho e/ou
melhores oportunidades. Considera-se também que parte desses atravessadores são diásporas
que aportam nesse tipo de atividade parte do sustento, complexificando uma possível tipologia
da migração, que acaba tornando-se dependente de um agente, de um agenciador.
Vale destacar que conforme buscas acerca do termo “coiote” em fontes de pesquisa39
no Brasil, tal começa a ser utilizado no início da década de 2000 em referência a emigrantes
brasileiros que buscaram a fronteira do México para chegar aos Estados Unidos 40. A presença
do termo coiote portanto é inicialmente aludida a uma rede de agenciamento em troca de
recursos para atravessar a fronteira entre a América Central e América do Norte.

39 Reportagens nacionais, trabalhos acadêmicos e principalmente acervo digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos
Migratórios.
40 “A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDHCF) recebeu denúncias de arbitrariedades e maus-tratos contra

brasileiros que tentaram atravessar a fronteira do México com os Estados Unidos. Orientados por coiotes (homens contratados
para fazer a travessia do rio Grande, marco divisório das duas nações), brasileiros a maioria formada de mineiros foram
descobertos e trancafiados em presídios mexicanos. Detidos em Tijuana, todos foram transferidos para a cidade do México.
Mantidos em condições desumanas, eles só passaram a receber assistência consular semanas depois da detenção, pois suas
prisões não foram imediatamente comunicadas ao consulado ou à embaixada. Segundo relatórios da Anistia Internacional, o
México apesar de algumas melhorias fere princípios na guarda de presos, dispensando-lhes um tratamento degradante.”.
Disponível em: https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/niem_rj/conversations/messages/325.
97

No decorrer da década de 2000, as notícias e pesquisas dividem o termo coiote em duas


situações distintas: uma, o atravessamento via terceirização de um agenciador entre México e
EUA; e outra, a exploração de bolivianos e paraguaios no setor têxtil e da cidade de São Paulo,
frequentemente associada ao trabalho escravo e ao trafico de seres humanos. Repercute nesse
período uma série de denúncias a grandes empresas – C&A e Zara como exemplos – de incitar
o tráfico de pessoas para o trabalho escravo41.

Histórias de ilegalidade e violações de direitos humanos se repetem na fila do posto


de serviço para imigrantes bolivianos, que funciona desde o dia 10 no Memorial da
América Latina. Muitos dos que estão no Brasil tiveram os documentos confiscados
por coiotes, que os trouxeram para trabalhar ilegalmente em fabriquetas do setor têxtil,
em condições de semi-escravidão. Outros têm os documentos vencidos - a validade,
na Bolívia, é de cinco anos.42

Uma notícia do dia 30 de outubro de 2008 revela algumas indicações relevantes para o
contexto do trânsito de imigrantes haitianos pela fronteira amazônica, embora não haja relação
com o Caribe: a prisão de um atravessador de chineses pelo Acre e por Rondônia, sendo que
nesse caso a viagem era de avião da China até o Equador, e por terra até Assis Brasil, no Acre,
ou Guajará Mirim, em Rondônia, ambas vizinhas a países sul-americanos (Peru e Bolívia). Essa
notícia indica que de fato havia uma rota de atravessamento no qual a barganha ilegal ocorria e
que, no caso dos chineses, referia à migração para superexploração para outras regiões do país.
Contudo, essa forma de atravessamento não indica o tráfico de chineses, mas sim uma forma
de agenciamento via barganha ilegal de chegar ao Brasil.

Segundo informações colhidas pelas polícias Federal e Rodoviária Federal (PRF), os


chineses saem de avião de seu país de origem com destino ao Equador. Um acordo
bilateral entre os dois países, tal qual existe entre o Brasil e o Peru, facilita a entrada
e saída de estrangeiros em seus territórios, o que também acaba auxiliando os que
decidem partir para destinos mais distantes. Do Equador para o Peru os grupos viajam
como clandestinos em ônibus, de onde partem para o Brasil com a ajuda dos "coiotes".
Da Região Norte os chineses partem para São Paulo, onde passam a trabalhar em
pequenas malharias e outros tipos de serviços, muitas vezes considerados
degradantes43.

41Conforme mensagem enviada do Observatório Social em maio de 2006: “Que moda é essa? C&A vende roupas produzidas
em malharias clandestinas, mediante exploração de mão-de-obra de imigrantes irregulares. Reportagem do Observatório Social
revela que a multinacional de origem holandesa C&A, com 113 unidades instaladas no Brasil, se beneficia do trabalho
degradante de imigrantes na cidade de São Paulo. Os trabalhadores são trazidos ao Brasil por intermediários conhecidos como
"coiotes", que ganham dinheiro contrabandeando gente de um país para outro. Pelo menos 100 mil bolivianos estão nesta
situação na capital paulista.” Disponível em: http://www.observatoriosocial.org.br/portal/.
42 Notícia de Julho de 2008. In.: Acervo Digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios. Disponível em:

http://www.elperuanolatino.com/noticia0.html.

43
In.: Acervo Digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios. Disponível em:
http://www.pagina20.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1891.
98

Ao que parece, há duas categorias distintas de atravessadores de fronteiras na América


do Sul para os quais, no Brasil, pode se utilizar a mesma palavra coiote:

a) os traficantes de pessoas que direcionam para imigrantes em trabalhos análogos a


escravidão, sem o pagamento de salário e sem a perspectiva de obtenção a legalidade
desses imigrantes no Brasil – o que acontece sobretudo com bolivianos e paraguaios na
produção têxtil em São Paulo;
b) e agiotas da mobilidade, que se articulam com outros agenciadores em troca de serviços
para rota e para “facilitar” a entrada de imigrantes no país, o que implica em fixar-se em
lugares específicos e fomentar uma rota que por si só, encadeia uma série de serviços
de exploração econômica de imigrantes, como no caso dos atravessadores no México,
dos raketés no Haiti, e dos chineses entre Equador e Peru. E o que possivelmente ocorre
com os haitianos no Brasil a partir de 2011.
Há de se analisar a questão do tráfico de pessoas e da migração irregular de forma mais
profunda, que aqui se mostra em dois elementos importantes, de caráter terminológico e de
caráter conceitual. Quanto ao caráter terminológico, há uma confusão na aplicação da palavra
tráfico no que se refere ao trato linguístico, isto é, ao que a palavra significa em diferentes
traduções. No inglês, por exemplo, tráfico pode ser traduzido como smuggling, que na realidade
é contrabando, e não tráfico de pessoas, que no literal significa trafficking in persons.
Tampouco a palavra traffick é aplicável, já que significa tráfego.
Da mesma maneira, em espanhol a palavra tráfico pode ser empregada tanto para tráfego
– trânsito – quanto para tráfico, de coisas e pessoas. Em francês, trafic é tráfego e traite de
personnes seria o correto para o tráfico de pessoas. Embora banal, essa diferença entre
pronúncia e termo aponta muitas das confusões, principalmente na tradução livre entre
instâncias governamentais e organizações que dialogam com imigrantes e permite diversas
dimensões do problema.
Quanto ao caráter conceitual, o Brasil acompanha o Protocolo de Palermo de 2000, a
Organização Internacional da Migração (OIM) e a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, a partir do Decreto n. 5.948, de Outubro de 2006 (DE CASTILHO, 2014).
Para De Castilho, a partir de tais documentos jurídicos, é possível diferenciar tráfico de pessoas
e migração irregular da seguinte forma:

A norma internacional define como tráfico de pessoas o recrutamento, o transporte, a


transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, realizados mediante ameaça,
99

uso da força ou de outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade
ou de situação de vulnerabilidade, ou ainda corrupção de pessoas com autoridade
sobre outra, com a finalidade de exploração no plano sexual, no plano do trabalho ou
de órgãos do corpo humano. [...] Ressalta-se aqui a classificação jurídica entre
migração regular e irregular, que se origina nas políticas restritivas de imigração
adotadas pelos países, em nome da proteção de suas economias e culturas. [...] Uma
das chaves importantes na diferenciação entre tráfico de pessoas e o contrabando de
imigrantes é o consentimento. Se a pessoa consentiu em ser recrutada, transportada,
transferida, alojada ou acolhida, não se caracteriza tráfico de pessoas, mas a migração
irregular (DE CASTILHO, 2014, p. 19-20).

Assim, há também uma confusão de ordem conceitual quando se fala de tráfico de


pessoas que envolvem a distinção da migração irregular e o consentimento presente no ato da
irregularidade. Nessa perspectiva, Vieira (2014) aponta alguns caminhos quanto aos interesses
em destacar a atuação dos coiotes no caso dos haitianos:

O combate aos “coiotes” que cobravam uma quantia entre 700, 00 e 2.500,00 dólares
por pessoa [1.540 e 5.500 reais respectivamente] e a possível rede de tráfico de
pessoas eram argumentos utilizados por autoridades brasileiras para justificar a busca
de construção de uma rede de gestão policial e de fiscalização com agências
equatorianas e peruanas.[...] A atuação de “coiotes” remete a ideia de transporte, a
atividade é feita para levar a pessoa aonde ela deseja através de caminhos alternativos
com vista a fugir do controle policial (VIEIRA, 2014, p. 79).

Quanto à chegada dos primeiros haitianos, na fronteira entre a Colômbia e o Brasil via
o Estado do Amazonas, ocorreu uma audiência para discutir com entidades governamentais e
não governamentais o fluxo para tal Estado, a autora aponta ainda:

Durante tal audiência em Manaus, algumas autoridades enfatizaram o não


enquadramento dos trânsitos de pessoas vindas do Haiti como tráfico de pessoas. A
CPI constatou que eles não foram traficados para fins de exploração e deu o caso como
encerrado. Alegou-se na reunião as promessas feitas pelos profissionais aos
estrangeiros sobre oportunidades e boas ofertas de emprego que eles encontrariam
quando chegassem ao Brasil, o que não deixa de ser uma propaganda falaciosa. [...]
Afirmar o “tráfico de migrantes”, a atuação de “coiotes” e os danos trazidos aos
estrangeiros, pode ser sugerido, era também uma maneira de justificar as tentativas de
fortalecer o controle dos ingressos pela região norte do Brasil. Convém pensar nessa
perspectiva quando olhamos para o uso de tráfico de pessoas na agenda da missão,
posteriormente revisado como tráfico de migrantes. Se a preocupação, naquele
momento, incidia nas possibilidades de estar em jogo um desses dois tipos de
atividade, as ações para verificá-las repousaram menos em atendimentos, escutas e
apoios às supostas vítimas que na busca de acordos na área de inteligência e policial
para capturar os “coiotes” e combater as redes de tráfico (VIEIRA, 2014, p. 80-81).

Este sutil desdobramento na confusão da categoria coiote traz vários equívocos, o que
indica Vieira muitas das vezes no aspecto tendencioso da política – conforme veremos adiante
– em transformar a chegada do imigrante, e no caso do imigrante negro e pobre, em um
problema, apontando o “problema migrante-problema” (MARTINS: 2013). Ao mesmo tempo,
100

a presença do raketé ou coiote no trânsito dos imigrantes haitianos é crucial para entendermos
a lógica da capilaridade da diáspora haitiana. Da mesma maneira que as estratégias de
mobilidade acontecem na forte presença da escolha do imigrante, e conforme Handerson (2015)
uma escolha por muitas vezes coletiva no caso do diáspora haitiano, essas estratégias são
também embebidas da demanda e da escolha de outros agenciamentos. Se por vezes nos
aspectos históricos, da política haitiana na tríade corrupção-violência-dependência, também
geográfica quanto aos elementos em que o Estado produz e reproduz normas e certames de
recriminação ou de abertura política para entrada de novos migrantes. Conforme já dito, é um
jogo de cartas bem marcadas.

3.1.4 A fronteira acreana como ponto de passagem

Este relato visa apontar as estratégias de permanência de imigrantes haitianos no Brasil,


fluxo iniciado após o terremoto do Haiti em 2010, e intensificado devido a uma série de
questões, que vão da política interna a paulatinas ações externas de outros países, como políticas
restritivas, cerceamento das fronteiras, dentre outros. Visando realçar esse caráter de relato,
será utilizado, nos trechos referentes ao trabalho de campo, o recurso da redação em primeira
pessoa.
O Brasil, apesar de ainda ser um destino secundário para os caribenhos, teve na
imigração haitiana um dos principais movimentos de chegada de estrangeiros na segunda
década do século XXI. Com isso, constituíram-se redes de apoio importantes que alimentam o
fluxo, na visão das instituições até chegar a do próprio migrante haitiano na chegada, a partir
de Marc (nome fictício dado ao haitiano com quem dialoguei com maior atenção no Abrigo).
De 02 a 05 de fevereiro de 2015, estive na cidade de Rio Branco para acessar
informações e visualizar a situação do abrigo Chácara Aliança, na capital do Estado do Acre.
Nessa ocasião, o campo de primeiro acolhimento aos haitianos, em Brasiléia, já havia sido
fechado pelo governo do Estado. Inicialmente, houve o pedido de autorização na Secretaria
Estadual de Direitos Humanos, que resultou em uma conversa rápida com o então secretário de
direitos humanos Nilson Mourão. Após, a visita ao abrigo localizado no bairro Irineu Serra, na
periferia da cidade, em uma chácara anteriormente locada para grandes eventos, e em ocasião
de superlotação. Com relação ao abrigo de Brasiléia, havia denúncias por violações aos direitos
101

humanos dos migrantes44. Em referência ao abrigo na cidade de Brasiléia, no Acre, aponta


Thomaz (2015):
As condições sanitárias do abrigo eram particularmente precárias, com apenas dez
latrinas e oito chuveiros para todos os migrantes, sendo que havia esgoto correndo
continuamente a céu aberto. Homens, mulheres, crianças e idosos compartilhavam o
mesmo espaço, dormindo sobre colchões velhos e deteriorados que ocupavam toda a
área coberta do abrigo. A distribuição das refeições era marcada por tensão, sendo
realizada em duas filas: uma para homens e outra para mulheres. A fila dos homens
se formava cerca de duas horas antes da distribuição das marmitas e era marcada por
brigas entre os migrantes na tentativa de garantir uma refeição. Dada a recorrência
destas brigas, policiais militares foram designados a montar um posto em frente ao
abrigo na hora do almoço. Quando da distribuição das refeições, os politicais se
posicionam ao longo da fila brandindo cassetes com a intenção declarada de “conter
a desordem”. Grande parte dos migrantes sofria de diarreia após a ingestão da comida,
e outras doenças como dermatite e infecção respiratória eram comuns entre os
migrantes alojados no abrigo (THOMAZ, 2015, p. 98).

Foi portanto alugada pelo governo do Estado do Acre em Rio Branco tal chácara para
atender à quantidade de migrantes haitianos, aos quais se juntavam, crescentemente, outras
nacionalidades, do Caribe e do continente africano.
Nossa principal referência é a entrevista semiestruturada com duas pessoas: o migrante
haitiano Marc, e o funcionário Thadeu (nome fictício), o responsável pelo abrigo no momento.
***
Na conversa com o secretário Nilson Mourão, cujo motivo principal era a autorização
para coletar dados e informações sobre a situação dos haitianos ao chegar ao Brasil, percebi de
sua parte certo esforço em mostrar que estava tudo conforme o exigido por autoridades federais
e outras entidades, a exemplo do que ocorreu um ano antes, no qual houve o esboço de um
relatório que denunciava um conjunto de violações por parte do governo do Acre em relação
ao tratamento com imigrantes chegados na fronteira. Perguntou sobre minha pesquisa e ligou
para alguns responsáveis pelo abrigo me autorizando visitá-lo. Afirmou que a estrutura e o
funcionamento do abrigo seguiam padrões e que, como seria observado, havia todas as refeições
e todas as condições de moradia e abrigo em si.

44
Em Janeiro de 2012 a Organização Não Governamental Conectas redigiu uma carta direcionada aos principais
agentes públicos que tratariam sobre as condições insalubres dos locais de chegada de imigrantes haitianos no
Brasil pela fronteira acreana. Mais informações e a carta na íntegra disponível em:
http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-no-acre.
102

a) O diálogo com Marc

O acesso ao Marc se deu a partir de Thadeu, funcionário que estava na administração do abrigo.
Marcos explicou-me que Marc havia quebrado uma perna e acabou permanecendo mais que o
previsto em Rio Branco, e, portanto, já sabia o português, o que facilitaria a entrevista. Também
possuía alguns “privilégios” no abrigo, dentre eles um quarto individual, e ao que indicou
Thadeu recebia um valor por auxiliar nas atividades do abrigo, como “organização” da fila para
as refeições diárias no mesmo.
Ao conversar com Marc, indaguei se era possível perguntar em português, mesmo que
suas respostas fossem em francês. Mas já na primeira pergunta me pediu para falar em francês,
o que acatei.
Marc, com 31 anos então, deixou uma filha no Haiti. Contou-me um pouco sobre a
cultura e as músicas populares do Haiti: o rap e o merengue. Falou-me sobre Baricad Crew e
Fantom de Nazareth, respectivamente, banda e cantor de rap haitiano. Explicou-me também
sobre a origem de seu nome e que chegou a ser aprovado nos exames preparatórios para a
universidade de Porto Príncipe, mas que com as dificuldades enfrentadas pela pobreza e pela
intensificação da crise a partir do terremoto decidiu migrar para o Brasil. Falou um pouco das
dificuldades enfrentadas na travessia para o Brasil, principalmente entre Peru e a Bolívia, onde
perdeu muito dinheiro nesse trecho, inclusive extorquido por policiais nas fronteiras.
Ele aponta que a escolha pelo Brasil foi por ter se identificado com a cultura, que
conhece a capoeira e o futebol, mas que não gosta das músicas brasileiras. Perguntei que
músicas ele conhecia, ao que ele respondeu do sertanejo e de algumas bandas conhecidas na
região Norte, que produzem uma modalidade entre o forró e o sertanejo. Conversei sobre
algumas outras músicas e estilos musicais no qual o Brasil foi pioneiro, como a bossa nova e o
chorinho, além do samba brasileiro e alguns nomes internacionais, como Tom Jobim, Jacob do
Bandolim etc. No seu celular ele me mostrou algumas músicas haitianas e pediu para mostrar
essas músicas, sendo que então disse estar impressionado com a diversidade da cultura
brasileira.
Algumas considerações há de se fazer. Uma delas é a inserção do migrante e a presença
das trocas culturais entre o país deixado e o chegado, bem como à formação de Marc, que
103

conforme dados do abrigo e referências em pesquisa apontam que a maior parte dos haitianos
possui o nível técnico e estão entre os 20 a 30 anos45.
Essa crítica – própria também da sua estratégia de mobilidade – continua quando Marc
explica que, ao contrário do que dizem, os haitianos já tinham consciência dos problemas sociais
e dos preconceitos que sofreriam no Brasil, mas não imaginava as dificuldades da travessia.
O fato de estar há três meses em Rio Branco ajudava tanto no aprendizado da língua
portuguesa quanto em “privilégios” no abrigo, como quarto individual e confiança dos
funcionários, que conseguiram para ele um pequeno salário em troca de serviços para a
Secretaria, dentre eles, a mediação com os novos imigrantes. Soubemos também, por outras
fontes, que Marc cobrava dos migrantes que chegavam um valor para entrar e, para os quais,
dependendo do pagamento, poderia haver certos privilégios dentro da chácara. Essas ofertas a
Marc são tratadas parcialmente como privilégios, muito porque sua situação não era em nada
privilegiada. Tal palavra é somente para denotar uma diferença de atitude frente a outros
migrantes no abrigo cuja responsabilidade da divisão era da secretaria e de suas ações, e
obviamente não as de Marc.
Esse aspecto do pagamento foi pontuado por alguns pesquisadores que também fizeram
trabalho de campo no abrigo. O que indica um pouco das táticas raketé as quais Handerson e
também Contiguiba (2012) ressaltam que se reproduzem também entre os diásporas, tanto pela
naturalização revelada no trânsito da mobilidade quanto nas irregularidades institucionalizadas
no percurso. A questão é, se Marc estava cobrando como se ali fizesse parte de uma transação
raketé, como os funcionários do abrigo não sabiam disso? Se eles sabiam, eles legitimavam ou
resignavam-se a essa ilegalidade?
Pelos mesmos pesquisadores que nos apontaram essa questão, ainda quanto ao que no
Brasil denominou-se ação dos coiotes, muitos haitianos chegavam acreditando terem pago a
hospedagem no abrigo e a viagem disponibilizada pelo Governo do Estado do Acre para São
Paulo.
Marc me apresentou todo o espaço do abrigo e aos imigrantes que estavam naquele
momento. Havia em torno de trezentas pessoas, entre haitianos, senegaleses, ganeses,
equatorianos e um cubano, que tanto Marc quanto Thadeu afirmaram que estava há pelo menos
quatro meses neste. Quando o almoço foi servido, eles indicaram que haviam pedido mais uma
“marmita” para mim, acredito que para conferir a procedência e a qualidade da alimentação,

45
Esses dados foram extraídos em coleta de informações disponibilizadas pelo próprio abrigo, conforme
apresentados no decorrer do capítulo.
104

reflexo provavelmente das denúncias ainda do abrigo de Brasiléia. Tanto eu quanto os


migrantes não dispúnhamos de talheres, que eram escassos. Comemos fazendo a tampa de
talher. Conforme Thadeu nos revelou, o abrigo já estava com lotação acima do limite naquele
dia, e boa parte dos migrantes dormia precariamente, em um galpão improvisado. Os quartos e
os espaços individuais eram para situações ora emergenciais (mulheres com crianças, mulheres
grávidas) ou para “aqueles que nos ajudavam mais”, indicando o caráter personalista instituídas
neste. A seguir, conversa mais detalhada com Thadeu, funcionário representante da
administração do abrigo nos dias de trabalho de campo.

b) O diálogo com Thadeu

Para Thadeu, o fechamento do abrigo de Brasiléia se deu, em grande medida, pelos


recorrentes conflitos com a população local, que não via os imigrantes com bons olhos46. Nos
anos iniciais da chegada de haitianos pelo Acre, os migrantes chegavam de táxi ao abrigo.
Segundo Thadeu, os taxistas cobravam taxas diferenciadas por nacionalidade do migrante.
Senegaleses e outras nacionalidades africanas, que entram e não podem recorrer ao pedido de
visto permanente de trabalho e/ou por razões humanitárias, cabe somente o pedido de refúgio.
Por essa razão, os taxistas chegavam a cobrar deles até cem dólares por pessoa. No caso dos
haitianos, conforme Resolução Normativa do CNIg 97/2012, haitianos têm direito a um visto
permanente no período de cinco anos. Os haitianos pagavam, no mínimo cinquenta dólares por
pessoa, isto é, por passageiro no carro.
Segundo Thadeu, apesar das disparidades entre os migrantes, no geral não têm grandes
proporções. Os principais problemas acontecem na travessia entre o Peru e a Bolívia, e em geral
os mais graves são furtos de dinheiro e de objetos de valor, espancamentos e exploração sexual.
Thadeu vê uma situação de oportunismo frente ao fluxo migratório, e os casos de exploração
uma compensação financeira de pequenos grupos. Em 2015, conforme relatos de imigrantes,
houve uma diminuição dos casos de violência mais agravados, já que o tempo de travessia da
rota entre o país de origem e o abrigo em Rio Branco estabelecida havia diminuído de 15 para
4 dias, no caso dos haitianos.
Durante o momento do campo (fevereiro de 2015), o governo estadual financiara
completamente a passagem para São Paulo e o Governo Federal repassara uma quantia que

46
Em outra conversa, com uma estudante de geografia cuja família é de Brasiléia, ela apontou que os haitianos
sofreram uma série de represálias da população local, que vê a presença dos imigrantes como uma ameaça.
105

mantinha o abrigo em sua logística, como alimentação, manutenção diária, colchonetes etc. O
Estado, portanto, era o que pagava a passagem, principalmente, para São Paulo47. Thadeu
acredita que há certa omissão por parte do Governo Federal pelo fato de este responsabilizar do
governo estadual cujo interesse e responsabilidade seria do âmbito da União. A Polícia Federal
gera somente o protocolo de solicitação de refúgio, tendo instalado em Brasiléia uma central de
informações para os imigrantes.
Segundo Thadeu, há muito conflito e indignação por parte da população não só de
Brasiléia, como no Acre em geral. As causas são inúmeras, como estórias sobre ameaças de
contágio por doenças, o discurso da invasão, o conservadorismo da população. A mídia
amplifica o caso de Brasiléia, mostrando as condições de superlotação.
Para ele, os haitianos vivem uma situação muito precária em seu país de origem, e o
mesmo acha difícil a pretensão de retorno para o Haiti. Segundo ele, a partir de relatórios diários
pelos quais era responsável, até 2015, haviam chegado a Rio Branco cerca de 32 mil haitianos
acolhidos pela Secretaria de Direitos Humanos do Acre. Só no dia anterior à conversa, haviam
chegado 50. A média era um pouco superior a quarenta por dia, que podia aumentar conforme
a época, assim como diminuir. O rigor das fronteiras, por qualquer motivo, em geral, diminuía
o fluxo. O abrigo comportava em média 150 pessoas, mas nessa ocasião havia 250 a 330
pessoas. O abrigo anterior, em Brasiléia, chegou a ter em média 3000 migrantes.
Segundo o secretario do abrigo, prestavam-se os seguintes serviços aos migrantes:
médicos, assistentes sociais, encaminhamento aos consulados respectivos, banco de dados com
informações para os consulados e o Governo Federal. Não percebi o funcionamento, somente
acolhimento e o protocolo de permanência para os haitianos e produção da carteira de trabalho.
Segundo Thadeu, em março de 2015 voltariam os principais serviços, o que provavelmente não
ocorreu, sendo que o abrigo acabaria por fechar em junho de 2015, face à diminuição do fluxo
de migrantes.
O secretário Thadeu informou que há um controle por parte do abrigo em relação às
empresas que contratam, mas vimos contradições nessa afirmação. A primeira está na forma
com que, segundo Thadeu, eles escolhiam os migrantes, que se dá por duas maneiras distintas.
A primeira no caso de um empresário entrar em contato com a administração do abrigo. Nesse
caso, eles escolhiam parcialmente quem mais ajuda ou quem é mais solícito no trabalho do
abrigo, “quem merece mais”, nas palavras dele. Em um segundo caso, quando a empresa não

47
A partir de abril, o Governo Federal se responsabilizou com as passagens de ônibus de imigrantes em processo
de regularização vindos do Acre, após uma nova crise no abrigo que levou à sua superlotação e ao endividamento
com a empresa viária responsável pelo transporte de migrantes.
106

entrava em contato com o abrigo, eles simplesmente escolhiam e conversavam com os


migrantes, sem controle algum, e os levavam também sem maior preocupação de
monitoramento, somente entravam em contato com o abrigo para recolher os dados dos
imigrantes, e por sua vez o abrigo recolhia os dados da empresa como checagem quantitativa.
Essa análise coincide com relato de Thomaz (2015), na ida ao abrigo então em Brasiléia:
A opção mais palpável para a maioria dos migrantes no abrigo era a de aguardar para
que uma empresa – normalmente do Sul ou Sudeste do país – enviasse ônibus à cidade
para contratar mão-de-obra barata, principalmente para ser empregue em funções
fisicamente exaustivas nos ramos da construção civil ou da indústria de alimentos
(notadamente em frigoríficos). [...] Os critérios de contratação eram frequentemente
feitos com base em uma avaliação visual pelos representantes das empresas
(contratadores) acerca da força física dos migrantes e possíveis sinais de seu costume
ao “trabalho pesado” (a grossura das canelas e da pele das mãos, por exemplo,
costumavam ser características procuradas), o que traz paralelos explícitos com o
tráfico de escravos (THOMAZ, 2015. p. 99).

A faixa etária mais buscada para as empresas que se aproximavam do abrigo era entre
25 a 40 anos, e em grande medida para cerâmicas, marcenarias e frigoríficos. Nesse sentido,
esse foi nosso principal gargalo quanto ao abrigo: a falta de fiscalização e gestão quanto aos
imigrantes, que são simplesmente “abrigados”, sem suporte e acolhimento.
Fica claro quando o Governo do Estado financia a passagem para outros lugares do país,
sobretudo São Paulo, que se por um lado não se exime de todos os problemas e perdas de
imigrantes até a chegada pela fronteira acreana, prefere também transferir o que para eles é um
problema, um estorvo. Torná-los um problema e um estorvo para o Estado é o mote principal,
a fim do discurso de amedrontamento e angústia da população, o que na verdade escamoteia
uma série de preconceitos.
107

FOTO 1 – Haitianos na Chácara Aliança

Fonte: Trabalho de Campo em Fevereiro de 2015

FOTO 2 – Haitianos na Chácara Aliança

Fonte: Trabalho de Campo em Fevereiro de 2015


108

FOTO 3 – Haitianos na Chácara Aliança

Fonte: Trabalho de Campo em Fevereiro de 2015

3.2 As ações da política brasileira

Compreende-se que os imigrantes perfazem e transformam suas estratégias de


mobilidade tanto a partir de sua singularidade como migrante e de seu movimento quanto a
partir de um grupo coletivo que apresenta demandas sociais e políticas no lugar chegado. O teor
e as características dessas estratégias se diversificam ora como o papel do migrante (e de sua
singularidade) no tocante à sua mobilidade, ora enquanto parte de um grupo, de um corpo
coletivo que viabiliza a melhoria de sua própria condição como cidadão em um país estranho.
No caso dos haitianos no Brasil, essas estratégias, principalmente no âmbito de coletivos
migrantes, têm se mostrado peculiar quanto aos grupos então conhecidos por seus fluxos para
este país. Conforme destacado, a capilaridade e a maneira como se arranjam territorialmente
apontam essa peculiaridade, mas são fundamentalmente nas formas coletivas de reivindicação
de direitos e no amparo em grupo onde os haitianos promovem estratégias de mobilidade
singulares.
Muito dessas reivindicações são resultados de vários elementos, que são ressaltados
nesse tópico, em especial no arranjo das estratégias de mobilidade de grupos migrantes e o
percurso da política do Estado brasileiro, que acaba também por direcionar suas estratégias na
109

mobilidade de haitianos no Brasil, construindo suas próprias táticas, em muitos casos em


contraposição às dos haitianos.
No capítulo anterior foi traçado o percurso histórico e geográfico das políticas de
imigração no Brasil, no qual foi possível perceber o caráter personalista destas políticas,
direcionadas muitas vezes por um discurso enviesado do trabalho, da "raça", da integração e da
solidariedade. Ao mesmo tempo em que contraditórias, as ações para entradas de imigrantes
muitas vezes remeteu a um “jeito” de viabilizar “migrantes ideais” na tentativa de construir um
"brasileiro ideal". O imigrante, por sua vez, procurava melhores condições de sobrevivência.
É possível traçar também as heranças sociais contidas nos discursos das políticas de
imigração hoje presentes em parte da sociedade brasileira e que conflitam muitas vezes com a
entrada e o fluxo de novos migrantes, sobretudo pobres, negros, em busca de melhores
condições.
Em 2017, após a vigência de um estatuto defasado e cuja prioridade era a de
criminalização do migrante em muitos aspectos, foi aprovada a chamada Nova Lei de
Imigração. O projeto apresentado pelo senador Aluysio Nunes, do Partido da Social
Democracia Brasileira – PSDB –, e amplamente discutido por entidades governamentais e não
governamentais, impulsionou uma série de mudanças no trato e na organização da gestão
pública à entrada de imigrantes no país48. Muita coisa, de fato, permaneceu sob a égide do
controle e da segurança, dentre o principal, a prerrogativa da Polícia Federal para ingerir e
permitir ou não a entrada de imigrantes. O projeto, aprovado na Câmara dos Deputados após
algumas modificações importantes que possibilitariam uma abertura democrática maior, foi
sancionado pelo presidente Michel Temer com uma série de vetos49, abrindo uma lacuna às
principais frentes de discussão entre a área dos direitos humanos para imigrantes.

48
“Em relação ao estrangeiro que chega ao Brasil, o Projeto de Lei 2516/15 prioriza a acolhida humanitária, com
previsão de regularização de documentos, garantia do direito à vinda da família, inclusão social e laboral e acesso
a serviços públicos de saúde, de assistência e previdência social, entre outros direitos. Ao imigrante é permitido
exercer cargo, emprego e função pública, com exceção daqueles reservados para brasileiro nato. A proposta
também inclui expressamente o repúdio à xenofobia, ao racismo e a qualquer outra forma de discriminação, seja
por religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.” Disponível
em:http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACOES-EXTERIORES/520859-TEXTO-
PRIORIZA-ACOLHIMENTO-HUMANITARIO-DE-ESTRANGEIROS.html.
49
“Entre os principais vetos está a previsão de anistia para quem entrou no Brasil até julho de 2016. O projeto
aprovado pelo Senado em abril previa que esse grupo receberia autorização de residência independentemente de
sua situação migratória prévia. O governo argumentou que a medida poderia esvaziar o poder do Estado e também
que não há como precisar a data efetiva de entrada de migrantes no país, permitindo que um imigrante que entre
no Brasil durante o prazo legal para que a lei entre em vigor peça regularização com base no dispositivo.”
Disponível em:http://g1.globo.com/politica/noticia/temer-sanciona-com-vetos-lei-de-migracao.ghtml.
110

Dentre a relação das mudanças da nova lei e as lacunas existentes, o aumento da


fragmentação de serviços e competências entre os Ministérios das Relações Exteriores, do
Trabalho e da Justiça, assim como a própria Polícia Federal, impossibilita a integração e o
diálogo entre poderes50, o que ainda é um dos maiores gargalos na política brasileira para a
entrada de imigrantes.
As estratégias de mobilidade de grupos migrantes apontam em muitos casos que o
Estado promove táticas diferentes e consolidam muitas vezes o preconceito e as heranças
sociais que submetem migrantes, sobretudo negros, a situações adversas. Será salientada neste
tópico a passagem de haitianos pelo Acre intensificado entre 2012 e 2015.

3.2.1 O papel do governo do Acre

Conforme apontado em relato de campo de 2015, uma série de discursos e


inconsistências entre as falas e as práticas do governo do Acre em representação à Secretaria
de Direitos Humanos foram visualizadas, ainda que em rápida passagem por este estado. A rota
para o Acre não foi a primeira, pois tivemos anteriormente a entrada a partir de 2010 pelo estado
do Mato Grosso do Sul e principalmente por Tabatinga, no estado do Amazonas, via cidade de
Letícia, na Colômbia. Nesse primeiro movimento, muito explorado por Vieira (2014) quanto a
um grupo de dez haitianos que chegaram pelo Mato Grosso em direção à Guiana Francesa, o
posicionamento do Brasil via Polícia Federal foi criminalizante, resultando na detenção dos
imigrantes e na produção de um relatório que, conforme a autora, previa a incriminação do
grupo contraditoriamente à necessidade de classificá-los como refugiados51. De acordo com
Contiguiba (2014):

50
“Essa divisão de competências entre ministérios, apesar de não haver sobreposições de funções, gera uma
fragmentação do monitoramento de imigração no Brasil. Além disso, o baixo grau de integração entre os dados
dos ministérios faz com que as informações a respeito dos estrangeiros que ingressam no Brasil fiquem dispersas.”
Disponível em: http://dapp.fgv.br/antigos-problemas-novos-desafios-como-lei-de-migracao-pode-inserir-
estrangeiros-no-mercado-de-trabalho/.

51
Em ocasião de reportagem sobre a chegada desses imigrantes: “... Nesta semana, em Corumbá, a PF já havia
feito a deportação imediata de sete haitianos que estavam em um hotel da cidade. Ao final do prazo de três dias,
o grupo que está atualmente em Campo Grande deverá também ser encaminhado de volta à Bolívia”. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/03/708992-haitianos-ilegais-flagrados-em-ms-ficam-em-
abrigos-e-sao-notificados-a-deixar-o-pais.shtml.
111

Com base em nossa pesquisa, o primeiro grupo de haitiano que entrou no Brasil no
contexto pós-terremoto foi no dia 17 de março de 2010 e o segundo, no dia seguinte.
Segundo os noticiários, o primeiro grupo era composto por oito pessoas e o segundo
por sete, ambos tendo como destino a Guiana Francesa. De táxi, seguiram da cidade
de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, com destino à capital do estado, Campo Grande.
O primeiro grupo foi detido pela PF e o segundo pela Polícia Militar Ambiental. Desse
modo, o início da entrada dos primeiros haitianos coincide com o momento pós-
terremoto e o destino não era o Brasil, mas a Guiana Francesa. Após esses dois casos,
não temos relatos de outros antes do final do mesmo ano, quando Brasiléia, no estado
do Acre, se tornou um lócus da migração haitiana e, consequentemente, dos
noticiários brasileiros (CONTIGUIBA, 2014, p. 89).

Conforme Handerson (2015), a mudança do fluxo na fronteira do Amazonas para a


fronteira acreana se deu pela demora tanto dos tramites burocráticos quanto da própria chegada
via Equador e Peru, que entre 2010 a 2012 abriu largamente suas políticas de entrada e saída de
imigrantes52.
Além dos que solicitam o visto na Embaixada, outros continuam chegando pela
Amazônia de forma indocumentada. Os fluxos de chegadas diminuíram
consideravelmente na Tríplice Fronteira Brasil, Colômbia e Peru, mas aumentaram
cada vez mais pela fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Alguns afirmavam ter optado
pela segunda fronteira, porque as informações que recebiam no Peru que a viagem
seria mais longa e deveriam esperar mais tempo em Tabatinga para receber o
protocolo para seguir os circuitos da mobilidade. Além de evitar a viagem de quatro
dias de barco de Tabatinga a Manaus (HANDERSON, 2015, p. 93).

O papel do governo do Estado do Acre apresenta vários elementos da controvérsia entre


as estratégias dos haitianos no Brasil versus as políticas do Brasil em aportá-las. Duas
características, assim, são cruciais para a compreensão desse papel contraditório: com a
fronteira acreana ser uma das passagens para haitianos, o governo do Acre identificou um
destaque para com seu território, captando recursos materiais e imateriais; e todo o constructo
de crise criado a fim de gerar um discurso do problema migrante-problema.
O primeiro aspecto relevante da tendência da imigração haitiana como problema foi o
papel da Polícia Federal e das organizações de segurança, como o caso da Agência Brasileira
de Inteligência (ABIN) na construção de documentos que ratificaram a ideia de risco. Conforme
Seixas (2014):

52
De acordo com Seixas: “Para chegarem ao Estado do Acre, de modo geral, os cidadãos haitianos voam para o Equador
com conexão no Panamá. Em alguns casos, deslocam-se, via terrestre, para a República Dominicana para, então,
seguirem para o Panamá e para o Equador. Uma vez no Equador, os haitianos gozam de situação regular para
permanência, pois o país não exige visto para cidadãos haitianos para estadias limitadas a 90 dias de duração”.
In.:SEIXAS, Raimundo Jorge Santos . Soberania hobbesiana e hospitalidade em derrida: estudo de caso da política
migratória federal para o fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. Brasília: Centro
Universitário UNIEURO, 2014, p. 19.
112

Em 12 de janeiro de 2012, a Polícia Federal iniciou procedimento para impedir a


entrada de haitianos em solo brasileiro. Essa medida continuou no mês seguinte,
quando matéria jornalística filmou ações da Operação Sentinela da Polícia Federal,
que se encarregava de fechar a fronteira entre Assis Brasil/AC e Iñapari/PERU,
impedindo que os haitianos entrassem irregularmente no Brasil (SEIXAS, 2014, p.
44).

Da mesma maneira, Vieira (2014) aponta que houve justificativas de toda ordem para
se construir um paradigma de crise imigratória para o caso dos haitianos e para transformá-los
em um problema para o país. Seja a ideia de que os coiotes produziam uma rede organizada de
tráfico, ou da ameaça de doenças – cogitou-se até a entrada do “Ébola” pelos haitianos,
desconsiderando o equívoco geográfico53! – no qual a população bradava e o Estado não
somente se eximia, como também acolhia enquanto política. Desse modo, a estratégia de tornar
o Acre referência e destaque, e a falta de cuidado e preocupação em apontar problemas estruturais
e sociais nas cidades da fronteira acreana, como Vieira ressalta, tornou o caso do Acre “político, e
não de polícia”:

Além do bom trânsito do governador Sebastião Vianna (AC) por Brasília, a mídia
contribuiu para dar visibilidade à “situação” anunciada, como também, para produzi-
la e reproduzi-la. Ambos chamaram a atenção de agências do Governo Federal em
janeiro de 2011, sugerindo os seus êxitos em conseguir transformar os ingressos de
pessoas vindas do Haiti em um assunto de agenda pública. Tanto é que no relatório
utilizado no despacho com a presidente [...] observamos referências apenas ao estado
do Acre e nenhuma menção é feita a Tabatinga ou Manaus, mesmo os números sendo
mais elevados no estado do Amazonas (VIEIRA, 2014, p. 68).

A “visibilidade” e a possibilidade de posicionar o Estado como destaque, e até uma


referência no acolhimento e na entrada de imigrantes, esbarrou em um conjunto de erros e
reflexos de uma política pouco pensada para um fenômeno recente, no qual a seletividade da
imigração haitiana para o Acre é o principal aspecto: o papel dos atravessadores (raketés e os
chamados coiotes) em eleger a rota como a "mais fácil" e propícia para se entrar no Brasil – na
maioria dos países, fronteira seca ou fluvial com ponte, dispondo de boa malha viária e meio
de travessia – e da própria expertise do imigrante em solicitar refúgio pela fronteira brasileira,
muito provavelmente indicados pelos atravessadores e comunicado via rede de imigrantes já
estabelecida no Brasil.

53
A doença provocada pelo vírus Ébola, cujo surto mais recente ocorreu entre 2013 e 2014 na África subsaariana
e áfrica ocidental e matou dezenas de milhares de pessoas. O equívoco geográfico encontra-se exatamente no fato
da doença afetar o continente africano, e não o caribenho. Mais informações disponíveis em:
https://acervo.publico.pt/ciencia/noticia/2014-o-ano-em-que-o-ebola-ficou-fora-de-controlo-1680852.
Importante ressaltar que casos de preconceito e frases infelizes contra imigrantes não só no Brasil como no
continente europeu ocorreram nessa época. Mais informações em:
https://www.publico.pt/2014/05/21/mundo/noticia/ebola-pode-resolver-o-problema-de-imigracao-da-europa-
considera-jeanmarie-le-pen-1636950.
113

O resultado disso foi o aumento considerável de imigrantes haitianos atravessando a


fronteira entre o Peru e o Brasil, via Acre, em cidades pouco estruturadas – o que é comum
visualizarmos ao conhecermos as fronteiras sobretudo do Brasil, da Bolívia e do Peru e suas
respectivas cidades fronteiriças – e a diversificação da imigração caribenha, sul-americana e
africana para a fronteira amazônica na última década. Em dados obtidos por ocasião da visita
ao abrigo na cidade de Rio Branco, a tabela a seguir mostra não só essa diversificação, mas o
trajeto temporal desencadeado pela mobilidade de haitianos via Acre e sua intensificação nos
primeiros anos da década de 2010:

TABELA 1 – Total de imigrantes que entraram pelo Acre

Fonte: dados coletados em Trabalho de Campo, Fevereiro de 2015. (Elaboração nossa).

Note-se que o auge do fluxo se dá entre 2012-2014. A princípio, conforme discutido, a


Polícia Federal quando no controle usual da fronteira, abriga haitianos vindos da Ponte da
Amizade localizada entre Cobija, capital de Pando (Bolívia), e Brasiléia, no Acre, em um galpão
próprio da Polícia Federal. No aumento considerável do fluxo, o estado do Acre intervém na
instalação de abrigos pelas cidades de Brasiléia e Epitaciolândia. Quanto à prática mediatista
da política de aporte à entrada de imigrantes haitianos, Contiguiba (2014) ressalta:

Insistir na manutenção da prática – que a nosso ver não é uma política – de registrar
os haitianos nas regiões de fronteira, como tem acontecido nas cidades de Tabatinga
e Brasiléia, é uma medida que tem contribuído para que o tráfico de pessoas seja
indiretamente incentivado pelo Estado brasileiro. A isso, somam-se os casos de
extorsão, roubo, estupro e assassinato. Esses danos continuam acontecendo aos
haitianos e podem ser evitados, desde que haja iniciativa política por parte do Estado
114

brasileiro para mudar o quadro atual. É uma oportunidade de realizar um trabalho, de


fato, humanitário, talvez com desdobramentos e repercussões mais expressivas que a
condução da MINUSTAH (CONTIGUIBA, 2014, p. 98).

A partir de uma série de pesquisas nesse período (MAGALHÃES; BAENINGER, 2016;


ROSA, 2015; THOMAZ, 2015; HANDERSON, 2015; CONTIGUIBA, 2014; SEIXAS, 2014;
VIEIRA, 2014; MAMED; LIMA, 2016), é possível verificar uma série de trajetórias dos
haitianos via chegada no Acre, principalmente em busca de trabalho, mas também na
viabilização de condições de sustento, repasse de dinheiro tanto para pagamentos de dívidas
com a viagem quanto para os familiares que ficaram no Haiti. Muitas empresas, como apontado,
iniciaram a contratação de haitianos ainda em Brasiléia, sem controle do governo acreano em
administrar a saída destes para o restante do Brasil. Tal falta de tato revela que os interesses no
apoio a imigrantes e na sua inclusão à ideia de crise imigratória está longe de ser uma
preocupação de causas humanitárias, mas sim uma resposta política contraditória às estratégias
de mobilidade dos haitianos.
É em 2011 e 2012 que essa ideia de crise se consolida, sobretudo na fronteira amazônica.
Não que a travessia para tal região fosse de fato a menos ideal, com todos os problemas e a
pouca informação prestada para evitar a exploração financeira e física desses imigrantes, mas
se a preocupação do governo acreano fosse na viabilização mais humanitária da entrada dos
mesmos, o primeiro passo seria operar uma política de apoio e desenvolvimento das suas
respectivas cidades de fronteira, acolhendo e viabilizando a inserção destes migrantes de outras
maneiras - o contrário se sucedeu.
Com justificativas diversas, o interesse a partir de então era “fugir do problema”,
alegando toda ordem de acontecimentos. Dentre estes, Vieira aponta boatos sobre a
possibilidade de contágio de cólera a partir de haitianos vindos pelo Acre:

Em alguma medida a possibilidade de ter um caso de cólera no Brasil pode trazer


receios, mas a preocupação sanitária também foi acompanhada de certo alarmismo e
usada igualmente como uma maneira de controlar os ingressos. Quando olhamos a
sucessão de comunicados e eventos de perto, é possível notar que ela não teve um
caráter apenas médico. Isso é possível perceber num outro relatório reunido durante o
campo em Brasília, no qual são pontuados os assuntos discutidos em uma reunião do
gabinete de gestão de crise do Ministério da Saúde ocorrida no dia 14 de fevereiro de
2011 [...] A relação entre “o haitiano” e o cólera nesse caso aparece invertida. Se
alguns documentos mencionados indicam ações para investigar a possível
consequência, nas suas visões, dos ingressos de pessoas vindas do Haiti - a
disseminação do cólera -, nesse outro relatório identificaram a consequência (um caso
de cólera) e queriam encontrar a causa (a presença de “haitianos”) (VIEIRA, 2014, p.
70).
115

A repercussão do discurso de crise em concordância às violações no acolhimento a


imigrantes em Brasiléia acarretou na transferência do abrigo a capital Rio Branco. Essa
transferência não se deu somente para esse acolhimento, como para com a transferência
subsidiada pelo governo do Acre, via passagem rodoviária, de imigrantes haitianos para outros
Estados do país, sobretudo São Paulo. De acordo com Thomaz (2015):

Em abril de 2014, o governo do estado do Acre anunciou que o abrigo para migrantes
da cidade de Brasiléia seria fechado e transferido para Rio Branco. Os futuros
migrantes a ingressar pela fronteira acreana passariam, a partir de então, a se dirigir
até a capital do estado para receber acolhimento no Parque de Exposições da cidade,
onde um abrigo definitivo seria providenciado. Já os migrantes que se encontravam
no abrigo de Brasiléia quando do fechamento do mesmo seriam levados a Rio Branco,
a seguir, encaminhados para Porto Velho, capital de Rondônia e, por fim, receberiam
passagens de ônibus para irem a outras cidades do país, principalmente São Paulo
(THOMAZ, 2015, p. 103).

Tal medida, como veremos adiante e verificado em trabalho de campo na cidade de São
Paulo, foi motivo de várias acusações, principalmente por parte do governo paulista, que
acusava o Estado do Acre de não avisar da chegada dos ônibus fretados. Da mesma maneira
que a mídia aportou o discurso de “crise”, e em caráter denunciativo e incorreto chegou a
apontar o fluxo de haitianos como “invasão”54, a intensificação de um debate de maior vulto
quanto às mudanças às políticas de imigração no Brasil se intensificaram.

3.2.2 O papel do CONARE e do CNIg

A entrada da primeira dezena de haitianos em meados de 2010 e a repercussão da


maneira em que foram recebidos abriu uma gama de questões quanto ao teor real de sua
irregularidade, ao mesmo tempo em que explicitou que o Estado é quem define o que é o legal
e o que é o indocumentado, isto é, é o Estado quem ratifica o controle de quem chega no Brasil.
Vieira (2014) indica que no caso dos haitianos detidos no Estado do Mato Grosso do Sul, após
repercussão da mídia, abriu-se uma ação civil pública que, ao que tudo apontava, os haitianos

54
Meados de 2014, em ocasião do considerável aumento do fluxo de haitianos pelo Acre, o jornal o Globo divulgou
a notícia com o seguinte título: “Acre sofre com a invasão de imigrantes do Haiti”, promovendo de forma ampla
e clara o preconceito e alimentando a ideia de crise migratória. A repercussão da notícia refletiu a elaboração de
uma carta assinada por entidades e pesquisadores, cujo título é: “Sobre o uso irresponsável do termo Invasão de
Haitianos...”. A reportagem d’o Globo está disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-
invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381. A carta do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios está
disponível em: http://migramundo.com/invasao-de-haitianos-sobre-o-uso-irresponsavel-do-termo-pela-imprensa/.
116

teriam aplicação à categoria de refugiados. Interessante ressaltar que eles chegaram em março
de 2010 e o terremoto havia ocorrido meses antes. Seria plausível, portanto, que a migração
teria se dado devido à fragilidade social exposta a causas ambientais, como do terremoto em 10
de janeiro daquele ano. A alegação principal da não deportação e detenção pela Polícia Federal
se deu com base na Lei nº 9.474/1997, que define a categoria de refugiado e, quando na
atribuição de processo, fica proibido detenção e extradição do mesmo. Cabe ao Conselho
Nacional de Refugiados – CONARE – a decisão plena do status dos imigrantes.
Foi quando da solicitação do status de refúgio pelos haitianos que os primeiros processos
foram indeferidos por uma decisão conjunta tanto do poder judiciário quanto do Conselho
Nacional de Refugiados. Isto indicou que o caso dos haitianos não era de refúgio, já que não
havia risco iminente da saída deles no Haiti, e principalmente, na alegação de que a Convenção
de Haia e a Convenção de Genebra (documentos importantes que viabilizam a proteção a
refugiados) não aplicam o mesmo status a causas ambientais. A intervenção do Conselho
Nacional de Imigração (CNIg) começa a partir dessa negativa, viabilizada via Resolução
Normativa 27/1998. Conforme tal resolução:

§ 1º Serão consideradas como situações especiais aquelas que, embora não estejam
expressamente definidas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração,
possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a obtenção do visto
ou permanência.

Esta decisão implicará na Resolução Normativa 97/2012, que prevê o visto de trabalho
para imigrantes haitianos por razões humanitárias. Ainda, de acordo com Vieira (2014):

Na reunião do CONARE de setembro de 2010, alguns processos já tinham sido


julgados e não foi reconhecida em praticamente nenhum caso a condição de refugiado.
Contudo, eles não foram arquivados. Em 2006, a gestão do CNIg havia criado a
Resolução Recomendada nº 08, cujo Artigo 1º recomenda ao CONARE o
encaminhamento dos pedidos de refúgio não deferidos, mas que podem ser avaliados
por razões humanitárias. De acordo com estas indicações a maioria dos processos saía
do CONARE e era recebida no CNIg com base na Resolução Normativa nº 27/1998
que prevê a análise pelos conselheiros de “situações especiais” e “casos omissos” na
Lei (VIEIRA, 2014, p. 54).

Nesse sentido, dentre as pesquisas e análises finalizadas até 2017, há duas vertentes
quanto ao papel do Estado brasileiro, e sobretudo o papel dos dois órgãos de representação e
regularização de imigrantes no Brasil – Conselho Nacional de Imigração, gerido pelo Ministério
do Trabalho e Conselho Nacional de Refugiados, gerido pelo Ministério da Justiça – em instituir
as atuais políticas para imigrantes no país, em especial a haitianos.
117

A primeira vertente entende a posição do CONARE de que os haitianos não são


considerados refugiados, já que objetivamente via Brasil a legitimidade dessa categoria não é
aplicada quanto à avaliação de cada migrante em um fluxo que já englobava mais de 30.000
pessoas traria uma saturação das atividades do órgão. Mas é na legitimação de que por causas
ambientais não seria concedido refúgio, e na rápida atuação do CNIg em promover o visto por
razões humanitárias, que a defesa desta posição torna-se mais contundente. Tal visão é mais
pragmática quanto ao processo de entrada dos haitianos, o que permitiria de maneira mais ágil
sua capilaridade e sua permanência no país.

O CNIg interpretou que a eventual não regularização dos status migratório dos
haitianos os exporia a violações de direitos humanos e sociais fundamentais. A partir
dessa decisão, a quase totalidade dos imigrantes haitianos solicitantes de refúgio
obtiveram autorização de permanência no País concedida pelo CNIg . A autorização
de permanência tem validade de cinco anos e garante aos imigrantes os direitos ao
trabalho, ao uso dos sistemas universais de ensino, de saúde e demais direitos
garantidos aos cidadãos brasileiros, com ressalvas àqueles direitos políticos ou de
natureza política exclusivos a brasileiros natos ou naturalizados de base constitucional
(SEIXAS, 2014, p. 27).

A segunda vertente, contudo, critica a postura tanto do CONARE quanto do CNIg em


ratificar o controle e a gestão de uma falsa crise imigratória, aponta a análise de contexto do
que levou à Resolução Normativa que garantiu a entrada de haitianos via dispositivo do
trabalho, e não refúgio.
Em primeiro lugar, pela fragmentação contemporânea do refugiado pelo risco iminente
e por razões humanitárias, implicação que está muito mais relacionada ao caráter político global
das migrações e da construção de limites aos migrantes pobres do que necessariamente à
liberdade de ir e vir nesses territórios55.
Em segundo lugar, contrapondo a natureza pragmática da política brasileira, foi um
processo pensado inversamente aos imigrantes pela falta de humanidade revelada quando da
decisão do governo brasileiro em ratificar o visto por causas humanitárias de maneira
conveniente, o que se verifica na coincidência da criação da Resolução Normativa 97, da ação

55
"Ao deliberar acerca da definição destes migrantes, o Estado reafirma sua condição soberana de monopolizar as
decisões de inclusão e exclusão de seu território delimitado. Ao mesmo tempo, todo reconhecimento da condição
de refúgio também implica no reconhecimento de uma falha do país de origem do migrante em sua capacidade de
proteger e garantir os direitos fundamentais de seus cidadãos. Assim, argumenta-se que a concessão de “vistos
humanitários” aos migrantes haitianos – traçando uma demarcação entre o refúgio e o humanitarismo – atua no
sentido de despolitizar a vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção, ao resumir sua mobilidade a
uma tragédia natural e preterir questões políticas profundas relacionadas à situação do Haiti diante do regime
humanitário internacional e o envolvimento do Brasil neste regime" (THOMAZ, 2015, p. 75).
118

da Polícia Federal na faixa de fronteira amazônica, e no diálogo com os governos peruanos e


equatorianos, em 2012, a fim de restringir a entrada de haitianos nestas fronteiras.

A resolução veio acompanhada do anúncio de um reforço no patrulhamento nas


fronteiras setentrionais, e do estabelecimento de uma cooperação com países vizinhos
para tanto. A chamada “Operação Sentinela” da Polícia Federal foi posta em ação a
partir da entrada em vigor da resolução, com o intuito de impedir a entrada em solo
brasileiro de migrantes haitianos que não estivessem munidos dos vistos emitidos pela
embaixada em Porto Príncipe [...] o Peru passou a exigir tais vistos, ao passo em que
o Equador esboçou uma tentativa de restringir a entrada de haitianos em 2013, mas
não pôs em prática tal política (THOMAZ, 2015, p. 88 - 89).

Soma-se ao fato que tal resolução limitava a permissão de vistos humanitários em 1.200
ao ano, uma média de 100 por mês. Ora, de 2012 a 2013, só pelo Acre, como vimos nas
informações da tabela 2.1, entraram mais de vinte mil haitianos. Somente em abril de 2013
houve a revogação do limite de vistos, e além da dificuldade da restrição, os trâmites
burocráticos para a obtenção do visto (ainda no Haiti), o preço do visto (220 dólares), a exclusão
de uma série de perfis de imigrantes que são próprios do diáspora haitiano, e finalmente
efetivação do visto somente no momento comprovação da prática laboral56.
Em Abril de 2013 revoga-se o limite anual de vistos e a transferência de imigrantes para
São Paulo é ingerida pelo governo do estado do Acre até 2015, quando a intervenção do
Governo Federal se intensifica. Outra coincidência de 2015 é a diminuição do fluxo, ao menos
na rota pela fronteira acreana e a divulgação de um documento do Ministério Público do
Trabalho, no qual o Estado brasileiro é réu pela omissão e pelo descaso para com imigrantes.

56
“Da RN nº 97 extraem-se as seguintes diretrizes:
a) a imigração haitiana ainda é uma questão humanitária;
b) o Estado brasileiro acredita que a motivação da imigração haitiana para o Brasil foi devido ao “agravamento
das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro
de 2010”, logo somente será fornecido o visto àqueles que solicitarem à Embaixada do Brasil em Porto
Príncipe/HAITI;
c) o Estado brasileiro está disposto a receber uma quantidade limitada de imigrantes haitianos, limitada também
temporalmente por mês e por ano; e
d) o visto “por razões humanitárias” é uma espécie de visto de trabalho e sua transformação em autorização de
permanência, ao fim de seu prazo, está atrelada à comprovação de exercício laboral por parte dos imigrantes
haitianos.
É possível também deduzir que a RN nº 97 excluiu:
1) cidadãos haitianos que não vivem no Haiti;
2) cidadãos haitianos cujos processos migratórios irregulares já estavam em curso e cidadãos haitianos que estão
em trânsito no momento de sua publicação;
3) cidadãos haitianos que entraram ou entrarem irregularmente no Brasil; e
4) cidadãos de outras nacionalidades que estejam passando por situações excepcionais ou de caráter humanitário.”
In.: SEIXAS, Raimundo Jorge Santos . Soberania hobbesiana e hospitalidade em derrida: estudo de caso da
política migratória federal para o fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.
Brasília: Centro Universitário UNIEURO, 2014, p. 39.
119

Tal documento, uma Ação Cível Pública, de 79 páginas fora anexos (que somam mais
de mil páginas), alega uma série de fatores que problematizam o papel do Estado em administrar
a “crise” imigratória de haitianos. Isto denuncia, já em um primeiro momento, a conformação
do Governo Federal em se eximir da entrada destes de forma que os mesmos passem por uma
série de situações adversas, entendendo que a ação dos coiotes alimenta o tráfico de pessoas,
no caso, dos imigrantes haitianos. Vale ressaltar que tal documento do MPT converge com o
protocolo de Palermo, que indica que o tráfico de pessoas está de acordo com o que aconteceu
na fronteira com o Peru e o Brasil, remetendo à exploração e extorsão.
A República Federativa do Brasil admite que o povo haitiano é vítima de tráfico
internacional de pessoas quando em deslocamento para o nosso território. Como se
observa do pronunciamento do Exmo. Sr. Ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo. Do mesmo modo, a Agência Brasileira de Inteligência, ABIN, realizou
missão com seus oficiais e analistas de inteligência, percorrendo a rota do fluxo
migratório, desde o Haiti até o Acre, no ano 2014. As provas coligidas aos autos
igualmente corroboram essa inequívoca constatação (MPT, 2015, p. 3).

O documento ainda prevê que há três escalas de crise - a crise humanitária no Haiti, a
crise migratória no Brasil, e a crise de gestão pública da crise imigratória no Haiti - assim como
analisa que os abrigos do Estado do Acre são verdadeiros “depósitos de trabalhadores (...) quase
as antigas senzalas”. Pede, em ação cível, a assunção de condições dignas de trabalho para
imigrantes – haitianos, senegaleses e dominicanos, citado conforme documento – e a
decorrência de instrumentos legais de entrada e acolhimento aos novos imigrantes no país.
Não é exagero dizer que a única política migratória existentehoje no Brasil, desde
o ponto de vista da situação existente no Estado do Acre a partir de 2010, é a
facilitação da entrada de trabalhadores migrantes caribenhos, africanos e
asiáticos, com uma certa simplificação do processo de refúgio – ou da
documentação desses trabalhadores que chegam sem vistos na fronteira
terrestre, no Acre, e na transformação posterior em residência humanitária. A
estratégia é inteligente (...) No entanto, é insuficiente. Acolher é mais do que abrir
passagem. E a política não vem acompanhada de eficientes ações de
enfrentamento desta situação, com verdadeiras políticas públicas de direitos
humanos, com controle governamental da migração coletiva de trabalhadores e
a extinção da rota ilegal usada por traficantes, contrabandistas e coiotes ao longo
da América Latina, o estado de coisas encontra-se com data certa para novo
agravamento, ante a completa retirada das mínimas regulações sobre a matéria
(MPT, 2015, p. 43). (Grifo do autor).

A Ação cível ainda aponta que a falta de controle de recrutamento de imigrantes por
empresas que os contratavam ainda no Acre, visível em trabalho de campo no início de 2015,
repercutiu em várias ações contra tais empresas em São Paulo e Santa Catarina 57, no qual o

57
O documento do Ministério Público do Trabalho cita em específico duas reportagens a seguir: “Imigrantes
haitianos são escravizados no Brasil”, disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/01/imigrantes-haitianos-
sao-escravizados-no-brasil/; e “Gigiante da mineração é autuada por trabalho análogo à escravidão em MG”,
disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/04/1445055-gigante-da-mineracao-e-autuada-por-
trabalho-analogo-a-escravidao-em-mg.shtml.
120

documento aponta o descaso tanto do governo do Acre quanto do Governo Federal. Finaliza
autuando o governo na imediata regularização dos problemas apontados pela ação, tais como a
previsão orçamentária no acolhimento de imigrantes no Brasil, a realização de ações efetivas
de inibição à prática de coiotes e a indenização de caráter moral para práticas de acolhimento e
viabilização da entrada de imigrantes no país. A decisão da juíza do trabalho Silmara Negrett
Moura veio a cerca de um mês após a impetração da ação, em junho de 2015, deferindo o
processo.
Almejando ir além de um maniqueísmo do tipo "bom ou ruim", de fato é inegável que
a vinda da Resolução 97/2012 abriu o diálogo e possibilitou reformular vários conceitos do
próprio Estado brasileiro quanto ao trato e a elaboração de políticas direcionadas aos imigrantes
no país. Contudo, tal prática sozinha aponta o revés das estratégias dos imigrantes haitianos,
bem como o conteúdo de ações que não viabilizam o aporte e o apoio à sua entrada e sua
intenção, mas paulatinamente o incriminam como um “migrante problema” em detrimento a
um possível migrante ideal, que ao que tudo indica, tanto pela sociedade quanto pelas políticas
que insistem em revelar a entrada destes como crítica, não vem a ser o haitiano.

3.3 A capilaridade dos imigrantes haitianos

Dois elementos nos trouxeram algumas elucidações no que se refere aos agenciamentos
da diáspora haitiana no Brasil, sobretudo suas intersecções políticas. O primeiro elemento, as
estratégias de mobilidade são mais expressivas que a viabilidade real do deslocamento, o que
gera no caso dos haitianos muito da irregularidade do trânsito (a rota para as fronteiras
precarizadas, a atuação dos raketés e dos agenciadores no percurso. Entende-se dessa maneira
que o fator político desta mobilidade é promovido desde sua opção de migrar, ainda mais no
caso dos haitianos em que suas diásporas são singulares, isto é, constituintes do próprio sujeito
e do próprio ser/estar.
O segundo elemento consiste na estratégia de mobilidade mais presente e mais peculiar
no Brasil, que é a capilaridade pelo território brasileiro. Tal capilaridade, conforme apontado,
possui várias justificativas, e em muitos casos a estratégia de migrar para o Brasil conflita com
as ações políticas adversas à dos próprios migrantes. Não existe inimigo ou dualismo nesse
processo, é um constructo político.
121

Essa capilaridade fica perceptível no Mapa 4 pelas cores de cada rota de haitianos na
década de 2010 no Brasil e na América Latina.

MAPA 4: Capilaridade haitiana

Fonte: Bibliografia e trabalho de campo. (Elaboração nossa).

Aparentemente, essas estratégias de mobilidade são fragmentadas, em um primeiro


momento, da consciência política e das potencialidades políticas destes imigrantes, mas a opção
do migrar já denota uma configuração política, e um conflito interno entre as dificuldades do
lugar em que nasceu, para o deslocamento. Da mesma maneira, parece mais claramente que o
discurso do trabalho é uma reprodução da necessidade do Estado em legitimar suas estratégias
conflitantes com as dos migrantes do que a relevância maior à mobilidade. Na realidade, é o
que oferece o trabalho – recursos, garantias de sustento e sobrevivência – aquilo que realmente
o migrante almeja.
Nesse sentido, a globalização transforma as relações do capitalismo para acirrar ainda
mais as diferenças e os conflitos, voltados a interesses que buscam ainda a tomada de porções
de territórios afim de mais capital. Novos dispositivos para velhas estratégias. Indefinir as
barreiras de restrição, portanto, só se torna presente para grandes empreendimentos. Restringir
122

e acirrar ainda mais a construção de muros em fronteiras é a afinação conveniente a uma


liberdade induzida.

3.3.1 O trânsito e a diáspora, o regular e o irregular

De acordo com Handerson (2015), o termo diáspora como sujeito no Haiti surge com os
refugiados políticos da ditadura dos Duvalier (Papa Doc e Baby Doc) nos Estados Unidos. Na
década de 1980 a expressão conquista os imigrantes considerados menos abastados e não
necessariamente refugiados políticos. O interessante é que a denominação diáspora foi utilizada
como uma maneira de se diferenciar dos afroamericanos, na possibilidade de legitimarem sua
singularidade enquanto caribenhos e culturalmente/socialmente diversos aos outros negros.
O sujeito diáspora, para o referido autor, possui alguns ideais em suas mobilidades,
cujos termos são próprios do créole haitiano: lajans dyaspora (dinheiro diáspora), peyiblan ou
peyietranje (país branco ou estrangeiro), dentre outros que são apropriados e relacionados a
cultura desse sujeito. Destaque-se o termo baz, que possui um caráter polissêmico, mas que em
geral significa a reunião em um determinado espaço de um grupo ou uma organização de
pessoas qualquer. Esses baz serão analisados mais adiante, mas são imprescindíveis no tocante
às estratégias de imigrantes haitianos e a sua capilaridade no espaço de convivência do lugar
chegado.
Sobre o conceito de diáspora em si, Handerson aponta os fatores que o levaram à
utilização do diáspora haitiano como sujeito – e muitas vezes adjetivo – em relação a um termo
muito difundido e aplicado aos estudos migratórios e culturais – a diáspora – como intrínseco
ao processo político configurado do ato de migrar haitiano:

Foram vários os trabalhos sobre o seminome na tentativa de definir diaspora,


notadamente dos anglo-saxões William Safran (1991), Robin Cohen (1997) e os
franceses Dominique Schnapper (2001) e Chantal Bordes-Benayoun (2012), entre
outros. Os princípios teóricos e empíricos que essa literatura traz são pertinentes
inclusive para problematizar o modo como o termo organiza e expressa uma
experiência individual e coletiva no mundo social haitiano. No entanto, neste trabalho,
analiso o termo diásporas em que a preocupação de defini-lo, e muito menos discutir
se há uma diaspora haitiana ou não, num plano a priori, ou de acordo com alguns dos
critérios estabelecidos pelos estudiosos sobre essa questão. Do ponto de vista
etnográfico, na categoria prática de diáspora há uma junção de sentidos políticos,
econômicos, morais e históricos, relativos à própria “pessoa”. Por exemplo, ela serve
como adjetivo para qualificar pessoas: “Diaspora, como você vai?”, Diaspora
chegou. A abordagem etnográfica aqui apresentada, é nesse sentido, diferente das
discussões travadas na literatura sobre diáspora(s) (HANDERSON, 2015, p. 345-
346).
123

Entender a singularidade do sujeito diáspora nos permite também apreender melhor as


estratégias de mobilidade, em especial de imigrantes haitianos, inclusive no trato metodológico
à questão. Vimos que as estratégias promovem os encontros e o diálogo possível à sua entrada,
inserção e permanência. Pela capilaridade e pelas novas estratégias via políticas restritivas,
novas mobilidades são promovidas, espacializando mais ainda o fluxo migratório, como fica
claro no mapa 4.
É nesse sentido também que se questiona o que é irregular e o que é regular na
imigração. De realidades diversas e conflitantes, o espaço, também migrante, torna-se
fundamental para compreender o processo de formação das estratégias migrantes e de
mobilidade. Os sonhos são também parte de um processo que gera o desejo de mobilizar-se, o
desejo, mesmo no sofrimento, de movimentar seus espaços cotidianos a fim de construir e
apropriar-se de seus espaços, e até de enxergar a apropriação dos outros espaços.
Vemos hoje, em grande medida, o enxertamento de ideias que promovem uma “salvação
do mundo”, amenizando problemas muitas vezes individuais e que não apontam em si mesmo
alternativas que abraçam a qualidade de vida individual e coletiva dos seres humanos. O
discurso de “invasão” de grupos imigrantes é um exemplo claro desse “salvacionismo”. A
diversidade étnica em troca dos medos e receios do outro são o tom maior dos dispositivos de
securitização da vida contemporânea. Tal contexto se alia ao discurso também étnico-político
da Guerra ao Terror, que envolve desigualdade e delimitação de territórios de dominação e
subalternidade.
A imigração, nesse sentido, envolve uma pluralidade de relações que permeiam os
processos que sustentam a globalização do mundo atual. Quando muitas dessas alternativas
“salvacionistas” impossibilitam a vivência compartilhada em grupos e comunidades, ou quando
não há alternativa para determinados grupos e comunidades, a experiência migrante é um meio
– e processo – de mudança de um cenário de conflitos e tensionamentos que ameaça a
identidade, a dignidade e a própria vida de uma sociedade ou de sujeitos. Conforme Póvoa
Neto:
O muro, a cerca, o campo de refugiados, a fronteira fortificada contra migrantes,
compõem um quadro de dispositivos de controle sobre a mobilidade humana a
justificar uma permanente imposição de medidas excepcionais quanto aos fluxos
migratórios. Reconhecidos como necessários, porém rejeitados como excedente ou
ameaça, migrantes e refugiados são crescentemente objeto de políticas restritivas,
indagando-nos a respeito dos novos limites postos à circulação. As barreiras físicas
levantadas contra sua mobilidade devem ser entendidas, de maneira ampla, como
fortes sinalizadoras de processos emergentes de limitação às liberdades sociais
(PÓVOA NETO, 2011, p. 148).
124

Não somente a ideia de fronteira como limite territorial, físico, de países ou nações. A
reflexão tem como escopo as múltiplas facetas da fronteira nessa relação espaço/tempo. Eis os
motivos:
1) A ideia de transposição do sentido material de fronteira: ao se tratar de globalização,
há um entendimento superficial de que as fronteiras deixaram de existir, e que não há limites
para se transitar, para a mobilidade espacial das pessoas;
2) A fronteira travestida: contraditoriamente, a contenção de pessoas se acentua e
ratifica, inclusive fisicamente, a construção de muros e barreiras fixas literalmente como
contenção de grupos, inerentemente marginalizados (a fronteira no sentido “liberacionista” dá
lugar à “salvação dos novos invasores”). É por esse motivo o escamoteamento do termo e a
analogia a muros de contenção, que ora alimentam discursos de ódio e dispositivos políticos,
ora privam a liberdade do próprio trânsito. O muro não como ideologia - o muro é a ideologia;
3) A livre circulação: da mesma maneira, esse liberacionismo das fronteiras constitui
uma falácia no momento em que se estabelecem os preconceitos e onde a circulação de
informação ainda é impulsionada quando se ratificam os limites;
4) Ideia errônea de muros/fronteiras/limites como solução de uma política de Estado: o
Estado não é somente o agente na construção das fronteiras, mas as fronteiras são construídas
por grandes projetos de empreendimento que são atribuídos a grandes grupos, de Estados e de
grandes corporações.

3.3.2 Corrupção, violência, dependência: cicatrizes profundas

A corrupção, a violência e a dependência são as três marcas profundas no Haiti que


romperam outras fissuras com o agravamento de caráter geomorfológico – o terremoto é uma
ponte para tal –, onde qualquer problema de ordem ambiental se torna mais grave se somado a
problemas mais abrangentes de natureza política e socioeconômica. Por isso também que
definir o terremoto como um dos motivos para a intensificação da saída de haitianos torna-se
correto, mas se visualizarmos o conjunto de fatores no qual o terremoto é a ponta, o caráter das
estratégias de mobilidade aliado aos agenciamentos da imigração tornam-se fragmentos de um
enredo muito bem amarrado.
Não sem razão os haitianos possuem múltiplas táticas para imigrar, costurando a cada
impossibilidade de realizar o traço diáspora novas rotas, novos trânsitos e perspectivas. Não à
125

toa também a resignação em atravessar as adversidades e as relações exploratórias dos trajetos


perpetrados, a fim de evitar confusão, como muitos dos haitianos com os quais conversei
apontam. Não sem base, por fim, a diversidade de formas de expressão no qual eles
conseguiram se posicionar no Brasil, principalmente nas associações de imigrantes espalhadas
pelo país.
Entendemos que estratégias de mobilidade não são divergentes ou contraditórias. Tais
estratégias participam de uma coetaneidade, elas convivem juntas no tocante ao fazer migrante
e ao ser migrante. Nesse sentido, na permanência coexiste com a mobilidade e vice-versa.
Essa coexistência fica clara na mobilidade haitiana para o Brasil, quando os
agenciamentos perpetrados pelos imigrantes vêm e voltam conforme a emergência de suas
próprias necessidades. Em trabalhos de campo no Acre, no Rio Grande do Sul e em São Paulo
foi possível notar um conhecimento dimensionado do Brasil e suas principais características
quanto a ofertas de trabalho e condições de melhoria de vida, muito pelos emaranhados de redes
existentes a partir de outros grupos chegados anteriormente. O Mapa 5 revela as intenções de
permanência de haitianos que estiveram no abrigo da capital Rio Branco, no estado do Acre,
até fevereiro de 2015.
126

MAPA 5: Pretensão de destino de Haitianos em Rio Branco/AC: 2010-2015

Autoria: Isis Martins

Fonte: Trabalho de Campo. (Elaboração nossa).

Conforme as intenções acima apontadas, o mapa das estratégias de permanência in loco


de grupos haitianos não é tão diferente. Isso indica as redes de migração se consolidando no
espaço e no tempo.
Sobretudo, é válido refletirmos sobre os desencontros entre o discurso do Estado, que
em grande medida vincula a relação trabalho das intenções de trabalho dos migrantes haitianos.
Toda construção e sensibilidade em pesquisas que apontam o fluxo de haitianos no Brasil
aportam a questão trabalho como preponderante. Nos parece, contudo, que o salutar é o trabalho
para a melhoria das condições de vida de um grupo, de uma família e dos próprios migrantes
que chegam ao Brasil.
Isso implica dizer que a compreensão da imigração haitiana para o Brasil envolve uma
multiplicidade de agenciamentos, uma pluralidade de eventos cujo trabalho é um dos elementos,
e não o meio e o fim para chegar ao processo desencadeador da emigração haitiana. Daí as
127

estratégias de permanência e de mobilidade possibilitarem a compreensão dessa multiplicidade,


na mobilidade enquanto tática política de mudança, desencadeada por fatores tão plurais quanto
a própria mobilidade.
128

4 CAPÍTULO IV
AS TÁTICAS DE CONSOLIDAÇÃO DOS HAITIANOS NO BRASIL:
SÃO PAULO COMO REFERÊNCIA

Enfatizamos até agora o contexto espaço-tempo entre Haiti e Brasil e demonstramos as


múltiplas narrativas que promovem ou suprimem estratégias de mobilidade de imigrantes
haitianos no Brasil na chegada mais intensa no início da década de 2010 pela fronteira
amazônica. Este capítulo propõe uma maior compreensão do que chamamos de estratégias de
permanência de migrantes haitianos, no contexto de seus sentidos de diáspora e dos
agenciamentos que constituíram seus processos para e com o Brasil.
Essas estratégias são resultados de um conjunto que envolve as geometrias de poder até
a chegada, as adversidades decorridas, inclusive os atos de violência e exploração relatadas
pelos haitianos, como os chamados coiotes. Desse modo, quais são os sentidos dos
agenciamentos que apontamos?
Neste trabalho entende-se uma ideia múltipla dos agenciamentos, no qual a ação não é
somente de um agente, mas de referências, espaços e tempos múltiplos. Ainda que estejam em
acordo quanto ao sentido – envolvendo relações, sobretudo relações de poder -, há diferentes
práticas, quando tratamos de agenciamentos com a exploração de imigrantes estrangeiros em
suas travessias, e os agenciamentos tanto dos migrantes quanto de suas relações sociais.
Essa multiplicidade dos agenciamentos, conforme Gilles Deleuze e Félix Guattari
(2000), é intrínseca. A produção de agenciamentos se dá pelo inerente múltiplo e vice-versa,
cuja proximidade entre alteridades é promovida pela linguagem, pelo falar (agenciamentos
coletivos de enunciação) e a escolha a partir do enunciado se dá pela ação, ainda que perpetrada
por outros agentes (agenciamentos maquínicos de desejo).
Assim, no entendimento do enunciado e da ação visando a análise da trajetória dos
imigrantes haitianos no Brasil, suas estratégias de mobilidade e suas táticas de promoção de
novas políticas em cada lugar chegado, os agenciamentos perpetrados em uma multiplicidade
tornam-se mais profundos do que somente aqueles relacionados às contradições entre capital e
trabalho. Não que estes sejam fatores de atração a lugares para imigrantes em situação de
vulnerabilidade, mas explicam apenas parte do processo da mobilidade.
É possível identificar todos os agenciamentos entre imigrantes haitianos e suas relações
no Brasil? Certamente não, mas se for possível compreender os que tangem seu cotidiano e
suas práticas, ao mesmo tempo seus conflitos com outros agenciamentos, do Estado, do
129

preconceito imbricado às heranças sociais, da alteridade, é possível diversificar para além da


simplicidade.
A percepção desses agenciamentos posiciona as perspectivas e as práticas nas relações
políticas e sociais, e na legitimidade da presença do haitiano, suas articulações tais como se
formaram, se abriram e se amadurecem, ainda que sua permanência no Brasil seja curta. O
contexto e o espaço nunca serão os mesmos. Da mesma maneira, entendemos que os
mecanismos que possibilitam a entrada e a permanência de haitianos no Brasil também fazem
parte dessas estratégias e desses agenciamentos, alargados por outras redes e outras
articulações.
Isto é claro na consolidação da imigração haitiana em São Paulo. Identificam-se três
principais momentos: primeiro em 2014, na intensificação (de fato) agenciada pelo governo do
estado do Acre, que freta ônibus para abrigos na cidade de São Paulo; segundo, a permanência
deste em São Paulo ou a migração para outros Estados – principalmente na região Sul do Brasil;
e terceiro, os desdobramentos da mobilidade de haitianos via São Paulo entre 2016 e 2017. É
nesse contexto que se consolidam as estratégias de permanência.
Essas estratégias de permanência não são descoladas em nenhum momento das
estratégias de mobilidade. Elas se refazem conforme a imersão das práticas e das políticas
imbricadas no processo de capilaridade de imigrantes haitianos no Brasil. Isto se faz presente
nos relatos de campo e entrevistas com haitianos em São Paulo, coletados em Outubro de 2014
e Março de 2017, dissolvidos neste capítulo em uma abordagem diferente: além da entrevista
semiestruturada, o fato de ser escolhido um dia não-útil (sábado) para as entrevistas em si
possibilitou uma dinâmica próxima a um grupo focal, e que foi preferencial, pois permitiu aos
haitianos maior espaço de diálogo sem a preocupação e tensão da busca por trabalho e
documentos.

4.1 A saída de haitianos do Acre para São Paulo

Comecemos com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Caetano é responsável por uma das
músicas mais citadas em paráfrase ao caso dos haitianos no Brasil: a música Haiti, cujo refrão
anuncia: “O Haiti não é aqui, o Haiti é aqui”. A música, embora citando o país cujo tema desse
trabalho é o espaço de acontecimento, faz uma analogia de certa forma temporal: Caetano e
Gilberto Gil incluíram essa música no álbum Tropicália 2, de 1992, coincidente à ditadura de
130

Raul Cedrás e à deposição de Aristide, cujas faces da violência e da corrupção foram


visibilizadas ao mundo num Haiti como país de barbárie, uma representação de um país cuja
ideia de revolução negra tem de ser extirpada.
O caso é que a letra da música Haiti fala do Brasil. “Quando você for convidado pra
subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado, pra ver no alto a fila de soldados quase
todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos, e outros quase
brancos tratados como pretos, só pra mostrar aos outros quase pretos que são quase todos
pretos.”.E complementa: “Se você for ver a festa do Pelô, e se você não for. Pense no Haiti.
Reze pelo Haiti”.
A segunda estrofe vai mais direta a crítica da falta de cidadania, sobretudo para a
população negra no Brasil. “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da
chacina: 111 presos indefesos, mas presos, são quase todos pretos. Ou quase pretos, ou quase
brancos quase pretos de tão pobres. E pobres são como podres, e todos sabem como se tratam
os pretos...”. Claramente Caetano e Gil falam do Brasil, afora a estrofe. Novamente, no marco
temporal em que se situa o início da década de 1990, donde paralelamente em que o Haiti é
marcado por insurgências antidemocráticas, cuja conivência de outros países promove a
paulatina fragilidade política e social deste país, no Brasil ocorria o massacre no presídio do
Carandiru, em São Paulo, no dia 2 de Outubro de 1992, aonde cento e onze presos foram
assassinados por policiais militares.
Caetano e Gil promoveram o primeiro encontro de haitianos em São Paulo, ainda que
não soubessem que vinte anos depois haitianos seriam parte desses negros, ou quase negros, ou
quase brancos.
Mas nunca brancos.
Muito menos que a cidadania e a inclusão seriam pauta e promoção de novas estratégias,
no qual estratégias de permanência em um país tão contraditório, fossem inseridos na dinâmica
e no trânsito das estratégias de mobilidade do Haiti. O Haiti já era aqui, os haitianos, hoje, são
daqui, e “ninguém, ninguém é cidadão”.

4.1.1 As alternativas da vinda: trajetórias desde a chegada ao Acre

Conforme apontado, o governo do Estado do Acre a partir de 2014 encaminhou


imigrantes lotados nos abrigos de Brasiléia e Rio Branco em ônibus fretados para os destinos
131

de haitianos. São Paulo tornou-se o principal ponto de encontro destes, cujo intuito maior era
encontrar uma forma de sustento. Resumidamente, podem-se definir quatro elementos de
atuação do governo do Acre a partir das geometrias de poder, sejam sob justificativa da evasão
de haitianos no Acre e/ou problemáticas exploradas no capítulo anterior, conforme o Quadro 1:

QUADRO 1: Geometrias de poder a partir do Estado (Acre e Governo Federal)


Segurança na fronteira –
Geometria 1 Erradicação do tráfico de pessoas
atuação dos coiotes

Falta de comunicação com o Escassez de verbas e estrutura para


Geometria 2
Governo Federal atendimento

Perigo endêmico – Cólera e


Geometria 3 Repercussão nacional desse perigo
Ébola

Resposta final às tentativas de diálogo


Geometria 4 Crise humanitária
nacional
Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

Desses quatro elementos, podemos desconstruir respectivamente as assertivas, se se


argumenta a estratégia de mobilidade do governo do Acre em tornar o migrante um problema
migrante-problema. É notório os problemas enfrentados por estados que não encontram-se no
eixo da região concentrada conforme Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001), pois suas
lógicas já são por si só escamoteadas dos chamados grandes centros de decisão, o que faz toda
diferença no tato e na gestão de políticas de inclusão social, claramente a principal falha na
recepção de imigrantes pela fronteira acreana. É mais que notório também o trato dado pelo
Conselho Nacional de Imigração em conceber estratégias de inserção do imigrante haitiano no
Brasil, sobretudo com a Resolução Normativa 97.
O questionamento especialmente aqui apresentado, e por valer a crítica, é a resposta
dada e apontada como geometria de poder 4 (crise humanitária) pelas instâncias políticas condiz
com um trajeto espaço temporal diferente da de acolhida. A ideia de crise ratifica a de problema
migrante-problema. Ao mesmo tempo, a estratégia de mobilidade do Estado – seja do governo
acreano ou do nacional – tende mais a respostas emergenciais a cada momento de mudança das
estratégias de mobilidade de haitianos no país, somado à tentativa paradoxal do governo
acreano em visibilizar-se para meios políticos e de comunicação.
132

Quando esta tentativa conflita com as reais estratégias dos migrantes, as coisas mudam
de figura, e as estratégias do governo fogem ao controle. Na tentativa de sanar e suprimir as
dificuldades acarretadas com a passagem por essa fronteira, a solução ofertada foi literalmente
“remover o problema”, fretando ônibus e pagando as passagens para os destinos nos quais
haitianos ou já possuíam uma rede de contatos, ou no percurso ao Acre conheciam outras
pessoas com as mesmas pretensões.
Esse jogo para efetivas políticas públicas não tem vencedor. Nem o Estado do Acre que
se esquivou da possibilidade de dialogar com o governo federal projetos efetivos para a faixa
de fronteira – que compreende todo o estado, por sinal –, nem o governo de São Paulo, que da
mesma maneira respondeu à chegada dos imigrantes haitianos nos ônibus fretados como uma
“provocação” do estado do Acre. Como disse Caetano e Gil, “não importa nada, nem o traço
do sobrado, nem a lente do Fantástico, nem o disco de Paul Simon... Ninguém, ninguém é
cidadão...”.
O paradoxo da política que possibilita a permanência de haitianos no Brasil é apontado
por Thomaz (2015) :

uma “crise política” se instalou entre os governos do Acre e de São Paulo, com este
último acusando de irresponsável o envio dos migrantes sem aviso prévio, ao passo
em que o primeiro adjetivava as autoridades paulistas de “racistas” e higienistas” por
não mostrarem-se hospitaleiras aos migrantes haitianos. Para além das disputas
interestaduais, o fato é que os migrantes haitianos deixaram a condição de
invisibilidade que vivenciavam no Acre e a questão “humanitária” de sua vinda
passou ao centro a agenda política do país (THOMAZ, 2015, p. 104) .

Pimentel e Contiguiba (2015) colocam um questionamento: por que exatamente no


momento do discurso de crise humanitária e do embate interestadual entre Acre e São Paulo,
vinculado ao enfoque pejorativo e sensacionalista da mídia, foi que o governo federal começou
a tomar medidas mais efetivas à permanência de imigrantes haitianos? E complementam: por
que somente de haitianos, e não de outras nacionalidades como bolivianos, paraguaios,
colombianos, equatorianos, africanos e demais caribenhos? Vieira responde em parte quando
analisa a mobilização de agentes institucionais pós-Resolução 97:
133

Se novas questões surgiam depois da RN, mobilizações e articulações continuaram a


serem efetivadas. Elas se configuraram, por vezes, em formas de reivindicação. Não
é possível dizer que os pedidos ao governo eram necessariamente em defesa dos
“haitianos”, muito menos que buscavam exigir o acolhimento de todos. Mas todas
elas colocavam a necessidade de intervir para solucionar o que estava sendo
vivenciado, independente da opinião propriamente que tinham a respeito do assunto.
Em outras palavras, se a RN nº 97/2012 tivesse conseguido ordenar a mobilidade sem
trazer novas questões, mesmo operando através do controle e da restrição, talvez
alguns atores que se pronunciaram depois da publicação teriam se mantido em
silêncio. Reivindicar uma solução, em alguns casos, não significava necessariamente
defender os “haitianos”(VIEIRA, 2014, p. 105).

Apresenta-se a partir de Rosa Vieira uma questão salutar, que é a de quem estas políticas
surgem e de fato favorecem, além do porquê. Ao atentarmos que a possibilidade de entrada de
haitianos pelo motivo de refúgio foi refutada sob alegação de não haver a categoria refúgio para
desastres ambientais, aliado ao crescente fluxo entre 2012 e 2014, a mobilidade haitiana acaba
por possuir, a partir das estratégias de mobilidade destes, outras geometrias de poder, vale
destacar:

QUADRO 2: Geometrias de poder a partir dos imigrantes haitianos

Facilidade legal de entrada em países


Geometria 1 como Peru e Equador no início da Acordo Mercosul, Plano México
década de 2010

Política de abertura para o Pacífico


Acirramento do controle nas fronteiras
no Brasil pela Amazônia, política
norteamericanas e europeias (reflexo no
Geometria 2 de diplomacia solidária inaugurado
acirramento do controle na Guiana
no século XXI no Brasil e inserção
Francesa)
do Brasil a MINUSTAH

Enchentes na região da Amazônia Sul


Ocidental (entre Peru, Bolívia, Acre e Tentativa de contenção da entrada
Rondônia), que provocou a de imigrantes pelo Peru e pelo
superlotação do abrigo em Brasiléia em Equador; Relatório da ABIN e de
Geometria 3
2013 e 2014 e como precaução, demais países atribuindo tráfico de
intensificou até fevereiro de 2015 o pessoas e exploração financeira por
fluxo de imigrantes antes de uma coiotes
possível enchente no mês seguinte

Geometria 4
134

Governo do Acre freta ônibus para Intervenção do CNIg; Visto de


haitianos para destinos pretendidos. permanência por trabalho de até 5
Aumento do interesse da mídia em anos para haitianos
explorar o caso dos haitianos:“Crise
humanitária” e “Invasão de haitianos”
são um dos vários termos escolhidos
Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

Ao atentarmos à geometria de poder 3 sob o agenciamento dos imigrantes haitianos, a


superlotação dos abrigos instalados na fronteira acreana é relativamente explicada, já que as
enchentes ocorridas em 2013 e 2014 fecharam não só a fronteira como a BR 364, único acesso
viário possível para sair do estado. O que leva a crer também que não era o real desejo dos
haitianos permanecer no Acre.
Da mesma maneira, o quadro sintético que ora aponta o direcionamento dos haitianos
até o Brasil tem como resposta (indicado na coluna seguinte) as contradições das estratégias de
mobilidade do Estado brasileiro. Isto é, as respostas dos agentes públicos muitas vezes iam de
encontro às respostas dos agenciamentos dos imigrantes. No caminho oposto, a falta de tato ao
movimento dos haitianos levou à maior rigidez no controle das fronteiras sul-americanas.
Nessa perspectiva, Toledo Souza (2016) aponta que os dispositivos políticos atribuídos
a solicitantes de refúgio, como no caso dos haitianos na entrada pela fronteira acreana, refletem
o caráter biopolítico da política brasileira em obter o controle da entrada destes conforme
convergiam estratégias políticas do Estado brasileiro, sempre em desencontro com as dos
migrantes.

Este é o modo de gestão dos fluxos de migrantes e de atribuição e valoração da


cidadania. A violência da exploração dos corpos está articulada à precarização da
condição jurídica e política destes corpos: gestão biolítica dos fluxos de circulação,
trabalho e cidadania. A regularização da situação dos migrantes haitianos, bolivianos
e chineses, através de dispositivos jurídicos específicos, certamente diminuem a
violência da exploração e o sofrimento das pessoas, mas, ao mesmo tempo, não se
mostram como outra coisa que não um momento indispensável à própria
sobrevivência dos mecanismos de exploração (TOLEDO SOUZA, 2019, p. 86).

A partir da década de 2010 o Brasil, com a mudança no cenário mundial e com a sua
visibilidade no cenário capitalista, tornou-se ponto de encontro de novas nacionalidades e novas
rotas migratórias dos de abajo. E São Paulo como principal centro de decisão global do país
tende a ser um ponto de encontro.
135

4.1.2 Estratégias de mobilidade em São Paulo

Mais do que a música homônima de Caetano e Gil, é a música Sampa, composta por
Caetano Veloso em 1978 e integrada ao álbum Muito dentro da estrela azulada, que melhor
representa a vinda de imigrantes para São Paulo. E mais que isso. O olhar cuidadoso e sensível
de uma cidade como São Paulo na visão de um migrante. “... é que quando eu cheguei por aqui
eu nada entendi, da dura poesia concreta de suas esquinas [...] Alguma coisa acontece no meu
coração, e só quando eu cruzo a Ipiranga e a Avenida São João...”.
Se o impacto de chegar ao Brasil por uma região precarizada e com uma série de
problemáticas estruturais que visibilizam mais ainda as contradições e a diversidade de Brasis
desiguais é escancarado pelos haitianos, a encarnação da cidade global e da dureza para aqueles
que são invisibilizados pela sociedade torna-se o tom e a canção de novos espaços migrantes
para estes mesmos haitianos. “... E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho. Nada do
que não era antes quando não somos mutantes [...] E quem vem de um outro sonho feliz de
cidade aprende depressa a chamar-te de realidade, porque és o avesso do avesso do avesso do
avesso...”.
As ações do estado do Acre e a mobilidade para São Paulo ficam mais claras, tanto nas
falas de haitianos quanto nas ações entre os agentes envolvidos no curta-documentário SP
Creole: a vida dos haitianos na capital paulista, sob orientação do professor Heidy Vargas, da
Universidade Metodista de São Paulo em parceria com o canal Futura. O documentário percorre
a entrada dos haitianos pelo Peru e o trajeto em um dos ônibus fretados pelo governo do Acre
para São Paulo, até as maneiras em que haitianos moram e constroem suas vidas na capital
paulista. Conforme fala do secretário de direitos humanos do governo do estado Acre, Nilson
Mourão, a entrada pelo Acre se dá eminentemente pela ação conjunta dos coiotes, que
intencionam obter de maneira ilícita os recursos disponíveis destes imigrantes, mas o destino
pretendido destes é claramente a região centro-sul do Brasil:

Enquanto ocorrer ação ostensiva e sem controle dos coiotes, muito provavelmente
essa rota se manterá viva. A forma de desativar essa rota, ela precisa ter uma ação de
todos os países envolvidos nessa rota... Os migrantes não vem para o Acre para ficar,
eles vem para seguir viagem para o centro sul do país (Nilson Morão In.: SP Creole,
2014).

Conforme informações principalmente dos relatórios do Conselho Nacional de


Imigração e Ministério do Trabalho, até final de 2014 cerca de 24% dos haitianos que haviam
136

chegado ao Brasil viviam em São Paulo. Os haitianos viajavam sessenta e seis horas do Acre
até São Paulo e desciam na Estação Rodoviária e metroviária Barra Funda, de fácil locomoção
à região central da cidade. É apontada a falta de orientação, em dezembro de 2014 à chegada
dos haitianos pela Rodoviária, no qual estes não obtinham informações claras sobre para onde
ir.
Conforme ainda o documentário, boa parte dos haitianos em São Paulo vivem em
prédios ocupados pelos movimentos de luta pela moradia. Segundo o vídeo, cerca de 400
pessoas viviam na ocupação, destas, a imensa maioria eram haitianos. Dentre as falas destes,
ressaltamos a de Iliot Cyrise, morador de um prédio uma ocupação em 2014:

Quando eu primeiro cheguei aqui no Brasil, eu morar numa pensão. Quando nós vinha
aqui, esse prédio tá muito sujo. Nós pegamo a semana inteira pá descer entulho na
rua. Nós fez uma preparação para nós morar aqui. Esses prédio, o responsável desses
prédio mesmo é Jeferson, que mandá nós morar aqui e cobrar dinheiro com nós morar
aqui, porque nós estrangeiros não sabe nada de casa aqui no Brasil... A vida aqui é
muito ruim, porque é um banheiro pra todo mundo. Aqui em cima terceiro andar, não
tem nada, não tem banheiro, não tem água... Todo haitiano que vem aqui pro Brasil
vem pra trabalhá, não vem pra fazer outras coisas não (Iliot Cyrise In.: SP Creole,
2014).

Duas questões importantes apresentam-se na fala de Iliot: um, ocorreu a ocupação do


prédio no centro de São Paulo, no qual houve uma responsabilidade solidária, como acontece
em boa parte das ocupações, que hoje somam-se outras nacionalidades por entre fluxos
contemporâneos; dois, o responsável direto do núcleo daquela organização, que promoveu a
ocupação deste prédio, considerando que a maioria era de haitianos e outras nacionalidades,
resolveu cobrar um valor fixo mensal semelhante a um aluguel – R$ 300,00, conforme o
depoimento de outros imigrantes, como Michel Saintilus, que afirma “... Passamos muita
calamidade. Pagamos 300 reais neste quarto. Agora não tem água para tomar banho...”.
Deixando o sensacionalismo de lado, a cobrança indevida aos imigrantes revela que não
cabe somente ao Estado compreender e aplicar políticas efetivas a forma da entrada. Os
dispositivos de permanência e mobilidade entre imigrantes, e as estratégias da sociedade em
transformar a situação de emergência desses imigrantes em oportunidade forma o traço dos
mecanismos e táticas de mobilidade. Também é papel de agentes da sociedade, constructos do
que foi apontado no segundo capítulo, sobre as heranças sociais das relações migratórias no
Brasil. Da mesma maneira, se o Estado promove a escolha e o controle dos mecanismos de
permanência e mobilidade de grupos migrantes, inclusive nas táticas de vigilância, por que se
137

exime, tal qual ocorria no abrigo no Acre, de avaliar os atos ilícitos contra esses mesmos
imigrantes?
Conforme apontado e o que veremos adiante em outros fluxos no Sul do Brasil, a
moradia é um dos principais gargalos nas estratégias de mobilidade e permanência de haitianos
no Brasil. Assim, as estratégias de mobilidade de haitianos em São Paulo requerem a reflexão
de a que veio o haitiano e como chegou a São Paulo, cujos problemas ainda promovem
condições precárias de sustento e moradia a partir de agenciamentos de outrem. Sejam dos seus,
do Estado, da sociedade ou de outras organizações, o haitiano mobiliza-se ao encontro dos
Brasis.

4.1.3 O papel do Estado

Existem lacunas ao tratarmos as geometrias de poder que articulam políticas para


imigrantes, cujos agenciamentos promovidos em muitos casos sequer encostam aos
agenciamentos dos imigrantes, isto é, o discurso e a ação do Estado, quando tangenciam as
demandas dos imigrantes é de forma parcial e sob outros interesses. Isso não significa que não
existam agentes com o real interesse em articular e promover políticas públicas de inclusão
social e garantia a cidadania de imigrantes no Brasil, quiçá manter os direitos erigidos por lei a
estes imigrantes, ou que não encostem efetivamente nas demandas destes imigrantes. A
Resolução Normativa 97, por exemplo, é uma abertura política efetiva que propiciou – e
propicia – a inclusão, sem restrições territoriais, como seria caso os haitianos estivessem na
categoria de refugiado, e de acesso a equipamentos públicos como saúde, educação dentre
outros serviços sociais básicos.
Contudo, tais garantias ainda revelam o mínimo de assistência que torna a cidadania e a
própria permanência paliativas. Para Abdelmalek Sayad, o Estado, ainda que ao fomentar
políticas de inclusão a imigrantes, ciente de sua permanência, escamoteia-o com a prática do
ser provisório, marginaliza-o tal a fim de promover o controle total e real do sujeito migrante.

Toda presença estrangeira, presença não-nacional dentro da nação, é pensada como


presença necessariamente provisória, mesmo quando esse provisório possa ser
indefinido, possa prolongar indefinidamente, criando, desta forma, uma presença
estrangeira permanentemente provisória, ou em outros termos, uma presença durável,
mas vivida por todos de maneira provisória, adequada aos olhos de todos por intenso
sentimento de provisório (SAYAD, 2000, p. 21).
138

Na vinda de haitianos para São Paulo, conforme informações do documentário citado,


tanto por parte de organizações não governamentais e outras entidades, aponta que houve certa
preocupação quanto ao papel do Estado paulista e paulistano em atender minimamente estes
imigrantes, no qual coube a essas organizações o primeiro acolhimento quando os primeiros
ônibus saíram de Rio Branco e chegaram à Estação Barra Funda.
A partir de trabalho de campo em março de 2017, em conversa com o assistente de
projetos do Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI) da Prefeitura de São Paulo
Fábio Ando Filho, obteve-se algumas respostas a essa possível “ausência” em meados de 2014,
bem como a atuação do Estado ora em garantir projetos de acolhimento e garantia de cidadania
a imigrantes, mas também na incidência desse caráter de provisoriedade que Sayad aborda.
A ida ao Centro de Referência em Acolhimento a Imigrantes (CRAI) da Prefeitura de
São Paulo ocorreu no dia 13 de março 2017, seguindo roteiro semiestruturado. Farei aqui um
relato cujas respostas foram passadas por Fábio, representante no Centro no momento da
chegada ao local.
Fábio atua na Prefeitura de São Paulo desde 2013 vinculado à Secretaria de Direitos
Humanos, cujo objetivo da gestão era elaborar políticas públicas permanentes para imigrantes
na capital. O intuito desta era a transversalidade a partir de prerrogativas que estimulassem a
mobilização em quatro eixos (educação, saúde, cultura e trabalho) pensando sempre nas
imediações interculturais e na diversidade intrínsecos ao apoio para com imigrantes de outras
nacionalidades.
O Centro de Referência, conforme Fábio, foi criado em novembro de 2014, seis meses
após a chegada de haitianos em ônibus fretados. O mesmo aponta que o CRAI agiu em um
primeiro momento em caráter emergencial, tendo como principais ações o centro de acolhida,
conveniado à Secretaria de Direitos Humanos, Ministério da Justiça e Secretaria de Assistência
Social, promovendo acesso a todos os direitos. Ele ainda aponta que o fato da equipe do Centro
ser toda composta por imigrantes promove também a aproximação maior entre os acolhidos.
O Centro hoje está em um prédio na região central de São Paulo, no Bairro Bela Vista.
No primeiro espaço encontra-se o centro de acolhimento em si, logo em seguida um pátio com
salas para palestras e aulas, e por último um dormitório com ao todo 13 quartos – 10 dormitórios
masculinos e 3 femininos, estando sempre no limite de vagas. A principal demanda do Centro
é documentação, que o CRAI orienta e agenda na Polícia Federal para os procedimentos de
visto ou protocolo.
139

Conforme Fábio, não há no CRAI a mediação vislumbrando trabalho a imigrantes, isto


é, não existe encaminhamento para empresas ou outros serviços de emprego, que ainda
conforme é a prefeitura de São Paulo que faz esse tipo de serviço. O que o CRAI faz nessa
direção é a mediação de conflitos quando ocorrem dificuldades nos agenciamentos de trabalho.
Especificamente ao caso dos haitianos, Fábio aponta que a criação do CRAI em formato
emergencial era para atender a chegada destes, e que meados de 2015, pouco antes ao
fechamento do abrigo em Rio Branco foi feito um convênio com o Governo do Acre, Governo
Federal e Prefeitura de São Paulo, via o próprio CRAI, que possibilitou ao Centro receber os
ônibus fretados pelo Governo do Acre e pelo Governo Federal na Barra Funda. Isso significa
que somente um ano depois desse diálogo que de fato permitiu uma política pública efetiva.
Havia um problema, resultado inclusive desse atraso na efetivação do acolhimento via
prefeitura de São Paulo, que era o fato dos haitianos estabelecerem sua rede de apoio e
acolhimento com as entidades não governamentais, sobretudo a Casa do Migrante e a Missão
Paz, fomentadas pelos padres scalabrinianos da Igreja Católica.
Quanto ao conflito entre governos, Fábio aponta que na realidade houve problemas de
comunicação. Para ele, o governo federal tomou medidas emergenciais, e por isso o diálogo
tornou-se mais tenso. Ele acredita que o governo do Acre, apesar das medidas controversas,
teve uma postura correta, assim como a prefeitura de São Paulo, cujos objetivos eram sempre
garantir a autonomia do migrante.
Fábio apontou também que na criação do CRAI, o fluxo de haitianos já havia diminuído,
e que a maior demanda em 2015 foi o atendimento de congoleses e angolanos.
No que se refere ao convênio que permitiu em 2015 o acolhimento na Estação Barra
Funda, foi disponibilizado um relatório que visualiza a atuação do CRAI entre julho a novembro
de 2015. O que chama a atenção é a quantidade de casos em que o CRAI se mostrava presente
na Rodoviária, mas que não ocorria chegada de ônibus. No mês de julho, por exemplo, o
relatório aponta que o CRAI atuou em nove dias, mas que em somente quatro houve o
atendimento e encaminhamento de haitianos ao Centro. Nos demais cinco dias, o relatório
consta que o CRAI estava presente, mas o ônibus ausente, sob a justificativa de "horário
diverso".
140

QUADRO 3: Haitianos acolhidos na Rodoviária Barra Funda – São Paulo em julho de 2015

Fonte: Centro de Referência de Atendimento a Imigrantes, Março de 2017.

4.1.4 O papel das Organizações Não Governamentais

Dentre as atuações institucionais, é de suma importância o papel das Organizações Não


Governamentais, ou instituições filantrópicas, as entidades religiosas - católicas e evangélicas
- ou o Terceiro Setor em geral no acolhimento e na promoção de cidadania para imigrantes
haitianos. Conforme observado no relato anterior, chega-se ao ponto de ocorrer uma
substituição dessa promoção por parte dessas instituições, no qual boa parte de suas funções
deveriam ser realizadas pelo Estado. Conforme Silva (2017):

Nessa perspectiva, a Pastoral do Migrante acabou assumindo uma dupla função: a de


encaminhar para o trabalho, que deveria ser exercida por instituições públicas, como
é o caso do Serviço Nacional de Emprego; e a de “regular” as relações de trabalho,
tentando evitar possíveis abusos contra uma mão de obra tida como “vulnerável”, por
ser imigrante. E quando seus direitos não são respeitados, resta-lhes recorrer à Pastoral
para que tome alguma providência, já que outros canais são, às vezes, inacessíveis em
razão da burocracia e/ou do alto custo ou, em alguns casos, insensíveis às suas
demandas (SILVA, 2017, p. 109).

Instituições como a Missão Paz, financiada pela Fundação Scalabriniana da Igreja


Católica, tornaram-se parte das redes de migrantes com significativa notoriedade em São Paulo.
141

Dentre o maior destaque, ressalta-se um dos eixos de atuação da instituição, que promove o
diálogo entre empresários e potenciais trabalhadores, logo, o que converge ao desejo imediato
dos imigrantes. Silva (2017) ainda ressalta que o papel da Igreja Católica na consolidação de
redes de imigrantes no Brasil, bem como a promoção de garantia de direitos fundamentais, não
se deu somente com os haitianos, mas através de um processo de ausência de políticas efetivas
por todo o século XX e XXI no Brasil, seja com os italianos, japoneses, nordestinos no Sudeste,
sul-americanos, até sírios, matrizes africanas e caribenhas no século atual.
Entre as atividades mais procuradas pelos haitianos estão o atendimento que encaminha
documentos e o projeto de mediações para o trabalho, em convênio com o Ministério do
Trabalho e Previdência Social, no qual o imigrante preenche uma ficha e participa de palestras
ofertadas pelo grupo Society for Intercultural Educations Training and Research Brasil -
SIETAR Brasil, que apresenta aos imigrantes os critérios e a legislação vigente de trabalho,
indicando os casos de abuso, exploração e deslegitimação no Brasil, bem como direitos
trabalhistas e um aparato geográfico e histórico do país. Por sua vez, empresários de toda parte
do país inscritos no banco de dados da Missão Paz também assistem a uma palestra indicando
as responsabilidades na contratação de imigrantes. Há semanalmente o encontro entre
empregadores e imigrantes onde, a depender do interesse, ocorre a contratação. Conforme
representantes da Missão Paz, Padre Paolo Parisse, assim como os assistentes sociais e os
relatos dos imigrantes, há um monitoramento rígido na contratação dos imigrantes, com
acompanhamento e verificação de denúncias.
Em 2014, no auditório de eventos, com a vinda maciça de haitianos pelos ônibus
fretados a São Paulo, foi improvisado um alojamento que chegou a abrigar duzentos e cinquenta
haitianos. Ainda conforme relatório do eixo trabalho entre maio a setembro de 2014, cerca de
1700 imigrantes foram contratados por um total de 500 empresas; mais de 600 imigrantes foram
encaminhados a cursos profissionalizantes e cerca de 900 imigrantes fizeram cursos de
português via Missão Paz.
Conforme esses mesmos campos, a estrutura da Missão Paz se dá da seguinte maneira:
142

QUADRO 4: Missão Paz – Estrutura de acolhimento a haitianos (Espaço e atividades)


Espaço Atuação Atividades
Encaminhamentos a
principais serviços
Assistência Social, Médica
Atendimento públicos; acesso à moradia;
e psicológica
Acesso a equipamentos de
toda ordem.
Cursos de português;
acolhimento a casos de
Apoio Jurídico, social e cultural denúncias; intercâmbio
cultural; atendimento a
demandas permanentes.
Articulação entre o eixo
Auditório de eventos Eventos do local trabalho; eventos ligados a
questão migratória.
Integração pesquisa e
Trabalhos técnicos da
Centro de Estudos extensão para suporte às
pastoral, pesquisas e
Migratórios ações para grupos
publicações.
migrantes no Brasil.
Atividades ligadas aos
eventos da religião católica
Missas para o público em no Brasil, missas
geral, a igreja tem em sua específicas a comunidade
Igreja
estrutura referências diretas migrante, ponto de
a imigração. encontro de imigrantes
haitianos aos fins de
semana.
Separados por gênero, a
Comporta 110 pessoas, permanência durante o dia
Casa do Migrante com limite de permanência é restrita a mulheres e
de 3 meses. crianças e abre o refeitório
durante o almoço.
Fonte: Trabalho de Campo em Março de 2017. (Elaboração nossa).

Conforme trabalho de campo em 2014 e 2017, o índice de contratação ao programa de


agenciamento de empresas para empregar imigrantes era muito superior entre 2014 e 2015, o
que dava preferência a imigrantes ao atendimento na Missão Paz. Já em 2017 os índices de
contratação diminuíram significativamente com a crise política e social no Brasil desde meados
de 201658.

58
O orçamento da entidade, segundo relato de funcionários e voluntários, está vinculado à própria congregação
scalabriniana, por convênios firmados por agências nacionais e internacionais e doações. Muito pouco vem do
Estado de São Paulo.
143

4.1.5 Trabalho, Estado e entidades: o problema migrante-problema complexifica-se

A maior parte das falas dos imigrantes, seja nos dados dos abrigos no Acre - que Toledo
Souza (2016) define como campos de refugiados59 - seja nas falas de haitianos em São Paulo
ou na região Sul do Brasil, há um eufemismo e retórica de justificar a vinda para trabalhar.
Somado a isso, destaca-se um terceiro aspecto da fala de Iliot: a justificativa da vinda para o
Brasil ser somente para trabalhar. Conforme Toledo Souza (2016):

A ambiguidade está presente em quase todo o percurso e presença dos haitianos no


Brasil. A única solução para a crise no abrigo, antes que se decidissem pela
transferência dos haitianos – e da crise – para outras partes do país, principalmente
São Paulo, eram as empresas que buscavam trabalhadores. Os haitianos logo ficaram
conhecidos como bons trabalhadores, procurados ansiosamente por empresários –
principalmente da área de construção civil – que diariamente procuravam por corpos
aptos ao trabalho duro (TOLEDO SOUZA, 2016, p. 84-85).

Já no início do fluxo para São Paulo têm-se duas características importantes: uma, a
passividade e docilidade dos corpos que, conforme o próprio Toledo Souza aponta, envolvem
também táticas de sobrevivência no país na busca por oportunidades de trabalho e, segundo, o
intuito dos empresários de vários outros locais do país em aproveitar dessa passividade a fim
de promover postos de mercado de trabalho em decadência no Brasil, muito pelo crescimento
econômico das décadas de 2000 e 2010.
Ora, o Estado do Acre determinou o trabalho como principal fator de imigração e o
Estado brasileiro definiu, em suas normas desde a chegada de imigrantes no século XIX que o
imigrante era pelo trabalho. O Conselho Nacional de Imigração é submetido ao Ministério do
Trabalho. O visto concedido a haitianos é um visto de trabalho, condicionado a renovação caso
o imigrante esteja trabalhando no Brasil. Não é surpresa uma resposta em forma de justificativa
repetidamente colocada pelos haitianos em momentos muitas vezes vindos de suas adversidades
no Brasil: “... nós só queremos trabalhar...”.
Karl Marx, em O Capital, ao caracterizar as bases da acumulação primitiva, aponta que
a usurpação das terras comunais no final da Idade Média foi uma das causas cruciais da
expulsão de trabalhadores do campo para a cidade, já que extraiu sua garantia de renda no
campo. A mobilidade de grupos já destituídos promoveu a transformação do trabalho

59
Na perspectiva de Michel Foucault e Giorgio Agamben, que apontam o caráter do controle do Estado em escolher
a categoria migrante ou refugiado, conforme o interesse e os agenciamentos do Estado, os interesses a lógica deste
e do capital e à força de lei que possibilita docilizar corpos para este Estado. Essa docilização não é indicada nem
informada, pois coexiste ao controle e à força da lei emitida pelo controle. Mais informações In.: FOUCAULT,
Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; e AGAMBEN, Giorgio. Estado de
Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
144

assalariado, em conjunto com a garantia do acordo entre Estado e mercado que possibilitaria a
formação de excedente de trabalho, a população relativa ou o exército industrial de reserva, que
viveria à margem das condições de trabalho e intensificaria o lucro do Estado e principalmente
do capital.
Ele aponta sucessivas ordens da nobreza que tornaram cada vez mais precário o homem
comum, o ex-camponês em escravo da força de trabalho. Sua precarização impedia a chamada
vadiagem/vagabundagem, e tornava as massas cada vez mais submissas à ordem de um
proprietário de sua força de trabalho. Contudo, Marx não procura, ao tratar da acumulação
primitiva e da mobilidade do trabalho pela força de trabalho, desvelar uma relação clássica de
acumulação primitiva para outros países, outros espaços. Ele claramente figura o exemplo de
acumulação clássica atribuída por ele – à Inglaterra – e aponta as possíveis e diversas
complexidades entre outros espaços, obviamente sem deixar de articular a categoria trabalho
nas relações sociais do sistema capitalista.

Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos


que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os
momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de
seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários
absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural,
ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades
distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em
diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como
exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica. A estrutura econômica
da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A
dissolução desta última liberou os elementos daquela (MARX, 2013, p. 787).

Insiste-se dessa maneira, nessa diversidade e nessa complexidade, quando tratamos de


realidades como o Haiti e o Brasil, com vários mecanismos de submissão à ordem do sistema-
mundo, onde ainda não é a ordem de sua estrutura social a vigente, e paradoxalmente nossa
estrutura social é reprodução dessa lógica de sistema-mundo do qual não escolhemos, nem
abarcamos a não ser de maneira arbitrária. Isso fica claro no discurso do imigrante, ao ter como
tom o trabalho como tática de entrada e mobilidade no Brasil, e é o trabalho também sua real
justificativa. Da mesma maneira é o mecanismo possível, como migrante, de obter melhores
condições de vida, de existência e de garantia coletiva de um grupo. E isso é a vida como opção,
como prática política.
No que concerne à questão trabalho, Silva (2017), assim como outros pesquisadores que
aprofundam o tema, posta a crítica ao papel destas organizações, no sentido que incitam a
prática de precarização das relações entre esse grupo e o capital.
145

É nesse contexto desigual da relação entre capital e trabalho, em que o migrante pode
tornar-se também mercadoria negociada ou traficada por redes ilegais de
agenciamento, que a atuação de redes de acolhida de cunho humanitário acaba tendo
um papel central, pois, seja por questões religiosas ou não, o que está em jogo é o
conjunto dos direitos da pessoa humana. Nesse sentido, justifica-se a ação da Pastoral
do Migrante em fazer a mediação entre empregadores e trabalhadores migrantes,
garantindo-lhes minimamente direitos trabalhistas e sociais. Contudo, ao fazer este
“serviço”, a entidade assumiu também o risco de ser instrumentalizada pelos
empregadores, que utilizaram esta rede humanitária para contratar trabalhadores(as)
de que necessitavam naquele momento para a sua reprodução econômica. Embora as
contratações tenham seguido os parâmetros das leis trabalhistas, os salários pagos
eram, em geral, inferiores aos dos trabalhadores nacionais em igualdade de função,
particularmente para os trabalhos considerados insalubres, como o realizado por
haitianos e senegaleses nos frigoríficos do Sul do Brasil (SILVA, 2017, p. 111).

Há, portanto, um imbróglio na problematização desse elemento, que resulta em vários


questionamentos. É fato que há a precarização das relações de trabalho ao se tratar de imigrantes
marginalizados, desde o início de sua entrada. Há uma demanda destes imigrantes, que é em
geral o acesso a melhores condições de vida, de maneira imediata. A maneira imediata de
melhoria destas condições no sistema vigente é pelo trabalho. Não há garantia nem acesso
público que valorize as reais capacidades desses imigrantes na busca por melhores condições a
partir do trabalho. Por exemplo, sua real escolaridade: não existe abertura possível pelo
Ministério da Educação e Cultura; o acesso às universidades, embora ocorra, como veremos no
caso dos haitianos no sul do Brasil, é sabotado pelas condições precárias de vida e trabalho.
A questão então se torna um labirinto sem saída. Se culpabilizarmos as redes que incitam
a lógica do mercado de trabalho, caímos na simplicidade e reducionismo do problema migrante-
problema. O maniqueísmo e a burocracia das políticas públicas é assim o maior imbróglio, e
infelizmente o papel dessas organizações não governamentais ainda é o de maior contribuição
à inclusão social. O que também é paradoxal, porém, para o sofrimento, para a angústia e para
o des-espero do migrante, a saída de um labirinto ainda mais obscuro.
Não está em cogitação neste trabalho uma saída mais extrema: que por conta da
precarização da inclusão do migrante no país, arrefecida por uma má gestão pública, faz-se
necessário seu retorno. Apreender esta assertiva é cair numa cilada conceitual do problema
migrante-problema que requer uma análise das relações de poder que esses migrantes se
inserem, e que vai muito além da relação capital trabalho. É um discurso que pode levar às
práticas dos dispositivos de controle e securitização dos processos de mobilidade, atuantes em
boa parte das fronteiras dos países periféricos e semiperiféricos.
Nesse sentido, em trabalho anterior, estabeleceu-se algumas questões mais pertinentes
ao que se aponta como problema migrante-problema:
146

Eis uma das questões do problema migrante-problema: a análise de uma categoria


estabelecida que mascara uma realidade que é múltipla, a legitimidade de um
processo de produção de conhecimento e experiências que revelam um novo sujeito,
dotado de escolhas, de trocas, de relações que são próprias. A provocação está em
compreender essa multiplicidade de fenômenos que levam ao mobilizar, ao migrar e
ao permanecer na cidade (MARTINS, 2013, p. 131).

O que denomina problema migrante-problema são os discursos transformados em


prática que deslegitimam as ações dos migrantes. Essa deslegitimação não é o escamoteamento
da crítica ao processo de mobilidade desigual e fundado eminentemente sob bases da
precarização. Mas questiona o discurso de alheamento do migrante frente ao mundo em
transformação. São os agenciamentos de enunciação que facilitam palavras preconceituosas aos
desde abajo.
[A] maneira de refletir e analisar os espaços de poder que muitas vezes abusam de um
tema como migrante como problema, mas não se atém ao cerne dessas relações e do
interesse em manter essa máxima do extremo do problema migrante- problema: os
espaços de poder que precisam ratificar o migrante como distante da própria cidade
onde está, diante das estratégias de mobilidade do migrante. As estratégias de
mobilidade atuam na produção de resistências diretas aos agenciamentos, e
constituem linhas que traçam cartografias. [...] Na cidade, o migrante produz e
reproduz distintas estratégias e como essas estratégias também possuem brechas para
novos agenciamentos alheios a uma construção singular e consciente de sua
importância no espaço (MARTINS, 2013, p. 21).

Fica clara a condição paradoxal, contudo resultante da ineficácia das políticas públicas
e das heranças históricas tanto do discurso de autonomia dos migrantes aliado na realidade a
um descaso, cujo poder da inclusão social entre migrantes é fortalecido nessas entidades em
trabalhos de campo em São Paulo, na Missão Paz, da mesma maneira em que essas relações
tornam-se objeto de um processo cujo descaso do poder público torna-se mais visível.

4.2 Estratégias de mobilidade cruzam estratégias de permanência

Vimos no capítulo anterior que as estratégias de mobilidade consistem na interação entre


o movimento e as táticas políticas percorridas no espaço migrante e do migrante. Tais
estratégias possuem relação intrínseca com o lugar deixado e o lugar chegado, e assim como os
migrantes promovem (sempre) politicamente estas estratégias, outros agenciamentos também
o fazem conforme a emergência dos acontecimentos.
147

O que decorre na reflexão da diáspora haitiana para o Brasil (HANDERSON, 2015) é


que as estratégias de mobilidade de grupos haitianos divergem das estratégias de mobilidade
do Estado e, por vezes, propriamente da sociedade brasileira. Conforme abordado, as heranças
geográficas e históricas das políticas de imigração no Brasil impulsionam uma série de
desacordos, além de uma diversidade de entendimentos aos novos fluxos migratórios.
Um exemplo claro é quando acessamos o documentário citado SP Creole no canal de
acesso, e visualizamos os comentários em relação ao vídeo. A seguir, dois dos primeiros
comentários:
A ONU deveria tomar medidas já que esse tipo de imigração se tornou uma doença
social a nível mundial, não só da América do Sul mas também da Europa etc.
(...)
Cadê o controle sanitário na entrada destes imigrantes? Cadê a polícia Federal
investigando os Antecedente (SIC) criminais destas pessoas?Sabemos se há terroristas
ou assassinos fugindo do seu país neste meio? Extremistas religiosos (Comentários
diversos in.: SP Creole, 2014)?

Esse tipo de opinião, embora minoritária dentre os comentários, reflete o processo pouco
elaborado tanto entre as instâncias governamentais quanto na própria sociedade da política
migratória no Brasil e seus desdobramentos muitas vezes ligados a agenciamentos de
enunciação que remetem ao imediato, a uma política imediatista conforme a emergência de
acontecimentos. Ao mesmo tempo, enuncia um discurso importado de outras falas, sobretudo
de meios de comunicação.
Essas estratégias de mobilidade promovem novas frentes de análise e de inserção de
políticas efetivas a grupos migrantes. Em conjunto a estratégias de permanência, visualiza-se o
espraiamento e a capilaridade dessas frentes em diversos espaços no Brasil. São Paulo, desta
maneira, é o epicentro e o cruzamento dessas novas estratégias de permanência.

4.2.1 Estratégias de permanência

“A gente traz sonhos, traz metas. Traz as malas nas costas querendo vencer na vida. As
pessoas acabam se aproveitando, nos fazendo passar fome, sono... Os meus sonhos são muito
altos...”.O relato é de Abel Marti, imigrante haitiana no Brasil desde 201160.

60
Em Novembro de 2014, ocorreu o Seminário Vozes e Olhares Cruzados 3, que ocorre anualmente na Missão Paz
a fim de trocar experiências entre imigrantes e a própria entidade, cujo público é de pesquisadores na área, outras
entidades, bem como representantes cuja temática abordada é migração e migrantes. Em ocasião a presença neste
evento, ocorreu a fala de Abel.
148

Abel chegou a São Paulo, ficou o primeiro em hoteis e a partir de um grupo de haitianos
conheceu a Casa do Migrante, onde permaneceu 22 dias instalada, recorrendo a orientações
disponíveis (documentação, busca por emprego, as palestras e a própria estadia). Conseguiu um
emprego pela mediação do eixo trabalho em uma empresa paranaense, onde ficou por um mês.
“Lá brasileiro fica em um lugar diferente dos haitianos. Trabalho muito difícil, então
voltei pra São Paulo...”. Abel retornou cerca de quatro vezes na Missão Paz até se fixar no
trabalho presente em 2014. “Trabalhei em restaurante, ganhando quinhentos reais pagando
quatrocentos de aluguel... Conseguiram trabalho que seria de babá, mas cheguei lá, era como
doméstica. Agora estou há um ano e nove meses como babá de uma procuradora.”.
O vaivém de Abel não é uma exceção entre imigrantes nos recentes fluxos. Na tentativa
de estabelecer não somente um local, mas principalmente uma atividade que gere um retorno
para viver e enviar recursos ao seu grupo, a surpresa de encontrar um país cujas desigualdades
e relações sociais permeiam uma série de contradições impulsiona, por um lado, a identificação
e, por outro, a desilusão. A procura por melhores condições, vinculado a sistemática
reivindicação - em particular aos haitianos, a mobilização de entidades públicas, filantrópicas
e/ou privadas a estes recentes fluxos, a política solidária a partir do terremoto, dentre outros
elementos, traz peculiaridades às estratégias de mobilidade de haitianos no Brasil.
Mas são também na capilaridade e nas reivindicações locais, como de Abel ao retornar
a São Paulo até encontrar um trabalho que abarcasse suas demandas, nas consoantes denúncias
a trabalhos que ferem a dignidade humana, ao vaivém de migrantes e na consolidação de grupos
imigrantes que promovem novas redes sociais de migração, que as estratégias de permanência
se destacam.
As estratégias de permanência possuem três elementos intrínsecos à sua consolidação.
O primeiro elemento consiste nos agenciamentos dos migrantes, isto é, no conjunto de práticas
e discursos dos imigrantes que os levam até o Brasil e que os fazem se mobilizar pelo país.
Vimos que a capilaridade é um dos reflexos de suas estratégias de mobilidade, tal qual
também é de permanência. Mas verifica-se que as estratégias de permanência estão numa escala
menor que as de mobilidade nesse sentido. As relações entre o local são muito mais definidas
e definem também o próximo passo do migrante. As redes sociais de migração são de profunda
importância no desenrolar destas estratégias.
Um dos suportes de apoio e savoir-faire (saber-fazer) dos imigrantes haitianos é o
sentido dado ao encontro e promoção de diálogo via o que se denomina por baz pelos mesmos.
No baz, os encontros estabelecem primeiramente uma territorialidade, já que os pontos de
149

determinado grupo serão sempre em um local fixo, escolhido pelos imigrantes. Após, eles
aportam novos contatos e novas redes de imigrantes já no Brasil ou a chegar. Conforme
Handerson, em ocasião de conversa com haitiano na Guiana Francesa (2015):

Em 2011, na frente da casa de Toussaint em Cabassou, alguns haitianos começaram a


reunir-se no local e pediram para ele se podiam sentar lá. Com o tempo, outros foram
chegando, um trazia outro e assim a baz foi formando. Quando perguntei a Toussaint
o que significava baz, ele respondeu: “Baz é quando dois, três ou quatro pessoas se
reúnem, aí formam uma baz. Baz não se faz com uma pessoa, deve ter mais de um”
(HANDERSON, 2015, p. 258).

Ao mesmo tempo, esse território e essa territorialidade61 podem se deslocar conforme


os acontecimentos e as disputas do determinado lugar. O mais importante é que o poder de
mobilização é reforçado a partir dessas territorialidades, e fundamentalmente na promoção de
territorialidades, relações de poder e formação de espaços, sejam de diálogo ou de
enfrentamento são promovidos. No que são promovidos, a insurgência em relação ao
estabelecido e contrário aos agenciamentos dos imigrantes torna-se mais frágil.

Baz (e aqui mais uma vez nos referimos a todas elas evidentemente, não só às bazamè,
as bases armadas) é um lugar de pertencimento e de proteção, um espaço de
sociabilidade (basicamente masculina, como dissemos, embora as lideranças
femininas possam falar também a linguagem da baz), ao mesmo tempo um espaço
concreto localizado no território e um espaço moral mais ou menos abstrato, cujas
fronteiras e escalas são, como já vimos, móveis e maleáveis (NEIBURG; NICAISE;
BRAUM, APUD HANDERSON, 2015, p. 262).

Nesse sentido, a fragilidade dos agenciamentos, das práticas e discursos dos outros que
como vimos apontam o migrante como um problema acentuam as disparidades, mas também a
consolidação de um debate e de um enfretamento à realidade vivida por estes mesmos
imigrantes. Do enfrentamento e da discussão é possível a promoção de políticas públicas e/ou
públicas ou de inclusão social para migrantes, que, assim, são postas à mesa.
O segundo elemento das estratégias de permanência refere-se aos agenciamentos dos
outros, isto é, as ações que acentuaram ou escamotearam a vinda de imigrantes. Vários são os
aspectos que possibilitaram a mobilidade para o Brasil, conforme apontado nos capítulos
anteriores. É notório que o terremoto foi um vetor de entrada, assim como aparente resposta do
Brasil à entrada de haitianos. Mas foi também a justificativa ilusória de contratar imigrantes em
trabalhos menos qualificados, tal como Handerson (2015) aponta:

61
Conforme Haesbaert (2007), ao apontar as territorialidades diversas em territórios que são construídos em
recorrência ao discurso do fim dos territórios.
150

O terremoto do Haiti e a situação empobrecida do país sensibilizaram algumas pessoas


da população brasileira que veem na oferta do emprego a um haitiano uma maneira
de ajudar o país e os próprios haitianos. A condição do ser migrante coloca o indivíduo
numa situação de aceitar o trabalho mais penoso e menos remunerado. Mas, a
experiência haitiana mostra ser mais complexa essa situação visto os haitianos
reclamarem do salário e deixarem seus empregos para buscarem outros por causa de
baixos salários, da precariedade e dos maus tratos nos locais de trabalho. Isto
desmistifica a ideia de os migrantes serem passivos quanto aos baixos salários, ou
reféns em trabalhos menos qualificados e precários. (HANDERSON, 2015, p. 167)

Os desdobramentos dos encontros e o formato coletivo da diáspora haitiana permitem


confrontar essa passividade na relação trabalho. Outro aspecto que dá poder de mobilização é
o fato de muitas organizações de apoio a migrantes estimularem a criação de entidades pelos
próprios, o que no caso dos haitianos rapidamente ocorreu. Conforme vimos a partir de
Handerson, as Associações de Imigrantes Haitianos espalhados pelo país são inúmeras.
Posteriormente discutir-se-á essa questão mais a fundo, mas adianta-se o caráter associativista
dos imigrantes haitianos permitir a maior consolidação das estratégias de permanência.
No sentido da precarização do trabalho, destaca-se o trabalho de Magalhães e Baeninger
(2016) desvendando os agenciamentos das empresas contratantes de imigrantes, em particular
no estado de Santa Catarina, no qual se demonstra a superexploração destes, ainda que sob os
básicos direitos trabalhistas.

os primeiros haitianos em Balneário Camboriú trabalhavam como garis no município


e no porto de Itajaí. Alguns haviam sido recrutados no Acre para trabalhar na
construção civil em Navegantes, mas os atrativos em Balneário Camboriú
(especialmente a maior oferta de emprego e acesso a serviços e a proximidade com os
haitianos residentes em Balneário Camboriú) rapidamente os atraíram. Realizavam,
portanto, tarefas mais intensas no uso da força física, menos qualificadas. Foi apenas
posteriormente que os trabalhadores haitianos dirigiram-se ao trabalho nos outros
setores, principalmente o de supermercados. Nos supermercados, desempenham
funções relacionadas ao trabalho no setor de cozinha (como cozinheiros dos próprios
colegas de trabalho, que fazem suas refeições nos supermercados), estoque e
reposição de produtos, horti-fruti e açougue. Não há registro de trabalhadores
haitianos em funções de gerência ou mesmo de caixa de supermercados na cidade de
Balneário Camboriú (MAGALHÃES; BAENINGER, 2016, p. 10).

A citada Abel, por exemplo, chegou a trabalhar em uma oficina de costura com vários
outros haitianos, cuja proprietária ofertou empregos a Missão Paz, mas omitiu as reais
condições no qual intencionava contratá-los. Tomar um posicionamento claro, ou minimamente
ter consciência da superexploração do trabalho é crucial na produção de estratégias de
permanência. Para tanto, é ter claro os agenciamentos dos outros, sobretudo quando eles não
convergem aos dos imigrantes.
151

Nesse ínterim, o terceiro elemento consiste na indissociação das estratégias de


mobilidade. Na tentativa de sistematizar estratégias de mobilidade e de permanência, é preciso
deixar claro que um não sobrepõe o outro, nem um deixa de existir na formação do outro - elas
operam concomitantemente.
É importante também a compreensão de que as estratégias de permanência não cessam
as estratégias de mobilidade, muito menos que o imigrante torna-se impedido de mobilizar-se
ao promover estratégias de permanência. O fato de promover outros fluxos e consolidar novas
rotas como no caso dos imigrantes haitianos não caracteriza o fim de suas estratégias de
permanência no Brasil. Seus agenciamentos concernem à permanência e à mobilidade a partir
de seu bem-estar e bem-viver.
As estratégias de permanência são coladas às estratégias de mobilidade de imigrantes.
Vale ressaltar a necessidade dessas estratégias no tocante à inclusão destes imigrantes e que
eles possuem um projeto – no caso dos haitianos um projeto coletivo – de melhoria de suas
condições. Tais estratégias revelam portanto a necessidade de debates quanto aos
agenciamentos, práticas e discursos entre os sujeitos e os processos revelados na mobilidade.
Sujeitos e processos esses que nos incluem, como migrantes ou como produtores do espaço.

4.2.2 Diálogos entre mobilidade e permanência 1

Oito de Março de 2017. Ida à Missão Paz para assistir palestra com imigrantes
francófonos em parceria com a organização SIETAR Brasil, cuja palestrante foi a mestranda
em Geografia Priscilla Pachi, com José Carlos, pesquisador do Centro de Estudos Migratórios
e editor da Revista Travessia.
No primeiro dia fui à Missão Paz ao encontro de Priscilla, que promove a integração
cultural, social e histórica de imigrantes que chegam ao Brasil. Priscilla é encarregada de
palestrar para francófonos, isto é, imigrantes que possuem o francês como sua língua materna
ou até secundária, como no caso dos haitianos. No espaço destinado à palestra em francês foi
possível perceber que havia imigrantes de várias nacionalidades, dentre a imensa maioria de
haitianos, mas também congoleses, senegaleses, entre outros. No auditório, em torno de 60
pessoas, imigrantes que haviam acabado de chegar ao Brasil (pelas falas destes, entre dois
meses a três dias).
152

A palestra, oferecida na Missão Paz, envolve um projeto maior de conscientização da


realidade brasileira, a princípio para condições de trabalho, apontando todas as características
de um emprego formal no país. A atividade contempla além, oferecendo um olhar crítico sobre
a história e a geografia do país, sua formação socioeconômica e o processo político que culmina
na entrada destes novos imigrantes. Priscilla explica que, embora o espaço de acolhimento e
apoio a migrantes ser católico, é um lugar universal a todas as religiões, que promove
assistência social, jurídica, médica e documental.
Ela falou em seguida do trabalho e do papel da SIETAR na Missão Paz, que promove
a palestra intercultural e o eixo trabalho da Missão Paz, representado na figura da Ana Paula
Caffeu, que prepara e dá palestra para os empregadores interessados em contratar os imigrantes,
orientando ambos, bem como os migrantes candidatos ao funcionamentos e processo de
permanência e trabalho no Brasil. Atento à postura de Priscilla, parte desta equipe, de muito
respeito aos imigrantes presentes na palestra.
De fato, a maioria dos interessados na palestra é haitiana. Quando questionados sobre
suas nacionalidades, notei imigrantes recentes do Congo, da Guiné e de Angola. Priscilla
comentou também do seu interesse pelo Haiti a partir de sua pesquisa no mestrado em Geografia
e na aproximação da investigação à sua própria condição de imigrante. Foi perguntado também
sobre a posse de carteira de trabalho, todos na sala respondendo positivamente.
Nesse gancho, Priscilla explicou quais os principais documentos no Brasil, o que era um
Cadastro de Pessoa Física (CPF), um Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) e qual a
necessidade do protocolo na Polícia Federal do Brasil e desses documentos, já que é a Polícia
Federal o órgão responsável pela geração de protocolo que viabiliza a entrada de estrangeiros
no país.
Após este momento mais formal, no qual se destacam as questões mais pragmáticas da
vinda de imigrantes a esta palestra, foram apontados vários aspectos sobre cultura e percepção
das culturas no lugar chegado, bem como processos de integração cultural até chegar a um
panorama geográfico e histórico do Brasil. É um espaço muito interessante de apontamentos
críticos e reflexivos do Brasil tanto por parte da Priscilla quanto dos imigrantes ali presentes.
Ela, nesse sentido, pede aos imigrantes que apontem em poucas palavras as impressões que têm
ou tiveram do Brasil nesse tempo no país. Eis a lista das principais:
153

“C’est plus blanc” (É muito “branco”);


Café (A presença do café);
“Moi vie na Brésil c’est plus bien” (Minha vida no Brasil é muito boa);
A vida melhorou muito no Brasil;
Carnaval, futebol;
Problemas de comprovar título superior;
Problemas em comprovar escolaridade;
“Parece que Brasil ser mesma coisa que Haiti”;
Homossexualidade;
Urgência no aprendizado do português;
Contato do país com países vizinhos.

Foi perguntada a questão do racismo para com os imigrantes presentes, lembrando que
todos eram negros e que cerca de 80% eram haitianos. Embora houvesse certo constrangimento
ao entrar nessa seara, a resposta de um dos haitianos, ratificada pela maioria, era de que não é
uma mentalidade geral, e de que apenas uma minoria dos brasileiros era racista. É interessante
nesse sentido a análise de Diehl (2017) quanto a diminuição do racismo por parte dos haitianos:

Nos interessa questionar neste caso não tanto a xenofobia e racismo declarado dos
dominicanos contra os haitianos, mas um silencio dos haitianos frente a esse racismo
declarado [...] Acerca do silêncio como forma de manter-se em solo estrangeiro, [...]
eles comentaram que já haviam sofrido preconceito na República Dominicana e
esperavam vir ao Brasil e não sofrer preconceito, o que acabou não ocorrendo. Há
também um silenciamento por parte de alguns haitianos, este silenciamento muitas
vezes ocasiona nos haitianos não comentarem muito sobre os atos de racismo e
preconceito que recebem da população local estabelecida. Acerca desse
silenciamento, alguns moradores estabelecidos de Lajeado acham que isso pode ser
uma estratégia, até que os haitianos fiquem estabelecidos na cidade (DIEHL, 2017, p.
61).

Nesse aspecto, vale ressaltar as informações abordadas nos primeiros capítulos quanto
às heranças da interseção raça/classe presentes no Haiti e na relação com o país vizinho,
República Dominicana, assim como a formação das elites negras e mulatas no país, que marca
até hoje a sua dimensão política, assim como o preconceito no país vizinho. Apesar de
etnicamente negros, a tonalidade aliada à pobreza tem muita importância nas relações políticas
e sociais no Haiti. O reflexo pode se valer quanto à tentativa de suavizar o racismo e o
preconceito nos outros países, sobretudo no Brasil, que em muitos casos o preconceito velado,
de todos os agentes, mostra-se mais presente.
Para explicar melhor essas relações veladas, é dado em seguida, na palestra, um
panorama do que foi a escravidão no Brasil e os fluxos migratórios entre os séculos XIX e XX,
154

e de como a formação étnica no país é diversa por esses dois elementos, ao mesmo tempo em
que tais processos revelam suas contradições, suas incoerências.
Em seguida, Priscilla ensinou alguns aspectos da cultura brasileira que são rotineiros em
ambientes quer públicos, formais, quer em espaços de trabalho: apertar a mão bem forte olhando
no rosto, usar o primeiro nome etc. Assim como alguns gestos utilizados ou não utilizados que
são comuns em outras culturas ou palavras que são usadas de maneira diferenciada, tal como
discussão, que se no francês é um espaço de debate e diálogo, no Brasil é uma briga, uma
conversa mais hostil.
É dado um destaque ao tema do trabalho e das relações de trabalho no Brasil, na tentativa
de ter cuidado e atenção às normas e às ofertas de emprego. Fica presente em primeiro lugar a
frase : “Le salaire promis n’est pasle salaire que vous allez recevoir en espèce!” (o salário
prometido não é o salário que você receberá em espécie!). Dá-se importância, nesse sentido,
apreender os direitos essenciais, que envolvem descontos obrigatórios no pagamento. Da
mesma maneira, a necessidade de cuidados especiais ao conseguir um trabalho e a leitura
minuciosa do contrato de trabalho.
Um último destaque foram as desigualdades sociais refletidas sobretudo nas questões
de moradia no Brasil, sofridas de forma mais direta pelos migrantes, seja na burocracia em
alugar um imóvel onde na fuga desta opta-se por contratos informais cujos alugueis são ainda
mais abusivos, seja na discrepância social em grandes e pequenas cidades, que no caso de São
Paulo faz-se mais visível. A palestra finaliza com o encaminhamento e preenchimento de fichas
destinadas aos empresários conveniados na Missão Paz.

4.3 Perspectivas da política brasileira via novos processos de mobilidade

Estratégias de mobilidade e de permanência dão continuidade, a partir de São Paulo, ao


caminhar adverso dos haitianos no Brasil. Ao mesmo tempo que adverso, promovem conquistas
no campo político e social, consolidado um debate de inclusão de novas nacionalidades em
novos contextos de mobilidade, quer na escala local, quer na global.
Porém, duas perspectivas são apontadas na capilaridade imigrante no Brasil a recentes
fluxos: primeiro, a precarização das relações e da permanência de haitianos, cuja atuação no
espaço se dá alheiamente às suas próprias escolhas e, segundo, as potencialidades destes na
155

transformação política dos novos processos migratórios, no qual a posição tanto normativa
quanto da prática representativa do Estado sempre esteve à parte desta pauta.
É necessário ao mesmo tempo em que trazer à tona essas perspectiva problematizá-las
em seus contextos. A primeira perspectiva possui uma contradição se pensamos que essa
capilaridade permeia a série de redes sociais e redes geográficas cujo reflexo é sobretudo o
caráter associativista dos imigrantes haitianos em relação a imigrantes de outras nacionalidades.
Há uma coletividade no ato de migrar do haitiano que promove ainda mais essas redes tornando-
as intrinsecamente políticas. A segunda perspectiva tem um problema na ordem do debate, isto
é, no desencadeamento do processo político da discussão dos novos fluxos migratórios no país,
cujo reflexo traz atualmente o critério normativo de controle às migrações, não necessariamente
em favor ou implicando critérios mais humanistas e mais atenciosos ao caso dos imigrantes.
Nesse sentido, faz-se necessário uma discussão sobre os novos critérios normativos
estabelecidos após o debate político da entrada de imigrantes haitianos, que implicou num
cenário mais propício e novos estímulos ao debate da política do Estado a processos de
mobilidade, bem como em uma perspectiva de maior controle e criminalização de processos
imigratórios.

4.3.1 Do Projeto de Lei 2.516/2015 até a Lei N° 13.445

O cenário da entrada de imigrantes haitianos e os embates que atravessaram sua


trajetória no tempo e no espaço possibilitaram repensar a construção história e subestimada das
migrações no país. Não que haitianos sejam mais ou menos importantes que os demais
migrantes, mas crê-se que a entrada por localidades fragilizadas como a faixa de fronteira
brasileira abriu um debate maior de representatividade das políticas brasileiras. Mas é possível
também vislumbrarmos dois elementos que foram importantes para a abertura do debate sobre
as novas normatizações para imigrantes.
O primeiro elemento refere-se à conjuntura favorável desse debate às instâncias políticas
responsáveis por pensar políticas de migração no Brasil. A partir da década de 2010, com um
estímulo de aproximação a movimentos sociais amparados pelo governo de Luis Inácio Lula
da Silva e posterior governo de Dilma Rousseff aliado à pressão de entidades e organizações
que apoiam e articulam a questão migratória no país, o quadro da equipe do CNIg e do
CONARE acaba por acolher essa representatividade.
156

Nesse sentido os integrantes vislumbraram uma postura mais crítica que possibilitou um
diálogo mais expressivo com entidades ligadas aos direitos humanos, buscando alternativas de
inserção de políticas de caráter humanitário aos mesmos, tais como a Resolução Normativa 97.
Uma das respostas a esse caráter mais crítico foi a ampla abertura nesta década a entidades e
sociedade civil em discutir novas formas de inclusão destes imigrantes aos processos políticos,
culminando em maio de 2014 na Primeira Conferência Nacional de Migrações e Refúgio
(COMIGRAR), com imigrantes de várias nacionalidades, organizações governamentais e não
governamentais, pesquisadores, demais entidades e sociedade civil. Conforme notícia da época,
veiculada no canal Migramundo e Grupo NIEM:

A possibilidade de integração e intercâmbio foi também o principal destaque apontado


pelos participantes da COMIGRAR, embora ainda exista uma certa insegurança sobre
quais os próximos passos das discussões. “Será que essas coisas todas vão chegar ao
Congresso Nacional ou ficarão presas por lá? Essa é a minha grande preocupação,
mas aposto que o Brasil está passando por uma grande mudança e que pode beneficiar
os estrangeiros que aqui vivem”, opina o haitiano Esdras Hector, que vive no Brasil
desde 2011 e veio à COMIGRAR como observador convidado pela ONG Conectas
Direitos Humanos.Uma dessas mudanças é a revisão da atual legislação migratória do
país, ainda regida pelo Estatuto do Estrangeiro, da época da ditadura militar e carrega
a visão do imigrante como uma potencial ameaça ao país62.

Paralelamente à COMIGRAR possibilitar várias propostas de e para atuação do governo


federal para com imigrantes, intensificou-se a necessidade de uma discussão mais ampla sobre
o Estatuto do Estrangeiro, que culminou na elaboração de um documento intitulado Anteprojeto
da Lei de Imigração, formulado por vários representantes ligados à temática da migração. Parte
da composição deste anteprojeto formulou o Projeto de Lei 2516/2015, entregue ao senado pelo
senador Aloysio Nunes.
O segundo elemento refere-se aos recentes fluxos, principalmente os de haitianos, que
possibilitaram vislumbrar os problemas e as defasagens da lei antiga, e os limbos jurídicos
conforme abordado, impulsionando a prerrogativa da RN 97. O jogo de relações e geometrias
que envolveram o fluxo, bem como a quantidade de imigrantes haitianos que entraram em
território brasileiro – atualizado hoje para mais de 70.000 no total – produziu diversos embates,
e que articulou uma discussão acerca da necessidade de mudanças neste. No mapa conceitual a
seguir, a periodização da vinda de haitianos revela as contradições e as transformações do
discurso que promoveram o debate de transformação política:

62
Disponível em:http://migramundo.com/2014/06/02/comigrar-termina-mas-debate-e-mobilizacao-precisam-
continuar/, 2014.
157

QUADRO 5: Mapa da periodização da imigração haitiana no Brasil

Janeiro 2010 – Terremoto no Haiti

Primeiras Intensificação do
Emigrações fluxo por
Primeiras notícias da chegada de haitianos Tabatinga (AM) e
pela fronteira brasileira Brasiléia (AC)

2011 – intensificação do fluxo na


fronteira do Acre e do Amazonas

Brasil abre as portas para os haitianos,


concedendo visto de permanência e Fluxo da fronteira para outros estados do
possibilidades de trabalho. Brasil, principalmente Santa Catarina

2012 – Mudança de posicionamento quanto a


situação dos haitianos pelo Governo Federal

Organizaçãoda Superlotação dos centros


concessão de vistos via de espera da Polícia Federal
Resolução Normativa do Notícias denuncistas, alarmando a chegada no AM no AC.
dos haitianos com um tom de invasão
CNIg

2013 -Constituição de redes de imigração:


Aumento dos pedidos
chegada de novos imigrantes a partir dos que tanto de refúgio
chegaram quanto de
Abrigo em Brasiléia permanência via RN 97
fechado. Novos
abrigos em Rio
Branco
2014 -Aumento do fluxo, problemas estruturais
no trânsito de imigrantes pelo Brasil Pendências na
consumação da
permanência/acúm
ulo de processos
2015 -Novos fluxos entre Haiti-Brasil,
Haiti aumenta o novas relações
número de solicitações
de visto via RN 97 pelo Novos fluxos de haitianos
consulado local, para o Chile pelo Brasil:
diminuindo os pedidos desdobramentos ou
pela fronteira acreana. 2016 – Diminuição pela entrada na fronteira
Crise política e econômica brasileira especulação política?
Fechamento do abrigo
em Abril de 2016 Novos redirecionamentos

Fonte: Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios, Reportagens coletadas em jornais, mídias eletrônicas entre
2010 a 2016. (Elaboração nossa).
158

Há assim paradoxos dos agenciamentos de mobilidade do Estado brasileiro, das


agências internacionais e do próprio contexto político global no trato e na decisão de políticas
migratórias. Conforme notícia de maio de 2014, o canal de notícias UOL:

Embora incompatível com a Constituição Federal de 1988 e com tratados


internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, o Estatuto do Estrangeiro
sobrevive porque não há consenso a respeito de sua substituição. O que evoca a
expressão "no man'sland", cuja origem militar refere-se ao território entre duas
trincheiras ou em disputa, onde não há proteção de lado algum e o risco de ser abatido
por qualquer dos contendores é iminente.
Em sentido figurado, "no man'sland" remete a um tema a respeito do qual os interesses
antagônicos se equivalem, impedindo que uma decisão seja tomada. No caso do
Brasil, há por certo interesses antagônicos: do mercado, que defende a imigração
seletiva, triando a mão de obra da qual precisa no momento, para depois descartá-la;
dos conservadores, que se preocupam apenas em atrair e bem acolher os ricos,
especialmente investidores; das polícias, que amiúde confundem estrangeiros com
criminosos; e até mesmo de alguns setores do governo federal, que preferem esta lei
ruim a uma eventual perda de poder, recursos ou prestígio 63.

Conforme acima, os efeitos das políticas migratórias sob o caráter normativo


incriminam e são eletivos quanto ao migrante ideal, bem próximo ao exposto em capítulo
anterior quando a migração subvencionada envolvia articulações, em muitos casos
personalistas, na entrada de estrangeiros no país. Nesse sentido, o que mudará e o que mudou
até então?
Em maio de 2017 foi sancionada a Lei N° 13.445, derivada do Projeto de Lei 2516/2015,
em processo de aprovação nos decorridos meses entre poder executivo e legislativo. A principal
mudança de ordem da logística de vistos e aos direitos de imigrantes e emigrantes está na
articulação entre ministérios previstos, envolvendo Ministério do Trabalho, Ministério das
Relações Exteriores e Ministério da Justiça, além da Polícia Federal, ratificada como
responsável pelo controle e pedido de identificação de estrangeiros vindos ao país. Muitas
controvérsias surgiram nesse sentido, indicando que essa articulação entre ministérios já é
defasada. Considerando o papel fragmentado da política brasileira, ficaria o desafio dessa
possível articulação.
Outros problemas vieram tributários à crise social e política sofrida no país desde 2016,
com o impeachment da então presidente Dilma Rouseff e a assunção de Michel Temer à
presidência, bem como a intensificação de uma frente conservadora na esfera política do país.
Dessa forma, quando da sanção da Lei, fez-se uma série de críticas que indiretamente
implicavam na criminalização das migrações e na supressão dos aspectos humanitários,

63
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/05/03/politica-migratoria-brasileira-deixa-
estrangeiros-em-situacao-precaria.htm, 2014.
159

elogiados por entidades e sociedade civil responsável por parte da elaboração do documento.
Boa parte desses elementos foi modificada ou vetada pela presidência. O documento esteve
cerca de cinco dias como minuta de decreto, e entrou oficialmente como Lei de Migração no
Diário Oficial da União no dia 21 de Novembro de 2017.
Exemplo nítido da transformação do documento64 está nos vetos iniciais dos parágrafos
que permitiam a legitimação de comunidades tradicionais ao livre trânsito e circulação de terras
tradicionalmente ocupadas. Foi vetado também parágrafos da Lei que indicavam a participação
em eventos e reuniões de cunho político, o livre acesso a serviços públicos e a participação em
concursos públicos no território brasileiro e, ademais, todas as especificidades iniciais que
respondiam ao caráter humanitário da lei e a diversidade implicada na entrada de novas
nacionalidades no Brasil. Da mesma maneira, foi incluído, a pedido da Câmara, o visto
temporário para fins de atividade religiosa.
Ao mesmo tempo, é notório o avanço do que se manteve como texto original, tais como
o visto por razões humanitárias, finalmente descolado ao visto de trabalho, que permite
vislumbrar o acesso de estrangeiros a um documento que compreende suas fragilidades.
A grande questão é a operacionalização conjunta que permite de fato a
instrumentalização desse processo, como vimos, ainda marcado por um embate do controle e
da segurança nacional. Muito ainda há de se mudar, mas o diálogo conjunto na proposição de
políticas para imigrantes, em especial quanto tratamos de haitianos no Brasil, já é um desafio
que possibilitou ação e promoção da inclusão em várias outras escalas.
Ainda há um caminho longo para a compreensão da imigração haitiana para o Brasil.
Muitos apontam que é uma passagem cuja legitimação de sua permanência auxilia no trânsito
para outras localidades, outros apontam o desejo e a vontade desse grupo em permanecer no
Brasil. Se não há consenso das reais intenções é porque nunca é consenso a intenção de um
migrante, mas sim que em seu desejo de mobilidade encontra-se a própria crítica ao espaço de
acontecimento cujas referências já não são mais dele, nem apontam suas próprias forças de
viver e de estar.

64
Documentos – o PL 2016/2015 e a Minuta de Decreto da Lei 13.445/2017 estão respectivamente disponíveis
em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1594910 e
http://www.participa.br/migracao/consulta-publica-sobre-a-regulamentacao-da-lei-n.o-13.44517-lei-de-
migracao/consulta-publica-minuta-de-decreto-lei-de-migracao/minuta-de-decreto-lei-de-migracao.
160

4.3.2 A permanência como resistência: diálogos entre mobilidade e permanência 2

Ainda em trabalho de campo na cidade de São Paulo foi possível conversar diretamente
com haitianos, tanto com aqueles que haviam chegado recentemente quanto os que lá estavam
há mais de cinco anos e tiveram seus vistos de permanência renovados. Foi elaborado para a
ocasião um roteiro de perguntas que possibilitariam entrevistas semiestruturadas, o que de fato
ocorreu. O curioso é que optei por ir em um sábado à Missão Paz, no qual já havia sido indicada
da reunião de imigrantes ao redor da igreja. Encontrei um dos vários baz articulados por
haitianos pelo Brasil, e o que era para ser uma entrevista com alguns agentes, tornou-se uma
conversa aberta em que a troca e o diálogo entre um entrevistado e outro trouxe mais empatia
e emoção ao processo.
No momento da chegada, apontei que gostaria de falar com o grupo, que era
pesquisadora e gostaria de algumas informações sobre a vinda deles ao Brasil. Havia 16
imigrantes, 14 homens e 2 mulheres. Um carro, de propriedade de um dos imigrantes, estava
dentro do pátio da Missão Paz, com o som ligado. Um rap creole, bem parecido com o que
Marc me mostrou em Rio Branco.
A entrevista se deu com três integrantes que se dispuseram a falar mais detalhadamente:
Touissant, Charles e Fabian. (Os nomes aqui dados são fictícios a fim de preservar o anonimato
dos entrevistados). A disposição também foi um direcionamento do próprio grupo, que elegia
o próximo entrevistado. A justificativa dada a mim era de que primeiro eu precisaria falar com
o integrante mais recente do baz, Touissant, que havia chegado há sete dias ao Brasil.
No geral, todos do grupo foram receptivos e solícitos, características comuns dos
haitianos com quem conversei pelo país, mesmo quando para ajudar em algum
encaminhamento ou informação. Trocam, perguntam a origem, dialogam de uma maneira mais
aberta, sem muitos constrangimentos. A maior dificuldade foi com Touissant, que ainda não
sabia o português e pouco o francês, no que em muitas vezes não compreendia o francês
abrasileirado da entrevistadora, mas quando havia dúvida em alguma palavra, prontamente
alguém tentava traduzir ou para o creole, ou mesmo com uma pronúncia mais correta do próprio
francês.
Assim como eu perguntava, eles fizeram várias perguntas, tanto no que concerne à
legislação trabalhista, quanto ao que estava acontecendo com a política e a economia no Brasil.
Uma pergunta bem intrigante, de Charles, era se por acaso um imigrante como um deles
resolvesse trabalhar para o tráfico, seria mais criminalizado que um brasileiro. Vale lembrar
que a Missão Paz está localizada em uma das áreas mais conflagradas da cidade, dominada pela
161

facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Essa pergunta indica por si só várias respostas da
angústia de ser migrante e negro no Brasil e morar/habitar uma região dominada por redes
paralelas de poder.
Touissant é separado, tinha 30 anos, era pintor e eletricista no Haiti, veio de avião e já
obteve o visto em Porto Príncipe. Charles é solteiro, tinha 36 anos, era mecânico formado no
Haiti e conseguiu no Brasil terminar outro curso de mecânica pelo Serviço Nacional da Indústria
(SENAI). É o que possui melhor condição entre os entrevistados, já que recebe ajuda da família
no Haiti, está há mais de seis anos no Brasil e veio pelo Peru, e pelo estado do Amazonas de
barco. Fabian, por sua vez, possuía uma namorada no Haiti, tinha 32 anos, chegou a fazer
ciências econômicas e em seu país de origem era estagiário em pesquisa, tendo chegado ao
Brasil em novembro de 2016, também de avião entre Haiti e São Paulo.
No tocante à chegada, obtivemos as seguintes respostas:

QUADRO 6: Haitianos quanto a chegada


Chegada ao Estado de Profissão no
Obtenção do visto Travessia
Brasil chegada Haiti e agora
Touissant Foi bem, houve
discriminação
pelas dificuldades Não consegui
Estava há 7 De avião
de conseguir trabalho ainda,
dias no No Haiti, rápido. para São
trabalho, alugar sou pintor e
Brasil. Paulo.
uma casa e eletricista.
comprar qualquer
coisa.
Charles Do Haiti peguei
Entrei como
um avião, depois
imigrante, fui à
fui até Iquitos
Polícia Federal
Fiquei 3 (Peru) e de lá fui Era mecânico lá.
receber protocolo, e
meses em de navio até Aqui trabalhei
Cheguei por depois visto. Foi
Manaus Manaus. Foi com carteira
Manaus em rápido, depois de 6
depois vim muito difícil, assinada por 4
2011. meses. Em 2016 fiz
de avião para gastei muito anos, agora só
cinco anos no
São Paulo. dinheiro, mas foi faço bico.
Brasil e o visto foi
muito bom ter
renovado
vindo para o
automaticamente.
Brasil.
Fabian Não foram muito Eu era
Consegui pelo
boas as pesquisador na
Cheguei em Haiti. A viagem foi De avião
experiências, aqui área de
novembro de demorada, mas para São
é um lugar economia, aqui
2016. consegui fácil a Paulo.
diferente do consegui bicos
documentação.
Haiti. como mecânico.
Fonte: Trabalho de Campo em Março de 2017. (Elaboração nossa).
162

Algo bem comum na fala dos migrantes em geral é escamotear as mazelas que
acontecem, o que para os outros potenciais migrantes promove o fluxo migratório mais intenso,
mas por outro lado apresenta-se rapidamente contraditório, como no caso dos três ao falar da
agilidade e processo do passaporte, assim como as dificuldades na travessia. Da mesma
maneira, falas como as de Touissant, somente há sete dias no Brasil, apontam as principais
dificuldades encontradas no imediato à chegada, que vislumbram a ilusão do que eles
imaginavam do país e o que realmente ocorre.
Essa perspectiva da dificuldade na chegada é também abordada por Charles e Fabian,
assim como se percebe as dificuldades em conseguir um emprego no Brasil conforme suas
formações, no que eles acabam optando por serviços inferiores, e os mais demandados pelas
empresas para imigrantes.
No tocante à mobilidade, tivemos as seguintes respostas:

QUADRO 7: Haitianos quanto à mobilidade.


Opinião quanto aos serviços
prestados pelas autoridades Condições de moradia no Brasil
brasileiras ao chegar no Brasil
Touissant Muito ruim! Pago muita conta, mas se
Não é fácil! Consegui as coisas com
não trabalha tudo é mais difícil,
muita dificuldade.
inclusive encontrar moradias.
Charles Moradia aqui é muito crítica com
haitiano. Eu pagava 1200 reais e
morava sozinho, era um bom prédio.
Depois que chegar em Manaus, tem
Tem haitiano que não tem condições
uma Pastoral que facilitou muito o
para pagar isso. Consigo fazer uns
atendimento, foi muito tranqüilo.
bicos em mecânica profissional porque
quando cheguei trabalhava de manhã e
fazia SENAI à noite.
Fabian Minhas questões são somente com a
Muito crítico! Muito caro, se quiser
demora, no geral os serviços foram
morar bem, precisa de muito dinheiro.
bons.
Fonte: Trabalho de Campo em Março de 2017. (Elaboração nossa).

Vale ressaltar que foi inserida a questão da moradia conforme o que se atribui por
estratégias de mobilidade, que participam não somente da migração em si, mas do trânsito
cotidiano na cidade onde vive o migrante atualmente. E as respostas são bem claras quanto à
precarização das moradias sobretudo para migrantes, que mesmo em áreas pouco valorizadas,
acabam pagando mais caro pelo aluguel.
163

Interessante também é a ratificação dos serviços de apoio e de viabilização da cidadania


do migrante no país, que na percepção do migrante é precária ou, conforme apontado, feita
basicamente por organizações do terceiro setor.
No tocante à permanência, tivemos as seguintes respostas:

QUADRO 8: Haitianos quanto à permanência.


Pretensão de ficar no Pretensão de sair de
Lazer no Brasil
Brasil São Paulo
Touissant Principalmente ando pelo Depende de onde
Sim.
centro de São Paulo. consigo emprego.
Charles Quero estudar de novo
para ser professor de
mecânica, elogiam
muito a gente por
aqui. Quero ficar aqui
Dependendo do serviço,
no Brasil, gostei muito
sim. Conheço muita
daqui e aprendi as
Vou à igreja do Brás. gente que saiu agora do
coisas mais fáceis por
Brasil para o Chile e
aqui que no Haiti.
EUA.
Tenho dois filhos que
estão na França, morei
um tempo lá e não
gostei, não conseguia
trabalho.
Fabian Sim. Gosto muito do
Caminho pelos parques, Brasil, me adaptei e Se conseguir trabalho
pelas praças. quero trazer minha fora de São Paulo, sim.
namorada para cá.
Fonte: Trabalho de Campo em Março de 2017. (Elaboração nossa).

É interessante aqui perceber que a cadência das repostas converge com o tempo de
permanência no Brasil, isto é, quanto mais tempo, maior a complexidade da fala. Charles aponta
várias razões para estar no Brasil, inclusive remetendo a outras experiências diaspóricas, como
na França, e elege o Brasil como: primeiro, lugar para estudar; segundo, lugar para acessar e;
terceiro, lugar para aprender (genericamente, não somente a instrução formal). A adaptação é
outro elemento trazido por Fabian.
Ao mesmo tempo, vê-se um acesso restrito aos locais de lazer e atualmente de trabalho,
muito também pelos recursos disponíveis – materiais e imateriais – a grupos imigrantes. Outro
aspecto a destacar é a capilaridade transparecendo a viabilização de melhores recursos, no que
o trabalho tangencia essa relação – é o meio e não o fim da mobilidade. São Paulo, dessa
164

maneira, não é o destino central da permanência desses imigrantes, mas as estratégias de


permanência permeiam a ida e a estadia na capital paulista. Assim, fica mais claro que as
estratégias de mobilidade e de permanência tocam na capilaridades de imigrantes, e não
somente na relação fixidez-movimento.
No tocante às redes, tivemos as seguintes respostas:

QUADRO 9 - Haitianos quanto às redes.


Pretensões de voltar
Família no Haiti Manda dinheiro?
para o Haiti
Touissant Falo com minha família
com facebook, whatsapp...
Mando o que posso e
Parte da família está no Sim
pretendo mandar mais.
Haiti, outra na República
Dominicana.
Charles Voltei para passar férias
Sim, está no Haiti e meus em 2013, fiquei um mês
Quando eu trabalhava
filhos nasceram na França. e meio lá. Agora as
eu ajudava, agora eles
Mando e-mail, whatsapp, coisas estão melhores,
têm me ajudado um
mensagens pelo facebook mas o governo de lá é
pouco.
e ligo quando posso. igual ao do Brasil, tudo
ladrão!
Fabian Consegui serviço Não. É muito difícil!
Minha mãe e meu coração
como ajudante de Não sei se retorno
vivem no Haiti. Falo com
pedreiro e mando porque preciso viver
freqüência com elas.
sempre que posso. melhor.
Fonte: Trabalho de Campo em Março de 2017. (Elaboração nossa).

As narrativas dos migrantes quanto à sua trajetória e à sua permanência no Brasil


revelam muitas adversidades. Isto reflete a incoerência dos agenciamentos, cujos interesses,
embora aparentem cordiais aos imigrantes, fogem muitas vezes para os interesses de uma
determinada classe, de um determinado grupo político. Do mesmo modo, fica muito clara a
esses migrantes uma incongruência do que é repassado enquanto discurso do que acontece no
Brasil e o que se torna prática para eles. Fica claro também que o posicionamento de um grupo
migrante faz toda a diferença nas relações sociais constituídas no lugar chegado.
165

4.3.3 Da permanência à mobilidade: entre redes e territórios

São Paulo abarcou duplamente as estratégias de permanência: os que de fato


permaneceram em São Paulo e construíram relações sociais, de trabalho ou de inclusão per se,
e os que a partir de São Paulo impulsionaram novas redes e novas capilaridades a partir da
condição de empregabilidade ofertada, sobretudo na região sul do país.
A mobilidade de haitianos em São Paulo, como vimos, possui fissuras e
problematizações além dos agenciamentos dos imigrantes. No quadro a seguir, enfatizam-se as
geometrias de poder cruzadas entre imigrantes, Estado e sociedade até São Paulo:

QUADRO 10: Geometrias de poder a partir de agenciamentos para com haitianos no Brasil

Geometrias Imigrantes Estado Sociedade

Agenciamentos

Imigrantes Diáspora haitiana- MINUSTAH; Receptividade,


Projeto Coletivo – Rede Brasil como país solicitude;
social; desenvolvido, como
exemplo político-social; Frieza, preconceito;
Posterior território-
rede;
Facilidade legal de Pobreza, miséria;
visto entre Equador,
Solicitação refúgio, Peru e Brasil; Acolhedores.
documentação, abrigo e
recursos de inclusão. Irregularidades entre
Peru e Brasil;

Problemas de acesso a
principais serviços
públicos para
imigrantes no Brasil:
regularização na
escolaridade; demora
no processo de
permanência;

Dificuldades no acesso
a equipamentos
públicos (saúde,
educação etc).
Estado Visibilização das Diplomacia solidária, Acolhimento,
regiões de fronteira; oportunidades de
cordialidade;
integração;
Crise humanitária, Preocupação com
subsídio para chegada Ameaça às fronteiras
eventos de maior
em São Paulo; pela ação dos coiotes;
violência.
166

Acolhimento parcial;
Visto por trabalho em
RN 97. razões humanitárias e
não refúgio;

Atendimento parcial
aos imigrantes;
Nova Lei de Migração.
Sociedade Discurso solidário ao Atitude emergencial a Medo do aumento da
terremoto; entrada pela fronteira violência;
Risco de contágios a amazônica;
doenças como cólera; Medo endêmico;
Discursos contrários à Demora nas ações,
vinda de haitianos; ações ineficazes para a Preocupação,
retirada de imigrantes solidariedade;
Acolhida e apoio de caribenhos e africanos;
representantes e Preconceito;
entidades; Críticas partidárias às Atitudes mais severas:
políticas imigratórias; situações de
Eletividade às relações constrangimento para
de trabalho (imigrantes com imigrantes;
se inserem no mercado
precário de trabalho, Acolhimento de
que com a ascensão maneira oportunista
social brasileiros (principalmente quanto
recusam); às situações de
moradia).
Com a crise, imigrantes
“estão roubando”
trabalho dos brasileiros.
Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

Na permanência de haitianos no Brasil e em especial em São Paulo, nota-se que os


agenciamentos não se cruzam e que a capilaridade e formação de redes sociais articulam no
debate e na mudança de novas frentes políticas. Vale, vislumbrando as estratégias de
permanência, compreender as redes geográficas, sobretudo os territórios-rede possíveis nos
casos dos haitianos.
É notório em sua apreensão que o estudo das redes na geografia segue dois caminhos:
um, o estudo dos pontos de relação entre um ou mais espaços, de âmbito mais material, prático;
e dois, o estudo das redes que interligam e produz contiguidades espaciais, sobretudo o exemplo
das redes de ativismo social, que mobilizam espaços e transformam o poder de decisão e de
mutação desses espaços.
O sentido mais pragmático da rede constitui a análise das políticas e das transformações
nas escalas da categoria do pensamento geográfico – rede urbana, rede regional etc. – e apreende
o poder de comando e decisão dessas redes em optar por transformações no espaço que
garantem a primazia de um determinado grupo social.
167

Essa segunda apreensão, das contiguidades, é cara, pois as redes sócio-espaciais


promovem o vaivém constante das políticas espaciais, regionais e territoriais conforme a
emergência da mobilização social.
O fato é que, se, além da própria rede urbana, também as redes viárias, e
particularmente as ferroviárias, estiveram na pauta dos geógrafos desde cedo,
atualmente os geógrafos e outros profissionais vinculados à pesquisa sócio-espacial
já iniciaram a exploração do conceito a partir de numerosas e muito variegadas
perspectivas. Uma trincheira particularmente interessante de aplicação do conceito de
rede, pelas ciências da sociedade, é aquela que busca capturar aspectos fundamentais
da dinâmica e do modo de estruturação de protestos e ativismos sociais com o auxílio
desse conceito (SOUZA, 2013, p. 168).

Nessa perspectiva, é salutar também a contribuição de Haesbaert (2007) no


entendimento e na sistematização do estudo das redes na geografia e na problemática do
território-rede. Para tal, há um problema na análise das redes que aponta para a dicotomização
entre território e rede, e que dificulta a apreensão de um conceito que está imbricado por si só.
Para ele, redes constituem territórios e vice-versa. Esse dualismo na geografia, sobretudo na
relação euclidiana ou não euclidiana, escamoteia uma realidade no qual torna explícito que a
sociedade em rede não implica no fim de territórios, mas sim na formação de novas
territorialidades.
Vale ressaltar que para a Geografia o território, em resumo, significa toda atuação no
espaço que forma relações de poder. Nesse sentido também, Haesbaert, em O mito da
desterritorialização, aponta que o discurso de fim de territórios é uma falácia, pois não existe
o fim dos territórios, e que o engendramento de relações de poder no espaço não se findam com
a globalização, muito pelo contrário, as relações humanas em geral tornam-se cada vez mais
balizadas pelas relações de poder, e portanto, instituídas em territórios. No tocante aos
territórios-rede:
Identificamos três grandes perspectivas teóricas na relação entre território e rede: uma
que subordina a rede ao território (como em muitas leituras da geografia mais
tradicional), outra que, dicotomicamente, separa claramente território e rede (como na
abordagem de Bertrand Badie), e, finalmente, uma terceira, que trabalha com o
binômio território-rede, historicamente relativizado, a rede atuando ora como feitos
territorializadores, ora com efeitos desterritorializadores [...] as redes podem assim
estar a serviço tanto de processos sociais que estruturam quanto de processos que
desestruturam territórios. Mas a dinâmica do elemento rede tornou-se tão importante
no mundo “pós-moderno” que não parece equivocado afirmar que a própria rede pode
tornar-se um território (HAESBAERT, 2007, p. 298).

Assim, os territórios-rede são vias de movimento e circulação de espacialidades


diversas, cujo movimento e diversidade são os atrativos. A perspectiva de rede, ou de
territórios-rede, embora complementar, difere da análise metodológica aplicada às redes sociais
de imigração, que possibilita visualizar o migrante numa gama de relações (dentre elas, a
168

comunicação, os cenários políticos, as interfaces sociais), e admite a análise relacional em


plenitude.
Essas redes sociais implicam um processo de articulação entre sociedade e ação, isto é,
do momento da decisão de migrar, seus sentidos e suas perspectivas sociais e subjetivas de
quem migra, e que constituem socialmente relações de vida. Mobilizam não só o sentido de
migrante no lugar que chega, como suas relações interpessoais, sua condição de sujeito e de
grupo coletivo, suas articulações de sobrevivência e de escolhas.
As redes sociais de migração refletem que o espaço de hoje poderá ser o lugar de
amanhã, assim como um território e vice-versa. É portanto uma categoria de análise dos estudos
migratórios, onde território-rede é outra categoria de análise utilizada.
No tocante à mobilidade, Haesbaert (2007) enfatiza dois cenários importantes na
constituição de territórios-rede a partir da migração. O primeiro é da potencialização de
construir novas relações que não sejam as instituídas pelo poder hegemônico, como o Estado e
as grandes empresas, que são hoje as que mais funcionalizam espaços de poder versus espaços
subordinados, no qual tais territórios-rede possuiriam a capacidade de promover o conflito às
contradições sócio-espaciais. Mas também promovem novos territórios-rede e novas relações
de poder, como as relações entre facções do tráfico nas favelas do Rio de Janeiro ou das
organizações extremistas no Oriente Médio, por exemplo.
O segundo cenário é que esses territórios-rede enfatizam espaços donde a migração e a
marginalização tangenciam, e onde as possibilidades de transformação sócio-espaciais tornam-
se paulatinamente escassas, que é o caso dos aglomerados de exclusão. Conforme ele aponta:

Os aglomerados de exclusão, mais do que espaços à parte, claramente identificáveis,


são fruto de uma condição social extremamente precarizada, onde a construção de
territórios “sob controle” (termo redundante) ou “autônomos” se torna muito difícil,
ou completamente subordinada a interesses alheios à população que ali se reproduz
[...] No caso dos aglomerados, maior mobilidade não está ligada à manutenção da
segurança, ao controle e mesmo à opção diante dos circuitos de deslocamento, como
no caso da elite de grandes executivos (...) mas à falta de opção, à insegurança
(principalmente frente ao emprego) e à perda de controle sobre seus espaços de vida
(HAESBAERT, 2007, p. 327).

Nessa perspectiva, os aglomerados de exclusão representam a maior parte das situações


em que o imigrante hoje, no mundo globalizado, se insere. Privado da construção de territórios
e principalmente territorialidades amiúde a insegurança e a subordinação de seu próprio poder
de decisão e de sua escolha.
169

Afinal, a imigração haitiana no Brasil reflete a potencialidade da formação de novas


redes e ao questionamento ao instituído que diverge com a realidade sócio-espacial dos
migrantes ou ela se enquadra na formação de aglomerados de exclusão?
Os aglomerados de exclusão não são fixos, eles são temporários e podem ser
transformados em novas redes e ter novas territorialidades. Mas ainda parece um pouco
nebuloso, ao analisarmos mais a fundo um fluxo como a de haitianos, profundamente marcado
pela capilaridade desde o início, até que ponto eles contemplam sua espacialização de maneira
subordinada ou até que ponto a capilaridade deixa de potencializar politicamente o papel de
suas escolhas em sair do Haiti.
A reflexão sobre as relações de poder imbricadas nos espaços formando novos
territórios possui também o caráter dinamizador de novas territorialidades construídas nestes,
que muitas vezes divergem dessas relações de poder. Parece, portanto, que a mobilidade
haitiana no Brasil anunciou uma série de transformações na política brasileira, tirou da zona de
conforto uma série de debates e perspectivas no qual o instituído era o resoluto, e propiciou
novas fontes de relação entre imigrantes, em várias escalas.
Contudo, eles continuam vítimas de uma série de ações, sejam discursos racistas, ou
superexploração escusa - muitos alegam que visivelmente trabalham mais que funcionários
locais em fábricas ou empresas no qual empregam imigrantes, ainda que com os mesmos
direitos e ganhando o mesmo salário – ou movimentam um mercado imobiliário alternativo das
periferias pela falta de documentos exigidos em um aluguel regularizado – como é o caso de
boa parte dos haitianos que vivem na "serra" sul-riograndense.
Entende-se que essa apreensão da constituição de territórios-rede por haitianos no Brasil
não é e nem deve ser maniqueísta, e talvez esse seja o caráter nebuloso da ideia de aglomerados
de exclusão. É do próprio vaivém característico do migrante, inclusive na forma de compreender
e agir no espaço. Da mesma maneira em que é subordinado a determinadas decisões, as atitudes
e os conflitos são postos e são cotidianamente convertidos em luta sócio-espacial.
170

5 CAPÍTULO V
AS ESTRATÉGIAS DE PERMANÊNCIA E AS ESTRATÉGIAS DE
MOBILIDADE: CAMINHOS CRUZADOS

O Haiti assim tornou-se efetivamente aqui. Os agenciamentos foram firmados desde a


fronteira amazônica. Agenciamentos múltiplos, conforme apontado, no qual em medida
cruzavam-se aos interesses dos imigrantes, mas sobretudo contraditórios, formando novas
relações de poder que não convergiam.
Parte desses imigrantes consolidou suas estratégias de permanência e construiu novas
estratégias de mobilidade em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Rondônia, Acre e Amazonas. Mas foi na região Sul do Brasil, que compreende
os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que as estratégias de permanência
foram as mais visibilizadas, pelo Estado, pela mídia e pelo apelo do discurso de várias
geometrias de poder.
Explicar essa visibilidade é retomar, neste último capítulo, aonde tudo começou: o
reflexo dos agenciamentos que muitas vezes suprimem as práticas e o agir dos imigrantes
haitianos é parte de uma herança do bojo das relações no Brasil lá quando políticas parciais e
transformadas por práticas personalistas impulsionaram a vinda de imigrantes ao país,
escamoteando culturas, raças e etnias a fim de um projeto que tendia na maioria das vezes à
restrição da entrada de imigrantes.
Espacialmente também é o “começo de tudo”. A região Sul do Brasil recebeu vários
grupos de italianos e alemães por todo o século XIX, o que hoje é motivo de orgulho e
valorização – principalmente turística – em boa parte das cidades que antes eram colônias de
imigração. Eis a seguir uma imagem da cidade de Nova Petrópolis, no estado do Rio Grande
do Sul, que representa o valor e o orgulho dado à imigração de alemães:
171

FOTO 4: Placa homenageando imigrantes no séc. XIX no estado do Rio Grande do Sul.

Fonte: Trabalho de campo em fevereiro de 2018.

Essa valorização sequer chega a esconder os estigmas criados a negros ou mesmos aos
chamados “pêlo-duro”65, principalmente na porção nordeste do estado sul-riograndense. O
preconceito e o que Fernando Diehl (2017) aponta como racialização e estigmatização do
descendente europeu nessas localidades em relação ao “não-branco” ou “não-europeu”
promove inúmeras situações de racismo e preconceito, sobretudo às novas frentes migratórias
neste século XXI.
Nesse sentido, este capítulo tem como objetivo apontar os novos caminhos da diáspora
haitiana e os agenciamentos perpetrados que são intrínsecos ao processo político da vinda destes
para o Brasil, promovendo novas geometrias de poder a cada espraiamento de suas estratégias.
A consolidação das práticas e discursos tanto do Estado quanto da sociedade e principalmente
dos imigrantes possibilita a cada caminhar novas territorialidades e novas mobilidades.
As estratégias de permanência e de mobilidade efetivamente se cruzam e perfazem-se
em novas, quando o Brasil não necessariamente é o destino final de grupos imigrantes, que a
partir deste país constroem novas rotas e outras estratégias, como Argentina, Chile e Estados
Unidos. O importante desse processo é que, assim como Sayad (1998) ressalta, o imigrante já
não é mais o mesmo, tampouco o Brasil ou os brasileiros. Tais estratégias reconstruíram os
agenciamentos e provocaram articulações em várias esferas da sociedade.

65
Conforme linguagem popular do Estado do Rio Grande do Sul, “pêlo duro” é a designação mais comum na
fronteira misturaque se dá entre o negro, o branco e o índio.
172

5.1 Trabalho e moradia: os haitianos no sul do Brasil e a permanência consolidada

Uma das principais origens do fluxo de haitianos e a consolidação de sua permanência


no Brasil ser/estar na região sul se deve à rede produzida a partir da Congregação Scalabriniana
entre Manaus, São Paulo e Rio Grande do Sul. Conforme Zamberlam, Corso, Cimadon e Bocchi
(2014):

O fluxo de haitianos, em busca de trabalho no Estado, teve início em 2012, quando a


Missão dos Padres Scalabrinianos de Manaus intermediou empresários gaúchos a
colocação dos primeiros trabalhadores haitianos. A partir daí, inúmeros empresários
buscaram esses imigrantes, principalmente nas cidades de Manaus (Amazonas) e
Brasileia (Acre) (ZAMBERLAM; CORSO; CIMADON; BOCCHI, 2014,
p. 50).

O panorama da chegada de haitianos no sul do Brasil se dá principalmente em três


trajetos. O primeiro, a partir de empresas que contatavam redes de imigrantes ainda na
Amazônia; o segundo, empresas que contatavam redes de imigrantes em São Paulo; e, em
terceiro, haitianos que já vinham direto para a região sul do Brasil.
Chegaram a partir de Santa Catarina, em um primeiro momento no litoral, sendo uma
migração mais qualificada, em que parte dos haitianos atuavam como professores de francês
e/ou em empregos compatíveis com suas formações. Em um segundo momento intensificou-se
o fluxo mais a oeste do Estado, na atuação em indústrias metal-mecânicas e frigoríficos.
No Paraná, onde atualmente mais se concentram haitianos hoje, a atuação profissional
se dá principalmente nas fazendas e indústrias de metal-mecânica e frigoríficos; no Rio Grande
do Sul, no mercado informal, na indústria metal-mecânica, frigoríficos e fazendas de grande
porte (complexo agroindustrial).
Tem-se portanto duas questões iniciais envolvidas. Uma, o agenciamento de haitianos
na região sul a partir da mobilidade pela procura do trabalho ter sido amadurecida por uma rede
de solidariedade, e outra, as condições de vida e as estratégias de permanência e mobilidade
envolvidas no processo de consolidação do fluxo de haitianos no Brasil. De fato, várias cidades
no qual concentram atividades industriais e/ou agroindustriais localizadas nessa região
contrataram entre 2012 e 2016 significativo número de imigrantes, sendo que o estado do Rio
Grande do Sul possui uma dinâmica regional – própria da região sul do Brasil, conforme será
apresentado neste capítulo – que com a crise política atual promoveu outros fluxos. A figura 1
aponta o destino de imigrantes em fluxos do século XXI no Estado sul-riograndense, bem como
as relações com fluxos de migrações nessas mesmas localidades no século XIX.
173

FIGURA 1: Imigrantes no Estado do Rio Grande do Sul

Fonte: UEBEL, 2015.

Este tópico tentará abarcar as complexidades que se produzem nessa consolidação,


considerando as adversidades e as novas relações contraditórias entre agenciamentos de
migrantes, do Estado e da sociedade.

5.1.1 Diálogos entre mobilidade e permanência 3

Começo com Pascal. Em trabalho de campo em junho de 2015 por Caxias do Sul
conheci Pascal como referência entre imigrantes haitianos pelo mesmo ser presidente da
Associação de Imigrantes Haitianos de Caxias do Sul. Consegui seu telefone e marcamos uma
conversa no mesmo dia, já que por sorte nesse dia ele teria folga do serviço – ele trabalhava na
Marcopolo, empresa de metal-mecânica que fabrica ônibus e transporte de carroceria, também
174

localizada nesta cidade. Pascal aproveitara a folga para fazer exames em um hospital local, onde
marcamos o encontro.
Conforme a figura 1, Caxias do Sul até 2015 era destino de três nacionalidades:
haitianos, senegaleses e ganeses em número significativo, ainda que pouco diante dos mais de
400 mil habitantes. A cidade de Caxias do Sul é localizada a nordeste do estado e representa a
segunda região metropolitana como microrregião de Caxias do Sul. Teve desde o século XIX
prestígio pela produção agrícola de uva e vinho, sendo conhecida como a cidade da uva. Possuiu
uma concentração desde o século XIX de imigração italiana, que promovera a integração de
outras localidades de imigrantes italianos a partir da Festa da Uva, que hoje movimenta a
história e a representação da cidade sobretudo quanto ao papel da imigração italiana no
crescimento e desenvolvimento da mesma. Na página virtual da prefeitura da cidade de Caxias
do Sul, encontramos a seguinte descrição:

Hoje, Caxias do Sul é fruto da garra e da determinação herdadas dos imigrantes com
a contribuição de outras culturas que foram abraçadas pelo povo, como a tradição
gaúcha. Uma cidade vibrante, feita pelos seus 483.377 moradores, conforme
levantamento do IBGE de 2017, e que se consolida como o segundo maior município
do Rio Grande do Sul em número de habitantes e em importância econômica 66.

Tal como a ideia de “batalha e garra” representadas nas homenagens a alemães em Nova
Petrópolis, tal descrição indica também a supervalorização da imigração europeia nesta cidade.
Ocorre que, quanto à imigração de africanos e caribenhos, os símbolos definidos são opostos,
principalmente ao que presenciei com Pascal. Em todos os lugares que passamos, ele se
esquivava ao máximo dos olhares desconfiados e enviesados de boa parte das pessoas.
O curioso é que Pascal, por ocasião do encontro, pediu para acompanhá-lo até sua casa,
na periferia da cidade e próxima à indústria Marcopolo, onde tivemos que pegar um ônibus.
Esse posicionamento foi importante, tanto para mim que saí do meu conforto de pesquisadora
naquele momento quanto para ele, que se mostrou politicamente ao querer mostrar seu dia-a-
dia, sua rotina nada confortável e tranquila. A começar pela viagem de ônibus, onde Pascal
tentava se esconder com o corpo, esquivando-se de todos ali, que o olhavam insistentemente.
O preconceito, aliás, é o que marca a trajetória dele, ainda que de forma sutil. Em uma
das várias tentativas de trazer a esposa e a filha, tanto pelo Brasil quanto pela Argentina, houve
uma série de violações:

66
Disponível em https://caxias.rs.gov.br/a-cidade.
175

Eu ficar dois anos e meio aqui, sem não ver lá, não ver criança, não ver nada... todo...
e eu to com saudade de família, ela [a família] também. [voz um pouco apagada e
embaçada, mais emotiva ao tratar desse assunto] Bom, eu tentar fazer um alternatife
pra trazer ela aqui eu fiz tudo... sans... que certo, tudo cerrado. Só eu conversar com
cônsul lá no Haiti... Eu fui lá conversar com ele, ele deu o visto pra ela pra vir comigo,
eles não aceitaram. Ele falou que tem que ter visto de permanência aqui. Aqui eu não
tenho visto de permanência. Eu já tenho dois anos e meio e não tenho visto aqui. Ele
não liberar nada da lista ainda, entendeu? Eu tive no intendente, ele tem fazer uma
analização dos pessoas. Depois de um mês an Dezembre. Ainda ele não fez nada mais.
Ele não liberar nada a lista. Ninguém, ninguém... Só todas as coisas mais difíceis,
depois que non aceita, não aceitou porque ele deixou visto pra ela, pra mim vir junto
com ela... Eu tentar fazer uma coisa, passar lá por República Dominicana, porque eu
fui lá... até... Argentina. Eu conseguir passar lá no Argentina, consegui ir lá no
Argentina. Depois que eu fui lá no Argentina, bom... Todas os coisas, a lei de
Argentina manda para as pessoas fazer, para pessoa entrar no Argentina, eu fiz tudo
isso. Depois eu cheguei lá no aeroporto de Buenos Aires. Ele impedir... “Não vai
entrar!”. Eu pedi por quê? Ele diz: “Para nada! Você não tem condição pra entrar”.
Tem que deixar uma explicação pra mim, como eu não tenho condição? “Você tem
que ter um letter... um convite lá no Argentina”. Eu tenho um letter convite lá no
Argentina, uma pessoa lá no Argentina fazer para mim lá. E eu falou pra ela legalizar
lá no Federal, para ela fazer legalização, com esse papel lá também. Eu fez tudo isso,
entendeu? Aqui , a lei do Argentina falou assim: cada um... quase mais países, tem
que entrar e não precisa visto para entrar no Argentina. Tem que ter o letter, o convite
para entrar, só. Eu fiz tudo isso e depois eu cheguei lá e me falaram não vai entrar.
Depois a pessoa manda de novo eu voltar lá no Haiti. Eu voltar de novo lá no Haiti,
eu deixar ela com filha lá. E vim aqui sozinho (Fala de Pascal Chateleur, em julho de
2015).

O depoimento de Pascal revela não só a morosidade do processo de permanência no


Brasil e do quanto impossibilita parte de sua permanência, mas um jogo de relações de poder
que beiram a deslegitimidade e o abuso em muitos casos. A “exigência” de uma autorização
para entrar na Argentina é descabida, já que esse país autoriza a entrada de haitianos sem a
necessidade de visto. A fala do policial da falta de condições revela também o caráter abusivo
do Estado a partir da polícia em efetivar ou não a entrada de imigrantes.
Esse problema pessoal refletiu na escolha de seu nome para a coordenação da
Associação, motivado por instituições que acolhem imigrantes na cidade, ainda que Pascal
reivindique o fato de ser um trabalho voluntário e não ser pago por isso:

Bom, agora a Associação começar muito bem. Porque só esse problema que eu tentei
com a Associação, porque eu também... Eu não sei pra outra pessoa, eu sou Presidente
da Associação dos Imigrantes Haitianos . Mas pra mim, só eu tenho certeza eu vou
fazer um trabalho voluntário. Ninguém não pagar eu. Eu não sei, se no futuro , tem
outro lugar que vai dizer bom, eu vou pensar pra pascal pra deixar um pouquinho e
coisa pra passar todos os meses. Eu não sei. Na Comissão da Associação, que tem
mais pessoas pra passar aqui se ele fica na comissão da Associação tem que ganhar
dinheiro, como você vai ganhar dinheiro? Depois, tem que começar a ficar fora,
depois no último domingo de todo mês, nós vamos para o Diamantino [Salão
Comunitário do Bairro Diamantino, em Caxias do Sul]. É bem legal. Agora a
Associação começou muito melhor, e vai ficar bem... Essa coisa que a gente tem que
176

fazer para esse povo haitiano aqui. Só a pessoa que chega e não tinha com quem
trabalhar, nós vai atrás de trabalho para ele, eu vou buscar trabalho para ele, buscar
casa para ele morar, esse coisa que ele não tem: colchão, coisa... mandar para outras
pessoas como podem ajudar. Nós fazer renovação do passaporte para ele também,
todas as coisas assim nós fez. Se ele tem algum problema lá no emprego dele, nós
vamos lá conversar com o pessoal, obyen free (para liberar) e como chama ele lá na
justiça também (Pascal Chateleur, 07/2015).

Quanto aos agenciamentos no Brasil e às suas próprias estratégias de mobilidade e


permanência, Pascal deu exemplo aos já citados, sobretudo sobre as oportunidades de estudo
no Brasil, que muitas vezes se chocam com a necessidade de trabalhar e enviar dinheiro à
família deixada no Haiti:

Cada pessoa vai viajar, vai no outro país, vai buscar a vida melhor. Eu também vim
aqui pra isso. Pra eu ficar bem no futuro, pra eu trabalhar.. Pra se depois eu quiser
voltar, no meu país, pra eu ficar bem... É pra isso... Eu tentei até outra alternativa [que
não trabalhar] pra estudar aqui no Brasil.Mas aqui no Brasil o pessoal não consegue
estudar. Só que aqui o pessoal não vai estudar, que aqui especial no Rio Grande do
Sul, no Caxias do Sul. Ninguém não vai conseguir estudar, como? O pessoal trabalha
de seis de manhã até cinco e meia de tarde. Não tem mais condição, fui lá no
Universidade pra aprendê nada! Tem mais haitiano que jovem e eles não vem... Não
vai ... não vai ficar... Como todos as coisas vem difícil, tem que pagar, tem que ter
tempo também pra estudar, pra mais coisas... tem que fazer as coisas. Ele não tem
tempo pra isso.. Aqui no Caxias do Sul só pessoa só, a cidade só trabalhar. A pessoa
[os imigrantes] não fez nada que trabalhar. Que non bom pra nós haitiano, entendeu?
(Pascal Chateleur, 07/2015).

A reivindicação, portanto, vai além das vagas e das oportunidades encontradas no Brasil,
mas da disponibilidade entre melhores opções de trabalho, no qual Pascal revela uma série de
adversidades a imigrantes haitianos, como a rotina extenuante dos serviços o qual esses
imigrantes são empregados que impossibilita outras práticas.
Essa reivindicação mostra também que não é necessariamente o trabalho o principal fim
da imigração haitiana, tal como apontado nas entrevistas em São Paulo. Também converge com
a questão da superexploração e da precarização do trabalho ainda que formal, que imigrantes
acabam por exercer atividades mais extenuantes que brasileiros, principalmente no mercado
que promove atividades com maior insalubridade, onde os mesmos estão na maior parte dos
contratados na década atual. Para além, Pascal aponta também a questão do salário, que não
condiz em muitos casos com o esforço despendido nesse mercado oferecido aos imigrantes.

Bom... Aqui no Caxias do Sul eu trabalho numa empresa... Mais ou menos... Porque,
sabe... Não tá bom... Porque eu vi uma coisa no Brasil: pessoal trabalha mais ganhando
pouco, entendeu? Pessoa trabalha todo dia, todo dia, por mês, e eles ganha pouquinho.
Não tá bom... (Pascal Chateleur, em 07/2015)
177

Nota-se até certo melindre em falar dessa situação que advêm também de todo o cuidado
que sua vida é cerceada, desde o frio, que informalmente foi um dos principais motivos de
reclamação, até a fria recepção de quem nasceu em Caxias do Sul. Em mesma oportunidade,
visitei Encantado (cidade distante cerca dde 100 quilômetros daquela), outra cidade que
concentra quantidade considerável de haitianos, muitos deles agenciados do Acre para um
frigorífico e um matadouro, havia a separação clara entre os “velhos migrantes” e os “novos
migrantes”.
Da mesma maneira, a precarização das moradias e a falta de apoio do poder público são
tônicas, diretas ou indiretas, entre as falas dos imigrantes. Pascal morava em uma área
consideravelmente distante do centro de Caxias do Sul, semelhante ao local de moradia de
haitianos em Encantado, um bairro denominado Navegantes, na encosta do Rio Taquari.
Conforme relatos, a opção por esta moradia era a ausência de burocracias impostas para se obter
um aluguel na cidade, o que acarretou também no aumento dos preços desta localidade. A Foto
4 mostra a entrada do bairro Navegantes, em Encantado:

FOTO 5: Bairro Navegantes, em Encantado - RS

Fonte: Trabalho de Campo em Julho de 2015

É perceptível a ausência do poder público que tem a ingerência de interferir nas


ilegalidades que afetam diretamente a vida de imigrantes como no caso de haitianos no Rio
178

Grande do Sul. Conforme a fala de Maria67, integrante da comunidade scalabriniana que acolhe
e promove uma série de ações com imigrantes em Encantado, o apoio do poder público em
cidade como Encantado é pífio:

Sentimos falta do apoio e parceria do poder público que nunca nos ajudou e também
da principal empresa que os trouxe e emprega. Mas enfim, vemos que a presença deles
(e também dos quase 100 dominicanos) nos desafia, mas enriquece enquanto pessoas
humanas que buscam viver um compromisso vocacional do Batismo no serviço aos
migrantes (Maria, em trabalho de campo em Julho de 2015).

A considerar que a região sul possui uma gama de complexos industriais que no Brasil
torna-se destaque, mas sobretudo por conta da autonomia desse setor, os interesses efetivos
acabam voltados a quem manda, e não a quem obedece.

5.1.2 Panorama do Sul do Sul e as estratégias migrantes

Milton Santos (2008), em A Natureza do espaço, ratifica que o espaço é um conjunto


apropriado de sistemas de objetos e sistemas de ações, entendendo-os como indissociáveis, já
que os objetos configuram as técnicas e as práticas espaciais e o sistema de ações verbaliza o
significado dos objetos no espaço, isto é, são os mecanismos de ação dos objetos no espaço. É
também onde se aponta o lugar como meio e fim para entender as práticas e a existência no
espaço, ou seja, é o caminho para entendê-lo e analisá-lo, pelas diferenças e pela resistência em
existir ainda que com a força da ordem global do sistema capitalista.
Para tanto, é necessário entender que os sistemas envolvem relações verticais e
horizontais conforme ditames e ordens que ratificam e salientam contradições no espaço, assim
como criam desigualdades entre os meios técnico, científico e informacional. Na obra Brasil:
território e sociedade no século XXI, Santos e Silveira (2001) apontam a necessidade de
compreender e apreender a periodização como método de análise das realidades espaciais, e
que na Geografia sua reflexão possibilita relacionar espaço e tempo aos sistemas de objeto e
sistemas de ação.
A primeira periodização se daria como meio natural, onde as ações sobre o espaço e as
escalas das práticas espaciais teriam maior dependência com as relações entre o ambiente, com
a natureza. O processo conhecido como capitalismo industrial seria, para os autores, o marco
entre o meio natural e o meio técnico.

67
Nome fictício dado para preservar sua identidade.
179

No Brasil, Santos e Silveira apontam o surgimento de um meio natural para um meio


pré-técnico, com as relações subservientes a uma nação européia em processo de transição para
o meio técnico, que dentre outras coisas submeteu e impôs técnicas de produção conforme à
sua demanda, ao seu interesse.
É nesse sentido que Santos e Silveira propõem uma regionalização do Brasil,
entendendo a diversidade das técnicas e os interesses políticos e econômicos em avançar em
determinadas regiões, ou simplesmente estagnar a técnica em outras. Para os autores, a região
Sul do Brasil está inserida na região concentrada, onde a maturidade das técnicas se alia a
autonomia do processo de produzi-las, sempre em suporte a ciência e às redes de informação.

Como em todos os períodos, o novo não é completamente difundido no território.


Todavia os objetivos técnico-informacionais conhecem uma difusão mais
generalizada e mais rápida do que os objetos técnicos de pretéritas divisões territoriais
do trabalho. A área de abrangência dos objetos atuais e das ações associadas é mais
ampla. Isso não impede que tanto objetos como ações modernos tendam a concentrar-
se em certos pontos e áreas do país. Eis uma das interpretações possíveis da existência,
de um lado, de uma Região Concentrada e, de outro, de apenas manchas e pontos
desse meio técnico-científico informacional, mais ou menos superposto a outras
divisões territoriais do trabalho nas metrópoles, capitais estaduais, capitais regionais,
regiões agrícolas e industriais modernas (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 140).

Para além do tempo, o espaço cria e é apropriado a diferentes sistemas técnicos,


científicos e/ou informacionais. Nesse sentido, a grande problemática regional no Brasil seria
as escalas de autonomia das redes, que na maioria das regiões apontadas por Santos e Silveira,
não existiria. Eis a questão que se associa a esse trabalho: por que o sul do Brasil possuiria essa
autonomia e estaria ligado às redes mais amadurecidas da chamada região concentrada? Os
autores apontam as principais características de uma região concentrada que condizem com a
lógica sul-riograndense, ainda mais no contexto da chegada de novos imigrantes na atualidade:

Nas áreas privilegiadas pela concentração o trabalho adquire maior especialização e


cresce a necessidade de intercâmbios. As cidades tornam-se especializadas e por isso
se verifica, como no Estado de São Paulo, uma acentuada divisão interurbana do
trabalho [...] Na região concentrada, lócus de divisões “extremas” do trabalho,
aumentam as áreas destinadas à circulação e os movimentos internos resultam mais
intensos do que no resto do país (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 141).

Essa intensidade também se destaca na região sul pela autonomia da produção e do


repasse dado a esta nacionalmente e internacionalmente, que se equipara com a diversidade –
produção agrícola, agroindustrial, têxtil, metal-mecânica, dentre outros.
Outro contexto que se aplica a imigração mais presente nesta região se dá pela ascensão
econômica e social, sobretudo da classe baixa e média no Brasil nas últimas décadas, que
180

promoveu a qualificação do trabalho, desocupando postos mais insalubres, como no caso dos
trabalhadores das fábricas e de frigoríficos. A diminuição pela procura por esses postos
permitiu o empresariado local rearranjar as estratégias de tais setores quanto ao mercado de
trabalho. Conforme tabela 2, a presença no setor industrial alimentício no Estado do Rio Grande
do Sul em 2014 foi um grande receptor para a contratação de haitianos, com a presença, até
esse ano de mais de mil haitianos em tais empresas.

TABELA 2 - Haitianos na indústria da alimentação do RS – 2014

Cidades Número de haitianos


Caxias do Sul 250
Encantado 288
Erechim 60
Getúlio Vargas 40
Lajeado 153
Marau 30
Montenegro 66
Serafina Correa 37
Cidades com mais haitianos empregados no setor de alimentos no Estado do RS em 2014.
FONTE: ZAMBERLAM; CORSO; CIMADON; BOCCHI, 2014.

Isso não implicou, conforme já apontado, na ascensão social desses imigrantes, nem no
apoio a escolarização e inserção em outros mecanismos como qualquer outro cidadão brasileiro,
já que se expunha aos novos imigrantes a vontade de permanência no país. De fato, houve
inúmeras iniciativas em várias esferas para inserção de imigrantes na educação e na assistência
básica, como oportunidades específicas para tais em unidades universitárias. Mas como o
próprio Pascal assume, com muitas dificuldades esses imigrantes conseguem se comprometer
a essas iniciativas, sob as condições árduas de trabalho, muitas vezes não condizentes com sua
formação.
Quanto à formação, há outro gargalo: o reconhecimento e revalidação dos títulos de
formação de imigrantes no Brasil. A burocracia e os custos muitas vezes impedem a inserção
qualificada no mercado de trabalho, e desta forma a procura por empregos mais precários é a
única saída de repasse a família e a própria sobrevivência. Segundo informações do Ministério
da Justiça e Segurança Pública, desde 2016 tem-se feito uma série de ações para facilitar a
revalidação de diplomas para imigrantes no país, a partir de resolução No 3, de 22 de junho de
2016.
181

A Resolução fixa parâmetros para o procedimento de revalidação, estabelecendo o


prazo máximo de até 180 dias, a contar da data do protocolo na universidade. Além
disso, inova ao prever tramitação simplificada, em até 60 dias para graduação, e até
90 dias para pós-graduação, de pedidos de revalidação em caso de cursos estrangeiros
cujos diplomas já tenham sido objeto de revalidação nos últimos 10 anos. A Resolução
prevê ainda que refugiados no Brasil que não estejam de posse da documentação
requerida para a revalidação, migrantes sem documentos e outros casos poderão ser
submetidos à prova de conhecimentos, conteúdos e habilidades relativas ao curso
completo, como forma exclusiva de avaliação destinada ao processo de revalidação. 68

Contudo, conforme notícias veiculadas entre 2016 e 2018, o processo de revalidação


ainda chega a custar cerca de 20 mil reais 69. Isso implica no receio e no atravessamento de
informações que tornam a possibilidade de busca pelos direitos e políticas ainda mais
complicada.
Soma-se a isso a crise política e posterior econômica no país, que intensificou em 2016
a diminuição da oferta de trabalho, qualificado ou não, para imigrantes no Brasil. Estados como
Paraná não só diminuíram as ofertas como demitiram boa parte dos imigrantes contratados nos
anos anteriores, como vimos nas falas de haitianos em São Paulo, corroborando assim para um
cenário de desesperança na permanência, afora todas as outras adversidades existentes.
Conforme notícia de novembro de 2017, sobre a oferta de empregos no Paraná, em entrevista
com a promotora do Ministério Público do Trabalho, Cristiane Maria Sbalqueiro:

As perspectivas para os próximos meses, são negativas, especialmente por causa das
desvantagens que trabalhadores estrangeiros enfrentam no mercado de trabalho local.
“A tendência é a de que haja uma diminuição [no número de trabalhadores]. É mais
fácil contratar um trabalhador local. Em tempos de crise, as empresas operam segundo
a lei do mínimo esforço: elas não querem lidar com os documentos, com uma possível
adaptação que o trabalhador estrangeiro possa precisar”. A procuradora cita o
exemplo de trabalhadores haitianos, que foram contratados, em grande número, pelos
frigoríficos do estado. “Com a crise, os brasileiros que, antes, estavam desprezando
os empregos em frigoríficos, hoje, pararam de desprezar. Eles têm vantagens sobre os
estrangeiros”. Entre as dificuldades enfrentadas por eles, Cristiane ressalta o impacto
cultural, o preconceito, especialmente o racismo e a falta de conhecimento da
legislação trabalhista, especialmente com as mudanças recentes da reforma que entrou
em vigor no sábado (11). “A reforma trabalhista vai prejudicar igualmente
trabalhadores brasileiros e estrangeiros. Ela precariza os empregos da massa
trabalhadora. Não vai diminuir o número de vagas, mas a qualidade”, lamenta.

68
“Governo facilita a revalidação de diplomas estrangeiros”, disponível em:
http://www.justica.gov.br/news/governo-facilita-a-revalidacao-de-diplomas-estrangeiros.
69
“Revalidar o diploma ainda é um desafio para refugiados no Brasil: Processo de revalidação pode chegar a 20
mil reais, segundo a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados.”, disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/revalidar-o-diploma-ainda-e-um-desafio-para-refugiados-no-brasil/.
182

Segundo ela, essas alterações aliadas à crise devem afetar ainda mais o mercado. “O
futuro é de brasileiros para fora”, brinca70.

Toda a fala da promotora, tal como a reportagem, é enviesada. A previsão de diminuir


os postos de trabalho para estrangeiros não é só enfatizado como ratificado em um discurso de
desdém por parte dos brasileiros aos empregos conseguidos por haitianos, que agora têm de ser
tomados de volta. A dificuldade enfrentada por estrangeiros aparenta ser o corriqueiro e
necessário à vivência na região e finaliza com uma brincadeira quanto à situação precária que
brasileiros vivem.
Isso é refletido também no papel do Estado em não assegurar localmente – e vemos isso
em todos os trajetos resgatados neste trabalho – assistência mínima a imigrantes que sofrem
com condições extremamente precárias. Conforme Zamberlam, Corso, Cimadon e Bocchi
(2014):

Lideranças entrevistadas afirmaram que a maioria dos municípios que acolheram


imigrantes haitianos têm carência de oferta de serviços públicos e de infraestrutura
para seus próprios moradores. Isso eleva o preço dos aluguéis, obrigando os
imigrantes recém-chegados a buscarem moradias em vilas sem infraestutura básica
(ZAMBERLAM; CORSO; CIMADON; BOCCHI, 2014, p. 63).

A intensidade do preconceito vindo de pares migrantes, o descaso do poder público local


e as poucas iniciativas fora da esfera da solidariedade distingue-se, de todo modo, das iniciativas
dos próprios imigrantes em lutar pelos seus direitos e pelas novas articulações no país. A
vontade e o desejo às estratégias de mobilidade e permanência via geometrias de poder
começam a ser desenhadas e delineadas via novas mobilidades.

5.2 As estratégias de permanência via frentes de resistência

Diante do exposto em todo este trabalho, é possível traçar com mais clareza três
principais agenciamentos envolvendo geometrias de poder da imigração haitiana no Brasil:
estado, imigrantes haitianos e sociedade.

70
“Em desvantagem, trabalhadores estrangeiros sentem os efeitos da crise no Paraná”. Disponível em:
http://paranaportal.uol.com.br/economia/426-parana-trabalhadores-estrangeiros/.
183

QUADRO 11: Agenciamentos das geometrias de poder entre mobilidade e permanência de haitianos no Brasil
Imigrantes haitianos Entrada
Estratégias primeiras – raketés, coiotes,
solicitação de refúgio, capilaridade

Mobilidade
Saída para outros Estados, onde oferecer
melhores ofertas
Apoio de entidades religiosas e terceiro
setor
Inserção no mercado de trabalho brasileiro
a partir da urgência
Permanência
trabalho, sustento, vagas em universidades
e/ou cursos técnicos
Fadiga, cansaço, saudade
Preconceito, esquivar-se, reivindicar para
si e os próprios
Estado Entrada
Visto para o trabalho
Criminalização a partir da entrada irregular
“Transferência do problema”

Mobilidade
Subsídio a viagem
Assistência básica de fornecimento de
documentação
Assistência social

Permanência
Descaso local
Região Sul – pouca absorção de unidades
públicas voltadas aos imigrantes
Preconceito

Sociedade brasileira Entrada


(Borrão – problemáticas na escala) Preconceito, acolhimento

Mobilidade
Preconceito, acolhimento
184

Permanência
Preconceito, acolhimento

Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

A relação dos haitianos com o Brasil se dá, dessa maneira, pelas complexidades de suas
estratégias, de mobilidade e permanência. Elas flutuam a partir da capilaridade e das
transformações políticas que advém de seu espraiamento no país. As adversidades são mais
intensas e mais programadas quando suas estratégias de permanência se efetivam, se
consolidam na inserção no mercado de trabalho, porém sob ameaça constante, tendendo a partir
do mercado, do Estado e da sociedade ao posicionamento sempre na ordem da submissão, da
interpretação do sofrimento, da necessidade perversa desse sofrimento para ser inserido a
realidade brasileira.
O Estado, agente que a princípio promoveria a interface das estratégias com o processo
de ascensão não só econômica mas social desses imigrantes, no que reveladas as estratégias dos
haitianos, se exime, e promove o desequilíbrio dos interesses, comum de uma relação
esquizofrênica, e, não fosse a atuação política dos haitianos em reivindicar para si e os próprios,
o cenário dos migrantes seria piorado.
A escala de análise mais problemática e limitada é a da sociedade brasileira (escala
"nacional"). O mapa torna-se um borrão porque a clareza e a classificação da entrada de
haitianos no Brasil não é efetiva, pela mídia, por agentes que têm certa importância no processo
das relações sociais, e principalmente advindo pelo preconceito disseminado pelo estigma e em
grande medida pelo racismo.
Apesar das adversidades, os imigrantes promoveram de diversas maneiras a
reivindicação para si e para os próprios, que acompanhou a capilaridade e suas estratégias em
várias partes do país.

5.2.1 Condições de vida dos haitianos no Rio Grande do Sul

Temos assim quatro perspectivas do cenário da diáspora haitiana no Brasil na interface


da sociedade brasileira, que extrapola o borrão acolhimento/preconceito. É salientada pela
capilaridade destes, mas também às análises já pesquisadas dessa migração e seus reflexos no
país. A ordem dessas perspectivas acompanha o grau de complexidade do processo de inserção
dos imigrantes nas respectivas regiões estudadas neste trabalho – Norte, Sudeste e Sul – e suas
185

classificações diante do cenário nacional – a Região Norte com um grau mais intenso de
dependência e pouca interação com o dinamismo econômico do capital, e Sudeste e Sul como
integrantes majoritários da região concentrada, conforme Santos e Silveira (2001).
A primeira perspectiva, com grau menos acentuado de complexidade, é a migração de
haitianos via senso comum. A opinião mais simplória que envolve o discurso da “invasão”,
junto ao papel da mídia em assimilar esse discurso e envolver parte da sociedade em uma
campanha de defesa ao brasileiro em relação ao haitiano. É também a perspectiva do
preconceito rotineiro contra o imigrante haitiano, que difunde as supostas doenças trazidas na
região Norte, as ameaças nos postos de trabalho do Sul e os olhares enviesados entre gerações
de imigrantes italianos e alemães, por exemplo. É de menor complexidade porque, ao ratificar
esse tipo de preconceito, a análise é parcial e dependente, mas é o que mais acompanha os
espaços da migração não só no Brasil, mas no cenário mundial.
A segunda perspectiva, que envolve certo grau de consciência das agruras da chegada
de grupos migrantes, é do acolhimento aos haitianos, seja pelas organizações e entidades
promotoras de suporte a migrantes internos e internacionais no Brasil, pelas entidades religiosas
– católicas ou protestantes -, ou por parte da população brasileira.
O trabalho desses agentes, muito disseminado e articulado, ajudou também no processo
de capilaridade e no apoio reivindicativo, assim como na consolidação do caráter associativista
de grupos haitianos. É também, como na fala de Maria, o que repassa conhecimento e
conscientização da chegada de caribenhos e/ou africanos nas cidades pequenas, como as que
haitianos vivem no sul do Brasil. Ademais, como apontado, o que possibilitou a garantia de
sustento e de consolidação das estratégias de permanência de haitianos no país.
A terceira perspectiva possui um grau mais complexo porque está amarrada às duas
perspectivas anteriores no sentido do preconceito e do acolhimento. É a perspectiva do capital
e do empresariado, cujos interesses na atuação de imigrantes em suas empresas envolvem a
conjuntura da urgência da garantia de permanência destes.
É conveniente aos seus interesses o direcionamento do trabalho quando a
superexploração pode se tornar a tônica, ainda mais com as dificuldades da língua e o
preconceito de parte de funcionários brasileiros. É a perspectiva que se articula com a do
Estado, que em medida se exime do acolhimento e responde ao trabalho como o caminho mais
viável à imigração, sem considerar outros agenciamentos e toda a trajetória de estratégias da
diáspora haitiana.
186

Da mesma maneira, a partir da análise cuidadosa de Uebel (2015) que propôs uma
regionalização da migração haitiana no estado do Rio Grande do Sul, podemos apreender essa
perspectiva a partir da interface espaço, empregabilidade e relações de poder, sistematizada no
Mapa 6:
MAPA 6: Regionalização da concentração de haitianos por destino e ocupação no Estado do Rio Grande do Sul.

Fonte: UEBEL, 2015. (Elaboração nossa).

Nesse ínterim, a promoção de estratégias de permanência e mobilidade faz-se necessário


para a garantia de sua diáspora. A quarta perspectiva, portanto, é da atuação política dos
imigrantes, de forma direta e indireta. A reivindicação para si e para os próprios foi o que
garantiu em todo o processo de chegada e estadia de haitianos no Brasil uma série de
possibilidades, aliado a mudanças nas esferas política e jurídica. Essas mudanças não foram
suficientes, contudo, para consolidar a permanência efetiva de haitianos no país, porque os
agenciamentos das perspectivas anteriores indicavam sempre o contrário aos desejos dos
imigrantes. É possível perseverar até onde, quando a chibata – moral, social, estatal e mundial
– ainda continua a bater no mais submetido?
187

Diehl (2017), em sua pesquisa sobre haitianos em Lajeado (cidade também a nordeste
do Estado do Rio Grande do Sul), analisa os estigmas e o racismo quando da entrada dos novos
imigrantes, aponta o receio e o preconceito de cidades como a sua referência de pesquisa:

Muitos moradores de Lajeado mostram-se receosos frente aos haitianos, pois na


verdade eles podem estar escondendo quem realmente são, podendo só se manifestar
verdadeiramente quando estiverem assimilados na sociedade brasileira, e quando isso
ocorrer, alguns moradores estabelecidos alegam que será tarde demais. [...] Este medo
do que os haitianos podem vir a ser ou fazer ocasiona na formulação de estigmas que
constituem as características dos haitianos, segundo a população estabelecida
(DIEHL, 2017, p. 62).

Da mesma maneira, o preconceito da população local não é o único reflexo desse


estigma, mas a própria posição do estado e do mercado em fomentar postos inferiores a
imigrantes já denota um problema muito maior que intensifica a questão com a sociedade:

[quanto aos] imigrantes haitianos em Lajeado, embora eles sejam sim excluídos e
marginalizados, sendo a exclusão o instrumento de fomentação da formação de
estereotipo dos haitianos, foi pelo viés da exploração que eles foram mais alvos de
racismo, pois foram um grupo étnico que vieram como mão-de-obra para suprir
necessidades dos empresários locais, e há relatos de haitianos por diversas cidades do
país alegando estarem em situação de semiescravidão em seus trabalhos (DIEHL,
2017, p. 55).

Conforme entrevista feita com Maria, as condições de moradia, trabalho e o preconceito


marcam o dia-a-dia dos imigrantes, apesar de seu relato garantir todo o apoio e diálogo com os
moradores da cidade para acolher e apoiar a migração contemporânea, entendendo também a
história da cidade, fundada por imigrantes italianos.

Na minha opinião, e olhando para a realidade da minha comunidade que viste ser
pequena, a inserção dos haitianos aqui, se deu de maneira até tranquila. A comunidade
de certa forma foi preparada para a chegada do primeiro grupo e usamos muito o fator
histórico em que a comunidade foi formada por imigrantes italianos e que agora a
história se repete com a chegada dos haitianos e dominicanos. É claro que houve
algum comentário preconceituoso mas foi mínimo se compararmos com a aceitação,
a ajuda através de doações e a simpatia por eles. Colaborou também o fato deles serem
extremamente educados, simpáticos, trabalhadores pois numa comunidade de interior,
estas coisas ainda tem bastante valor [...] Percebo que do lado deles, nem tudo é
perfeito: se queixam bastante do trabalho que é pesado, desgastante e mal remunerado;
o preço dos aluguéis que de certa forma tiveram um aumento, a falta de imóveis
fazendo com que tenham que residir em um bairro de periferia com condições
mínimas e precárias, falta de vagas nas creches da cidade, a desilusão com os salários
que acreditavam (e foram iludidos nisso) fosse em dólar e mais alto, a saudade do
Haiti e dos familiares... (Maria, em 07/2015).

Em Encantado, a maior edificação da cidade é a igreja scalabriniana São Pedro, que


possui uma série de placas e imagens de apoio à comunidade migrante, com uma interessante
188

pintura do muro, indicando aquele ethos trabalho reverberado da imigração italiana do século
XIX, delineado no segundo capitulo.

FOTO 6: Igreja Scalabriniana São Pedro, em Encantado - RS

Fonte: Trabalho de Campo em Julho de 2015.

Entre 2014 e 2015, houve um intercâmbio na tentativa de aproximar a comunidade com


os imigrantes que possibilitou a entrada de um padre haitiano como o responsável pela igreja,
o que pela fala de Maria converge com a tentativa da paróquia local em amenizar o estigma e o
preconceito. Em trabalho de campo na localidade, conforme Foto 5, o local de moradia desses
imigrantes, sempre na proximidade dos locais de trabalho, envolve por si só a segregação e a
precariedade das relações entre agentes do quadro 11. Como apontado por Diehl, a
complexidade é amplificada, e a problemática na escala social torna-se mais delicada.

5.2.2 O caráter associativista da migração haitiana

Já ressaltamos a importância do caráter associativista de haitianos no Brasil, que


corrobora com as estratégias de mobilidade e permanência, e atua no sentido de potencializar
mudanças do caráter político-personalista das políticas de imigração aqui, historicamente
produzidas neste molde. A partir das complexidades dos agenciamentos entre a sociedade, o
189

caráter associativista torna-se mais presente e dá mais força ao papel das estratégias de haitianos
porque se contrapõe diretamente à lógica personalista e velada, incorporadas desde as primeiras
políticas de migração no Brasil no século XIX.
Pode-se sistematizar o chamado caráter associativista a partir de três frentes. A primeira,
na ação coletiva da migração; a segunda, na busca incessante pelo lugar em que pode se fixar,
que consolida a capilaridade; e terceiro, as reuniões ou baz, e na formação das associações pelo
país.
A ação coletiva da migração, explorada com mais detalhes por Handerson (2015)
denota, sobretudo, pela diáspora haitiana ser um projeto de melhoria de um grupo organizado,
e não necessariamente individual. Pascal veio do Haiti com ajuda da família e amigos para, no
estabelecimento em um lugar, poder repassar recursos ou facilitar a vinda dos outros integrantes
da família e de amigos. Nesse sentido também, Handerson aponta um dos reflexos do
agenciamento coletivo à migração por parte dos haitianos.

Segundo o coordenador mencionado, os haitianos chegavam quase nas mesmas


condições dos peruanos (avaliados aproximadamente 10 mil em Tabatinga), buscando
trabalho, talvez pela falta de emprego no Haiti. Mas, do ponto de vista dele, os
haitianos chegavam com uma vantagem: pelo fato de alguns já serem membros de
associações e organizações no Haiti, chegavam com uma consciência das suas
condições sociais, reivindicando a regularização no país para conseguir trabalhar
formalmente (HANDERSON, 2015, p. 115).

Pascal dividia o aluguel e a casa onde morava com o cunhado, que viajou em seguida
para encontrá-lo em Caxias do Sul. Na chegada à sua casa, o cunhado o esperava para entregar
a chave e disponibilizar o lugar para a entrevista.

Eu tenho um mais ou menos cunhado que tá aqui. Meu cunhado que ficou lá fora [de
casa ele tá junto aqui comigo. Depois eu fui procurar trabalho para ele. Bom, eu não
acho trabalho para ele... Eu fui procurar na Marcopolo, deu e ele foi lá trabalhar
(Pascal Chateleur, em 07/2015).

Esse exemplo é um dos vários que remontam ao aspecto peculiar dos haitianos, o que
em muitos relatos é apontado como “um povo atencioso, solidário...”. É na realidade parte
constituinte de sua expressão via história de sofrimento, ligadas a violência política e social
marcantes. É também fruto dessa resistência integrante das sucessivas diásporas. Algo
interessante no final do encontro com Pascal foi o fato dele, antes de chegarmos, se
comprometer a tocar uma música que ele aprendeu em uma igreja no Haiti, em um teclado
eletrônico que ele conseguiu comprar com seu salário no Brasil. Esse comprometimento, parte
190

da solidariedade e da troca, aponta que a prática coletiva no sentido de projeto e compromisso


é intrínseca à própria diáspora.
A segunda frente, a busca incessante para efetivar a permanência é parte do projeto
coletivo, já que a necessidade de conseguir uma atividade a fim de se obter recursos aos que
ajudaram no projeto e depois ascender socialmente é parte intrínseca a este. Essa busca gera de
forma mais direta a estratégia de mobilidade, quando da capilaridade da migração no Brasil,
conforme detalhado neste trabalho.
Essa frente promoveu também duas espacialidades importantes. A primeira é a
capilaridade em si, conforme mapas 3 e 4, que espraiou física e conceitualmente a diáspora
haitiana pelo território brasileiro, e a segunda foram as consequências políticas desse
espraiamento. É notório, conforme já apontado, que toda a discussão da legalidade/regularidade
de migrantes vindos na atualidade permitiu uma série de mudanças de caráter político-
normativo, e possibilitou tentativas de sair do maniqueísmo e do personalismo consolidados no
Brasil.
Obviamente, conflitos de toda ordem ocorreram e, se analisarmos friamente pelo papel
da consciência, ou da clareza do que é a migração e a mobilidade para caribenhos, africanos,
sírios ou outras nacionalidades em que a entrada no Brasil torna-se a tônica no século XXI,
aliada às mobilidades sul-americanas já vindas desde o século XX, as respostas serão
incompletas, parciais ou consideradas pouco politizadas diante do cenário atual no mundo. Mas
não se pode negar que a mobilidade dos de baixo implica uma provocação, o conflito e a
resistência ao que é vigente, ao que é ditado como verdade, correto e coerente.
Muito há de se mudar, inclusive o papel da migração, a potência que envolve os
processos de mobilidade e o caráter político desses processos. O exemplo haitiano é uma parte
dessa potencialidade, principalmente no que se refere ao espaço. Porque quando se aponta o
papel do espraiamento e os conflitos gerados do poder da capilaridade, o retorno de seus
agenciamentos sensibiliza e atinge diretamente à reflexão geográfica do que a migração, e de
seu papel tão necessário para a sociedade.
A terceira frente aponta o resultado do associativismo em si. A capilaridade de haitianos
via estratégias de permanência adquiriu um resultado importante, que foi a gama de
Associações de Imigrantes Haitianos pelos Estados brasileiros. De acordo com Handerson
(2015):
Do ponto de vista dos meus interlocutores, que já haviam residido em outros países,
o associativismo entre os haitianos tem desempenhado um papel importante na
reafirmação dos laços sociais entre eles [...] Do ponto de vista de alguns agentes e
agências brasileiras, é perceptível a capacidade de mobilização sociopolítica dos
191

haitianos. Essa instrumentalização da política no contexto da mobilidade haitiana


revela-se no fato de, em quatro anos, os haitianos já terem criado aproximadamente
dez associações espalhadas pelos diferentes Estados brasileiros, do norte ao sul, como
a Associação dos Trabalhadores Haitianos no Amazonas (ATHAM); a Associação
dos Haitianos do Balneário Camboriú, em Santa Catarina; a Associação dos Haitianos
de Curitiba, no Paraná; a Associação dos Haitianos em Porto Velho, Rondônia; a
Associação dos Haitianos em Brasília, no Distrito Federal; além de três associações
no Rio Grande do Sul nas cidades de Caxias do Sul, Lajeado e em Encantado
(HANDERSON, 2015, p. 126-127).

Permitiu também a reivindicação e a organização desta pelo país. Em ocasião a


Conferência Nacional de Migração, e às falas próprias dos haitianos no decorrer deste trabalho,
a presença destes, perguntando e discutindo acerca de situações práticas, como validação de
diploma e condições de trabalho e moradia era constante. Tal como Handerson, ao definir essa
instrumentalização da política, trata-se de planejar de maneira organizada suas estratégias de
permanência, e portanto promovê-la a um panorama político maior.
Essa frente não se esgota nos instrumentos de reivindicação em si, mas acredita-se que
a própria territorialização dos haitianos onde se instalam, na formação dos baz, ratifica o
propósito da diáspora haitiana. Em boa medida, o lugar de encontro de grupos de baz ocorre
nas localidades centrais das cidades, o que chama a atenção, ainda mais quando em lugares
como Caxias do Sul ou Encantado, de uma população majoritariamente branca. Não só provoca
politicamente como reconfigura o espaço público. Tal como na foto a seguir, em um baz
localizado em um prédio central de Caxias do Sul, reunido em um dia de bastante frio e chuva
na cidade.
FOTO 7: Baz no centro de Caxias do Sul - RS

Fonte: Trabalho de Campo em Julho de 2015


192

5.3 As estratégias de mobilidade via frentes de resistência

A permanência como resistência é um assunto já explorado em trabalhos anteriores


(MARTINS, 2013). É intrínseca a permanência como estratégia do migrar e morar, bem como
do habitar, e que perfaz com a mobilidade os caminhos e a vida do migrante no novo lar.

Compreendemos que a permanência envolve uma estratégia. Estratégia em um


caráter relacional, mas também subjetivo, desse processo produtivo de permanecer.
Analisamos também essas estratégias de permanência na visão de que elas não
são coesas, fixas em um determinado ponto, como mostrar seu significado divulgado.
As estratégias de permanência ratificam ainda mais a mobilidade de ser permanente,
porque é no movimento que a permanência se destaca, se produz e se reproduz. A
permanência também é parte de uma mobilidade inerente, e acima de tudo, a
permanência como estratégia foi o primeiro ato de construir, para o migrante, um
novo lar (MARTINS, 2013, p. 85).

Não é somente no caráter de resistência que a mobilidade se cruza à permanência. Tais


estratégias coexistem, tais ações e agenciamentos também. Isso fica claro quando há no caso
dos haitianos a fixação e a tentativa de se fixar em lugares onde se inserem no mercado de
trabalho, porque a partir dessa inserção a contradição dos agenciamentos torna-se mais intenso,
e também mais perverso.
Como foi apontado, um importante agente desse processo da permanência é o
empregador, que garantirá a base necessária para o projeto diáspora do imigrante haitiano, o
repasse à sua rede e seu próprio sustento. Aliado ao caráter associativista-reivindicativo, essa
base se esgota no momento em que não se vê condições mínimas para a ascensão social, ora
para permanecer efetivamente no Brasil, ora para assimilar novas mobilidades (da rede, da
família, de si próprio etc.).
Vários são os argumentos dos haitianos para dar continuidade à sua diáspora após o
Brasil. Elencaremos algumas no final deste capítulo – e desta tese, a fim de entender que não
se esgotam as estratégias enquanto houver vida e sentido. Também, que o trabalho não é o fator
prioritário e preponderante para esse processo, mas um dos agenciamentos que se articulam nas
estratégias migrantes.

5.3.1 Novas mobilidades haitianas

A partir de novos debates, bem como reportagens e notícias de 2014 para 2018, pode-
se dividir em três categorias as novas mobilidades de haitianos desde o Brasil. A primeira, de
193

haitianos no Brasil e suas novas mobilidades, a segunda, de haitianos para o Brasil que chegam
e ficam a espera de permanência, ou migram do Brasil para outros países, e a terceira, de
haitianos fora do Brasil ou que remigram para o país ou que ficam a espera de novos arranjos
políticos que facilitem sua entrada.
Conforme relatório da Organização Internacional das Migrações - OIM, o fluxo para
países da América do Sul a partir do Brasil foi diversificado, mas ainda que no Brasil o fluxo
de haitianos tenha diminuído, este continua como principal destino de imigrantes vindos do
Haiti.

TABELA 3: Haitianos na América Latina entre 2010-2016

Fonte: Relatório da Organização Internacional das Migrações (OIM),


publicado em 2017.

Vê-se que de 2015 para 2018 a tendência é o aumento do número de haitianos que
migram do Brasil para outros países da América Latina, como Uruguai, Argentina e Chile. Ao
se tratar do grupo de haitianos no Brasil, pensamos nessa parcela de imigrantes que migram do
Brasil para países da América Latina e América anglo-saxônica, na tentativa de entrar nos
Estados Unidos a partir da fronteira com o México. Conforme também dados da Organização
Internacional das Migrações (2017, p. 81) a região metropolitana de Santiago do Chile é a
localidade mais procurada por haitianos neste país.
Conforme apontado no Mapa 7, com a crise política deflagrada em 2015 e que
desencadeou uma crise econômica no Brasil, as dificuldades enfrentadas por migrantes, seja
retração de seus postos de trabalho ou pela intensificação do racismo e de casos de xenofobia
194

aumentaram. As adversidades enfrentadas desde 2011 se mostraram mais drásticas, quando da


falta de expectativa no Brasil, ainda mais para grupos com menor capital cultural e econômico.
Da mesma forma, as más condições de trabalho e indícios claros de superexploração aliados
aos baixos salários acarretaram em uma série de desilusões a este grupo71, que via o Brasil como
um país diáspora.
MAPA 7: Novas rotas de haitianos dos últimos 3 anos (2015-2018)

Fonte: Diagnóstico regional sobre migración haitiana. ONU, 2017. (Elaboração nossa).

Handerson (2015) aponta também que o fluxo para o Chile não é uma novidade, sendo
que dois fatores foram importantes para ida de haitianos; primeiro, o fato do pagamento pelos

71
Com a permanência no Brasil, as formas diversas de reivindicação de haitianos amadureceram e tomaram corpo,
sendo também manifestações divulgadas pela mídia e denunciadas no aparato legal. Tal como este caso, em janeiro
de 2018, em Caxias do Sul: “Os estrangeiros registraram ocorrência na Polícia Civil, mas como a denúncia é de condições
de trabalho análogas à escravidão, a investigação deve ser conduzida pela Polícia Federal. "Quando ele falava com a gente falava
alto, nos tratava mal", relatou o auxiliar de montagem Philistin Regustin sobre o tratamento do supervisor da empresa. O
Ministério Público do Trabalho (MPT) também deve participar da apuração, ouvindo os responsáveis pela empresa. Para o
auditor fiscal do Ministério do Trabalho Vanius Corte, a denúncia é de grave. "Esse corte de luz, de água, de comunicação com
os familiares, as agressões e ameaças por parte do supervisor dessa empresa é de gravidade extrema, se for comprovada, será de
uma dimensão inédita aqui", disse.”. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/pf-e-ministerio-do-
trabalho-investigam-denuncia-de-mas-condicoes-de-trabalho-feitas-por-haitianos-em-caxias-do-sul.ghtml.
195

serviços prestados, sobretudo nos postos de trabalho em que haitianos são contratados, ser em
moeda americana, o dólar, e segundo, o tratamento dado a legislação vigente no Chile para
imigrantes72. As primeiras rotas, com o pouco conhecimento espacial dos imigrantes,
demoravam dias, até meses, com relatos indicando viagens pela Amazônia brasileira até a
região Sul, para chegar na Argentina e no Chile.
Desde 2015, dessa maneira, haitianos têm percorrido algumas rotas para sair do Brasil
e migrar para o Chile, que também tem tido intensa procura de passagens desde Porto Príncipe,
capital do Haiti. Duas rotas importantes pelo Brasil é o Paraná, a partir da fronteira com a
Argentina, e São Paulo, a partir dos ônibus diretos disponíveis em empresas rodoviárias.
Outra rota que tem tido atenção configura-se em um possível “fluxo de retorno”, que se
assemelha à vinda pelo Acre, mas agora em direção principalmente à cidade de Tijuana, no
México, que faz divisa com os Estados Unidos. Conforme dados de entidades mexicanas, em
2017 havia cerca de 8000 haitianos pelo país na busca para atravessar a fronteira
estadunidense73.
A busca pela América do Norte, entretanto, coincidiu com o acirramento das políticas
de entrada, principalmente para haitianos tanto nos Estados Unidos quanto na República
Dominicana, o desencadeou em Tijuana uma série de afetações estruturais, conforme relatos de
entidade e reportagens internacionais, que viu seus abrigos superlotados com migrantes de
várias nacionalidades,inclusive mexicanos que viviam ilegamente nos EUA, o que promoveu
em 2017 o acirramento da entrada de haitianos também pelo México.
Ainda assim, o fluxo para o Brasil continua presente somado a países da América Latina,
e conforme dados da OIM com a presença importante da Venezuela, muito devido às
possibilidades de entrada para a Guiana Francesa. Isso nos leva à segunda e terceira categorias
de mobilidade de haitianos no país. Elas são intrínsecas pois são visualizadas fora deste país, e
portanto atuam em conjunto.

72
Conforme Handerson, a partir de relato de um haitiano na América do Sul “O Chile era o país, dentre aqueles
que ele conhecera, onde o migrante era melhor tratado, no tangente aos direitos humanos, à moradia etc. Também
que a população local acolhia bem e não se sentia humilhado como negro, como acontece em outros países”
(HANDERSON, 2015, p. 216).

73
“Hay unos 7.800 haitianos varados en México, según estiman organizaciones civiles. El número real no se
conoce por la forma como ingresaron y permanecen en el país, casi de manera clandestina. La mayoría están en
ciudades fronterizas del estado de Baja California como Tijuana y Mexicali, aunque también se han detectado en
Ciudad de México y Tapachula, en el sureño estado de Chiapas. ” Disponível em:
https://diariodigital.com.do/2017/06/07/haitianos-mexico-forzados-vivir-limbo.html.
196

Estima-se que pelo Haiti saem mensalmente cerca de 1000 a 1500 vistos humanitários
para o Brasil. Os pacotes de viagem no país caribenho estimulam viagens para cidades como
Cascavel, no estado do Paraná, São Paulo, capital, e Macapá, no estado do Amapá (divisa com
a Guiana Francesa). Da mesma maneira, há informações de que, desde 2016, cerca de 90.000
haitianos entraram no Chile74.
O poder público em Tijuana, em procedimento semelhante ao do governo do estado do
Acre, tem subsidiado passagens para imigrantes. Da mesma maneira, haitianos têm a
expectativa de sair do Haiti, que ainda não se recuperou estruturalmente, sequer politicamente.

74
“Em Porto Príncipe, cerca de 1.100 haitianos se candidatam por mês a um visto brasileiro, enquanto voos
fretados partem diariamente para Santiago, a porta de entrada dos cerca de 90 mil haitianos que desembarcaram
no Chile desde o ano passado. Em Saint-Bernard-de-Lacolle, no Canadá, uma cidade de tendas recebeu parte dos
mais de 6.000 haitianos que cruzaram ilegalmente neste ano vindos dos EUA, onde o governo Donald Trump
ameaça fazer uma deportação em massa.”. Disponível em: https://ricmais.com.br/sc/noticias/crise-no-brasil-e-
linha-dura-nos-eua-fazem-haitianos-vagarem-pelo-continente.
197

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Mobilidade e permanência como estratégias - Desafios e perspectivas

Diversas são as fontes, as buscas e as trajetórias da migração. Diversa também é a


intenção do migrar, que ainda com um determinado fim para cada sujeito, supõe muitos
objetivos e perspectivas para cada um. Expectativas que podem ser alcançadas ou frustradas e
é o que nos constitui, em muitas situações de adversidade ou de desencontro com nossas
próprias intenções, concepções e percepções.
O presente trabalho não procurou buscar uma saída, uma resolução para as angústias e
agruras do processo migratório, pessoal e subjetivo, projeto e coletivo. Mas a tentativa aqui é
de delinear rumos para a complexidade que este processo abarca. Complexidade esta que, no
entendimento de sua multiplicidade, potencializa atos e gestos políticos de uma pluralidade de
agentes. Não se esgota, portanto, no pensar-agir-falar que são constantes e necessários. É uma
contribuição na tentativa de ir além de maniqueísmos e proposições que não levam em conta a
sociedade em que vivemos, os constructos de democracia, identidade, solidariedade.
Desde o início, reforçou-se aqui a necessidade de ir além da relação migração-trabalho,
não necessariamente porque não existe essa relação, mas que, paralelo com o trabalho,
processos escamoteados também são importantes para pensarmos as transformações de espaços
e lugares onde migrantes apontam como seus, construindo novas perspectivas de cidadania,
sociedade e vida. O trabalho é um dos muitos caminhos a seguir nessa sua trajetória que,
perpassando o econômico, compreende as subordinações da relação entre migrante e trabalho,
apreendendo sua busca por melhores condições. De cidadania. De sociedade. De vida.
De vida.
E essa vida tem de ser valorizada. Haitianas e haitianos migram em busca de sua vida
quando sua terra natal tem sido constantemente usurpada e não reconhecida. Ao mesmo tempo
que o direito de migrar não pode ser um problema, nem um caso crítico, nem a necessidade de
justificar uma crise. A mobilidade é legítima e desejante, independente de cor, raça ou classe
social. Ela tem de ser pensada como inerente a essa vida, que para alguns, infelizmente, torna-
se mais sofrida e mais desgastante. A vida não deve ser sofrida ou desgastante por conta da sua
cor, raça ou classe social.
Não deve. De dívida.
198

O que se viu na trajetória de haitianos no Brasil é o contrário. O preconceito contra


origem geográfica, cor, raça, e classe social são presentes em todas as esferas, públicas e
privadas, sociais ou não. A maioria deles sofre ou já sofreram desde o Haiti, no contraponto
entre negro e mulato, seja nesse país ou na República Dominicana, na diáspora para a Bahamas,
Guianas, Estados Unidos, entre outros países francófonos ou anglófonos. Muitos deles
acreditavam que o Brasil era um país sem preconceito, cuja sociedade em sua diversidade étnica
traria solidariedade, cidadania e a vida que eles buscam, e que é imanente à nossa condição.
As dificuldades da extrema burocratização do processo de permanência no país também
não deixam de ser reflexo de um preconceito em ampla escala que perdura desde as primeiras
políticas de imigração por todo o século XIX e são ratificadas no século XX, aliadas ao
personalismo e à pouca articulação entre instâncias, que favorecem práticas escusas e custosas,
no que migrantes como haitianos não podem nem querem custear.
Não podem. De poder. Não querem. De querer.
As relações de poder são desenhadas sempre sob a ótica de quem manda. Como
apontado, na linha de fuga a maniqueísmos, é notório que grupos minoritários também
constroem suas relações de poder, querem construí-las e produzem a partir de seus cotidianos
e práticas, inundados de muitas relações e heterotopias, em definição foucaultiana. Vê-se que
nas trajetórias de haitianos até o Brasil, as tentativas de se apropriarem de si mesmos e de suas
relações contrapunham com as práticas e discursos do Estado, do capital e diversos agentes que
contradisseram as práticas diásporas. O querer não é poder fica mais claro para eles. As
práticas e jeitos brasileiros também.
Nesse sentido, a amarração teórico-metodólogica utilizada nesta tese foi construída para
entender as contradições das práticas e discursos de diversos agentes, que vão além da
contradição capital-trabalho, que é efetiva, existe e é um dos vários agenciamentos identificados
entre estratégias migrantes. Mas não é o único que consegue explicar o processo político entre
agentes diversos.
Isso porque leva em conta eminentemente a rede de interação Estado e capital, que
sinaliza a estrutura do Estado a partir da lógica produtiva do sistema capitalista, sobretudo
quando sugere a migração e a legislação vigente pelo e para o trabalho, conivente com os
ditames do empresariado empregador de mão-de-obra migrante. Mas as interações entre os
interesses de grupos migrantes e a promoção de políticas efetivas, entendendo seus desejos e
suas ações no território, ficam subjugadas na análise pura do trabalho.
199

Redes sociais de migração, geometrias de poder e agenciamentos coexistem e tornam-


se práticas do agir-pensar-falar da diáspora haitiana no Brasil nesta proposta porque é a indução
metodológica que encadeou a reflexão dos múltiplos, do migrante, do espaço e dos
acontecimentos perpetrados nesse processo. Coletivos ou individuais, os agenciamentos
coexistem e interligam-se. Por não serem pensados de forma fragmentada, auxiliam a entender
as múltiplas faces da migração e suas contradições além capital-trabalho.
Agenciamentos que se apropriam de linguagens, transformam a linguagem do Estado,
do trabalho e do preconceito como tônicas aos migrantes e territorializam políticas também de
cunho preconceituoso e explorador, ao mesmo tempo em que entram em direto conflito com
agenciamentos apropriados pelos imigrantes, pelas suas linguagens e corpos, relações e vida.
O conflito se acentua quando na adversidade dos agenciamentos perpetrados na sua
chegada, e haitianos transformam sua diáspora em rede por todo o país. De norte a sul, migram
e fazem de suas estratégias mecanismos políticos de sobrevivência. O potencial de suas
diásporas atacou na ferida mais amarga e machucada entre agenciamentos da sociedade, do
Estado e entre migrantes de outras nacionalidades no Brasil, que foi a abertura concisa de uma
ampla discussão envolvendo múltiplas instâncias na mudança e no trato dos migrantes por parte
do Estado.
Claro que essa mudança não necessariamente se deu só por conta dos haitianos.
Conforme apontado, o cenário político no país e o envolvimento de grupos dentro e fora da
esfera pública partícipes diretamente dessas mudanças foram cruciais. Outros agenciamentos
coincidiram com a entrada neste século XXI de novas frentes migratórias. É nesse caminho que
o entendimento das geometrias de poder faz-se importante.
As geometrias de poder remetem ao espaço e às suas pluralidades, não necessariamente
materiais, físicas. Elas refletem os múltiplos tempos-espaços. A Caxias do Sul de Pascal é
diferente da Caxias do Sul dos proprietários da fábrica Marcopolo, assim como é diferente de
um morador que olhou com os olhos de medo no ônibus em direção à sua casa. São os mesmos
espaços, mas para cada um é um diferente acontecimento, uma diferente experiência.
Diferente. De ferir.
Fere ver a diferença. Frantz Fanon (2008) nos alertou sobre isso. No tratamento, na
assistência, no conservadorismo velado, mas ali arraigado, tingido de branco. Branco a cor da
paz, preto a cor da escuridão, das trevas. É velada a ferida, é velada a diferença. E fere. No
cotidiano, nos agenciamentos, nas geometrias, no poder.
200

Na ferida, histórica, a corrupção, a violência e a dependência. Na ferida, a diáspora, a


casa diáspora, a família diáspora, o baz, peyi blan, laján, raketé, sé nég. Ser negro. Ter um
projeto diáspora e lutar por ele e para o seu grupo. É quando as estratégias de mobilidade e
permanência promovem seus agenciamentos e suas geometrias.

***

As estratégias de mobilidade e permanência reúnem as práticas e os agenciamentos de


grupos migrantes na tentativa de construir suas relações no lugar em que chegam. Elas
coexistem com outras estratégias de mobilidade e permanência que são produzidas no bojo das
suas. O Estado tem suas estratégias, o mercado idem, sociedade do lugar em que chega também.
A questão que tem de se aprofundar e ser provocada é o porquê dessas estratégias serem opostas,
entrarem em conflito, tornando as de migrantes, principalmente migrantes pobres, inimigas às
demais.
Pensemos na articulação dessas estratégias a partir de agentes sociais que mais se
encontram com o imigrante, quer seja o Estado, o mercado, as entidades e organizações não
governamentais e o restante da sociedade civil.
201

MAPA 8: Níveis de relação entre agentes sociais selecionados.

Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

O Mapa 8 aponta as imbricações políticas das estratégias de mobilidade e permanência


em diferentes agentes. O imigrante, central na relação, possui um nível aberto, indicando
receptividade não só enquanto grupo minoritário, passivo e ativo à política migratória, mas
também elemento necessário à sua estratégia de mobilidade. Seus desejos e interesses são
postos conforme a atuação das demais estratégias.
Entretanto, o nível de relação dos demais não condiz com a abertura dos imigrantes. O
acolhimento se dá pelas entidades e organizações não-governamentais, no primeiro suporte ou
nas denúncias à violências de toda ordem contra os desequilíbrios dos demais níveis entre
agentes, como se viu na chegada de haitianos pela fronteira acreana, por exemplo.
O Estado, na análise geral, apesar de possuir redes de solidariedade muito próprias,
espaços de reivindicação e avanços graças às estratégias como as dos haitianos, ainda está na
ordem fechada neste. As demandas entregues por imigrantes para o Estado requerem mudanças
202

estruturais, mas que em muitos casos são mudanças simples que, apesar do diálogo,
amadurecem pouco ou muito pouco quando analisamos a efetivação das estratégias de
permanência migrantes.
A necessidade de absorver e compreender as estratégias migrantes requer níveis mais
complexos e profundos da relação, que ainda perfaz pelo personalismo e pelo interesse do
mercado e de quem está no poder. Veremos mais adiante essa questão.
O restante da sociedade civil possui uma relação pouco aberta, pois a partir das
estratégias de grupos migrantes, em grande medida, fica a mercê dos demais agentes, da mídia,
dos discursos e práticas que em muitas situações são escamoteadas pela herança social
construída em relação à migração no Brasil e/ou pelas faces do preconceito, como bem
definidas nas impressões desde o Acre até a região sul do Brasil, pelos haitianos.
O mercado possui um nível ilusório, porque apesar de supor tão aberto quanto ao nível
da relação dos imigrantes, restringe-os e promove a exploração e a submissão que os prende a
somente seu nível. Em conivência com o Estado, o mesmo se constroi em semelhante patamar
ilusório.
Todos os agentes aqui apresentados não estão fixos e estarão sempre nesses níveis de
relação. Seus agenciamentos mudam conforme a maturação ou não do nível de relação. Talvez
desses, o Estado é o que mais se modifica conforme suas práticas e discursos.
A absorção e porosidade das relações é indicada a cada círculo, que nas relações
apontadas nesta tese são ora fragmentadas, ora tangenciadas, formando o esquema do Mapa 9.
203

MAPA 9 – Níveis de interação entre agentes sociais selecionados

Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

No Mapa 9 é possível perceber a complexidade dos diferentes níveis de interação entre


agenciamentos. As entidades e organizações não governamentais conseguem de forma mais
clara a intersecção com imigrantes, ao ponto de se transformarem em atores fundamentais em
suas redes sociais, como foi visto em São Paulo, quando é a Missão Paz a procurada por
haitianos recém-chegados. Estado e mercado encostam, formando uma tangente dúbia, que
aproxima, mas ao mesmo tempo promove o choque e o conflito de interesses entre os
agenciamentos dos imigrantes. O restante da sociedade aqui se torna distante porque em grande
medida sua tangente e sua intersecção não têm escala de representação, isto é, ainda são baixas
suas interações.
Pode-se empreender que o ideal é uma política pública que abarque o imigrante em sua
complexidade, em sua multiplicidade e que consiga remover as contradições entre
agenciamentos, indicando constructos de cidadania, democracia e vida, amarrando suas
204

potencialidades, o desenvolvimento territorial e político que esses imigrantes promovem


constantemente em seus processos diaspóricos, em suas estratégias de mobilidade e de
permanência. Seria portanto um processo político pensado coletivamente entre agenciamentos,
em que o conflito não deixe de existir, que a discussão possa evoluir para propostas públicas de
inserção e promoção social, de transformação da dimensão do mundo entre sociedade civil e
Estado, em que a gestão das políticas migratórias contemple os desejos, os agenciamentos, as
estratégias migrantes dos imigrantes.

MAPA 10: Relação em que se constroi o encontro político entre agentes.

Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).

No Mapa 10 é possível perceber que existe uma articulação completa entre agentes no
mesmo patamar no nível da relação. Mas isso não indica que eles são uma unidade coesa, já
que a tangente passa por todos, e indica que o embate e o conflito promovem a amplificação de
suas questões e a promoção política. Embora pareça muitas vezes utópico, não é impossível
nem complexo demais para efetivar-se.
Essa efetivação não se dá a partir de sua criminalização, do devir problema, da ideia de
roubo e usurpação identitária, social, territorial. A mobilidade e a condição de migrante se
articulam produtivamente, e não representativamente. Tal como as possibilidades da produção
desejante, o ato de migrar é também um ato de resistência.
205

REFERÊNCIA

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: editora UFMG,
2007.

ALVAREZ, Rodrigo. Haiti, depois do inferno: memórias de um repórter no maior terremoto


do século. São Paulo: Editoras Globo, 2010.

ANDRADE, José H. Fischel de. O Brasil e a Organização Internacional para os refugiados


(1946-1952). Revista Brasileira de Política Internacional. V. 48. No 1: 2005, Pp. 60-96.

AZEVEDO, Celia Maria M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites
– século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

BAUMAN. Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BECKER, Olga Maria Schild. Aspectos teóricos da mobilidade espacial da população.


In.:Explorações geográficas. CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa;
CORREA, Roberto Lobato (Org.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

COHEN, Robin. Global diasporas : an introduction. Londres : University College London,


1997.

CUTTI, Dirceu. Migração, trabalho e cidadania. São Paulo: EDUC, 2015.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989.

______. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

______. Economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1998.

BROWN, Wendy. Walled states, waning sovereignty. Nova York: Zone Books, 2010.
206

CARNOY, Martin. Estado e Teoria política. 2a ed. Campinas: Papirus, 1988.

CHAVES JÚNIOR, Eliseu de Oliveira. Um olhar sobre o Haiti: refúgio e migração como
parte da história. Brasília: LGE Editora, 2008.

COGO, Denise; GORCZEVSK, Deisimer. Juventudes, subjetividades e intercessores em


experiências migratórias transnacionais. Polêm!ca, v. 11, n. 2 , abril/junho 2012. p. 140-159.

CONTIGUIBA, Geraldo Castro. Imigração haitiana para o Brasil: a relação entre trabalho
e processos migratórios. Dissertação de mestrado em História e Estudos Culturais. Porto
Velho: Fundação Universidade Federal de Rondônia, 2014.

DE CASTILHO, Ela W. Mudando o foco: do crime do tráfico de pessoas para o direito à


migração. In.: NOGUEIRA, C.; NOVAES, M. e BGNAMI, R. (Orgs.). Tráfico de pessoas:
reflexões para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2014.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2011.

______ e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de


Janeiro. Editora 34, 2010.

______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol 1 a 5. Rio de Janeiro. Editora 34,
1995, 2008.

ELIAS, Nobert; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia das relações


de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

______. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1993, v. II.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Duval. O Brasil e a migração internacional no século XXI – notas


introdutórias. Migração e trabalho. PRADO, Erlan José Peixoto do; COELHO, Renata
(Org.). Brasília. Ministério Público do Trabalho, 2015.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.


207

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.

______. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

______. Outros espaços. In.: Ditos e Escritos. Estética: literatura e pintura, música e
cinema. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2003.

______. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008

GAUDEMAR, Jean Paul de. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa:


Editorial Estampa, 1977.

GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento: olhares da migração gaúcha para Mato Grosso
de quem partiu e de quem ficou. Dourados, MS: UFGD, 2008.

GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense,


1985.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: Do “fim dos territórios” à


multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

HANDERSON, Joseph. Diaspora. As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no


Suriname e na Guiana Francesa. – Tese em Antropologia. 2015. Rio de Janeiro:
UFRJ/Museu Nacional, 2015.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2003.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006.

______. O novo imperialismo. São Paulo. Edições Loyola, 2003.


208

______. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas


sociedades capitalistas avançadas. Tradução Flávio Villaça. Espaço e debates. Nº 2 Vol. 1.
Rio de Janeiro: Cortez Editora, 1982. p. 6-34.

JAMES, C. L. R. Os Jacobinos negros: Touissant L’ Ouverture e a Revolução de São


Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010.

KOIFMAN, Fábio. Imigrante ideal: O Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no


Brasil (1941-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

LAGUERRE, Michel S. Haitians in United State. Encyclopedia of Diasporas. Yale: Yale


University, 2005.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2009.

______. Conversa com Henri Lefebvre. In.: Espaço e Debates. nº 30. Rio de Janeiro:
Cortez Editora, 1990.

______. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela


etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.

MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BAENINGER, Rosana. Trabalhadores Imigrantes:


haitianos e haitianas em Santa Catarina – SC. In.:VII Congreso de laAsociación Latino-
Americana de Población e XX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2016.

MAMED, L.; LIMA, E. O. de. Movimento de trabalhadores haitianos para o Brasil nos
últimos cinco anos: a rota de acesso pela Amazônia Sul Ocidental e o acampamento público
de imigrantes do Acre. In: BAENINGER, R. et al. (Org.). Imigração haitiana no Brasil.
Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

MARCELIN, Louis H. Haiti Laid Bare: Fragility, Sovereignty, and Delusional Recovery.
Disponível em
<http://www.rebatism.org/DOCUMENTS/Fragility%20and%20sovereignty.pdf>, 2010.

MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: Resistência, tráfico


negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Revista Novos estudos. Vol. 1. no.74, CEBRAP:
São Paulo. Não paginado. Disponível no link:
209

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002006000100007>, 2006.

MASSEY, Douglas. et. al. Return to Aztlan: the social process of international migration
from western Mexico. Los Angeles: University of California, 1987.

MASSEY, Doreen. Imaginando a globalização: geometrias de poder de tempo-espaço.


Revista Expressões Geográficas. Florianópolis: n. 3, 2007. p. 142-155.

______. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertand Brasil,
2008.

______. Um sentido Global do Lugar. In,: ARANTES, Antonio A (org.). O Espaço da


diferença. Campinas: Ed. Papirus, 2000.

MARTINS, Isis do Mar M. A cidade, o migrante, o espaço – o migrante nordestino na


cidade do rio de janeiro: suas estratégias e seus agenciamentos. Dissertação de mestrado em
Geografia. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo, 2013 (Livro I).

MATIJASCIC, Vanessa Braga. Haiti: uma história de instabilidade política. Revista Cenário
Internacional. V. 3, n. 1. Jul. Não paginado, 2009.

MCQUEEN, Greg. Brasil-Haiti, 101 histórias. Uma esperança. São Paulo: Grimpo Editorial,
2010.

MIGUEZ, Eduardo. Microhistoria, redes sociales e historia de lasmigraciones: ideas


sugestivas y Fuentes parcas. In.: BJERG, Maria; OTERRO, Hernán (Org.). Inmigración y
redes sociales em la Argentina moderna. Tandil: CEMLA, 1995.

MINISTERIO PUBLICO DO TRABALHO. Decisão de liminar em ação civil pública.


Processo Nº 0000384-81.2015.5.14.0402: 14ª REGIÃO, 2015.

MONTEIRO, Licio Caetano do Rego. O Programa Calha Norte. Redefinição das políticas de
segurança e defesa nas fronteiras internacionais da Amazônia Brasileira. Revista Brasileira
de Estudos Urbanos e Regionais (ANPUR), v. 13, n. 2, Nov. 2011, p. 117-133.
210

MONTENEGRO, Bruno Márcio Patrício. Missão de estabilização das Nações Unidas no


Haiti (2004-2011): problemas, progressos e desafios. 2013. Dissertação em Relações
Internacionais. UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas de Pós-graduação
em Relações Internacionais, São Paulo, 2013.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DAS MIGRAÇÕES. Diagnóstico regional sobre


migración haitiana. 2015. Disponívem em:
http://robuenosaires.iom.int/sites/default/files/publicaciones/Diagnostico_Regional.pdf.

PAIVA, Odair da Cruz. Migrações internacionais pós Guerra Mundial: a influência dos EUA
no controle e gestão dos deslocamentos populacionais nas décadas de 1940 a 1960. XIX
ANPUH/SP. São Paulo: 2008.

PATARRA, Neide Lopes. Brasil: país de imigração? Cadernos e-metrópole, nº 20. Rio de
Janeiro: UFRJ. Disponível em: <http://www.oestrangeiro-
dotorg.files.wordpress.com/2012/08/brasi-pais-de-imigrac3a7c3a30.-patarra.pdf>, 2012. p. 6-
18.

PERES, Elena Pájaro. “Proverbial Hospitalidade”? A Revista de Imigração e Colonização e o


discurso oficial sobre o imigrante (1945-1955). Revista Acervo. Rio de Janeiro, V. 10, No 2:
1997, p.85-98.

PIMENTEL, Marília; CONTIGUIBA, Geraldo Castro. Rondônia, um estado de fronteira na


amazônia ocidental brasileira: fluxos migratórios do passado e a imigração haitiana no início
do século XXI. In.: Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 8, n. 2,. Disponível em:
<http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/459/275>,
2015. p. 45-65.

POLANY, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro:


Compus, 2000.

POLYNE, Millery. From Douglass to Duvalier: U.S. African Americans, Haiti and Pan
Americanism, 1870–1964. Florida: University press Florida: 2010.

PÓVOA NETO, H. A criminalização das migrações na nova ordem internacional. Cruzando


fronteiras disciplinares. PÓVOA NETO, Hélion; FERREIRA, Ademir Pacelli (Org.). Rio de
Janeiro: REVAN, 2005.

______. Território e mobilidade: barreiras físicas como dispositivos de política migratória na


atualidade. In: NATAL, Jorge. (Org.). Território e planejamento: 40 anos de PUR/UFRJ.
Rio de Janeiro: IPPUR-UFRJ; Letra Capital, 2011.
211

PRADO, Erlan J. Peixoto do; COELHO, Renata (Orgs.). Migrações e trabalho. Brasília:
Ministério Público do Trabalho, 2015.

RAMELLA, Franco. Por um uso fuertedel concepto de red em los estúdios migratórios.
In.:BJERG,Maria; OTERRO, Hernán (Org.). Inmigración y redes sociales em la Argentina
moderna. Tandil: CEMLA, 1995.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto


Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2011.

ROSA, Renata de Melo. As contradições da política migratória brasileira contemporânea:


algumas reflexões a respeito das políticas públicas para imigrantes haitianos. In.:
VASCONCELOS, Ana Maria Bogales; BOTEGA, Tuíla (Orgs.). Política migratória e o
paradoxo da globalização. Porto Alegre: EdPUCRS, 2015.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

______. Natureza do espaço: Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2008.

______. O espaço do cidadão. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no século XXI.
Rio de Janeiro: Record, 2001.

SASSEN, Saskia. Expulsions: brutality and complexity in the global economy. Cambridge:
Harvard University Press, 2016.

______. Losing control? Sovereignty in an age of globalization. New York: Columbia


University Press, 1996.

______. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University
Press, 1991.

SAYAD, Abdelmalek. O migrante e os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998.


212

______. O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. In.:Travessia, nº


Especial. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios, 2000.

SCHMUELLERMANN, Paollo. Movimentos migratórios internacionais. dificuldades,


políticas e representação espacial: o movimento Haiti-Brasil. In.: XV Encontro Nacional de
Geógrafos. Belo Horizonte, 2012.

SCOTT, James. Los dominados y el arte de la resistência. Discursos ocultos. Mexico:


Ediciones Era, 2000.

SEIXAS, Raimundo Jorge Santos. Soberania hobbesiana e hospitalidade em Derrida:


estudo de caso da política migratória federal para o fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação
de mestrado em Ciências Sociais. Brasília: Centro Universitário UNIEURO, 2014.

SEITENFUS, Ricardo. Haiti: A soberania dos ditadores. Porto alegre: SoLivros, 1994.

SEYFERTH, Giralda ... [et al.]. Mundos em movimento: Ensaio sobre migrações. Santa
Maria: Ed. UFSM, 2007.

______. Imigração e (re) construção de identidades étnicas. Cruzando fronteiras


disciplinares. PÓVOA NETO, Hélion; FERREIRA, Ademir Pacelli (Org.). Rio de Janeiro:
REVAN, 2005.

______. Imigração e a questão racial no Brasil. REVISTA USP, São Paulo, n.53, 2002. p.
117-149

______. O Estado brasileiro e a imigração. Caminhos da migração. SANTOS, Miriam de


Oliveira; PETRUS, Regina; PÓVOA NETO, Helion; GOMES, Charles (Org.). Rio de
Janeiro. Léo Christiano Editorial, 2014.

______. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In.:


REPENSANDO o Estado Novo. PANDOLFI, Dulce (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Fundação
Getulio Vargas, 1999.

SILVA, Sidney Antonio da. Imigração e redes de acolhimento: o caso dos haitianos no Brasil.
Revista Brasileira de Estudos Populacionais, Belo Horizonte, v.34, n.1, 2017. p.99-117.

SINGER, André. Raízes sociais e ideológicas do Lulismo. In.: Caderno Novos Estudos. V.
85. CEBRAP, São Paulo, 2009. p. 83-102.
213

SINGER, Paul. Economia política da urbanização. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.

SOARES, Weber. A emigração valadarense à luz dos fundamentos teóricos da análise de


redes sociais. In.:Fronteiras Cruzadas. Etnicidade, gênero e redes sociais. MARTES, Ana
Cristina Braga; FLEISCHER, Soraya Resende (Org.). São Paulo: Paz e Terra, 2003.

SOUZA, Marcelo Lopes de, Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da


UFMG, 2010.

SPRANDEL, Márcia Anita. Migração e Crime: A Lei 6.815, de 1980. REMHU: Brasília,
2015, p. 145-168.

THOMAZ, Diana Zacca. A categoria do refugiado revisitada: transformações na soberania


estatal e o caso da migração haitiana para o Brasil. Dissertação de mestrado em Relações
Internacionais. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto
de Relações Internacionais, 2015.

TOLEDO SOUZA, Fabrício. A crise do refúgio e o refugiado como crise. Tese em Direito.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

UEBEL, Roberto Rodolfo Georg. Análise do perfil socioespacial das migrações


internacionais para o Rio Grande do Sul no início do século XXI: redes, atores e cenários
da imigração haitiana e senegalesa. Dissertação em Geografia. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2015.

VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana: a cooperação técnica como


instrumento de solidariedade e de ação diplomática / Wladimir Valler Filho. – Brasília :
FUNAG, 2007.

VIEIRA, Rosa. Itinerâncias e governo: a mobilidade haitiana no Brasil. Dissertação em


Antropoçogia. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, 2014.

WACQUANT, Loïc. Esclarecer o Habitus. In.: Revista Educação e Linguagem. nº 16.


2007.
214

WEIL, Simone. O enraizamento. Goiânia: Editora da Universidade de Católica de


Goiás, 2004.

WOODING, Bridget; MOSELEY-WILLIAMS, Richard. Needed but unwanted: Haitian


immigrants and their descendants in the Dominican Republic. Santo Domingo: CIIR,
2004.

Outras Referências

Vídeo:
SP Creole: a vida dos haitianos na capital paulista. Debora Komukai; José Magalhães; Karen
Bogdzevicius Kevin Damasio; Lucas Sposito; Pamela Passarella; Thaís Lopes. Orientação:
Heidy Vargas. Edição: Rodrigo de Britos/Alquimia Produções, 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=DEdea7zMeq8.

Músicas:
Haiti. Composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Álbum Tropicália 2. Wea, 1993.
Sampa. Composição de Caetano Veloso. Álbum Muito dentro da estrela azulada. CBD, 1978.
215
216

ANEXOS
217

ANEXO 1 – Imigrantes no Estado do Rio Grande do Sul


218

ANEXO 2 – Ficha de compromisso ético às entrevistas com haitianos no Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

CESSÃO GRATUÍTA DE DIREITOS DE DEPOIMENTO ORAL


E
COMPROMISSO ÉTICO DE NÃO IDENTIFICAÇÃO DO DEPOENTE

Pelo presente documento, declaro ceder à Pesquisadora Isis do Mar Marques


Martins, CPF:52682595200 e RG: 27679549-9, emitido pelo DETRAN/RJ, sem quaisquer
restrições quanto aos seus efeitos patrimoniais e financeiros, a plena propriedade e os
direitos autorais do depoimento de caráter histórico e documental que prestei à
pesquisadora/entrevistadora aqui referida, na cidade de São Paulo, Estado SP, em Março
de 2017, como subsídio à construção de Tese de Doutorado da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. A pesquisadora acima citada fica conseqüentemente autorizada a utilizar,
divulgar e publicar, para fins acadêmicos e culturais, o mencionado depoimento, no todo ou
em parte, editado ou não, com a ressalva de garantia, por parte dos referidos terceiros, da
integridade do seu conteúdo. A pesquisadora se compromete a preservar meu
depoimento no anonimato, identificando minha fala com nome fictício ou símbolo, não
relacionados à minha verdadeira identidade.

São Paulo, Março de 2017

_________________________________________

(assinatura do entrevistado/depoente)
219

ANEXO 3 – Declaração de solicitação de informações no Centro de Referência de Apoio


ao Imigrante, em São Paulo, São Paulo

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
INSTITUTO DE PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

SOLICITAÇÃO

Encaminho ao Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes/CRAI SP a solicitação para


visitar e obter informações e dados referentes à imigração haitiana no referido Centro,
localizado na Rua Japurá, 234/ São Paulo, para fins de pesquisa, cujo tema abordado é:
IMIGRAÇÃO HAITIANA PARA O BRASIL – TRABALHO E PERMANÊNCIA: ENTRE A
NOVA DIÁSPORA E ESTRATÉGIAS POLÍTICAS, pesquisa de Doutorado realizada pelo
Instituto de Planejamento Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O intuito da
solicitante é: visitação ao local, informações referentes à chegada de imigrantes haitianos pelo
Abrigo, entrevistas autorizadas e imagens.

Desde já, agradecendo a disponibilidade,

Isis do Mar Marques Martins


Geógrafa
Mestre em Ordenamento Urbano-Territorial
Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
220

ANEXO 4 – Declaração de solicitação de informações no Abrigo Chácara Aliança, em


Rio Branco - Acre
221

ANEXO 5 – Ficha – Roteiro de Entrevista para imigrantes haitianos em São Paulo

1. Idade 2. Profissão (Travail): 3. Estado civil (Marié ou


(Âge): unique):

4. Quando chegou ao Brasil


(Quand vous etés au Brésil)?

5. Como conseguiu visto para o Brasil? Conseguiu rápido?


(Vous Comment avez-vous visa au Brésil? Obtenu rapidement ?)

6. Chegou por qual Estado? (Vous, vous arrivé pour oú ?)

7. Experiências na travessia:
(Quel experience na travérsée?)

8. Qual era sua profissão no Haiti? O que faz agora?


(Quel vous avez travailler en Haiti? Et maintenant ?)

9. O que você acha dos serviços que foram prestados para você pelas autoridades
brasileiras (Polícia Federal, primeiros atendimentos de acolhida) durante sua chegada
ao Brasil?
(Qu’est ce pensez-vous des sevices au Brésil? Pour example, comment vous étiez
recevoir dans Police federale, étiez facile le services publiquê au Brésil ? )

10. O que você acha das condições de moradia no Brasil? Você gosta da casa em que você
vive hoje?
(Qu’est ce pensez-vous sur les conditions de habitation au Brésil ? vous aimé le maison
qui habitez-vous?)

11. Quais as formas de lazer que você encontrou/encontra no Brasil? São boas opções?
(Quel maniéres de lazer et culture vous decouvéurt au Brésil? Sont bien options ?)

12. Pretende ficar no Brasil? Por quê?


(Voulez-vous séjour au Brésil? Pourquoi?)
222

13. Pretende sair desta cidade? Por quê?


(Voulez-vous laisser au São Paulo? Pourquoi et pour quel ville?)

14. Sua família ficou no Haiti? Se tem família ou pessoas conhecidas no Haiti, qual o tipo
de relação e formas de comunicação? Manda Whatsapp, sms, e-mail, facebook,
outros?
(Sa famille séjour au Haiti? comment vous parlez sa famille ?)

15. Com relação à família e/ou conhecidos no Haiti, você manda dinheiro? Eles mandam
algo?
(Vous lenvoie l’argent pour sa famille? Ils envoies quelque chose ?)

16. Você pretende voltar para o Haiti?


(Vous volez retour à Haiti? Pourquoi ?)
223

ANEXO 6 – Roteiro de entrevista para instituições/Assistentes Sociais/Representantes

Nome Instituição: Tempo de atuação:

Desde quando a instituição/você atua na acolhida a imigrantes e refugiados?

Como se dá o encaminhamento para prestação de serviços básicos para esses


imigrantes (visto, carteira de trabalho, CPF etc)? Há diálogo para com esse imigrante
sobre seus direitos no Brasil?

Como se dá o encaminhamento para o mercado de trabalho? Existe uma triagem?

Em sua opinião, como estão hoje as condições de emprego e permanência para


imigrantes no Brasil?

No caso dos imigrantes haitianos, como se deu a chegada e os encaminhamentos para


a permanência no Brasil a partir da intensificação do fluxo para São Paulo?

Você acha que houve descaso em alguma instância para com os imigrantes haitianos
na chegada ao Brasil? Por quê?

Como está hoje, na sua opinião, o fluxo de haitianos para o Brasil?


224

ANEXO 7 – Ficha de identificação preenchida por imigrantes no Abrigo Chácara


Aliança, em Rio Branco - Acre
225

ANEXO 8 - Entrevista Pascal Chateleur, Presidente da Associação de Imigrantes


Haitianos em Caxias do Sul

O que te levou a pensou a pensar no Brasil? Por que você veio ao Brasil?

P.: Deixa eu vê... Cada pessoa vai viajar, vai no outro país, vai buscar a vida melhor. Eu também vim
aqui pra isso. Pra eu ficar bem no futuro, pra eu trabalhar.. Pra se depois eu quiser voltar, no meu país,
pra eu ficar bem... É pra isso... Eu tentei até outra alternativa [que não trabalhar] pra estudar aqui no
Brasil.Mas aqui no Brasil o pessoal não consegue estudar. Só que aqui o pessoal não vai estudar, que
aqui especial no Rio Grande do Sul, no Caxias do Sul. Ninguém não vai conseguir estudar, como? O
pessoal trabalha de seis de manhã até cinco e meia de tarde. Não tem mais condição, fui lá no
Universidade pra aprendê nada! Tem mais haitiano que jovem e eles não vem... Não vai ... não vai
ficar... Como todos as coisas vem difícil, tem que pagar, tem que ter tempo também pra estudar, pra
mais coisas... tem que fazer as coisas. Ele não tem tempo pra isso.. Aqui no Caxias do Sul só pessoa só,
a cidade só trabalhar. A pessoa [os imigrantes] não fez nada que trabalhar. Que non bom pra nós
haitiano, entendeu?

E como está o trabalho? Bom?

Bom... Aqui no Caxias do Sul eu trabalho numa empresa... Mais ou menos...Porque, sabe... Não tá
bom... Porque eu vi uma coisa no Brasil: pessoal trabalha mais ganhando pouco, entendeu? Pessoa
trabalha todo dia, todo dia, por mês, e eles ganha pouquinho. Não tá bom...

Além daqui de Caxias do Sul, você já morou em outros lugares?

Primeira vez que eu cheguei a morar num bairro que chamam de Madureira. Aqui no Sul mesmo...
Pertinho... Mas só morei aqui no Caxias do Sul. Eu até lá no fui no Jaci Paraná, até fiz ... Depois que eu
saí de lá do Jaci Paraná eu vim aqui reto...

E sua família?

Bom, pra família é a coisa mais difícil pra mim é a família lá, também... Só eu pensar: se nunca conseguir
trazer (com filha) famíllia, tem que voltar. Tem que ficar miserable, mas ficar bem com família. Porque:
226

eu ficar dois anos e meio aqui, sem não ver lá, não ver criança, não ver nada... todo... e eu to com
saudade de família, ela [a família] também. [voz um pouco apagada e embaçada, mais emotiva ao
tratar desse assunto] Bom, eu tentar fazer um alternatife pra trazer ela aqui eu fiz tudo... sans... que
certo, tudo cerrado. Só eu conversar com cônsul lá no Haiti... Eu fui lá conversar com ele, ele deu o
visto pra ela pra vir comigo, eles não aceitaram. Ele falou que tem que ter visto de permanência aqui.
Aqui eu não tenho visto de permanência. Eu já tenho dois anos e meio e não tenho visto aqui. Ele não
liberar nada da lista ainda, entendeu? Eu tive no intendente, ele tem fazer uma analização dos pessoas.
Depois de um mês an Dezembre. Ainda ele não fez nada mais. Ele não liberar nada a lista. Ninguém,
ninguém... Só todas as coisas mais difíceis, depois que non aceita, não aceitou porque ele deixou visto
pra ela, pra mim vir junto com ela... Eu tentar fazer uma coisa, passar lá por República Dominicana,
porque eu fui lá... até... Argentina. Eu conseguir passar lá no Argentina, consegui ir lá no Argentina.
Depois que eu fui lá no Argentina, bom... Todas os coisas, a lei de Argentina manda para as pessoas
fazer, para pessoa entrar no Argentina, eu fiz tudo isso. Depois eu cheguei lá no aeroporto de Buenos
Aires. Ele impedir... “Não vai entrar!”. Eu pedi por quê? Ele diz: “Para nada! Você não tem condição
pra entrar”. Tem que deixar uma explicação pra mim, como eu não tenho condição? “Você tem que
ter um letter... um convite lá no Argentina”. Eu tenho um letter convite lá no Argentina, uma pessoa lá
no Argentina fazer para mim lá. E eu falou pra ela legalizar lá no Federal, para ela fazer legalização,
com esse papel lá também. Eu fez tudo isso, entendeu? Aqui , a lei do Argentina falou assim: cada um...
quase mais países, tem que entrar e não precisa visto para entrar no Argentina. Tem que ter o letter,
o convite para entrar, só. Eu fiz tudo isso e depois eu cheguei lá e me falaram não vai entrar. Depois a
pessoa manda de novo eu voltar lá no Haiti. Eu voltar de novo lá no Haiti, eu deixar ela com filha lá. E
vim aqui sozinho. Esse caso que teve, esse problema no Haiti, eu vou ir lá, pra um haitiano que teve
problema na cabeça, ele tem um ano e meia, um ano e seis meses no Haiti. Ele tá louco da cabeça. Só
eu tentar, tentar, tentar, ele vai vir. Eu levar ele, e fui lá também pra tentar trazer ela, depois eu levar
ele. Bom, todas as coisas eu fiz, tudo cerrado, nada não legalizou.

E o que você pensa ... Ficar aqui e esperar o visto de permanência ou voltar para o Haiti?

Bom. Eu vou esperar, eu não sei quando vai sair... Não sei... Só ontem eu falou com ela (a esposa), ela
falou não sente bem, não tá bem, ela pensa mais sei lá, como é muito fraco, ela começa [a ficar] fraco,
fraco, fraco... Não sei... Ela falou uma coisa que tem que vir. Eu disse como você vai vir, eu agora não
tenho nada de dinheiro. Todo dinheiro eu já perdi. Todo dinheiro agora eu não tenho nada de dinheiro
pra fazer nada. Só eu não sei o que eu falo pra ela (certo nervosismo na forma de falar, ao mesmo
tempo um riso torto)porque ela quer vir, porque ela nunca mora sozinha, ela não sente bem.
227

E você vai conseguir [trazê-la], eu fico pensando se é melhor ela vir para cá. O que você acha?

É melhor ela vir pra cá. Porque é melhor: porque se eu trabalhar e ela trabalhar, tem que ter uma vida
melhor. Se depois uns dois ou três anos atrás [após] nós pensamos pra voltar, vai ter um pouquinho
pra viver lá. Pra conseguir, pra fazer um negócio assim, entendeu? Mas se só eu trabalhar e trabalhar
pra pagar aqui, pra comer aqui, pra mandar pra lá pra comer pra lá, vai passar todos os tempo
miserable... Vai ter nada.

E você tem alguém da família ou algum amigo que está no Brasil? Ou em outro lugar (República
Dominicana)?

Eu tenho um mais ou menos cunhado que tá aqui. Meu cunhado que ficou lá fora [de casa ele tá junto
aqui comigo. Depois eu fui procurar trabalho para ele. Bom, eu não acho trabalho para ele... Eu fui
procurar na Marcopolo, deu e ele foi lá trabalhar.

Como surgiu a ideia da Associação dos Imigrantes Haitianos em Caxias do Sul?

Bom, agora a Associação começar muito bem. Porque só esse problema que eu tentei com a
Associação, porque eu também... Eu não sei pra outra pessoa, eu sou Presidente da Associação dos
Imigrantes Haitianos . Mas pra mim, só eu tenho certeza eu vou fazer um trabalho voluntário. Ninguém
não pagar eu. Eu não sei, se no futuro , tem outro lugar que vai dizer bom, eu vou pensar pra pascal
pra deixar um pouquinho e coisa pra passar todos os meses. Eu não sei. Na Comissão da Associação,
que tem mais pessoas pra passar aqui se ele fica na comissão da Associação tem que ganhar dinheiro,
como você vai ganhar dinheiro? Depois, tem que começar a ficar fora, depois no último domingo de
todo mês, nós vamos para o Diamantino [Salão Comunitário do Bairro Diamantino, em Caxias do Sul].
É bem legal. Agora a Associação começou muito melhor, e vai ficar bem.

O que você tem feito na Associação?

Bom, só.. essa coisa que a gente tem que fazer para esse povo haitiano aqui. Só a pessoa que chega e
não tinha com quem trabalhar, nós vai atrás de trabalho para ele, eu vou buscar trabalho para ele,
buscar casa para ele morar, esse coisa que ele não tem: colchão, coisa... mandar para outras pessoas
228

como podem ajudar. Nós fazer renovação do passaporte para ele também, todas as coisas assim nós
fez. Se ele tem algum problema lá no emprego dele, nós vamos lá conversar com o pessoal, obyen free
(para liberar) e como chama ele lá na justiça também.

A Associação foi criada em 2014?

Sim, 2014.

Tem chegado mais haitianos em Caxias do Sul de 2014 para cá? Vocês tem percebido? Vocês tem uma
informação de quanto chegaram?

Sim. Chega mais. Até depois de 2014. Agora em Caxias do Sul tem mais ou menos mil e quinhentos
haitianos.
229

ANEXO 9 - Entrevista com Maria, Responsável pelo acolhimento de haitianos na Igreja


São Pedro – cidade de Encantado, Rio Grande do Sul.

Inserção dos Haitianos em Encantado

Na minha opinião, e olhando para a realidade da minha comunidade que viste ser pequena, a inserção
dos haitianos aqui, se deu de maneira até tranquila. A comunidade de certa forma foi preparada para
a chegada do primeiro grupo e usamos muito o fator histórico em que a comunidade foi formada por
imigrantes italianos e que agora a história se repete com a chegada dos haitianos e dominicanos. É
claro que houve algum comentário preconceituoso mas foi mínimo se compararmos com a aceitação,
a ajuda através de doações e a simpatia por eles. Colaborou também o fato deles serem extremamente
educados, simpáticos, trabalhadores pois numa comunidade de interior, estas coisas ainda tem
bastante valor.

Condição de trabalho e moradia dos migrantes

Percebo que do lado deles, nem tudo é perfeito: se queixam bastante do trabalho que é pesado,
desgastante e mal remunerado; o preço dos aluguéis que de certa forma tiveram um aumento, a falta
de imóveis fazendo com que tenham que residir em um bairro de periferia com condições mínimas e
precárias, falta de vagas nas creches da cidade, a desilusão com os salários que acreditavam (e foram
iludidos nisso) fosse em dólar e mais alto, a saudade do Haiti e dos familiares...

O papel dos scalabrinianos

Nós temos dificuldade de reuni-los e fazer com que convivam no grupo e por isso estão dispersos. A
festa do “Dia da Bandeira do Haiti” que fizemos neste ano pela 2ª vez ajuda mas precisávamos mais.
As coisas não são tão simples pra eles. Nos como pastoral de igreja fazemos o que podemos com aulas
de português, doação de roupas, cobertores, móveis, enxovais para os bebês que nascem, auxílio no
230

encaminhamento de documentos, enfim tudo que podemos e principalmente um carinho, um abraço,


uma escuta amiga que muitas vezes é mais importante que todas as outras coisas.

Apoio do poder público

Sentimos falta do apoio e parceria do poder público que nunca nos ajudou e também da principal
empresa que os trouxe e emprega. Mas enfim, vemos que a presença deles (e também dos quase 100
dominicanos) nos desafia, mas enriquece enquanto pessoas humanas que buscam viver um
compromisso vocacional do Batismo no serviço aos migrantes.
231

ANEXO 10 - Relatório Haitianos Brasiléia – Acre

Este relatório tem como objetivo expor nossa experiência vivida


junto aos haitianos na cidade de Brasiléia, estado Acre nos dias 09 e
10 de março de 2013 quando os visitamos a serviço do Serviço
Pastoral do Migrante – SPM – Arquidiocese Porto Velho e Comissão
Pastoral da Terra -CPT-RO. Essa viagem teve, também, como
objetivo, proporcionar uma visão mais ampla quanto à migração
haitiana para o município de Porto Velho, capital do estado de
Rondônia, onde muitos residem e para onde muitos desejam
prosseguir viagem.

Já é fato conhecido a migração haitiana para a cidade de Porto Velho, iniciada regularmente
em março de 2011, quando um grupo de 105 pessoas chegou à cidade. Na realidade este é o segundo
grupo, pois o primeiro, composto por cinco pessoas chegou à cidade em fevereiro do mesmo ano, um
mês antes dos 105. Desde então, esse fluxo migratório tem sido perene, ao mesmo tempo em que a
cidade se tornou uma escala para outros que seguem para as demais unidades da federação, como
São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia. Até
o presente, 5550 haitianos gozam do status de Visto Permanente por Razões Humanitárias, com
duração de cinco anos, podendo ser renovável. Como veremos nas imagens abaixo, esse fluxo
migratório perfaz um percurso longo até alcançar o Brasil, após semanas ou mesmo meses de viagem
até poderem, finalmente, seguir viagem para o destino que almejou na partida.

Em Brasileia, no Acre, os haitianos são mantidos na política de retenção até liberação para
seguirem adiante. Enquanto são mantidos retidos, os haitianos são dirigidos para uma instalação, um
galpão de um antigo clube da cidade. As disposições das condições físicas das instalações são as
seguintes: um terreno de aproximadamente 5.000m², um galpão coberto, mas totalmente aberto,
assemelhando-se a uma quadra de esportes, quatro sanitários, sem chuveiros, poucas condições de
higiene, com iluminação elétrica, árvores (jambeiros), duas caixas d’água de 2.000 litros cada. A
vegetação é complementada pela cerca viva e por bastante capim que cobre todo o restante do
terreno. A estrutura leva o nome de um clube local e está locada, custeada pelo erário da nação, como
parte da política de imigração. São servidos um desjejum, com café com leite e pão com margarina e
duas refeições, ao meio dia e às 19:00.

Ficam neste local, desde o momento que entram no Brasil, mulheres, homens, adultos e
crianças. Além dos haitianos encontramos outros imigrantes, um de Bangladesh e três da República
Dominicana. Uma dominicana encontra-se grávida. A entrada dos haitianos no Brasil se dá na região
232

fronteiriça com a Bolívia e Peru, em geral de táxi dos respectivos países, a um preço de até 100 dólares
estadunidenses por pessoa. No percurso da viagem até o Brasil, os haitianos cruzam diferentes países
latino-americanos, num período que pode durar até quatro meses até alcançarem o objetivo.

No momento de nossa visita, encontramos no local um contingente de 508 pessoas


concentradas no galpão acima descrito, dispostas nas seguintes categorias: 1) 435 homens; 2) 60
mulheres; 3) 13 crianças; 4) 06 mulheres estão grávidas.

De acordo com as anotações realizadas por um haitiano que está na cidade desde outubro de
2012, deram entrada no local 742 haitianos entre 12 de fevereiro e 08 de março de 2013, ou seja, uma
média entre 25 e 30 pessoas diariamente, todos de maneira indocumentada e, dessa forma, ficam
retidos, impedidos de seguirem adiante pelo país por não disporem de documentação. Uma vez na
cidade, sua permanência pode durar de duas semanas a dois ou três meses, de acordo com as
condições financeiras de cada um ou da rapidez ou lentidão dos órgãos estatais nacionais na emissão
de documentos. Após a legalização documental, encontram-se livres para seguirem adiante. Até lá,
“aguardam”, retidos, concentrados num lugar que o quadro nos remete à ideia de “uma senzala em
pleno século XXI”.

A documentação é realizada da seguinte maneira: ao entrar na cidade, em geral trazidos por


taxistas peruanos e bolivianos, vão direto para o galpão e posteriormente buscam a sede da Polícia
Federal para darem entrada no pedido de Refúgio, receberem um carimbo no Passaporte, constando
a entrada no país, além de inscrição para obtenção do Cadastro de Pessoa Física, o CPF. Há uma
determinação na rodoviária local que os haitianos não podem embarcar sem portar um CPF. Quando
liberados dos trâmites burocráticos, têm permissão para seguirem adiante, primeiramente até Rio
Branco, para obterem a Carteira de Trabalho e, dessa forma, seguirem para outras cidades mais ao sul
do país.

ANEXOS
233

Anexo 1: Mapa da rota migratória dos haitianos para o Brasil

Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/01/20/brasil-os-desafios-da-lei-de-migracoes/
234

Anexo 2: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa à direita de quem entra.

Foto: Ir. Ozânia


235

Anexo 3: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa, onde se estendem as roupas lavadas e tomam banho de caneca a céu aberto.

Foto: Ir. Ozânia

Anexo 4: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa, um dos portões de entrada e onde se depositam o lixo.

Foto: Ir. Ozânia


236

Anexo 5: Panorama geral das condições de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área interna onde
se alimentam e dormem.

Foto: Ir. Ozânia, 09/02/2013.

Anexo 6: Panorama geral das condições de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área interna onde
se alimentam e dormem.

Foto: Ir. Ozânia, 09/02/2013.


237

Anexo 7: Fila para receberem uma marmita na hora da janta.

Foto: Ir. Ozânia, 09/02/2013.

Nota dos colaboradores

Que o nosso trabalho seja elemento de reflexão e crítica, que isso sirva de reflexão sobre a
política brasileira sobre migração e imigração no sentido de que se criem novos métodos para lidar
com seres humanos, em condições necessárias de respeito à sua dignidade de acordo com o que está
inscrito na Constituição Federal. Que seja, acima de tudo, melhor para as pessoas envolvidas nesse
processo, especialmente os que migram e têm que passar por momentos de abjeção. Para uma política
nova de migração e imigração, por mais respeito à condição humana, independente de sua origem
étnica ou cultural. Isso é o que almejamos, ao escrevermos o presente relatório.

Quando da nossa estada em Brasileia junto aos haitianos, conversamos com muitos deles
sobre variados temas e o que pudemos constatar é a constância do fator trabalho nesse processo
migratório, o que denota uma migração de múltiplas facetas, caracterizada predominantemente pela
noção de repulsão da origem devido às condições sociais, políticas, econômicas e geográficas. É
238

necessário que tenhamos em consideração que o Haiti é uma ilha de pouco mais de 27 mil Km², com
cerca de 10 milhões de pessoas, bilíngue, com predominância do crioulo na fala e do francês na escrita.
Os motivos da migração desse povo não pode e nem deve ser tomado apenas na perspectiva do
fenômeno em si mesmo, ou seja, de maneira acrítica e sem considerar a sua história.

A categoria sociológica haitiano deve ser tomada com desconfiança antropológica, pois ser
haitiano do norte e do sul têm suas diferenças, assim como entre os do campo com os da cidade, de
classes sociais diferentes, de religiões diferentes, como especificidades linguísticas. O que de
generalidade encontramos é a migração para trabalho e estudos entre os haitianos, o que denota que
não vieram apenas para trabalhar, mas também para se profissionalizarem no Brasil. Diante desse
quadro, temos a expectativa de que este breve relatório sirva como uma reflexão sobre o que,
filosoficamente, poderíamos chamar de a política que deveria ser contraposta com a política como ela
é.

O Brasil ascendeu economicamente na perspectiva da produção de riqueza e não em sua


distribuição, é uma das sete maiores economias do mundo. Sua importância traz consequências
positivas e negativas em relação a diferentes fatores. A migração e a imigração formam uma
problemática para o Estado brasileiro, que é desenvolver uma política sobre migração em seus
múltiplos aspectos. A imigração é um deles e, no caso dos haitianos, encontramos trabalhos que
contribuíram e contribuem para essas pessoas, como é o caso da Resolução 97/2012 concedendo Visto
por Razões Humanitárias, uma inovação, pela primeira vez neste país se abre essa concessão, para os
haitianos, exclusivamente, mas por outro lado há uma lacuna a ser preenchida. No entanto, é pouco,
a referida resolução limita cem vistos por mês, enquanto na porta do Consulado brasileiro no Haiti
diariamente centenas de haitianos pleiteando visto para o Brasil. Além disso, não há uma política de
Estado que privilegie os direitos humanos nesse processo migratório.

No caso de Porto Velho, ao que sabemos, não há uma política de inserção social dos imigrantes
de uma maneira deliberada, clara, por parte do governo estadual e municipal. Em relação à esfera
federal as informações e os serviços são mais conhecidos e utilizados sem muitas burocracias, sem um
política bem definida, como nos referimos acima. A ação do serviço de assistência social local
apresenta limitações em alguns aspectos, refletindo uma faceta de uma realidade cotidiana para boa
parte da população da cidade e do estado. A ação do Estado em Porto Velho que até o presente tem
se mostrado mais produtiva é no campo da orientação sobre trabalho, com várias ressalvas, como, por
exemplo, a ausência de profissionais que tenham conhecimento especializado, para lidar com os
imigrantes, dentre outros problemas que não cabe discussão, neste momento.
239

Desse modo, o que vimos e registramos em Brasileia se constitui, no mínimo, uma vergonha
nacional para um país que almeja um lugar de destaque na ONU. Entendemos as razões políticas de se
reter o imigrante numa perspectiva da ideologia da segurança nacional, mas não aceitamos e nem
compactuamos com as condições de subsistência a que são submetidos os haitianos, tanto nessa
cidade quanto em Tabatinga, no estado do Amazonas. São várias as falhas e faltas do Estado em
relação à sua política de imigração, percebe-se claramente o despreparo profissional de seu quadro
de funcionários, excetuando alguns casos. Podemos fazer pelo menos três afirmações, que os haitianos
são imigrantes para trabalho e estudos e o Estado brasileiro precisa melhorar sua política de imigração.

O nosso trabalho contempla pelo menos três perspectivas, a ajuda humanitária – que de certa
forma é o nosso exercício do que se pode chamar de cidadania –, a pesquisa científica e a crítica social.
A viagem que fizemos a Brasileia é a terceira desde que se iniciou a migração haitiana, tendo outras
duas acontecido em 10 a 12 de janeiro e 10 e 11 de novembro, ambos de 2012. Desde a chegada do
primeiro grande grupo de haitianos a Porto Velho, em 2011, o SPM e a CPT esteveram presente e tem,
desde então, acompanhado sua trajetória e realizado a ajuda humanitária.

O SPM é, também, parceiro da Universidade Federal de Rondônia – Unir, em um projeto de


extensão com os haitianos. Acreditamos que temos dado a nossa contribuição, tanto para os
imigrantes, com quem mantemos contato frequente, quanto para uma movimentação em direção de
uma nova política de imigração brasileira.

Equipe elaboradora do relatório:

Ir. Orila MariaTravessini -mscs – Arquidiocese Porto Velho

Ir. Ozânia mscs – Arquidiocese Porto Velho

Prof. Esp. Geraldo Castro Cotinguiba (Cientista Social, pesquisador em Antropologia e colaborador do
SPM)

Prof.ª Dra. Marília Pimentel (Prof.ª da Universidade Federal de Rondônia e colaboradora do SPM)

Porto Velho, 26 de março de 2013.


240

ANEXO 11 – Relatórios produzidos pela Missão Paz


241
242

Perfil dos haitianos acolhidos


na Missão Paz de janeiro à
julho de 2015

São Paulo - SP
243

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS

1-) INTRODUÇÃO

1.1 Objetivos

1.2 Justificativa

1.3 Metodologia

1.4 Estrutura do Relatório

EIXOS TEMÁTICOS

A- SEXO:

B- IDADE

C- SITUAÇÃO MIGRATÓRIA

D- TRABALHO

E- PROFISSÃO:

F- TEMPO DE DESLOCAMENTO PARA SÃO PAULO

RESULTADOS E CONCLUSÕES
244

LISTA DE FIGURAS

Gráfico 1: Haitianos divididos por sexo

Tabela 1. Imigrantes Haitianos por sexo

Tabela 2: Haitianos mais jovens e mais velhos

Tabela 3: Média de idade dos haitianos analisados

Gráfico 2: Haitianos por idade

Gráfico 3. Situação migratória dos Haitianos

Tabela 4. Número de Haitiano e situação migratória

Tabela 5. Local de pedido dos vistos

Tabela 6. Haitianos que chegaram à Missão Paz com CTPS

Gráfico 4. Homens que chegaram à Missão Paz com CTPS

Tabela 7. Haitianas que chegaram à Missão Paz com CTPS

Gráfico 5. Mulheres que chegaram à Missão Paz com CTPS

Tabela 8. Profissão das Mulheres Haitianas

Gráfico 6. Profissão das Mulheres Haitianas

Tabela 9. Profissão dos Homens Haitianos

Gráfico 7. Profissão dos Homens Haitianos

Tabela 10. Tempo Médio de chegada dos haitianos até São Paulo.

Tabela 11. Dias que necessários para chegar a São Paulo

Gráfico 8. Tempo de deslocamento dos haitianos até São Paulo


245

1-) INTRODUÇÃO

A Missão Paz, por meio do Centro Pastoral de Mediação para Migrantes (CPMM), atende
todos os dias dezenas de imigrantes das mais variadas partes do mundo. Dentre eles, se destacam os
haitianos, grupo migratório que tem chegado ao país principalmente por causa do terremoto que
devastou o Haiti em 2010. Dentre as causas que motivam esses fluxos migratórios, estão as mais
diversas tais como a busca de melhores condições de vida por meio de emprego ou estudo, fuga de
uma situação de pobreza extrema e destruição depois do terremoto. Nesse sentido, é importante
conhecer o perfil dos haitianos que foram atendidos pela Missão Paz até julho de 2015, momento em
que foi transferida a acolhida emergencial da Paróquia Nossa Senhora da Paz (visto seu caráter
estritamente emergencial) para Santo Amaro, em espaço disponibilizado pela Arquidiocese de São
Paulo com o apoio da Prefeitura Municipal. A acolhida emergencial da Missão Paz visava acolher da
melhor forma possível aqueles haitianos que chegavam a São Paulo e não possuíam local para dormir
e/ou não podiam se dirigir para albergues públicos. O cadastro para a acolhida emergencial era
realizado junto às Assistentes Sociais e constava de cópia de documento de identificação e algumas
perguntas feitas pelas assistentes para saber a realidade dessa pessoa tais como data em que chegou
ao Brasil, data em que chegou a São Paulo, se já possuía Carteira de Trabalho e Previdência Social
(CTPS) ao chegar a São Paulo, se possuía algum problema de saúde.

A partir dessas informações, foi possível obter um enorme número de dados que permitiram
traçar esse perfil sobre os imigrantes haitianos que participaram do atendimento emergencial da
Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Deve-se reforçar que a população que precisou de
atendimento pessoal da Missão Paz chegou a São Paulo em situação de extrema vulnerabilidade
social e econômica. Assim, esse relatório tem como meta maior conhecer o perfil dos haitianos mais
vulneráveis que foram atendidos pela Missão Paz. A tabulação e análise de dados de 620 haitianos
permitem entender um pouco mais essa população, o que possibilita atender melhor esse fluxo
migratório e contribui para a construção e implementação de políticas públicas para a população
migrante de modo geral e para essa população específica que tem sido um grande fluxo migratório
para o país nos últimos 5 anos.

Considerando a origem dos dados que são os atendimentos realizados pelas Assistentes
Sociais aos imigrantes, é importante ressaltar que alguns destes estavam incompletos ou porque o
246

imigrante pode ter respondido alguma pergunta de maneira incompleta ou com informações que
não condizem com a realidade. Quando erros claros foram percebidos (tais como a pessoa afirmar
que chegou ao país em uma data posterior à data de sua solicitação de refúgio75) e havia
possibilidade de correção, esses foram corrigidos. Assim esse estudo é exploratório a partir de dados
primário cuja principal função era documentar um atendimento e não realizar uma pesquisa em si.

1.1 Objetivos
O objetivo geral dessa pesquisa é conhecer o perfil dos imigrantes haitianos que receberam
atendimento emergencial na Missão Paz entre janeiro e julho de 2015.

Os objetivos específicos da pesquisa incluem:

a) Obter mais informações sobre a migração haitiana para São Paulo, incluindo categorias
de gênero, idade, tempo médio de deslocamento e profissão.
b) Divulgar dados primários para a população civil e para a academia de modo geral a fim
de motivar novas pesquisas e estudos sobre a migração haitiana para o Brasil e para São
Paulo.
c) Contribuir para a construção e a implementação de políticas públicas nacionais,
estaduais e municipais para os imigrantes em geral e para a população haitiana em
particular.
d) Contribuir para a discussão sobre a situação migratória da população haitiana no Brasil.
e) Informar a população brasileira, a mídia e a academia sobre a imigração haitiana em
São Paulo.

1.2 Justificativa
Esse trabalho pretende contribuir com o conhecimento já existente sobre a população
imigrante haitiana em São Paulo. Esse é um tema muito importante por esse ser atualmente um dos
maiores fluxos imigratórios para o país. Além disso, há uma carência de respostas para essa
população como pôde ser visto na falta de coordenação entre os governos do Acre e de São Paulo
em maio de 2015, quando da ocasião do envio de haitianos de Rio Branco para São Paulo. Entender

75
Refúgio é uma proteção internacional criada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Status de Refugiados
de 1951. Essa classifica um refugiado como uma pessoa que tenha saído de seu país de origem ou de residência
habitual por causa de um fundado temor de perseguição por causa de sua nacionalidade, raça, religião, opinião
política ou pertencimento ao grupo social. No Brasil, a legislação que trata de refúgio é a lei 9474/1997, que
dentre outras definições demanda que a pessoa esteja em território nacional para solicitar refúgio.
247

quem são essas pessoas, como elas chegam ao país e qual o tempo médio de deslocamento delas
entre o Acre e São Paulo ajudam a pensar maneiras de recebê-las melhor, de integrá-las à sociedade
brasileira para que elas possam contribuir positivamente para o crescimento e o desenvolvimento do
Brasil.

1.3 Metodologia
Foram analisadas, catalogadas e tabeladas as informações de 620 haitianos que foram
atendidos no acolhimento emergencial da Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Os documentos
analisados foram cópias dos documentos de identificação dos imigrantes e respostas desses
imigrantes às perguntas das assistentes sociais (informações anotadas no verso de cada ficha). Além
disso, foram observadas as fichas de acompanhamento de atendimento das assistentes sociais que
continham as datas em que o atendimento foi realizado. Dos documentos dos imigrantes é possível
obter uma série de informações tais como nome, sexo, idade, se pediu refúgio ou não, profissão,
data em que solicitou refúgio. Algumas informações incompletas, como profissão em alguns casos,
foram completadas de acordo com informações fornecidas por esses imigrantes no momento de seu
cadastro junto à Missão Paz. Maiores explicações sobre os dados e as análises serão fornecidos em
cada seção específica do relatório.

1.4 Estrutura do Relatório


Esse relatório está dividido em seções que abordam características específicas dessas
migrações. São elas: Sexo, Idade, Situação Migratória no Brasil, Trabalho, Profissão, Chegada ao Brasil
e Tempo de Deslocamento para São Paulo. Em cada seção, são apresentadas pequenas conclusões e
comentários sobre os dados, as análises, gráficos e tabelas que ajudam a visualizar melhor os dados
apresentados. Além disso, são propostos ao final alguns resultados e conclusões do relatório a partir
da análise dos dados primários. Nessa seção, também são evidenciadas algumas perguntas que
podem motivar futuras pesquisas e trabalhos sobre a imigração haitiana no Brasil e em São Paulo.
248

EIXOS TEMÁTICOS

A- SEXO:

Apesar de se observar a chegada de mulheres haitianas, o fluxo migratório do Haiti para o Brasil
ainda é predominantemente masculino. Nesse sentido, os dados podem levar a novas perguntas tais
como: o que tem motivado a vinda de mulheres haitianas para o Brasil? Por que o fluxo continua
predominantemente masculino? Os dados mostram que seria exagero falar em uma feminização da
imigração haitiana para o Brasil. Contudo, a chegada de mulheres demanda políticas públicas
especializadas para essa população. Dessa maneira, não se pode tratar o fluxo haitiano apenas como
masculino e especial atenção deve ser devotada a essas mulheres:

Tabela 1. Imigrantes Haitianos por


sexo haitianos por sexo
Imigrantes
mulheres 3,87% 24
homens 96,13% 596
Total 100% 620

Porcentagem de Homens e
Mulheres Imigrantes
haitianos

mulheres
homens

Gráfico 1: Haitianos divididos por sexo

B- IDADE
249

Para a mensuração da idade, foi considerada a idade com que os haitianos e haitianas chegaram
ao Brasil, ou seja, a idade que eles possuíam na data de chegada ao Brasil. Dessa forma, algumas
informações precisam ser destacadas: importante observar que há haitianos que chegam com
apenas 18 anos no país e que os mais velhos possuem 65 anos. Nesse sentido, é necessário pensar
políticas públicas que levem em consideração as necessidades da população mais jovem que
envolvem capacitação e também as necessidades dos mais velhos que não terão tantas chances no
mercado de trabalho brasileiro, principalmente em atividades que demandam maiores esforços
físicos tais como agricultura e construção civil.

Deve-se ressaltar ainda que a idade média da população haitiana é de 33 anos e 47 dias, sendo a
média de idade das mulheres de 33 anos e 6 meses e dos homens 32 anos. Essa é uma população em
idade extremamente produtiva para o mercado de trabalho. Dessa forma, esse é um fluxo migratório
com grande potencial para contribuir para a economia e o desenvolvimento dos países de destino.
Ao mesmo tempo, essa é uma idade em que as pessoas ficam pouco doentes, de modo que
demandam menos serviços de saúde e assistência social (se estiverem trabalhando). A migração
dessa população em idade extremamente produtiva pode estar ligada com uma estratégia de
sobrevivência da família no país de origem que, ao enviar a pessoa com maior possibilidade de
encontrar emprego e trabalhar, estará garantindo apoio para a família por meio do envio de
remessas.

As tabelas e o gráfico apresentam os dados sobre idade sistematizados:

Tabela 2: Haitianos mais jovens e mais Tabela 3: Média de idade dos haitianos
velhos analisados
Mais
mais velho
jovem média de idade

geral 18 65 geral 33,129 33 anos e 47 dias

homem 18 65 homens 32

mulher 22 45 mulheres 33,5 33 anos e 6 meses


250

40

35

30
Número de pessoas

25

20
número de homens

15 número de mulheres

10

0
18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64
Idade

Gráfico 2: Haitianos por idade

C- SITUAÇÃO MIGRATÓRIA

É interessante observar que a população haitiana se insere nas lógicas existentes para conseguir
regularizar sua situação migratória. Pode-se observar claramente que um pequeno número de
haitianos chega com visto humanitário (apenas 18). Dessa forma, o visto humanitário não era até
então uma ferramenta efetiva para garantir a entrada regular de haitianos no Brasil. Ainda que o
discurso governamental de garantir vistos para haitianos seja muito simples na teoria, na prática, a
maior parte dos haitianos não tem acesso a essa ferramenta. Seria interessante analisar porque isso
não ocorre: seria um problema nas embaixadas, o número de vistos seria insuficiente? Um fato é
claro, as pessoas arrumam outras maneiras de chegar ao país, inclusive com a ajuda de coiotes e
atravessadores. Pode-se inferir que terceiros estão lucrando milhares de dólares todos os anos e que
centenas de pessoas se colocam em uma situação de vulnerabilidade para conseguirem chegar ao
Brasil. Se todos os haitianos chegassem ao Brasil com visto, eles provavelmente teriam condições de
arcar com seus gastos até encontrarem um trabalho, de modo que dependeriam menos de
assistência e acolhimento emergencial dos governos locais e de organizações da sociedade civil.

Por outro lado, a solicitação de refúgio se apresenta como alternativa clara de regularização
migratória no país (565 haitianos do sexo masculino). Tanto que os haitianos já pedem refúgio antes
251

mesmo de chegarem a São Paulo. Duas considerações devem ser feitas sobre essa questão: a
primeira é que existe um acordo entre o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) e o Conselho
Nacional das Migrações (CNIg) para analisar os pedidos dos haitianos e garantir sua permanência.
Contudo, esse processo pode demorar muito tempo e diversos pedidos ficam “perdidos” no diálogo
entre essas duas entidades. O segundo ponto é que se “nega” ao haitiano o seu reconhecimento
como refugiado. Isso porque, como todos os pedidos de haitianos são diretamente encaminhados ao
CNIg, não há uma análise cuidadosa de cada caso e alguns haitianos poderiam ser reconhecidos
como refugiados por estarem fugindo de seu país por fundado temor de perseguição por causa de
sua raça, nacionalidade, opinião política, pertencimento a grupo social ou grave e generalizada
violação de direitos humanos, como consta na lei 9474/1997. Outras alternativas para regularizar a
situação migratória envolvem nascimento de filho brasileiro e casamento com cidadãos brasileiros,
dessa forma o haitiano tem possibilidade de permanência no país como disposto no Estatuto do
Estrangeiro (1980).

Por fim, é necessário ressaltar que todas as mulheres solicitaram refúgio. Se a hipótese de que os
homens haitianos vêm primeiro para o país e depois trazem as mulheres, essas mulheres teriam
maior tempo para solicitar o visto humanitário no Haiti ou em qualquer um dos países entre o Haiti e
o Brasil. Dessa forma, seria importante estudar porque essas mulheres que, em teoria, teriam mais
possibilidades de solicitar o visto humanitário não o fazem. A travessia entre o Haiti e o Brasil, como
relatado por diversos haitianos, é especialmente dura. As mulheres estão mais sujeitas à violência
baseada no gênero, dentre elas a abusos sexuais. Sendo assim, seria do interesse de todos que essas
chegassem ao Brasil de maneira regular.

Tais informações podem ser observadas nas tabelas e no gráfico abaixo:


252

Situação Migratória
dos Haitianos
solicitação de refúgio
RNE
visto
passaporte
não informado

Gráfico 3. Situação migratória dos Haitianos

Tabela 4. Número de Haitiano e situação migratória

Tabela 5. Local de pedido dos vistos


Número Total 620 100% Embaixada do Brasil onde
Solicitante de Refúgio 589 95% houve solicitação dos vistos

Haiti 13
RNE 6 0,97%
Equador 1
visto 18 2,9%
Peru 1
passaporte 2 0,32%
Não informado 3
não informado 5 0,81%

D- TRABALHO

Os dados revelam que mais de 50% dos homens e mulheres haitianos atendidos já chegaram a
São Paulo com a Carteira de Trabalho em mãos. Essa informação pode revelar duas observações
253

importantes: o objetivo central dessa migração e o foco dos haitianos na busca por trabalho e o fato
de que a maior parte desses imigrantes já chega à cidade de São Paulo com esse documento, de
modo a não depender tanto desse serviço na cidade. Os gráficos e tabelas abaixo apresentam
maiores informações:

Tabela 6. Haitianos que chegaram à Missão Paz com CTPS

Homens Chegou à Missão Paz com a carteira de trabalho

não sim não informado total

194 345 57 596

porcentagem 32,55% 57,89% 9,56% 100%

Homens - Chegaram na Missão Paz com CTPS

não
sim
não informado

Gráfico 4. Homens que chegaram à Missão Paz com CTPS

Tabela 7. Haitianas que chegaram à Missão Paz com CTPS

Chegou à Missão Paz com a carteira de trabalho

Mulheres não sim não informado total

8 13 3 24

porcentagem 33,34% 54,16% 12,50% 100%


254

Mulheres - Chegaram na Missão Paz com CTPS

não
sim
não informado

Gráfico 5. Mulheres que chegaram à Missão Paz com CTPS

E- PROFISSÃO:

Sobre a profissão dos haitianos, é incerto saber a formação profissional do haitiano pela sua
declaração. Isso porque a profissão informada pode ser tanto aquela que o haitiano já exercia em seu
país de origem ou a que deseja exercer no Brasil, o que não necessariamente corresponde a sua
formação educacional ou aquilo que ele desempenhava no Haiti. O quesito profissão é aquele com
mais informações faltantes, por mais que tenhamos tentado obter esses dados em nossos bancos de
dados. Quando a profissão não é declarada, várias situações são possíveis: a primeira é que o
imigrante por quaisquer motivos não quis declarar sua profissão; o segundo pode-se considerar que
esse haitiano está buscando inserção no mercado de trabalho e a terceira é que ele não possui
qualquer formação. Assim, esse indicador não pode ser utilizado para entender a inserção laboral
desses imigrantes no mercado de trabalho, porque não se sabe quantos estão de fato exercendo a
profissão declarada. Contudo, a partir da declaração profissional, pode-se inferir sobre sua formação
profissional.

No grupo das mulheres, o maior destaque é para a profissão de comerciante (70% das mulheres).
Essa profissão é mais fácil para as mulheres porque não depende de muita qualificação. Há ainda
mulheres que teriam maior qualificação tais como aquelas que se declararam administradora,
contabilista e enfermeira (12,5% delas).
255

Dentre os homens, destacam-se profissões de pouca qualificação tais como pedreiro (27,18% do
total), agricultor (9,22% do total), comerciante (7,04% do total). Outro número interessante são os
estudantes (4,53%). Infere-se que uma parte dos haitianos começou sua formação em seu país de
origem e vem para o Brasil com o objetivo último de terminar seus estudos. Contudo, isso acaba
sendo muito difícil por causa da burocracia e dos procedimentos complexos para validação de
diplomas, assim como as dificuldades com o idioma. Essas são barreiras enfrentadas também por
aqueles qualificados que são professores (11), jornalista (1), contabilista (1), contador (1), fotógrafo
(1), técnicos em diferentes setores (10, totalizando cerca de 4,19% dos haitianos que chegaram ao
país). Percebe-se claramente que essa mão de obra qualificada na maior parte das vezes por
diferentes dificuldades não se insere no mercado de trabalho na maneira que seria mais vantajosa
para a economia e o desenvolvimento do país. Além disso, a maior parte da população haitiana está
voltada para o setor de serviço, especialmente para a construção civil no caso dos homens, e declara
profissões pouco qualificadas. Tais informações podem ser observadas nos gráficos e tabelas abaixo:

Tabela 8. Profissão das Mulheres Haitianas


Profissão número
administradora 1
auxiliar 1
comerciante 17
contabilista 1
enfermeira 1
esteticista 1
não informada 1
vendedora 1
256

Profissão Mulheres
18
16
14
12
10
8
6
4 número
2
0

Gráfico 6. Profissão das Mulheres Haitianas

Tabela 9. Profissão dos Homens Haitianos


homens número

agricultor 55

auxiliar de limpeza 1

auxiliar serv. Gerais 1

avicultor 1

cabeleireiro 1

camareiro 1

cameraman 1

ceramista 5

comerciante 42

construtor 2

contabilista 1

contador 1

costureiro 7

cozinheiro 1
257

cultivador 1

eletricista 11

encanador 8

estudante 27

ferreiro 7

fotógrafo 2

gestor 1

hotelaria 1

jardineiro 3

jogador 1

jornalista 1

marceneiro 1

mecânico 24

motorista 18

não informada 141

negociante 2

Pedreiro 162

pintor 22

professor 11

soldador 5

técnico agrícola 2

técnico de informática 5

técnico em eletrônica 1

técnico em refrigeração 2

vendedor 17
258

Profissão homens
180
160
140
120
100
80
60
40
20 número
0

Gráfico 7. Profissão dos Homens Haitianos

F- TEMPO DE DESLOCAMENTO PARA SÃO PAULO

Sobre as datas de chegada, algumas estimativas foram feitas a partir da data de solicitação de
refúgio. Para fins estatísticos, aproximou-se a data de solicitação de refúgio com a data de chegada
ao Brasil, visto que os haitianos já chegavam a São Paulo com o protocolo.

As datas de chegada ao Brasil e a São Paulo são informações normalmente que são fornecidas
pelos próprios haitianos, que podem incorrer em erros tais como informar datas depois da data de
solicitação de refúgio (nessas ocasiões, foi considerada a data de solicitação de refúgio visto que não
é possível solicitar refúgio sem estar em território nacional). Na informação sobre a chegada a São
Paulo, quando o haitiano informou a data precisa, essa foi considerada. Quando essa informação não
estava disponível, foi utilizada a data do atendimento realizado na Missão Paz. Interessante observar
que o tempo médio de chegada para os homens é de 22 dias e para as mulheres 19 dias. Alguns deles
conseguem se deslocar para São Paulo em apenas 1 dia, já outros demoraram 290 dias. Os dados
permitem observar que a maior parte dos haitianos chega em pequenos grupos tendo entrado pelo
Acre. Alguns poucos entraram pelo Mato Grosso.

Maiores informações podem ser encontradas nos gráficos e tabelas abaixo:

Tabela 10. Tempo Médio de chegada


dos haitianos até São Paulo.
259

Tabela 11. Dias que necessários para chegar a São


Paulo

Tempo médio de
chegada

Mulheres Homens
(dias) (dias)

19,08333 22,3125

Dias que necessários para Número de Número de


chegar a SP homens76 mulheres

1 4 1

2 2 0

3 3 0

4 1 0

76
Foram dispensados aqueles que chegaram com visto diretamente a São Paulo e aqueles que não tinham
informações sobre data de chegada.
260

5 8 0

6 7 0

7 9 0

8 13 0

9 13 0

10 20 0

11 38 3

12 41 1

13 35 4

14 32 0

15 34 4

16 22 0

17 28 0

18 24 0

19 14 1

20 20 1

21 26 3

22 11 0

23 13 2

24 14 0

25 14 0

26 10 0

27 10 0

28 12 0

29 7 1

30 5 0
261

31 8 0

32 2 0

33 9 0

34 2 0

35 1 0

36 4 1

37 4 0

38 2 0

39 2 0

40 3 1

41 1 0

42 10 0

43 2 0

44 1 0

45 0 1

46 1 0

47 1 0

48 1 0

50 1 0

51 3 0

52 2 0

53 1 0

54 2 0

55 1 0

56 1 0

63 1 0
262

66 1 0

71 1 0

75 2 0

79 1 0

84 1 0

93 1 0

95 1 0

101 1 0

107 1 0

114 1 0

126 1 0

133 1 0

134 1 0

137 1 0

141 1 0

179 1 0

217 1 0

290 1 0

Total 575 24
263

41
40 Tempo de deslocamento até São Paulo
39
38
37
36
35
34
33
32
31
30
29
28
27
26
25
24 número de homens
23
22 número de mulheres
21
20
19
18
17
16
15
14
13
12
11
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47 50 52 54 56 66 75 84 95 107 126 134 141 217
em dias
Gráfico 8. Tempo de deslocamento dos haitianos até São Paulo
264

RESULTADOS E CONCLUSÕES

A análise dos dados permite entender um pouco mais sobre o perfil dos imigrantes haitianos
atendidos no acolhimento emergencial da Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Tendo sido
analisadas informações de 620 haitianos (596 homens e 24 mulheres), algumas conclusões podem
ser delineadas:

• O fluxo migratório do Haiti para o Brasil continua composto por homens em idade
extremamente produtiva que buscam inserção no mercado de trabalho brasileiro.
• A variação de idade dessa população está entre 18 e 65 anos, tendo como média 33 anos
e 47 dias.
• A população haitiana se direciona principalmente para o setor de serviços, sendo as
mulheres para o comércio e os homens para o setor civil. Apesar disso, há haitianos
qualificados: administradores, professores, jornalistas, contadores, fotógrafos, etc.
• O refúgio permanece como alternativa de regularização migratória para a população
haitiana. O visto humanitário fornecido nas embaixadas brasileiros no caminho entre o
Haiti e o Brasil atingiram apenas 2,9% de todos os casos estudados. Nesse sentido,
carece um meio regular para os haitianos entrarem no país.
• Terceiros estão lucrando muito com a vinda de haitianos no país, considerando que mais
de 97% dos haitianos entram no país sem visto humanitário. Deve-se pensar que eles
contaram com alguma “ajuda” para realizar esse percurso. Dessa forma, seria necessário
que o governo reavaliasse essa situação e tornasse o visto humanitário acessível para
todos os interessados.
• As mulheres, ainda que em pequeno grupo, começam a chegar ao país. Assim, faz-se
necessário pensar e implementar políticas públicas dirigidas para essa população. Seria
interessante estudar porque todas as mulheres analisadas chegaram ao país sem visto
humanitário, pois seria esperado que essas tivessem mais tempo para conseguir o
documento no Haiti ou em outro país no caminho.
• O tempo médio que os haitianos demoram para chegar até São Paulo é cerca de 20 dias.
Dessa maneira, há tempo suficiente para que eles peçam refúgio e façam a Carteira de
Trabalho nos estados em que eles entraram. A maior parte deles continua a chegar pelo
Acre em pequenos grupos.
265

Algumas futuras questões de pesquisa podem ser desbravadas a partir desse relatório tais como:

• Por que as mulheres haitianas começaram a vir para o Brasil? Quem são essas
mulheres? Mesmo assim por que o fluxo continua predominantemente masculino?
• Por que o visto humanitário não é uma alternativa viável para a entrada regular de
haitianos no Brasil?
• Será que o sistema brasileiro de regularização migratória para haitianos consegue
proteger e garantir direitos para essa população?
• Quem está “lucrando” com a entrada dos haitianos de maneira irregular no Brasil?
Qual o percurso migratório e os riscos que essa população enfrenta?
• Os haitianos que chegam a São Paulo ficam na cidade de São Paulo? O que acontece
com eles depois do acolhimento emergencial?

Essas são apenas algumas reflexões que pretendem motivar mais estudos sobre a população
haitiana no Brasil e em São Paulo. Desse modo, esse relatório pretendeu contribuir para traçar um
perfil dos haitianos recém-chegados a São Paulo com base na tabulação e análise de dados primários.
Novas pesquisas que utilizem tanto a literatura já existente sobre migração haitiana quanto os dados
primários disponibilizados nesse relatório poderiam contribuir para entender melhor esse fluxo
migratório para o Brasil e assim desenvolver e implementar políticas públicas que atendam as
diferentes necessidades dessa população. Nesse sentido, a Missão Paz encontra-se aberta para
colaborar com pesquisadores, estudantes, autoridades do poder público e outras organizações da
sociedade civil para que juntos possamos receber e integrar os haitianos e todos os imigrantes,
garantindo seus direitos humanos e promovendo seu potencial para contribuir com o
desenvolvimento e a sociedade tanto nos países de origem como no Brasil.
266

ANEXO 12 – Relatório produzido pelo Centro de Acolhimento e Apoio ao Imigrantes,


em São Paulo, São Paulo
São Paulo, 14 de Março de 2017

Conforme solicitação realizada no dia 13 de Março de 2017, pela pesquisadora Isis do Mar
Marques Martins, observando o princípio de trabalho do Centro de Referência e
Atendimento para Imigrantes de garantia da democratização e transparência do serviço,
observando também a Lei nº 12.527, de 18 de Novembro de 2011, disponibilizamos relatório
referente ao atendimento de imigrantes no Terminal da Barra Funda em São Paulo, no ano de
2015.

Relatório: Atendimentos realizados pelo Centro de Referência e Atendimentos para Imigrantes -


CRAI, no Terminal Barra Funda - Novembro de 2015

Contexto:

O Atendimento no Terminal Barra Funda surgiu de uma parceria entre Governo Federal,
Governo do Acre e Prefeitura de São Paulo tendo em vista uma grande concentração de
migrantes no albergue do Acre. Desta forma, foram fretados alguns ônibus pelo poder público,
com intuito de transportar alguns migrantes que se encontravam em Rio Branco, mas tinham
intuito de migrar para São Paulo. O CRAI ficou como responsável por realizar os
atendimentos na ocasião da chegada de cada um desses ônibus, com objetivo de atender e
encaminhar esses migrantes de acordo com suas demandas. A maior parte dos imigrantes
atingidos era de origem haitiana, mas também havia uma minoria de nacionais do Senegal.

Objetivo:

Recepção, atendimento e encaminhamento de todos os migrantes vindos do Acre em ônibus


fretado pelo Governo Federal.

Atividades:

- Recepção dos imigrantes;

- Explicação da dinâmica de atendimento;

- Cadastro dos migrantes, conferência das pessoas com a lista de nomes previamente enviada,
triagem das demandas em grupos de atendimento;

- Divisão das demandas em três grupos de acordo com a necessidade:

Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI)

Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) - CNPJ: 11.861.086/0001-63 – IE: isento


Rua Japurá, 234 – Bela Vista – 01319-030 – São Paulo – SP

Tel: (11) 3112-0074 – Email: crai@sefras.org.br


www.sefras.org.br
Demanda A: imigrantes que têm outra cidade destino e necessitam de informações
para compra de passagem ou encaminhamento ao terminal rodoviário do Tietê.

Demanda B: imigrantes que têm parentes, amigos, conhecidos ou empregador em São


Paulo e necessitam de apoio para entrar em contato direto com eles. Nesse grupo, fornecemos
apoio para a realização de ligações telefônicas.

Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI)

Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) - CNPJ: 11.861.086/0001-63 – IE: isento


Rua Japurá, 234 – Bela Vista – 01319-030 – São Paulo – SP

Tel: (11) 3112-0074 – Email: crai@sefras.org.br


www.sefras.org.br
Demanda C: imigrantes que não tem contato em São Paulo e precisam de abrigo. Foram
encaminhados para a Rede de Assistência e Desenvolvimento Social, com prioridade para os
centros de acolhida especializados para o trabalho com imigrantes: Terra Nova, CRAI, Centro
de Acolhida Emergencial/Armênia, CAE Penha.

Ônibus atendidos: JULHO

Demanda Demanda Demanda


Situação Motivo Atendidos A B C

29/jun Atendidos e Encaminhados 44 8 20 16

02/jul Atendidos e Encaminhados 44 4 37 3

06/jul Atendidos e Encaminhados 39 7 27 5

CRAI presente, ônibus


10/jul ausente Horário diverso 0 0 0 0

CRAI presente, ônibus


20/jul ausente Horário diverso 0 0 0 0

CRAI presente, ônibus


21/jul ausente Horário diverso 0 0 0 0

CRAI presente, ônibus


27/jul ausente Horário diverso 1 0 0 1

28/jul Atendidos e Encaminhados 44 3 36 5

CRAI presente, ônibus


30/jul ausente Horário diverso 0 0 0 0

Total 172 22 120 30

AGOSTO

Em Agosto, pelo aumento do número de pessoas chegando, bem como a falta de estrutura,
não foi realizado o controle de demandas.

Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI)

Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) - CNPJ: 11.861.086/0001-63 – IE: isento


Rua Japurá, 234 – Bela Vista – 01319-030 – São Paulo – SP

Tel: (11) 3112-0074 – Email: crai@sefras.org.br


www.sefras.org.br
Situação Atendidos

07/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

08/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

10/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

14/08/2015 Recepcionados e Encaminhados 44

17/08/2015 Recepcionados e Encaminhados 88

19/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

21/08/2015 Recepcionados e Encaminhados 88

24/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

28/08/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

31/08/2015 Recepcionados e Encaminhados 88

Total 308

NOVEMBRO

Ônibus Especiais

Por uma demanda emergencial do Governo do Acre, foram enviados alguns ônibus no mês de
Novembro, fora do convênio.

Situação Atendidos

06/11/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

10/12/2015 CRAI presente, ônibus ausente 88

17/11/2015 CRAI presente, ônibus ausente 0

Total 88

270

Vous aimerez peut-être aussi