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DO HAITI AO BRASIL:
ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE E PERMANÊNCIA EM GRUPOS MIGRANTES
Rio de Janeiro
2018
ISIS DO MAR MARQUES MARTINS
DO HAITI AO BRASIL
Estratégias de mobilidade e permanência em grupos migrantes
Rio de Janeiro
2018
ISIS DO MAR MARQUES MARTINS
DO HAITI AO BRASIL:
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr Helion Póvoa Neto
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ
__________________________________________________
Profa. Dra Luciana Corrêa Lago
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ
__________________________________________________
Profa. Dra. Gislene Aparecida dos Santos
Departamento de Geografia - UFRJ
________________________________________________
Prof. Dr. Jones Dari Goettert
Departamento de Geografia – UFGD
________________________________________________
Prof. Dr. Handerson Josefh
Departamento de Ciências Sociais – UNIFAP
Dedico a todos os migrantes,
que fazem, perfazem e alimentam suas estratégias com vida.
À Luisa do Mar, com todo amor e carinho,
por ter me guiado ainda pequena nessa jornada.
À Rafael Zilio, ao nosso encontro e às nossas potências juntos.
CELEBRAR E AGRADECER...
The route of Haitians to Brazil intensified as of 2010 appointed the necessity of an important
debate and caused some changes in posture and conception of public policies for immigrants in
the country. This thesis discusses this process aiming to understand in time and space the
emigration of Haitians in parallel with immigration policies in Brazil, to make the possible
connections that the Haitian Diaspora promoted on the 21st century from the ideas of agencies,
geometries of power and social networks of immigration. This is how it is understood the
various discourses of the State, of the immigrants and of the society in general when crossing
or distancing. Such analysis was possible due to the multiple scales of the strategies of mobility
and permanency, that in the case of Haitians are more complex by the form and function of
them migratory process during their Diaspora. On this way, the Haitian immigrant is not and
should not be seen as a problem to the place he arrives not even to the policies implemented to
guarantee the legitimacy of his citizenship. He is a part of the construction of society itself.
Key words: Haitians in Brazil. Strategies of mobility and permanency. Migration. Agencies.
Geometries of power.
RÉSUMÉ
Le parcours des Haïtiens vers le Brésil, intensifié pour 2010, a souligné lae besoin d'un
discussión important et a provoqué une série de changements dans la posture et la conception
des politiques publiques pour les immigrés dans le pays. Cette travaill traite dans processus,
regarder la compreension in le temps et le space des migration pour les haitien et pour le Brésil,
pour la construction les mouillages possibles qui les diaspora haitian promi dans siécle XXI
pour les idées des agenciament, géométrie du povoir et réseaux sociaux dans migration, car on
peut entrevoir ainsi les différentes voies discursives de l'Etat, des immigrés et de la société en
général, quand ils se croisent ou quand ils se distancient. Une telle analyse était possible à partir
des échelles multiples des stratégies de mobilité et de permanence qui, dans le cas des Haïtiens,
deviennent plus complexes par la forme et la function dans leur processus migratoire aproche
pour les diasporas. L'immigré haïtien, de cette façon n'est pas être ne devrait comme un
problème pour le lieu qui arrive ni pour les politiques qui sont mises en œuvre pour garantir
légitimement leur citoyenneté. C'est une partie intégrante de la construction de notre société.
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
A quarta perspectiva ressalta as práticas dos haitianos enquanto diáspora e suas redes
peculiares de migração, reveladas em uma história de muita luta e muita perda. Em especial,
destacam-se as contribuições de Handerson (2015), como se verá no decorrer deste trabalho,
tanto do cunho subjetivo - já que é um imigrante haitiano no Brasil - quanto o amarrado teórico-
metodológico de sua pesquisa, que analisa o intrínseco da diáspora haitiana ser um sujeito, e
não uma atitude. No Haiti, é somente o ser sujeito diáspora, e não a o haitiano diaspórico.
Outras contribuições em relação à linguagem, aos corpos e à produção cultural de imigrantes
haitianos também são incluídos nessa perspectiva, cujas redes de atuação são o tema central.
É a quinta perspectiva a mais encontrada em pesquisas que analisam a migração haitiana
no Brasil: a que trata da força de trabalho. O imigrante haitiano perfaz-se em diáspora e sempre
veremos em sua resposta a necessidade de encontrar um trabalho para enviar dinheiro para a
família no Haiti, para construir seu projeto de vida, ou mesmo para pagar as dívidas da viagem.
A necessidade de permanência aliadas à necessidade de recursos financeiros muitas vezes o
leva a condições severas de exploração e subordinação, onde questões de toda ordem
obviamente são levantadas. Pesquisas importantes apontam, na escala global e local, a denúncia
da exploração e a necessidade de avançar no debate crítico, quando o sofrimento e a displicência
das condições de imigrantes não param ao se efetivar sua permanência. Elas perduram nas
condições da qualidade de vida destes imigrantes, e estes trabalhos acrescentam muito nessa
reflexão.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende avançar na discussão dessas cinco
perspectivas, e propõe a análise da interação entre imigrantes e suas transformações espaciais
que afetam socialmente e se relacionam com outros agentes sociais. Essa reflexão acompanha
a necessidade de analisar o processo da entrada de haitianos no Brasil e de pensar em todas
essas contribuições que estão interligadas.
Essa interação não é simples nem uniforme. Ela é fruto de um amarrado histórico e
espacial, tanto por parte do Brasil quanto por parte do Haiti. É nesse amarrado histórico-espacial
que é possível observar a construção das estratégias múltiplas dos imigrantes, do Estado
haitiano, do Estado brasileiro, as heranças sociais construídas nas políticas de imigração no
Brasil, até a chegada de imigrantes haitianos de forma mais contundente, a partir de 2010.
Essas estratégias - estudadas e analisadas a partir dessas interações - aqui são
denominadas de estratégias de mobilidade e estratégias de permanência. Essas estratégias
vindas do migrante trazem todo o potencial de transformação política, trazem o embate e o
conflito à norma conservadora, ao preconceito e ao que formatamos como certo ou como
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verdade. Qual é a verdade de cada migrante que chega? Essas estratégias trazem um pouco
dessa emoção de cada um, aquela lágrima que não cai, mas que fica ali na garganta e segue com
a vida, com a sua diáspora.
As estratégias – de mobilidade e permanência – são múltiplas e mutantes. A
multiplicidade delas requer uma reflexão que vai além da relação com o Estado ou da relação
trabalho. Para compreendê-las na sua complexidade, a reflexão geográfica é fundamental, pois
o espaço requer que essas estratégias coexistam com as demais – do Estado, da sociedade, de
outros agentes que se cruzem com os imigrantes. A coexistência das ações de cada agente revela
as dificuldades de apreender todo um jogo de relações de poder.
Nesse sentido, esta tese analisa tais estratégias na ótica dos agenciamentos, das
geometrias de poder e das redes sociais de migração. Essas perspectivas terminológicas, de
diferentes autores, servem como construção teórico-metodológica porque revelam os espaços e
os tempos dos desejos dos imigrantes, mas que em muitos casos convivem com a frustração e
a crítica de suas próprias ações.
Para tal, a organização deste trabalho foi pensada seguindo a cronologia da diáspora
haitiana no Brasil. O primeiro capítulo é o caminho metodológico da tese, as perguntas e
respostas mais afinadas e com mais detalhes.
O segundo capítulo aponta os processos histórico-espaciais que levaram às políticas de
imigração no Brasil se tornarem o que são hoje e as respostas da diáspora haitiana desde a
revolução que resultou em sua independência, em 1804. Para os dois países, o século XIX foi
a melhor escolha para esse caminho, que revela os agenciamentos e as estratégias que viriam
culminar na imigração haitiana no Brasil.
O terceiro capítulo trata da chegada de imigrantes pela fronteira do estado do Acre, na
região amazônica brasileira. Nesse capítulo, conforme também a chegada e os acontecimentos
revelados nesse processo, ficam claros as estratégias de mobilidade, amarradas de maneira mais
clara para o leitor.
As estratégias de permanência são reveladas no quarto capítulo, quando os haitianos
consolidam, na saída do estado do Acre para outros estados do território brasileiro. Elas serão
articuladas de maneira muito conflituosa pelos diversos agentes que se encontram durante a
trajetória de grupos migrantes.
No quinto capítulo há a nova contextualização das estratégias de mobilidade e
permanência, quando haitianos promovem novos caminhos de sua diáspora, seja no reencontro
com suas famílias no Brasil, ou suas tentativas, nas condições de trabalho e vida, ou nas novas
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mobilidades consolidadas após a crise política neste país, que culminou em uma crise
econômica e afetou a maioria dos imigrantes que aqui vivem.
Migrar é migrar a ideia do migrante também. Mobilizar é pensar não necessariamente
na ideia de migrar ou de onde migrou, mas de um contexto em como esse migrante se constrói
no espaço que chega. Permanecer, da mesma maneira, não significa desconstruir todo o
passado. O passado está no espraiamento das relações sociais, sejam as de vizinhança, as de
poder, ou as tentativas de apropriação de espaços que também são múltiplos. O tempo e o
espaço se fazem e refazem conforme as trajetórias surgem e apontam novos caminhos.
***
tocar, sem sentir materialmente a história e a geografia das coisas, a poesia das canções que
eram entoadas nas histórias que eram contadas e discutidas tinha um peso tanto quanto.
Acredito que o entoar e o cantarolar desses primeiros sons de sociedade e de vivências, que não
foram minhas, foi minha primeira migração.
A segunda migração, já na adolescência, foi a literatura e a paixão pelo sentir aquilo que
não se podia tocar, mas podia vivenciar mesmo que pela emoção das palavras. Da mesma
maneira, a transformação de Rio Branco, o Partido dos Trabalhadores e o discurso de
Desenvolvimento Sustentável e Economia Verde, o encantamento de palavras que soavam
tamanha esperança para uma população sem emprego, sem renda, em crescimento, em demanda
de assistência social básica e de direito, como saúde, educação, moradia, renda etc. Um
momento de transformação política que mais tarde seria alvo de críticas pela sua própria
conspiração de omissão e incoerência com a vontade da coisa pública.
Esse caminho de idas e vindas me levou ao Rio de Janeiro na metade da graduação,
quando já pesquisava e apreendia processos migratórios na fronteira do Acre, e quando também
senti na pele a condição de migrante. São cheiros e toques se cruzando, e sempre a nostalgia
advinda das experiências que surgiam.
Finalizo a graduação e entro no mestrado em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, concomitante ao primeiro emprego como assistente de gestão pública para
programas sociais em favelas na cidade do Rio de Janeiro. Essa experiência me marcou
profundamente porque estava ali, vendo os cotidianos migrantes, sendo nocauteada por práticas
que eu representava, mas tentando com o pouco de experiência prática alguma mudança, algum
sinal.
Revelaram-me as discrepâncias das práticas e dos discursos de agentes sociais diversos,
e do Estado e seu papel de absorver e conhecer muito das vivências e das experiências
corriqueiras, mas sequer considerá-las como pauta e processo político. Nessa preocupação em
compreender as relações entre política pública, estratégia de resistência de migrantes apartados
de seu processo inerente de construção do espaço, encaro com profunda relevância e
necessidade entender que as estratégias de permanência e mobilidade nos espaços que estes
aportam como seus novos lugares são também processos legítimos de construção política e de
relação com a coisa pública.
Nesse sentido também, a continuidade de pensar com mais cuidado para outras
produções de cidade pelo migrante em suas estratégias de resistência continua sendo
profundamente caro, porque visibiliza um processo que não tem sido uma marca do presente,
24
1 CAPÍTULO I
CAMINHOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa contempla três bases de interesse: primeiro, o papel das escolhas do
imigrante haitiano, entendendo que estas atravessam as relações de poder do Haiti até as
fronteiras brasileiras; segundo, o papel do Estado brasileiro diante dessa escolha, suas posições
e ações de interesse público na organização e gestão, social e/ou administrativa para com as
cidades de fronteira, sua população e seus novos habitantes, itinerantes ou não; e terceiro, as
práticas sociais que os imigrantes haitianos produzem a partir de suas próprias escolhas e a
gestão pública ausente e não implicada nessa relação diretamente, porém implicada nos
atravessamentos e agenciamentos relativos ao jogo do Estado quanto às relações de migração1.
Há relações plurais peculiares a cada continente, país etc. O processo de urbanização,
por exemplo, foi paulatino conforme a sofisticação dos sistemas técnicos de sociedades
eminentemente autóctones em parte da Europa e Ásia, isto é, a sociedade foi se transformando
conforme as relações foram se complexificando. Diferentemente ocorreu na América do Sul,
em que tal processo vincula-se a uma série de questões que envolviam imigração maciça e
espacialidades de fora para dentro, isto é, originárias de diversas heranças continentais e
principalmente, de relações de poder entre outras nações, colonizadoras, a fim de propósitos e
interesses alheios à realidade da sociedade.
Nessa perspectiva, os processos, sejam eles de urbanização ou de crescimento de
cidades, envolvem a produção da sociedade. Entendemos que produzir espaço é produzir-se.
Elevar a ideia de produção ao sentido norteador do conceito é também reflexão e
aprimoramento, já que a construção desta, no decorrer da história ocidental, se alicerça ora nas
relações de poder, ora no embate necessário para legitimar mudanças que vem para melhoria
da qualidade de vida. Há a necessidade, portanto, de priorizar os construtores e produtores do
espaço de fato, no âmbito do poder legislativo, onde representantes são eleitos
democraticamente.
Mas e o migrante? E o papel do migrante na construção da vida, das sociedades, das
relações? E mais: Por que um papel para o migrante se estar em um determinado espaço, em
1
Tal como aponta Sayad (2000): “Pensar a imigração (ou emigração), é pensar o Estado. É o Estado que se pensa
a si mesmo, termina por se enunciar aquilo que tem de mais essencial e, ao mesmo tempo, enunciar de maneira
mais evidente as regras de seu funcionamento e revelar as bases de suas instituições.” (SAYAD, p. 2000, p. 20).
26
uma determinada cidade, já o insere nos processos da cidade? Dessa maneira, como o migrante
é visto no momento em que, seja no emigrar ou no imigrar, ele torna-se o outro do lugar?
Albert Camus, no romance “O estrangeiro”, aponta um pouco essa angústia do outro,
que vai muito além do protagonista ser um migrante. Ele é um migrante do mundo, com uma
visão diferente do seu lugar, e por isso, tem de ser condenado, tem de ser visto como o outro e
servir de exemplo como tal.
É também na relação trabalho que o migrante tem seu maior destaque. Tanto no discurso
do seu dia-a-dia, no discurso dos governantes, nos locais propriamente de trabalho, na
justificativa entre seus amigos não migrantes em colocar sua permanência como fato.
Se o trabalho – e a força de trabalho – são essenciais para compreendermos o processo
migratório, os migrantes aliam a importância do fator trabalho às novas atividades cotidianas
inseridas no espaço a que se chega, mesmo de forma restrita. O trabalho e sua força não esgotam
a compreensão do migrante inserido no movimento do espaço e de si mesmo, somente ressaltam
(e por muitas vezes, de forma superficial) o papel político e social do ato de migrar e sua
relevância em entender o processo de acumulação capitalista, mas não apontam o paradoxo da
migração e a compreensão do outro e de si na partida, na chegada e no retorno, assim como nos
espaços aí envolvidos pelas relações.
Nossa ideia é de que a análise da dinâmica social da migração somente pela relação
trabalho e pela força de trabalho ainda não ressalta todos os elementos dispostos na complexa
rede social que envolvem os processos migratórios. Muito se dá, acreditamos, por um discurso
que não constroi o espaço e o tempo como preceitos de análise dos processos sociais, mas
hierarquiza-os, sem admitir uma análise conjunta. O espaço dos acontecimentos ainda é
secundário nessa compreensão, e é no espaço que as resistências e as formações do cotidiano
se apontam, se destacam.
Esse espaço dos acontecimentos se dá por duas inseparáveis escalas: a escala da
multiplicidade do espaço, que decorre na diferenciação do sentido de espaço para cada sujeito;
e na escala do desejo, da ação de cada sujeito neste espaço a partir de seus desejos e de suas
produções desejantes.
Nessa perspectiva, existe um desencontro de expectativas entre o discurso das
autoridades e o discurso/desejo/objetivo dos haitianos quanto à migração: da parte do Estado
brasileiro, destaca-se sempre a necessidade de força de trabalho, de integração ao país através
da inserção no mercado de trabalho. Da parte do migrante haitiano, a dimensão coletiva da
migração, o desejo de saída do Haiti pelas fragilidades sociais, políticas, ambientais do país,
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em que o trabalho é apenas a mediação para se obter isso, mas não necessariamente o objetivo
último.
Uma hipótese seria de que esse desencontro tem uma origem histórica que, mais que a
simples busca de “antecedentes”, ajudaria a entender o significado presente tanto da emigração
para os haitianos quanto o da imigração para o Estado brasileiro. Assim, existe um preconceito
histórico no Brasil especificamente quanto ao Haiti, mas, além disso, quanto a toda imigração
que não seja branca ou européia. Paralelamente, para os haitianos, a emigração sempre teve um
sentido político e coletivo para além do mercado de trabalho.
Outro aspecto importante são as características do que podemos considerar na
mobilidade de haitianos: uma imensa maioria da população mulata ou negra, migrando na ilusão
de um país “livre de preconceitos” (já que o Brasil possui heranças europeia, africana e
indígena), economicamente fortalecido e socialmente “harmonioso”. Ao cruzar os limites sul-
americanos, além de esbarrar nos velados discursos desse país, cruzam a fronteira da fragilidade
legislativa, política e social que essas singelas e complexas fronteiras denunciam. A violência
gerada por esse discurso é muito também a violência paradoxal da mobilidade e da migração
que esbarra nos múltiplos processos desencadeados pelo capitalismo e pela contradição dos
espaços que este se entremeia.
É também por violência que o Estado brasileiro é impulsionado, muitas vezes, quando
se exime das responsabilidades frente aos direitos dos migrantes. Qual a perspectiva e qual as
potencialidades invisibilizadas desse migrante e dessa fronteira tanto por parte do poder
público, quanto da sociedade civil – brasileira, mas também continental e mundial? Conforme
Sayad:
Um imigrante não é apenas o indivíduo que é; ele é também, através de sua pessoa, e
pelo modo como foi produzido como imigrante, o seu país. Assim o quer a lógica das
relações internacionais, a própria razão de ser dessas relações. A dimensão
internacional da imigração perpassa assim todo o fenômeno (SAYAD, 1998, p. 241).
Dessa forma, o processo migratório, assim como seus constantes fenômenos não
somente prescindem, isto é , só podem ser analisados dentro de uma perspectiva temporal.
Muito porque brechas na análise podem desviar o foco do entendimento do processo migratório,
e culpabilizar, por exemplo, o migrante.
Há um risco muito grande em analisar os fenômenos da migração partindo da
perspectiva que a mobilidade seja um problema da sociedade e das representações sociais, e,
mesmo que esse problema seja uma ideologia, se estabelece como um discurso de que a
migração deve ser, no mínimo, um perigo para as sociedades.
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O presente trabalho engloba a migração haitiana no Brasil, mas atravessa uma discussão
acerca das relações estabelecidas entre a mobilidade internacional no país, os agenciamentos
revelados na relação com essa mobilidade a partir das fronteiras, e o processo pelo qual os
imigrantes escolhem e possibilitam estar no país de chegada.
Salienta-se que, quando tratamos de imigração e políticas imigratórias no Brasil, temos
alguns apontamentos importantes, principalmente ao se tratar de imigração por vezes dita
indocumentada, isto é, fora de qualquer vigência determinada pela normatização nacional, na
chegada de qualquer estrangeiro ao território brasileiro. A Lei do Estrangeiro de 1980 é o
documento normativo para o caso de imigrantes no Brasil, e a partir desse documento e da
Constituição Federal de 1988 se criou o Conselho Nacional de Imigração - CNIg, tributário ao
atual Ministério do Trabalho e Previdência Social; meados da década de 1990, para analisar os
casos de refúgio, surge o Conselho Nacional de Refugiados - CONARE, tributário ao Ministério
da Justiça. Juntos, eles promovem a gestão das migrações no Brasil.
Dos imigrantes que chegam ao Brasil, imensa maioria encontra-se em dificuldades
econômicas e em busca de um trabalho e uma qualidade de vida que minimamente contemple
a existência, mesmo que na lógica do sistema capitalista no qual vivemos.3 O migrante pobre
abarca a essência do paradoxo da mobilidade, pois migra também sua força de trabalho no
momento da busca por melhores condições na relação de produção de bens – de consumo, de
trabalho, de produção etc. – mas atravessa a rigidez e a relação da vulnerabilidade gerada pela
sua própria condição de indocumentação na relação com o capital, pois não possui bens, nem
está contemplado aos ditames inseridos na lógica do Estado capitalista.
2
Ver Massey: 2008.
3
“Devemos começar por lembrar que a figura do migrante é extremamente diversa, envolvendo múltiplas culturas
e classes sociais, e que a própria migração é movida pelos mais diferentes fatores e visa aos mais diversos
objetivos.” (HAESBAERT, 2007, p. 36).
29
Nesta perspectiva, há uma repartição de competências que faz com que o CONARE e o
CNIg encarem de maneira diversa a entrada de imigrantes no país, um do ponto de vista do
refúgio e outro do ponto de vista do trabalho. Uma conquista importante foi a promulgação de
um decreto, em 2009, pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva, que concedeu anistia aos
estrangeiros que residiam no país de maneira irregular até o primeiro dia de fevereiro do
respectivo ano (10 de fevereiro de 2009).
Ainda assim, o Brasil é um dos países cuja restrição aparenta ser menor quando se trata
da entrada de imigrantes. É contudo uma flexibilidade aparente, pois o Estado brasileiro, ao
mesmo tempo em que possibilita a entrada e a permanência de imigrantes pobres e da classe
trabalhadora, os insere em um processo de apartamento social e espacial nos lugares em que
chegam. Também, as mudanças decorridas nas atuais frentes de imigração nas fronteiras são
confluências mútuas de múltiplos fatores e mudanças decorridas no mundo globalizado4.
Da mesma maneira, há uma questão diplomática para o Brasil quando se trata no apoio
aos países mais pobres do continente americano, como no caso do Haiti. Em 2004 o Brasil já
integrava a Força Interina Multinacional de Pacificação, que logo após se tornou a conhecida
Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haiti (MINUSTAH). Criada pela
Organização das Nações Unidas para suplantar uma série de conflitos políticos oriundos de
fissuras de ordem representativa dos governos nacionais. Destaca-se que o quadro de refugiados
haitianos é, das últimas décadas do século XX até o atual, parte de uma intensidade de relações
vinculadas às ordens globais e locais. Conforme Chaves Júnior (2008), antes do terremoto:
Diante deste cenário, em 12 de Janeiro de 2010 ocorre no Haiti, país insular localizado
na Ilha de Santo Domingo, na América Central, na região do Caribe, um terremoto que marcou
profundamente uma sociedade economicamente frágil e politicamente conflituosa. Há registros
4
“As mudanças no mercado de trabalho nos países industrializados e a crise dos “estados de bem estar social”
devem ser consideradas como importantes motores na dinâmica das migrações internacionais e na motivação das
políticas de imigração. Ocorrem, em primeiro lugar devido a crises econômicas e a mudanças na organização das
forças produtivas (tecnificação e automatização, “reengenharias do trabalho”, terceirização) dos países centrais
(PÓVOA NETO, 2005, p. 306). ”.
30
de mais de quarenta mil mortos devido ao terremoto5. O país e sua capital, Porto Príncipe, bem
como seus representantes, ainda não possuem previsão de recuperação mínima da estrutura
espacial e urbana dos mesmos6.
Um país desestruturado, cujos desastres não necessariamente são desencadeados por um
fato alheio aos processos políticos e sociais existentes no lugar, mas o resultado complexo de
políticas que atingiram – e agora atingem com maior vulto – o próprio sentido de política e de
democracia com a coisa pública. Conforme Chaves Júnior (p. 49, 2008), baseado em relatório
da Organização as Nações Unidas, antes do terremoto, a expectativa de vida para ambos os
sexos no Haiti era de 51 anos. Da mesma maneira, a população haitiana triplicou em cinco
décadas (de 1950 a 2005, foram contados cerca de cinco milhões a mais de pessoas).
O Brasil passa a ser destino da emigração pelas ligações humanitárias já desenvolvidas
no país e pela situação economicamente favorável no decorrer dessa década no cenário
nacional. Do decorrer de 2010 a meados de 2011, se intensifica a chegada de haitianos nas
fronteiras da região Norte do país, em especial por Tabatinga, no Estado do Amazonas, cidade
gêmea de Letícia, na Colômbia e por Brasiléia, no Estado do Acre, cidade gêmea de Cobija, no
Departamento de Pando, Bolívia.
Os problemas, tanto no aumento das restrições para a permanência quanto no aumento
do número de chegada de haitianos pela fronteira amazônica, começaram a surgir, de maneira
mais incisiva, em 2012. Logo nos primeiros dias deste ano, uma Resolução Normativa é criada
pelo CNIg, no limite de 1200 vistos – 100 por mês - de permanência por ano para imigrantes
haitianos, estabelecendo um visto de natureza humanitária com validade de cinco anos7.
5
“A situação social no Haiti vem desde muito se deteriorando e apresenta-se como uma das maiores catástrofes
humanitárias das Américas. Como se não bastasse a crise política que o país vive há mais de 20 anos, situações
de extrema gravidade como intempéries climáticas e, mais recentemente, um terremoto, que matou mais de 48.000
pessoas, tem contribuído para a deterioração do tecido social e ampliado a extrema miséria que vive a maior parte
da população. Neste quadro, a busca de saídas inclui, naturalmente, a emigração. O Banco Mundial (2011) estima
que, aproximadamente, 10% da população do país (1.009.400) tenha emigrado e outras fontes afirmam que a
diáspora haitiana já teria passado a casa dos 3,0 milhões de emigrantes (Haitian Diáspora- 2011). Este contingente
se espalha pelos Estados Unidos e pelo Caribe, principalmente a República Dominicana.” (PATARRA, 2012, p.
13)
6
“Um terremoto de magnitude 7 na Escala Richter atingiu o Haiti nesta terça-feira, às 16h53 no horário local,
19h53 em Brasília. Com epicentro a 15 Km da capital, Porto Príncipe, segundo o Serviço Geológico Norte
Americano, o terremoto é considerado pelo órgão o mais forte a atingir o país nos últimos 200 anos. Dezenas de
prédios da capital caíram e deixaram moradores sob escombros. Importantes edificações foram atingidas, como
prédios das Nações Unidas e do governo do país. O presidente haitiano, René Préval, afirmou que pelo menos 7
mil pessoas mortas no terremoto já foram enterradas em uma vala comum. O Haiti é o país mais pobre do
continente americano.” (Notícia do Portal Terra, em 15/10/11. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/o-
pais-acabou-diz-haitiano-no-brasil.e9f86355ccaea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html).
7
“... Parágrafo Único. Poderão ser concedidos até 1200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma
média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições
legais do país...” Disponível em: http://acesso.mte.gov.br/cni/2013.htm.
31
Em abril de 2013, o parágrafo da Resolução número 97 que previa cotas foi revogado,
e em maio o CNIg aprovou outra resolução normativa9, que eliminava o limite de vistos para
8
Fonte: Portal Midia News do Acre, em 14/08/13.
9
Conforme Resolução Normativa do Conselho Nacional de Imigração No 102 de26/04/2013:
“Altera o art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012.
32
É salutar compreender que a escolha não é considerada nas pautas da gestão pública e
na política de permanência de imigrantes refugiados, em grande medida desconsideram a
necessidade do migrante, e em casos extremos utilizam-se do discurso da invasão. Tal discurso
impulsiona frentes políticas e sociais da imigração, seja nas heranças sociais depreendidas dos
processos migratórios passados, seja nas políticas restritivas que acompanham tais processos,
como o caso do Brasil.
O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 e organizado pela Lei nº
10.683, de 28 de maio de 2003, no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993,
Resolve:
Art. 1º. O caput do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012, passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 2º. O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério
das Relações Exteriores."
Art. 2º. Fica revogado o parágrafo único do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 2012.”
(Disponível em: http://acesso.mte.gov.br/cni/2013.htm). (Grifo meu).
33
1.1 Objetivos
3 – Analisar os contextos políticos tanto dos imigrantes haitianos quanto da política brasileira,
e cruzá-los às respectivas estratégias a partir de quatro perspectivas-chave: geometrias de poder,
agenciamentos, diáspora e redes sociais de imigração.
Porém, entendemos que a mobilidade é do trabalho não somente pelo processo histórico
e inerente do desenvolvimento do capitalismo, mas, sobretudo pelas relações estabelecidas nas
diversas formas do poder em espaços distintos10.
Singer11 (1980) estrutura as bases do capitalismo a partir da industrialização como um
fator essencial para entender a complexidade das migrações em um processo social. Em seu
livro “Economia política da urbanização”, o autor pensa acerca dos processos migratórios no
Brasil e os define a partir dos fatores de atração e expulsão, considerando a demanda por força
de trabalho (e não mais o trabalho ou a força e em si) como atração (o imigrar), e fatores de
mudança e/ou fatores de estagnação como expulsão (emigrar). Segundo ele:
10
Essa reflexão é importante porque, como veremos adiante quanto ao caso do Haiti, a fragilidade política e social
no Haiti remonta relações de poder que se cruzam com mais duas frentes: a corrupção estrutural e a extrema
dependência externa. Tais elementos trazem outras complexidades, como fragilidade do papel da sociedade
haitiana no seu papel de escolha política e social dentro de seu país, o qual conforme elementos neste trabalho
percebem-se o quão se torna mínima a participação social nas principais decisões do Estado. Tais referenciais
denotam essa necessidade paradoxal dos Estados que pode ser compreendida através das suas relações de força
que se situam no seio do processo de migração e na constituição do migrante.
11
Vale ressaltar que o autor aponta questões referentes à migração interna, e que não levam em consideração os
elementos da migração internacional.
36
desde sua origem, requer e, por isso, constitui reservas de capacidade produtiva e de
força de trabalho, que somente são utilizadas nos momentos em que a economia se
expande com maior vigor. Conviria examinar a ‘marginalização’ sob este ângulo
antes de se saltar à conclusão de que uma parte da oferta de força de trabalho,
constituída sobretudo por migrantes, simplesmente não é aproveitada pelo sistema
(SINGER, 1980, p. 60).
Talvez, o que se requeira seja incutir uma (noção de) subjetividade que não seja
exclusivamente temporal, que não seja a projeção de um interior – conceitual,
introspectivo, mas, antes, uma subjetividade que seja também espacial, olhando
abertamente em suas perspectivas e na consciência de sua própria constituição
relacional. (MASSEY, 2010, p. 124).
O espaço – e o lugar, envolvem sociabilidade, mas o indivíduo não deixa de existir, pelo
contrário, reflete e absorve outras espacialidades e territorialidades. O político se faz em todas
as perspectivas, seja na interseção, nas laterais etc... Pois, de todas as formas, o sujeito não deixa
de ser participante. Porém, há as configurações de poder estabelecidas por organizações,
corporações e elites minoritárias que em cada particularidade do espaço, manifesta conforme
suas peculiaridades.
A globalização, por exemplo, ideologicamente exposta como a abertura dos espaços e
um tempo diferenciado para tais espaços, mascara desigualdades e o movimento real, pois tal
desigualdade, além de temporal (no sentido da multiplicidade do espaço no tempo) é espacial
no tocante ao significado, ou seja, na interpretação hegemônica dos sujeitos.
O espaço global, como o espaço de modo mais geral, é um produto de práticas de poder
material. O que está em questão não é apenas a abertura e o fechamento ou a ‘extensão’
das conexões através das quais nós, ou o capital financeiro, ou o que quer que seja...
presta atenção às nossas coisas. O que está em questão são as novas geometrias de
poder constantemente-sendo-produzidas, as mutantes geografias das relações-de-
poder (MASSEY, 2010, p. 130). (Grifo meu).
Massey entende essas geometrias de poder como parte do que ela refere a stories-so-
far, estórias-até-agora que remetem à própria multiplicidade do pensamento e das
possibilidades quiçá peculiares e constantes, e por isso estórias. Já que serão sempre geometrias
de poder, frente à constatação de que nem o espaço nem o pensamento são palpáveis e
41
12
Ver também: MASSEY,2007, p. 142-155.
42
não aos direitos de uma outra liberdade e de tornar-se político legitimamente e consciente de
sua produção espacial na cidade, mas vincula uma ideia de família, de propriedade dos espaços,
de confinamento e de dividir financeiramente. A partir daquilo que Foucault (2008) apontará
como transição entre sociedades disciplinares para sociedades de segurança, Deleuze irá
redefinir como sociedade de controle:
Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem
um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades
disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da
integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras,
que marcam o acesso à informação, ou rejeição. Não se está mais diante do par
massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas
tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor
exprima a distinção entre as duas sociedades [...] A velha toupeira monetária é o
animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.
Passamos de um animal a outro, no regime em que vivemos, mas também na nossa
maneira de viver e nas relações com outrem (DELEUZE, 2011, p. 226-227).
13
Estamos certos ao dizer (e faremos com mais detalhes posteriormente) que esses ditames tornam-se
agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
43
capitalista). Essa produção torna o desejo um desejo dos outros, porque não é legítimo ao
sujeito. Por isso a máquina capitalista é esquizofrênica, pois ela depende do corpo sem órgãos
para produzir sua própria fonte, sendo assim uma ilusão de desejo.
Ao mesmo tempo, esse corpo não deixa nunca de produzir desejos, que estão associados
a essa máquina capitalista ou não. Ou desvirtuam-se da esquizofrenia da máquina capitalista e
reincorporam novas fontes de desejo. Se na relação que se procede a máquina desejante, a
fluidez é contínua e múltipla, na máquina paranóica, a relação se torna contraproducente ao
desejo do corpo, para um corpo do desejo, tornando-se registro. A contraprodução é, na
realidade, a expressão de uma das múltiplas produções do desejo.
Os agenciamentos, produtos e produtores do desejo, assim como possibilitam diversas
fontes de querer, desejar e fortalecer as vontades, também alimentam discursos e produtos de
discursos que engendram determinadas funções e determinados atos para a sociedade. O desejo
aqui pode ser tanto do migrante, que agencia possibilidades do viver ou constroi suas
amarrações políticas, quanto do Estado em aprimorar suas máquinas políticas e seus discursos
que na maioria das vezes subjuga e subordina o migrante. Agenciar não é somente um ato
nebuloso, que alimenta ideologias, mas um processo de produzir desejos que se expressam a
partir de um conteúdo, que pode ser falar, mas pode ser também gestos ou até silêncios14.
Cogo e Gorczevski (2012) também ressaltam a importância desse sentido de
agenciamento proposto por Deleuze e Guattari na compreensão das subjetividades e relações
políticas entre grupos migrantes, que acenam a todas as formas de relações existentes, no
sentido diverso e múltiplo.
Analisar um ou mais migrantes narrarem seus argumentos atravessados por relações
familiares e afetivas, na verdade, como advertem Deleuze e Guattari, é indicativo de
composição de agenciamentos. O desejo não se situa, assim, no plano da
representação, mas da criação de agenciamentos.[...] Os agenciamentos podem ser
solitários, a dois, sendo, ao mesmo tempo, coletivos. Seguimos, então, nos
perguntando como as relações com o “outro” foram decisivas para potencializar
fluxos e mudanças (COGO; GORCZEVSKI, 2012, p. 151).
14
Vale ressaltar que os agenciamentos também não são únicos. São sobretudo resultantes de um contexto, de uma
configuração que envolve uma relação que é múltipla. “É somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como
substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como
realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo [...] Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto,
mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de
combinação crescem então com a multiplicidade) [...] Um agenciamento é precisamente este crescimento das
dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões.
Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem
somente linhas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16-17) ”.
44
15
De acordo com o novo acordo ortográfico, o gentílico do Estado do Acre passaria a ser “acriano”, em
normatização com outros gentílicos (como iraquiano ou jordaniano). Contudo, o termo acreano data de antes da
indexação do Acre ao Brasil, o que foi motivo de consulta pública pelo governo do Estado do Acre, que promulgou
em julho de 2016 a Lei No 3.148, re-instituindo o termo acreano. Dessa maneira, nesta tese utilizar-se-á o gentílico
com e, e não de acordo com a norma gramatical.
45
diáspora, percebida e concebida tal como Handerson (2015) aponta quanto aos imigrantes
haitianos, que os agenciamentos também são conduzidos nesse espaço e nesse tempo.
Depreende-se, a partir dos ricos apontamentos de Handerson (2015), que os haitianos
constituem um processo diaspórico que vai além do uso corrente do termo, pois no Haiti é
relacional e co participante, isto é, conforme o autor, eles atribuem-se a si mesmos a própria
diáspora assim como seus processos de mobilidade vão ao encontro de uma causa maior,
coletivizada no espaço e no grupo ao qual pertencem. Não é à toa a participação e criação de
associações políticas e culturais via acesso e acolhimento entre haitianos desde o início do
chamado fluxo para o Brasil.
Possuir familiares na diáspora não significa, necessariamente, ser aquele
provavelmente que viaja ou ser o primeiro na cronologia das viagens. Pois, “ter
familiares” não garante a mobilidade dos que ficam. Isso exige disposições internas
(capacidade da pessoa mobilizar as redes) e disposições externas (recursos dispostos
ao indivíduo). São duas dimensões essenciais do capital social dos candidatos à
viagem, mas não são as únicas.
A decisão (e também a escolha) de quem viaja é pragmática, algumas características
do candidato são levadas em conta pelos familiares. Alguns parentes residentes
aletranje, para decidir quem vão “mandar buscar” primeiro (na cronologia), levam em
conta as condições de possibilidade de inserção rápida do viajante no mercado de
trabalho aletranjee, também, se este possui um espírito coletivo, de respeitabilidade,
para guardar a reputação da família, se é generoso para cumprir com as obrigações
com aqueles que ficaram, não deixar de participar da vida ativa familiar, tanto entre
os que estão na diáspora quanto entre os que ficam no Haiti (HANDERSON, 2015,
p. 185).
Esse “ser diáspora”16 promove não só a mobilidade em si, mas possibilita um conjunto
de interesses que vão mobilizar o grupo como um todo. O fracasso do ser diáspora é também o
fracasso para o grupo. Da mesma maneira, sua inserção em espaços distintos, ainda que não
corra o retorno para o Haiti, não implica no desprendimento de suas relações.
Por esse sentido coletivo de diáspora, pelos agenciamentos ocorridos no processo de
partida e de chegada do migrante haitiano, entendemos que a metodologia de análise deva se
aproximar ao estudo das redes sociais de migração, muito também por compartilhar a ideia de
espaço de uma maneira mais ampla, entendendo a participação de tal categoria na formulação
e na exposição de uma pesquisa.
As condições que dão origem à migração podem ser totalmente diferentes das
condições que a perpetuam no tempo. Ao passo que transformações estruturais nas
sociedades de origem e de destino respondem pelo início dos fluxos migratórios
internacionais, as redes sociais conferem a tais fluxos estabilidade, transformando-os
em movimento de massa. [...] Essas relações não são criadas pelo processo migratório,
mas são adaptadas por ele e, no decorrer do tempo, são reforçadas pela experiência
comum da migração. (SOARES, 2003, p. 240).
16
Tal expressão foi adotada a partir de Handerson (2015), conforme se explicará adiante.
46
Autores como Soares (2003), Ramella (1995) e Massey (1987) são essenciais ao
entendimento dos processos histórico e geográfico que culmina nas redes de imigração de
haitianos no Brasil.
Encerrando a parte conceitual, quanto à operacionalização, vemos a importância de
entrevistas semiestruturadas, isto é, que possuem uma rota comum a partir da hipótese do
pesquisador. Ela não segue um roteiro detalhado de perguntas, mas uma direção que facilita o
processo da entrevista. Diante das dificuldades entre imigrantes de compreensão de
determinadas palavras em português, assim como da facilidade na transcrição destas, seja em
francês ou em português, a liberdade das perguntas, ainda que seguindo determinada direção,
facilita a prática de pesquisa conforme o enunciado.
***
Foram elaboradas entrevistas in loco, tanto com haitianos, quanto com representantes
que auxiliaram no processo de inserção política e social dos imigrantes haitianos no Brasil em
lugares de passagem e de permanência de grupos haitianos, em especial Acre como lugar de
chegada, São Paulo como cruzamento entre mobilidade e permanência e Rio Grande do Sul
como cruzamentos de permanência e mobilidade. As mesmas se deram com imigrantes
haitianos, representantes de instituições ligadas aos imigrantes e gestores locais, na proposta
também de entender coletivamente e auxiliar a partir de mecanismos analíticos o papel da
gestão pública e da coisa pública no cenário da imigração no Brasil, na realidade e no contexto
vivido por essa sociedade.
Optou-se pela não utilização de gravador na maioria das entrevistas. Essa alternativa,
assumida com risco se justifica pelo caráter invasivo em que muitas vezes a conversa gravada
afeta o conteúdo e a empatia nas conversas para a pesquisa, ainda mais no caso em que grupos
migrantes sofrem adversidades em várias camadas do tempo e do espaço. Isso possibilitou
também a tradução simultânea de boa parte das conversas em francês para o português, como
se verá nos capítulos adiante.
Os trabalhos de campo se dividiram em três momentos: houve um trabalho de campo
na cidade de Rio Branco, Estado do Acre, utilizando entrevistas informais com representantes
do governo e da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Acre, uma das responsáveis pelo
Abrigo na cidade, bem como a obtenção de dados importantes sobre entrada e saída de
imigrantes de diversas nacionalidades, que foram compiladas, trabalhadas e expostas no
decorrer da tese. Esse trabalho de campo ocorreu em Fevereiro de 2015. Esse campo foi
importante para conhecer parte importante da rota pela fronteira brasileira, assim como os
48
2 CAPÍTULO II
IMIGRANTES ESTRANGEIROS NO BRASIL, AS POLÍTICAS E AS
RELAÇÕES: CARTOGRAFIAS DESDE O HAITI
2.1 Brasil e Haiti – Século XIX: das transformações políticas, sociais e econômicas
Mas esses movimentos e suas estratégias políticas no Brasil são processos decorridos
de várias articulações. Eles representam processo de povoamento induzido desde as origens de
sua ocupação pelos portugueses, e que no século XIX torna-se latente com o processo político
que culminou na chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Além disso, ocorre
o crescimento da ideia de liberdade entre negros e mulatos, acentuada entre o início e a primeira
metade do século XIX17, até a sua Abolição em 1888.
Contudo, o número de negros escravos, ou mesmo os alforriados em situação de tortura
física ou psicológica não deve ser esquecido, ainda mais pelo seu papel constituinte na atuação
e no funcionamento da economia exploratória como no Brasil. A chegada dos europeus não
atingiu a subserviência e os sucessivos descasos para com a maioria negra do país, no mais
escamoteou relações conforme um projeto conveniente para países europeus e para e elite
imperial brasileira.
Azevedo (1987, p. 109) em seu clássico “Onda negra, medo branco” analisa as práticas
e discursos que motivaram a aceitação do movimento imigrantista europeu para o Brasil. Uma
das principais causas era o movimento cada vez maior da “onda negra” iminente e
revolucionária que acarretaria em conflitos entre escravos negros e senhores brancos nas
fazendas. A necessidade, portanto, de definir e avaliar qual imigrante deveria trabalhar nessas
fazendas de café do país tornou-se necessária a fim de conter maiores riscos, o “medo branco”.
Para Seyferth (1999; 2002; 2014), existe uma diferença importante entre a chegada de
europeus antes do século XIX e durante esse período. Primeiro, pela forma e pela importância
dada aos imigrantes, suas definições sob várias complexidades. É notório que a partir do século
XIX, com a chegada da Corte portuguesa, se classifica o imigrante, isto é, se caracteriza e se
compõe um imigrante, um estrangeiro no Brasil. Em segundo, da mesma maneira que se define
e se “amarra” uma ideia de imigrante, escamoteia-se uma maioria da população negra, migrante
e forçada no país: os escravos traficados eminentemente a partir do século XVII para o Brasil.
17
“Em que pesem as variações de capitania a capitania (no extremo norte e no extremo sul, por exemplo, havia
predomínio indígena) e as imprecisões dos dados demográficos disponíveis, a população colonial brasileira no
início do século XIX guardava as seguintes proporções: 28% de brancos, 27,8% de negros e mulatos livres, 38,5%
de negros e mulatos escravizados, 5,7% de índios[...] A gênese dessa grande população livre negra e mulata se
deu, fundamentalmente, pela dinâmica do tráfico transatlântico de escravos acoplada à dinâmica da alforria. A
escravização dos africanos, seu transporte para o Brasil, as atividades que aqui desempenharam como escravos
(em geral, nas tarefas rurais e urbanas que não exigiam qualificação), a recomposição dos laços familiares e
culturais, a produção de descendentes, que, em uma ou mais geração, certamente obteriam a liberdade via
manumissão: todos esses movimentos e outros mais podem ser tidos como parte de um processo institucional em
larga escala de transformação de status.” (MARQUESE, não paginado, 2006).
51
Essas duas perspectivas e diferenças irão tensionar em todas as escalas até o século XXI,
pois são constituintes de políticas completamente distintas de imigração. Da mesma maneira,
portugueses e espanhóis formam no início do século XIX os principais grupos migrantes. Tal
como Azevedo (1987) aponta:
18
Considerando uma população européia de maioria protestante, contradizendo as primeiras políticas instituídas
para migrantes, neste momento. Para maiores informações sobre a imigração alemã: Seyferth (1999; 2002; 2014).
19
Lei 581 de 4 de Setembro de 1850.
53
trabalhadores brasileiros.
E todos, sem exceção, a ignorar os negros.
Existia, portanto, uma série de fragilidades no processo de inserção dos imigrantes no
Brasil que começam a despontar na segunda metade do século XIX, sobretudo as noções de
cidadania e participação já crescentes na Europa pós-revoluções burguesas, assim como uma
massa de migrantes pobres e escravos que sobreviviam frente a todos os tipos de adversidades.
Enquanto tais processos eram mediados com decisões frágeis e carimbados pelos interesses das
elites agrícolas, individualistas frente às suas demandas, os países de ascendente capitalismo
industrial tentavam contraditoriamente escoar sua produção industrial.
Observa-se algo mais amplo frente à criação das políticas de imigração no Brasil que
formam um processo que tem repercussões até os dias atuais. A função e a forma da imigração,
e seu investimento, tinham dois alicerces principais: a raça e o trabalho. Elas irão mais à frente
se intensificar, à medida que os interesses representativos aos diversos processos de acumulação
se diversificam.
Faz-se necessário depreender a relação entre as políticas de imigração no Brasil e as
heranças sociais indicadas nesta linha – políticas direcionadas eminentemente para a relação
trabalho e exploração de recursos materiais no país. Essas políticas promoveram um processo
de estratificação social e do trabalho e se tornaram produtos de uma série de discursos que
futuramente inferiorizariam e marcariam estereótipos com determinados grupos migrantes,
dentre eles, os haitianos. Tais reflexos marcariam diretamente suas estratégias de permanência
no Brasil.
Para a independência do Haiti ser ratificada e este ser considerado livre das ordens
coloniais, um lento e gradual processo de abertura com muito sangue e muita guerra foi
necessário. O cenário é que levou à independência de um país com economia fundada pelo
latifúndio e pela exploração do trabalho escravo.
Ainda no século XVIII, a escravidão tinha traços de profundo massacre e subserviência
vinda das classes mais nobres comandadas pela França. Alguns aspectos foram importantes
para os movimentos insurgentes no final deste século:
1 – As revoltas parisienses que culminaram na fragmentação social e política entre jacobinos e
girondinos, resultando mais tarde na chamada Revolução Francesa;
55
A colônia fora devastada por doze anos de guerra civil e contra a ofensiva estrangeira.
Dos trinta mil homens brancos que havia na colônia em 1789, uma parte havia sido
morta e outra emigrara, de tal forma que então restavam apenas dez mil. Dos quarenta
mil mulatos e negros livres, sobraram ainda trinta mil; enquanto, dos quinhentos mil
negros escravos, talvez uma terça parte tivesse perecido. As fazendas e os cultivos
foram arruinados em larga escala. Por aproximadamente dez anos, a população,
anteriormente já bastante corrompida, havia sido treinada para matanças e impregnada
de violência. Hordas de saqueadores vagavam pelo campo. A única força disciplina
era o exército. E Toussaint instituiu uma ditadura militar (JAMES, 2010, p. 222).
A ilha recupera seu nome indígena, Haiti, que significa país das montanhas. Surge a
bandeira nacional, simbolizando a união entre os negros, representados pela cor preta,
e os mulatos, cujo símbolo é o vermelho. A divisa: A liberdade ou a morte
(SEITENFUS, 1994, p. 31).
Vale destacar o papel dos Estados Unidos, não só no financiamento direto e indireto de
São Domingos, quanto da região da América Central, que se intensificará no século seguinte de
uma forma mais incisiva na dependência para com os norteamericanos. As estratégias do
governo americano se aproximam ao ditado “comer pelas beiradas”, pois ao mesmo tempo em
que davam instrumentos e investimento para o loteamento de terras entre a população haitiana,
57
20
Os apontamentos de James (2010), Marcelin (2010), Grondin (1985), dentre outros que ressaltam o papel dos
Estados Unidos no final da revolução, em 1804, até mesmo quando presenteia o então imperador, Jean-Jaques
Dessalines com a própria coroa, e financia terras para os proprietários vencedores, isto é, membros do alto exército
revolucionário.
21
"Com uma estimativa de 100 escravos por amo ou capataz em uma típica plantation de cana de açúcar, os perigos
implícitos nas circunstâncias precisaram ser fortemente destacados para aqueles cujos poderes coercitivos foram
virtualmente as únicas coisas que ficaram entre eles e a ameaça presente de rebelião aberta por uma população
inquieta. [...] Isto, de fato, foi a marca, o sine qua non, do status e do poder do 'mestre' enquanto fiador, por quase
58
100 anos, de seu sucessivo controle sobre o que foi intrinsecamente uma profunda e volátil configuração sócio-
demográfica. Isto é um legado cultural do regime de plantation que não foi derrubado pela Revolução nem caiu
nos anos subsequentes. Hoje a afirmação atávica de dominância pessoal através de excessiva arbitrariedade do
poder - seja por exações físicas ou outras formas de violência - permanece nas dinâmicas sociais e políticas
haitianas em diversos níveis, da família ao Estado. [...] Como haitianos frequentemente colocam, é melhor ser
temido que respeitado. Na violência do período revolucionário (1791-1804), a arbitrária brutalidade do regime de
plantation foi mantida, em parte, por aqueles que por tanto tempo a perpetraram, incluindo não-combatentes.
Todos os lados, cada um com suas razões, sucumbiram a este impulso mais do que resistiram" (MARCELIN,
2010, p. 6, tradução minha).
59
1875), os quais eram da Carolina do Sul, e para legislaturas estaduais, caso de Cesar
C. Antoine (1868 a 1872) em Louisiana. Entretanto, devido às leis de Jim Crow e às
atividades criminosas da Klu Klux Klan durante o último quartel do século XIX,
Haitiano-Americanos do Sul profundo foram re-marginalizados, tornando-os
inelegíveis para cargos estaduais e nacionais como antes, devido em parte à retirada
de seus direitos de voto. [...] Durante um agudo período de tensão "racial" em
Charleston resultante da repressão da Conspiração Versey (1822), imigrantes
haitianos foram alvos da comunidade euroamericana enquanto potenciais
colaboradores dos conspiradores, então alguns imigrantes buscaram refúgio no norte,
onde outras comunidades haitianas apareceram. A comunidade haitiana da
Philadelphia proveu um nicho para a maioria destes novatos (LAGUERRE, 2005, p.
829, tradução minha).
Há uma desconfiança mais clara quanto à subvenção de imigrantes no Brasil por parte
dos outros países, ainda que a entrada de imigrantes até 1945 tenha sido significativa. É no
Estado Novo, na ditadura de Getúlio Vargas, que as mudanças no cenário das políticas
61
imigratórias tornam-se significativas por frentes até mesmo divergentes: a entrada de migrantes
em adição à restrição mais marcada por princípios políticos. Outra característica importante são
as relações internacionais dessa época, fechadas pelos conflitos das seguidas guerras mundiais
e pelas relações mais contundentes quanto ao imperialismo e o racismo.
Ainda que os imigrantes japoneses tivessem um senso de “organização” condizente com
os interesses para o Brasil e a política restritiva, o papel do governo japonês a fim de garantir
os direitos dos emigrados foi fundamental para a reivindicação por melhores condições de
trabalho nas fazendas22. Porém, isso aumentou a desconfiança, já presente diante do cenário de
fragmentação nos chamados quistos étnicos. Outro aspecto que se mistura aos eventos desta
época foram as tentativas políticas de caldeamento de grupos migrantes subvencionados pelo
Estado, ora para ratificar os interesses de diversidade e de branqueamento da nação, ora para
restringir tais grupos contestatórios.
Essa forma mais racista de pensar a nação não é única, mas dominou o pensamento
social brasileiro até a década de 30 e, de modo mais subjetivo e eufemístico, persistiu
no Estado Novo, influindo na política imigratória. De qualquer modo, a breve menção
ao ideal de branqueamento é significativa porque ele é incompatível com as
etnicidades formalizadas no Brasil pelos diferentes grupos de imigrantes e chegou a
ser repudiado com veemência em algumas publicações teuto-brasileiras. A partir da
década de 30, diversos recursos de retórica são utilizados para diluir o discurso racial,
mas as práticas voltadas para a imigração e os imigrantes mostram a persistência do
mito e a preocupação com a homogeneidade nacional — cultural e racial. Daí a ênfase
na necessidade de assimilação e caldeamento que redundou na campanha de
nacionalização implantada após 1937 (SEYFERTH, 1999, p. 212).
22
“Quando os imigrantes japoneses começaram a entrar no Brasil, em 1908, eles eram vistos como substitutos
dóceis para os militantes europeus. Uma década depois, a lua-de-mel havia chegado ao fim: embora alguns
integrantes da elite continuassem a insistir na perfeição dos novos imigrantes, um movimento antijaponês começou
a surgir. Em fins da década de 1920, a Campanha Anti-Nipônica estava a pleno vapor, frequentemente tendo como
alvo principal as nibonjin-kai (as associações japonesas), que patrocinavam escolas e contribuíam para a
manutenção da cultura pré-migratória, o mesmo papel desempenhado pelas igrejas, no caso dos imigrantes
europeus. Os políticos nativistas centravam-se, em boa medida, em pôr fim a uma “invasão” japonesa, impedindo
os assentamentos na região amazônica, o ‘Brasil original’” (LESSER, 2001, p. 194).
62
As pretensões de branqueamento não mudaram desde o século XIX; e mais uma vez
são usados critérios pretensamente científicos para especular sobre a inferioridade dos
asiáticos, mudando apenas a etnia perturbadora — entra em cena o japonês, presente
nas estatísticas imigratórias desde 1908 [...] As implicações racistas desse temor são
atenuadas ao sugerir que um “enxerto maciço” de nipônicos só seria admissível após
exaustivos estudos antropológicos para avaliar seus efeitos sobre a população
brasileira. Afinal, o “desejo” do branqueamento prevalece sobre qualquer ciência
(SEYFERTH, 1999, p. 215-216).
A partir de 1934, foi estabelecido o sistema de cotas para migrantes estrangeiros, que
não poderia passar de uma determinada porcentagem e privilegiaria os estrangeiros latinos, bem
como estabelecia as comunidades mistas de imigrantes. Acirra-se a restrição nos termos mais
hostis, e pior, em uma clareza e transparência por parte do processo político.
O final do Estado Novo converge também com o final da Segunda Guerra Mundial, mas
o trabalho do Conselho de Imigração e Colonização, embora substituído pelo Departamento de
Imigração e Colonização em 1952, continuara com a prática personalista de escolher qual
migrante é ideal. Recorrente também foi a pauta na escala mundial, e sob paradigmas de
considerar o refugiado como o europeu. A criação da Organização Internacional dos Refugiados
e do Comitê Intergovernamental para Migrações Européias – CIME, atentando aos interesses
das novas migrações consolidou o vínculo do Estado e da migração.
Os deslocamentos sob os auspícios do CIME tinham uma relação direta com o novo
contexto de desenvolvimento econômico no pós Segunda Guerra Mundial, como
afirmado anteriormente. O estabelecimento de empresas multinacionais na América
Latina, Oceania e África, reincorporou regiões à nova lógica da expansão capitalista.
Concomitantemente, à migração de capitais e empresas seguiu-se à migração de
trabalhadores oriundos de áreas com desenvolvimento industrial mais pretérito cuja
força de trabalho não era necessária dado o processo de reorganização produtiva da
Europa Ocidental no pós Guerra. Assim, o velho binômio exclusão/incorporação,
presente nos deslocamentos populacionais desde o século XIX, foi reatualizado com
o objetivo de fortalecer os laços de (inter)dependência econômica do mundo
capitalista (PAIVA, 2008, p. 8).
O final da Segunda Guerra Mundial (1945) veio com uma série de impasses e debates
quanto às novas mudanças globais, que possibilitariam a ascensão de determinadas nações no
cenário internacional – com Estados Unidos e União Soviética -, e novos fluxos migratórios
ainda oriundos dos conflitos que destituíram milhares de grupos judeus em vários países da
Europa, além dos grupos dizimados por uma guerra de grandes proporções. A necessidade de
um discurso alinhado quanto ao futuro do mundo faz-se urgente nesse cenário.
64
Ainda segundo Seyferth, até 1960, as cotas para estrangeiros e as restrições para
entradas de outras nacionalidades “mal-vistas” à política e principalmente às elites,
permaneceram. Ora, se não houve uma pressão para mudanças sérias com a criação de
organizações internacionais, bem como as intervenções mais diretas das alas progressistas
religiosas - em grande medida do catolicismo, não seria na ditadura militar brasileira (1964 -
1985) que se mudaria o cenário.
65
Ainda que com a ideia de bipolarização do mundo pela Guerra Fria, a pauperização dos
chamados países subdesenvolvidos e o deslocamento em diversas vias, como por exemplo as
conflagrações no Leste Europeu, ou as tensões nacionalistas e étnicas africanas, bem como as
ditaduras e intervenções militares em países do Caribe e da América Latina tenham
intensificado a discussão dos refugiados, asilados, exilados e imigrantes em geral, a concepção
da “segurança nacional”23 foi levada em conta nas mudanças em definição à criação de novos
mecanismos jurídicos para entrada de estrangeiros no Brasil. Com isso, em 1980, já no final do
período ditatorial, entra em vigor, após muitas discussões e contradições, o Projeto de Lei que
se tornará a Lei 6.815 de 1980, ou a Lei do Estrangeiro, que ainda está em vigor, apesar de
todas as suas ideologias calçadas nesse ideário de segurança nacional.
É também no Estatuto do Estrangeiro que se formaliza o papel do migrante como força
de trabalho, condição para entrada e permanência no Brasil. Isto é um diferencial por ratificar
um processo iniciado ainda no século XIX quanto à entrada subvencionada. Se agora não se
mede a condição do imigrante pela sua força, se estabelece que é da força de trabalho que ele
deve entrar e ficar no país.
A Lei de Estrangeiros em vigor até 2017 (Lei 6815, de 19 de Agosto de 1980, alterada
pela Lei 6964, de 09 de Janeiro de 1981)24 possui duas dimensões: a securitária e a
desenvolvimentista, no sentido de chamar migrantes conforme a demanda das empresas e várias
falhas no que se trata a garantir direitos básicos a migrantes estrangeiros. O contexto de sua
discussão e criação se alia a tentativa de expulsar frentes progressistas acusadas de conspiração
comunista (o caso dos padres estrangeiros) e de estrangeiros acusados em países também em
ditadura sul-americana (os casos dos uruguaios, paraguaios, argentinos, chilenos, peruanos,
venezuelanos etc). Também sobressai o poder da justiça e da polícia em decidir parcialmente,
conforme tal lei, a entrada e a saída de imigrantes, o que abre precedentes muito mais violentos
na ordem dos direitos humanos.
Ao mesmo tempo, se intensifica na década de 1980 um fluxo Sul-Sul, de peruanos e
bolivianos para o sudeste do Brasil. Coincidentemente é pensado, já na abertura política, em
23
Ver mais em: SPRANDEL, Márcia Anita. Migração e Crime: A Lei 6.815, de 1980. REMHU, Brasília:
JUL/Dez 2015, p. 145-168.
24
As alterações foram, conforme Sprandel: “1) Introdução do Inciso VIII no art. 13, incluindo os ministros de
confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa entre os
estrangeiros com direito a visto temporário; 2) Incluido no art. 46 (agora 47) a expressão ‘quando requisitados’ ;
e 3) modificando o art. 74 (transformando em 75), para determinar que não se procederá à expulsão quando o
estrangeiro tiver cônjuge brasileiro do qual não esteja divorciado ou separado, de fato ou de direito, e desde que o
casamento tenha sido celebrado há mais de 5 (cinco) anos; ou filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob
sua guarda e dele dependa economicamente (SPRANDEL, 2015, p. 163) .”.
66
1985, o programa Calha Norte25, a fim de promover a segurança das fronteiras entre países
latinoamericanos. Os preceitos geopolíticos de acirramento das fronteiras também são sinais
aos imigrantes pobres, que não seriam bem-vindos. As impressões entre habitantes das
fronteiras, principalmente Peru e Bolívia, ainda hoje denotam o extremo preconceito das duas
partes, muito em razão do consenso político de fechamento interno.
Ainda que com muitas ressalvas, o estatuto do Estrangeiro foi importante para construir
uma base de instrumentalização normativa para imigrantes no Brasil com participação de
imigrantes e entidades ligadas às questões referentes à imigrante sno Brasil. Em 1991 é
reconsiderado e dado poderes para o Conselho Nacional de Imigração – CNIg – existir.
Somente na década de 1990, a questão do refugiado é acenada na inscrição política. O Conselho
Nacional de Refugiados (CONARE) é criado para garantir os direitos dos refugiados no Brasil,
sob o comando do Ministério da Justiça. Sua criação possui um contexto muito específico, em
relação ao aumento de angolanos refugiados, seguido pelos colombianos desde o início da
década de 1990.
Apesar dos avanços, a criminalização do imigrante é parte do tom da política brasileira,
e sua naturalização incitada pela burocracia e personalismo é fonte de embate e conflito para
quem ainda luta e pede conquistas por direitos e cidadania.
25
“Podemos identificar algumas ideias que orientam a formulação do programa. Em primeiro lugar, a soberania e
o desenvolvimento ordenado estão associados à maior presença do Estado, que possibilita, por meio da assistência
às populações, “fixar o homem na região” – ideia que permanece como elemento simbólico do controle combinado
sobre o território e a população na Amazônia. Em segundo lugar, existe a percepção de que os problemas que
deram origem ao PCN se agravaram, o que justifica a ampliação de sua área de abrangência para além da faixa de
fronteira da Calha Norte, definida inicialmente. Enquanto o “esvaziamento demográfico” permanece como
preocupação seguindo uma visão tradicional das concepções de segurança e defesa, a “intensificação das práticas
ilícitas” assume uma importância cada vez maior como elemento de insegurança. Em terceiro lugar, pode-se notar
a incorporação de um discurso que valoriza questões ambientais, justiça social e características regionais, o que
pode ser interpretado como uma tentativa de renovação da imagem conservadora tradicionalmente vinculada às
Forças Armadas (MONTEIRO, 2011, p. 118-119) .”.
67
e principalmente no acirramento dos conflitos internos entre a elite negra e a elite mulata. Tais
conflitos geraram também uma constante intervencionista pelas principais potências da época.
Para o governo estadunidense, o Haiti era um ponto estratégico de trânsito e rota para seu
mercado em ascensão, assim como Cuba, Panamá e Porto Rico, posteriormente, tal como Haiti,
ocupados e dominados política e economicamente pelos norte-americanos.
É importante refletir sobre esse caráter intervencionista, que esconde uma série de
discursos e ideologias frente à própria identidade política e social haitiana. Autores como
Marcelin (2010), Polyné (2010) e Matijastic (2009) apontam os interesses por trás do discurso
da necessidade de intervenção, que promove uma inexistente insegurança da constituição de
um grupo com raízes e uma identidade muito peculiar como os haitianos. Esses discursos
partem da fragilidade política até ao senso de negritude de sua sociedade. Intelectuais e
políticos, sobretudo americanos, a partir do século XX apontam essas fragilidades e acabam por
inferiorizar tais peculiaridades, ou mesmo escamotear suas diferenças.
Nessa perspectiva, a construção de um Estado e de um modelo ideal de Estado embutido
e propagandeado para o Haiti por essas potências era o Estado colonizado, recebendo subsídios
para a dominação frente à exploração de suas próprias riquezas e de seus habitantes. Entre o
final do século XIX e início do século XX, as interferências na cultura e na educação no Haiti
são exemplos desse ideal de dominação, que em todos os sentidos contradizia a realidade e o
cotidiano local. Sem considerar que não era de interesse o conhecimento dos conflitos internos,
muito menos suas relações sociais por parte de países como França, Estados Unidos, Inglaterra
e Alemanha, mas, como apontado, era uma estratégia política e econômica promovida para o
favorecimento unicamente das potências do Hemisfério Norte.
Essas interferências ratificaram a concentração de políticas e fornecimento básico dessa
política, isto é, a consolidação de políticas públicas tais como educação, saúde, moradia e
manutenção de direitos básicos somente na capital Porto Príncipe, que possui uma pequena
parte da população haitiana. Com a sua independência, a população permaneceu
fundamentalmente envolvida em atividades agrárias, o que gerou uma disparidade mais grave26.
26
Essa concentração foi-se intensificando até os dias atuais, e com o terremoto em Janeiro de 2010, se agravou, já
que Porto Príncipe foi uma das cidades mais afetadas, seu epicentro localizava-se amenos de quinze quilômetros.
Conforme Marcelin (2010): “The administrative centralization and the restructuration of Haitian infrastructure
toward the consolidation of Port-au-Prince have led ultimately to the current concentration of Haiti’s public
services and institutions. In 1950, already 60% of public institutions were concentrated in Port-au-Prince. By 1968,
more than 90% of all essential public services, except for secondary schools, were located in port-au- Prince.
Concentration found its paroxysm under the Duvalier regime: Port-au-Prince was to be called “The Republic of
Port-au-Prince” not just because of centralization but also the excessive concentration of services, institutions
power and wealth. It was not surprising that all major institutions private or public, because of access, had to be
located in Port-au-Prince. Thus, not surprisingly, when the earthquake hit Port-au-Prince in January 12, 2010, it
68
was Haiti’s nervous system that was hit. Eighty five percent of all government buildings were destroyed. Close to
90% of Haiti’s higher education institutions were literally destroyed and in many cases with much of the remaining
brainpower of the country along with them (MARCELIN, 2010, p. 10) .”.
69
A história dessas ocorrências individuais é menos conhecida, e o foi até 1915 quando
outro grupo de refugiados começou a se reinstalar no Harlem como resultado da
ocupação dos EUA no Haiti (1915 a 1934). A atração do Harlem como local de
assentamento para imigrantes de origens africanas era oriunda da visibilidade da área
provocada pelo movimento Renascimento do Harlem dos anos 1920. A nova
migração para Nova Iorque foi realizada por haitianos urbanos bem instruídos e, em
certos casos, pessoas de negócios com família, tanto quanto estudantes, alguns os
quais tiveram sua escolaridade subsidiada pelo governo dos EUA em universidades
estadunidenses. No Harlem eles estabeleceram firmas de importação/exportação, lojas
de propriedade familiar, associações de cidade natal e clubes sociais. Durante o século
XX, Louisiana foi o principal local de atração para estes imigrantes; contudo, a cidade
de Nova Iorque atraiu o maior número de imigrantes haitianos durante os séculos XX
e XXI (LAGUERRE, 2005, p. 829, tradução minha).
O poder político e administrativo dos dominicanos se deu pela elite branca e mulata, o
que ratificou a questão de cor como questão de classe de uma maneira muito mais incisiva. O
preconceito com relação aos haitianos, não somente pelo recorte de cor, como pela ideia de
fragilidade que esse país possuía, refletiu e ainda reflete no descaso quanto às políticas
migratórias27.
O auge não só da omissão, como da violência, considerada como as primeiras evidências
mais radicais do anti-haitianismo dominicano se dá na década de 1930, com a ascensão de
Rafael Leónidas Trujillo.
Trujillo implementou uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos até 1961, quando foi
assassinado em uma emboscada. Em 1937 ele ordena uma operação, denominada Operación
Perejil, que consistia na expulsão e sobretudo assassinato de migrantes haitianos em massa.
Eles deveriam repetir a palavra perejil, e no que a pronúncia fosse diferente da do espanhol,
ocorria a morte. O número de mortos é incerto, mas estima-se cerca de doze mil haitianos
brutalmente assassinados nesta operação (SEITENFUS, 1994). Tal operação consolidou a
política de dominicanização da fronteira (dominicanización de la frontera).
En 1939 se promulgó una nueva ley de migración, cuyo propósito principal era
impedir la entrada de haitianos al país excepto cuando fueran necesarios para el corte
de la caña. Se crearon y promovieron colonias agrícolas para atraer inmigrantes
blancos de Europa. Se construyeron carreteras hacia la zona fronteriza, anteriormente
aislada del resto del país. Éstas no eran medidas excepcionales en el contexto
latinoamericano de entonces, como tampoco lo era la deportación de haitianos.
Durante La depresión de los años 30, por ejemplo, los ingenios cubanos deportaron a
más de 35,000 braceros haitianos. Lo que resulta particular en el caso dominicano es
que la “dominicanización” pasó a formar parte de La ideología racista promovida por
la dictadura después de la masacre (WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004,
p. 21).
Vale lembrar que além de República Dominicana e Haiti, Cuba, Panamá e Porto Rico
também estavam sob domínio estadunidense, direta e indiretamente. O cenário se modifica com
a Revolução Cubana em 1959, que agita também algumas questões frente ao Caribe e sua
representatividade.
27
“ Los conflictos armados entre ambos países durante la primera mitad del siglo XIX generaron en los
dominicanos un sentimiento de nacionalismo hispánico y de desconfianza frente a Haití. No obstante, La mayoría
de estudiosos modernos señalan que el racismo y la xenofobia que en la actualidad caracterizan al sentimiento
anti-haitiano son resultado de procesos políticos del siglo XX, particularmente los acontecidos durante la dictadura
de Rafael Leonidas Trujillo entre 1930 y 1961. Esas actitudes no se originaron con la llegada de los migrantes
haitianos, que se inició unos 20 años antes de llegar Trujillo al poder y que en su momento no generó un rechazo
mayor que el recibido por trabajadores migrantes de otras nacionalidades y culturas que vinieron a trabajar en los
campos de caña procedentes del Caribe inglés(WOODING; MOSSELEY-WILLIAMS, 2004, p. 19).”.
71
Essa postura autoritária não só afetou as práticas sociais, a relação com a cultura e com
o cotidiano da população, como estimulou a migração de uma classe média intelectualizada e
de oposição aos regimes de François e Jean Claude Duvalier, filho que antidemocraticamente
sucedeu o poder do pai em 1971. Vários professores, poetas e partidários de esquerda se
refugiaram em países como Estados Unidos e Canadá, formando comunidades como em
Quebéc, Nova Iorque e Miami. A quem não tinha recursos, como a maioria dos haitianos,
72
restara o papel dos raketés, coiotes haitianos que, entre outras funções, pediam dinheiro em
troca de saídas via marítima em barcos, em grande medida para os Estados Unidos e para a
Guiana Francesa28. Os migrantes, sobretudo pobres, foram denominados boat-peoples. O termo
refugiado se atrela a esse estigma da pobreza e miséria, daqueles que perderam tudo e correm
em desespero por uma vida melhor.
O aumento dos boat-peoples se dá no governo de Jean Duvalier (1971-1986), com o
alto índice de pobreza e instabilidade que se tornam críticos após a morte de François, não pela
sua morte em si, mas pela sua política aumentar a dívida externa e a opressão acentuar as
desigualdades entre classes, aumentando também a concentração de renda.
Após a fuga de Baby Doc, em 1986, o general Henri Namphy assume interinamente,
porém na primeira tentativa de eleições presidenciais, o alto escalão do exército mais uma vez
destitui as tentativas de inserir um processo democrático. Interessante que ao mesmo tempo em
que repetidamente o poder político no Haiti se vê fragilizado até chegar a um estado de sítio em
1990, imposto pelo general Prosper Avril (que fugiu no mesmo ano), a República Dominicana
ainda não amadurece as políticas de imigração para haitianos, mesmo após as atrocidades de
Trujillo (SEITENFUS, 1994). Os migrantes haitianos e seus descendentes ainda são vistos
como o outro, o pobre, o negro, o diferente.
28
Conforme Handerson (2015), a migração de grupos haitianos para a Guiana Francesa, principalmente oriundos
do sul do país inicia-se meados da década de 1960: “As primeiras famílias haitianas chegadas à Guiana em 1963
e 1965, respectivamente, viajaram de barco com blan Lili. Sob a ditadura do François Duvalier (nascido em abril
de 1907 – falecido em abril de 1971), apelidado Papa Doc, blan Lili recebeu um documento autorizando a viagem
com o grupo. Um ano antes da primeira viagem, em 1962, blan Lili foi à Paris, pedindo autorização para levar os
haitianos à Guiana Francesa. Na viagem para Paris, foi acompanhado por Augustin, haitiano, seu braço direito,
tendo este se tornado o marinheiro do barco junto com o capitão da embarcação chamado Goullier, um martinicano
(HANDERSON, 2015, p. 228)”.
73
29
Expressão popularizada por André Singer (2009).
76
30
Em inspirações do geógrafo David Harvey (2003).
77
agrícola muito presente na maior parte do país. A educação, saúde e serviços públicos básicos
são defasados, e ainda, como apontados por Valler Filho (2007), símbolos de ameaça por
determinados grupos políticos. O senso de cidadania não foi apreendido nem na coisa pública,
nem no discurso entre partidos, nem nos movimentos partidários. Mas a presença da
coletividade, do processo social coletivo contradiz o senso político administrativo do país.
As tensões políticas que levaram à Mission des Nations Unies pour le Stabilisation en
Haiti (MINUSTAH), como apontado, foram um crescente entre fragilidade política e
soberania, seja das elites haitianas, do exército, ou da determinação de outros países a fim de
interesses outros de desenvolvimento. Na percepção da mobilidade haitiana para o Brasil, nossa
maior preocupação são as geometrias de poder estabelecidas por dois contextos relacionados: a
participação do Brasil como uma das principais lideranças na frente da missão no Haiti e
segundo os acordos e as relações que levaram à mobilidade em si.
Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, mudanças importantes ocorrem no
tocante a relações entre as principais fronteiras brasileiras na década de 1990. Ações como o
início da construção da ponte que liga Oiapoque (Amapá) a Saint Georges (Guiana Francesa),
e dispersos acordos diplomáticos. Em 1998, pouco antes da consolidação do Conselho Nacional
de Refugiados, foi regulamentada a Lei número 9.675, que concedera anistia a estrangeiros em
situação irregular no país.
Uma série de eventos em escala global foi importante para a definição de uma política
mais restritiva em fronteiras internacionais, em grande medida ao avanço dos deslocamentos
das populações mais pobres do mundo. Dentre eles, é notória a importância do atentado em
Nova Iorque em setembro de 2001 para ratificar uma política mais preconceituosa e violenta.
Atentados no decorrer do século XXI, em países da Europa e ameaças a uma soberania entre as
principais nações modernas era uma ferida muito grande para ser arriscada, sem ser considerada
a morte de milhares de imigrantes pelos mares de acesso a essas principais fronteiras.
Dentre as políticas restritivas de entrada de imigrantes em países dotados como
potências mundiais, destaca-se, principalmente como atuante para as diásporas haitianas, o
acirramento das políticas da Agência Frontex, isto é, os limites do denominado acordo – ou
espaço – Schengen. Em 2009 se intensificam as decisões para fechamento das fronteiras
78
europeias, o que reflete na entrada de imigrantes na Guiana Francesa 31. Nesse aspecto,
Handerson (2015) aponta a relevância dessa política de restrição frente aos movimentos dos
haitianos para a Guiana Francesa antes e após o terremoto em 2010:
Boa parte dos pedidos é indeferida pelo OFPRA [Escritório Francês de Proteção a
Refugiados e Apátridas, sigla em francês]. De acordo com essa última instituição, em
2006, os haitianos constituíam os primeiros nacionais solicitantes de asilos políticos
nos territórios franceses. De 2004 a 2005, respectivamente 119 e 170 solicitações de
refúgios foram realizados na Guiana (HANDERSON, 2015, p. 219).
Ao mesmo tempo, também o Brasil teve nos anos 1990 e até o final dos anos 2000 um
crescimento na sua emigração ao exterior, facilitado por novos acordos. Ainda antes do
aumento do fluxo de caribenhos e africanos, após 2010, o fluxo de emigração para países da
Europa e Estados Unidos cresceu de forma significativa. Conforme Fernandes (2015):
31
Mais sobre a discussão entre os representantes europeus do fechamento do frontex:
http://www.swissinfo.ch/por/europa-preocupada-com-suas-fronteiras/30223962
79
1990 foi marcada por um decréscimo da entrada de imigrantes no Brasil, ainda que o
contingente de bolivianos, peruanos, chineses, japoneses e colombianos tenham se acentuado
nesse período (FERNANDES: 2015).
Outra questão em comum que se reflete a esses imigrantes são as formas em que se
encontram no Brasil, sua condição deslegitimada por uma política que se exime a este próprio
migrante - muito se dá pelas respostas antecedentes a como se tratavam os imigrantes, dotado
da força de trabalho. Sem mudanças estruturais no Estatuto do Estrangeiro, as concepções da
ditadura permaneceram, e o domínio das decisões por parte da polícia federal caracteriza ainda
mais o processo de violência da entrada, principalmente dos imigrantes pobres.
Duas decisões ainda na década de 2000 foram importantes para amenizar não só
divergências quanto à entrada e a permanência precarizada de migrantes sul-americanos, como
ratificá-los enquanto suas estratégias de permanência, dotados de cidadania também: em 2004,
o Plano México de reassentamento a refugiados, cuja participação do Brasil foi definidora, e
em 2009, foi disposto anistia para todos os migrantes em situação irregular no Brasil (lei número
11.961, de 02 de julho de 2009);e o Acordo de Residência do Mercado Comum do Sul
(Mercosul), de 07 de Outubro de 2009, que possibilitou a livre entrada de sulamericanos cujos
países integram o mesmo, promovendo a circulação de pessoas de maneira mais ampla.
A Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos
Refugiados na América Latina prevê garantia básica aos imigrantes latino-americanos no
trânsito e no refúgio para países do continente americano, sob os preceitos da ACNUR, das
convenções de Genebra (1951) e Cartagena (1984). O Brasil foi o principal representante a
propor uma política conjunta de assentamento a refugiados.
Como se vê, ao mesmo tempo em que o Brasil costura relações que indicam certa
flexibilidade e garantia para imigrantes que chegam ao país, a realidade torna-se bem distinta a
estes migrantes. Há falta de apoio em todos os sentidos, seja em ratificar sua escolaridade na
possibilidade de melhores condições, seja no mercado de trabalho em ilusório crescimento, já
que o setor da construção civil é o que maior demanda grupos de outras nacionalidades – o que
torna um círculo vicioso, já que eles não conseguem comprovar sua escolaridade, vão ao
encontro de serviços mais precários – ou na garantia básica de direitos, até chegar ao latente
preconceito da população, cravando uma marca social histórica pautada nesse preconceito
desde o século XIX.
O terremoto que ocorreu no Haiti em 10 de janeiro de 2010 agravou mais ainda essa
situação, em pelo menos três elementos: primeiro, o fato de boa parte dos equipamentos
80
públicos se encontrarem em Porto Príncipe, um dos lugares mais afetados, segundo, a tríade
corrupção-violência-dependência destacou as fragilidades políticas, e econômicas e sociais do
país e terceiro, o preconceito e as estratégias de interesse de países como Estados Unidos ou
França mas também do Brasil promoveram abismos mais complexos na escala social do Haiti.
Ao mesmo tempo, a injeção de investimentos faz com que o mercado de trabalho se
diversifique, necessitando de mão-de-obra qualificada e especializada. Chamam-se os
migrantes sul-americanos? Não. A mão-de-obra qualificada é procurada pelas grandes
corporações sobretudo para europeus e norteamericanos, contratados por empresas
multinacionais.
No que se refere à construção da política de diplomacia, Valler Filho (2007), sobre a
contribuição do professor Ricardo Seitenfus quanto ao termo diplomacia solidária, ao tratar da
política no século XXI aponta que:
A diplomacia solidária pode ser compreendida como sendo a aplicação de uma ação
coletiva internacional feita por países intervenientes num conflito interno ou
internacional, sem que haja interesses de ordem material ou estratégica, e movidos
por dever de consciência. No caso haitiano, a política externa brasileira aportaria uma
“valiosa e original contribuição” à teoria da diplomacia solidária, na medida em que
houve o reconhecimento explícito a razões de ordem moral, espontânea, incoercível
– em que não estaria excluída a hipótese de tê-la fundamentada na idéias clássicas do
direito kantiano – para uma intervenção que foi definida pelo Ministro das Relações
Exteriores como expressão do profundo comprometimento do País em termos
“políticos e emocionais” (VALLER FILHO, 2007, p. 224).
Nesse sentido, Valler Filho ressalta os registros das relações entre Brasil e Haiti, que
não começaram no século XXI, nem a construção da política diplomática brasileira. As
inserções dotaram o Brasil de uma política até certo ponto inovadora, construída no diálogo
internacional. Contudo, as tensões internas e as conturbações nos processos políticos e
econômicos do país paulatinamente contradisseram este aspecto.
Tal como a política de diplomacia solidária consolidou o Plano México, a Missão das
Nações Unidas pela Estabilização do Haiti foi outro fator preponderante na execução dessa
política internacional para o Brasil. O país participou diretamente em boa parte das ações
prevista pela missão.
A MINUSTAH surge na visão saturada das ações políticas no Haiti. As eleições de 2001
apontaram o reflexo dessa saturação, aliada à extrema pobreza de sua população e a
intensificação das milícias tanto ligadas ao Estado quanto as que promovem violência e super
exploração das comunas rurais. A “guinada democrática” não só dificultou o acesso
democrático da coisa pública como o afastou ainda mais. Aristide, preocupado com os conflitos
81
32
Vale ressaltar que na política de Aristide não houve nenhum mudança às outras gestões do Haiti, conforme
Montenegro (2013): “O descontentamento com o governo de Aristide crescia vertiginosamente, assim como as
ondas de protesto. No final de 2003, homens da polícia e do grupo chimères mataram vários opositores políticos,
incluindo um estudante universitário, em Porto Príncipe. Aristide apenas condenava esses atos, mas não tomava
medidas concretas para acabar com esses crimes (MONTENEGRO, 2013, p. 47).”.
33
Respectivamente, as oito metas do milênio previam: Erradicar a extrema pobreza e a fome; Atingir o ensino
básico universal; Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; Reduzir a mortalidade infantil;
Melhorar a saúde materno-infantil; Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; Garantir a sustentabilidade
ambiental e Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
82
sem incidentes. A presença da MINUSTAH foi essencial para que fosse assegurado o
calendário eleitoral. Apesar das eleições terem sido adiadas para 2006, transcorreriam
dentro da normalidade. O Brasil colaboraria com um milhão de dólares para a
organização das eleições presidenciais e mais outro milhão de dólares para as eleições
locais e legislativas (VALLER FILHO, 2007, p. 157-158).
A colaboração direta do Brasil, como já apontado, não foi somente financeira. O Brasil
ficou responsável pela inserção militar da missão como um todo, cujos números chegam e em
muitos casos superam os enviados da Segunda Guerra Mundial. Ficou também responsável pela
estrutura material das eleições, com a presença da urna eletrônica; firmou um acordo trilateral
com o Canadá na área principalmente da saúde, levando a estrutura de vacinação e saúde
pública e financiando materialmente o aprendizado do Sistema Único de Saúde para o Haiti.
Paulatinamente, problemas como o sistema prisional e as organizações paramilitares
entraram no diálogo entre a sociedade haitiana. A presença da MINUSTAH, embora muito
criticada pelos representantes políticos do país, promoveu mudanças importantes, inclusive na
legitimidade da eleição que elegeu pela segunda vez o presidente René Préval, cujo primeiro
mandato foi o único democrático e chegado até o final (1996-2001, e o então mandato 2006-
2011). O diálogo de sua gestão possibilitou incluir na pauta política do Haiti importantes
transformações.
No fim do mês de agosto de 2006, Préval nomeou uma Comissão Nacional para o
Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração, formada por sete membros e que
seria responsável pela implementação do programa de desarmamento do governo. A
proposta central do programa era basicamente oferecer oportunidades de emprego
para membros de grupos armados em troca do fim de suas atividades ilegais e da
entrega de suas armas. Segundo Kofi Annan, até dezembro de 2006 apenas dois
grupos com 104 membros aceitaram participar do programa de desarmamento, o que
representava uma parcela ainda muito pequena do total de grupos armados. Estima-se
que existam entre oito e doze grupos armados, mas o número de armas pôde chegar a
treze mil segundo levantamento feito em conjunto pela Anistia Internacional, pela
Rede de Ação Internacional sobre Pequenas Armas (IANSA) e pela Oxfam
Internacional (MONTENEGRO, 2013, p. 60).
34
“O tamanho relativo dos sismos é chamado de magnitude. Ela é medida usando-se a chamada Escala Richter,
criada em 1935, por Charles Richter. Essa escala é logarítmica, ou seja, de um grau para o grau seguinte a diferença
83
na amplitude das vibrações é de dez vezes. E a diferença da quantidade de energia liberada é de 30 vezes. Isso
significa que um terremoto de magnitude 6 tem vibrações dez vezes menores que um terremoto de magnitude 7 e
cem vezes menores que um cuja magnitude é 8 (In.: http://www.cprm.gov.br/publique/Redes-Institucionais/Rede-
de-Bibliotecas---Rede-Ametista/Canal-Escola/Terremotos-1052.html).”
84
A maioria dos que estavam na Guiana vinha do interior do Haiti, boa parte era
cultivador, trabalhava nas plantações e na criação de animais. Quando se perguntava
o que explicaria o fato de uma pessoa do interior, sem nunca ter saído do próprio país
decidir realizar a viagem para Brasil e/ou Guiana Francesa, recebia rápido a resposta:
um sorriso (porque a mobilidade faz parte da vida das pessoas que veem o ato de se
deslocar como algo natural), diziam: “Você sabe que os haitianos adoram pati” (ou
konnen ayisien renmen pati). A mobilidade aparecia como constitutiva da trajetória
de vida das pessoas e dos horizontes de possibilidades delas (HANDERSON, 2015,
p. 225).
A entrada recente de imigrantes no Brasil, tal o caso dos haitianos, mas também
senegaleses, ganeses, angolanos, sírios, dominicanos, equatorianos, colombianos, peruanos,
bolivianos, e muitos outros possuem múltiplas facetas que questionam essas dualidades da
política e da constituição social que traz como reflexo dessas políticas. Não só pelo fato do país
estar em um contexto no qual faz jus anos de tentativa de progressão ao seu crescimento – o
que acarreta, tal como em países chamados desenvolvimentistas – na entrada de imigrantes
pobres à procura de qualidade de vida, mas também porque suas relações não foram e nunca
serão duais.
Essa dualidade tem como exemplo, inclusive, o fator no trabalho muito presente no
discurso e nas legislações que priorizavam o branco-europeu-sem-deficiências e o discurso da
imigração qualificada, isto é, o trabalho como influência da chegada de imigrantes ainda parece
presente no discurso do Estado, enquanto no discurso do imigrante é uma das diversas presenças
que constituem, em grande medida, a garantia de uma qualidade de vida em detrimento a um
passado de instabilidade e sobrevivência.
Por outro lado, as estratégias haitianas enfrentam as adversidades dessas heranças e
possibilitam desdobramentos, no associativismo e nas redes de migração que promovem
caminhos de permanência. É importante ressaltar que essas relações ainda possuem rusgas
muito profundas: seja nas dificuldades da língua, no preconceito, nas relações do trabalho,
muitas vezes considerado árduo para suas formações/escolaridades, até as dificuldades de
economizar dinheiro para a família que ficou no Haiti. As redes haitianas parecem, até o
presente, muito espessas e culturalmente contundentes enquanto estratégia de permanência no
Brasil.
88
3 CAPÍTULO III
CONFLITOS E CONTRADIÇÕES: GEOMETRIAS DE PODER E
HAITIANOS NO BRASIL
No capítulo anterior, foi apontada a trajetória das políticas de imigração no Brasil, donde
o personalismo e o desencontro às demandas e necessidades de migrantes era o tom na maioria
dos acontecimentos. A trajetória de emigração, refletidas no ser diáspora haitiano, até os
acontecimentos de janeiro de 2010, é marcada pela violência, corrupção e dependência
ratificadas como fortes reflexos que acarretaram a crise política, econômica e social no Haiti. É
analisado e compreendido que o papel da MINUSTAH e dos atravessamentos da realidade
política e econômica brasileira contribuíram para o Brasil ser uma das rotas propícias da
diáspora de haitianos.
Nesse sentido, é importante acrescermos dois elementos que interagem no processo da
imigração haitiana recente: a perspectiva do ser diáspora e os reais interesses da diáspora
atravessar a América do Sul, nas perspectivas de Joseph Handerson (2015) e Saskia Sassen
(1996).
Para Handerson, o processo de diáspora haitiana envolve o conjunto indissociável de
relações entre as concomitantes crises que afetam estruturalmente o Haiti e, sobretudo a
esperança pela melhoria da qualidade de vida, donde fora da capital Porto Príncipe o quadro é
agravado. Essa diáspora, ou esse processo de diáspora haitiana como vimos, permeia a
construção do próprio Haiti como país independente.
Isso nos leva a Saskia Sassen (1996), quando observa em Losing Control? Sovereignty
in an age of globalization que o reflexo de uma nova reconfiguração da soberania está nas
90
35
Conforme abordar-se-á no decorrer deste capítulo.
93
Conforme Handerson, a migração para a Guiana Francesa no século XXI data de bem
antes do terremoto de 2010. Em trabalho de campo ali realizado, Handerson ressalta que a rede
de relações para aquele espaço encontrava-se extremamente consolidada, e que o papel
associativista e político dessa rede se notavam em grande medida nas rádios comunitárias
principalmente nas áreas de concentração de imigrantes haitianos36.
Tal fluxo, conforme capítulo anterior, é consolidado em primeiro lugar a partir da
intensificação das redes de violência, seja nas comunas rurais ou no raio da capital Porto
Príncipe, seja na profunda desigualdade espacial promovida entre a capital e as demais
localidades do país. Junto a isso, as políticas hostis legitimadas de Papa Doc e Baby Doc, bem
36
“No caso dos haitianos na Guiana [Francesa], além de associações, também criaram rádios comunitárias para
fins de comunicação, de educação, para fè politik (fazer política), além de transmitir elementos culturais haitianas
através delas. Uma das primeiras é denominada Rádio Mosaïques” (In.: HANDERSON, 2015).
94
37
Temos como exemplo notícia de final de 2016, onde ocorreu a última eleição no Haiti, em volta a uma série
de conflitos entre milícias locais controlando as principais favelas de Porto Príncipe até o caráter duvidoso do
resultado da maior parte das eleições haitianas neste século: “La tension est montée au cours des vingt-quatre
dernières heures dans l’attente des résultats. Des tirs d’armes automatiques ont résonné tôt, lundi matin, dans les
quartiers populaires de Belair, de Solino et de Delmas, à Port-au-Prince, la capitale. Une barricade de pneus
enflammés a interrompu la circulation sur une artère fréquentée [...]Venus des quartiers les plus -pauvres de Port-
au-Prince, des partisans de Maryse Narcisse ont manifesté en début de semaine, dénonçant « un coup d’Etat
électoral » en préparation. Rudy Hérivaux, le porte-parole du PHTK, le parti fondé par l’ancien président Michel
Martelly, avait proclamé la victoire de Jovenel Moïse, violant la règle interdisant aux partis d’annoncer des
résultats avant le CEP.” Disponível em : http://www.lemonde.fr/ameriques/article/2016/11/29/jovenel-moise-
petit-paysan-qui-reussit-nouveau-president-haitien_5040106_3222.html.
95
Essa política do medo, que se pode perceber de processos emigratórios do Haiti resulta
de um projeto maior de construção de barreiras à migração de oriundos de países pobres/e ou
em conflito e /ou discordantes a lógica global financeira (SASSEN, 1989, 1996, 2016;
HARVEY, 2013; BROWN, 2011 etc), que acentuam as desigualdades e intensificam a relação
de poder que esses países possuem em relação ao mundo. É um jogo de cartas bem marcadas.
O segundo elemento refere-se aos trâmites à rota sul-americana. Podemos apontar os
acordos multilaterais que envolvem os países do Mercado Comum do Sul - Mercosul e o Plano
de Ação do México de 2004, sendo que o Brasil assumiu um como impulsionadores a entrada
de novos migrantes, mencionados no capítulo anterior. Eles facilitaram as possibilidades de
passagem para países como Equador, Colômbia, Peru e Bolívia. Essa política vinculada à
diplomacia solidária consolidada na gestão do governo de Luis Inácio Lula da Silva no Brasil
e às ressignificâncias dos percursos migratórios devido ao enrijecimento das fronteiras no
mundo, que possibilitou novas referências para rotas migratórias. Não que as atitudes
diplomáticas da América do Sul acolheram e aportaram imigrantes durante esse período que
vai do fim do século XX ao início do século XXI, pelo contrário. Como veremos adiante, as
estratégias de mobilidade do Estado podem ser o revés das dos migrantes. Nesse sentido:
38“A mobilidade dos haitianos se constitui através de diferentes redes de relações familiares, amizades, solidariedade e raketè.
Raketè é uma categoria de acusação. O uso dela no Haiti não está restrito ao campo da migração e da mobilidade. Serve para
denominar qualquer pessoa que cobra dinheiro de outra para efetuar vários tipos de transação. Geralmente, raketè é considerado
um esperto que usa vários mecanismos e artimanhas para lucrar na informalidade ou até indevidamente. O raketè que agencia
a viagem, por vezes, trata-se de um familiar, amigo ou desconhecido.”. In.: HANDERSON, 2015, p. 171.
96
Os raketés no Haiti podem servir a uma série de agenciamentos que não somente para
o atravessamento de migrantes. Conforme adiantamos, a intensificação de sua atuação ocorre
quando o perfil da diáspora haitiana se diversifica, não somente por imigrantes comerciantes
ou refugiados políticos, mas principalmente pelos imigrantes em busca de trabalho e/ou
melhores oportunidades. Considera-se também que parte desses atravessadores são diásporas
que aportam nesse tipo de atividade parte do sustento, complexificando uma possível tipologia
da migração, que acaba tornando-se dependente de um agente, de um agenciador.
Vale destacar que conforme buscas acerca do termo “coiote” em fontes de pesquisa39
no Brasil, tal começa a ser utilizado no início da década de 2000 em referência a emigrantes
brasileiros que buscaram a fronteira do México para chegar aos Estados Unidos 40. A presença
do termo coiote portanto é inicialmente aludida a uma rede de agenciamento em troca de
recursos para atravessar a fronteira entre a América Central e América do Norte.
39 Reportagens nacionais, trabalhos acadêmicos e principalmente acervo digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos
Migratórios.
40 “A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDHCF) recebeu denúncias de arbitrariedades e maus-tratos contra
brasileiros que tentaram atravessar a fronteira do México com os Estados Unidos. Orientados por coiotes (homens contratados
para fazer a travessia do rio Grande, marco divisório das duas nações), brasileiros a maioria formada de mineiros foram
descobertos e trancafiados em presídios mexicanos. Detidos em Tijuana, todos foram transferidos para a cidade do México.
Mantidos em condições desumanas, eles só passaram a receber assistência consular semanas depois da detenção, pois suas
prisões não foram imediatamente comunicadas ao consulado ou à embaixada. Segundo relatórios da Anistia Internacional, o
México apesar de algumas melhorias fere princípios na guarda de presos, dispensando-lhes um tratamento degradante.”.
Disponível em: https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/niem_rj/conversations/messages/325.
97
Uma notícia do dia 30 de outubro de 2008 revela algumas indicações relevantes para o
contexto do trânsito de imigrantes haitianos pela fronteira amazônica, embora não haja relação
com o Caribe: a prisão de um atravessador de chineses pelo Acre e por Rondônia, sendo que
nesse caso a viagem era de avião da China até o Equador, e por terra até Assis Brasil, no Acre,
ou Guajará Mirim, em Rondônia, ambas vizinhas a países sul-americanos (Peru e Bolívia). Essa
notícia indica que de fato havia uma rota de atravessamento no qual a barganha ilegal ocorria e
que, no caso dos chineses, referia à migração para superexploração para outras regiões do país.
Contudo, essa forma de atravessamento não indica o tráfico de chineses, mas sim uma forma
de agenciamento via barganha ilegal de chegar ao Brasil.
41Conforme mensagem enviada do Observatório Social em maio de 2006: “Que moda é essa? C&A vende roupas produzidas
em malharias clandestinas, mediante exploração de mão-de-obra de imigrantes irregulares. Reportagem do Observatório Social
revela que a multinacional de origem holandesa C&A, com 113 unidades instaladas no Brasil, se beneficia do trabalho
degradante de imigrantes na cidade de São Paulo. Os trabalhadores são trazidos ao Brasil por intermediários conhecidos como
"coiotes", que ganham dinheiro contrabandeando gente de um país para outro. Pelo menos 100 mil bolivianos estão nesta
situação na capital paulista.” Disponível em: http://www.observatoriosocial.org.br/portal/.
42 Notícia de Julho de 2008. In.: Acervo Digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios. Disponível em:
http://www.elperuanolatino.com/noticia0.html.
43
In.: Acervo Digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios. Disponível em:
http://www.pagina20.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1891.
98
uso da força ou de outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade
ou de situação de vulnerabilidade, ou ainda corrupção de pessoas com autoridade
sobre outra, com a finalidade de exploração no plano sexual, no plano do trabalho ou
de órgãos do corpo humano. [...] Ressalta-se aqui a classificação jurídica entre
migração regular e irregular, que se origina nas políticas restritivas de imigração
adotadas pelos países, em nome da proteção de suas economias e culturas. [...] Uma
das chaves importantes na diferenciação entre tráfico de pessoas e o contrabando de
imigrantes é o consentimento. Se a pessoa consentiu em ser recrutada, transportada,
transferida, alojada ou acolhida, não se caracteriza tráfico de pessoas, mas a migração
irregular (DE CASTILHO, 2014, p. 19-20).
O combate aos “coiotes” que cobravam uma quantia entre 700, 00 e 2.500,00 dólares
por pessoa [1.540 e 5.500 reais respectivamente] e a possível rede de tráfico de
pessoas eram argumentos utilizados por autoridades brasileiras para justificar a busca
de construção de uma rede de gestão policial e de fiscalização com agências
equatorianas e peruanas.[...] A atuação de “coiotes” remete a ideia de transporte, a
atividade é feita para levar a pessoa aonde ela deseja através de caminhos alternativos
com vista a fugir do controle policial (VIEIRA, 2014, p. 79).
Quanto à chegada dos primeiros haitianos, na fronteira entre a Colômbia e o Brasil via
o Estado do Amazonas, ocorreu uma audiência para discutir com entidades governamentais e
não governamentais o fluxo para tal Estado, a autora aponta ainda:
Este sutil desdobramento na confusão da categoria coiote traz vários equívocos, o que
indica Vieira muitas das vezes no aspecto tendencioso da política – conforme veremos adiante
– em transformar a chegada do imigrante, e no caso do imigrante negro e pobre, em um
problema, apontando o “problema migrante-problema” (MARTINS: 2013). Ao mesmo tempo,
100
a presença do raketé ou coiote no trânsito dos imigrantes haitianos é crucial para entendermos
a lógica da capilaridade da diáspora haitiana. Da mesma maneira que as estratégias de
mobilidade acontecem na forte presença da escolha do imigrante, e conforme Handerson (2015)
uma escolha por muitas vezes coletiva no caso do diáspora haitiano, essas estratégias são
também embebidas da demanda e da escolha de outros agenciamentos. Se por vezes nos
aspectos históricos, da política haitiana na tríade corrupção-violência-dependência, também
geográfica quanto aos elementos em que o Estado produz e reproduz normas e certames de
recriminação ou de abertura política para entrada de novos migrantes. Conforme já dito, é um
jogo de cartas bem marcadas.
Foi portanto alugada pelo governo do Estado do Acre em Rio Branco tal chácara para
atender à quantidade de migrantes haitianos, aos quais se juntavam, crescentemente, outras
nacionalidades, do Caribe e do continente africano.
Nossa principal referência é a entrevista semiestruturada com duas pessoas: o migrante
haitiano Marc, e o funcionário Thadeu (nome fictício), o responsável pelo abrigo no momento.
***
Na conversa com o secretário Nilson Mourão, cujo motivo principal era a autorização
para coletar dados e informações sobre a situação dos haitianos ao chegar ao Brasil, percebi de
sua parte certo esforço em mostrar que estava tudo conforme o exigido por autoridades federais
e outras entidades, a exemplo do que ocorreu um ano antes, no qual houve o esboço de um
relatório que denunciava um conjunto de violações por parte do governo do Acre em relação
ao tratamento com imigrantes chegados na fronteira. Perguntou sobre minha pesquisa e ligou
para alguns responsáveis pelo abrigo me autorizando visitá-lo. Afirmou que a estrutura e o
funcionamento do abrigo seguiam padrões e que, como seria observado, havia todas as refeições
e todas as condições de moradia e abrigo em si.
44
Em Janeiro de 2012 a Organização Não Governamental Conectas redigiu uma carta direcionada aos principais
agentes públicos que tratariam sobre as condições insalubres dos locais de chegada de imigrantes haitianos no
Brasil pela fronteira acreana. Mais informações e a carta na íntegra disponível em:
http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-no-acre.
102
O acesso ao Marc se deu a partir de Thadeu, funcionário que estava na administração do abrigo.
Marcos explicou-me que Marc havia quebrado uma perna e acabou permanecendo mais que o
previsto em Rio Branco, e, portanto, já sabia o português, o que facilitaria a entrevista. Também
possuía alguns “privilégios” no abrigo, dentre eles um quarto individual, e ao que indicou
Thadeu recebia um valor por auxiliar nas atividades do abrigo, como “organização” da fila para
as refeições diárias no mesmo.
Ao conversar com Marc, indaguei se era possível perguntar em português, mesmo que
suas respostas fossem em francês. Mas já na primeira pergunta me pediu para falar em francês,
o que acatei.
Marc, com 31 anos então, deixou uma filha no Haiti. Contou-me um pouco sobre a
cultura e as músicas populares do Haiti: o rap e o merengue. Falou-me sobre Baricad Crew e
Fantom de Nazareth, respectivamente, banda e cantor de rap haitiano. Explicou-me também
sobre a origem de seu nome e que chegou a ser aprovado nos exames preparatórios para a
universidade de Porto Príncipe, mas que com as dificuldades enfrentadas pela pobreza e pela
intensificação da crise a partir do terremoto decidiu migrar para o Brasil. Falou um pouco das
dificuldades enfrentadas na travessia para o Brasil, principalmente entre Peru e a Bolívia, onde
perdeu muito dinheiro nesse trecho, inclusive extorquido por policiais nas fronteiras.
Ele aponta que a escolha pelo Brasil foi por ter se identificado com a cultura, que
conhece a capoeira e o futebol, mas que não gosta das músicas brasileiras. Perguntei que
músicas ele conhecia, ao que ele respondeu do sertanejo e de algumas bandas conhecidas na
região Norte, que produzem uma modalidade entre o forró e o sertanejo. Conversei sobre
algumas outras músicas e estilos musicais no qual o Brasil foi pioneiro, como a bossa nova e o
chorinho, além do samba brasileiro e alguns nomes internacionais, como Tom Jobim, Jacob do
Bandolim etc. No seu celular ele me mostrou algumas músicas haitianas e pediu para mostrar
essas músicas, sendo que então disse estar impressionado com a diversidade da cultura
brasileira.
Algumas considerações há de se fazer. Uma delas é a inserção do migrante e a presença
das trocas culturais entre o país deixado e o chegado, bem como à formação de Marc, que
103
conforme dados do abrigo e referências em pesquisa apontam que a maior parte dos haitianos
possui o nível técnico e estão entre os 20 a 30 anos45.
Essa crítica – própria também da sua estratégia de mobilidade – continua quando Marc
explica que, ao contrário do que dizem, os haitianos já tinham consciência dos problemas sociais
e dos preconceitos que sofreriam no Brasil, mas não imaginava as dificuldades da travessia.
O fato de estar há três meses em Rio Branco ajudava tanto no aprendizado da língua
portuguesa quanto em “privilégios” no abrigo, como quarto individual e confiança dos
funcionários, que conseguiram para ele um pequeno salário em troca de serviços para a
Secretaria, dentre eles, a mediação com os novos imigrantes. Soubemos também, por outras
fontes, que Marc cobrava dos migrantes que chegavam um valor para entrar e, para os quais,
dependendo do pagamento, poderia haver certos privilégios dentro da chácara. Essas ofertas a
Marc são tratadas parcialmente como privilégios, muito porque sua situação não era em nada
privilegiada. Tal palavra é somente para denotar uma diferença de atitude frente a outros
migrantes no abrigo cuja responsabilidade da divisão era da secretaria e de suas ações, e
obviamente não as de Marc.
Esse aspecto do pagamento foi pontuado por alguns pesquisadores que também fizeram
trabalho de campo no abrigo. O que indica um pouco das táticas raketé as quais Handerson e
também Contiguiba (2012) ressaltam que se reproduzem também entre os diásporas, tanto pela
naturalização revelada no trânsito da mobilidade quanto nas irregularidades institucionalizadas
no percurso. A questão é, se Marc estava cobrando como se ali fizesse parte de uma transação
raketé, como os funcionários do abrigo não sabiam disso? Se eles sabiam, eles legitimavam ou
resignavam-se a essa ilegalidade?
Pelos mesmos pesquisadores que nos apontaram essa questão, ainda quanto ao que no
Brasil denominou-se ação dos coiotes, muitos haitianos chegavam acreditando terem pago a
hospedagem no abrigo e a viagem disponibilizada pelo Governo do Estado do Acre para São
Paulo.
Marc me apresentou todo o espaço do abrigo e aos imigrantes que estavam naquele
momento. Havia em torno de trezentas pessoas, entre haitianos, senegaleses, ganeses,
equatorianos e um cubano, que tanto Marc quanto Thadeu afirmaram que estava há pelo menos
quatro meses neste. Quando o almoço foi servido, eles indicaram que haviam pedido mais uma
“marmita” para mim, acredito que para conferir a procedência e a qualidade da alimentação,
45
Esses dados foram extraídos em coleta de informações disponibilizadas pelo próprio abrigo, conforme
apresentados no decorrer do capítulo.
104
46
Em outra conversa, com uma estudante de geografia cuja família é de Brasiléia, ela apontou que os haitianos
sofreram uma série de represálias da população local, que vê a presença dos imigrantes como uma ameaça.
105
mantinha o abrigo em sua logística, como alimentação, manutenção diária, colchonetes etc. O
Estado, portanto, era o que pagava a passagem, principalmente, para São Paulo47. Thadeu
acredita que há certa omissão por parte do Governo Federal pelo fato de este responsabilizar do
governo estadual cujo interesse e responsabilidade seria do âmbito da União. A Polícia Federal
gera somente o protocolo de solicitação de refúgio, tendo instalado em Brasiléia uma central de
informações para os imigrantes.
Segundo Thadeu, há muito conflito e indignação por parte da população não só de
Brasiléia, como no Acre em geral. As causas são inúmeras, como estórias sobre ameaças de
contágio por doenças, o discurso da invasão, o conservadorismo da população. A mídia
amplifica o caso de Brasiléia, mostrando as condições de superlotação.
Para ele, os haitianos vivem uma situação muito precária em seu país de origem, e o
mesmo acha difícil a pretensão de retorno para o Haiti. Segundo ele, a partir de relatórios diários
pelos quais era responsável, até 2015, haviam chegado a Rio Branco cerca de 32 mil haitianos
acolhidos pela Secretaria de Direitos Humanos do Acre. Só no dia anterior à conversa, haviam
chegado 50. A média era um pouco superior a quarenta por dia, que podia aumentar conforme
a época, assim como diminuir. O rigor das fronteiras, por qualquer motivo, em geral, diminuía
o fluxo. O abrigo comportava em média 150 pessoas, mas nessa ocasião havia 250 a 330
pessoas. O abrigo anterior, em Brasiléia, chegou a ter em média 3000 migrantes.
Segundo o secretario do abrigo, prestavam-se os seguintes serviços aos migrantes:
médicos, assistentes sociais, encaminhamento aos consulados respectivos, banco de dados com
informações para os consulados e o Governo Federal. Não percebi o funcionamento, somente
acolhimento e o protocolo de permanência para os haitianos e produção da carteira de trabalho.
Segundo Thadeu, em março de 2015 voltariam os principais serviços, o que provavelmente não
ocorreu, sendo que o abrigo acabaria por fechar em junho de 2015, face à diminuição do fluxo
de migrantes.
O secretário Thadeu informou que há um controle por parte do abrigo em relação às
empresas que contratam, mas vimos contradições nessa afirmação. A primeira está na forma
com que, segundo Thadeu, eles escolhiam os migrantes, que se dá por duas maneiras distintas.
A primeira no caso de um empresário entrar em contato com a administração do abrigo. Nesse
caso, eles escolhiam parcialmente quem mais ajuda ou quem é mais solícito no trabalho do
abrigo, “quem merece mais”, nas palavras dele. Em um segundo caso, quando a empresa não
47
A partir de abril, o Governo Federal se responsabilizou com as passagens de ônibus de imigrantes em processo
de regularização vindos do Acre, após uma nova crise no abrigo que levou à sua superlotação e ao endividamento
com a empresa viária responsável pelo transporte de migrantes.
106
A faixa etária mais buscada para as empresas que se aproximavam do abrigo era entre
25 a 40 anos, e em grande medida para cerâmicas, marcenarias e frigoríficos. Nesse sentido,
esse foi nosso principal gargalo quanto ao abrigo: a falta de fiscalização e gestão quanto aos
imigrantes, que são simplesmente “abrigados”, sem suporte e acolhimento.
Fica claro quando o Governo do Estado financia a passagem para outros lugares do país,
sobretudo São Paulo, que se por um lado não se exime de todos os problemas e perdas de
imigrantes até a chegada pela fronteira acreana, prefere também transferir o que para eles é um
problema, um estorvo. Torná-los um problema e um estorvo para o Estado é o mote principal,
a fim do discurso de amedrontamento e angústia da população, o que na verdade escamoteia
uma série de preconceitos.
107
48
“Em relação ao estrangeiro que chega ao Brasil, o Projeto de Lei 2516/15 prioriza a acolhida humanitária, com
previsão de regularização de documentos, garantia do direito à vinda da família, inclusão social e laboral e acesso
a serviços públicos de saúde, de assistência e previdência social, entre outros direitos. Ao imigrante é permitido
exercer cargo, emprego e função pública, com exceção daqueles reservados para brasileiro nato. A proposta
também inclui expressamente o repúdio à xenofobia, ao racismo e a qualquer outra forma de discriminação, seja
por religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.” Disponível
em:http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACOES-EXTERIORES/520859-TEXTO-
PRIORIZA-ACOLHIMENTO-HUMANITARIO-DE-ESTRANGEIROS.html.
49
“Entre os principais vetos está a previsão de anistia para quem entrou no Brasil até julho de 2016. O projeto
aprovado pelo Senado em abril previa que esse grupo receberia autorização de residência independentemente de
sua situação migratória prévia. O governo argumentou que a medida poderia esvaziar o poder do Estado e também
que não há como precisar a data efetiva de entrada de migrantes no país, permitindo que um imigrante que entre
no Brasil durante o prazo legal para que a lei entre em vigor peça regularização com base no dispositivo.”
Disponível em:http://g1.globo.com/politica/noticia/temer-sanciona-com-vetos-lei-de-migracao.ghtml.
110
50
“Essa divisão de competências entre ministérios, apesar de não haver sobreposições de funções, gera uma
fragmentação do monitoramento de imigração no Brasil. Além disso, o baixo grau de integração entre os dados
dos ministérios faz com que as informações a respeito dos estrangeiros que ingressam no Brasil fiquem dispersas.”
Disponível em: http://dapp.fgv.br/antigos-problemas-novos-desafios-como-lei-de-migracao-pode-inserir-
estrangeiros-no-mercado-de-trabalho/.
51
Em ocasião de reportagem sobre a chegada desses imigrantes: “... Nesta semana, em Corumbá, a PF já havia
feito a deportação imediata de sete haitianos que estavam em um hotel da cidade. Ao final do prazo de três dias,
o grupo que está atualmente em Campo Grande deverá também ser encaminhado de volta à Bolívia”. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/03/708992-haitianos-ilegais-flagrados-em-ms-ficam-em-
abrigos-e-sao-notificados-a-deixar-o-pais.shtml.
111
Com base em nossa pesquisa, o primeiro grupo de haitiano que entrou no Brasil no
contexto pós-terremoto foi no dia 17 de março de 2010 e o segundo, no dia seguinte.
Segundo os noticiários, o primeiro grupo era composto por oito pessoas e o segundo
por sete, ambos tendo como destino a Guiana Francesa. De táxi, seguiram da cidade
de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, com destino à capital do estado, Campo Grande.
O primeiro grupo foi detido pela PF e o segundo pela Polícia Militar Ambiental. Desse
modo, o início da entrada dos primeiros haitianos coincide com o momento pós-
terremoto e o destino não era o Brasil, mas a Guiana Francesa. Após esses dois casos,
não temos relatos de outros antes do final do mesmo ano, quando Brasiléia, no estado
do Acre, se tornou um lócus da migração haitiana e, consequentemente, dos
noticiários brasileiros (CONTIGUIBA, 2014, p. 89).
52
De acordo com Seixas: “Para chegarem ao Estado do Acre, de modo geral, os cidadãos haitianos voam para o Equador
com conexão no Panamá. Em alguns casos, deslocam-se, via terrestre, para a República Dominicana para, então,
seguirem para o Panamá e para o Equador. Uma vez no Equador, os haitianos gozam de situação regular para
permanência, pois o país não exige visto para cidadãos haitianos para estadias limitadas a 90 dias de duração”.
In.:SEIXAS, Raimundo Jorge Santos . Soberania hobbesiana e hospitalidade em derrida: estudo de caso da política
migratória federal para o fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. Brasília: Centro
Universitário UNIEURO, 2014, p. 19.
112
Da mesma maneira, Vieira (2014) aponta que houve justificativas de toda ordem para
se construir um paradigma de crise imigratória para o caso dos haitianos e para transformá-los
em um problema para o país. Seja a ideia de que os coiotes produziam uma rede organizada de
tráfico, ou da ameaça de doenças – cogitou-se até a entrada do “Ébola” pelos haitianos,
desconsiderando o equívoco geográfico53! – no qual a população bradava e o Estado não
somente se eximia, como também acolhia enquanto política. Desse modo, a estratégia de tornar
o Acre referência e destaque, e a falta de cuidado e preocupação em apontar problemas estruturais
e sociais nas cidades da fronteira acreana, como Vieira ressalta, tornou o caso do Acre “político, e
não de polícia”:
Além do bom trânsito do governador Sebastião Vianna (AC) por Brasília, a mídia
contribuiu para dar visibilidade à “situação” anunciada, como também, para produzi-
la e reproduzi-la. Ambos chamaram a atenção de agências do Governo Federal em
janeiro de 2011, sugerindo os seus êxitos em conseguir transformar os ingressos de
pessoas vindas do Haiti em um assunto de agenda pública. Tanto é que no relatório
utilizado no despacho com a presidente [...] observamos referências apenas ao estado
do Acre e nenhuma menção é feita a Tabatinga ou Manaus, mesmo os números sendo
mais elevados no estado do Amazonas (VIEIRA, 2014, p. 68).
53
A doença provocada pelo vírus Ébola, cujo surto mais recente ocorreu entre 2013 e 2014 na África subsaariana
e áfrica ocidental e matou dezenas de milhares de pessoas. O equívoco geográfico encontra-se exatamente no fato
da doença afetar o continente africano, e não o caribenho. Mais informações disponíveis em:
https://acervo.publico.pt/ciencia/noticia/2014-o-ano-em-que-o-ebola-ficou-fora-de-controlo-1680852.
Importante ressaltar que casos de preconceito e frases infelizes contra imigrantes não só no Brasil como no
continente europeu ocorreram nessa época. Mais informações em:
https://www.publico.pt/2014/05/21/mundo/noticia/ebola-pode-resolver-o-problema-de-imigracao-da-europa-
considera-jeanmarie-le-pen-1636950.
113
Insistir na manutenção da prática – que a nosso ver não é uma política – de registrar
os haitianos nas regiões de fronteira, como tem acontecido nas cidades de Tabatinga
e Brasiléia, é uma medida que tem contribuído para que o tráfico de pessoas seja
indiretamente incentivado pelo Estado brasileiro. A isso, somam-se os casos de
extorsão, roubo, estupro e assassinato. Esses danos continuam acontecendo aos
haitianos e podem ser evitados, desde que haja iniciativa política por parte do Estado
114
Em abril de 2014, o governo do estado do Acre anunciou que o abrigo para migrantes
da cidade de Brasiléia seria fechado e transferido para Rio Branco. Os futuros
migrantes a ingressar pela fronteira acreana passariam, a partir de então, a se dirigir
até a capital do estado para receber acolhimento no Parque de Exposições da cidade,
onde um abrigo definitivo seria providenciado. Já os migrantes que se encontravam
no abrigo de Brasiléia quando do fechamento do mesmo seriam levados a Rio Branco,
a seguir, encaminhados para Porto Velho, capital de Rondônia e, por fim, receberiam
passagens de ônibus para irem a outras cidades do país, principalmente São Paulo
(THOMAZ, 2015, p. 103).
Tal medida, como veremos adiante e verificado em trabalho de campo na cidade de São
Paulo, foi motivo de várias acusações, principalmente por parte do governo paulista, que
acusava o Estado do Acre de não avisar da chegada dos ônibus fretados. Da mesma maneira
que a mídia aportou o discurso de “crise”, e em caráter denunciativo e incorreto chegou a
apontar o fluxo de haitianos como “invasão”54, a intensificação de um debate de maior vulto
quanto às mudanças às políticas de imigração no Brasil se intensificaram.
54
Meados de 2014, em ocasião do considerável aumento do fluxo de haitianos pelo Acre, o jornal o Globo divulgou
a notícia com o seguinte título: “Acre sofre com a invasão de imigrantes do Haiti”, promovendo de forma ampla
e clara o preconceito e alimentando a ideia de crise migratória. A repercussão da notícia refletiu a elaboração de
uma carta assinada por entidades e pesquisadores, cujo título é: “Sobre o uso irresponsável do termo Invasão de
Haitianos...”. A reportagem d’o Globo está disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-
invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381. A carta do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios está
disponível em: http://migramundo.com/invasao-de-haitianos-sobre-o-uso-irresponsavel-do-termo-pela-imprensa/.
116
teriam aplicação à categoria de refugiados. Interessante ressaltar que eles chegaram em março
de 2010 e o terremoto havia ocorrido meses antes. Seria plausível, portanto, que a migração
teria se dado devido à fragilidade social exposta a causas ambientais, como do terremoto em 10
de janeiro daquele ano. A alegação principal da não deportação e detenção pela Polícia Federal
se deu com base na Lei nº 9.474/1997, que define a categoria de refugiado e, quando na
atribuição de processo, fica proibido detenção e extradição do mesmo. Cabe ao Conselho
Nacional de Refugiados – CONARE – a decisão plena do status dos imigrantes.
Foi quando da solicitação do status de refúgio pelos haitianos que os primeiros processos
foram indeferidos por uma decisão conjunta tanto do poder judiciário quanto do Conselho
Nacional de Refugiados. Isto indicou que o caso dos haitianos não era de refúgio, já que não
havia risco iminente da saída deles no Haiti, e principalmente, na alegação de que a Convenção
de Haia e a Convenção de Genebra (documentos importantes que viabilizam a proteção a
refugiados) não aplicam o mesmo status a causas ambientais. A intervenção do Conselho
Nacional de Imigração (CNIg) começa a partir dessa negativa, viabilizada via Resolução
Normativa 27/1998. Conforme tal resolução:
§ 1º Serão consideradas como situações especiais aquelas que, embora não estejam
expressamente definidas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração,
possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a obtenção do visto
ou permanência.
Esta decisão implicará na Resolução Normativa 97/2012, que prevê o visto de trabalho
para imigrantes haitianos por razões humanitárias. Ainda, de acordo com Vieira (2014):
Nesse sentido, dentre as pesquisas e análises finalizadas até 2017, há duas vertentes
quanto ao papel do Estado brasileiro, e sobretudo o papel dos dois órgãos de representação e
regularização de imigrantes no Brasil – Conselho Nacional de Imigração, gerido pelo Ministério
do Trabalho e Conselho Nacional de Refugiados, gerido pelo Ministério da Justiça – em instituir
as atuais políticas para imigrantes no país, em especial a haitianos.
117
O CNIg interpretou que a eventual não regularização dos status migratório dos
haitianos os exporia a violações de direitos humanos e sociais fundamentais. A partir
dessa decisão, a quase totalidade dos imigrantes haitianos solicitantes de refúgio
obtiveram autorização de permanência no País concedida pelo CNIg . A autorização
de permanência tem validade de cinco anos e garante aos imigrantes os direitos ao
trabalho, ao uso dos sistemas universais de ensino, de saúde e demais direitos
garantidos aos cidadãos brasileiros, com ressalvas àqueles direitos políticos ou de
natureza política exclusivos a brasileiros natos ou naturalizados de base constitucional
(SEIXAS, 2014, p. 27).
55
"Ao deliberar acerca da definição destes migrantes, o Estado reafirma sua condição soberana de monopolizar as
decisões de inclusão e exclusão de seu território delimitado. Ao mesmo tempo, todo reconhecimento da condição
de refúgio também implica no reconhecimento de uma falha do país de origem do migrante em sua capacidade de
proteger e garantir os direitos fundamentais de seus cidadãos. Assim, argumenta-se que a concessão de “vistos
humanitários” aos migrantes haitianos – traçando uma demarcação entre o refúgio e o humanitarismo – atua no
sentido de despolitizar a vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção, ao resumir sua mobilidade a
uma tragédia natural e preterir questões políticas profundas relacionadas à situação do Haiti diante do regime
humanitário internacional e o envolvimento do Brasil neste regime" (THOMAZ, 2015, p. 75).
118
Soma-se ao fato que tal resolução limitava a permissão de vistos humanitários em 1.200
ao ano, uma média de 100 por mês. Ora, de 2012 a 2013, só pelo Acre, como vimos nas
informações da tabela 2.1, entraram mais de vinte mil haitianos. Somente em abril de 2013
houve a revogação do limite de vistos, e além da dificuldade da restrição, os trâmites
burocráticos para a obtenção do visto (ainda no Haiti), o preço do visto (220 dólares), a exclusão
de uma série de perfis de imigrantes que são próprios do diáspora haitiano, e finalmente
efetivação do visto somente no momento comprovação da prática laboral56.
Em Abril de 2013 revoga-se o limite anual de vistos e a transferência de imigrantes para
São Paulo é ingerida pelo governo do estado do Acre até 2015, quando a intervenção do
Governo Federal se intensifica. Outra coincidência de 2015 é a diminuição do fluxo, ao menos
na rota pela fronteira acreana e a divulgação de um documento do Ministério Público do
Trabalho, no qual o Estado brasileiro é réu pela omissão e pelo descaso para com imigrantes.
56
“Da RN nº 97 extraem-se as seguintes diretrizes:
a) a imigração haitiana ainda é uma questão humanitária;
b) o Estado brasileiro acredita que a motivação da imigração haitiana para o Brasil foi devido ao “agravamento
das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro
de 2010”, logo somente será fornecido o visto àqueles que solicitarem à Embaixada do Brasil em Porto
Príncipe/HAITI;
c) o Estado brasileiro está disposto a receber uma quantidade limitada de imigrantes haitianos, limitada também
temporalmente por mês e por ano; e
d) o visto “por razões humanitárias” é uma espécie de visto de trabalho e sua transformação em autorização de
permanência, ao fim de seu prazo, está atrelada à comprovação de exercício laboral por parte dos imigrantes
haitianos.
É possível também deduzir que a RN nº 97 excluiu:
1) cidadãos haitianos que não vivem no Haiti;
2) cidadãos haitianos cujos processos migratórios irregulares já estavam em curso e cidadãos haitianos que estão
em trânsito no momento de sua publicação;
3) cidadãos haitianos que entraram ou entrarem irregularmente no Brasil; e
4) cidadãos de outras nacionalidades que estejam passando por situações excepcionais ou de caráter humanitário.”
In.: SEIXAS, Raimundo Jorge Santos . Soberania hobbesiana e hospitalidade em derrida: estudo de caso da
política migratória federal para o fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.
Brasília: Centro Universitário UNIEURO, 2014, p. 39.
119
Tal documento, uma Ação Cível Pública, de 79 páginas fora anexos (que somam mais
de mil páginas), alega uma série de fatores que problematizam o papel do Estado em administrar
a “crise” imigratória de haitianos. Isto denuncia, já em um primeiro momento, a conformação
do Governo Federal em se eximir da entrada destes de forma que os mesmos passem por uma
série de situações adversas, entendendo que a ação dos coiotes alimenta o tráfico de pessoas,
no caso, dos imigrantes haitianos. Vale ressaltar que tal documento do MPT converge com o
protocolo de Palermo, que indica que o tráfico de pessoas está de acordo com o que aconteceu
na fronteira com o Peru e o Brasil, remetendo à exploração e extorsão.
A República Federativa do Brasil admite que o povo haitiano é vítima de tráfico
internacional de pessoas quando em deslocamento para o nosso território. Como se
observa do pronunciamento do Exmo. Sr. Ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo. Do mesmo modo, a Agência Brasileira de Inteligência, ABIN, realizou
missão com seus oficiais e analistas de inteligência, percorrendo a rota do fluxo
migratório, desde o Haiti até o Acre, no ano 2014. As provas coligidas aos autos
igualmente corroboram essa inequívoca constatação (MPT, 2015, p. 3).
O documento ainda prevê que há três escalas de crise - a crise humanitária no Haiti, a
crise migratória no Brasil, e a crise de gestão pública da crise imigratória no Haiti - assim como
analisa que os abrigos do Estado do Acre são verdadeiros “depósitos de trabalhadores (...) quase
as antigas senzalas”. Pede, em ação cível, a assunção de condições dignas de trabalho para
imigrantes – haitianos, senegaleses e dominicanos, citado conforme documento – e a
decorrência de instrumentos legais de entrada e acolhimento aos novos imigrantes no país.
Não é exagero dizer que a única política migratória existentehoje no Brasil, desde
o ponto de vista da situação existente no Estado do Acre a partir de 2010, é a
facilitação da entrada de trabalhadores migrantes caribenhos, africanos e
asiáticos, com uma certa simplificação do processo de refúgio – ou da
documentação desses trabalhadores que chegam sem vistos na fronteira
terrestre, no Acre, e na transformação posterior em residência humanitária. A
estratégia é inteligente (...) No entanto, é insuficiente. Acolher é mais do que abrir
passagem. E a política não vem acompanhada de eficientes ações de
enfrentamento desta situação, com verdadeiras políticas públicas de direitos
humanos, com controle governamental da migração coletiva de trabalhadores e
a extinção da rota ilegal usada por traficantes, contrabandistas e coiotes ao longo
da América Latina, o estado de coisas encontra-se com data certa para novo
agravamento, ante a completa retirada das mínimas regulações sobre a matéria
(MPT, 2015, p. 43). (Grifo do autor).
A Ação cível ainda aponta que a falta de controle de recrutamento de imigrantes por
empresas que os contratavam ainda no Acre, visível em trabalho de campo no início de 2015,
repercutiu em várias ações contra tais empresas em São Paulo e Santa Catarina 57, no qual o
57
O documento do Ministério Público do Trabalho cita em específico duas reportagens a seguir: “Imigrantes
haitianos são escravizados no Brasil”, disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/01/imigrantes-haitianos-
sao-escravizados-no-brasil/; e “Gigiante da mineração é autuada por trabalho análogo à escravidão em MG”,
disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/04/1445055-gigante-da-mineracao-e-autuada-por-
trabalho-analogo-a-escravidao-em-mg.shtml.
120
documento aponta o descaso tanto do governo do Acre quanto do Governo Federal. Finaliza
autuando o governo na imediata regularização dos problemas apontados pela ação, tais como a
previsão orçamentária no acolhimento de imigrantes no Brasil, a realização de ações efetivas
de inibição à prática de coiotes e a indenização de caráter moral para práticas de acolhimento e
viabilização da entrada de imigrantes no país. A decisão da juíza do trabalho Silmara Negrett
Moura veio a cerca de um mês após a impetração da ação, em junho de 2015, deferindo o
processo.
Almejando ir além de um maniqueísmo do tipo "bom ou ruim", de fato é inegável que
a vinda da Resolução 97/2012 abriu o diálogo e possibilitou reformular vários conceitos do
próprio Estado brasileiro quanto ao trato e a elaboração de políticas direcionadas aos imigrantes
no país. Contudo, tal prática sozinha aponta o revés das estratégias dos imigrantes haitianos,
bem como o conteúdo de ações que não viabilizam o aporte e o apoio à sua entrada e sua
intenção, mas paulatinamente o incriminam como um “migrante problema” em detrimento a
um possível migrante ideal, que ao que tudo indica, tanto pela sociedade quanto pelas políticas
que insistem em revelar a entrada destes como crítica, não vem a ser o haitiano.
Dois elementos nos trouxeram algumas elucidações no que se refere aos agenciamentos
da diáspora haitiana no Brasil, sobretudo suas intersecções políticas. O primeiro elemento, as
estratégias de mobilidade são mais expressivas que a viabilidade real do deslocamento, o que
gera no caso dos haitianos muito da irregularidade do trânsito (a rota para as fronteiras
precarizadas, a atuação dos raketés e dos agenciadores no percurso. Entende-se dessa maneira
que o fator político desta mobilidade é promovido desde sua opção de migrar, ainda mais no
caso dos haitianos em que suas diásporas são singulares, isto é, constituintes do próprio sujeito
e do próprio ser/estar.
O segundo elemento consiste na estratégia de mobilidade mais presente e mais peculiar
no Brasil, que é a capilaridade pelo território brasileiro. Tal capilaridade, conforme apontado,
possui várias justificativas, e em muitos casos a estratégia de migrar para o Brasil conflita com
as ações políticas adversas à dos próprios migrantes. Não existe inimigo ou dualismo nesse
processo, é um constructo político.
121
Essa capilaridade fica perceptível no Mapa 4 pelas cores de cada rota de haitianos na
década de 2010 no Brasil e na América Latina.
De acordo com Handerson (2015), o termo diáspora como sujeito no Haiti surge com os
refugiados políticos da ditadura dos Duvalier (Papa Doc e Baby Doc) nos Estados Unidos. Na
década de 1980 a expressão conquista os imigrantes considerados menos abastados e não
necessariamente refugiados políticos. O interessante é que a denominação diáspora foi utilizada
como uma maneira de se diferenciar dos afroamericanos, na possibilidade de legitimarem sua
singularidade enquanto caribenhos e culturalmente/socialmente diversos aos outros negros.
O sujeito diáspora, para o referido autor, possui alguns ideais em suas mobilidades,
cujos termos são próprios do créole haitiano: lajans dyaspora (dinheiro diáspora), peyiblan ou
peyietranje (país branco ou estrangeiro), dentre outros que são apropriados e relacionados a
cultura desse sujeito. Destaque-se o termo baz, que possui um caráter polissêmico, mas que em
geral significa a reunião em um determinado espaço de um grupo ou uma organização de
pessoas qualquer. Esses baz serão analisados mais adiante, mas são imprescindíveis no tocante
às estratégias de imigrantes haitianos e a sua capilaridade no espaço de convivência do lugar
chegado.
Sobre o conceito de diáspora em si, Handerson aponta os fatores que o levaram à
utilização do diáspora haitiano como sujeito – e muitas vezes adjetivo – em relação a um termo
muito difundido e aplicado aos estudos migratórios e culturais – a diáspora – como intrínseco
ao processo político configurado do ato de migrar haitiano:
Não somente a ideia de fronteira como limite territorial, físico, de países ou nações. A
reflexão tem como escopo as múltiplas facetas da fronteira nessa relação espaço/tempo. Eis os
motivos:
1) A ideia de transposição do sentido material de fronteira: ao se tratar de globalização,
há um entendimento superficial de que as fronteiras deixaram de existir, e que não há limites
para se transitar, para a mobilidade espacial das pessoas;
2) A fronteira travestida: contraditoriamente, a contenção de pessoas se acentua e
ratifica, inclusive fisicamente, a construção de muros e barreiras fixas literalmente como
contenção de grupos, inerentemente marginalizados (a fronteira no sentido “liberacionista” dá
lugar à “salvação dos novos invasores”). É por esse motivo o escamoteamento do termo e a
analogia a muros de contenção, que ora alimentam discursos de ódio e dispositivos políticos,
ora privam a liberdade do próprio trânsito. O muro não como ideologia - o muro é a ideologia;
3) A livre circulação: da mesma maneira, esse liberacionismo das fronteiras constitui
uma falácia no momento em que se estabelecem os preconceitos e onde a circulação de
informação ainda é impulsionada quando se ratificam os limites;
4) Ideia errônea de muros/fronteiras/limites como solução de uma política de Estado: o
Estado não é somente o agente na construção das fronteiras, mas as fronteiras são construídas
por grandes projetos de empreendimento que são atribuídos a grandes grupos, de Estados e de
grandes corporações.
4 CAPÍTULO IV
AS TÁTICAS DE CONSOLIDAÇÃO DOS HAITIANOS NO BRASIL:
SÃO PAULO COMO REFERÊNCIA
Comecemos com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Caetano é responsável por uma das
músicas mais citadas em paráfrase ao caso dos haitianos no Brasil: a música Haiti, cujo refrão
anuncia: “O Haiti não é aqui, o Haiti é aqui”. A música, embora citando o país cujo tema desse
trabalho é o espaço de acontecimento, faz uma analogia de certa forma temporal: Caetano e
Gilberto Gil incluíram essa música no álbum Tropicália 2, de 1992, coincidente à ditadura de
130
de haitianos. São Paulo tornou-se o principal ponto de encontro destes, cujo intuito maior era
encontrar uma forma de sustento. Resumidamente, podem-se definir quatro elementos de
atuação do governo do Acre a partir das geometrias de poder, sejam sob justificativa da evasão
de haitianos no Acre e/ou problemáticas exploradas no capítulo anterior, conforme o Quadro 1:
Quando esta tentativa conflita com as reais estratégias dos migrantes, as coisas mudam
de figura, e as estratégias do governo fogem ao controle. Na tentativa de sanar e suprimir as
dificuldades acarretadas com a passagem por essa fronteira, a solução ofertada foi literalmente
“remover o problema”, fretando ônibus e pagando as passagens para os destinos nos quais
haitianos ou já possuíam uma rede de contatos, ou no percurso ao Acre conheciam outras
pessoas com as mesmas pretensões.
Esse jogo para efetivas políticas públicas não tem vencedor. Nem o Estado do Acre que
se esquivou da possibilidade de dialogar com o governo federal projetos efetivos para a faixa
de fronteira – que compreende todo o estado, por sinal –, nem o governo de São Paulo, que da
mesma maneira respondeu à chegada dos imigrantes haitianos nos ônibus fretados como uma
“provocação” do estado do Acre. Como disse Caetano e Gil, “não importa nada, nem o traço
do sobrado, nem a lente do Fantástico, nem o disco de Paul Simon... Ninguém, ninguém é
cidadão...”.
O paradoxo da política que possibilita a permanência de haitianos no Brasil é apontado
por Thomaz (2015) :
uma “crise política” se instalou entre os governos do Acre e de São Paulo, com este
último acusando de irresponsável o envio dos migrantes sem aviso prévio, ao passo
em que o primeiro adjetivava as autoridades paulistas de “racistas” e higienistas” por
não mostrarem-se hospitaleiras aos migrantes haitianos. Para além das disputas
interestaduais, o fato é que os migrantes haitianos deixaram a condição de
invisibilidade que vivenciavam no Acre e a questão “humanitária” de sua vinda
passou ao centro a agenda política do país (THOMAZ, 2015, p. 104) .
Apresenta-se a partir de Rosa Vieira uma questão salutar, que é a de quem estas políticas
surgem e de fato favorecem, além do porquê. Ao atentarmos que a possibilidade de entrada de
haitianos pelo motivo de refúgio foi refutada sob alegação de não haver a categoria refúgio para
desastres ambientais, aliado ao crescente fluxo entre 2012 e 2014, a mobilidade haitiana acaba
por possuir, a partir das estratégias de mobilidade destes, outras geometrias de poder, vale
destacar:
Geometria 4
134
A partir da década de 2010 o Brasil, com a mudança no cenário mundial e com a sua
visibilidade no cenário capitalista, tornou-se ponto de encontro de novas nacionalidades e novas
rotas migratórias dos de abajo. E São Paulo como principal centro de decisão global do país
tende a ser um ponto de encontro.
135
Mais do que a música homônima de Caetano e Gil, é a música Sampa, composta por
Caetano Veloso em 1978 e integrada ao álbum Muito dentro da estrela azulada, que melhor
representa a vinda de imigrantes para São Paulo. E mais que isso. O olhar cuidadoso e sensível
de uma cidade como São Paulo na visão de um migrante. “... é que quando eu cheguei por aqui
eu nada entendi, da dura poesia concreta de suas esquinas [...] Alguma coisa acontece no meu
coração, e só quando eu cruzo a Ipiranga e a Avenida São João...”.
Se o impacto de chegar ao Brasil por uma região precarizada e com uma série de
problemáticas estruturais que visibilizam mais ainda as contradições e a diversidade de Brasis
desiguais é escancarado pelos haitianos, a encarnação da cidade global e da dureza para aqueles
que são invisibilizados pela sociedade torna-se o tom e a canção de novos espaços migrantes
para estes mesmos haitianos. “... E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho. Nada do
que não era antes quando não somos mutantes [...] E quem vem de um outro sonho feliz de
cidade aprende depressa a chamar-te de realidade, porque és o avesso do avesso do avesso do
avesso...”.
As ações do estado do Acre e a mobilidade para São Paulo ficam mais claras, tanto nas
falas de haitianos quanto nas ações entre os agentes envolvidos no curta-documentário SP
Creole: a vida dos haitianos na capital paulista, sob orientação do professor Heidy Vargas, da
Universidade Metodista de São Paulo em parceria com o canal Futura. O documentário percorre
a entrada dos haitianos pelo Peru e o trajeto em um dos ônibus fretados pelo governo do Acre
para São Paulo, até as maneiras em que haitianos moram e constroem suas vidas na capital
paulista. Conforme fala do secretário de direitos humanos do governo do estado Acre, Nilson
Mourão, a entrada pelo Acre se dá eminentemente pela ação conjunta dos coiotes, que
intencionam obter de maneira ilícita os recursos disponíveis destes imigrantes, mas o destino
pretendido destes é claramente a região centro-sul do Brasil:
Enquanto ocorrer ação ostensiva e sem controle dos coiotes, muito provavelmente
essa rota se manterá viva. A forma de desativar essa rota, ela precisa ter uma ação de
todos os países envolvidos nessa rota... Os migrantes não vem para o Acre para ficar,
eles vem para seguir viagem para o centro sul do país (Nilson Morão In.: SP Creole,
2014).
chegado ao Brasil viviam em São Paulo. Os haitianos viajavam sessenta e seis horas do Acre
até São Paulo e desciam na Estação Rodoviária e metroviária Barra Funda, de fácil locomoção
à região central da cidade. É apontada a falta de orientação, em dezembro de 2014 à chegada
dos haitianos pela Rodoviária, no qual estes não obtinham informações claras sobre para onde
ir.
Conforme ainda o documentário, boa parte dos haitianos em São Paulo vivem em
prédios ocupados pelos movimentos de luta pela moradia. Segundo o vídeo, cerca de 400
pessoas viviam na ocupação, destas, a imensa maioria eram haitianos. Dentre as falas destes,
ressaltamos a de Iliot Cyrise, morador de um prédio uma ocupação em 2014:
Quando eu primeiro cheguei aqui no Brasil, eu morar numa pensão. Quando nós vinha
aqui, esse prédio tá muito sujo. Nós pegamo a semana inteira pá descer entulho na
rua. Nós fez uma preparação para nós morar aqui. Esses prédio, o responsável desses
prédio mesmo é Jeferson, que mandá nós morar aqui e cobrar dinheiro com nós morar
aqui, porque nós estrangeiros não sabe nada de casa aqui no Brasil... A vida aqui é
muito ruim, porque é um banheiro pra todo mundo. Aqui em cima terceiro andar, não
tem nada, não tem banheiro, não tem água... Todo haitiano que vem aqui pro Brasil
vem pra trabalhá, não vem pra fazer outras coisas não (Iliot Cyrise In.: SP Creole,
2014).
exime, tal qual ocorria no abrigo no Acre, de avaliar os atos ilícitos contra esses mesmos
imigrantes?
Conforme apontado e o que veremos adiante em outros fluxos no Sul do Brasil, a
moradia é um dos principais gargalos nas estratégias de mobilidade e permanência de haitianos
no Brasil. Assim, as estratégias de mobilidade de haitianos em São Paulo requerem a reflexão
de a que veio o haitiano e como chegou a São Paulo, cujos problemas ainda promovem
condições precárias de sustento e moradia a partir de agenciamentos de outrem. Sejam dos seus,
do Estado, da sociedade ou de outras organizações, o haitiano mobiliza-se ao encontro dos
Brasis.
QUADRO 3: Haitianos acolhidos na Rodoviária Barra Funda – São Paulo em julho de 2015
Dentre o maior destaque, ressalta-se um dos eixos de atuação da instituição, que promove o
diálogo entre empresários e potenciais trabalhadores, logo, o que converge ao desejo imediato
dos imigrantes. Silva (2017) ainda ressalta que o papel da Igreja Católica na consolidação de
redes de imigrantes no Brasil, bem como a promoção de garantia de direitos fundamentais, não
se deu somente com os haitianos, mas através de um processo de ausência de políticas efetivas
por todo o século XX e XXI no Brasil, seja com os italianos, japoneses, nordestinos no Sudeste,
sul-americanos, até sírios, matrizes africanas e caribenhas no século atual.
Entre as atividades mais procuradas pelos haitianos estão o atendimento que encaminha
documentos e o projeto de mediações para o trabalho, em convênio com o Ministério do
Trabalho e Previdência Social, no qual o imigrante preenche uma ficha e participa de palestras
ofertadas pelo grupo Society for Intercultural Educations Training and Research Brasil -
SIETAR Brasil, que apresenta aos imigrantes os critérios e a legislação vigente de trabalho,
indicando os casos de abuso, exploração e deslegitimação no Brasil, bem como direitos
trabalhistas e um aparato geográfico e histórico do país. Por sua vez, empresários de toda parte
do país inscritos no banco de dados da Missão Paz também assistem a uma palestra indicando
as responsabilidades na contratação de imigrantes. Há semanalmente o encontro entre
empregadores e imigrantes onde, a depender do interesse, ocorre a contratação. Conforme
representantes da Missão Paz, Padre Paolo Parisse, assim como os assistentes sociais e os
relatos dos imigrantes, há um monitoramento rígido na contratação dos imigrantes, com
acompanhamento e verificação de denúncias.
Em 2014, no auditório de eventos, com a vinda maciça de haitianos pelos ônibus
fretados a São Paulo, foi improvisado um alojamento que chegou a abrigar duzentos e cinquenta
haitianos. Ainda conforme relatório do eixo trabalho entre maio a setembro de 2014, cerca de
1700 imigrantes foram contratados por um total de 500 empresas; mais de 600 imigrantes foram
encaminhados a cursos profissionalizantes e cerca de 900 imigrantes fizeram cursos de
português via Missão Paz.
Conforme esses mesmos campos, a estrutura da Missão Paz se dá da seguinte maneira:
142
58
O orçamento da entidade, segundo relato de funcionários e voluntários, está vinculado à própria congregação
scalabriniana, por convênios firmados por agências nacionais e internacionais e doações. Muito pouco vem do
Estado de São Paulo.
143
A maior parte das falas dos imigrantes, seja nos dados dos abrigos no Acre - que Toledo
Souza (2016) define como campos de refugiados59 - seja nas falas de haitianos em São Paulo
ou na região Sul do Brasil, há um eufemismo e retórica de justificar a vinda para trabalhar.
Somado a isso, destaca-se um terceiro aspecto da fala de Iliot: a justificativa da vinda para o
Brasil ser somente para trabalhar. Conforme Toledo Souza (2016):
Já no início do fluxo para São Paulo têm-se duas características importantes: uma, a
passividade e docilidade dos corpos que, conforme o próprio Toledo Souza aponta, envolvem
também táticas de sobrevivência no país na busca por oportunidades de trabalho e, segundo, o
intuito dos empresários de vários outros locais do país em aproveitar dessa passividade a fim
de promover postos de mercado de trabalho em decadência no Brasil, muito pelo crescimento
econômico das décadas de 2000 e 2010.
Ora, o Estado do Acre determinou o trabalho como principal fator de imigração e o
Estado brasileiro definiu, em suas normas desde a chegada de imigrantes no século XIX que o
imigrante era pelo trabalho. O Conselho Nacional de Imigração é submetido ao Ministério do
Trabalho. O visto concedido a haitianos é um visto de trabalho, condicionado a renovação caso
o imigrante esteja trabalhando no Brasil. Não é surpresa uma resposta em forma de justificativa
repetidamente colocada pelos haitianos em momentos muitas vezes vindos de suas adversidades
no Brasil: “... nós só queremos trabalhar...”.
Karl Marx, em O Capital, ao caracterizar as bases da acumulação primitiva, aponta que
a usurpação das terras comunais no final da Idade Média foi uma das causas cruciais da
expulsão de trabalhadores do campo para a cidade, já que extraiu sua garantia de renda no
campo. A mobilidade de grupos já destituídos promoveu a transformação do trabalho
59
Na perspectiva de Michel Foucault e Giorgio Agamben, que apontam o caráter do controle do Estado em escolher
a categoria migrante ou refugiado, conforme o interesse e os agenciamentos do Estado, os interesses a lógica deste
e do capital e à força de lei que possibilita docilizar corpos para este Estado. Essa docilização não é indicada nem
informada, pois coexiste ao controle e à força da lei emitida pelo controle. Mais informações In.: FOUCAULT,
Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; e AGAMBEN, Giorgio. Estado de
Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
144
assalariado, em conjunto com a garantia do acordo entre Estado e mercado que possibilitaria a
formação de excedente de trabalho, a população relativa ou o exército industrial de reserva, que
viveria à margem das condições de trabalho e intensificaria o lucro do Estado e principalmente
do capital.
Ele aponta sucessivas ordens da nobreza que tornaram cada vez mais precário o homem
comum, o ex-camponês em escravo da força de trabalho. Sua precarização impedia a chamada
vadiagem/vagabundagem, e tornava as massas cada vez mais submissas à ordem de um
proprietário de sua força de trabalho. Contudo, Marx não procura, ao tratar da acumulação
primitiva e da mobilidade do trabalho pela força de trabalho, desvelar uma relação clássica de
acumulação primitiva para outros países, outros espaços. Ele claramente figura o exemplo de
acumulação clássica atribuída por ele – à Inglaterra – e aponta as possíveis e diversas
complexidades entre outros espaços, obviamente sem deixar de articular a categoria trabalho
nas relações sociais do sistema capitalista.
É nesse contexto desigual da relação entre capital e trabalho, em que o migrante pode
tornar-se também mercadoria negociada ou traficada por redes ilegais de
agenciamento, que a atuação de redes de acolhida de cunho humanitário acaba tendo
um papel central, pois, seja por questões religiosas ou não, o que está em jogo é o
conjunto dos direitos da pessoa humana. Nesse sentido, justifica-se a ação da Pastoral
do Migrante em fazer a mediação entre empregadores e trabalhadores migrantes,
garantindo-lhes minimamente direitos trabalhistas e sociais. Contudo, ao fazer este
“serviço”, a entidade assumiu também o risco de ser instrumentalizada pelos
empregadores, que utilizaram esta rede humanitária para contratar trabalhadores(as)
de que necessitavam naquele momento para a sua reprodução econômica. Embora as
contratações tenham seguido os parâmetros das leis trabalhistas, os salários pagos
eram, em geral, inferiores aos dos trabalhadores nacionais em igualdade de função,
particularmente para os trabalhos considerados insalubres, como o realizado por
haitianos e senegaleses nos frigoríficos do Sul do Brasil (SILVA, 2017, p. 111).
Fica clara a condição paradoxal, contudo resultante da ineficácia das políticas públicas
e das heranças históricas tanto do discurso de autonomia dos migrantes aliado na realidade a
um descaso, cujo poder da inclusão social entre migrantes é fortalecido nessas entidades em
trabalhos de campo em São Paulo, na Missão Paz, da mesma maneira em que essas relações
tornam-se objeto de um processo cujo descaso do poder público torna-se mais visível.
Esse tipo de opinião, embora minoritária dentre os comentários, reflete o processo pouco
elaborado tanto entre as instâncias governamentais quanto na própria sociedade da política
migratória no Brasil e seus desdobramentos muitas vezes ligados a agenciamentos de
enunciação que remetem ao imediato, a uma política imediatista conforme a emergência de
acontecimentos. Ao mesmo tempo, enuncia um discurso importado de outras falas, sobretudo
de meios de comunicação.
Essas estratégias de mobilidade promovem novas frentes de análise e de inserção de
políticas efetivas a grupos migrantes. Em conjunto a estratégias de permanência, visualiza-se o
espraiamento e a capilaridade dessas frentes em diversos espaços no Brasil. São Paulo, desta
maneira, é o epicentro e o cruzamento dessas novas estratégias de permanência.
“A gente traz sonhos, traz metas. Traz as malas nas costas querendo vencer na vida. As
pessoas acabam se aproveitando, nos fazendo passar fome, sono... Os meus sonhos são muito
altos...”.O relato é de Abel Marti, imigrante haitiana no Brasil desde 201160.
60
Em Novembro de 2014, ocorreu o Seminário Vozes e Olhares Cruzados 3, que ocorre anualmente na Missão Paz
a fim de trocar experiências entre imigrantes e a própria entidade, cujo público é de pesquisadores na área, outras
entidades, bem como representantes cuja temática abordada é migração e migrantes. Em ocasião a presença neste
evento, ocorreu a fala de Abel.
148
Abel chegou a São Paulo, ficou o primeiro em hoteis e a partir de um grupo de haitianos
conheceu a Casa do Migrante, onde permaneceu 22 dias instalada, recorrendo a orientações
disponíveis (documentação, busca por emprego, as palestras e a própria estadia). Conseguiu um
emprego pela mediação do eixo trabalho em uma empresa paranaense, onde ficou por um mês.
“Lá brasileiro fica em um lugar diferente dos haitianos. Trabalho muito difícil, então
voltei pra São Paulo...”. Abel retornou cerca de quatro vezes na Missão Paz até se fixar no
trabalho presente em 2014. “Trabalhei em restaurante, ganhando quinhentos reais pagando
quatrocentos de aluguel... Conseguiram trabalho que seria de babá, mas cheguei lá, era como
doméstica. Agora estou há um ano e nove meses como babá de uma procuradora.”.
O vaivém de Abel não é uma exceção entre imigrantes nos recentes fluxos. Na tentativa
de estabelecer não somente um local, mas principalmente uma atividade que gere um retorno
para viver e enviar recursos ao seu grupo, a surpresa de encontrar um país cujas desigualdades
e relações sociais permeiam uma série de contradições impulsiona, por um lado, a identificação
e, por outro, a desilusão. A procura por melhores condições, vinculado a sistemática
reivindicação - em particular aos haitianos, a mobilização de entidades públicas, filantrópicas
e/ou privadas a estes recentes fluxos, a política solidária a partir do terremoto, dentre outros
elementos, traz peculiaridades às estratégias de mobilidade de haitianos no Brasil.
Mas são também na capilaridade e nas reivindicações locais, como de Abel ao retornar
a São Paulo até encontrar um trabalho que abarcasse suas demandas, nas consoantes denúncias
a trabalhos que ferem a dignidade humana, ao vaivém de migrantes e na consolidação de grupos
imigrantes que promovem novas redes sociais de migração, que as estratégias de permanência
se destacam.
As estratégias de permanência possuem três elementos intrínsecos à sua consolidação.
O primeiro elemento consiste nos agenciamentos dos migrantes, isto é, no conjunto de práticas
e discursos dos imigrantes que os levam até o Brasil e que os fazem se mobilizar pelo país.
Vimos que a capilaridade é um dos reflexos de suas estratégias de mobilidade, tal qual
também é de permanência. Mas verifica-se que as estratégias de permanência estão numa escala
menor que as de mobilidade nesse sentido. As relações entre o local são muito mais definidas
e definem também o próximo passo do migrante. As redes sociais de migração são de profunda
importância no desenrolar destas estratégias.
Um dos suportes de apoio e savoir-faire (saber-fazer) dos imigrantes haitianos é o
sentido dado ao encontro e promoção de diálogo via o que se denomina por baz pelos mesmos.
No baz, os encontros estabelecem primeiramente uma territorialidade, já que os pontos de
149
determinado grupo serão sempre em um local fixo, escolhido pelos imigrantes. Após, eles
aportam novos contatos e novas redes de imigrantes já no Brasil ou a chegar. Conforme
Handerson, em ocasião de conversa com haitiano na Guiana Francesa (2015):
Baz (e aqui mais uma vez nos referimos a todas elas evidentemente, não só às bazamè,
as bases armadas) é um lugar de pertencimento e de proteção, um espaço de
sociabilidade (basicamente masculina, como dissemos, embora as lideranças
femininas possam falar também a linguagem da baz), ao mesmo tempo um espaço
concreto localizado no território e um espaço moral mais ou menos abstrato, cujas
fronteiras e escalas são, como já vimos, móveis e maleáveis (NEIBURG; NICAISE;
BRAUM, APUD HANDERSON, 2015, p. 262).
Nesse sentido, a fragilidade dos agenciamentos, das práticas e discursos dos outros que
como vimos apontam o migrante como um problema acentuam as disparidades, mas também a
consolidação de um debate e de um enfretamento à realidade vivida por estes mesmos
imigrantes. Do enfrentamento e da discussão é possível a promoção de políticas públicas e/ou
públicas ou de inclusão social para migrantes, que, assim, são postas à mesa.
O segundo elemento das estratégias de permanência refere-se aos agenciamentos dos
outros, isto é, as ações que acentuaram ou escamotearam a vinda de imigrantes. Vários são os
aspectos que possibilitaram a mobilidade para o Brasil, conforme apontado nos capítulos
anteriores. É notório que o terremoto foi um vetor de entrada, assim como aparente resposta do
Brasil à entrada de haitianos. Mas foi também a justificativa ilusória de contratar imigrantes em
trabalhos menos qualificados, tal como Handerson (2015) aponta:
61
Conforme Haesbaert (2007), ao apontar as territorialidades diversas em territórios que são construídos em
recorrência ao discurso do fim dos territórios.
150
A citada Abel, por exemplo, chegou a trabalhar em uma oficina de costura com vários
outros haitianos, cuja proprietária ofertou empregos a Missão Paz, mas omitiu as reais
condições no qual intencionava contratá-los. Tomar um posicionamento claro, ou minimamente
ter consciência da superexploração do trabalho é crucial na produção de estratégias de
permanência. Para tanto, é ter claro os agenciamentos dos outros, sobretudo quando eles não
convergem aos dos imigrantes.
151
Oito de Março de 2017. Ida à Missão Paz para assistir palestra com imigrantes
francófonos em parceria com a organização SIETAR Brasil, cuja palestrante foi a mestranda
em Geografia Priscilla Pachi, com José Carlos, pesquisador do Centro de Estudos Migratórios
e editor da Revista Travessia.
No primeiro dia fui à Missão Paz ao encontro de Priscilla, que promove a integração
cultural, social e histórica de imigrantes que chegam ao Brasil. Priscilla é encarregada de
palestrar para francófonos, isto é, imigrantes que possuem o francês como sua língua materna
ou até secundária, como no caso dos haitianos. No espaço destinado à palestra em francês foi
possível perceber que havia imigrantes de várias nacionalidades, dentre a imensa maioria de
haitianos, mas também congoleses, senegaleses, entre outros. No auditório, em torno de 60
pessoas, imigrantes que haviam acabado de chegar ao Brasil (pelas falas destes, entre dois
meses a três dias).
152
Foi perguntada a questão do racismo para com os imigrantes presentes, lembrando que
todos eram negros e que cerca de 80% eram haitianos. Embora houvesse certo constrangimento
ao entrar nessa seara, a resposta de um dos haitianos, ratificada pela maioria, era de que não é
uma mentalidade geral, e de que apenas uma minoria dos brasileiros era racista. É interessante
nesse sentido a análise de Diehl (2017) quanto a diminuição do racismo por parte dos haitianos:
Nos interessa questionar neste caso não tanto a xenofobia e racismo declarado dos
dominicanos contra os haitianos, mas um silencio dos haitianos frente a esse racismo
declarado [...] Acerca do silêncio como forma de manter-se em solo estrangeiro, [...]
eles comentaram que já haviam sofrido preconceito na República Dominicana e
esperavam vir ao Brasil e não sofrer preconceito, o que acabou não ocorrendo. Há
também um silenciamento por parte de alguns haitianos, este silenciamento muitas
vezes ocasiona nos haitianos não comentarem muito sobre os atos de racismo e
preconceito que recebem da população local estabelecida. Acerca desse
silenciamento, alguns moradores estabelecidos de Lajeado acham que isso pode ser
uma estratégia, até que os haitianos fiquem estabelecidos na cidade (DIEHL, 2017, p.
61).
Nesse aspecto, vale ressaltar as informações abordadas nos primeiros capítulos quanto
às heranças da interseção raça/classe presentes no Haiti e na relação com o país vizinho,
República Dominicana, assim como a formação das elites negras e mulatas no país, que marca
até hoje a sua dimensão política, assim como o preconceito no país vizinho. Apesar de
etnicamente negros, a tonalidade aliada à pobreza tem muita importância nas relações políticas
e sociais no Haiti. O reflexo pode se valer quanto à tentativa de suavizar o racismo e o
preconceito nos outros países, sobretudo no Brasil, que em muitos casos o preconceito velado,
de todos os agentes, mostra-se mais presente.
Para explicar melhor essas relações veladas, é dado em seguida, na palestra, um
panorama do que foi a escravidão no Brasil e os fluxos migratórios entre os séculos XIX e XX,
154
e de como a formação étnica no país é diversa por esses dois elementos, ao mesmo tempo em
que tais processos revelam suas contradições, suas incoerências.
Em seguida, Priscilla ensinou alguns aspectos da cultura brasileira que são rotineiros em
ambientes quer públicos, formais, quer em espaços de trabalho: apertar a mão bem forte olhando
no rosto, usar o primeiro nome etc. Assim como alguns gestos utilizados ou não utilizados que
são comuns em outras culturas ou palavras que são usadas de maneira diferenciada, tal como
discussão, que se no francês é um espaço de debate e diálogo, no Brasil é uma briga, uma
conversa mais hostil.
É dado um destaque ao tema do trabalho e das relações de trabalho no Brasil, na tentativa
de ter cuidado e atenção às normas e às ofertas de emprego. Fica presente em primeiro lugar a
frase : “Le salaire promis n’est pasle salaire que vous allez recevoir en espèce!” (o salário
prometido não é o salário que você receberá em espécie!). Dá-se importância, nesse sentido,
apreender os direitos essenciais, que envolvem descontos obrigatórios no pagamento. Da
mesma maneira, a necessidade de cuidados especiais ao conseguir um trabalho e a leitura
minuciosa do contrato de trabalho.
Um último destaque foram as desigualdades sociais refletidas sobretudo nas questões
de moradia no Brasil, sofridas de forma mais direta pelos migrantes, seja na burocracia em
alugar um imóvel onde na fuga desta opta-se por contratos informais cujos alugueis são ainda
mais abusivos, seja na discrepância social em grandes e pequenas cidades, que no caso de São
Paulo faz-se mais visível. A palestra finaliza com o encaminhamento e preenchimento de fichas
destinadas aos empresários conveniados na Missão Paz.
transformação política dos novos processos migratórios, no qual a posição tanto normativa
quanto da prática representativa do Estado sempre esteve à parte desta pauta.
É necessário ao mesmo tempo em que trazer à tona essas perspectiva problematizá-las
em seus contextos. A primeira perspectiva possui uma contradição se pensamos que essa
capilaridade permeia a série de redes sociais e redes geográficas cujo reflexo é sobretudo o
caráter associativista dos imigrantes haitianos em relação a imigrantes de outras nacionalidades.
Há uma coletividade no ato de migrar do haitiano que promove ainda mais essas redes tornando-
as intrinsecamente políticas. A segunda perspectiva tem um problema na ordem do debate, isto
é, no desencadeamento do processo político da discussão dos novos fluxos migratórios no país,
cujo reflexo traz atualmente o critério normativo de controle às migrações, não necessariamente
em favor ou implicando critérios mais humanistas e mais atenciosos ao caso dos imigrantes.
Nesse sentido, faz-se necessário uma discussão sobre os novos critérios normativos
estabelecidos após o debate político da entrada de imigrantes haitianos, que implicou num
cenário mais propício e novos estímulos ao debate da política do Estado a processos de
mobilidade, bem como em uma perspectiva de maior controle e criminalização de processos
imigratórios.
Nesse sentido os integrantes vislumbraram uma postura mais crítica que possibilitou um
diálogo mais expressivo com entidades ligadas aos direitos humanos, buscando alternativas de
inserção de políticas de caráter humanitário aos mesmos, tais como a Resolução Normativa 97.
Uma das respostas a esse caráter mais crítico foi a ampla abertura nesta década a entidades e
sociedade civil em discutir novas formas de inclusão destes imigrantes aos processos políticos,
culminando em maio de 2014 na Primeira Conferência Nacional de Migrações e Refúgio
(COMIGRAR), com imigrantes de várias nacionalidades, organizações governamentais e não
governamentais, pesquisadores, demais entidades e sociedade civil. Conforme notícia da época,
veiculada no canal Migramundo e Grupo NIEM:
62
Disponível em:http://migramundo.com/2014/06/02/comigrar-termina-mas-debate-e-mobilizacao-precisam-
continuar/, 2014.
157
Primeiras Intensificação do
Emigrações fluxo por
Primeiras notícias da chegada de haitianos Tabatinga (AM) e
pela fronteira brasileira Brasiléia (AC)
Fonte: Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios, Reportagens coletadas em jornais, mídias eletrônicas entre
2010 a 2016. (Elaboração nossa).
158
63
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/05/03/politica-migratoria-brasileira-deixa-
estrangeiros-em-situacao-precaria.htm, 2014.
159
elogiados por entidades e sociedade civil responsável por parte da elaboração do documento.
Boa parte desses elementos foi modificada ou vetada pela presidência. O documento esteve
cerca de cinco dias como minuta de decreto, e entrou oficialmente como Lei de Migração no
Diário Oficial da União no dia 21 de Novembro de 2017.
Exemplo nítido da transformação do documento64 está nos vetos iniciais dos parágrafos
que permitiam a legitimação de comunidades tradicionais ao livre trânsito e circulação de terras
tradicionalmente ocupadas. Foi vetado também parágrafos da Lei que indicavam a participação
em eventos e reuniões de cunho político, o livre acesso a serviços públicos e a participação em
concursos públicos no território brasileiro e, ademais, todas as especificidades iniciais que
respondiam ao caráter humanitário da lei e a diversidade implicada na entrada de novas
nacionalidades no Brasil. Da mesma maneira, foi incluído, a pedido da Câmara, o visto
temporário para fins de atividade religiosa.
Ao mesmo tempo, é notório o avanço do que se manteve como texto original, tais como
o visto por razões humanitárias, finalmente descolado ao visto de trabalho, que permite
vislumbrar o acesso de estrangeiros a um documento que compreende suas fragilidades.
A grande questão é a operacionalização conjunta que permite de fato a
instrumentalização desse processo, como vimos, ainda marcado por um embate do controle e
da segurança nacional. Muito ainda há de se mudar, mas o diálogo conjunto na proposição de
políticas para imigrantes, em especial quanto tratamos de haitianos no Brasil, já é um desafio
que possibilitou ação e promoção da inclusão em várias outras escalas.
Ainda há um caminho longo para a compreensão da imigração haitiana para o Brasil.
Muitos apontam que é uma passagem cuja legitimação de sua permanência auxilia no trânsito
para outras localidades, outros apontam o desejo e a vontade desse grupo em permanecer no
Brasil. Se não há consenso das reais intenções é porque nunca é consenso a intenção de um
migrante, mas sim que em seu desejo de mobilidade encontra-se a própria crítica ao espaço de
acontecimento cujas referências já não são mais dele, nem apontam suas próprias forças de
viver e de estar.
64
Documentos – o PL 2016/2015 e a Minuta de Decreto da Lei 13.445/2017 estão respectivamente disponíveis
em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1594910 e
http://www.participa.br/migracao/consulta-publica-sobre-a-regulamentacao-da-lei-n.o-13.44517-lei-de-
migracao/consulta-publica-minuta-de-decreto-lei-de-migracao/minuta-de-decreto-lei-de-migracao.
160
Ainda em trabalho de campo na cidade de São Paulo foi possível conversar diretamente
com haitianos, tanto com aqueles que haviam chegado recentemente quanto os que lá estavam
há mais de cinco anos e tiveram seus vistos de permanência renovados. Foi elaborado para a
ocasião um roteiro de perguntas que possibilitariam entrevistas semiestruturadas, o que de fato
ocorreu. O curioso é que optei por ir em um sábado à Missão Paz, no qual já havia sido indicada
da reunião de imigrantes ao redor da igreja. Encontrei um dos vários baz articulados por
haitianos pelo Brasil, e o que era para ser uma entrevista com alguns agentes, tornou-se uma
conversa aberta em que a troca e o diálogo entre um entrevistado e outro trouxe mais empatia
e emoção ao processo.
No momento da chegada, apontei que gostaria de falar com o grupo, que era
pesquisadora e gostaria de algumas informações sobre a vinda deles ao Brasil. Havia 16
imigrantes, 14 homens e 2 mulheres. Um carro, de propriedade de um dos imigrantes, estava
dentro do pátio da Missão Paz, com o som ligado. Um rap creole, bem parecido com o que
Marc me mostrou em Rio Branco.
A entrevista se deu com três integrantes que se dispuseram a falar mais detalhadamente:
Touissant, Charles e Fabian. (Os nomes aqui dados são fictícios a fim de preservar o anonimato
dos entrevistados). A disposição também foi um direcionamento do próprio grupo, que elegia
o próximo entrevistado. A justificativa dada a mim era de que primeiro eu precisaria falar com
o integrante mais recente do baz, Touissant, que havia chegado há sete dias ao Brasil.
No geral, todos do grupo foram receptivos e solícitos, características comuns dos
haitianos com quem conversei pelo país, mesmo quando para ajudar em algum
encaminhamento ou informação. Trocam, perguntam a origem, dialogam de uma maneira mais
aberta, sem muitos constrangimentos. A maior dificuldade foi com Touissant, que ainda não
sabia o português e pouco o francês, no que em muitas vezes não compreendia o francês
abrasileirado da entrevistadora, mas quando havia dúvida em alguma palavra, prontamente
alguém tentava traduzir ou para o creole, ou mesmo com uma pronúncia mais correta do próprio
francês.
Assim como eu perguntava, eles fizeram várias perguntas, tanto no que concerne à
legislação trabalhista, quanto ao que estava acontecendo com a política e a economia no Brasil.
Uma pergunta bem intrigante, de Charles, era se por acaso um imigrante como um deles
resolvesse trabalhar para o tráfico, seria mais criminalizado que um brasileiro. Vale lembrar
que a Missão Paz está localizada em uma das áreas mais conflagradas da cidade, dominada pela
161
facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Essa pergunta indica por si só várias respostas da
angústia de ser migrante e negro no Brasil e morar/habitar uma região dominada por redes
paralelas de poder.
Touissant é separado, tinha 30 anos, era pintor e eletricista no Haiti, veio de avião e já
obteve o visto em Porto Príncipe. Charles é solteiro, tinha 36 anos, era mecânico formado no
Haiti e conseguiu no Brasil terminar outro curso de mecânica pelo Serviço Nacional da Indústria
(SENAI). É o que possui melhor condição entre os entrevistados, já que recebe ajuda da família
no Haiti, está há mais de seis anos no Brasil e veio pelo Peru, e pelo estado do Amazonas de
barco. Fabian, por sua vez, possuía uma namorada no Haiti, tinha 32 anos, chegou a fazer
ciências econômicas e em seu país de origem era estagiário em pesquisa, tendo chegado ao
Brasil em novembro de 2016, também de avião entre Haiti e São Paulo.
No tocante à chegada, obtivemos as seguintes respostas:
Algo bem comum na fala dos migrantes em geral é escamotear as mazelas que
acontecem, o que para os outros potenciais migrantes promove o fluxo migratório mais intenso,
mas por outro lado apresenta-se rapidamente contraditório, como no caso dos três ao falar da
agilidade e processo do passaporte, assim como as dificuldades na travessia. Da mesma
maneira, falas como as de Touissant, somente há sete dias no Brasil, apontam as principais
dificuldades encontradas no imediato à chegada, que vislumbram a ilusão do que eles
imaginavam do país e o que realmente ocorre.
Essa perspectiva da dificuldade na chegada é também abordada por Charles e Fabian,
assim como se percebe as dificuldades em conseguir um emprego no Brasil conforme suas
formações, no que eles acabam optando por serviços inferiores, e os mais demandados pelas
empresas para imigrantes.
No tocante à mobilidade, tivemos as seguintes respostas:
Vale ressaltar que foi inserida a questão da moradia conforme o que se atribui por
estratégias de mobilidade, que participam não somente da migração em si, mas do trânsito
cotidiano na cidade onde vive o migrante atualmente. E as respostas são bem claras quanto à
precarização das moradias sobretudo para migrantes, que mesmo em áreas pouco valorizadas,
acabam pagando mais caro pelo aluguel.
163
É interessante aqui perceber que a cadência das repostas converge com o tempo de
permanência no Brasil, isto é, quanto mais tempo, maior a complexidade da fala. Charles aponta
várias razões para estar no Brasil, inclusive remetendo a outras experiências diaspóricas, como
na França, e elege o Brasil como: primeiro, lugar para estudar; segundo, lugar para acessar e;
terceiro, lugar para aprender (genericamente, não somente a instrução formal). A adaptação é
outro elemento trazido por Fabian.
Ao mesmo tempo, vê-se um acesso restrito aos locais de lazer e atualmente de trabalho,
muito também pelos recursos disponíveis – materiais e imateriais – a grupos imigrantes. Outro
aspecto a destacar é a capilaridade transparecendo a viabilização de melhores recursos, no que
o trabalho tangencia essa relação – é o meio e não o fim da mobilidade. São Paulo, dessa
164
QUADRO 10: Geometrias de poder a partir de agenciamentos para com haitianos no Brasil
Agenciamentos
Problemas de acesso a
principais serviços
públicos para
imigrantes no Brasil:
regularização na
escolaridade; demora
no processo de
permanência;
Dificuldades no acesso
a equipamentos
públicos (saúde,
educação etc).
Estado Visibilização das Diplomacia solidária, Acolhimento,
regiões de fronteira; oportunidades de
cordialidade;
integração;
Crise humanitária, Preocupação com
subsídio para chegada Ameaça às fronteiras
eventos de maior
em São Paulo; pela ação dos coiotes;
violência.
166
Acolhimento parcial;
Visto por trabalho em
RN 97. razões humanitárias e
não refúgio;
Atendimento parcial
aos imigrantes;
Nova Lei de Migração.
Sociedade Discurso solidário ao Atitude emergencial a Medo do aumento da
terremoto; entrada pela fronteira violência;
Risco de contágios a amazônica;
doenças como cólera; Medo endêmico;
Discursos contrários à Demora nas ações,
vinda de haitianos; ações ineficazes para a Preocupação,
retirada de imigrantes solidariedade;
Acolhida e apoio de caribenhos e africanos;
representantes e Preconceito;
entidades; Críticas partidárias às Atitudes mais severas:
políticas imigratórias; situações de
Eletividade às relações constrangimento para
de trabalho (imigrantes com imigrantes;
se inserem no mercado
precário de trabalho, Acolhimento de
que com a ascensão maneira oportunista
social brasileiros (principalmente quanto
recusam); às situações de
moradia).
Com a crise, imigrantes
“estão roubando”
trabalho dos brasileiros.
Fonte: Leituras e trabalhos de campo. (Elaboração nossa).
5 CAPÍTULO V
AS ESTRATÉGIAS DE PERMANÊNCIA E AS ESTRATÉGIAS DE
MOBILIDADE: CAMINHOS CRUZADOS
FOTO 4: Placa homenageando imigrantes no séc. XIX no estado do Rio Grande do Sul.
Essa valorização sequer chega a esconder os estigmas criados a negros ou mesmos aos
chamados “pêlo-duro”65, principalmente na porção nordeste do estado sul-riograndense. O
preconceito e o que Fernando Diehl (2017) aponta como racialização e estigmatização do
descendente europeu nessas localidades em relação ao “não-branco” ou “não-europeu”
promove inúmeras situações de racismo e preconceito, sobretudo às novas frentes migratórias
neste século XXI.
Nesse sentido, este capítulo tem como objetivo apontar os novos caminhos da diáspora
haitiana e os agenciamentos perpetrados que são intrínsecos ao processo político da vinda destes
para o Brasil, promovendo novas geometrias de poder a cada espraiamento de suas estratégias.
A consolidação das práticas e discursos tanto do Estado quanto da sociedade e principalmente
dos imigrantes possibilita a cada caminhar novas territorialidades e novas mobilidades.
As estratégias de permanência e de mobilidade efetivamente se cruzam e perfazem-se
em novas, quando o Brasil não necessariamente é o destino final de grupos imigrantes, que a
partir deste país constroem novas rotas e outras estratégias, como Argentina, Chile e Estados
Unidos. O importante desse processo é que, assim como Sayad (1998) ressalta, o imigrante já
não é mais o mesmo, tampouco o Brasil ou os brasileiros. Tais estratégias reconstruíram os
agenciamentos e provocaram articulações em várias esferas da sociedade.
65
Conforme linguagem popular do Estado do Rio Grande do Sul, “pêlo duro” é a designação mais comum na
fronteira misturaque se dá entre o negro, o branco e o índio.
172
Começo com Pascal. Em trabalho de campo em junho de 2015 por Caxias do Sul
conheci Pascal como referência entre imigrantes haitianos pelo mesmo ser presidente da
Associação de Imigrantes Haitianos de Caxias do Sul. Consegui seu telefone e marcamos uma
conversa no mesmo dia, já que por sorte nesse dia ele teria folga do serviço – ele trabalhava na
Marcopolo, empresa de metal-mecânica que fabrica ônibus e transporte de carroceria, também
174
localizada nesta cidade. Pascal aproveitara a folga para fazer exames em um hospital local, onde
marcamos o encontro.
Conforme a figura 1, Caxias do Sul até 2015 era destino de três nacionalidades:
haitianos, senegaleses e ganeses em número significativo, ainda que pouco diante dos mais de
400 mil habitantes. A cidade de Caxias do Sul é localizada a nordeste do estado e representa a
segunda região metropolitana como microrregião de Caxias do Sul. Teve desde o século XIX
prestígio pela produção agrícola de uva e vinho, sendo conhecida como a cidade da uva. Possuiu
uma concentração desde o século XIX de imigração italiana, que promovera a integração de
outras localidades de imigrantes italianos a partir da Festa da Uva, que hoje movimenta a
história e a representação da cidade sobretudo quanto ao papel da imigração italiana no
crescimento e desenvolvimento da mesma. Na página virtual da prefeitura da cidade de Caxias
do Sul, encontramos a seguinte descrição:
Hoje, Caxias do Sul é fruto da garra e da determinação herdadas dos imigrantes com
a contribuição de outras culturas que foram abraçadas pelo povo, como a tradição
gaúcha. Uma cidade vibrante, feita pelos seus 483.377 moradores, conforme
levantamento do IBGE de 2017, e que se consolida como o segundo maior município
do Rio Grande do Sul em número de habitantes e em importância econômica 66.
Tal como a ideia de “batalha e garra” representadas nas homenagens a alemães em Nova
Petrópolis, tal descrição indica também a supervalorização da imigração europeia nesta cidade.
Ocorre que, quanto à imigração de africanos e caribenhos, os símbolos definidos são opostos,
principalmente ao que presenciei com Pascal. Em todos os lugares que passamos, ele se
esquivava ao máximo dos olhares desconfiados e enviesados de boa parte das pessoas.
O curioso é que Pascal, por ocasião do encontro, pediu para acompanhá-lo até sua casa,
na periferia da cidade e próxima à indústria Marcopolo, onde tivemos que pegar um ônibus.
Esse posicionamento foi importante, tanto para mim que saí do meu conforto de pesquisadora
naquele momento quanto para ele, que se mostrou politicamente ao querer mostrar seu dia-a-
dia, sua rotina nada confortável e tranquila. A começar pela viagem de ônibus, onde Pascal
tentava se esconder com o corpo, esquivando-se de todos ali, que o olhavam insistentemente.
O preconceito, aliás, é o que marca a trajetória dele, ainda que de forma sutil. Em uma
das várias tentativas de trazer a esposa e a filha, tanto pelo Brasil quanto pela Argentina, houve
uma série de violações:
66
Disponível em https://caxias.rs.gov.br/a-cidade.
175
Eu ficar dois anos e meio aqui, sem não ver lá, não ver criança, não ver nada... todo...
e eu to com saudade de família, ela [a família] também. [voz um pouco apagada e
embaçada, mais emotiva ao tratar desse assunto] Bom, eu tentar fazer um alternatife
pra trazer ela aqui eu fiz tudo... sans... que certo, tudo cerrado. Só eu conversar com
cônsul lá no Haiti... Eu fui lá conversar com ele, ele deu o visto pra ela pra vir comigo,
eles não aceitaram. Ele falou que tem que ter visto de permanência aqui. Aqui eu não
tenho visto de permanência. Eu já tenho dois anos e meio e não tenho visto aqui. Ele
não liberar nada da lista ainda, entendeu? Eu tive no intendente, ele tem fazer uma
analização dos pessoas. Depois de um mês an Dezembre. Ainda ele não fez nada mais.
Ele não liberar nada a lista. Ninguém, ninguém... Só todas as coisas mais difíceis,
depois que non aceita, não aceitou porque ele deixou visto pra ela, pra mim vir junto
com ela... Eu tentar fazer uma coisa, passar lá por República Dominicana, porque eu
fui lá... até... Argentina. Eu conseguir passar lá no Argentina, consegui ir lá no
Argentina. Depois que eu fui lá no Argentina, bom... Todas os coisas, a lei de
Argentina manda para as pessoas fazer, para pessoa entrar no Argentina, eu fiz tudo
isso. Depois eu cheguei lá no aeroporto de Buenos Aires. Ele impedir... “Não vai
entrar!”. Eu pedi por quê? Ele diz: “Para nada! Você não tem condição pra entrar”.
Tem que deixar uma explicação pra mim, como eu não tenho condição? “Você tem
que ter um letter... um convite lá no Argentina”. Eu tenho um letter convite lá no
Argentina, uma pessoa lá no Argentina fazer para mim lá. E eu falou pra ela legalizar
lá no Federal, para ela fazer legalização, com esse papel lá também. Eu fez tudo isso,
entendeu? Aqui , a lei do Argentina falou assim: cada um... quase mais países, tem
que entrar e não precisa visto para entrar no Argentina. Tem que ter o letter, o convite
para entrar, só. Eu fiz tudo isso e depois eu cheguei lá e me falaram não vai entrar.
Depois a pessoa manda de novo eu voltar lá no Haiti. Eu voltar de novo lá no Haiti,
eu deixar ela com filha lá. E vim aqui sozinho (Fala de Pascal Chateleur, em julho de
2015).
Bom, agora a Associação começar muito bem. Porque só esse problema que eu tentei
com a Associação, porque eu também... Eu não sei pra outra pessoa, eu sou Presidente
da Associação dos Imigrantes Haitianos . Mas pra mim, só eu tenho certeza eu vou
fazer um trabalho voluntário. Ninguém não pagar eu. Eu não sei, se no futuro , tem
outro lugar que vai dizer bom, eu vou pensar pra pascal pra deixar um pouquinho e
coisa pra passar todos os meses. Eu não sei. Na Comissão da Associação, que tem
mais pessoas pra passar aqui se ele fica na comissão da Associação tem que ganhar
dinheiro, como você vai ganhar dinheiro? Depois, tem que começar a ficar fora,
depois no último domingo de todo mês, nós vamos para o Diamantino [Salão
Comunitário do Bairro Diamantino, em Caxias do Sul]. É bem legal. Agora a
Associação começou muito melhor, e vai ficar bem... Essa coisa que a gente tem que
176
fazer para esse povo haitiano aqui. Só a pessoa que chega e não tinha com quem
trabalhar, nós vai atrás de trabalho para ele, eu vou buscar trabalho para ele, buscar
casa para ele morar, esse coisa que ele não tem: colchão, coisa... mandar para outras
pessoas como podem ajudar. Nós fazer renovação do passaporte para ele também,
todas as coisas assim nós fez. Se ele tem algum problema lá no emprego dele, nós
vamos lá conversar com o pessoal, obyen free (para liberar) e como chama ele lá na
justiça também (Pascal Chateleur, 07/2015).
Cada pessoa vai viajar, vai no outro país, vai buscar a vida melhor. Eu também vim
aqui pra isso. Pra eu ficar bem no futuro, pra eu trabalhar.. Pra se depois eu quiser
voltar, no meu país, pra eu ficar bem... É pra isso... Eu tentei até outra alternativa [que
não trabalhar] pra estudar aqui no Brasil.Mas aqui no Brasil o pessoal não consegue
estudar. Só que aqui o pessoal não vai estudar, que aqui especial no Rio Grande do
Sul, no Caxias do Sul. Ninguém não vai conseguir estudar, como? O pessoal trabalha
de seis de manhã até cinco e meia de tarde. Não tem mais condição, fui lá no
Universidade pra aprendê nada! Tem mais haitiano que jovem e eles não vem... Não
vai ... não vai ficar... Como todos as coisas vem difícil, tem que pagar, tem que ter
tempo também pra estudar, pra mais coisas... tem que fazer as coisas. Ele não tem
tempo pra isso.. Aqui no Caxias do Sul só pessoa só, a cidade só trabalhar. A pessoa
[os imigrantes] não fez nada que trabalhar. Que non bom pra nós haitiano, entendeu?
(Pascal Chateleur, 07/2015).
A reivindicação, portanto, vai além das vagas e das oportunidades encontradas no Brasil,
mas da disponibilidade entre melhores opções de trabalho, no qual Pascal revela uma série de
adversidades a imigrantes haitianos, como a rotina extenuante dos serviços o qual esses
imigrantes são empregados que impossibilita outras práticas.
Essa reivindicação mostra também que não é necessariamente o trabalho o principal fim
da imigração haitiana, tal como apontado nas entrevistas em São Paulo. Também converge com
a questão da superexploração e da precarização do trabalho ainda que formal, que imigrantes
acabam por exercer atividades mais extenuantes que brasileiros, principalmente no mercado
que promove atividades com maior insalubridade, onde os mesmos estão na maior parte dos
contratados na década atual. Para além, Pascal aponta também a questão do salário, que não
condiz em muitos casos com o esforço despendido nesse mercado oferecido aos imigrantes.
Bom... Aqui no Caxias do Sul eu trabalho numa empresa... Mais ou menos... Porque,
sabe... Não tá bom... Porque eu vi uma coisa no Brasil: pessoal trabalha mais ganhando
pouco, entendeu? Pessoa trabalha todo dia, todo dia, por mês, e eles ganha pouquinho.
Não tá bom... (Pascal Chateleur, em 07/2015)
177
Nota-se até certo melindre em falar dessa situação que advêm também de todo o cuidado
que sua vida é cerceada, desde o frio, que informalmente foi um dos principais motivos de
reclamação, até a fria recepção de quem nasceu em Caxias do Sul. Em mesma oportunidade,
visitei Encantado (cidade distante cerca dde 100 quilômetros daquela), outra cidade que
concentra quantidade considerável de haitianos, muitos deles agenciados do Acre para um
frigorífico e um matadouro, havia a separação clara entre os “velhos migrantes” e os “novos
migrantes”.
Da mesma maneira, a precarização das moradias e a falta de apoio do poder público são
tônicas, diretas ou indiretas, entre as falas dos imigrantes. Pascal morava em uma área
consideravelmente distante do centro de Caxias do Sul, semelhante ao local de moradia de
haitianos em Encantado, um bairro denominado Navegantes, na encosta do Rio Taquari.
Conforme relatos, a opção por esta moradia era a ausência de burocracias impostas para se obter
um aluguel na cidade, o que acarretou também no aumento dos preços desta localidade. A Foto
4 mostra a entrada do bairro Navegantes, em Encantado:
Grande do Sul. Conforme a fala de Maria67, integrante da comunidade scalabriniana que acolhe
e promove uma série de ações com imigrantes em Encantado, o apoio do poder público em
cidade como Encantado é pífio:
Sentimos falta do apoio e parceria do poder público que nunca nos ajudou e também
da principal empresa que os trouxe e emprega. Mas enfim, vemos que a presença deles
(e também dos quase 100 dominicanos) nos desafia, mas enriquece enquanto pessoas
humanas que buscam viver um compromisso vocacional do Batismo no serviço aos
migrantes (Maria, em trabalho de campo em Julho de 2015).
A considerar que a região sul possui uma gama de complexos industriais que no Brasil
torna-se destaque, mas sobretudo por conta da autonomia desse setor, os interesses efetivos
acabam voltados a quem manda, e não a quem obedece.
67
Nome fictício dado para preservar sua identidade.
179
promoveu a qualificação do trabalho, desocupando postos mais insalubres, como no caso dos
trabalhadores das fábricas e de frigoríficos. A diminuição pela procura por esses postos
permitiu o empresariado local rearranjar as estratégias de tais setores quanto ao mercado de
trabalho. Conforme tabela 2, a presença no setor industrial alimentício no Estado do Rio Grande
do Sul em 2014 foi um grande receptor para a contratação de haitianos, com a presença, até
esse ano de mais de mil haitianos em tais empresas.
Isso não implicou, conforme já apontado, na ascensão social desses imigrantes, nem no
apoio a escolarização e inserção em outros mecanismos como qualquer outro cidadão brasileiro,
já que se expunha aos novos imigrantes a vontade de permanência no país. De fato, houve
inúmeras iniciativas em várias esferas para inserção de imigrantes na educação e na assistência
básica, como oportunidades específicas para tais em unidades universitárias. Mas como o
próprio Pascal assume, com muitas dificuldades esses imigrantes conseguem se comprometer
a essas iniciativas, sob as condições árduas de trabalho, muitas vezes não condizentes com sua
formação.
Quanto à formação, há outro gargalo: o reconhecimento e revalidação dos títulos de
formação de imigrantes no Brasil. A burocracia e os custos muitas vezes impedem a inserção
qualificada no mercado de trabalho, e desta forma a procura por empregos mais precários é a
única saída de repasse a família e a própria sobrevivência. Segundo informações do Ministério
da Justiça e Segurança Pública, desde 2016 tem-se feito uma série de ações para facilitar a
revalidação de diplomas para imigrantes no país, a partir de resolução No 3, de 22 de junho de
2016.
181
As perspectivas para os próximos meses, são negativas, especialmente por causa das
desvantagens que trabalhadores estrangeiros enfrentam no mercado de trabalho local.
“A tendência é a de que haja uma diminuição [no número de trabalhadores]. É mais
fácil contratar um trabalhador local. Em tempos de crise, as empresas operam segundo
a lei do mínimo esforço: elas não querem lidar com os documentos, com uma possível
adaptação que o trabalhador estrangeiro possa precisar”. A procuradora cita o
exemplo de trabalhadores haitianos, que foram contratados, em grande número, pelos
frigoríficos do estado. “Com a crise, os brasileiros que, antes, estavam desprezando
os empregos em frigoríficos, hoje, pararam de desprezar. Eles têm vantagens sobre os
estrangeiros”. Entre as dificuldades enfrentadas por eles, Cristiane ressalta o impacto
cultural, o preconceito, especialmente o racismo e a falta de conhecimento da
legislação trabalhista, especialmente com as mudanças recentes da reforma que entrou
em vigor no sábado (11). “A reforma trabalhista vai prejudicar igualmente
trabalhadores brasileiros e estrangeiros. Ela precariza os empregos da massa
trabalhadora. Não vai diminuir o número de vagas, mas a qualidade”, lamenta.
68
“Governo facilita a revalidação de diplomas estrangeiros”, disponível em:
http://www.justica.gov.br/news/governo-facilita-a-revalidacao-de-diplomas-estrangeiros.
69
“Revalidar o diploma ainda é um desafio para refugiados no Brasil: Processo de revalidação pode chegar a 20
mil reais, segundo a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados.”, disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/revalidar-o-diploma-ainda-e-um-desafio-para-refugiados-no-brasil/.
182
Segundo ela, essas alterações aliadas à crise devem afetar ainda mais o mercado. “O
futuro é de brasileiros para fora”, brinca70.
Diante do exposto em todo este trabalho, é possível traçar com mais clareza três
principais agenciamentos envolvendo geometrias de poder da imigração haitiana no Brasil:
estado, imigrantes haitianos e sociedade.
70
“Em desvantagem, trabalhadores estrangeiros sentem os efeitos da crise no Paraná”. Disponível em:
http://paranaportal.uol.com.br/economia/426-parana-trabalhadores-estrangeiros/.
183
QUADRO 11: Agenciamentos das geometrias de poder entre mobilidade e permanência de haitianos no Brasil
Imigrantes haitianos Entrada
Estratégias primeiras – raketés, coiotes,
solicitação de refúgio, capilaridade
Mobilidade
Saída para outros Estados, onde oferecer
melhores ofertas
Apoio de entidades religiosas e terceiro
setor
Inserção no mercado de trabalho brasileiro
a partir da urgência
Permanência
trabalho, sustento, vagas em universidades
e/ou cursos técnicos
Fadiga, cansaço, saudade
Preconceito, esquivar-se, reivindicar para
si e os próprios
Estado Entrada
Visto para o trabalho
Criminalização a partir da entrada irregular
“Transferência do problema”
Mobilidade
Subsídio a viagem
Assistência básica de fornecimento de
documentação
Assistência social
Permanência
Descaso local
Região Sul – pouca absorção de unidades
públicas voltadas aos imigrantes
Preconceito
Mobilidade
Preconceito, acolhimento
184
Permanência
Preconceito, acolhimento
A relação dos haitianos com o Brasil se dá, dessa maneira, pelas complexidades de suas
estratégias, de mobilidade e permanência. Elas flutuam a partir da capilaridade e das
transformações políticas que advém de seu espraiamento no país. As adversidades são mais
intensas e mais programadas quando suas estratégias de permanência se efetivam, se
consolidam na inserção no mercado de trabalho, porém sob ameaça constante, tendendo a partir
do mercado, do Estado e da sociedade ao posicionamento sempre na ordem da submissão, da
interpretação do sofrimento, da necessidade perversa desse sofrimento para ser inserido a
realidade brasileira.
O Estado, agente que a princípio promoveria a interface das estratégias com o processo
de ascensão não só econômica mas social desses imigrantes, no que reveladas as estratégias dos
haitianos, se exime, e promove o desequilíbrio dos interesses, comum de uma relação
esquizofrênica, e, não fosse a atuação política dos haitianos em reivindicar para si e os próprios,
o cenário dos migrantes seria piorado.
A escala de análise mais problemática e limitada é a da sociedade brasileira (escala
"nacional"). O mapa torna-se um borrão porque a clareza e a classificação da entrada de
haitianos no Brasil não é efetiva, pela mídia, por agentes que têm certa importância no processo
das relações sociais, e principalmente advindo pelo preconceito disseminado pelo estigma e em
grande medida pelo racismo.
Apesar das adversidades, os imigrantes promoveram de diversas maneiras a
reivindicação para si e para os próprios, que acompanhou a capilaridade e suas estratégias em
várias partes do país.
classificações diante do cenário nacional – a Região Norte com um grau mais intenso de
dependência e pouca interação com o dinamismo econômico do capital, e Sudeste e Sul como
integrantes majoritários da região concentrada, conforme Santos e Silveira (2001).
A primeira perspectiva, com grau menos acentuado de complexidade, é a migração de
haitianos via senso comum. A opinião mais simplória que envolve o discurso da “invasão”,
junto ao papel da mídia em assimilar esse discurso e envolver parte da sociedade em uma
campanha de defesa ao brasileiro em relação ao haitiano. É também a perspectiva do
preconceito rotineiro contra o imigrante haitiano, que difunde as supostas doenças trazidas na
região Norte, as ameaças nos postos de trabalho do Sul e os olhares enviesados entre gerações
de imigrantes italianos e alemães, por exemplo. É de menor complexidade porque, ao ratificar
esse tipo de preconceito, a análise é parcial e dependente, mas é o que mais acompanha os
espaços da migração não só no Brasil, mas no cenário mundial.
A segunda perspectiva, que envolve certo grau de consciência das agruras da chegada
de grupos migrantes, é do acolhimento aos haitianos, seja pelas organizações e entidades
promotoras de suporte a migrantes internos e internacionais no Brasil, pelas entidades religiosas
– católicas ou protestantes -, ou por parte da população brasileira.
O trabalho desses agentes, muito disseminado e articulado, ajudou também no processo
de capilaridade e no apoio reivindicativo, assim como na consolidação do caráter associativista
de grupos haitianos. É também, como na fala de Maria, o que repassa conhecimento e
conscientização da chegada de caribenhos e/ou africanos nas cidades pequenas, como as que
haitianos vivem no sul do Brasil. Ademais, como apontado, o que possibilitou a garantia de
sustento e de consolidação das estratégias de permanência de haitianos no país.
A terceira perspectiva possui um grau mais complexo porque está amarrada às duas
perspectivas anteriores no sentido do preconceito e do acolhimento. É a perspectiva do capital
e do empresariado, cujos interesses na atuação de imigrantes em suas empresas envolvem a
conjuntura da urgência da garantia de permanência destes.
É conveniente aos seus interesses o direcionamento do trabalho quando a
superexploração pode se tornar a tônica, ainda mais com as dificuldades da língua e o
preconceito de parte de funcionários brasileiros. É a perspectiva que se articula com a do
Estado, que em medida se exime do acolhimento e responde ao trabalho como o caminho mais
viável à imigração, sem considerar outros agenciamentos e toda a trajetória de estratégias da
diáspora haitiana.
186
Da mesma maneira, a partir da análise cuidadosa de Uebel (2015) que propôs uma
regionalização da migração haitiana no estado do Rio Grande do Sul, podemos apreender essa
perspectiva a partir da interface espaço, empregabilidade e relações de poder, sistematizada no
Mapa 6:
MAPA 6: Regionalização da concentração de haitianos por destino e ocupação no Estado do Rio Grande do Sul.
Diehl (2017), em sua pesquisa sobre haitianos em Lajeado (cidade também a nordeste
do Estado do Rio Grande do Sul), analisa os estigmas e o racismo quando da entrada dos novos
imigrantes, aponta o receio e o preconceito de cidades como a sua referência de pesquisa:
[quanto aos] imigrantes haitianos em Lajeado, embora eles sejam sim excluídos e
marginalizados, sendo a exclusão o instrumento de fomentação da formação de
estereotipo dos haitianos, foi pelo viés da exploração que eles foram mais alvos de
racismo, pois foram um grupo étnico que vieram como mão-de-obra para suprir
necessidades dos empresários locais, e há relatos de haitianos por diversas cidades do
país alegando estarem em situação de semiescravidão em seus trabalhos (DIEHL,
2017, p. 55).
Na minha opinião, e olhando para a realidade da minha comunidade que viste ser
pequena, a inserção dos haitianos aqui, se deu de maneira até tranquila. A comunidade
de certa forma foi preparada para a chegada do primeiro grupo e usamos muito o fator
histórico em que a comunidade foi formada por imigrantes italianos e que agora a
história se repete com a chegada dos haitianos e dominicanos. É claro que houve
algum comentário preconceituoso mas foi mínimo se compararmos com a aceitação,
a ajuda através de doações e a simpatia por eles. Colaborou também o fato deles serem
extremamente educados, simpáticos, trabalhadores pois numa comunidade de interior,
estas coisas ainda tem bastante valor [...] Percebo que do lado deles, nem tudo é
perfeito: se queixam bastante do trabalho que é pesado, desgastante e mal remunerado;
o preço dos aluguéis que de certa forma tiveram um aumento, a falta de imóveis
fazendo com que tenham que residir em um bairro de periferia com condições
mínimas e precárias, falta de vagas nas creches da cidade, a desilusão com os salários
que acreditavam (e foram iludidos nisso) fosse em dólar e mais alto, a saudade do
Haiti e dos familiares... (Maria, em 07/2015).
pintura do muro, indicando aquele ethos trabalho reverberado da imigração italiana do século
XIX, delineado no segundo capitulo.
caráter associativista torna-se mais presente e dá mais força ao papel das estratégias de haitianos
porque se contrapõe diretamente à lógica personalista e velada, incorporadas desde as primeiras
políticas de migração no Brasil no século XIX.
Pode-se sistematizar o chamado caráter associativista a partir de três frentes. A primeira,
na ação coletiva da migração; a segunda, na busca incessante pelo lugar em que pode se fixar,
que consolida a capilaridade; e terceiro, as reuniões ou baz, e na formação das associações pelo
país.
A ação coletiva da migração, explorada com mais detalhes por Handerson (2015)
denota, sobretudo, pela diáspora haitiana ser um projeto de melhoria de um grupo organizado,
e não necessariamente individual. Pascal veio do Haiti com ajuda da família e amigos para, no
estabelecimento em um lugar, poder repassar recursos ou facilitar a vinda dos outros integrantes
da família e de amigos. Nesse sentido também, Handerson aponta um dos reflexos do
agenciamento coletivo à migração por parte dos haitianos.
Pascal dividia o aluguel e a casa onde morava com o cunhado, que viajou em seguida
para encontrá-lo em Caxias do Sul. Na chegada à sua casa, o cunhado o esperava para entregar
a chave e disponibilizar o lugar para a entrevista.
Eu tenho um mais ou menos cunhado que tá aqui. Meu cunhado que ficou lá fora [de
casa ele tá junto aqui comigo. Depois eu fui procurar trabalho para ele. Bom, eu não
acho trabalho para ele... Eu fui procurar na Marcopolo, deu e ele foi lá trabalhar
(Pascal Chateleur, em 07/2015).
Esse exemplo é um dos vários que remontam ao aspecto peculiar dos haitianos, o que
em muitos relatos é apontado como “um povo atencioso, solidário...”. É na realidade parte
constituinte de sua expressão via história de sofrimento, ligadas a violência política e social
marcantes. É também fruto dessa resistência integrante das sucessivas diásporas. Algo
interessante no final do encontro com Pascal foi o fato dele, antes de chegarmos, se
comprometer a tocar uma música que ele aprendeu em uma igreja no Haiti, em um teclado
eletrônico que ele conseguiu comprar com seu salário no Brasil. Esse comprometimento, parte
190
A partir de novos debates, bem como reportagens e notícias de 2014 para 2018, pode-
se dividir em três categorias as novas mobilidades de haitianos desde o Brasil. A primeira, de
193
haitianos no Brasil e suas novas mobilidades, a segunda, de haitianos para o Brasil que chegam
e ficam a espera de permanência, ou migram do Brasil para outros países, e a terceira, de
haitianos fora do Brasil ou que remigram para o país ou que ficam a espera de novos arranjos
políticos que facilitem sua entrada.
Conforme relatório da Organização Internacional das Migrações - OIM, o fluxo para
países da América do Sul a partir do Brasil foi diversificado, mas ainda que no Brasil o fluxo
de haitianos tenha diminuído, este continua como principal destino de imigrantes vindos do
Haiti.
Vê-se que de 2015 para 2018 a tendência é o aumento do número de haitianos que
migram do Brasil para outros países da América Latina, como Uruguai, Argentina e Chile. Ao
se tratar do grupo de haitianos no Brasil, pensamos nessa parcela de imigrantes que migram do
Brasil para países da América Latina e América anglo-saxônica, na tentativa de entrar nos
Estados Unidos a partir da fronteira com o México. Conforme também dados da Organização
Internacional das Migrações (2017, p. 81) a região metropolitana de Santiago do Chile é a
localidade mais procurada por haitianos neste país.
Conforme apontado no Mapa 7, com a crise política deflagrada em 2015 e que
desencadeou uma crise econômica no Brasil, as dificuldades enfrentadas por migrantes, seja
retração de seus postos de trabalho ou pela intensificação do racismo e de casos de xenofobia
194
Fonte: Diagnóstico regional sobre migración haitiana. ONU, 2017. (Elaboração nossa).
Handerson (2015) aponta também que o fluxo para o Chile não é uma novidade, sendo
que dois fatores foram importantes para ida de haitianos; primeiro, o fato do pagamento pelos
71
Com a permanência no Brasil, as formas diversas de reivindicação de haitianos amadureceram e tomaram corpo,
sendo também manifestações divulgadas pela mídia e denunciadas no aparato legal. Tal como este caso, em janeiro
de 2018, em Caxias do Sul: “Os estrangeiros registraram ocorrência na Polícia Civil, mas como a denúncia é de condições
de trabalho análogas à escravidão, a investigação deve ser conduzida pela Polícia Federal. "Quando ele falava com a gente falava
alto, nos tratava mal", relatou o auxiliar de montagem Philistin Regustin sobre o tratamento do supervisor da empresa. O
Ministério Público do Trabalho (MPT) também deve participar da apuração, ouvindo os responsáveis pela empresa. Para o
auditor fiscal do Ministério do Trabalho Vanius Corte, a denúncia é de grave. "Esse corte de luz, de água, de comunicação com
os familiares, as agressões e ameaças por parte do supervisor dessa empresa é de gravidade extrema, se for comprovada, será de
uma dimensão inédita aqui", disse.”. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/pf-e-ministerio-do-
trabalho-investigam-denuncia-de-mas-condicoes-de-trabalho-feitas-por-haitianos-em-caxias-do-sul.ghtml.
195
serviços prestados, sobretudo nos postos de trabalho em que haitianos são contratados, ser em
moeda americana, o dólar, e segundo, o tratamento dado a legislação vigente no Chile para
imigrantes72. As primeiras rotas, com o pouco conhecimento espacial dos imigrantes,
demoravam dias, até meses, com relatos indicando viagens pela Amazônia brasileira até a
região Sul, para chegar na Argentina e no Chile.
Desde 2015, dessa maneira, haitianos têm percorrido algumas rotas para sair do Brasil
e migrar para o Chile, que também tem tido intensa procura de passagens desde Porto Príncipe,
capital do Haiti. Duas rotas importantes pelo Brasil é o Paraná, a partir da fronteira com a
Argentina, e São Paulo, a partir dos ônibus diretos disponíveis em empresas rodoviárias.
Outra rota que tem tido atenção configura-se em um possível “fluxo de retorno”, que se
assemelha à vinda pelo Acre, mas agora em direção principalmente à cidade de Tijuana, no
México, que faz divisa com os Estados Unidos. Conforme dados de entidades mexicanas, em
2017 havia cerca de 8000 haitianos pelo país na busca para atravessar a fronteira
estadunidense73.
A busca pela América do Norte, entretanto, coincidiu com o acirramento das políticas
de entrada, principalmente para haitianos tanto nos Estados Unidos quanto na República
Dominicana, o desencadeou em Tijuana uma série de afetações estruturais, conforme relatos de
entidade e reportagens internacionais, que viu seus abrigos superlotados com migrantes de
várias nacionalidades,inclusive mexicanos que viviam ilegamente nos EUA, o que promoveu
em 2017 o acirramento da entrada de haitianos também pelo México.
Ainda assim, o fluxo para o Brasil continua presente somado a países da América Latina,
e conforme dados da OIM com a presença importante da Venezuela, muito devido às
possibilidades de entrada para a Guiana Francesa. Isso nos leva à segunda e terceira categorias
de mobilidade de haitianos no país. Elas são intrínsecas pois são visualizadas fora deste país, e
portanto atuam em conjunto.
72
Conforme Handerson, a partir de relato de um haitiano na América do Sul “O Chile era o país, dentre aqueles
que ele conhecera, onde o migrante era melhor tratado, no tangente aos direitos humanos, à moradia etc. Também
que a população local acolhia bem e não se sentia humilhado como negro, como acontece em outros países”
(HANDERSON, 2015, p. 216).
73
“Hay unos 7.800 haitianos varados en México, según estiman organizaciones civiles. El número real no se
conoce por la forma como ingresaron y permanecen en el país, casi de manera clandestina. La mayoría están en
ciudades fronterizas del estado de Baja California como Tijuana y Mexicali, aunque también se han detectado en
Ciudad de México y Tapachula, en el sureño estado de Chiapas. ” Disponível em:
https://diariodigital.com.do/2017/06/07/haitianos-mexico-forzados-vivir-limbo.html.
196
Estima-se que pelo Haiti saem mensalmente cerca de 1000 a 1500 vistos humanitários
para o Brasil. Os pacotes de viagem no país caribenho estimulam viagens para cidades como
Cascavel, no estado do Paraná, São Paulo, capital, e Macapá, no estado do Amapá (divisa com
a Guiana Francesa). Da mesma maneira, há informações de que, desde 2016, cerca de 90.000
haitianos entraram no Chile74.
O poder público em Tijuana, em procedimento semelhante ao do governo do estado do
Acre, tem subsidiado passagens para imigrantes. Da mesma maneira, haitianos têm a
expectativa de sair do Haiti, que ainda não se recuperou estruturalmente, sequer politicamente.
74
“Em Porto Príncipe, cerca de 1.100 haitianos se candidatam por mês a um visto brasileiro, enquanto voos
fretados partem diariamente para Santiago, a porta de entrada dos cerca de 90 mil haitianos que desembarcaram
no Chile desde o ano passado. Em Saint-Bernard-de-Lacolle, no Canadá, uma cidade de tendas recebeu parte dos
mais de 6.000 haitianos que cruzaram ilegalmente neste ano vindos dos EUA, onde o governo Donald Trump
ameaça fazer uma deportação em massa.”. Disponível em: https://ricmais.com.br/sc/noticias/crise-no-brasil-e-
linha-dura-nos-eua-fazem-haitianos-vagarem-pelo-continente.
197
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Mobilidade e permanência como estratégias - Desafios e perspectivas
***
estruturais, mas que em muitos casos são mudanças simples que, apesar do diálogo,
amadurecem pouco ou muito pouco quando analisamos a efetivação das estratégias de
permanência migrantes.
A necessidade de absorver e compreender as estratégias migrantes requer níveis mais
complexos e profundos da relação, que ainda perfaz pelo personalismo e pelo interesse do
mercado e de quem está no poder. Veremos mais adiante essa questão.
O restante da sociedade civil possui uma relação pouco aberta, pois a partir das
estratégias de grupos migrantes, em grande medida, fica a mercê dos demais agentes, da mídia,
dos discursos e práticas que em muitas situações são escamoteadas pela herança social
construída em relação à migração no Brasil e/ou pelas faces do preconceito, como bem
definidas nas impressões desde o Acre até a região sul do Brasil, pelos haitianos.
O mercado possui um nível ilusório, porque apesar de supor tão aberto quanto ao nível
da relação dos imigrantes, restringe-os e promove a exploração e a submissão que os prende a
somente seu nível. Em conivência com o Estado, o mesmo se constroi em semelhante patamar
ilusório.
Todos os agentes aqui apresentados não estão fixos e estarão sempre nesses níveis de
relação. Seus agenciamentos mudam conforme a maturação ou não do nível de relação. Talvez
desses, o Estado é o que mais se modifica conforme suas práticas e discursos.
A absorção e porosidade das relações é indicada a cada círculo, que nas relações
apontadas nesta tese são ora fragmentadas, ora tangenciadas, formando o esquema do Mapa 9.
203
No Mapa 10 é possível perceber que existe uma articulação completa entre agentes no
mesmo patamar no nível da relação. Mas isso não indica que eles são uma unidade coesa, já
que a tangente passa por todos, e indica que o embate e o conflito promovem a amplificação de
suas questões e a promoção política. Embora pareça muitas vezes utópico, não é impossível
nem complexo demais para efetivar-se.
Essa efetivação não se dá a partir de sua criminalização, do devir problema, da ideia de
roubo e usurpação identitária, social, territorial. A mobilidade e a condição de migrante se
articulam produtivamente, e não representativamente. Tal como as possibilidades da produção
desejante, o ato de migrar é também um ato de resistência.
205
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Sampa. Composição de Caetano Veloso. Álbum Muito dentro da estrela azulada. CBD, 1978.
215
216
ANEXOS
217
_________________________________________
(assinatura do entrevistado/depoente)
219
SOLICITAÇÃO
7. Experiências na travessia:
(Quel experience na travérsée?)
9. O que você acha dos serviços que foram prestados para você pelas autoridades
brasileiras (Polícia Federal, primeiros atendimentos de acolhida) durante sua chegada
ao Brasil?
(Qu’est ce pensez-vous des sevices au Brésil? Pour example, comment vous étiez
recevoir dans Police federale, étiez facile le services publiquê au Brésil ? )
10. O que você acha das condições de moradia no Brasil? Você gosta da casa em que você
vive hoje?
(Qu’est ce pensez-vous sur les conditions de habitation au Brésil ? vous aimé le maison
qui habitez-vous?)
11. Quais as formas de lazer que você encontrou/encontra no Brasil? São boas opções?
(Quel maniéres de lazer et culture vous decouvéurt au Brésil? Sont bien options ?)
14. Sua família ficou no Haiti? Se tem família ou pessoas conhecidas no Haiti, qual o tipo
de relação e formas de comunicação? Manda Whatsapp, sms, e-mail, facebook,
outros?
(Sa famille séjour au Haiti? comment vous parlez sa famille ?)
15. Com relação à família e/ou conhecidos no Haiti, você manda dinheiro? Eles mandam
algo?
(Vous lenvoie l’argent pour sa famille? Ils envoies quelque chose ?)
Você acha que houve descaso em alguma instância para com os imigrantes haitianos
na chegada ao Brasil? Por quê?
O que te levou a pensou a pensar no Brasil? Por que você veio ao Brasil?
P.: Deixa eu vê... Cada pessoa vai viajar, vai no outro país, vai buscar a vida melhor. Eu também vim
aqui pra isso. Pra eu ficar bem no futuro, pra eu trabalhar.. Pra se depois eu quiser voltar, no meu país,
pra eu ficar bem... É pra isso... Eu tentei até outra alternativa [que não trabalhar] pra estudar aqui no
Brasil.Mas aqui no Brasil o pessoal não consegue estudar. Só que aqui o pessoal não vai estudar, que
aqui especial no Rio Grande do Sul, no Caxias do Sul. Ninguém não vai conseguir estudar, como? O
pessoal trabalha de seis de manhã até cinco e meia de tarde. Não tem mais condição, fui lá no
Universidade pra aprendê nada! Tem mais haitiano que jovem e eles não vem... Não vai ... não vai
ficar... Como todos as coisas vem difícil, tem que pagar, tem que ter tempo também pra estudar, pra
mais coisas... tem que fazer as coisas. Ele não tem tempo pra isso.. Aqui no Caxias do Sul só pessoa só,
a cidade só trabalhar. A pessoa [os imigrantes] não fez nada que trabalhar. Que non bom pra nós
haitiano, entendeu?
Bom... Aqui no Caxias do Sul eu trabalho numa empresa... Mais ou menos...Porque, sabe... Não tá
bom... Porque eu vi uma coisa no Brasil: pessoal trabalha mais ganhando pouco, entendeu? Pessoa
trabalha todo dia, todo dia, por mês, e eles ganha pouquinho. Não tá bom...
Primeira vez que eu cheguei a morar num bairro que chamam de Madureira. Aqui no Sul mesmo...
Pertinho... Mas só morei aqui no Caxias do Sul. Eu até lá no fui no Jaci Paraná, até fiz ... Depois que eu
saí de lá do Jaci Paraná eu vim aqui reto...
E sua família?
Bom, pra família é a coisa mais difícil pra mim é a família lá, também... Só eu pensar: se nunca conseguir
trazer (com filha) famíllia, tem que voltar. Tem que ficar miserable, mas ficar bem com família. Porque:
226
eu ficar dois anos e meio aqui, sem não ver lá, não ver criança, não ver nada... todo... e eu to com
saudade de família, ela [a família] também. [voz um pouco apagada e embaçada, mais emotiva ao
tratar desse assunto] Bom, eu tentar fazer um alternatife pra trazer ela aqui eu fiz tudo... sans... que
certo, tudo cerrado. Só eu conversar com cônsul lá no Haiti... Eu fui lá conversar com ele, ele deu o
visto pra ela pra vir comigo, eles não aceitaram. Ele falou que tem que ter visto de permanência aqui.
Aqui eu não tenho visto de permanência. Eu já tenho dois anos e meio e não tenho visto aqui. Ele não
liberar nada da lista ainda, entendeu? Eu tive no intendente, ele tem fazer uma analização dos pessoas.
Depois de um mês an Dezembre. Ainda ele não fez nada mais. Ele não liberar nada a lista. Ninguém,
ninguém... Só todas as coisas mais difíceis, depois que non aceita, não aceitou porque ele deixou visto
pra ela, pra mim vir junto com ela... Eu tentar fazer uma coisa, passar lá por República Dominicana,
porque eu fui lá... até... Argentina. Eu conseguir passar lá no Argentina, consegui ir lá no Argentina.
Depois que eu fui lá no Argentina, bom... Todas os coisas, a lei de Argentina manda para as pessoas
fazer, para pessoa entrar no Argentina, eu fiz tudo isso. Depois eu cheguei lá no aeroporto de Buenos
Aires. Ele impedir... “Não vai entrar!”. Eu pedi por quê? Ele diz: “Para nada! Você não tem condição
pra entrar”. Tem que deixar uma explicação pra mim, como eu não tenho condição? “Você tem que
ter um letter... um convite lá no Argentina”. Eu tenho um letter convite lá no Argentina, uma pessoa lá
no Argentina fazer para mim lá. E eu falou pra ela legalizar lá no Federal, para ela fazer legalização,
com esse papel lá também. Eu fez tudo isso, entendeu? Aqui , a lei do Argentina falou assim: cada um...
quase mais países, tem que entrar e não precisa visto para entrar no Argentina. Tem que ter o letter,
o convite para entrar, só. Eu fiz tudo isso e depois eu cheguei lá e me falaram não vai entrar. Depois a
pessoa manda de novo eu voltar lá no Haiti. Eu voltar de novo lá no Haiti, eu deixar ela com filha lá. E
vim aqui sozinho. Esse caso que teve, esse problema no Haiti, eu vou ir lá, pra um haitiano que teve
problema na cabeça, ele tem um ano e meia, um ano e seis meses no Haiti. Ele tá louco da cabeça. Só
eu tentar, tentar, tentar, ele vai vir. Eu levar ele, e fui lá também pra tentar trazer ela, depois eu levar
ele. Bom, todas as coisas eu fiz, tudo cerrado, nada não legalizou.
E o que você pensa ... Ficar aqui e esperar o visto de permanência ou voltar para o Haiti?
Bom. Eu vou esperar, eu não sei quando vai sair... Não sei... Só ontem eu falou com ela (a esposa), ela
falou não sente bem, não tá bem, ela pensa mais sei lá, como é muito fraco, ela começa [a ficar] fraco,
fraco, fraco... Não sei... Ela falou uma coisa que tem que vir. Eu disse como você vai vir, eu agora não
tenho nada de dinheiro. Todo dinheiro eu já perdi. Todo dinheiro agora eu não tenho nada de dinheiro
pra fazer nada. Só eu não sei o que eu falo pra ela (certo nervosismo na forma de falar, ao mesmo
tempo um riso torto)porque ela quer vir, porque ela nunca mora sozinha, ela não sente bem.
227
E você vai conseguir [trazê-la], eu fico pensando se é melhor ela vir para cá. O que você acha?
É melhor ela vir pra cá. Porque é melhor: porque se eu trabalhar e ela trabalhar, tem que ter uma vida
melhor. Se depois uns dois ou três anos atrás [após] nós pensamos pra voltar, vai ter um pouquinho
pra viver lá. Pra conseguir, pra fazer um negócio assim, entendeu? Mas se só eu trabalhar e trabalhar
pra pagar aqui, pra comer aqui, pra mandar pra lá pra comer pra lá, vai passar todos os tempo
miserable... Vai ter nada.
E você tem alguém da família ou algum amigo que está no Brasil? Ou em outro lugar (República
Dominicana)?
Eu tenho um mais ou menos cunhado que tá aqui. Meu cunhado que ficou lá fora [de casa ele tá junto
aqui comigo. Depois eu fui procurar trabalho para ele. Bom, eu não acho trabalho para ele... Eu fui
procurar na Marcopolo, deu e ele foi lá trabalhar.
Bom, agora a Associação começar muito bem. Porque só esse problema que eu tentei com a
Associação, porque eu também... Eu não sei pra outra pessoa, eu sou Presidente da Associação dos
Imigrantes Haitianos . Mas pra mim, só eu tenho certeza eu vou fazer um trabalho voluntário. Ninguém
não pagar eu. Eu não sei, se no futuro , tem outro lugar que vai dizer bom, eu vou pensar pra pascal
pra deixar um pouquinho e coisa pra passar todos os meses. Eu não sei. Na Comissão da Associação,
que tem mais pessoas pra passar aqui se ele fica na comissão da Associação tem que ganhar dinheiro,
como você vai ganhar dinheiro? Depois, tem que começar a ficar fora, depois no último domingo de
todo mês, nós vamos para o Diamantino [Salão Comunitário do Bairro Diamantino, em Caxias do Sul].
É bem legal. Agora a Associação começou muito melhor, e vai ficar bem.
Bom, só.. essa coisa que a gente tem que fazer para esse povo haitiano aqui. Só a pessoa que chega e
não tinha com quem trabalhar, nós vai atrás de trabalho para ele, eu vou buscar trabalho para ele,
buscar casa para ele morar, esse coisa que ele não tem: colchão, coisa... mandar para outras pessoas
228
como podem ajudar. Nós fazer renovação do passaporte para ele também, todas as coisas assim nós
fez. Se ele tem algum problema lá no emprego dele, nós vamos lá conversar com o pessoal, obyen free
(para liberar) e como chama ele lá na justiça também.
Sim, 2014.
Tem chegado mais haitianos em Caxias do Sul de 2014 para cá? Vocês tem percebido? Vocês tem uma
informação de quanto chegaram?
Sim. Chega mais. Até depois de 2014. Agora em Caxias do Sul tem mais ou menos mil e quinhentos
haitianos.
229
Na minha opinião, e olhando para a realidade da minha comunidade que viste ser pequena, a inserção
dos haitianos aqui, se deu de maneira até tranquila. A comunidade de certa forma foi preparada para
a chegada do primeiro grupo e usamos muito o fator histórico em que a comunidade foi formada por
imigrantes italianos e que agora a história se repete com a chegada dos haitianos e dominicanos. É
claro que houve algum comentário preconceituoso mas foi mínimo se compararmos com a aceitação,
a ajuda através de doações e a simpatia por eles. Colaborou também o fato deles serem extremamente
educados, simpáticos, trabalhadores pois numa comunidade de interior, estas coisas ainda tem
bastante valor.
Percebo que do lado deles, nem tudo é perfeito: se queixam bastante do trabalho que é pesado,
desgastante e mal remunerado; o preço dos aluguéis que de certa forma tiveram um aumento, a falta
de imóveis fazendo com que tenham que residir em um bairro de periferia com condições mínimas e
precárias, falta de vagas nas creches da cidade, a desilusão com os salários que acreditavam (e foram
iludidos nisso) fosse em dólar e mais alto, a saudade do Haiti e dos familiares...
Nós temos dificuldade de reuni-los e fazer com que convivam no grupo e por isso estão dispersos. A
festa do “Dia da Bandeira do Haiti” que fizemos neste ano pela 2ª vez ajuda mas precisávamos mais.
As coisas não são tão simples pra eles. Nos como pastoral de igreja fazemos o que podemos com aulas
de português, doação de roupas, cobertores, móveis, enxovais para os bebês que nascem, auxílio no
230
Sentimos falta do apoio e parceria do poder público que nunca nos ajudou e também da principal
empresa que os trouxe e emprega. Mas enfim, vemos que a presença deles (e também dos quase 100
dominicanos) nos desafia, mas enriquece enquanto pessoas humanas que buscam viver um
compromisso vocacional do Batismo no serviço aos migrantes.
231
Já é fato conhecido a migração haitiana para a cidade de Porto Velho, iniciada regularmente
em março de 2011, quando um grupo de 105 pessoas chegou à cidade. Na realidade este é o segundo
grupo, pois o primeiro, composto por cinco pessoas chegou à cidade em fevereiro do mesmo ano, um
mês antes dos 105. Desde então, esse fluxo migratório tem sido perene, ao mesmo tempo em que a
cidade se tornou uma escala para outros que seguem para as demais unidades da federação, como
São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia. Até
o presente, 5550 haitianos gozam do status de Visto Permanente por Razões Humanitárias, com
duração de cinco anos, podendo ser renovável. Como veremos nas imagens abaixo, esse fluxo
migratório perfaz um percurso longo até alcançar o Brasil, após semanas ou mesmo meses de viagem
até poderem, finalmente, seguir viagem para o destino que almejou na partida.
Em Brasileia, no Acre, os haitianos são mantidos na política de retenção até liberação para
seguirem adiante. Enquanto são mantidos retidos, os haitianos são dirigidos para uma instalação, um
galpão de um antigo clube da cidade. As disposições das condições físicas das instalações são as
seguintes: um terreno de aproximadamente 5.000m², um galpão coberto, mas totalmente aberto,
assemelhando-se a uma quadra de esportes, quatro sanitários, sem chuveiros, poucas condições de
higiene, com iluminação elétrica, árvores (jambeiros), duas caixas d’água de 2.000 litros cada. A
vegetação é complementada pela cerca viva e por bastante capim que cobre todo o restante do
terreno. A estrutura leva o nome de um clube local e está locada, custeada pelo erário da nação, como
parte da política de imigração. São servidos um desjejum, com café com leite e pão com margarina e
duas refeições, ao meio dia e às 19:00.
Ficam neste local, desde o momento que entram no Brasil, mulheres, homens, adultos e
crianças. Além dos haitianos encontramos outros imigrantes, um de Bangladesh e três da República
Dominicana. Uma dominicana encontra-se grávida. A entrada dos haitianos no Brasil se dá na região
232
fronteiriça com a Bolívia e Peru, em geral de táxi dos respectivos países, a um preço de até 100 dólares
estadunidenses por pessoa. No percurso da viagem até o Brasil, os haitianos cruzam diferentes países
latino-americanos, num período que pode durar até quatro meses até alcançarem o objetivo.
De acordo com as anotações realizadas por um haitiano que está na cidade desde outubro de
2012, deram entrada no local 742 haitianos entre 12 de fevereiro e 08 de março de 2013, ou seja, uma
média entre 25 e 30 pessoas diariamente, todos de maneira indocumentada e, dessa forma, ficam
retidos, impedidos de seguirem adiante pelo país por não disporem de documentação. Uma vez na
cidade, sua permanência pode durar de duas semanas a dois ou três meses, de acordo com as
condições financeiras de cada um ou da rapidez ou lentidão dos órgãos estatais nacionais na emissão
de documentos. Após a legalização documental, encontram-se livres para seguirem adiante. Até lá,
“aguardam”, retidos, concentrados num lugar que o quadro nos remete à ideia de “uma senzala em
pleno século XXI”.
ANEXOS
233
Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/01/20/brasil-os-desafios-da-lei-de-migracoes/
234
Anexo 2: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa à direita de quem entra.
Anexo 3: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa, onde se estendem as roupas lavadas e tomam banho de caneca a céu aberto.
Anexo 4: Panorama geral das instalações físicas do local de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área
externa, um dos portões de entrada e onde se depositam o lixo.
Anexo 5: Panorama geral das condições de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área interna onde
se alimentam e dormem.
Anexo 6: Panorama geral das condições de “hospedagem” dos haitianos em Brasileia. Área interna onde
se alimentam e dormem.
Que o nosso trabalho seja elemento de reflexão e crítica, que isso sirva de reflexão sobre a
política brasileira sobre migração e imigração no sentido de que se criem novos métodos para lidar
com seres humanos, em condições necessárias de respeito à sua dignidade de acordo com o que está
inscrito na Constituição Federal. Que seja, acima de tudo, melhor para as pessoas envolvidas nesse
processo, especialmente os que migram e têm que passar por momentos de abjeção. Para uma política
nova de migração e imigração, por mais respeito à condição humana, independente de sua origem
étnica ou cultural. Isso é o que almejamos, ao escrevermos o presente relatório.
Quando da nossa estada em Brasileia junto aos haitianos, conversamos com muitos deles
sobre variados temas e o que pudemos constatar é a constância do fator trabalho nesse processo
migratório, o que denota uma migração de múltiplas facetas, caracterizada predominantemente pela
noção de repulsão da origem devido às condições sociais, políticas, econômicas e geográficas. É
238
necessário que tenhamos em consideração que o Haiti é uma ilha de pouco mais de 27 mil Km², com
cerca de 10 milhões de pessoas, bilíngue, com predominância do crioulo na fala e do francês na escrita.
Os motivos da migração desse povo não pode e nem deve ser tomado apenas na perspectiva do
fenômeno em si mesmo, ou seja, de maneira acrítica e sem considerar a sua história.
A categoria sociológica haitiano deve ser tomada com desconfiança antropológica, pois ser
haitiano do norte e do sul têm suas diferenças, assim como entre os do campo com os da cidade, de
classes sociais diferentes, de religiões diferentes, como especificidades linguísticas. O que de
generalidade encontramos é a migração para trabalho e estudos entre os haitianos, o que denota que
não vieram apenas para trabalhar, mas também para se profissionalizarem no Brasil. Diante desse
quadro, temos a expectativa de que este breve relatório sirva como uma reflexão sobre o que,
filosoficamente, poderíamos chamar de a política que deveria ser contraposta com a política como ela
é.
No caso de Porto Velho, ao que sabemos, não há uma política de inserção social dos imigrantes
de uma maneira deliberada, clara, por parte do governo estadual e municipal. Em relação à esfera
federal as informações e os serviços são mais conhecidos e utilizados sem muitas burocracias, sem um
política bem definida, como nos referimos acima. A ação do serviço de assistência social local
apresenta limitações em alguns aspectos, refletindo uma faceta de uma realidade cotidiana para boa
parte da população da cidade e do estado. A ação do Estado em Porto Velho que até o presente tem
se mostrado mais produtiva é no campo da orientação sobre trabalho, com várias ressalvas, como, por
exemplo, a ausência de profissionais que tenham conhecimento especializado, para lidar com os
imigrantes, dentre outros problemas que não cabe discussão, neste momento.
239
Desse modo, o que vimos e registramos em Brasileia se constitui, no mínimo, uma vergonha
nacional para um país que almeja um lugar de destaque na ONU. Entendemos as razões políticas de se
reter o imigrante numa perspectiva da ideologia da segurança nacional, mas não aceitamos e nem
compactuamos com as condições de subsistência a que são submetidos os haitianos, tanto nessa
cidade quanto em Tabatinga, no estado do Amazonas. São várias as falhas e faltas do Estado em
relação à sua política de imigração, percebe-se claramente o despreparo profissional de seu quadro
de funcionários, excetuando alguns casos. Podemos fazer pelo menos três afirmações, que os haitianos
são imigrantes para trabalho e estudos e o Estado brasileiro precisa melhorar sua política de imigração.
O nosso trabalho contempla pelo menos três perspectivas, a ajuda humanitária – que de certa
forma é o nosso exercício do que se pode chamar de cidadania –, a pesquisa científica e a crítica social.
A viagem que fizemos a Brasileia é a terceira desde que se iniciou a migração haitiana, tendo outras
duas acontecido em 10 a 12 de janeiro e 10 e 11 de novembro, ambos de 2012. Desde a chegada do
primeiro grande grupo de haitianos a Porto Velho, em 2011, o SPM e a CPT esteveram presente e tem,
desde então, acompanhado sua trajetória e realizado a ajuda humanitária.
Prof. Esp. Geraldo Castro Cotinguiba (Cientista Social, pesquisador em Antropologia e colaborador do
SPM)
Prof.ª Dra. Marília Pimentel (Prof.ª da Universidade Federal de Rondônia e colaboradora do SPM)
São Paulo - SP
243
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
1-) INTRODUÇÃO
1.1 Objetivos
1.2 Justificativa
1.3 Metodologia
EIXOS TEMÁTICOS
A- SEXO:
B- IDADE
C- SITUAÇÃO MIGRATÓRIA
D- TRABALHO
E- PROFISSÃO:
RESULTADOS E CONCLUSÕES
244
LISTA DE FIGURAS
Tabela 10. Tempo Médio de chegada dos haitianos até São Paulo.
1-) INTRODUÇÃO
A Missão Paz, por meio do Centro Pastoral de Mediação para Migrantes (CPMM), atende
todos os dias dezenas de imigrantes das mais variadas partes do mundo. Dentre eles, se destacam os
haitianos, grupo migratório que tem chegado ao país principalmente por causa do terremoto que
devastou o Haiti em 2010. Dentre as causas que motivam esses fluxos migratórios, estão as mais
diversas tais como a busca de melhores condições de vida por meio de emprego ou estudo, fuga de
uma situação de pobreza extrema e destruição depois do terremoto. Nesse sentido, é importante
conhecer o perfil dos haitianos que foram atendidos pela Missão Paz até julho de 2015, momento em
que foi transferida a acolhida emergencial da Paróquia Nossa Senhora da Paz (visto seu caráter
estritamente emergencial) para Santo Amaro, em espaço disponibilizado pela Arquidiocese de São
Paulo com o apoio da Prefeitura Municipal. A acolhida emergencial da Missão Paz visava acolher da
melhor forma possível aqueles haitianos que chegavam a São Paulo e não possuíam local para dormir
e/ou não podiam se dirigir para albergues públicos. O cadastro para a acolhida emergencial era
realizado junto às Assistentes Sociais e constava de cópia de documento de identificação e algumas
perguntas feitas pelas assistentes para saber a realidade dessa pessoa tais como data em que chegou
ao Brasil, data em que chegou a São Paulo, se já possuía Carteira de Trabalho e Previdência Social
(CTPS) ao chegar a São Paulo, se possuía algum problema de saúde.
A partir dessas informações, foi possível obter um enorme número de dados que permitiram
traçar esse perfil sobre os imigrantes haitianos que participaram do atendimento emergencial da
Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Deve-se reforçar que a população que precisou de
atendimento pessoal da Missão Paz chegou a São Paulo em situação de extrema vulnerabilidade
social e econômica. Assim, esse relatório tem como meta maior conhecer o perfil dos haitianos mais
vulneráveis que foram atendidos pela Missão Paz. A tabulação e análise de dados de 620 haitianos
permitem entender um pouco mais essa população, o que possibilita atender melhor esse fluxo
migratório e contribui para a construção e implementação de políticas públicas para a população
migrante de modo geral e para essa população específica que tem sido um grande fluxo migratório
para o país nos últimos 5 anos.
Considerando a origem dos dados que são os atendimentos realizados pelas Assistentes
Sociais aos imigrantes, é importante ressaltar que alguns destes estavam incompletos ou porque o
246
imigrante pode ter respondido alguma pergunta de maneira incompleta ou com informações que
não condizem com a realidade. Quando erros claros foram percebidos (tais como a pessoa afirmar
que chegou ao país em uma data posterior à data de sua solicitação de refúgio75) e havia
possibilidade de correção, esses foram corrigidos. Assim esse estudo é exploratório a partir de dados
primário cuja principal função era documentar um atendimento e não realizar uma pesquisa em si.
1.1 Objetivos
O objetivo geral dessa pesquisa é conhecer o perfil dos imigrantes haitianos que receberam
atendimento emergencial na Missão Paz entre janeiro e julho de 2015.
a) Obter mais informações sobre a migração haitiana para São Paulo, incluindo categorias
de gênero, idade, tempo médio de deslocamento e profissão.
b) Divulgar dados primários para a população civil e para a academia de modo geral a fim
de motivar novas pesquisas e estudos sobre a migração haitiana para o Brasil e para São
Paulo.
c) Contribuir para a construção e a implementação de políticas públicas nacionais,
estaduais e municipais para os imigrantes em geral e para a população haitiana em
particular.
d) Contribuir para a discussão sobre a situação migratória da população haitiana no Brasil.
e) Informar a população brasileira, a mídia e a academia sobre a imigração haitiana em
São Paulo.
1.2 Justificativa
Esse trabalho pretende contribuir com o conhecimento já existente sobre a população
imigrante haitiana em São Paulo. Esse é um tema muito importante por esse ser atualmente um dos
maiores fluxos imigratórios para o país. Além disso, há uma carência de respostas para essa
população como pôde ser visto na falta de coordenação entre os governos do Acre e de São Paulo
em maio de 2015, quando da ocasião do envio de haitianos de Rio Branco para São Paulo. Entender
75
Refúgio é uma proteção internacional criada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Status de Refugiados
de 1951. Essa classifica um refugiado como uma pessoa que tenha saído de seu país de origem ou de residência
habitual por causa de um fundado temor de perseguição por causa de sua nacionalidade, raça, religião, opinião
política ou pertencimento ao grupo social. No Brasil, a legislação que trata de refúgio é a lei 9474/1997, que
dentre outras definições demanda que a pessoa esteja em território nacional para solicitar refúgio.
247
quem são essas pessoas, como elas chegam ao país e qual o tempo médio de deslocamento delas
entre o Acre e São Paulo ajudam a pensar maneiras de recebê-las melhor, de integrá-las à sociedade
brasileira para que elas possam contribuir positivamente para o crescimento e o desenvolvimento do
Brasil.
1.3 Metodologia
Foram analisadas, catalogadas e tabeladas as informações de 620 haitianos que foram
atendidos no acolhimento emergencial da Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Os documentos
analisados foram cópias dos documentos de identificação dos imigrantes e respostas desses
imigrantes às perguntas das assistentes sociais (informações anotadas no verso de cada ficha). Além
disso, foram observadas as fichas de acompanhamento de atendimento das assistentes sociais que
continham as datas em que o atendimento foi realizado. Dos documentos dos imigrantes é possível
obter uma série de informações tais como nome, sexo, idade, se pediu refúgio ou não, profissão,
data em que solicitou refúgio. Algumas informações incompletas, como profissão em alguns casos,
foram completadas de acordo com informações fornecidas por esses imigrantes no momento de seu
cadastro junto à Missão Paz. Maiores explicações sobre os dados e as análises serão fornecidos em
cada seção específica do relatório.
EIXOS TEMÁTICOS
A- SEXO:
Apesar de se observar a chegada de mulheres haitianas, o fluxo migratório do Haiti para o Brasil
ainda é predominantemente masculino. Nesse sentido, os dados podem levar a novas perguntas tais
como: o que tem motivado a vinda de mulheres haitianas para o Brasil? Por que o fluxo continua
predominantemente masculino? Os dados mostram que seria exagero falar em uma feminização da
imigração haitiana para o Brasil. Contudo, a chegada de mulheres demanda políticas públicas
especializadas para essa população. Dessa maneira, não se pode tratar o fluxo haitiano apenas como
masculino e especial atenção deve ser devotada a essas mulheres:
Porcentagem de Homens e
Mulheres Imigrantes
haitianos
mulheres
homens
B- IDADE
249
Para a mensuração da idade, foi considerada a idade com que os haitianos e haitianas chegaram
ao Brasil, ou seja, a idade que eles possuíam na data de chegada ao Brasil. Dessa forma, algumas
informações precisam ser destacadas: importante observar que há haitianos que chegam com
apenas 18 anos no país e que os mais velhos possuem 65 anos. Nesse sentido, é necessário pensar
políticas públicas que levem em consideração as necessidades da população mais jovem que
envolvem capacitação e também as necessidades dos mais velhos que não terão tantas chances no
mercado de trabalho brasileiro, principalmente em atividades que demandam maiores esforços
físicos tais como agricultura e construção civil.
Deve-se ressaltar ainda que a idade média da população haitiana é de 33 anos e 47 dias, sendo a
média de idade das mulheres de 33 anos e 6 meses e dos homens 32 anos. Essa é uma população em
idade extremamente produtiva para o mercado de trabalho. Dessa forma, esse é um fluxo migratório
com grande potencial para contribuir para a economia e o desenvolvimento dos países de destino.
Ao mesmo tempo, essa é uma idade em que as pessoas ficam pouco doentes, de modo que
demandam menos serviços de saúde e assistência social (se estiverem trabalhando). A migração
dessa população em idade extremamente produtiva pode estar ligada com uma estratégia de
sobrevivência da família no país de origem que, ao enviar a pessoa com maior possibilidade de
encontrar emprego e trabalhar, estará garantindo apoio para a família por meio do envio de
remessas.
Tabela 2: Haitianos mais jovens e mais Tabela 3: Média de idade dos haitianos
velhos analisados
Mais
mais velho
jovem média de idade
homem 18 65 homens 32
40
35
30
Número de pessoas
25
20
número de homens
15 número de mulheres
10
0
18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64
Idade
C- SITUAÇÃO MIGRATÓRIA
É interessante observar que a população haitiana se insere nas lógicas existentes para conseguir
regularizar sua situação migratória. Pode-se observar claramente que um pequeno número de
haitianos chega com visto humanitário (apenas 18). Dessa forma, o visto humanitário não era até
então uma ferramenta efetiva para garantir a entrada regular de haitianos no Brasil. Ainda que o
discurso governamental de garantir vistos para haitianos seja muito simples na teoria, na prática, a
maior parte dos haitianos não tem acesso a essa ferramenta. Seria interessante analisar porque isso
não ocorre: seria um problema nas embaixadas, o número de vistos seria insuficiente? Um fato é
claro, as pessoas arrumam outras maneiras de chegar ao país, inclusive com a ajuda de coiotes e
atravessadores. Pode-se inferir que terceiros estão lucrando milhares de dólares todos os anos e que
centenas de pessoas se colocam em uma situação de vulnerabilidade para conseguirem chegar ao
Brasil. Se todos os haitianos chegassem ao Brasil com visto, eles provavelmente teriam condições de
arcar com seus gastos até encontrarem um trabalho, de modo que dependeriam menos de
assistência e acolhimento emergencial dos governos locais e de organizações da sociedade civil.
Por outro lado, a solicitação de refúgio se apresenta como alternativa clara de regularização
migratória no país (565 haitianos do sexo masculino). Tanto que os haitianos já pedem refúgio antes
251
mesmo de chegarem a São Paulo. Duas considerações devem ser feitas sobre essa questão: a
primeira é que existe um acordo entre o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) e o Conselho
Nacional das Migrações (CNIg) para analisar os pedidos dos haitianos e garantir sua permanência.
Contudo, esse processo pode demorar muito tempo e diversos pedidos ficam “perdidos” no diálogo
entre essas duas entidades. O segundo ponto é que se “nega” ao haitiano o seu reconhecimento
como refugiado. Isso porque, como todos os pedidos de haitianos são diretamente encaminhados ao
CNIg, não há uma análise cuidadosa de cada caso e alguns haitianos poderiam ser reconhecidos
como refugiados por estarem fugindo de seu país por fundado temor de perseguição por causa de
sua raça, nacionalidade, opinião política, pertencimento a grupo social ou grave e generalizada
violação de direitos humanos, como consta na lei 9474/1997. Outras alternativas para regularizar a
situação migratória envolvem nascimento de filho brasileiro e casamento com cidadãos brasileiros,
dessa forma o haitiano tem possibilidade de permanência no país como disposto no Estatuto do
Estrangeiro (1980).
Por fim, é necessário ressaltar que todas as mulheres solicitaram refúgio. Se a hipótese de que os
homens haitianos vêm primeiro para o país e depois trazem as mulheres, essas mulheres teriam
maior tempo para solicitar o visto humanitário no Haiti ou em qualquer um dos países entre o Haiti e
o Brasil. Dessa forma, seria importante estudar porque essas mulheres que, em teoria, teriam mais
possibilidades de solicitar o visto humanitário não o fazem. A travessia entre o Haiti e o Brasil, como
relatado por diversos haitianos, é especialmente dura. As mulheres estão mais sujeitas à violência
baseada no gênero, dentre elas a abusos sexuais. Sendo assim, seria do interesse de todos que essas
chegassem ao Brasil de maneira regular.
Situação Migratória
dos Haitianos
solicitação de refúgio
RNE
visto
passaporte
não informado
Haiti 13
RNE 6 0,97%
Equador 1
visto 18 2,9%
Peru 1
passaporte 2 0,32%
Não informado 3
não informado 5 0,81%
D- TRABALHO
Os dados revelam que mais de 50% dos homens e mulheres haitianos atendidos já chegaram a
São Paulo com a Carteira de Trabalho em mãos. Essa informação pode revelar duas observações
253
importantes: o objetivo central dessa migração e o foco dos haitianos na busca por trabalho e o fato
de que a maior parte desses imigrantes já chega à cidade de São Paulo com esse documento, de
modo a não depender tanto desse serviço na cidade. Os gráficos e tabelas abaixo apresentam
maiores informações:
não
sim
não informado
8 13 3 24
não
sim
não informado
E- PROFISSÃO:
Sobre a profissão dos haitianos, é incerto saber a formação profissional do haitiano pela sua
declaração. Isso porque a profissão informada pode ser tanto aquela que o haitiano já exercia em seu
país de origem ou a que deseja exercer no Brasil, o que não necessariamente corresponde a sua
formação educacional ou aquilo que ele desempenhava no Haiti. O quesito profissão é aquele com
mais informações faltantes, por mais que tenhamos tentado obter esses dados em nossos bancos de
dados. Quando a profissão não é declarada, várias situações são possíveis: a primeira é que o
imigrante por quaisquer motivos não quis declarar sua profissão; o segundo pode-se considerar que
esse haitiano está buscando inserção no mercado de trabalho e a terceira é que ele não possui
qualquer formação. Assim, esse indicador não pode ser utilizado para entender a inserção laboral
desses imigrantes no mercado de trabalho, porque não se sabe quantos estão de fato exercendo a
profissão declarada. Contudo, a partir da declaração profissional, pode-se inferir sobre sua formação
profissional.
No grupo das mulheres, o maior destaque é para a profissão de comerciante (70% das mulheres).
Essa profissão é mais fácil para as mulheres porque não depende de muita qualificação. Há ainda
mulheres que teriam maior qualificação tais como aquelas que se declararam administradora,
contabilista e enfermeira (12,5% delas).
255
Dentre os homens, destacam-se profissões de pouca qualificação tais como pedreiro (27,18% do
total), agricultor (9,22% do total), comerciante (7,04% do total). Outro número interessante são os
estudantes (4,53%). Infere-se que uma parte dos haitianos começou sua formação em seu país de
origem e vem para o Brasil com o objetivo último de terminar seus estudos. Contudo, isso acaba
sendo muito difícil por causa da burocracia e dos procedimentos complexos para validação de
diplomas, assim como as dificuldades com o idioma. Essas são barreiras enfrentadas também por
aqueles qualificados que são professores (11), jornalista (1), contabilista (1), contador (1), fotógrafo
(1), técnicos em diferentes setores (10, totalizando cerca de 4,19% dos haitianos que chegaram ao
país). Percebe-se claramente que essa mão de obra qualificada na maior parte das vezes por
diferentes dificuldades não se insere no mercado de trabalho na maneira que seria mais vantajosa
para a economia e o desenvolvimento do país. Além disso, a maior parte da população haitiana está
voltada para o setor de serviço, especialmente para a construção civil no caso dos homens, e declara
profissões pouco qualificadas. Tais informações podem ser observadas nos gráficos e tabelas abaixo:
Profissão Mulheres
18
16
14
12
10
8
6
4 número
2
0
agricultor 55
auxiliar de limpeza 1
avicultor 1
cabeleireiro 1
camareiro 1
cameraman 1
ceramista 5
comerciante 42
construtor 2
contabilista 1
contador 1
costureiro 7
cozinheiro 1
257
cultivador 1
eletricista 11
encanador 8
estudante 27
ferreiro 7
fotógrafo 2
gestor 1
hotelaria 1
jardineiro 3
jogador 1
jornalista 1
marceneiro 1
mecânico 24
motorista 18
negociante 2
Pedreiro 162
pintor 22
professor 11
soldador 5
técnico agrícola 2
técnico de informática 5
técnico em eletrônica 1
técnico em refrigeração 2
vendedor 17
258
Profissão homens
180
160
140
120
100
80
60
40
20 número
0
Sobre as datas de chegada, algumas estimativas foram feitas a partir da data de solicitação de
refúgio. Para fins estatísticos, aproximou-se a data de solicitação de refúgio com a data de chegada
ao Brasil, visto que os haitianos já chegavam a São Paulo com o protocolo.
As datas de chegada ao Brasil e a São Paulo são informações normalmente que são fornecidas
pelos próprios haitianos, que podem incorrer em erros tais como informar datas depois da data de
solicitação de refúgio (nessas ocasiões, foi considerada a data de solicitação de refúgio visto que não
é possível solicitar refúgio sem estar em território nacional). Na informação sobre a chegada a São
Paulo, quando o haitiano informou a data precisa, essa foi considerada. Quando essa informação não
estava disponível, foi utilizada a data do atendimento realizado na Missão Paz. Interessante observar
que o tempo médio de chegada para os homens é de 22 dias e para as mulheres 19 dias. Alguns deles
conseguem se deslocar para São Paulo em apenas 1 dia, já outros demoraram 290 dias. Os dados
permitem observar que a maior parte dos haitianos chega em pequenos grupos tendo entrado pelo
Acre. Alguns poucos entraram pelo Mato Grosso.
Tempo médio de
chegada
Mulheres Homens
(dias) (dias)
19,08333 22,3125
1 4 1
2 2 0
3 3 0
4 1 0
76
Foram dispensados aqueles que chegaram com visto diretamente a São Paulo e aqueles que não tinham
informações sobre data de chegada.
260
5 8 0
6 7 0
7 9 0
8 13 0
9 13 0
10 20 0
11 38 3
12 41 1
13 35 4
14 32 0
15 34 4
16 22 0
17 28 0
18 24 0
19 14 1
20 20 1
21 26 3
22 11 0
23 13 2
24 14 0
25 14 0
26 10 0
27 10 0
28 12 0
29 7 1
30 5 0
261
31 8 0
32 2 0
33 9 0
34 2 0
35 1 0
36 4 1
37 4 0
38 2 0
39 2 0
40 3 1
41 1 0
42 10 0
43 2 0
44 1 0
45 0 1
46 1 0
47 1 0
48 1 0
50 1 0
51 3 0
52 2 0
53 1 0
54 2 0
55 1 0
56 1 0
63 1 0
262
66 1 0
71 1 0
75 2 0
79 1 0
84 1 0
93 1 0
95 1 0
101 1 0
107 1 0
114 1 0
126 1 0
133 1 0
134 1 0
137 1 0
141 1 0
179 1 0
217 1 0
290 1 0
Total 575 24
263
41
40 Tempo de deslocamento até São Paulo
39
38
37
36
35
34
33
32
31
30
29
28
27
26
25
24 número de homens
23
22 número de mulheres
21
20
19
18
17
16
15
14
13
12
11
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47 50 52 54 56 66 75 84 95 107 126 134 141 217
em dias
Gráfico 8. Tempo de deslocamento dos haitianos até São Paulo
264
RESULTADOS E CONCLUSÕES
A análise dos dados permite entender um pouco mais sobre o perfil dos imigrantes haitianos
atendidos no acolhimento emergencial da Missão Paz entre janeiro e julho de 2015. Tendo sido
analisadas informações de 620 haitianos (596 homens e 24 mulheres), algumas conclusões podem
ser delineadas:
• O fluxo migratório do Haiti para o Brasil continua composto por homens em idade
extremamente produtiva que buscam inserção no mercado de trabalho brasileiro.
• A variação de idade dessa população está entre 18 e 65 anos, tendo como média 33 anos
e 47 dias.
• A população haitiana se direciona principalmente para o setor de serviços, sendo as
mulheres para o comércio e os homens para o setor civil. Apesar disso, há haitianos
qualificados: administradores, professores, jornalistas, contadores, fotógrafos, etc.
• O refúgio permanece como alternativa de regularização migratória para a população
haitiana. O visto humanitário fornecido nas embaixadas brasileiros no caminho entre o
Haiti e o Brasil atingiram apenas 2,9% de todos os casos estudados. Nesse sentido,
carece um meio regular para os haitianos entrarem no país.
• Terceiros estão lucrando muito com a vinda de haitianos no país, considerando que mais
de 97% dos haitianos entram no país sem visto humanitário. Deve-se pensar que eles
contaram com alguma “ajuda” para realizar esse percurso. Dessa forma, seria necessário
que o governo reavaliasse essa situação e tornasse o visto humanitário acessível para
todos os interessados.
• As mulheres, ainda que em pequeno grupo, começam a chegar ao país. Assim, faz-se
necessário pensar e implementar políticas públicas dirigidas para essa população. Seria
interessante estudar porque todas as mulheres analisadas chegaram ao país sem visto
humanitário, pois seria esperado que essas tivessem mais tempo para conseguir o
documento no Haiti ou em outro país no caminho.
• O tempo médio que os haitianos demoram para chegar até São Paulo é cerca de 20 dias.
Dessa maneira, há tempo suficiente para que eles peçam refúgio e façam a Carteira de
Trabalho nos estados em que eles entraram. A maior parte deles continua a chegar pelo
Acre em pequenos grupos.
265
Algumas futuras questões de pesquisa podem ser desbravadas a partir desse relatório tais como:
• Por que as mulheres haitianas começaram a vir para o Brasil? Quem são essas
mulheres? Mesmo assim por que o fluxo continua predominantemente masculino?
• Por que o visto humanitário não é uma alternativa viável para a entrada regular de
haitianos no Brasil?
• Será que o sistema brasileiro de regularização migratória para haitianos consegue
proteger e garantir direitos para essa população?
• Quem está “lucrando” com a entrada dos haitianos de maneira irregular no Brasil?
Qual o percurso migratório e os riscos que essa população enfrenta?
• Os haitianos que chegam a São Paulo ficam na cidade de São Paulo? O que acontece
com eles depois do acolhimento emergencial?
Essas são apenas algumas reflexões que pretendem motivar mais estudos sobre a população
haitiana no Brasil e em São Paulo. Desse modo, esse relatório pretendeu contribuir para traçar um
perfil dos haitianos recém-chegados a São Paulo com base na tabulação e análise de dados primários.
Novas pesquisas que utilizem tanto a literatura já existente sobre migração haitiana quanto os dados
primários disponibilizados nesse relatório poderiam contribuir para entender melhor esse fluxo
migratório para o Brasil e assim desenvolver e implementar políticas públicas que atendam as
diferentes necessidades dessa população. Nesse sentido, a Missão Paz encontra-se aberta para
colaborar com pesquisadores, estudantes, autoridades do poder público e outras organizações da
sociedade civil para que juntos possamos receber e integrar os haitianos e todos os imigrantes,
garantindo seus direitos humanos e promovendo seu potencial para contribuir com o
desenvolvimento e a sociedade tanto nos países de origem como no Brasil.
266
Conforme solicitação realizada no dia 13 de Março de 2017, pela pesquisadora Isis do Mar
Marques Martins, observando o princípio de trabalho do Centro de Referência e
Atendimento para Imigrantes de garantia da democratização e transparência do serviço,
observando também a Lei nº 12.527, de 18 de Novembro de 2011, disponibilizamos relatório
referente ao atendimento de imigrantes no Terminal da Barra Funda em São Paulo, no ano de
2015.
Contexto:
O Atendimento no Terminal Barra Funda surgiu de uma parceria entre Governo Federal,
Governo do Acre e Prefeitura de São Paulo tendo em vista uma grande concentração de
migrantes no albergue do Acre. Desta forma, foram fretados alguns ônibus pelo poder público,
com intuito de transportar alguns migrantes que se encontravam em Rio Branco, mas tinham
intuito de migrar para São Paulo. O CRAI ficou como responsável por realizar os
atendimentos na ocasião da chegada de cada um desses ônibus, com objetivo de atender e
encaminhar esses migrantes de acordo com suas demandas. A maior parte dos imigrantes
atingidos era de origem haitiana, mas também havia uma minoria de nacionais do Senegal.
Objetivo:
Atividades:
- Cadastro dos migrantes, conferência das pessoas com a lista de nomes previamente enviada,
triagem das demandas em grupos de atendimento;
AGOSTO
Em Agosto, pelo aumento do número de pessoas chegando, bem como a falta de estrutura,
não foi realizado o controle de demandas.
Total 308
NOVEMBRO
Ônibus Especiais
Por uma demanda emergencial do Governo do Acre, foram enviados alguns ônibus no mês de
Novembro, fora do convênio.
Situação Atendidos
Total 88
270