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Florianópolis/SC
2015
Rafael Augusto Zanette
Florianópolis/SC
2015
Rafael Augusto Zanette
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profª. Dr. Fátima Costa de Lima
Universidade do Estado de Santa Catarina
__________________________________________
Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro
Universidade do Estado de Santa Catarina
__________________________________________
Prof. Dr. Vicente Concilio
Universidade do Estado de Santa Catarina
DEDICATÓRIA
ABSTRACT
This final project is intended to describe relevant aspects on the assembly and presentation of
two theatrical performances: Insólito, directed by Carlos Longo and Otelo, directed by
Jefferson Bittencourt. The approach to each one of these processes is done through a narrative
that describes from the point of view of my active participation as an actor and also as an art
student. Both were designed and conducted in the city of Florianópolis/SC in parallel to my
academic trajetory in the Course of Degree and Bachelor of Theatre in the Arts Center at the
State University of Santa Catarina, between 2011 and 2015. Being completely and deeply
inserted into the environment that served as the object for this research, the choice of an auto-
ethnographic approach seemed appropriate and relevant. The details regarding creation,
assembly and performing of these two pieces highlight their similarities and their differences.
The aim is trying to understand and/or unlock the contents learned in college, create new
meanings about theater and also, build and reflect on expanded prospects through the practice
of doing theater.
Key-words: auto-ethnography in arts; collective creation; production of theatrical
performances.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................ 8
4. CONCLUSÃO .............................................................................................. 67
1. INTRODUÇÃO
no mundo da vida na qual está inscrito este aspecto.” (SCRIBANO; DE SENA, 2009, p. 5,
tradução nossa).
Por estar completamente inserido nos ambientes gerados pelas duas montagens em
questão, como parte engajada e ativa nos processos que servem de campo para esta pesquisa,
o relato em primeira pessoa parece ser a melhor escolha para uma apreensão mais apurada do
conteúdo deste trabalho. Estou ciente do cuidado necessário para levar adiante tal abordagem
e mesmo reconhecendo a importância de análises espontâneas, o intuito será manter o
máximo de objetividade no processo de escrita.
A escolha em trilhar o caminho do relato auto-etnográfico encontra respaldo no fato de
que, neste caso, a minha interferência direta foi fator determinante no resultado dos dois
processos. Assim, o intuito de abordar a pesquisa com base na auto-etnografia parece oferecer
uma melhor compreensão a respeito dos novos significados em teatro que cada uma das
etapas dos dois processos possam ter gerado.
Além disso, o fato de ter participado ativamente no desenvolvimento dos objetos desta
pesquisa parece conferir legitimidade e relevância aos relatos dos capítulos a seguir. Como
poderá ser verificado, o meu relacionamento enquanto pesquisador é de profunda conexão
pessoal com o tema desta pesquisa. Portanto, paradoxalmente, para que novas perspectivas a
respeito do fazer teatral possam encontrar terreno fértil a partir deste trabalho, a objetividade
será insistentemente procurada.
Uma descrição densa, contextualizada e imbuída de caráter científico deverá nortear
essa monografia, como determinam as regras da qualquer metodologia empregada em um
trabalho acadêmico de conclusão. Porém, o relato da interação profunda com as duas
encenações poderá abrir perspectivas subjetivas que espero, possam gerar reflexões
pertinentes na criação de novos conhecimentos a respeito de processos de montagens teatrais.
A partir desta perspectiva, o relato auto-etnográfico deverá ser desenvolvido neste
trabalho a partir de alguns caminhos específicos, tais como: consulta de material escrito,
elaborado durante os ensaios (diário de bordo); revisão de notas e observações que relacionam
algumas especificidades dos processos aos conteúdos acadêmicos aos quais tive acesso em
determinados períodos das montagens; análise de registros videográficos e fotográficos de
ensaios e apresentações; feedbacks do público e entrevistas informais com os diretores Carlos
Longo e Jefferson Bittencourt, dentre outros.
O trabalho será dividido em dois capítulos, nos quais serão descritas as dinâmicas do
processo de cada uma das encenações, desde a origem de suas criações até as suas
apresentações ao público. O primeiro capítulo deverá tratar do espetáculo Insólito, uma
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poeta, ator e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). A tradução da peça para o
português utilizada na adaptação foi a de Beatriz Viégas-Faria (L&PM).
A peça demandou aproximadamente sete meses de adaptações e ensaios para a sua
conclusão – de novembro de 2013 a maio de 2014 – tendo estreado no dia 22 de maio de
2014, no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, para um público aproximado de 250
pessoas. Também serão incluídos neste trabalho, ao longo da narrativa, registros fotográficos
da peça.
A estrutura descritiva de cada um dos capítulos deverá tratar individual e
detalhadamente dos fatores que considero relevantes para uma análise acurada de cada uma
das peças. A partir desse material, acredito poder elaborar uma conclusão que possa refletir os
resultados da minha participação nessas duas obras teatrais e a influência que ambas tiveram
na minha evolução enquanto acadêmico de Artes Cênicas e que ainda têm na minha profissão
de ator e professor de teatro.
A ordem estabelecida para os capítulos se refere única e exclusivamente à ordem
cronológica das duas montagens, sendo que ambas se equivalem em importância no escopo
desta monografia. Além disso, o estímulo para a escrita analítica não está dado por
importância e sim, pura e simplesmente, pelo fluxo do pensamento e da reflexão.
A bibliografia a que pretendo recorrer deverá estar imbuída de conteúdos sobre
pesquisas dessa natureza e que indiquem quais são os dados etnográficos que podem se tornar
material relevante para a elaboração de uma monografia em artes. Além disso, por se tratarem
de espetáculos com linguagens definidas em contextos estéticos próprios, as montagens de
Insólito e de Otelo demandaram pesquisas de obras e autores distintos.
Reitero que estou ciente da subjetividade da qual os conteúdos desta monografia
poderão estar imbuídos por relatarem, basicamente, experiências pessoais. Mesmo
acompanhado de embasamentos teóricos no auxílio à descrição objetiva dos percursos destes
processos, devo lembrar o leitor sobre o fato de que o imprevisível e o espontâneo são
elementos que tendem a acompanhar o trabalho do artista. Se deixarmos estes elementos de
lado, às custas da rigidez e da exigência científicas, podemos ter como resultado narrativas
rasas e conclusões imprecisas.
Assim, passados mais de um ano desde a conclusão da montagem de Otelo e dois,
desde a de Insólito, acredito poder analisar os dois processos com a objetividade que a
presente monografia demanda, sem abrir mão da sensibilidade que se espera inerente àquele
que participou ativa e entusiasticamente de ambos.
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Desse modo, posso afirmar que a escolha metodológica desta pesquisa encontra
respaldo adicional no seguinte pensamento do antropólogo polonês Bronisław Malinowski
(1884-1942): “[...] para entender o homem na sua totalidade (social, biológica e psicológica) é
necessário um trabalho de campo, um olhar para as situações ocorridas no interior do grupo
no qual vive, age e se relaciona.” (SILVA; OLIVEIRA; PEREIRA; LIMA, 2010, p. 5).
A produção do conhecimento parece poder se abrir para esse caminho, no qual a
experiência individual do artista, vista e analisada da perspectiva do seu agente ativo, torna-se
em certo sentido, uma experiência do social, quando encontra reflexo nas atividades rotineiras
de outros artistas.
A ideia é que o relato dessas atividades, com foco nas duas montagens em questão,
possa gerar reflexões tanto a respeito da efetiva criação de conhecimento a partir de uma
abordagem auto-etnográfica, quanto a respeito de diferentes maneiras de considerar os
elementos e caminhos a serem tomados na manufatura de um espetáculo.
Dessa maneira, acredito que esta monografia pode, eventualmente, auxiliar estudantes,
atores, diretores e profissionais do teatro que se esforçam para empreender projetos autorais
ou de terceiros, criando universos distintos e estéticas próprias, trabalhando em grupos
grandes ou pequenos e diversificando a maneira de montar um espetáculo teatral.
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2. CAPÍTULO I: INSÓLITO
A peça foi definitivamente reconhecida fora do âmbito acadêmico em 2014, tendo sido
selecionada para dois festivais de teatro de Santa Catarina: o IV Festival de Teatro Tecendo o
Riso, de Concórdia e o 21º Festival Isnard Azevedo - Floripa Teatro, de Florianópolis – neste
último concorrendo com mais de 400 inscritos de todo o Brasil.
No decorrer desse capítulo, o intuito é apresentar uma descrição do processo de
criação a partir do meu ponto de vista como ator. Serão incluídas algumas impressões do
diretor Carlos Longo, captadas através de conversas informais, na tentativa de contextualizar
o leitor a respeito do caminho que a peça percorreu desde a sua origem até a sua concretização
nos palcos.
Além disso, uma ação específica que se dá em um determinado momento da peça – a
quebra – será ressaltada e analisada, visando encontrar nuances da minha interferência na
dramaturgia, do meu aprendizado e da minha evolução como ator. Por fim, serão descritos os
diferentes espaços onde Insólito foi apresentado, na tentativa de destacar o que cada um deles
acrescentou no desenvolvimento do espetáculo.
visão pessimista da existência, na qual o homem não tem qualquer controle sobre o seu
destino e, assim sendo, atua e se comunica de forma caótica e sem sentido.
No palco do Teatro do Absurdo, as figuras em cena expõem o comportamento humano
de forma inusitada, maximizando ou transformando ações rotineiras de forma incoerente,
paradoxal, na tentativa de gerar no público uma reflexão a respeito da sua própria realidade.
Dentre os principais dramaturgos que tiveram seus trabalhos referenciados a este gênero,
podemos citar: Eugène Ionesco (1909-1994), Samuel Beckett (1906-1989), Arthur Adamov
(1908-1970), James Albee (1928) e Jean Genet (1910-1986).
Com frases rebuscadas e repetitivas que ora se complementam, ora se opõem, o casal
se comunica – ou tenta se comunicar – numa tarde de domingo, naufragados num espaço que
poderia lembrar uma sala de estar, à espera de seus filhos. O texto, dividido em três atos, parte
de expressões que denotam desde o mais profundo tédio até à euforia e ansiedade extremas.
O processo de escrita da dramaturgia era bastante simples e se baseava no jogo
improvisacional dos atores a partir de materiais fornecidos pelo diretor. Uma ideia, um
pensamento, uma imagem, uma música, uma frase ou mesmo apenas uma palavra era lançada
no ambiente de criação. Daí surgiam ideias para cenas que, posteriormente, eram mantidas e
refinadas ou simplesmente descartadas.
Nas diversas oportunidades que a equipe teve a chance de debater a respeito da origem
do texto de Insólito, Carlos Longo reiterava que tudo nascera da palavra domingo. O diretor
reforçava a ideia de que o ambiente da peça deveria ser criado a partir de tudo o que esse dia
da semana poderia representar na vida de um casal que vive junto há muito tempo.
Considerando que a rotina da grande maioria das pessoas se baseia no seu trabalho e
sendo o domingo um dia de folga, poderia se esperar que esta rotina não faria parte do
imaginário para a criação deste ambiente. Porém, na concepção do diretor e de outras tantas
pessoas – a partir de feedbacks do público após algumas apresentações – o domingo significa
tédio, estagnação, preguiça e falta de vitalidade.
A partir do estímulo de elementos como esses, o elenco tratava de improvisar em cena
criando partituras físicas, movimentações que eventualmente se tornavam marcações,
diálogos e interações. Com esse material, o diretor se afastava por um ou dois dias e iniciava
um processo de escrita organizado das falas do casal. O resultado desse processo era
compartilhado com o elenco que trazia, no próximo encontro, o texto memorizado com
adaptações e/ou novas ideias.
Dessa maneira, as cenas foram se estruturando no texto, porém essa estrutura nunca
teve a intenção de se cristalizar por completo. Essa, inclusive, é uma das características
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Figura 1 – ELE
Figura 2 – ELA
comunicar tanto quanto o próprio texto, a opção de Insólito foi manter a cenografia
extremamente simples, utilizando apenas duas cadeiras.
O intuito era justamente potencializar as movimentações criando, com os corpos dos
atores, elementos suficientes para fazer surgir um cenário na imaginação do público. As
cadeiras servem apenas como complemento à construção de uma possível sala de estar, de
uma casa qualquer – em um tempo qualquer – onde duas figuras tentam se comunicar.
Partindo dessa simplicidade cenográfica, Insólito resultou num espetáculo bastante
flexível quanto às suas necessidades de espaço para apresentação. Tendo estreado no formato
semi arena, na sala Laboratório I do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
Catarina para um público de aproximadamente 60 pessoas, logo foi possível adaptá-lo para
outros formatos.
As primeiras apresentações fora do ambiente universitário foram na Casa do Teatro
Grupo Armação, na sala Waldir Brazil (ver Figura 3). Conhecido como Teatro Armação, o
imóvel localizado no centro de Florianópolis foi concedido ao Grupo de Teatro Armação em
1986 e sua infraestrutura foi adaptada para receber apresentações cênicas de pequeno porte no
que se refere à cenografia. Sua capacidade é de apenas 40 lugares.
Fonte: Momentos que antecederam a apresentação do dia 03 de agosto de 2013. Foto: Aline Dallarosa.
Neste espaço, Insólito foi adaptado para apresentações em palco italiano e a pequena
área do Teatro Armação (um palco de aproximadamente 03 metros de largura e 06 metros de
profundidade), trouxe novas e inesperadas características ao trabalho. Em certo sentido, o
20
A elevada energia corporal deste início contrasta bastante com o clima criado no
primeiro ato, no qual, por aproximadamente 20 minutos, as figuras trocam pouquíssimas
1
GOGOL BORDELLO - ULTIMATE. In: YouTube BR. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=5
1c4FwZR0TM> Acesso em: 30 out 2015.
2
Gogol Bordello é uma banda multiétnica de gypsy punk formada em Nova Iorque em 1999. Tornou-se
conhecida por seu som que mescla música cigana do leste europeu, influências folclóricas eslavas e punk rock, e
também por suas performances teatrais envolvendo dança e arte de rua.
22
ELA: A gente precisa comprar uma coroa de flores pro túmulo da sua mãe.
ELE: Ela morreu?
ELA: Eu quero um hambúrguer sem hambúrguer, com uma salsicha.
ELE: A minha mãe morreu no domingo...
ELA: São dois, ele também vai querer um hambúrguer com duas salsichas
ELE: A minha mãe morreu no domingo... Coisa chata... Que dia é hoje?
ELA: Domingo.
ELE: Você gosta do domingo...
ELA: Não sei... Você é quem diz.
ELE: Você gosta de sair. Você gosta de comer. Você gosta de tomar banho. Você
gosta de tomar sol. Você gosta de funerais. Você gosta de hambúrguer. Você gosta de
salsicha. Você...
ELA: Sabe do que eu gosto? Eu gosto de fios de ovos de carne que a sua mãe fazia.
ELE: Como assim “fazia”? Ela não faz mais?
ELA: Ela morreu semana passada. Não lembra?
ELE: Ela morreu no domingo... Que coisa chata...
(LONGO; PUTTI; ZANETTE. 2013, não publicada)
As leituras possíveis deste trecho em específico podem ser muitas, porém a falta de
comunicação é clara. Enquanto ELA comunica que é necessário tomar uma atitude em relação
à morte da mãe da figura masculina, ELE parece não saber ou não lembrar do falecimento.
Numa tentativa de proteção ou mesmo numa atitude de desprezo, ELA não se esforça em
contar ou lembrá-lo a respeito, simplesmente mudando de assunto completamente
Parece que os sentimentos e as emoções estão sempre sendo deixados de lado, dando
lugar à concretude do momento, à satisfação de desejos e necessidades imediatas. Além disso,
fica evidente um afastamento emocional e afetivo de ambos. A intenção do texto, das ações,
das intenções vocais, dos gestos e da cena como um todo foi deixar a cargo do público a tarefa
de determinar as possíveis causas desse afastamento e dessa frieza na relação.
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Essa dinâmica perdura por todo o primeiro ato da peça, com variações em apenas dois
momentos. A primeira variação é quando ELE, mostrando-se aborrecido pelos comentários da
outra figura, explode com ferocidade, levantando-se da cadeira e cantando com agressividade
(ver Figura 5) a primeira estrofe da música Enter Sandman(3), composta e gravada pela banda
Metallica(4) em seu quinto álbum de estúdio chamado Black Album. Ao final, ele
simplesmente senta-se novamente como se nada houvesse acontecido.
3
METALLICA - ENTER SANDMAN [OFFICIAL MUSIC VIDEO]. In: YouTube BR. Disponível em: <https:/
/www.youtube.com/watch?v=CD-E-LDc384> Acesso em: 30 out 2015.
4
Metallica é uma banda norte-americana de heavy metal originaria de Los Angeles, formada em 1981. Suas
músicas são caracterizadas por tempos rápidos, instrumentais e musicalidade agressiva.
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emocional permanece nas falas, nas entonações, nos olhares. A luz geral do palco é mais clara
e intensa, o que ajuda a representar uma certa normalidade cotidiana.
Em um determinado ponto deste ato, o casal se vê numa dança grotesca e
extravagante, no intuito de criar a imagem do prelúdio de uma relação sexual. O palco e a
plateia são inundados por uma luz vermelha intensa, enquanto os atores interagem de forma
desordenada ao som da canção Bucovina(5), do músico alemão Shantel(6).
As falas e a conexão entre os diálogos parecem se consolidar ao longo da peça,
transformando a imagem absurda da falta de comunicação em algo assustadoramente próximo
do cotidiano. O terceiro ato explora justamente esta ideia: as bizarrices da vida não deixam de
ser bizarrices só porque nos habituamos a elas. Assim, tenta-se criar, neste final de espetáculo,
uma certa melancolia em função de nos darmos conta dessa triste verdade a respeito de nós
mesmos.
Importante ressaltar que a concepção da luz de todo o espetáculo, com suas
especificidades criadas a partir do mood de cada ato, esteve a cargo do diretor Carlos Longo,
com o auxílio dos atores. A operação e a montagem da iluminação esteve a cargo de diversos
técnicos ao longo das apresentações. Desde junho de 2014, a responsabilidade desta função
está a cargo de Gabriel Velasques, acadêmico do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade do Estado de Santa Catarina.
Não existe um final feliz. Na tentativa de apreender as nuances do Teatro do Absurdo,
o final da peça indica que nada mudou e, mais uma vez, retornamos aos velhos hábitos, às
velhas consequências de uma vida mal aproveitada. O tédio se reinstala nos segundos finais e,
com um blackout rápido, fica apenas a imagem deste casal de figuras desesperadas, tentando
escapar desse destino imposto por elas próprias.
Essa sensação de aprisionamento é captada pelo público, visto os diversos feedbacks
que tivemos ao longo das apresentações relatando o fato. Um comentário interessante partiu
de uma mulher de aproximadamente 65 anos, que diz ter se identificado assustadoramente
com a situação de letargia perante a vida, desapegada de si mesma e de seu companheiro.
O casal Insólito (ver Figura 6), durante a apresentação, pretende se manter afastado do
público. Apesar de olhares dirigidos às pessoas da plateia, são raros os momentos em que se
poderia observar uma intenção de comunicação direta entre ator e espectador – salvo no
5
SHANTEL - BUCOVINA. In: YouTube BR. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=VbClX9A
AYr4> Acesso em: 30 out 2015.
6
Stefan Hantel, melhor conhecido pelo seu nome artístico Shantel (nascido a 02 de março de 1968) é um DJ e
produtor baseado em Frankfurt, Alemanha. É conhecido por seu trabalho com orquestras ciganas de metais e
remixagem com batidas eletrônicas de músicas tradicionais da península balcânica.
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2.2. A QUEBRA
Obviamente são figuras diferentes em corpo, voz e atitudes de Rafael Zanette e Thaís Putti,
porém ambos estão lá como que apenas superficialmente disfarçados.
Os estímulos para o surgimento destas figuras não partiram de orientações específicas
de sentimentos ou emoções que tais personagens pudessem estar imbuídos, interferindo assim
na criatividade do ator em dar-lhe forma. Estes seres foram criados a partir de imagens e
situações extraídas de referências próprias do diretor e do elenco a respeito de como seria um
casal que está junto há muito tempo e que não consegue mais se comunicar. Membros da
família, pais e avós de amigos e vizinhos serviram de referência para criação dessas imagens e
situações.
Como exemplo, o primeiro ato. A palavra-chave é tédio. A partir daí, toda a
movimentação, toda a entonação vocal, toda a interação entre os atores, todas as conexões
entre os diálogos foram criadas. O tédio norteou o surgimento de situações mais do que
nuances de personalidade que quaisquer um dos atores pudesse trazer para a sua figura.
Com esse princípio dado, a criação das demais cenas ocorreu de forma orgânica, sem
questionamentos a respeito do que ELE ou ELA fariam em determinadas situações. O
ambiente, palavras-chave ou mesmo a dinâmica dos atores em relação ao texto, levaram ao
surgimento das ações, reações e marcações pelo palco. Tanto é que o próprio texto foi
enriquecido dessa maneira, a partir dele mesmo, sem um subtexto consistente.
Conforme já foi dito, a partir de improvisações baseadas em uma ideia, um
pensamento, uma imagem, uma frase ou mesmo apenas em uma palavra, as cenas foram
tomando forma e sendo conectadas umas às outras. Havia mais um compromisso em criar um
universo específico – um recorte no tempo da vida deste casal, ressaltando as causas e efeitos
da falta de comunicação – do que propriamente em contar uma história.
Com essa linha de raciocínio guiando a criação, surgiu uma ideia que consideramos
inusitada até mesmo para um processo que seguia sem muitas regras ou preocupações com o
sentido das cenas. Foi sugerido que, em determinado momento, no final do primeiro ato, eu
abandonasse totalmente qualquer traço da figura construída em cena até então e, de maneira
brusca e violenta, agisse como alguém fora da cena, fora do espetáculo.
Essa nuance de personalidade, que podemos chamar aqui de eu mesmo, deve ser
considerada a partir de uma visão muito pessoal na qual considero que sou apenas uma
imagem refletida daquilo que os que me rodeiam projetam ao meu respeito. Dessa forma,
desconstruir o corpo, a voz e os trejeitos até então guiados pela imagem do tédio, de forma
repentina, sempre foi um desafio nos ensaios e nas apresentações de Insólito.
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Para que essa troca de dinâmica repentina pareça orgânica aos olhos do público, é
necessário um trabalho interno de modificação no estado emocional. Até o momento da
quebra existe um trabalho de representação, apesar de estarmos expondo um lado diferente e
potencializado de nós mesmos – essa característica pode ser considerada para descrever
nossas atuações durante toda a peça. A quebra faz surgir um ator furioso com a atriz em cena,
por um motivo estapafúrdio, inserido nos diálogos da peça transcritos a seguir:
A partir desse momento se segue uma espécie de explosão de raiva em que eu, ator,
pareço indignado com a parceira de cena por afirmar uma mentira ou por ter se equivocado
com o texto ou por ambos. Nasce um discussão ferrenha entre os dois, nessa altura, totalmente
descaracterizados de suas figuras iniciais. Num determinado ponto, sinto-me impelido a
explicar para a plateia o motivo da inusitada atitude da minha parte.
Prossigo então, falando ao público diretamente, contando uma situação supostamente
verdadeira vivenciada pela atriz durante sua infância. Ela, com apenas 06 anos de idade, e seu
pai praticavam caça no interior de Santa Catarina. Em posse de uma espingarda, ela mirou a
arma em direção a uma árvore. Atirando, acabou atingindo uma vaca, causando-lhe morte
instantânea.
A partir desse relato, criamos uma longa história – contada ao público nesse momento
– em que a atriz não só matou a dita vaca, como também a cortou em pedaços e a transportou
até Florianópolis para fazer um belo churrasco. Finalizando a história, contada com violência
e indignação, volto à condição de figura tediosa e curvada, construída no início do primeiro
ato, até que ele termine em seguida, com um blackout de luz.
Vale ressaltar que nessa quebra, nessa explosão vocal e corporal, a intenção é
envolver o diretor, o técnico de luz e pessoas da plateia na busca de compreensão e
cumplicidade. Assim, a luz se modifica, sendo amplamente intensificada, o diretor e o técnico
de luz intervém e o público geralmente se assusta.
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2.3. APRESENTAÇÕES
Pretendo relatar as nuances de cada apresentação, enfatizando aquelas que parecem ter
maior impacto ou relevância naquilo que busco com esse trabalho. As apresentações fizeram
emergir momentos de exposição pessoal, experiências de diálogo com o público e a
consolidação de todo o processo como algo factível e viável dentro da cena artística de
Florianópolis. Os níveis de percepção sobre o espetáculo foram evoluindo em cada uma das
oportunidades que tivemos de apresentá-lo.
Conforme já mencionado, a primeira apresentação da peça ocorreu na noite do dia 29
de junho de 2013 no Laboratório I do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
Catarina. A maioria do público de aproximadamente 60 pessoas era composta por estudantes
de Artes Cênicas – principalmente daquela instituição – e professores, além de alguns poucos
familiares dos envolvidos no processo.
O formato da apresentação foi semi arena, onde foram dispostas três arquibancadas,
formando uma espécie de “U”. O espaço reduzido para a movimentação dos atores – em torno
de 04 metros de largura e 05 de profundidade – permitiu a proximidade com o público.
Em se tratando de uma estreia, uma espécie de estranheza por parte dos espectadores
ficou aparente no desenrolar da peça, assim como uma tensão que se gerou no ambiente e que
perpassou cada um dos três atos. Ao final da peça, a sensação de estranhamento parece ter
permanecido e esta percepção calcou vários dos debates posteriores entre a equipe.
Essa primeira apresentação gerou muitas perguntas a respeito do quê afinal havíamos
criado. Onde estaria o interesse do público em ficar até o final? Qual seria o momento ou
momentos nos quais a plateia poderia se identificar com as figuras em cena? Em que nível
elementos como figurino, luz e sonoplastia estariam interferindo na percepção do público?
Conseguimos deixar claro a estética do absurdo, mesmo que estivéssemos ainda tentando
entender o que isso poderia significar?
Assim, depois da estreia – ocorreu uma segunda apresentação na noite seguinte, dia
30, no mesmo espaço – concluímos que a melhor atitude seria apostar no lado experimental
da proposta. Porém, mesmo que a nossa intenção inicial tenha sido manter o tom do
espetáculo num patamar experimental, intelectual, reflexivo ou mesmo underground, ao longo
das apresentações Insólito acabou se tornando algo que podemos considerar como sendo um
produto teatral popular.
Passada a estreia, colocamos o trabalho à prova, levando-o para fora do ambiente
universitário e de sua suposta segurança. Nos dias 02 e 03 de agosto de 2013, Insólito foi
apresentado na Casa do Teatro Grupo Armação, na sala Waldir Brazil, para um público total
aproximado de 80 pessoas.
30
iluminação, entonações vocais e muitos outros elementos foram bastante afetados pelo espaço
disponível no palco.
Um possível ambiente intimista que a peça poderia querer transmitir, favorecido pelos
espaços considerados reduzidos onde ela fora apresentada até então, foi mais difícil de ser
construído. A dinâmica dos atores foi direcionada neste sentido, assim como o trabalho de
desenho/recorte da luz no palco, como mostra a Figura 8.
A quebra, ocorrida no final do primeiro ato e descrita no item 2.2. deste trabalho,
ganhou características e intensidade inéditas. Nestas apresentações, no momento da quebra,
eu deixei o palco e me dirigi até uma poltrona vaga da plateia, onde sentei por alguns
instantes enquanto argumentava veementemente com a atriz Thaís Putti, que permanecia no
palco. A perplexidade já esperada do público foi ainda mais intensa, devido talvez à imersão
na plateia.
As duas próximas apresentações foram no Espaço Cultural Engenho do Zé, no dia 23
de agosto de 2013, e na sede do Batmacumba Cultura Independente, no dia seguinte. O
primeiro está localizado no bairro Santinho e o segundo, no bairro Trindade, ambos em
Florianópolis. Os dois espaços são moradias adaptadas para receber eventos festivos de
música, teatro, artes visuais e outras manifestações artísticas e têm capacidade para
aproximadamente 80 pessoas cada um.
32
Essas duas experiências foram muito marcantes quase que exclusivamente por dois
motivos: a proximidade do público em relação ao espaço da apresentação – os atores estavam
a centímetros dos espectadores – e também no que se refere ao ambiente criado pelos
participantes dos dois eventos.
No Espaço Cultural Engenho do Zé, a peça foi apresentada dentro da programação do
Festival de Teatro de Inverno do Santinho. Na sede do Batmacumba Cultura Independente, o
espetáculo se caracterizou como um evento artístico ocorrido durante a segunda edição da
Festa One Man Band.
O Engenho do Zé, como é conhecido, é um antigo engenho de farinha de mandioca
restaurado. Os administradores tentaram manter o máximo da decoração original,
emprestando ao lugar uma ambientação bucólica e envelhecida, a qual consideramos perfeita
para a peça. Chegamos a batizar o Engenho do Zé como sendo a casa do casal Insólito.
A sede do Batmacumba Cultura Independente, por outro lado, é uma residência de
estudantes universitários. Sua principal característica é justamente a falta de estrutura
enquanto espaço teatral, o que criou um desafio interessante para a equipe. A peça foi
apresentada na sala de estar, para um público aproximado de 80 pessoas, durante uma festa.
Por se tratarem de residências, os espaços das apresentações foram delimitados e
adaptados conforme as possibilidades da casa. O público, circulando pelos ambientes, foi
sendo reunido e acomodado momentos antes do espetáculo começar – dentro da programação
dos eventos. Aglomerados em um espaço relativamente delimitado, os espectadores ficavam
muito próximos dos atores.
Nos dois casos, a cenografia se inseriu no espaço de forma orgânica, já que as cadeiras
são elementos comuns em moradias. O espetáculo se desenvolveu sem um formato espacial
definido, ora trazendo movimentações do semi arena, ora do palco italiano e, em alguns
momentos, permitindo aos atores movimentarem-se livremente, inclusive entre o público.
A movimentação corporal intensa que caracteriza a recepção ao público pelos atores se
iniciou somente depois que estes chegaram nos espaços determinados na casa para as
apresentações propriamente ditas. Esta chegada ocorreu após uma movimentação peculiar
pelos ambientes das moradias, em que tanto eu quanto a atriz Thaís Putti já estávamos
imbuídos das nuances das figuras que, posteriormente, se caracterizam em cena.
O restante da peça se desenvolveu normalmente, salvo a participação extremamente
calorosa por parte do público nos dois eventos. A proximidade corporal tornou possível e até
mesmo incentivou essa inusitada interação, porém o estado alterado de consciência da quase
totalidade dos espectadores não pode deixar de ser considerado.
33
Nos dois locais, bebidas alcoólicas e substâncias que podem alterar o estado de
consciência foram ampla e livremente consumidas pelo público durante os eventos em
questão. No momento em que o espetáculo foi apresentado, a quantidade consumida já havia
sido considerável o que, acreditamos, influenciou significativamente na peculiar interação
entre espectadores e artistas durante a peça.
Apesar dessas duas experiências bastante marcantes na evolução do espetáculo
enquanto adaptável a diferentes espaços, as demais apresentações aconteceram, em sua grande
maioria, no formato palco italiano.
No dia 27 de setembro de 2013, a peça Insólito foi apresentada no Auditório do
Instituto Federal de Santa Catarina IFSC – Campus Florianópolis, como espetáculo convidado
do 12º Didascálico Mostra de Arte e Cultura. O espaço apresentava deficiências técnicas,
principalmente no que se refere a equipamentos de iluminação. Mesmo assim, com um
público aproximado de 60 pessoas, o espetáculo foi apresentado normalmente, contribuindo
para o seu ganho em ritmo e organicidade.
Seguindo o ritmo frenético de apresentações do segundo semestre de 2013, no dia 02
de outubro, a convite do Prof. Dr. Vicente Concílio, Insólito fez uma apresentação especial e
exclusiva para sua turma da disciplina Teatro e Ensino, do Curso de Pedagogia, do Centro de
Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. A peça
aconteceu no Laboratório I do Centro de Artes desta universidade para um público
aproximado de 30 pessoas.
Interessante notar que a peça voltou a se apresentar no mesmo espaço onde ela havia
estreado, alguns meses antes. Nesta ocasião, a configuração utilizada foi novamente a que
havia sido concebida para a estreia: semi arena, com três arquibancadas dispostas em formato
de “U”. Após algumas apresentações em palco italiano, a volta para esta configuração de
palco causou uma certa estranheza tanto nos atores quanto nos membros da equipe.
Ainda em 2013, durante a 20ª edição do Festival Isnard Azevedo - Floripa Teatro,
ocorreu a Mostra Universitária do festival, na qual diversos espetáculos teatrais desenvolvidos
pelas Universidades Estadual e Federal de Santa Catarina foram selecionados para
apresentações em diversos espaços da cidade de Florianópolis.
Insólito foi um desses espetáculos e foi apresentado no dia 10 de outubro, no Espaço I
do Centro de Artes de Universidade do Estado de Santa Catarina (ver Figura 9) para um
público de aproximadamente 80 pessoas. A peça novamente retornou ao ambiente
universitário, porém dessa vez, dentro da programação de um festival de grande importância
para a cidade de Florianópolis e também para o estado de Santa Catarina.
34
ensaios, deixando sua manifestação ser influenciada pelo humor e pela disposição dos atores,
pelo ambiente do espaço em que a peça aconteceria ou pelo grau de receptividade que a
plateia poderia estar comunicando.
Além disso, vários outros elementos foram modificados ao longo dessas primeiras
apresentações e outros tantos foram incorporados ou suprimidos. Surgiram novas marcações,
novas movimentações, novos olhares, novas percepções sobre determinadas ações e frases.
Gestos foram modificados ora sublinhando, ora negando o texto.
Paradoxalmente, essa flexibilidade que sempre caracterizou o espetáculo Insólito,
estabeleceu um elemento de consolidação da sua dramaturgia e as primeiras apresentações,
servindo de campo experimental neste sentido, fixaram as bases do espetáculo. Insólito
ganhava corpo.
Foi então que o espetáculo alçou um voo maior, tendo se apresentado no dia 09 de
novembro de 2013 no Teatro Municipal Maria Luiza de Mattos, na cidade de Concórdia, para
um público aproximado de 280 pessoas. Com uma largura de 10 metros e uma profundidade
de 08 metros, este espaço propiciou uma desenvoltura corporal bastante ampla. Algumas
marcações e movimentações foram novamente adaptadas, gerando novas percepções do
espaço ficcional criado nos ensaios e apresentações anteriores.
A necessidade de uma entonação e uma projeção vocais diferenciadas foi um dos
fatores que dificultaram um resultado mais orgânico nesta apresentação. Em comentários
posteriores ao espetáculo, algumas pessoas do público disseram não ter conseguido ouvir a
minha voz ou não entender algumas das minhas falas.
Portanto, apesar do espaço oferecer uma ampla liberdade de movimentação,
determinando novas possibilidades para a expressão do universo de Insólito, o aprendizado
sobre o elemento vocal em cena ditou minhas reflexões sobre a apresentação.
Esta foi talvez a principal falha enquanto ator, nesta ocasião: não perceber a amplitude
do espaço ou, mesmo percebendo, não adaptar os mecanismos vocais para que as falas
pudessem chegar claramente aos espectadores. Vale ressaltar que, a respeito deste ponto, falo
exclusivamente por mim. Minha parceira de cena, Thaís Putti, adaptou a projeção e a
articulação vocal ao espaço de maneira exemplar.
A primeira apresentação em Concórdia foi de extrema importância para a evolução do
espetáculo no que se refere à parte técnica (luz e som), à abordagem dos atores em relação às
figuras criadas no palco e à própria dramaturgia. Enquanto havia um amplo espaço para
criação de novas possibilidades para a iluminação dos atos e boas condições para a
sonoplastia, a característica intimista do espetáculo se perdeu.
36
7
Fabiana Franzosi, natural de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, é graduada no Curso de Licenciatura em Teatro
pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS.
38
diretor de teatro Pépe Sedrez, fundador da Cia Carona de Blumenau(8) e o também ator e
diretor André Francisco, diretor do Grupo Teatro em Trâmite(9), de Florianópolis.
O debate foi pautado pela originalidade que Insólito traz à cena. Por mais que a
dramaturgia tenha tentado seguir a linha de uma suposta estética do Teatro do Absurdo, os
debatedores ressaltaram o tom de novidade e frescor com que a peça se insere no teatro
contemporâneo.
Mesmo utilizando elementos do teatro dito tradicional, com diálogos e ações que
tentam concatenar o começo, o meio e o fim de uma situação, a contemporaneidade estaria em
alguns elementos como: o inusitado, o argumento e a réplica sem sentido, a interação calcada
no afastamento emocional das figuras em cena e a dinâmica de ritmos, entre outros.
Além dos debatedores, os organizadores do festival, profissionais que tiveram a
oportunidade de assistir a primeira apresentação da peça naquele mesmo espaço se mostraram
surpresos com o crescimento técnico e com a consolidação da dramaturgia. Ficou claro que
nossas reflexões em debates e ensaios no início do ano haviam surtido efeito e tivemos a
impressão, naquele momento, de que estávamos no caminho certo.
8
A Cia Carona é um grupo de teatro com sede em Blumenau/SC. Desde sua fundação em 1995 pelo seu diretor,
Pépe Sedrez, a Cia trabalha exclusivamente com teatro, dedicando-se à investigação acerca do trabalho do ator.
9
O Teatro Em Trâmite é um grupo caracterizado por uma prática teatral de caráter experimental que pesquisa as
possibilidades dos espaços cênicos, a dramaturgia do ator e a criação de textos próprios. Foi fundado em 2003
pelo ator André Francisco que é também o diretor artístico do grupo, dedicando-se principalmente à concepção e
direção de espetáculos.
39
Fonte: Final da apresentação no dia 19 de outubro de 2014. Foto: produção do Festival Isnard Azevedo.
42
10
Jefferson Bittencourt é diretor teatral e músico, graduado em Música pela Universidade do Estado de Santa
Catarina - UDESC.
43
emergência no senado. Durante a reunião, o senador acusa o general de ter seduzido sua filha
por meios de bruxaria, o que é desmentido por um discurso simples e puro de Otelo, dando
conta do seu sincero amor por Desdêmona. Esta, também presente à reunião, acaba por
confirmar os seus sentimentos.
Otelo, que gozava da estima e da confiança dos governantes de Estado por sua
lealdade, nobreza e coragem, foi inocentado das acusações de Brabâncio. Além disso, o
general era considerado o único capaz de conter uma esquadra turca inimiga que se dirigia à
ilha de Chipre para atacá-la, assunto que motivara a urgente reunião convocada pelos
governantes de Veneza.
Assim, Otelo e Desdêmona se dirigem à ilha de Chipre em navios separados, mas não
antes de Brabâncio proferir palavras enigmáticas na Cena III do Ato I: “Mantém-na sob tuas
vistas, Mouro, se é que tens olhos para enxergar. Ela enganou o próprio pai, e pode vir a fazer
o mesmo contigo.” (SHAKESPEARE, 1622).
Em virtude de uma tempestade, os navios são separados durante a viagem e
Desdêmona chega antes à ilha de Chipre. Otelo desembarca alguns dias depois com a notícia
de que a embarcação turca havia sido destruída pela fúria do mar. A batalha havia terminado
antes mesmo de começar.
Em Chipre, Iago continua a articular seu plano de vingança contra Otelo e Cássio.
Através de artimanhas e manipulações, começa a plantar na alma de Otelo a semente dos
tormentos causados pelo ciúme. Suas manobras incluem preencher a mente do seu general
com imagens de um possível caso amoroso entre Cássio e Desdêmona. O general então, tem
sua confiança e seu orgulho minados pelas palavras de Iago, que dão conta de que Cássio,
detentor de uma beleza e eloquência que agradam as mulheres, poderia estar com segundas
intenções em relação à sua bela esposa, Desdêmona.
Cássio era um jovem soldado florentino e, apesar de ser um amigo leal de Otelo –
servira de intermediário nas relações entre o general e Desdêmona – era o tipo de homem
capaz de despertar o ciúme em um homem de idade avançada como Otelo.
Iago levou Cássio a se embriagar e se envolver em uma briga durante uma festa que os
habitantes da ilha de Chipre ofereciam a Otelo. Sabendo do ocorrido, o general destituiu
Cássio de seu cargo. Aproveitando-se da situação, Iago sugere a Cássio que a punição havia
sido severa demais e que ele deveria pedir a Desdêmona para que ela intercedesse junto a
Otelo pela restituição de seu cargo.
Cássio aceita e agradece o conselho de Iago, decidindo solicitar a Desdêmona para que
ela convença Otelo a lhe devolver sua posição. A partir daí, Iago insinua que Desdêmona,
44
dando atenção sincera aos pedidos de Cássio e insistindo com seu marido para que lhe restitua
o cargo de tenente, possa estar considerando-o como mais do que um simples amigo. Assim, a
semente da desconfiança cresce na mente de Otelo.
Iago tinha conhecimento de que Otelo havia dado de presente à Desdêmona um
singelo lenço que ele havia herdado de sua mãe. O lenço era um símbolo importante do amor
profundo do general por sua bela esposa e ele acreditava que, enquanto ela o guardasse
consigo, o casal teria garantida a sua felicidade. Desdêmona acaba por perder o lenço e
Emília, sua ama e esposa de Iago, o encontra. Iago, após tomar posse desse precioso artefato
arrancando-o à força das mãos de Emília, relata a Otelo que sua esposa o havia dado de
presente ao seu amante, Cássio.
O general, já perturbado e bastante enciumado, pergunta a Desdêmona sobre o
paradeiro do lenço. A jovem esposa, ignorando que o lenço estava com Iago, não soube
explicar o que havia acontecido com ele. Nesse meio tempo, Iago havia deixado o lenço no
quarto de Cássio para que ele o encontrasse.
Em seguida, Iago faz com que Otelo ouça escondido uma conversa sua com Cássio.
Os dois falam de Bianca, amante de Cássio, mas tendo ouvido apenas algumas partes da
conversa, Otelo ficou com a impressão de que eles falavam de Desdêmona. Nesse momento,
Bianca chega e Cássio lhe entrega o lenço para que ela providencie uma cópia. Otelo fica
extremamente transtornado ao imaginar sua esposa desprezando seu amor, dando o lenço para
outro homem. As consequências disso servem de desfecho para a peça. Iago, tentando garantir
que seus planos não sejam descobertos, tenta matar Cássio, porém sem sucesso, deixando-o
apenas ferido.
O general, completamente fora de si, acaba por matar Desdêmona em seu quarto.
Emília, ao saber do ocorrido, revela ao general que tudo havia sido tramado pelo seu marido e
que Desdêmona jamais havia sido infiel. Iago mata Emília e foge, sendo logo capturado.
Otelo, desesperado por haver assassinado sua esposa injustamente, comete suicídio.
Omissões de personagens e trechos da obra se fizeram necessárias na adaptação,
desenvolvida em conjunto pelo diretor e pelo elenco ao longo do processo de ensaios. Na
adaptação da Persona Companhia de Teatro, a trama de Otelo ganhou uma versão
contemporânea e muitos de seus elementos originais foram transformados.
Podemos destacar as transformações mais importantes como sendo: o espaço/tempo
onde se desenrola a história (em uma grande empresa dos tempos atuais), o fato do
personagem Iago ser transformado numa personagem do sexo feminino (Iara) e o mouro
Otelo ser interpretado por um ator de etnia branca.
45
11
O expressionismo foi um movimento artístico que surgiu no final do século XIX e início do século XX como
uma reação à objetividade do impressionismo, apresentando características que ressaltavam a subjetividade. No
expressionismo não há uma preocupação em relação à objetividade da expressão, mas sim com a exteriorização
da reflexão individual e subjetiva dos artistas.
47
criador e criatura. Em cena, apenas dois atores vivendo esse conflituoso relacionamento,
tentando encontrar respostas para as angústias geradas pelo simples ato da criação. Sandra
Meyer e Igor Lima fizeram parte do elenco de E.V.A. e o texto foi assinado por Christiano de
Almeida Scheiner.
Em 2004 foi a vez do espetáculo Castelo de Cartas, estrelado por Gláucia Grigolo,
Igor Lima e Malcon Bauer. Com texto de Rogério Christofoletti, o espetáculo traz à cena, a
exemplo dos outros trabalhos da Persona, personagens esteticamente não realistas que se
utilizam da complexidade psicológica para estimular no espectador, quem sabe, uma
autoanálise mais profunda sobre o ser humano. A trama conta a história de uma enfermeira
que se vê inserida no contexto de um casal que mantém uma estranha e intensa relação.
Dois anos depois, a partir de uma adaptação da peça teatral de Tennessee Williams,
The Glass Menagerie – no Brasil, conhecida como À Margem da Vida ou Algemas de Cristal
– nasce o espetáculo Nem Mesmo A Chuva Tem Mãos Tão Pequenas. A peça conta a história
de uma família sem pai. A partir de recordações do filho, a passagem do tempo é representada
diante dos olhos do público, em um jogo de encenações claro e aberto. No elenco, Gláucia
Grigolo, Igor Lima, Malcon Bauer e Melissa Pretto.
Em 2008, a Persona monta A Galinha Degolada, a partir do conto homônimo de
Horacio Quiroga. A peça conta a triste história de um casal que se vê diante do conflito diário
com a doença de seus 04 filhos, a idiotia – terminologia usada para doenças mentais à época
do conto. O nascimento no seio familiar de uma menina sem os sintomas da doença, traz à
tona todas as consequências do descaso e da falta de amor que sempre se fizeram presentes
naquela casa.
Esse espetáculo contou com a parceria de outro grupo relevante no cenário teatral de
Florianópolis, o Teatro Em Trâmite. No elenco, André Francisco, Gláucia Grigolo, Loren
Fischer e Samanta Cohen.
Em 2014, depois de um hiato de seis anos, a montagem de Otelo toma forma nas bases
estéticas da Persona Companhia de Teatro. Seguindo a tendência de todos os espetáculos
anteriores, a peça tenta enfatizar toda a complexidade emocional e psicológica do ser humano.
Além disso, a música, sempre presente de forma contundente, é fator determinante nas
dinâmicas empreendidas pelos atores em cena.
A partir de um olhar sobre os espetáculos da companhia, parece evidente que,
independentemente dos textos que lhes servem de base, seus personagens buscam, quase
sempre, posturas que fogem do realismo. Tal postura é acentuada na maneira com que certos
48
com a obra na qual a encenação seria baseada. À época da montagem de Otelo, a Persona
contava com apenas dois integrantes fixos: o seu diretor, Jefferson Bittencourt e a atriz e
produtora Giselle Kincheski. Os demais integrantes da equipe técnica e do elenco foram todos
convidados.
Para a montagem do espetáculo, o elenco foi escolhido cuidadosamente pelo diretor,
sendo composto por: Cleístenes Grött, no papel de Cássio; Giselle Kincheski, interpretando
Bianca; Luciana Holanda, no papel de Iara; Raquel Stüpp, como Desdêmona; Valéria de
Oliveira, no papel de Emília, além de mim, interpretando o papel de Otelo (ver Figura 12).
Fonte: Ensaio fotográfico para criação de material de divulgação. Foto: Caio Cezar. 06 de maio 2014.
Da esquerda para direita: Emília, Iara, Otelo, Desdêmona, Cássio e Bianca.
parte integrante da Persona Companhia de Teatro, além de trabalhar como produtora e atriz de
teatro e cinema.
Valéria de Oliveira é Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Regional de
Blumenau e Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Natural de
Itajaí, é coordenadora do Grupo Porto Cênico, naquela cidade.
O primeiro encontro do elenco, no dia 22 de novembro de 2013, serviu para que todos
pudessem se conhecer e saber um pouco mais sobre as ideias, objetivos, pretensões e
concepções que o diretor tinha em relação ao espetáculo. Iniciava-se um processo de
formação de grupo, com pessoas de diferentes afinidades e interesses. Uma mescla de
personalidades que parece estar refletida no resultado final.
A montagem de Otelo teve o seu início e todo o seu desenvolvimento no espaço
concedido pela Camarim Escola de Artes, no bairro Estreito, em Florianópolis. Uma sala
ampla e arejada no interior da escola, com aproximadamente 07 metros de largura e 09 de
profundidade, serviu de espaço de leituras, debates, criação e ensaios pelos 06 meses que se
seguiram.
O processo foi marcado pela estilização do espaço ficcional, assim como dos
personagens. A peça, escrita por volta de 1604, teve o seu enredo deslocado para a
contemporaneidade de uma empresa de grande porte. Como é possível imaginar, diversas
outras transformações ou adaptações se fizeram necessárias em virtude desta alternativa
estética.
O cargo de general a serviço do reino de Veneza ocupado por Otelo na obra original,
foi substituído pelo de presidente da empresa em questão. O personagem Iago, alferes de
Otelo, foi transformado na secretária do presidente, Iara. Desdêmona permanece sendo a
esposa de Otelo, enquanto sua ama Emília, ganha os ares de sua governanta. Cássio, que na
obra original é promovido a tenente por Otelo, nesta montagem é promovido à diretor da
companhia. Bianca permanece sendo a amante de Cássio, porém sem a alcunha de prostituta,
vivendo na montagem uma espécie de assistente administrativa.
Além dessas transformações, o deslocamento para a contemporaneidade influenciou
diversos outros elementos da encenação. O cenário é um deles e este ficou a cargo do ator,
professor de teatro e cenógrafo Roberto Gorgatti, que havia participado de outros projetos da
Persona, tais como “F” e E.V.A..
De maneira simples e dinâmica, o cenário foi totalmente concebido de modo a
transportar a trama para um ambiente contemporâneo e tinha o intuito de potencializar os
51
Outro elemento que sofreu influência direta da opção em desenvolver o espetáculo nos
tempos atuais foi o figurino. Ternos, gravatas, vestidos de noite e sapatos de salto alto
emprestam à peça um tom de refinamento. O grupo de personagens que compõe o espetáculo
parece estar acostumado ao ambiente da alta sociedade contemporânea e a elegância conduziu
as decisões na concepção do figurino, que ficou sob a responsabilidade da atriz, diretora,
professora de teatro e figurinista Betinha Mânica.
Outros elementos se deixaram influenciar pelo fato de uma obra clássica, escrita há
mais de 400 anos, ter sido inserida e representada num ambiente contemporâneo e totalmente
diferente do original. Movimentações e marcações, gestos, entonações vocais, postura
corporal, objetos de cena, maquiagem, iluminação e sonoplastia são alguns desses elementos.
Assim, um tempo considerável dos ensaios foi dispensado na discussão a respeito da
abordagem de cada um deles por parte do elenco, assim como por parte dos personagens.
Mesmo que o resultado da montagem apresente transformações importantes em
relação à obra de William Shakespeare, procurou-se fazer um estudo apurado de nuances
psicológicas e emocionais a partir do texto original no que se refere aos seus personagens.
Conforme já mencionado, a tradução da obra utilizada foi a de Beatriz Viégas-Faria e as falas
e diálogos originais do texto foram mantidos neste espetáculo.
A opção foi enfrentar a encenação utilizando o potencial criativo que o texto
proporciona, na medida em que o número de personagens foi bastante reduzido. Dessa forma,
se fez necessário um exercício no sentido de tentar sintetizar no corpo, na voz e nas ações,
todos os elementos da natureza humana das quais a obra está imbuída.
A intenção do diretor Jefferson Bittencourt, a partir de várias conversas com o elenco,
sempre foi manter a poesia do texto de Shakespeare mesmo que o universo ficcional fosse a
contemporaneidade de uma empresa. Sua perspectiva era de que correríamos o risco de perder
os laços afetivos e emocionais criados pelos personagens no decorrer da trama, se as falas
fossem transformadas para o coloquial por quaisquer razões ou opções estéticas.
Na tentativa de trazer à cena essa potência que é inerente à obra de Shakespeare, a
abordagem da direção parecia mesclar duas frentes de ação: colocar em prática as ideias
estéticas pré-concebidas pelo diretor ao mesmo tempo em que as composições criativas do
atores ganhavam espaço em cada cena. Encontrar a medida entre essas duas frentes conduziu
a maior parte do processo desta montagem.
Estas composições partiam de estímulos visuais, sonoros e narrativos trazidos pelo
diretor que, por opção própria, não costuma trabalhar com a preparação técnica dos atores.
Exemplo disso é o fato de que em nenhum dos ensaios de Otelo foram desenvolvidos jogos
53
e características próprias. Assim, mesmo que alguns personagens importantes tenham sido
suprimidos da obra original, a trama adaptada desta montagem se desenvolve de maneira
relativamente clara para o público.
O personagem Iago, único personagem que não se atém à regra da quarta parede, com
suas manifestações e intenções pérfidas expostas e direcionadas abertamente ao público,
parece ser o centro de onde partem as ações e as consequências das ações empreendidas pelos
demais personagens. Na montagem da Persona, a opção foi manter essa espécie de centro
gravitacional, ao redor do qual as conexões e interações entre os personagens orbitam.
Esta opção, segundo o diretor Jefferson Bittencourt, tem a ver com a narrativa do
espetáculo, que está focada no ciúme e em todas as consequências que dele advém. Dessa
forma, mantiveram-se os personagens que, na perspectiva da narrativa, conseguem manter a
potência da trama mesmo com cortes nos diálogos e algumas adaptações na história.
Como que expostos em um aquário para apreciação do espectador, os atores criam um
universo próprio. Esse isolamento parece ressaltar o envolvimento emocional de cada um dos
personagens e os apartes de Iago, justamente por este motivo, parecem ganhar potência e
prender a atenção do público ao que realmente está acontecendo, expondo os bastidores de
uma trama malévola.
Sobre essa nuance do personagem Iago, alferes do general de Veneza, uma das
características marcantes desta montagem é o fato de ele ter sido transformado em Iara, a
secretária do presidente da empresa. A adaptação textual perpassou por esse detalhe crucial
com muita atenção. Interpretado pela atriz Luciana Holanda, Iara logo se mostrou tão
maquiavélica quanto seu original masculino.
As implicações desta transformação estiveram presentes no processo de montagem e
certamente, emprestaram ao espetáculo uma gama de oportunidades únicas no que se refere à
sua leitura pelo espectador.
Um embate entre as energias masculina e feminina pode ter tido influência no
resultado final. Porém, é válido afirmar que tal embate não parece sobrepor as possíveis
motivações do vilão ou, neste caso, da vilã da trama, sejam elas guiadas pela inveja, cobiça ou
ambição.
Tais motivações podem se manifestar de maneiras diferentes entre homens e mulheres
e nesta montagem, essa questão não passou despercebida. A abordagem da direção porém, foi
no sentido de basicamente demonstrar a lealdade que o presidente de uma empresa espera de
uma pessoa com alto grau de responsabilidade dentro de sua empresa e que goza de sua total
confiança, seja tal pessoa um homem ou uma mulher.
56
O fato do cargo de diretor ser dado a um homem, no caso a Cássio, poderia gerar uma
reflexão mais profunda quanto às injustiças experienciadas pela mulher em grandes
corporações desde sempre. Este viés porém, não foi enfatizado no espetáculo, pelo menos não
conscientemente, permanecendo nas entrelinhas e em possíveis interpretações do público.
Assim podemos concluir que o personagem Iago, a partir de qualquer forma de
análise, é uma figura universal, desprovida de gênero, sendo única e exclusivamente a
representação da maldade. Usando de artimanhas que bem poderiam ser colocadas em prática
por homens ou mulheres, o personagem interpretado pela atriz Luciana Holanda ganhou uma
nova versão, tão intensa e ardilosa quanto a concebida por Shakespeare na obra original (ver
Figura 15).
Outro elemento importante nesta adaptação foi o convite feito a um ator de etnia
branca para interpretar o personagem Otelo. O fato do personagem ser originalmente negro
tem diversas influências no enredo da obra, determinando ações, intenções e falas de diversos
personagens. Foi preciso uma atenção redobrada neste sentido para que a adaptação desse
conta dessa transformação sem que a potência do texto se perdesse na encenação.
É pertinente citar duas influências importantes, dentre tantas outras, que o fato de
Otelo ser negro interpõe ao enredo da peça: a.) o segredo do romance entre Desdêmona e
Otelo e a não aceitação de Brabâncio a este envolvimento são devidos principalmente, à etnia
do general e b.) por ser de origem africana, o Mouro é visto como um bárbaro, desprovido
57
dos refinamentos da corte – sua posição de general é aceita única e exclusivamente pela sua
coragem e pela inegável lealdade que ele devota ao reino de Veneza.
Nesse ponto do trabalho, é pertinente esclarecer que a alternativa estética da direção
no que se refere à seleção dos atores e também dos personagens que figuram nesta montagem,
tem a ver com a escolha do tema principal que deveria guiar o espetáculo: o ciúme e suas
consequências. Segundo o diretor Jefferson Bittencourt (informação verbal), são diversos os
temas que gravitam pelo universo de Otelo, porém foi necessário fazer uma escolha,
transformando um texto original que pode gerar um espetáculo com mais de 03 horas de
duração em uma adaptação de 90 minutos.
Assim, a partir da escolha do foco principal para a montagem, foram feitos os cortes
na dramaturgia e consequentemente, os diversos outros temas da obra, dentre eles o fato de
Otelo ser um personagem negro, não figuram na montagem da Persona. A seleção dos
personagens que permanecem no espetáculo também parte desta escolha, dando conta de
manter o sentido do enredo resultante da adaptação.
Outra informação importante que se refere à esta escolha tem a ver com a estética
própria dos espetáculos da Persona e também com a maneira de trabalhar do seu diretor. De
acordo com Bittencourt, tratar das diferenças raciais que estão presentes nas relações de
convivência e poder na obra original demandaria um profundo conhecimento sobre o assunto
e uma extensa pesquisa.
Esse tema porém, apesar de potencialmente relevante em Otelo junto com o da
ambição, da inveja, da traição e tantos outros, não está no histórico temático da companhia.
Citando as palavras do próprio diretor (informação verbal): “eu não saberia como tratar do
tema racial de maneira adequada.” Assim, a alternativa de selecionar um ator de etnia branca
para interpretar este personagem ícone de Shakespeare parte de opções poéticas (referenciado
à dramaturgia), estéticas e retóricas (tendo sido escolhido o discurso sobre o ciúme).
Vale ressaltar ainda que em vários ensaios e encontros informais de toda a equipe que
esteve envolvida neste projeto, discutiu-se a extrema importância e a relevância de uma
possível discussão sobre o posicionamento social desta obra. Assim, da mesma forma que
foram tomados os devidos cuidados no momento de transformar Iago em Iara, o trabalho de
adaptação se atentou para as possíveis consequências dessa alternativa temática.
O desafio de interpretar este importante personagem de Shakespeare despertou
diversas novas percepções sobre a minha abordagem ao fazer teatral. O fato de Otelo ser
negro foi também um importante elemento de reflexão quanto à grande responsabilidade que
58
me havia sido dada. Foi necessária a articulação de novas ideias, novos conceitos e novas
visões a respeito da obra de Shakespeare como um todo.
Neste sentido, vale ressaltar a colaboração de muitas pessoas que interferiram de
diversas maneiras para que o espetáculo ganhasse corpo e pudesse estar em condições de ser
levado a público. Duas dessas pessoas considero como fundamentais no processo de
construção do espetáculo: o ator e diretor Roberto Mallet(12) e o tradutor e professor José
Roberto O’Shea(13).
Roberto Mallet esteve presente em dois ensaios do elenco, em um estágio no qual a
peça estava com sua estrutura cênica definida. Sua colaboração se deu no sentido da
preparação do elenco e no fornecimento de impressões diferenciadas sobre as abordagens do
grupo em relação às cenas.
Com sua vasta experiência teatral, Mallet supriu o grupo com orientações que
colaboraram na estrutura lógica das ações. Com apontamentos simples e precisos, propôs
dinâmicas que fizeram com que os atores/personagens buscassem a organicidade de suas
ações e falas através dos estímulos internos que o texto ou as interações em cena pudessem
gerar.
A colaboração do professor José Roberto O’Shea se deu de forma distinta e
igualmente importante. Com sua larga experiência literária e conhecimento profundo das
obras de Shakespeare, O’Shea forneceu ao elenco impressões e interpretações do texto até
então ignoradas.
Após assistir a um ensaio geral, forneceu ao grupo uma crítica construtiva relacionada
especificamente às entonações vocais e intenções presentes – e também escondidas – em cada
frase do texto. Tais recomendações e orientações reverberaram durante todo o restante do
processo de montagem e, certamente, ainda se fazem sentir a cada apresentação do
espetáculo.
A adaptação e a memorização de um texto intenso e profundo, as interações pessoais
com artistas com mais experiência na área, a disciplina e disposição necessárias nos ensaios, o
contato com diferentes visões e críticas às opções da direção e a exposição da minha figura
nas redes sociais no meio artístico de Florianópolis são apenas algumas das nuances que
12
Roberto Mallet é diretor, ator e professor de teatro na Universidade de Campinas UNICAMP. Em 1992 fundou
o Grupo Tempo, tendo dirigido diversos espetáculos desde então.
13
José Roberto O'Shea é bacharel pela Universidade do Texas, mestre em Literatura pela Universidade
Americana e PhD em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de Norte Carolina. Como
research fellow, realizou estágios de pós-doutoramento no Instituto Shakespeare da Universidade de
Birmingham e na Universidade de Exeter.
59
3.3. APRESENTAÇÕES
14
Daniel Veronese é ator, dramaturgo e diretor de teatro. Nascido em Buenos Aires, em 1989 fundou o grupo El
Periférico de Objetos, pesquisando a interação entre atores e objetos em cena.
61
diversos objetos distribuídos no cenário, além de uma estrutura técnica de luz e som que
serviam como elementos condutores da cena.
Fonte: Apresentação no dia 22 de maio de 2014. Foto: produção do Festival Isnard Azevedo.
Esses elementos foram encontrados na troca de energia com a plateia, que na sua
grande maioria aceitou as transformações que o espetáculo apresentou em relação à obra
original. A partir de feedbacks de vários espectadores, o espaço ficcional contemporâneo e
reconhecível, o vilão Iago transformado em uma secretária igualmente ardilosa e o mouro de
Veneza interpretado por um caucasiano da serra gaúcha causaram estranhamento, mas não
enfraqueceram a estética da peça.
Otelo havia passado pela prova da estreia com uma boa aceitação pela grande maioria
do seu público. Mesmo não sendo um espetáculo que possa ser considerado popular em
função de algumas alternativas estéticas – como a manutenção dos diálogos rebuscados –
Otelo ganhou uma certa popularidade à época de suas primeiras exibições. Assim, mais uma
vez, as percepções enquanto ator se ampliaram, dessa vez na questão da relação com o
público.
A experiência vivida na apresentação de Insólito há apenas alguns dias, instigaram
uma atenção cuidadosa quanto à minha própria consciência corporal e, principalmente vocal
no palco do Teatro Álvaro de Carvalho. O texto de Otelo demanda um domínio apurado de
longos diálogos, monólogos e solilóquios. Assim, a partir de uma avaliação rigorosa a
respeito da minha postura vocal até então, alguns ajustes neste sentido se fizeram necessários.
Observando à distância, hoje é possível identificar algumas características de atuação
que denotam falta de experiência e uma certa imaturidade artística da minha parte nas
primeiras apresentações de Otelo. Concluo portanto, que o aprendizado é algo que acompanha
permanentemente o ator, cabendo a ele estar aberto a mudanças, avaliar as escolhas, corrigir
as fraquezas e aprimorar as qualidades.
Nos dias 30 e 31 de maio, a peça foi apresentada no Teatro Municipal de Itajaí para
um público aproximado de quase 1.000 pessoas. Com dimensões de palco similares ao do
Teatro Álvaro de Carvalho, a estrutura cênica foi acomodada conforme o planejado. Havia
uma sensação entre o elenco e a direção de que a potência plena do espetáculo ainda não
havia sido atingida – se é que isso é algo possivelmente mensurável, principalmente com tão
poucas apresentações realizadas.
A cada nova oportunidade de apresentar a peça, buscava-se um aprimoramento nos
detalhes. Alguns pequenos ajustes foram feitos desde as apresentações em Florianópolis, tais
como marcações, movimentações, adaptação no texto, entonações, intenções nas falas, entre
outros. O teatro em questão oferece uma boa estrutura física e técnica, permitindo aos atores e
à direção continuar empreendendo experiências no sentido de encontrar a medida certa do
ritmo da peça (ver Figura 18).
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Fonte: Final da apresentação no dia 31 de maio de 2014. Foto: Ana Beatriz de Oliveira.
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Peça teatral criada a partir da demanda da disciplina de Direção Teatral I, ministrada pelo prof. Dr. José
Ronaldo Faleiro. Direção: Rafael Zanette. Elenco: Evelyn Dodl, Fabiana Franzosi (2014/1) e Suzana Silveira
(2014/2).
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amadurecendo. A potência do texto e das ações estimuladas por ele, a genialidade dos
diálogos concebidas pelo autor, a linha que une cada detalhe da peça em uma grande história
parece finalmente ter encontrado campo fértil no trabalho do grupo.
Como ator, sinto-me honrado e privilegiado em fazer parte desse processo. Os novos
significados que concebi a respeito do universo teatral, as novas percepções sobre a sua
prática e, principalmente, o que foi apreendido no meu percurso acadêmico parecem ter
convergido em pontos específicos, os quais ainda pretendo me aprofundar.
Percebo que as maneiras de construir o conhecimento em teatro se ampliam na medida
em que me disponho a entrar em contato com diferentes visões sobre esta linguagem artística.
O intuito é permanecer com o espírito aberto para o aprendizado e para a apreensão de toda
uma gama de novas sensações, emoções e possibilidades no caminho que escolhi como
profissão.
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4. CONCLUSÃO
Ainda, no caso de Otelo, havia a disposição de montar a peça seguindo rigorosamente o texto
da obra original, recheado de personagens espelhados da vida real.
Fonte: Apresentação no dia 22 de maio de 2014. Foto: produção do Festival Isnard Azevedo.
A experiência artística dos dois diretores é outro elemento relevante a ser considerado.
Aqui o ponto é de extrema divergência. Carlos Longo, diretor de Insólito, é acadêmico de
teatro, tendo este espetáculo como sendo o seu primeiro nesta função. Jefferson Bittencourt,
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diretor de Otelo, tem uma bagagem mais ampla, tendo dirigido atores e atrizes de renome no
cenário teatral florianopolitano. Além disso, suas peças buscam uma estética própria,
transitando pelo universo da música e do cinema.
Em nenhum momento essa discrepância de trajetórias entre os diretores interferiu na
minha disposição enquanto ator ou na minha percepção a respeito da potência dos dois
espetáculos. Vale repetir e ressaltar que a escolha para o papel de Otelo no espetáculo da
Persona se deveu ao fato do seu diretor ter assistido Insólito no Teatro da Igrejinha da UFSC.
Em algumas oportunidades, Bittencourt revelou verbalmente sua admiração pelas alternativas
estéticas e pelos rumos que o diretor de Insólito havia tomado para dar corpo à peça.
Da minha parte é seguro afirmar que novas percepções sobre direção teatral surgiram e
se fizeram fortemente presentes quando tive que, em paralelo a ambos os processos, assumir o
papel de diretor. O espetáculo Rastros – meu projeto na disciplina de Prática de Direção
Teatral – está profundamente marcado por traços estéticos apreendidos nos processos de
Insólito e de Otelo.
A respeito destes traços estéticos, as duas peças se diferenciam profundamente. Desde
os primeiros passos da montagem de Insólito, os elementos que caracterizam o Teatro do
Absurdo se fizeram presentes. Assim sendo, a estética teatral da peça esteve permeada por
uma estrutura que alterna elementos cômicos e imagens trágicas, tanto no texto quanto nas
ações dos atores, com figuras executando ações aparentemente sem sentido. Os diálogos são
recheados por jogos de palavras e caracterizados pelo nonsense. O enredo cíclico se dilata e se
comprime, utilizando-se da paródia e do desligamento da realidade.
Já em Otelo nota-se a importância dada à estilização do espaço e à apresentação de
personagens mais próximos do que se espera no ser humano, mesmo que estes estejam
imbuídos de traços não realistas. Deslocada para a contemporaneidade, a essência dos
diálogos escritos por Shakespeare se manteve, tanto no sentido quanto na forma. A estética do
espetáculo tem ainda a intenção de fugir do realismo puro, contribuindo assim para a
originalidade da montagem.
Outro fator que diferencia Insólito de Otelo é o número de atores, atrizes e técnicos
envolvidos em cada uma das peças. Considero importante ter considerado essa informação
como elemento de análise em função dos percalços enfrentados, assim como dos prazeres
experienciados, em trabalhar com diversas pessoas de formações, interesses e motivações
extremamente diferenciadas. Parece óbvio que essa situação se apresenta em qualquer
montagem teatral, já que o fator humano é determinante no processo e deve ser sempre
considerado.
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Já Otelo é uma obra que envolve diversos personagens e, mesmo tendo sido adaptada
para que tivéssemos 06 atores em cena, demandou uma administração de tempo e
disponibilidade dos envolvidos mais complexa. De qualquer maneira, o tempo de preparação
da cada uma parece ter sido suficiente já que o processo de criação continua se expandindo a
medida que os espetáculos são apresentados ao público.
Mesmo não tendo sido aprofundado anteriormente, um outro elemento que considero
relevante destacar nesta conclusão é a exposição da minha pessoa na mídia virtual, mais
especificamente na rede social Facebook. Este fato permeou as semanas que antecederam às
primeiras apresentações e encontra similaridade no desenvolvimento dos dois espetáculos.
Insólito está visualmente caracterizado pelas figuras que compõem o seu elenco: além
de mim, a atriz Thaís Putti, conforme claramente destacado na Figura 21. A concepção de
elementos de divulgação (cartazes, flyers e convites) tem por base o uso da nossa imagem,
basicamente a partir de Figuras de cenas da peça.
Fonte: Folder virtual divulgado nas redes sociais durante o 21º Festival Isnard Azevedo 2014.
Foto: Aline Dallarosa. Arte Gráfica: Rafael Zanette.
Otelo, de forma ainda mais contundente, traz o meu rosto praticamente como logotipo
de uma marca (ver Figura 22). Todo o material gráfico foi baseado no resultado de ensaios
fotográficos e, posteriormente, em registros das apresentações.
Assim, a minha imagem figura amplamente nos materiais de divulgação, tanto virtuais
quanto impressos dos dois espetáculos. Esse fato levanta algumas questões que serviram e
ainda servem de reflexão, até porque é uma situação nova e singular.
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Fonte: Folder virtual divulgado nas redes sociais durante a temporada de estreia em maio de 2014.
Foto: Caio Cezar. Arte Gráfica: Daniel Olivetto.
Parece haver um consenso geral de que figuras famosas que passeiam diariamente nas
diversas plataformas midiáticas estão imbuídas de um talento ou mesmo da capacidade
necessária para empreender quaisquer projetos artísticos. A minha reflexão perpassa também
por essa ideia: a responsabilidade em manter a qualidade do meu trabalho enquanto ator não
pode e não deve estar relacionada unicamente à exposição da minha imagem na mídia.
Encontrar o equilíbrio entre a consciência de um permanente aprendizado e a segurança que é
necessária para empreender os dois espetáculos sempre foi um dos meus objetivos.
Aqui reside uma das muitas facetas que o mundo do teatro reserva ao artista e que me
esforço em apreender nesta caminhada. O estudante de teatro que se torna ator parece que
nunca deixa de ser um estudante e talvez isso seja algo inerente à própria arte. É pertinente
afirmar que essa percepção não é necessariamente corroborada pela grande maioria dos
artistas, principalmente pelos considerados profissionais na área.
Em última instância, o intuito foi apreender e compreender todas os impactos que
Insólito e Otelo tiveram no meu atual estágio de aprendizado e experiência enquanto ator.
Refletir sobre a construção de significados no fazer teatral e sobre quais são os reais objetivos
que tenho para a minha carreira é ação permanente enquanto atuo em ambas as peças.
Além disso, acredito ser possível traçar um paralelo entre todo esse aprendizado e as
dinâmicas – práticas e teóricas – diariamente experienciadas na universidade, já que as duas
montagens ocorreram concomitantemente ao meu curso. Assim, finalizo o ciclo acadêmico
imbuído de uma intensa carga de sensações e emoções em paralelo a uma forma de pensar
mais lógica e mais racional a respeito do conhecimento prático.
Essas sensações e emoções foram fortemente geradas pelas relações humanas e pelo
resultado das experiências vividas neste sentido. Tais relações permanecem e a experiência
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das apresentações continua para os dois espetáculos. Portanto, concluo que o processo de
criação e aprendizado é ininterrupto, nestes e em quaisquer outros projetos. É válido portanto
afirmar que esse fato, por si só, deve servir de combustível criativo para qualquer artista.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIA CARONA. In: Cia Carona. Disponível em: <http://www.ciacarona.com.br> Acesso em:
26 out 2015.
GOGOL BORDELLO. Super Taranta! Los Angeles: Side One Dummy, 2007. 1CD.
LONGO, Carlos; PUTTI Thaís e ZANETTE, Rafael. Insólito. 2013. Não publicado.