Vous êtes sur la page 1sur 2

“RECEITA

Fazer um texto não é difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de
muitos estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos
ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas norte-americanas, juntei
conhecimento suficiente para produzir um pequeno tratado sobre o tema. Se o publico aqui
não é por vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser
compartido. Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia em que todo o saber humano
poderá ser reunido e centralizado em um único programa de computador, ou software —
que é o termo correto — e vendido a preços módicos nas bancas de jornal, postos de
gasolina ou virão grátis nas compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo. Aí vai,
portanto, a minha modesta contribuição. Como escrever um texto. Assim como para fazer
uma sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto
é necessário, primeiramente, selecionar as palavras que vamos usar. Se para os
ingredientes da sopa vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras recorremos ao
dicionário. Algumas considerações desnecessárias (porém interessantes). O dicionário é
superior ao mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço
das palavras não cresce a cada dia — como ocorre com os legumes no mercado —, posto
que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da sala,
o que seria impossível de se fazer com um mercado — não por sua forma, muitas vezes
retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a
estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo em vista que nosso objetivo não é
dar cabo da estante e sim escrever um texto). Há uma diferença básica entre os mercados
e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que fiquem
velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser velho é condição sine qua
non para estarem ali. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar
logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário ou vice-versa. Prova
disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom mercado, como mercado em
um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos
ao tema em questão: como escrever um texto. Agora sim, como escrever um texto, parte I:
Ritmo. Tanto os pergaminhos ciganos da Checoslováquia como os cientistas norte-
americanos estão de acordo em um ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez
aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom escrito
leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. Um método
infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos uma curta, como chá,
lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como halterofilismo, mononucleose ou
antropomorficamente. Assim que você sentir que já tem em mãos um bom número de
palavras curtas e longas — isso depende do tamanho do texto que quiser escrever —,
parta para a busca de um número igual de palavras médias, tais como sudorese, abobado
ou alicate. Aconselha-se anotar essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou
datilografá-las num computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições
infra-estruturais de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras
maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete num tronco de árvore ou com um
arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara, dependendo não só das condições infra-
estruturais como do efeito desejado. Isso fica a cargo do autor.) Parte II: Etiqueta ou bom
senso. Se para uma sopa de batatas precisamos de muitas batatas e para uma sopa de
beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para um
texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semi-erótico de palavras semi-
eróticas. Se o autor tem em vista um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as
palavras lantejoula ou meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se
poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É
sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita. Parte III:
Pontuação. Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras,
harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície
de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos
são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada
cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para
cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação. Algumas dicas: para um texto mais
picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se
destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula,
pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre
ou o curry na culinária. Parte IV: Prosa e poesia. Tendo os ingredientes e os temperos
todos à frente, é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de
texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do
outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando
pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se
um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão
da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está
terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso,
vale a pena seguir alguns passos. 1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições
como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações.
São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada
por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma
vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar
no exemplo a seguir: Antes: Havia casas azuis. Depois: Oh! Havia casas... Azuis?! Caso o
futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa,
não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente
selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho.
Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as
exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das
palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra
embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo. Os antigos pergaminhos da
Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da
clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que
essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca
demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem
o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas,
exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas. Por último, cabe
destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode
ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou
instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores
para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que
um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e
não precisa ser resfriado nem muito menos congelado. Apesar das considerações
anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa.
Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas
letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e
os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-
americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa:
todos, em algum momento, chegamos ao fim.” Antônio Prata

Vous aimerez peut-être aussi