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MARINA D, CARDOSO MEDICOS E CLIENTELA : SOBRE A ASSISTENCIA PSIQUIATRICA A COLETIVIDADE DISSERTAGAO BE MESTRADO Marina D, Cardoso MEDICOS E CLIENTELA: SOBRE A ASSISTENCIA PSIQUIATRICA K COLETIVIDADE Dissertagao de Mestrado apresentada a0 Programa de Pés-Graduagdo em An- tropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da U versidade Estadual de Campinas. Financiada pela Fundagao de Amparo & Pesquisa do Estado de Sido Paulo - FAPESP - sob a orientagao do Prof, Dr. Peter Henry Fry. . Campinas / 1986 UNICA uP {BIBLIOTECA CENTRAL 0s antropdlogos tém como tradigdéo darem o testemunho da sua experiéncia pessoal na elaboragdo do trabalho etnografico. Desse testemunho Malinowski ¢ seu indiscreto diério so os precursores, acrescido das contribuigdes posteriores dos an- tropélogos dilacerados entre o desespero e 0 insuspeito da si tuagdo e, particularmente, destacando como experiéncia profis. sional se confunde com a prdpria experiéncia do pesquisador. N3o pretendo dar esse testemunho, nem discutir as questdes me~ todolégicas presentes, sem divida relevantes, mas apenas uma pagina intimista. Esta dissertagado tem uma longa histéria, que, ao se constituir em um projeto intelectual © profissional, se confundiu com a minha histéria pessoal. Dela fizeram parte muitas pessoas, que participaram de dife- rentes formas, @ & a elas que agora agradego e oferto meu tra- balho. Algumas jd distantes, outras ainde perto, mas que sabe- rio se reconhecerem no(s) momento(s) que atravessaram essa his. téria. Pela sempre presenga criadora e inguiridora na elaboragdo e con- dugdo desta dissertagao, meus es- peciais agradecimentos ao Prof. Peter Fry, que 2 orientou. A Ana e ao Sérgio pelo trabalho © apoio preciosos. A Fundagdo de Amparo & Pesquisa do Estado de Sao Paulo pela con~ cessdo da bolsa de mestrado que permitiu o seu desenvolvimento "Todo o esforgo para compreen- der destréi © objeto pelo qual nos tInhamos interessado, em proveito de um objeto de natu- reza diversa; exige de nossa par te um novo esforgo que o elimi- na, em proveito de um terceiro, e@ assim por diante até que te- nhamos acesso 3 nica presenga duradotra que é aquela em que se desvanece a distingao entre © sentido e a auséncia de senti do: a mesma donde partiramos". (Claude Levi-Strauss - Prietee Prépicos). Partindo da constatagao empfrica de um elevado namero de ca- sos clfnicos diagnésticados como "doencga mental" e de um alto consumo de medicamentos psicotrépicos por parte da populagao de um municipio do Estado de Minas Gerais, esta dissertagao procura, através da observagao do.modo como é elaborado odiag néstico da "doenga mental" na pratica médica local, abordar a problemitica da assisténcia psiquidtrica na atualidade sob um ponto fundamental, qual seja, a sua extenso como atendi- mento médico terapéutico & coletivicade. Para tanto, inicia com o relato de um dia de consulta médica no Centro de Sadde municipal, a partir do qual, contextuali- zando a reestruturagao do modelo assistencial pablico que pre dispée as_condigdes polltico-instituclonais para o tratamento ambulatorial dos quadrés clinicos da "doenga mental", confron tar dois discursos sobre a etlologia e a terapéutica das enfer midades: 0 discurso psicopatolégico dos médicos locais e o discurso sobre o "nervoso" dos pacientes, a partir dos quails 0 diagnéstico da “doenga mental" & elaborado e a terapéutica medicamentosa prescrita. Procura observar desse modo, "pari passu" a reformulagdo do modelo psiquidtrico, o exercicio da praética médica com a inte gragdo da sintomatologia e¢ terapéutica psiquidtrica ao , seu campo assistencial de um lado e, deoutro, a prépria modifica g30 da experléncia social do tratamente terapéutico dos paci- entes que passam a ser integrados ao atendimento prestado. PARTE I PARTE il Iwbice DIA 10 DE SETEMBRO DE 1982.. CONSULTORIO ME t.1 = Do controle intra-hospitalar a pre vengao comunitdria da "doeaga men- tal eee 1.2 = Dispositive de consulta: médico versus paciente? Sobre a pesquisa 1.3 - Higragdo e urbanizagao como con~ texto etnogréfico vee sce eee eee eee PRATICA MEDICA: ELABORAGAO DO DIAGNOSTICO DA "DOENCA MENTAL", 11.1 = © lugar da relagao médico-paciente na produgdo da “doenga menta!" 11.2 - Consulta: a elaboragdo do diagnés- 11.3 - Terap€utica: a eficdcia medicamen- BOSE cece cere eee eee 1L.4 ~ Diagnéstico: racionalismo ou repre Ee 11.5 - Em diregdo a um discurso sobre social a1 22 35 51 67 87 39 107 V7 PARTE III - CLIENTELA: REPRESENTACUES SOBRE A "BOENCA DOS NERVOS" 2.2... eee eee eee ee 140 11.1 ~ Por onde a doenga aparece como uma reflexdo sobre a relagdo individuo -sociedade-trabalho 165 1f1.2 - Corpo e doenga: representagées e praticas terapéuticas populares... 179 111.3 - Tratamento médico: da legitimida~ de & manipulagdo ..--++ee se eevee 192 111.4 - "Doenga dos Nervos e "Doenga da Cabega": categorias distintivas.. 202 1f1.5 - 0 desregramento da razao e o con~ troie terapéutico ss.ss-eseeee eee 234 CONCLUSKO . occ eee eee eer eee eee eee eens 259 BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTOS CITADOS 264 PARTE I - DIA 10 DE SETEMBRO DE 1982. CONSULTORIO MEDICO 1.1 = B0 controle intra-hospitalar @ preven- go comunitaria da "doenga meatal" ... - 1.2 > Dispositive de consulta: médico versus paciente ? Sobre a pesquisa .......... 1,3. - Migragao e urbanizagao como contexto etnogrdfico ..............- cence 22 I - BIA 10 DE SETEMBRG DE 1982 - CONSUTORIO MEDICO 9:30 da manhd. Centro de Saide. Itamarandiba, MG. 0 médico chega ao consultério ambulatorial para atender a clientela que o aguarda na ante-sala do Centro portando as “'guias de consulta’ marcadas para o dia. A auxiliar de saide chama a primeira paciente a ser atendida que, entra na sala reservada As consultas e senta-se na cadeira posta do lado esquerdo da mesa do médico. 12 consulta - Médico: Que que foi? Paciente (mulher): meu problema 2 .., na base de uns quatro dias, nao co mo comida de sal, eae direto. Tem hova que eu té.catma @ ago- va @ 0 estado de nervo mesmo que passa. Num tenko apetite nado. Sinto o estamago vaaio, vi mito seco. Passando sé com eaq fs. Nédico: Yoo’ Ja fot operade ... Paciente: Do iitero, tava com 18 anos. Dew inflamagao no utero, num podia ter mate Filho. Na época anda- va de gatinkas, num aguentava o peso do corpo. 2 t6 sentinde também doutor dor de eabega 6 a menstruagao num vem de jeito nenhum ... Médico: E eam casa, como vdo ae coteas? Paciente: Muita contrartedade, trabalhan~ do demats, acho que deve ser isso. Sinte dor no eetdmago mae acho que @ café e eigarro. Fumo demats! § etgarro de pa~ tha. Bese dia a dor tava pare~ cendo que dava um nd, igual eu tivesse filho. Qu eseonder, mas num deu jetto ndo. valet vou eonsultar o doutor. Médico: # 0 corrimento? Paciente: Corrimento demate! Grosso, a- quele cheivo ruim de uvina que 30 0 senkor vendo, um mal chet vo terrivel, tgual carniga ... triste meama! Onte memo eu ta va com uma dor desae lado aqut, dando umas pontada. Médico (a mim): WeurStéea! Criou neurose em cima da ligagao de trompas. lum podia ter filho e marido pression, d@ nisso. Mutta in- satisfagae, 0 médico pede & paciente que se deite na mesa clinica e in cla o exame ffsico: apalpacdo, ausculta cardfaca, ausculta pulmonar espressao, ao qual sio submetidos todos os pacien- tes para a observagao dos sintomas clfnicos e controle de de terminadas doengas como chagas, tuberculose e hipertensao ar terial. . ‘ Terminado o exame, o médico avia receita de medicamento psi cotrépico. A paciente sai. Entra a segunda paciente. 22 consulta - Paciente (mulher) sentando-se: Comprimido asabou seu doutor! tem — duas notte que num durmo diretto e @ gente fica com medo ... Médico: ‘Eo jutzo? Paciente: 0 fuiso ta bom, gragae a Deus! 25 comendo bem. Num td . o vemédio aeabou e fico preocupa- da em ndo dormir de notte e vor +4 ae cotsas da cabega, do ner= voso. {0 médico me informa que ela ja esteve inter- nada para tratameato psiquiatrico). Médico: ido € 0 S ...? {a mim): Pa com medo de enfraquecer a cabega, fica bem nat. Paciente: Fico com medo de vortd pra 14. Rive que tv pra Belo Hortzon- te, me mandaram pra Barbacena. Ganhet muito remédio, gragas a Deus @ curei! Uma dotdaria ta! fudo gente dotda, uma brigaia~ da, em tempo de matar a gente. Mas muito bom. Prato muito bom, Me levaram no Gnibus; a moga le falou assim: vat com Deus! Eu falet de vorta: fiea com Deus! Mas também o resto é gen te tudo dotda ... Cé ouviu seu doutor, morreu o rapaz. Quase movpt de chorar. 0 Miguelztnho, a mde dete é minha cunhada. Pots num @ que ele #2 matou. Anteontem morreu o trmio dele e agora isso. Perder dois fi- tho de um dia para outro, Tris 5 teza, doutor! ~ Enquanto a paciente fala, o médico pede para que ela se deite na mesa clinica e inicia o exame fisico. Terminado o mesmo, avia a receita de medicamento psicotrépicor Paciente: Toma os dots, na? (a mim): 0 de manh@ é pra eabega fraca, tem o de de notte, pra dormir. Sai, entra a terceira paciente que se senta. consulta - Médico: 0 que a senhora tem? Pactente: (mulher): 02 pé td inflamado e tem também uma dov de cabega, déi no corpo e farta de vonta~ de. B dom vin ... tudo me dt, um calordo dentro e 0 reumatis mo ataea. Dinheiro num tenho prd compra vemédio. Fiz con- sulta com Dv. ... é de hoje que eu tenho sofrtdo, arriei, von- tade de so ficar dettada e¢ eu num gosto de deitd ndo. Tem um earogs aqui, que era prd ope- rar 14 em Belo Horizonte, mae fiquet com wedo de morrer 1a. Num detmet nao. Q médico levanta, a paciente deita na mesa co. Term para o exame clf ado o exame, o médico avia rey ceita de medicamento psicotrépico. consulta - Paciente: Crianga levada pela mae. Rea- lizando o exame o médico diag- nostica gastroenterite e manda internar a crianga no hospital local. 58 consulta - Pactente: Crianga levada pela mae. Apés o exame o médico manda inter~ né-la no hospital, Diagnésti- co: gastroenterite. consulta Paciente: Crianga acompanhada pela me. Controle de insuficiéncia car- dfaca. Paciente (muther}: Peguet gvtpo. Dor de gargania, ta tudo doendo aqui @ dop de cabega, muita dor de cabega. ‘ consulta Wao tad sentindo mats nada? Paciente: £ uma dor no pescogo. Queria atestado pra levar ... 0 médico faz um rapido exame clinica e avia rect de medi- cemento. 2 consulte - Paciente: Crianga acompanhada pela mae. Controie médico. Paralisia dos membros inferiores. Durante a consulta a Auxiliar de Sadde entra e pede o aviamento de uma receita para uma paciente sob controle psigquidtrico ambulatorial que o filho veio pegar. Terminado 0 exame da crianga entre a préxime paciente, sea~ tando-se na cadeira ao lado da mesa do médico. consulta - Paciente (mulher): 7d passando mal, dou- Médico (a Paciente: wadico (a Paciente: Médico (a tor, cocetra demais na cabega, dor no petto, no coragao ...- gem vontade de comer, sem dor- mir... Tem verme, porque eu einto dor na barviga. Mats & una eoeeiva exquistia, 63 ea- queetda, di zoetira, 23 até com vergonka de falar, num td fa- lando direito. Aagquela friagem ng eabega, purgagao no ouvido, quai uma pereba na cabega, e0- go, aquela dor danada da tas 2a, quase prd avranear 0 casco da’ cabega de tanto cogar @ tem hora que dad aquele calor esquisite. Bem hora que sinto um eatorao que parece que vem da cabeca, aquela cotsa eoquisita e@ essa cocetra, TG esquectda, Dy.... ecquecida demais! Medo de per- der o juizo. lo médico me in- forma que o pai dela e um tio tinham se suicidado). Agquela contvartedade! fu que faltow poyeo tivesse tonade remédio pra morrer, Tenho fé em Deus que eu n@o vou ficar com taso nao. 8 fraqueza mesmo da eabe- ga. Dota tanto onte de noite que até pulava pra cima. Muita goisa esquisita, uma dor na bo ca do estdmago que passou pra bavriga e déi tudo agora, nos petto, aqui do iado do eora~ gdo ss. nim): & mde de dose fitkos, ba com medo do marido targar dela. Vivo doente, num custa dete gostar de outra e despresar eu 8 eu vireo e falo que sou nervg sa demats, doente e ele tem me do, que o corpo num dd mais. Te nho uring solta, urtno a notte toda @ minha filha também ... mim): 4s quetaas da mae cdo ge ralmente acctmiladae pela ft- tha, B nervosa, tadinha! nim): B confitbo no ambiente, passa 2 apreeentar 0 eomporta~ mento da nde. 0 médico passa a realizar o exame clinico e receita medica~ mento psicotrépico. Paciente sai- Médico (a mim): Eeses casos séo mais di- ficeis que os pstedtteos. En- tra problema financeivo, desa~ juste familiar, trauma de in- Faneia, problema afetivo, vela etonamento familiar, uma série de coisas” que esta por tras. 0 psiedtico reage ao tratamen- to, esses nao. Problema sério de ajustamento familiar. Entra o préximo paciente. 102 consulta -Paciente: Criange levada pela mac. Exame clinico indica provavel gas~ . troenterite. 0 médico manda internd-ia no hospital. 112 consulta = Paciente: Crianga levada pela mie. Exame - clini¢o indica provavel gas- troenterite. 0 médico manda internd-la no hospital. consulta -Paciente (mulher) Médico (a mim quando a paciente entra): Essa at tem gastrite nervosa. Que voeé ta .sentindo? Paciente: Dor de cabega demats a dor piora quando tomo tette, eomo carne de» pores, ptora quando como. Uma dor no esto- nago.. Médico: Yoo! estd nervosa. Paciente: Sou nervosa demais. Médico: Tem que procurar . controlar oe nenvos, aceitar mats as coisas. Yoo #4 ineomodada ou perturba da com alguma cotea que ta a contecendo? Paciente: Wo, num tem nada néo. Querta pedir pro cenhop me arranjar um atestado, prad levar pro meu mavido. Comegou a trabalhar a- gora. Atestado pra ele Levan ld, que faltou que. tava toman do conta de mim. ~ 0 médico faz o exame.clinico ¢ avia-receita de medicamento psicotrépico. Paciente sa Médico (a mim): Tei uma dor de estdmago que néo methora com nada. # problema interno, familiar, que somattza. Entra o praximo paciente. 132 consulta -Paciente: (homem): £3 com uma dor que . tem hora que nem pespirar eu guento. Dé eontinuo a cinco dia. Bum t8 conseguindo traba~ thar nao, acho que fot mal jet to. Querta ver se o ganhoy dava um atestado. 0 médico pergunta sobré a localizag3o da dor e inicla o exa~ me ffsico. Terminado o mesmo receita para o paciente medica~ mento psicotrépico. 142 consulta -Paclente (mulher): Uma tosse, aperta de noite e de manha 0 médico faz o exame clinico e diagnostica provavel alergia, aviando receita de medicamento antialérgico. 153 conulta -Paciente (homem): Carogo aqui na perna. Médico: 2d com febre? Paciente: Calor passagetro, febre nao. fem 12 dias, ta é lLatejando, ferroando. Hédico: Voe® trabalha com o que? Paciente: De pedreivo, carregando peso. Deve ser isso. Feito o exame ciinico, o médico receita medicamento anti -in Flamatério. ve consulta -Paciente: Crianga ievada pela mie. 0 exa me clinico indica gastroente- rite € 0 médico solicita a sua internagdo hospitalar. 1 17% consulta -Paciente (homem): 75 mamenda com eagotbo, deu dor de cabega ontem e ho- ge tontura e@ dor de eabega de novo. Dor no petéo, vontade de vomitar. Acho que a pressao ta alta. Feito o exame clinico, o mé © receita medicamento psicotrd pico. 0 paciente pede atestado ao médico, que o concede. Entra a Gitima paciente. 182 consulta -Paciente (mulher): 0 médico levanta 4 entrada da paciente e passa a observar © peito desta que esta infla~ mado. Diagndstico: escabiose infectada. Durante o exame a pa ciente queixa-se de dores peitorais, insdnia, coceira, “panca das na cabeca", "“afogueamento", Terminado o exame, o médico avia receita de pomada anti-infla matéria ¢ medicamento psicotrépico. Finda as consultas do dia. Como fragmento de um caderno de campo, ete préprio fragmentado por consistir em anotagoes feitas duran- te o periodo de observagdo das consuitas médicas no Centro de a, Nordeste de Minas Gerais, Saiide do municipio de Itamaran © relato do dia de atendimento médico apresentado 6, entretan to, elucidativo das orientagdes desta dissertagao que o toma como tema central para o seu desenvolvimento. Observa-se, por exemplo que, das 18 consultas relatadas, em 8 delas aos pacientes foram receitados medicamentos psicotrépicos, sendo que, em algumas dessas consultas, os quadros clinicos apre~ sentados pelos pacientes foram explicitamente associados pe~ lo médico a categorias nosolégicas psiquidtricas referentes ao diagnéstico da “doenca mental", 0 fato do médico dirigir as suas observagdes e comentarios sobre os quadros clinicos dos seus pacientes a mim, coma observadora das consultas que estavam sendo realizadas, nao modifica substanclalmente © modo como essas se processam, a ndo ser revelando a "situagao" particular de pesquisa na qual fof transformado o consultério médico ambulatorial, com o préprio médico expondo para o pes quisador os quadros sintomatolégicos que ele associa com al- gum tipo de manifestacdo psicopatoldgica, Desse modo, se o relato das consultas apresentado tem por objetivo oferecer uma deserig30, a mais préxima possfyvel, do modo como elas se processam no consultério, alteradas e mediatizadas que est3o pela presenca de um observador-relator, o faz dentro de uma “'situacgao de pesquisa" que, ao procurar elucidar ° modo como @ elaborado o diagnéstico da "“doenga-mental" na pratica médica iocal, utiliza tanto os depoimentos dos pacientes quanto os comentarios feitos pelo médico sobre o cardter das enfermidades que os mesmos apresentam como ele mentos fundamentais para a compreensdo do processo de medica lizag3o da clientela por psicotrépicos, ponto de partida des ta dissertagdo. Deixando por enquanto, as implicagdes metodo légicas desse tipo de pesquisa, a qual retomaremos oportuna- mente no item 3 desta parte da dissertacSo, como exemplo do lo. alcance desse processo, a tabela anexa na pagina 127 do to~ tal de consultas observadas durante o perfedo de uma semana no mesmo local, especifica que dentre 85 pacientes consulta- dos (45 mulheres, 26 criangas. |4 homens) a 49 deles (43 mu~ heres © 6 homens) foram receitados medicamentos psicotrépi- cos. Destes, 21 apresentavam outras patologias de natureza orgdnica identificadas no exame clinico: doengas caren= cials, parasitarias e infecciosas. Por esses dados, o uso de medicamentos psicotrépicos, ao qual se encontra associado o diagnéstico da "doenga mental" ou a presenga de algum ele- mento considerado pelo médico como de natureza psiquica na caracterizago etiolégica dos sintomas que o pacieate apre- senta, foi indicado a 56% da clientela consultada e relacio nada na tabela. Quando se observa ainda a’ composigdo dessa clientela a qual apresenta uma alta taxa de — consulentes criangas (35%), esse percentual tende a se elevar englobando @ quase totalidade dos pacientes adultos, homens e mulheres, tomados em conjunto. De dados como esses, relatives ao diagnéstico da “doenga mental! e ao consumo de medicamentos psicotrépicos em larga escala por parte da clientela médica local (coma po der-se-& observar também por outros dados a serem citados no infeio da li parte), partiu de fate essa dissertagdo como pro posta de pesquisa que, ao pretender investigar sobre o pro- cesso social subjacente 4 conformagdo desses dados, esta- beleceu analitica e metodologicamente, como eixo central para tal, a situagdo de consulta médica relatada que os dis- poe. Desse modo, tomados inicialmente como elementos indica- dores de uma outra coisa, a qual era necessdrio investigar, 0s dados toraaran-se os elementos demonstrativos do préprio modo como s80 produzidos, qual seja, @ partir da relagéo estabelecida entre o médico e © paciente no exercicio do ato clinico, A aparente imediaticidade dessa formulagao subentende, entretanto, todo © processo polftico-institucio nal que passa a dispor o consultério médico ambulatorial como local de tratamento psiquidtrico pablico de um lado e, de outro, a experiéncia concreta do exercicio da pratica te- rapéutica médica confrontada com a de uma clientela recente mente integrada ao atendimento assistencial. Pois,sao justa- mente em relagdo a esses fatores, que os dados anteriormente assinatados e a prépria situagado de consulta como “objeto" © “lugar! de pesquisa, passam a ganhar re‘evancia analitica @ podem ser criticamente avaliados em relag3o os objetivos dessa dissertagao. Com efeito, a constatac3o empfrica de um pro- cedimento sistematico de diagnose e tratamento médico local de "doengas mentais", suscitava questdes que ultrapassavam a mera colocag3o em causa de uma "evidéncia estatistica" para configurar uma “"situagdo de pesquisa", que sugeria aproxima- gSes ou dava margem a correlagdes com dois outros processos concomitantes, observados na mesma drea geografica: a exten- so do servica médico-psiquiatrico 4 comunidade local em decorréncia da reestruturacdo do modelo assistencial publico © a migrag30 para o centro urbano do municipio de grande par te da populagao rural, ocasionada por mudancges na estrutura social da produgao. Dentro desse contexto, uma primeira correla 12. cio se impunha: o fate desses dois processos possibilitarem 0 acesso regular ao atendimento médico, deficitario anterior mente pela caréncia de uma estrutura para sua prestagao e dificultado pela distancia e relative isolamento no qual es- sa populagdo, en sua maior parte pequenos produtores agrico~ las pauperizados, habitava. Basear entretanto, essa correlagao.no argumen. to segundo o qual seria a extensdo dos servigos assisten- ciais e, conseqlentemente,a maior acessibilidade da popula~ G50 ao atendimento prestado, que propiciava a abrangéncia e o crescimento do diagnéstico da "doenga mental", o pressupos to cidssico de uma pretendida relagao entre a extens3o dos servigos de sadde e a sua adequagao a uma demanda pré-exis tente a ser finalmente revelada e atendida, antes colocave outros problemas do que propriamente os esclarecia. Primeiramente, a extensdo da assisténcia psi- quiatrica 4 coletividade no & mera consequéncia de um pro- cesso linear de incorporagdo progressiva dos diversos seto- res populacionais ao atendimento piblico prestado. Também im plicou uma reformulagao do préprio modo como essa assistén- cia passou a ser concebida © operacionalizada pelas politi- cas de sadde piblica no setor. Desse modo, para que fosse possfyel a emergéncie da diagnose @ terapéutica clinica da Ndoenga mentai", tal como fol relatada na sua ocorréncia no consultério médico ambulatorial, foi necessdrio coda uma re- modelagao do modelo assistencial psiquiatrico de tratamento. Com o "descentramento" da assisténcia prestada nas institui~ gbes asilares, que até entSo detinham o seu controle, para a sua incorporagae 3 rede bdsica oficial de cuidados médicos 13. e previdencidrios 4 coletividade, que so dedas as condigées institucionais para o tratamento ambulatorial dos casos de “doenga mental" a serem reconhecidos © medicados terapeu- ticamente. Do mesmo modo, essa remodelagdo do modelo as~ sistencial também nao se reduz a uma reforma de carater pura mente administrativo. Modificando-se a forma como a assis~ céncia psiquidtrica piblica & prestada, paralelamente esta sendo modificado o préprio campo da sua pratica, tanto insti. tucional quanto técnico-terapéutica. Modificagdes simulta- neas que dizem respeito portanto, a uma mudanga no campo do conhecinento e da intervengao psiquidtrica e se referem aos processos sociais e institucionais que as possibilitam. Com-o avango técnico e cient{fico na produgso dos medicamentos quimicos que controlam as manifestagGes sin tondticas da ‘doenga mental" e a introdugdo das terapias psi colégicas ao seu quadro assistencial, atualmente a psiquia- tria tende a uma modificag’o das suas praticas internas e de seus mecanismos de regulagdo institucional, particularmente ao transporeremodelar o campo terapéutico concebido — pelo dispositive da inter-relac&o, préprio ao precesso psicanali- tico, na estrutura asilar (1). Procura-se assim, promover, dentro de uma dtica pretendidamente mais humanista e progres. sista de tratamento, a reforma das instituigdes manicomiais, (1) Para uma melhor caracterizagdo a andlise desse processo © suas implicagdes no atendimento terapéutico ver BIRMAN, Joe! - "Demanda psiquidtrica e saber psicanalftico"™ in FIGUEIRA, Sérvulo (org.) - Sociedade e doenga mental. Rio de Janeiro, Campus, 1978. ay classicamente identificadas como exercicio da praética psi- quatrica, Como parte desse processo de reformas institu cionais, paralelamente a assisténcia psiguidtrica passa a ser integrada, pelas polfticas de saide pdblica no setor, ao sistema de prestagio de servigos médicos e previdencidrios a coletividade, como atendimento terapéutico-preventivo a ser realizado de forma extensiva nos ambulatérios e centros de salide. Por um iado, se o alto indice de prevaléncia assim como a inoper&ncia da estrutura asilar estdo na base dessa remodelagéo do modelo assistencial psiguidtico pabli- co (e nesse sentido visa a uma adequagao entre a forma de prestagao de servico e a "'demanda avaliada") por outro, sub- jacente tanto @ inovagao da pratica terapéutica quanto a ex- tensdo do atendimento prestado, encontra-se a formulagdo de uma dimensdo "psicossocial" na caracterizagaéo etiolégica das "doengas mentais" que, ao orientar as diretrizes ministe- riais para uma “Polftica de Saide Meatai", passa a postular "doenga mental! coma modalidade preventiva que requer o con- trole terapéutico dos individuos e das relagdes interpes- soais, percebidas como fonte de tensdes e problemas que es- tarlam na origem dos distGrbios psTquicos. Problematizando dessa maneira, a relagSo en- tre "doenga mental" e soctedade, a extensdo do modelo Insti- tucional modificado para as inter-relagdes que se processam no todo social, passa @ ganhar relevancia fundamental he campo da assisténcia psiquidétrica. Dentro desse contexto, o

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