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Histórias (In)Confessáveis

da Nossa Terra e da Nossa Gente


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pimentel, Paulo Cavaca


Histórias (in)confessáveis da nossa terra e da
nossa gente / Paulo Cavaca Pimentel. – São Paulo :
All Print Editora, 2010.

ISBN 978-85-7718-689-1

1. Covilhã (Portugal) - Descrição 2. Crônicas


3. Histórias de vida I. Título.

10-10527 CDD-869

Índices para catálogo sistemático:


1. Crônicas : Literatura 869
Histórias (In)Confessáveis
da Nossa Terra e da Nossa Gente

Paulo Cavaca Pimentel


HISTÓRIAS (IN)CONFESSÁVEIS DA NOSSA TERRA E DA NOSSA GENTE
Copyright © 2010 by Paulo Cavaca Pimentel
O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário do Direito Autoral.
Proibida a venda e reprodução parcial ou total sem autorização.

Projeto gráfico e diagramação: José U. Terra Nogueira


Capa: Paulo Cavaca Pimentel
Foto da capa: Jorge Santos Silva

Editoração e Impressão:

ALL PRINT EDITORA E GRÁFICA LTDA


www.allprinteditora.com.br
info@allprinteditora.com.br
(11) 2478-34
Introdução

A o escrever este livro, o autor covilhanense, não


teve a pretensão de produzir uma obra literária.
Até pelo facto de viver no Brasil desde 1975, a forma de
escrever, reflete muito a mistura da língua portuguesa
usada no Brasil e a usada em Portugal.
Ao usar uma linguagem simples, descontraída e
coloquial, e às vezes até o uso de calões ou pequenos
“palavrões”, o autor pretendeu descrever as crónicas e
histórias ao leitor, da forma mais realista possível, e com
o objetivo de melhor retratar uma situação.
A idéia do livro, surgiu dos seus amigos, a partir da
troca de fotografias no Facebook. Uma “brincadeira” em
que o autor ao publicá-las, sempre colocava uma histó-
ria alusiva à mesma.
O livro é realmente uma viagem ao passado reche-
ada de histórias, da sua infância e da sua adolescência,
umas divertidas, outras nem tanto, umas mais nostálgi-
cas, outras nem tanto, umas verídicas, outras nem tanto,
mas que proporcionam, com certeza, uma leitura fácil e
prazerosa.
O relato dos detalhes, dos episódios, das passagens,
a expressão dos sentimentos e os nomes mencionados,

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são fruto de recordações emocionadas do autor e dos
seus amigos, muitos deles reencontrados depois de qua-
renta anos, no Facebook.
O sua intenção foi deixar registadas para a eterni-
dade, passagens verídicas de seu passado, muito feliz,
temperadas pela ingenuidade e pureza, da época e da
idade, que manteve na sua memória e no seu coração.
Não teve também o autor, a intenção de qualquer
ofensa às pessoas aqui descritas.
Não fosse a ajuda e participação de muitos amigos
de infância, com certeza não teria sido possível viabili-
zar este livro.
No decorrer da leitura, percebe-se na sua narrativa,
muita emoção e um profundo sentimento de amor pela
terra natal, pela sua família e pelos seus amigos de in-
fância e adolescência.

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Prefácio

H istórias como estas com que nos vamos encon-


trar trazem-nos cenários de cores, de cheiro a
neve, a urze, a beira-mar, cenários de amizade e abraços
que palavras, gestos e olhares foram dizendo. São tre-
chos de vida que agora, aqui, se partilham e nos levam
a viajar no tempo, a fechar os olhos e a trazer para o
agora aqueles rostos, aquelas músicas, aqueles sorrisos,
aqueles momentos inesquecíveis que permaneceram...O
arroz que a mãe preparava para um dia inteiro de ski
na Serra, as canções que aligeiravam as longas e infin-
dáveis viagens, o olhar atento do amigo que era a alma
da piscina, as palavras atentas do herói e grande amigo
a incentivar o pai na compra do primeiro par de skis, o
pai que era um pai, que amava, que levava o filho pela
mão a saborear as vivências dos lugares que agora per-
tenciam a ambos, os amigos, os amigos, os amigos…que
perduram. Paulo Pimentel desvela, sempre, um afecto
profundo, um apego que lhe ficou em relação a todos os
que nestas histórias moram e que ficaram a fazer parte
da sua narrativa, da sua história de vida; é seguramente
um sinal de que também ele morou neles, nos seus luga-
res especiais de afecto. As suas vivências, aqui celebra-

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das, remetem para um passado que é tornado presente
quando se evoca, quando ainda se sente a emoção nas
palavras que são do agora, quando se vê a forma bela
como todas as vivências significativas foram arrecada-
das e renascidas, revividas, num trecho expressivo do
hoje. E é talvez aí o ponto de encontro de todos nós, atra-
vés deste livro – o regresso aos tais cenários de cores, de
cheiro a neve, a urze, a beira-mar, aos que desvendam
amizades, palavras gestos e olhares que terão delineado
e adornado trilhos de vida nossa, ficando-nos a mensa-
gem bela de que temos pessoas que ficam para sempre
connosco, num passado infinita e infindavelmente pre-
sente, sempre que as evocamos nas nossas recordações,
sempre que sabemos que elas são parte integrante da-
quilo que somos, da nossa existência, da nossa essência.
Há pessoas que já o sabem, outras poderão relembrá-lo,
com o desafio subtil que o Paulo Pimentel nos coloca
com este livro. Quem quer vir brincar comigo, ali, a de-
senhar com palavras o que nos ficou de quem amámos e
nos amou? Eu quero…

maria joão saraiva


Agosto de 2010

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E foi assim, que o livro começou:
“Não tenho perdido nenhumas destas estórias que
vens narrando da nossa terra. Muitas delas eu já conhe-
cia, outras não tanto. Mas elas precisam de ser vertidas
no tal livro que vens “ameaçando” escrever. É tempo de
deixares as ameaças e colocar esse livro cá fora. Todo o
meu apoio para o que for preciso.”
Um abraço, José Rodrigues

“Gostei muito, Paulo. Para mim é uma honra fazer par-


te desta história e da forma como a descreve. Obrigado
pela estima e admiração que me dedicou naquele tem-
po. Fico à espera que esse livro seja publicado”.
Um grande abraço, Celestino Cabrita

“PP, está na hora de pensares a sério no livro! Exige-se!”


Margarida Alves

“Tenho vindo a acompanhar com alguma discrição


este extraordinário conjunto de “crónicas”, eis che-
gado o momento de manifestar o meu total apoio a
uma edição desta natureza...serei seguramente um

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comprador, e terei o maior prazer em comparecer no
acto de lançamento se dele tomar conhecimento e me
derem a honra de tal convite...
Um abraço e parabéns pelo excelente trabalho de “et-
nografia” covilhanense!!!”
João Esgalhado

“boa ideia a deste livro :) ”


Maria João Saraiva

“Pois é, o senhor Gíria, sempre com aquele bronze


mas também com aquele sorriso entreaberto... Aos
pouquinhos vamos relembrando coisas boas e pesso-
as que nos marcaram e que... se não fosse o “carola”
do PP dificilmente recordaríamos. Contudo acho que
é recíproco, pois com as nossas lembranças também
tu recordas outras, não é?
É isto que também dá sabor à vida...”
Céu Raposo

“PP, em nome da familia o meu agradecimento por


esta singela homenagem ao meu Tio-Avô...”
Paulo Jorge Simões

“Primão das melhores. Muito bem escrita, és o maior.


Parti o côco a rir. Continua”
Pedro Rodrigues

“A minha mulher quase que faz xixi nas calças,a rir.


Adorou”
Pedro Rodrigues

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“É de fazer rir as pedras da calçada...mas caros ami-
gos, afianço-vos que é (quase) tudo verídico...bem que
nos sabiamos divertir !!!!”
Paulo Jorge Simões

“Ri-me com esta e ao mesmo tempo recordo as histó-


rias que ele nos contava por baixo dos arcos da câma-
ra, que só visto e ouvido.”
Manuel Sá Lima

“Não deve existir na Covilhã, ninguém com tão boa


memória sobre factos e pessoas como o Paulo!”
João Goulão

“Longe da vista mas perto no coração. É fantástico


ainda bem que podes partilhar estas histórias com
todos nós.”
Ana Espiga

“Estou adorando!!! É verdade!!! tenho acompanhado


sim, e como disse...estou adorando!!!”
Marcia Cunha Canto Salvia

“Isto é o que os manuais escolares, dos dias de Hoje,


deveriam ter como prefácio! Até a mim me tinha feito
bem, há 25 Anos atrás...Bela história Paulo.”
João Goulão

“de certeza absoluta... a procissão dos passos e mais


ainda história veridica do cinco reis, bravo Paulin-
nho... conta mais!”
Necas Torres

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“São verdadeiros os sentimentos aqui expressos. Te-
nho curiosidade em saber se esta personalidade algu-
ma vez teve reconhecimento público pelas autorida-
des oficiais da cidade...”
Paulo Jorge Simões

“Figueira sem o Catitinha, definitivamente, não era Fi-


gueira!..com ISTO, disseste TUDO”
Guida Pimentel

“Só tu mesmo para nos fazeres rir quando mais uma


semana de trabalho vai começar...Obrigada pela boa
disposição”
Maria Oliveira

“Não tenho palavras,és de facto o mais bem documen-


tado filho da Covilhã.Tens esta terra no coração”
Pedro Rodrigues

“O máximo...”
Madalena Carvalho

“Parabéns e obrigado por esta viagem ao passado...”


José Rodrigues

“Parabéns, grande fotografia.”


Clube Nacional de Montanhismo

“Ah...o lançamento do livro (há semanas que dei essa


sugestão ao Paulo), do qual sou madrinha, tem que ser
acompanhado por um dos célebres chás da Covilhã....

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com TUDO , como manda a praxe....”
Guida Pimentel

“eu sou da opinião da Guida


Um livro...já”
Graça Neves

“Parabéns Paulo, pelo excelente trabalho. Tenho-me


deliciado com as fotos e, também, com os comentários.
Já lá vão uns aninhos, tinha 19 anos, quando conheci
essa saudosa Covilhã...”
Celestino Cabrita

“desafiei-o para amigo pois estou encantada com esta


dupla viagem ao passado: à minha covilhã e à figueira
dos meus sonhos...vou passar horas a ver estas fotos...
obrigada!”
Isabel Patrão

“Tornei-me tua fã incondicional. Adoro as tuas histó-


rias, talvez porque muitas delas me fazem lembrar os
dias fantásticos que passei com pessoas que me fazem
muita falta...espero ansiosamente por esse livro que
faço questão de ter logo logo.”
Inês Cavaca

“Tenho estado a absorver informação e tenho tido espe-


cial cuidado e prazer em tudo o que o Paulo Pimentel
publica e partilha”
Carlos Arroz

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“Perante este relato, nada mais se pode acrescentar por-
que está tudo aqui! PP vejo que continuas empenhado.
Força! Um abraço”
Margarida Maria Gomes Alves

“Li e reli, foi como se estivesse a ver um filme. As bar-


quinhas de ananás, nunca mais mais me tinha lembra-
do d´elas !
Que significado teria a vida sem memória?
Obrigada Paulo! Estava legal :) !”
Maria Teresa Beirão

“Teresa tem razão! Ler este texto é como estar a ver


um filme. Bj Paulo”
Ausenda Bonina

“Tá tudo dito!!!...”não tenho mais palavras...o PP gas-


tou-as todas...”
Paulo Jorge Simões

“fantástica descrição dos carnavais da época. penso


que deves escrever um livro......com as memórias da
nossa terra.
Estás de parabéns.”
João Manuel Falcão

Boa sorte! Eu vou comprar vários exemplares.


Escreves bastante bem, animando de alma e humor as
histórias que são a nossa vida.
Abraço amigo para ti

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Além do presépio de casa, tenho como recordação de
infância o presépio que era feito nos bombeiros, pas-
sava horas a vê-lo era simplesmente fabuloso. Conti-
nuo a adorar as suas descrições parabéns e força para
o livro.
Amilcar Roseta

As tuas “crónicas” transmitem o ambiente, as pessoas


e as cores e permitem “reviver o passado”.
Parabéns e continua.
Zé Fazendeiro

Não sei se a cidade o tratou bem ou mal. Sei que o


seu agradecimento a essa mesma cidade, teve o con-
dão de fazer com que tantos, tão perto e tão longe,
conseguissem ficar mais próximos por causa das suas
lembranças! Obrigado, pela minha parte. Eu sei que
só se lembra dos caminhos velhos quem tem sau-
dades da terra, mas o Paulo com o seu cantinho da
Serra na sua sala, conseguiu que todos nós, abrís-
semos a caixinha de Pandora e espreitássemos com
nostalgia e alegria lá para dentro. Pela minha parte,
acho que no mínimo deveríamos estar todos presen-
tes no lançamento do livro! Por estas bandas claro!!!
Um abraço amigo
Ana Silva

Mensagens espontâneas recebidas no Facebook

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PASSADO, PRESENTE E FUTURO

P orque será que gosto mais do antigo do que do


novo, do moderno, do actual?
Porque será que as coisas antigas me fascinam e me
atraem?
Porque será que me chama menos a atenção um car-
ro, uma fotografia, uma música actual, do que uma an-
tiga, do meu tempo? E porque digo “do meu tempo”?
O tempo que vivo hoje não é também “o meu tempo”?
Porque será que quando recordamos, sempre pensamos
ou dizemos: “no meu tempo”? Será que o hoje, não é
mais o “meu tempo”?
Porque valorizamos e “curtimos” mais o tempo pas-
sado do que o tempo presente?
Será porque “o presente” praticamente não existe?
Pensamos em falar, é futuro. Falamos já é passado!

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O presente, apesar de ser tão falado, tão valorizado,
é muito curto. Na verdade, ele parece que não existe.
Parece mais ser o intervalo entre o passado e o futuro.
O futuro, dada a incerteza dele, das dúvidas, das cri-
ses por que passamos e muitas vezes a falta de esperan-
ça, não nos entusiasma muito a falar nele e a discorrer
sobre ele. Planos, são planos, o nome já o diz, são incer-
tos, às vezes inexequíveis. Não há que temê-lo, há que
respeitá-lo. Porém, precisamos cuidar dele, pois será o
lugar onde passaremos o resto de nossas vidas.
O passado sim, foi certo. Foi feliz ou infeliz. Mas foi
claro. Foi preciso. Aconteceu. Foi uma realidade.
E como temos, felizmente, uma tendência fantástica
para esquecer os acontecimentos ruins e preservar na
memória os bons e felizes momentos, talvez esteja aí a
explicação de gostarmos tanto de recordar.
As recordações do passado, podem ser administra-
das, gerenciadas. Lembrar só dos amigos, dos bons mo-
mentos. Mais até, permite-nos transformar o que foram
momentos desagradáveis em agradáveis.
E como canta, a grande fadista Argentina Santos, o
fado de João de Freitas e Filipe Pinto:
“Meu Deus, como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal, o tempo fica
A gente é que vai passando”

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FERNANDO HENRIQUES DUARTE

O BOMBEIRO
“É Bombeiro, paga primeiro!”

C onta-se, que esse era o lema de muitos pequenos


comerciantes da Covilhã, para evitarem a evasão
de receita dos seus estabelecimentos, quando eventual-
mente causados, pela saída repentina, de algum freguês
bombeiro, para atender à chamada da sirene do quartel
dos Bombeiros Voluntários, que ecoava o inconfundível
som agudo, pela cidade.
- Anda pá, avia-te. Paga logo antes que a sirene to-
que! - dizia o dono do Café.
Quando a sirene iniciava o toque de uma vez só, o

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incêndio era na cidade, quando era com dois toques,
era fora.
Se estávamos no pelourinho, à conversa, encostados
em algum carro, muitas vezes subíamos a correr, as es-
cadas da Câmara em direção ao quartel para vermos a
saída dos carros: primeiro saía o Jeep, com o senhor Co-
mandante, e a seguir as “bombas”, nome que dávamos
àqueles enormes camiões tanque, vermelhos, que passa-
vam a toda a velocidade, com as sirenes ligadas.
Os bombeiros não nos passavam despercebidos.
Imprimiam em nós sentimentos fortes, que, ora era de
medo quando crianças, ora era de fascinação quando
mais velhos, e sempre de muito respeito e admiração.
Quando pequeno, vestindo o meu fatinho de mari-
nheiro, vendo passar as procissões, às carrapichas do
meu pai, ficava ansioso à espera do desfile daqueles ho-
mens de semblante sério, como a ocasião o exigia, mar-
chando numa sincronia fantástica, de capacetes ama-
relos muito reluzentes, trajando uma farda impecável,
com lindos botões dourados e carregando com muita
elegância o machado no ombro. Era um momento de
êxtase. Depois da passagem dos bombeiros, era o fim da
procissão. Nada mais tinha graça.
O meu avô João Cavaca, também foi bombeiro volun-
tário, durante muitos anos. Guiava uma das “bombas”.
Enquanto degustava o seu vinho, acompanhado de
queijo queimoso que enfiava metodicamente em peda-
ços de uma regueifa, ele muito orgulhoso descrevia pa-
cientemente as suas façanhas, que eu ouvia atentamen-
te, sem pestanejar, sentado ao seu colo, com um coador
redondo de alumínio na cabeça, imitando um capacete
de bombeiro.

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Foi com ele, que ainda criança, aprendi a apreciar um
bom vinho, contra a vontade da minha mãe, que man-
dava misturar um pouco de água para torná-lo mais fra-
co, ao que o meu avô invariavelmente dizia: “estragaste
a água e estragaste o vinho”.
Morava nos Penedos Altos, longe do quartel, mas
quando tocava a sirene, se estava em casa, saía correndo
ouvindo a minha avó Miquelina, tripeira de fibra e dona
de uma sabedoria imensa, dizer:
- “Bái” com Deus e “bólta” logo!
Se estava no Café do Cavalheiro, lá deixava o copo
de vinho a meio ou o café por tomar.
Mas... já pagos, porque era bombeiro e já tinha pago
primeiro.

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O MESTRE ABÍLIO

O Mestre Abílio foi uma das pessoas mais caris-


máticas que a Covilhã teve.
Pessoa muito estimada por todos, pela sua simpatia
e suas “tiradas” muito inteligentes e oportunas. Dono
de uma perspicácia e de um sarcasmo inigualáveis.
Era barbeiro, mas se auto-intitulava de Industrial de
Barbearia. Sempre muito bem vestido, com fatos bem
cortados, gostava de usar “papillon”, bigode muito bem
aparado e um chapéu que lhe dava um ar especial de
boémio. Para completar, era sempre visto a fumar um
charuto cubano, que lhe dava uma elegância ímpar.

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Gostava de assistir um bom desafio de futebol, e
sempre que o Sporting da Covilhã jogava em “casa”, lá
estava ele na bancada lateral.
Jogar uma boa partida de chichon no Ginásio, e ver
um bom filme de Far-West no “Pina”, eram os seus pas-
satempos preferidos.
Tinha fama de visionário e consideravam-no um
empreendedor, um profissional de vanguarda. Sempre
que podia, deslocava-se à capital, onde passava longos
períodos à procura de novas técnicas, reciclando-se e
aperfeiçoando-se, na arte da sua profissão.
Construiu na Covilhã, numa de suas principais ave-
nidas, um dos prédios mais polémicos pelo seu forma-
to e pela sua arquitectura destoante dos demais. Era o
que se podia chamar de um belo palavrão...um palavrão
vertical, bem ali no centro da cidade.
Atribuem-se a ele, muitas histórias, sendo que a
grande maioria, são verídicas, outras, talvez nem tanto,
mas todas sempre contadas com muito humor pelos Co-
vilhanenses, que a partir de agora, serão aqui narradas
em vários “capítulos”.

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IL FOTO

O SENHOR FRANCISQUINHO
DA PADARIA

N a época em que os meus pais casaram, a Covilhã


passava por tempos difíceis. Apesar de Portu-
gal não ter entrado diretamente na guerra, os efeitos dos
racionamentos afetavam o quotidiano da cidade. Tudo
era racionado: o açúcar, a farinha, o leite e por conse-
guinte, todos os seus derivados, tanto que o tradicional
chá da tarde covilhanense, era adoçado com rebuçados.
Depois de casados, os meus pais foram morar numa
casa por cima da Leitaria Triunfo, que tinha sido, até há
algum tempo atrás, a alfaiataria do senhor Mendes.
Um belo dia de manhã, a minha mãe chama a sua
secretária para assuntos domésticos - naquele tempo era
criada, por sinal bem mais fácil de falar - e diz-lhe:
- Olhe lá ó Amélia, chegue-me ali ao senhor Francis-
quinho da Padaria, e traga lá um pão-de-quartos e qua-
tro papo-secos. Olhe espere... traga-me lá também dois

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pães de leite que me deu vontade, faz muito tempo que
não como.
Lá foi a Amélia toda rabiteza pela Rua Direita – que
de direita só tinha o nome - ela que não era dada a mui-
tas pressas, andava de montra em montra, Casa Diniz...
Casa Fael...mas dizia ela que, antes de chegar ali ao Café
Leitão atravessava a rua, porque os homens ficavam-lhe
com os olhos em cima. Não acredito muito, porque não
se podia dizer que era dotada de uma grande beleza.
Era da Coutada, e tinha sido selecionada exatamente
por esse motivo - as patroas, seguindo o seu instinto de-
fensivo, não gostavam de criadas que possuíssem mui-
tos atributos físicos.
A padaria do senhor Francisquinho, ficava ali na rua
dos Correios, quase ao lado da loja do senhor Duarte.
O senhor Francisquinho era uma pessoa que irradiava
simpatia, sempre atencioso e muito espirituoso.
Chegando, à padaria, a Amélia dirige-se ao balcão,
e diz:
- Ó senhor Francisquinho, a D.Laura mandou-me
cá buscar um pão-de-quartos, quatro papo-secos e dois
pães de leite.
Responde-lhe o senhor Francisco, muito sério:
- Pães de leite? Pães de leite? Olhe...ainda vossemecê
era de leite já os cá não havia!

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O MESTRE VISIONÁRIO

C ontava-se que:
Quando o Mestre resolveu tirar a carta de
condução, já não era novo. Para “ajudar”, também já exi-
bia uma barriga bastante proeminente - que ele, sem-
pre muito brincalhão, chamava de calo sexual - que
dificultava a destreza na arte de conduzir. Teve que
fazer várias tentativas para passar no exame. Fez mais
umas poucas aulas com o senhor Brás, dono da escola
de condução mais conceituada da Covilhã, que morava
ali perto da Despachante, e finalmente lá conseguiu a
tão desejada carta.
Umas semanas depois, ainda inexperiente, ao estacio-
nar o seu carro, um Skoda cinzento, no Pelourinho, bem
em frente à “finada” Confeitaria Lisbonense, atrapalhou-
se todo e espatifou-se em cima das grades. O polícia si-
naleiro que naquele dia estava de plantão em frente ao

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Montalto, era o “trinta e cinco”, mau como as cobras.
Desce muito bravo daquele “poleiro”, dirige-se ao
Mestre, e pergunta-lhe:
- Ó Mestre então como é que o senhor faz uma coisa
destas?
Responde-lhe o Mestre:
- Ora porra senhor guarda fazem um carro com três
pedais e eu só tenho dois pés...
Conta-se na Covilhã, que quando apareceu na cida-
de o primeiro carro automático, o Mestre teria dito para
os amigos:
- Não é que me queira gabar, vocês sabem que eu não
sou disso, mas a idéia foi minha. Estão vendo que já tem
um carro com dois pedais.
Parece, que foi desse episódio que lhe veio a fama de
visionário.

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IL FOTO

O PADRE MANEL MOLEIRO

E ra um padre à moda antiga, muito popular, bo-


nacheirão, irradiava simpatia, e tinha uma ex- celente
voz. Era sempre quem mais se destacava na procissão.
Com a sua voz grave, muito bem postada e muito forte,
declamava lindamente, e cantava melhor ainda. Era ele
que cantava “A Verónica” na procissão.
Mas também não tinha grandes cerimónias, o que tinha
que falar, falava.
O Padre Manel Moleiro era muito participativo.
Gostava de organizar todos os actos religiosos. Naquela
Sexta-feira Santa, o cortejo, como sempre, saiu da Igreja
da Misericórdia, e lá estava o Padre Manel Moleiro or-

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ganizando a procissão, separando os homens das mu-
lheres, como exigiam os bons costumes da época.
Quem o auxiliava, era o Padre Pina, uma excelente
pessoa e muito querida na Covilhã, mas não se podia di-
zer ser a pessoa mais indicada, pois ele mesmo, andava
sempre atrasado, talvez consequência de uns “copitos”
a mais que gostava de tomar.
Com tanta organização, a procissão não saía dali nem
por nada, e o Padre Manel Moleiro, que não tinha papas
na língua, chegou num determinado momento, que não
aguentou e desabafou:
- Arre diabos, já lá vai a Nossa Senhora nas profun-
das dos infernos e nós aqui parados...
Ao perceber a asneira, vira-se para o Padre Pina e
diz-lhe baixinho:
- Nada que três Avé Marias e um Pai Nosso não
resolvam.

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O GRILO

N a Covilhã, as crianças tinham o hábito de no


mês de maio, ter um grilo em casa. Só apare-
ciam naquela época. Íamos em grupo para os pinhais,
caçá-los: ouvindo o cantar deles, silenciosamente, íamo-
nos aproximando aos poucos da toca, onde enfiávamos
uma palhinha para lhes fazer cócegas que os obrigavam
a sair. Nessa hora punhamo-lhes a mão em concha, em
cima para não escaparem. Quem conseguia um, era o
herói do dia.
Corríamos para casa pinhal abaixo, pulando giestas
e arbustos, com o troféu numa caixa de fósforos ou no
bolso dos calções, nos fazendo cócegas na perna – agora
era a vez dele - o que nos fazia correr mais ainda.
Chegando a casa, o grilo era cuidadosamente acomo-
dado dentro de uma casinha de plástico amarela com o

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telhado vermelho, comprada na Feira de S.Tiago, e uma
folha de alface.
Aí, era só admirá-lo a comer e curtir o seu cantar, mas
por um período curto, pois curiosamente, os bichinhos
morriam em junho, na época dos Santos Populares. Su-
ponho ser o cheiro das fogueiras feitas com rosmaninho,
a “causa mortis” dos tão simpáticos insectos. Nunca se
podia colocar dois grilos na mesma casinha, pois fatal-
mente, um matava o outro.
Era uma quinta-feira e como acontecia todas as se-
manas, o “homem dos cabritos”, senhor Zé Cornel, de
Verdelhos, chegou à casa do meu bisavô Cavaca, com
os alforges da sua égua, chamada Boneca, repletos de
cabritinhos berrando.
Como era habitual, a minha bisavó Mariquinhas, a
quem chamava carinhosamente de avozinha, veio ao
portão escolher o cabrito do seu gosto.
O senhor Zé cumpriu o seu ritual, tirou a pele do po-
bre animal, limpou-o e deixou-o pronto para a avozinha
fazer uma das especialidades gastronómicas mais tradi-
cionais da região, que o avozinho muito apreciava.
Antes de o “homem dos cabritos” ir embora, como
sempre, disse a avozinha à empregada:
- Ó Otília sirva aí um copo de vinho ao senhor Zé
Cornel.
A Otília, atendendo à ordem, pegou um copo na pra-
teleira da cozinha, encheu-o de vinho e deu-o ao senhor
Zé, que com sofreguidão, o bebeu de um golo só.
Acontece que o no dia anterior, o meu primo Rui ti-
nha chegado a casa todo orgulhoso com um grilo, caçado
com muito trabalho e afinco, e que por falta momentâ-
nea de uma gaiola, tinha sido temporariamente alojado
com uma folha de alface, num copo de vidro.

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A Otília, só ao ver o senhor Zé estrebuchando de-
sesperado, com o grilo fazendo-lhe cócegas na garganta,
percebeu que tinha servido o vinho ao pobre homem no
copo do grilo do Rui, e mais preocupada com o grilo, do
que com o senhor Zé Cornel, saiu aflita gritando, cha-
mando a avozinha:
- Minha Senhora!!! Minha Senhora!!! Socorro!!! O se-
nhor Zé Cornel engoliu o grilo, e agora o que é que va-
mos falar “pró” menino Rui???
- O que é que vamos falar? Anda, põe-te a milhas,
e não me apareças aqui sem outro!!! - respondeu-lhe a
avozinha, muito brava.
O grilo foi devolvido ao seu habitat natural, mas, para
desespero da Otília, ele não resistiu ao “tsunami”, entrou
em coma alcóolico e foi a óbito em poucos minutos.
A Otília deve andar até hoje pelo pinhal à procura de
um outro grilo para o menino Rui.
Quanto ao senhor Zé Cornel, continua vendendo os
seus cabritinhos, mas trocou o tinto pelo branco, para
ver melhor o que bebe.

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MONTE GORDO

E ra verão de 1970. Eu e o Pedro Ramos resolvemos


passar férias em Monte Gordo, no Algarve. Con-
seguimos oitocentos escudos com os pais, e lá vamos
nós à boleia, de mochila às costas. A primeira paragem
foi em Lisboa. Para chegarmos lá, acho que foram umas
dez boleias. Dormimos na casa da avó do Pedro, uma
velhinha muito simpática, a D.Conceição, que morava
em Alcântara.
No dia seguinte, pé na estrada e lá fomos todos pim-
polhos para Monte Gordo, onde montamos a tenda no
parque de campismo.
Acoisa ia indo bem, íamos para a praia, cozinhávamos
as próprias refeições, mas, desde que fomos a primeira
vez ao bowling do Hotel Vasco da Gama, não consegui-
mos mais nos segurar. É que ficávamos deslumbrados a
ver as inglesas a arremessar as bolas... Olhávamos para
tudo menos para as bolas.

35
- Eh pá, as daquela são vermelhas, olha só...as daque-
la são branquinhas - dizíamos nós.
E nesse embalo, lá íamos gastando o nosso escasso di-
nheirinho. Quando praticamente acabou, só comíamos
arroz com conchilhas “pescadas” na areia da praia.
Como não aguentávamos mais comer a mesma coisa,
decidimos ir ao supermercado do parque de campismo,
mas como tínhamos pouco dinheiro, resolvemos garfar
um delicioso queijo flamengo, aquele redondinho, de capa
vermelha.
- Mas como é que vamos levar “isto” se estamos de fato
de banho? - perguntamo-nos.
Pensei um pouco e sugeri:
- Pedro, tu que és mais gordinho, põe-o aí na frente.
Bom, foi o que fizemos. Para disfarçar, compramos
uma lata de sardinhas Bom Petisco e uma de salsichas Isi-
doro.
Dirijimo-nos à caixa e, perante tal protuberância a me-
nina tentou ser discreta, mas não tirava os olhos, ficou
muito vermelha, e sem saber o que dizer, perguntou:
- E os meninos são de onde?
- Da Covilhã...Serra da Estrela - respondeu o Pedro.
- Somos serranos da gema, da neve, das montanhas...
- arrematei eu.
E lá fomos todos contentes para a tenda a comer o quei-
jo. Soube-nos pela vida, ai não? Ainda mais de borla....
Quanto à rapariga do caixa, no dia seguinte quando lá
voltamos, não estava no “posto”.
Diz o Pedro:
- Eh pá ó Paulo, a gaja deve ter ido no primeiro com-
boio “prá” Covilhã à procura dum namorado...

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FOTO ESTRELA

O MANEL NETO

O Manel Neto da Aldeia, como o nome sugere,


morava na Aldeia do Carvalho. Era o que se chamava
na época, um moço de fretes. Bom rapaz, coi- tado,
mas a vida não lhe dera grandes oportunidades. Era até
bem apessoado, de muito boa aparência. Era co- mum
dizer-se para uma pessoa elegante: “ Vais aí mais
lindo que o Manel Neto da Aldeia”.
O Manel Neto, levava os cabazes das compras da pra-
ça até à casa dos seus fregueses, que aliás não eram pou-
cos e que se espalhavam por todos os cantos a cidade.
Todos os sábados, o Manel Neto levava as cestas das
compras até à casa do meu bisavô Cavaca – funcionário
desde os sete anos de idade, da Fábrica Alçada de pro-
priedade do Dr.Aníbal, por quem era muito estimado e
cuja casa ficava um pouco acima da fábrica.
Mas o Manel Neto da Aldeia, gostava de tomar uns

37
copos de vez em quando, aliás a coisa estava se tornan-
do mais frequente que o desejado.
Uma tarde, ali à porta da “praça”, o Manel Neto, com
uma grande borracheira começa a fazer o seu escândalo.
Chega o Trinta e Cinco, o polícia mais mau que tinha na
Covilhã, dá-lhe voz de prisão e leva-o para a esquadra,
que era bem ali ao lado.
- Ó Manel vais passar aqui a noite, que é pra ver se
aprendes e vou-te fechar num calabouço! - diz-lhe o
Trinta e Cinco.
- Ó senhor Trinta e Cinco, fechado não, isso não! - pe-
de-lhe o Manel Neto, cambaleando, totalmente bêbado.
O Trinta e Cinco pega um balde enorme, um esco-
vão, um grande naco de sabão macaco e grita, para o
Manel Neto:
- Então, vais já roçar estes calabouços todos. Começas
neste aqui e vais até o fim do corredor, “tás” a ouvir?
Responde o Manel Neto, muito bêbado:
- Olha, eu roço este “calhaboço”, roço aquele “calha-
boço”, roço o outro “calhaboço” e também lhe roço as
nalgas a vossemecê se for preciso.
Conclusão: não roçou nenhum calabouço, mas em
vez de uma noite, ficou lá três e bem trancafiado num
dos calabouços.

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O MESTRE NO VELÓRIO

C ontava-se que:
Fazia muito frio naquela manhã na Covilhã, o
que não é raro na cidade, e aquele era um dia muito tris-
te para o Mestre Abílio, pois sua mãe tinha falecido após
uma longa e sofrida enfermidade.
Estava ele velando o corpo na igreja de São Francisco,
e iam chegando os amigos, para consolá-lo. Cada um com
o seu comentário, um mais desapropriado que o outro.
Chegou o Farinhota e foi dizendo: “morreu como um
passarinho...” Aí apareceu o Maralhas: “teve uma morte
linda...”, “está com um semblante tão tranquilo que nem
parece que sofreu tanto, nos últimos dias...” disse o “Mil
e Oitocentos”.
O “Mil e Oitocentos”, morava à N.Sra. do Rosário,
era um contínuo da Escola Industrial e ganhou na Lo-

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taria, mil e oitocentos contos. A mulher encheu a casa
de queijos e chouriças, comprou uma quantidade enor-
me de pulseiras de ouro e ficava à janela, com os braços
para fora, exibindo a sua coleção.
Em pouco tempo, perdeu tudo. Só não perdeu a
alcunha.
O Mestre já estava cansado de ouvir tantas babosei-
ras, quando chega o “João Gago” – seu velho amigo -
com uma cara muito triste, querendo consolar o amigo,
olha para a pobre senhora ali deitada no caixão, e diz ao
Mestre, choramingando:
- Então “mé mé” Mestre a sua “pó pó pó” pobre mãe-
zinha “mo mo mo” morreu...
Responde o Mestre, já irritado:
- Não, não, ela está ali só fazendo a parte....

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COVILHÃ FOTO

O MESTRE E O
HOMEM DO PÍFARO

O Mestre Abílio morava na continuação da Av.de


Santarém, depois que passava o Zé do Pinhão.
Estava em casa e tinha acabado de almoçar. O menu do
dia foi cherovias fritas com feijão pequeno, especialida-
de da sua mulher, a quem chamava, carinhosamente de
“minha chapelista”. Por sinal tinha comido bem, pois
esse era um dos seus pratos prediletos.
- Ó mestre não queres mais? - pergunta-lhe a mulher.
- Ó mulher, já estou cheio, podes guardar a sobra que
amanhã come-se. - respondeu ele.
Estava a tomar um café acompanhado de uma gin-
ginha e fumando um belo de um charuto, como era seu
hábito diário, quando bate à porta, o “Homem do Pífa-
ro” como era conhecido o Sô Jaquim, um pedinte muito
conhecido no bairro. Dizia-se que era rico e irmão de

41
um Pároco de uma aldeia situada perto da Covilhã, mas
também, nunca ninguém provou. O Sô Jaquim fazia-se
sempre acompanhar por um pífaro de ferro muito ve-
lho, que tocava depois que recebia a esmola. Daí lhe vi-
nha a alcunha.
O Mestre atendeu à porta e o Homem do Pífaro pe-
de-lhe alguma coisinha pra comer.
O Mestre pergunta-lhe:
- Olhe lá, vossemecê gosta de cherovias dum dia
“pró” outro?
- Gosto, gosto sim senhor, respondeu-lhe o pedinte
todo contente.
- Então olhe, passe cá amanhã!!! - diz-lhe o Mestre.

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O DR.BOLINHA

C omo bons Covilhanenses, éramos muito criati-


vos e imaginação não nos faltava para pôr alcu-
nhas nos outros.
Fazíamos o 2º. Ano no liceu de S.Silvestre, quando
aparece o novo professor de francês, que logo no pri-
meiro dia já foi apelidado de Bolinha, Professor Bolinha.
A razão de tal apelido eram as suas características físi-
cas: baixinho, e gordinho.
Como se não bastasse, tinha uma cabeça grande,
redonda, sem um fio de cabelo e muito reluzente. Po-
dia-se dizer até, que tinha uma bonita cabeça. Parecia
uma bola, mas não uma qualquer, era uma bola ver-
dadeira, daquelas dos jogadores mesmo, uma bola de
“cochum” - o sonho de qualquer garoto da nossa idade
que, como não tínhamos dinheiro para comprar uma,
quando ganhávamos uns tostões dos avós, entrávamos
em todas as vendinhas, para arriscar um “fura-fura”,

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na tentativa de a sorte nos realizar o sonho de termos
“a tão desejada”.
Bom, mas voltando ao Professor Bolinha, além de
exigente, era muito genioso, fervia em pouca água, não
tinha paciência nenhuma conosco... Achávamos até, que
era assim, por ser solteirão.
Estávamos no 2º. Período e veio o ponto que era pra-
ticamente decisivo, para a nota final. O Paulo Jorge nun-
ca se tinha entendido com o francês, não era bom de lín-
guas e tirou uma das piores notas da turma, um mau.
- O que é que eu faço agora? - perguntava-se ele.
- Acho que vou deixar passar o carnaval e depois
logo se vê - pensava ele.
O tempo ia passando e como o pai não lhe pergunta-
va nada, resolveu tomar a atitude radical – falsificação
da assinatura do Encarregado de Educação!
Daí a uns dias, parece que o pai tinha adivinhado e
começa a perguntar-lhe:
- Eh pá e a nota daquele ponto de francês? Já lá vão
quase dois meses, e não sai a nota?
Responde-lhe o Paulo:
- É que parece que o doutor Bolinha anda meio ocupa-
do, e sempre diz que não tem tido tempo de corrigi-la.
Aquela pergunta, agora começava a repetir-se com
mais frequência, e sempre a mesma resposta.
Um belo dia, o pai estava passando em frente à Leita-
ria Triunfo - tinha ido comprar uns Queijos da Serra, na
Casa Gonçalves, pois ia receber uns parentes de Setúbal,
que apreciavam muito a iguaria - encontrou por acaso,
o doutor Bolinha, que se hospedava na Pensão Avenida,
dirigiu-se a ele, e atirou:
- Ouça lá ó senhor doutor, que raio de professor é o se-
nhor, que tem o ponto de francês da turma do meu filho

44
para corrigir, há quase dois meses e até agora, nada!!!
O gajo esbugalha os olhos e completamente fora de
si, responde-lhe:
- Olhe, esse ponto já foi entregue há imenso tempo e
o seu filho é um péssimo aluno, um “ganda” cabulão, e
pior, pelos vistos ainda falsificou a sua assinatura.
Claro que nessa noite, quando o pai chegou a casa,
“porrada pra cima!!!”
Para “compor o ramalhete”, no dia seguinte, o dou-
tor Bolinha entra na sala, e descontrolado, chama o Pau-
lo Jorge lá ao estrado, e na frente de todos, deu-lhe aque-
la sovata, vociferando palavrões e gritando com o dedo
em riste:
- Anda cabrão agora vai-te queixar ao teu pai que
levas tu e ele também!!!

45
O TELEFÉRICO

E ra princípio de junho, tínhamos acabado de en-


trar em férias, íamos ter quase quatro meses li-
vres pela frente. Sábado à noite, estávamos no Monta-
nhismo a jogar umas partidas de snooker, e a conversar
sobre os planos para as férias. Discutíamos para onde ir,
Algarve, Figueira... lugares e idéias não faltavam, po-
rém todos os planos esbarravam na falta de dinheiro.
- Bom, só temos uma solução, vamos trabalhar para
conseguirmos uma grana, só temos é que descobrir no
quê e aonde; colher fruta não é tempo ainda. - disse eu.
O Beirão, achou uma boa idéia e já emendou:
- Ó gente, ouvi falar que as obras do teleférico estão

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recomeçando, nos Piornos, e que estão a aceitar gente
para trabalhar na obra. O que acham?
O Carlos e o Paulo Jorge logo concordaram e já co-
meçamos a combinar os próximos passos.
Decidimos que era uma boa idéia, trabalhar na obra
e montaríamos as tendas na Nave de Sto.António, que
considerávamos um lugar seguro e perto do novo pos-
to de trabalho. Agora só precisávamos juntar os manti-
mentos, conseguir alguém que nos levasse aos Piornos
e pronto.
O Paulo Jorge, ofereceu-se:
- Deixem que eu falo com o meu pai. O carro dele
tem um porta-bagagens grande. E como a causa é boa,
ele vai colaborar.
Falou com o pai e ficou tudo acertado. Lá vamos os
quatro com o senhor Simões serra acima, num Citroen
DS21 preto - um “boca de sapo” como era popularmen-
te conhecido, porta bagagens lotado com as mochilas,
tendas, mantimentos, a minha viola, e o acordeon e o
batuque do Beirão e os ferrinhos do Paulo Jorge.
Chegamos à obra do teleférico depois do almoço,
e dirigimo-nos ao mestre-de-obras, que naquela hora
dava ordens a uns dez pedreiros.
- Então o que é que os meninos querem? - perguntou
ele desconfiado.
- Olhe amigo, soubemos que estão a precisar de mão-
de-obra e nós viemos aqui “oferecer” o nosso trabalho.
Diz o gajo:
- Ó pá vocês estão a gozar comigo ou o quê?
Diz ele para outro:
- Eh pá, ó Joaquim, olha “pra” isto, estes quatro fran-
gotes, que não podem nem com uma pá vazia, apare-

47
cem-me aqui de “boca de sapo”, a pedir emprego...de-
vem estar de brincadeira.
- Não, não. O amigo não entendeu, aquele “boca de
sapo” não tem nada a ver conosco. Aquele senhor, nós
nem conhecemos, ele só nos deu uma boleia. E tem mais,
temos força sim senhor e muita vontade de trabalhar -
respondeu o Paulo Jorge.
Aí vou eu e arremato:
- O amigo quer ver como temos força?
Virei-me para o Carlos Arroz que era o mais forte e
mais alto dos “frangotes”:
- Ó Carlos, carrega lá aquele carrinho, para provar-
mos aqui para o nosso amigo que não somos tão frango-
tes quanto ele pensa.
Lá foi o Carlos, quase se esgoelando todo, mas le-
vou o carrinho e conseguimos convencer o homem a nos
aceitar. Acertamos o salário, que parece que era coisa de
uns dez escudos por dia, e pronto, agora éramos traba-
lhadores da construção civil.
Diz o gajo:
- Bom então tá tudo certo, cá vos espero amanhã às
sete horas.
Olhamos uns para os outros, e devemos ter pensado
os quatro ao mesmo tempo: “sete horas? O gajo deve
estar maluco. Isso “pra” nós, é madrugada”.
Mas para não darmos o braço a torcer, respondemos:
- Combinadíssimo!!!
O Beirão que estava ali, mais observando do que
outra coisa, parece que leu os nossos pensamentos, le-
vantou um ponto muito interessante e aceite pronta-
mente por todos:
- Mas ó amigo, olhe lá, hoje já é quinta, virmos tra-

48
balhar na sexta?...não era melhor começarmos na se-
gunda-feira?
- Tem razão, então, segunda às sete em ponto - disse
o mestre-de-obras.
Lá fomos nós para a Nave, montamos as duas ten-
das e já combinamos entre nós: “Vamos aproveitar estes
próximos dias para descansar e estarmos bem prepara-
dos para segunda”.
Já naquela noite, recebemos o primeiro convite para
animarmos a fogueira do senhor Carvalho. Chegamos
lá, com uma fome do caraças, instrumentos na mão,
meia dúzia de musiquinhas, o Beirão caprichou na “La
Cumparsita” e lá saiu o primeiro jantar. No outro dia
repetimos a receita na fogueira do senhor Zé Roque, de-
pois no outro, no senhor Fazendeiro, depois no senhor
Manuel Silva, no senhor Cavalheiro e a coisa foi indo.
Para arrematar, no domingo, engatamos umas fran-
cesas que estavam também acampadas na Nave. No de-
senrolar dos acontecimentos, entre um “trés bien” e um
“voilá”, marcou-se um “passeio-bailinho” no Covão da
Ametade, para segunda às dez horas da manhã.
Aí surgiu a discussão dos quatro: ”Eh pá, mas e o te-
leférico? Como é que vamos fazer? Não podemos perder
o emprego. Faltar no primeiro dia é complicado. Mas
também não podemos perder as francesas. Uma sorte
destas não cai do céu todos os dias. Vamos na terça,
pronto, e inventamos qualquer coisa “pró” gajo”. E aí
entrou o Paulo Jorge para arrematar:”caraças pá, anda
aqui um gajo a pão e água há um tempão, e vamos des-
prezar estes pitéus?”
Bom, já se sabe no que a coisa deu...Covão da Ameta-
de na segunda, Poio do Judeu na terça, Cântaro Magro

49
na quarta, Barragem do Pe.Alfredo na quinta.... Tombe
la Neige “pra” cá, Je t’aime mois non plus “pra” lá...e
o teleférico...nada!!! Quantos anos já lá vão...Será que o
gajo ainda lá está à nossa espera?
Pronto, agora o mundo já conhece os verdadeiros
culpados por o teleférico estar no estado em que está, há
mais de 40 anos, feito um mamarracho.

50
O MESTRE E O PREGO

O Mestre Abílio tinha o hábito de, especialmente


no verão, aos fins de tarde, sentar-se na espla-
nada do Montalto, à espera do seu inseparável amigo, e
sempre simpático, Carriço, que saía da Sapataria Impe-
rial às sete horas para depois os dois, que eram vizinhos,
fazerem o caminho de casa calmamente conversando
sobre os acontecimentos do dia. Ali se sentava, e o seu
pedido era sempre o mesmo: um prego acompanhado
por um fino. Repetia aquele ritual quase todos os dias.
Era para ele um prazer ser atendido por aquela sim-
pática e inesquecível equipa, formada pelo Chico, Ce-
lestino, Jeremias, Valério, velhos empregados da casa,
muito competentes e dedicados. Nem precisava deta-
lhar o pedido, pois eles já sabiam de cor e salteado qual
era a preferência dele: o fino com um dedo de espuma e
o prego bem passado. Só perguntavam:

51
- Mestre, o de sempre?
Porém tinha no Montalto um empregado Madei-
rense, que nem me lembro do nome - deve ter ficado
pouco tempo - que destoava da equipa, era muito an-
tipático, mal educado, e desatento ao serviço, era um
verdadeiro bronco.
Quando era ele que atendia o Mestre, fazia-lhe sem-
pre a mesma pergunta:
- O prego, vai comer bem passado ou mal passado?
Pacientemente, o Mestre repetia:
- Bem passado!
No outro dia, lá vinha de novo o Madeirense:
- O prego, vai comer bem passado ou mal passado?
O Mestre andava sem paciência ultimamente, e can-
sado de ouvir sempre a mesma pergunta, começava a
perder as estribeiras. Mas respondia:
- Bem passado!
Um dia comentou com o amigo:
- Éh pá ó Carriço, este gajo anda a gozar comigo. A
próxima vez, vou-lhe perguntar se tem tia. E se tiver, já
sabes para onde é que o vou mandar...
Na semana seguinte, lá vem o Madeirense, parecia
que o Mestre tinha mesmo razão, o gajo estava mesmo
a gozar com ele:
- Olhe lá, o prego, vai comer bem passado ou mal
passado?
Aí, o Mestre muito irritado com o gajo, não aguentou
e gritou:
- Olhe seu ordinário, quem vai ser comido mal passa-
do é você, se me voltar a fazer essa pergunta!!!

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OS TURISTAS

A “placa”do Pelourinho andava em obras e a Câ-


mara, temporariamente, tinha retirado a sinali-
zação que indicava o caminho para a serra.
Era sexta-feira à tarde e um casal com os dois filhos,
chega à Covilhã vindo de Lisboa, onde moravam, para
passar o fim de semana nas Penhas da Saúde. Tinham
feito reserva no Hotel da Torralta, que até ao fim dos
anos 60, era conhecido por nós da Covilhã, como o Ho-
tel do Manel Vaz.
Chegam à Praça do Município, mais conhecida por
Pelourinho, dão a volta à placa, uma vez, duas vezes,
três vezes e lá vem a pergunta da mulher:
- Então como é que é isto, pá? Acho que estamos
perdidos.
Aliás, para quem vinha de Lisboa era muito fácil per-
der-se na nossa cidade.

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Diz a mulher:
- Ó António, para não perdermos tempo, pára aí que
eu pergunto ali ao polícia sinaleiro, que até parece ser
simpático.
Bem dito bem feito. Só que deram um azar dos dia-
bos, que o polícia era o Trinta e Cinco.
A mulher dirige-se à autoridade, e pergunta:
- Olhe desculpe lá, ó senhor polícia, qual é o caminho
“prá” serra?
- É pá, ponham-se a andar que não podem parar o
carro aí. Vá, vá, vá logo, ponham-se a mexer, senão le-
vam já uma multa nas ventas. – respondeu o polícia rís-
pidamente.
A mulher volta para carro toda indignada, e diz para
o marido:
- Ó António, sai com o carro daqui e vamos pergun-
tar ali àquele jornaleiro.
- Olhe faz favor, qual é o caminho “prá” serra?
- Ih hoje só lá “prá” meia noite, o comboio saiu de lá
atrasado...- respondeu o Leal, surdo que nem uma porta.
A mulher volta “pró” carro, meio desanimada, e con-
ta ao marido:
- Ó homem isto tá mau. Um é mal humorado, o outro
parece que não bate bem...
Seguem em frente, passam em frente à Casa Ilídio
e ali diante da loja do senhor Duarte, vêem um velhi-
nho simpático, e diz a mulher: “Este acho que sabe.
Pára aí!”
- Olhe lá ó amigo, qual é o caminho “prá” serra? –
pergunta ela.
- Tatátá tatátá tátátá tátátátá....- respondeu o Samarra
a imitar a corneta da tropa.

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Já visivelmente irritada, a família começa a perder a
paciência. Vão por ali abaixo e já no fundo da “praça”, o
marido pára o carro e diz:
- Ó pá agora vou eu! Acho que tu é que não sabes
perguntar.
Vêem um rapaz ali parado e o marido vai lá e per-
gunta:
- Olhe desculpe lá, ó amigo, qual é o caminho “prá”
serra?
Diz-lhe o Cinco Réis:
- Avé, Avé, Avé Maria, Avé, Avé, Avé Maria.
O homem entra no carro desanimado e diz “prá” fa-
mília:
- Eh pá caraças, vamos voltar pra Lisboa, que nesta
terra só tem malucos!!!!!

55
PUROLÊTCHE

E ra setembro de 1975, tinha chegado a São Paulo,


há pouco mais de uma semana, e para dar início
ao processo documental, visando obter o visto de per-
manência no Brasil, tive que permanecer no Departa-
mento de Imigração, localizado no aeroporto de Congo-
nhas, por diversas horas.
Lá encontrei o Rui um amigo covilhanense, e depois
de umas boas horas de espera, resolvemos ir tomar um
café, ali mesmo no aeroporto.
Peço à empregada:
- Olhe se faz favor, queríamos duas bicas.
A rapariga pergunta:
- Como???
Percebendo que aqui não se usa “bica”, imediata-
mente, corrigi o pedido:
- Olhe são dois cafés faz favor.

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- Purolêtche? - pergunta ela.
- Como? - foi a minha vez de perguntar.
- Purolêtche? - repete ela a pergunta.
Ela ainda repetiu a pergunta mais umas duas ou três
vezes.
Pergunta-me o Rui:
- Eh pá caraças ó Paulo estás a entender alguma coisa?
Digo-lhe eu:
- Eh pá, eu? Então caraças eu cheguei cá depois de ti,
como é que lá vou entender a gaja?
Aquela situação estava sem graça nenhuma, e já es-
távamos irritados com aquilo tudo, pois tínhamos pas-
sado quase a noite toda sem dormir, numa fila imensa.
Lá vem ela de novo:
- Purolêtche?
- Arre gaita pá...olha não queremos nada não, deixa
pra lá!!! Chega!!!!- respondo-lhe eu.
Desabafa o Rui desanimado:
- Caraças pá! Não sabia que aqui também tinha disto,
pensei que era só na Covilhã que tinha esses malucos...
vamos embora daqui, antes que apareça o Leal, o Sa-
marra, o Cinco Réis...

57
OS PASTÉIS DE MOLHO

N a última vez que estive na Covilhã, há dois anos


atrás, estávamos a tomar café no Centro Cívico,
na volta de um passeio à serra onde tínhamos almoçado,
quando digo para a minha esposa:
- Rosana, estava aqui a pensar, vou comprar uns pas-
téis de molho para levar para o Brasil, acho que a turma
lá vai gostar...faz tanto tempo que não comem...
- Boa ideia, se for preciso, podemos até congelá-los –
respondeu ela.
Perguntei ao empregado, onde poderia comprá-los,
ao que ele me informou:
- Olhe, é só seguirem esta rua. Neste lado mesmo,
tem uma “vendinha” que os comercializa, e por sinal são
muito bons. Podem comprar, que a casa é de confiança.

58
No fim do século IX, início do século XX, os empre-
gados fabris não tinham tempo para fazer sopa e então
substituíram-na pelos pastéis de molho, que além de
gastarem menos tempo a confeccioná-los, os pastéis du-
ravam várias semanas, sem se estragarem.
A iguaria que só se encontra na Covilhã, é normalmen-
te servida com molho de açafrão, mas, há quem a prefira
com chá, ou até mesmo seco, e são feitos artesanalmente.
Naquela época, os melhores saíam das mãos da Sra.Aren-
ga e da Sra.Aninha Venagre, que moravam a Sta.Maria.
E lá vamos nós, rua abaixo a procura da “vendinha”. Só
de pensar nos benditos pastéis, já me crescia água na boca.
Encontramos o lugar, bem simples, mas de bom as-
pecto e muito limpo.
Lá estava um senhor atrás do balcão, e todo entu-
siasmado, “lá vou eu”:
- Boa tarde. Por favor, queria duas dúzias de pastéis
de molho. Escolha-me lá uns bem fresquinhos que é
para levar para o Brasil.
Como se eu tivesse pedido alguma coisa do outro
mundo, o fulano, a quem nem tempo tive de perguntar
o nome, olhou para mim, muito furioso e respondeu-me:
- Pastéis??? Você é maluco ou quê? Isto são horas de
vir comprar pastéis? Não tenho cá pastéis nenhuns!!!
Olhei para a Rosana, ela olhou para mim atónita,
ficamos em silêncio por uns segundos, e saímos porta
fora, com medo de apanhar.
Como se não chegasse, ainda levei um raspanete da
minha mulher ali na porta:
- Bem feito! Tá vendo o que dá ficar falando dos ou-
tros? Samarra pra cá, Cinco Réis pra lá e mais não sei o
quê...tome lá mais um “prá” sua coleção!!! Vamos mas é
embora, que “tô” vendo que aqui só tem malucos!!!

59
FIGUEIRA DA FOZ

D os meus quatro anos, aos dezoito, a Figueira da


Foz fez parte da minha vida de uma forma mui-
to marcante.
Saíamos da Covilhã de madrugada. Naquela noite
mal dormíamos, e as férias começavam quando ajudá-
vamos o meu pai a carregar o carro.
Durante a viagem, a minha mãe entretinha-nos a can-
tar, mas quando chegávamos a Seia, já não tinha mais
cantorias que nos segurassem: “vai demorar muito para
chegarmos?”, “será que vamos encontrar o Catitinha
este ano?” “será que vai ter gincana?”. “Calma meninos,
já estamos a chegar” – respondiam os meus pais.
Quase chegando, ainda a uns quilómetros da Figuei-
ra, já sentíamos o cheiro de maresia. Aquele cheiro de
mar era inconfundível.
A Figueira da Foz, para mim, era formada de cheiros
que até hoje conservo na minha memória e quando os
sinto, viajo no tempo rapidamente à Figueira.

60
O cheiro da baunilha dos sorvetes de massa do Ta-
mariz, da esplanada onde passeávamos no fim da tarde
com os pais.
O cheiro das pipocas doces vendidas na entrada do
Centro de Diversões, onde íamos andar no carrocel e
nos carrinhos de choque coloridos e reluzentes.
O cheiro do Bronzaline, que era meio doce, de um
odor incomparável.
No ano de 1984, em janeiro, portanto verão no Brasil,
a minha Tia Benilde veio fazer-nos uma visita a São Pau-
lo, e antes da viagem, perguntou-me:
- Paulinho, meu querido, o que é que queres que te
leve daqui de Portugal?
- Olhe Tia, trága-me lá uma bisnaga de Bronzaline. – res-
pondi eu.
- Bronzaline? Acho que nem existe mais. Não queres
que te leve Sundown? É o melhor que tem agora. – res-
pondeu ela.
- Não, não. Veja se encontra o Bronzaline. É para sen-
tir o cheiro da Figueira.
E ela trouxe-me o tubo de Bronzaline para o Brasil,
e no Guarujá, a praia que frequento aqui, sentei-me na
areia, fechei os olhos, e cheirando o creme, atravessei o
Atlântico numa fração de segundo, e por lá fiquei uns
bons minutos.
Tirei uma foto no cavalinho na areia, joguei ao prego
e disputei acirradas corridas de bonequinhos ciclistas na
areia com os meus irmãos, ganhei a gincana na esplana-
da do Turismo, andei no carrinho de pedais vermelho
no Jardim, assisti ao teatrinho dos “robertos”, aprendi
a nadar na piscina em frente ao mercado, onde também
falei com o papagaio, contemplei extasiado as escultu-
ras na areia, chorei e esperneei no colo do “banheiro”

61
Marcos ao me dar três mergulhos no mar, abracei o Ca-
titinha, empinei o meu aviãozinho de plástico casquinha
muito colorido em que as asas giravam à volta de um
eixo, comi barquilhas e bolachinhas americanas, cavei
um buraco na areia na barraca de pano de riscas azuis e
brancas, para ver as menininhas trocar de fato de banho,
enchi a barriga de pevides, desfiei um colar de pinhões,
aluguei a biciclete mais colorida e reluzente que tinha
no Alves Barbosa, e finalmente, todo orgulhoso, ganhei
uma medalha no Torneio Primeira Braçada, na lendária
piscina do Grande Hotel da Figueira, tudo ao som da
“Marcha do Vapor” que tocava ao meio-dia na torre do
relógio.
Realmente, fiz uma viagem no tempo e quando
“acordei”, a minha mulher perguntou-me:
- O que foi?
- Nada, nada, só fui ali, mas já voltei.

62
O CATITINHA

A praia favorita da maioria dos Covilhanenses era


sem dúvida a Figueira da Foz. Quase todos nós
passávamos lá, pelo menos um mês do verão.
Ainda nem bem tínhamos chegado, já começávamos
a perguntar aos nossos pais se o Catitinha iria aparecer
lá naquelas férias. Eles entendiam a nossa expectativa,
pois parecia que quando crianças também tinham “cur-
tido” o Catitinha. Na nossa cabeça ele era eterno.
O Catitinha era um senhor dos seus 70 anos, de ca-
belos brancos, e longas barbas, elegantemente trajado,
usava “papillon”, chapéu e bengala, sempre com um
apito na mão. Dentre o que se sabia dele, era que havia
perdido uma filha pequenina, que lhe teria causado um
desacerto mental. Todos os anos, no verão, ele percorria
as praias do país, de norte a sul, à procura das crian-

63
ças, confraternizando com elas, de alguma forma preen-
chendo, assim, o vazio deixado por aquela filha perdida,
ainda criança.
– É o Catitinha! É o Catitinha!
– Onde? Onde?
– Está ali! Está ali! Vamos lá! Vamos lá!
E toda aquela criançada da praia, em alvoroço, numa
alegria imensa, corria para o lugar onde indicavam que
o visitante se encontrava, e que era fácil de localizar,
porquanto só se via gente, grandes e principalmente pe-
quenos, chegando de todos os lados. E ele, realmente,
lá estava empoleirado em qualquer coisa, onde pudesse
ser visto e de onde pudesse falar à pequena multidão,
que o rodeava.
Assim que a criançada estava toda à sua volta, co-
meçava a falar sem parar. Contava histórias, que só ele
sabia. Não se entendia lá muito bem o que ele dizia, pois
era interrompido a toda a hora, por palmas, vivas, e gri-
tos da pequenada delirante.
Mas não fazia mal a ninguém, pelo contrário, distri-
buía rebuçados às crianças. Havia ali uma comunicação
total, perfeita, entre as crianças e ele. Adorava-as e elas
adoravam-no. E todos eram felizes assim, ainda que por
um momento.
Terminado o seu sempre prolongado discurso, e ou-
vidas as suas eletrizantes histórias, o Catitinha descia en-
tão do seu púlpito improvisado e percorria todo o areal,
de barraca em barraca, de chapéu em chapéu, cumpri-
mentando carinhosamente as pessoas, acompanhado de
uma multidão de crianças que o rodeava numa alegria
contagiante.
Feito o giro pelas barracas, encaminhava-se ele então
para a saída. Subia vagarosamente os poucos degraus

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para a avenida, lá no alto voltava-se depois para trás,
para a multidão, sobretudo para o mar de crianças que,
lá em baixo, lhe acenavam em frenéticos “adeuses”, já
saudosos, como se com ele partisse alguma coisa deles
próprios – e perdia-se na bruma da lenda. Porque ele era,
antes de tudo, uma lenda viva, cuja recordação ficava a
pairar, até ao verão seguinte. Porque verão sem o Catiti-
nha – não era verão! E para nós Covilhanenses, Figueira
sem o Catitinha, definitivamente, não era Figueira!

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O 1º. DE MAIO

C ovilhã cidade operária, de longa data mostrava


o espírito revolucionário do seu povo. Durante
as comemorações do Dia do Trabalho do 1º. de Maio, os
manifestantes cantavam em coro uma cantiga, que tinha
a seguinte letra:

Meu pai é tecelão


Minha mãe enche canelas
Meu irmão está no Catalão
e eu trabalho no Zé Dias Cagarelas

Viva o Taborda
Viva o Fontana
Viva o descanso 15 dias por semana

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Se ficarmos bem desta vez
Para a outra pediremos o mês

Minha Mãe caiu duma escada


Meu pai morreu duma facada
Minha irmã não faz nada
Aqui está uma família desgraçada

Viva o Fontana
Viva o Taborda
Morram os patrões
Enforcados numa corda

Esta letra é verídica. É pena que não dê para repro-


duzir aqui a música.

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AS MARCHAS DE S.JOÃO

A s Marchas de S.João, da Covilhã, também tinham


as suas próprias músicas acompanhadas por le-
tras, alusivas à cidade:

Covilhã, Covilhã, Covilhã


Covilhã és a nossa Princesa
És a luz és a graça beirã
Onde a neve põe toda a sua beleza

Covilhã de encantado fulgor


A vibrar num sorriso ideal
Do teu povo honrado e produtor
Terra amiga deste nosso Portugal

Ó linda terra das Beiras formosa


Ó linda terra de branco vestida
És noiva és graça, és nívia rosa
Palpitar de vida palpitar de vida

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PRAGUERAMAMIM

E ra uma noite quente de julho, e para variar, es-


távamos ali sentados na esplanada do Montalto,
tomando uns finos, eu, o Paulo Jorge, o Nuno Ramos, o
Pedro Ramos, o Ilídio, enfim, aquele grupinho da pesada.
Já estávamos a torrar uma graninha que mal tínha-
mos acabado de ganhar a colher maçãs na quinta dos
Garrett, em Unhais da Serra, contratados pelo senhor
Soares, o administrador e nosso amigo.
Senta-se na mesa ao lado, um casal de turistas, que
pelo sotaque, era do Porto.
Tomam uns finos também, um pirezinho de tremo-
ços na frente, conversaram animadamente, mas parecia
que não gostavam de tão saborosa iguaria. Daí a pouco,
diz o tripeiro para a mulher:
-“Bamos”, “bamos” dar uma “bolta”.

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Deixaram cinco escudos na mesa e foram-se embora.
O Paulo Jorge olha para os tremoços, e começa:
- Pragueramamim...pragueramamim...praguerama-
mim... (não me perguntem o que quer dizer isto, que eu
também nunca soube)
E, antes que o senhor Celestino tivesse tempo de lim-
par a mesa, o Paulo Jorge sempre ligeirinho, passou a
mão no pires dos tremoços...
Diz-lhe o Ilídio, que era o mais comportadinho de
todos:
- Ó Paulo, caraças pá, mas isso é coisa que faça?
Responde-lhe o Paulo Jorge:
- Eh pá porra se há-de ir “prós” porcos...
Se calhar, se fosse hoje, nem os cinco escudos lá ti-
nham ficado...

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O MESTRE VAI AO CINEMA

C onta-se que:
Naquela tarde de domingo não tinha futebol na
Covilhã. O Sporting, na época, passava por mais uma
crise e andava na terceira divisão. Ia jogar a Pinhel.
O Mestre Abílio que sempre gostava de “ir à bola”,
naquela tarde não tinha para onde ir.
Estava à porta da tabacaria ao lado do Montalto,
onde tinha comprado o seu charuto com a Menina Ma-
riazinha, quando resolve ir à matinée do Teatro Cine, o
cinema do Pina, como diziam os antigos.
O Mestre tinha um trato com um dos bilheteiros, o
Zé Oliveira. Sempre que era possível, acomodava na
poltrona ao lado do Mestre, alguma moçoila, de prefe-

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rência, atrativa. Em compensação o Zé tinha direito a
um corte à francesa gratuito por mês, na barbearia do
Mestre.
- Veja lá ó Zé, não me decepcione – dizia ele sempre
ao bilheteiro.
Estava em cartaz, o Love Story, com a Ali MacGrow
e o Ryan O’Neal. Não era o tipo de filme que lhe agrada-
va - dizia que era filme piegas - ele preferia um bom Far
West com o John Wayne. “Fár vést” como ele dizia.
Já estava devidamente acomodado, quando se sen-
tou uma bela rapariga ao seu lado. Deu-lhe aquela olha-
da de cima em baixo, como era sua mania, e gostou do
que viu. Coxas roliças, “pára choques reforçados”, do
jeito que ele gostava.
De certa forma contagiado pelas cenas da tela, lá pelo
meio do filme o Mestre não conteve os seus ímpetos e
mandou-lhe a mão às pernas.
Ela muito indignada (até agora não entendi muito
bem porquê) pregou-lhe uma sonora bofetada. Nesse
exato momento, para azar do Mestre, as luzes da sala,
para o intervalo acenderam-se, e ele, sempre se saindo
bem das situações, levanta-se e grita bem alto:
- E lá em casa levas mais!!!!

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FOTO PARIS

O SENHOR CHAGAS

O senhor Chagas era uma senhor de meia idade,


muito simpático, bonacheirão, bom de conver-
sa e sempre atencioso, muito conhecido e estimado na
Covilhã.
Ele tinha um estabelecimento, na Rua António Au-
gusto de Aguiar, em frente aos Correios, onde muitos
anos mais tarde, após a construção do edifício da Caixa
Geral de Depósitos, se estabeleceu a Gazcidla.
Era uma loja antiga e muito tradicional na cidade,
vendia todo o tipo de roupas populares a preços muito
acessíveis. Era o que se pode chamar uma loja para o
povão.
O estabelecimento de tão simples que era, nem mon-
tras tinha. As roupas ficavam penduradas num cordão
que atravessava a loja de uma ponta à outra. Saias, cal-
ças e camisolas ficavam ali expostas quase no tecto.
Conta-se, que numa bela tarde, por volta de 1935,

73
entrou na loja uma rapariga, que morava à Fonte das
Galinhas, já freguesa da casa, para fazer umas compras.
- Ó senhor Chagas, precisava dumas calças “pró”
meu Manel, o senhor tem alguma coisa? - pergunta a
Mariquinhas.
- Olhe, as únicas que servem “pró” seu Manel, são
aquelas azuis ali penduradas daquele lado. - responde o
senhor Chagas, apontando para o tecto.
- E quanto é que custam? - pergunta ela.
- Olhe ó menina Mariquinhas “pra” vossemecê, faço
dezoito tostões.
- Mas estão muito caras, senhor Chagas. Não dá pra
fazer dezasete? - regateia ela.
- O artigo é muito bom. Não dá pra tirar nada. São
dezoito tostões mesmo.
A Mariquinhas ficou indecisa, achou caro e decide
ir embora. Mas pensou bem e já estava quase saindo da
loja, voltou atrás e disse para o senhor Chagas:
- Então vá pronto, pelos dezoito tostões, deite lá as
calças abaixo.

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O MESTRE NO ELÉCTRICO

D izem as más línguas que:


O Mestre Abílio tinha ido a Lisboa visitar uns
parentes afastados, o que fazia mais ou menos de dois
em dois anos. Para não incomodar a família, e para po-
der andar mais à vontade, hospedava-se habitualmente,
na Pensão Bem Estar, localizada na Baixa.
Estava uma tarde muito agradável, e o Mestre que
já tinha comido um bom bife no Nicola, aproveitando a
sua estadia na capital, sentou-se na esplanada da Paste-
laria Suiça, e tomou um café com uma ginginha.
- Isto é que é vida. Dizia ele para os seus botões, entre
uma baforada e outra no seu charuto.
Observando o movimento dos lisboetas, ficava ex-
tasiado vendo-os descer dos eléctricos em andamento;
aquilo fascinava-o.

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- Vou fazer o mesmo. Se eles podem, porquê eu não
posso também? Eu lá sou homem de ficar por baixo? -
pensava ele.
Pagou a conta e lá foi ele, todo elegante, usando aque-
le seu chapéu, com uma peninha, subiu no eléctrico deu
umas voltas ali pela Baixa, passeou pelos Restauradores,
entrou nos Correios para mandar um postal para a sua
esposa e quando chegava de novo ao Rossio, em frente à
Pastelaria Suiça, tomou coragem e resolveu saltar.
Ele que não tinha experiência, o que aconteceu... es-
patifou-se no chão, claro!
Junta-se então aquela malta toda para acudi-lo.
Como sempre, sem perder a pose, e sacudindo o pó
do fato, pergunta ele aos curiosos:
- Ora que porra, então cada um não pode sair como
quer?

76
OS PIORNOS
N em sempre éramos os primeiros a chegar, mas
com certeza sempre os últimos a ir embora.
De segunda a sexta pensávamos como iria ser o ski no fim
de semana. Saíamos de casa de manhã cedinho, e espe-
rávamos na porta do Montanhismo, na Ruy Faleiro, por
uma boa alma que nos desse uma boleia até aos Piornos,
que de “vez em sempre”, era o senhor Luís Filipe Sarai-
va, que quando aparecia na curva, com o seu FIAT 124
branco, deixava-nos todos felizes. Na subida da serra, ía-
mos tendo com ele a aula teórica que funcionava para nós
como um aquecimento, e chegando às pistas lá continuá-
vamos as aulas, agora práticas, com o “Grande Mestre”.
Passávamos o dia naquela pista, que era pequena
sim, mas que para nós era a maior do mundo, a mais
bonita, a melhor...

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Na hora do almoço, mal nos sentávamos. Comía-
mos apressadamente, aquele arrozinho, carinhosamen-
te preparado pela mãe na noite anterior, acondicionado
numa caixinha plástica, mesmo frio, pois não tínhamos
onde aquecê-lo. Depois, enfiávamos a cara na ribeira que
acompanhava a pista do cimo até à base, bebíamos aquela
saborosa água gelada a saber a neve, e corríamos rápido
para pista - não queríamos perder um só minuto.
O teleski era lento, tínhamos que carregar aquelas
cordas e aqueles ganchos de ferro pesados na cintura.
Isso já para não falar de quando o teleski quebrava e
tínhamos que subir a pista a pé. As botas metiam água,
tínhamos que as untar com sebo de cabrito, para fica-
rem um pouco mais impermeáveis, os skis velhinhos,
tínhamos que lhes passar parafina a toda a hora, senão
não saíam do lugar. Mas, apesar de tantos desconfortos,
aqueles eram momentos mágicos. Qual Suíça qual quê...
era ali o melhor lugar do mundo.
Naquela tarde, como em tantas outras, voltamos
para a Covilhã de boleia com o Santos. O Santos era
funcionário da Comissão de Turismo, tomava conta do
teleski: punha-o a funcionar, consertava-o quando era
necessário - o que não era raro -, fazia a manutenção,
abastecia-o de gasóleo, enfim era o “faz tudo”, e uma
garantia muito importante das nossas idas, pois guiava
o Land Rover.
Bom, saímos dos Piornos e fizemos aquela paragem
já usual no Pastor. Sentamo-nos ali à lareira, o Paulo Jor-
ge, o Carlos e eu. Tomamos uma ginginha, depois uma
aguardente com zimbro, mais uma sem zimbro e assim
íamos molhando a garganta, envolvendo-nos à conver-
sa com os mais velhos, com quem nos identificávamos,
por quem tínhamos grande admiração, e que eram os

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nossos heróis: Luís Filipe Saraiva, Manuel Sá Lima, Zé
Flávio, João Rainha, João Faria e muitos outros.
Depois do “happy hour” como se diz agora, já ale-
gretes e a cantar a caninha verde, voltamos para o jipe, e
sentamo-nos nos bancos laterais. Bem na nossa frente,
um grande bidon de vianda, pois o Santos parava sem-
pre no Pastor para ir buscar e levá-lo para o sogro que
fazia criação de porcos numa quinta perto da Boidobra.
Sentados com o bidon ali na frente, eu reparava que
o Carlos olhava-o fixamente, até que, subitamente, ele,
com os olhos arregalados, mete a mão lá dentro e pega
uns belos fios d’ovos.
No sábado tinha tido um copo d’água dum rapaz de
Gouveia que tinha casado com uma rapariga do Fun-
dão, dizia-se até, que já ia grávida.
Dizia ele: “ena pá...isto aqui “tá” bom como o cara-
ças”. Pergunta o Paulo Jorge: “é mesmo?” “É pá tá bom
mesmo”, diz-lhe o Carlos. O Paulo Jorge que não se fa-
zia de rogado comeu também... e eu fiquei ali olhando
e pensando: “eh pá estes gajos são malucos”. Aí vem o
Paulo Jorge: “eh pá ó Paulo deixa-te lá de paneleirices
e experimenta esta merda, caraças”. Bom... nessa altura
do campeonato eu também já estava com uma larica do
caraças... “chova aqui pró bucho!”
Pergunta o Carlos: “tá bom ou na tá?” Respondi-lhe:
“Porra pá, esta merda se calhar até veio de Aveiro...”
Já íamos ali na recta da Pedra do Urso, o Santos olha
pelo retrovisor, e pergunta: - “atão” que merda é essa?
Vocês estão malucos ou quê? Porra...comendo vianda?”
Diz-lhe o Carlos: “olha sô Santos já não ouviu falar
que o que não mata engorda?”
E não é que o Carlos tinha razão? Continuamos os
três vivos, rijos que nem uns pêros e gordinhos, claro!

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O PRESÉPIO

O Natal, para nós começava quando a minha mãe,


no início de dezembro, anunciava:
- Meninos, no próximo fim de semana vamos fazer o
presépio.
Aí sim, começava o espírito de natal. Era uma ani-
mação só. Já queríamos começar naquela hora, mas a
minha mãe repreendia:
- Não. Só no sábado, e, se se portarem bem.
Naquele resto de semana, éramos uns santinhos. Se
um de nós ousava fazer qualquer coisa errada, o outro
já lembrava: “olha o presépio!”
Demorou para o sábado chegar - parecia até que o
domingo vinha primeiro, de tão ansiosos que ficáva-

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mos – mas enfim chegou o dia. Era um acontecimento tão
importante que naquele dia, ninguém saía para brincar
na rua.
Para fazer a base do presépio, utilizávamos caixas,
livros e objetos para dar a forma à “montanha” onde
o presépio ia ser construído. Depois cobriam-se esses
objetos com colchas e lençóis velhos, para colocarmos
depois o musgo sobre o qual as figuras seriam cuidado-
samente espalhadas.
Trazia-se do sobrado, uma grande arca onde no dia
sete de janeiro daquele ano tinham sido cuidadosamente
guardadas as figuras, muito bem protegidas, embrulha-
das em folhas de jornal, para evitar que se esfacelassem
caso batessem umas nas outras. A maioria delas tinha
sido comprada na Feira de S.Tiago.
Cada um de nós, tinha direito a desembrulhar uma
figura de cada vez. Um, abria e mostrava para os ou-
tros: “olha esta, já nem lembrava dela”, “olhem este
pastor”, “olha o castelo”. O nosso presépio tinha deze-
nas de figuras.
O castelo, os moinhos, a igreja e as casas tinham sido
construídas pelo meu pai, quando jovem. O castelo era
de madeira e coberto de areia colada, os telhados das
casas tinham sido cuidadosamente confeccionados com
pequenas e finas bobinas de fio que cortados seccional-
mente, e depois pintados de vermelho, pareciam telhas
autenticas. O presépio era todo iluminado. Era maravi-
lhoso e enorme, ocupava uma sala inteira.
No sábado de manhã, eu perguntei à minha mãe:
- Mãe então e o musgo? Posso ir ao musgo? O Pedro
e o João já estão combinando.
Era ao Pedro e ao João Rodrigues a quem me referia;

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eram os meus vizinhos e os primeiros amigos da minha
vida, amizade que se perpetuou pela infância e juventu-
de. Éramos todos cúmplices das travessuras, traquini-
ces e aventuras da idade. Grandes disputas de futebol,
grandes corridas de arco pelas ruas do bairro, e não só,
grandes expedições pelos pinhais, tudo era vivido in-
tensamente. Parecia querermos viver a vida toda, num
só dia. Tudo parecia ser no superlativo, até o sofrimento
causado pela perda do João que faleceu muito jovem,
aos dezasete anos, ainda no auge das nossas brincadei-
ras... Com treze anos senti pela primeira vez a perda de
um grande amigo, que na verdade era um irmão, pois
assim tínhamos sido criados, como irmãos.
A ida ao musgo era também um ritual. Íamos em
grupo para o pinhal, com muito entusiasmo, arrancar
do chão aquelas placas verdes húmidas, com cheiro de
terra, da natureza, que era depois cuidadosamente aco-
modado em cestas.
- Este ano, o presépio vai ser feito sem musgo, man-
dei vir umas folhas grandes de papel de embrulho, vou
pintá-las de verde e castanho e pronto. Desta vez, não
quero musgo aqui em casa; suja-me tudo – disse a mi-
nha mãe.
Pois é, eu não queria acreditar no que ouvia, mas foi
nessa hora que aquele natal, passou a ser diferente dos
outros. Tentei convencer a minha mãe, que não era a
mesma coisa, que não tinha graça nenhuma feito de pa-
pel, mas não teve jeito.
- Não tem remissão – disse a minha mãe.
Quando ela dizia essa frase, não tinha jeito. Fiquei
decepcionado.
Aliás aquele natal estava fadado ao fracasso.

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Quando a minha mãe estava fazendo as tradicionais
“filhoses”, punha o enorme alguidar, coberto por um
pesado cobertor, na borda da braseira, para que a massa
crescesse convenientemente, face ao frio intenso da épo-
ca natalina. Como parte dessa “operação”, era necessá-
rio que o alguidar fosse virado para a massa crescer uni-
formemente. A minha mãe, em dado momento, pediu à
minha tia Benilde, para virar as “filhoses”. Ela foi lá, e
virou o alguidar de cabeça para baixo. Conclusão: natal
sem “filhoses”!
Naquele sábado depois que estavam todas as figuras
à disposição, como sempre, fomos colocando-as cuida-
dosamente nos seus devidos lugares.
Terminamos, e realmente ficou bonito. Pudera, com
tantas figuras e enfeites, tinha mesmo que ficar; mas fal-
tava alguma coisa...
Ficava ali contemplando-o atentamente como sem-
pre fazia, e parecia-me que o que faltava ali, não era ma-
terial ... voltava lá e ficava olhando pensativo, até que
descobri o que faltava: era o cheiro... Tinha ali na minha
frente um presépio sem alma, sem vida.
Aquele, realmente não era o meu presépio...não foi
um Natal perfeito. Foi um Natal sem cheiro de Natal...
sem o cheiro do meu musgo...

83
IL FOTO

O MESTRE E O ZÉ CARROLA

C ontava-se na época, que:


Naquela manhã de domingo o Mestre não es-
tava para brincadeiras. Tinha andado na “boa-vai-ela”,
chegou a casa de madrugada e levou um belo raspanete
da mulher.
Para não se chatear mais, saiu de casa cedo e nem o
pequeno almoço tomou. Foi tomá-lo ao Montalto. Cha-
mou o sempre simpático e sorridente Chico, antigo fun-
cionário da casa, e pediu-lhe:
- Olhe lá ó Chico, traga-me aí um galão, uma sandes
de fiambre e um bolo de arroz - que gostava de molhar
no café com leite.
Depois de tomar a costumeira bica, ali ficou a pensar
na vida, dando umas boas baforadas no seu charuto e
aproveitou para engraxar os sapatos com o senhor An-
tonio, que sempre dizia: “graxe, graxe, aproveitem hoje
que amanhã vou prá serra”.

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Dali a pouco, aparece-lhe ali o Zé Carrola, um amigo
de longa data, que morava nos Sete Capotes, caminho
para o Tortosendo. O Carrola tinha o hábito de, sempre
que vinha à Covilhã, praticamente todas as semanas,
pedir o carro emprestado ao Mestre.
O Mestre sempre foi muito generoso, dificilmente di-
zia um não para os amigos. Mas também, quando per-
cebia um certo abuso, a “coisa” mudava de figura. E na
verdade era o que estava acontecendo com o Zé Carrola.
Além de lhe pedir a toda hora o Taunus 17M empresta-
do, dava as suas voltas, que não eram curtas - costuma-
va ir com freqüência até ao Refúgio, onde tinha muitos
amigos -, e ainda devolvia o carro sem gasolina.
Aquela situação já estava a passar dos limites.
Lá vem o Zé, com o pedido habitual:
- Desculpe lá ó Mestre, hoje à tarde precisava que me
emprestasse o carro porque tenho que visitar um amigo
que está no hospital, fez uma oper.....
O Mestre nem o deixou terminar, interrompeu-o e já
foi direto ao assunto:
- Olha ó Zé, hoje não dá! Hoje vou à bola.
O Zé Carrola levantou-se e de cara feia, foi embora
em direção à tabacaria.
O Mestre grita-lhe:
- Ó Zé, ó Zé Carrola volta aqui!
Lá vem o Carrola contrariado.
- Olha ó Zé, fica sabendo que o meu cu não é gara-
gem!!!
- Mas ó Mestre, por acaso eu disse alguma coisa? -
perguntou o Zé.
- Não disseste, mas pensaste!!!

85
O “VELHO” SANTOS PINTO

N ão importava se o Sporting da Covilhã anda-


va na segunda ou na terceira divisão. Isso era
um mero detalhe. O que realmente importava era se a
Covilhã ia jogar em casa. Era um verdadeiro ritual ir ao
Santos Pinto assistir ao jogo, - ir à bola como diziam os
antigos - domingo à tarde, fosse contra grandes ou pe-
quenas equipas.
Ir com o pai e ficar na bancada central ou lateral,
não tinha muita graça, gostava mesmo era de ir com
os amigos e assistir ao jogo no Peão. Aí sim, podia vo-
ciferar duzentos palavrões por minuto, extravasar os

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sentimentos sem a menor cerimónia e ainda podíamos
ver bem de perto os nossos ídolos: o Madaleno, o Lei-
te, o Prata, o Cabrita, o Manteigueiro, o Rita - grande
guarda-redes - e tantos outros.
Durante o jogo, comíamos pevides, amendoins torra-
dos, arrufadas e castanhas assadas, se fosse tempo delas,
tudo acondicionado em cartuchos de jornal e o famoso
“farta-brutos” do Montalto, no fim do jogo, não podia
faltar para completar a atividade gastronómica do dia.
Éramos muito ”bonzinhos”! Divertiamo-nos enga-
nando o Porfírio - o “apanha bolas” - que quando a bola
era chutada para fora do campo por um jogador com
a pontaria menos afinada, corria para buscá-la no meio
do mato. Ficávamos no muro do campo, atrás da bali-
za, “orientando” o rapaz, direcionando-o para todos os
lados menos para onde estava a bola. Mas no final, ficá-
vamos arrependidos da tropelia e como forma de nos
redimirmos da maldade cometida, dávamos-lhe onze
tostões, o suficiente para comprar um macito de “mata-
ratos” Kentucky.
Muitas tardes, após o término das aulas eu e o meu
saudoso amigo Proença, parávamos na Sede do Sporting
e ali ficávamos matando o tempo, assistindo os jogado-
res do Sporting da Covilhã, disputando acirradas parti-
das de snooker. Era a nossa oportunidade de estarmos
perto dos nosso ídolos; ficávamos quietos, em silêncio,
só admirando as tacadas de mestres.
O inesquecível Proença, além de meu vizinho era
meu amigo de infância. Era o “fornecedor” oficial de
berlindes, da malta, pois o seu pai tinha uma fábrica de
“pirulitos” – refrigerante gaseificado cuja garrafa era fe-
chada por uma bolinha de vidro que funcionava como
tampa. Quando as pirulitas começavam a faltar, lá íamos

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nós, às escondidas, para a fábrica, partir as garrafas para
usarmos as “tampas”. Chamávamo-lo de Bonanza, por-
que tinha uma semelhança física com o Hoss Cartwright
do filme. Faleceu jovem, pouco tempo depois de se ter
formado médico com distinção, em Coimbra, deixando-
nos muita saudade.
Numa daquelas tardes, estávamos lá no Sporting,
encostados a assistir a uma partida de dois verdadeiros
craques: o famoso Leite, um dos melhores e mais antigo
jogador do clube, e o Cabrita. Este foi um dos melhores
jogadores que passou pela cidade, era defesa central de
grande categoria, emprestado pelo Sporting de Lisboa -
cruzamentos de bola alta na área do Covilhã, não tinha
para ninguém, ele não deixava passar uma – era um ex-
celente cabeceador.
Talvez por nos verem sempre ali olhando-os jogar,
surpreenderam-nos com um convite para fazermos com
eles uma partida de pares. Eu o Proença olhamos um
para o outro sem acreditarmos.
Claro que perdemos a partida. Acho que estávamos
tão eufóricos que nem nos concentramos no jogo. Mas
foi um acontecimento. A caminho de casa, radiantes,
só falávamos no assunto. Aquilo era uma honra. Já nos
imaginávamos a contar para os outros. Quem é que ia
acreditar?
Não via a hora de chegar o jantar para contar ao meu
pai. Sentamo-nos à mesa, e todo entusiasmado e muito
orgulhoso, fui relatando a façanha. O meu pai só ouvia,
ouvia.... Eu imaginava que ele ia fazer perguntas... deta-
lhes... como eles eram...quem ganhou...se eles jogavam
bem...se já eramos amigos...
Mas para minha decepção, e surpresa, ele muito bra-
vo, deu-me a maior sarabanda:

88
- Quer dizer que o menino em vez de estar em casa a
estudar, fica por aí jogando snooker? Pois bem, dois fins
de semana de castigo sem sair de casa!!!
Nem me abalei. “Que importância lá tinha isso se ago-
ra eu era amigo dos jogadores do Sporting da Covilhã?”

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FOTO CIDADE

O SENHOR MENEZES

O senhor Menezes, renomado industrial covilha-


nense tinha fama de forreta, mas era muito gene-
roso, especialmente com os mais pobres. Tinha o hábito
de, todas as manhãs tomar o seu cafézinho no Montalto.
Tinha as suas preferências: gostava de se sentar numa
mesa perto da entrada do Túnel e preferia ser atendido
pelo senhor Chico, que o atualizava das últimas notícias
que corriam no estabelecimento.
Metódico como era, fazia habitualmente o mesmo
roteiro. Depois que saía do Montalto entrava na loja
do senhor Manuel David, com quem gostava muito de
conversar. Seguia pela Rua Ruy Faleiro acima e quando

90
passava em frente ao Banco de Portugal, lá estava sem-
pre o mesmo mendigo, de lugar fixo, a quem todos os
santos dias, dizia:
- Toma lá dois tostões “pra arremediares” a tua vida.
E o pedinte, tirando o chapéu com reverência, retor-
quia:
- Muito obrigado, senhor Menezes.
Chegou agosto, e como andava um pouco cansado,
o senhor Menezes resolveu ir passar oito dias com a fa-
mília que estava a banhos na Figueira da Foz, como era
hábito de boa parte das famílias Covilhanenses. Foi real-
mente uma semana para descansar e espairecer.
Na semana seguinte, de volta à Covilhã, logo na se-
gunda-feira, começou o seu ritual: foi ao Montalto, pas-
sou no senhor Manuel David e subindo a rua lá estava o
tal pedinte, no seu posto.
Ao vê-lo, o senhor Menezes repetiu a lengalenga:
- Toma lá dois tostões “pra arremediares” a tua vida.
Só que desta vez o pedinte, atirou:
- Muito obrigado senhor Menezes, mas o senhor está
a dever-me dezesseis tostões!
O senhor Menezes parou, e sem acreditar no que
estava ouvindo, meteu a mão no bolso, tirou o porta-
moedas e disse-lhe sorrindo:
- Ó homem de Deus toma lá o que te devo, mas risca-
me aí dessa confraria que eu não pago mais...
A partir desse esse dia, o senhor Menezes, mudou
ligeiramente o seu ritual: ao chegar perto do Banco de
Portugal, atravessava a rua.

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PASSAPORTE LOTY

A D. ANTONINHA

O Padre Manel Moleiro, pároco da Igreja da N.Sra.


da Conceição, era uma pessoa muito popular na
cidade, bonacheirão, irradiava simpatia. O dom da pa-
lavra, e a sua eloquência, faziam com que as suas missas
fossem famosas pelas suas “práticas”, e sermões infla-
mados. A igreja sempre lotava, porque a fama dos seus
sermões trazia fiés de longe, de outras freguesias, chega-
va a vir gente até da Aldeia do Carvalho, para ouvi-lo.
Ficavam extasiadas e em silêncio.
A D.Antoninha era uma senhora viúva, beata “de
carteirinha”, que como tantas outras, não perdia uma
missa do Padre Manel Molero. Mesmo morando lon-
ge, nas escadas de S.Silvestre, e já andando com certa
dificuldade - reflexo dos setenta e cinco anos, que já
completara - vinha todos os domingos assistir à missa
a S.Francisco.

92
Naquele domingo, tinha que conversar com senhor
Prior para lhe encomendar uma missa por alma do seu
Jaquim, falecido há quatro anos. Ao término da missa,
ela esperou na sacristia pacientemente o senhor Prior fi-
car disponível, para atendê-la.
Era prática habitual, de alguns fiéis, ao fim da cele-
bração, irem à sacristia, cumprimentar o senhor Prior,
pedir uma benção e desejar-lhe uma boa semana. Lem-
bro-me de ainda criança, quando ainda ia à missa com
os meus pais, ir à sacristia beijar a mão do senhor Prior
Andrade, que me abençoava pondo a mão na minha
cabeça.
Finalmente o senhor Padre Manel Moleiro, já livre
dos outros fiéis, dirigiu-se à paciente mulher:
- Então diga lá ó D.Antoninha, o que é que a aflige?
- Ó senhor Prior eu queria encomendar-lhe a missa
do meu Jaquim, para domingo que vem, pode ser? - pe-
diu ela emocionada.
- Pode sim, minha filha, pode ser.
- E quanto é que o senhor Prior me leva? - perguntou
a D.Antoninha.
- Olhe D.Antoninha, levo-lhe quinze tostões.
- Quinze tostões? – pergunta ela com os olhos arrega-
lados. Mas o senhor Padre Pina leva cinco tostões...
Visivelmente irritado e sem cerimónia, respondeu-
lhe o Padre Manel Moleiro, que não tinha pápas na
língua:
- Mas isso são missas de merda, D.Antoninha!!!

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O PICOTO

A s nossas férias grandes, como o próprio nome


sugere, eram grandes mesmo. Começavam no
dia 10 de Junho e estendiam-se até ao dia 1 de Outubro.
Tínhamos que ter muita imaginação para inventarmos
brincadeiras e aventuras que preenchessem os mais de
três meses de tempos livres.
A garagem do Pedro Rodrigues, era o nosso “quar-
tel” onde discutíamos as alternativas e tomávamos as
grandes decisões. Cada um dava a sua ideia, e lá se es-
colhia o que iríamos fazer nos próximos dias.
Naquele dia, decidimos fazer uma expedição ao Pi-
coto, que era uma pequena montanha, mas a maior que
se avistava das nossas casas, olhando na direção da ser-
ra. Nunca lá tínhamos ido, pois era longe e perigoso e os
nossos pais nunca nos tinham deixado ir.
A muito custo, lá conseguimos autorização dos pais,

94
e combinamos os detalhes: hora da saída, local da saída -
nem precisava marcar, pois era sempre da famosa garagem
- equipamentos de sobrevivência: cantil com água, almoço,
lanterna, espelho e equipamentos de defesa - caso tivesse-
mos que nos defrontar com feras na selva que tínhamos
que atravessar até ao Picoto - faca de mato, arco de flechas
feitos com as varetas de guarda-chuvas e fio guimpo, fisga,
na forma de forquilha, feita com finos troncos de marme-
leiro e câmara de ar, canivete cheio de acessórios...
Era um grupo de uns dez, pelo menos. Uma autênti-
ca expedição. Subíamos pelo meio dos pinheiros, arbus-
tos, giestas, atravessando pequenos riachos, pulando de
pedra em pedra, escorregando na caruma, atirando pi-
nhas uns nos outros, pulando as cales de rega das quin-
tas do Sineiro, onde durante muitas tardes brincávamos
de barquinhos feitos com carcochas. Fomos fazendo pe-
quenas paragens para descanso, tendo sido a primeira
na Rosa Negra onde comemos o farnel cuidadosamente
preparado pelas nossas mães, e de onde contemplamos
a nossa bela cidade, identificando as nossas casas e os
sítios das nossas brincadeiras.
Depois de muito esforço, já cansados, e após desbra-
varmos florestas, ultrapassado ravinas e escalado gran-
des penhascos, finalmente alcançamos o cume do Picoto.
Tinha valido a pena, a paisagem era deslumbrante,
maravilhosa, víamos, os nossos quintais, as nossas ca-
sas, o nosso bairro, a nossa cidade, a nossa Cova da Bei-
ra. Era tudo nosso. Sentiamo-nos donos de tudo o que a
nossa vista alcançava...tudo nos pertencia. Era o nosso
grande quintal! O quintal da nossa vida!
Sentiamo-nos uns heróis, tínhamos conquistado o Pi-
coto, que a partir daquele momento passou a ser nosso!
Era o nosso Everest.

95
O MESTRE E O COMÍCIO

O Zé Luís Moraes Alçada, vivia no Rio de Janeiro


e voltou para a Covilhã em 1979, um ano após o
falecimento do seu pai.
Logo nos primeiros dias na cidade, foi cortar o cabelo
ao Mestre Abílio, e para sua surpresa encontrou o Mes-
tre, sozinho e muito triste.
- Então mestre, sem ajudante, sem freguesia, o que é
que se passa? – perguntou o Zé Luís.
- Eh pá já viste o que me fizeram? Isto não se faz a
um velho! Desapareceram todos! – respondeu o Mestre
angustiado.
- Mas afinal o que é que aconteceu? – perguntou o Zé
Luís muito intrigado.
- Olha Zé, o teu primo foi para o PSD, o Santos Mar-
ques para o PS, e deixaram-me com o PC!!! – responde o
Mestre indignado.
- Sabes como são estas coisas da política... Fomos fa-

96
zer um comício à Boidobra e os camaradas pediram-me
“pra” fazer um discurso. Comecei a falar, a falar, aí um
gajo do diretório, diz-me ao ouvido: “Mestre, “tá” muito
morno isso aí! Tem que ser mais inflamado, carago! O
povo quer ver sangue! Sangue!!! Tá a entender?”
- Mas e daí? O que é que isso teve a ver com o sumiço
da freguesia? – pergunta o Zé Luís.
- Vai ouvindo. Peguei embalo, começaram os aplau-
sos, fui-me empolgando, e como o gajo queria sangue...
- Mas e daí? – interrompe o Zé Luís, sem se aguentar
de tanta curiosidade.
- Aí, é que foi a minha desgraça! – diz o Mestre.
Gritei para a multidão:
- Se algum fascista desgraçado se sentar na minha
cadeira da barbearia, corto-lhe o pescoço com a navalha
mais afiada que lá tiver!
- Fui ovacionado, aplaudido, durante cinco minutos.
Mesmo com o meu peso, fui carregado em ombros pelos
camaradas... – conta o Mestre visivelmente emocionado.
- E onde é que está problema? – pergunta o Zé Luís.
- Ora onde é que está o problema? Então não “tás”
a ver a “casa” vazia? Nunca mais ninguém cá pôs os
pés...deixaram de cá vir! Logo eu que não faço mal a
uma mosca!!!

97
CÉU RAPOSO

AS SOPEIRAS

E ra uma tarde de domingo estávamos na casa do


Paulo Jorge, sem nada para fazer. Não tinha jogo
em casa, a Covilhã ia jogar fora com o Sanjoanense, não
tinha corrida de fórmula um – naquela época já curtía-
mos as vitórias do Fittipaldi - e não tínhamos consegui-
do formar um grupo para jogarmos “lerpa”.
Este era um jogo de cartas muito popular entre nós,
o preferido. Na época, aos sábados à tarde, quando, por
algum motivo, não fazíamos os “bailinhos” no sótão do
Paulo Jorge, jogávamos lerpa na casa do Pedro Ramos.
Não era raro perdermos logo no primeiro dia boa
parte ou até mesmo todo o dinheiro que recebíamos dos
pais como “semanada”, para comprarmos o SG Filtro,
que invariavelmente acompanhava e realçava o sabor
do ritual dos cafés tomados no Primor e no Montalto.

98
Mas nessa tarde de domingo, a “coisa” estava mo-
nótona mesmo. Estávamos ali à janela, o Paulo Jorge,
o Nuno Ramos e eu, quando passam duas “sopeiras”.
Estávamos à toa mesmo, naquela “do que vier é lucro”,
olhamos uns para os outros, e pensamos: ”domingo
quatro da tarde, não se poderia esperar grande coisa”,
até que não eram de jogar fora, mas também ninguém
nos poderia ver, se não cairíamos em desgraça.
Diz o Paulo Jorge:
- A minha é boa, a vossa não sei. Rapaziada, em tem-
po de guerra não se limpam armas.
Aí emenda o Nuno:
- Quando há fome não há ruim pão.
- Também não vou ser eu o “desmancha prazeres” –
disse eu.
Como eram duas, e nós éramos três, já havíamos
combinado que faríamos um revezamento.
Bom, jogamos o anzol e elas morderam a isca. Con-
versinha para cá, chavecada para lá, tínhamos que as
convencer a subir para a “boíte” que tínhamos no sótão
do Paulo Jorge. Era só subir três andares. Falamos que
tinha uma festinha lá em cima, estava cheio de gente,
mas o problema é que elas não queriam subir porque
eram só duas e nós três.
Dissemos para elas:
- Esperem um pouco, que vamos chamar a emprega-
da aqui do 2º.andar, e ela vai também, ok?
Só que não tinha empregada coisa nenhuma, liga-
mos para uma colega do liceu - que era muito fixe – e
que morava no prédio do lado, explicamos a situação,
e pronto. Ela prontificou-se a ir ao intercomunicador do
prédio falar com as sopeiras para dar uma ajudinha e
assim, lá foi dizendo:

99
- Ó menino Paulo, vão andando “prá” festa que eu
estou só aqui a acabar de passar uma roupita e já lá vou
a ter !!!
- Mas ó menina, vossemecê vai mesmo? - retorquia
uma das sopeiras, em bicos de pés para chegar ao micro-
fone das campainhas.
- Sim, sim, vão andando que já vos agarro - dizia
a nossa disfarçada colega, com uma voz de autêntica
“sopa”.
Demos uma de sonsos e quando lá chegamos, além
de não ter festa, não tinha nem “boíte”, pois a que tinha,
havia sido, há poucas semanas atrás, interditada pelo
Sub-chefe Dias – por ser muito “psicodélica” como ele
dizia - e tinham sido retirados os equipamentos de som
e as “luzes indiretas”. Bom e agora? Não tinha festa, não
tinha som, não tinha nada. Que situação...aí descobri-
mos lá num canto, um rádio de pilhas velhinho.
- Pronto, está resolvida a situação – nós dissemos.
Pegamos o rádio, vira daqui, vira de lá, abre aqui,
fecha lá, puxa a antena...bom...concluímos que o rádio
nem FM tinha. Só AM, e domingo à tarde qual era a pro-
gramação? Relatos de jogos de futebol.
E agora? – pergunta o Nuno.
- É pá deixa aí mesmo. Não tem outra... - respondeu
o Paulo Jorge.
- Mas vamos dançar ao som do jogo? – perguntaram
as duas - que a esta altura já achavam que éramos total-
mente xaropes da cabeça.
- Olha lá ó rapariga, então não vês que esses gajos do
rádio também põem música enquanto dão os resulta-
dos!... - disse eu.
E nós lá íamos tentando dançar ao som de: “Sacaven-
se 1, Arrifanense 2; tralálá tralálá tralálá tralálá (música

100
de entermeio), Salgueiros 2, Vouzela 0; tralálá tralálá
tralálá tralálá...
Entretanto, estava a jogar o Sporting e o Belenenses,
jogo que tinha começado mais tarde. E estava 0 a 0...
O relator empolgado relatava o jogo cheio de entusiasmo:
-“Hilário finta Quaresma, finta Murça, centra da esquer-
da para Lourenço que cabeceia por cima da baliza, bem
rente à trave...”
Um com o rádio na mão e os outros dois “dançando
slow” ao som de tão romântica transmissão, de rostinho
colado; parecíamos três retardados... Um não podia olhar
para o outro, senão fatalmente cairíamos na gargalhada.
De vez em quando uma delas, perguntava:
- E a vossa amiga não vem?
- Anda que já vem, só está a acabar de passar aquela
roupita – disse-lhe o Nuno.
- Vai ver que a patroa deu-lhe mais um pouco de
roupa, sabe como é patroa – eu arrematei.
Daí a pouco o relator grita: “Belenenses inicia o con-
tra-ataque com Estevão que finta Manaca, passa para
Laurindo que centra para os pés de Camolas e é golo,
goloooooooo do Belenenses!!!”
O Paulo Jorge, sportinguista roxo, começou a ficar
nervoso. Nessa hora já de mau humor, já quase a fazer o
beicinho, não quis mais “dançar”.
- Ó Paulo, pá caraças, não fiques assim que ainda dá
tempo do Sporting reagir. Anda deixa que ainda vai em-
patar – acalmava-o eu.
Nem bem eu tinha acabado de falar... pumba! Aos
quarenta minutos do segundo tempo...novo contra-ata-
que do Belenenses, golo do Godinho. Um potente rema-
te no canto esquerdo do Victor Damas que nem viu a
cor da bola.

10
1
Aí foi a gota d’água, deu um faniquito no gajo e co-
meçou a gritar com as coitadas das sopeiras:
- Eh pá estão a ver o que vocês fizeram? Só vieram
aqui pra me dar azar. Caraças, onde é que já se viu, o
Sporting perder uma partida destas com o Belenenses,
foi praga vossa...ponham-se já a milhas daqui...andex...
xô...xô...xô...
As sopeiras desceram aquelas escadas a toque de cai-
xa e eu e o Nuno, ainda mais que éramos benfiquistas,
ficamos lá umas duas horas a rir.
Consta que até hoje, as coitadas preferem subir a Cal-
çada Alta a pé, do que passar pela Avenida 25 de abril
de carro!

102
O DR.BALTAZAR

A ndava na terceira classe na escola primária da


Maria Gabriela Seco, que ficava ali a Sta.Mari-
nha, em frente ao sindicato.
Não me recordo se na ocasião, estavam passando jo-
gos olímpicos ou coisa que o valha, mas sei que o meu
sonho, na época, era ser um atleta olímpico – um “ginás-
ta de solo”. Como início dos treinamentos, para alcançar
o dito sonho, ensaiei um “salto mortal”. Comecei bem.
Pendurei-me no baloiço pelas pernas, dei um balanço
no tronco para alcançar impulso...e pumba! Caí de cabe-
ça no chão, que nem um martelo. O salto não chegou a
ser “um mortal”, mas foi quase mortal.
Fui imediatamente levado para casa, e após algumas
horas de observação, sem que as tonturas passassem, os
meus pais levaram-me para o hospital, onde fui subme-
tido a uma bateria de exames, radiografias, eletroence-
falogramas, enfim exames demorados.

10
3
Fui atendido pelo Dr.Ranito Baltazar, um dos mais
competentes médicos da Covilhã. Era, por sinal, tam-
bém muito mal humorado e a educação não era um dos
seus pontos fortes. Dizia-se até que era muito simpático
e educado quando estava Baltazar, mas insuportável e
mal educado no dia que era Ranito. Na realidade, era
quase sempre Ranito.
Naquela tarde, “para variar”, estava de plantão o
Dr.Ranito.
Aquela habitual, infindável espera, tinha deixado
a minha mãe, como era de se esperar, muito ansiosa e
cheia de nervosismo, beirando o descontrole. Finalmen-
te o Dr.Baltazar saiu lá de dentro, e a minha mãe deses-
perada, muito aflita e chorando, perguntou-lhe:
- Ai senhor Doutor, o meu Paulinho vai morrer?
Ao que o Dr.Ranito responde, com a delicadeza e a
educação de um elefante:
- Olhe, minha senhora, se tivesse que morrer, já tinha
morrido!
E não é que ele acertou? Cá fiquei para contar a
história.

104
CÉU RAPOSO

O CAFÉ PRIMOR

O Café Primor estava de empregado novo. O An-


tónio, completara dezoito anos, tinha sido cha-
mado para o serviço militar, e o senhor Cunha – dono
do estabelecimento - teve que contratar um substituto.
O Café Primor, ou simplesmente Primor, era para
nós muito mais que um café, era realmente um ponto de
encontro. Qualquer intervalo entre as aulas, qualquer
cabulada de aula, enfim qualquer sobra de tempo, lá ía-
mos nós para o Primor. Lá namorávamos, estudávamos
– por incrível que pareça – fazíamos cábulas para as pro-
vas e eventualmente tomávamos café. Quando saíam as
notas de final dos períodos, se não eram más de todo,

10
5
lá íamos nós, comemorar para o Primor, bebendo uns
finos sempre acompanhados dos tremoços.
O senhor Cunha, era um sujeito de uns cinquenta
anos, sizudo, tinha uma simpatia que se limitava ao bom
atendimento. Atendia-nos com competência e atenção,
mas não passava muito disso.
Havia um respeito recíproco entre nós. Ele sabia, que
cada vez que nos deixava insatisfeitos, trocávamos o
açúcar dos pacotinhos, por Alka-Selzer, para “ferver” os
cafés dos “fregueses”, ou por sal, para as bicas ficarem
mais salgadinhas, ou deixávamos as bisnagas da mos-
tarda semi abertas, que obviamente provocavam uma
grande lambuzeira no cliente desavisado.
O Zé, o novo empregado, tinha chegado há quatro
dias da Peraboa – aldeia localizada perto da Covilhã,
onde o senhor Cunha nasceu e foi criado, e onde habitu-
almente selecionava os seus empregados.
O empresário, deu-lhe ali dois dias de treinamento,
tendo lhe ensinado o básico: tirar um café, fazer umas
sandes, abrir as garrafas e “põe-te a andar que prá frente
é que é o caminho”.
- Ó Zé “tás” a ver aquela malta na mesa do canto lá
do fundo? Toma cuidado com eles, hein... Não lhes dês
muita conversa, que os gajos não são “flor que se cheire”
– alertava o senhor Cunha.
Aquela malta a que ele se referia, era eu, o Paulo Jor-
ge, o Nuno Ramos, o Pedro Ramos, o Ilídio, o Jorge Car-
rilho...sempre os mesmos, os do costume, sentados na
tal mesa do canto, a fumar um SG Gigante cravado ao
Pedro Ramos, pois o nosso já tinha acabado.
Lá vem o Zé, com um jeito matarruano, ainda meio
pacóvio, todo sizudo, de cabelinho empastelado, e a cara
cheia de espinhas, a tirar o pedido:

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- “Atão” boa tarde, façam o favor de dizer o que vos-
semecês querem.
- Olha ó Zé são quatro bicas, e um batido Maria Amá-
lia, mas não demores que estamos atrasados “prá” aula,
ouviste? – digo-lhe eu.
O Zé chega perto do balcão e grita, todo senhor de si:
- Senhor Cunha, saem quatro bicas e um batido Ma-
ria Amália, e já foi se dirigindo a outra mesa para tirar
novo pedido.
Dali a uns minutos, já estavam no balcão as quatro
bicas. O Zé pega o pedido e serve as bicas na mesa dos
“bonzinhos”.
- Ó Zé, e o batido Maria Amália? – perguntou o
Nuno.
- Ó senhor Cunha, e o batido Maria Amália, sai ou
não sai? – gritou o Zé cá do fundo do Café, com a voz
toda empostada.
- Já vi que acabei de contratar um burro...esse Zé
acredita em tudo! – pensa o senhor Cunha, já emendan-
do uma resposta:
- Ó Zé diz lá aos distintos, que a Maria Amália, está
agora a batê-lo!!! É melhor irem à aula, que na volta “tá”
pronto!!!
E assim fez o “obediente” Zé, conosco todos a partir
o côco a rir...

E depois de tantos anos, aí temos, na foto da página 105,


o José Miranda da Silva, o nosso Zé de antigamente, ir-
radiando a mesma simpatia de sempre.

10
7
O MESTRE E O CORTE
À FRANCESA

C ontava-se, que:
O Mestre Abílio gostava de dar as suas escapa-
dinhas à capital. A cada dois meses lá ia ele. Pegava a
automotora do meio-dia, chegava a Lisboa à hora do
jantar e por lá ficava uns três dias hospedado na Pensão
Bem-estar, na Rua do Ouro, ali na Baixa.
Dizia que ia se atualizar nos assuntos capilares, ver a
tendência da moda e comprar material de consumo, de
primeira qualidade, para o seu estabelecimento.
Ele sempre comentava: “se os industriais de lanifí-
cios faziam viagens para a Europa, para se atualizarem
das novidades no mundo dos têxteis, evolução de ma-
quinaria, das matérias-primas, e compra de máquinas,

108
porquê é que ele não podia fazer o mesmo? Afinal ele
também era um industrial...de barbearia, mas era”.
Numa das suas estadias, tinha ido comer uns petiscos
e beber uns finos, na Solmar, na Rua do Coliseu, quando
ao lado da sede do Benfica, chamou-lhe a atenção num
salão de cabeleireiro – nome já dado a barbearia naque-
la época, em Lisboa - um cartaz anunciando “Corte à
Francesa”.
“Que raio de corte será esse?- perguntou-se.
“É fácil” – pensou. “Vou entrar e pedir um corte
desses”
Lá entrou no salão, sentou-se na cadeira e prestou
bastante atenção no corte que o oficial fazia...puxava o
cabelo para um lado...puxava para o outro, mas real-
mente ele não entendeu foi nada da tal “técnica”.
Como visionário que era, o Mestre já vislumbrou na
nova técnica capilar uma oportunidade para atrair mais
freguesia e incrementar os negócios do seu salão.
Na volta ao seu estabelecimento na Covilhã, pediu
ao Frazão, seu dedicado e antigo funcionário:
- Olhe lá ó Frazão, faz favor, chegue-me ali em bai-
xo à Papelaria Neves e compre uma folha de cartolina e
uma caneta preta grossa.
- Mas para quê? – perguntou o Frazão.
- Ande faça o que lhe mando que já vai ver. Vamos
ter novidades aqui no salão.
O Frazão chegou com a cartolina, e o Mestre man-
dou-o escrever nela, em letras bem grandes: ”NOVI-
DADE – CORTE À FRANCESA”.
- Agora cole aí no vidro da montra – manda o Mestre.
O Frazão muito intrigado, pergunta:
- Mas ó Mestre o que é que é isso afinal?
- Frazão, esta é uma técnica de corte revolucionária

10
9
que está fazendo um sucesso enorme em Lisboa. Pode-
mos cobrar dois escudos a mais por este corte. O normal
continua cinco escudos e o corte à francesa vai ser sete
– explicou o Mestre.
- Mas ó Mestre, como é que raio é esse corte? Eu não
sei fazer. - diz o Frazão.
- Como é que você não sabe? Sabe sim senhor. Como
é que você começa o corte normal? Não é da esquerda
para a direita? Então, este novo corte é da direita para a
esquerda. Simples não é? – explicou o Mestre.
- Mas Mestre, isso não muda nada. Dá na mesma, o
corte é igualzinho.
- Se dá na mesma ou não, isso é só um detalhe. Não
muda nada. Claro que não muda nada, mas faz de conta
que muda. Está a entender? E já vamos começar ama-
nhã. E se alguém perguntar onde aprendeu, diga que
fez um curso intensivo, na capital – orientou o Mestre.
Os negócios do Mestre eram sempre norteados pela rec-
tidão e seguindo esse preceito, combinou com o Frazão:
- Olhe ó Frazão, dos dois paus que vamos ganhar a
mais, no corte à francesa, um é meu e outro é seu. Certo
assim?
O sucesso do novo corte foi estrondoso. Aumentou
a clientela de uma forma tal, que tinha dias, especial-
mente aos sábados, fazia fila para cortar “à francesa”.
A fama do corte foi correndo de tal maneira pela cida-
de, que nem se falava mais em “corte à francesa”, era o
“corte do Mestre”.
O “corte à francesa” deu uma alavancagem tal, nas
finanças do Mestre que lhe permitiu realizar o sonho
antigo, de construir um belíssimo prédio, de uma arqui-
tetura arrojada e avançadissima para a época, na Rua
Visconde da Coriscada.

110
Quanto ao Frazão, detentor e pioneiro da sofisticada
técnica do “corte à francesa” não demorou para montar
o seu próprio salão na Estação – bairro progressista, que
na época era o que mais crescia na cidade - que o aco-
lheu de braços abertos.

11
1
O BÉTINHO RICÓFÓFO

O Dr.Baltazar era um médico muito conceituado


na Covilhã. Por ter sido também presidente da Câmara
da cidade, entre 1957 e 1965, tornou-se muito
conhecido no meio. Gostava de passear no Pelourinho,
quando lhe sobrava algum tempo, o que devido à sua
dedicação à profissão, não era muito frequente.
Apesar de ter fama de mal humorado, era uma pes-
soa bondosa e sempre dava atenção aos mais pobres que
o abordavam para o cumprimentar e se queixar de algu-
ma dor que os apoquentava.
Naquela manhã, o Bétinho Ricófófo, estava a passar
o tempo, encostado nas arcadas da Câmara. Era um ho-
menzinho duns setenta anos, baixinho meio corcundi-
nha e andava quase sempre bêbado, mas coitado, não
fazia mal a uma mosca, era um “bom serás”. Era muito

112
conhecido e todos gostavam dele. Morava com a mu-
lher numa casinha muito pobre que nem luz tinha - per-
to do Poço Grande - e quando ela precisava levantar-se
de noite, gritava ao marido, até ele acordar: “Ó Bétinho,
ricófófo”...”Ó Bétinho, ricófófo”... E assim lhe ficou a
alcunha.
Vendo o Dr.Baltazar, logo atravessou a rua e diri-
giu-se a ele, respeitosamente fazendo-lhe uma vénia de
cumprimento:
- Bom dia senhor doutor.
- Bom dia Bétinho - respondeu o Dr.Baltazar.
- Ó senhor doutor, ando aqui “cumas” dores nas
pontas dos dedos das mãos...
- Olha Bétinho, bebe menos que te passa – disse-lhe
o Dr.Baltazar.
Apontando para o ombro do médico, diz o Bétinho:
- Ó senhor doutor posso tirar uma linha que o senhor
tem aqui no casaco?
- Tira lá a linha Bétinho...
- Ó senhor doutor, por acaso, não tem aí um trocadi-
nho que me dê?
Responde-lhe o Dr.Baltazar, de pronto:
- Põe lá a linha de volta, anda!

11
3
MADALENA CARVALHO

A GARAGEM DO PEDRO

D ependendo da idade que tínhamos, aquela ga-


ragem era o nosso Castelo, o nosso Quartel Ge-
neral, ou o nosso Escritório Central. Era essencialmente
o nosso “porto seguro”.
Realmente a garagem era nossa, só nossa. Apesar de
se localizar na casa do senhor João Rodrigues e da D.Mili,
pais do Pedro e do João, a garagem era um enclave, uma
região autónoma. Não lhes pertencia. Só podiam lá en-
trar as pessoas por nós autorizadas, nem mesmo as em-
pregadas podiam lá entrar. E todos respeitavam a nossa
autoridade, caso contrário, podiam ir para o poste das
torturas que lá tínhamos.
Era lá que tudo era planeado, organizado, e discu-
tido. Ali decidia-se, do que íamos brincar, o que íamos
jogar. Era lá que as grandes decisões eram tomadas.
Naquela garagem acontecia de tudo. Brincávamos de

114
castelos feitos com cavacos de lenha, jogávamos hóquei
em patins, futebol, partidas de monopólio, brincávamos
com o carro de pedais vermelho do Pedro. Quando ne-
vava, era lá que pegávamos os skis do senhor Rodrigues
e um grande trenó, e fazíamos do “aterro”, o nosso cen-
tro de desportos de inverno.
As partidas para as grandes expedições aconteciam
ali: a conquista do Picoto, “as idas” ao musgo para o
presépio, “as idas” ao rosmaninho para as fogueiras de
S.João, as grandes invasões da “rua de baixo” e da “rua
de cima”, as grandes corridas de arcos cujo tilintar nos
paralelos da rua, mais parecia uma sinfonia.
Foi lá também que o Pedro definiu o seu futuro, a sua
vida – a música.
Junto com o Carriço, na bateria, o Ito no baixo, o Álva-
ro na guitarra, e ele próprio na guitarra, o Pedro “deu à
luz” o primeiro conjunto que eu vi de perto. O Conjunto
Académico Rapazes da Montanha. Todos os instrumen-
tos eram usados, bem usados. A bateria originalmente
era branca, mas os anos já a tinham deixado amarelada
e as guitarras já estavam surradas. Mas o som que saía
desses instrumentos era sensacional.
O repertório do CAR da Montanha, não era dos
maiores, tocavam três músicas, mas tocavam-nas bem:
“The House of The Hising Sun”, “La Casa de Irene” e
“O Cachorrinho”.
Eu me deleitava vendo os ensaios. Era um privilegia-
do, pois muito poucos podiam assistir aos ensaios, mas
em compensação tinha que carregar os instrumentos
para cá e para lá.
Um belo dia, arranjei uma grande encrenca com o Pe-
dro. No bombo da bateria estava inscrito o nome do con-
junto: “CAR” em cima, “DA” no meio, e “MONTANHA”

11
5
em baixo, seguindo a curva do bombo.
Pois é, o que eu fui fazer...
Fui a casa, peguei um alho e quando apanhei o Pedro
distraído, colei aquele alho com fita-cola no bombo da
bateria, na frente do “CAR”.
Quando ele percebeu, perguntou-me:
- Quem é que fez este serviço?
Eu com cara de sonso, respondi-lhe:
- Eu não sei, quem será que foi?
Bom...só deu tempo de pôr sebo nas canelas e correr.
Corri tanto, tanto, tanto que acho que foi por isso que
vim parar aqui no Brasil.

116
OS IRMÃOS CARVALHO

O s irmãos Carvalho, eram conhecidos no Fun-


dão, por serem grandes entusiastas do automo-
bilismo. Eram os melhores da cidade na especialidade
de transformar veículos comuns em carros para corrida,
preparando motores para lhes aumentar a potência, mo-
dificando e reforçando os chassis.
Curiosamente, apesar de terem uma elevada estatu-
ra, tinham, uma predileção por carros pequenos, bem
pequenos. Apesar de morarem no Fundão, os dois estu-
davam no Liceu da Covilhã.
Conta-se que, numa tarde após o término das aulas,
a malta saiu do liceu “velho”, perto do Jardim, entraram
na Leitaria Triunfo, jogaram uma partida de snooker, e
foram para o Montalto.
Estavam no Morris Mini, do Tózé Carvalho, ele
guiando, o Pedro Rodrigues do lado e o Franklin Barata

11
7
no banco de trás e iam seguindo pela Rua Direita, que
de direita só tem o nome, numa conversa animada.
Como o Tózé era muito alto, só conseguia guiar o
Mini com o seu banco totalmente encostado no banco
de trás. Só que, essa posição fazia com que as pessoas na
rua não vissem o condutor, pois a cabeça dele aparecia
no lugar de trás.
Chegados ao fim da rua direita, em frente ao Mon-
tiel, passam na frente do polícia sinaleiro, que ao ver o
carro “sem condutor”, quase cai do estrado. “Um carro
sem condutor? Nunca vi! Só mesmo na Covilhã” – pen-
sou o Sub-chefe Cardoso.
O polícia saltou do palanque e pôs-se a correr atrás
do Mini a apitar que nem um louco.
Claro, todos no carro se assustaram com tamanho es-
cândalo do polícia, e até algumas pessoas que naquele
momento tomavam café na esplanada do Montiel, se le-
vantaram num repente para ver o que estava acontecen-
do e o Tózé bruscamente freou o carro, ficando à espera
do guarda.
Repentinamente, o polícia mete a cabeça no vidro da
frente e só nesse momento é que conseguiu descortinar
todo aquele enigma: o mini sem condutor.
- Ó senhor sub-chefe, o senhor não vai querer me
prender, não é? Que culpa é que eu tenho de ser tão
grande e do carro ser tão pequeno? – perguntou o Tózé
em tom de desafio, enquanto o Pedro e o Franklin riam
a bandeiras despregadas.
Nem o Sub-chefe Cardoso, mesmo com a fama de mau
que tinha, se aguentou e caiu na gargalhada também.

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FOTO ESTRELA

A ESQUADRA

E ra uma tarde fria e chuvosa de novembro, está-


vamos eu, o Rui Alberto e o Paulo Jorge, na es-
quadra da Polícia, sendo interrogados tremendo, não sei
se de frio ou de medo, ou dos dois.
- Quero os vossos pais aqui amanhã sem falta!!! É
com eles que eu quero me entender!!!
- Mas senhor sub-chefe – interrompia o Paulo Jorge.
- Não me interrompa seu fedelho! Então quer dizer
que os meninos querem que eu acredite que a boíte era
usada para estudar? E aquelas pinturas “psicodélicas”
eram para quê? Para estudarem melhor, é? Estão a go-
zar comigo? – ironizava o Sub-chefe Dias visivelmente
irritado.
- Ó senhor sub-chefe, não é que era só para estudar, al-
gumas vezes também fazíamos uns bailinhos - dizia eu.
- Cale-se você também. Quer-me fazer de trouxa?
O seu pai eu conheço. Quero-o aqui sem falta, amanhã!

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9
Vais ver o que é bom prá tosse! – gritava ele.
Dois ou três dias antes, numa tarde, tínhamos feito
um “bailinho” na boíte do sótão da casa do Paulo Jorge.
Tinha as paredes pintadas de preto, com umas silhue-
tas em branco, luzes indiretas, equipamento de som, al-
mofadas espalhadas pelo chão... “do jeito que o diabo
gosta”. Com as luzes todas acesas, era um breu só. As
raparigas presentes ao evento estudavam na Escola In-
dustrial, e uma delas, mentiu para o pai, dizendo que
iria ter aulas nessa tarde. Bom, o pai descobriu tudo; fez-
lhe um interrogatório e ela “entregou o serviço”. Como
ele era amigo do Sub-chefe Dias – tinham estudado jun-
to na escola primária em Casegas, onde tinham nascido
e crescido juntos, pediu-lhe para fazer uma investigação
do “delito”. Reconhecimento do local, inspeção e tudo a
que tinha direito.
No dia anterior, aquando do reconhecimento do lo-
cal, diz o Sub-chefe:
- “Atão” ande lá, acenda aí as luzes “pra” fazermos
a inspeção”
- Paulo Jorge, estás parvo ou quê? Não estás a ouvir o
que o Sub-chefe tá mandando? Acende as luzes! – gritou
o senhor Simões.
- Mas, mas, pai já estão acesas. – respondeu baixinho
o Paulo Jorge todo encolhido.
- O quê? Já estão acesas? Mas que pouca vergonha é
esta? Sabe o que é isto senhor Simões? É o “psicodélico”!
- Interditado até segunda ordem! – ordenou o Sub-
chefe, impondo a sua autoridade.
Como parte do processo investigatório, fomos cha-
mados a prestar depoimentos, por isso ali estávamos
nós sendo interrogados pela autoridade policial.
Percebendo que o Sub-chefe não gostava de ser con-

120
trariado, e que o rumo da conversa estava indo de mal a
pior, o Rui Alberto, mudou a estratégia:
- Desculpe lá, mas ó senhor sub-chefe, o senhor tam-
bém já foi jovem.
- Que é isso menino, que confiança é essa? – repreen-
deu o polícia.
- Mas senhor sub-chefe, com todo o respeito, dá para
se ver, que com a sua estampa de hoje o senhor devia ser
boa pinta quando tinha a nossa idade - ia investindo o Rui.
- Olha, não é para me gabar, mas até que eu fazia um
certo sucesso com as raparigas lá na minha terra – disse
o Sub-chefe todo inchado, ajeitando o nó da gravata.
- Naquele tempo, fazíamos muitos bailes, mas eram
no adro da igreja, com os pais das raparigas observando,
de olho bem aberto, tomando conta das filhas. – contava
o polícia já descontraído.
- Ó Martins traz aí um radiador para os garotos aque-
cerem os pés, que estão com as botas todas molhadas. -
ordenou o Sub-chefe, ao cabo de serviço.
- Mas meninos contem lá, o que é que faziam com as
rapariguinhas naquela escuridão toda? - perguntava ele
com um ar de curiosidade.
Naquela altura do campeonato, o diálogo era só en-
tre o Rui Alberto e o Sub-chefe Dias. Eu e o Paulo Jorge
só ouvindo, já um pouco mais descontraídos.
- Olhe ó senhor sub-chefe, a coisa não passou duns
beijitos, por sinal bem mal dados. – respondeu o Rui.
- Mas naquele escurinho, nem uns avançozitos? –
perguntou o sub-chefe, chegando-se mais à frente, todo
interessado.
- Nada, senhor sub-chefe, nada. O senhor sabe, já
estamos em época de provas, andamos preocupados, a
coisa não “róla” fácil. – respondeu o Rui.

12
1
- É... no meu tempo a “coisa” era mais difícil, para
sair um beijito era um Deus nos acuda. - dizia o Sub-
chefe com cara de quem estava recordando o passado.
E a conversa foi indo cada vez mais descontraída, de
forma que já se tinha consolidado ali uma boa amizade.
- Bom, na verdade, pensando bem, quem mentiu
“prós” pais foi a filha do Zé Bento...- dizia ele baixinho.
- Bem, rapazes, passam aqui o resto da tarde, como pe-
nitência, para nunca esquecerem deste episódio, sequem
as botas e depois podem ir embora. E olhe ó Pimentel, se
por acaso se lembrar, diga lá ao seu pai, para quando pas-
sar por aqui perto, dar uma entrada para tomarmos um
café. E você Simões, mande um abraço ao seu avô Manel.
– finalizou o nosso grande e novo amigo Sub-chefe Dias.
Fomos embora todos contentes, achando que tudo
tinha já acabado, mas não tinha.
Chegou-nos aos ouvidos, que o Zé Bento, homem de
“pavio curto”, vigoroso e entroncado, funcionário dos
Serviços Municipalizados, ao saber que tudo tinha aca-
bado em águas de bacalhau, andava vociferando para
os amigos que enquanto não nos marcasse o lombo com
um chicote feito de cabo elétrico de grosso calibre – feito
por ele mesmo - não ia descansar.
Foram dias e dias de pânico para os três rapazolas de
dezessete anos, cuja rotina diária não passava de casa/
liceu/casa; tínhamos medo até da sombra. O Rui Alber-
to, em alusão ao histórico “Setembro Negro” israelita,
“batizou” até o acontecimento de “Novembro Negro”.
Assim que o fogo amainou e o fumo da raiva se des-
vaneceu, a boíte voltou a laborar a pleno vapor, mais
“psicodélica” que nunca.

122
O PUM DO MESTRE

C ontava-se que:
Era um sábado de verão, o Mestre, com seu cha-
ruto pendurado no canto da boca, dava o seu passeio
para fazer a digestão do farto almoço que tinha comido
no Pintado - um belo cozido à portuguesa – acompa-
nhado por meia garrafa de tinto da Adega da Covilhã
– Conde de Caria - como era de seu gosto.
Ia-se dirigindo ao seu estabelecimento, que ficava na
rampa da Igreja de S.Tiago, em frente à Casa de Saúde,
quando ali na porta da mercearia do Romano, o Mestre
não aguentou e soltou um daqueles seus famosos es-
trondosos puns...

12
3
Um polícia que vinha bem atrás dele, que para seu
azar era o Sub-chefe Dias, famoso pelo seu mau humor,
não perdoou:
- Ó Mestre, desculpe lá, mas vou ter que multá-lo.
O Mestre olha para o Sub-chefe muito admirado e
pergunta:
- Então, quanto é?
- São dez escudos! - responde-lhe o Sub-chefe Dias.
O Mestre vendo que não tem outro jeito, abre a car-
teira e olha para cá, olha para lá... e solta outro grande
pum, dizendo ao Sub-chefe:
- Olhe tome lá vinte que hoje não tenho cá troco...

124
A PISCINA

T udo começou com um saco de cimento. Pois é,


foi assim que a piscina da Covilhã começou para
mim. Naquele meu aniversário, no início dos anos 1960,
o meu pai disse-me, democraticamente: “olha o teu pre-
sente este ano vai ser um saco de cimento, que vais doar
para as obras da piscina”.
Essa doação fazia parte da primeira campanha de ar-
recadação de fundos para viabilizar as obras da piscina
da Covilhã. Sonho esse idealizado e realizado por um
grupo de amigos, formado pelo meu pai - Fernando Pi-
mentel, Armando Faria, José Varanda, João Câncio, Ós-
car Monteiro, e outros entusiastas covilhanenses.
Na época, o Fundão e Alpedrinha já tinham as suas
piscinas, que nós habitualmente frequentávamos.
Vencidas muitas dificuldades e desafios, a tão sonha-
da piscina foi finalmente inaugurada em maio de 1968.
A piscina era para nós a segunda casa; na verdade, fi-

12
5
cávamos mais tempo lá, do que em casa. Uma boa parte
das nossas “férias grandes” eram lá passadas.
Para muitos, foi lá que tudo começou a acontecer: os
primeiros namoricos, o primeiro cigarro, os primeiros
bailinhos, as primeiras braçadas, as primeiras competi-
ções, muitas amizades nasceram ali. Era pura diversão.
Também lá se realizavam as festas dos santos popu-
lares, com os tradicionais bailes sempre animados por
famosas bandas – conjuntos, chamávamos na época - e
apetitosas sardinhadas.
Tudo lá funcionava perfeitamente. As instalações
sempre limpas e em pleno funcionamento, as águas das
piscinas sempre límpidas e transparentes, a relva bem
aparada. Realmente tudo impecável.
Essa organização e bom funcionamento, tinha por
trás a competência e a dedicação do senhor Gíria, o Chi-
co Gíria, como lhe chamavam os amigos, que aliás tinha
muitos. Quem não se recorda dele?
O senhor Gíria era o “faz tudo”: coordenava, admi-
nistrava, recebia reclamações, mantinha a ordem, cha-
mava a atenção dos descumpridores, prestava os primei-
ros socorros, enfim...cuidava de tudo e como se fosse a
sua casa. Era sempre o primeiro a chegar e o último a ir
embora.
Passaram pela piscina, vários professores/treinado-
res de natação: Saraiva, Ricarte, Portugal, mas o senhor
Gíria sempre lá, firme e forte. Era a alma da piscina.
Era o nosso anjo da guarda. Quando me apanhava
na brincadeira, vinha logo me perguntando: ”já treinas-
te? Não te vi nadar hoje. Quantas piscinas fizeste? Olha
que a prova está chegando”.
Nas competições de natação, era ele que nos pre-
parava com massagens, e óleos especiais para melhor

126
deslizarmos, fazia a preleção de incentivo: “vai lá!
Mostra-lhes o que sabes...”, e o primeiro a nos abraçar
na chegada. Talvez por não ter filhos, nos consideras-
se como tal. Mantendo sempre um sorriso entreaberto,
era enérgico conosco, mas ao mesmo tempo, paciente e
compreensivo. Nunca o vimos gritar ou mesmo alterar
o tom de voz para se fazer respeitar.
O senhor Gíria foi um desportista completo. Todos
os fins de tarde, já com a piscina fechada, nadava qua-
renta piscinas, no estilo bruços, seu preferido; deslizava
com extrema leveza, velocidade e movimentos bem co-
ordenados. Foi um grande esquiador – nos tempos em
que nem existia teleski - e um dos maiores alpinistas da
Covilhã. Foi com ele que aprendi a fazer escalada em
“rapel” em incursões que, frequentemente, fazíamos
pela serra – que ele conhecia como ninguém.
Apesar de tanta dedicação, talvez nunca lhe tenha-
mos agradecido.
Pois é senhor Gíria...sempre é tempo: o meu muito
obrigado!
O nosso bem-haja!

12
7
A INVICTA

Ela está lá desde o século XVII. Tem sido a testemu-


nha de todos os acontecimentos mais importantes
ocorridos na Covilhã nos últimos trezentos anos. Conti-
nua lá, altiva, a maior testemunha do tempo, majestosa e
intocável. A mais observadora e a mais observada de to-
das. Tudo mudou no Pelourinho durante os últimos tre-
zentos anos, mas ela não. Tudo foi demolido, construído
e reconstruído. A mais chique de todas. A mais divertida
de todas. A mais torta de todas. A mais descentralizada
de todas e ao mesmo tempo a mais central de todas.

128
Todo o seu entorno já mudou, já teve escola, estacio-
namento, tudo, mas ela lá está imponente. Nos muitos
projetos urbanísticos desenvolvidos para o Pelourinho,
terá sido com certeza, a maior cobiça, o maior desejo
de algum ou alguns arquitectos mais vermelhos, mais
ateus. Mas ela está lá, humilde, mas ao mesmo tempo
exuberante. Ninguém teve, tem, ou terá coragem de
mexer com ela. Tudo gira à volta dela. A cidade cres-
ce, moderniza-se e transforma-se à sua volta, mas ela
continua lá invicta. Ela é respeitada sem pedir respeito.
A mais carismática por natureza. A maior estrela dos
postais mais bonitos, da praça mais bonita, da cidade
mais bonita.
É lá que se concentram e é de lá saem as mais belas
e singelas expressões da fé cristã, da cidade e da re-
gião - as procissões.
A eterna matriarca da família covilhanense – a Igreja
da Misericórdia.
Eu, quando jovem, como a maioria, era “obrigado”
pelos pais, a assistir à missa todos os domingos, preferia
fazê-lo na Igreja da Misericórdia.
Era a menos demorada, terminava sempre antes das
outras, o padre dava o “recado” de uma forma mais ob-
jetiva. Era mais rápida e menos maçante.
Gostava de assistir à missa num mezanino no pri-
meiro andar, que se alcançava subindo uma escadaria
na lateral externa da igreja. Lá estava-se mais à vonta-
de. Tinha pouca gente, só homens, era um ambiente que
permitia uma conversa paralela, um comentário, e além
disso podia-se acompanhar o movimento do pelouri-
nho, por uma janela bem posicionada.
Para quebrar a monotonia da missa, quase todos os
domingos, no meio da celebração, entrava na igreja o

12
9
“Cinco Réis” – um mendigo muito conhecido na cidade
- que cumpria sempre o mesmo ritual: dirigia-se à ima-
gem de Cristo levantava-lhe a túnica, levantava também
a sua calça e comparava a perna dele com a de Cristo,
benzia-se e saía.
Até hoje ninguém descobriu qual era a comparação
que ele fazia.
E antes de sair, enfiava a cabeça na pia da água benta
e fazia “brê brê brê”, situação que provocava, uma – ain-
da que contida – risada geral.

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O ALBERTO VAZ NA NAVE

O Alberto Vaz era um sujeito de meia idade, boa


pinta, estatura mediana, meio para o forte, na-
riz avermelhado, sempre bem vestido. Era muito sim-
pático, conversador e andava sempre bem disposto.
Gostava muito de comer e muito mais de beber. Tra-
balhava no Tribunal do Trabalho, que na época funcio-
nava no Palacete Jardim. Morava ali para os lados da
Igreja de S.Tiago. Um copinho e um bom petisco numa
tasca ali para os lados do Ginásio, “estava nas suas sete
quintas”
Conta-se que certa vez, foi para a serra com um gru-
po de amigos, passar um fim de semana. Foram no Opel
Manta do Fernando Parrana de quem era muito amigo
e especialmente um bom companheiro de copos. Leva-
ram os mantimentos suficientes para a estadia, na Nave
de Sto.António, na casa do Manecas.

13
1
O Manecas foi um dos grandes desportistas da Co-
vilhã, que com o seu entusiasmo, em muito contribuiu
para o desenvolvimento do basquetebol na cidade.
Quando chegaram, sábado depois do almoço, arru-
maram tudo em casa, acomodaram a comida e as cerve-
jas no frigorífico, arrumaram as camas e foram dar um
passeio.
O Alberto disse aos amigos:
- Olhem, vão vocês, que estou cansado. Vou ficar por
aqui.
Os amigos foram fazer umas visitas a uns conheci-
dos, ali na Nave mesmo, tomaram um café no bar, e com
isso passaram-se umas três horas.
Na volta a casa, o que é que eles encontraram, o Al-
berto dormindo, e todos os mantimentos tinham sim-
plesmente desaparecido. Na realidade estava tudo na
barriga do amigo.
O Alberto Vaz comia tanto, que, conta-se que uma
vez foi com o Tó Campos a um casamento na Estalagem
da Neve, no Fundão, e mal entrou no salão, sentou-se
em frente da mesa dos frios, agarrou num pratinho e
começou a comer. Passado um pouco, chamou o empre-
gado e disse: “Ó Jeremias os passarinhos já cá cantam no
chassis”. Só que tinha acabado de comer dois frangos e
bebido duas garrafas de tinto, da Adega do Fundão!!!!
- O que é vamos fazer agora? Não temos mais co-
mida, não temos mais bebida. Como é que vamos ficar
aqui? – perguntaram-se entre si.
- Bom vamos embora, não temos alternativa. – con-
cluíram.
- E o que é que vamos fazer com esse traste? – per-
guntou o Parrana, apontando para o Alberto, que dor-
mia e roncava que nem um porco.

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- Vai ficar aqui, para fazer bem a digestão – respon-
deram os outros.
E assim fizeram. Meteram-se todos no carro e regres-
saram à Covilhã.
Dizem que o Alberto ficou mais de um mês sem olhar
na cara dos amigos.

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3
FOTO ACADEMICA

O RIN TIN TIN

Sempre gostei muito de animais, especialmente de


cães, talvez porque desde crianças sempre tive-
mos animais de estimação em casa.
Também na fábrica, tínhamos dois cães de guarda
enormes, um casal de “pastores alemães” – a Lira e o
Puscas - gostava de admirá-los, mas só por detrás de
um muro, pois eram muito bravos, treinados para se-
rem guardas mesmo e que eram muito bem cuidados
pelo guarda da fábrica, o simpático Manel da Silva.
Quando tinha uns sete ou oito anos, o meu maior de-
sejo era ter um “pastor alemão”, com certeza influencia-
do pela série, do Rin Tin Tin, cujos filmes na televisão,
nenhuma criança da minha idade podia perder. Todos os
dias pedia aos meus pais um “pastor alemão”. “És parvo
ou quê? Um cão desse tamanho aqui em casa, não dá...”
– respondiam-me sempre eles, para minha decepção.

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Até que eu era bastante razoável, pois apesar de não
perder um filme do Bonanza, nunca lhes pedi um cavalo.
Naquela época, o meu primo Tomás Pimentel, ti-
nha trazido do Porto, para a Covilhã, a raça Basset Da-
chshund, que nós chamávamos usualmente de Basset.
Gozador como era, e sabendo do meu desejo, no dia do
meu aniversário, o meu primo, apareceu em lá em casa
com o meu presente - um cachorrinho castanho - tão pe-
queno ainda, que cabia na palma da mão.
- Querias um pastor alemão? Ora aí está! – disse ele
todo risonho entregando-me o cãozinho.
- Mas um pastor alemão deste tamanho? – perguntei
eu, muito admirado.
- Claro! Querias que já nascesse grande? É só espera-
res que vais ver como vai ficar enorme. Já podes batizá-
lo de Rin Tin Tin! – respondeu ele, me convencendo.
Bom, foi-se passando o tempo, passou-se uma se-
mana, e mais outra e nada de o Rin Tin Tin crescer. As
orelhas cresciam cada vez mais, mas só que em vez de
ser para cima, cresciam para baixo. O coitado do animal
cada dia que passava ficava menos parecido com um
pastor alemão.
Mesmo assim, lá andava eu, feliz da vida, para baixo
e para cima com ele correndo por todos os lados, cha-
mando-do de Rin Tin Tin, já conformado com o tama-
nho do bicho.
Mas suponho que ele nunca se conformou de, com
aquele tamanho, ser chamado de Rin Tin Tin. Infeliz-
mente, o meu fiel companheiro acompanhou-me nas
brincadeiras somente, durante seis anos. Morreu pre-
maturamente, provavelmente em consequência de
enorme frustração. Não suportou a pressão psicológica

13
5
exercida sobre ele para crescer e se tornar um verdadei-
ro Rin Tin Tin.
Mas para mim, ele tinha-se tornado um verdadeiro
amigo. De tal forma que numa bela tarde, assim como o
herói do filme, o meu Rin Tin Tin também praticou o seu
ato de bravura e saiu do portão da casa num rompante
e correu atrás Doutor Morcela - aquele que maltratava
o seu dono com desmedidos puxões de orelhas - que
passeava pela nossa rua, acompanhado de outra profes-
sora que cortejava, mordendo-lhe as canelas e pondo-o
a correr rua abaixo.

136
IL FOTO

O CASSAPO NO GINÁSIO

A quele, era um sábado chuvoso e frio de janeiro.


Um dia típico de inverno na Covilhã.
O Cassapo tinha almoçado no Solneve com o Mes-
tre Abílio. Os dois comeram um bacalhau à braz, e para
aquecer, dividiram uma garrafa de tinto da Adega da
Covilhã.
Após o fausto almoço, diz o Cassapo para o Mestre:
- Mestre, vamos jogar uma partidinha de chichon no
Ginásio?
- Olha ó Cassapo, desculpa lá, mas hoje não vou.
Agora com o corte à Francesa que implementei, o esta-
belecimento anda cheio de fregueses. Ultimamente, está
até a fazer fila aos sábados. Vou lá dar uma ajuda ao
Frazão. – responde-lhe o Mestre.
- Bom...eu vou lá, que o dever me chama. Vou ficar lá
só até às seis ou sete, que é o tempo de “limpar” aqueles
trouxas – diz o Cassapo.

13
7
- Toma cuidado ó Cassapo, tem umas raposas ali no
meio. E eles sabem bem, que recebeste hoje o ordenado.
Quem te avisa, teu amigo é! – aconselhou o Mestre.
Eram umas dez horas da noite, chovia torrencial-
mente, quando, eu, o Paulo Jorge e o Pedro Ramos saí-
mos do Clube União, onde tínhamos jogado umas boas
partidas de snooker, e quando íamos a subir a Visconde
da Coriscada, chegando ali perto da loja do Santos Luís,
vemos o Cassapo a descer a rua, todo molhado e com o
guarda-chuva fechado, na mão.
- Então ó Cassapo, com esta chuva toda, porque é
que você não abre o guarda-chuva? – perguntamos nós
muito curiosos.
Responde ele, numa mistura de choro e revolta:
- Quando a cabeça não tem juízo, o corpo tem que as
pagar!!!

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OS PASTÉIS DE NATA

O Mestre Abílio casou-se sem grandes festas, teve


um casamento bem simples, pois também tinha
pouca família e a da sua esposa era de Lisboa, e naquele
tempo uma viagem da capital para a Covilhã, era rode-
ada de complicações, gastava-se muito tempo e era dis-
pendiosa. Ele também estava começando a vida na sua
profissão de barbeiro, razão pela qual não lhe sobrava
muito dinheiro para festas.
O Mestre como não era de perder tempo, logo pla-
neou o primeiro filho, e a sua mulher, carinhosamente
chamada por ele de “a minha chapelista” - em memória
do sogro que tinha uma loja de chapéus junto ao Orfeão
da Covilhã - ficou grávida.
Diz-se que ela tinha um gosto especial por pastéis
de nata e os seus desejos, próprios da gravidez, eram

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9
por eles. Todo o santo dia, lá ia o Mestre à Confeitaria
Lisbonense, comprá-los para lhe levar pelo menos um,
e às vezes dois.
O Mestre ao chegar a casa, já ia dizendo, para agra-
dar à mulher:
- Olha o pastelinho menina.
Os meses foram-se passando e o Mestre foi paciente-
mente matando os desejos da mulher; mas ele, que era
um pouco forreta, avesso a grandes gastos, vendo a des-
pesa em pastéis a aumentar, na conversa com os amigos
no Café, queixava-se da situação.
Conta-se que um dia, no Montalto, teve essa conver-
sa com o “velho” Brancal:
- Veja lá, veja lá, ó senhor Brancal, vossemecê quer lá
ver isto?... Sabe que a minha chapelista está grávida, não
sabe? Não é que ela agora só me pede pastéis de nata a
toda a hora, diz que está de desejos.
Responde-lhe o senhor Brancal, de pronto e sem cerimó-
nias:
- Porra !!! Olhe que não lhe dá pra pedir regueifas e
pães de quartos, catano !!! Desculpe lá, ó Mestre, mas
isso é pior que sustentar burro a pão-de-ló!

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A PISCINA DE ALPEDRINHA

E ra uma noite quente de verão de 1973, estáva-


mos na esplanada do Montalto a tomar uns fi-
nos, acompanhados duns tremoços, fumando um ci-
garrito, e a conversa girava em torno do que seria o
programa para o dia seguinte. Cansados de fazer a
mesma coisa, durante tantos dias das férias, estávamos
tentando inovar. Decidimos ir passar o dia na piscina
de Alpedrinha.
- Mas como é vamos? Sabes bem que estou sem car-
ro. – diz o Paulo Jorge.
O pai tinha-o deixado de castigo, pois tinha batido
o carro na descida da estrada da serra, depois de uma
“tósguinha” na boíte da Torralta.
- Deixa que eu peço o carro à minha mãe, o meu pai
está em África com a coleção. – disse eu.

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1
A minha mãe concordou em emprestar o carro, con-
vidamos umas amigas e lá fomos nós para Alpedrinha.
Como não tinha carta ainda, o Paulo Jorge foi guiando
o Opel 1700.
Por sinal, já fazia bastante tempo que não ia àquela
piscina, na qual passei muito tempo da infância e pré-
adolescência. Para nós, era a piscina do Dr.Sá Pereira.
Era para lá que grande parte dos covilhanenses ia se re-
frescar nos verões, antes de a Covilhã ter a sua própria
piscina. Íamos aos domingos de manhã e levávamos o
“arroz à valenciana” comprado no Montalto, que lá sa-
boreávamos ao almoço.
Passamos o dia ao sol, dando os nossos mergulhos,
aproveitamos para dar uns pinchos das pranchas, que a
piscina da Covilhã não tinha, em resumo curtimos um
dia diferente.
No fim da tarde, na volta para a Covilhã, assim que
começamos a descer a serra, numa recta, tinha um ca-
valete com uma placa de sinalização com o símbolo de
“homens trabalhando”, apesar de não ter mais obras no
local, dado o avançado da hora.
Eu e o meu amigo, olhamos para a cara um do outro
e perguntamos ao mesmo tempo:
- Estás a pensar o mesmo que eu?
Nenhum dos dois precisou responder!
O Paulo meteu o pé no freio, enfiou uma marcha atrás
no carro, voltamos uns cem metros, eu saí do carro, pe-
guei a placa, e apesar do peso, coloquei-a rapidinho no
porta-malas.
- Já sabes onde é que vamos pregar esta placa, não? –
perguntou o Paulo Jorge
- Vai ficar a cantar a caninha verde na porta da boíte.

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Fica lá a matar, aliás acho que nasceu lá. “homens traba-
lhando”... tem tudo a ver – eu respondi.
E, riamos, riamos à gargalhada, na maior galhofa, es-
trada abaixo.
As nossas amigas, olhavam uma para a outra, sem
entenderem nada, e riam da palhaçada que fazíamos.
Uns mil metros abaixo, quase no fim da recta, um
comando da Brigada de Trânsito.
- Estás com a carta, não estás? – pergunto eu.
- Estou, claro. E já vi que o livrete está aí no porta-
luvas. – respondeu o Paulo.
O guarda da GNR, com uns binóculos pendurados
no pescoço, mandou-nos parar, e já veio perguntando:
- Boa tarde. Estão a divertir-se bastante?
- Até que estamos senhor guarda, passamos o dia ali
na piscina de Alpedrinha.
- Deu para perceber, estão num bronze só. Deixe-me
lá ver os documentos. A sua carta e o livrete do carro. –
disse o guarda.
- Sim senhor, senhor guarda, está tudo aqui – respon-
deu o Paulo Jorge, entregando os documentos.
O guarda, olhou, conferiu, e disse:
- Muito bem, está tudo certo. Mas ainda que mal lhes
pergunte, e aquele sinal de trânsito vão levar para quê?
E para onde?
- Que sinal, senhor guarda? – perguntamos nós, fa-
zendo-nos de desentendidos.
- Ora, ora, não queiram me fazer de idiota. Saiam
logo do carro seus espertinhos e abram o porta-malas.
- O que é isso? Nem tínhamos reparado – responde-
mos nós olhando para o sinal com cara de parvos.

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3
- Ah nem tinham reparado? Ah é? Então vão devol-
ver donde vocês tiraram.
Íamos a entrar de novo no carro, quando o guarda
pergunta:
- Onde é que vocês vão? De carro? Nanananão!!! A pé!
- Mas a pé? – nós perguntamos muito admirados.
- É, a pé!!!

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O MESTRE NAS ARCADAS

C ontava-se na cidade, que:


Andava o Mestre a fazer o seu passeio matinal
habitual, nas arcadas da Câmara, fumando o seu charu-
to, quando um de seus amigos – o Cassapo - se aproxi-
mou e desesperadamente, conta-lhe um história triste:
- Ó Mestre já soube de ontem à noite?
- Não, não soube de nada, o que aconteceu? - pergun-
tou-lhe o Mestre curioso.
- Então Mestre, ontem à noite fui jogar chichon no
Ginásio e perdi a féria toda, dei um azar desgraçado.
Comecei a ganhar e a ganhar bem, mas a sorte virou e

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5
agora estou aqui numa situação, que não tenho dinheiro
nem para pagar o aluguer. – disse o Cassapo em tom de
choramingas, e já foi logo emendando:
- Ó Mestre não poderia me emprestar uns cem escudos?
O Mestre sempre ajudava os amigos, mas percebia
que já estava havendo um certo abuso. Já colecionava um
lista enorme de devedores. E com o Cassapo, particular-
mente já tinha perdido a paciência, pois já o tinha alerta-
do das “raposas” com quem ele jogava no Ginásio.
Sempre com aquela calma que lhe era peculiar, o
Mestre abre a carteira e tira uma “camisa de vénus”,
entrega-a ao seu amigo e diz-lhe:
- Olha ó Cassapo, vai f.... outro, que a mim já me f......

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AS JANEIRAS

E ra hábito no começo do mês de janeiro, antes do


Dia de Reis, Associações ou Entidades Organi-
zadas, irem de casa em casa, à noite, cantar as Janeiras.
Quando se ouvia a música sendo tocada, na rua, acen-
díamos a luz de fora, do quintal, como sinal de que es-
távamos não só a ouvir, mas a apreciar a execução das
melodias de Natal. Eram músicas executadas por mui-
tos componentes impecavelmente fardados, muitos ins-
trumentos e extremamente afinadas.
Ao término, um representante do grupo entrava na
casa, a nosso convite e o meu pai doava uma contribui-
ção dentro de um envelope.
Mas não era dessas Janeiras de que eu mais gostava,
achava-as muito formais.

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7
Eu gostava mesmo, era daquelas, cantadas antes de o
Natal acabar. Eram cantadas, nas noites frias que prece-
diam o Natal, pelos “garotos da rua”, que quase sem ins-
trumentos, entoavam sem muita afinação, mas com mui-
to entusiasmo, músicas com uma melodia muito simples,
mas agradável e com uns versos muito engraçados.
Vinham em grupos de uns seis garotos, munidos
apenas de uns ferrinhos e um pequeno realejo, e mal
agasalhados, tremendo de frio, conseguiam entoar ver-
sos que apesar da sua simplicidade, adorávamos ouvir:

Ainda agora aqui cheguei


E pus o pé nesta escada
Logo o meu coração disse
Que aqui mora gente honrada

Levante-se lá senhora D.Laura


Desse banquinho de prata
Venha-nos dar as janeiras
Que está um frio que mata

E assim continuavam os versos até que vinha a parte


de que eu mais gostava. Saíamos da casa, e muito agasa-
lhados vínhamos ao encontro deles, para lhes servir uns
cálices de Vinho do Porto, para aquecerem, e uma ban-
deja de “filhoses”, levemente cobertas de açúcar, para
lhes matar a fome.
Antes de irem para a próxima casa, cantavam como
agradecimento:
Ó que estrela tão brilhante
Que vem dos lados do norte
À família desta casa
Deus lhe dê uma boa sorte

148
IL FOTO

O MONTALTO

O Café Montalto fez parte das nossas vidas em


todas as suas fases. Foi uma lenda na cidade.
Era mais que um café, era um ponto de encontro, onde
todos se reuniam, o tempo todo, para discutir todos os
assuntos. Apesar de existirem controvérsias, na minha
opinião o Montalto era lugar democrático, que qualquer
um podia frequentar, independentemente da classe so-
cial a que pertencia. Não existiam classes, existia gente.
Jamais alguém foi impedido de lá entrar ou permanecer
pelo tempo que quisesse, tivesse ou não possibilidades
de consumir o que quer que fosse. Nós, estudantes na
época, somos testemunhas disso, ficávamos lá horas e
horas, muitas vezes sem nada consumir.
Comecei a frequentar o Montalto com o meu pai
aos domingos depois do almoço, antes de ir ao “Santos
Pinto”, assistir ao jogo do dia. Sentava-me àquela mesa
redonda de tampo de mármore cinzenta, com ele e os
amigos, atento às conversas, cujo tema, era invariavel-

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9
mente o desempenho do Sporting da Covilhã naquele
dia. Numa expectativa imensa de criança, acompanhava
o passar dos minutos no relógio redondo que ficava ali
no meio da “varanda” do primeiro andar. A cada cinco
minutos, dizia ao meu pai:
- Não era melhor irmos?
Mas a “reunião” ainda ia longe.
- Ó Celestino, arranje-nos aí um “vinte e um” – pedia
o meu pai.
Divertiam-se jogando a bica ao “vinte e um”. Eu fica-
va triste quando ele perdia. Ficava pensando: “mas isso
é um grande prejuízo. E agora?”
Foi lá que o meu pai com os amigos, idealizou, discu-
tiu e decidiu a construção da piscina da Covilhã.
Foi lá que vi o nosso grande amigo, Luís Filipe Sa-
raiva, interceder por mim, junto ao meu pai: “Ande lá...
compre lá os skis ao garoto”. E fiquei maravilhado quan-
do ele na mesma hora, pediu a um outro amigo - gerente
da Casa do Leão -, sentado ali por perto: “Ó Zé Hermí-
nio, veja lá uns skis e umas botas para o meu filho”.
Foi lá que vi o meu pai vender cinquenta mil metros
de fazenda a um só cliente, numa só tarde. Pensei: “mas
é tanto metro que quase chega a Castelo Branco”. Foi
lá que vi o meu pai tomar grandes decisões de moder-
nização da sua indústria, e que ao mesmo tempo o via
brincar intimamente e sem cerimónias com o Joaquim
engraxador, com o Jeremias, com o Celestino, com o
Chico, empregados da casa há muitos anos. Emprega-
dos esses, que como o senhor Fonseca e o senhor Alves,
ao reverem-me após vinte anos, com os olhos marejados
mandaram um abraço emocionado para o meu pai.
Com aquela competente equipa de empregados,
tudo funcionava perfeitamente sob o olhar discreto mas

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atento do senhor Artur Campos que acompanhava o
movimento, fumando o seu cigarrinho com uma boqui-
lha, elegantemente encostado no balcão.
Era lá que o meu pai, em domingos especiais, ia bus-
car o mais delicioso “arroz à valenciana” que eu já expe-
rimentei. “Paellas” já comi muitas, mas igual à do Chefe
Ribas, não tem. Era a “estrela” presente nos almoços na
piscina de Alpedrinha, ou nos piqueniques dominguei-
ros na Lagoa Comprida, com os Manganas, nossos ami-
gos, ou até mesmo em casa.
Tudo o que era produzido no Montalto permanece
gravado em nossas memórias. Coisas simples, e peque-
nas e aparentemente sem grande importância, trazem-
nos recordações tão grandes, que são difíceis de des-
crever. Atrás dessas “pequenas coisas”, havia sempre
“grandes coisas”.
O que o “farta brutos”, ou a “barquinha de ananás”,
ou o bolo de arroz, ou o simples pires de tremoços, ou a
groselha, ou os pudinzinhos flan servidos na forminha,
podiam significar? Mas, tinham sim um sentido, um sig-
nificado muito especial, e muito peculiar para cada um
de nós, tanto que hoje “essas pequenas coisas” nos tra-
zem muitas recordações e saudades.
Frequentávamos, os diferentes “ambientes” do
Montalto em diferentes épocas. Na cave, jogávamos
longas e disputadas partidas de bilhar e de snooker.
No “túnel” experimentamos as primeiras ceias – o ines-
quecível bife com ovo a cavalo – acompanhado de um
delicioso vinho ou de um fino gelado no ponto certo. E
o primeiro andar foi o palco dos nossos “flertes”, dos
primeiros namoricos, o cigarro cravado ao amigo, e as
conversas e discussões intermináveis.
Era incrível como tudo “girava” em torno do Mon-

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1
talto. Antes de fazermos qualquer “coisa”, passávamos
antes pelo Montalto, e depois de fazermos essa “coisa”,
passávamos pelo Montalto. Até há poucos meses atrás,
quando telefonava à minha mãe e o meu pai não estava
em casa, eu ainda lhe perguntava: “Então...? foi até ao
Montalto?”
Foi de lá que vimos sair, certo professor, para “passe-
ar” a tampa da sanita, debaixo do braço, trocada distra-
ídamente pela sua pasta inseparável.
Até as estações do ano eram anunciadas pelo Mon-
talto. Quando eram abertas as enormes portas de ferro,
começava a primavera. Quando se montavam as mesas,
cadeiras e guarda-sóis na esplanada, tinha mesmo che-
gado o verão.
Quem não tem boas recordações e não sente sauda-
des do Montalto?
Senhor Artur, o meu, o nosso reconhecimento, pois
mesmo sem o senhor perceber, proporcionou-nos mo-
mentos de muita felicidade.

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OS NEVÕES

Q uando era criança, no inverno era muito co-


mum, sermos acordados de manhã, pela mãe,
nos dizendo:
- Acordem meninos, está um grande nevão, levan-
tem-se para irem brincar na neve.
Ficávamos uns momentos sentados na cama, para-
dos, prestando atenção, e pelo silêncio, logo percebía-
mos que era verdade. Que felicidade. Estávamos certos
que íamos ter pela frente um dia maravilhoso, feliz,
brincando na neve e sem aulas. Tinha coisa melhor?
Só o facto de não ir às aulas já era uma maravilha. Já
estava no lucro. Ia passar o dia sem apanhar as famosas
reguadas da D.Zizi minha professora da quarta classe.
A minha mãe agasalhava-nos com meias de lã, botas,
camisolas grossas, garruços, feitos pela Tia Gina e antes
de irmos para a rua, dava-nos uma gemada com Vinho
do Porto, para enfrentarmos o frio.

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3
Vínhamos para a rua, e naquela paisagem toda bran-
ca, o ambiente silencioso das fábricas paradas e sem car-
ros nas ruas, juntávamo-nos aos vizinhos e amigos, os
Santos Luiz e os Rodrigues. Aquela malta toda na rua,
deslizando com trenós, fazendo bonecos, guerreando
com bolas de neve. O Pedro tinha um trenó enorme. Vi-
nha com os skis do pai, que tinham uns dois metros de
altura e a nossa rua mais parecia uma verdadeira estân-
cia de ski.
Um daqueles dias foi especial. Eu ia fazer o teste dos
meus primeiros skis, construídos por mim. Logo no iní-
cio da férias do natal, arranjei duas tábuas, cortei-as na
medida duns skis, e como era impossivel fazer a curva-
tura, “lixei” a frente das tábuas no muro do quintal, fiz
as fixações com pregos e arame e pronto os skis estavam
prontos. Os bastões foi fácil: dois paus de vassoura com
uns cordões nas pontas.
E ainda que rudimentares, os skis funcionaram. Lá
andei o dia todo dando as primeiras deslizadas rua
abaixo, que foram suficientes para me transformar num
grande aficcionado naquela modalidade desportiva.
Era feliz e não sabia...

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A COLÓNIA

A antiga Colónia Infantil da Montanha só nos traz


boas recordações.
Nos seus grandes salões, realizavam-se os bailes de
Fim de Ano, e os Carnavais da Neve, organizados pelo
Clube Nacional de Montanhismo, impulsionados pelos
grandes entusiastas Dr.Duarte Simões e posteriormente
pelo senhor Luís Filipe Saraiva. Tais eventos eram sem-
pre animados por bons conjuntos, nomeadamente, Os
Cometas, de Castelo Branco, e os Rapazes da Montanha,
o Cop3set e o Orange, da Covilhã.
Os Carnavais da Neve eram os mais marcantes para nós.
Quando crianças, participávamos das inesquecíveis
matinés animadas por palhaços, máscaras, muitas ser-
pentinas, e papelinhos, e acirradas guerras de pistolas
de água – compradas na loja do senhor Torrão - até fi-
carmos completamente encharcados.

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5
Já adolescentes, íamos passar os cinco dias de carna-
val no abrigo do Montanhismo das Penhas da Saúde.
Os pais de um de nós iam-nos levar lá ao sábado e só
regressávamos na quarta-feira. Não foram poucas ve-
zes que tivemos que regressar à Covilhã esquiando pela
estrada, coberta de neve. Dormíamos na grande sala, à
volta da “salamandra” que mantinhamos acesa a noite
inteira, para suportar o frio intenso.
Antes de termos os próprios skis, a Colónia disponibili-
zava-nos o material que nos permitiu o início do desporto,
apesar de muito velho, e mal conservado pelo “Manuel da
Colónia” um sujeito rabujento e sempre de mau humor.
Durante o dia, esquiávamos na pista dos Piornos até
mais não poder. Participávamos das provas de slalom,
que normalmente se realizavam no domingo de Carna-
val, e à noite íamos para os bailes do Carnaval da Neve,
onde nos divertíamos até de madrugada e em algumas
oportunidades participamos recebendo orgulhosos, os
troféus das provas de ski realizadas, numa cerimónia de
gala, de entrega dos prémios.
A organização do Carnaval da Neve, era assegurada
normalmente pelos chamados “adultos solteirões”, ou
seja aqueles que por opção deixavam o casamento para
melhor oportunidade, ou por aqueles cujas mulheres,
sendo mais tolerantes, lá lhes permitiam estar “fora” de
casa durante os cinco dias.
O bailes em si, eram uma atração à parte. Eram fre-
quentados por todas as classes sociais da cidade, e por inú-
meros turistas oriundos da capital e de outras paragens.
Os nossos pais em especial, devotavam um grande
carinho por estas festas e religiosamente lá estavam to-
dos os dias de Carnaval, divertindo-se, em grupo até al-
tas horas da noite.

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Na entrada, ao ouvir o som do conjunto, já nos en-
tusiasmávamos e a seguir, era entrar rápido no salão
para não perder tempo. Quando o Cop3set, dava os
primeiros acordes do “Samba pa Ti” do Santana, ou o
Pedro Rodrigues, começava a solar o “My Sweet Lord”,
então...era uma correria geral, um verdadeiro “salve-se
quem puder” para ir “à caça” de uma forasteira desa-
visada, pois as locais, já nos conheciam de gingeira, e
quem sabe até, ficar com a Miss Carnaval do ano...cujo
concurso tinha lugar sempre na segunda-feira à noite e
era invariavelmente presidido pela D.Gina Brancal.
Também na Colónia, entre os dias 18 e 23 de dezem-
bro, eram realizados acantonamentos, organizados pela
Mocidade Portuguesa. Dormíamos em beliches, espa-
lhados em grandes dormitórios. Apesar de dormirmos
praticamente vestidos, com calças de “sarrobeco”, pas-
sávamos um frio terrível à noite, compensado pelo café
de cevada aguado, servido numa caneca de alumínio
amolgada, no pequeno almoço, e que exalava um aroma
extraordinário, mas que nos sabia pela vida.

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7
IL FOTO

O FURÚNCULO DO ALBERTO VAZ

N uma ocasião, o Alberto Vaz apanhou uma tós-


guinha tal, numa tasca perto do Ginásio, que
não conseguia chegar a casa, e isso porque morava na
rua do Neve Hotel, perto da Igreja de S.Tiago.
Quem o socorreu naquela noite, foi o Pedro Rodri-
gues e o Fernando Parrana que tinham saído do Gi-
násio onde tinham jogado umas partidas de snooker.
Puseram-no no meio deles, penduraram-no nos ombros
e levaram-no até a casa. Chegados à porta da casa, ao
fundo das escadas, ele não conseguindo meter a chave
na fechadura, teve que tocar a campainha. A mulher, a
D.Esmeralda chegou à janela e ao ver aquela cena, diz
desanimada, lá de cima:
- Ai Alberto há trinta e oito anos casada contigo, e tu
sempre bêbado...
- E eu, Esmeralda? Há trinta e oito anos casado conti-
go, e tu sempre feia como um raio...

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- E eu ainda tenho remédio e tu não! – acrescenta ele,
dando risada.
Rindo-se para dentro, o Pedro e o Parrana, ajudaram
o Alberto a subir as escadas e lá ficou ele em casa.
Só que lhe saiu cara a brincadeira com a mulher.
Naquela altura, ele estava com um furúnculo numa
nádega, proveniente de um pêlo encravado, talvez de
tantas vezes ter subido as escadas de casa sentado. Não
deu importância ao assunto, e deixou o problema evoluir
de tal forma que teve que o lancetar no hospital. Correu
tudo de forma satisfatória, porém, curativos eram ne-
cessários para evitar uma possível infecção, e por terem
que ser feitos diariamente era mais prático fazê-los em
casa. No hospital, as enfermeiras, com muita paciência,
explicaram-lhe o procedimento da troca do penso.
Lá foi o Alberto comprar o material necessário, à Far-
mácia Pedroso.
- Ó senhor Leandro, faz favor, avie-me aqui esta re-
ceita. – pediu ele.
- Vamos lá, senhor Alberto, gaze, adesivo, pomada,
mercúrio, algodão... Está tudo aqui. – disse o senhor Le-
andro, sempre atencioso.
- Mas ó senhor Alberto, sem querer me meter na sua
vida, quem é que está doente? – perguntou o senhor Le-
andro muito curioso.
- Olhe ó senhor Leandro, isso não é da sua conta. –
respondeu o Alberto, rispidamente, talvez incomodado
com a dor que o furúnculo lhe provocava.
Naquela noite, ele tinha que fazer o primeiro curativo.
- Sou feia não sou? Então agora trocas tu o penso, ou
vai chamar os teus amigos, que são mais bonitos do que
eu, para to trocarem. – disse-lhe a mulher, com gostinho
de vingança.

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9
Ele então não teve outro remédio, senão fazer ele
mesmo o curativo. Colocou todo o material à mão, bai-
xou as calças e as cuecas, mas como era um lugar de di-
fícil acesso, associado ao seu estado de embriaguês, não
estava fácil cumprir a tarefa. Teve então uma brilhante
idéia, chegou-se junto ao espelho do guarda roupa, vi-
rou-se de costas e pronto, em cinco minutos estava tudo
pronto. Deu uma última olhada para o espelho e excla-
mou vitorioso: “quem disse que era difícil? Não preciso
de favores de ninguém”. Deitou-se no tapete e dormiu
ali mesmo, que nem um justo.
No outro dia de manhã, a mulher deparou-se com o
espelho vermelho, todo pintado de mercúrio e com um
belo penso colado com a pomada a escorrer...e o marido
dormindo como uma criança, de rabo para o ar.

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AS FESTAS DO S.PEDRO

N as noites quentes de junho, na nossa rua, e mais


especificamente na casa do Pedro Rodrigues,
que tinha um quintal muito grande, festejávamos inten-
samente os Santos Populares.
Tudo começava com a “ida ao rosmaninho”. Era um
verdadeiro ritual. Saía a malta toda pelo Sineiro em dire-
ção ao pinhal, onde ficávamos várias horas à procura de
arbustos de rosmaninho, que carregávamos amarrados
em cordas e depois descíamos a correr, montanha abaixo,
disputando quem chegava primeiro. “O último a chegar
é a mulher do Padre” - desafiávamo-nos uns aos outros.
Todo o quintal era enfeitado com balões e bandei-
rinhas de papel coloridas, confeccionadas por nós, e
divertíamo-nos pulando animadamente as fogueiras
feitas com o rosmaninho, que exalavam pelo ar um per-

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1
fume maravilhoso de alfazema.
Mal sabíamos, vim a descobrir muito mais tarde, que
os grilos que mantínhamos nas gaiolas para ouvirmos o
seu cantar, morriam com o cheiro do fumo das fogueiras
de rosmaninho.
Soltávamos bombas, foguetes e buscapés comprados
na barraca de madeira azul e branca do senhor Torrão,
localizada por baixo do Campo das Festas.
Na noite de S.Pedro, o Pedro comemorava o seu ani-
versário, e a festa era ainda mais animada, pois ele vinha
lá com o seu acordeon vermelho e punha a malta toda,
de vizinhos e amigos a dançar no quintal. Naquela noite
armávamos barracas no quintal e lá dormíamos todos
na maior folia, e na manhã seguinte éramos premiados
com as inesquecíveis torradas da D. Mili.
Recordo-me de um ano, em que o Pedro estudava em
Orjais, na Escola Agrícola, onde fazia um curso de Regência
Agrícola e como ele se dedicava mais ao solfejo e às partitu-
ras do que propriamente aos estudos do plantio da terra, as
suas notas no curso, tinham sido uma lástima total.
Com o medo, ficou-se remoendo, pensando numa
estratégia, e depois de algumas noites em claro, decidiu
o que fazer.
Foi até à agência dos Correios, no centro de Orjais e
mandou um telegrama para a mãe: “Mãe, notas horrí-
veis. Prepare pai”.
Nunca se soube exatamente qual foi a conversa da
D.Mili com o senhor Rodrigues, mas, a notícia não foi
muito bem recebida na Covilhã, tanto que o telegrama
que o Pedro recebeu em Orjais dizia: ”Pai preparado.
Prepara-te tu!”
Dizem que naquele ano, o Pedro só apareceu em
casa, na noite de S.Pedro...e na hora dos “parabéns”...

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PAIXÕES SECRETAS

P aixões secretas. Paixões ingénuas. Paixões puras.


Quem não as teve?
As paixões pela professora eram as mais comuns. Ou
melhor, pelas professoras. Eram paixões pela de Histó-
ria, pela de Francês, até pela de Matemática.
Um sorriso a mais que ela nos dava, já era motivo de
uma grande paixão, secreta. Sempre secreta. Não podia
revelar nem para o melhor amigo. Talvez para não des-
pertar nele também, qualquer sentimento pela mesma
professora. Longe disso. Seria inadmíssivel. Era a única
razão que tinha para ter a aula de novo.
E no final da aula, arranjava sempre um motivo para
ir lá na frente, tirar alguma “dúvida” com ela, ou fazer
uma pergunta sobre a matéria dada.

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3
E nessa disciplina ia bem, tirava boas notas, estuda-
va com dedicação e afinco, talvez para não causar uma
decepção na “amada”.
Eram paixões pela filha do melhor amigo do pai,
guardada em segredo, muito segredo. Não poderia nem
passar pela cabeça do meu pai uma coisa dessas.
E pela amiga da irmã mais velha...era secretíssima.
Pela irmã do melhor amigo, era a mais proibida. Essa,
então, jamais poderia ser revelada, nem sob tortura. Se-
ria a maior traição ao amigo.
Tinha também a paixão pela trapezista do circo em
visita à cidade. Ficava extasiado, achava que ela me
olhava lá de cima do trapézio. Os sorrisos distribuidos à
plateia eram todos para mim. Como era caminho da
escola para casa, voltava ao Campo das Festas, nos dias
seguintes para ver se a via, mas nunca estava lá. Talvez
até andasse por ali, cuidando dos filhos, mal vestida,
trabalhando...mas essa, era outra, não era a da paixão...
Tinha também outras paixões. Talvez menos comuns,
mas não menos importantes. Eram as paixões pela vizi-
nha, pela amiga da mãe, pela amiga da tia...
Sempre nos apaixonávamos pelas mais velhas. As
paixões pelas mais novas não tinham graça. Tinham um
certo ar de covardia...
Fantasias? Será? Pareciam tão reais...

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O MESTRE NA ROSA NEGRA

A s más línguas, contavam que:


Era uma tarde ensolarada de domingo, o Spor-
ting da Covilhã jogava fora, com o Feirense, e o filme
do cinema não lhe agradava. O Mestre, sem ter o que
fazer, resolve dar uma volta no seu Taunus 17M ver-
de, todo reluzente, lavado no dia anterior - punha os
garotos vizinhos para lho lavarem a troco duns vinte e
cinco tostões para comprarem o macito de Kentucky, às
escondidas dos pais.
O Mestre passava ali em frente à esquadra e quando
desce a rua da praça, avista uma cachopa “muita” boa,
rebolando umas belas coxas, e toda aperaltada, muito
bem arranjada, e de lábios pintados...afinal era domin-
go. Pára o carro, conserta o papilon, arruma o chapéu,
e conversa vai, conversa vem, o Mestre que não era de

16
5
perder tempo, convida-a para dar uma volta e irem ver
as vistas à Rosa Negra. Ela fez aquele charme, coisa e tal,
mas lá aceitou.
Chegando lá, o Mestre, que também não era de mui-
to se fazer esperar, pá daqui pá de lá, mão na mão, mão
naquilo, aquilo na mão, e aquilo naquilo. O Mestre ca-
prichando mexia-se “pra” cá, mexia-se “pra” lá, mas
percebia que a rapariguinha estava pouco entusiasma-
da e bem quietinha. Aquilo começou a fazer-lhe chegar
o sangue à cabeça - à do chapéu, porque à outra já tinha
chegado há muito tempo -, e ele irritado pergunta-lhe:
- Mas olha lá filha, então tu não “trabalhas”?
- Trabalho sim senhor, trabalho lá embaixo na Nova
Penteação! - responde-lhe ela.

166
O MAGUSTO

T inha uns treze anos de idade, quando numa tar-


de de sábado, de novembro já com o frio batendo
à porta, a minha mãe veio com uma idéia:
- Meninos, vamos fazer um magusto.
- Um magusto? Mas aonde? – perguntei eu e as mi-
nhas irmãs, muito admirados.
- Aqui em casa. Vamos fazer um magusto doméstico,
vou assar as castanhas no forno, temos aí umas jeropi-
gas e pronto, está feita a festa.
- Paulo, se quiseres, chama o Carlos Arroz. – sugeriu ela.
Para nós, que estávamos habituados a fazer os ma-
gustos, em grupos de uns vinte amigos e amigas, fora
de casa, no pinhal, na quinta, ou em qualquer lugar ao
ar livre, com caruma para assar as castanhas no chão de

16
7
terra, e normalmente, com uns enfarruscando as caras
dos outros, ou um “bailinho”, aquela idéia pareceu-nos
um pouco despropositada.
Mas, porquê não? A minha mãe pôs as castanhas no
forno, abrimos uma garrafa de jeropiga e fizemos o ma-
gusto ali na sala.
A minha mãe e as minhas irmãs, iam bebendo o seu
calicezinho, comedidamente, como mandavam os bons
costumes da época, mas eu e o Carlos começamos a to-
mar um cálice, e depois outro, depois era um cálice para
acompanhar as castanhas, em seguida uma castanha
para acabar o cálice... e a “coisa” foi indo.
A jeropiga era docinha, e descia redondinha, mo-
lhando a garganta ressecada pelas castanhas. Cada vez
que a minha mãe saía da sala, lá punhamos mais um
golo de jeropiga no cálice.
Fomos ficando alegrinhos, e aí decidimos fazer uma
disputa, para ver quem bebia mais. Acho que bebemos
uns quinze cálices cada um. Foi a primeira “tósguinha”
da nossa vida.
Já estávamos a “cantar a caninha verde” e o Carlos
nem sabia mais o caminho de casa. Propus-me a ajudá-
lo como se eu estivesse em melhor estado que ele, e lá
fomos os dois aos “ésses” pela rua, rindo a bandeiras
despregadas. Era o roto ajudando o esfarrapado...
Foi tal o “pilequinho”, que nunca consegui lembrar-
me qual foi o desfecho da aventura.
Mas apesar da idade, pode-se dizer que foi um pi-
leque politicamente correto - como é moda dizer ago-
ra – em casa, com a mamã, bebendo um produto genui-
namente nacional e cumprindo uma tradição da terra.

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O DR.MORCELA

D ecorria o ano de 1967, eu cursava o 2º. Ano do


liceu, que na época funcionava num prédio em
S.Silvestre.
Tinha os meus doze anos, e não queria saber lá muito
de estudar. Queria saber sim, era de jogar pirulita, jogar
ao prego, correr pelos pátios, já começava a olhar as me-
ninas, mas estudar que é bom...
A minha maior dificuldade era Ciências, aquilo
não ia nem por nada. E para ajudar, o professor era o
Dr.Morcela. Francisco Ligório Morcela. Famoso pelo seu
jeito autoritário e muito exigente. Não podia ver uma
orelha na frente que já queria puxar. O homem não era
fácil e mau aluno com ele, “não tinha vez”.
Quando me chamava ao quadro, pronto!!! Eu ficava
lá sentado, encolhidinho na carteira, tentando passar o

16
9
mais despercebido possível, com cara de paisagem, mas
não adiantava.
- Qual é a diferença entre latitude e longitude? - per-
guntava ele.
Silêncio total. Não se ouvia uma mosca.
Aí ele atacava com mais força:
- Não ouviu a minha pergunta?
Se em silêncio eu estava, em silêncio continuava, pare-
cia um poste ali plantado no estrado, a olhar para as bom-
bas do Caninhas que ficavam lá embaixo, à Palmatória.
Aí, lá vinha o repertório dele:
- Levanta-se o padeiro às seis da manhã, “pra” dar de
comer a esta calinada. Corja de cabulões!!!
- Desça já desse estrado!!! - mandava ele.
Eu pensava: “Já está o caldo entornado!”
Trocávamos de lugar. Eu descia do estrado e ele su-
bia no estrado. Esta mudança permitia-lhe ficar mais
alto e com isso torcer-me melhor as orelhas. Torcia-as
até estalarem. Demonstrava uma raiva e um ódio inco-
muns. Ficava vermelho, a cara dele até inchava. Eu via
aquelas narinas abertas na minha frente, que naquela
hora parecia mais, um monstro que estava ali.
O sistema educativo que ele tinha escolhido, comigo
parecia não funcionar, pois as minhas notas iam de mal
a pior.
O dia da prova em si, era menos doloroso do que o
dia da entrega, que seguia um ritual que devia ter pelo
menos uns vinte anos, sempre igual:
Mandava escrever o sumário: “Análise, apreciação e
entrega do exercício escrito de apuramento”.
A seguir, fazia um resumo dos resultados: ”dois bâes
grandes, quatro bâes pecâinos, seis ésses grandes, cinco

170
ésses pecâinos, dois ésses pecâinos cum pontinho, oito
émes, um éme cum pontinho....”
Depois, chamava um a um lá na frente, para receber
a prova: “númaro um, bâe grande, númaro dois, ésse
pequeno cum pontinho....e lá ia até chegar ao meu, nú-
maro vinte e nove: éme cum pontinho.
Tinha que arranjar um solução para reverter aquela
situação. Terminei os dois primeiros períodos com pés-
simas notas. Faltava o terceiro e último período. Só um
milagre podia-me safar.
Pois é, foi preciso “a água chegar ao umbigo” para que
eu e o meu amigo Manel Álvaro percebessemos que algu-
ma providência tinha que ser tomada imediatamente.
A caminho de casa, no fim das aulas, já íamos ali ao
cimo da rampa de Sta. Marinha, em frente à Canada
Dry, quando eu digo:
- Ó Manel, tive aqui uma idéia do caraças. Pensa
bem, estamos a ir mal “pra” burro, e do jeito que vão as
coisas, acho que vamos mas é chumbar. E se começásse-
mos a ir à missa?
Responde o Manel:
- É pá boa idéia. Anda que já encontraste a solução!!!
Aí ele pensa um pouco e acrescenta:
- Ó Paulo, podíamos ainda fazer melhor, para não
ter erro.
- Então diz lá - peço-lhe eu.
- Olha vamos fazer assim: vamo-nos confessar, e co-
mungamos também. Aí não tem falhanço. Amanhã à
tarde já começamos.
- Vamo-nos confessar quando lá estiver o Padre Fer-
nando, porque as penitências do senhor Padre Andrade
são piores, o que é que achas, ó Manel? - pergunto eu.

17
1
- Boa idéia! - diz ele.
Mesmo tendo-me confessado ao Padre Fernando,
ainda levei uns bons “Pai Nossos” e umas dúzias de
“Ave Marias”.
Lá começamos...Íamos todos os dias à missa das seis
da tarde na Igreja de S.Francisco, e éramos os últimos
a comungar. Éramos muito educadinhos deixávamos
sempre os mais velhos ir na frente.
Bom, as provas ia vindo e a coisa não melhorava.
Más notas atrás de más notas.
- Ó Manel pá, como é que é isto? Parece que não está
dando certo.- eu reclamava.
Dizia o Manel:
- Calma, calma, que o milagre vem no fim.
Pois é, o fim chegou e não teve milagre nenhum.
Como não poderia deixar de ser, levamos um chumbo
no liceu e uma bela sova em casa.
Foi aí que a “Grande Escola da Vida” me deu a pri-
meira lição: ”Fia-te na Virgem e não corras, que verás o
pontapé que levas”.

172
O MESTRE E A MAÇAROCA

O povo conta que:


O Mestre era também um pouco mulherengo. E
como todos sabiam, um grande gozador.
Numa noite de verão, andava ali a passear pelo Pe-
lourinho, já tinha tomado uns finos no snack bar do
Montiel, entrou no velho Skoda e resolveu visitar uma
amiga de longo tempo, a “D. Esperança” que morava ali
depois da Fábrica Alçada, no começo da estrada que vai
para a Aldeia do Carvalho.
Chegando lá, ela fez-lhe um café, como era de costu-
me, sentaram-se no sofá para trocar umas idéias, e de-
pois de uma descontraída conversa, lá fazem o que têm
que fazer, e no final enquanto a senhora se arranjava,
diz o Mestre indo embora:
- Olha menina, fica-te aqui “pra” uma galinha...

17
3
Assim que ela voltou ao quarto, abriu a gaveta e de-
para-se com uma maçaroca de milho...
Numa outra ocasião o Mestre para se divertir um
pouco, resolveu fazer também uma “brincadeira” com
uma outra sua amiga, a “Graça do Canhoso”, mas dei-
xou-lhe lá um botão... já imaginaram o que ele disse ao
sair: ”fica-te aqui “pra” um casaco....”

174
O CAMPO DAS FESTAS

E u e o Manel Álvaro, morávamos perto e estudá-


vamos na Escola Primária da D. Gabriela Sêco,
que ficava em frente ao Sindicato. Na volta para casa,
muitas vezes, em vez de subirmos a Rampa de Sta.Ma-
rinha, entrávamos numa rua à direita que nós chamáva-
mos de “Rua do Moreira Neves”, rua em que morava o
nosso amigo do mesmo nome, e que terminava no Cam-
po das Festas.
Quando chovia muito, geralmente no inverno, for-
mavam-se lá, alguns pequenos lagos em volta das ár-
vores, que eram a nossa diversão. Nesses dias, calçando
galochas de borracha, divertíamo-nos andando no meio
daqueles “lagos”.
Era também no Campo das Festas, que jogávamos
grandes partidas de futebol, fazendo de duas árvores,
as balizas.

17
5
Era lá que eu ia andar de biciclete alugada na oficina
e loja do “senhor António das Bicicletes” ou Barateiro
como também era conhecido, o dono, um velhinho ra-
bujento. Tinha preferência por uma vermelha. O tama-
nho desse nosso quintal, convidava-nos a fazer grandes
corridas.
As famosas feiras de S.Tiago, foram realizadas du-
rante muitos anos no Campo das Festas. Era lá que
comprava, naquelas barracas coloridas e cheias de bu-
gigangas, os carrinhos de lata, as espingardas de rolha,
os tambores com que atazanava as minhas irmãs, as ca-
sinhas coloridas dos grilos. As farturas fritas na Barraca
“S.Judas Tadeu”, e os Torrões de Alicante completavam
a nossa alegria.
O Campo das Festas era também palco de todos os
circos que chegavam à cidade. Ficávamos horas e horas,
vendo os circenses montando a “grande lona”, e admi-
rando os animais. O lugar ficava repleto de barracas e
“roulotes”. A mais nova era sempre a do apresentador,
que invariavelmente era o dono. Era uma autêntica ci-
dade. E nós, crianças, metíamos o nariz em tudo, sob
o olhar feio dos circences. Depois era só convencer as
mães a nos levarem no domingo à tarde para assistir-
mos ao espetáculo, de onde invariavelmente saíamos
apaixonados pela trapezista. Aquelas pernas roliças,
bem torneadas, “acondicionadas” nas meias de vidro,
ficavam na nossa cabeça, até ao próximo ano...

176
A EXCURSÃO

P ara nós, as excursões, eram algo muito esperado


durante todo o ano. O evento, superava o bai-
le ou a récita. Na realidade, esses dois eventos, e mais
as “provas de perícia” de automóveis, ajudavam-nos a
subsidiar os custos financeiros das excursões.
No início, os eventos eram organizados como parte
das comemorações dos finalistas, mas para que aconte-
cessem com mais frequência, os semi-finalistas, passa-
ram a criar também os seus eventos. Com isso, organi-
závamos festas e outros eventos, no sexto e sétimo anos
do Liceu.
As excursões davam-nos a oportunidade de fazer-
mos aquilo que bem queríamos e nos apetecia. Fizemos
várias, Évora, Braga, Algarve...Convivíamos diariamen-
te com os amigos e amigas. Era de manhã à noite. Acor-

17
7
dávamos junto, viajávamos junto, almoçávamos junto.
Era uma convivência total.
Quem não se lembra?: “senhor chofer por favor, po-
nha o pé no acelerador...” era uma cantoria, a viagem in-
teira. O Rui Morais aparecia sempre com umas músicas
de letras ímpares: “Zumba dum lado zumba do outro...”
, “as meninas de Coimbra...” e lá íamos cantando e rindo,
estrada afora,...era só alegria...diversão e irreverência.
Aos jantares, já tomávamos os nossos vinhos e cerve-
jas, que infalivelmente geravam umas borracheirazitas.
Tentávamos “pregar” umas tósguinhas nas meninas,
com o intuito de ficarem mais “fáceizinhas” como se diz
hoje, mas o pior é que não ficavam.
Naquele ano, a excursão foi a Coimbra. Durante o
dia fizemos as tradicionais visitas, aos pontos turísticos
e culturais da cidade, Universidade, Penedo da Sauda-
de, Sé Velha, Portugal dos Pequenitos...mas já com o
pensamento na ida à noite, à “boíte” mais famosa da ci-
dade, a LD.
Aconteceu que, para nossa surpresa e revolta, após
o jantar, os professores que nos acompanhavam na via-
gem, a D.Judite Fitas e o Dr.Barata, decidiram “demo-
craticamente” que nos deveríamos recolher ao “dormi-
tório das Zitas”, às dez horas da noite. A decisão foi um
balde de água fria jogado nas nossas cabeças.
Inconformados, no caminho do restaurante para as
“Zitas”, a dada altura, o autocarro que nos transportava,
parou num semáforo e como as portas eram de abertura
manual, alguém disse:
- Pessoal...é agora ou nunca, vamos “prá” “boíte”...
Naquele minuto “fugiram” do autocarro, eu, o Paulo
Jorge, o Carlos Ramos e o Ilídio, pelo lado dos rapazes, e

178
mais três ou quatro raparigas um pouco mais ousadas.
E lá fomos para o LD onde ficamos até às três da ma-
drugada. Após “balançarmos os esqueletos” por mais
de cinco horas, lá resolvemos voltar para as “Zitas”.
Ao chegarmos, já “mais pra lá do que pra cá”, as portas
não só estavam fechadas, como trancadas, mas com a aju-
da de outros e outras colegas que não tinham conseguido
“fugir do autocarro”, nomeadamente o Pedro Ramos e o
Jorge Carrilho, lá conseguimos entrar para dormir.
Só que toda a aventura foi descoberta pela D.Judite e
pelo Dr.Barata, que já foram avisando: “vão dormir, que
daqui a pouco, conversamos”.
E assim foi. No pequeno almoço, foi dada a sentença:
todos os fugitivos, rapazes e raparigas deveriam regres-
sar à Covilhã de comboio, na condição de expulsos da
excursão.
Lida a “sentença”, gerou-se um burburinho enorme,
com levantamento de rancho e tudo, pois achava-se que
era uma injustiça inaceitável.
Após muita discussão, chegou-se a um entendimen-
to, que somente os rapazes regressariam à Covilhã de
comboio, e os “felizes” contemplados foram o Paulo Jor-
ge, o Carlos Ramos e o Ilídio devido aos protestos e o
Jorge Carrilho e o Pedro Ramos por terem aberto a porta
durante a noite para a entrada dos “fugitivos”.
Lá foram os cinco recambiados, acompanhados pelo
Dr.Barata.
Chegaram ao comboio, e lá se acomodaram na cabi-
ne. Por acaso, na cabine do lado, viajava a Mariazinha
Maternal, uma conhecida nossa da Covilhã, que por
sinal, era muito generosa com a rapaziada. Talvez por
isso lhe viesse o nome.

17
9
Ainda nem bem tinham percorrido uns dez quilóme-
tros e os cinco já estavam devidamente acomodados na
cabine do lado, a fazer companhia à Mariazinha, coitada
que viajava sozinha, deixando o Dr.Barata entregue às
leituras das filosofias.
Boa parte da viagem, foi um grande forrobodó. Os
quatro a “brincar” com a Mariazinha, nomeadamente
nos túneis escuros da serra.
Enquanto isso, o Pedro Ramos muito compenetrado
e quietinho, só observando “os meninos” se divertindo.
Como se tinham deitado tarde, os quatro caíram num
sono profundo e aí chegou a vez do Pedro Ramos. Logo
quem...Aquele lá, além de não ter “barriga me dói”, “co-
mia pelas bordas pra não queimar a língua”. E daquela
vez não foi diferente...
No primeiro dia de aulas, subsequente à excursão,
os cinco “meninos” foram chamados à sala do Reitor –
Dr.Domingos Rijo, que para fazer jus ao nome, era “osso
duro de roer”, para levarem um correctivo.
- Então quer dizer que os meninos não gostam de se
deitar cedo, e ainda por cima são contestários, hein? –
perguntou o Dr.Rijo num tom irónico.
Mas antes que ele desse início ao “discurso”, entra o
Jorge Carrilho, com o seu jeito conciliador, famoso pelo
seu charme e pela sua diplomacia:
- Olhe ó senhor Reitor, o senhor desculpe-me por
interrompê-lo, mas qualquer castigo que o senhor dou-
tor nos der agora, não poderá ser comparado à nossa
dor, de termos viajado separados dos nossos amigos e
amigas.
Com a voz embargada, e imprimindo muita emoção
à conversa, continuava a falar e a gesticular muito:

180
- Especialmente aqui o amigo Pedro Ramos. O senhor
doutor não pode imaginar como a viagem de comboio
foi dolorosa para ele. O coitado não pregou olho...era
só enjôo coitadinho. Mas se o senhor doutor achar por
bem, castigue-nos que nós merecemos...
Diz o Dr.Rijo, muito calmamente e esboçando um
leve sorriso:
- Andem...vão lá embora e vejam se para a próxima
têm mais juízo.

18
1
AS VINDIMAS

A s vindimas na quinta que tínhamos na Boi-


dobra, e que chamávamos de “vinha”, eram
acontecimentos únicos. Aconteciam como as demais,
nos últimos dias do mês de setembro, e era a última
brincadeira interessante, das nossas férias grandes.
No dia, a minha mãe acordava-nos bem cedo:
- Levantem-se meninos, que hoje é dia da vindima.
E lá íamos nós, todos entusiasmados, eu e os meus
irmãos, passar um dia diferente de todos os outros, e
que só acontecia uma vez por ano.
Quando chegávamos à “vinha”, por sinal muito
bem cuidada pelo senhor Zé Prior, o quinteiro, já es-
tava densamente povoada de ranchos de mulheres,
que cantando, iam colhendo as uvas das videiras de

182
chão e das latadas, e enchiam grandes cestas de verga,
fabricadas em Alcongosta, que eram depois transpor-
tadas às costas por homens, que as descarregavam no
lagar, que ficava no piso inferior da casa.
Nós também participávamos ativamente da vindi-
ma. Os pais davam uma pequena cesta para cada um
de nós e lá andávamos, junto com os trabalhadores,
disputando entre nós, quem primeiro enchia a sua
cesta. Só quando nos aparecia uma videira com ca-
chos de uvas “dedo-de-dama”, verdes, muito doces,
é que não resistíamos e sentávamo-nos no chão para
degustá-las.
Mas logo nos cansávamos e íamos para o lagar, onde
ficávamos por longas horas, assistindo a uma meia dú-
zia de homens, determinados, e de mangas aforradas,
a pisar as uvas e a cantar, ao mesmo tempo:

Cerejas frescas vermelhas


Pendentes pelos caminhos
São os brincos das orelhas
Das filhas dos pobrezinhos

António me deu um cravo


À saída do sermão
Metia o cravo no bolso
António no coração

Cravo roxo à janela


É sinal de casamento
Menina recolha o cravo
Pra casar inda tem tempo

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3
No fim do dia, sentindo-nos muito importantes, sem
privilégios, entrávamos na fila com as mulheres e os ho-
mens, para recebermos os nossos vinte e cinco tostões.
E foi assim, com estas pequenas “brincadeiras”, que
os meus pais, sabiamente, nos ensinaram o verdadeiro
significado da força do trabalho.

184
O SENHOR BONINA

P or volta de 1969 ou 1970, eu devia ter uns catorze


ou quinze anos, li no jornal “A Capital”, a notícia
de que o Campeonato Português de Esqui seria realiza-
do em Espanha.
Fiquei extremamente indignado e não me confor-
mei. Como um campeonato nacional podia ser reali-
zado no estrangeiro? Na minha cabeça, então não era
mais nacional.
Escrevi uma carta para o referido jornal, externando
a minha indignação, e inconformismo com a decisão de
o campeonato não ser realizado na Serra da Estrela.
Para minha surpresa, a carta foi publicada, pratica-
mente na íntegra, poucos dias depois, na Secção de Lei-
tores do jornal diário lisboeta.

18
5
E para minha maior surpresa, num dos dias seguin-
tes, voltava do liceu para casa, e ao passar em frente à
Perfumaria Bonina, o senhor Vitorino Bonina, proprie-
tário da loja, e que penso que era correspondente do
referido jornal, na Covilhã, chamou-me, e ali na porta,
perguntou-me:
- Olha lá, tu és o Paulo Pimentel?
- Sou sim, senhor Bonina, porquê?
- Então foste tu que escreveste a carta para “A Capi-
tal”, sobre o Campeonato Nacional de Esqui?
- Fui, fui, senhor Bonina.
Ele convidou-me a entrar na loja, estendeu-me a mão
e disse-me: “és um grande covilhanense! Parabéns!”
E lá fui eu, rua acima, todo orgulhoso de ter ouvi-
do aquelas palavras, ditas pelo senhor Vitorino Bonina.
Esse sim, um grande amigo da Covilhã.

186
FELIZARDOS

S into-me um privilegiado. Um verdadeiro felizardo!


Noutro dia encontrei-me a pensar no seguinte:
eu só conheço os bons cunhados, os sócios honestos,
os genros bonzinhos, as sogras exemplares, os irmãos
correctos e prejudicados pelos outros irmãos, os filhos
injustiçados, o marido e a mulher fiéis e cumpridores,
enfim, tudo o que é de bom, eu conheço de perto.
Todos os que encontro, que conversam comigo, que
são meus amigos, com quem tenho um relacionamento
mais estreito, mais íntimo...são todos o lado bom.
Eu achava que existia o cunhado aproveitador, o
sócio desonesto e vigarista, o genro mau carácter...mas
pensando bem, se existem, eu nunca vi. Pelo menos de
perto. Penso que são realmente uma lenda.
Assim como são para mim, enterro de anão, línguas

18
7
de bacalhau, “afro descendente” gémeo..., sei que exis-
tem, mas nunca vi. Pelo menos de perto.
Será que só acontece comigo? Sou realmente um
agraciado.
Mas no fundo, no fundo, penso que somos todos...
realmente uns felizardos.

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O MESTRE NO GINÁSIO

A os sábados à noite, o Mestre gostava de jantar


no Solneve, com os seus amigos mais chegados,
o Cassapo, o Carriço, e o Zé Carrola. Comia invariavel-
mente um arroz de carqueja, com batatas e cabrito, de-
vidamente regado com um tinto da Adega do Fundão.
Tomava uma bica com um “cheirinho” e fumava o seu
tradicional charuto.
Cumpridos os rituais e depois de muita conversa,
dirigiam-se os três ao Ginásio, onde ficavam até altas
horas da madrugada jogando acirradas partidas de
chichon.

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9
Depois de tão farta refeição, não era incomum o Mes-
tre deixar-se dormir durante a jogatina. Estava-se tor-
nando uma rotina, e os amigos começavam a sentir-se
incomodados com a situação.
Naquela noite de sábado, não foi diferente. Lá pela
terceira rodada, passava da meia-noite e o Mestre co-
meça a “pesar figos”. A toda a hora os amigos davam-
lhe uma cotovelada para ele despertar, do sono que era
quase profundo.
Então os amigos resolveram pôr em prática um pla-
no que andava a ser alinhavado há umas semanas. O
Mestre sempre levava a melhor com eles, mas estava a
chegar a hora da doce vingança.
Quando o Mestre caiu no sono, deram o sinal com-
binado, ao contínuo do clube, o senhor Mário – aquele
sujeito simpático, magrinho e com uns óculos redondos
e com lentes fundo de garrafa.
A sala já estava com as grandes e pesadas cortinas
fechadas, e aquele ambiente esfumaçado, quando o se-
nhor Mário apagou as luzes, ficou um breu total.
E os amigos começaram:
- Ás...valete...cinco...ó Mestre atão não tá a acompa-
nhar?
- Veja lá Mestre, esta serve-lhe?
O Mestre já de olhos abertos e ouvindo aquela con-
versa animada, olha, mas não vê. Abre mais os olhos e
não enxerga.
- Vamos Mestre, vai jogar ou não vai? Despache-se
lá, então...
O Mestre, desesperado começa a gritar:
- Estou cego!!! Fiquei ceguinho!!! Ai meu Deus do
céu, eu não vejo nada.

190
- Como é que me foi acontecer esta desgraça??? – la-
mentava-se aos gritos.
Os amigos, contrariamente ao que tinham combina-
do, e segurar mais a “brincadeira”, não se aguentaram
e começaram a rir a bandeiras despregadas, alguns até
rolando no chão de tanto rir.
Quando o senhor Mário acende a luz, o Mestre le-
vantou-se, dirigiu-se à porta e quando já ia saindo mui-
to arreliado, diz-lhe o Cassapo, com um doce sabor de
vingança:
- Olha ó Mestre, não digas que vais daqui.
E claro, como a última palavra tinha que ser dele , há
quem tivesse ouvido: “vão-se rindo, vão-se rindo que há
mais dias do que chouriças”.

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1
O JOVEM RAUL

O jovem Raul Neves Pereira era um apaixonado


pela Serra da Estrela e um dos grandes entusias-
tas do esqui, na Covilhã, já desde o começo da década
de 1930.
No final de 1933, em novembro estava sentado a
tomar um café na Brazileira, em frente ao Neve Hotel,
virou-se para o seu amigo Ziller Peres, companheiro in-
separável das suas andanças pelas pistas de esqui, e fez-
lhe uma proposta:
- Ó Peres ando aqui a pensar já há algumas semanas.
O que é que achas de fazermos uma expedição inédita
na Serra? Vamos fazer a travessia das Penhas da Saúde
para as Penhas Douradas de ski, agora em Janeiro.
Eram tão amigos, que o que um propunha, o outro
estava sempre de acordo.
Respondeu o Peres:

192
- Quando é que vamos?
Daí, até pôr a idéia em prática foi um estalar de dedos.
Naquele época, o jovem Raul cortejava a Cecilia, uma
jovem também covilhanense. Passava por baixo da sua
janela, à Rua Visconde da Coriscada, sempre elegante-
mente trajado, com uma flor na lapela do fato “Prínci-
pe de Gales”, azul escuro, muito bem cortado, e usando
um chapéu que tirava, para cumprimentá-la, ao que ela
correspondia com um breve e contido sorriso. Apesar
de já se terem passado alguns meses, o romance conti-
nuava em estado embrionário, pois não passava dessas
“etiquetas” e uns poucos bilhetes, enviados através de
um moço de recados.
O espírito corajoso e desbravador desse jovem co-
vilhanenese, fez com que ele, em janeiro de 1934, mais
precisamente no dia 10, empreitasse junto com o seu
amigo, a planeada aventura de fazer a travessia inédita
da Serra no inverno, coberta por um espesso manto de
neve, com os equipamentos rudimentares da época.
Os esquis de madeira, eram feitos artesanalmente,
pelo Aibéo, sem quaisquer acessórios de segurança, e os
bastões eram feitos de cana. A falta de equipamentos de
segurança bem como aparelhos de comunicação, que na
época nem se sonhava com eles, quase lhes custou a vida.
Durante a travessia, diante das condições meteoro-
lógicas adversas, que culmiraram com temperaturas
negativas anormais, que gelavam a superfície da neve,
fizeram-se sentir fortes nevões sob intensas ventanias,
complicando o trajecto de tal maneira, que não chegaram
ao destino no dia e horário previamente estabelecido.
Foram enviadas equipas de resgate, que voltaram às
bases, após incessantes infrutíferas horas de busca.
Começaram a chegar à Covilhã notícias desencon-

19
3
tradas. Os mais alarmistas, diziam que os dois ousados
desportistas, tinham sido devorados por lobos famintos.
Outros, mais conservadores lamentavam que tinham
morrido congelados. Alguns, mais optimistas achavam
que eles estavam perdidos, mas que as chances de so-
brevivência iam diminuindo a cada hora que passava.
O caso foi-se tornando mais dramático, à medida que
importantes jornais de Coimbra e até da capital começa-
ram a notíciá-lo.
Com tais boatos, rumores desencontrados e sem notí-
cias atualizadas, a cada hora que passava a D.Cecilia, ia
ficando mais angustiada e apesar de não viver ainda um
namoro consolidado, o desespero tomava conta de si.
Até que, quase vinte e quatro horas depois, chega-
ram as boas notícias de que os dois arrojados aventurei-
ros, apareceram sãos e salvos, para alegria geral.
O Raul, com sua coragem e determinação, não só ti-
nha alcançado o objetivo da travessia, como tinha con-
quistado definitivamente o coração da D.Cecilia, o amor
da sua vida.

194
OS DOMINGOS DE PÁSCOA

N os domingos de Páscoa, era hábito na Covilhã,


o Pároco da freguesia, visitar todas as casas,
para dar a benção às famílias e recolher os donativos
para a Igreja.
A mesa da sala, era coberta com uma bonita toalha
branca, toda bordada à mão, muito bem disposta, com
pratos de bolos, biscoitos e cavacas, e tigelinhas com
amêndoas dos mais diversos tipos, incluindo as france-
sas de licor – em formato de ervilha, joaninha, moran-
go... - e uma garrafa de Vinho do Porto, com meia dúzia
de cálices dispostos simetricamente à sua volta.
O senhor Prior Andrade, que já andava com uma
certa dificuldade, dado o tamanho do percurso e a ida-
de que já lhe pesava, trajando uma batina preta, donde

19
5
sobresaía um alvo colarinho branco e uma estola con-
dizente com o acto, fazia-se acompanhar pelo senhor
Augusto Fiães, o sacristão, que vestia uma simples capa
vermelha, e um acólito para tilintar a campainha - que
anunciava a chegada da comitiva - e um outro que car-
regava uma caldeirinha. Os outros, eu achava, que ser-
viam só para fazer número.
Eram recebidos com as honras que a ocasião reque-
ria. A imagem de Cristo na Cruz, era ostentada pelo se-
nhor Fiães, e que a determinada altura, nós beijávamos
com a maior deferência e respeito.
Posicionados à volta da mesa, e para não parecer
mal, comiam um pedacinho de bolo e deixavam o Vinho
do Porto para outra oportunidade, senão, bebendo um
cálice que fosse, em cada casa, a visita acabaria forçosa-
mente mais cedo que o desejado.
Após a benção, beijávamos a mão do senhor Prior,
como mandavam os bons costumes, o sacristão recolhia
o donativo, discretamente acondicionado num envelo-
pe branco, e o cortejo pascal prosseguia para a próxima
casa, cujos donos, já os aguardavam ansiosamente.
Na rua, mais ansiosa ainda, aguardava a comitiva de
garotos - uns vinte – que chegássemos à varanda e lhes
atirássemos as moedas, que eram disputadas por eles,
numa luta acirrada, pisando-as, quando não as conse-
guiam agarrar no ar.
Para esse ritual acontecer, antes de a comitiva che-
gar, o meu pai distribuia entre mim e os meus irmãos,
uma boa quantidade de moedas de tostões, pois éramos
nós que, alegremente as lançávamos ao ar.
E era aí que vinha a melhor parte do dia. Primeiro,
eu negociava com as meus irmãos, o aumento das mi-
nhas moedas, em troca de deixá-los dar umas voltas a

196
mais na minha biciclete e emprestar-lhes os meus pa-
tins de rodinhas de borracha, por uns minutos a mais.
Depois, quando chegava a hora de lançar as moedas
para a rapaziada, pelo menos a metade ficava no meu
outro bolso.
- Ó “mê” senhor, mande lá mais. Num “agarrê” nada!
– gritavam eles.
Era uma disputa tão grande, que muitas vezes, os
mais pequeninos não conseguiam agarrar nenhum tos-
tão. Para aliviar um pouco o peso da minha consciência,
eu descia e dava uns tostões na mão desses garotinhos
que não conseguiam defender-se dos maiores.
Quando o meu pai perguntava: “então já atiraste as
moedas todas?”, eu respondia, muito sério: “já, já...é que
eu não gosto de ver os coitados dos garotos à espera, e
atiro tudo duma vez”.
E assim que acabava o ritual pascal, lá corria eu, com
os amigos da rua, para o Zé do Pinhão, comprar mais
crómos para a coleção ou para fazer uns “fura-fura”, na
tentativa de ganhar a tão cobiçada bola de cotchum.

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7
A PROCISSÃO

A s procissões dos Passos e da Sexta-Feira Santa


sempre foram pontos altos na Covilhã. Vem
gente de todas as aldeias e vilas próximas, para partici-
par ou mesmo só para assistir à passagem dos andores,
com as imagens dos santos, dos bombeiros, dos esco-
teiros, das crianças vestidas de anjos levadas por seus
parentes, trajando sóbrias túnicas pretas, chamadas de
balandraus, onde a banda com suas músicas, imprime
o ambiente solene, que o evento requer. As pessoas, em
sinal de respeito, enfeitam suas casas, colocando nas ja-
nelas e nas varandas as melhores colchas coloridas.
Por volta de 1920, a Freguesia da Conceição tinha
como pároco o Padre Manel Moleiro. Era um padre à
moda antiga, muito popular, bonacheirão, irradiava
simpatia, era alto, e tinha uma excelente voz. Era sem-
pre quem mais se destacava na procissão. Com a sua

198
voz grave, muito bem postada e muito forte, declamava
lindamente, e cantava melhor ainda. Era ele que cantava
“A Verónica” na procissão, perante o silêncio profundo
dos extasiados fiéis.
Naquela Sexta-feira Santa, o cortejo, como sempre,
saiu da Igreja da Misericórdia, e foi desfilando vagarosa
e compassadamente pelas ruas centrais, até chegar ao
seu término - a Capela do Calvário. Como na época, a
cidade não contava ainda com iluminação, os homens
carregavam tochas acesas, que provocavam um ambien-
te ainda mais realista ao momento representado na cele-
bração religiosa.
Na chegada ao Calvário, no momento mais dramáti-
co e solene da procissão, o Padre Manel Moleiro, olhan-
do muito sério para a multidão de fiéis, declamava emo-
cionado, aproximando a tocha da figura do Cristo:
- Fostes vós que o açoitaste!
Aproximando de novo a tocha do Cristo, bradava:
- Fostes vós que lhe cuspiste!
Dando mais emoção à cena, chegava a tocha cada vez
mais perto do Cristo, e continuava clamando:
- Fostes vós que o crucificaste!
Grita lá de trás o ainda muito jovem, mas já muito
bêbado, Cinco Réis:
- Ó senhor Prior ande queime-o e depois diga que
fomos nós...

19
9
FOTO PEDRO GATO

A CIRCUNCISÃO

Já tinha reparado há uns dias, que o Pedro Ramos


andava muito triste, acabrunhado, e demonstran-
do uma preocupação, que não lhe era comum.
Naquela tarde fria, estávamos no liceu, na entrada
do ginásio e resolvi perguntar-lhe:
- Ó Pedro, pá o que é que tu tens? É alguma gaja?
O Pedro tenta-se esquivar, mas perante a minha in-
sistência, diz-me:
- Não Paulo, não é nenhuma gaja, antes fosse. Vou-te
contar mas peço-te para não contares a ninguém, ok?
- Tá bom, pá. Abre-te lá, sabes que podes confiar em
mim! - digo-lhe eu.
O Pedro então começa a desabafar comigo:
- Olha fui ontem ao médico pá e o gajo olhou cá “pra”
isto e caraças pá, tenho que fazer uma circuncisão.
Na medida do possível, tentei sossegá-lo:

200
- É pá, isso não é coisa para teres medo, não te preo-
cupes que vai dar tudo certo.
- Caraças, até o Menino Jesus fez e não teve problema
- brinco eu, tendando descontraí-lo.
- Como é que tu tens tanta certeza que não teve pro-
blema? – respondeu ele, dando risada.
Linguarudo como era, estava na cara, que eu não ia
segurar uma “bomba” daquelas.
No outro dia, estava a tomar uma bica e a fumar um
SG Filtro com o Nuno Ramos no Primor – tínhamos
“matado” a aula de português da D.Maria Fazenda, e
entre uma baforada e outra, contei-lhe a história toda.
- Mas ó Nuno pá, não contes “pra” ninguém, o Pedro
não quer que se saiba.
Logo para quem eu fui contar...este então tinha a lín-
gua maior que a boca...e a coisa foi indo...
Quando chegou aos ouvidos do Paulo Jorge, aí é que a
coisa desandou duma vez. As meninas ficaram sabendo!!!
No dia seguinte, diz-me o Pedro:
- Caraças ó Paulo, anda toda a gente a olhar-me meio
diferente. Tu não contaste nada “pra” ninguém, não é?
- Anda que é impressão tua. Ó Pedro pá, então não
confias aqui no teu amigo? Fica descansado, agora pre-
cisas de tranquilidade. - digo-lhe eu.
Enfim lá chegou o dia “D”. E lá foi o Pedro para o
hospital. Foi operado com sucesso, e tudo correu bem.
Deu até sorte, pois naquela noite caiu um grande nevão
na Covilhã, mas a “cirurgia” já tinha terminado.
No dia seguinte, a malta resolveu ir fazer uma visita
ao “enfermo”. Só eu sabia do acontecimento, mas éra-
mos uns dez, incluindo algumas meninas, que seguindo
a moda da época, vestiam umas minúsculas mini saias.

20
1
Entramos no quarto, e o Pedro arregalou aqueles
olhos na minha direção, querendo me fuzilar, mas lá
disfarçou para a coisa não ficar pior.
Conversa “pra” cá, conversa “pra” lá, e às duas por
três, o Pedro com um lenço na mão, disfarçadamente
enfiava a cabeça debaixo do lençol. Uma vez, duas ve-
zes, e o gajo não parava.
Aquilo começou a intrigar-me, eu me perguntava: “o
que é que tanto esse gajo enfia a cabeça no lençol?”
Não me aguentei, e perguntei-lhe baixinho:
- É pá ó Pedro que raio é que “tás” a fazer?
Diz-me o gajo, muito naturalmente:
- Cheirando cânfora!
- Cheirando cânfora? - pergunto-lhe eu muito admi-
rado.
Diz-me o gajo muito sério:
- É!...Cheirando cânfora “pra” não arrebentar os pon-
tos. É que com isto não se brinca. Só tenho um!!!

202
IL FOTO

O PELOURINHO

O Pelourinho era o centro dos acontecimentos.


Era tão importante para os covilhanenses, que
até as mudanças que nele aconteciam eram objecto de
versos, que por vezes até viravam cantigas. Foi o caso
das obras do Pelourinho, que deram origem a um fado
do mesmo nome, e até os próprios bancos do Pelouri-
nho, foram versejados e cantados.
No Pelourinho, sempre estavam acontecendo “coi-
sas”. Nunca um dia era igual ao outro. Algo de engra-
çado ocorria, para nos divertirmos e nos ajudar a passar
o tempo.
Ora era um turista menos prudente, que descia a
serra e chegava ao Pelourinho sem travões, e espetava-
se no “poleiro” do polícia sinaleiro, ora um turista que
pedia uma informação ao Leal – famoso jornaleiro que
ouvia mal - e saía indignado com uma resposta descone-

20
3
xa, ora um dos cromos da Covilhã, aprontando uma das
suas. Mas sempre acontecia algo.
Estávamos naquela tarde, como era habitual, en-
costados num carro na “placa” conversando, ouvindo
atentamente as histórias divertidas, que o Carlos Deo-
lindo nos contava das transmissões da sua “rádio pira-
ta”, quando por lá aparece um dos cromos da cidade,
o Bétinho Ricófófo, pedindo uns trocados para tomar a
camioneta.
Foi de um em um, abanando o pé como sempre fa-
zia, e cada um de nós ia dando, cinco tostões, o outro
dez tostões, outro oito tostões. Nisto, o Bétinho dirige-se
ao Zézinho Mal Visto, que passava junto a nós naquele
momento, que lhe responde:
- Eh pá ó Bétinho, hoje não tenho cá nada.
Responde o Bétinho, enfiando a mão no bolso:
- Então toma lá dez tostões, que “tás” mais teso do
que eu.

204
O DR.ABÍLIO

O Zé Luís Moraes Alçada tinha chegado de férias,


de Castelo Branco onde estudava, e estava ali
no paleio com uns amigos à porta do Montalto, quando
se junta à conversa, o Mané Trindade, um famoso cromo
da região.
O Mané era do Dominguiso, e fazendo jus às origens,
era negociante de farrapos e afins, e, muito merecida-
mente, tinha-se tornado um bem sucedido empresário
do ramo. No início, tempos de sacríficio, percorria as
ruas da Covilhã, apregoando: “peles de coelho ou farra-
pos que queiram vender”. Mas esses, eram tempos que
já iam longe...
Bom de conversa e bom contador de histórias, o
Mané desata a contar mais uma, ali à malta:
- Vejam só como são as coisas. Na semana passada,
dei uma escapada a Lisboa, que, como vocês sabem que

20
5
gosto de fazer de vez em quando, e encontro o Mestre
Abílio a passear no Rossio, com o seu inseparável cha-
ruto no canto da boca.
- Ficamos ali à conversa, fomos beber umas gingi-
nhas e o Mestre convida-me para irmos até ao Casino do
Estoril jogar umas partidinhas de chichon, roleta... – vai
contando o Mané todo entusiasmado.
- E tu gostas pouco disso, não é? – comentava o Zé
Luís.
- Pois é, e vocês sabem como é o mestre. É no tudo ou
nada. E vocês já imaginam no que acabou:
- No nada!!! Saíram de lá tesos que nem uns carapaus
– adivinha o Zé Luís, dando uma sonora gargalhada.
- Metemo-nos no comboio de volta para Lisboa, lo-
gicamente numa carruagem de primeira classe, e eu
pergunto ao mestre: “então ó mestre e o bilhete?” “Fica
aí quietinho, que se aparecer o revisor, eu conto uma
história triste “pró”gajo, fazemo-nos de parolos e pron-
to. Sempre dá certo, porque é que havia de dar errado
agora?- respondeu o Mestre todo senhor de si, demons-
trando ter grande intimidade com a capital.
Entretanto a “rodinha” já contava com uns dez, to-
dos atentos à história do Mané Trindade, que de vez em
quando diziam:
- Continue, continue Mané.
- Chegados ao Cais do Sodré, sãos e salvos, pois o revi-
sor não apareceu, pergunto eu ao Mestre:”Então ó mes-
tre agora é que são elas...onde é que eu vou dormir? Tô
teso, pá!”
- Vejam só vocês o coração grande que tem o mestre
– continua o Mané empolgado.
- Diz-me o mestre:”olha ó Mané, não te apoquentes.
Vais a dormir ali à Pensão Bem Estar, e dizes que vais

206
ficar no meu quarto, que me apareceu um compromisso
e que eu cedi o quarto para ti, ok?”
- Mas e vossemecê? Para onde vai? – perguntei muito
curioso.
- Olha ó Mané, agora vai entrar em cena o doutor
Abílio. Tás a ver esta bata branca de barbeiro que trago
aqui na malinha? Pois é, vou dormir ao Hospital de Sta.
Maria, tenho lá sempre um bom quarto à minha espera,
tomo um duche de manhã, depois como um belo peque-
no almoço, e ainda me chamam de doutor. – contava o
Mestre ao Mané.
A rapaziada ria a bandeiras despregadas, alguns já
se sentavam nos degraus da porta do Montalto escanga-
lhando-se de tanto rir. E aí arremata o Mané:
- E o melhor vocês não sabem. O mestre quando che-
ga para dormir, diz à enfermeira de plantão: “olhe me-
nina, só me acorde, se o caso for muito urgente!”

20
7
O MESTRE E O GELO

C ontava-se que:
O Mestre andava chateado. O assunto era gra-
ve e não lhe agradava a idéia de desabafar com algum
amigo, por mais confiança que tivesse com ele.
Chegou-lhe aos ouvidos que a Chona, uma rapariga
famosa que por lá circulava e amiga de toda a rapazia-
da, andava a falar mal dele: que não era mais o mes-
mo, que a barriga já lhe pesava, que deixava a desejar,
que já estava a passar o Cabo da Boa Esperança, enfim
coisas desagradáveis que nenhum homem gosta que
falem a seu respeito. Muito menos o Mestre, machão
de carteirinha. Falava para si mesmo:
- Caraças pá, se esta gaita se espalha, estou frito,
como é que vai ficar a minha fama?...
Aquele assunto, realmente, perturbava-o, deixava-o
nervoso e irritado.

208
Estava no Montalto sentado numa mesa num canti-
nho do fundo junto àquelas portas altas envidraçadas e
depois de ter tomado uma bica com um “cheirinho”, cha-
mou o Jeremias e pediu uma ginginha, que o ajudava a
raciocinar melhor. Começou ali a engendrar uma forma
de dar o troco à rapariga. Dava aquelas fortes baforadas
no seu charuto, que iam-no deixando mais calmo.
Pensava ele: ”Espera aí, que já te digo, anda que
vais ver o que é bom “prá” tosse”.
Acabou de tomar a ginginha, pagou a conta, ajeitou
o chapéu na cabeça e foi-se embora.
Passou no Café Montanha, do Caninhas, ali na Rua
Direita, e foi até ao balcão.
- Ó Zé Bomba, põe-me aí num saquinho plástico,
meia dúzia de pedras de gelo.
- Mas para que é que o Mestre quer o gelo? - per-
gunta o Zé Bomba.
- Olha ó Zé faz a tua obrigação e vê se te mexes, não
me irrites pá! – responde-lhe o Mestre, já sem paciência.
O Mestre enfia o plástico no bolso do casaco e vai
para a casa da Chona que morava ali numa quelha em
frente à Igreja de S.Francisco.
Por acaso, estava em casa. Lá entrou, trocaram umas
idéias, e o Mestre, como sempre, deixou-se dos “en-
tretantos” e foi logo aos “finalmentes”, até porque não
podia demorar, senão o gelo ia-se derreter todo.
Enquanto ela foi ajeitar-se lá dentro, o Mestre pensou
para si: “anda que já vais ver o que é bom “prá” tosse”.
Foi à gaveta da cómoda, e com a alma lavada, deu-
lhe um berro lá pra dentro:
- Olha filha... fica-te aqui pra um refresco!!!
Dizem que a rapariguinha nunca mais olhou para a
cara dele.

20
9
FOTO ESTRELA

O SENHOR BRANCAL

N o final dos anos 60 e início dos anos 70, época


em que a indústria de lanifícios da Covilhã, co-
meçava a fortalecer-se e a concorrer com outros países
europeus, tornava-se necessária a modernização do par-
que industrial para enfrentar a concorrência internacio-
nal, e desenvolver novos mercados no exterior.
Em razão disso, os fabricantes covilhanenses viaja-
vam muito para o estrangeiro – nomeadamente Europa
e Oriente médio - para participarem em feiras, exposi-
ções, tanto para se atualizarem, como para promoverem
ou incrementarem as exportações dos seus produtos.
Dois desses industriais, o senhor Menezes e o se-
nhor Brancal, foram a uma feira de máquina têxteis em
Estocolmo, na Suécia.
Já no avião, sobrevoando a Europa passam numa
zona de turbulência, a aeronave começa a sacudir um

210
pouco mais que o normal, e os tripulantes pedem para
os passageiros permanecerem sentados e com os cin-
tos apertados. Pelo altofalante, o comandante procurou
acalmar os passageiros que já entravam em pânico.
O senhor Menezes, bastante assustado vira-se para o
amigo e diz:
- Olha lá ó Brancal, do jeito que vai, parece que o
avião vai mas é cair!
Responde-lhe o senhor Brancal, com a maior frieza:
- O que é que te importa a ti? O avião é teu?
Foi também numa dessas viagens pela Europa, que
um outro industrial Covilhanense, popularmente co-
nhecido como Fio de Azeite, visitando uma feira de
máquinas em Dusseldorf, ao ouvir os alemães dizendo
“auf wieder sehen” entre si, vira-se para o meu pai, e
solta uma de suas fanfarronices:
- Tá a ver ó Pimentel, que até aqui me conhecem...

21
1
O PADRE MORGADINHO

O Padre Morgadinho foi Pároco da Freguesia de


S.Martinho durante muitos anos. Era um dos
padres mais populares da Covilhã. Circulava pela cida-
de com a sua batina preta, irradiando simpatia e con-
versando com todos que encontrava no seu caminho.
Conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia.
Tinha algumas inovações teológicas muito aprecia-
das pelo Povo. Nos seus famosos sermões, explicava a
Santíssima Trindade de uma maneira muito peculiar:
“meus filhos a Santíssima Trindade é um “três em um”,
o Pai, Filho e Espírito Santo, é como um guarda-chuva, o
cabo, o pano e as varetas, sozinhos não valem nada, mas
todos juntos protegem da chuva”.
Numa manhã de domingo, depois da missa, o Pa-
dre Morgadinho encontrou na porta da igreja, o “Cinco

212
Réis”, um famoso cromo de Covilhã e que andava sem-
pre bêbado e que para além de beber, tinha o hábito de
percorrer todas as igrejas da cidade.
- Ó meu filho, tens que parar com a bebida. Nosso
Senhor não gosta de te ver assim. Por esse caminho vais
parar ao inferno – aconselha o Padre Morgadinho.
- O que é que me importa a mim?... – choraminga o
Cinco Réis.
- Não digas essas coisas, que até é pecado! – repreen-
de o Padre Morgadinho.
- Atão tu não queres ir pró Céu?
- Eu não senhor, num quero! Num conheço lá nin-
guém! – responde o Cinco Réis.
Perante a resposta pura e ingénua do pobre homem,
o Padre Morgadinho, não se conteve e desatou a rir, mas
disse-lhe, baixinho: “anda...vai com Deus, que quer gos-
tes ou não, o teu cantinho lá no Céu tá guardado.

21
3
O MESTRE E O PAU DE CABINDA

C orria a história que:


Já passava da meia-noite, e o Mestre andava ali
pela Rua Ruy Faleiro a ver as montras da Casa do Leão,
Casa Pintassilgo, Perfumaria Bonina, o que na verdade
não era do seu feitio.
Demonstrava uma certa impaciência, que não lhe era
peculiar, pois era normalmente uma pessoa calma. Era
uma quinta-feira, estava ali à espera da saída do cinema,
para ver se encontrava alguém com quem conversar.
Já não dormia há uns dois dias e também não tinha sono
nenhum.

214
Conta-se que dois dias antes, ali à porta da tabaca-
ria, o Mestre conversava com o Necas Torres e com dois
rapazes que moravam ali para os lados de Santa Maria,
e que tinham regressado recentemente de Angola onde
cumpriram o serviço militar. A conversa para variar, era
sobre mulheres: “aquela é boa como o milho...a outra
tem umas coxas de dar inveja”...e por aí vai.
Dizia o Mestre: “vocês sabem que eu não sou de
me gabar, mas quando a matéria é mulheres, não dou
uma néga”.
Conversa vai, conversa vem, os rapazes contaram ao
Mestre que tinham trazido do ultramar um pouco de pau
de cabinda, uma espécie de Viagra daquela época. “Ó mes-
tre fique aí com um pouco” – disseram eles. “É pá não pre-
ciso disso caraças, não vos disse já?” – respondeu o Mestre.
Tanto que insistiram que o Mestre aceitou e disse-lhes:
- Não pensem que vou tomar hein, se tomar vai dar
“overdose”.
Só que a curiosidade era maior e, mal os rapazes su-
biram as escadas da Câmara, o Mestre entra no Montal-
to e já manda “aquilo” pró bucho.
Bom... já se está a ver o que aconteceu: deu a tal da
“overdose” ou o que lhe quiserem chamar. Por isso é que
o Mestre andava tão impaciente de montra em montra,
sem parar em lugar nenhum.
A situação não era das melhores, já tinha brigado
com uma, por causa da maçaroca de milho, com outra
por causa do botão, e com a outra por causa do gelo, a
coisa não estava nada boa para o seu lado.
Como a saída do cinema estava demorando, voltou
para as arcadas, ali perto onde ficava o Turismo. Sorte
dele. Aliás, sorte com a mulherada era coisa que não lhe
faltava.

21
5
Daí a pouco, lá vem uma bela rapariga em direcção
ao Mestre e pergunta-lhe:
- Olhe desculpe lá, é aqui que se toma o autocarro
para a Aldeia do Carvalho?
Bom, o Mestre engatou uma primeira e sabem como
é, pé no acelerador. Já quase subindo pelas paredes, em
cinco minutos subiram as escadas da Câmara, aquelas
do lado dos Correios, e ali naquele cantinho, onde a
malta se aliviava por falta de casa de banho por perto, o
homem não perdoou.
Ainda estavam se compondo de tão rápida aventura,
vem um homem na direcção deles. A cachopa desce as
escadas a correr e o Mestre fica por ali a disfarçar.
Mas para alívio dele, era o amigo Cassapo que lhe
pergunta:
- “atão” ó mestre, caraças aqui é lugar para fazer isso?
Responde-lhe o Mestre:
- Olha amigo, o meu pai sempre me ensinou: “deu na
cozinha, não leva “prá” sala!”
Dizem que o Mestre, acabou a noite em cima de um
telhado a chamar os passarinhos: “PIU-PIU-PIU”...anda
cá meu pequenino!!!...

216
COVILHÃ FOTO

A ETELVINA E A IDALINA

O s pais, tinham vindo novos, do Castelejo, para


trabalhar na indústria de lanifícios, que na épo-
ca vivia em franca expansão. Assim que chegaram à
Covilhã, foram morar nas Escadas de S.Silvestre, e logo
conseguiram emprego na Fábrica dos Pimentéis, nos
“Pmintélas” – como dizia o povo - ele enchendo canelas
e ela passadora de fios. Criaram as duas filhas com mui-
ta dificuldade e muito trabalho.
Após o falecimento dos pais, a Etelvina e a Idalina,
que tinham quase a mesma idade, e assemelhavam-se
tanto que até pareciam gémeas, mas não eram. Leva-
vam uma vida simples e sobreviviam das costuras que
faziam para fora, nomeadamente para as vizinhas.
Pairava ali um mistério. Apesar de se darem muito
bem e serem extremamente amigas, as duas solteironas,
nunca eram vistas juntas, na rua.

21
7
As vizinhas, perguntavam-se:
- Engraçado! Ou sai uma ou sai a outra. Que raio que
acontece?
O mistério só permaneceu até ao dia que a D.Florinda,
vizinha da frente, numa manhã que estava a fazer a se-
gunda prova do vestido, com a Idalina, viu a Etelvina,
toda aperaltada e pronta para sair, comentar com a
irmã:
- Ai mana, que ricos bolinhos de bacalhau que co-
meste ontem...
Coitadas, as duas vinham guardando dinheiro, para
voltarem ao Dr.Patrício, e encomendar uma segunda
dentadura, mas como eram parcos os recursos, já esta-
vam há quase dois anos se revezando no uso da tão dis-
putada.
Depois que a “notícia” se espalhou, diziam as vizi-
nhas:
- Isso sim, é que é um exemplo de amizade fraterna.

218
A MENINA GRACINDA

C onta-se que:
Era fim de tarde fria de dezembro, e lá estava o
Mestre com o seu amigo Cassapo, à porta do Montiel
conversando, ou melhor cortando na casaca de quem
por ali passava. Quem é que por lá aparece, a Gracinda,
uma viúva, que morava a Santa Maria e conhecida do
Mestre. Era uma rapariga já um pouco desgastada pelo
tempo, dentes meio estragados - nunca teve muitas pos-
ses para ir ao Dr.Patrício com mais regularidade – mas
tinha traços bonitos e ainda era vistosa. Como se dizia,
ainda “dava meia sola”.
Ficaram ali ao paleio uns quinze minutos. O Cassa-
po, ficou até meio de lado, a disfarçar, pois a lenga-len-
ga, não o incluía.
- Sabe Mestre, o meu Manel já se foi há quase dez
anos, ando prá’qui tão desconsolada, que só visto. – dizia
ela para o Mestre.

21
9
- Mas ande lá ó menina Gracinda que ainda há-de ar-
ranjar um bom companheiro – desconversava o Mestre.
- Mas, sabe Mestre, dez anos é muito tempo. Bem
que o Mestre podia me levar a dar um passeiozito no
seu Skoda. As meninas lá do serviço, dizem que o Mes-
tre guia como ninguém. – dizia ela chorosa.
A conversa foi tomando um rumo, que o Mestre co-
meçou até a ficar com pena da coitada, e tomou a decisão.
- Ó Cassapo, aguenta aí, que daqui a meia hora, es-
tou de volta.
E lá vai o Mestre a dar um passeio com a Gracinda
para a Serra. Ligaram o rádio do carro e lá foram por ali
acima todos contentes, a ver as vistas.
Na descida da serra, o humor da Gracinda já era ou-
tro. Toda contente, muito sorridente, conversadeira, fa-
zia planos para o futuro, parecia que tinha tomado um
injecção de ânimo. Enfim, parecia outra, a coitada.
No regresso do Mestre ao Montiel, diz o Cassapo, es-
boçando um sorriso maroto:
- “Atão”, ó Mestre, pensei que vossemecê, só gostava
de filézinhos...
- Pois é amigo Cassapo, que a história fique aqui en-
tre nós, mas, um copo d´agua e uma f......, não se negam
a ninguém.

220
O ÚLTIMO DIA DE AULAS

A s festas do último dia de aulas eram únicas.


Na última aula de cada disciplina, fazíamos
uma festa para homenagear o professor.
Durante o ano inteiro, aprontávamos poucas e boas
aos professores. Entre outras travessuras, punhamos
“frasquinhos de mau cheiro” – vulgos puns engarra-
fados - debaixo da almofada deles e colocávamos a
secretária na ponta do estrado, para que o Arquiteto
Calais, professor de desenho, ao primeiro soco, de uma
de suas justificadas venetas, a derrubasse no chão, para
risada geral.
Mas nesse último dia, éramos os “santinhos da pa-
róquia”.
Era colocada uma bonita colcha na secretária do pro-
fessor, um ramo de flores e um presente, acompanhados
de um pomposo cartão de agradecimentos.
Assim que o professor apontava na porta, levantá-

22
1
vamo-nos e batíamos uma sonora salva de palmas, que
sempre o emocionavam. Pelo menos, parecia...
O porta-voz, eleito pela turma, dirigia algumas pala-
vras ao mestre, e abria a sessão solene.
Uns recitavam uma poesia, outros cantavam uma
canção, o Beirão tocava a “La Cumparsita” no seu acor-
deon, encenava-se uma curta peça de teatro e para en-
cerrar a “festa” entrava o Pais. O Luiz Manuel, era um
artista nato. Representava sempre um palhaço, e por
mais que já tivéssemos assistido aos seus “números”,
era risada garantida, pelos seus improvisos.
Algum de nós, fazia o discurso de encerramento,
sempre enaltecendo as qualidades do “amado mestre”,
fazia a entrega formal do presente, e pronto...já nos ti-
nhamos livrado de mais uma aula.

222
IL FOTO

AS ALCUNHAS

H á algumas décadas o uso das alcunhas era mui-


to comum na Covilhã, sendo muitas as pesso-
as coletivamente identificadas, não pelos seus próprios
nomes, mas pelas alcunhas que lhes eram aplicadas. Os
covilhanenses sempre foram muito criativos, pelo me-
nos, imaginação não lhes faltava para colocar alcunhas
nos outros...
Quem não se lembra de algumas destas?

Agulha mágica – Álvaro dos Carapaus


Alma Grande – Algóres – Ai que rico – Ai Virgem
Alarcões – Asa derrubada – Babanca
Aninha dos Caracóis – António Broa – Badalho
Balhadalha – Garrilho – Frascos dos Dropes
Aninha da Varanda – Baloca – Bandelhão
Balseiro – Balocas – Balseiro – Bolacheira – Borrista

22
3
Bota Cá – Bota Fina – Cabo Mouco – Cabrita
Chico das Bugalhas – Aspirina – Caga Brazas
Caga Cornos – Cai-cai – Calceteiras – Barão
Beto Cagado – Cagalhão – Calha-Calha – João Grande
Cagarela – Foguete de Lágrimas – Caninhas
Capa Parda – Carrapato – Cão Morto – Girafa
Manel Ceguinho – Casca Grossa – Cartolina
Cantarinha – Carrapichinha – Catitinha – Casaca
Canela de Pau – Casaca de Ferro – Cebola
Catrequeras – Cereja – Chareca – Palaio – Cara Linda
Chico Batata – Bandelhão – Colhotas – Chalão
Chico Gordo – Chico Gingão – Chico Palhaço
Chico Ferrador – Ciranda – Cinco Réis – Chuca
Comecilho – Colhotas – Escorrega – Cu Negro
Curto e Grosso – Coração de Maria – Gira-a-bicha
Espalha – Falica - Feiote – Flautin – Ferreiro
Ferrinhas – Fortaleza do Silêncio – La Liça
Galo Ramanisco – Janja – João Badalhoco – Marroca
Maralhas – Manel Sacana – Lairoca – Meia Cara
Maria dá cá faca – Campainha – Manel Tim Tim
Mão Fatal – Manel Reles – Nós os Ricos – Macaquita
La Farinheira – Mijas – Lagarto – Mata Cunhados
Maria Xabregas – Cailá – Barrote – João Abelhinha
Mata Galos – Barriga Azul – Lã Branca – Farófias
Mariquinhas do Rinhónhó – João da Burra
Manel Material – Manel Andatembora – Moleirinha
Ferro Velho – Mal Murcho – Minhoto – Caramela
Esfola – Farinhota – Mariquinhas Palhaça – Casca
Calhordas – Farramanha – João Farinhote – Calceteiras
Galrricha – Chona – Enguiço – Batatinha – Garrim
Chico Salola – Chinela – Fio de Azeite – Chiribita
Bandelhoa – Chirinéu – Cuecas – Bate Certa – Bem Boa

224
Dente de Ouro – Comprimido – Janota – Pena Branca
João Ladrão – Lã Briga – Pequeno – Bébé Nestlé
Cinco Réis – Cabeças – Batatinha – Bate Certa
Miga Pão – Monhé – Pão e Queijo – Pai-Pai
Padre Murcela – Papa Ratos – Pilinhas – Pai Pona
Pai Sabana – Patanisca – Olho de Gato – C... de Ferro
Xona – Paquinhas – Pega às Oito – Rasga Mantas
Pérola Negra – Pintado – Pistotira – Racha Cornos
Poupinho – Trinta e Cinco – Pinta Bem – Pisa Flores
Pisa Ovos – Perneta – Reles – Pinguita – Rei Coxo
Rita Chiba – Pirico – Pouca Roupa – Rato Pelado
Sucata – Pitarrica – Qui Dança – Tiró-bico – Cái Bem
Vinte e Três – João Gago – Rico – Samarra
Rapa Penicos – Rita Corre Logo – Zézinho Arara
Zézinho Mal Visto – Martins Bate Chapas – Repolho
Sarela – Sete Capotes – Solapanca – Pilinhas – Zé Galo
Vá que se Venha – Rinhento – Zé dos Papelinhos
Trave Grossa – Trancas – Vira Pau – Pinduca
Zé da Água – Zé Bombacha – Zé Boi – Zé Maluco
Zé das Facadas – Zé do Pinhão – Zé da Antónia
Zé Homem – Mari Bomba – Terezinha Material
Mestre Abílio – Mil e Oitocentos – Micas Mamuda
Lâmpada Fundida – Nasser da Roupa Branca

22
5
A DESPEDIDA

V ersos da canção que a minha mãe, com muita


emoção, cantou, na reunião da família, quando
da partida para Terras de Vera Cruz:

Ó linda Covilhã
Em breve vou partir
Ai que saudade
Eu vou sentir
De tão alegre cidade
Que tem dentro de si
Quimeras ilusões
Pois na verdade
Sem ambições
Em minha feliz mocidade

226
Adeus, vou-me embora
Mas minha alma chora
Por ti meu berço natal
Terra de beleza
Que encerra a tristeza
Do meu ser sentimental
Adeus ó adeus
Visões, sonhos meus
Covilhã vou-te deixar
Vou para lá
Ficando cá
Meu coração a morar

(Desconhecemos o autor dos versos)

22
7
Nuno Francisco - JF

O PROFESSOR LOPES

E mbora já tenha feito menção ao painel de azu-


lejos, na aba da capa, considerando a relevância
que tanto o Professor António Lopes, como o painel de
sua autoria têm para a cidade, não poderia deixar de
reservar-lhes um capítulo neste livro.
O Professor António Esteves Lopes, apesar de não
ser Covilhanense de nascença, era-o de alma e coração.
Veio de Lisboa para a Covilhã em 1922, para dar aulas
de Belas Artes na Escola Industrial Campos Melo, e fi-
cou na cidade por trinta anos.
Foi, sem dúvida, uma personagem marcante da his-
tória da Covilhã. Era um apaixonado pela cidade e pela

228
Serra da Estrela e como artista, destacava-se na pintura,
na fabricação de tapetes, na fotografia e no jornalismo.
Como amante da Serra e da neve, foi um exímio esquia-
dor e montanhista e formou na época, com outros entu-
siastas do desporto, o Ski Club de Portugal.
O seu espírito visionário, que transparecia no seu
querer transformar a região num pólo turístico, numa
época em que mal se falava em turismo, foi provavel-
mente o seu maior legado deixado não só à Covilhã,
mas à Beira Interior.
O painel de azulejos - uma verdadeira obra-de-arte
de rara beleza e bom gosto - é composto por 280 peças
e retrata na forma de arte, as principais actividades da
Covilhã e da Serra da Estrela.
O artista executou duas peças. Uma, encontra-se
numa parede da Rua Marquês d’Ávila e Bolama, junto
à UBI – Universidade da Beira Interior, antiga entrada
da cidade, e a outra, devido à demolição da parede do
edifício em que se encontrava, à Ponte dos Costas, foi
desmontada e encontra-se guardada sob a responsabili-
dade da entidade Turismo Serra da Estrela.
Também não foi por acaso que deixei o Professor Lo-
pes e sua arte, para o último, mas não menos importante
capítulo deste livro.
Tive como objetivo despertar a atenção das autorida-
des, das entidades e até do empresariado covilhanense,
para a necessidade de recolocarmos essa relíquia, num
lugar nobre e de destaque na nossa querida cidade, que
essa obra prima e seu autor tanto merecem.
Bem haja Professor.

22
9
Glossário
Às carrapichas – aos ombros
Banheiro – homem contratado para dar banhos de mar
nas crianças
Bidon – latão, tambor
Boleia – carona
Carcocha – casca do pinheiro
Caruma – folha do pinheiro
Cherovia – raiz muito saborora que se cultiva só na Bei-
ra Baixa
Chichon – jogo de cartas
Comboio - trem
Copo d’água - banquete de casamento
Eléctrico – bonde
Filhoses – bolos de farinha e ovos fritos em azeite
Ferrinhos - triângulo (instrumento musical)
Fino - chopp
Janeiras – cantigas populares natalinas
Jeropiga – bebida feita de mosto, aguardente e açúcar
Maçaroca - espiga
Magusto – castanhas assadas em fogueiras feitas de ca-
ruma
Montra – vitrine

231
Praça - mercado
Nalgas – nádegas
Paleio – conversa
Papilon – gravata borboleta
Parolo – caipira
Peão – geral
Penso – curativo
Prego – churrasquinho no pão
Rabiteza – metida, emproada
Rebuçados – balas, doces
Revisor – fiscal
Roçar - esfregar, lavar
Rosmaninho – planta nativa muito aromática
Sopeira – empregada doméstica
Tasca – boteco
Tripeira – natural da cidade do Porto
Verga - vime
Vianda – restos de comida

232
Agradecimentos

A gradeço à minha esposa e aos meus filhos pelo


apoio que me deram, para continuar a escrever,
especialmente nas ocasiões em que pensei desistir da
empreitada.
Um agradecimento especial aos meus pais, que tan-
tas histórias aqui escritas, eles me contaram.
Faltam-me palavras para agradecer aos meus ami-
gos, que felizmente são muitos, as mensagens de apoio e
incentivo à ideia de escrever este livro, deles recebidas.
Um agradecimento aos génios desconhecidos que
com a sua sabedoria, estudo e dedicação à ciência, de-
senvolveram a tecnologia das comunicações, que fazem
parte da nossa vida, nomeadamente ao Facebook, que
me proporcionou a alegria do reencontro e reaproxima-
ção de muitos amigos, e que embora à distância, fazem
hoje de novo, parte do meu convívio.
Um agradecimento especial, ao Paulo Jorge Simões,
Nuno Ramos, Pedro Rodrigues, Maria João Saraiva,
Jorge Silva, Céu Raposo, Helcio Rocha, Zé Emídio Fa-
rias Ferreira, Zé Luís Moraes Alçada pelos contributos
especiais que me deram.

233
Índice
Introdução. ....................................................................... 7
Prefácio. ............................................................................ 9
E foi assim, que o livro começou. ................................... 11
Passado, Presente e Futuro........................................... 19
O Bombeiro. .....................................................................21
O Mestre Abílio............................................................... 24
O Senhor Francisquinho da Padaria............................. 26
O Mestre Visionário....................................................... 28
O Pe.Manel Moleiro. ...................................................... 30
O Grilo. ............................................................................ 32
Monte Gordo. ................................................................. 35
O Manel Neto. ............................................................... 37
O Mestre no Velório. ...................................................... 39
O Mestre e o Homem do Pífaro. ................................... 41
O Dr. Bolinha. ................................................................. 43
O Teleférico. ................................................................... 46
O Mestre e o Prego..........................................................51
Os Turistas. ..................................................................... 53
Purolêtche. ...................................................................... 56
Os Pastéis de Molho....................................................... 58
Figueira da Foz. ............................................................. 60
O Catitinha. .................................................................... 63

235
O 1º. De Maio. ................................................................ 66
As Marchas de S.João. ................................................... 68
Pragueramamim. ........................................................... 69
O Mestre vai ao Cinema. ................................................ 71
O Senhor Chagas. .......................................................... 73
O Mestre no Eléctrico. ................................................... 75
Os Piornos....................................................................... 77
O Presépio. ..................................................................... 80
O Mestre e o Zé Carrola ................................................ 84
O “Velho” Santos Pinto. ................................................ 86
O Senhor Menezes. ........................................................ 90
A D.Antoninha................................................................ 92
O Picoto........................................................................... 94
O Mestre e o Comício. .................................................... 96
As Sopeiras. .................................................................... 98
O Dr. Baltazar. .............................................................. 103
O Café Primor. ............................................................. 105
O Mestre e o Corte à Francesa. ................................... 108
O Bétinho Ricófófo. ...................................................... 112
A Garagem do Pedro. ............................................. 114
Os Irmãos Carvalho. ................................................117
A Esquadra. ................................................................... 119
O Pum do Mestre. .........................................................123
A Piscina. .......................................................................125
A Invicta. ....................................................................... 128
O Alberto Vaz na Nave. ........................................... 131
O Rin Tin Tin. ................................................................134
O Cassapo no Ginásio. ..................................................137
Os Pastéis de Nata. ....................................................... 139
A Piscina de Alpedrinha. ......................................... 141
O Mestre nas Arcadas. ................................................. 145
As Janeiras. ................................................................... 147
O Montalto. ...................................................................149

236
Os Nevões. .................................................................... 153
A Colónia. ................................................................ 155
O Furúnculo do Alberto Vaz ....................................... 158
As Festas do S.Pedro..................................................... 161
Paixões Secretas. .......................................................... 163
O Mestre na Rosa Negra. ............................................. 165
O Magusto. ....................................................................167
O Dr.Morcela. ............................................................... 169
O Mestre e a Maçaroca.................................................173
O Campo das Festas. .................................................... 175
A Excursão. .................................................................... 177
As Vindimas.................................................................. 182
O Senhor Bonina. ......................................................... 185
Felizardos. ..................................................................... 187
O Mestre no Ginásio.................................................... 189
O Jovem Raul. .............................................................. 192
Os Domingos de Páscoa............................................... 195
A Procissão. .................................................................. 198
A Circuncisão. .............................................................. 200
O Pelourinho. ...............................................................203
O Dr.Abílio. ...................................................................205
O Mestre e o Gelo. ....................................................... 208
O Senhor Brancal. ........................................................ 210
O Padre Morgadinho.................................................... 212
O Mestre e o Pau de Cabinda...................................... 214
A Etelvina e a Idalina. ...................................................217
A Menina Gracinda. ..................................................... 219
O Último Dia de Aulas. ................................................ 221
As Alcunhas................................................................... 223
A Despedida. ................................................................. 226
O Professor Lopes. ...................................................... 228
Glossário. ...................................................................... 231
Agradecimentos. ........................................................... 233

237
“Se você vier me perguntar por onde andei,
no tempo em que você sonhava, de olhos abertos
lhe direi: amigo eu me desesperava...”

Belchior

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