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Iazana Guizzo
Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.218/7030
"Construir é viver
Nem todas as pessoas têm a capacidade de construir uma casa; mas achamos
que a maioria sabe aplicar e aperfeiçoar aquela série de regras e princípios
transmitidas de geração para geração.
José da Silva e Matto é um desses homens do povo que fabricou a sua casa
num lugar bem afastado para escapar à monotonia e à pasmaceira das
cidadezinhas. Foi para o Amazonas, penetrou na selva, carregando seu saco
de roupas e poucas ferramentas, talvez uma serra, um martelo, um machado e
pregos, que obteve em troca de serviços prestados a um capitalista do sul.
José viajou bastante, mas compreendia que a selva não é de ninguém e ao
mesmo tempo é de todos, de qualquer pessoa de boa vontade que sabe renunciar
à geladeira, à batedeira elétrica, ao aspirador de pó. As árvores, as flores,
os bichos, são de quem os pega. José fabricou sua casa sem arquiteto, sem
o auxílio daqueles escritórios técnicos que só sabem encher a cidade de
"finos palacetes" em estilo português e mexicano. Êste arquiteto de quem
falamos, êste arquiteto sem compasso, regua T e tecnigrado; êste homem
simples e feliz, trabalhou dias e dias escolhendo a boa madeira, a mais
leve, a mais resistente, a mais útil. José sentiu o prazer da arquitetura,
o gosto de planejar, de sistematizar sua vida em baixo de um teto: um dos
mais nobres prazeres do homem. Conhecia, por tradição, a arte de construir
e sua belíssima casa ali está, firme, espaçosa e agradável, no meio da
natureza, em plena selva, no coração do Amazonas.
O processo de construção das cidades, na maior parte das vezes, está vinculado
ao acúmulo de dinheiro de alguns poucos (especulação imobiliária), ao trabalho
quase escravo de outros (operários) e a inserção do futuro morador em um padrão
muitas vezes desprovido de qualquer poética e sentido (consumidor). Parece que
essa experiência hegemônica de construir as cidades se tornou um dos suportes
para que a maior parte dos envolvidos nela perca sua autonomia, seja ela física
ou espiritual. Isto é, a experiência de construção, nesse segundo caso, parece
estar agenciada a um movimento de constrangimento da vida, de tristeza ou de
morte, de desconexão da constituição dos territórios existenciais causada pela
fixação da vida em modelos apriorísticos, que são também arquiteturais.
Entretanto essa análise não serve, evidentemente, para todos os casos. As cidades
possuem, muitas vezes, um incrível poder de expansão e criação de vida, na
qualidade de polos de encontros das mais variadas espécies, bem como é possível
criar práticas de si mais ligadas a liberdades abstratas. E essa ponderação
também é válida ao reverso. Não são todas as experiências de habitar o meio do
Amazonas, por exemplo, que convergem para uma autonomia e criação e, também, não
são todas que criam uma relação existencial com este território. O que queremos
com esse exemplo não é mais uma vez criar modelos ou romantizar a questão, mas
mostrar que o construir também pode ser agenciado a um movimento maior, impessoal
(em oposição à identidade), que necessariamente implica em uma ética e uma
política da existência, seja ela a de José ou de uma eventual “civilização
brasileira”, como dizia Bardi. O que pode-se afirmar a partir dessa análise é
que o objeto de trabalho do arquiteto está agenciado não apenas a territórios
físicos, mas também existenciais. E, nesses termos, a micropolítica é
indissociável da arquitetura e do urbanismo.
José vai de uma multidão à outra. Ora, o problema não é de José, passa por José.
A questão é de todos e essa experiência ilumina o que subjaz o exercício de
construir. Sempre há um sentido por trás dele, ele sempre provoca um efeito: ou
nos fortalece ou nos enfraquece. A qual movimento está agenciada essa ou aquela
experiência de construir a casa, de criar um objeto ou de pensar um museu? José
expandia a criação de seu próprio modo de viver ao incorporar o Amazonas em sua
experiência ao mesmo tempo em que rompia com as relações de submissão inevitáveis
para ele na cidadezinha. José era muitos. A construção da sua casa era um ato
público. Villa fez de sua casa uma denúncia. Bardi fez da Habitat um grito pela
diferença.
Mas como um movimento pode vir a construir, ao mesmo tempo, corpo, casa e
território? Ou como a construção de uma casa pode vir a ser um encontro positivo
para quem habita, um “construir é viver”, uma expansão dos corpos a partir de
afetos ativos e alegres?
"Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro,
pode ser uma alma ou uma ideia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um
corpo social, uma coletividade" (9). Ainda pode-se dizer uma casa, uma
arquitetura, uma cidade. Um corpo não é fixo e tampouco composto por partes
iguais, mas é um movimento heterogêneo de partículas, de velocidades e lentidões,
que podem ser mais ou menos intensas, conforme a sua capacidade de afetar e de
ser afetado. Mas como um conjunto de relações pode constituir uma individualidade
ou um único corpo e não restar, apenas, como inúmeras partículas lado a lado?
Spinoza explicita que em primeiro lugar não são relações fixas que constituem
um corpo. Há uma espécie de circulação: elas não param de se decompor e de se
recompor. E esse movimento é dado de tal maneira que as relações mais complexas
se decompõem em benefício das mais simples e as mais simples se compõem
constituindo as mais complexas. E seria essa incessante circulação de relações
que definem um corpo, uma individualidade, sempre singular e mutável. O corpo
se refaz outro a cada instante, mais ou menos potente em relação ao segundo
precedente. E é justamente essa instabilidade que proporciona uma complexidade
a essa ideia de corpo, na medida em que ele se faz individual e singular a cada
relação e por ser ele mesmo movimento não está encerrado ou dado em uma forma,
condição ou posição.
Ao pensar os corpos não estamos tratando de algo fixo e isolado. Um corpo não
cessa de se relacionar com outros corpos, sejam eles bactérias, partículas de
oxigênio, livros, alimentos, venenos, coletividades, construções. Deleuze que
tanto se dedicou ao pensamento do filósofo insistia que para Spinoza: "nunca,
pois, um animal, uma coisa, é separável de suas relações com o mundo: o interior
é somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado" (13). E
essa dependência de um corpo de outros corpos exteriores não é apenas orgânica
como normalmente se pensa: o corpo humano precisa constantemente, ao menos, de
ar, comida e água. Ao sermos continuamente regenerados por outros corpos, a
nossa potência de agir no mundo - a nossa natureza inorgânica - também, se
transforma a partir dessas relações.
Entretanto estas relações com outros corpos não são sempre positivas, um corpo
pode ser afetado tanto de modo positivo como negativo. Os positivos são aqueles
que se compõem diretamente com a sua relação característica, como os glóbulos
vermelhos compõem diretamente com os brancos para formar ainda um terceiro corpo,
o sangue. E os negativos são aqueles que decompõe a sua relação característica,
como o veneno, que desarticula as partículas do sangue. Esses encontros que nos
constituem, portanto, podem ser adequados ou inadequados bem como de diferentes
intensidades: ou seja, eles agem sobre a totalidade do corpo ao afetá-lo,
transformá-lo. Isto é, há um ponto de vista: o seu, por exemplo. E os constantes
encontros que você efetua com outros corpos podem fortalecê-lo ou enfraquecê-lo
em sua totalidade, como quando ficamos doente ou quando encontramos um velho
amigo.
São dois afetos de base que fazem variar essa escala: a alegria e a tristeza
(16). A cada prática você pode ser preenchido por um afeto de tristeza e diminuir
a sua potência de agir no mundo ou pode ser preenchido por um afeto de alegria
e aumentá-la. Essa variação, portanto, não é apenas quantitativa é também
qualitativa. "O afeto-sentimento (alegria ou tristeza) emana de uma afecção-
imagem ou ideia que ela supõe (a ideia do corpo que convém ou não com o nosso);
e, quando o afeto retorna à ideia de que provém, a alegria torna-se amor, e a
tristeza, ódio" (17).
Nesse elogio, portanto, a casa não é mais entendida como um manifesto mas como
um corpo, o que a coloca diretamente em uma situação e evidencia uma trama
micropolítica. A responsabilidade ética do arquiteto e do urbanista não se dá
mais em relação às teorias e aos propósitos mas aos efeitos da sua obra. É nesses
termos que ao contrário de afirmar a casa como, dentre outras coisas, lógica,
funcionalidade e eficiência, como fez Le Corbusier ao conceituá-la como uma
“máquina de morar”; trinta anos depois, Lina Bo Bardi a defende como abertura à
vida, entidade espiritual, fantasia e espelho da alma. “Uma casa deve ser como
uma alma aberta às coisas da vida e não uma casa-caverna, uma furna de onça.
Mais do que tudo, a casa deve ser uma entidade espiritual e moral (21), sem
oferecer aparência cenográfica teatral” (22). E criticava seus colegas que
“talvez inconscientemente, vão reduzindo a vida humana a uma aventura sem
fantasia, alheia à natureza, num divórcio que não pode ser normal, [...] como
um desafio às origens das quais não podemos nos esquecer” (23). Ou afirmava que
“a arquitetura é o espelho da personalidade de quem a escolhe, a habita ou de
quem a projeta” (24).
Bardi e Villa colocam em risco e provocam os especialistas dizendo que José tem
uma lição para nós: essa publicação explicita que as relações que constituem uma
morada estão entrelaçadas aos corpos que a habitam. E esse entrelaçamento não
cumpre apenas uma função de abrigo. A casa também faz emergir uma mulher, um
homem. Ela também possui o seu poder de afetar e de ser afetada. Ora, nem mesmo
uma cadeira é esvaziada de sentido. As formas são plenas de espírito. Uma cadeira
é plena de "necessidades humanas e espirituais", como mais uma vez afirmava
Bardi ao tratar o tema da fissura entre projeto e execução. Quais práticas uma
cadeira facilita? Que modos de ser ela afirma? Agenciada a quais relações e
atmosferas ela se harmoniza? Ela amplia ou constrange a nossa potência de agir?
Uma rede é definitivamente diferente de um banco plástico conectado
permanentemente a uma mesa fixa. E são diferentes não apenas por suas formas e
materiais, mas porque possibilitam ou constrangem a emergência de distintos
modos de sentar, estar, ser.
A ética não propõe modelos. Não institui a melhor casa, o melhor modo de morar
ou a forma correta de ser arquiteto. Enquanto a moral dissemina um modelo de
conduta, a Ética propõe uma questão: como se colocar nas relações de modo a
aumentar a sua potência de agir? A sua força é justamente no combate aos modelos.
Ela aposta na criação e propõe uma orientação ou indica um caminho de seleção
dos encontros (de uma forma ativa) e de aumento de potência (pela alegria) na
medida em que outros corpos convém ao seu. E esse caminho, tão amplo e encarnado
caso a caso, faz-se nesse exemplo através de uma orientação tanto para José como
para a própria arquitetura.
notas
1
GUIZZO, Iazana. Dos métodos de concepção do espaço comum: a participação em
Christopher Alexander, Lina Bo Bardi e Hassan Fathy. Tese de doutorado. Orientadora
Margareth da Silva Pereira. Rio de Janeiro, UFRJ, 2014.
2
Termo usado por Lina Bo Bardi. A arquiteta afirmava que havia duas classes sociais
no Brasil, a aristocracia e o povo.
3
A distinção entre moral e ética apresentada nesse texto segue a tradição filosófia
spinozista (século 17) reafirmada pelo filósofo francês Gilles Deleuze (século 20).
Para esses filósofos a moral seria um conjunto de regras transcendentes e universais
dadas a priori da experiência, o que se aproxima da ideia de lei e de julgamento. Já
a ética seria uma orientação de conduta imanente e singular, relacionada a uma ideia
qualitativa relativa aos modos de vida, compreendida caso a caso e a partir da própria
experiência. Deleuze explicita a diferença da Ética em relação a uma Moral apontando
as três grandes denúncias feitas por Spinoza: da consciência, dos valores e das
paixões tristes. Ao afirmar o corpo como questão: o que pode o corpo? O filósofo do
século 18 denuncia o controle e o reducionismo da consciência e propõe o paralelismo
entre corpo e espírito. “A significação prática do paralelismo aparece na inversão
do princípio tradicional em que se fundava a Moral como empreendimento de dominação
das paixões pela consciência.” A ética desarticula também o sistema de julgamento ao
substituir as categorias de bem/mal, universais, para bom/mau relacionadas a uma
determinada situação. “Eis, pois, o que é a Ética , isto é, uma tipologia dos modos
de existência imanentes, substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a
valores transcendentes. A Moral é o julgamento de Deus, o sistema de Julgamento. […]
A lei é sempre a instância trancendente que determina a oposição dos valores Bem/Mal,
mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa
dos modos de existência bom/mau”. E por fim, a denuncia aos personagens que necessitam
envenenar a vida com esse juizo moral e sua produção de afetos tristes: o escravo, o
tirano e o padre. “A vida está envenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta
de mérito, do pecado e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio
contra si mesmo, a culpabilidade.” DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São
Paulo, Escuta, 2002, p. 24, 29, 31, 32.
4
VILLA, Emilio. Construir é Viver. In BARDI, Lina Bo. Habitat, n. 7, São Paulo, abr-
jun, 1952, p. 3.
5
O conceito de singularidade, de Deleuze e Guattari, se opõe ao de identidade. Um
sujeito é composto por inúmeras relações mutáveis com outros corpos. Ideia que
contrapõe a definição do sujeito como essência, quando esta significa um modelo ou
algum naturalismo.
6
Estima-se que em 1500 habitavam o Brasil entre 1 a 8 milhões de índios a dez mil
anos. Desses povos herdamos as formas de habitar nos trópicos. Os povos indígenas
tinham um conhecimento imenso da natureza: de cada animal, inseto, planta. Sabiam
para que servia cada planta e sabiam fazer a partir delas inúmeros objetos, a casa,
a canoa, entre outros. Informações retiradas do documentário da obra de Darcy Ribeiro,
“O povo brasileiro: matriz tupi, cap1” disponível no Youtube.
7
PASSOS, Eduardo; ALVEREZ, Johmmy. Cartografar é habirar um território
existencial. In PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virfínia; ESCÓSSIA, Liliana da.
(org). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de
subjetividade. Porto Alegre, Sulina, 2009, p. 134.
8
Conceito de movimento em Bergson. O movimento real é ao mesmo tempo translação (ir e
vir no espaço) e transformação (a modificação do passado e do futuro nesse ir e vir
ou a transformação dos corpos agenciados a este movimento).
9
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo, Escuta, 2002, p. 132.
10
No século 17, quando Spinoza escreve a Ética, não se denominavam assim. O que hoje
entendemos como glóbulos brancos e vermelhos, na época eram chamados de o quilo e
a linfa, que hoje designam outras coisas.
11
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2008, p. 105.
12
Idem, p. 81.
13
DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 30.
14
Spinoza desloca o sentido clássico de essência. De uma ideia transcendente, um
modelo, ou a essência racional do homem, ela passa a ser a potência de cada corpo de
modo diferente e mutável. Na Ética, nem ao menos dois corpos possuem a mesma potência
ou essência, enquanto para a Moral todos os corpos humanos possuem a mesma essência
- racional - que deve ser efetuada por todos segundo os modelos difundidos pelo
sábio, pelo profeta ou pelo imperador.
15
DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 55.
16
Desses derivam todos os outros: admiração, desprezo, amor, ódio, atração, aversão,
adoração, escárnio, esperança, medo, segurança, desespero, gáudio, decepção,
comiseração, reconhecimento, indignação, consideração, desconsideração, inveja,
misericórdia, satisfação, humildade, arrependimento, soberba, rebaixamento, glória,
vergonha, saudade, emulação, agradecimento, benevolência, ira, vingança, crueldade,
temor, audácia, covardia, pavor, cortesia, ambição, gula, embriaguez, avareza,
luxúria. Todos esses afetos são descritos um a um no terceiro livro da Ética de
Spinoza.
17
DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 57.
18
Essa seleção trata-se do primeiro gênero do conhecimento para Spinoza.
19
DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 29.
20
Trata-se do segundo gênero do conhecimento para Spinoza. O primeiro seria a seleção
dos encontros e o terceiro a percepção das essências, a intuição.
21
Mesmo que Lina Bo Bardi tenha escrito a palavra moral, entende-se aqui no mesmo
sentido do que o da ética spinozista, já evidenciada nesse artigo. Visto que o
defendido são os valores vitais e o combate a ideia da casa como um cenário, modelo
ou como algo descolado da vida, da expeirência, de quem nela habita.
22
BARDI, Lina Bo; FERRAZ, Marcelo. Lina Bo Bardi. São Paulo, Instituto Lina B. P.M.
Bardi; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 126.
23
Idem, p. 120.
24
Idem, p. 166.