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UM OLHAR DE GÊNERO SOBRE A PSICOLOGIA ESCOLAR

Ângela Esteves Modesto1

Resumo: este trabalho visa a contribuir com os estudos sobre fracasso escolar por meio da aproximação entre a visão da
psicologia escolar e as discussões que olharam para as questões escolares a partir de uma perspectiva de gênero. A
Psicologia Escolar/Educacional e os Estudos de Gênero têm contribuído significativamente para a compreensão do
fracasso escolar no Brasil, porém, aparentemente, a leitura que toma o gênero como categoria de análise dos problemas
escolares parece ocupar um espaço restrito na multideterminação de problemas que a psicologia crítica tem defendido
ao discorrer sobre as causas do fracasso. A compreensão teórica do gênero para este trabalho se baseia em Connell e
Pearse (2015) que afirmam que o gênero pode ser compreendido como um tipo de estrutura social, já que ele implica
certos padrões nos arranjos sociais e atividades cotidianas formatadas por esses padrões. Concluiu-se que apesar de se
dedicarem a um mesmo tema, as duas áreas parecem conversar pouco e em alguns casos não há diálogo, mesmo que os
dados mostrem claramente diferenças entre meninas e meninos. Possivelmente, estudos de gênero e psicologia estejam
mais próximos em pesquisas sobre identidade, porém, os avanços feitos nessa área ainda não têm contribuído para a
compreensão das diferenças de desempenho, comportamento, preconceito, discriminação e segregação que acontecem
na escola na mesma proporção que os estudos sobre classe e raça, por exemplo, que parecem já ter sido incorporados.

Palavras-chave: fracasso escolar, gênero, desempenho, diferenças, meninos e meninas.

Este trabalho visa a contribuir com os estudos sobre fracasso escolar por meio da
aproximação entre abordagens da psicologia escolar e discussões que olharam para as questões
escolares a partir de uma perspectiva de gênero. Ambos os campos de pesquisa – a Psicologia
Escolar/Educacional e os Estudos de Gênero – têm contribuído significativamente para a
compreensão do fracasso escolar no Brasil, porém, aparentemente, a leitura que toma o gênero
como categoria de análise dos problemas escolares parece ocupar um espaço restrito na
multiplicidade de fatores que ocasionam problemas escolares e que são considerados por
abordagens críticas da psicologia que discorrem sobre as causas do fracasso.
A compreensão teórica do gênero para este trabalho, que permeará as análises feitas adiante,
baseia-se em Connell e Pearse (2015), que situam o gênero para além das visões dicotômicas que
tomam como ponto de partida (e de chegada) diferença e a oposição entre homens e mulheres.
Percorrendo outro caminho, que busca reconhecer não a oposição, mas as relações, elas afirmam
que o gênero pode ser compreendido como um tipo de estrutura social, já que ele implica certos
padrões nos arranjos sociais e atividades cotidianas formatadas por esses padrões. Gênero, além
disso, seria uma estrutura que se refere à compreensão dos corpos, mais especificamente a como as
características reprodutivas dos corpos são empregadas em processos sociais, o que as autoras
chamam de “arena reprodutiva”. Dessa forma, o gênero seria “a estrutura de relações sociais que se

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Psicóloga graduada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Bauru), doutoranda na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP) e professora do curso de Psicologia das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU),
em São Paulo/SP – Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que trazem as distinções reprodutivas
sobre os corpos para o seio dos processos sociais” (CONNEL; PEARSE, 2015, p.48).
De acordo com definições do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) e da
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE)2, A psicologia
escolar/educacional é uma área que tem há mais de 30 anos sido diretamente responsável pela
análise e crítica a um modelo tradicionalmente médico de atuação da psicologia, amplamente
vigente até hoje, cujo viés patologizante tende a reconhecer como originários de causas externas à
escola muitos dos problemas escolares como indisciplina, dificuldades de aprendizagem,
insubordinação, problemas de comunicação etc., situações reconhecidas de modo genérico como
“queixas escolares”.
Ao olhar para a produção em psicologia escolar/educacional fica bastante clara a
importância dada à classe social e à raça/etnia como componentes cruciais da complexidade do
fenômeno, principalmente ao se abordar o preconceito racial e de classe sofrido pelas crianças na
escola. Contudo, aparece com menor ênfase a incorporação da problemática de gênero, que há
tempos vem apontando para uma disparidade existente entre meninos e meninas no que concerne ao
desempenho escolar, sendo que elas apresentam em geral melhor desempenho que eles
(CARVALHO, 2004; ROSEMBERG; MADSEN, 2011).

Gênero e Psicologia Escolar – uma aproximação necessária

No prefácio da obra Introdução à Psicologia Escolar, de 1981, Maria Helena Souza Patto
comemora o feito da contratação de cerca de 70 psicólogos pela Prefeitura do Município de São
Paulo para exercerem a função de psicólogos escolares nas escolas da rede municipal de ensino.
Esse acontecimento, inédito na época, foi, segundo Patto, motivo de satisfação para os que
acreditavam que “é a nível institucional que o psicólogo pode vir a cumprir, de forma mais ampla,
seu papel social.” (PATTO, 1983, prefácio). Outra obra clássica de Patto, A Produção do Fracasso
Escolar: Histórias de Submissão e Rebeldia, lançada originalmente em 1987, mostra de forma
contundente como a estigmatização das crianças, decorrentes de preconceitos de classe e raça sobre
as camadas populares, produziu o seu fracasso na escola. Ela denuncia também como vários
profissionais (diretores, professores, psicólogos, médicos, etc.) e a escola, como instituição

2Disponíveis em http://www.crpsp.org.br/educacao/default.aspx e https://abrapee.wordpress.com/sobre/o-psicologo-escolar/,


respectivamente. Acessadas em 24 de julho de 2016.

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portadora de regras, normas e valores segregadores, contribuíram ativamente para o fracasso escolar
das crianças (PATTO, 1999).
A importância de se pensar a instituição como promotora de diferenciação e, possivelmente,
desigualdade, foi também apontada por Raewyn Connell (1996) ao estudar a produção de
masculinidades dentro do ambiente escolar. Seus estudos sobre masculinidades já traziam a
preocupação com o gênero pensado fora da visão dicotômica, comumente aplicada às diferenças
corporais e reprodutivas. De acordo com ela, haveria um “regime de gênero” implícito na
organização institucional e composto por divisão de funções, hierarquias e outras relações, que
varia de escola para escola, mas que permanece dentro dos limites estabelecidos pela cultura em
geral e as restrições do sistema local de educação (Idem). O regime de gênero tanto alimentaria
quanto seria alimentado pelas práticas de alunos e alunas, educadoras e educadores e outras/os
profissionais, sendo passível de transformação, e composto por quatro tipos de relações: de poder,
que incluem níveis de autoridade, hierarquia, salário; divisão do trabalho, compreendendo como
homens e mulheres / meninos e meninas são chamados a desempenhar diferentes funções dentro da
instituição; padrões emotivos, que abarcam os tipos de emoção esperados de homens e mulheres /
meninos e meninas, geralmente associados aos diferentes papéis desempenhados na escola; e
simbolização, sendo que as escolas incorporam muitos símbolos de gênero da cultura em geral,
porém, cada uma tem também seu próprio sistema simbólico, como formas de se vestir que marcam
grupos distintos, gírias e apelidos.
Connell nos chama a atenção para a importância de se pensar as consequências da
desigualdade de gênero para a situação escolar dos meninos: “[...] são os meninos que demoram mais
para aprender a ler, são mais propensos a abandonar a escola, mais propensos a sofrer ações
disciplinares, mais propensos a frequentar programas para crianças com necessidades especiais.”
(CONNELL, 1996, p.207, tradução nossa). A autora constrói sua argumentação tomando como base
a realidade australiana, onde vive, mas sempre se utiliza de exemplos e traz para o debate autoras e
autores oriundos de países que compõem o sul global (ou países que foram colonizados). Mas como
anda a realidade escolar dos meninos no Brasil? Faria sentido a preocupação apontada por ela na
problematização do fracasso nas (e das) escolas brasileiras?

Alguns dados sobre gênero e educação

Em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou um material


chamado Estatísticas de gênero: uma análise dos dados do censo demográfico de 2010. Os autores

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discutem as diferenças de gênero por meio da análise de dados de várias medições do censo, sendo
que um dos capítulos aborda as estatísticas de educação.
O censo de 2010 mostrou que a taxa de analfabetismo para o total de pessoas com 15 anos
ou mais de idade é, apesar de próxima, um pouco mais baixa entre as mulheres que entre os
homens, respectivamente 9,1% e 9,8%. O mesmo padrão se mantém ao se dividir o grupo por faixas
etárias, de 15 a 29 anos e de 30 a 59 anos, sendo que as taxas de analfabetismo permanecem
superiores entre os homens. No entanto, para pessoas com mais de 60 anos, além de taxas muito
mais altas de analfabetismo, para eles e para elas, se comparadas às pessoas mais jovens, a situação
se inverte, tendo as mulheres 27,4% contra 24,9% entre os homens, o que mostra que a
democratização do ensino tem sido eficiente para a escolarização das mulheres, que além de serem
menos analfabetas hoje que antes, superaram os homens nesse quesito. Algo ainda tem dificultado o
progresso deles.
Quando se distribui a amostra considerando grandes regiões do país, situação de domicílio
(rural ou urbana) e cor/raça nota-se que, apesar do progresso, as taxas de analfabetismo são maiores
entre mulheres e homens que vivem na região nordeste, em zonas rurais e que se autodeclararam
pretas(os), desigualdades que se superpõem denunciando um grupo mais vulnerável (IBGE, 2014).
A progressão continuada, que no processo de execução acabou se tornando a aprovação
automática, contribuiu significativamente para a redução da evasão e da reprovação escolar,
possibilitando que um número maior de estudantes esteja na idade prevista para a série que está
cursando3. Porém, a correção do fluxo dos alunos nas séries, apesar de melhorar as estatísticas, não
melhorou a qualidade do ensino oferecido. Como aponta Patto (2005), a não reprovação não foi
pensada como forma de coibir sua utilização como instrumento de poder arbitrário das(os)
educadoras(es), empregado para humilhar e estigmatizar alunas(os) ou para forçar sua evasão da
escola. Tampouco possibilitou que estudantes tivessem direito a aprender e ser respeitados, mas
reduziu os custos da educação pública e possibilitou a emergência de um falso sentimento de
inclusão, como se a obtenção do diploma implicasse que houve acesso efetivo ao conhecimento e
sua aquisição.
As consequências desse processo são evidenciadas quando se observa o que acontece com o
ensino médio no Brasil. O número de jovens de 15 a 17 anos que cursavam o nível educacional
apropriado para sua idade subiu desde 2000, porém, existia uma parcela de jovens que ainda não
havia tido acesso ao ensino médio em 2010. O número de mulheres que frequentavam o ensino
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A distorção ou defasagem idade-série acontece quando a diferença entre a idade do aluno e a idade prevista para a série que ele
estiver cursando foi de dois anos ou mais.

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médio nesse ano era superior ao de homens: 54,7% versus 45,3%. A hipótese sustentada pelo estudo
é que o fato decorre do histórico de atraso escolar dos meninos. A correção do fluxo escolar, como
mencionada anteriormente, por meio da progressão continuada, teria sido mais lenta entre os
homens que entre as mulheres. Diz o estudo:
Enquanto as mulheres dessa faixa etária [15 a 17 anos] já apresentavam proporções
similares, frequentando os ensinos fundamental e médio regulares em 2000 (36,4% e
38,6%, respectivamente), os homens registravam proporções significativamente maiores no
ensino fundamental em relação ao ensino médio nesse mesmo ano (44% e 30,2%,
respectivamente). Como consequência, em 2010, a taxa de frequência escolar líquida no
ensino médio dos homens era de 42,4%, quase 10 pontos percentuais abaixo da taxa
feminina (52,2%). (IBGE, 2014, p.100)

Esses dados sustentam a versão de Connell, segundo a qual é necessário um olhar mais
cuidadoso na educação para os meninos. Sua frequência no ensino médio é menor que a das
meninas em todas as macrorregiões do país, sendo significativamente menor no norte e nordeste.
Nessas duas regiões, a frequência das meninas, apesar de mais alta que a dos meninos, é também
menor que a frequência delas nas outras regiões. Introduzindo-se o fator cor/raça nessa análise,
percebe-se que a frequência é também menor quando a população é preta ou parda, reforçando a
vulnerabilidade desse grupo, como mostram os gráficos a seguir:

O estudo do IBGE atribui inicialmente o atraso escolar dos meninos aos papéis de gênero,
que os obrigam a entrar cedo no mercado de trabalho e lhes impõem uma atividade concorrente aos
estudos. O número de homens de 15 a 17 anos que “só trabalham” foi quase o dobro de mulheres
(7,6% e 4%, respectivamente), mantendo-se superior também para os que “trabalham e estudam”,
com bastante superioridade na zona rural, onde 27,7% homens “trabalham e estudam” contra 15,8%
mulheres na mesma situação, o que mostra que a entrada no mercado de trabalho é um fator
importante a ser considerado quando se olha para a escolarização dos meninos. Por outro lado, há
uma alta porcentagem de mulheres nessa faixa etária que “não estudam nem trabalham” se
comparada à taxa de homens na mesma condição (12,6% contra 9,1%), sendo que a diferença entre

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os sexos nesse quesito atinge 6,3 pontos percentuais na área rural. Tal diferença pode ser explicada,
para o IBGE, pelo alto número de mulheres dessa idade que se tornam mães: 56,8% das
adolescentes que tiveram filhos estão fora da escola e do mercado de trabalho, contra somente 9,3%
das que não tiveram filhos. Entretanto, apesar do impacto da entrada no mundo do trabalho na
escolarização dos meninos e da maternidade na das meninas, há outros aspectos que precisam ser
levados em consideração para compreender a questão.
Carvalho e Senkevics (2015) apontaram para a participação bem mais expressiva de meninas
nas tarefas domésticas – um trabalho como qualquer outro, porém, não formalizado e nem (na
maior parte dos casos) remunerado – e o quanto elas eram reforçadas pelas famílias por serem
solícitas, organizadas e autônomas na realização dessas tarefas, características que são igual e
tradicionalmente valorizadas dentro da escola. Neste caso, o envolvimento das meninas em um
trabalho paralelamente aos estudos não prejudicou seu desempenho escolar, como costumeiramente
se alega em relação aos meninos. Ao contrário, o potencializou.
Carvalho (2004) nos ajuda a identificar esses outros fatores que têm influenciado
substancialmente a vida escolar dos meninos, conferindo-lhes piores desempenhos em comparação
às meninas. Ela considera que, apesar da existência de avaliações oficiais vigentes (Sistema
Nacional de Avaliação da Educação básica – SAEB e Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM)
a avaliação contínua dos alunos e alunas em sala de aula continua a ser feita pelas professoras(es)
por meio de conceitos muito pouco precisos e vazios de critérios mais gerais, que induzem a uma
avaliação bastante subjetiva dos alunos.
Em uma de suas pesquisas, realizada no início dos anos 2000 em uma escola pública de São
Paulo, Carvalho solicitou que duas professoras da quarta série classificassem seus alunos quanto à
cor/raça e associou essa classificação aos conceitos obtidos pelo(as) alunos(as) (plenamente
satisfatório, satisfatório ou não satisfatório), às punições disciplinares recebidas pelos alunos e aos
encaminhamentos feitos às aulas de reforço escolar. Foi também solicitado aos(às) alunos(as) que se
auto classificassem em relação à cor/raça. Entre os 11 meninos (de um total de 60) classificados
como negros (pretos ou pardos) por ambas as professoras, oito tinham problemas com a escola:
punições disciplinares e/ou encaminhamento ao reforço. Apenas uma menina havia tido problemas
disciplinares. Quando distribuídas as punições disciplinares e os encaminhamentos ao reforço
escolar de acordo com a classificação de cor/raça realizada pelas professoras, a frequência desses
problemas entre os alunos negros foi muito maior que quando associados à autoclassificação dos
alunos (59% contra 33%). As professoras também tenderam a “embranquecer” ou a divergir mais

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quando se tratava da classificação das alunas e a coincidir mais quanto aos alunos, o que resultou
num grupo de meninos mais negro que o de meninas. Sendo assim, houve um pareamento entre raça
negra, masculinidade e problemas escolares e, por outro lado, menos dificuldade com a escola e
menos “enegrecimento” entre as meninas. Entre os(as) 16 alunos e alunas com dificuldades
escolares, 13 eram provenientes de famílias pobres (76%) enquanto para o conjunto da quarta série
era apenas de 39%. Com isso, propõe Carvalho:
(...) consideremos o processo complexo de atribuição de cor e de raça no contexto escolar
como um processo com múltiplas direções: ao mesmo tempo a raça negra seria mais
facilmente atribuída a crianças com dificuldades escolares, mas também esses problemas
escolares, tanto de aprendizagem quanto de disciplina, podem estar se desenvolvendo com
maior frequência entre crianças percebidas e que se auto-percebem como negras.
(CARVALHO, 2004, p.277)

A autora propõe um aprofundamento no vão que há entre os números e suas explicações


mais óbvias (entrada no mercado de trabalho para os homens; maternidade para meninas) para que
se olhe com mais cautela para o que se passa numa sala de aula.
Apesar da exaustiva crítica da psicologia escolar e da ênfase em métodos que não
naturalizem a queixa escolar, transformando em patologia o que é resultado de discriminação e
exclusão, os avanços da psicologia têm acontecido, aparentemente, mais rapidamente no que diz
respeito às questões de raça e classe no contexto escolar do que às de gênero.
Carvalho (2014) realizou um levantamento de teses e dissertações produzidas entre 1993 e
2007 sobre relações de gênero e desempenho escolar, analisando qualitativamente 41 desses
trabalhos que se utilizavam de abordagens originárias da psicologia. Os trabalhos versavam sobre
temas variados como desenvolvimento psicomotor, leitura e escrita, e alguns coletaram suas
informações por meio da aplicação de testes. De forma geral, a autora identifica que as questões
relativas às diferenças entre os resultados obtidos para meninos e meninas nesses estudos ficaram
em aberto e, na maioria dos casos, os(as) autores(as) recorreram a elementos do senso comum para
explica-los, o que poderia ser decorrência da ausência de uma apropriação teórica do conceito de
gênero e de falta de diálogo com a produção acumulada na área educacional sobre diferenças de
desempenho entre meninos e meninas.

Problemas de aprendizagem, problemas de escolarização ou problemas de gênero?

Marilene Proença, preocupada com a formação de psicólogos(as) para o atendimento de


problemas escolares, conduz um levantamento de 268 prontuários de atendimento em cinco clínicas
escola vinculadas a cursos de graduação em psicologia da cidade de São Paulo. Os dados estão

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parcialmente apresentados no texto Problemas de Aprendizagem ou Problemas de Escolarização?
Repensando o Cotidiano Escolar à Luz da Perspectiva Histórico-Crítica em Psicologia (2002). Ela
estava interessada em saber como a queixa escolar havia sido abordada durante a triagem e
posteriormente encaminhada às diversas modalidades de atendimento em psicologia, focalizando
quais aspectos haviam sido investigados pelas(os) estagiárias(os) em formação.
A média de idade das crianças que haviam sido encaminhadas para atendimento era de 9,3
anos, sendo que 66% delas estavam cursando entre a primeira e a terceira série do primeiro grau
(hoje, segundo e quarto anos do ensino fundamental I). Aproximadamente, de cada dez crianças
encaminhadas, sete eram meninos, e a maioria era proveniente de escolas públicas. A autora
agrupou os tipos de queixa: problemas de aprendizagem e problemas de comportamento (ou
atitudes). No primeiro grupo, constavam queixas como não conseguir ler e escrever, baixo
rendimento escolar, somente copiar a lição do quadro, não acertar as contas, lentidão, etc. No
segundo, questões como não responder as perguntas, não obedecer às instruções, sair da sala com
frequência, recusa em fazer a lição, pouca organização do caderno, chorar por qualquer coisa, várias
formas de agressividade, etc. (PROENÇA, p. 181-182).
Proença revela que, curiosamente, a principal queixa sobre as crianças ingressantes era
referente a problemas de aprendizagem e os problemas de atitudes apareciam nos anos
subsequentes, como se se esperasse que as crianças iniciassem na escola totalmente alfabetizadas. A
distribuição dos problemas também se mostrou diferente como agente motivador do
encaminhamento para meninos e meninas: 18% delas contra 20% deles são encaminhadas(os) por
problemas comportamentais. Por outro lado, 29% das meninas são encaminhadas por problemas de
aprendizagem contra apenas 23% dos meninos.
Uma possível leitura dos dados coletados por Proença é que talvez seja mais esperado das
meninas uma maior afinidade com os conteúdos acadêmicos, o que favoreceria uma aprendizagem
sem percalços, e quando isso não acontece, incomoda a ponto de motivar o encaminhamento para
atendimento psicológico. Por sua vez, os meninos demandariam maior atenção da escola quanto à
sua disciplina, incomodando quando não se comportam de acordo com o esperado. Essa leitura não
defende o “menino bagunceiro” e a “menina estudiosa” como lugares naturais, decorrentes de
hormônios ou diferenças cerebrais. Pelo contrário, questiona a naturalização dos meninos como
maus alunos, terríveis e indisciplinados e as meninas como passivas e obedientes, colocando ênfase
sobre as expectativas sociais acerca de cada sexo e o quanto tais expectativas impactam a vida

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escolar das crianças, inclusive influenciando seu modo de ser, já que a escola não ensina só o
conteúdo previsto no currículo; ensina também, entre outras coisas, a ser menino e a ser menina.

Intervenção na escola pública: com quais crianças?

Adriana Marcondes Machado faz um interessante relato de uma intervenção conduzida em


uma escola pública localizada nos arredores da Universidade de São Paulo (USP) nos anos 90. Esse
relato está em um capítulo de uma coletânea organizada por ela e por Marilene Proença R. de Souza
(2004), chamado Relato de Uma Intervenção na Escola Pública. Resumidamente, ao conversar com
a vice-diretora da escola, ela descobre que uma psicóloga de uma clínica particular, contratada pela
então Delegacia de Ensino para avaliar algumas crianças, havia realizado a tarefa por meio da
aplicação de um teste e uma pequena conversa com os pais. Das crianças avaliadas, nove foram
diagnosticadas como “definitivamente deficientes mentais” e encaminhadas para a classe especial
(p. 94-95). Machado discorre, então, sobre como foi a partir daí a negociação de um trabalho com
essa escola, as crianças e suas professoras, para reverter o quadro de estigmatização posterior à
avaliação e transferência das crianças de sala.
Entre as crianças avaliadas está Wellington, então com 13 anos. Ele era “o famoso tipo
indisciplinado” (p.99), encaminhado para avaliação por problemas de comportamento. Seu
resultado no teste foi baixo porque ele não teve paciência para responder todas as questões, o que só
foi descoberto depois pelas estagiárias que o ouviram ao longo do trabalho na escola. Wellington
era tido como um menino “terrível”, o que para a autora era a forma como ele escondia sua
insegurança e o fracasso de sua história escolar. Depois de um tempo de trabalho, que eram
encontros com as estagiárias num grupo com outras crianças de mesmo diagnóstico, Wellington se
apresentava bravo, “terrível”, às vezes chorava, como no dia em que rememorou a morte da avó,
que cuidava dele. Ao refazer o teste que o dera um diagnóstico, depois de alguns encontros e na
presença das estagiárias, ele quis desistir quando se deparava com questões para as quais tinha
dificuldade em responder (p.100), como se não aceitasse o fato de não saber.
Outro menino, Laurentino (10 anos), fora acusado praticamente do oposto de Wellington:
parecia “um robô que obedece a estímulos”. Sua professora reclamava dele por ser muito quieto e
se recusar a fazer as atividades, apesar de ser “cativante e muito presente” (idem).
Entre as crianças encaminhadas havia Juliana, de 11 anos. Ela foi encaminhada para
avaliação numa tentativa de lhe fornecer algum apoio psicológico, já que tinha perdido a mãe e
mudado de cidade. Acabou, em vez de confortada, diagnosticada como “deficiente mental”. A

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queixa sobre Juliana pairava sobre o fato de estar, segundo a professora, sempre emburrada,
recusando-se a fazer lições. De acordo com as estagiárias que a acompanharam, “Se mal-
interpretada, poderia parecer que Juliana não gostava das pessoas.” (p.100).
Pode-se perceber pela breve descrição das crianças que há certos padrões esperados, dentro
dos quais elas não se encaixavam. A autora aborda a questão enfocando visões ideologizadas das
professoras e das famílias sobre os(as) alunos(as), além da negligência da psicóloga que as avaliou.
Todavia, os padrões que perpassam a construção social de um ideal de menino e menina
aparentemente não foram aprofundados. Há uma pequena problematização de gênero no relato,
descrita como exemplo de “questões afetivas que surgem na sala de aula” (p.101).
Um dia, durante os encontros com as professoras, elas falaram de um menino que tinha
trejeitos femininos na forma de andar e que era alvo de gozações das ouras crianças.
Queriam que eu o atendesse. Nessas gozações sofridas por ele, o tema da sexualidade
aparecia. Em vez de questionarmos a normalidade dele, era preciso pensar como trabalhar
esse tema na sala de aula. Os acontecimentos revelam-nos questões que, se são abafadas,
tendem a reaparecer. “Certas questões são difíceis de serem trabalhadas pelo nosso próprio
preconceito”, diz uma das professoras. Preconceitos carregados de valores morais. Como
permitir as diferenças em uma sala de aula? (MACHADO, 2004, p.101-102)

Além de se pensar a sexualidade, faz-se necessário pensar o gênero. Para não permitir que
diferenças se transformem em desigualdades é necessário uma discussão no campo das relações de
poder, como chamava a atenção Connell, no início deste texto. A própria descrição dos meninos
mostra que há padrões de masculinidade variáveis: Wellington não obedecia e Laurentino obedecia
demais. Juliana parecia brava, talvez fosse pouco solícita para uma visão ideal de menina. Além
disso, a autora menciona algumas vezes no texto que apesar de discordarem do diagnóstico feito
pela psicóloga, as professoras não se sentiram autorizadas a questioná-la. Acostumadas a acatar
decisões das quais não participaram, excluídas dos centros decisórios (Patto, 2005), as professoras
não creem que sua visão sobre os(as) alunos(as) com quem convivem e acompanham diariamente
possa ter algum valor diante da avaliação pontual de uma profissional sem vínculo algum com a
escola. Machado fala em professoras e não em professores, o que faz pensar que eram majoritária
ou totalmente do sexo feminino. Discutir questões de gênero na escola implica também
problematizar quem manda e quem obedece, salários, formação, entre outras coisas.

Considerações finais

A intenção deste artigo foi promover uma aproximação entre abordagens em psicologia
escolar e os estudos de gênero para pensar o fracasso escolar. Apesar de se dedicarem a um mesmo
tema, essas duas áreas parecem conversar pouco e em alguns casos não há diálogo, mesmo que os

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dados mostrem claramente diferenças entre meninas e meninos. Possivelmente, estudos de gênero e
psicologia estejam mais próximos em pesquisas sobre identidade, porém, os avanços feitos nessa
área ainda não têm contribuído para a compreensão das diferenças de desempenho, comportamento,
preconceito, discriminação e segregação que acontecem na escola na mesma proporção que os
estudos sobre classe e raça, por exemplo, que parecem já ter sido incorporados.
Assim como Carvalho (2014) identificou em seu levantamento das teses e dissertações sobre
gênero e desempenho escolar, a produção em psicologia escolar não tem levado em consideração a
vasta produção da educação que tem o gênero como categoria de análise para compreender o
fracasso e outros problemas escolares. Sendo uma área de interface entre a psicologia e a educação,
talvez a psicologia escolar/educacional tenha se fechado, fazendo uso de suas próprias produções
para explicar seus problemas de pesquisa, o que dificulta encontrar novos caminhos e soluções.

Referências

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Rio de Janeiro, Estudos e Pesquisas - Informação Socioeconômica, n. 33, 2014, 162 p.

CARVALHO, Marília Pinto de. Teses sobre gênero e desempenho escolar: a contribuição da
psicologia. In RAHME, Mônica Maria Farid; FRANCO, Marco Antônio Melo; DULCI, Luciana
Crivellari (orgs). Formação e políticas públicas na educação: tecnologias, aprendizagem,
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____________Mau aluno, boa aluna? Como as professoras avaliam meninos e meninas. Estudos
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____________ O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/raça.


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CONNELL, R. W. Teaching the boys: new research on masculinity, and Gender Strategies for
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Mulheres no Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA; Brasília: ONU.

A Gender Look at School Failure

Astract: this paper aims to contribute to the studies about school failure through the approximation
between the vision of school psychology and the discussions that looked at school issues from a
gender perspective. School / Educational Psychology and Gender Studies have contributed
significantly to the understanding of school failure in Brazil, but apparently the reading that takes
gender as a category of analysis of school problems seems to occupy a restricted space in the
multidetermination of problems that critical psychology has defended in discussing the causes of
failure. The theoretical understanding of the gender for this work is based on Connell and Pearse
(2015) who assert that gender can be understood as a type of social structure, since it implies certain
patterns in the social arrangements and daily activities shaped by these patterns. It was concluded
that although they are dedicated to the same subject, the two areas seem to talk little and in some
cases there is no dialogue, even if the data clearly show differences between girls and boys. Gender
and psychology studies may be closer when researching identity issues; however, advances in this
area have not yet contributed to the understanding of the differences in performance, behavior,
prejudice, discrimination and segregation that occur in school at the same extent that studies on
class and race, for example, that seem to have already been incorporated.
Keywords: school failure, gender, performance, differences, boys and girls.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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