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MESTRADO
NATAL – RN
2013
MARIA CLARIÇA RIBEIRO GUIMARÃES
NATAL – RN
2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
Movimentos sociais e organização popular em Natal-RN: enquanto morar for privilégio.../ Maria Clariça
Ribeiro Guimarães. - Natal, RN, 2013.
202 f.: il.
[...] Vida,
és uma máquina plena,
felicidade, rumor de tempestade,
ternura de delicado azeite.
Vida,
és como uma vinha:
amealhas a luz e reparte-la em
cacho transformada.
Aquele que te renega
que espere um minuto,
uma noite,
um ano curto ou longo,
que saia da sua mentirosa solidão,
que indague e lute,
junte as suas mãos
a outras mãos [...]
(Pablo Neruda)
Gramsci
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
LISTA DE QUADROS
Na medida em que a expansão das cidades ocorre cada vez mais empurrando e
segregando a classe trabalhadora para as áreas periféricas, destituídas de serviços
e de infraestrutura, o espaço urbano se constitui também como um espaço
importante na luta de classe e, nessa direção, o presente trabalho visa analisar a
organização política dos movimentos sociais urbanos e organizações populares
existentes em Natal-RN, na contemporaneidade, nos seus processos de luta por
direitos sociais, com ênfase no direito à cidade. Com essa dimensão, nos
apropriamos das contribuições do materialismo histórico-dialético por entendermos
que este referencial viabiliza a compreensão dos processos de organização coletiva
numa perspectiva crítica e de totalidade, indo para além do seu aspecto imediato.
Para a produção dos dados realizamos pesquisa bibliográfica, documental e de
campo, por meio de entrevistas gravadas semi-estruturadas com os(as) dirigentes
das organizações mapeadas em nossa pesquisa. Os resultados do estudo nos
permitiram caracterizar a ação política dos movimentos urbanos de Natal na luta
pelo reconhecimento e garantia do direito à cidade e apreender os avanços e
entraves no processo de intervenção dos movimentos sociais e organizações
populares existentes em Natal, evidenciando dilemas e contradições que perpassam
os processos de organização e mobilização no período contemporâneo. Com isso,
concluímos que no território natalense, tal como no Brasil contemporâneo, a questão
urbana e a ação política dos movimentos que a evidenciam na cena pública se
entrelaçam e necessariamente se relacionam com a tendência histórica que vem se
apresentando desde os anos 1990, quando o país adentrou num período marcado
por uma nova ofensiva burguesa.
To the extent that the expansion of cities is increasingly pushing and segregating the
working class to outlying areas, devoid of services and infrastructure, the urban
space is also important as a space in the class struggle, and in this direction, the this
study aims to analyze the political organization of urban social movements and
popular organizations existing in Natal-RN, nowadays, in their process of struggle for
social rights, with emphasis on the right to the city. With this dimension, we
appropriate the contributions of historical and dialectical materialism because we
believe that this benchmark enables the understanding of the processes of collective
organization and a critical perspective of totality, going beyond its immediate
appearance. For production data conducted literature, documentary and field,
through semi-structured interviews recorded with (the) mapped leaders of
organizations in our survey, as well as advisory bodies to the movements studied.
The results of the study allowed us to characterize the action of the political
movements in urban Christmas struggle for recognition and guarantee of the right to
the city and seize the advances and obstacles in the process of intervention of social
movements and popular organizations existing in Natal, highlighting dilemmas and
contradictions underlie the processes of organization and mobilization in the
contemporary period. Thus, we conclude that the Natal territory, as in contemporary
Brazil, the urban and political action movements that show the public scene and
intertwine necessarily relate to historical trend that has been performing since the
1990s, when the country entered a period marked by a new bourgeois offensive.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 17
3.3 Quem traz na pele essa marca: caracterização dos(as) dirigentes ..................... 89
3.4 Bandeiras de luta e frentes de atuação dos movimentos sociais em Natal ......... 98
4.1 Se a gente se acovardar agora, a gente vai viver pelo resto da vida de joelhos....
Estratégias de organização e mobilização .............................................................. 111
4.2 Para o indivíduo sozinho é mais difícil, mas de forma coletiva fica mais fácil...
Avanços e entraves no cotidiano das lutas ............................................................. 139
4.3 Quando a sociedade clama por uma resposta é toda a sociedade que tem que
participar... Aliados e opositores no processo da ação política ............................... 153
Introdução
1 INTRODUÇÃO
1
“A categoria ‘subalterno’ e o conceito de ‘subalternidade’ têm sido utilizados, contemporaneamente,
na análise de fenômenos sociopolíticos e culturais, normalmente para descrever as condições de vida
de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou destituídos dos meios suficientes
para uma vida digna. No pensamento gramsciano, contudo, tratar das classes subalternas exige, em
síntese, mais do que isso. Trata-se de recuperar os processos de dominação presentes na sociedade
[...]” (SIMIONATTO, 2009, p. 42). Desse modo, a luz da elaboração de Gramsci, sempre que nos
referirmos às classes subalternas no presente trabalho estamos entendendo as reflexões sobre
subalternidade como dialeticamente articuladas ao Estado, à sociedade civil e à hegemonia.
20
2
Prefeita de Natal, eleita pelo Partido Verde (PV), para o período 2008-2012, apoiada por José
Agripino Maia (DEM) e tendo atualmente como principal aliado político Henrique Eduardo Alves
(PMDB).
3
Uma das principais acusações à prefeita Micarla de Sousa que passou a ser objeto de investigação
da Câmara Municipal refere-se à opção por alugar imóveis – preferencialmente grandes hotéis – para
serem ocupados por órgãos públicos. Exemplos disso são facilmente visualizados pela cidade,
incluindo também o aluguel, por parte da prefeitura, de uma casa de três andares, com piscina e
sauna, em um bairro nobre, para ser a sede da Secretaria do Meio Ambiente e Urbanismo
(SEMURB). Micarla é acusada de ter feito contratos de aluguel até mesmo em prédios ainda em
construção (MENEZES, 2011).
21
4
De acordo com o conteúdo disponibilizado na página do Programa de Pós Graduação em Serviço
Social/Centro de Ciências Sociais Aplicadas (PPGSS/CCSA):
http://www.sigaa.ufrn.br/sigaa/public/programa/defesas.
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Os trabalhos a que nos referimos são: Serviço Social e Política: uma análise da participação dos
a
assistentes sociais no Conselho Regional de Serviço Social – 14 região, de autoria de Josiane
Rodrigues da Silva; A organização sindical dos assistentes sociais no Brasil: dilemas e desafios
contemporâneos, de autoria de Tássia Rejane Monte dos Santos e Movimento Estudantil e Serviço
Social no capitalismo contemporâneo: tendências e particularidades, de autoria de Maria Lenira
Gurgel Cavalcante. Não incluímos em nossa categorização àqueles trabalhos que embora não tendo
os movimentos sociais e processos organizativos como questão central, em alguma medida
perpassam essa discussão.
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“Para Marx, o proletariado é a classe daqueles que vivem unicamente da venda de sua força de
trabalho (ver mais-valia) por um salário, e que encontram-se, deste modo, submetidos à exploração
pelo capital. A oposição entre burguesia e proletariado é, segundo o Manifesto do partido comunista
(1848), a principal manifestação da luta de classes na época moderna, ou seja, na sociedade
burguesa. “operários”, “trabalhadores” e “proletários” são termos equivalentes, senão idênticos e,
encontra-se, em Marx e Engels horas um, horas outro destes conceitos [...] Segundo certos marxistas
– como Nicos Poulantzas – apenas o trabalhador produtivo, ou seja, aquele que produz mais-valia
para um capitalista, faz parte do proletariado; para outros como Ernest Mandel, o conjunto daqueles
que vendem sua força de trabalho por um salário pertencem ao proletariado; incluindo a massa de
empregados e de trabalhadores intelectuais” (DUMENIL, 2011, p. 99, tradução livre). Corroboramos
com a concepção de Mandel, ampliando-a no sentido de incorporar ainda a massa de trabalhadores
desempregados.
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delimitar regiões e movimentos. Priorizamos a zona oeste de Natal por ser esta uma
das que apresenta organizações e lutas mais expressivas, considerando ainda que a
zona Leste, especialmente no que concerne o bairro Mãe Luiza, embora com uma
trajetória de luta significativa, já constituiu objeto de inúmeras investigações e
análises acadêmicas.
Nesta região – zona oeste de Natal – delimitamos ainda para nossa amostra
de pesquisa aqueles movimentos com atuação mais orgânica na cidade.
Privilegiamos, desse modo, a análise de três movimentos organizados, sobretudo,
nesta região: o Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a
Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras da Copa (APAC) e o Levante
Popular da Juventude (LPJ).
Tal recorte foi necessário tendo em conta a densidade das questões que
estamos nos propondo a analisar, processo este, sem dúvidas muito mais
complicado, em um universo amplo e diversificado7, tanto mais se atentamos para o
tempo que dispomos para a realização de uma pesquisa de mestrado.
Realizamos também uma pesquisa documental por meio da análise de
estatutos, regimentos, notas e textos produzidos por estes movimentos sociais (MS),
e diversos outros materiais que, no decorrer da pesquisa, se mostraram relevantes
para o alcance dos objetivos delineados.
A partir desse enfoque, realizamos entrevistas gravadas semi-estruturadas
com os(as) dirigentes das organizações e movimentos, sujeitos privilegiados de
nossa pesquisa. De fato, na acepção gramsciana, estes se constituem intelectuais
orgânicos que, vinculados a uma determinada classe social, se tornam responsáveis
pela organização e divulgação do conjunto dos interesses político-ideológicos
compatíveis com sua classe, assumindo o duplo papel de educar e auto-educar-se.
Igualmente fundamentada na acepção gramsciana, Ramos (2005) discorre
acerca da importância assumida pela direção na construção da ação política no que
se refere à elaboração de estratégias e encaminhamentos das lutas. Dentro dessa
perspectiva: “[...] não existe organização sem intelectuais, sem organizadores e
dirigentes. Os intelectuais são os representantes permanentes de um projeto político
de resistência ou de manutenção do poder e, como tais, assumem um papel
7
Lembremos que Natal é hoje uma cidade com 803.811 habitantes, tendo seu território organizado
em 36 (trinta e seis bairros) e 70 (setenta) favelas distribuídas nas quatro regiões administrativas
(Norte, Sul, Leste e Oeste).
27
determinante no plano da ação política” (RAMOS, 2005, p. 153). Nesse sentido, tais
lideranças apresentam e sintetizam o conjunto das experiências e expressões que
nos interessa analisar.
De cada movimento social ou organização popular articulada em Natal em
torno do direito à cidade e elencada para nossa pesquisa de campo, entrevistamos
uma ou duas lideranças, num total de 05 (cinco), assim distribuídas: duas lideranças
do MLB; duas lideranças do Levante Popular da Juventude e uma liderança da
APAC.
Face todo o percurso metodológico apontado, não nos parece demasiado
lembrar que os depoimentos dos(as) militantes que nos foram fornecidos por
ocasião das entrevistas foram imprescindíveis para tornar nossa análise possível.
Porém, ressaltamos mais uma vez não terem as 05 (cinco) entrevistas mencionadas
se constituído únicas e exclusivas fontes para as análises aqui tecidas.
Ademais destas e dos documentos consultados, recorremos também a
anotações de nosso caderno de campo, com registros a partir de nossa participação
em muitas reuniões, encontros, atos públicos, visitas e conversas nas casas dos
moradores, que compõem a lista daqueles que serão atingidos pelas obras da copa,
diálogos informais; em tantas outras situações, o dito e o não dito se revelou recurso
de inesgotável valor para a elaboração das reflexões e conclusões a que chegamos.
A produção desta dissertação, desde a escolha do seu tema até a última linha
de sua elaboração, perpassou também valores, prioridades, interesses, diretamente
relacionados com as vivências construídas em nosso processo de formação
profissional e política. Por isto, torná-la pública a partir deste momento significa
também revelar todas as diversas facetas de uma pesquisadora em formação,
encantos e desencantos no processo de delineamento de meu objeto de estudo.
Ao mesmo tempo, possibilita expressar um pouco do que tem sido – até aqui
– o processo de construir-me pesquisadora e registrar o quanto é significativo para
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mim submeter seu resultado final a olhares críticos, a diversos entendimentos sobre
percursos a trilhar na pesquisa na área de Serviço Social.
Com relação ao tema objeto do nosso estudo, o que podemos dizer é que o
próprio caminho trilhado foi redimensionando o meu modo de caminhar e, assim, se
antes me dedicava ao estudo do Movimento Estudantil de Serviço Social, agora
passo a me debruçar sobre os Movimentos Sociais Urbanos, como resultado-síntese
de novas experiências, reflexões, leituras e muitas conversas com a professora
Eliana Guerra, orientadora da pesquisa, que foram complexificando e alterando
significativamente o projeto inicial.
Antecipo: o trabalho em apreço é resultado de um processo relativamente
curto, se pensamos na dimensão do tempo. Todavia, este tem a marca da
intensidade de estudo e dedicação que exigiu de mim. Especialmente, porque
muitos desafios me foram apresentados.
Primeiramente, se impôs para mim a tarefa de apropriar-me da história e das
lutas de um lugar que não é o meu espaço de origem e apenas recentemente
tornou-se meu local de moradia; Logo de início, as poucas vivências e reflexões
maturadas apareceram de forma um tanto quanto assustadora e, por isso mesmo,
nos desafiavam, por terem nos indicado não ser a cidade de Natal simples de ser
estudada, especialmente quando se trata da análise de seus movimentos sociais. Ao
contrário, marcada por complexidades, nos parece estar Natal situada dentre as
cidades mais conservadoras do país.
Em segundo lugar, escrever sobre avanços, entraves, dilemas e contradições
que perpassam processos de organização dos quais eu não sou sujeito, por não ter
trajetória de militância construída por dentro dos movimentos sociais urbanos; Ao
mesmo tempo em que este foi um fator passível de facilitar o distanciamento com
relação ao objeto de estudo que, em certo grau, a pesquisa científica nos demanda,
para resguardar a apreensão e análise das informações; este também foi um
elemento que me gerou dúvidas e me provocou certo receio de cair em um mero
olhar academicista e apartado da realidade dos sujeitos que estão na construção
cotidiana destes movimentos.
Finalmente, desenhou-se como desafio discutir a chamada Questão Urbana,
solo histórico do qual emerge a necessidade da organização coletiva dos
movimentos sociais, objeto de interesse particular de nossa análise. Durante a
realização do curso de Serviço Social na Universidade do Estado do Rio Grande do
29
Capítulo 1
produção do espaço, enquanto seres sociais e históricos que somos, não estamos
destinados a viver perpetuamente em função dela.
Ao afirmamos que há uma lógica de organização do espaço imbuída no modo
de produção capitalista estamos, implicitamente, chamando atenção para o
entendimento de modo de produção. Este, da forma como o estamos abordando,
não se restringe à atividade econômica imediata, e sim remete à totalidade da vida
social ou, em outros termos, ao conjunto das relações sociais que sustentam o
capitalismo.
No seio da teoria da acumulação de Marx revela-se também a presença de
uma dimensão sócio-espacial no modo capitalista de produzir e nisto reside o
grande mérito teórico da elaboração de David Harvey 8. De acordo com seus
estudos, Marx não desconsidera que a acumulação de capital ocorre em um
determinado contexto histórico e geográfico. Aliás, não apenas reconhece este
aspecto da dinâmica do capital, como demonstra que a lógica capitalista engendra
formas específicas de estruturas geográficas, em cada formação sócio-histórica.
O modo capitalista de produção é inevitavelmente expansível na proporção
em que “[...] expressa-se a ‘missão histórica da burguesia’ na fórmula ‘acumulação
pela acumulação, produção pela produção’” (HARVEY, 2005, p. 41-42). Daí se
relacionar amplamente com as estruturas espaciais. O caráter expansível do
capitalismo também está contemplado na afirmação de Marx em O Manifesto do
Partido Comunista ao apontar que “[...] a necessidade de mercados sempre
crescentes para seus produtos impele a burguesia a conquistar todo o globo
terrestre. Ela precisa estabelecer-se, explorar e criar vínculos em todos os lugares”
(MARX; ENGELS, 2008, p. 11).
O espaço como produto da atividade humana e da relação homem-natureza
faz parte do processo de reprodução geral da sociedade e, tendo sua produção
assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulação
capitalista, é também mercadorizado, tal como a cidade e a própria moradia que
passam a ser concebidos como mercadorias necessárias à viabilização da
produção, circulação, distribuição e troca, condição para a realização do ciclo de
acumulação de capital. Afinal, sendo o espaço urbano moldado essencialmente para
8
Para Harvey (2005) o fato de por muito tempo se ter ignorado a dimensão espacial presente na
teoria da acumulação de Marx no modo de produção capitalista se explica, em parte, pelo fato dos
seus escritos sobre o assunto serem fragmentados, mas também por uma certa negligência teórica
quanto ao fator mediador da teoria de localização de Marx.
39
capitalismo – como a educação – que ainda não tenha sido proletarizado) como
produzi-lo ativamente” (HARVEY, 2004, p. 118).
No debate teórico, Virgínia Fontes (2010) polemiza com o termo Acumulação
por espoliação, forjado por Harvey (2004), por entender que, apesar de
extremamente sugestiva, sua tese incorre em algumas dificuldades, na proporção
em que incide no deslize de relegar o tema das expropriações à condição de
acumulação primitiva, levando à suposição de que, no amadurecimento do
capitalismo, desapareciam as expropriações bárbaras de sua origem. A discordância
de Virgínia Fontes reside, sobretudo, no tema da produção de externalidades e na
própria contraposição que Harvey (2004) realiza entre espoliação e expropriação.
Com propriedade e domínio teórico, Virgínia discute o teor contemporâneo das
expropriações produzidas - termo que a historiadora considera mais adequado para
tratar o fenômeno do que o conceito de espoliação - e seu papel na dinâmica
capitalista. Apresenta, assim, as duas faces da tendência à expansão do capital: a
concentração de recursos sociais e a recriação permanente das expropriações:
Mauro Marini – tal como o fez Virgínia – como um dos primeiros intelectuais a fazer
alusão ao papel particular de algumas economias latino-americanas na conexão
com o restante do continente.
Não temos, todavia, acordo com relação à tese central apresentada pela
autora, segundo a qual o Brasil, nesse processo, se caracterizaria como país a
desempenhar um papel imperialista, ainda que de forma subordinada. Ora, sob esta
ótica podemos incorrer no risco de velar o real processo internacional que rege as
relações econômicas entre capitalistas do centro e da periferia, anuviando com isso
a tensão entre o local (em suas particularidades) e o internacional.
A inserção do Brasil no jogo geral de reprodução do capital, neste contexto de
financeirização da economia9 e do imperialismo, em sua fase de intensificação da
integração dos territórios, explica-se, a nosso ver, por meio dos conceitos chaves de
subimperialismo e de superexploração (MARINI, 1974). Estes conceitos nos
parecem melhor apropriados para captar a consolidação, no cenário internacional,
de papéis distintos no mesmo processo geral da dinâmica capitalista a serem
exercidos por parte das nações hegemônicas e das nações periféricas e, dentre
estas, de algumas intermediárias.
Para o caso brasileiro, a questão da organização espacial em geral – e da
urbana em particular – exige reflexão (e esforço de pesquisa) a partir do
entendimento da condição de subdesenvolvimento e de dependência que cria (e
recria) formas urbanas particulares.
Superexploração e subimperialismo são conceitos elaborados, por dentro da
teoria marxista, com destaque para a formulação de Ruy Mauro Marini, intimamente
relacionados à realidade periférica. Objetivam explicar o caráter particular das
nações subdesenvolvidas, em sua vinculação complementar e contraditória com
relação aos países imperialistas centrais. Ambos os conceitos, logicamente, não
podem ser entendidos descolados da teoria acerca do imperialismo.
Ao definir subimperialismo, Marini (1974, p. 07) o fundamenta em duas
características essenciais:
9
Trata-se de um regime de acumulação mundial predominantemente financeiro. De acordo com
Chesnais (1996) é uma nova configuração do capitalismo mundial, bem como dos mecanismos que
comandam seu desempenho e regulação; um posto avançado da mundialização do capital, situado
no quadro do prolongamento direto do estágio imperialista. As contribuições de Husson (1999)
também são fundamentais para o desvendamento de determinações e processos presentes na
mundialização da economia, nos levando a crer tratar-se certamente de uma dominação ainda maior
que em períodos anteriores.
46
É neste terreno histórico que Henri Lefebvre também situa suas análises.
Enquanto processo, em larga escala, motor das transformações societárias, a
industrialização é, para o autor, processo indutor de diversas questões referentes à
cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana. Isto não significa, todavia, negar
que, obviamente, a cidade preexiste à industrialização; aliás, quando nasce o
capitalismo concorrencial com a burguesia especificamente industrial, as cidades já
se constituíam como centros da vida social e política nos quais se acumulavam
riquezas. Porém, a ampla expansão das trocas e do “mundo da mercadoria”
resultantes da industrialização implica uma mudança radical do ponto de vista da
concentração urbana, fazendo com que a cidade adquira feições diferenciadas. Daí
48
ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais
e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos
estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura
irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas,
é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias [...]
(ENGELS, 2010, p. 70).
muitas vezes, não é acompanhada por uma expansão das redes de infraestrutura e
serviços, o que acaba por lhe conferir certa precariedade.
Na atualidade, aguçam-se também outras contradições, uma vez que
diversas pesquisas vêm indicando a existência, em média, de 40% a 50% da
população das grandes metrópoles, vivendo na informalidade urbana, sendo 15% a
20% desta população moradora de favelas, cortiços e loteamentos
clandestinos (FERREIRA, 2005). Vale ressaltar, todavia, no sentido de avançarmos
para além da visão metropolitana da questão urbana, que desde os anos 1980, as
cidades médias do interior têm crescido significativamente, em função do modelo
primário-exportador do país11, generalizando desse modo a questão urbana para
todo o território. Embora com características próprias, a informalidade urbana sem
dúvidas está também presente nas cidades médias brasileiras.
O conceito de informalidade urbana procura dar conta da realidade de
inadequação físico-construtiva e ambiental das condições de habitação em que vive
a classe trabalhadora brasileira. Trata-se, em síntese, de uma realidade na qual
predominam construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação
ambiental e habitações com área útil insuficiente para a quantidade de moradores,
dentre outras características.
Mas, além disso, também estão abarcadas no conceito de informalidade
urbana as moradias localizadas em espaços onde prevalece, muitas vezes, a
ausência de equipamentos e serviços fundamentais de infraestrutura urbana, a
exemplo de saneamento, água tratada, luz e acessibilidade. Isto sem mencionar a
própria ilegalidade da posse da terra ou a ausência do contrato de uso.
Na raiz da informalidade urbana, inegavelmente encontra-se a questão da
terra, pois no campo ou na cidade, a propriedade da terra no Brasil costuma
constituir um nó (MARICATO, 2011) nas relações sociais, alimentando a profunda
desigualdade e a tradicional relação entre propriedade, poder político e poder
econômico.
A tendência não poderia ser outra, considerando o incremento do
agronegócio, baseado no latifúndio, responsável por intensificar a expulsão de
camponeses do meio rural em uma verdadeira “marcha para as cidades”, com
11
Conferir os resultados da pesquisa “Cidades Médias: agentes econômicos e reestruturação urbana
e regional”, desenvolvida por diversas instituições universitárias, reunindo investigadores do Brasil, do
Chile e da Argentina. Em parte, os resultados da referida pesquisa estão publicados em Sposito; Elias
e Soares (2010).
54
12
Para um estudo acerca das origens do neoliberalismo, do processo e dos mecanismos mobilizados
para a construção da sua hegemonia, indicamos a leitura de Sader e Gentili (1995) e Harvey (2008).
13
Em Behring (2003) encontramos algumas determinações relevantes e transformações de longo
prazo que permitem caracterizar quais razões socioeconômicas e políticas estão na base do
processo de contrarreforma do Estado - tais como as mudanças no mundo da produção e a
mundialização do capital - e como se deu o processo de implementação da contrarreforma, entendo-a
como estratégia fundamental do ajuste neoliberal. A argumentação desenvolvida nesta obra
caracteriza bem os processos em curso no âmbito do Estado brasileiro.
58
14
Ponderamos, entretanto, que tratar a dinâmica do investimento público nas cidades brasileiras
como um impasse pode soar falsamente, dando a impressão de que resolver esta questão bastaria
para a ruptura com as desigualdades sócio-espaciais. Ledo engano. Lembremos que o caráter
eminentemente desigual da vida nas cidades está inscrito no ordenamento capitalista e naturalizado
em sua lógica.
59
15
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Sendo gerido por um conselho que tem a
participação de representantes da sociedade, maneja recursos bem menos significativos que o
PMCMV.
16
Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, desenhado por uma parceria entre o governo
federal e as 11 (onze) maiores empresas construtoras de moradia.
61
Isto indica, a nosso ver, que a realidade define, em grande medida, a agenda de
pesquisa da universidade, mas segue as escolhas políticas e teórico-metodológicas
dos sujeitos pesquisadores.
Chamamos especial atenção para as teorizações de maior influência na
produção teórica brasileira acerca dos movimentos atuais, também designados
“novos” movimentos sociais, a exemplo do paradigma europeu, com destaque para
três principais vertentes: a abordagem culturalista-acionalista, o pensamento pós-
moderno e o paradigma marxista.
A teoria culturalista-acionalista tem por horizonte a construção de um modelo
teórico baseado na cultura. Daí, a ênfase dispensada por este paradigma às
dimensões de cultura, identidade e solidariedade entre as pessoas de determinado
movimento social. Segundo esta perspectiva, os movimentos contemporâneos
apresentam interesses difusos e não classistas. Por isso mesmo, há um
redirecionamento do eixo central das demandas postas na esfera pública, as quais
são deslocadas do campo da economia para o campo da cultura. Nesta abordagem,
a ênfase está no papel dos indivíduos e não da classe social e, na mesma lógica, os
movimentos são vistos muito mais como agentes de pressão do que de
transformação societária (Cf. TOURAINE, 1989; EVERS, 1984). Trata-se, portanto,
de uma teoria que procura explicar a ação coletiva em uma perspectiva subjetivista
dos fenômenos.
No campo teórico e prático, ampliam-se ainda as interferências do
pensamento pós-moderno e neoconservador, a exemplo do que ocorre com a
perspectiva acionalista. Aqui também, os “novos movimentos sociais” são analisados
como distantes e apartados da contradição capital-trabalho. Tal vertente pós-
moderna não apenas afirma a perda da centralidade dos conflitos de classe no
processo de organização e de ação política dos movimentos sociais, como assegura
mesmo a inexistência de tais conflitos na contemporaneidade (LACLAU e MOUFFE,
1988).
Dentre os elementos que constituem a base de sustentação da leitura pós-
moderna dos movimentos sociais destacamos a descrença em qualquer perspectiva
de contraponto aos interesses do capital e de emancipação do trabalho, em uma
total negação das bases teóricas clássicas do marxismo.
Boaventura de Sousa Santos (1999; 2005), expoente da intelectualidade pós-
moderna, talvez seja a melhor tradução que poderíamos encontrar neste momento
62
17
Afirmamos tratarem-se de duas grandes tendências teóricas porque, especialmente, no que se
refere ao debate acerca dos movimentos sociais no Brasil, concordamos com a análise de Duriguetto
e Montaño (2010), segundo a qual as vertentes acionalista e pós-moderna parecem hoje estar
fundidas num verdadeiro “rearranjo culturalista”.
63
sendo fundante desta lógica societária, mas, ao contrário, reafirmam tal contradição
(LOJKINE, 1981) e confirmam a centralidade da luta de classes.
Consideramos de suma importância a análise das linhas gerais que
fundamentam o universo teórico e político das diferentes abordagens explicativas
adotadas nos estudos dos movimentos sociais18. Todavia, dado os limites do
presente trabalho, privilegiamos a abordagem marxista por a tomarmos como
referência para a compreensão desta sociedade.
Esta abordagem, cuja matriz situa-se no conflito capital-trabalho, privilegia o
processo de luta histórica das classes subalternas. Isto não significa limitar-se à
análise do movimento operário, relegando a um segundo plano outros movimentos
políticos; tampouco implica em trabalhar com determinações exclusivamente
econômicas, pois a opressão-dominação capitalista perpassa as mais diversas
dimensões da existência social. O grande diferencial do paradigma marxista na
análise dos movimentos sociais consiste em possibilitar apreender, para além dos
aspectos imediatos, a essência dos fenômenos e a contraditória relação entre
essência e aparência. Nesta teoria, há também a preocupação frequente em
subsidiar a ação política destes movimentos e, assim, contribuir para a práxis
revolucionária. Resulta daí o fato de tal paradigma ter provocado e impulsionado, ao
longo da história, não somente o desenvolvimento de um amplo universo teórico e
analítico em torno do processo revolucionário e das estratégias de transição
socialista, como também suscitado e fundamentado a construção de diversos
instrumentos político-organizativos da classe trabalhadora.
Fundamentalmente, como destaca Gohn “[...] as teorias marxistas sobre os
movimentos sociais não abandonaram a problemática das classes sociais. Ela [a
problemática das classes] é utilizada para refletir sobre a origem dos participantes,
18
Para um estudo comparativo entre estas teorias, pondo em evidência diferenças e semelhanças, a
fim de explicitar os termos do debate estabelecido entre as principais abordagens, indicamos a leitura
de Touraine (1989) e Evers (1984) como expoentes da teoria acionalista; Laclau e Mouffe (1988) e
Santos (1999; 2005) como um dos representantes da abordagem pós-moderna; Manuel Castells
(1974) e Jean Lojkine (1981) como autores que figuram dentre os primeiros estudiosos a empreender
esforço teórico na análise dos movimentos sociais atuais, em uma perspectiva marxista. Uma
sistematização acerca do conjunto destas teorias pode ser encontrada nas obras de Gohn (2007) e
Scheren-Warren (1987). Entretanto, contrariamente à análise de Gonh (Op. Cit), consideramos que o
nominado “Paradigma dos Novos Movimentos Sociais” (NMS) não pode ser reputado como
exclusivamente pós-moderno ou acionalista. Na verdade, há autores marxistas, a exemplo de
Lefebvre (1968) e Birh (1998), que também utilizam a mesma denominação - NMS - para se referir a
alguns movimentos sociais, sem necessariamente despi-los do caráter classista. Contudo,
reconhecemos que, a partir dos anos 1990, há crescente influência pós-moderna na concepção dos
“novos” movimentos sociais.
64
Resta-nos saber por meio de que mecanismos e transitando sob qual solo
histórico tem se materializado as lutas urbanas na capital potiguar. Como as
determinações sócio-conjunturais dos anos 2000 inflexionam e caracterizam a
organização política dos movimentos sociais urbanos (MSU) em Natal? Que tipo de
problemas urbanos tem levado a população dos bairros populares de Natal a se
organizar? E, do mesmo modo, como essa população manifesta a sua
contraposição em relação aos mesmos?
66
Capítulo 2
22
Sinalizamos, desde já, que a primeira parte deste duplo movimento a que nos referimos no
desvendar da questão social funda o intuito do presente tópico. A segunda parte, por sua vez, será
objeto de discussões futuras deste trabalho, subsidiado pela nossa pesquisa de campo.
74
para cumprir com o objetivo exclusivo de produzir carne para alimentar a capitania
de Pernambuco. Assim, ao tentar desenvolver seu mercado, foi coibido,
permanecendo por bastante tempo praticamente apenas como uma grande fazenda
de gado.
Com uma população muito pobre devido a inexistência de qualquer atividade
econômica formal para além da pesca, da pequena agricultura e da criação de gado,
a cidade de Natal se desenvolve a passos lentos e, por isso mesmo, até o século
XVII, nos termos de Souza (1978), será cidade apenas no nome, dada as inúmeras
dificuldades para garantir o seu próprio povoamento. Com efeito, “[...] ao contrário de
outras cidades, Natal não se originou de uma vila e não havia uma atividade
econômica, que aglutinasse seus moradores” (LIMA, 2002, p. 33).
Apenas a partir da Segunda Guerra Mundial, ocasião em que é transformada
em base militar dos norte-americanos, provocando com isto a vinda de um grande
contingente de militares para a cidade, além da migração da população, Natal
apresenta um crescimento populacional mais significativo. Na verdade, a
implantação da base militar na cidade cria demanda por serviços e mercadorias,
atraindo comerciantes e trabalhadores que progressivamente vieram se instalar na
capital potiguar.
Este contexto representa para Natal um índice migratório altíssimo naquele
momento (1940/1950). O crescimento da sua população urbana está igualmente
associado a outros fatores, diretamente relacionados à presença no Rio Grande do
Norte, como ademais em toda a região Nordeste e no Brasil, de uma estrutura
fundiária marcada pelo predomínio do grande latifúndio. Somam-se isto os longos
períodos de estiagem23, com a decorrente expulsão dos trabalhadores rurais do
campo para a cidade, também responsáveis pela constituição de boa parte da
população de Natal que, no desenrolar da história, adensa a pobreza na cidade. Na
análise de Souza:
23
Ressalte-se que não concordamos com as concepções que restringem a seca no Nordeste e suas
consequências a meramente um fenômeno climático. Para muito além disso, esta questão e, do
mesmo modo, a realidade vivenciada por Natal neste contexto, é sintomática da concentração da
terra e da água no Nordeste brasileiro, raiz da qual emerge este problema.
75
A ação da Igreja chega assim aos bairros periféricos de Mãe Luiza, Bom
Pastor, Nova Descoberta, Dix-Sept Rosado e outros [...] o trabalho se situa
numa linha bem assistencialista [...] onde passam a funcionar cursos de
alfabetização de adultos, cursos profissionalizantes, cursos de educação
política assim como grupos de discussão nos bairros para debate do
chamado Movimento de Natal [...] Este é um movimento pioneiro no Brasil e
o Movimento de Natal passa a ser encarado como semente de uma nova
ação social da igreja. O fim dos anos 1950 assiste também ao surgimento
de um movimento de certa envergadura na cidade, que tem como bandeira,
a luta contra o imperialismo, e que tem no seu líder Djalma Maranhão, a sua
força máxima (CEPAU, 1987, p. 61-62).
Com o golpe de 1964, o trabalho popular que vinha sendo realizado até então
se depara com uma forte repressão que leva a um processo de desmantelamento,
pondo fim às experiências de trabalho de bairro durante os primeiros dez anos de
governo militar. Posteriormente, já em uma conjuntura de desgaste do regime militar
e de hegemonia da oligarquia Maia - e sabendo-se ser necessária a contenção e
amenização dos métodos repressivos para elevar a legitimidade do governo, o
Estado reconfigura sua política, adotando como objetivo a promoção da “integração
social” das cidades via desenvolvimento comunitário.
Esta Política tem como carro-chefe o Programa Nacional de Centros Sociais
Urbanos (PNCSU), desenvolvido em Natal, a partir de 1976, como experiência
77
pioneira no contexto brasileiro24. Durante anos, alvo de investimentos por parte dos
governantes do Rio Grande do Norte e mais precisamente de Natal, apesar do
projeto de participação comunitária implementado por intermédio do Centro Social
Urbano (CSU) ter sido apenas o ponto de partida para uma política muito mais
agressiva e ousada por parte dos governantes do grupo Maia nos anos seguintes.
Especialmente no que diz respeito ao aspecto da relação povo-governo, sintetizada
em um intenso trabalho de envolvimento e manipulação política nos bairros,
envolvendo entidades comunitárias.
Estes investimentos não acontecem por acaso, de forma desinteressada. Ao
contrário, para o poder local, o PNCSU se revela excelente oportunidade de
fortalecer a política clientelista, por dentro da lógica que transforma a prestação de
serviços em relação de favor, como sinaliza Nicolau (1984) ao se referir às práticas
desenvolvidas pelas unidades de Centros Sociais Urbanos:
24
A primeira unidade do CSU foi instalada no conjunto habitacional Cidade da Esperança, na zona
Oeste de Natal. Na análise de Fausto Neto (1993) a implantação de programas deste tipo em uma ou
outra localização dependia de um critério fundamental: o potencial de conflito representado pelos
usuários que não fossem atendidos ou a força social e política que poderia ser incorporada com seu
atendimento.
78
25
Vale lembrar que os prefeitos das capitais, nesse período, eram escolhidos pelos Governadores e,
estes, nomeados pelo Presidente.
80
26
Entre as amplas expressões de mobilização e organização popular deste período, tiveram
destaque as mobilizações promovidas pelos metalúrgicos do ABC paulista e a pluralidade de
reivindicações pautadas pelo movimento feminista, movimento homossexual, movimento negro, além
de diversos outros movimentos populares que emergiam naquele momento.
81
Porém, do ponto de vista das mobilizações sociais, esta foi uma década de
destaque, com amplas mobilizações e variadas manifestações democráticas e
populares. Nesse sentido, especialmente este período compreendido entre a
segunda metade da década de 1970 e os anos 1980 se constituiu, no Brasil, como
períodos de redemocratização e de ruptura com o regime estabelecido com o golpe
de 1964.
A segunda metade dos anos 1980 – se destaca como uma fase institucional
da participação popular. A sociedade brasileira vivenciava nesse momento, um
contexto de consolidação democrática27, no qual com uma crescente aproximação
dos movimentos sociais aos aparatos político-institucionais. O maior indicativo dessa
reorientação política no campo da ação coletiva foi o conjunto de esforços
empreendidos no processo de elaboração da Constituição 28 Federal de 1988,
através de abaixo-assinados, mobilizações, articulações nacionais e movimentos de
pressão popular para inscrever no texto legal todos os direitos negados durante os
governos militares.
As novas práticas coletivas são definidas por Luchmann e Sousa (2005) como
sendo os “novos instituintes” no contexto da luta pela consolidação democrática. O
termo é adotado pelas autoras no sentido de explicitar que o reconhecimento e
institucionalização do Estado de direito consistia na pauta central das lutas sociais,
na segunda metade dos anos 1980. Porém, para além da efetivação dos direitos
instituídos, a pressão popular objetivava também o estabelecimento de novos
direitos e a via percebida, para tanto, era a ampliação dos espaços de participação
social junto aos aparatos político-institucionais, possibilitando a intervenção direta
nas definições e encaminhamentos das demandas por políticas públicas.
Nessa fase, a perspectiva assinalada representa um forte indicativo na
redefinição da relação entre Estado e sociedade civil no Brasil, ao mesmo tempo em
que marca um momento de redimensionamento das ações e iniciativas dos
movimentos sociais. Anteriormente, tais ações eram reivindicativas ou ‘de rua’ e
passam a ser traduzidas em propostas políticas e encaminhadas aos espaços
institucionais.
27
Contexto iniciado a partir da eleição direta para presidente da República, em 1989, após décadas
de ditadura.
28
Embora a Constituição de 1988 decorra de uma década marcada pela transição dos regimes
autoritários para os governos ditos democráticos, seu processo de construção de forma alguma se
deu isento de grandes embates políticos.
82
Não obstante, Weffort29 (1984, p. 97) faz uma importante ponderação ao nos
lembrar que, apesar das tensões existentes entre estes diferentes modos de
participação popular, todos constituem parte essencial do jogo democrático e, em
muitos momentos, a articulação entre a participação popular direta nas ruas e
praças, e a participação popular em eleições, pode ser uma articulação decisiva
para os rumos do processo político, aliás, “[...] elimine-se um dos lados e todo o jogo
democrático acabará sendo suprimido”.
Nos anos 1990, diante do cenário da ofensiva neoliberal, no campo das lutas
sociais, configura-se um quadro de “descenso” e de crise, com relativo esfriamento
da atuação dos movimentos sociais, que anteriormente haviam crescido e chegado
ao auge em 1989, com a possibilidade das esquerdas vencerem as eleições
presidenciais, tendo Lula à frente de seu projeto político.
Não obstante, a vitória de Collor de Mello e a subsequente implantação das
políticas neoliberais, causando desemprego em massa na cidade e no campo e
abortando o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e, logo em seguida, o
governo de FHC representando a continuidade dessa política, de forma planejada e
convincente, provocaram entraves à ação dos movimentos sociais.
O governo Collor e os dois mandatos de FHC, marcados por políticas
regressivas e pelo desenvolvimento de ações de repressão às lutas sociais e a suas
representações mais fortes, a exemplo dos bancários e dos petroleiros, podem ser
vistos como grandes determinantes para o enfraquecimento dos movimentos
sociais, quiçá constituintes da mola-mestra a partir da qual desembocou a inflexão
dos movimentos sociais, neste período.
Duriguetto (2007) nos lembra que a noção de “refluxo” ou “crise” dos
movimentos sociais foi interpretada sob diferentes óticas. Para algumas leituras, a
ênfase dada aos canais institucionais implicou em uma gradativa adesão da
perspectiva reformista por parte de movimentos que antes tinham ideais
revolucionários; outras leituras apontam como determinante para a crise um
processo de submissão dos princípios democratizantes que caracterizaram as lutas
29
Sob pena de comprometermos a coerência teórica de nosso raciocínio, não poderíamos deixar de
registrar que no que se refere à abordagem de Weffort, embora este seja um autor bastante citado
quando se trata de elaborações sobre a democracia no contexto da transição, em suas formulações
não se faz presente a defesa de um projeto societário contra-hegemônico. Isso porque, para Weffort,
a possibilidade de uma suposta revolução estaria justamente (e estritamente) na ocupação dos
espaços institucionais democráticos, perspectiva da qual não compartilhamos.
83
Por sua vez, Aldo Tinoco (PSB) à frente da prefeitura de Natal (1993-1996),
apesar de ter tido o apoio da então prefeita Vilma Maia à sua candidatura, não adota
a mesma relação no trato com as organizações comunitárias, numa tentativa de
31
Trecho transcrito da entrevista de Valdefran Pereira Câmara, concedida à autora em 19/02/1977,
durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997).
85
Nessa mesma direção, Pedro Lima (2002, p. 149) entende Natal como uma
cidade dividida a partir do estuário do Rio Potengi, posto que “[...] enquanto Natal se
desenvolvia como uma cidade legal e provida de serviços e equipamentos urbanos,
em ambas as margens do rio Potengi uma outra cidade clandestina e pobre também
se desenvolveu”, revelando também que as contradições do espaço urbano de Natal
se expressam e se particularizam em determinadas regiões e bairros.
Nestes espaços está colocado de forma evidente o cotidiano da pobreza
constituída nesta cidade e, como não poderia deixar de ser, demanda processos
organizativos e de mobilização popular, nos quais e a partir dos quais haja mais
visibilidade da principais questões que afetam a população urbana da cidade,
necessitando, portanto, serem problematizadas e politizadas, questões estas
intrinsecamente ligadas ao seu território.
Neste quadro, precisamente, tem lugar a emergência dos movimentos sociais
com seus diferentes sujeitos, a partir dos quais se adensam as lutas urbanas em
Natal, objeto de reflexão e de análise no presente estudo.
Buscamos em nosso processo de pesquisa discutir o fenômeno das lutas
urbanas particularizado nas experiências organizativas do Movimento de Lutas nos
Bairros, Vilas e Favelas (MLB), da Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras
da Copa (APAC) e do Levante Popular da Juventude32 (LPJ), organizados,
sobretudo, na zona oeste da cidade de Natal-RN, entendido como uma das faces
que constituem a questão urbana.
O caminho adotado para tanto pressupõe que “[...] a compreensão dos
projetos político-ideológicos dos movimentos passa pelo entendimento da
composição de seus quadros dirigentes” (GOHN, 2005, p. 39-40), bem como supõe
certamente a apreensão das bandeiras de luta que têm se constituído como frentes
de atuação dos movimentos locais.
32
Em específico com relação ao Levante Popular da Juventude, importante dizer que este movimento
não é exclusivamente da cidade, na medida em que se organiza a partir de três campos de atuação:
a) no meio estudantil secundarista e universitário; b) nas periferias dos centros urbanos e c) nos
setores camponeses. Em Natal, o Levante Popular da Juventude está presente na UFRN, nas
faculdades privadas (em ambos os casos atuando no movimento estudantil) e no bairro de Felipe
Camarão. Esta forma de organização demonstra a concepção do movimento em relação ao trabalho
com a juventude, para o qual embora existam especificidades que particularizam a organização da
juventude no movimento estudantil, na periferia e no campo, estas se complementam e devem ser
construídas de forma articulada, concepção com a qual temos total acordo. Entretanto, dado nosso
objeto de estudo e as finalidades da presente pesquisa, no que se refere ao Levante Popular da
Juventude, nossa investigação se concentrou junto à célula Peixe-Boi (bairro de Felipe Camarão), por
esta aglutinar e organizar a juventude da periferia urbana de Natal.
89
Muitas das construções políticas dos movimentos sociais e das suas ações
cotidianas são impressas e influenciadas diretamente também pelo perfil assumido
pelos seus dirigentes, não apenas no que se refere às suas posições político-
ideológicas, mas também à própria realidade de vida na qual este dirigente está
inserido, relacionadas, por exemplo, ao gênero, à faixa etária, à raça/etnia,
escolaridade, religião, trabalho, tempo de militância em espaços coletivos, filiação
partidária ou não e as condições e motivações que proporcionaram sua aproximação
ao movimento.
Implica considerar a ação política dos movimentos sociais e das organizações
populares de Natal como uma realidade que é vivenciada e apresentada na
consciência de seus militantes e, por isso mesmo, expressa no perfil de seus
dirigentes e nos seus discursos teóricos e ideológicos.
Implica igualmente ter a clareza de que tal ação política é socialmente
determinada pelas circunstâncias sociais objetivas, que independem da vontade ou
da consciência de seus dirigentes e militantes individuais, podendo inclusive ocorrer
um desencontro entre as intenções dos dirigentes, a ação realizada pelos
movimentos e os resultados produzidos, especialmente porque a organização
política, tal como os demais processos desta sociabilidade, é necessariamente
polarizada pelos interesses das classes sociais, não podendo ser apreendida fora
desta trama.
Como decorrência deste entendimento, é possível afirmar que os rumos da
ação política dos movimentos urbanos em Natal não decorrem exclusivamente das
intenções dos militantes uma vez que suas intervenções sofrem condicionamentos
objetivos do contexto onde atuam. No entanto, isso não significa que estes se
coloquem passivamente diante das situações sociais e políticas que configuram o
cotidiano do movimento social. Ora, eles podem perfeitamente definir estratégias e
táticas políticas no sentido de reforçar os interesses do projeto ao qual defendem e
se opor a projeto e ações que contrariem os interesses de sua classe, procurando
incidir na realidade.
90
33
O fetiche da quantificação (como resolvemos denominar aqui) poderia nos levar ao equívoco de
querer transformar todas as informações do perfil das lideranças em dados a serem expressos em
gráficos e tabelas, supondo com isto tornar a análise “objetiva” e “observável”. De fato, chegamos
bem perto de cedermos aos encantos de tal concepção positivista de fazer pesquisa e nisto reside
nossa autocrítica. Contudo, considerando que estamos trabalhando com um número bastante
pequeno de entrevistados (apenas cinco) nos convencemos do contrário a tempo e optamos por
discutir o presente item sem recorrer ao uso dos gráficos e tabelas. Não por uma recusa formal. Mas
de compreensão teórico-metodológica: entendemos – agora sim – a incoerência de mobilizar tais
recursos quando estes não trazem nenhum acréscimo ao que o texto já demonstra. Em outros
momentos de nosso trabalho, por sua vez, quando julgado necessário, adotamos os recursos citados.
91
34
Seguem alguns trechos e passagens nos quais Marx esboça uma definição para lumpen: 1)
“Lumpenproletariat: Ao pé da letra: proletariado em farrapos. Elementos desclassificados, miseráveis
e não organizados do proletariado urbano” (MARX e ENGELS, 2001, p. 108); 2) “Lado a lado com
roués decadentes, de forma duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com aventureiros rebentos
da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados
foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores,
maquereaus (alcoviteiros), donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros,
amoladores de faca, soldadores, mendigos – em suma, tôda essa massa indefinida e desintegrada
[...]”(MARX, 1986, p. 71) e 3) “Abstraindo vagabundos, delinquentes, prostitutas, em suma o
lumpemproletariado propriamente dito (..)” (MARX, 1988b, p.199).
93
35
Grifo nosso.
94
urbanos aqui estudados como seu primeiro canal de participação coletiva, o que
certamente influi no nível de politização destes dirigentes.
Nos casos em que foram citadas esferas de ação coletiva anteriores,
destacou-se a experiência construída no movimento estudantil (ME) secundarista e
universitário, via participação em grêmios estudantis e centros acadêmicos de suas
respectivas unidades de formação. De fato, o movimento estudantil possui
inegavelmente um caráter de espaço formador de militantes; a condição transitória
de estudante possibilita aos militantes do ME, posteriormente, desenvolverem suas
potencialidades de atuação política, em outros espaços e segmentos organizados
(Cf. GUIMARÃES, 2011a). Aqui, porém, chamamos ainda a atenção para a
especificidade dos movimentos estudados. Pesquisas sobre movimentos de bairro
ou comunitários, distintas da que ora apresentamos, destacam principalmente a
Igreja Católica como a sendo a primeira esfera de participação coletiva para a
maioria das lideranças de movimentos urbanos e organizações populares, seguida
pelos partidos políticos e, em menor proporção, os sindicatos e o movimento
estudantil (Cf. SANTOS, 1995).
Doravante, em nossa pesquisa de campo constatamos que dos 05 (cinco)
dirigentes entrevistados, 03 (três) deles possuem filiação a Partido Político, com
destaque para o Partido Comunista Revolucionário36 (PCR) e o Partido dos
Trabalhadores (PT). Este é um dado que nos parece importante principalmente
porque pode sugerir influência de partidos políticos nas práticas dos movimentos e
organizações populares de Natal, cabendo-nos problematizar esta relação, entre
estas duas categorias de sujeitos coletivos, embora a vinculação de dirigentes de
movimentos urbanos a partidos políticos não seja de forma alguma uma
particularidade da organização política local. Ao contrário, entre as principais
especificidades dos movimentos sociais latino-americanos está justamente o fato
dos partidos políticos terem clara atuação junto aos movimentos sociais em geral,
até porque muitos militantes dos movimentos são, também, militantes partidários
(GOHN, 2007).
Diversos estudos têm apontado para a presença dos partidos políticos no
cotidiano dos movimentos sociais e das organizações populares, com ênfase para o
36
O PCR é um partido ainda não legalizado que foi fundado em 1966, por um grupo de militantes
egressos do PCdoB que divergiam dos rumos que o partido trilhava. Seus princípios ideológicos
baseiam-se no marxismo-leninismo e, atualmente, a atuação do partido divide-se entre movimento de
bairro, sindical e estudantil (PCR, 2013).
95
37
Como exemplo de uma investigação local sobre o tema, podemos citar a pesquisa “O perfil ético-
político dos Movimentos Sociais e das Organizações Não-Governamentais em Mossoró-RN”.
Resultados publicados em: QUEIROZ, F.M de; RUSSO, G.H.A; RAMOS, S.R (orgs). Serviço Social
na contra corrente: lutas, direitos e políticas sociais. Mossoró-RN: Edições UERN, 2010.
96
Por eu morar numa casa, mas eu ter a necessidade de garantir que ela
fosse minha, eu precisei morar numa ocupação, em um barraco de taipa,
porque aí eu tinha certeza que ia lutar e que quando a casa fosse
conquistada eu ia parar de ter que pagar pra cuidar de uma casa que era de
outra pessoa. Porque esse é o objetivo do aluguel: a gente pagar pra tomar
conta de algo que não é nosso. Era pra ser o contrário. Se o proprietário
não quer que ninguém deprede, ele pague a uma pessoa pra morar na casa
dele (MLB 1).
38
Toda a discussão que temos construído no presente trabalho acerca dos fundamentos teórico-
analíticos para a compreensão dos movimentos sociais e em relação à questão urbana na dinâmica
de reprodução capitalista, bem como a caracterização da cidade de Natal enquanto cenário na qual
se materializam as lutas urbanas que estamos analisando pretendem cumprir este papel.
99
[...] No Rio Grande do Norte, temos hoje cerca de 130 mil famílias sem-
teto, onde 70 mil só na grande Natal e na Capital dos Magos temos 30 mil
famílias sem teto. Mesmo com essa realidade o governo do Estado esse
ano deixou de construir 1.200 casas em Natal com o argumento de que não
tinha terreno. Na verdade o governo do Estado não vem priorizando a
construção de moradia, pois dinheiro para garantir a construção do Estádio
Arena das Dunas não só teve recursos como empenhou vários bens do
Estado, inclusive terrenos em áreas consideradas de classe média [...]
Enquanto isso a prefeitura de Natal vem tratando o assunto sem
compromisso, pois há 3 anos 350 famílias estão acampadas na Ocupação
Anatália de Sousa Alves um terreno da Prefeitura e só dependemos de uma
carta de anuência para o MLB dar inicio a construção de 750 unidades
habitacionais, até a data de hoje nada foi feito [...] Temos um déficit de 30
mil famílias que corresponde hoje a cerca de 120 mil pessoas numa cidade
de 900 mil habitantes. Falta uma política de habitação séria comprometida
com o povo pobre de nossa cidade (MLB, 2012, s/p).
39
Nacionalmente, porém, o MLB surgiu em 1999, originalmente organizada na região Nordeste do
país e hoje se encontra articulado em 13 (treze) estados brasileiros.
100
Aqui a gente chama que as favelas de Natal são cobertas, a gente não
enxerga. A cidade tem 72 favelas, elas não aparecem, não são visíveis. Se
chega em Recife, sobe um morro e você ver logo uma favela, no Rio de
Janeiro a mesma coisa. Aqui em Natal.... favela do Cambuim, ninguém sabe
onde fica, ela fica por trás do cemitério do Bom Pastor. A favela do Detran,
só via quem passava de trem, quem passava disso não via a favela do
Detran. A favela do Jacó, perto do hospital universitário, a gente não vê ela.
E hoje não temos, uma coisa que travou, infelizmente a prefeitura não
retomou... brigamos com Carlos Eduardo e conseguimos implantar o
Conselho Municipal de Habitação, que agora a atual gestão fechou, não
temos mais debates sobre isso (MLB 2).
Figura 01 – Militantes do MLB promovem Marcha em Figura 02 – Mulheres do MLB protestam na prefeitura
Defesa da Moradia Digna e da Dignidade Humana pela construção de creches nos bairros periféricos de
Fonte: Tribuna do Norte (2011). Natal Fonte: Tribuna do Norte (2012).
40
É válido questionar aqui o conteúdo das discussões oficiais em torno da questão da mobilidade
urbana, que enfatiza aspectos relacionados com o transporte individual e privado, a fluidez do transito
para permitir o acesso a locais de lazer e de serviços e comércio por parte, sobretudo, de visitantes e
turistas mobilizados pelos eventos esportivos ou de outra natureza que, espera-se, afluam nas
cidades brasileiras.
103
constantes de violação aos direitos humanos. A edição número 462 do Jornal Brasil
de Fato, publicado em janeiro de 2012, trouxe em uma de suas matérias título
revelador do tensionamento vivido pelo país, que se encontra entre o ufanismo com
os eventos esportivos e o apelo do ideal de desenvolvimento e a preservação de
direitos humanos fundamentais: ‘Por trás dos investimentos, famílias atingidas e
trabalhadores precarizados’.
A matéria supracitada relata que diversos integrantes dos Comitês Populares
da Copa, formados por estudantes, moradores de comunidades, movimentos e
organizações populares, construíram um dossiê sobre os megaeventos e violações
de direitos humanos no Brasil, entregue no mês de dezembro de 2011 às prefeituras
das 12 (doze) cidades-sede da copa, na Câmara dos Deputados, no Senado, em
diversos ministérios e órgãos federais, além de entidades internacionais, como a
Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Unidos
Americanos (OEA) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Segundo o
relatório, organizado em diferentes eixos – moradia, trabalho, acesso à informação e
participação, meio ambiente, mobilidade e segurança pública – pelo menos 170 mil
pessoas serão expulsas de suas casas”, diz a matéria do Jornal Brasil de Fato.
Como relatora especial da ONU para o direito à “moradia adequada”, Raquel
Ronilk assegura que a questão dos megaeventos surge na Relatoria muito antes da
questão da Copa e das Olimpíadas no Brasil. De fato, denúncias de violações ao
direito à moradia adequada são recorrentes, nos contextos em que as cidades se
preparam para esses eventos, a exemplo da olimpíada de Beijin, da copa do mundo
da África do Sul, de Atenas e de vários outros lugares. No centro da questão da
violação, que se repete agora no Brasil, em várias cidades, incluindo Natal, na
preparação das cidades para a copa e para as olimpíadas, a violação ao direito à
moradia tal como está estabelecido nos tratados, pactos e legislações nacionais e
internacionais destaca-se como questão central. Nesse contexto, a atuação da
APAC centra-se, sobretudo, no direito à moradia e no direito ao acesso à
informação, participação e representação popular, especialmente, com relação a
assuntos que lhes digam respeito e que afetem diretamente suas vidas.Com vistas à
realização de grandes projetos urbanos para os jogos, o direito à moradia vem
sendo sistematicamente violado via remoção em massa por parte do poder público.
Estas remoções combinam “limpeza social”, assentadas na reatualização do
106
Figura 03 – Reunião de mobilização, organizada pelo Figura 04 - Ato realizado pelos atingidos(as) pelas
Comitê Popular da Copa, na zona Oeste da cidade. obras da Copa em Natal contra as desapropriações e
Fonte: Tribuna do Norte (2011). remoções. Fonte: Diário de Natal (2012).
O pior de tudo é que a gente não sabe pra onde vai, nem o que vai
acontecer. Se essa casa vai ser sorteada, se vai, o que que a gente vai
ganhar, ninguém sabe. E ninguém tem nada, só tem esse ranchinho pra
morar. Aí, ficar sem ele, vamo pra onde? Vamo ficar no meio da rua com os
42
troços na cabeça é? (Maria Luísa, moradora) .
41
Depoimento cedido ao Documentário “Copa 2014 em Natal: para quem?” produzido pelo Centro de
Referência em Direitos Humanos (CRDH) e UFRN.
42
Depoimento cedido ao Documentário “Copa 2014 em Natal: para quem?” produzido pelo Centro de
Referência em Direitos Humanos (CRDH) e UFRN.
108
A luta da APAC hoje é conseguir que essas pessoas que não vão conseguir
se realocar com o dinheiro que vão receber, tenham uma situação
confortável, mesmo não tendo hoje... uma situação que eles vivem hoje não
é confortável pra mim, mas pra eles é uma situação confortável, e com o
que eles vão receber eles não vão consegui uma situação daquela. Pra
mim, o plano de realocação acontecer, a gente consegui realocar pessoas,
legalizar fundiariamente a propriedade dessas pessoas é o que precisa... é
o que a gente tem de principal desafio, é garantir que isso aconteça
(APAC).
Capítulo 3
4.1 Se a gente se acovardar agora, a gente vai viver pelo resto da vida de
joelhos... Estratégias de organização e mobilização
43
Chamamos atenção, contudo, para o risco de incorrermos em um engessamento da realidade ao
tentarmos enquadrar a dinâmica dos movimentos sociais nestes quatro elementos citados. Afinal, não
podendo ser nenhum destes componentes (práxis, projeto, ideologia, direção e organização) tomados
isoladamente, também não podemos deixar de perceber o quanto estes elementos atuam em perfeita
interseção um com o outro, sendo sempre um risco – muitas vezes até mesmo um equívoco – afirmar
que determinado aspecto de um movimento social pode ser caracterizado como um elemento e não
como outro.
114
produzem, produzem tudo, a riqueza, e não têm nenhuma casa pra morar.
Então, nós temos como identificação o socialismo (MLB 1).
44
Aqui pode-se visualizar perfeitamente a observação que fizemos em nota anterior, pois a “luta pelo
socialismo”, por exemplo, não é apenas parte da “ideologia” dos movimentos estudados, mas
também parte de seu projeto, sua práxis, sua direção, etc.
116
45
Uma das críticas mais comuns que temos tido conhecimento nos debates com as forças de
esquerda dos quais participamos quanto à atualidade do pensamento de Florestan Fernandes é a
tese de que a revolução burguesa no Brasil já teria chegado ao seu término. Seja porque já
contaríamos com suficiente desenvolvimento das forças produtivas, não cabendo mais tarefas em
atraso, seja porque a dominação burguesa já teria consolidado sua forma mais acabada de
democracia.
118
Figuras 05 e 06 – Intervenção Urbana da APAC nas casas que serão desapropriadas pelas obras da Copa.
Fonte: Arquivos do APAC (2012).
Tem uma companheira nossa que sempre diz ‘os nossos discursos eles
podem até convencer, mas os nossos exemplos, estes sim arrastam’. Então
se a gente for pra comunidade fazer o discurso bonito que eles têm que
lutar, que eles têm que se organizar e na hora que esse momento chegar, a
gente querer ficar em casa e mandar eles, não vão resolver. Então a gente
tem que começar, participar do meio e ir até o fim [...] (MLB 2).
46
Com efeito, [...] governados e governantes, dirigidos e dirigentes existem realmente. Toda ciência e
arte da política se baseiam nesse fato primordial, irredutível (em determinadas condições gerais) [...]
a seguinte premissa é fundamental: queremos que governados e governantes existam sempre ou
queremos criar condições para que a necessidade dessa divisão desapareça? Partiremos do
princípio de que a perpétua divisão do gênero humano é inevitável ou acreditaremos que ela seja
apenas um fato histórico que responde a determinadas condições? (GRAMSCI, 2005, p. 11-12).
47
Em alguns momentos, a exemplo de Lênin, Gramsci compara luta política e arte militar, mas
reconhece que: “[...] a luta política é enormemente mais complexa” (2005, p. 68).
121
Isso aqui era um terreno público, que estava abandonado. Que o governo
do Estado inclusive tinha o recurso pra construir 105 casas e perdeu esses
recursos. Um absurdo nós termos hoje uma falta de moradia grande na
cidade e dinheiro voltar para Brasília por incompetência do governo do
Estado! Por isso que o MLB tomou a decisão de ocupar essa área, pra
pressionar o governo do Estado e a prefeitura pra que aqui seja construído,
futuramente, um conjunto habitacional. Hoje somos 200 famílias que
entramos no terreno. A tendência nossa é aumentar, porque a comunidade
vizinha que vive de aluguel, que vive em co-habitação, tá nos procurando
pra entrar também nessa luta (MLB 1).
Somos parecidos com o MST, que segue essa mesma linha, a luta deles é
no campo e a gente na zona urbana (MLB 2).
Aqui, cabe atentar para o alerta de Ermínia Maricato (2011) ao ressaltar sobre a
ilegalidade da propriedade da terra urbana não se referir somente aos pobres, haja
vista serem também ilegais os loteamentos fechados – alguns bastante famosos –
que se multiplicam nos arredores das grandes cidades, na proporção em que estes
usufruem privadamente de áreas verdes e também vias fechadas de trânsito
intramuros48.
Outrossim, impera no cotidiano da atuação política dos movimentos sociais o
largo quadro de dificuldades contemporâneas de organização e mobilização das
massas, adensado em um cenário de ampliação do desemprego, precarização do
trabalho e agravamento da pobreza.
Por certo, reconhecemos que a realidade está prenhe de focos de resistência
classista, com diversos sujeitos coletivos empreendendo lutas concretas em prol dos
interesses das classes subalternas. Todavia, não podemos negar que as
transformações ocorridas no mundo do trabalho e na dinâmica de produção
capitalista, nas últimas décadas, operaram alterações substantivas no seio da classe
trabalhadora e produziram um cenário de inúmeras dificuldades para a organização
política crítica e combativa, como atestam os depoimentos dos(as) dirigentes dos
movimentos sociais em Natal:
48
Do ponto de vista legal, o parcelamento da terra nua é regido pela Lei Federal 6.766 de 1979 e não
pela que rege os condomínios, a Lei 4.591 de 1964.
126
pacatas ainda” e, na mesma lógica, “o povo é que é muito receoso”, como transcrito
em página precedente.
Sabemos que o desenvolvimento capitalista brasileiro foi conduzido de forma
elitista e anti-popular, marcado por apoios e negociações entre as classes
dominantes, que, estrategicamente, antecipavam as reivindicações da classe
trabalhadora ou, a depender da conjuntura, recorriam à repressão via Estado, como
se verifica no caso da prática dos golpes de Estado. Importa, sob a ótica da classe
dominante, pacificar a classe trabalhadora e evitar grandes pressões populares em
direção a uma ruptura radical com a ordem vigente. Prova disso é que “[...] todas as
opções concretas enfrentadas pelo Brasil, direta ou indiretamente ligadas à transição
para o capitalismo (desde a independência política ao golpe de 1964, passando pela
proclamação da República e pela Revolução de 1930), encontraram uma solução
pelo alto” (COUTINHO, 1988, p. 106 – 107).
Vale ressaltar que Carlos Nelson Coutinho (Op. cit) chama de “solução pelo
alto” o fato de historicamente os rumos dos processos políticos no país serem
resultado da conciliação entre as frações das classes economicamente dominantes
com a exclusão forçada das forças populares, ao invés de serem resultado de
movimentos verdadeiramente populares, o que não significa ausência de
reivindicações, protestos e lutas das forças democráticas.
Em linhas gerais, fica evidente na leitura do autor o quanto a noção de
“revolução passiva” problematizada tanto por Florestan Fernandes quanto por
Gramsci constitui pressuposto indispensável para a construção de uma “imagem do
Brasil” (COUTINHO, 2013), isto é, de uma formulação não restrita à determinada
questão específica da vida social do país. Se é verdade que nas elaborações de
Gramsci encontramos apenas breves referências literais ao Brasil, também é
inegável a contribuição ao entendimento da realidade brasileira fornecida pelas
categorias teórico-analíticas com as quais o marxista italiano trabalha.
Em Florestan Fernandes (2005), contudo, a “imagem do Brasil” aparece de
forma ainda mais explícita e sob uma ótica fundamentalmente marxista e
revolucionária. A rigor, sua obra articula passado – presente – futuro ao processo de
apreensão da sociedade e da vida política brasileira, contribuindo para uma leitura
acertada e atual do movimento do real em curso. Presumimos assim ser o seu
pensamento uma bússola indispensável para todo aquele que, em uma perspectiva
129
No contexto geral, a maioria das pessoas que vão ser atingidas [pelas obras
da copa] são idosos, entre adultos e idosos. E pra você levar as pessoas
pras ruas, é difícil. Não é fácil você tirar uma pessoa de 60 anos de casa.
Graças a Deus, nas audiências públicas a gente vai. É meio que um
trabalho de formiguinha, eu mesma já fui diversas vezes de porta em porta
batendo ‘e aí, a audiência pública, tal dia, vamo lá, é interessante...’ Nas
audiências públicas a gente sempre conseguiu lotar a casa. Nos atos, na
rua, a gente não conseguiu muita projeção. Se de 449 desapropriados
fossem um de cada casa já era 449 pessoas, mas a gente conseguia nos
atos só umas 60 pessoas na rua (APAC).
49
Ex-sindicalista e co-fundador do PT, Lula assumiu a presidência do Brasil, por este partido, de 1º
de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. Tornou-se o primeiro presidente desde Getúlio Vargas a
fazer o seu sucessor nas urnas e fez com que o PT se tornasse o primeiro partido desde a
democratização a ficar no governo federal por três mandatos consecutivos.
50
“Subproletários são aqueles que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar
quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais.
A menos que organizado por movimentos como o MST, tende a ser politicamente constituído desde
cima, como descobriu Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua
inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de
suas aspirações” (SINGER, Op. Cit, p. 98-99).
51
Na tese de Singer (Op. Cit), dessa forma, a eleição de 2006 é que teria sido decisiva. Ousamos
supor, entretanto, que é possível tal realinhamento já vim se desenhando um tanto antes disso,
principalmente nas camadas populares da região Nordeste. Possibilidade que mais tarde – em
publicação recente – será reconhecida pelo próprio autor (Cf. SINGER, 2012).
132
Múltiplos fatores têm sido apontados, por diversos estudos, numa tentativa de
explicar o porquê das preferências ideológicas de brasileiros e brasileiras, no
período pós-redemocratização, serem marcadas por certo ‘conservadorismo
popular’, no sentido da expectativa por um Estado suficientemente forte para
diminuir a pobreza, sem ameaçar, todavia, a ordem estabelecida, como destaca
Singer:
52
Economista, filiada ao Partido dos Trabalhadores e eleita para presidente do Brasil no período de
2011 a 2015, sem nunca antes ter disputado uma eleição.
53
Disponível em: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI232968- 16418,00-
POPULARIDADE+DE+DILMA+DEVE+RESISTIR+A+INFLAÇÃO+EM+ALTA.html. Acesso em: 15 de
agosto de 2012.
133
petista, embora existam diversos pontos de acordo com a análise realizada pelos
setores que apostam nesta caracterização. Para este último campo teórico e político,
constitui análise mais acertada a leitura do governo PT como sendo um reformismo
fraco (Cf. SINGER, 2012) e, por isso mesmo, desmobilizador. A perspectiva em voga
não nega a atualidade da polarização PT x PSDB (os dois principais partidos
políticos que encontramos atualmente na cena política brasileira), inclusive a
reconhecendo como fundamental no âmbito da luta de classes. Contudo, o conteúdo
desta polarização já não é mais o mesmo há algum tempo.
Para a perspectiva do governo petista como “reformismo fraco”, o fenômeno
da legitimação destes governos na sociedade brasileira pode ser explicado, em
síntese, porque na raiz da formação do lulismo encontram-se o discurso e a prática
que unem a manutenção da estabilidade e a ação distributiva do Estado, articulando
elementos de direita e de esquerda.
Nessa lógica, ao incorporar pontos de vista conservadores,
“[...] principalmente o de que a conquista da igualdade não requer um movimento de
classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista, como progressista [...] de
que o Estado fortalecido tem o dever de proteger os mais pobres [...]” (SINGER,
2009, p. 102), Lula consegue adesão e legitimidade significativa entre o
subproletariado, aliado a um crescente abandono do programa político original do
Partido dos Trabalhadores (PT).
Desse modo, o governo petista tem contado não apenas com o apoio da
burguesia, mas também, de bases de apoio na classe média e em setores populares
e, nesse processo, tem disposto da confiança e do apoio de parcela significativa dos
movimentos sociais, colocando novas dificuldades para o cotidiano da mobilização
popular.
Disso deduzimos ser a análise e caracterização dos governos Lula e Dilma
parte de um imenso debate em aberto, ao qual sinalizamos neste trabalho de forma
ainda muito tímida. Mas se optamos por não deixar de minimamente esboçá-lo aqui,
foi por entendermos que tais análises estão inscritas e diretamente vinculadas à
ação política e atuação de importantes centrais sindicais, movimentos camponeses,
movimentos populares por moradia e também – importante atentar – estão
relacionadas com as posições que tomam imensas parcelas da classe trabalhadora,
não organizada em movimentos, seja pelo voto ou por outras formas de
manifestação.
136
Logo, para mobilizar para as lutas, o movimento necessita que seus militantes
estejam cotidianamente trabalhando junto às bases e mostrando aos sujeitos os
137
[...] nós temos um trabalho de ir até os bairros mais carentes né? Nós
visitamos as famílias, fazemos o levantamento de quem mora em área de
risco, casa de parente, de aluguel.... então nós convidamos essas famílias
pra participar das reuniões do MLB. A partir dessas reuniões, a gente
começa a expor pra elas que não é justo que poucas pessoas tenham tanto
durante uma vida e tantas tenham tão pouco (MLB 2).
A gente primeiro tem que compreender que essa juventude, ela estuda,
trabalha, e tem toda uma vida privada que não a deixa estar nos espaços
organizativos políticos. Então, o que é que a gente tenta fazer pra que essa
juventude sinta um gozo né, sinta uma vontade de querer tá em algum
espaço, né? Primeiro, acho que uma característica importante que o
Levante vem trazendo é a animação. E aí, pra mobilizar a juventude, a
gente às vezes traz pautas que não parecem ser importantes pra alguns
setores políticos, que às vezes é o simples fato de mobilizar a juventude pra
tirar o lixo do bairro, da rua... e aí se isso mobiliza, é uma estratégia
importante pra gente pautar outras coisas, como a saúde, a educação... pra
tá depois pautando lutas concretas e massivas (LPJ 2).
Certamente, por mais profunda que seja a formação política, ela é incapaz de
gerar, por si mesma, a ação. Na realidade, a formação política acontece, sobretudo,
na prática concreta, na ação política, na práxis. Contudo, a mediação da prática
concreta pela teoria reveste-se de fundamental importância. Caso contrário, não
teremos nada além de um ativismo inconsequente e estéril, alimentando
intervenções políticas com base na “boa vontade” e na espontaneidade.
Em síntese, apreende-se, no tocante ao cotidiano da ação política dos
movimentos e organizações populares de Natal, que dentre as estratégias tomadas
pelos movimentos pesquisados, organizados na cidade, no contexto da luta pela
hegemonia, é comum a adoção de abaixo-assinados, manifestos ou mesmo atos
públicos e, com maior frequência, são utilizadas como estratégia o diálogo e a
comunicação verbal e, por vezes, instrumentos de comunicação de massas. Ao
mesmo tempo, a ação política destes movimentos também inspiram e sugerem ação
imediata e confronto direto, com destaque para as estratégias de
ocupação/acampamento.
Tais formas de atuação, compreendidas como parte do trabalho de base
realizado por estes movimentos, inscrevem-se como expressões diversas do
processo pedagógico de sensibilização e desenvolvimento de uma consciência
política contra-hegemônica.
Todavia, deparam-se estes movimentos com um largo quadro de dificuldades
contemporâneas de organização e mobilização das massas, adensado em um
cenário de ampliação do desemprego, precarização do trabalho e agravamento da
pobreza, pois não podemos negar que as transformações ocorridas no mundo do
trabalho e na dinâmica de produção capitalista, nas últimas décadas, operaram
alterações substantivas no seio da classe trabalhadora e produziram um cenário de
inúmeras dificuldades para a organização política.
4.2 Para o indivíduo sozinho é mais difícil, mas de forma coletiva fica mais
fácil... Avanços e entraves no cotidiano das lutas
54
Não por acaso, o Prefácio de Marx à Contribuição à crítica da Economia Política é bastante
reforçado por Lênin: “[...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações
determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção
correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A
totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida
social, política e intelectual [...] Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que
não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se
haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações
convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se
produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal
superestrutura” (MARX, 2008, p. 45).
142
tratados e convenções assinados pelo governo do Brasil, muitos com força de lei.
Todavia, prevalecem ainda imensas desigualdades sócio-ambientais e
particularmente a crise da moradia no país. Como explicar tanta sofisticação nos
aparatos jurídicos e, ao mesmo tempo, todo este descompasso com a realidade?
Para o professor Edésio Fernandes, este descompasso explica-se por três
vias: 1) pela falta de informação e pelo desconhecimento do Estatuto da Cidade,
tanto por parte dos juristas como da sociedade em geral; 2) pela precariedade da
formação jurídica no país, pois os cursos de Direito em grande parte têm currículos
defasados e com pouquíssima ênfase no Direito Público e na questão urbana; 3)
pelas disputas em torno das questões centrais postas no Estatuto da Cidade, que
têm a ver com as condições de interpretação e efetividade da lei em seus aspectos
centrais, quais sejam: o paradigma do direito de propriedade como central, a função
social da cidade e a responsabilidade territorial do poder público55.
A nosso ver neste último aspecto reside os principais determinantes para
entender o descompasso entre avanços jurídicos e uma debilidade de concretização
no âmbito da realidade social.
Ora, a função social da propriedade expressa na constituição federal e
reforçada pelo estatuto da cidade, como condição sine qua non para a efetivação da
função social da cidade e, logo, para que o direito à cidade se universalize colide
com o paradigma do direito à propriedade que deve ser assegurado pelo Estado; o
primado do direito à propriedade no âmbito das sociedades capitalistas contrapõe-se
a uma possível materialidade da função social da propriedade. Esta segue como
horizonte de lutas para os trabalhadores, justamente aqueles moradores das
cidades em condições precárias de moradia, que permite tensionar a ação do
Estado com vistas ao desenvolvimento de políticas urbanas e de moradia com
dimensão social.
Diferente da concepção do professor Fernandes, adotamos, porém, como
chave explicativa, a concepção de que o direito, na sociedade capitalista, atravessa
diversas tensões e expressões contraditórias, pois “[...] o direito surgido porque
55
[informação verbal] palestra proferida em 29 de março de 2012 em ocasião do debate “A nova
ordem urbanística a partir da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade”, promovido pela Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), em Natal-RN. O professor Edésio Fernandes está entre aqueles que
iniciaram uma corrente de novos estudiosos e operadores do Direito que deu sequência ao esforço
de produção teórica sobre a questão urbana no âmbito da área jurídica, embora trabalhe a questão
da incongruência verificada entre a legislação e a realidade sob uma perspectiva distinta da que
adotamos em nossas análises.
147
Hoje aqui na nossa cidade, em Natal, nós temos seis principais conquistas e
a mais importante delas – a gente vai dizer em todos os lugares – é a
conquista do Conjunto Habitacional Leningrado, que foi a nossa primeira
ocupação aqui em Natal, na zona oeste da cidade, num bairro que hoje é
conhecido como Planalto, mas geograficamente é nos Guarapes né? Então
ali chegou a morar mais de 1.500 famílias e, no decorrer da luta, umas
foram desistindo, por seus motivos foram abandonando a luta, mas ainda
conseguimos fazer um conjunto habitacional com 520 famílias. Então a
partir do Leningrado, aí sim, as outras famílias viram que é possível
transformar um terreno sem nenhuma função social em um conjunto
habitacional, pra gerar uma melhor renda pras famílias e continuar sua vida
um pouco mais digna (MLB 2).
QUADRO 1
Mapeamento das Residências construídas a partir das ações do MLB
OCUPAÇÃO/COMUNIDADE RESIDÊNCIAS LOCAL
Emanoel Bezerra 280 unidades Planalto – zona oeste
Leningrado 445 unidades Planalto – zona oeste
Santa Clara 190 unidades Planalto – zona oeste
Praiamar 205 unidades Bom Pastor – zona oeste
Nova Esperança 117 unidades Cidade da Esperança – zona oeste
Djalma Maranhão 130 unidades Jardim Progresso – zona norte
TOTAL 1.367 unidades
Fonte: MLB/Natal-RN
56
dignamente diante destas condições? ”, indagou (TRIBUNA DO
NORTE, 2011, p. 03).
56
Grifo nosso.
151
tais grupos passam gradativamente a não ser mais vistas como advindas de
fenômenos naturais.
A organização popular possibilita, assim, a estes sujeitos perceber origens e
causas sócio-econômicas e políticas para os problemas com os quais se deparam,
embora muitas vezes esta não passe de uma consciência ainda fragmentada. O
referido processo pedagógico tem “[...] originado aquilo que se poderia chamar de
campo incipiente de organização de reivindicações populares, onde a população se
organiza por meios próprios, com recursos ditos informais que permitem a ela
sobreviver nessas cidades” (KOWARICK, 1985, p. 75).
Nesta linha de pensamento, o exercício da prática cotidiana nos movimentos
sociais gera um processo educativo em seu interior que se constrói de várias formas
e tem dimensões articuladas e não apriorísticas, dentre as quais destacamos:
a) A dimensão da organização política, expressa na consciência processada e
produzida pelos sujeitos inseridos nos movimentos, na medida em que vão
gradativamente adquirindo uma série de conhecimentos relativos às questões
postas na luta, a partir dos interesses coletivos problematizados de modo subjacente
à organização do grupo. Concomitante a isso e como parte desse processo, figuram
a identificação dos interesses opostos ao movimento e a elaboração de táticas para
atribuir visibilidade às demandas do movimento e também para o enfrentamento dos
desafios postos em determinado tempo histórico.
b) A dimensão da cultura política, construída com base na vivência do
passado e o consequente acúmulo de experiências presentes no imaginário coletivo
do movimento como modo de apropriar-se de novos elementos para a leitura do
momento atual. Com isso, uma nova cultura fundamentada e com horizonte na
perspectiva do aprender multifacetado vai sendo construída. Trata-se, por exemplo,
de perder o medo de tudo aquilo que foi historicamente inculcado como proibido
e/ou inacessível ao povo, de elaborar formas criativas e simbólicas de expressar
seus discursos e bandeiras de luta, bem como se relaciona com o processo de
apreensão e construção dos princípios e valores que balizam os interesses do
movimento.
c) A dimensão espacial-temporal, que está presente e é traduzida por meio do
reconhecimento das condições de vida da população e a identificação de datas e
espaços comunitários para atividades grupais, que são fortes representações na
mentalidade coletiva popular. Esta é uma dimensão que esta imbricada ao processo
153
4.3 Quando a sociedade clama por uma resposta é toda a sociedade que tem
que participar... Aliados e opositores no processo da ação política
dinâmica societal. Ela deita raízes nos modos de ser concretos das classes
trabalhadoras (em especial do proletariado urbano-industrial) que têm
imposto sérias dificuldades de organização política do tipo universal (BRAZ,
2011, p. 304).
57
Conferência promovida em 1978 e publicada em Teoria da Organização Política III, obra
organizada por Ademar Bogo pela Editora Expressão Popular.
159
QUADRO 2
Mapeamento das Organizações Comunitárias existentes em Natal
ORGANIZAÇÕES NORTE SUL LESTE OESTE TOTAL
Conselhos Comunitários 51 20 11 16 98
Associações e Centros 52 44 45 76 217
Clube de Mães 22 16 07 17 62
Grupo de Idosos 03 02 11 07 23
TOTAL 128 82 74 116 400
Fonte: CUNHA (2011).
58
Conselho de Desenvolvimento Municipal (CDM), Conselho Municipal de Saúde (CMS), Conselho
Municipal de Assistência Social (CMAS), Conselho Municipal de Educação (CME) e Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA).
161
Hoje aqui na nossa cidade nós não conhecemos um outro movimento que
lute tão continuamente pela reforma urbana da nossa cidade né? Tem
outros movimentos, mas que na nossa cidade não faz esse trabalho. Como
assim esses outros movimentos? Os conselhos comunitários, associações
de moradores... Uma das principais funções delas era resolver essa
questão, da família que tá lá morando num casebre, num barraco que tá
caindo, tem que resolver a situação dela. Mas eles não fazem mais isso
hoje. Então o MLB quando chega até essas famílias, tenta resolver a
situação delas [...] (MLB 1).
[...] Sempre que nós temos atividades que envolvem todos os setores da
sociedade, nós não disputamos espaço com eles, nós apenas ocupamos o
nosso espaço. Então eles respeitam a nossa posição, nós respeitamos a
posição deles. Conseguimos fazer ato unificado com a universidade, com
sindicatos, com movimentos sociais, ONGs... porque quando a sociedade
clama por uma resposta é toda a sociedade que tem que participar.
Nenhuma pessoa que se diz lutador por uma sociedade socialista pode se
esquivar nesse momento (MLB 2).
O vereador George Câmara que, por incrível que pareça, foi a única pessoa
que ouviu a gente, que ouviu nossas reivindicações, que veio participando
ativamente. É formado em Direito, então ele não tá lá numa discussão
vazia, ele sabe quais são os direitos. E aí o apoio que a gente conseguiu na
Câmara [Municipal] foi de George. O deputado Fernando Mineiro que,
também, por incrível que pareça, é a única pessoa da Assembleia
[Legislativa] que vem apoiando a gente. É claro que tem aqueles que de vez
em quando vão ali dá uma pintadinha pra se vangloriar, mas o deputado
Fernando Mineiro é uma aliança... que, infelizmente, não conseguiu o pleito
de prefeito, porque senão a gente podia conseguir muito mais coisa
(APAC).
59
Argumenta-se, dentre as razões para as organizações populares estabelecerem alianças com as
lideranças da política institucional, o fato delas facilitarem e agilizarem as soluções, conseguirem
recursos, subsídios, melhorias.
165
figuras, bem como por entender que, em troca, tais políticos exigirão do movimento
comprometer os votos da sua militância.
Os núcleos, ocupações e conjuntos habitacionais constituem, sem dúvidas,
um campo extremamente propício para a demagogia eleitoreira e para as disputas
por parte de diversos partidos institucionalizados, especialmente porque nesses
espaços urbanos, mais do que qualquer noutras áreas da cidade, espera-se
encontrar um determinado perfil de eleitor, com base em certa categoria de
problemas urbanos. Problemas estes que os políticos tradicionais reiteradamente
utilizam em suas propagandas eleitorais, com vistas a ampliar suas relações com
esses espaços e com os sujeitos que ali moram, usando o voto como moeda de
troca para barganhar benefícios e serviços para a comunidade.
Isto não significa precisamente o desconhecimento por parte dos moradores
do jogo político do qual estão sendo objeto, muitas vezes até mesmo nele
envolvendo-se propositadamente, como sintetiza Medina (1964, p. 88): “O eleitor diz
que vai votar, mas não vota. O cabo eleitoral finge que acredita, mas não acredita. O
candidato, pelo menos antes da eleição, embora já informado pelo cabo eleitoral,
continua afirmando que conta com o apoio de todos”, todos cúmplices de uma
mesma simulação.
Os depoimentos dos dirigentes do MLB, particularmente, demonstram séria
preocupação com relação a tal jogo político e sinalizam para uma postura de
resistência às alianças e articulações com a política institucional:
Todavia, períodos de eleições municipais, como foi o caso do ano 2012, são
em geral excelentes momentos para apreensão da relação estabelecida entre
movimentos sociais da cidade e os sujeitos da cena política local. Dos três
movimentos urbanos objetos de nosso estudo, dois deles – a APAC e o LPJ –
entraram em contato com candidatos para a realização de debates entre eles e o
conjunto da militância organizada naqueles movimentos. No caso da APAC, o
debate se deu com os candidatos a prefeito e, no caso do Levante, o debate
envolveu candidatos à câmara municipal de Natal originários do próprio bairro de
Felipe Camarão.
Nenhum dos dois movimentos se envolveu em qualquer campanha eleitoral
que fosse e/ou elaborou nota pública explicitando a posição assumida em defesa de
uma ou outra candidatura. Entendemos com isso que: ou a postura adotada por
ambos os movimentos foi de promover o debate e deixar seus militantes livres para
se manifestarem individualmente como favoráveis ou contrários às candidaturas em
disputa, ou ainda, que os movimentos optaram por direcionar e definir o voto de
seus militantes apenas internamente. Neste caso, não se tratava de resolução
política que pudéssemos ter acesso enquanto pesquisadora.
A postura do MLB foi, entretanto, diferenciada. Desde o primeiro turno das
eleições municipais60, o movimento já manifestava seu voto para prefeito e para
vereador(a). O trecho a seguir do panfleto distribuído pelo movimento nas ruas da
cidade não deixa qualquer margem para dúvidas acerca da posição assumida:
60
Foram 06 (seis) os candidatos que concorreram à prefeitura de Natal: Carlos Eduardo (PDT),
Fernando Mineiro (PT), Hermano Moraes (PMDB), Robério Paulino (PSOL), Roberto Lopes (PCB) e
Rogério Marinho (PSDB). A eleição foi definida no segundo turno, entre os candidatos do PDT e do
PMDB, ocasião em que Carlos Eduardo foi eleito prefeito de Natal com 214.687 votos.
61
Em 2000, Carlos Eduardo foi eleito vice-prefeito de Natal na chapa encabeçada por Wilma de Faria
e em 2002 assumiu a prefeitura de Natal com a renúncia da titular para disputar e vencer o Governo
do Estado.
167
E contra o que a gente luta hoje? Hoje a gente luta contra o sistema. Não é
contra um político ou outro, é contra o sistema capitalista. Porque a gente
acredita que enquanto existir o capitalismo, jamais a sociedade vai ser
dividida de forma igualitária. Sempre alguém vai querer ficar com mais,
mesmo sem ter trabalhado. Então quando a gente conseguir atingir esse
nível de consciência de nossas famílias, que elas devem lutar por uma
sociedade melhor, mais igualitária e que essa sociedade ela só vai
encontrar dentro do socialismo, aí as coisas vão avançar na nossa luta
(MLB 1).
62
Grifos do próprio documento.
168
A mídia ela nos trata de uma forma como se fosse... se a gente tá brigando
contra o governo, só quem aparece é a mídia do município. Se a gente tá
reivindicando contra o município, só quem quer aparecer é a mídia do
governo. A gente acha isso errado. Porque não estamos disputando espaço
político com ninguém, a gente quer que as reivindicações sejam atendidas.
Então nós convidamos toda a imprensa, o jornal, o rádio, a TV, mas
infelizmente eles só vêm quando acham que podem usar essas imagens
pra prejudicar o outro lado e não pra mostrar pra sociedade que existe um
movimento organizado que está reivindicando uma melhoria pra nossa
cidade (MLB 1).
(Família Alves, a família de Carlos Eduardo, atual prefeito da cidade, eleito em 2012)
e TV Tropical Natal (Família Maia, do então senador Agripino Maia), o que sugere a
tamanha relevância que tais veículos de comunicação assumem na conquista do
eleitorado e na manutenção dos cargos políticos, assim como o quanto estes
favorecem e impulsionam os interesses econômicos e políticos de grupos sociais
específicos.
Constitui tendência nacional que vem historicamente se delineando, estando
bastante explícita na contemporaneidade, “[...] a concentração dos meios de
comunicação nas mãos de empresários, dublês de políticos, e de algumas poucas
famílias poderosas, os quais fazem desse ofício um negócio lucrativo” (SALES,
2007, p. 99), sem dúvidas em detrimento de qualquer papel social e público que
poderia cumprir.
As intervenções da mídia dominante, ao contrário do que muitos pensam e do
que ela própria proclama, estão longe de serem neutras e imparciais. Desse modo,
embora a mídia anuncie em muitos momentos as demandas sociais das classes
pauperizadas, um exame mais apurado demonstra o quanto esta é perpassada pela
ideologia das classes dominantes. Fragmentos e recortes da realidade são
veiculados como sendo a totalidade do real, sob a ótica das elites políticas
detentoras da mídia local, contribuindo também em muitos dos casos para a
criminalização dos movimentos.
O esforço midiático é por sedimentar consensos, na proporção em que
procura minimizar contradições e antagonismos. Mesmo quando os movimentos
conseguem algum espaço na mídia natalense, as notícias apregoadas são
predominantemente seguidas por análises que culpabilizam os sujeitos, criminalizam
os processos político-organizativos, naturalizam as desigualdades e ocultam suas
determinações.
Ainda que não neguemos a contradição, podemos dizer que a relação dos
movimentos sociais em Natal com a mídia local é expressão dos conflitos e
tensionamentos políticos e ideológicos do território da cidade, denotando um diálogo
desigual, marcado pela unidirecionalidade da comunicação praticada (NOVA, 2000),
mesmo que tal comunicação não esteja isenta dos tensionamentos e das
contradições da dinâmica social.
Identificar aliados e opositores no processo da ação política empreendida
pelos movimentos urbanos em Natal nos remete à lembrança de que, com o avançar
173
do pensamento pós-moderno, tem sido cada vez mais comum afirmações que
negam a validade da distinção entre Direita e Esquerda, para os dias de hoje, tanto
do ponto de vista teórico, como principalmente do ponto de vista prático-político, o
que nos é digno de preocupações. Afinal, até que ponto ocultar ou tentar omitir a
existência de uma real distinção prático-política entre Direita e Esquerda, não seria,
em última instância, uma postura de Direita ou, em outros termos, uma estratégia da
política conservadora?
Temos afirmado que, em uma sociedade marcada pela divisão de classes,
são os interesses antagônicos que impulsionam a política, por meio do
enfrentamento de forças entre as classes e, não nos contempla, portanto, o
argumento da mera insuficiência conceitual de qualquer par ambivalente que se
apresente.
A oposição entre Direita e Esquerda constituiria um maniqueísmo? Estes
seriam os termos de um debate que já não mais interessa? Direita e Esquerda
seriam hoje “nomes sem sujeitos”? A complexificação das relações sociais
impossibilita dizer o que é próprio de um campo político e o que seria de outro? Ora,
se para alguns é preferível falar, por exemplo, em conservadores e progressistas,
tudo bem. Mas essas novas nomenclaturas em nada nos autorizam a considerar
inválida a distinção Direita e Esquerda.
Tendemos a crer que se tomamos como horizonte o solo histórico no qual se
processam as relações sociais concretas – concretude e materialidade da qual as
análises tecidas em nossa pesquisa representam apenas uma pequena parcela -,
teremos mais elementos para afirmar que Direita e Esquerda estão longe de poder
assumir a forma de “dialetos de uma mesma língua”63. Ademais, em ambos os
casos, permanece a existência de sujeitos sociais que as materializam a partir de
interesses em disputa.
63
Conclusão, do nosso ponto de vista bastante equivocada, a que chega parte da literatura
especializada das ciências sociais.
174
Considerações
Finais
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O caminho acabou...
A viagem apenas começa”
(Lukács).
O tema objeto de nosso estudo chegou a ser recebido com surpresa por
determinados sujeitos, em espaços nos quais o apresentamos. Por vezes, nos
disseram ser absolutamente compreensível a pesquisa de tal temática nos anos
1970/1980, mas o que poderia me provocar esta investigação na década de 2010? A
surpresa nos parece está implicada ao fato de estarmos não em um período de
ascenso das lutas sociais, e sim em tempos definidos por Bertold Brecht como um
período no qual “depois de trabalharmos por tanto tempo parecemos estar em
situação pior que no início”, pois “nossas palavras de ordem estão em desordem”,
chegando até mesmo a ficarem irreconhecíveis.
Nesse sentido, se o tema a ser discutido na Dissertação se constituiu como
nosso ponto de partida para esta investigação, ao final da pesquisa e das análises
dialeticamente possibilitadas e limitadas pelos nossos horizontes teórico-
metodológicos - em um movimento de retorno - nosso objeto de estudo volta a ser o
centro de nossas atenções. Agora, por estarmos já tão perto da “linha de chegada”,
não olhamos mais para nosso tema sob a mesma ótica. Seja no que se refere aos
movimentos sociais, seja no que diz respeito à questão urbana. Especialmente
porque na medida em que pesquisávamos também procurávamos refletir sobre
estas temáticas na condição de objeto de pesquisa do Serviço Social.
Tomar como referência artigos publicados nos anais dos Encontros Nacionais
de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e dos Congressos Brasileiros de
Assistentes Sociais (CBAS), situados dentre os principais eventos da categoria,
foram balizas fundamentais para alimentarmos reflexões e incitarmos
questionamentos a respeito. Para tanto, recorremos especialmente a duas
pesquisas distintas que identificam e apreendem como o tema da questão urbana e
dos movimentos sociais se fazem presentes nos espaços de divulgação e
181
(Ademar Bogo).
184
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http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-e-
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TOURAINE, Alain. Os novos conflitos sociais: para evitar mal-entendidos. In: Lua
Nova. São Paulo: Cedec, no 17, 1989.
APÊNDICES
1 Sexo:
( ) Masculino ( ) Feminino
2 Faixa Etária:
( ) 18 a 25 anos ( ) 42 a 50 anos
( ) 26 a 33 anos ( ) Mais de 50 anos
( ) 34 a 41 anos
4 Escolaridade:
( ) não alfabetizado ( ) ensino médio incompleto
( ) alfabetização ( ) ensino médio completo
( ) ensino fundamental incompleto ( ) ensino superior incompleto
( ) ensino fundamental completo ( ) ensino superior completo
6 Possui profissão/ocupação?
( ) Sim ( ) Não Qual? ____________________
B – ROTEIRO DE ENTREVISTA
ESCLARECIMENTO
Convidamos você, por meio deste documento a participar da pesquisa “CONTRADIÇÕES URBANAS
E DIREITO À CIDADE: movimentos sociais e organização popular em Natal-RN”. Temos como
objetivo analisar dilemas e contradições que perpassam a organização política dos movimentos
sociais urbanos e organizações populares existentes em Natal-RN. A pesquisa tem como orientadora
a Dra. Eliana Costa Guerra, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.
Os riscos que podem decorrer para os(as) participantes da pesquisa são mínimos. As pesquisadoras
responsáveis estão comprometidas em armazenar sigilosamente todos os dados obtidos, utilizando-
os apenas para fins científicos de análise da realidade social, sem dar margem para pensamentos
preconceituosos nem estigmatizantes. Não explicitaremos a identidade dos(as) informantes. Para
assegurar o sigilo e a segurança, utilizaremos pseudônimos ao nos referirmos às mesmas nos nossos
relatos de pesquisa. As gravações e os formulários serão guardados em local sigiloso e seguro, em
arquivos digitais e impressos na secretaria do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,
durante um período de cinco anos. Não reconhecemos outros riscos.
Os benefícios da pesquisa para os(as) entrevistados(as) são considerados indiretos, de caráter sócio-
cultural, uma vez que os resultados, quando divulgados amplamente, poderão subsidiar discussões e
práticas no âmbito da organização e ação política no movimento de bairro. Deste modo, os dados e
análises podem nortear ações públicas que busquem a efetivação do direito à cidade em Natal. A
pesquisa em foco poderá ainda subsidiar a análise sobre os avanços e dificuldades dos movimentos
urbanos em Natal, e, do mesmo modo, subsidiar possíveis intervenções/ações do poder público.
Sua participação é importante porque suas respostas às nossas perguntas contribuirão com essa
análise, viabilizando o entendimento da atual situação dos movimentos urbanos que atuam nos
bairros da capital potiguar. Para isso, pedimos seu consentimento para realizar algumas perguntas
sobre o movimento ou associação do qual você é dirigente e/ou coordenador.
Para entender melhor a realidade social e como ela influencia a organização popular em Natal,
necessitamos conhecer a sua experiência visando a ampliação do conhecimento sobre a realidade
dos movimentos urbanos e da luta pelo direito à cidade, contribuindo com a discussão sobre os
movimentos e as lutas urbanas nesta sociedade.
Se você decidir participar, você será submetido(a) ao procedimento de entrevista nos fornecendo
informações importantes sobre as experiências do cotidiano da atuação do movimento social do qual
você faz parte.
200
Sua participação é completamente voluntária, de modo que você tem liberdade para desistir,
retirando seu consentimento em qualquer momento da pesquisa, não tendo com isso prejuízo ou
penalidade. Se sentir-se constrangido(a) de alguma forma, em qualquer momento poderá se recusar
a responder a alguma pergunta ou solicitar a suspensão parcial ou total da gravação por nós
realizada. Obedeceremos critérios técnicos adequados de forma a não prejudicar a qualidade e
autenticidade das informações, utilizando a técnica de análise de conteúdo. Armazenaremos as
transcrições em meio digital nos arquivos do Programa de Pós Graduação em Serviço Social –
PPGSS/UFRN. Garantimos que serão mantidos sigilo e respeito, ou seja, o seu nome ou qualquer
dado que possa identificá-lo não serão expostos nesse trabalho.
Se você tiver algum gasto financeiro comprovado decorrente da sua participação na pesquisa, você
será ressarcido(a).
Se você sofrer algum dano comprovadamente decorrente desta pesquisa, você terá direito a
indenização. Disponibilizaremos uma cópia deste Termo e as dúvidas que surgirem a respeito desta
pesquisa, poderá perguntar diretamente para Maria Clariça Ribeiro Guimarães, no endereço
eletrônico: clara_ama@yahoo.com.br ou pelo telefone: (84) 8731-1880. Dúvidas a respeito da ética
dessa pesquisa poderão ser questionadas ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRN no endereço
eletrônico: email: cepufrn@reitoria.ufrn.br ou o site: www.etica.ufrn.br ou pelo telefone: (84) 3215-
3135.
______________________________________________________
ASSINATURA
_____________________________________________________
Maria Clariça Ribeiro Guimarães
Pesquisadora responsável
201
TERMO DE AUTORIZAÇÃO
______________________________________________________
ASSINATURA
_______________________________________________________
Maria Clariça Ribeiro Guimarães
Pesquisadora responsável
202