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criminal no brasil
contemporâneo
vera
malaguti
batista
a questão
criminal no brasil
contemporâneo
vera malaguti batista
A questão criminal tem ocupado uma centralidade absoluta no cenário político
brasileiro. A expansão exacerbada do sistema penal, sem paralelo em nossa
história, implica em que essa centralidade não seja apenas política mas também
social e econômica. Pretendemos recorrer primeiramente à história para que
tenhamos uma visão em perspectiva que pode nos ajudar a desnaturalizar o
contexto em que vivemos, conjuntura que talvez fique conhecida no futuro como
O Grande Encarceramento.
Para encararmos essa questão precisamos primeiro, entender a questão
criminal a partir da história, do “curso dos discursos sobre a questão
criminal” como nos ensina Raúl Zaffaroni1. A história da configuração do
poder punitivo para a neutralização da conflitividade social estaria associada
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à formação do Estado e ao processo de acumulação de capital. O crime e seus
tratamentos não constituem categorias ontológicas, morais ou “da natureza”.
O sistema penal aparece então como constructo ou dispositivo, relacionado
à realidade econômica e social e às relações de força presentes no modo de
produção capitalista.
Zaffaroni, a partir de Foucault, localiza no século XIII o primeiro discurso
integrado entre política criminal, direito penal e criminologia, através do
aparecimento da estrutura da Inquisição. As mudanças nas relações de poder
confiscariam às vítimas o conflito criminalizado, que passa a ser administrado
de forma centralizada entre a Igreja e as primeiras formas de Estado, para
gerir a conflitividade e a violência e garantir uma determinada idéia de ordem.
Surge então uma nova atitude para determinar a verdade: a busca da verdade
4. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio
nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/
5. WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova Revan, 2003.
absoluto no imaginário brasileiro, a partir das suas matrizes (no sentido de uma
permanência cultural) ibéricas.
A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em
Portugal, instaura-se um processo de modernização que conjuga a incorporação
de novos pressupostos teóricos e ideológicos cuidando de que a base de
sustentação da hierarquização não fosse afetada. Esta ambigüidade revela-se no
desdobramento deste processo para o Brasil. A discussão em torno da redação
do código penal de 1830 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de
controle e punição da escravidão.
No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de polícia Eusébio de Queiroz
apontava a escravidão como limite à adoção de políticas mais modernas de
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policiamento urbano. Propõe então o confinamento dos escravos nas fazendas e
o rígido controle de seus deslocamentos6. Para Neder, nem o fim da escravidão
e nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle
social, da obediência cadavérica. A atuação da polícia nas favelas brasileiras nos
dias de hoje é a prova viva deste legado.
O período pós-emancipação no Brasil é marcado por profundas inquietações.
A independência inspirava vários projetos para a nação que lutavam por
hegemonia. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente,
era a convivência do liberalismo com o sistema escravista.
Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo no Brasil7,
gostaríamos de refletir sobre o que Gizlene Neder denominou “iluminismo
jurídico-penal luso brasileiro”8. A autora trabalha as transformações do Brasil
11. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio 12. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de Raúl. Op. cit.
Janeiro: Revan, 2003.
garantias individuais: “liberdade de manifestação do pensamento, proscrição
de perseguições religiosas, liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio
e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o
devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade
das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado”13. É
lógico que tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda
a sua plenitude” que, mantendo a escravidão sem uma só letra da lei, instituiria
a cilada da cidadania no Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os
discursos do liberalismo no Brasil. Como assinalou Machado Neto a cidadania
no Brasil nasce restrita aos homens brancos e proprietários14.
Essa nossa história faz com que nosso sistema penal e nossa maneira de
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pensar e sentir a questão criminal sejam marcados por práticas de extermínio,
aniquilação e desqualificação jurídica do povo brasileiro advindas da predação
colonial contra os povos originários e os afrodescendentes.
Pensando então, na longa duração do autoritarismo no Brasil, nos demos
conta de que a “democracia” é um intervalo da nossa história; na verdade, essa
maneira de pensar e sentir a questão criminal é a grande permanência que
atravessa o sentido do nosso sistema jurídico-penal. Para pensarmos nossa
“torturante contemporaneidade” nos remetemos ao momento de transição da
ditadura civil-militar quando estava disseminada uma resistência às práticas do
Estado de exceção. Foi naquele momento histórico que os meios de comunicação
começaram a esculpir cotidianamente o novo inimigo público, aquele que vai
ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer com isso que a política
criminal de drogas que nos é imposta no auge da ditadura pelos estadunidenses
seria o grande vetor de extermínio e encarceramento no período democrático.
16. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. 18. Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão
Luam, 1996, p. 10. Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a
17. Op. cit., p. 27.18. Cf. BATISTA, Vera questão penal no capitalismo neoliberal. Rio
Malaguti. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc de Janeiro: Revan, 2012.
Wacquant e a questão penal no capitalismo
de Foucault, Edson Lopes nos demonstra as afinidades entre os assujeitamentos
e a subjetividade imposta pela cultura punitiva, que tem na figura da vítima
seu principal dispositivo, e no medo sua mais potente metodologia. No
próprio campo do marxismo, Melossi já anunciara o deslocamento entre o
poder punitivo e as condições objetivas, através da constituição dessa colossal
demanda por pena.
Na virada do século XX o neoliberalismo produziu uma perda geral de
intensidade do trabalho: o capital é agora vídeo-financeiro19. A nova demanda
por ordem vai exigir o controle do tempo livre. A prisão não é mais lucrativa pelo
trabalho dos presos, mas pela sua gestão, a ser terceirizada e privatizada, pela
sua simbiose com as periferias urbanas e pelo seu capital simbólico. A indústria
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do controle do crime vai gerar uma nova economia, com seus medos, suas
blindagens, suas câmeras, suas vigilâncias, sua arquitetura. A segurança privada
vai substituir a construção civil como grande absorvedora de mão de obra
desqualificada. Nesta nova configuração, a prisão não só não desapareceu como
se expandiu como nunca. Expandiu-se e articulou-se para fora dos seus limites
com dispositivos de vigilância, com as medidas fora da prisão, e também com o
controle pela medicação.
Neste cenário surgem as penas alternativas, numa perspectiva de alternativas
à pena, como a partir de Radbruch diria Alessandro Baratta. Pensadas como
estratégias de desafogamento da justiça penal, elas podem acabar por impor um
controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos
do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espírito da
devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidiano vai criar um
20. WACQUANT, Loïc. Loïc Wacquant e a 21. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A
questão penal no capitalismo neoliberal. Vera ilusão da segurança jurídica: do controle da
Malaguti Batista (organizadora). Rio de Janeiro: violência à violência do controle penal. Porto
Revan, 2012. Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
A auto-patologização aprofundava os fossos construídos entre os homens
brancos e proprietários e o resto do nosso povo.
Tendo como objetivo maior a manutenção da ordem social projetada da
escravidão para a República, o positivismo criminológico se travestia de técnica,
encobrindo com o fetiche criminal sua natureza política. É Nilo Batista quem
nos assevera dessa função encobridora dos conflitos sociais que é o dispositivo
crime. No Brasil republicano o desenvolvimento das instituições policiais estarão
participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medicina
social, muito mais abrangente. Flamínio Fávero afirma que “...a medicina legal
deve agir, de preferência na elaboração e execução de certas leis que demandam
conhecimentos de ordem biológica a fim de que a ordem social permaneça”22.
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Aquele paradoxo da introdução do cartesianismo em Portugal acompanha essa
nova estratégia de dotar a fé na ciência de uma reedição racional do salvacionismo.
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente
enraizada na intelligentzia e nas práticas sociais e políticas brasileiras, ele
foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado,
patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona,
como um grande catalizador da violência e da desigualdade características do
processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central.
Descolonizar nossa elaboração da questão criminal impõe uma ruptura
radical com aquela objetificação e hierarquização das nossas matrizes
inquisitoriais. A consolidação da mentalidade obsidional europeia produziu
uma máquina de classificação e seletividade para lidar com o seu grande Outro.
Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramática. Como diz
Zaffaroni, nascemos como um continente que é instituição de sequestro e na
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