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PARA QUÊ?
- Intervenção no Encontro FLE (Fórum para a Liberdade de Educação) –
100 Anos de República e o futuro da Educação, Coimbra, 29 de Setembro
de 2010. Cf. Bento XVI, Carta encíclica “Caritas in Veritate” […] sobre
o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (= CV), 29
de Junho de 2009. Paulinas – Secretariado Geral do Episcopado, 2009.
1. Em torno do “desenvolvimento”
“Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento
futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de
enquadramento global e uma nova síntese humanista. […] A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso
caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em
experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e
elaboração de nova planificação” (CV 21).
“Fechado dentro da história, [o progresso humano] está sujeito ao risco de reduzir-se a simples
incremento do ter; deste modo, a Humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens
mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal. […] Na realidade, as
instituições sozinhas não bastam, porque o desenvolvimento integral é primariamente vocação e, por
conseguinte, exige uma livre e solidária assunção de responsabilidade por parte de todos” (CV 11).
Não é desígnio para alguns, antes se impõe à generalidade. Dalguns para alguns
era o que tínhamos antes e manifestamente não bastou, bem pelo contrário. Não bastou,
especialmente, para quem foi educado de modo imediatista e “tecnocrático”,
aprendendo porventura a fazer e a ganhar rapidamente, sem saber muito bem para quê,
nem a médio prazo. Ecoa aqui a pergunta inevitável de Jesus Cristo: “- Que aproveita
ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mt 16, 26).
Porque é de desenvolvimento que se trata e este requer a universalidade. É
possível e necessário tal desenvolvimento, mas não redutível a objectivos parciais e de
mera quantidade. Neste ponto, Bento XVI retoma afirmações de Paulo VI há mais de
quatro décadas, que ficaram célebres mas em grande parte por cumprir, particularmente
no campo educativo. Tornaram-se essenciais à própria noção de desenvolvimento, o que
foi um ganho, mas correram o risco de tudo quanto é “essencial”, em tempos
manifestamente “acidentais” como os que se seguiram:
“A vocação ao progresso impele os seres humanos a ‘realizar, conhecer e possuir mais, para ser
mais’ [Populorum progressio, 1967, 6]. Mas aqui levanta-se o problema: que significa ‘ser mais’? A tal
pergunta responde Paulo VI, indicando a característica essencial do ‘desenvolvimento autêntico’: este
‘deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo’ [Ibidem, 14]” (CV 18).
2. Motivações autênticas
“O aspecto filosófico e histórico-religioso saliente, nesta visão da Bíblia é o facto de, por um
lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a
fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas – o Logos, a razão primordial
– é, ao esmo tempo, um amante com toda a paixão do verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido
ao máximo, mas, simultaneamente, tão purificado que se funde com a ágape” (Deus caritas est, 10).
Ainda antes da aceitação propriamente religiosa desta “verdade”, não é difícil
constatar que tudo quanto nos conserva e acrescenta radica precisamente aqui, ou seja,
num amor que se excede e realiza no bem universal. Por sua vez, o crente vê aí mesmo a
concretização humana da “imagem e semelhança divina”, tendo razões definitivas para
se comprometer na realização de todos, como sua própria auto-realização também.
Bento XVI precisa-o, num sentido francamente aceitável por crentes ou não crentes e,
por isso mesmo, universalmente educativo:
“Deste modo, teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas
também contribuído para tornar credível a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na
vida social concreta. Facto este que se deve ter muito em conta hoje, num contexto social e cultural que
relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo refractário à mesma” (CV 2).
Creio que não teremos dificuldade em concluir do mesmo modo, daí tirando
importantes consequências educativas, no respeitoso cuidado em apresentar respostas e
propostas, e num mundo que, querendo-se inter-cultural, não se há-de querer pós-
cultural.
Com isto mesmo se prende outra problemática, hoje recorrente no campo da
liberdade religiosa e do respectivo exercício em ambiente pluralista. Hesitam Estados e
instituições quanto ao lugar da religião – ou das religiões – no âmbito não individual,
familiar ou confessional. O “velho” laicismo negava-lho absolutamente, pretendo
reservar o espaço público para as propostas meramente civis e genericamente
humanitárias, encontrando nelas um “lugar comum” onde todos nos pré-entendêssemos.
Assim se imunizaria a sociedade em relação às divisões “religiosas” que lhe teriam
causado muitas dissenções. Ultimamente, esta posição pareceu reforçada pelo
terrorismo fundamentalista, realmente causador de gravíssimos atentados à liberdade e
ao desenvolvimento dos povos.
Acontece, porém, que as sociedades são constituídas por pessoas que sentem,
pensam e actuam, inseridas em tradições específicas que herdam, continuam e fazem
evoluir, em sentido religioso ou não-religioso; e que – exactamente por serem pessoas –
não o fazem “individualmente”, mas socialmente, isto é, com outras pessoas que
compartilham das mesmas convicções e motivações, ou a quem as querem propor
também. A liberdade religiosa radica-se precisamente aqui, ou seja, nos alienáveis
direitos de cada um em ser pessoa, desenvolvendo-se como tal e necessariamente na
relação com os outros, de conivência ou proposta.
O próprio processo histórico nos devia ter imunizado contra todo o tipo de
“guerras” de convicção, religiosas ou ideológicas. Mas o mesmo processo apurou que o
futuro não pode ser construído na abstracção do que realmente somos, do que sentimos
e cremos. O verdadeiro desenvolvimento, como cabal e progressiva realização das
inestimáveis capacidades humanas, só pode acontecer a partir da oferta de pessoas e
grupos, no que tenham de mais mobilizador e sugestivo. Como o que positivamente
contêm as tradições religiosas. Para tal, a escola, pública ou não-pública, deve abrir e
potenciar espaços e ocasiões de proposta e diálogo religioso, não eclético mas autêntico
e aberto. Limitar-se-á gravemente, sempre que o não faça. Julgo de grande oportunidade
as seguintes considerações de Bento XVI:
Julgo que as muitas considerações que Bento XVI tece na sua encíclica sobre o
“desenvolvimento humano integral” têm uma particular aplicação no campo educativo e
escolar. Como estas, em que requer tanto a alargada complementaridade das matérias,
como a orientação humana e humanizante do que se aprenda ou projecte.
Interdisciplinaridade e caridade - no sentido autêntico que o Papa devolveu à palavra –
serão a indispensável substância da acção educativa:
“Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinas devem colaborar através
de uma ordenada interdisciplinaridade. […] A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. […]
Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade. Todavia, ir mais além nunca
significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a
inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor” (CV 30).
“Hoje […] parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder [do Estado], que
hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas
modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo actual. Com uma melhor definição do
papel dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política
nacional e internacional, que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil;
nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por
parte dos cidadãos” (CV 24).
Melhor Estado, certamente, mas cada vez mais de todos para todos, na promoção
e motivação de cada um. Como se concluíssemos que a educação não há-de ser
fragmentada no seu objectivo essencialmente humanista, mesmo quando se especialize;
mas terá de ser necessariamente particularizada na sua realização, para que esse mesmo
objectivo se respeite.
Manuel Clemente