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HUMANIDADES, CIÊNCIA E RELIGIÃO: EDUCAR PORQUÊ E

PARA QUÊ?
- Intervenção no Encontro FLE (Fórum para a Liberdade de Educação) –
100 Anos de República e o futuro da Educação, Coimbra, 29 de Setembro
de 2010. Cf. Bento XVI, Carta encíclica “Caritas in Veritate” […] sobre
o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade (= CV), 29
de Junho de 2009. Paulinas – Secretariado Geral do Episcopado, 2009.

1. Em torno do “desenvolvimento”

Bento XVI ofereceu-nos na encíclica Caritas in Veritate (29 de Junho de 2009)


uma reflexão teórica e prática sobre o que possa e deva ser o “desenvolvimento humano
integral”, nas condições socioeconómicas e culturais que actualmente afectam a
humanidade no seu conjunto.
É grande o sentimento de não se tratar de algo meramente conjuntural ou
episódico. Talvez ainda não suficientemente grande, dada a pressa que sempre subsiste
em que “tudo volte a ser como era”, sobretudo em quem se sentia bem como estava,
mesmo não olhando muito em seu redor…
A “crise” sentiu-se mais no campo financeiro, mas rapidamente alastrou à
economia e à sociedade em geral, repercutindo-se na vida das famílias, tão atingidas por
inesperadas restrições do crédito ou perdas de emprego. Não tardaram as análises que
apontavam o imediatismo dos ganhos e a ausência de regras e fiscalização como causas
do descalabro. Mas podemos e devemos perguntar-nos se essas pressas e anomias não
resultavam já de razões mais profundas, como são sempre as que se referem às pessoas
e aos valores que as sustentam ou não: pessoas particulares, certamente, mas também
públicas e administrativas, que pouco farão fora dos sentimentos gerais.
Como sentimento, que basicamente é, a pós-modernidade, tão arredia a
formulações genéricas, ideologias duras ou desideratos colectivos, abriu campo largo a
vivências mais individualistas e pouco sistemáticas, quer no campo privado, quer no
socioprofissional e público. A valorização incidiu no que cada um conseguisse por si e
para si, mais do que na integração num conjunto e para todos, tanto no campo dos
valores, como no das práticas de qualquer tipo. Aliás, isto foi possível tanto pela
disponibilidade inédita de meios e consumos como pela avalanche de informações,
publicidades e sugestões universalmente expandidas, com grande sedução imediata.
Naturalmente, nesta “atmosfera” escasseia a ponderação.
Dito doutro modo, escasseiam oportunidades e estímulos para as perguntas
essenciais, para a indagação do que cada um de nós seja e possa ou deva ser, por si e
com os outros, no devir em que nos reconhecemos. Não foi por acaso que, no campo
educativo, assistimos ao justificável crescendo das matérias científicas e técnicas, mas
também ao recuo, senão ao desaparecimento, da reflexão filosófica, especulativa e
literária.
Não admira também que, para um pensador tão sistemático e existencial como
sempre foi Joseph Ratzinger, a “crise” actual – como já o exigiam os seus prenúncios –
requeira necessariamente o reencontro connosco mesmos, enquanto humanidade vivida
e convivida. Também por isso, visando nesta encíclica um “desenvolvimento humano
integral na caridade e na verdade”, propõe-nos antes de mais uma “nova síntese
humanista”:

“Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento
futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de
enquadramento global e uma nova síntese humanista. […] A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso
caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em
experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e
elaboração de nova planificação” (CV 21).

Não é tempo de expedientes, mais característicos de urgências relativas. É da


humanidade que se trata, na sua iniludível e íntima conexão, como do destino global,
que não se equaciona em metas curtas. É forçosamente tempo – mas há quanto tempo já
o é! – para nos projectarmos em longos prazos e numa amplidão qualitativa em que
caibamos activamente todos nós, os seres humanos dos cinco continentes, ultrapassando
clivagens que infelizmente se mantêm e até agravam, quando tivemos e temos
condições únicas para as reduzir. Horizonte largo, densidade humana e humanitária,
responsabilidade partilhada e não meramente transposta para instâncias que, de facto,
não nos podem nem devem dispensar: é do nosso mundo e do nosso futuro que se trata.
Duma questão educativa por excelência.
Para o crente que é Bento XVI, o único horizonte de realização total é a
“eternidade”, onde a nossa condição actualmente histórica se alarga para além da
história. Dito doutro modo, a história abre-se para além dela, como a vida que não se
esgota, antes intui, em cada um dos seus momentos assinalados. Mas pode corroborá-lo
neste ponto, além da experiência de cada um, a constatação fácil de que nenhum
desígnio colectivo foi proposto e conseguiria verdadeira mobilização social se não se
projectasse para além do momento e não idealizasse para além da cronologia. Como no
seguinte trecho:

“Fechado dentro da história, [o progresso humano] está sujeito ao risco de reduzir-se a simples
incremento do ter; deste modo, a Humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens
mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal. […] Na realidade, as
instituições sozinhas não bastam, porque o desenvolvimento integral é primariamente vocação e, por
conseguinte, exige uma livre e solidária assunção de responsabilidade por parte de todos” (CV 11).

Não é desígnio para alguns, antes se impõe à generalidade. Dalguns para alguns
era o que tínhamos antes e manifestamente não bastou, bem pelo contrário. Não bastou,
especialmente, para quem foi educado de modo imediatista e “tecnocrático”,
aprendendo porventura a fazer e a ganhar rapidamente, sem saber muito bem para quê,
nem a médio prazo. Ecoa aqui a pergunta inevitável de Jesus Cristo: “- Que aproveita
ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?” (Mt 16, 26).
Porque é de desenvolvimento que se trata e este requer a universalidade. É
possível e necessário tal desenvolvimento, mas não redutível a objectivos parciais e de
mera quantidade. Neste ponto, Bento XVI retoma afirmações de Paulo VI há mais de
quatro décadas, que ficaram célebres mas em grande parte por cumprir, particularmente
no campo educativo. Tornaram-se essenciais à própria noção de desenvolvimento, o que
foi um ganho, mas correram o risco de tudo quanto é “essencial”, em tempos
manifestamente “acidentais” como os que se seguiram:
“A vocação ao progresso impele os seres humanos a ‘realizar, conhecer e possuir mais, para ser
mais’ [Populorum progressio, 1967, 6]. Mas aqui levanta-se o problema: que significa ‘ser mais’? A tal
pergunta responde Paulo VI, indicando a característica essencial do ‘desenvolvimento autêntico’: este
‘deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo’ [Ibidem, 14]” (CV 18).

2. Motivações autênticas

Expendidas num documento pontifício, as propostas de Bento XVI têm


necessariamente motivação religiosa e cristã, e assim mesmo se autenticam e oferecem
a quem as queira considerar, antes de mais como pedagogia. Mas a “doutrina social da
Igreja” pretende reflectir sobre a globalidade, que inclui necessariamente a presença do
Cristianismo no mundo, como ideia e como prática. Reflectindo, incide sobre a
realidade, discernindo-a com todos os meios que a racionalidade humana tem
acrescentado; encontrando na experiência humana o influxo da proposta evangélica,
toma-o como facto e mesmo como ganho, para melhor ajuizar e projectar.
Como o próprio nome indica, a encíclica condensa a sua proposta “para um
desenvolvimento humano integral” em dois conceitos essenciais: caridade e verdade,
conjugados como “caridade na verdade”. Pretendendo ser bem compreendido por todos
– e ainda além do universo confessional estrito -, o Papa explicita várias vezes o que
entende por uma e por outra, já que nelas encontra as motivações mais seguras para a
meta que se propõe e nos propõe.
Sobre a caridade, aliás, já se debruçara na sua primeira encíclica, com alguma
surpresa de quem esperava pelo “programa” do actual pontificado. Do “professor”
Ratzinger muita gente aguardava um discurso sólido e bem estruturado sobre o credo
cristão, com particular incidência sobre a virtude teologal da fé e a respectiva doutrina.
Porém, Bento XVI entendeu como mais urgente e prioritário desenvolver o tema da
caridade, como autêntica razão de ser da Igreja e do mundo, bem como da Igreja para o
mundo, a partir da revelação cristã do próprio Deus como amor e intrínseca
convivência. Logo no seu nº 1, a encíclica Deus caritas est, de 25 de Dezembro de
2005, declarara a motivação: “Num mundo em que ao nome de Deus se associa por
vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, […] desejo falar do amor
com que Deus nos cumula e que deve ser por nós comunicado aos outros”.
Motivação educativa por excelência: e imediatamente sobre a própria ideia de
Deus, para não nos contra-idealizarmos a nós, pretextando um “deus” não evangélico. A
encíclica foi bem recebida, também por alguns intelectuais e académicos, que
apreciaram a exposição clara e sistemática sobre o amor, qual dinamismo essencial da
relação humana e humanizante.
Analisando a etimologia das principais palavras que a ele se referem na tradição
filosófica e bíblica, em constante referência antropológica e existencial, Bento XVI
desvenda no próprio Deus o amor absoluto, que tanto atrai (eros, amor possessivo)
como se entrega (ágape, amor oblativo), assim mesmo criando e salvando quanto cria:

“O aspecto filosófico e histórico-religioso saliente, nesta visão da Bíblia é o facto de, por um
lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a
fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas – o Logos, a razão primordial
– é, ao esmo tempo, um amante com toda a paixão do verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido
ao máximo, mas, simultaneamente, tão purificado que se funde com a ágape” (Deus caritas est, 10).
Ainda antes da aceitação propriamente religiosa desta “verdade”, não é difícil
constatar que tudo quanto nos conserva e acrescenta radica precisamente aqui, ou seja,
num amor que se excede e realiza no bem universal. Por sua vez, o crente vê aí mesmo a
concretização humana da “imagem e semelhança divina”, tendo razões definitivas para
se comprometer na realização de todos, como sua própria auto-realização também.
Bento XVI precisa-o, num sentido francamente aceitável por crentes ou não crentes e,
por isso mesmo, universalmente educativo:

“A caridade na verdade […] é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de


cada pessoa e da humanidade inteira. O amor – ‘caritas’ – é uma força extraordinária, que impele as
pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. […] Todos os
seres humanos sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca
desaparecem de todo neles” (CV 1).

O Papa Ratzinger podia ter escolhido um termo mais conforme ao gosto


contemporâneo… Pretendendo dar um contributo aberto e aceite no actual contexto
social e económico, termos como solidariedade ou benevolência passariam bem melhor
do que caridade ou amor. O romantismo trouxe estes últimos para o campo da
subjectividade e dos afectos, arredando-os de conotações mais sólidas e sociais. Reage-
se quase “instintivamente” ao seu emprego sistemático e ainda menos nas “ciências
sociais”. Por outro lado, um certo realismo de tipo positivista excluiu da análise e da
proposta qualquer referência não quantificável.
Mas, certamente por isso mesmo, o Papa utiliza tais termos e conceitos com o
conteúdo que o Cristianismo deu a um (caridade) e com a apetência universal que se
verifica em relação ao outro (amor). Ainda assim, confessa estar ciente “dos desvios e
esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar, com o risco, dai
resultante, de ser mal entendida, de ser excluída da vida ética e, em todo o caso, de
impedir a sua correcta valorização” (CV 2). Mas tal consciência leva-o apenas a
“conjugar a caridade com a verdade” (ibidem), retirando-a do campo do devaneio e
verificando-a nos efeitos práticos, realmente inegáveis e educativamente exercitáveis.
Falando com simplicidade, diríamos que “contra factos não há argumentos”,
antes devemos argumentar com os factos e a partir deles: o amor oblativo, que
cristãmente se chama caridade, revela-se como enorme potenciação de solidariedade e
de paz, verdadeiros desideratos gerais, na mútua circulação da verdade e da caridade.
Mas tal acontece porque assim se realizam mutuamente, demonstrando a sua eficácia,
indispensável eficácia. Podemos dizer como num título de Raoul Follereau, o “apóstolo
dos leprosos”, que “a única verdade é amar”. Bento XVI di-lo também e em prol das
duas:

“Deste modo, teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas
também contribuído para tornar credível a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na
vida social concreta. Facto este que se deve ter muito em conta hoje, num contexto social e cultural que
relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo refractário à mesma” (CV 2).

É precisamente na verdade do seu acontecer concreto que a caridade se legitima


e requer, não só na vida privada, mas também na social e pública. Assim mesmo se
emancipa de qualquer redução sentimentalista ou voluntarista, ganhando a densidade
irrecusável do que realmente importa a todos, crentes ou não crentes, e faz bem a cada
um, não excluindo quem a pratica, segundo um dito de Cristo, felizmente recolhido nos
Actos dos Apóstolos: “a felicidade está mais em dar do que em receber” (Act 20, 35).
Por isso se não compreenderia que a forte e autêntica motivação solidária que a
caridade representa ficasse fora da pedagogia social e da oferta educativa. Bem pelo
contrário, uma vez isenta do duplo escolho do devaneio sentimental e do voluntarismo
fideísta cf. (CV 3)., a caridade verificada nas relações sociais positivas – e tantas são as
exemplificações da santidade sublinhada ou anónima! – aparece como alínea primeira
da transmissão de valores.
A conjugação das duas só na relação pode acontecer. Tratando-se de “verdade”
importa-me no que importa aos outros, pois não há vida sem convivência, nem
singularidade sem reciprocidade. Foi esse o maior ganho do conceito de “pessoa” –
precisamente de ser em relação -, tão acentuado no século XX contra totalitarismos e
individualismos de vária espécie. A “minha” verdade acontece como descoberta e
incremento do que nos é comum a todos, como base donde partimos e como topo que só
em conjunto atingiremos, num verdadeiro diálogo que me revele além de mim, pela
humanidade que também nos outros se desvenda, atentamente, pacientemente. Daqui a
eminente dimensão educativa do espaço aberto de proposta e avaliação, que toda a
escola deve ser, para cumprir a sua indispensável dimensão humanizante. Não
demoraremos a concordar com Bento XVI:

“A verdade é ‘logos’ que cria ‘dia-logos’ e, consequentemente, comunicação e comunhão. A


verdade, fazendo sair os seres humanos das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar
determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A
verdade abre e une as inteligências no logos do amor […]. Sem a verdade, a caridade acaba confinada
num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e processos de construção dum
desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática” (CV 4).

Não demoraremos a concordar com estas considerações, repito, mas talvez


demasiado depressa. De facto, há na sensibilidade difusa uma acentuada resistência ao
diálogo propriamente dito, ao confronto de ideias e ao respectivo apuramento racional e
existencial. Não é “politicamente correcto” afirmar ou discordar, consistentemente.
Estão em grande voga os qualificativos ténues, quase amedrontados, onde o dito e o
contradito facilmente se sucedem e o desacordo parece acordo, sendo apenas
desistência. Ou, no extremo oposto, a sobreposição quase gritada de alegações que
ninguém realmente escuta e poucos levarão a sério: mas é ainda de “drama” que se trata,
como requerem os media em geral. A escola, essa, tem de ter tempo e detença, para
cumprir o seu papel ao serviço da verdade, e com caridade decerto.
Porque levando-nos a caridade – ou a coincidente benevolência – ao
acolhimento mútuo, não nos dilui em osmoses rápidas e pouco respeitadoras das
distinções em que somos todos, mas um por um, conforme os pontos de partida e os
circunstancialismos múltiplos. Quer isto dizer que a verdade que cada um já viva deve
ser respeitosamente partilhada, para que possamos crescer na verdade a que plenamente
chegaremos. A nossa consciência estimula-se e alarga-se, das verdades recebidas às
verdades experimentadas e das que nos explicam restritamente às que nos explicarão
globalmente, uns com os outros e uns pelos outros; sem deixarmos de ser quem somos,
mas sendo-o também com os outros e aprendendo com eles e as respectivas
experiências vitais.
Os que se querem cristãos, ganham da “memória” de Jesus de Nazaré um
estímulo para irem sempre além, revelando-se Ele uma companhia fecunda que, tanto
ou mais do que do passado, convida agora do futuro. É com esta referência vital que se
dispõem ao diálogo e é dela que certamente falarão, oferecendo-a a outros, ao menos
para enriquecer as respectivas possibilidades de escolha e opção. Alguém me dizia que
continuava cristão, “porque com Cristo a conversa nunca acabava”, ao contrário doutras
que se esgotavam mais depressa… Creio bem que é nisto que se define e oferece uma
escola cristã, muito legitimamente aliás.
Com dois escolhos se confronta hoje o autêntico diálogo: primeiramente, um
certo ecletismo cultural, em que as culturas específicas se tomam como equivalentes e
intercambiáveis, nada enriquecendo a nada e tudo desconhecendo a tudo; depois, o
nivelamento cultural e a homogeneização acrítica dos comportamentos e estilos,
esquecendo o enquadramento próprio em que cada cultura tentou responder às grandes
questões da existência. Bento XVI conclui:

“Ecletismo e nivelamento cultural convergem no facto de separar a cultura da natureza humana.


Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que as transcende, acabando
por reduzir a pessoa a simples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de
servidão e manipulação” (CV 26).

Creio que não teremos dificuldade em concluir do mesmo modo, daí tirando
importantes consequências educativas, no respeitoso cuidado em apresentar respostas e
propostas, e num mundo que, querendo-se inter-cultural, não se há-de querer pós-
cultural.
Com isto mesmo se prende outra problemática, hoje recorrente no campo da
liberdade religiosa e do respectivo exercício em ambiente pluralista. Hesitam Estados e
instituições quanto ao lugar da religião – ou das religiões – no âmbito não individual,
familiar ou confessional. O “velho” laicismo negava-lho absolutamente, pretendo
reservar o espaço público para as propostas meramente civis e genericamente
humanitárias, encontrando nelas um “lugar comum” onde todos nos pré-entendêssemos.
Assim se imunizaria a sociedade em relação às divisões “religiosas” que lhe teriam
causado muitas dissenções. Ultimamente, esta posição pareceu reforçada pelo
terrorismo fundamentalista, realmente causador de gravíssimos atentados à liberdade e
ao desenvolvimento dos povos.
Acontece, porém, que as sociedades são constituídas por pessoas que sentem,
pensam e actuam, inseridas em tradições específicas que herdam, continuam e fazem
evoluir, em sentido religioso ou não-religioso; e que – exactamente por serem pessoas –
não o fazem “individualmente”, mas socialmente, isto é, com outras pessoas que
compartilham das mesmas convicções e motivações, ou a quem as querem propor
também. A liberdade religiosa radica-se precisamente aqui, ou seja, nos alienáveis
direitos de cada um em ser pessoa, desenvolvendo-se como tal e necessariamente na
relação com os outros, de conivência ou proposta.
O próprio processo histórico nos devia ter imunizado contra todo o tipo de
“guerras” de convicção, religiosas ou ideológicas. Mas o mesmo processo apurou que o
futuro não pode ser construído na abstracção do que realmente somos, do que sentimos
e cremos. O verdadeiro desenvolvimento, como cabal e progressiva realização das
inestimáveis capacidades humanas, só pode acontecer a partir da oferta de pessoas e
grupos, no que tenham de mais mobilizador e sugestivo. Como o que positivamente
contêm as tradições religiosas. Para tal, a escola, pública ou não-pública, deve abrir e
potenciar espaços e ocasiões de proposta e diálogo religioso, não eclético mas autêntico
e aberto. Limitar-se-á gravemente, sempre que o não faça. Julgo de grande oportunidade
as seguintes considerações de Bento XVI:

“A exclusão da religião do âmbito político e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso


impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da Humanidade. A vida
pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos
humanos correm o risco de não serem respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento
transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo,
perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé
religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão
política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela
razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito
gravoso para o desenvolvimento da Humanidade” (CV 56).

3. Escola e desenvolvimento humano integral

Julgo que as muitas considerações que Bento XVI tece na sua encíclica sobre o
“desenvolvimento humano integral” têm uma particular aplicação no campo educativo e
escolar. Como estas, em que requer tanto a alargada complementaridade das matérias,
como a orientação humana e humanizante do que se aprenda ou projecte.
Interdisciplinaridade e caridade - no sentido autêntico que o Papa devolveu à palavra –
serão a indispensável substância da acção educativa:

“Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinas devem colaborar através
de uma ordenada interdisciplinaridade. […] A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. […]
Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade. Todavia, ir mais além nunca
significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a
inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor” (CV 30).

A inquestionável beleza destas formulações não nos deve distrair da sua


importância e grande urgência. A redução da ciência, que, do estatuto grandiloquente
que granjeou a partir do Iluminismo, quase se reduziu ao que possa ser
tecnologicamente realizado e rapidamente aproveitável, foi a par da secundarização das
humanidades – e das próprias teologias – como potenciadoras de reflexão e de sentido.
Mas poderíamos dizer também, de modo algo “comtiano”, que a ultrapassagem do
metafísico pelo positivo só se sustentou enquanto este último viveu da herança dos
estádios anteriores (teológico e metafísico). Porém, o sucessivo afastamento e descuido
em relação àquelas fontes, deixou-o animicamente esvaído e eticamente desamparado.
Há uma síntese a empreender, para nos retomarmos como humanidade e com o que
aprendemos entretanto.
Da escola para a sociedade, trata-se, afinal, de adequarmos o saber à realidade –
toda a realidade – sem a seccionar aprioristicamente, ideologicamente. Bento XVI tem-
no requerido várias vezes e designadamente em ambiente escolar (universitário):

“A excessiva fragmentação do saber, o isolamento das ciências humanas, relativamente à


metafísica, as dificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia danificam não só o avanço do saber
mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do
bem completo do ser humano, nas várias dimensões que o caracterizam. É indispensável o ‘alargamento
do nosso conceito de razão e do uso da mesma’ [Discurso na Universidade de Regensburg, 12 de
Setembro de 2006] para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do
desenvolvimento e da solução dos problemas socioeconómicos” (CV 31).

Falamos da aprendizagem, mas falemos igualmente de quem aprende, ou


apreende. A distinção clássica entre ciência e humanidades (ou “ciências humanas”)
poderia dar lugar à expressão mais correcta de “conhecimento humano”, pois,
independentemente de objectos e métodos, é sempre a pessoa o seu suporte e destino.
Trata-se de muito mais do que mera variação de expressões, pois nos situa doutro modo
na acção de conhecer e dá a primazia àquele que aprende e àqueles em quem a
aprendizagem se repercutirá depois.
Cada aluno – como cada professor que continua sendo aluno – parte do que
recebeu duma herança cultural e colectiva, que antes de mais deve conhecer no
essencial dos diversos campos em que se manifesta. A partir daqui, progredirá por si e
com os outros, e tanto mais quanto crescer em humanidade e serviço. Assim se avaliará
verdadeiramente o desenvolvimento, na sua base e nas suas metas, bem como o
contributo escolar nesse sentido.
Reconheceu-se geralmente que, na “crise” sobrevinda, os Estados, mesmo os
mais fortes, revelaram grandes limitações na capacidade de prever e tutelar a actividade
financeira e não só. Certamente influiu o maior carácter transnacional da economia, bem
como a complexidade dos centros de decisão, que também ultrapassam as fronteiras
tradicionais.
Não deve estar em causa o lugar e o papel do Estado – e do Estado democrático
e “de direito” - como primeiro responsável do bem comum de cada povo. Mas parece
necessário retomá-lo de modo mais aberto, na relação internacional e inter-cultural, e
mais “subsidiário”, no acolhimento e estímulo da colaboração dos corpos intermédios
(famílias e instituições não públicas), dentro dos princípios que as declarações
universais têm afirmado quanto aos direitos humanos a promover. Creio que se aplicam
particularmente ao campo educativo e escolar estas afirmações da encíclica:

“Hoje […] parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder [do Estado], que
hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas
modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo actual. Com uma melhor definição do
papel dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política
nacional e internacional, que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil;
nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por
parte dos cidadãos” (CV 24).

Melhor Estado, certamente, mas cada vez mais de todos para todos, na promoção
e motivação de cada um. Como se concluíssemos que a educação não há-de ser
fragmentada no seu objectivo essencialmente humanista, mesmo quando se especialize;
mas terá de ser necessariamente particularizada na sua realização, para que esse mesmo
objectivo se respeite.

Manuel Clemente

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