Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
NA ETNOGRAFIA
ORGANIZADORES
ANDREA BARBOSA
EDGAR TEODORO DA CUNHA
ROSE SATIKO G. HIKEJI
SYLVIA CAIUBY
9 Apresentação
ANDRÉA BARBOSA, EDGAR TEODORO DA CUNHA,
ROSE SATIKO GITIRANA HIKIJI E SYLVIA CAIUBY NOVAES
27 I. Cinema e Antropologia
29 Olho mecânico, ouvido eletrônico, e a atração da
autenticidade
TRINH T. MINH-HA
Fabrik Funk
DIR. ALEXANDRINE BOUDREAULT-FOURNIER, ROSE SATIKO G. HIKIJI E SYLVIA CAIUBY
NOVAES
O aprendiz do samba
DIR. ANA LÚCIA FERRAZ
Vende-se pequi
DIR. ANDRÉ LOPES E JOÃO PAULO KAYOLI
trans_versus 1
DIR. VITOR GRUNVALD
Apresentação
sua apropriação pela pesquisa antropológica permite uma via mais fértil ao
imaginário, às experiências sensoriais, a toda a pletora de sentidos que não se
restringem a simplesmente olhar e descrever, mas a uma experiência sensorial
sinestésica, que não deixa de lado gestos, olhares, posturas e movimentos.
Temas clássicos da antropologia como espaço, memória, corpo e religiosidade,
experiência e performance, para citar apenas alguns que aparecem nos vários
artigos deste livro, têm a partir da imagem uma perspectiva analítica inovadora.
Por outro lado, nas imagens construídas em pesquisa, nossos interlocutores
se tornam presentes de modo visível, a partir do modo como desejam que
sua presença seja divulgada. Nesse sentido, todo o processo de construção da
etnografia não aparece como algo que se dilua por trás da autoridade de seu
autor, mas como algo que explicitamente emerge da relação entre o pesquisador
e seus interlocutores no campo. A autenticidade de nossos trabalhos não está
naquilo que é filmado, fotografado ou sobre o qual escrevemos, mas na relação
entre quem pesquisa e quem é pesquisado. O que procuramos fazer é construir
em imagens a experiência do encontro e dos motivos para este encontro. E é
a ética dessa relação que será vista como estética pelo espectador.
Foi exatamente o engajamento que a imagem provoca e propicia que nos levou
a experimentar e fazer da imagem o foco de nossa experiência etnográfica,
seja a partir de fotografias, filmes ou das imagens que resultam das novas tec-
nologias de informação e que se revelam nas redes sociais e nas possibilidades
de uso do hipertexto.
Além de autores que vêm trabalhando especificamente com imagens fílmicas
e fotográficas como Jean Rouch, Catarina Alves Costa, David MacDougall,
Trinh Minh-Ha, Paul Henley, Eduardo Coutinho e João Moreira Sales, Eliza-
beth Edwards, Etienne Samain, Susan Sontag, Barbara Glowcewski, autores
da antropologia contemporânea como Alfred Gell, Bruno Latour, Carlo Severi,
Jeanne Favret-Saada, Michael Taussig, Richard Schechner, Roy Wagner, Tim
Ingold, Georges Didi-Huberman, Giorgio Agamben e clássicos como Walter
Benjamin, Aby Warburg e Frances Yates foram também referências importantes
ao longo de nossas pesquisas.
Três seções compõem esse livro. Dos catorze artigos aqui reunidos, dez foram
escritos por pesquisadores do GRAVI, e metade desses artigos é resultado de
coautoria, pois nosso objetivo era exatamente colocar em perspectiva com-
parativa o resultado de nossas pesquisas. Incluímos igualmente a tradução
de quatro trabalhos de alguns desses autores mencionados e que nos foram
inspiradores ao longo dos anos.
Apresentação
Henley no terceiro artigo desta sessão. O experiente antropólogo e diretor do
Granada Centre for Visual Anthropology discute o problema da narrativa em
uma tradição que se estabeleceu baseada em uma “retórica empírica”, com
“a pretensão de estar fornecendo ao público acesso direto ao mundo que está
sendo representado”. Henley analisa algumas formas narrativas presentes
em obras clássicas e contemporâneas do cinema etnográfico. Por fim, defen-
de que nos livremos da herança positivista das ciências naturais, aceitando
que todos os filmes etnográficos são representações, envolvem necessariamente
narrativas e, portanto, devemos nos dedicar a conhecer as convenções para
usá-las de forma adequada.
O artigo de Nadja Marin e Paula Morgado também aborda narrativas, mas o
foco aqui são filmes e mídias produzidos por povos indígenas no Brasil nos
últimos trinta anos. As autoras mostram como a produção audiovisual indígena
se apresenta como uma evidência de que essas sociedades não se dissolveram
na sociedade nacional, como previsto em prognósticos pessimistas nos anos
1970. Além disso, as novas formas de comunicação mostram-se como um meio
destas populações se imporem na luta pela diversidade cultural. As antropólo-
gas, que atuam em áreas indígenas com produção audiovisual há muitos anos,
chamam a atenção para o protagonismo de jovens realizadores indígenas no
diálogo intercultural e no debate político. Analisam também diversas narrati-
vas fílmicas, as temáticas e recursos de linguagem utilizados, oferecendo um
panorama desta produção que hoje já pode ser pensada como marca do cinema
brasileiro, e não apenas indígena.
O cinema como objeto e, ao mesmo tempo, como um problema antropológico
é o tema do artigo de Bruna Triana e Diana Gómez. A partir de suas experi-
ências de análise fílmica em mestrados realizados em antropologia social, as
autoras propõem um olhar para o cinema a partir de conceitos benjaminianos,
retomados pelo antropólogo Michael Taussig. Estão em questão o afeto da
imagem, o cinema como “narrador moderno” e como “máquina mimética”. No
texto, analisam o filme Hunger (Steve Mcqueen, 2008) e levantam questões de
interesse amplo ao campo da antropologia do cinema: que tipo de experiência
o filme oferece, produz, provoca? Que tipo de associações o filme permite?
Como esse ou aquele filme consegue perturbar as convenções já consagradas
pelo cinema? Que interpretações sobre determinado tema o filme provoca?
Uma reflexão densa sobre o corpo no cinema encerra esta seção do livro. David
MacDougall, um dos principais realizadores e pensadores do filme etnográfico,
reflete acerca de diferentes corpos presentes e afetados pelo filme: o corpo do
Apresentação
instantâneo dedica-se a mapear e analisar um movimento no qual a fotografia
marca presença nas políticas culturais de representação e, no último instan-
tâneo, a autora traz uma análise sobre uma nova configuração para a relação
entre fotografia e antropologia quando emergem etnografias que não mais
usam a fotografia como método, mas que são, elas mesmas, etnografias das
práticas fotográficas. O que Elizabeth Edwards nos apresenta em sua análise
“é o deslocamento dinâmico de como a antropologia produz suas evidências,
como ela chega às suas verdades, como situa sua objetividade, como lida com
sua subjetividade e, enfim, como entende sua intersubjetividade”.
O segundo artigo da seção terá justamente como proposta realizar uma reflexão
sobre a potência da fotografia como elemento articulador de subjetividades em
um processo etnográfico. A experiência de uma pesquisa com jovens moradores
de um bairro “periférico” da cidade de Guarulhos em São Paulo é o ponto de
partida para a montagem de um setting etnográfico povoado por imagens
fotográficas produzidas e confrontadas tanto pelos interlocutores como pela
pesquisadora. A partir de um conjunto de fotografias que emergem dessa
experiência, o artigo nos provoca a pensar na potência dessas imagens – a de
fazer falar, a de evocar ao tornar o significativo visível e a de provocar a ima-
ginação antropológica. Como operam essas potências quando enfrentamos as
imagens acumuladas em um arquivo fruto de um processo etnográfico? Para
responder a essa questão, Andrea Barbosa desdobra a leitura dessas fotografias
em experiências que são fruto de outras experiências como a que a gestou (ato
fotográfico) e a de compartilhar as narrativas possíveis que elas podem provocar.
O que informa essa análise é a busca “pelas narrativas sobreviventes e viventes
que habitam essas imagens” apesar de terem sido tiradas por amadores, apesar
de narrarem várias histórias, apesar de suas aparições jamais corresponderem
ao presente fisionômico do seu referente.
Em seguida temos o artigo de Alice Villela e Vitor Grunvald, no qual o que
está em jogo é um exercício reflexivo sobre a fotografia como mediadora das
relações sociais. Nesse exercício, a ideia de “pessoa distribuída” de Alfred
Gell é fundamental, pois ajuda a lidar com as questões desafiadoras trazidas
pelos autores dos seus contextos de pesquisa muito diferentes entre si. Alice
trabalhou com os Assurini do Xingu e Vitor com performances de gênero – o
crossdressing – em contextos urbanos. Eles aproveitam esta heterogeneidade
de experiências com a imagem em campo para discutir a validade de se pensar
a agência social da fotografia por meio das ideias de magia e fetiche. O poder
da imagem fotográfica ao presentificar o referente é pensado por duas vias: na
relação com a magia, no qual o aspecto indicial da fotografia está em primei-
Apresentação
indígenas contemporâneos a esse passado de uma relação intercultural assimé-
trica. Imagens fragmentárias que se potencializam para lançar luz às margens,
ao segmentado, iluminando os indícios e rastros dessa experiência coletiva,
como “formas que pensam”.
A ideia da montagem, enquanto elemento distintivo da linguagem cinematográ-
fica e de um pensamento por imagens, surge associada às diferentes vanguardas
artísticas do início do século XX. Nesse contexto, com a montagem, novas
luzes são lançadas sobre as relações entre técnica, estética e conhecimento,
para além das fronteiras do cinema e envolvendo outras formas expressivas e
de produção de conhecimento. O capítulo “Montagem, teatro antropológico e
imagem dialética”, de Carolina Abreu e Vitor Grunvald, propõe uma aproxima-
ção entre o conceito de montagem a partir do campo dos estudos do cinema,
para pensarmos suas possibilidades e seu rendimento no âmbito do teatro e
da experiência antropológica, que se corporifica em seus aspectos literários
e de estilo. Tudo isso para nos oferecer a possibilidade de uma visão crítica
de práticas envolvendo formas expressivas, com foco em um conhecimento
etnográfico mais consciente da dimensão política e ética de suas escolhas,
de forma especial aquelas que envolvem a textualização. Assim, transitando
pela história do cinema, sobretudo a do documentário e do filme etnográfico,
os autores mobilizam aspectos de uma tradição, que abrange o conceito de
montagem e a reflexividade antropológica por ele oferecida, para tratar das
práticas de campos como a antropologia visual, história, teatro e literatura,
mas para ressaltar a imbricação entre esses diferentes campos e a antropologia.
A partir da experiência da produção de um documentário que se aproxima dos
universos do candomblé e do islamismo, Francirosy Campos Barbosa aborda
a questão do mistério, da magia que escapa ao domínio da ordem no fazer et-
nográfico, e que afeta os pesquisadores que lidam com o universo da religião.
É essa experiência de pesquisa que informa o capítulo intitulado “Somos afe-
tados: experiências no campo religioso”. Aqui adentramos em outro campo, o
dos estudos sobre religião, a partir de um projeto apoiado em uma etnografia
aprofundada e nas possibilidades narrativas oferecidas pelo material audiovisual
produzido nesse processo. A primeira questão que se coloca é o significado
ético e estético de se produzir imagens nesse contexto, que por vezes oferece
limitações em função de concepções de ordem êmica. Outra questão impor-
tante é a condição do etnógrafo, sempre afetado pela experiência de campo,
aqui tomada como objeto de reflexão. Sua experiência e a de outros colegas
que compartilham o interesse por temáticas religiosas e episódios de contato
1
OVERING, J. & GOW, P. “Aesthetics Is a Cross-Cultural Category”. In: INGOLD, Tim (org.).
Key Debates in Anthropology. Londres: Routledge, 1996, pp. 249-93.
PrefácioImagem e experiência
as imagens. Questionam, portanto, os conceitos mais basilares sobre imagem,
cinema, corpo, visão, conhecimento, percepção que reaparecem revitalizados
em discussões etnográficas sólidas. As imagens necessitam, pois, de mediações,
de aportes, de contextos para serem compreendidas.
Assim, nos defrontamos com questões instigantes como as que refletem as
técnicas, os conceitos de filmagem, a mecânica, a subjetividade, a pretensa
objetividade no documentário, desarticulando uma série de pressuposições
sobre a maneira que enquadramos a imagem percebida como dado objetivo.
Questiona-se a linguagem do documentário de modo a expor suas entranhas,
desvelando o que está por trás de uma imagem pretensamente científica. Ao se
colocar em suspeição o que parecia ser simples técnicas de filmagem (travelling,
panorâmica, som direto, música), tomadas como registros de verdade ou veros-
similhança, desconstrói-se esta “naturalidade” das imagens no documentário.
O estatuto da imagem no filme etnográfico é enfrentado a partir de uma
interrogação sobre os conceitos de documentar e documentação que acabam
por retirar do filme etnográfico a responsabilidade de produzir a realidade. A
aposta na etnoficção, como formulação capaz de engendrar, simultaneamente,
reflexão e reflexividade sobre o mundo pesquisado, aponta para uma nova
configuração na produção das imagens que se baseia em parceria e colabo-
ração com os sujeitos pesquisados. Levando a ficção a sério, como estratégia
narrativa e esforço epistemológico, derrubam-se as frágeis fronteiras erguidas
entre ficção e documentário. Ficção, nesta nova acepção, passa a ser pensada,
no contexto da etnografia, como uma poderosa ferramenta capaz de engendrar
um novo modo de conhecimento. Nesta chave, a ficção permite reconfigurar
os lugares do sujeito que filma e do objeto filmado. A ficção constitui uma
relação entre sujeitos que, colaborativamente, produzem o conhecimento
dado a ver através das imagens.
Esta percepção sobre a importância da ficção enquanto construção ecoa nas
palavras do montador Dai Vaughan, que servem de epígrafe ao texto de Paul
Henley: “um filme é sobre algo e a realidade não é”. Portanto, a edição não é
mutilação mas criatividade demonstrando que o cinema não coincide com a
realidade. Questão central que tensiona a relação entre imagem e verdade e
que nos impele a pensar o que as imagens “revelam” e o que elas “enganam”.2
A narrativa passa a ser, portanto, o maior desafio do filme etnográfico, uma vez
que amplifica concepções epistemológicas complexas, rupturas cronológicas,
2
XAVIER, Ismail. “Cinema: revelação e engano”. In: O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
PrefácioImagem e experiência
mediação cultural. Esta reflexão encaminha uma pergunta formulada por Mor-
gado e Marin: “Mas serão os filmes apenas instrumentos culturais e políticos?
Existiria um ‘cinema indígena brasileiro’ ou, para quem esta pergunta teria
sentido ontológico?”. A nomenclatura “cinema indígena” explicita, assim, um
paradoxo, pois ao impormos o conceito de cinema às imagens produzidas pelos
indígenas podemos atribuir a elas sentidos outros como aqueles endereçados
a concepções estéticas ocidentais contemporâneas da prática cinematográfica.
Neste contexto, pensar as imagens produzidas pelos indígenas torna-se um de-
safio instigante que ajuda a repensar os princípios de uma estética universalista
na leitura das imagens. Uma característica marcante do “cinema indígena” é
que os personagens dos filmes são tão realizadores quanto os diretores, uma
vez que o filme se converte em empreitada coletiva, exigindo uma redefinição
de criação estética, de autoria. As imagens produzidas por outras culturas e
suas aparições nas concepções de cinema ou arte afetam as formas canônicas
e estabelecidas de se conceituar cinema, arte ou imagem.
Outro eixo em torno do qual gravita a discussão dos textos aqui reunidos
é o aspecto sensorial do cinema, das imagens. Reside, pois, no corpo esta
manifestação da sensorialidade, que atua como elemento infraestrutural da
narrativa cinematográfica. O sensorial possibilita reconceituar o cinema como
evento construído mais em torno de uma percepção corporal-sensória do que
propriamente escópica. É através dos corpos que emergem no plano do filme
que temos acesso às imagens no cinema. Neste sentido, o cinema etnográfico
redobra esta questão dos corpos uma vez que nos reenvia a outros corpos e,
portanto, a outros mundos. O corpo do espectador, o corpo do personagem e
o corpo dos cineastas formam o tripé sensorial da produção e da recepção das
imagens em movimento. Ideias que nos reenviam ao cinema indígena que, ao
radicalizar a corporalidade como condição de aceder às imagens, constrói-se
através de uma hiper-sensorialidade. O pensamento indígena foi capaz de com-
preender rapidamente a linguagem do cinema e de transformá-la. Do mesmo
modo que suas percepções corporais estruturam-se a partir de um sistema de
transformação, o cinema indígena seria, ele mesmo, esta fabricação do corpo
através de imagens.
Um outro conjunto de contribuições do livro investe na relação, contato e
contágio entre antropologia e fotografia. A fotografia etnográfica, ao apon-
tar para a imprevisibilidade das relações humanas, aprofunda os modos de
percepção e reflexão sobre si e sobre o outro. A fotografia, percebida en-
quanto uma viagem enquadrada por uma narrativa imagética, ao encontrar a
antropologia exprime confusão e criatividade através da fluidez das imagens
3
Ver texto de Andrea Barbosa neste livro.
PrefácioImagem e experiência
As imagens adquirem potência de mapas que orientam e engendram relações.
Mosaicos, montagem, colagem de imagens que propulsionam uma cartografia
dialética do mundo. As imagens, agora, como vivências e sobrevivências das
pessoas nas ruas, reconstroem imageticamente o espaço da cidade, das ruas
e de seus habitantes, situando-se numa nova configuração: “Aqui a cidade,
ela própria, se reconfigura como hipertexto que contém retratos e paisagens,
música e ruído, narrativas e performances em mosaico” (FERRAZ)4.
Uma das contribuições da coletânea, por fim, coloca de modo contundente o
problema da experiência da imagem: “Uma inquietação que perpassa todo esse
período e tem ganhado diferentes desdobramentos é o tropo “como abordar as
imagens?”. Pergunta de aparente simplicidade, mas que pode encerrar diferentes
respostas e algumas complexidades” (CUNHA)5. É, justamente, este questiona-
mento sobre as imagens que esta coletânea busca produzir ao formular potentes
respostas à complexidade de pensar as imagens sempre no plural.
4
Ver texto de Ana Lucia Ferrz neste livro.
5
Ver texto de Edgar Teodoro da Cunha neste livro.
1
Análise apresentada em “The Documentary Today: A Symposium”, Film in the Cities (Minneapolis)
10-12 de novembro de 1983. Publicado inicialmente em Wide Angle, v. 6, n. 2 (1984). Tradução:
Elisa Nazarian; revisão técnica: Rose Satiko Gitirana Hikiji.
2
Aqui se respeitou o uso de inicial minúscula conforme o original (N. T.).
Frame do filme Naked Spaces - Living is Round. 135 Mins. Cor. 1985. Dir.: Trinh T. Minh-Ha.
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n. 2009/52880-9 e
do projeto “Images and Sound Making: A Comparative and Collaborative Approach to Visual An-
thropology”, que contou com apoio da University of Victoria e da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo, processo FAPESP 2013/50222-0. Rose Satiko G. Hikiji e Sylvia Caiuby
Novaes são pesquisadoras do CNPq.
2
Sztutman (2004, p. 50) comenta depoimento de Rouch, em que afirma, aos 82 anos, a antropologia
como ofício e o cinema como “tarefa necessária”.
O que resulta desse cinema é a queda de “todo o jogo das oposições regradas
(confortáveis, falsas) pelo qual, desde o eixo inaugural Lumière-Méliès, eram
pensadas as categorias documentário, ficção, escrita, improvisação, naturali-
dade, artifício etc.” (FIESCHI, 2010, pp. 19-20).
Em seus primeiros filmes, Rouch registra ritos, costumes e técnicas dos povos
do Níger. Mais tarde, diria que tais cerimônias ou técnicas comportam já sua
própria mise en scène,5 daí seu interesse excepcional para o filme etnográfico.
A característica deste cinema rouchiano é sua constante invenção, que se dá no
desenrolar do filme, que acompanha o ritual; o roteiro só é fixado pela ordem
do cerimonial. Cinema que “não pode ser escrito previamente, tributário que
é do acontecimento, do instante, do lugar” (id., ibid., p. 22).6
Após alguns documentários7 ainda filiados a uma “forma relativamente clássica
de testemunho” (id., ibid., p. 25), já surge nos filmes dos anos 1950 “a evidên-
cia de uma poética” (id., ibid.). Perturbadora, em Os mestres loucos (1954-55),8
provocadora e reflexiva em Eu, um negro (1957-58), de matriz surrealista, que
3
Título, aliás, de um filme realizado por pesquisadores do Laboratório de Imagem e Som em Antro-
pologia (LISA-USP), que é um exercício reflexivo sobre a obra do autor: Jean Rouch, subvertendo
fronteiras (Ana Lúcia Ferraz, Edgar T. da Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman, 2000).
4
No original: “For me, as an ethnographer and filmmaker, there is almost no boundary between
documentary film and films of fiction. The cinema, the art of the double, is already a transition
from the real world to the imaginary world, and ethnography, the science of thought systems of
others, is a permanent crossing point from one conceptual universe to another: acrobatic gymnastics
where losing one’s footing is the least of the risks”.
5
Rouch (1968, p. 454, apud FIESCHI, 2010, p. 22). Mateus Araújo Silva chama a atenção para o
tratamento que Rouch dá aos ritos de possessão entre os Songhay e aos ritos funerários Dogon,
“tratados de modo a salientar sua dimensão teatral” (2010, p. 68).
6
Fieschi (2010) refere-se aqui aos filmes de Rouch realizados no início dos anos 1950, como Les
Fils de l’eau (1952/8),Yenendi, les hommes que font la pluie (1951).
7
Como Les Magiciens de Wanzerbé (1948-49).
8
Sobre este filme, ver Fieschi (2010, pp. 26-27), Gonçalves (2008) e Sztutman (2009), por exemplo.
9
Não há uma contagem definitiva dos filmes de Rouch. Esse número é citado por Maxime Schein-
feigel, em uma das primeiras publicações integrais sobre o autor, lançada em Paris em 2008.
10
Kelen Pessuto (2015), em seu relatório de qualificação para doutorado, chama a atenção para a
origem enigmática do termo etnoficção: apesar de sua associação à obra de Rouch, o termo não
foi criado pelo autor, mas teria sido utilizado para descrever alguns trabalhos do próprio Rouch e
de outros cineastas, como Luc de Heusch, por críticos de cinema. As fontes de Kelen são Sjöberg
(2009) e Henley (2010). Kelen chama a atenção ao trabalho de Stoller (1992) que classifica como
etnoficções, além das obras acima citadas, os filmes Petit à Petit (1969), Babatou, lês trois conseils
(1975) e Cocoricó, monsieur Poulet (1974).
Peter Loizos (1993) nota que Rouch sinaliza um rompimento com a repor-
tagem e o documentário ao trabalhar com personagens que improvisam. Diz
Rouch a respeito de Eu, um negro: “Sugeri que eles fizessem um filme no qual
pudessem desempenhar os seus próprios papéis, onde eles tivessem o direito
de fazer e dizer qualquer coisa” (1993, p. 50; trad. nossa11). Estratégia que,
segundo Loizos, foi absolutamente adequada para retratar, numa improvisação
projetiva, a vida de jovens migrantes do Níger que conseguiam trabalho oca-
sionalmente em Abidjã e sonhavam com uma vida melhor, com uma mulher,
uma casa e um carro.
Em A pirâmide humana, Rouch propõe a um grupo de jovens, brancos e negros,
que interpretem papéis de estudantes em uma escola de Abidjã. Não ficamos
sabendo se as posições que os personagens assumem (que envolvem relações
entre brancos e negros, marcadas por tensões e preconceitos) são as mesmas
que as pessoas que os interpretam afirmariam na “vida real”. A possibilidade de
agir como se fosse um outro permite que questões delicadas sejam tratadas
de forma mais livre, talvez mais perto da realidade. Gonçalves (2008, p. 117)
destaca uma reflexão do próprio Rouch em depoimento no filme Mosso mosso:
Jean Rouch comme si (1998), de Jean-André Fieschi:
[...] aprendi com os Dogon uma regra incrível, que se transformou na norma da
minha vida, que é “fazer de conta” como fazemos agora. “Faire comme si” “Fazer
de conta” é… “Fazer de conta” que o que dizemos é verdade… os Dogon contam
uma história que não aconteceu com eles, mas nas montanhas mandingas, há uns
mil anos talvez. Eles fazem de conta que aconteceu no país Dogon. Eles dizem:
“aqui se criou fulano, aqui desceu e morreu a raposa…”. Eles narram um mito que
nunca aconteceu lá, mas foi em outro lugar, mas eles “fazem de conta”, e “fazendo
de conta ficamos mais perto da realidade”.
Ana Lúcia Ferraz interpreta como jogo de papéis o que Rouch realiza em A
pirâmide humana, e que ele próprio nomeou como psicodrama: “O jeu de
roles, role playing ou psicodrama – modos de nomear a elaboração do duplo na
representação de papéis para distanciar-se da experiência vivida e assim poder
11
No original: “I suggested to them making a film in which they would play their own roles, where
they would have the right to do and say anything”.
12
Os grifos são do autor. No original: “ethnographic filmmaking, shared anthropology, reflexive, im-
provised filmmaking e improvised acting”.
13
No original: “There is no script for social and cultural life. People have to work it out as they go along”.
14
No original: “[...] life does not pick its way across a surface of a world where everything is fixed
and in its proper place, but it’s a movement through a world that is crescent”.
Fabrik funk15
A experiência das autoras deste artigo com a etnoficção concretiza-se com
a realização de Fabrik funk, um filme de 25 minutos, gravado em 2014 e
finalizado em 2015. Neste trabalho, pudemos experimentar de forma radical
a prática da etnoficção e da antropologia compartilhada. O cinema de Jean
Rouch inspira nosso projeto, desde os primeiros contatos com os protagonistas
do filme, alguns deles, parceiros em projetos audiovisuais desde 2005.16 Com
Daniel Hylario, artivista, cabeleireiro afro e morador de Cidade Tiradentes,
roteirizamos o filme e organizamos o dia a dia da produção. JC e Montanha –
realizadores de audiovisual retratados em Cinema de quebrada (2008) e hoje
sócios da Funk TV, uma das principais produtoras de clipes de funk em Cidade
Tiradentes – encenaram seus próprios papéis no filme, além de colaborar no
casting, indicando a MC Negaly para o papel principal.
Colaboração, criação coletiva, improvisação são alguns dos instrumentos co-
locados em ação em nossa etnoficção. O trabalho com atores que encenam
suas próprias vidas – ou algo muito próximo a elas – permite a expressão
de subjetividades, emoções, e de conhecimentos encorporados (embodied).17
15
Algumas das reflexões aqui desenvolvidas foram apresentadas originalmente no artigo “Fabriquer le
Funk à la Cidade Tiradentes, São Paulo: performance en ethnofiction”, na Culture-Kairós, Revue
d’Anthropologie des Pratiques Corporelles et des Arts Vivants (no prelo).
16
Rose Satiko realizou pesquisa com realizadores de audiovisual moradores nas periferias de São Paulo
entre 2005 e 2008, que resultou no filme Cinema de Quebrada (2008), do qual JC e o coletivo
Filmagens Periféricas, de Cidade Tiradentes, são protagonistas. Em 2009, conheceu Daniel Hylario,
que protagoniza e passa a compor a equipe dos filmes Lá do Leste (2010), A arte e a rua (2011),
co-dirigidos por Rose e Carol Caffé, e Fabrik funk (2015), realização das autoras do artigo.
17
Richard Schechner identifica na encorporação a “experiência como base do conhecimento nativo
que é compartilhado por meio da performance”, “epistemologias e práticas nativas que realizam
(enact) a unidade do sentir, pensar e fazer (2013, p. 39). Para Diana Taylor (2013, p. 10), as “prá-
ticas encorporadas (embodied practices) [...] oferecem um modo de conhecimento”.
18
Dentre eles, “Defina-se”, curta de 2002, selecionado para o Toronto Film Festival (2003) e para o
Tampere 36th Short Film Festival (2006).
19
As visualizações são hoje uma das principais fontes de renda da produtora, pois o YouTube as
remunera, principalmente quando atingem as cifras de milhares e milhões.
20
Sigla para Master of Ceremony, que, no universo do funk, corresponde ao músico que canta e, em
geral, compõe as canções. No funk praticado hoje em São Paulo, o MC em geral é acompanhado
apenas pelo DJ, que compõe as bases eletrônicas e as executa ao vivo nas apresentações.
21
Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident: j’assiste
à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet: la symphonie fait son
remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène. Rimbaud, Lettres du voyant, 1871.
“A realidade de um sonho”
Ao longo de todo o processo de realização do filme Fabrik funk, nós nos
perguntamos sobre os desafios de “criar uma etnoficção”, do que isto poderia
significar para a antropologia, tanto no nível teórico-metodológico como no
ontológico. Por exemplo, nos questionamos desde o início da realização do
filme sobre os temas da criatividade e da imaginação em relação aos modos
de representação. É evidente que a pesquisa implica um processo de criação,
mas esta é ao mesmo tempo regida por normas associadas à nossa disciplina.
Entretanto, e apesar do trabalho de Jean Rouch, assumir a criação de uma
ficção no contexto da pesquisa continua a ser algo relativamente incomum
em antropologia. Apenas alguns antropólogos se “arriscaram” a se aventurar
na ficção por meio da escrita. Um dos raros exemplos é Alejo Carpentier,
antropólogo cubano apaixonado por música, que escreveu, entre outros, o
romance Os passos perdidos, publicado em espanhol no início dos anos 1950.22
O livro conta a viagem de um músico sul-americano em busca de instrumentos
considerados “primitivos”. Sem se distanciar do tema da música, o romance
de Carpentier descreve detalhadamente os instrumentos e seus sons. Lendo o
romance, temos a impressão de que a ficção permite ao autor estabelecer uma
relação com os instrumentos pelos sentidos, de um ponto de vista reflexivo
e artístico. Essa abordagem não é utilizada por Carpentier em seus textos
“científicos” ou descritivos.23 Em uma nota no final de seu primeiro romance
intitulado Jaguar: A Story of Africans in America (1999), o antropólogo Paul
Stoller nos conta que, sem seus 33 anos de pesquisas etnográficas no Níger,
esse romance não seria jamais realizado. Ao escrever Jaguar, Stoller (1999,
p. 212) deseja amplificar a história dramática, abordando os temas do amor,
do arrependimento e da obrigação social, que, segundo ele, se prestam bem à
ficção. No prefácio de seu segundo romance, Gallery Bundu (2005), Stoller
anuncia que seu livro é uma obra de ficção. Os personagens representam um
22
Versão original intitulada Los pasos perdidos, publicada em Cuba, em 1953.
23
Por exemplo, ver La música en Cuba (1946).
24
Ver o artigo “Yellow Marigolds for Ochun: An Experiment in Feminist Ethnographic Fiction”,
escrito por Ruth Behar (2001).
Bibliografia
BEHAR, Ruth. “Yellow Marigolds for Ochun: An Experiment in Feminist Ethnographic Fiction”.
International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 14, n. 2, pp. 107-16. 2001.
BOUDREAULT-FOURNIER & HIKIJI & NOVAES. “Fabriquer le Funk à la Cidade Tiradentes, São
Paulo: performance en ethnofiction”. In: L’Ethnologie, no prelo.
CAIXETA & GUIMARÃES. “Pela distinção entre ficção e documentário, provisoriamente”. In:
COMMOLI, Jean-Louis. Ver e Poder – a inocência perdida: cinema, televisão ficção, documentário.
Editora UFMG: Belo Horizonte, 2008.
CALZADILLA, Fernando & MARCUS, George. “Artists in the Field: Between Art and Anthropology”.
Dans Contemporary Art and Anthropology. SCHNEIDER, Arnd & WRIGH, Christophe (orgs.),
pp. 95-116. Oxford: Berg, 2006.
CANDIDO, Antonio & ROSENFELD, Anatol et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
1968.
CANDIDO, Antonio. “A personagem do romance”. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspec-
tiva, 1968.
CARPENTIER, Alejo. Le Partage des eaux. Paris: Gallimard, 1956.
_____. La música en Cuba [1946]. Havana: Colección Popular, 1981.
CLIFFORD, James & MARCUS, George E. (orgs.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Eth-
nography. Berkeley: University of California Press, 1986.
COMMOLI, Jean-Louis. Ver e Poder – a inocência perdida: cinema, televisão ficção, documentário.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
FERRAZ, Ana Lúcia M. C. “Dramaturgia da vida social e a dimensão patética da pesquisa antropoló-
gica”. In: DAWSEY et al. (orgs.). Antropologia e performance: ensaios napedra. São Paulo: Terceiro
Nome, 2013.
FIESCHI, Jean-André. “Derivas da ficção: notas sobre o cinema de Jean Rouch”. In: SILVA, Mateus
A. Jean Rouch 2009: retrospectivas e colóquios no Brasil. Belo Horizonte: Balafon, 2010.
Filmografia
A arte e a rua. Carolina Caffé e Rose Satiko Hikiji. 2011.
A pirâmide humana (La Pyramide humaine). Jean Rouch. 1959-60.
Babatou, lês trois conseils. Jean Rouch. 1975.
Cinema de quebrada. Rose Satiko Gitirana Hikiji. 2008.
Cocoricó, monsieur Poulet. Jean Rouch. 1974.
Defina-se. Kelly Regina Alvez, Claúdio N. de Souza e Daniel M. Hylario. Oficinas Kinoforum. 2002.
Eu, um negro (Moi un Noir). Jean Rouch. 1957-58.
Jaguar. Jean Rouch. 1954-67.
Jean Rouch, subvertendo fronteiras. Ana Lúcia Ferraz, Edgar T. da Cunha, Paula Morgado e Renato
Sztutman. 2000.
Lá do Leste. Carolina Caffé e Rose Satiko Hikiji. 2010.
Les Fils de l’eau. Jean Rouch. 1952-58
Les Magiciens de Wanzerbé. Jean Rouch. 1948-49.
Mosso mosso: Jean Rouch comme si. Jean-André Fieschi. 1998.
Os mestres loucos (Les maitres fous). Jean Rouch. 1954-55.
Petit à Petit. Jean Rouch. 1969.
Transfiction. Johannes Sjöberg. 2007.
Yenendi, les hommes que font la pluie. Jean Rouch. 1951.
A verdade velada
A fim de atribuir significado aos eventos que eles retratam e ao mesmo tempo
envolver o público, quase todos os documentários etnográficos, em comum
com quase todos os documentários em geral, oferecem algum tipo de estrutura
narrativa que pode ser identificada desde o início da exibição e seguida até o
fim. Se um filme não tem uma estrutura narrativa, ou se ele é muito difícil de
interpretar, há então o risco de que o filme vá se deparar com uma sequência
de vinhetas incompreensíveis e o público em breve ficará desinteressado. Antes
que isso aconteça, há evidências consideráveis que sugerem que o espectador
vai tentar construir uma narrativa, mesmo que o cineasta não tenha apresen-
tado uma: desde as famosas experiências de Pudovkin e Kuleshov na década
de 1920, ficou estabelecido que o público tende a narrativizar uma série de
imagens, mesmo quando não havia esta intenção. Entretanto, só se pode con-
1
Este ensaio é uma grande reformulação de um artigo publicado pela primeira vez em inglês em
2006 (HENLEY, 2006). Outras versões desse artigo apareceram no periódico francês L’Homme
(HENLEY, 2011) e no periódico chinês Thinking (HENLEY, 2013). Tradução: Isabel Novaes de
Medeiros; revisão técnica: Sylvia Caiuby Novaes.
2
No mais famoso dos experimentos de Pudovkin e Kuleshov um close-up de um ator com uma ex-
pressão impassível imutável foi justaposto sequencialmente a três imagens diferentes: uma tigela
de sopa, uma mulher em um caixão e uma menina brincando com um ursinho de pelúcia. Não só
o público percebeu que o ator estava olhando para as coisas nas cenas adjacentes, mas eles acredi-
tavam que ele havia demonstrado grande habilidade como ator em ajustar sua expressão facial em
resposta ao assunto de cada filmagem. (BARBASH & TAYLOR, 1997, pp. 372-73).
3
Ver Barthes (1977).
4
Ver Henley (2009, pp. 270-74) para uma discussão mais aprofundada da estrutura narrativa deste
filme.
5
A fórmula proposta pelo narratologista russo Tzvetan Todorov tem cinco estágios: equilíbrio, ruptura,
reconhecimento da ruptura, tentativa de reparar o rompimento, restabelecimento do equilíbrio.
Neste esquema, a terceira fase pode constituir como uma inversão do primeiro e quinto estágio
e a quarta uma inversão da segunda fase. Há também uma circularidade implícita em que a fase
final representa um retorno para o estado da primeira fase. Edward Branigan, por sua vez, propôs
um “esquema” de sete fases: (1) introdução de cenário e personagens (2) explicação de um estado
das coisas; (3) evento de iniciação; (4) resposta emocional ou declaração de um objetivo por um
protagonista; (5) ações complicadoras; (6) resultado; (7) reações ao resultado (ver Branigan (1992,
pp. 4-5,14)).
6
Ver Nichols (1992).
7
Ver Crawford (1992, pp. 130-31) para a análise narratológica do célebre travelogue, Grass (1925)
que mostra que esse filme está em conformidade muito próxima da fórmula narrativa clássica.
8
Ver MacBean (1983).
9
Nichols é um grande admirador do trabalho de Trinh T. MinHa, cujos filmes envolvem a ruptura
sistemática de convenções documentais, incluindo a fórmula narrativa clássica. Talvez o mais conhe-
cido de seus filmes, que poderia ser amplamente interpretado como etnográfico, é Reassemblage
(1982). Mas, embora este filme seja sem dúvida interessante na medida em que destaca a natureza
de algumas das convenções que sustentam a prática do documentário, ele consegue comunicar muito
pouco sobre a vida dos indivíduos senegaleses do filme. A respeito disso, concordo totalmente com
Peter Crawford quando ele sugere que os indivíduos não são mais do que “reféns simbólicos” da
crítica do que ela considera ser o personagem colonial da representação do documentário ocidental
(CRAWFORD, 1992, p. 125).
Histórias e tramas
Um dos meios mais eficazes de aumentar o poder de uma narrativa para envol-
ver o público é reforçar as ligações entre os seus diversos componentes. Aqui é
útil a referência a um outro conceito muito citado na literatura narratológica,
ou seja, a distinção entre uma “história” e um “enredo”. Recentes teóricos
da narrativa tem uma gama de diferentes perspectivas sobre como deve ser
estabelecida essa distinção, mas a visão mais convencional é que, enquanto
uma “história” descreve o que aconteceu, um “enredo” descreve como isso
aconteceu. Assim, enquanto uma “história” meramente detalha uma série de
episódios ou eventos, um “enredo” postula uma conexão entre eles, seja ela
motivacional ou causal e, portanto, produz um tipo mais envolvente de nar-
rativa. Se essa trama é complexa, envolvendo reversões de fortuna ou trilhas
falsas, que introduzem drama e suspense, então ela pode se tornar ainda mais
atraente para o público. É por essa razão que no filme típico de ficção ocidental,
a progressão narrativa de uma situação inicial para a conclusão final geralmente
envolve muitas reviravoltas ao longo do caminho, mesmo que ainda atinja algum
tipo de clímax e resolução, pouco antes do final do filme.10
Qualquer evento ou série de eventos que são estruturados de alguma forma,
mas cujo resultado permanece incerto, se presta bem a esse tipo de trama no
âmbito de uma narrativa de documentário. Esta foi a fórmula implícita na
chamada “estrutura de crise” subjacente aos filmes dos diretores do cinema
direto nos anos 60 e 70, que construíram seus filmes em torno de tais eventos
como uma eleição, um julgamento por assassinato e uma crise política. Isso
também explica por que competições de todos os tipos – sejam elas espor-
tivas, concursos de soletração ou exibição de cães – são tão frequentemente
10
Em seu famoso texto, Aspects of the Novel, o escritor britânico E. M. Forster contrastou as de-
clarações “O rei morreu e a rainha morreu” e “O rei morreu e, em seguida, a rainha morreu de
tristeza”. A primeira, ele sugere, é uma mera “história”, enquanto a segunda é um “enredo”. De
acordo com Arthur Asa Berger, Aristóteles especificamente criticou tramas episódicas nas quais
episódios eram seguidos um do outro “sem sequência provável ou necessária” e diferenciava entre
enredos simples e complexos, sendo estes últimos superiores e envolvendo reversões de fortuna
que foram reconhecidas e postas em prática pelos personagens (BERGER, 1997, p. 22).
11
Sobre “estrutura de crise” utilizada pelo grupo do Cinema Direto, ver Mamber (1974, pp. 115-40).
Cronologias fictícias
Nem todos os temas etnográficos ou tópicos têm uma narrativa intrínseca que
possa ser tão facilmente transposta para uma narrativa cinematográfica como é
o caso de rituais, processos técnicos e viagens. De um ponto de vista narrativo,
um desafio bem mais exigente é apresentado quando se procura fazer um filme
sobre um determinado período na vida de uma comunidade, que envolve uma
série diversificada de eventos que, de alguma forma, tem que ser consolidados
em uma única narrativa linear. Filmes deste tipo são frequentemente ordena-
dos numa base temática, com material de filmagem em diferentes momentos
e diferentes lugares justapostos, a fim de demonstrar a sua relevância um para
o outro. Mas este material muitas vezes é novamente reorganizado na base do
que se poderia chamar de uma “cronologia fictícia”, isto é, uma cronologia que
é uma invenção do cineasta, mas que é modelada por uma cronologia natural.
Além disso, esta cronologia fictícia é, em si, estruturada de tal maneira que,
geralmente se conforma, pelo menos em algum grau, à fórmula narrativa clássica.
Desta forma, o cineasta pode ter o melhor dos dois mundos. Isso pode dar
coerência temática à narrativa e ao mesmo tempo envolver o público por meio
de uma cronologia fictícia que cumpre a função narrativa de moldar e fazer
progredir a ação. Estas intervenções cronológicas variam consideravelmente
em grau e extensão nos cânones do filme etnográfico, de ajustes sutis a se-
quências temporais reais, até a fabricação direta de cronologias sem relação
com qualquer sequência temporal que tenha sido registrada no mundo real.
Filmes deste tipo, obviamente, levantam questões epistemológicas mais sérias
do que aqueles que são baseados em não mais do que a elaboração de narra-
tivas intrínsecas. Eu voltarei a estas questões depois, mas primeiro devemos
examinar alguns casos reais.
12
Johannes Sjöberg depois foi fazer Transfiction (2007), um filme sobre transexuais que vivem em
São Paulo, provavelmente mais conhecido pelos leitores brasileiros.
13
Winston atribui particular importância na história do documentário para a estrutura narrativa de
Nanook, propondo que, quando adotamos a perspectiva de Todorov (considerando narrativa como
um processo de transformação, onde o desequilíbrio causado pelo inverno é restabelecido quando
Nanook encontra abrigo), ou a de Barthes (considerando narrativa como dar respostas a uma série
de perguntas) ou quando pensamos na narrativa em termos da cadeia sintagmática de Metz, é a vida
cotidiana que pela primeira vez testemunhamos de forma narrativizada neste filme (WINSTON,
1995, pp. 101-2).
14
Editores de filmes às vezes se referem a dispositivos de enquadramento deste tipo como um
“aparador de livro”, uma alusão aos conjuntos geminados de pesos tradicionalmente utilizados para
conter uma fileira de livros em uma prateleira, com um peso em cada extremidade.
15
Ver Marshall (1993, pp. 35-36).
16
Ver Morin (2003) e também Henley (2009, pp. 145-175) para uma discussão mais extensa de
Chronicle of a Summer.
17
Ver Henley (2007) para uma discussão mais extensa da estrutura narrativa deste filme.
Temas e variações
Todos os exemplos de cronologia fictícia considerados acima possuem uma
forte qualidade linear, embora alguns deles também apresentem um certo
elemento de circularidade no sentido de que a narrativa retorna de alguma
forma ao início, quer através do progresso da narrativa em si, quer por meio
de um “mecanismo de enquadramento”.
No entanto, estruturas narrativas documentais não precisam ser sempre tão
fortemente lineares, como Toni de Bromhead mostrou em sua monografia
sobre este assunto. Neste trabalho, ela contrasta filmes com uma linearidade
pronunciada, como The Wedding Camels, com aqueles que têm uma estrutura
mais episódica. Como exemplo desta última, ela cita, entre outros, o filme
de Fred Wiseman Hospital (1969), que em comum com muitos dos seus ou-
tros filmes, consiste de uma série de episódios dispostos sobre um princípio
tema-com-variações, com pouca ou nenhuma continuidade cronológica entre
eles. Entre esses dois polos, De Bromhead identifica dois outros tipos: o road
movie e o diary film. Estes ela descreve como “híbridos”, pois embora eles
consistam tipicamente de uma série de episódios, estes são ordenados den-
tro de um princípio linear, espacial e temporal no primeiro caso, puramente
temporal no segundo caso.19
Todas estas formas mais episódicas merecem maior exploração por cineastas
etnográficos. A forma tema-com-variações é particularmente apropriada
quando o material bruto não apresenta quaisquer personagens dominantes ou
eventos em desenvolvimento que poderiam fornecer a espinha dorsal de uma
18
Isso não é um exemplo isolado na obra de David MacDougall. Seu filme mais recente no momento
em que escrevo, Under the Palace Wall, lançado em 2014, apresenta uma série de cenas da vida
na aldeia de Delwara no sul de Rajastão, presumivelmente filmado durante um período de várias
semanas, como se estivessem ocorrendo ao longo de um único dia.
19
Ver De Bromhead (1996). Este trabalho representa uma exceção à regra geral de que os cineastas
etnográficos tendem a não discutir aspectos de estrutura narrativa (um ponto em que ela se faz de
documentarista, no geral, ver p.117). Embora o escopo do livro seja sobre a estrutura narrativa em
todos os tipos de documentário, ela mesma tem um doutorado em antropologia social e muitos de
seus exemplos são retirados do cânone do filme etnográfico.
20
Ver Winston (1995, pp. 156-57) e De Bromhead (1996, p. 77). Melissa Llewelyn-Davies (co-
municação pessoal) relata que, embora ela tenha concebido seu Diário como sendo basicamente
episódico, no sentido de que a ligação entre as várias partes foi geralmente destinada a ser não mais
do que temporal, ela descobriu que muitos espectadores viram o filme como sendo principalmente
um veículo para, em uma forma altamente linear, seguir o andamento de um processo judicial no
qual foram envolvidos vários dos personagens.
A sequência preliminar
Outro dispositivo narrativo que rompe com a cronologia em tempo real e que
é muito utilizado por cineastas etnográficos é o que se poderia chamar de uma
“sequência preliminar”, que é uma sequência que é colocada logo antes ou in-
tercalada com o título principal de um filme. Por vezes dizem que a sequência
preliminar teve origem na prática de televisão, onde é conhecida como um “gan-
cho” e foi desenvolvida como uma forma de manter a atenção de telespectadores
que não tinham ligado a televisão para assistir a um programa específico, mas
tinham simplesmente ficado ligados no programa anterior. Como este nome
sugere, o “gancho” deveria conter algum material particularmente dramático,
21
Ver Henley (2007).
22
Ver por exemplo White (1973).
23
Sobre paleontologia, ver Landau (1993) e sobre sociologia, Van Maanen (1988).
24
Ver, dentre muitas possíveis referências, Marcus e Cushman (1982), Bruner (1986), Geertz (1988),
Hammersley e Atkinson (2007).
25
Aqueles que não estão familiarizados com os procedimentos de produção de filmes são muitas vezes
surpreendidos quando descobrem o quanto as filmagens acabam na proverbial “sala de edição”.
Na era dezesseis milímetros, quando a película cinematográfica era muito cara, alguns cineastas
etnográficos trabalharam na proporção de 2:1, ou seja, poderiam usar duas horas de captação para
cortar um filme de uma hora, eliminando cinquenta por cento do seu material. No entanto, mesmo
na era dezesseis milímetros, a maioria dos cineastas etnográficos trabalhava em uma proporção muito
maior. Eu estimaria que 6:1 foi aproximadamente a norma, resultando na eliminação de mais de
oitenta por cento do material bruto. Agora que estamos na era de fita digital barata e até mesmo
de discos rígidos, muitos cineastas etnográficos trabalham em proporções que são novamente muito
elevadas, com proporções de 30:1 sendo comum, o que implica a eliminação de 97 por cento do
material bruto.
A ser continuado…
Muitos escritores de texto etnográfico, se não a maioria, provavelmente agora
aceitam que suas publicações são obras de literatura, e, como tal, necessaria-
mente obedecem a certas convenções narrativas. Já há tempos chegou a hora
de reconhecermos, nós que fazemos filmes etnográficos, que devemos aceitar o
fato de que fazer filme também implica certas convenções narrativas. Cineastas
etnográficos tendem a não pensar sobre elas de uma forma autoconsciente, mas
fazendo-o ou não, estamos no entanto de fato envolvidos com elas cada vez que
Bibliografia
BARBASH, Ilisa & TAYLOR, Lucien. Cross-Cultural Filmmaking: A Handbook for Making Documen-
tary and Ethnographic Films and Videos. Berkeley: University of California Press, 1997.
BARTHES, Roland. “The Death of the Author”. In: HEATH, Stephen (trad.; org.). Roland Barthes,
Image Music Text. Londres: Fontana, 1977.
BERGER, Arthur Asa. Narratives in Popular Culture, Media, and Everyday Life. Nova York: Sage, 1997.
BRANIGAN, Edward. Narrative Comprehension and Film. Londres/Nova York: Routledge, 1992.
BRUNER, Edward M. Ethnography as Narrative. In: TURNER, Victor W. & BRUNER, Edward M.
(orgs.). The Anthropology of Experience. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 1986.
CRAWFORD, Peter. “Grass: The Visual Narrativity of Pastoral Nomadism”. In: CRAWFORD, Peter
& SIMONSEN, Jan Ketil (orgs.). Ethnographic Film Aesthetics and Narrative Traditions. Aarhus:
Intervention, 1992.
DE BROMHEAD, Toni. Looking Two Ways: Documentary Film’s Relationship with Reality and Cinema.
Højbjerg: Intervention, 1996.
GEERTZ, Clifford. Works and Lives: The Anthropologist as Author. Stanford: Stanford University
Press, 1988.
HAMMERSLEY, Martyn & ATKINSON, Paul. Ethnography: Principles in Practice. Londres/Nova
York: Routledge, 2007.
HENLEY, Paul. “Narratives: The Guilty Secret of Ethnographic Documentary?”. In: POSTMA, Metje &
CRAWFORD, Peter Ian (orgs.). Reflecting Visual Ethnography: using the camera in anthropological
research. Højbjerg/Leiden: Intervention/CNWS, 2006.
Filmografia
Todos os filmes coloridos, exceto quando indicado p&b.
Ax Fight, The. Timothy Asch & Napoleon Chagnon. 1975. 30 min.
Chronique d’un été). Jean Rouch & Edgar Morin, 1960. 90min. p&b.
Cuyagua: Devil Dancers. Paul Henley. 2011. 41 min. (Realizado originalmente em 1986 em versão
estendida)
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n. 2009/52880-9.
2
Que resultou na coletânea O índio: ontem, hoje e amanhã (TASSARA, E. (org.) & BISILLIAT, M.
(coord.), 1991).
3
Em 2010, a população contava com um total de 896 mil indígenas, distribuídos em 4.800 aldeias
dentro ou fora dos limites de 673 terras indígenas, correspondendo a 448 municípios em 24 estados
brasileiros. 37,4 por cento da população indígena na região Norte, 25,5 por cento no Nordeste,
dezesseis por cento no Centro-Oeste e 21,1 por cento nas regiões Sul-Sudeste. Quinhentos e dois
mil vivem em área rural e toda a população não chega a 0,50% da população total do país, conforme
dados do IBGE, disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf>
e <http://www.brasil.gov.br/governo/2015/04/populacao-indigena-no-brasil-e-de-896-9-mil>.
Acesso em dez. 2015.
4
A mostra Os Brasis indígenas foi realizada no ano 2000, entre 7 e 17 de agosto no CINUSP, na
USP, São Paulo e de 15 a 22 de junho na sala Unibanco, em São Paulo: <http://www.mnemocine.
com.br/osbrasisindigenas/>. Acesso em dez. 2015.
Mas o que leva os povos indígenas a se sentirem tão à vontade atrás e à frente
das câmeras? O que os motiva a se tornarem cineastas? Como já anunciavam
as primeiras reflexões (GALLOIS & CARELLI, 1995a, 1995b), os intercâm-
bios culturais motivados pela introdução do vídeo evidenciam que a interação
entre os grupos se processa menos em função de uma demanda de “resgate”
de tradições, majoritariamente reproduzida nos projetos governamentais, mas,
acima de tudo, de uma política de enfrentamento mais eficiente com relação
aos mundos dos “Brancos”. Isso implica tanto a ativação (e não resgate) de
manifestações culturais “adormecidas”, presentes nos discursos nativos, como
também a necessidade do registro de expressões culturais e saberes dos mais
velhos, com o objetivo de que os mesmos não sejam perdidos ou esquecidos.
Mas serão os filmes apenas instrumentos culturais e políticos? Existiria um “ci-
nema indígena brasileiro” ou, para quem esta pergunta teria sentido ontológico?
5
Nesse tipo de narrativa fílmica destacamos: Segredos da mata (Dominique Gallois & Vicent Carelli.
1998. 37 min.); Moyngo, o sonho de Maragareum (Natuyu, Karané & Kumaré Ikpeng. 2002. 44
min.); Nguné Elu, o dia em que a lua menstruou (Takumã Kuikuro & Maricá Kuikur. 2004. 28min.),
e O cheiro de pequi (Coletivo Kuikuro. 2006. 36min).
6
“Mas afinal, existe uma antropologia visual?” In: II Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Rio
de Janeiro, 1994.
7
Disponível em: <http://www.programadeindio.org/index.php?s=pi&n=pi_historia>. Acesso em
dez. 2015.
8
Disponível em: <http://www.vimeo.com/videonasaldeias e a partir do link: <http://www.video-
nasaldeias.org.br/2009/indios_no_brasil.php.> Acesso em dez. 2015.
9
Taru Andé: o encontro do céu com a terra foi uma série feita em treze episódios produzidos pela TV
Futura (2007) que retrata a vida, as origens e os costumes de doze diferentes etnias: Krenak, Pataxó,
Maxacalí e Xacriabá, de Minas Gerais; Ashaninka, Yawanawa e Kaxinawa, do Acre; Guarani, de
São Paulo; Suruí e Gavião, de Rondônia; Xavante, do Mato Grosso; e Terena, do Mato Grosso do
Sul. Outras séries, como essa, emergiram com o objetivo de explicar para o mundo de fora como
é o universo indígena.
10
Citamos como exemplo o segundo encontro de xamãs Yanomami, integralmente registrado pelo
cinegrafista Yanomami Morzaniel Iramari que editará um vídeo sobre o evento no quadro das co-
memorações dos vinte anos da Terra Indígena Yanomami. Inicialmente o filme foi produzido pela
Hutukara para ser divulgado em todas regiões da área Yanomami e colocado a disposição do público
no site da Hutukara: <http://www.youtube.com/watch?v=1sfy3VxQ2Ak>. Acesso em dez. 2015.
11
Citamos o líder Davi Kopenawa: <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=181147&id_
secao=8>. Acesso em dez. 2015.
12
Criado pelo Ministério da Cultura, vale mencionar o Prêmio Culturas Indígenas e o programa Cultura
Viva, que subsidiou a instalação dos Pontos de Cultura Indígena. O Prêmio Culturas Indígenas foi
criado pelo MinC em 2006, em parceria com organizações da sociedade civil e com o Colegiado
Setorial de Culturas Indígenas. Com a premiação, já foram reconhecidas 276 iniciativas de fortaleci-
mento cultural dos povos indígenas. Em 2012 ocorreu a quarta e última edição do Prêmio <http://
semanaculturaviva.cultura.gov.br/linhadotempo/editais_premios.html>. Acesso em dez. 2015. Em
2015 foi aberto o edital Pontos de Cultura Indígena, uma parceria da Secretaria da Diversidade
Cultural com a Secretaria de Audiovisual do MinC, que prevê premiar setenta iniciativas culturais
e vinte projetos específicos da área de audiovisual nas comunidades indígenas.
13
Cabe destacar o trabalho da ASCURI (Associação dos Realizadores Indígenas do Mato Grosso
do Sul), que desenvolveu trabalhos com apoio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento), utilizando o audiovisual em trabalhos de construção de fornos agroecológicos e
segurança alimentar, em parceria com o projeto GATI (Gestão Ambiental e Territorial Indígena) da
FUNAI. No próprio discurso dos membros da ASCURI, o audiovisual é considerado uma ferramenta
para a conquista de objetivos mais amplos na luta política pelo reconhecimento cultural e territorial
dos povos do Mato Grosso do Sul. Gilmar Galache, um dos coordenadores indígenas Terena da
ASCURI, realizou curso de especialização na Bolívia, na Escuela de Cine y Artes Audiovisuales,
país em que o audiovisual indígena tem uma forte história no contexto das lutas políticas nacionais.
14
No Tempo das chuvas, filmado entre os Ashaninka (povo do extremo oeste amazônico, situado no
Acre), abordam-se atividades corriqueiras numa determinada época do ano – numa grande faixa
do Brasil há duas estações bem definidas, o verão, marcado pela seca, e o o inverno, marcado pelas
chuvas.
15
Bicicletas de Nhanderu (2011), do coletivo Mbya-Guarani, é um exemplo de filme que mescla
cotidiano, performance e memória, revelando a intimidade dos realizadores com os personagens,
o velho karaí e os meninos Neneco e Palermo.
Migliorin (2013) irá nos mostrar como, motivadas pelas tecnologias cine-
matográficas, “as festas retornam ao cinema”, assim como tudo aquilo que
está relacionado à tradição da festa Jamunkumalu – hipermulheres na língua
Kuikuro. Para que esta se realize são necessárias condições materiais e graças
ao cinema ela pode ser ativada.
Essas passagens [do filme], idas e vindas entre a vida inventada e a vida vivida, dão
o tom do filme e serão decisivas para chegarmos à festa – paradigma dessa mistura
entre performance e cotidiano, entre memória e fabulação, cosmologia a atualidade.
A festa não é algo que existe e será documentada, mas algo que com o filme irá
se produzir. Sucedem-se sequências em que os personagens ensaiam, lembram, se
corrigem. (MIGLIORIN, 2013, p. 282)
16
Em um trecho do filme Teko Rexai: saúde Guarani Mbya, dirigido por Nadja Marin com a antro-
póloga Adriana Calabi e em colaboração com índios Guarani Mbya, o pajé da aldeia Rio Silveira,
SP, conta o caso da criança que adoeceu porque foi lhe dado o nome “errado” durante o batismo,
vindo ela somente a melhorar depois que o nome recebido em sonho foi atribuído a ela correta-
mente. Em outro trecho, nesse mesmo filme, um rapaz descreve como quase ficou louco por ter
comido carne na cidade na época em que seu filho era recém-nascido, desrespeitando a restrição
alimentar aos quais pais com filhos pequenos devem se submeter. Segundo depoimento da anciã
Doralice, no mesmo filme, o ser-doença mbae axy dja que cuida das cachoeiras e dos rios seria o
responsável por trazer as enfermidades.
17
Ver Viveiros de Castro (2002).
18
Oficinas ministradas por Nadja Marin e Paula Morgado: Oficina de Audiovisual do Projeto Realités
Autochtones entre os índios Guarani Mbya do litoral sul do Rio de Janeiro, 2012. Nadja Marin:
Oficinas de audiovisual e criação do coletivo Cinta Larga de Cinema, 2013 e 2014. Oficinas de
Audiovisual do Projeto Videogame Huni Kuin: os caminhos da Jibóia, 2014 e 2015. Paula Morgado:
Projeto Wayanas e Aparais: Tecendo o Seu Tempo. Filmografia de Nadja Marin: Napëpë (2004),
Palmito, crianças! (2006), Tenondeí: um futuro bonito (2008), Teko Rexai: saúde Guarani Mbya
(2010), Saúde, educação e interculturalidade: diálogos com os povos indígenas do Vale do Javari
para a prevenção das DSTs e hepatites virais (2011), Festa do Porcão (2014), Os caminhos da Jiboia
(2015). Filmografia de Paula Morgado: Do São Francisco ao Pinheiros (2007).
19
Destacamos o Prêmio Especial do Júri e de Melhor Montagem no festival de Gramado (2011) e
sua participação na mostra Native: A Journey Into Indigenous Cinema no 65o Festival Internacional
de Cinema de Berlim em 2015 (com três outros filmes do projeto Vídeo nas Aldeias: Obrigado
irmão, de Divino Tserewahú (1998) e Já me transformei em imagem, de Zezinho Yube (2008), O
mestre e o divino, de Tiago Campos Torres (2013). Cabe notar que este último retrata o cotidiano
na aldeia e o registro fílmico realizado há anos por DivinoTserawú, com quem em 2009 dirigiu o
filme Pi’õnhitsi mulheres Xavantes sem nome (2009).
20
Nos últimos anos tem crescido o número de festivais e mostras audiovisuais dedicadas exclusiva-
mente ao cinema indígena, tanto no Brasil como no restante da América Latina. Esses espaços de
exibição e discussão dos filmes produzidos por realizadores indígenas permitiu a criação de uma
rede voltada para o debate sobre o ensino do audiovisual nas aldeias e as demandas políticas espe-
cíficas a esse campo. Nesse sentido foram criados recentemente durante o 45o Festival de Inverno
da UFMG em Diamantina o CAIB - Coletivo Audiovisual Indígena Brasileiro e uma carta assinada
pelos coletivos indígenas e representantes endereçada ao Estado Brasileiro, na qual reivindicam
políticas específicas para a exibição e distribuição de suas produções, incluindo a abertura de janelas
com conteúdos indígenas nas TVs públicas brasileiras.
21
Os exemplos de filmes nesse sentido são diversos. O vídeo Bimi: mestra de kenes (2009), de Zezinho
Yube, mostra como os kenes – desenhos e grafismos utilizados em roupas e ornamentos – pelos
Kaxinawá – não são simplesmente aprendidos pelas mulheres, as quais devem ter uma preparação
com plantas para conseguirem visualizar os desenhos e assim aprenderem a partir dessas visões.
Outros exemplos nesse sentido são os filmes O cheiro de pequi (2010), da etnia Kuikuro, A histó-
ria do monstro Khatipy (2009), dos Kisedjê, Moyngo, o sonho de Maragareum (2000), dos índios
Ikpeng, entre outros.
22
Ainda no Brasil rural a manutenção de aparelhos de informática e o acesso à internet é algo incons-
tante e por vezes inexistente.
23
1o Simpósio Indígena sobre Usos da Internet no Brasil”, organizado entre 24 e 26 de novembro
de 2011na Universidade de São Paulo, que reuniu 24 membros indígenas, suscitou uma discussão
aclamada sobre a difusão de saberes ditos “tradicionais” no ciberespaço. Ver: <http://www.usp.
br/nhii/simposio/>. Acesso em dez. 2015.
24
Essa questão é desenvolvida por Paula Morgado em outro texto, em que ela analisa especificamente
o conteúdo de algumas web-páginas do povo indígena Innu. “Les Innu sur l’internet: représentation,
identité et enjeux politiques” (2010).
25
Ver levantamento com a lista dos sites, blogs e portais sobre a temática indígena brasileiros no
endereço: <www.etnolhar.wordpress.com/web-paginas>. Acesso em dez. 2015.
Bibliografia
BAUDRILLARD, Jean. “Simulacra and Simulations”. In: LODGE, David & WOOD, Nigel (orgs.).
Modern Literary Theory and Criticism: A Reader. Harlow/Nova York: Longman, 1988.
BELISÁRIO, Bernard. As hipermulheres: cinema e ritual entre mulheres, homens e espíritos. Dissertação
de Mestrado. PPGCOM/UFMG, 2014.
_____. “Ressonâncias entre cinema, cantos e corpos em um ritual do Alto Xingu”. Manuscrito, 2015.
BRASIL, André. “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”. Revista Devires: Cinema e Huma-
nidades. Universidade Federal de Minas Gerais, n. 9, pp. 1: 98-117. 2012.
CAIUBY NOVAES, Sylvia. “Quando os cineastas são índios”. Sinopse Revista de Cinema, São Paulo,
v. 2, pp. 88-90. 2000.
CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. “Cineastas indígenas e pensamento selvagem”. Devires, v. 5, n. 2,
pp. 98-125. 2008.
DEMARCHI, André. & MADI DIAS, Diego. “A imagem cronicamente imperfeita: o corpo e a câmera
entre os Kayapo”. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 7, n. 2, pp. 147-171. jul./dez., 2013.
FAUSTO, Carlos. “No registro da cultura: o cheiro dos brancos e o cinema dos índios”. In: Vídeo nas
Aldeias: 25 anos. CARVALHO, Ana et al. (orgs.). Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2010.
FROTA, Mônica. “Taking Aim: The Video Technology of Cultural Resistance”. In: RENOV, Michael
& SUDERBURG, Erika (orgs.). Resolutions: Contemporary Vídeo Practices. Minnesota: The
University of Minnesota Press, 1996.
Filmografia
Bicicletas de Nhanderu. Ariel Duarte Ortega & Patricia Ferreira. 2011. 48 min.
Hipermulheres, As. Carlos Fausto & Leonardo Sette. 2011. 80 min.
Páginas na internet
Todos os links foram acessados em dez. 2015
Coletivo Kuikuro de Cinema Blog:
<http://coletivokuikurodecinema.blogspot.fr/?zx=c5a2321efbf4013b>
Coletivo Pajé filmes Blog:
<http://www.paje-filmes.blogspot.com.br>
De La Plume à L’Écran. 2008. Siteweb:
<http://www.delaplumealecran.org>
Hutukura. 2010. Siteweb:
<http://www.socioambiental.org/pt-br/tags/hutukara>
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Notícias: “IBGE mapeia a população indígena”:
<http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf>
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n. 2009/52880-9
e das pesquisas de mestrado vinculadas ao projeto temático: Bruna Nunes da Costa Triana, bolsa
FAPESP (processo n° 2011/03554-1), e Diana Paola Gomez Mateus, bolsa CAPES.
Problematizando o filme
Quando assistimos ao filme Hunger, de Steve McQueen, de imediato, podemos
observar que os mundos criados pelo diretor3 situam-se entre uma narração
2
IRA é a sigla para Irish Republican Army (Exército Republicano Irlandês). Trata-se de um grupo repu-
blicano e católico, formado, aproximadamente, em 1919, que lutava pela separação da Irlanda do Norte
do Reino Unido. Classificado como “terrorista” pelo governo do Reino Unido (bem como por outros
países aliados), o IRA anunciou seu “fim” em meados de 2005. Sobre isso, ver Patterson (1997).
3
Não é intenção deste artigo aprofundar a discussão sobre a autoria no cinema, mas vale dizer que, para
além do diretor, há uma equipe de especialistas que também faz parte de sua elaboração e construção.
Bobby: Então o quê? Aceitamos a oferta deles e colocamos o uniforme, porque os úl-
timos quatro anos não significaram nada. Podemos fazer isso, Don. Ou podemos agir
como o exército que dizemos ser e resignar nossas vidas por nossos companheiros.
4
A transcrição desse diálogo foi feita a partir das legendas em português do filme. Podem existir
equívocos na tradução, mas tentamos conservar o máximo possível o sentido geral dessa transcrição.
5
Para uma discussão da capacidade performativa das palavras, ver Austin (1962).
6
Estamos nos referindo ao cinema clássico, tal como definido por Xavier (2003; 2008).
7
“If film were to have a critical, cognitive function, it had to disrupt that chain and assume the
task of all politicized art, as Buck-Morss paraphrases the argument of the Artwork Essay: ‘not to
duplicate the illusion as real, but to interpret reality as itself illusion’” (HANSEN, 1987, p. 204).
8
“For if the role of the gesturing hand as story is less today than in times gone by, and along with it
a whole artisanry of experiential communication bound to the storyteller, there is nevertheless this
new, this modern, “storyteller”, the film. This preserves – indeed reinvigorates – the gesticulating
hand in the form of the tactile eye, in that the new constellation of hand, soul, and eye, provided
by the opening of the optical unconscious” (TAUSSIG, 1993a, p. 36).
Biliografia
AUSTIN, John. How to Do Things with Words. Nova York: Harvard, 1962.
BENJAMIN, W. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
DELEUZE, G. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
EISENSTEIN, S. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
GOMEZ, Diana. Quanto dura o terror? A narrativa da violência em dois filmes colombianos. Disser-
tação (Mestrado em Programa de Pós Graduação em Antropologia Social), Universidade de São
Paulo, 2012.
HANSEN, Mirian. “Benjamin, Cinema and Experience: ‘The Blue Flower in the Land of Technology’”.
New German Critique, n. 40, Inverno/1987.
HIKIJI, Rose S. Imagem-violência: mímesis e reflexividade em alguns filmes recentes. São Paulo:
Terceiro Nome, 2012.
JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
JIMENO, Myriam. “Emoções e política: a vítima e a construção de comunidades emocionais”. Mana,
v. 16, n. 1, pp. 99- 121. 2010.
_____. “Lenguaje, subjetividad y experiencias de violencia”. Antípoda: Revista de Antropología e
Arquelogía, n. 5, pp. 169-190. jul.-dez., 2008. Disponível em: <http://antipoda.uniandes.edu.co/
view.php/70/index.php?id=70>. Acesso em dez. 2015.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
MORIN, Edgar. “A alma do cinema”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de
Janeiro: Graal, 1983.
PATTERSON, Henry. The Politics of Illusion: A Political History of the IRA. Chicago/Londres: Serif,
1997.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34, 2005.
TAUSSIG, Michael.Mimesis and Alterity. Nova York: Routledge, 1993a.
_____. Defacement. Standford, Standford University Press, 1999.
Filmografia
12 Years a Slave. Steve McQueen. Inglaterra, Estados Unidos. Roteiro: John Ridley. Montagem: Joe
Walker. Produção: Brad Pitt, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Bill Pohlad, Steve McQueen, Arnon
Milchan, Anthony Katagas. 2011. 134 min.
Hunger. Steve McQueen. Irlanda. Roteiro: Enda Walsh, Steve McQueen. Montagem: Joe Walker.
Produção: Laura Hastings-Smith, Robin Gutch 2008. 96 min.
Shame. Steve McQueen. Inglaterra. Roteiro: Abi Morgan, Steve McQueen. Montagem: Joe Walker.
Produção: Iain Canning, Emile Sherman. 2011. 101 min.
Trois Couleurs: bleu. Krzysztof Kieślowski. França, Polônia, Suíça. Roteiro:Krzysztof Piesiewicz,
Krzysztof Kieślowski, Agnieszka Holland, Edward Żebrowski. Montagem: Jacques Witta. Produção:
Marin Karmitz. 1993. 94 min.
Trois Couleurs: blanc. Krzysztof Kieślowski. França, Polônia, Suíça. Roteiro: Krzysztof Piesiewicz,
Krzysztof Kieślowski. Montagem: Urszula Lesiak. Produção: Marin Karmitz. 1994. 87 min.
Trois Couleurs: rouge. Krzysztof Kieślowski. França, Polônia, Suíça. Roteiro: Krzysztof Piesiewicz,
Krzysztof Kieślowski. Montagem: Jaques Witta. Produção: Marin Karmitz. 1994. 99 min.
1
Tradução: Elisa Nazarian; revisão técnica: Edgar Teodoro da Cunha.
2
Three Cases of Murder/ Três casos de assassinato (1953), Wendy Toye, David Eady, e George More
O’Ferrall, 99 min. O segmento citado é “In the Picture”, baseado em uma história de Roderick
Wilkinson, com roteiro de Donald B. Wilson, dirigido por Wendy Toye.
3
Perez de certa forma modificou a tradução de Hugh Gray, que é: “uma alucinação que também é
um fato”.
O corpo no cinema
1.1 De Le Sang des bêtes/O sangue das bestas (1949). Cortesia do British Filme
Institute. Copyright de Georges Franju.
1.2 De Les Yeux sans visage /Os olhos sem rosto (1959). Cortesia do British Film
Institute. Copyright Gaumont.
O corpo no filme
Os limites entre nossas experiências imediatas, e as maneiras como as recorda-
mos e as recriamos, são frequentemente obscuros. Podem ser os limites entre
a percepção sensória e a memória (ou sonho); entre o que designamos como
vida e arte; ou entre o corpóreo e o incorpóreo. No final, essas categorias são
tão enganadoras, que podemos nos ver tentados a desistir delas. Afinal, uma
pessoa vista num sonho, ou na televisão, pode ser tão viva quanto uma pessoa
vista do outro lado da sala, e as obras de arte podem ser tão concretas quanto
torrões de terra. As representações da experiência imediatamente criam novas
experiências por sua própria conta.
As sociedades traçam tais limites em diferentes pontos e lhes atribuem di-
ferentes graus de importância, mas em quase todos os lugares é feito algum
esforço para mantê-los. Como Mary Douglas observa, a diferença entre espí-
rito e matéria continua importante, mas as maneiras como o organismo social
governa o organismo corpóreo varia enormemente (1973, p. 12). A mudança
das circunstâncias, tais como a introdução de novas modas e tecnologias, testa
constantemente esse controle, e é no limite dos limites, por assim dizer, que
os princípios que o regulam se revelam com mais clareza. Os desafios à auto-
O corpo no cinema
a dos princípios morais, por exemplo.
O filme está entre as últimas tecnologias que provocam distúrbios nos limites
da arte e da experiência cotidiana, juntamente com suas mais recentes e pode-
rosas ramificações: a televisão, a gravação em vídeo, a transmissão via satélite
e via internet. Aqui, também, os extremos constantemente revelam com mais
clareza nossas fundamentais reações biológicas e culturais. Linda Williams
analisou profundamente os “gêneros físicos” da pornografia, do horror, e do
melodrama, para ver como seus excessos desafiam mecanismos de controle
físico, e como eles revivem (mas nunca realmente fecham) as brechas entre as
experiências primevas e suas alucinações produzidas pelo cinema (WILLIAMS,
1991). De maneira semelhante, Klaus Theweleit (1989) discute os excessos
de brutalidade e tortura engendrados pelo treinamento militar alemão, como
expressões das fantasias psicossexuais do corpo “protegido por uma armadura”.
Barbara Creed (1995) vê o “corpo-monstruoso” dos filmes de terror como
simultaneamente o corpo ameaçado do espectador, explodido, invadido, ou
corrompido por substâncias abjetas, e às vezes, também, como uma reafirmação
da pureza e integridade físicas do espectador.
No entanto, todos os filmes, e não apenas os desses gêneros “brutos”, são
potencialmente perturbadores à equanimidade corpórea do espectador, e na
verdade isto é parte do seu atrativo. Williams sustenta que assistir às experiên-
cias de outras pessoas nos filmes não é apenas uma questão de compartilhá-las,
mas de descobrir em nós mesmos respostas físicas autônomas, que podem
diferir daquelas que testemunhamos (1995, p. 15). Os filmes nos permitem ir
além de limites estabelecidos culturalmente e entrever a possibilidade de
sermos mais do que somos. Eles distendem os limites da nossa consciência e
criam afinidades com outros corpos além do nosso.
Por outro lado, a inabilidade da arte (ou de suas tecnologias) em representar
o corpo tem sido frequentemente notada. Em 1556, Abu’l-Fazl, cronista do
reinado de Akbar, imperador mongol, escreveu sobre uma carga de 1.500
elefantes militares: “Como é que as qualidades dessas montanhas impetuosas
podem ser dispostas na linha frágil das palavras?” (KEAY, 2000, p. 310). Em
Let Us Now Praise Famous Men/Elogiemos os homens ilustres, James Agee la-
menta a fragilidade das palavras, e as substituiria por fotografias e “fragmentos
de tecido, chumaços de algodão, torrões de terra, registros de fala, pedaços de
madeira e ferro, frascos de odores, pratos de comida e excremento” (AGEE &
EVANS, 1960, p. 13). Ainda assim, devotou centenas de páginas à descrição
de objetos físicos. Ao escrever sobre “questões de magnitude”, o tema de Bill
4
Ver Nichols (1986, 1991).
5
Ver Susan Stewart (1984).
6
Garry Winogrand disse: “Eu fotografo para descobrir como algo vai parecer fotografado” (SONTAG,
1977, p. 197).
O corpo no cinema
a fazer daquele filme (sobre autópsias em um necrotério de Pittsburgh) “um
dos filmes mais difíceis de serem vistos” (NICHOLS, 1991, p. 144). Ele deixa
o espectador mais desprotegido do que o normal, sem uma via de escape para
as convenções “realistas” do cinema. A noção de fotogenia também pode ser vista
como um aprofundamento do “excesso” cinemático – aquele resíduo físico da
imagem que resiste à absorção em símbolo, narrativa, ou discurso explanatório.
Como excesso, esses subprodutos da visão mecânica desafiam a contenção da
obra e estão mais aptos a tocar a sensibilidade exposta do espectador.
A contemplação de corpos em Death in the Seine/Morte no Sena (1988), de
Peter Greenaway, é mais formal e melancólica do que The Act of Seeing. Nesta
reconstrução ficcional, vemos uma sucessão de cadáveres retirada do rio Sena
entre 1796 e 1800, enquanto eles são registrados e preparados para o enterro
por dois atendentes mortuários. A câmera percorre delicadamente cada corpo.
Em sua nudez, eles formam um catálogo de tipos humanos: masculino e femi-
nino, débil e robusto, gordo e magro, adultos, adolescentes, crianças. Ficamos
sabendo os poucos detalhes registrados sobre eles: um nome, uma ocupação,
às vezes o conteúdo dos seus bolsos. Essas pessoas testemunharam a Revolu-
ção Francesa, e os eventos subsequentes. O filme sugere que cada corpo era o
receptáculo de uma vida extremamente particular e desconhecida, e mesmo o
pouco que se sabe sobre eles logo será esquecido. Os corpos parecem despidos
das pretensões e dos desejos dos vivos. Ao assistir ao filme, nossa experiência
torna-se mais complexa pelo conhecimento de que seus “atores” só estão
fingindo estar mortos. Eles nos confiaram seus corpos com certa inocência.
O filme pode ser uma ficção, mas os corpos não são.
Como Williams, Nichols cita vários exemplos de corpos humanos em filmes em
extremos de exposição e destruição, e sua ressonância peculiar em corpos fora
dali; no desastre de Hindenberg, na explosão do Challenger, veículo espacial da
Nasa, em filmes pornográficos, na exumação de vítimas de assassinato em El
Salvador, no necrotério de Pittsburgh, e assim vai. Sabe-se que os espectadores
apresentam fortes reações físicas a tais imagens, de choque, estremecimento,
tontura, excitação sexual, e até vômito (NICHOLS, 1994, p. 76). Essas re-
ações reforçam a opinião de Williams de que ao assistir a um filme, nós não
sentimos, necessariamente, pelos outros, sentimos por nós mesmos e em nós.
Também é uma falácia deduzir que a visão não passa de uma maneira de possuir
um “outro ausente” (como em muitas teorias do “olhar”), ou interpretar as
tecnologias cinematográficas como uma extensão de mão única dos sentidos.
Isto, segundo Williams, perpetua o “cartesianismo persistente” do voyeur des-
7
Ver M. Douglas (1966, 1970).
O corpo no cinema
restrições com mais clareza (na intimidade de sua filmagem e edição) do que
os filmes que evitam totalmente os assuntos tabus.
O corpo experiente e funcional é rotineiramente contestado e contradito
em filmes pelo corpo higienizado, pelo corpo heroico, e pelo corpo bonito,
de acordo com a determinação das práticas culturais e sociais das sociedades
onde são feitos. Contudo, não se pode ter uma garantia da homogeneidade da
audiência, e isto se torna cada vez mais verdadeiro à medida que os produtores
cinematográficos focam em audiências multiculturais. O sexo, a idade, ou o
contexto do espectador não asseguram necessariamente uma reação previsí-
vel. Além disso, as características do próprio corpo do observador podem ter
apenas uma influência limitada em como ele ou ela vê o gênero, a idade ou o
desenvolvimento de outros corpos nos filmes. Suposições sobre maneiras de ver
quanto ao gênero, em particular, postulam uma resposta mais polarizada do que
mais complexa e variável, e negam a possibilidade tanto de uma sensibilidade
que independa de gêneros, quanto de uma sexualidade amplamente inclusiva.
A atração pelos corpos de outros (e a identificação com eles) no cinema perma-
nece um assunto mais multifacetado do que o que trata de gênero, ou mesmo
de idade, psique, nacionalidade, sexualidade, ou classe. Existem muitas gradua-
ções na maneira como reagimos, influenciados tanto pelas narrativas nas quais
as pessoas aparecem quanto por sua aparência. No contexto adequado, o
personagem mais repulsivo pode ser atraente, e o rosto mais comum, lindo.
O corpo do espectador
Embora os exemplos extremos de Nichols e Williams destaquem enfaticamente
(ou morbidamente) certos assuntos, é importante lembrar que todos os filmes
são feitos para gerar uma interação contínua de estímulo e reação física, entre
tela e espectador. Isto é exercido, primeiramente, nos níveis dinâmico e plástico
de luz, forma e edição; em seguida, no nível da representação; e finalmente
nos espaços imaginativos criados pela convenção cinemática.
Williams caracteriza a resposta ideal aos gêneros “brutos” como sobressaltos ou
espasmos de vários tipos: estremecimentos, soluços e orgasmos (WILLIAMS,
1991, pp. 4-5). Não é por acaso que Einstein escolheu a palavra “colisão” para
expressar o efeito de justaposição de dois planos, e é este conceito de energia
dinâmica que permeia grande parte dos seus textos sobre as várias formas de
montagem: rítmica, métrica, gráfica, plana, tonal, atonal, intelectual, e daí por
diante. A certa altura ele descreve o efeito “psico- fisiológico” de uma série de
8
Para uma introdução de vários desses princípios, ver o clássico Arte e ilusão, de E. H. Gombrich
(1960). Ver também The Perceptual World (1990), organizado por Irvin Rock.
O corpo no cinema
sensação secundária no espectador do filme de estar pessoalmente exposto ao
testemunhar a exposição do outro. Para a maioria de nós, o rosto é o local de
existência de outro ser, talvez refletindo nossos próprios sentimentos de como
somos construídos como pessoa aos olhos dos outros. O rosto tem sido uma
das constantes preocupações de cineastas e teóricos do cinema. Em um ensaio
publicado em 1923, Béla Balázs afirmou sua crença de que o cinema restauraria
para a humanidade a linguagem da expressão facial, que se tornara “ilegível”
por causa do letramento e da palavra impressa (BALÁZS, 1952, pp. 39-42).
A atração pelo rosto humano, tão evidente nos filmes, pode ser remontada
através da prática de retratos europeus até o ponto em que esta desaparece,
no início do período clássico, quando o corpo todo foi objeto de atenção. Em
grande parte das esculturas gregas, e nas pinturas de vasos, o rosto era padrão,
o corpo nem tanto. Mas no final do período romano, a escultura retrato tinha
alcançado um alto patamar que permanece insuperável, e mais ou menos na
mesma época, os retratos pintados em cera nas múmias egípcias conferiram
rostos surpreendentemente realistas aos corpos laboriosamente envoltos em seu
interior. A relação recíproca entre corpo e rosto reaparece no corpo desnudo
da alta renascença italiana quando, com exceção dos retratos, o tratamento dos
rostos era rotina. Aqui, o corpo continuamente “rouba” a importância do rosto.
No norte da Europa, onde o corpo permaneceu com mais frequência vestido,
tanto as roupagens quanto o rosto eram representados com mais detalhes, e
o corpo permanecia, na melhor das hipóteses, uma estrutura correta, na pior,
uma forma bruta, sem articulação, movimento ou graça.
A escultura e a fotografia conferem permanência ao corpo humano e per-
mitem que ele seja examinado de uma maneira que o filme, com seu prazo
de tempo restrito, nega ao espectador. Talvez esta seja uma das razões pela qual
o rosto assumiu tão grande importância no cinema. Embora a câmara possa se
mover ao redor do corpo, e mostrá-lo em ação (compromisso fundamental da
pornografia), existe algo inalcançável e insatisfatório em sua transitoriedade.
Os movimentos do corpo são flagrados apenas em sua passagem, sem o sistema
coerente que têm, por exemplo, na dança. O espectador do filme está muito
mais limitado do que um observador da vida cotidiana, que pode parar pelo
tempo que quiser para observar operários trabalhando, atletas se exercitando,
crianças brincando, ou pessoas sentadas em um café. O rosto nos filmes, em-
bora também visto de passagem, torna-se um objeto de atenção mais estável,
e um receptáculo para muitos de nossos sentimentos em relação ao corpo como
um todo. Como a parte mais destacada do corpo não coberta por roupas, sua
tendência é se tornar isso seja qual for o caso.
O corpo no cinema
beatitude (1985), exploram como os corpos humanos e os objetos materiais
oscilam entre a vida fluida, assuntos ligados à morte e os símbolos.
Um fenômeno relacionado é o mimetismo involuntário implícito na visão de
outros corpos, mimetismo que pode até mesmo se estender a objetos inanima-
dos. Essa reação é vista na tenra infância, quando os bebês imitam as expres-
sões faciais de suas mães, e choram ao ouvir outras pessoas chorando, tendo
provavelmente se desenvolvido como parte da estruturação do sistema nervoso
humano. Ela traz uma dimensão tanto motora quanto emocional, afetando a
maneira como mantemos nosso corpo, frequentemente num estado de tensão
e ação não consumada. Merleau-Ponty descreveu a experiência como sendo
de “uma impregnação postural do meu próprio corpo pelos comportamentos
que presencio” (1964, p. 118). A noção de impregnação sugere uma reação
mais profunda do que a empatia, como se o corpo tivesse sido penetrado, ou
tivesse assumido as qualidades físicas do outro corpo.
Ao discutir o mimetismo, o psicólogo Martin Hoffman menciona a observação
de Adam Smith, de 1759, de que os espectadores, ao observar alguém andando
na corda-bamba, “naturalmente retorcem, contorcem e oscilam seus próprios
corpos como o veem fazer” (apud HOFFMAN, 2000, p. 37). Uma reação
semelhante pode ser observada em pessoas que assistem a um jogo de futebol,
ou mesmo a uma partida de bilhar. Hoffman, citando um ensaio de Theodor
Lipps de 1906, divide esta reação em duas fases, a primeira, uma resposta
motora; a segunda, uma resposta emocional, embora as duas aconteçam numa
sucessão próxima. Na primeira, o espectador involuntária e inconscientemente
imita as expressões e posturas da outra pessoa e tende a se mover em sincronia
com elas. Na segunda, há um feedback dessas expressões e posturas para as
emoções, criando sentimentos que lhes são apropriados (id., ibid., pp. 39-45).
Prova disso é que se uma pessoa adota artificialmente uma expressão facial
particular, tal como um sorriso, este tende a gerar a sensação relacionada
de felicidade. Darwin, que fez um estudo sobre as expressões faciais, foi o
primeiro a anunciar a hipótese do feedback, e William James adotou-a como
um princípio básico, escrevendo que “sentimos tristeza porque choramos”
(id., ibid; p. 40). Assim, sob um aspecto, a habilidade dos cineastas em criar
respostas físicas nos espectadores pode ser tão básica quanto lhes mostrar
certas expressões faciais, e isto pode ser transmitido através das tecnologias de
registro e projeção, como se fosse um verdadeiro contato pessoal. Como Morin
afirma: “a palavra universal da fotografia – sorria – implica numa comunicação
subjetiva de pessoa para pessoa, através da intermediação do filme, que se
9
“Le maître mot de la photographie ‘Souriez’ implique une communication subjective de personne à
personne par le truchement de la pellicule, porteuse du message d’âme” (MORIN, 1956, pp. 25-26).
10
A partir da noção de imagem enquanto performance desenvolvida por Roy Wagner e Marilyn
Strathern, para a Melanésia, Pinney propõe a noção de “corpothetics” para pensar imagens não
como representações, como uma tela na qual o sentido é projetado, mas para pensá-la como uma
experiência, incorporada, que nos propõe sentidos a partir de uma estética corpórea (PINNEY,
2004, p. 8) [R.T.].
O corpo no cinema
corporal” (PINNEY, 2000, p. 20).
O cinema opera com mais uma maneira de afetar o espectador fisicamente,
através da construção de espaços imaginários e sua evocação dos espaços
reais. Como vimos, a visão de um filme está longe de ser uma experiência
passiva. O reconhecimento de objetos e pessoas envolve uma constante
análise de hipóteses quanto ao que vemos, a partir de nossos hábitos de
percepção aprendidos e automáticos (a interpretação de indícios quanto a
formas, volumes, disposição em profundidade etc.) e de nossa experiência
pregressa. Nosso sentido de espaço no cinema apóia-se no reconhecimento,
mas também na junção dos planos em uma estrutura imaginária maior. Ao
participar desta construção, somos atraídos mais profundamente de corpo
e alma para dentro do filme.
Os primeiros filmes, feitos a partir de 1895, tendiam a enfatizar suas próprias
qualidades pictóricas – imagens enquadradas para serem vistas como objetos
–, embora ocasionalmente, como em alguns filmes dos irmãos Lumière, esta
esperada qualidade tivesse sido suplantada pela imprevista autonomia das ima-
gens (VAUGHAN, 1999, p. 3). Os exibidores apresentavam os filmes como
espetáculos independentes e curtos, que maravilhavam e divertiam, mas não
buscavam grande identificação com a plateia. O reconhecimento era essencial
para sua eficácia, e frequentemente a mimese também era um componente.
Embora esses filmes, às vezes, se dirigissem ao espectador diretamente (como
na famosa cena do The Great Train Robery/O grande roubo do trem [1903]
de um revólver disparado contra a plateia), não tentavam construir um espaço
fílmico em torno do espectador.
Com um maior desenvolvimento do cinema, os cineastas descobriram novas
maneiras de criar sensações físicas, explorando o potencial sinestésico de
imagens através do trabalho da câmera, mas ainda mais profundamente por
meio da narrativa. Outra descoberta importante foi a de que, por meio da
edição, o espectador poderia ser levado a “habitar” o espaço tridimensional
dos personagens. Os princípios formais e psicológicos envolvidos nisto foram
explorados com considerável detalhamento desde 1916, quando Hugo Muns-
terberg escreveu sobre filmes, aos escritos de Pudovkin na década de 1920, e
nas análises posteriores de Balázs, Arnheim, Burch, Oudart, Bordwell, Deleuze
e outros. Sejam quais forem seus vieses específicos – psicológico, formalista,
histórico – todas essas teorias procuram explicar a maneira como a consciên-
cia do espectador é alterada e conduzida pelo cinema tanto em suas reações
perceptivas quanto cognitivas.
O corpo no cinema
estabelecidas. Assistir ao filme pode, então, se tornar quase insuportável, uma
vez que há uma renovada sensação de responsabilidade por imagens que a esta
altura assumiram vida própria, muitas vezes no que parece ser uma maneira
arbitrária. Um processo que se pensava completo volta com uma intimação de
sua indeterminação original, deixando o cineasta impotente, com a sensação
de estar encalhado no presente.
O corpo do cineasta
Assistir a um filme envolve a conjunção de dois atos de olhar, e dois corpos,
no mínimo. O espectador vê os objetos na tela – objetos que já foram vistos
e selecionados pela câmera. Não é preciso dizer, portanto, que o que quer
que seja visto foi mediado pela visão do cineasta, mas isto é mais do que um
processo de pensamento; é também uma ação física. A presença do corpo do
cineasta torna-se um “resíduo” no trabalho, do tipo a que Gell se referiu. Os
seres humanos no filme criam outro resíduo que não é tão diferente daquele
do próprio cineasta, porque ambos estão impressos nas imagens do filme
como fatos equivalentes. Talvez isto fique mais evidente quando o cineasta
está empunhando a câmera, porque, então, a câmera registra seus movimentos
e, paralelamente, os movimentos dos sujeitos do filme. A imagem é afetada
tanto pelo corpo por detrás da câmera quanto pelos que estão à sua frente.
Assim como outros artistas, os cineastas veem muitos acontecimentos transitó-
rios que gostariam de mostrar a outras pessoas. Na verdade, eles querem que
esses acontecimentos se repitam para que outros os vejam. Parece um sonho
inalcançável, e, no entanto, com uma câmera, é quase possível. Os anseios
miméticos do cineasta são satisfeitos pela câmera com um imediatismo sem
paralelos em tempos passados, na criação de poemas, romances e pinturas.
Exatamente por que alguém deveria querer mostrar a outros o que viu é outra
questão. Trata-se de uma afirmação da própria coisa, ou da própria visão desse
alguém, ou um desejo de comandar a consciência alheia? Ou talvez seja para
transcender a si mesmo, para extravasar sua própria autocontenção? Às vezes,
as descrições do processo do cineasta soam mais como esta última hipótese.
Porque todas as descrições dos vanguardistas da autonomia mecânica da câmera
soam suspeitosamente como o corpo participante do cineasta.
Isto começa historicamente com a fotografia still, e não se trata meramente de
uma expressão de jouissance masculina. Julia Margaret Cameron, que começou
tirando fotografias em 1863, escreveu: “Eu desejava captar toda a beleza que
O corpo no cinema
tados emocionais da outra pessoa. Isso pode produzir uma sensação de poder
e expectativa, um desejo de que os outros sejam precisamente o que são, e
façam precisamente o que estão fazendo, como aparecem no visor. Isto se torna
uma sincronia espiritual, talvez melhor expressa nas palavras de Marshall: Está
acontecendo. É isto aí.
O corpo do filme
O corpo humano tem sido frequentemente retratado como uma máquina. No
início do século XX, ele começou a ser descrito como uma fábrica, consumindo
e processando matérias brutas.11 Bem antes disso, no entanto, a dissecação de
corpos por Leonardo e Vesalius havia estabelecido os princípios mecânicos que
regem as juntas e a circulação do sangue. No século XVI, a visão humana era
frequentemente igualada à camera obscura, cujo princípio era conhecido desde
a Antiguidade. Da mesma maneira, deduziu-se que a câmera escura refletia a
estrutura física do olho humano e, num nível mais abstrato, a relação do olho
com a mente. Logo após a sua invenção, a câmera tornou-se uma extensão
mecânica do corpo, a ser usada em vigilância, inicialmente para “retratos” po-
liciais, e mais tarde em prisões, bancos, shopping centers, e escritórios (TAGG,
1988). Subsequentemente, a interação entre corpo e máquina tornou-se um
tema recorrente nas discussões dos filmes e do que eles fazem. Assim como
na ideia de fotogenia, acreditava-se que as imagens fotográficas transcendiam
a visão normal. Para Louis Delluc, a câmera incorporava as características de
um corpo, mas de um corpo liberto de prévias limitações físicas, culturais,
e psicológicas. Para Fernand Léger e os futuristas, a câmera cinematográfica
produzia uma nova “máquina estética”. Jean Epstein denominou-a “um cérebro
de metal padronizado, fabricado e vendido em milhares de exemplares, que
transforma o mundo externo em arte” (1974, p. 92). Na imaginação arrebatada
de Vertov, a câmera era o “cine-olho”, capaz de uma visão eternamente livre
da “imobilidade humana”.
Tais conceitos da câmara como um corpo autônomo são, em parte, sinais de
uma revolta contra a arte acadêmica, mas também uma maneira paradoxal
de reconhecer a conexão da câmera com os corpos que ela toca, inclusive
o do cineasta. Vertov prosseguiu, imaginando a câmera como um corpo fundido
11
Em um estudo inédito, Jakob Tanner discutiu com alguma profundidade as ilustrações de “máquinas
humanas” na anatomia popular do corpo humano de Fritz Kahn, Das Leben des Menschen, surgida
na década de 1920.
O corpo no cinema
masculino): seus desejos, seu “olhar”, sua autorreflexão.
Os filmes são, portanto, vistos em diferentes contextos como corpos simbólicos,
mas a que corpo eles correspondem? O corpo do sujeito? O corpo do especta-
dor ou do cineasta? Ou será um corpo “aberto”, capaz de receber todos eles?
Alfred Gell insistiu que a arte era mais uma questão de agência do que de
estética, de poder do que de significado. A arte opera num campo de dese-
jos e convenções, como uma tecnologia de influência e “encantamento”.12
E, contudo, este potencial da arte tem seu próprio ser material. Ele atrai
para ele – para seu próprio corpo – os que estão à sua volta. Adquire uma
força física própria. O poder de um filme é tanto gravitacional como dirigido
para fora, para um lugar descrito por W. J. T. Mitchell como “buraco negro”,
nos discursos da cultura verbal (1995, p. 543).
Muito tem sido dito sobre o que querem o cineasta e o espectador de um filme.
Mas se poderia perguntar, usando um exemplo de Susan Sontag, e mais tarde,
de Mitchell, “O que quer um filme?”.13 Além da influência, da estética, ou
do significado, os filmes são feitos para se tornarem objetos no mundo, para
existirem por sua própria conta – como coloca Sontag, na “própria lumino-
sidade da coisa” (1966, p. 13). Se um filme pretende algo, é para preservar
seu imediatismo a cada vez que é visto, sem se afetar por época, moda, ou
reputação. Nisto, é claro, ele nunca pode lograr seu intento. Um filme quer
mais poder, mais autonomia, do que jamais foi assegurado por historiadores
ou críticos, ou até mesmo pelo cineasta, de quem todos esperam saber o
que “o filme tenta dizer”. Um filme sabe de sua própria fraqueza. Do alto
de seu poder, até o melhor filme dá uma indicação do que perdeu, e do que,
se aperfeiçoado, poderia ter sido.
Bibliografia
AGEE, James & EVANS, Walker. Let Us Now Praise Famous Men. Boston: Houghton Mifflin, 1960.
ANDERSON, Carolyn & BENSON, Thomas W. 1993. “Put Down the Camera and Pick Up the
Shovel: An Interview with John Marshall”. In: RUBY, Jay (org.). The Cinema of John Marshall.
Chur: Harwood Academic, 1993.
BALAZS, Bela. 1952. Theory of the Film. Londres: Dennis Dobson Ltd., 1952.
12
Ver Gell (1992, 1998).
13
Sontag (1966) e Mitchell (1996), em um ensaio intitulado “What Do Pictures Really Want?”.
O corpo no cinema
PUDOVKIN, V. Film Technique and Film Acting. NovaYork: Grove, 1960.
ROCK, Irvin (org.). The Perceptual World: Readings from “Scientific American Magazine”. Nova York:
W. H. Freeman and Company, 1990.
ROUCH, Jean. “The Camera and Man”. In: HOCKINGS, Paul (org.). Principles of Visual Anthropo-
logy. The Hague: Mouton, 1975.
SONTAG, Susan. “Against Interpretation”. In: Against Interpretation, and Other Essays. Nova York:
Farrar, Straus and Giroux, 1966.
_____. On Photography. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1977.
STEWART, Susan. On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1984.
TAGG, John. The Burden of Representation. Amherst: The University of Massachusetts Press, 1988.
THEWELEIT, Klaus. Male Bodies: Psychoanalyzing the White Terror. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1989.
VAUGHAN, Dai. For Documentary: Twelve Essays. Berkeley: University of California Press, 1999.
VERTOV, Dziga. Kino-Eye: The Writings of Dziga Vertov. Berkeley: University of California Press, 1984.
WILLIAMS, Linda. “Film Bodies: Gender, Genre, and Excess”. Film Quarterly, v. 44, n. 4, pp. 2-13.
1991.
_____. “Corporealized Observers: Visual Pornographies and the ‘Carnal Density of Vision’.” In:
PETRO, Patrice (org.). Fugitive Images: From Photography to Video. Bloomington/ Indianapolis:
Indiana University Press, 1995.
Ajustando o foco
Este ensaio explora a conturbada história da fotografia na prática antropológica,
interpretando-a enquanto uma série de interações transculturais, agências, en-
gajamentos e potenciais de evidência. Para tanto, apresento três “instantâneos”
temáticos de momentos de entrelaçamento, os quais mapeiam o deslocamento da
relação antropológica com o meio fotográfico. Isso, porque, tal como argumentou
Pinney (1992a), existe uma confluência histórica no paralelo entre antropologia e
fotografia que ainda atravessa e ampara, de forma mútua, suas histórias, em uma
complexa matriz de inscrição mecânica, desejo, poder, autoridade e agência. Nes-
sa medida, os “instantâneos” que propus poderiam ser resumidos a questões de
evidência, poder e agência. Esses motes não são mutuamente excludentes – eles
se sobrepõem e se amalgamam em vários pontos –, mas constituem momentos
de foco. Ademais, embora haja uma grande variação cronológica – de 1890 a
1970, de meados de 1970 até finais de 1990, e de meados de 1990 até os dias
de hoje –, é necessário dizer que tal variação, com frequência, dobra-se sobre si
mesma para, assim, constituir uma história linear. Refletindo acerca das multi-
1
Artigo originalmente publicado em: EDWARDS, Elizabeth. “Tracing photography”. In: RUBY, Jay
& BANKS, Marcus (orgs.). Made to Be Seen: Perspectives on the History of Visual Anthropology.
Chicago: University of Chicago Press, pp.159-89, 2011. Tradução: Bruna Triana e Lucas Amaral
de Oliveira; revisão técnica: Andréa Barbosa.
2
Ver Dias (1994; 1997), Blanchard et al. (1995), Theye (1989), Schindlbeck (1989), Zimmerman
(2001), Roodenberg (2002).
3
Faço isso para manter algum tipo de enquadramento sobre essa parte da história – um domínio
maciço, confuso e alastrado da disciplina que então emergia. Outros elementos, como a intencio-
nalidade, a subjetividade ou a seletividade poderiam, muito bem, terem sido usados aqui.
Rastreando a fotografia
antropologia, nomeadamente a emergência de etnografias de práticas fotográ-
ficas, de um lado, e o reengajamento histórico com o legado visual da antro-
pologia, de outro. Tais estudos não apenas abriram a possibilidade de agência
no domínio da história cultural, mas, também, desestabilizaram a autoridade
tanto de antropólogos quanto de suas produções fotográficas. Isso permitiu o
surgimento de micro-histórias visuais críticas, reflexivas e colaborativas, bem
como encontros transculturais e relações da fotografia com o material e o sen-
sorial. Esses estudos revelam as complexas ordens da fotografia; porém, ainda
mais significativamente, eles usam a fotografia não somente para registrar, de
acordo com a melhor prática do momento, mas como um prisma a partir do
qual se torna possível pensar outras áreas do empreendimento antropológico.
Assim, de modo geral, este ensaio analisa como a fotografia pode ser situada
não apenas na antropologia visual, mas na disciplina como um todo. Através
da circulação fluida de imagens e das estratégias de representação, bem
como das fronteiras movediças da prática disciplinar e da multivalência e possi-
bilidade de recodificação da fotografia em si, constituiu-se uma complexa teia
de influências, ideologias e abordagens teóricas e metodológicas em relação à
fotografia, de modo que as práticas contemporâneas da disciplina e o legado
visual da antropologia não podem, necessariamente, estar desvencilhados.
O que está implícito nessa história é o deslocamento dinâmico de como a
antropologia produz suas evidências, como ela chega às suas verdades, como
situa sua objetividade, como lida com sua subjetividade e, enfim, como entende
sua intersubjetividade (PINK, 2001, pp. 19-21).
Estratégias de evidência
A natureza mecânica e indicial das fotografias, enquanto inscrições aparen-
temente não mediadas, fez com que elas se tornassem centrais para o esta-
belecimento e articulação do método objetivo e do desejo de objetividade por
uma ampla gama de disciplinas. Entretanto, embora a fotografia possa ser uma
ferramenta realista por excelência, a validação da evidência tem sido atribuída,
há mais de um século, à qualidade da observação. Isso foi sendo crescentemen-
te incorporado à presença de pesquisadores de campo, na medida em que o
corpo se tornou uma espécie de câmera, absorvendo dados por intermédio da
observação controlada em termos científicos e realizada por olhos analíticos
treinados (GRIMSHAW, 2001, p. 53; GRASSENI, 2011). Assim, a fonte da
fotografia, ou seja, o olho antropológico criador, tornou-se tão importante
4
Ver Krauss (1982), Nichols (1991) e Roberts (1998).
Rastreando a fotografia
linese Character: a Photographic Analysis (1942), organizadas em séries de
“ensaios fotográficos” científicos que demonstram a tese dos antropólogos, sob
determinadas rubricas, tais como “Stages of Childhood”, “Autocosmic Play”
e “Boys’ Tantrums” (JACKNIS, 1988, pp .168-70).
Vale a pena considerar o método usado por Mead e Bateson porque ele articula
um ponto culminante de um conjunto específico de relações entre a antropologia
de campo, a fotografia e a construção de seu objeto, sobretudo no que tange à
pose e ao “natural”. A pose, a intervenção ou a reencenação poderiam consti-
tuir uma verdade antropológica? Eles afirmam: “Nós tentamos capturar o que
acontecia normalmente e espontaneamente, em vez de decidir sobre normas e,
então, fazer os balineses repetirem os comportamentos em condições adequadas
de iluminação” (BATESON & MEAD, 1942, p. 49). Em outras palavras, os
valores dominantes de tradução imediata da visão e da experiência moldaram
tanto a metodologia fotográfica quanto a análise subsequente (figura1).
5
Mead e Bateson tiraram mais 25 mil instantâneos fotográficos e gravaram mais de 22 mil rolos de
filmes. Apesar da experiência fotográfica de Mead em seu trabalho de campo anterior, em Samoa,
foi Bateson quem tirou a maioria das fotografias, concebeu os métodos de documentação para elas
e empreendeu a maior parte da análise (JACKNIS, 1988, pp. 161-62).
Rastreando a fotografia
torno da fotografia também foram mudando. Mais uma vez, é possível ver esse
processo refletido nas atitudes em relação à questão da pose. Apesar do difícil
relacionamento de Malinowski com o meio fotográfico e suas implicações
(MALINOWSKI, 1935, pp. 161-62; YOUNG, 1998, pp. 5-6), ele foi um
fotógrafo ativo e competente. Inclusive, ele usava extensamente as fotografias
em suas publicações, com cuidadosa montagem e com referências cruzadas
(SAMIAN, 1995). Sua atenção à natureza de suas evidências fotográficas
contradiz sua postura manifesta. Contudo, Malinowski, assim como Mead e
Bateson, foi cuidadoso ao tirar suas fotografias dentro das práticas correntes do
realismo e da autoridade etnográfica. Isto está mais acentuado na legenda para
a foto número cem de Coral Gardens and Their Magic, onde ele é cauteloso
ao salientar a base de observação da autoridade do pesquisador de campo: “Esta
foto não é posada; ela foi tirada durante o verdadeiro rito gibuviyake, e mostra
a concentração do feiticeiro no trabalho” (MALINOWSKI, 1935, p. 280). Ou
seja, pode parecer posado, mas não é. A despeito de sua ênfase na observação
imediata, ele não era avesso ao uso cuidadosamente controlado da pose ou da
reencenação para fazer imagens que não poderiam ser obtidas “naturalmente”,
tais como em situações de magia de guerra ou relações sexuais (id., ibid., pp.
461-62; YOUNG, 1998, p. 17). Ao atentar para os parâmetros da fotografia,
Malinowski está, também, definindo os parâmetros da observação participante
no campo e, com efeito, a própria validade antropológica de suas evidências e
o papel da fotografia dentro dela.
De modo similar, em sua clássica etnografia, Bruxaria, oráculos e magia entre
os Azande (1937), Evans-Pritchard chama a atenção para os parâmetros da
foto treze, “Kamanga assoprando um apito mágico (foto posada)”. Ele está
consciente das questões acerca do status da evidência e da autoridade, como
Malinowski. Entretanto, a fotografia de Evans-Pritchard carrega uma marca
visual de seu próprio status. Não apenas os lábios de Kamanga não chegam a
tocar o apito (o ângulo baixo da câmera mostra isso de forma clara), como o
enquadramento próximo da fotografia sem corte é estilisticamente diferente
do “estilo sem estilo” e do imediatismo que está incorporado na observação
que informa grande parte de suas fotografias (MORTON, 2005).6 É como se
ele estivesse afirmando que essa fotografia é de outra ordem (figura 2).
6
Agradeço a Chris Morton por discutir essa imagem comigo. Chamo o estilo da imagem de “sem
estilo” porque quaisquer que sejam os parâmetros de objetividade, a nulidade estilística é, clara-
mente, impossível; a articulação entre uma falta de mediação e a supressão estilística constitui um
estilo em si mesmo.
7
Isso está admiravelmente demonstrado em dois artigos fundamentais sobre a fotografia antropo-
lógica, que apareceram nas páginas do Journal of the Anthropological Institute, em 1893 e 1896,
respectivamente. Im Thurn, com base em sua experiência na Guiana Britânica, argumentou que,
além das imagens para referência antropométrica, fotografias mais naturalistas ou espontâneas de
pessoas “como seres vivos” deveriam ser tiradas (THURN, 1893, p. 184; TAYLER, 1992). Por
outro lado, M. V. Portman, um administrador colonial e etnógrafo nas Ilhas Andaman, argumentou
que o conhecimento científico poderia ser controlado somente quando as fotografias, posadas com
cuidado, que demonstrassem fatos observados (por exemplo, a realização de um adze), fornecessem
evidências primárias (THURN, 1896, p. 76).
Rastreando a fotografia
forma de demonstração científica, na qual a replicação era parte, ela mesma,
do sistema evidenciativo. Por exemplo, respondendo à primeira edição de
Notes and Queries (1874), E. H. Man inscreveu em uma chapa fotográfica
um quadro cultural, “Andamanese Shooting, Dancing, Sleeping and Greeting”,
que foi reproduzida como evidência demonstrativa nas páginas do Journal of
the Anthropological Institute (figura 3).
Figura 3. Quadro
cultural: caçando,
dormindo, saudando
e dançando.
Andaman Island,
ca. 1874. Foto: E.
H. Man. Pitt Rivers
Museum, University
of Oxford (PRM
1998.230.4.1).
Rastreando a fotografia
teve consciência de seu “outro fotográfico” – de uma inscrição mais criativa da
realidade das artes e das práticas documentais.8 Nesse sentido, passo, agora, a
explorar, de maneira breve, o status da evidência nessa fronteira.
Becker definiu a diferença entre as ciências sociais e a fotografia, afirmando
“uma como a descoberta da verdade sobre o mundo e a outra como a expres-
são estética da visão única de alguém”; mas ele também sugeriu que as duas
vertentes estavam indissociavelmente enredadas (BECKER, 1981, p. 9). Co-
nexões desse tipo podem ser feitas, por exemplo, entre o arranjo fotográfico
de Malinowski, em Coral Gardens and Their Magic, a sequência de Bateson
e Mead, em Balinese Character, e a forma foto-ensaística emergente em
revistas como Life e Picture Post. Existem claros paralelos estilísticos entre a
verossimilhança sem mediações da fotografia antropológica de campo e outras
práticas amadoras de fotografia instantânea.
Um bom exemplo desse enriquecimento recíproco entre antropologia e fo-
tografia documental pode ser encontrado no trabalho de Tim Asch, realizado
na Ilha Cape Breton, na província canadense da Nova Escócia, um projeto de
documentação rural executado durante alguns anos, a partir de 1952 (HAR-
PER, 1994). Ainda que a importância do projeto não tenha sido reconhecida
por antropólogos naquele tempo, ele é interessante porque data do período
pós-Segunda Guerra Mundial, quando a antropologia visual, enquanto subárea
totalmente articulada, emergiu a partir de um grande número de diferentes
habilidades e experiências visuais, especialmente dos estudos em comunicação
visual, enquanto que, ao mesmo tempo, esboçava um estilo fotográfico auto-
consciente para criar um senso de imediatismo e de solidez da observação – em
vez do “estilo sem estilo” antropológico.
Embora mais conhecido como cineasta etnográfico, Asch possuía um pano de
fundo fotográfico que era bastante rico e eclético. Ele tinha trabalhado com
fotógrafos modernistas, tais como Minor White, Edward Weston e Ansel
Adams, e foi influenciado por outros, como Eugene Smith (NORDSTRÖM,
1994, p. 97). No projeto de Cape Breton, Asch trabalhou muito próximo a
John Collier, que, no período, estava elaborando suas ideias sobre a fotografia
como um método de pesquisa na antropologia. Entretanto, a própria inspiração
de Collier veio não apenas da antropologia, mas também de Roy Stryker e seu
8
A fronteira entre a antropologia e as práticas artísticas está além do escopo deste artigo. Todavia,
uma discussão sobre o tema pode ser encontrada, por exemplo, em: Schneider & Wright (2006) e
Schneider (2011).
9
Collier dedicou a obra Visual Anthropology (1967) a Stryker.
10
É significativo que o trabalho da Farm Security Administration começou, precisamente, no mesmo
tempo em que Mead e Bateson estavam realizando seu trabalho de campo em Bali (LARSON,
1993, p. 15).
11
Por exemplo, James M. Redfield, em American Ethnologist (1984 [1193], pp. 617-18); e Ruth
Gruber Fredman, em Anthropological Quarterly (1983 [53-4], pp. 119-200), que descreveu as
Rastreando a fotografia
e documentação humanística, não poderiam constituir uma autoridade antro-
pológica? Sua força de evidência engaja mais respostas emocionais ao tema em
questão do que uma descrição racional? Ou por que a imagem, em si mesma,
estava simplesmente “invisível” e marginalizada no debate intelectual? Talvez
Geddes tenha resumido bem o dilema ao resenhar outro livro fotográfico,
Gardens of War, de Robert Gardner (1968), na American Anthropologist. Ainda
que possam ser vistas como “excessivamente subjetivas”, ele escreveu: “[...] as
interpretações transculturais, no entanto, devem, necessariamente, ir além do
fato. O teste final para saber se elas devem ser tidas como apenas subjetivas
ou perspicazes de fato deve ser o grau de convicção que elas proporcionam ao
indivíduo – leitor, espectador e ouvinte” (GEDDES, 1971, p. 347).
Voltamos, então, às questões acerca dos muitos significados e da possibilidade
de controle da evidência.
O resultado parece ser uma fotografia que, apesar das lutas metodológicas,
foi, efetivamente, marginalizada, pelo menos intelectualmente, no interior do
debate antropológico. De fato, as fotos praticamente desapareceram de textos
antropológicos sérios na década de 1960 (HEUSCH apud POOLE, 2005, p.
690), tirando as fotografias de autenticação das observações do trabalho de
campo e de montagem de cenas. Além disso, o advento de tecnologias mais
fáceis e acessíveis de filmagem ofereceu formas de registro que pareceram
mais apropriadas ao projeto antropológico. E, ainda mais importante, a des-
confiança contínua da antropologia acadêmica em relação ao visual – especial-
mente à fragmentação e à reificação, qualidades do instantâneo fotográfico
–, tornou isso não apenas problemático, mas intelectualmente estéril, quase
uma ferramenta de uma velha antropologia, que permaneceu delineadora de
superfícies e não reveladora de verdades profundas da experiência humana.
O poder da representação
O prefácio de Mead para a obra Principles of Visual Anthropology, de Hoc-
king (1975), lamentando a condição do visual em uma disciplina de palavras,
constitui, de fato, uma declaração final da confiança realista e da preocupação
de salvamento – mais do que uma mudança radical no perfil da fotografia
que estava sendo colocada em cena. Como em outras disciplinas das ciências
“tocantes fotos” e como uma “nota para o texto”. Apenas Peter Metcalf, em American Anthropologist
(1984 [88-1], p. 208), se envolveu com as fotografias que “ofuscam o texto”.
12
Para um resumo útil das políticas mais amplas de representação em relação às fotografias, ver, por
exemplo, Kratz (2002, pp. 219-23).
Rastreando a fotografia
como algo inerente à própria imobilidade e fragmentação do meio fotográfico,
permitindo que o olhar relaxe, deseje e aproprie-se do sujeito, construindo
categorias como raça, classe e gênero, que foram normalizadas por intermédio
da transparência e das práticas discursivas da própria fotografia e legitimadas
através dos conceitos antropológicos de raça e hierarquia (GREEN, 1984;
ALLOULA, 1986; CORBEY, 1988; LALVANI, 1996).
As ambiguidades espaciais e temporais do meio fotográfico e suas propensões
reificantes estiveram lado a lado das críticas na antropologia. Por exemplo, a
análise de Fabian (1983, p. 32) das metáforas visuais da antropologia, e sua
crítica da construção do objeto antropológico atemporal, ressoa na famosa
descrição de Barthes da fotografia como “lá-antes, tornando-se aqui-agora”,
reproduzindo ao infinito o que não poderia ser reproduzido existencialmente
(BARTHES, 1977, p. 44; id., 1984, p. 4) e, ainda, reforçando as diferentes
temporalidades envolvidas no “imediatismo fugaz do encontro e da perma-
nência estabilizadora do fato” (POOLE, 2005, p. 172).
Essas características da fotografia também mapearam teorias do olhar e da
construção dos estereótipos por meio da estrutura semiótica da imagem, prin-
cipalmente os modelos dicotômicos de branco/preto, vestido/nu, civilizado/
primitivo, dominante/dominado e as significações hierárquicas que lhes estão
associadas. A instabilidade do significante e a infinita possibilidade de recodifi-
cação da fotografia permitiram a reprodução e a performance de tais metáforas,
mesmo em face da inerente ambiguidade de formas. Algumas ideias, como
as metáforas violentas de Sontag acerca da apropriação visual voraz da câmera –
caçar, tirar, tomar (SONTAG, 1979, pp. 14-15) –, tornaram-se metáforas da
opressão colonial, do olhar ocidental e da impotência do sujeito. A combinação
entre captura e rastreamento, em contextos de políticas culturais especifica-
mente focadas, tornou-se simbólica do espaço entre o coletor e o coletado,
o fotógrafo e o fotografado, a comunidade e as estruturas institucionais da
antropologia – as assimetrias de poder e os espaços nos quais as comunidades
indígenas estão trancadas, despojadas, privadas de seus direitos, silenciadas,
marginalizadas e apropriadas (HARLAN, 1995, p. 20).
As fotografias apresentaram-se, nessa medida, como uma mina de um século
de pressupostos disciplinares e relações de poder assimétricas a ser escavada.
Com isso, a questão da pose, em particular, o corpo arranjado e manipulado,
permaneceu como um significante das relações de poder entre a “ciência branca
e os corpos negros” (WALLIS, 1995), em uma ampla gama de materiais: os
daguerreotipos de escravos de Zealy, feitos por Louis Agassiz (WALLIS, 1995);
13
Um foco analítico particular foi dado às imagens antropométricas produzidas nos primórdios da
antropologia, a mais extrema e desumana forma de pose e de controle científico. Em especial, fora
da antropologia, a fotografia antropométrica se sobrepôs a todos os outros tipos de imagens antro-
pológicas, independentemente da historicidade específica do encontro fotográfico. As fotografias
feitas para demonstrar o sistema antropométrico de John Lamprey, publicadas em Journal of the
Ethnological Society (1869), por exemplo, tornaram-se imagens características para toda a fotografia
no interior da disciplina antropológica durante mais de um século, mormente nos estudos de cultura
visual, e têm sido reproduzidas indefinidamente. Ver Green (1984, p. 34); Sturken & Cartwright,
(2001, p. 285); Ryan (1997, p.150); S. Edwards (2006, p. 25).
14
Ver Green (1984; 1985).
Rastreando a fotografia
em determinado momento histórico –, tais críticas, caíram, quase que muito
confortavelmente, em uma série de interpretações sobredeterminadas, redu-
cionistas, a-históricas e reificantes (SPYER, 2001, p. 182).
Ao mesmo tempo em que boa parte desse debate estava sendo travado fora da
própria antropologia, houve críticas similares vindas de dentro da disciplina,
sobretudo da parte de antropólogos engajados, cada vez mais densamente,
com o conceito de “arquivo”, tais como as análises de Corbey (1988) dos
cartões-postais da África. As fotografias eram, também, parte dos debates mais
amplos sobre a política de produção do texto e da autoridade etnográficas. Por
exemplo, tanto Hutnyk (1994) quanto Wolbert (2000) analisaram as fotogra-
fias de Evans-Pritchard enquanto parte integrante das práticas discursivas de
apropriação do trabalho de campo e sua disseminação da observação, levantando
questões mais gerais sobre a natureza dessa observação e as relações a partir
das quais ela é sustentada. Talvez o mais extensivo e implacável exame seja
a discussão de Faris sobre as culturas da imagem e da imaginação dos povos
Navajo. Em The Navajo and Photography, ele explora a política sistêmica e
de “sucesso predatório” (FARIS, 1996, p. 301) de apropriação que apresen-
tam os Navajos como impotentes e passivos diante da câmera, tida como um
instrumento da opressão ocidental.15
Ainda que esse processo e sua articulação de estruturas de poder sejam in-
contestáveis, assim como seu impacto político, tratou-se de uma crítica que
negou à fotografia e à disciplina antropológica sua própria mudança e dinâmica
crítica.16 Isso, de modo redutor, postulou que todas as fotografias antropoló-
gicas e todos os encontros fotográficos transculturais estivessem operando,
“estatiscamente, dentro de uma ‘verdade’ que reflete, de forma simplista, um
conjunto de disposições culturais e políticas mantidas pelos produtores dessas
imagens” (PINNEY & PETERSON, 2003, p. 2). Um dos primeiros volumes a
explorar isso foi Anthropology and Photography (EDWARDS, 1992). Talvez eu
não seja a pessoa mais adequada para discutir o legado desse livro, destinado
tanto a leitores antropólogos como a não antropólogos, e que tentou dar um
enquadramento crítico da prática, da história e das estruturas institucionais
15
Para uma resenha que destaca os problemas metodológicos dessa abordagem, ver: Jay Ruby, no
Journal of the Royal Anthropological Institute (v. 4, n. 2, 1998, pp. 369-79).
16
Como Pink apontou, muitas dessas discussões sobre a imagem antropológica implicam em um
“desrespeito [por] qualquer trabalho que tenha sido feito desde 1942” – data da publicação de
Mead e Bateson (2003, p.185) – e, consequentemente, falham ao situar o trabalho antropológico,
tanto histórica quanto teoricamente, ou ao se envolverem com a maior parte dos trabalhos críticos
saídos da própria antropologia.
17
Ver Poignant (1992a; 1992b), Pinney (1997), Edwards (2001), Jacknis (1984) e Scherer (1988).
18
O significado desse afastamento é assinalado pela inclusão de uma resenha sobre o assunto, feita
por Scherer, na segunda edição de Principles of Visual Anthropology (HOCKINGS, 1995).
19
Ver, por exemplo, a crítica de Meike Bal (1996, pp. 195-96) a Corbey.
Rastreando a fotografia
abarcava o potencial da nova reflexividade crítica e da multivocalidade, a fim
de escavar as complexas relações históricas a partir das quais foram constituídos
os encontros fotográficos (POOLE, 1997; PINNEY, 1997). Tais posições come-
çaram a emergir em Anthropology and Photography, especialmente nos ensaios
de Salmond (1992), Binney (1992) e Hamouda (1992), e no trabalho sobre as
respostas indígenas às fotografias, tais como Partial Recall (LIPPARD, 1992),
que apresentou uma série de leituras fotográficas dos nativos americanos.
Em particular, os anos 1980 e 1990 viram o amadurecimento de uma série
de etnografias. Apareceram estudos detalhados sobre os mundos de imagens
e trabalhos sobre antropólogos específicos, como, por exemplo, Boas (JACK-
NIS, 1984), Baldwin Spencer (WALKER & VANDERVAL, 1982),20 Mooney
(JACKNIS, 1992), Malinowski (YOUNG, 1998), Haddon e a expedição ao
Estreito de Torres (EDWARDS, 1998), e Mead e Bateson (JACKNIS, 1988;
SULLIVAN, 1992). Algumas expedições, tais como a de 1927, do Denver Afri-
can à Namíbia (GORDON, 1997), e a de Jesup North Pacific, de 1897-1902
(KENDALL et al., 1997), foram exploradas como entidades culturais. Houve,
também, alguns estudos regionais, tais como o Camera Indica, de Pinney (1997),
que explorou as continuidades, as contestações e o caráter onírico em torno
da fotografia na Índia; um exame de uma ampla série de imagens coloniais e
seus legados na Namíbia (HARTMANN et al., 1998); e uma análise detalhada
das complexas dinâmicas fotográficas transculturais entre missionários e elites
locais dos planaltos camaroneses (GEARY, 1988). Essas análises foram com-
plementadas por estudos das práticas institucionais e de coleta, de modo geral
(EDWARDS, 2001), e em instituições específicas, como o Peabody Museum,
em Havard (BANTA & HINSLEY, 1986), o Royal Anthropological Institute,
em Londres (POIGNANT, 1992a), e o Musée de L’Homme (DIAS, 1994).21
O que surgiu foi uma leitura mais complexa da dinâmica fotográfica em encon-
tros transculturais. O poder foi um elemento central, mas seu funcionamento
emergiu como algo discursivamente complexo. As fotografias foram tidas não
apenas enquanto instrumentos evidentes de vigilância, disciplina e controle
político, mas como lugares de interseção e contestação de histórias, intenções e
inscrições. Mesmo a produção das imagens mais manifestadamente opressivas, as
20
Uma nova edição, com o conteúdo analítico bastante prolongado, apareceu em Batty, Allen e Morton
(2005).
21
Grandes exposições, como From Site to Sight (BANTA & HINSLEY, 1986), Observers of Man
(POIGNANT, 1990) e Der Geraubte Schatten (THEYE, 1989), aumentaram a consciência crítica
do legado fotográfico antropológico.
Rastreando a fotografia
Indica, de Pinney (1997), para citar mais um exemplo, seguiu a fotografia por
intermédio da interseção das paisagens culturais e históricas da Índia. Ligando
práticas históricas e contemporâneas, tanto em termos de continuidade quan-
to de contestação, ele argumenta sobre a transformação do meio fotográfico
através de três momentos históricos diferentes: o colonial, o estabelecimento
do moderno Estado-Nação da Índia, e as práticas cotidianas contemporâneas
de envolvimento imaginativo com a fotografia. Embora vindas de uma forte e
eclética base teórica, esses estudos gerais, de forma crescente, caracterizaram
a fotografia não como discurso abstrato, mas, sim, como algo situado no real,
como encontros constituídos materialmente entre pessoas no espaço e no tempo.
A densidade e, por vezes, a natureza praticamente paralisante do debate sobre
as políticas de representação e o status simbólico da fotografia nas relações
transculturais, pode-se argumentar, permitiram elaborar uma contribuição
substancial ao pensamento teórico dentro da antropologia. A emergência de
políticas reconfiguradas do conhecimento, que afetaram o relacionamento
entre antropologia e fotografia, é parte de um deslocamento mais amplo na
produção do conhecimento, que é “simultaneamente colaborativo, crítico
e intervencionista” (id., 2005, p. 170). A maneira pela qual as fotografias
tornaram-se lugares verdadeiramente reais de contestação e símbolos do
enorme vazio nas relações de poder, do controle da história e da voz, e, assim,
do poder no mundo – particularmente entre os povos subjugados pelo colo-
nialismo –, é registro de que suas significações vão além daquelas meramente
representacionais. As respostas antropológicas a isso constituem alguns dos
mais importantes trabalhos recentes em antropologia visual.
Reexperienciando e reposicionando
Tendo isso em consideração, meu terceiro instantâneo trata de duas das ver-
tentes contemporâneas que têm suas raízes nos debates acima discutidos. Em
primeiro lugar, eu olho para a reconfiguração das questões e metodologias
que, novamente, engajaram-se com os repertórios históricos da antropologia
e fizeram deles o foco da pesquisa de campo contemporânea.22 Em segundo
lugar, exploro a etnografia da prática fotográfica da forma como ela emergiu
nos últimos tempos dentro da antropologia visual. Nesse sentido, os dois eixos
22
É importante notar, aqui, que a pesquisa colocou juntos, de forma cada vez mais forte, o arquivo
e o trabalho de campo. Ver, por exemplo Pinney (1997), Wright (2004), Bell (2004) e Geismar
(2010).
Rastreando a fotografia
Idaho, que era frequentado por pessoas da reserva local, Shoshone-Bannock,
em Fort Hall.
Ainda que as imagens resultantes possam ser lidas como estereótipos e tenham
sido utilizadas como tais, elas logram revelar a extensão na qual o ativo comissio-
namento das imagens foi essencial para a negociação das identidades indígenas
locais. Lyndon, examinando as imagens da estação de Coranderrk, em Victoria,
na Austrália, demonstra a forma pela qual, através de um entendimento do
papel das imagens na sociedade colonial, os povos aborígenes tentaram exercer
influência sobre a prática representacional dentro das relações complexas e
cambiantes da situação colonial (LYNDON, 2005). O que todos esses estudos
demonstram é a possibilidade de escavar os espaços dialógicos da fotografia e,
assim, complexificar a visão das relações transculturais, da agência indígena e
da própria densidade da inscrição fotográfica.
Grande parte desses trabalhos está, agora, acontecendo de forma colaborativa
e vem envolvendo tanto o recomprometimento com o material histórico em
situações contemporâneas como a produção de novos materiais em projetos
colaborativos e comunitários.23 É importante ressaltar, aqui, que as comunidades
indígenas têm se reapropriado, reengajado e, mais efetivamente, reassumido
a autoria das fotografias antropológicas, à medida que as fotografias em si
mesmas têm se tornado sintoma e símbolo do desejo dos povos de controlar
suas próprias histórias e seus próprios destinos:24
Era um lindo dia quando as escamas caíram dos meus olhos e eu, pela primeira vez,
encontrei a soberania fotográfica. Um lindo dia quando eu decidi que eu mesma
tomaria a responsabilidade de reinterpretar as imagens dos povos nativos. Minha
mente estava pronta, preenchida com histórias de sobrevivência. Minhas visões
acerca dessas imagens eram originalmente baseadas – uma perspectiva indígena –,
não em uma ordem divinamente científica, mas sim em uma ordem filosoficamente
nativa. (TSINHNAHJINNIE, 1998, p. 42)
23
Ver Hubbard (1994), Rhode (1998) e Kratz (2002).
24
Ver Harlan (1995; 1998), Rickard (1995), Tsinhnahjinnie (1998), Hill (1998), Vizenor (1998),
Chaat Smith (1992), Aird (1993; 2003).
O termo “repatriamento visual” tem sido cada vez mais usado para tais agendas
colaborativas e restitutivas envolvendo antropólogos (FIENUP-RIORDAN,
1998; BROWN & PEERS, 2006, pp. 101-03). Talvez o trabalho mais completo,
até o momento, seja o de Brown e Peers (2006), que trabalharam com a nação
Kanai (em Alberta, no Canadá), para facilitar o acesso e o recomprometimento
histórico com as fotografias tiradas pela antropóloga Beatrice Blackwood na
década de 1920. O projeto foi criado como uma colaboração com um amplo
leque de pessoas, de anciãos tribais a crianças em idade escolar, em que os
antropólogos trabalharam sob a orientação da comunidade e visando seus ob-
jetivos, “reorientando seu trabalho para facilitar e permitir a participação da
comunidade na concepção da pesquisa e no processo de investigação em si”
(BROWN & PEERS, 2006, p. 101).
Embora tais relações de pesquisa, cada vez mais, caracterizem o trabalho an-
tropológico, elas tomam a relação entre antropologia e fotografia além daquela
Rastreando a fotografia
borativa. Isso tem implicações metodológicas substanciais, não apenas no que
tange à remodelação da negociação do acesso ao campo e do estabelecimento
de protocolos conjuntos de pesquisa, mas, também, no que se refere à antro-
pologia visual, reconfigurando a ideia de foto-elicitação,25 por exemplo. Collier,
em sua clássica consideração metodológica, reconheceu uma qualidade dialógica
no encontro fotográfico – isso proporcionou uma “sensação gratificante de au-
toexpressão” (COLLIER, 1967, p. 48). Entretanto, isso foi constituído como
um fluxo unidirecional de informação, do sujeito ao etnógrafo, com o objetivo
de reforçar a compreensão do último.26 Refigurado, o processo de “elicitação”
constitui uma mudança nas relações de poder e na autoridade antropológica, em
que o antropólogo se afasta dos significados fotográficos, no sentido da tradição
forense ou mesmo da estrutura semiótica. O foco antropológico se torna, em
vez disso, a maneira pela qual as fotografias assumem suas próprias dinâmicas de
sociabilidade dentro das comunidades. Como Niessen argumentou, tal posição
também desafia a autoridade etnográfica – do mesmo modo que discuti no pri-
meiro instantâneo –, pois a expectativa de controle fotográfico “é um aspecto da
nossa própria mitologia sobre quem somos em relação ao ‘outro’. As fotografias
não perpetuam esse relacionamento, mas são manipuladas a seu serviço e, assim
o fazendo, agem como uma extensão da autoridade etnográfica” (NIESSEN,
1991, p. 429). Inversamente, trabalhar com a sociabilidade das fotos levantou
questões sobre a fotografia enquanto fonte histórica ou cultural dentro de um
ambiente de interseção de formas e tradições históricas. Qual é, por exemplo, a
ligação entre o visual e o oral? Qual é o papel das fotografias no processo através
do qual a história, a memória e a identidade são reproduzidas e transmitidas?
Porém, essas não são práticas incontestes. Elas constituem contextos com-
plicados e, às vezes, contraditórios nas comunidades, como narrativas que se
flexionam, por exemplo, de acordo com questões de idade, gênero ou linha-
gem, tecidas com e em torno das fotos. Como notou Niessen, o fato de usar
fotografias de museus têxteis em foto-elicitação, em Sumatra, trouxe para o
foco as relações de gênero presentes nas narrativas (id., ibid., p. 421), bem
como as tensões entre a comunidade e o antropólogo. De forma similar, Bell
(2004, p. 115) e Poignant (1992b, p. 73) narraram o modo como as fotografias
25
Foto-elicitação é um método qualitativo e colaborativo que permite maior proximidade entre os
envolvidos no trabalho de campo, pois compreende que a fotografia possui uma história e se relaciona
com contextos e sujeitos. Trata-se da capacidade de utilizar imagens, sobretudo em entrevistas, como
mecanismo evocativo de informações, descrições, significados, comentários, posições, memórias,
representações etc. [N. T].
26
Ver Edwards (2004, pp. 87-88).
Rastreando a fotografia
ram uma mudança radical na acessibilidade dos arquivos e, ademais, nas
maneiras pelas quais as fotografias antropológicas podem ser manejadas,
tanto pelos povos indígenas quanto pelos antropólogos (FOURMILE, 1990;
SMALLACOMBE, 1999; PETERSON, 2003; STANTON, 2004). Essas mu-
danças respondem não apenas às sensibilidades dos povos aborígenes sobre
o acesso às suas próprias imagens, mas aos debates em torno da fotografia,
vista enquanto uma ferramenta para fundamentar e comunicar reivindica-
ções culturais sobre determinados assuntos, tais como os direitos à terra, à
habitação e à educação, bem como para reviver e manter práticas culturais
(STANTON, 2004, p. 150).
Isso nos leva ao meu segundo eixo: a etnografia das práticas fotográficas. Se o
engajamento com a imagem histórica repensada sugere que as circunscrições
teóricas ocidentais da história visual são demasiadamente estreitas para aco-
modar o que está realmente emergindo nos estudos de campo, as etnografias
das práticas fotográficas em relação às imagens produzidas pelos e para os
povos do Quênia, Peru ou Malásia, por exemplo, estão apontando para um
caminho semelhante. O volume Photography’s Other Histories, de Pinney e
Peterson (2003), como o título mesmo sugere, tenta deslocar o debate críti-
co sobre fotografia para longe do modelo euro-americano dominante e, com
isso, olhar como a compreensão das práticas fotográficas em outros espaços
culturais pode iluminar e reequilibrar o entendimento do meio. O livro inclui
ensaios sobre práticas fotográficas e memorialísticas, escritos por Dreissens
e Aird, e uma reimpressão do artigo fundacional de Sprague, de 1978, “How
the Yoruba See Themselves”. Embora ainda esteja entrincheirado em meio
a dois enquadramentos fundamentais das análises ocidentais, o “vernacular”
(em relação ao quê?, alguém poderia perguntar) e o “moderno”, o livro revela
como são profundamente etnocêntricos os cânones da teoria fotográfica e seus
tropos clássicos – que, aliás, foram bastante influentes nas décadas de 1970 e
1980. O livro busca argumentar, ainda, que as práticas fotográficas globais e
locais foram, necessariamente, entendidas em termos de modelos simplistas
de absorção de uma tecnologia, defendendo, em contrapartida, um entendi-
mento que abrange não apenas as articulações culturalmente específicas da
natureza da fotografia, mas, sobretudo, suas conexões com as especificidades
da emoção, da imaginação, da história e da política.
27
“Gerações Roubadas” é um termo usado para descrever os filhos e as filhas de aborígenes aus-
tralianos e descendentes das Ilhas do Estreito de Torres que foram roubados de suas famílias pela
federação australiana, agências públicas, instituições nacionais e pela igreja. Os sequestros ocorreram
no período de mais de um século, sobretudo entre 1869 e 1970 [N. T.].
28
Existem três filmes etnográficos notáveis sobre práticas sociais da fotografia: Photowallahs (1991),
de David MacDougall, que explora as diversas camadas do engajamento fotográfico em uma cidade
montanhosa no norte da Índia (MacDougall, 1992b); Future Remembrance (1998), de Tobias Wendl
e Nancy de Plessis, que examina a prática de estúdio fotográfico em Gana, em relação a outras
práticas gráficas de memorialização; e The Art of Regret (2006), de Judith MacDougall, que se
concentra em práticas fotográficas na China.
Rastreando a fotografia
trica das tecnologias ocidentais. Mesmo que as funções sociais imputadas
às fotografias possam ser similares na maior parte do mundo – expressão,
identidade, rememoração –, as premissas culturais sob as quais essas funções
são construídas são bastante diferentes. Elas requerem um novo conjunto
de ferramentas analíticas e conceituais para libertar o pensamento fotográ-
fico das demandas do cânone ocidental e, concomitantemente, permitir às
práticas suas próprias identidades. Elas levantam questões sobre o que a
fotografia – considerada como imagem e como objeto material – realmente
é, desafiando pressupostos sobre a natureza do realismo, a percepção do valor
da indicialidade, da autoria, da pose e do “retrato”; o papel das fotografias na
negociação de identidades e na apresentação do eu para a câmera; os efeitos
materiais das fotografias; e, por fim, as expectativas sociais em relação ao
meio e os tipos de relações com o passado que as fotografias sustentam –
preocupações essas que não podem, necessariamente, serem acomodadas
dentro de uma configuração benjaminiana de fotografia/passado/memória
(POIGNANT, 1992b; WRIGHT, 2007).
Uma importante vertente dessas reformulações encontra-se na recente
emergência de uma abordagem mais material e sensorial utilizada para pen-
sar a fotografia na antropologia – uma virada fenomenológica que privilegia
o experiencial, no lugar do semiótico (PINNEY, 2004; WRIGHT, 2004;
EDWARDS, 2006). Por exemplo, trabalhando com fotografias em uma
comunidade aborígene em Queensland, Smith argumentou que, através de
sua indicialidade e de sua reprodutibilidade, as fotografias podem aparecer
como “objetos distribuídos” que, por sua vez, são passíveis de serem vis-
tos como iniciadores e agentes de relações sociais. As fotografias são uma
forma de personalidade estendida e, por isso, elas constituem uma soma
de relações ao longo do tempo. Nesse sentido, “o efeito das imagens não é
simplesmente simbólico ou o resultado de relações sociais”; antes disso, as
imagens “podem, elas mesmas, imitar e agir nas relações sociais” (SMITH,
2003, p. 11). Mesmo que a especificidade de tais relações seja profundamente
cultural, o argumento de Smith parece indicativo de um vasto padrão que
está surgindo em meio a etnografias detalhadas.
Também preocupado com a materialidade e o “afeto”, Pinney (2001, p. 158)
cunhou o termo “corpothetics” para se referir ao “abraço sensorial de imagens,
o engajamento corporal que a maioria das pessoas [...] tem com obras de
arte”. Sua intenção é oferecer “uma crítica às abordagens mais convencio-
nais da estética e defender uma noção de corpothetics – isto é, uma estética
corporal incorporada –, em oposição à representação ‘desinteressada’ que
Rastreando a fotografia
mais excitantes da antropologia visual hoje.
Isso não deve ser lido como progresso triunfalista em direção a uma leitura ilu-
minada das imagens, uma marcha em direção a algum tipo de nirvana represen-
tacional ou, ainda, um desdobramento teleológico do método da antropologia
visual. Elementos da prática moderna com fotografias – o compartilhamento
de imagens, as colaborações entre antropólogos e populações locais, o uso da
fotografia no estabelecimento de relações sociais no campo –29 eram evidentes
já no final do século XIX, da mesma forma como ainda permanecem alguns
traços de atitudes do século XIX nas estruturas institucionais atuais. Além
disso, em muitos aspectos, ainda que a publicação de fotografias como parte
integrante da análise etnográfica permaneça mais limitada do que deveria, os
trabalhos sobre fotografia estão se tornando mais difusos e dispersos no campo
antropológico, e não parecem mais estarem confinados dentro da antropologia
visual. Na verdade, esses trabalhos estão se tornando uma vertente teórica e
metodológica, ou um elemento da prática social, informando e sendo infor-
mados por uma etnografia mais ampliada.
Encontra-se, por exemplo, o uso da fotografia para escavar as relações entre
colonialistas holandeses e serventes locais nas Índias Holandesas (STOLER &
STRASSLER, 2000); uma análise forense detalhada de fotografias missionárias
como parte de um estudo dos rituais de mudança no Nordeste de Camarões
(FARDON, 2006); e uma análise fenomenológica radical das fotografias em um
culto de meditação budista sobre a decadência corporal na Tailândia (KLIMA,
2002). Esses trabalhos indicam não uma desintegração do foco da fotografia no
interior da antropologia visual; muito pelo contrário, assinalam sua centralida-
de enquanto um prisma teórico e discursivo. É a quase onipresença das fotos
e da fotografia – seu alcance global, sua circulação massiva, sua explosão dentro
da visualidade corriqueira da era digital e, ainda, suas qualidades banais, quietas e,
em grande medida, despercebidas, em termos de experiências cotidianas e de
práticas materiais – que fazem das imagens algo tão potente enquanto foco
de investigação antropológica (SPYER, 2001, p. 181).
Ademais, mesmo que novas ênfases políticas possam surgir de modo a des-
tacar diferentes leituras das fotografias e focos dinâmicos diferenciados na
antropologia, a problemática da incontrolável energia semiótica e das relações
de poder institucionalizadas que incorporam as fotografias e seus acervos
29
Por exemplo, as complexas relações sociais transculturais da fotografia na expedição de Cambridge
ao Estreito de Torres, em 1898. Ver Edwards (1998).
Bibliografia
AIRD, Michael. Portraits of Our Elders. Brisbane: Queensland Museum, 1993.
_____. “Growing Up with Aborigenes”. In: PINNEY, Christopher & PETERSON, Nicolas. Photography’s
Other Histories. Durham: Duke University Press, 2003.
ALLOULA, Malek. The Colonial Harem. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.
APPADURAI, Arjun. The Social Life of Things: Commodities and Cultural Perspective. Cambridge:
Cambridge University Press, 1986.
BAL, Meike. “A Postcard from the Edge”. In: Double Exposure: The Subject of Cultural Analyses.
Nova York: Routledge, 1996.
BANKS, Marcus. Visual Methods in Social Research. Londres: Sage, 2001.
BANTA, Melissa & HINSLEY, Curts. From Site to Sight: Anthropology, Photography and the Power of
Images. Cambridge: Peabody Museum Press, 1986.
BARTHES, Roland. Image Music Text. Londres: Fontana, 1977.
_____. Camera Lucida. Londres: Fontana, 1984.
BATESON, Gregory & MEAD, Margareth. Balinese Character: A Photographic Analyses. Nova York:
Academia de Ciências de Nova York, 1942.
BATTY, Philip et al. (orgs.). The Photographs of Baldwin Spencer. Melbourne: Miegunyah Press/
Museum Victoria, 2005.
BECKER, Howard. Exploring Societies Photographically. Evanston: Block Gallery, Northwestern
University, 1981.
BEHREND, Heike. “Feeling Global: The Likoni Ferri Photographers in Mombassa”. African Arts, v.
33, n. 3, pp.70-77. 2000.
_____ & WERNER, Jean-François (orgs.). “Photographies and Modernities in Africa”. Visual Anthro-
pology, v. 14, n. 3. 2001.
BELL, Joshua A. “Looking to See: Reflecting on Visual Repatriation in the Purari Delta, Papua New
Guinea”. In: BROWN, Alison & PEERS, Laura (orgs.). Museums and Source Communities. Lon-
dres: Routledge, 2004.
Rastreando a fotografia
Anthropology and Photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992.
_____ & CHAPLIN, Elizabeth. “Taking the Photographs Home: The Recovery of a Maori History”.
Visual Anthropology, v. 4, n. 4, pp. 341-442. 1991.
BLANCHARD, Pascal et al. L’Autre et nous: “scenes et types”. Paris: ACHAS, 1995.
BROWN, Alison & PEERS, Laura. Pictures Bring Us Messages. Toronto: University of Toronto Press,
2006.
BROWN, Michael F. Who Owns Native Culture? Cambridge: Harvard University Press, 2003.
BUCKLEY, Liam. “Self and Accessory in Gambian Studio Photography”. Visual Anthropology Review,
v., 16, n. 2, pp. 71-91. 2000-01.
_____. “Studio Photography and the Aesthetics of Citizenship in the Gambia, West Africa”. In:
EDWARDS, Elizabeth et al. (orgs.). Sensible Objects: Colonialism, Museums and Material Culture.
Oxford: Berg, 2006.
BURGIN, Victor (org.). Thinking Photography. Basingstoke: MacMillan, 1986.
CALDAROLA, Victor. “Imaging Process as Ethnographic Inquiry”. Visual Anthropology, v. 1, n. 4,
pp. 433-51. 1998.
CHAAT, Smith. “Every Picture Tells a Story”. In: LIPPARD, Lucy (org.). Partial Recall. Nova York:
New Press, 1992.
CHANDRA, Mohini. “Pacific Album: Vernacular Photography in the Fiji Indian Diaspora”. History
of Photography, n. 3, pp.236-42. 2000.
CHEUNG, Sidney (org.). “Wedding Photography in South East Asia. Special Issue. Visual Anthro-
pology, v. 19, n. 1, 2005.
CLIFFORD, James. The Predicament of Culture. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
COLLIER, John. Visual Anthropology: Photography as a Research Method. Nova York: Rolt, Rine Hart
and Winston, 1967.
CORBEY, Raymond. “The Colonial Nude”. Critique of Anthropology, v. 8, n. 3, pp. 75-92. 1988.
DANFORTH, Loring & TSIARAS, Alexander. The Death Rituals of Rural Greece. Princeton: Princeton
University Press, 1982.
DASTON, Lorraine & GALISON, Peter. “The Image of Objectivity”. Representations, n. 40, pp.
81-128. 1992.
DIAS, Nelia. “Photographier et Mesurer: les Portraits Anthropologiques”. Romantisme, n. 84, pp.
37-49. 1994.
_____. “Images et savoir anthropologique au XIXe siècle”. Gradhiva, n. 22, pp. 87-97. 1997.
DUBIN, Margaret. “Native American Image Making and the Spurious Canon of the “Of-and-the-by”.
Visual Anthropology Review, v. 15, n. 1, pp. 70-74. 1999.
DUDDING, Jocelyne. “Photographs of Maori as Cultural Artifacts and Their Positioning within the
Museum”. Journal of Museum Ethnography, n. 15, pp. 8-18. 2003.
EDWARDS, Elizabeth. “Science Visualized: E. H. Man in the Andaman Islands”. In: Anthropology
and Photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press; Londres: Royal Anthropological
Institute, pp. 108-21, 1992.
_____. “Beyond the Boundary: a Consideration of the Expressive in Photography and Anthropology”.
In: BANKS, Marcus & Morphy Howard (orgs.). Rethinking Visual Anthropology. New Haven: Yale
University Press, 1997.
_____. “Performing Science: Still Photography and the Torres Strait Expedition”. In: HERLE, Anita
& ROUSE, Sandra (orgs.). Cambridge and the Torres Strait: Centenary Essays on the 1898 An-
thropological Expedition. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
Rastreando a fotografia
pology and Photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992.
HARLAN, Teresa. “Creating a Visual History: A Question of Ownership”. In: ROALF, Peggy (org.).
Strong hearts: native American visions and voices. Nova York: Aperture, 1995.
_____. “Indigenous Photographies: A Space for Indigenous Realities”. In: ALLISON, Jane (org.). Native
Nations: Journeys in American Photography. Londres: Barbican Art Gallery, 1998.
HARPER, Doug. “The Visual Ethnographic Narrative”. Visual Anthropology, v. 1, n. 1, pp. 1-19. 1987.
_____. “A Conversation With Tim Asch”. Visual Sociology, v. 9, n. 2, pp. 97-101. 1994.
HARRIS, Clare. “The Photograph Reincarnate”. In: EDWARDS, Elizabeth & HART, Janice (orgs.)
Photographs Objects Histories: On the Materiality of the Image. Londres: Routledge, 2004.
HARTMANN, Wolfram et al. Colonising Camera: Photographs in the Making of Namibian History.
Cape Town: University of Cape Town Press, 1998.
HILL, Richard W. “Developed Identities: Seeing the Stereotypes and Beyond”. In: JOHNSON, T.
(org.). Spirit Capture. Washington: Smithsonian Institution, 1998.
HIRSCH, Eric. “Techniques of Vision: Photography, Disco and Renderings of Present Perception
in Highland Papua”. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 10, n. 1, pp. 19-39. 2004.
HOCKINGS, Paul (org.). Principles of Visual Anthropology. The Hague: Mouton, 1975.
_____. Principles of Visual Anthropology. Berlim: Mouton de Gruyter, 1995.
HOLMAN, Nigel. “Curating and Controlling Zuni Photographic Images”. Curator, v. 39, n. 2, pp.108-
122. 1996.
HUBBARD, Jim (org.). Shooting Back from the Reservation: A Photographic View of Life by Native
American youth. Nova York: New Press, 1994.
HUTNYK, John. “Comparative Anthropology and Evans-Pritchard’s African Photography”. Critique
of Anthropology, v. 10, n. 1, pp. 81-102. 1994.
ISSAC, Gwyniera. Mediating Knowledges Origins of a Museum for the Zuni People. Tucson: University
of Arizona Press, 2007.
JACKNIS, Ira. “Franz Boas and Photography”. Studies in Visual Communication, v. 10, n. 1, pp.
2-60, 1984.
_____. “Margaret Mead and Gregory Bateson in Bali: Their Use of Photography and Film”. Cultural
Anthropology, v. 13, n. 2, pp. 166-77. 1988.
_____. “In Search of the Image Maker: James Mooney as Ethnographic Photographer”. Visual Anthro-
pology, v. 3, n. 2, pp. 179-212. 1992.
KENDALL, Laurel et al. Drawing Shadows to Stone: The Photography of the Jesup North Pacific Ex-
pedition, 1897-1902. Seattle: University of Washington Press, 1997.
KLIMA, Alan. The Funeral Casino: Meditation, Massacre and Exchange With the Dead in Thailand.
Princeton: Princeton University Press, 2002.
KOPYTOFF, Igor. “The Cultural Biography of Things”. In: APPADURAI, Arjun (org.). The Social
Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, pp.
64-91. 1986.
KRATZ, Corinne. The Ones that Are Wanted: Communication and the Politics of Representation in a
Photographic Exhibition. Berkley: University of California Press, 2002.
KRAUSS, Rosalind. “Photography’s Discursive Spaces”. Art Journal, v. 42, n. 4, pp. 311-19, 1982.
LALVANI, Suren. Photography, Vision and the Production of Moderns Bodies. Albany: State University
of New York Press, 1996.
LARSON, Heidi. “Photography that Listens”. Visual Anthropology, n. 1, pp. 415-32. 1981.
Rastreando a fotografia
Library of Australia, v. 4, v. 45, pp. 55-70, 1994-1995.
_____. Encounter at Nagalrramba. Canberra: Biblioteca Nacional da Austrália, 1996.
POOLE, Deborah. Vision, Race and Modernity: A Visual Economy of the Andean Image World. Prin-
ceton: Princeton University Press, 1997.
_____. “An Excess of Description: Ethnography, Race and Visual Technologies”. Annual Reviews in
Anthropology, n. 24, pp. 159-79. 2005.
POWERS, Willow. “Images Across Boundaries: History, Use, and Ethics of Photographs of American
Indians”. American Indian Culture and Research Journal, v. 20, n. 3, pp. 20-33. 1996.
RICHARD, Jolene. “Sovereignty: a Line in the Sand”. In: Strong hearts: Native American Visions and
Voices. Nova York: Aperture, pp. 51-54. 1995.
ROBERTS, John. The Art of Interruption: Realism, Photography and the Everyday. Manchester:
Manchester University Press, 1998.
ROHDE, Rick. “How We See Each Other: Subjectivity, Photography and Ethnographic Revision. In:
HARTMANN et al. (orgs). Colonising Camera. Cape Toen: Cape Town University Press, 1998.
ROODENBERG, Linda (org.). De Bril van Anceaux: Volkerkundige fotographie vanaf 1860. Leiden:
Rijksmuseum voor Volkerkunde, 2002.
RUBY, Jay. “In a Pic’s Eye: Interpretative Strategies for Deriving Significance and Meaning from
Photographs”. Afterimage, pp. 2-6. mar. 1976.
RYAN, James. Picturing Empire. Londres: Reaktion, 1997.
SALMOND, Anne. “The History and Description of this Meeting House (Wharenui) in Te Kuiti”.
In: EDWARDS, Elizabeth (org.). Anthropology & Photography, 1860-1920. New Haven: Yale
University Press, 1992.
SAMIAN, Etienne. “Bronislaw Malinowski et la photographie anthropologique”. L’Ethnographie, v.
91, n. 2, pp. 107-30, 1995.
SCHERER, Joanna. “The Public Faces of Sarah Winnemucca”. Cultural Anthropology: Journal of the
Society for Cultural Anthropology, v. 3, n. 2, pp. 178-204. 1988.
_____. “Ethnographic Photography in Anthropological Research”. HOCKINGS, Paul (org.). Principles
of Visual Anthropology. Berlim: Mouton de Gruyter, pp. 201-16. 1995.
_____. A Danish Photographer of Idaho Indians: Benedicte Wrensted. Norman: University of Oklahoma
Press, 2006.
SCHINDLBECK, Markus (org.). Die Ethnographische Linse. Berlim: SMPK, 1989.
SCHNEIDER, Arnd. “Unfinished Dialogues: Notes toward an Alternative History of Art and Anthro-
pology”. In: BANKS, Marcus & RUBY, Jay (org.). Made to Be Seen: Perspectives on the History of
Visual Anthropology. Chicago: University of Chicago Press, 2011.
_____. & WRIGHT, Christopher (orgs.). Contemporary Art and Anthropology. Oxford: Berg, 2006.
SEKULA, Alan. “The Body and the Archive”. In: BOLTON, R. (org.). The Contest of Meaning. Cam-
bridge: MIT Press, 1989.
SIMONI, Simonnetta. “The Visual Essay: Redefining Data, Presentation and Scientific Truth”. Visual
Sociology, v. 11, n. 2, pp. 75-82. 1996.
SMALLACOMBE, Sonia. Indigenous Peoples’ Access Rights to Archival Records. Artigo para a Sociedade
Australiana de Arquivistas, 1999. Disponível em: <http://www.archivists.org.au/ events/con99/
smallacombe.html>. Acesso em fev. 2002.
SMITH, Benjamin M. “Images, Selves and the Visual Record: Photography and Ethnographic Com-
plexity in Central Cape York Península”. Social Analysis, v. 47, n. 3, pp. 8-26. 2003.
1
Este artigo é resultado da pesquisa “Onde São Paulo acaba?” realizada com auxílio FAPESP pro-
cesso 2008/10541-0). A autora também participou do projeto temático “A experiência do filme
na antropologia”, coordenado por Sylvia Caiuby Novaes, (FAPESP processo 2009/52880-9).
2
Entendo que as fotos digitais possuem uma materialidade quando carregadas em celulares. Assim
como as fotos em papel, são manuseadas, mostradas, oferecidas (enviadas) etc.
A potência da fotografia
Voltando ao pensamento de Boris Kossoy presente na epígrafe deste artigo,
talvez a primeira das faces da fotografia, posto que a mais visível, seria a que
está ali imóvel no quadro, na aparência (ou aparição) do referente, isto é,
na sua realidade exterior, no conteúdo da imagem passível de identificação
(KOSSOY, 1998, p. 42). As outras faces estão mais ocultas, não explícitas, é
o outro lado do espelho e do documento, nos diz o autor, são as suas possíveis
realidades, no plural.
Dessas tantas realidades a que trago aqui para análise é a que emerge na ima-
gem a partir de uma relação muito especial entre a experiência e a memória.
Essa realidade específica é adensada pelas articulações entre o desejado e vi-
3
As onze oficinas foram realizadas com a participação de todos os pesquisadores do Visurb - Grupo de
pesquisas Visuais e Urbanas da Unifesp (incluindo os bolsistas FAPESP, CAPES e PROEX) a quem
agradeço imensamente. Agradeço também ao antropólogo Edgar Teodoro da Cunha, companheiro
de muitas jornadas na antropologia visual, que atuou de forma fundamental em todas as oficinas.
Há questões que não podem ser depreendidas das imagens em si, mas sim a
partir das falas sobre elas. Nesse caso, olhar não dá conta da experiência que
a imagem fotográfica possibilita. Minha proposta é que façamos aqui um exer-
cício cujo primeiro passo é o movimento do espreitamento. Tomo a noção de
espreitamento de Michel de Certeau (1994), que na busca da compreensão
dos processos e narrativas do cotidiano nos traz uma imagem que Marguerite
Duras criou da leitura como um ato feito no escuro. A leitura é assim, para
Certeau, um ato de espreitamento, uma viagem nômade, sem paradas obriga-
tórias, pois ler é “constituir uma cena secreta”, lugar onde se entra à vontade;
é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência
tecnocrática. O espreitamento é um movimento não assertivo, exploratório.
Imagens cruzadas
A partir desse acervo de imagens é possível agrupar as fotografias em alguns
conjuntos temáticos: “cotidianos”, “paisagens periféricas”, “natureza morta”,
“cenários e personagens”, “um lugar para chamar de seu” e “intervenções” são
alguns dos conjuntos possíveis que nos provocam a espreitá-los com o olhar,
o corpo e o afeto. Nesse movimento em direção às imagens, não há nenhuma
intenção de buscar seu sentido primeiro ou fundamental. Não julgo ser possível
chegar a um único significado para a imagem fotográfica. Estou em busca do
cruzamento de olhares que me permitirá adensar a minha relação com essas
imagens e que me permitirá enxergá-las.
Etienne Samain, a partir da leitura de Didi Huberman e Aby Warburg, nos
provoca a considerar as imagens em seu poder de ideação, ou seja, em seu
4
Parto aqui de uma discussão que desenvolvi no capítulo “Ver, olhar e enxergar a cidade de São Paulo
através de imagens”, do livro São Paulo cidade azul (BARBOSA, 2012, pp. 29-44).
Perspectiva, 2011.
Foto: Fábio Silva.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec;
Unesp, 1990.
BANKS, Marcus, Ruby, Jay (orgs). Made to Be Seen. Chicago/Londres: University of Chicago Press,
2011.
BANKS, Marcus. “Slow Research: Exploring One’s Own Visual Archive”. Cadernos de Arte e Antro-
pologia, v. 3, n. 2. 2014.
BARBOSA, Andrea. São Paulo cidade azul, São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2012.
_____. “Imagem, pesquisa e antropologia”. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 3, n. 2. 2014.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 1994.
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994a.
_____. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994b.
BERGER, John & MOHR, Jean. Another Way of Telling. Vintage Books: Nova York, 1995.
BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
BOSI, Eclea. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CERTEAU, Michel de. História do cotidiano I. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
1
Este artigo foi escrito a partir das pesquisas de doutorado conduzidas pelxs autorxs e financiadas
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP n. 2010/52568-2 e n.
2010/19789-5). Também contou com apoio do Projeto Temático A experiência do filme na antro-
pologia (FAPESP n. 2009/52880-9), coordenado pela profa dra Sylvia Caiuby Novaes.
2
O Grupo de Antropologia Visual (GRAVI), coordenado pela profa dra Sylvia Caiuby Novaes, está
vinculado ao Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) da Universidade de São Paulo,
coordenado pela profa dra Rose Satiko Gitirana Hikiji.
3
Por um lado, a personificação, por outro, pontua Kopytoff na mesma coletânea, algumas situações e
processos sociais são marcados por uma intensa objetificação de pessoas, como no caso vergonhoso
e brutal da escravidão à qual o sistema imperialista ocidental submeteu populações de diversas
partes do planeta, transformando-os em mercadorias (2008, p. 90).
4
O conceito de estética rejeitado pelo autor é, portanto, bastante diferente daquele operacionali-
zado por Marilyn Strathern ao discutir o que chama de “estética melanésia de gênero”. Ver a esse
respeito, Strathern (1993; 2013).
5
No original: “[...] the theoretical study of ‘social relations in the vicinity of objects mediating social
agency’”. Todas as traduções dos textos originais em língua inglesa foram realizadas pelxs autorxs
do artigo.
6
Lagrou (2007) argumenta que a proposta de Gell de aproximar artefatos e pessoas parece menos
estranha ao esforço teórico da antropologia se pensarmos que esta se debruça, desde seus primórdios,
sobre discussões acerca do animismo. Seguindo esta linha de pensamento, a ênfase recai sobre o
que objetos fazem, como agem e não ao que significam, assertiva que estaria mais alinhada a uma
abordagem simbólica dos estudos antropológicos da arte.
7
Os Asuriní do Xingu são um grupo Tupi que vive na margem direita do Médio rio Xingu, no Pará.
Foram contatados em 1971 por missionários católicos austríacos contratados por uma empresa
interessada na extensão da província ferrífera dos Carajás até a margem direita do Xingu. Dividos
atualmente em duas aldeias, Koatinemo e Ita’aka, os Asuriní somam cerca de duzentas pessoas. Na
ocasião do contato, os Asuriní eram metade da população atual. Para discussão da fotografia como
objeto patogênico para estes ameríndios, ver Villela (2015).
8
Crossdressers são pessoas que, eventualmente, se vestem com roupas do gênero associado ao sexo
oposto. As crossdressers costumam referir a si próprias no feminino quando estão montadas, isto é,
travestidas – momento em que se pensam como princesas. Por oposição, quando estão desmontadas,
levam vida de sapo, sua vida cotidiana e diária na qual assumem uma apresentação social masculina.
Para uma discussão sobre políticas e poéticas de travestimento que inclui a análise da prática de
crossdressing, ver Grunvald (2015).
Como signo por conexão física marcado pela semelhança, a representação fo-
tográfica encontra-se bastante próxima das leis mágicas enunciadas por Frazer.
De fato, para falar apenas da menos óbvia lei de contiguidade, a fotografia par-
tilha de princípios da magia por contiguidade assim como definida por Mauss:
A forma mais simples dessa noção de contiguidade simpática nos é dada na identifi-
cação da parte ao todo. A parte vale pela coisa inteira. Os dentes, a saliva, o suor, as
unhas, os cabelos representam integralmente a pessoa; de tal modo que, por meio
deles, pode-se agir diretamente sobre ela, seja para seduzí-la, seja para enfeitiçá-la.
A separação não interrompe a contiguidade, pode-se mesmo reconstituir ou susci-
tar um todo com o auxílio de uma de suas partes: Totum ex parte. (2003, p. 100)
A fotografia, assim como a magia, não pode viver de abstração, uma fotografia
é sempre de algo ou de alguém, e ambas, fotografia e magia, só existem na
sua relação com o mundo sensível e concreto (CAIUBY NOVAES, 2008).
9
No original: “Frazer’s mistake was, so to speak, to imagine that magicians had some non-tandard
physical theory, whereas the truth is that ‘magic’ is what you have when you do without a physical
theory on the grounds of its redundancy, relying on the idea, which is perfectly practicable, that
the explanation of any given event (especially if socially salient) is that it is caused intentionally”.
10
No original: “first, that like produces like, or that and effect resembles its cause; and, second, that
things which have once been in contact with each other continue to act on each other at a distance
after the physical contact has been severed”.
11
No original: “[...] on this notion of the copy, in magical practice, affecting the original to such a
degree that the representation shares in or acquires the properties of the represented”.
12
No original: “[...] the mimetic faculty, the nature that culture uses to create second nature, the
faculty to copy, imitate, make models, explore difference, yield into and become Other. [...] In an
older language, this is ‘sympathetic magic’”.
13
No original: “[...] why are they Other, and why are they the Colonial Other?”.
14
No original: “[...] ‘the primitive’ within modernity as a direct result of modernity”.
15
No original: “[...] modernity provides the cause, context, means, and needs, for the resurgence
– not the continuity – of the mimetic faculty. [...] mass culture in our times both stimulates and
is predicated upon mimetic modes of perception in with spontaneity, animation of objects, and a
language of the body combining thought with action, sensuousness with intellection, is paramount”.
16
No original: “[...] works of art, images, icons, and the like have to be treated, in the context of an
anthropological theory, as person-like; that is, sources of, and targets for, social agency”.
17
No original: “[w]ith good reason postmodernism has relentlessly instructed us that reality is artifice
yet, so it seems to me, not enough surprise has been expressed as to how we nevertheless get on
with living, pretending – tanks to the mimetic faculty- that we live facts, not fictions”.
18
No original: “Ideology is the crucial term in Marx’s analysis of mind and consciousness, and com-
modities are his central physical objects in the real world”.
19
No original: “The metaphor for ideology, or as Marx would say, the image behind the concept, is the
camera obscura, literally a ‘dark room’ or box in which images are projected. The image behind the
concept of commodity, on the other hand, is the fetish or idol, an object of superstition, fantasy, and
obsessive behavior”. Mitchell argumenta que “[o] conceito de ideologia é baseado, como a palavra
sugere, na noção de entidades mentais ou ‘ideias’ que provem as matérias dos pensamentos. Na medida
em que estas ideias são entendidas como imagens – como signos pictóricos e gráficos impressos ou
projetados no meio da consciência – portanto, a ciência das ideias, é realmente uma iconologia, uma
teoria das imagens” (1986, p. 164). No original: “The concept of ideology is grounded, as the word
suggests, in the notion of mental entities or ‘ideas’ that provide the materials of thought. Insofar
as these ideas are understood as images – as pictorial, graphic signs imprinted or projected on the
medium of consciousness – then ideology, yhe science of ideas, is really an iconology, a theory of
imagery”. Os equipamentos e mecanismos óticos associados ao surgimento da fotografia se trans-
formaram em símbolos confundidos com a própria ideia de Iluminação. “A camera obscura tem sido
sinônimo de empiricismo, observação racional e reprodução direta da visão natural desde que Locke
a utilizou como metáfora para entendimento” (id., ibid.; p. 168). No original: “The camera obscura
had been synonymous with empiricism, with rational observation, and with the direct reprodution
of natural vision ever since Locke employed it as a methaphor for understanding”.
20
No original: “Ideology was to be a method for separating true ideas from false ones by determining
which ideas had a true connection with external reality”.
21
Ao discutir este conceito, Marcio Goldman lembra que “[a] partir do século XIX, o termo conhe-
ceu um estranho destino. Por um lado, foi usado como conceito central por alguns dos principais
fundadores das ciências humanas modernas: Comte, Marx e Freud, para citar apenas os maiores.
Por outro, foi quase unanimemente considerado por etnógrafos e antropólogos uma simples má
tradução de ideias e objectos variados e, até certo ponto, muito heterogêneos” (2009, p. 111). De
fato, Mauss escreve que :[a] noção de fetiche deveria, acreditamos, desaparecer definitivamente
da ciência e ser substituída pela de mana. […] Além disso, ao escrever a história da ciência das
religiões e da etnografia, alguém ficaria absorto com o papel sem mérito e fortuito que uma noção
como fetiche teve nos trabalhos teóricos e descritivos. Ela corresponde a nada mais do que um
imenso mal-entendido entre duas civilizações, a africana e a europeia” (MAUSS, 1968, pp. 216-17
e 244-45).
22
No original: “[...] displaced the great object of Enlightenment criticism – religion – into a causative
problematic suited to its own secular cosmology, whose ‘reality principle’ was the absolute split
between the mechanistic-material realm of physical nature […] and the end-oriented human realm
of purposes and desires”.
23
No original: “[...] the epitome of the destructive, consumptive political economy of capitalism; it
dispels the ‘aura’ of things by reproducing them in a leveling, automatic, statiscally rationalized form”.
24
No original: “[...] ‘the first truly revolutionary means of production’ (“Work of Art”, p. 224) [...]
a medium that was invented ‘simultaneously with the rise of socialism’ and that is capable of re-
volutionizing the whole function of art, and of the human senses as well”. E mais à frente: “[...] as
both the material incarnation of ideology and as a symbol of the ‘historical life-process’ [...] that
would bring an end to ideology”.
Lembramos que “Benjamin, certamente, não foi o único a expressar a ambivalência em relação à
câmera. As intermináveis batalhas sobre o status artístico da fotografia e a discussão mais ampla
do quanto a imagem fotográfica possui uma ontologia especial refletem sentimentos contraditórios
similares. É a fotografia arte ou mera indústria? Ela é ‘Rembrandt aperfeiçoado’, como Samuel Morse
pensou, ou uma nova distração para a ‘multidão idólatra’ como Baudelaire a caracterizou? (‘Um
Deus vingador ouviu as orações da multidão; Daguerre foi seu messias’). A câmera provem uma
encarnação das representações objetivas e científicas pela mecanização do sistema de perspectiva
como Gombrich sugere? Ou é um instrumento de ‘materialismo contemplativo’, ‘um aparato
puramente ideológico’ cuja visão ‘monocular’ ratifica ‘o centramento metafísico do sujeito’ no
humanismo burguês como Marcel Pleynet sustenta?” (MITCHELL, 1986, p. 181).
No original: “Benjamin was not the only one to express ambivalence about the camera, of course.
The endless battles over the artistic status of photography and the larger question of whether the
photographic image has a special ‘ontology’ reflect similar contradictory feelings. Is photography
a fine art or a mere industry? Is it ‘Rembrandt perfected,’ as Samuel Morse thought, or a new
distraction for the ‘idolatrous multitude,’ as Baudelaire characterized it? (‘An avenging God has
heard the prayers of this multitude; Daguerre was his messiah.’) Does the camera provide a ma-
terial incarnation of objective, scientific representation by mechanizing the system of perspective,
as Gombrich argues? Or is it an instrument of ‘contemplative materialism,’ ‘a purely ideological
apparatus’ whose ‘monocular’ vision ratifies ‘the metaphysical centering on the subject’ in bourgeois
humanism, as Marcel Pleynet contends?”.
25
No original: “The shift preserves the general indictment of idolatry in capitalist society, but moves
it from the realm of ideals and theories into the sphere of material objects and concrete practices”.
26
É prudente lembrar que a apropriação de objetos advindos de culturas não ocidentais – que, no
contexto do modernismo eram, normalmente, fetiches africanos – na arte do Ocidente foi, via de
regra, extremamente problemática. Para uma discussão sobre a histórica exposição “Primitivism” in
20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern, realizada no Museu de Arte Moderna de
Nova York (MOMA) em 1984, ver Clifford (1988). Ainda sobre esta exposição, ver Price (2000),
para quem a ênfase nas afinidades formais dos objetos africanos e daqueles elaborados por mestres
da arte ocidental como Picasso, Brancusi e Giacometti obliterou desigualdades sociais e políticas
importantes em nome de uma comunhão ilusória.
27
No original: “The deepest magic of the commodity fetish is its denial that there is anythong magical
about it: ‘the intermediate steps of the process vanish in the result and leave no trace behind’”.
Todas as aspas simples internas às citações de Mitchell são d’O Capital de Marx.
28
No original: “But is not exactly language our ultimate and inseparable fetish? And language, precisely,
is based on fetishist denial (‘I know that, but just the same’, ‘the sign is not the thing, but just the
same’ etc.)”.
Ao retomar a genealogia do conceito de fetiche levada a cabo por Pietz (1985; 1987; 1988), Taussig
a considera, ela própria, como análoga ao fetiche. Ele argumenta que, após os muitos deslocamentos
sofridos pela noção de fetiche, “[o] que se manteve, ativa e poderosa, foi a própria palavra – enig-
maticamente incompleta. Poderíamos dizer que apenas o significante, desolado em seu apagado
significado, acumulado e dissipado pelas névoas do comércio, religião, bruxaria, escravidão e o que
passou a ser chamado de ciência – e isto é precisamente o mecanismo formal do fetichismo (tal
qual vemos usado por Marx e Freud), no qual o significante depende, mas apaga seu significado”
(1993a, p. 225). No original: “What is left, active and powerful, is the word itself – enigmatically
incomplete. Just the signifier, we could say, bereft of its erased significations gathered and dissipated
through the mists of trade, religion, witchcraft, slavery, and what has come to be called science –
and this is precisely the formal mechanism of fetishism (as we see it used in Marx and by Freud),
whereby the signifier depends upon yet erases its signification”.
29
No original: “While the social reception of film is mainly oriented towards a show-business-like or
imaginary referent, the real referent is felt to be dominant in photography”.
30
No original: “[...] timelessness of photography which is comparable to the timelessness of the
unconscious and of memory”.
31
No original: “Even when the person photographed is still living, that moment when she or he was
has forever vanished. Strictly speaking, the person who has been photographed – not the total person,
who is an effect of time – is dead: ‘dead for having been seen’, as Dubois says in another context”.
32
No original: “[...] act of cutting off a piece of space and time, of keeping it unchanged while the
world around continues to change”.
33
No original: “Like Adorno and Benjamin, not also this San Blas Cuna shaman, my concern is to
reinstate in and against the myth of Enlightenment, with is universal, context-free reason, not
merely the resistance of the concrete particular to abstraction, but what I deem crucial to thought
that moves and moves us – namely, it sensuousness, its mimeticity”.
Lembremos a distinção, realizada por Lévi-Strauss (2006), entre o pensamento científico, que
opera por abstrações, e o pensamento selvagem, que aparece como uma ciência do concreto. Se a
conjugarmos com as reflexões de Taussig na chave do ressurgimento do primitivismo na moderni-
dade, poderíamos, quem sabe, pensar nas práticas fotográficas como acionando um pensamento
selvagem no seio dos mecanismos de representação ocidental.
34
“Tal como eu interpreto (e devo enfatizar a natureza idiossincrática da minha leitura), um aspecto
não menos importante da análise de Benjamin das modernas máquinas miméticas, particularmente
com respeito aos poderes miméticos levados a cabo pela imagem publicitária, é sua visão segundo a
qual é precisamente propriedade dessas máquinas jogar com e mesmo restaurar o sentido esquecido
da particularidade contato-sensória que anima o fetiche. Essa capacidade de restauração transforma
o que ele chama de ‘aura’ (que eu aqui identifico com o fetiche das mercadorias) para criar um
tipo diferente e secular de maravilhoso” (TAUSSIG, 1993, p. 23). No original: “As I interpret it
(and I must emphasize the idiosyncratic nature of my reading), not the least arresting aspect of
Benjamin’s analysis of modern mimetic machines, particularly with regard to the mimetic powers
striven for in the advertising image, is his view that it is precisely the property of such machinery
to play with and even restore this erased sense of contact-sensuous particularity animating the
fetish. This restorative play transforms what he called ‘aura’ (which I here identify with the fetish
of commodities) to create a quitte different, secular sense of the marvelous”.
Nesse sentido, portanto, é como se o ressurgimento das práticas miméticas de reprodução e o
inconsciente ótico por elas possibilitado – com sua consequente animação da relação contato-
-sensibilidade – fossem o contrabalanço necessário do fetichismo da mercadoria, restabelecessem a
proximidade sensível que a alienação do trabalho na forma de fetichismo da mercadoria instaurou.
35
Mais adiante no livro, acrescenta: “E se existe algo ligado àquele conceito de Benjamin e T. W.
Adorno, relativo ao ressurgimento do primitivismo, juntamente com o fetichismo das mercadorias
(pensem um momento na mão invisível de Adam Smith como a versão moderna no animismo),
então foi no teatro da crueldade racista, situado naquela fronteira que unia a selvageria à civiliza-
ção, que a força fetichista da mercadoria fundiu-se com os fantasmas do espaço da morte, para o
estonteante benefício de ambas. Penso aqui não em espaços estáveis e incrementados em direção
ao progresso, mas em súbitas erupções de branqueamento das zonas escuras, nas margens das
nações em desenvolvimento, onde a mercadoria se encontrou com o índio e apropriou-se, através
da morte, do poder fetichista da selvageria, criado pelo europeu e que o enfeitiçou” (TAUSSIG,
1993, p. 134).
36
McClintock considera que, em meados do século XIX, houve um deslocamento das narrativas sobre
raça, classe e gênero acompanhado de uma redução a uma única narrativa que impunha a imagem
da Família do Homem. “A ‘família’ evolucionária oferecia uma figura metafórica indispensável pela
qual distinções hierárquicas frequentemente contraditórias podiam ganhar a forma de uma narrativa
de gênese global [...]. Ao mesmo tempo, tinham de ser encontradas tecnologias do conhecimento
que dessem à figura da família uma forma institucional. As tecnolgias centrais que surgiram para
a exibição mercantil do progresso e da família universal foram, sugiro, as instituições vitorianas
quintensenciais do museu, da exibição da fotografia e da propaganda imperial” (2010, p. 78).
Para uma discussão sobre os dispositivos performativos de poder operantes nas representações e
práticas museográficas, ver Donna Haraway (1989).
Pensamentos inconclusivos
John Berger sugeriu que “[a] velocidade com que os possíveis usos da fotografia
foram avaliados é certamente uma indicação da profunda e central aplicabili-
37
No original: “The speed with which the possible uses of photography were seized upon is surely
an indication of photography’s profound, central applicability to industrial capitalism”.
38
Para a importância da mímesis no contexto da construção controlada do Oriente e do Outro colonial,
ver Said (2007) e Bhabha (1998).
39
Para uma análise sobre as fotografias vazadas de Abu Ghraib, ver Butler (2009).
40
A câmera fotográfica suga o ynga (princípio vital) da pessoa fotografada ao reproduzir sua imagem,
ayngava. Os Asuriní traduzem o ynga como “sombra”, princípio vital visualizado mas sem matéria;
ynga se manifesta através da voz, da pulsação do corpo e do coração, é substância vital que anima
o corpo (MÜLLER, 1996, p. 163). Ayngava em Asuriní pode ser traduzido por imitação, réplica,
medida, imagem. A relação entre ayngava (imagem) e ynga (princípio vital) está na base da eficácia
patogênica da fotografia. Apesar de designarem coisas diferentes, o significado dos dois termos estão
implicados um no outro. Müller trabalha com a ideia de que, apesar de se tratar de uma diferença
apenas morfofonêmica entre ynga e ayngava, pois designam coisas diferentes, o significado de uma
constitui o significado da outra: ayngava (imagem) contem ynga (princípio vital). A conclusão de
Müller sobre esta relação (entre ayngava e ynga) “[...] é que, para os Asuriní, a ‘imagem’, ela pró-
pria, é constitutiva da pessoa (enquanto ser), distinguindo-se do princípio vital/substância, ynga,
por sua reprodução plástica, mas igualmente princípio vital e não apenas reprodução, no sentido
de representação de algo ausente” (2000, p. 186).
41
Em seu livro Retratos de família, Miriam Moreira Leite escreve que “tanto o temor às imagens
de vários grupos étnicos e religiosos como as fobias ao retrato, da parte de indivíduos, provêm da
característica da imagem como duplo e/ou reflexo, usada muitas vezes como substituto, no lugar
da pessoa retratada” (2001, p. 24).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos
[1947]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
APPADURAI, Arjun. “Introdução: mercadorias e a política de valor” [1986]. In: _____. A vida social
das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2008.
BAZIN, André. “A ‘ontologia da imagem fotográfica’”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do
cinema [1945]. Rio de Janeiro: Graal:/Embrafilmes, 2008.
BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia” [1931]. In: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
BERGER, John. About Looking [1972]. Nova York: Pantheon, 1980.
BHABHA, Homi. O local da cultura [1994]. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BUTLER, Judith. Frames of War: When is Life Grievable? Londres/Nova York: Verso, 2009.
CAIUBY NOVAES, Sylvia. “Imagem, magia e imaginação: desafios ao texto antropológico”. Revista
Mana, v. 14, n. 2, pp. 455-75. 2008.
CLASTRES, Pierre. “Entre Silence et dialogue”, In: ABENSOUR, Miguel & KUPIEC, Anne, Pierre
Clastres. Paris: Sens & Tonka, 1968.
42
No original: “Surely this is sympathetic magic in a modernist, Marxist revolutionary key”.
Introito
Inanimados sob uma óptica que vincula a ação no mundo ao exercício de certos
atributos humanos como fala, consciência e pensamento, os objetos – imagens,
sons e obras de arte, em particular – foram por muito tempo tratados como
coadjuvantes sociais por grande parte dos pesquisadores das ciências huma-
nas. O processo ainda corrente de afirmação epistemológica de um conheci-
mento sensível, capaz de retirar do anonimato analítico instâncias refratárias
a procedimentos objetivistas de interpretação, trilhou um caminho árduo, seja
pela peculiaridade mesma da matéria de estudo, seja em razão da hegemonia
de paradigmas “universais”, que tomam como referência teórica modelos
desenvolvidos para o estudo da linguagem. Ao postular um conhecimento
feito de ideias, emoções e figuras de imaginação, David MacDougall ressalta
que estamos acostumados a entender o pensamento como algo relacionado à
linguagem. O autor detecta o problema de se tratar imagens como produto
da linguagem, ou mesmo uma linguagem em si mesma, o que implica negli-
genciar muitos dos modos através dos quais o conhecimento é produzido.
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n. 2009/52880-9.
Durante a realização da pesquisa contei com o apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desen-
volvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP, na condição de bolsista de doutorado.
2
O reconhecimento oficial da devoção ao Sagrado Coração de Jesus data do final do século XVII,
depois das revelações recebidas por santa Margarida Maria Alacoque em Paray-le-Monial, na Fran-
ça, entre os anos de 1673 e 1675. Apesar de este prodígio haver imprimido o impulso decisivo
para legitimar oficialmente o seu culto litúrgico nos templos católicos, vários conventos da Europa
medieval a praticavam em forma de culto privado. Segundo a tradição católica, ocorreram várias
revelações anteriores àquela concedida a santa Margarida, como as que teriam recebido, ainda no
século XIII, santa Matilde e santa Gertrudes, esta última considerada a teóloga do Sagrado Coração
na Idade Média (MELO, 1998). Por intermédio da encíclica Annum Sacrum, de 25 de Maio de
1899, o papa Leão XIII promulgou a consagração do gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus.
3
Em certa medida, essa discussão inscreve-se no programa crítico de reflexões mais abrangentes
referentes à autoridade etnográfica, as quais escapam ao escopo de nossa pesquisa. Nesse debate
amplo, José Jorge de Carvalho quando, rastreando “metamorfoses do olhar etnográfico”, sugere
que a assimilação no Brasil de um olhar etnográfico que repensa a verdade incorrupta do etnógrafo
“se deu mais na introdução do exercício da subjetividade do que na discussão epistemológica da
reflexividade” (2001, p. 114).
4
No original: “the pictorial or graphic image which is a lower form – external, mechanical, dead, and
often associated with the empiricist model of perception – and a ‘higher’ image which is internal,
organic, and living”.
5
No original: “By suggesting that physical images merely serve a mediatory function, however, he
ultimately eliminates the need for a specific category of visual images; in the final analysis, there
are only images - mental images - on the one hand and media - the material embodiments of images
- on the other”.
6
No original: “The theory is premised on the idea that the nature of the art object is a function of
the social-relational matrix in which it is embedded. It has no ‘intrinsic’ nature, independent of
the relational context. (...) But in fact anything whatsoever could, conceivably, be an art object
from anthropological point of view”.
7
A doutrina católica relativa aos sacramentos reconhece a existência de “sacramentais”, ou seja,
“sinais sagrados instituídos pela Igreja, cuja finalidade é preparar os homens para receberem os
frutos dos sacramentos e santificarem as diferentes circunstâncias da vida”, segundo o Catechism
of the Catholic Church. É esse o contexto semântico que imprimimos ao termo sacramental, seja
na condição de qualidade ou de substantivo, aludindo particularmente às virtudes sagradas que se
encerram na matéria e na forma do objeto.
A forma-altar
Em um pequeno estudo sobre as “paredes dedicadas ao Sagrado Coração de
Jesus em Juazeiro do Norte”, Angelica Höffler, mesmo sem adentrar a dis-
cussão sobre o arranjo iconográfico dos altares, registra a sua suspeita sobre a
existência de uma forma que serve de orientação para a organização das paredes:
A organização da Corte pode ser aleatória. Santos são agregados à parede à medida
que são adquiridos. Contudo, de modo geral, parece-nos que a princípio uma ordem
é estabelecida. Baseado em um repertório hagiográfico comum, cada fiel organiza
sua parede de modo que componha um texto. As imagens ali presentes dialogam
entre si e sua organização denota a representação que se tem da fé, dos valores e
das necessidades daquela família. (2007, p. 5; grifo nosso)
Para o estudo do poder sagrado dos altares, tanto no que concerne às agências
de seus componentes (Gell), como em relação a sua condição de instância em
si mesma sagrada (Geertz), constitui-se imprescindível a identificação dessa
regra que orienta a distribuição espacial dos objetos, substrato geométrico que
ordena a composição visual e a própria contemplação dos altares domésticos, a
qual chamaremos forma-altar. Uma parcela da potência sacramental do altar
8
O ambiente 3D foi construído através da plataforma Sketchup. A elaboração da montagem foi
concebida a partir da associação de elementos virtuais e de objetos retirados dos próprios altares
que fotografamos. Os módulos que retratam os santos e os retratos pintados são imagens reais
inseridas em molduras virtuais, procedimento que nos possibilitou modelar a configuração mais
representativa desses espaços, preservando seu conteúdo iconográfico.
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, processo nº
2009/52880-9, e do projeto de pós-doutorado “O funeral Bororo: ritual, performance e imagens”,
processo nº 2008/56438-6, ambos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
2
Os Bororo estão distribuídos atualmente em nove aldeias no estado do Mato Grosso. O Instituto
Socioambiental reportava uma população de 1.686 indivíduos em 2012. Disponível em: <http://
pib.socioambiental.org/pt/povo/bororo/242>. Acesso em jan. 2016.
3
Doutorado realizado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da USP, com finan-
ciamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
4
Pós-doutorado realizado no Departamento de Antropologia da USP, com financiamento da FAPESP.
5
Ritual da vida. Edgar Teodoro da Cunha. cor. 30 min. DVCAM, 2005. Apoio: Lisa – Laboratório
de Imagem e Som/USP; FAPESP. Recebeu o primeiro prêmio na categoria “Humanístico-Social”
no 1o Festival de Cine y Vídeo Científico del Mercosur, realizado em Buenos Aires, Argentina, em
2005, e promovido pelo Instituto Universitario Nacional de Artes (IUNA) e o Instituto Nacional
de Cine y Audiovisuales (INCAA).
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
sentação à exposição, Didi-Huberman evidencia a filiação do projeto ao atlas
de imagens de Aby Warburg, o Atlas Mnemosyne, em que Warburg propunha
um modo singular de compreender as imagens reunindo todos os objetos,
que incluiriam imagens, mas não apenas elas, em um sistema móvel em que
seria possível desmontar, montar, remontar, evidenciando as relações possíveis
entre os objetos por meio desse dispositivo, sem perder de vista a memória
das imagens. Essa mesa de montagem de imagens heterogêneas e fragmentadas
possibilitaria, por meio da reconfiguração da ordem e dos lugares das coisas,
estabelecer sentidos imprevistos que resultavam desse processo de superposição
e que não residiam apenas no valor intrínseco de cada imagem ou objeto, mas
nas relações estabelecidas entre eles.
Quando diferentes imagens são colocadas em relação, por meio de um pro-
cedimento de montagem como este, podemos modificar sua configuração,
estabelecer novas constelações e novos caminhos do pensamento. Essa recon-
figuração permite que as imagens “tomem posição”, para usar uma expressão
cara a Didi-Huberman. As relações colocadas em evidência pela montagem
proporcionam uma “legibilidade” que potencializa o que está à margem, o
fragmentário, o segmentado, o rastro e seus indícios independentemente da
possibilidade de se inventariar, classificar, criar organizações definitivas, catálogos
exaustivos para repertórios que resistem a serem submetidos a esses processos.
As imagens Bororo as quais me refiro nesta reflexão de conjunto têm exata-
mente estas características: fragmentárias, produzidas em diferentes épocas e
suportes, com distintas possibilidades de resgate de seus elementos contextuais,
produzidas por variados processos, interesses e sujeitos históricos. E são ao
mesmo tempo, em seu conjunto, imagens extremamente eloquentes sobre a
história da relação dos Bororo com o mundo envolvente a despeito de serem
silenciosas quanto ao ponto de vista deste grupo que, mesmo nos dias de hoje,
pouca visibilidade tem nos fluxos comunicativos e de sentido envolvendo as
diferentes alteridades e minorias no cenário nacional.
O silêncio e a eloquência nos levam a algo resultante de um palimpsesto de
memória, de fragmentos, de vestígios, sedimentados ao longo dos anos em
diferentes arquivos. Essas imagens não são apenas fósseis de um referente que
se perdeu, uma forma sem vida, resultantes pálidas de um processo técnico
que as produziu, mas antes de mais nada são ainda resultantes de um gesto e
de um olhar, são formas que podem articular novos sentidos, elas têm a marca
da ação que as produziu e que podem oferecer novas conexões, são “formas
que pensam” (SAMAIN, 2012).
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
Instigado por essa reflexão, a partir da qual podemos relacionar as imagens por
meio de um pensamento próprio a elas, é que retomo o material imagético acu-
mulado nos anos de pesquisa a que me dediquei a explorar aspectos dos registros
visuais sobre os Bororo, imagens oriundas de diferentes arquivos, produzidas em
diferentes contextos e experiências e ainda, de forma complementar, as imagens
produzidas por mim ao longo da pesquisa de campo, desde o ano 2000, quando
iniciei minha relação com os Bororo.
Um primeiro arranjo abrangente dessas imagens envolve o conjunto de fil-
mes produzidos sobre os Bororo, ao longo de um grande intervalo de tempo,
compreendendo desde 1917 até a contemporaneidade. Esses filmes apresentam
uma diversidade de formas, linguagens e conteúdos, possuindo propósitos,
contextos e circulação bem diversos.
Uma avaliação inicial desse conjunto de filmes evidencia a atenção a aspectos da
vida ritual dos Bororo, com especial destaque para o ciclo funerário, elemento
que também aparece com grande ênfase na literatura antropológica produzida
sobre eles. Assim, Rituais e festas Bororo, filmado em 1917 por Luiz Thomaz
Reis, nos lega as primeiras imagens em movimento sobre esse complexo ci-
clo ritual. Imagens sobre o mesmo tema foram captadas posteriormente por
Dina e Claude Lévi-Strauss, em 1935, na primeira expedição de pesquisa de
ambos, pelo Brasil Central, no período em que estavam radicados no país, nos
oferecendo ainda um importante conjunto fotográfico sobre os Bororo do rio
Vermelho. Há ainda, sobre o mesmo tema, as imagens produzidas por Heinz
Foerthmann, em 1953, quando era fotógrafo da Seção de Estudos do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI),6 dirigido por Darcy Ribeiro. Se a vida ritual é
uma constante que relaciona esses filmes, cada uma dessas abordagens, no
entanto, traz diferenças importantes. No filme de Reis, que é uma significativa
exceção dentro de sua própria obra fílmica, temos a construção de uma alegoria
da nação, onde o índio tem seu lugar, mas como selvagem e ainda projetado
em um passado remoto, momento da constituição da ideia de nação e de origem
de uma identidade coletiva, operação similar à empreendida pela literatura
indianista, ao longo da segunda metade do século XIX e ainda pela pintu-
ra acadêmica, no mesmo período. Já os filmes de Dina e Claude Lévi-Strauss
e o de Foerthmann apresentam uma ênfase muito maior em um olhar mais
objetivo, que busca uma especificidade, uma singularidade dessa cultura e povo
6
Sobre esse conjunto, ou parcialmente, escreveram vários autores como Sylvia Caiuby Novaes (2006),
Fernando de Tacca (2001), Marcos de Souza Mendes (2006) e Edgar Teodoro da Cunha (2005).
7
Em relação aos filmes de Baker e Cotlow, tive acesso a eles na íntegra quando, em dezembro de
2013, pude pesquisar nos acervos do Human Studies Film Archives no Smithsonian Institute, em
Washington. Além do acesso aos filmes, pude ter acesso a material documental sobre os mesmos.
Existem poucas referências críticas a essas obras em análises antropológicas dentre as quais destacaria
o trabalho de Luciana Martins (2013). Quanto ao filme Mato Grosso, tive acesso a ele em 2011
por meio do Penn Museum, da Universidade da Pensilvânia, que na época o estava restaurando
e, juntamente com Sylvia Caiuby Novaes, levamos esse material para campo para ser exibido aos
Bororo e traduzimos e legendamos as partes do filme faladas em Bororo, neste filme pioneiro no
uso do som.
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
em um contexto mais amplo de relação com a alteridade, e especificamente em
relação aos Bororo.
Os filmes de Aloha Baker e Lewis Cotlow e ainda o de Crosby, Clarke e Newell
são ótimos exemplares de diferentes épocas que combinam viagens a lugares
distantes com alguma emoção e que resultam muitas vezes em filmes abso-
lutamente exotizantes, transformando, por vezes, um grupo como os Bororo
em um amálgama de referências a serviço de uma narrativa que busca entreter
plateias ávidas por emoções de viagens em localidades distantes.
O filme de Cotlow nos propõe uma narrativa inverossímil e fantasiosa de
Bororos belicosos que poderiam receber agressivamente visitantes, como o
próprio diretor/aventureiro, e esta indicação é utilizada na construção fílmica
como elemento dramático. Cotlow é “aceito” pelos Bororo e com isso temos
na sequencia a realização de uma festa, com danças, em que os Bororo parti-
cipam, exemplarmente ornamentados, com música, algo com tambores que
nada tem a ver com a expressão sonora Bororo, e por fim há ainda a utilização
de um excerto retratando mulheres e crianças entrando em uma casa indíge-
na, que não é Bororo, mas é mostrada no filme como se fosse, para indicar a
confiança dos Bororo no visitante a ponto de mostrarem suas casas e famílias.
Aqui a ideia da aventura está em primeiro plano em detrimento de qualquer
perspectiva documental, pois a narrativa e economia fílmica estão a serviço
da construção de uma ficção.
Os outros dois filmes apresentam outras singularidades: Baker, em primeira
pessoa, também nos oferece um filme de aventura com uma narrativa centrada
em uma diretora/viajante/aventureira, no entanto nos mostra muito mais a
descoberta do exótico, corporificado pelos Bororo, por essa personagem, que
se encanta por detalhes da vida cotidiana, e participa de diferentes momentos
das atividades desse cotidiano da aldeia, com seus evidentes limites, buscando
perceber as peculiaridades dessa cultura tão diferente em contraste com a sua.
O filme de Crosby, Clarke e Newell por outro lado, além dessa filiação ao
gênero dos travelogues, apresenta a ambiguidade de ter sido financiado pelo
Penn Museum,8 e, portanto, a expedição que o produziu somava ao gênero de
filme de viagem a qualidade do filme científico. Isso impõe uma narrativa hí-
brida, que utiliza dispositivos de construção dos filmes de viagem, com ênfase
em aspectos do deslocamento, da paisagem pitoresca, da emoção da caçada à
8
The University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Anthropology, também conhecido como
Penn Museum – <www.penn.museum>.
9
Refiro-me aqui à missão que atua principalmente na Terra Indígena Meruri, ao norte do Mato
Grosso.
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
em tom grandiloquente e com comentários “pitorescos”, por outro lado temos
a possibilidade de uma contraleitura se nos centrarmos nesse personagem
Bororo, que como disse, não tem seu nome mencionado, e na cena é referido
apenas como “este índio esteve em Roma e Paris, e foi educado pelos padres,
tendo o curso de bacharel”. Aipobureu presenteia Aboim com objetos Bororo,
como um arco ornamentado e um adorno de penas, e nesta ação conversa com
o brigadeiro ladeado por dois padres salesianos, diretores da missão. Outros
Bororo aparecem – anciãos, e outros, jovens – e fazem uma performance coletiva
com movimentos sincronizados de ginástica. Nessa curta sequência fílmica, o
que se descortina são corpos Bororo que são conformados a um novo mundo
como “civilizados”, e para que não haja dúvida quanto a isso, uma cerimônia
de hasteamento da bandeira brasileira é realizada.
David MacDougall em seu artigo “O corpo no cinema” nos chama a atenção
para o aspecto do corpóreo que as imagens fílmicas evocam, de uma presença
que não é apenas a de um referente, mas de uma relação envolvendo o fazer
fílmico. O corpo que está defronte à câmera é tão evidente quanto o corpo que
filma. E mais, há ainda o fato de como esses corpos de alguma forma ressoam
nos nossos enquanto espectadores.
O que esses corpos significam para nós, e como estão associados a nossos próprios
corpos, têm sido objeto de fascinação desde a invenção do filme, mas com muita
frequência a perturbação que eles criam é desmembrada em vias alternativas de
teorias estéticas, psicanalíticas e políticas. É importante recuperar essa perturbação,
se não pretendemos reduzir os filmes a signos, símbolos, e outros significados
domesticados. (MACDOUGALL, 1999, p. 124)
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
da vida ritual Bororo.
Uma primeira elaboração desse material, para além de sua utilização analítica
nos escritos até agora publicados, foi empreendida no processo de realização de
Ritual da vida, um filme de caráter etnográfico, que dialogava com a escrita et-
nográfica, mas que propunha um dispositivo que possibilitasse uma reflexão sobre
o sensível, ou, como mencionei acima, sobre os “corpos, gestos e sensibilidades”
Bororo possíveis de serem potencializados por meio da linguagem audiovisual.
Se em princípio buscava discutir o uso de recursos sonoros e visuais para a
construção de narrativas sobre alteridades e intertextualidades entre dife-
rentes modos de representação do outro, novas perspectivas se abriram com
a possibilidade de produção de imagem por parte do pesquisador. Esse processo
possibilitou transcender a análise até então contida em uma perspectiva em tor-
no da representação, abrindo-a para as potencialidades da relação, do encontro
etnográfico e das transformações que esse encontro produz nas sensibilidades
dos sujeitos em diálogo.
Em um sentido similar, David MacDougall (1999, p. 49) já apontava para o fato
de que “os filmes têm forçado a um reexame do conhecimento constituído
pela escrita e sugerido formas alternativas de expressar a experiência sensorial
e social” e, no entanto, “imagens fílmicas tornam-se facilmente tão anódinas
quanto as palavras e embora elas nos atraiam, elas simultaneamente nos dis-
tanciam de seus referentes” (tradução minha). O intervalo entre a experiência
etnográfica e o filme – ou entre o filme e o texto – encerra uma matéria que
não pode ser negligenciada, pois ela abrange os meios possíveis para que a co-
municação e a compreensão mútua se concretizem, trazendo a possibilidade
de afetar (tanto no sentido de transformar quanto no de estimular afetos e
sensibilidades), permitindo a mobilização de um conhecimento que se expressa
corporalmente e que é a base sobre a qual podemos atribuir significados para
a experiência vivida (MACDOUGALL, 2008).
As imagens produzidas nessa situação de diálogo em campo possibilitaram
olhar para as imagens de arquivo de uma forma completamente distinta, nos
colocando a necessidade de ir além do sentido das representações e agregando
uma experiência compartilhada que ativa o olhar para a dimensão do sensível,
da relação física que subjaz toda imagem produzida. O inverso também ocorre,
pois o conhecimento de um repertório de imagens do passado torna evidente
o aspecto construído dessas imagens, sua dependência de um ponto de vista,
entre outras questões, e produzir imagens hoje, em uma situação colaborativa,
torna inevitável o diálogo com esse passado de imagens.
A intermitência das imagens: exercício para uma possível memória visual Bororo
AGAMBEN, Giorgio. “Aby Warburg and the Nameless Science”. In: Potentialities. Stanford: Stanford
University Press, 1999.
BALDUS, Herbert. “O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu: a reação de um indivíduo
Bororo à influência da nossa civilização”. In: Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1937.
CAIUBY NOVAES, Sylvia. Etnografia e imagem. Tese de Livre Docência, FFLCH-USP, 2006.
CUNHA, Edgar Teodoro da. Imagens do contato: representações da alteridade e os Bororo do Mato
Grosso. Doutorado em Antropologia (tese), FFLCH/USP, 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
_____. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
_____. “Atlas: como levar o mundo nas costas?”. In: Sopro – Panfleto Político-Cultural, n. 41. 2010.
Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/atlas.html>. Acesso em jan. 2016.
EDWARDS, Elizabeth. “Tracing Photography”. In: BANKS, Marcus, & RUBY, Jay (orgs). Made to Be
Seen. Chicago: University of Chicago Press, 2011.
FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. In: Lembrar, escrever,
esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
MACDOUGALL, David. Transcultural Cinema. Princeton: Princeton University Press, 1999.
_____. “Significado e ser”. In: BARBOSA, A. et al. (orgs). Imagem-conhecimento. Campinas: Papirus,
2008.
MARTINS, Luciana. “Framing the Bororo: Claude Lévi-Strauss and Aloha Baker”. In: Photography and
Documentary Film in the Making of Modern Brazil. Manchester: Manchester University Press, 2013.
MENDES, Marcos de Souza. Heinz Forthmann e Darcy Ribeiro: cinema documentário no Serviço de
Proteção aos Índios (1949-1959). Doutorado em Multimeios (tese), Unicamp, 2006.
OLIVEIRA, João Pacheco de. “O retrato de um menino Bororo: narrativas sobre o destino dos índios
e o horizonte político dos museus, séculos XIX e XXI”. Tempo, v. 12, n. 23, pp. 73-99. 2007.
SAMAIN, Etienne (org.) Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
TACCA, Fernando de. A imagética da Comissão Rondon: etnografias fílmicas estratégicas. Campinas:
Papirus, 2001.
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madri: Akal, 2010.
ZOLADZ, Rosza Vel. O impressionismo de Guido, um menino índio Bororo. Rio de Janeiro: Editora
Universitária Santa Úrsula, 1990.
Filmografia
Cerimônias funerárias entre os índios Bororo, Dina e Claude Lévi-Strauss. 1935, 8 min.
Funeral Bororo, Heinz Foerthmann. 1953, 47 min.
Jungle head hunters, Lewis Cotlow. 1951, 66 min
Mato Grosso: the Great Brazilian Wilderness, Floyd Crosby, John S. Clarke e David Newel. 1931, 48 min.
Meruri, Nilo Vellozo. 1947, 7 min.
Rituais e festas Bororo, Luiz Thomaz Reis. 1917, 30 min.
Ritual da vida, Edgar Teodoro da Cunha. 2005, 30 min.
The Last of the Bororos (1930, 32 min.), Dir. Aloha Baker.
1
Este artigo foi escrito a partir das pesquisas de doutorado conduzidas pelxs autorxs e financiadas
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP n. 2010/52568-2 e n.
2012/11680-0). Também contou com apoio do Projeto Temático A experiência do filme na antro-
pologia (FAPESP n. 2009/52880-9), coordenado pela profa dra Sylvia Caiuby Novaes.
2
Marcus (1994) argumenta em favor da montagem especialmente diante de investigações de campo
multilocalizadas e cúmplices porque ela abre possibilidade para a construção de narrativas descon-
tínuas, de multiperspectivismo, ao proporcionar efeitos da simultaneidade, em nome da polifonia,
da fragmentação e da reflexividade.
Com efeito, a analogia entre a maneira como o cinema compõe sua coerência
narrativa por meio da montagem e as práticas narrativas da antropologia (e
da história) oferece comentários críticos fundamentais não apenas sobre
como construímos o conhecimento, mas, principalmente, sobre seus limites
e suas potencialidades.
Neste ensaio, através de aproximações entre a montagem cinematográfica, a
teatral e a literária (da história e da antropologia), procuramos apontar princípios
para uma antropologia crítica, ou seja, uma prática antropológica consciente das
escolhas políticas e éticas de seu mise-en-scène. Um pouco além, propomos,
ainda, considerar como diferentes conceitos de montagem repercutem em
perspectivas teóricas diversas, interessados que estamos em investigar a peculia-
ridade da montagem para a constituição do olhar dialético de Walter Benjamin.
3
No original: “the self-conscious experimental moves away from realist representation in both history
and anthropology have been undertaken in the name of montage. Montage lends technique to the
desire to break with existing rhetorical conventions and narrative modes through exposing their
artificiality and arbitrariness.” Quando não indicadas na bibliografia, as traduções são de nossa autoria.
4
No original: “Anthropological uses of visual have gradually shifted from an emphasis on realist
visual recording methods in the mid-20th century to later incorporate contemporary approaches
that engage with subjectivity, reflexivity and the notion of the visual as knowledge and a critical
‘voice’”.
5
Marcus Banks (2001) e Jay Ruby (2000) também pontuaram a importância que a reflexividade
adquiriu no campo da antropologia visual e da produção do filme etnográfico antes mesmo de ganhar
atenção na literatura antropológica de modo mais geral. A esse respeito ver, adicionalmente, Sarah
Pink (2001) e Anna Grimshaw (2001).
6
Ver mais em Renato Sztutman (2004), Anna Grimshaw (2001) e Peter Loizos (1993).
7
Com essa proposta, elaborou o conceito de uma “antropologia compartilhada”, que, conforme
definiu: começa na audiência do filme por aqueles que nele atuaram e proporciona uma impor-
tante oportunidade de comunicar-se com o grupo estudado, um extraordinário estímulo para uma
compreensão mútua (ROUCH, 1995).
8
Sobre a questão David MacDougall (1995) adverte: “Com a sua recusa em dar, aos sujeitos,
acesso ao filme, o realizador recusa o acesso a ele mesmo, já que essa é claramente sua principal
atividade quando está entre eles. Ao negar uma parte de sua própria humanidade, ele nega uma
parte da humanidade deles” (MACDOUGALL, 1995, p. 124). No original: “In his refusal to give
his subjects access to the film, the filmmaker refuses them access to himself, for this is clearly his
most important activity when he is among them. In denying a part of his own humanity, he denies
a part of theirs”. Apenas através de uma genuína conversação, o filme poderia começar a refletir
os caminhos nos quais os sujeitos filmados percebem o mundo.
9
Tal como pontua Lucien Taylor (1998), o trabalho de David MacDougall revela como o cineasta e
os sujeitos filmados não são entidades inteiramente separadas ou autônomas. Num filme, cineasta e
sujeitos estão associados uns aos outros, de modo insolúvel, tal como as pessoas estão no mundo: ética
e esteticamente. E o que seria a estética senão uma expressão da ética do cineasta? – considera Taylor.
10
No original: “Reflexivity in fact involves putting representation into perspective as we practice it.”
11
George Marcus (1994) se espanta com a reação de colegas antropólogos, no final do século XX,
que, ao assistirem filmes etnográficos, ainda respondem como zoólogos que comentam filmes na-
turais: sua apreciação repousa na confirmação ou enriquecimento de classificações globais e locais,
modo pelo qual muitos antropólogos tradicionalmente têm criado conhecimento sobre o outro.
Como tipos de estudos de casos da “natureza” (mais confusos e verdadeiros do que a escrita),
os filmes são assimilados pelo prévio e essencial conhecimento classificatório desenvolvido pela
escrita etnográfica. Marcus requer uma nova arena de debate para uma discussão e troca entre as
duas mídias de representação (escrita e a cinematográfica), sobre suas relativas possibilidades de
constituição de ideias para o conhecimento antropológico.
12
No original: “The problem with external reflexivity is not that it is useless but that by presenting
itself as prior rather than secondary to the work it becomes a kind of philosophical non sequitur”.
13
David MacDougall (1998) parte do reconhecimento de que a posição do cineasta não é nem uni-
forme nem fixa, mas se expressa através do envolvimento multivalente, instável e constante com
os sujeitos filmados. O trabalho de campo geralmente se desenvolve como exploratório e intuitivo,
como um processo dinâmico que afeta de vários modos, e de forma irregular, a pesquisa. Podemos
dizer que, para MacDougall, o processo de produzir um trabalho antropológico segue como a desco-
berta progressiva sobre o que é essa relação. A posição do pesquisador de campo flutua e é sentida
Os nervos soviéticos
Tanto os filmes quanto os textos de Vertov combinam a centralidade da mon-
tagem e a questão da reflexividade na constituição de uma linguagem propria-
mente cinematográfica. Junto com Eisenstein, Vertov insistia na montagem
como o próprio fundamento do cinema. “A montagem foi estabelecida pelo
cinema soviético como o nervo do cinema”, diz Eisenstein (1990, p. 51). No
entanto, ao contrário do primeiro, Vertov acreditava que o cinema precisava
se libertar de estruturas literárias e teatrais com vistas a explorar suas poten-
cialidades expressivas.
Enquanto Eisenstein, principalmente na parte final de sua vida, apostou na
investigação de apropriações possíveis entre o cinema e outras artes, Vertov, ao
contrário, sempre advogou pela separação entre o primeiro e as últimas, argumen-
tando que somente filmes de não ficção, que definia como “filmes de atualida-
des”, seriam capazes de emprestar ao cinema uma verdadeira linguagem, o que
o levou a jamais produzir filmes ficcionais (literários) ou teatrais (encenados).15
Já em 1924, com seu filme Cinema-Olho (Kino-Glaz), Vertov constrói uma nar-
rativa que, além de mostrar acontecimentos do cotidiano e da vida camponesa,
busca promover a consciência das possibilidades da narrativa cinematográfica ao
14
Jay Ruby chama atenção para o fato de que “o trabalho pioneiro de Vertov teve que esperar quase
um quarto de século por Rouch antes que fossem perseguidas as questões levantadas por seu Um
homem com uma câmera” e atribui a estes dois realizadores as “verdadeiras origens da reflexividade
no documentário” (2005, pp. 40 e 39).
15
De fato, Vertov opunha as “autênticas atualidades kinoks” aos “cinedramas burgueses” que utilizariam
métodos considerados por ele como teatrais e literários. Cabe pontuar que, no que diz respeito à
Eisenstein, a utilização de procedimentos considerados como característicos de outras artes não
deve ser confundida com a emulação de estratégias do cinema narrativo ocidental marcado pelo
método da tipagem e da construção de personagens heróicos com os quais o espectador pudesse
se identificar facilmente. Em ambos os casos, a ênfase sempre recaía sobre o povo entendido como
coletividade e não sobre personagens individuais. Devido aos limites e aos interesses específicos deste
artigo, não nos deteremos nesta ou em outras problemáticas do cinema soviético que extrapolem as
questões mais ligadas à reflexividade e, principalmente, à montagem. Para uma ótima exploração
sobre o cinema de Vertov, sua relação com o construtivismo e a controvérsia Vertov-Eisenstein, ver
Petric (1993).
No trecho acima fica claro como, ainda que Vertov deposite na ideia de um
cinema de atualidades grande ênfase, tanto sua concepção de cinema quanto seu
método de realização não podem ser pensados senão a partir da proeminência
da montagem. Esta aparece como aquilo que possibilita, ao mesmo tempo, a
construção da consciência revolucionária tanto a partir da reflexividade (con-
teúdo e forma fílmica) quanto da composição narrativa dos sentidos.
Esta relação estreita entre política, narrativa e montagem é também central para
as teses Sobre o conceito da história (2012, [1940]) de Walter Benjamin. Jeanne
Marie Gagnebin, em introdução a um volume de obras escolhidas de Benjamin,
chama atenção para o fato de que “a questão da escrita da história remete às ques-
16
Eisenstein (1990) analisa o grau de incongruência como parâmetro para a intensidade da impressão,
o que determina a tensão, e que se torna o elemento real do ritmo autêntico.
Ora, a ideia de nexus causais que costuram a evolução narrativa de uma história
poderia ser aproximada das formas fílmicas contra as quais estes cineastas russos
pensavam suas próprias ideias de cinema e montagem. Lembremos também
que, para Vertov, nenhuma atualidade carrega consigo um valor documental
intrínseco. Este valor lhe é conferido, justamente, pela organização das imagens
em conjuntos através da montagem.
Assim mesmo, se a obra de Vertov é bastante produtiva na sugestão de me-
canismos representacionais a partir dos quais elementos da realidade social
podem ser apresentados de forma crítica e reflexiva, é Eisenstein – e sua ideia
de montagem como justaposição de planos em conflito – quem oferece um
método para a dialética do olhar operada por Benjamin.
Dialética do olhar
A apresentação da obra à qual dedicou Benjamin seus esforços nos últimos
quinze anos de vida, Passagens, logo anuncia: “Método deste trabalho: monta-
gem literária. Não tenho nada a dizer. Só a mostrar.” [N 1a, 8] (2006, p. 502).
Tal qual numa escrita oriental, que inspirou cinematograficamente Eisenstein,
Benjamin se vale da força da combinação de citações para uma escrita basica-
mente figurativa, um escrita visual.
Eisenstein compreendera, através da composição de hieróglifos, o princípio
da montagem como coalisão. Notou, a princípio, que a combinação de dois
hieróglifos de uma série não é sua soma, mas um valor de outra dimensão,
outro grau.17 “Cada um, separadamente, corresponde a um objeto, a um fato,
17
Tal como é a razão do fenômeno da profundidade espacial, explica Eisenstein (1990, p. 52): da
superposição de duas diferentes bidimensionalidades resulta em tridimensionalidade estereoscópica.
18
O mesmo é repetido pelo cineasta, no sentido inverso: “Da transição dialética de um plano há a
montagem” (EISENSTEIN, 1990, p. 41).
19
“‘Escrever a história’ é para Benjamin ‘citar a história’, e o conceito de citação implica que o objeto
histórico seja ‘arrancado do seu contexto’” (BOLLE, 2000, p. 96). Implodir o continuum da história,
desmontar o mito da história burguesa, sua naturalização nos termos de progresso evolutivo e pro-
ver fragmentos, “citações”, para serem montados “de modo agudo e cortante” são procedimentos
metodológicos propostos por Benjamin.
20
A proposta de decifrar os sonhos da sociedade capitalista também tem a ver com o trabalho de
percepção dos surrealistas em revelar “o maravilhoso no cotidiano”.
21
Taussig (1993) investiga o “espaço da morte” como importante lócus de criação de significado e da
consciência, sobretudo em sociedades onde a tortura é endêmica e onde a cultura do terror floresce,
como na América Latina. Nota que os curandeiros indígenas e mestiços mobilizam o imaginário
sobre a sua “selvageria” para subverter a violência colonial “não através de catarses celestiais, mas
fazendo com que o poder se enrede em sua própria desordem” (p. 15), na zona de sua política de
“obscuridade epistemológica”.
22
Sobre o ensaio radiográfico em Benjamin, ver Bolle (2000).
23
Numa de suas definições, Taussig pontua: “Montagem: o modo pelo qual ocorre a interrupção;
a súbita mudança de cena, que rompe com qualquer tentativa de ordenamento narrativo e que
impede o sensacionalismo” (1993, p. 411).
Nos rituais de yagé, Taussig se depara com conexões entre indivíduo e grupo
que nada têm a ver com o modelo de communitas de Victor Turner, mas mais
se aproxima do teatro da crueldade de Artaud: “uma perspectiva infinita de
conflitos”.24
Será, pois, John Dawsey (2013) quem nota, além das diferenças, também
afinidades entre Victor Turner e a perspectiva de Walter Benjamin. Ainda
no campo da antropologia, Dawsey abre possibilidades para uma perspectiva
benjaminiana através do interesse de Turner pelas fontes do poder liminar
que descobre nas ações simbólicas esfaceladas pela Revolução Industrial, no
liminoide. Sem ceder à nostalgia de Turner pelo acabamento das imagens so-
ciais refletidas no “espelho mágico”25 do ritual (que repercute na experiência
24
Contra a concepção ordenada e integracionista que Sally Falk Moore e Barbara Myerhoff oferecem
em seu livro Secular Ritual, segundo o qual o ritual “serve à estrutura e solidifica a sociedade”,
Taussig enfatiza que “elas descartam sumariamente quaisquer concepções de que aquilo que ocor-
re entre os segmentos do ritual possa ser tão importante quanto o ‘lado estruturante’ de algo tão
portentoso quanto o ‘processo histórico/cultural’” (1993, p. 413).
25
O ritual enquanto “espelho mágico” da sociedade que o produz é uma das metáforas prediletas de
Victor Tuner. Ver Turner (1987).
26
Enquanto Turner trata do esfacelamento, Benjamin pensa na forma de um declínio. Ver O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1994), de Walter Benjamin e Liminal to Liminoid
(1982), de Turner.
27
Dawsey ressalta que Benjamin descobre nas operações de montagem do surrealismo um princípio
que trabalha contra o sensacionalismo e a experiência do “maravilhoso”, simultaneamente atento
às ilusões objetivistas, tão criticadas no historicismo. Cita Benjamin: “De nada nos serve a tentativa
patética ou fantástica de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério
na medida em que encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como
impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (apud DAWSEY, 2013, p. 76).
28
Eisenstein (1994) faz menção especial à experiência do teatro japonês do Kabuki como inspiradora
de seu conceito de montagem como conflito, tanto da montagem entre planos como na composição
dos elementos do plano em choque.
29
O teatro Grand-Guignol foi palco em Paris de peculiares espetáculos hiperrealistas com temáticas
violentas e chocantes.
30
O objetivo de sua pesquisa era determinar a formula da criação de uma obra de arte eficaz e
brilhante, que articula a concepção de uma obra de arte total posteriormente muito criticada no
universo da filosofia da arte.
***
George Marcus (2004) também trança aproximações entre o ofício do cenó-
grafo e o trabalho de campo antropológico. Criticando a ética e a política da
relação tradicional da pesquisa de campo que gera os dados etnográficos, ele
espera que a etnografia faça mais do que apenas a descrição e a interpretação
distanciadas do campo complexo de engajamentos, mesmo que reflexivas.
Neste sentido, a cenografia e a etnografia guardariam semelhanças quanto:
(a) a duração da prática de pesquisa de campo; (b) a produção de objetos e
artefatos para a montagem; (c) o sentimento claro de ética, função e propósito
e (d) a criação de uma ficção no interior da realidade de atuação.
A aproximação de Marcus entre os ofícios do cenógrafo e do etnógrafo parece
coincidir com a ligação entre teatro e teoria evocada por John Dawsey (2014).
Em pauta estão as atividades que calculam o lugar olhado das coisas.
Para tratar da encenação da antropologia, Dawsey (2013) evoca a etimologia
da palavra teatro, que, assim como teoria, nos remete ao “ato de ver” (do grego
thea). Isto significa dizer que o empreendimento teórico seria algo como o
teatro, ou seja, um exercício do “cálculo do lugar olhado das coisas”, conforme
a definição de teatro oferecida por Roland Barthes então acionada por Dawsey.
A analogia é sugestiva, ainda mais se tivermos clareza sobre qual seria o tipo
de teatro produzido pela antropologia que exercitamos.
Bibliografia
BANKS, Marcus. Visual Methods in Social Research. Londres: Sage, 2001.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
_____. Passagens. São Paulo: Imprensa Oficial; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
_____. “Sobre o conceito da história”. In: O anjo da história: Walter Benjamin. Belo Horizonte/São
Paulo: Autêntica, 2012.
BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São
Paulo: Edusp, 2000.
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Belo Horizonte:
Editora UFMG; Chapecó: Argos, 2002.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2008.
DA-RIN, Silvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2004.
DAWSEY, John. De que riem os boias-frias? Diários de teatro e antropologia e teatro. São Paulo:
Terceiro Nome, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “Un conocimiento por el montaje” (Entrevista concedida a Pedro
Romero). Minerva. Revista del Círculo de Bellas Artes, n. 5, pp. 17-22. 2007.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
GRINSHAW, Anna. The Ethnographer’s Eye. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
LOIZOS, Peter. Innovation in Ethnography Film: From Innocence to Self-consciousness 1955-85. Chi-
cago: University of Chicago Press, 1993.
MACDOUGALL, David. Transcultural Cinema. Princeton: Princeton University Press, 1998.
_____. “The Visual in Anthropology”. In: BANKS, Marcus & MORPHY, Howard (orgs.). Rethinking
Visual Anthropology. New Haven/Londres: Yale University Press, 1999.
_____. The Corporeal Image. Princeton: Princeton University Press, 2006.
MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MARCUS, George E. “Contemporary Problems of Ethnography in the Modern World System”. In:
CLIFFORD, James & MARCUS George (orgs.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Eth-
nography. Berkeley/Londres: University of California Press, 1986.
_____. “The Modernist Sensibility in Recent Ethnographic Writing and the Cinematic Metaphor of
Montage”. In: TAYLOR, Lucien (org.). Visualizing Theory: Selected Essays from V.A.R. 1990-1994.
Nova York/Londres: Routledge, 1994.
_____. “Ethnography in/of the world system: the emergence of multi-sited ethnography”. Annual
Review of Anthropology, 24, p. 95-117. 1995. Disponível em: <http://anthro.annualreview.org>.
Acesso em jan. 2016.
Este texto desafia uma cronologia, escrito inicialmente para dar forma a minha
experiência de campo em Salvador durante a realização do documentário sobre
os Malês,2 que aparece na segunda parte deste texto, como uma forma de apro-
ximar o fazer etnográfico com a produção de imagens em contextos religiosos
(islam/candomblé), passei a submetê-lo a uma reflexão mais ampla, partindo
de outras reflexões e experiências de colegas e autores para desembocar na
minha própria experiência. Numa tentativa de teorizar o que perpassa essas
pesquisas, o mistério, o sensível, o silêncio e o que escapa à ordem “normal”
do fazer etnográfico.
Seguindo a máxima de Sylvia Caiuby Novaes, que foi minha orientadora duran-
te o mestrado e doutorado em antropologia: “Não se estuda um tema por acaso,
sempre se tem uma implicação, um porquê”. Confesso que durante muitos
anos essa frase me incomodava de modo silencioso, porque não encontrava
1
Parte deste texto foi apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. Pesquisa Financiada pela Fapesp, Projeto Temático: A Expe-
riência do Filme na Antropologia (FAPESP 09/52880-9), coordenado por Sylvia Caiuby Novaes.
2
Allah, Oxalá na trilha Malê, 2015, 30 min., LISA/Apoio FAPESP.
Se o antropólogo não parte às cegas para o campo, ou não deveria, pelo menos,
não significa que ele domine absolutamente tudo do campo e dos meandros da
etnografia que vai produzir. Qualquer projeto se inicia de uma questão previa-
mente elaborada, de textos fichados, arquivos inteiramente ou parcialmente
compreendidos, no entanto, o campo é ágil, e escapa quase sempre do nosso
próprio universo esquematizado.
Há quase duas décadas pesquiso comunidades islâmicas, e, em todo campo
realizado, experiências novas surgem no caminho, o que encanta meus sentidos
de antropóloga. Uma das pesquisas a qual me dediquei recentemente foi à
produção de um documentário que trata da estética islâmica e afro-brasileira,
tendo como eixo estruturante a Revolta Malê de 1835. A produção de um
documentário sobre o tema e com o título pretencioso Allah e Oxalá na
trilha Malê apresentou durante o processo de pesquisa e gravação conteúdos
“mágicos” que tiveram que ser elaborados rapidamente, algo muito natural
no campo religioso, mas que poucas vezes eu tinha percebido nesses anos de
pesquisa, porque talvez a atenção estivesse voltada para algo mais prescritivo,
e não para o que escapava à estrutura.
Quando fui a Salvador em 2011 para o Conlab (XI Congresso Luso Afro Bra-
sileiro de Ciências Sociais) aproveitei para conversar na mesquita com Sheikh
Ahmad e com mãe Cici da Casa Pierre Verger sobre o tema que eu queria
desenvolver. Realizei assim um pré-campo, não sabia que aquelas narrativas me
levariam a algo maior, ainda não imaginado. Nesta primeira visita a um terreiro
Peter Gow – a quem eu escrevera relatando a história e dizendo que ela me surpreen-
dera principalmente porque eu jamais havia experimentado nenhuma inclinação mís-
tica – respondeu que não acreditava ser este o ponto pertinente, e relatou uma ex-
periência semelhante que tivera no campo, oferecendo ao mesmo tempo uma
explicação fenomenológica e quase gestaltista para o que ocorrera conosco:
Qual é a explicação? Por um lado, creio que Tânia esteja certa. Isso é realmente fazer
trabalho de campo: essas experiências emanam de outras pessoas. Mas há mais. Acho
que é significativo que tenha sido música o que ouvimos nos dois casos. É possível
que, em estados de alta sensibilização, padrões complexos, mas regulares, de sons do
mundo, como rios correndo ou uma noite tropical, possam evocar formas musicais
que não temos consciência de termos considerado esteticamente problemáticas. Na
medida em que estamos aprendendo esses estilos musicais sem sabê-lo, nós, sob
determinadas circunstâncias, os projetamos de volta no mundo. Assim, você ouviu
tambores de candomblé, eu, música de flauta. Penso que um processo semelhante
ocorre com as pessoas que estudamos. Porque elas obviamente também ouvem essas
coisas. Mas elas simplesmente aceitam que esse é um aspecto do mundo, e não se
preocupam com isso. Mas continua sendo impressionante e o mistério não é resol-
vido por essa explicação. O que imagino é que devemos repensar radicalmente
todo o problema da crença, ou ao menos deixar de dizer preguiçosamente que “os
fulanos creem que os mortos tocam tambores” ou que “os beltranos acreditam que
os espíritos do rio tocam flautas”. “Eles não ‘acreditam’: é verdade! É um saber
sobre o mundo.” (GOW, 1998)
Franci, querida!
3
Optei em deixar os relatos, tais como foram escritos, por serem uma comunicação informal entre
amigos que trabalham o tema.
O que esses fragmentos têm em comum é o objeto deste texto: buscar alinhavar
as construções teóricas do campo religioso/imagético para o sensível e/ou vice-
-versa. Essas reflexões do campo religioso/imagético esbarram quase sempre
num universo cheio de meandros que são resultados muitas vezes das relações
estabelecidas em campo entre pesquisador/pesquisados. Como diria Latour
(2004): “religião tornou-se algo impossível de enunciar”, principalmente, eu
diria, quando se trata dos afetos do próprio pesquisador.
Na Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) de 2014, fui surpreendida por
um estudante de mestrado em antropologia da Universidade Federal da Pa-
raíba (UFPB), o Fabiano Araújo, que dizia ter lido tudo que eu havia escrito
sobre performance, principalmente sobre, o antropólogo-performer, e que fazia
sentido para a pesquisa dele no candomblé, na qual ele, antropólogo, bolou
(incorporou orixá) no santo durante o trabalho de campo. Ele se refere ao meu
trabalho da seguinte forma:
Posso dizer que quando você explana a respeito do antropólogo-performer no contexto
religioso, o que me remete diretamente à antropologia encorporada/incorporada e
performada de Turner, na qual o autor imerge na observação experiencial. Detalhando
essa perspectiva performada, refiro ao vínculo da performance enquanto instrumen-
tal de trabalho e manejo da experiência de vida, performance enquanto tradução
do trabalho artesanal da vivência e do aprendizado empírico. Quando você fala do
uso do hijab para ingressar no espaço sagrado, a disjunção do sagrado e do profano
na qual o antropólogo se intromete e concilia negociações neste espaço liminar, de
ruptura (não é nativo e ao mesmo tempo não é um sujeito impessoal, alheio, anôni-
mo ao modo de vida nativo), e, particularmente, seu caso justificado na influência
4
Trata de categorias da antropologia da performance como comportamento restaurado proposto por
Schechner (1985).
Esse foi o segundo round: a Rainha não gostou do resultado. Posso disfarçar o
quanto quiser, mas hoje, à distância consigo entender que eu não estava preparada
para isso e não soube lidar com essa negativa de maneira adequada para a cons-
trução do próprio vídeo. Naquele momento tinha outras coisas na balança que me
levaram a abrir mão da produção imagética e adaptá-la à produção acadêmica, no
meu caso, adotando uma postura extremamente conservadora, ou seja, focando
no texto para a tese.5
5
Eu mesma escrevi sobre a rejeição da minha pesquisa em um artigo: “Antropologia e misticismo:
diálogos com uma nativa na rede”. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/viewFi-
le/37749/pdf>. Acesso em jan. 2016. O exercício proposto neste texto é uma tentativa de reflexão
sobre este diálogo tenso/denso entre pesquisadora e religiosa.
6
Disponíveis em: <https://vimeo.com/37372714>; <https://vimeo.com/41171372>; <https://
vimeo.com/37374463>. Acessos em jan. 2016.
Algumas coisas contribuíram para essa escolha e não ficaram transparentes ao texto
da tese: a primeiro foi a qualificação em que o capítulo de análise de três filmes
sobre Congada foi considerado desnecessário para a tese, ou seja, o que na prática me
exigiu começar a escrita do texto da tese quase do zero! Tudo isso em meio a uma
perda pessoal por motivo de falecimento de um grande amigo (que amiga, vc quer
falar de magia, sei lá como ponderar toda aquela situação sem pensar em magia...).
Quando temos que refazer o caminho “a partir do zero” é uma morte natural, um
desapego que temos que ter com o que já produzimos, e quando perdemos
uma pessoa em concreto, também o sentimento de desapego deve se estabele-
cer, guardadas as devidas proporções, as mortes sejam elas simbólicas ou não,
sempre nos levam a repensar os caminhos e os pertencimentos. Talvez o que
vivemos seja resultado das nossas afetações, aqui entendidas como um contá-
gio devido à vulnerabilidade ou abertura dos etnógrafos e agentes envolvidos.
Muitas vezes nos vemos diante de dilemas que não são nossos diretamente, mas
acabam nos envolvendo, sobretudo em termos de pertencimento, quando nos
indicam a feitura do santo, um pertencimento, um posicionamento qualquer
ou participar de momentos de pura “magia”.
De sua parte meus interlocutores me permitiram participar de diferentes momentos
de pura magia durante a festa, alguns restritos e particulares e outros explícitos e
sutilmente entabulados nos espaços públicos. Mesmo quando expostos aos olhares
do público presente na festa esses tomavam formas imperceptíveis: as contendas
eram travadas a partir do cruzamento de olhares, as homenagens aconteciam a partir
do tocar uma música antiga, pertencente a um terno já não mais existente para
que uma pessoa específica entendesse a mensagem e se emocionasse com aquela
música, o mal era mandado a partir de três batidinhas nas costas, relatos de caixa
(tambor) que bate sozinha no meio da noite, Bandeira de Santo que pega fogo em
cima do guarda-roupa onde estava guardado durante período fora da festa. Tudo
isso em meio a muitas histórias contadas pelos congadeiros mais antigos: capitão
que coloca fogo nas caixas do terno rival, bananeira que cresce e dá fruto no mesmo
dia na porta da igreja, ataque de abelha e marimbondo a terno rival. Minimamente
tentei descrever e agora, com mais tempo e distanciamento, busco analisar as in-
formações a que tive acesso na pesquisa. Veja só, por mais que a gente fale magia
eu particularmente prefiro compreender todas essas experiências dentro do rótulo/
categoria de mitos, ritos e performances da religião, pois precisamos expandir esse
7
Trata-se de um período especial para os muçulmanos, período de jejum que dura de 29 a trinta
dias, pois nos últimos dez dias do mês do Ramadã o Alcorão foi revelado ao profeta Muhammad.
É comum os muçulmanos passarem a noite do Poder (Laylat al-Qadr) na mesquita.
8
A palavra “conga” é de origem banto e é utilizada no ritual de umbanda para denominar o “altar
sagrado” do terreiro.
9
Solitária porque Lilian Sagio Cezar que me acompanharia nesta pesquisa foi aprovada em concurso
público em outra cidade e isto dificultava sua participação.
10
Eu nunca entendo o que os Pretos Velhos falam.
11
Carlos sempre se refere ao pai, como sendo Oxalá, em várias conversas a expressão é proferida.
12
Oyá Igbalé e Iansã do Balé são títulos pertinentes à Oya Mensan Orum, “Mãe dos nove céus” ou dos
nove Planetas. É a orixá ligada ao rio Níger, dos ventos e das tempestades. Oyá Igbalé é a denominação
usada pelo candomblé e povo do santo por sua ligação e domínio do cemitério (“igbale” ou “balé”),
depois que Omolu ofertou-lhe parte de seu poder para conduzir os ancestrais egun. Vestindo-se
de branco com o seu irukerê, é encarregada de separar os vivos dos mortos e adorada por todos,
venerada no ritual de (iku) Axexê. Iansã, pelo que entendi neste campo, tem várias qualidades.
13
Outro presente me foi dado pela entidade, mas o presente na verdade foi para meu filho João, que
me surpreendeu tanto quanto.
14
O jejum se inicia sempre com uma intenção, e a minha intenção era clara, conseguir produzir um
bom documentário. E vários muçulmanos haviam me dito, intencione que você conseguirá.
15
Deus é Maior, Deus seja Louvado, Graças a Deus.
16
Filme de Lula Buarque de Hollanda; roteiro: Marcos Berstein; narração e apresentação de Gilberto
Gil, 1996.
17
Ifá (em yoruba: Ifá) é o nome de um oráculo africano. É um sistema de adivinhação que se origi-
nou na África Ocidental entre os Yorubas, na Nigéria. É também designado por Fa entre os Fon e
Afa entre os Ewe. Não é propriamente uma divindade (Orixá), é o porta-voz de Orunmilá e dos
outros orixás. O que venho apurando é que o jogo tem muito de islam, e dos mistérios que as duas
religiões compartilham, mas isto de alguma maneira vai aparecer no vídeo. Era pai Fatumbi quem
dizia a Cici sempre “isto é muçulmano”.
18
Não vou discorrer sobre este dado, embora seja fascinante, as combinações encontradas e que fazem
junção entre as duas religiões, prefiro que o documentário se apresente primeiro.
19
Ogan (do iorubá -ga: “pessoa superior, chefe”, com possível influência do jeje ogã “chefe, dirigen-
te”) é o nome genérico para diversas funções masculinas dentro de uma casa de candomblé. É o
sacerdote escolhido pelo orixá para estar lúcido durante todos os trabalhos. Ele não entra em transe,
mas mesmo assim não deixa de ter a intuição espiritual.
20
Queria postar a súplica aqui, mas tive dois cadernos de campo roubados em fevereiro de 2014.
E este texto está sendo construído a partir da minha memória. Depois que uma amiga me lembrou
que Leach também perdeu seus cadernos de campo, me senti, um pouco melhor, antropólogos
perdem ou tem seus cadernos de campo roubados. Outros me disseram que é bem comum a perda
de cadernos de campo, mas os meus são no estilo clássico, então me fazem falta.
21
Ekedi, Ajoiê e Makota nomes dados de acordo com a nação do candomblé, é um cargo feminino de
grande valor, escolhida e confirmada pelo Orixá do Terreiro de candomblé (não entram em transe).
22
O próximo Ramadã começa em 27 de junho de 2014.
23
Ver From Ritual to Theatre (1982, pp. 82-84). Turner cita o dicionário Webster’s Dictionary: o
subjuntivo sempre tem a ver com “desejo, possibilidade, ou hipótese”; é o mundo do “como se”,
que abrange desde a hipótese científica à fantasia da festa. É o “como se fosse”, em vez do “é”.
Trata-se de expressar algo possível ou simplesmente desejado.
24
No original: “the anthropologist’s expertise in interpretation gains in scientific recognition as it
now swells with the ambition of being also a loyal recording and translation of native mentality.
In other words, language is a means through which an interpreter arrives at the rank of a scientist.
The omniscient anthropologist has to talk with [the native] under all sorts of conditions and to
write down his words, ‘for’ after all, if natives could furnish us with correct, explicit and consistent
Lembrei agora. Há uns dois ou três dias sonhei que assistia a uma roda de candom-
blé. Só tinha homens, todos de branco e por cima das roupas eles usavam Keffie25
amarrados de todas as maneiras! Uns na cabeça, outros nos ombros. E eu me lem-
brava de vc e pensava “esses aí já são os Malês?”. Antes do Islam, meu sonho era
me iniciar no candomblé me disseram que eu seria muçulmana um dia. E sim, eu
sonho para as pessoas com quem tenho afinidade! Hahaha sempre foi assim. Há
tempos que não acontece. Bjsssss e que Allah esteja satisfeito com os Malês e com
você. (Flávia Costa, Facebook, inbox, 3 abr. 2015)
Amém!
accounts of their tribal organization, customs and ideas, there would be no difficulty in ethnographic
work”. Tradução de Jessi Sklair, Cadernos de Campo, n. 15, 2006.
25
Lenço palestino.
1
Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida junto ao GRAVI - Grupo de Antropologia Visual
da USP, no âmbito do projeto temático “A Experiência do Filme na Antropologia”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo n. 2009/52880-9 e do
projeto Cartografias da Margem, em seu subprojeto Memória e Tecnologia Social. Oficinas de produção
de imagens entre moradores de bairros populares de Niterói. PIBITI/PROPPI/UFF, 2014/16.
2
O Atlas Mnemosyne de Aby Warburg é um compendio de imagens que apresenta uma nova forma
de se fazer história, por associação, mobilizando o inteligível pelo sensível (SAMAIN, 2011, p. 36).
O Atlas propõe reestruturar o pensamento por meio da imagem. O trabalho valorizava a visualidade,
construindo painéis-montagem. Neles, a leitura da história valorizava a semelhança e operava por
meio de saltos, como vemos também na obra das Passagens, de Walter Benjamin (SELIGMANN-
-SILVA, 2007, p. 109).
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
mapeiam seu conhecimento e experiência de mundo.
Em nosso caso, visamos a cidade de Niterói, seus personagens, homens e mu-
lheres da rua, que vivem nos morros e ocupações, habitam a praça pública.
Na rua, as relações são imediatas, velozes; ao passo que na “Comunidade”3 o
tempo é moroso, acordar, conseguir o de comer, embriagar-se de luz, anoite-
cer. Sempre armados, digo, prontos, atentos, habitam seu mundo, as portas
cheias de vielas que se aprofundam no terreno em direção à mata (onde ela
ainda existe). O morador dessa posição na cidade é um sobrevivente, isto é,
tem um repertório de experiências de risco de vida, tem muitos conhecidos
com experiência de cárcere. Vive literalmente na margem da cidade. Acom-
panhamos os seus trajetos.
A relação entre forma e conteúdo nesse trabalho é determinante, incorporamos
materiais de vários formatos, captados em distintas situações e por autores
vários que passaram pela equipe do projeto. O material não se pretende belo,
embora haja algo de beleza na vida que resiste. O trabalho caracteriza-se so-
bretudo por uma estranheza que não pretende se disfarçar em familiaridade.
Aqui o mapa ganha a fisicalidade da cidade, com ruas, morros, casas, ocupações,
praças, bicicletas e gente. Notando com Telles que “o que antes foi dito e escrito
sobre a cidade e seus problemas, a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado
de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que fez revirar
de alto a baixo o solo social das questões então em debate” (2010). A autora
auxilia a entender o modo como ilegalismos redefinem as tramas urbanas, as
relações sociais e relações de poder em situações variadas. A asserção “o Estado
de exceção é a regra”, de Walter Benjamin (1994), segue hoje válida, e tem
implicações inclusive sobre a forma deste trabalho.
Diante da indiferença e da banalização da vida das classes trabalhadoras no Rio
de Janeiro, o corpo se torna abjeto (KRISTEVA, 1982), justamente porque
não se pensa esse extrato precarizado da classe como morador da cidade, seu
igual, seu vizinho; o que tem suas relações com a experiência brasileira, marcada
pelas formas de relação com o outro que herda uma formação escravocrata.
A publicação na internet das imagens etnográficas produzidas entre popula-
ções que vivem expostas à violência implica em dar a ver a sua existência. O
problema do constituir-se em imagem visibiliza as parcelas da população que
3
O termo “Comunidade” é o modo que os moradores das favelas do Rio de Janeiro adotaram para
referirem-se a seus espaços de moradia, trata-se de uma disputa simbólica para afastar o caráter
estigmatizante do segundo termo, como discutem em seus trabalhos Freire (2008) e Birman (2008).
4
Disponível em: <www.laviedurail.net>. Acesso em jan. 2016.
5
Disponível em: <http://www.outmywindow.nfb.ca/#/outmywindow>. Acesso em jan. 2016.
6
Os caretos são máscaras carnavalescas da região de Trás-os Montes, em Portugal, figuras rodeadas de
mistério, mobilizando o sarcasmo e o patético, utilizando-se do contato corporal com os passantes.
A este respeito, ver Raposo (2010).
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
densidade da experiência como produtora de sentidos.
No projeto Cartografias da Margem a disputa pela representação social legíti-
ma, pelo reconhecimento dos “moradores de rua” como sujeitos de direitos,
está em questão. Observamos recentemente o surgimento de comunidades
de redes sociais baseadas nas grandes cidades brasileiras (o FbRioInvisível7 e
o FbInvisibleSãoPaulo8, por exemplo, são algumas delas) que apresentam seus
personagens a partir de um recorte biográfico. A iniciativa é mais uma que
opera no sentido de dar visibilidade às populações que estão vivendo nas ruas
das grandes cidades brasileiras. Sontag (1977), em seu livro Sobre fotografia,
afirma que a imagem fotográfica estetiza e ao fazê-lo banaliza o visto como
conhecido à distância. Este seria o caso das imagens que circulam nos grandes
meios, aquelas que reforçam a vitimização de tais populações, o ponto de vista
que torna tais personagens abjetos. A outra possibilidade seria fazer uma his-
tória dos perdedores, mas a imagem do perdedor não mobiliza nem promove
identificação. A etnografia em multimídia, que cartografa a cidade tal como
experimentada desde a sua margem, lida com as possibilidades da imagem na
constituição de pontos de vista outros e se defronta com uma subjetividade
da rua, a experiência sensível de alteração dos sentidos vivida e buscada, suas
paisagens sonoras e seus interiores. O que vemos em nossa cartografia é a
constante metamorfose da cidade, que varia conforme o ponto de vista.
Mas como expressar as dinâmicas sociais em um mapa? Pensamos aqui o
problema da representação dos processos. Florestan Fernandes criticou
a pretensão mapeadora como pretensão estática e estatizante, ciência de Es-
tado. No entanto, seria importante aqui distinguir cartografia como modo de
disponibilizar uma estrutura para o conhecimento do espaço como algo dado
e, por outro lado, modo de construir pontos de vista a partir dos quais o espa-
ço como objeto se re-figura. Assim, “mapear é epistemológico, mas também
profundamente cosmológico” (KITCHIN & DODGE, 2007). Os debates
recentes sobre cartografia apontam outras possibilidades, assim, o mapa não
fixa o já dado, mas é produtor daquilo que dá a ver (id., ibid.; WOOD, 2012).
Aqui, o espaço é um (des)fazer-se contínuo e frágil da vida nua. A vida se dá
em instantes. O critério adotado baseou-se nas relações estabelecidas com
indivíduos específicos, na experiência etnográfica, encontrando pontos onde
posicionar-se para nomear a experiência da cidade. Apostamos no acompanha-
7
Disponível em: <https://www.facebook.com/rio.invisivel?fref=ts>. Acesso em jan. 2016.
8
Disponível em <https://www.facebook.com/InvisibleSaoPaulo?fref=ts>. Acesso em jan. 2016.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
com seriedade nos levam a notar uma ampla rede de relações estabelecidas
entre diversos setores da classe empobrecida: órfãs que cresceram em insti-
tuições do Estado, mulheres que engravidaram aos catorze anos e hoje têm
quarenta, guardadores de carros, esquizofrênicos, trabalhadores da construção
civil aposentados, soldadores desempregados, jardineiros idosos, cozinheiras
demitidas, mães de muitas crianças, que habitam casarões que permaneceram
fechados e foram ocupados há mais de duas décadas. Suas relações se mantêm
ao compartilharem o mesmo espaço social na cidade, trocam favores e afetos,
compartilham trabalho e cachaça, estabelecem relações de compadrio, numa
noção de familiaridade mais que de família.
O risco é vivido cotidianamente, posto que nessa cidade outros poderes
territorializam o espaço. Nos morros, soldados do tráfico de substâncias cuja
comercialização é considerada crime pelo Estado impõem zonas de circulação
permitida ou proibida, assim se formam as áreas controladas por esta ou aquela
facção, ou pela milícia oriunda das polícias, que cobra por serviços clandestinos
como “gatos” de televisões a cabo, água e luz e disputam em tiroteios o controle
da área. A praça é espaço de visibilidade e controle de uma das facções. Algumas
imagens ali são proibidas. Esta etnografia inicia sua tomada de posição a partir
do espaço da praça da Cantareira, em Niterói, tal como vivido pelos persona-
gens que a habitam noite e dia, seus moradores, e, daí, seguimos aos outros
espaços de vida e relações estabelecidas a partir das construções daqueles que
fazem dessa posição o seu ponto de vista: ocupações, favelas, cortiços.9
No site Cartografias da Margem vislumbramos redes de socialidade que es-
truturam relações. Experimentamos modos de desessencializar o outro, sem
pressupor uma “cultura” que prescreve, observar a posição de quem age, como
e por que age e em que contexto. Estudamos suas redes de relações, assim a
vida social se mostra em ação a partir de posições que jogam entre si. Mas o
problema da visibilidade se configura de modo particular na pesquisa etno-
gráfica, trata-se de assumir o ponto de vista daqueles que vivem as histórias,
assumir seus lugares na cidade.
Tal pesquisa lida com as formas sensíveis com as quais interagimos, que se
experimentam com o corpo, linguagens a apreender. Mas, como incorporar
na escrita a sensação dos becos e vielas da favela (OPIPARI, 2011), como se
a arquitetura prescrevesse a ginga como apontou Oiticica (BERENSTEIN,
2014)? Para lidar com o desafio de uma cartografia que apreenda o movimen-
9
Situo com maiores detalhes o contexto do recorte etnográfico dessa investigação em Ferraz (2012).
10
Agradeço a todos os jovens pesquisadores que participaram das distintas fases do projeto Cartografias
da Margem na Universidade Federal Fluminense, entre os anos de 2012 e 2015: Adriana Xerez,
Pedro de Andrea Gradella, João Inácio Cardoso Rocha, Jeisse Alvares, Pedro Ivo Mira da Silva,
Caroline Gatti, Diogo Campos do Santos, Vinícius Rocha do Nascimento, Giulia de Vito Nunes
Rodrigues, Raylane Christian Braz de Oliveira, Renata Carvalho Rodrigues Souza, Ícaro Torres e
Josep Juan Segarra.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
biográficas. Na imagem inicial, os links restituem as experiências que encon-
tramos. A interface localiza trajetos, áreas de ocupação.
A imagem invisível
A única condição de visibilidade é habitar o mapa, sentar nos bancos da pra-
ça a ouvir histórias, ver performances, interagir. A cidade vivida por nossos
interlocutores é voraz. Compartilhar a crítica é o que torna possível assu-
mir a posição de onde se vê a cidade. Um engajamento algo mais material,
alimentá-los era a troca que alguns me exigiam. Encontrar em mim a atenção
à vida necessária para me relacionar com meus interlocutores. Em campo a
restituição da imagem se dá no cotidiano da relação com os sujeitos. A resti-
tuição da pesquisa, na praça, se deu pelo visionamento das imagens gravadas,
primeiro em telas de notebook, depois em exibições na praça e a devolução
do material bruto em DVD para visionamento doméstico, estas foram práticas
que foram construindo a possibilidade da relação com o grupo. Dialogando
com os sujeitos e acompanhando os seus deslocamentos ao longo de anos, os
dispositivos utilizados foram muitos: coabitar os bancos da praça, ouvindo
depoimentos, gravar a preparação de um almoço na praça, realizar oficinas de
stencil na ocupação, oficina de fotografia na sede da associação de moradores
no morro, oficina de vídeo com jogos teatrais, realização de entrevistas em
Morando na praça
Aos fins de semana, desde cedo, Maria está na arrecadação de mantimentos,
com seus companheiros para a hora do almoço. Tomando sol nos bancos da
praça, conversa com os conhecidos, compartilhando a cachaça. Arruma uma
fogueira com lascas de tábuas, gravetos, dois tijolos e uma grelha fazem o fogão,
em volta dele se fica conversando.
O Fluminense
Na manhã de domingo, o jornal O Fluminense estampa a fotografia de nossa
interlocutora na capa: a imagem de Maria com o filho no colo, sendo confron-
tada por dois policiais. Dentro do jornal, ela aparece algemada e o filho no colo
do policial. Encontro Maria deitada no asfalto amamentando seu filho sob um
lençol. Os seus amigos que me indicaram onde ela estava, disseram que ela mal
dormira à noite. Dali a pouco ela se levanta, pergunto o que houve, ela, trans-
figurada, range os dentes, falando uma língua que nem sempre compreendo.
O menino não larga de seu seio. Comem animadamente o feijão preto cozido
que eu trouxera, ela tira do carrinho de supermercado estacionado na calçada
uma sacolinha plástica cheia de pães. Mostro o jornal, ela não o tinha visto.
Transtornada ela acusa o policial de tê-la algemado, enquanto o outro pegava
o seu filho. Os moradores da ocupação e os pequenos comerciantes da rua
intervêm em seu favor. Os policiais perguntam o endereço dela, os vizinhos
dizem que ela mora no 17. Eles a soltam.
Morando no 17
Mais de um ano depois, Maria herda do pai de sua primeira filha uma casa na
ocupação. Antes de engravidar e dar à luz a Silas, filho de Cláudio, ela morava lá.
Assim ela deixa a praça e o quarto no paço da Pátria, para voltar a morar no 17.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
Praça da Cantareira, sexta-feira. Muito movimento de estudantes, algumas
pessoas vendem cerveja com seus isopores. Maria conversa com sua vizi-
nha. Quando ela me vê, me puxa para o canto da banca de jornal, sentamos
no canteiro da praça, ela com o filho no colo. Ela: Eu estava lembrando da
minha casa, onde eu cresci, casa do meu pai. Quartos com camas e travessei-
ros, uma sala ampla com sofá. Mas tinha ela, a desgraçada da minha irmã, que
ia namorar na rua e falava que os namorados eram meus. Meu pai me batia.
Se eu encontro ela... Na casa dele tinha uma cozinha com geladeira, cheia de
comida. Na casa de meu pai. Foi por causa dela que eu saí de lá. [nervosa].
Eu: “Lembrar dessa história não está te fazendo bem”. Ela se acalma e o filho
a abraça, entre sonolento e atento.
Direito à maternidade
Caridoso, o professor Augusto tira os documentos de toda a família, a mãe, o
pai e o filho, de cinco anos. Ele apadrinhou o menino, levando-o para morar
com a irmã mais velha, que tinha outros dois filhos. Afinal, “todos sabem, a
rua não é lugar pra criança”. Sem o menino, o casal começa a brigar e vai se
distanciando. Com ciúmes do pai de seu filho, ela o fura com a boca de uma
garrafa. Ele se muda. Um tempo depois, tem um ataque cardíaco. Professor
Augusto interna Carlos no hospital. Recuperado do problema, vai morar na
casa de sua mãe adotiva, em Icaraí. O menino volta a morar em Niterói, seu
padrinho o matriculou na escola pública, Cláudio o leva e o traz para Maria,
diariamente, na ocupação do 17, onde é agora a sua casa.
Cine 94
A mostra de filmes na sede da Associação de Moradores, realizada durante o
segundo semestre de 2014, foi frequentada por jovens moradores do morro
do 94 e da região que tem entre seis e dezoito anos. A seleção dos filmes, que
partiu do gosto dos jovens, priorizou linhas temáticas que se dividem entre a
violência institucionalizada em torno do tráfico de drogas e uma outra linha
com funk, gravidez; muitas animações foram exibidas.
No semestre seguinte, iniciaram-se as oficinas de vídeo, com encontros às
sextas-feiras no fim da tarde. O grupo é majoritariamente frequentado por
meninos, as meninas comparecem menos aos encontros. Além dos vários mo-
radores do 94 de todas as idades, frequentam os encontros os primos Enrico
e Roberto, moradores da rua Projetada, localizada atrás do muro que separa
a Universidade do bairro. Eles trabalham na barraca de doces e cigarros dos
pais de Roberto, localizada na porta da Universidade; repõem um espaço de
contato com a diferença na Oficina, o que repete suas diferenças construídas
no espaço da escola pelo fato de serem migrantes nordestinos. Espaços de di-
ferenciação entre os jovens se repõem a cada instante: os que formam grupos
que se impõem pela força e aqueles que não se identificam com esta prática,
isolados, divergem. A oficina acolhe todas as diferenças.
O enredo do filme realizado na Oficina de vídeo apresenta três amigos de
infância que crescem juntos, enfrentando os distintos caminhos que se abrem
para os jovens.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
Ele dirige a performance na cena do assalto. Ela comenta que essa cena não é
boa. João Marcelo comenta que este não pode ser o começo do filme. A câmera
passa de mão em mão para verem o que foi gravado. No dia seguinte cedo,
apagam as sequências do assalto e gravam as sequências do jogo de futebol.
Na porta do morro, o grupo de jovens assedia os passantes, estudantes, mo-
radores do bairro... A avó do menino, furiosa, avança em Luciano e o corrige
imediatamente: “Você não pode provocar as pessoas assim. Quando chegar
em casa, você sabe que o coro vai comer”. A Comunidade sabe o que pode a
imagem e, exaustos de serem discriminados, velam a cena em que suas crianças
repetem a imagem do “infrator”, enquanto representação social instituída.
Podemos afirmar a existência de um controle social da imagem que se apro-
funda. A cena do assalto foi velada; encontramos novamente o irrepresentável.
A cena
O jovem João Marcelo, de onze anos, sugere uma cena como história para um
filme. Um mês depois, encenamos a história:
O Jovem trabalha no MacDonald’s, sob o olhar de seu gerente. Compadecendo-
-se de um morador de rua, atende o seu pedido, dando a ele um sanduíche.
O gerente vê e o repreende: Não sei se te demito agora ou se faço você pagar.
[Pensa]. Você está demitido. Um tempo depois, o jovem trabalhador está ao
lado do morador de rua, pedindo ajuda assim como ele.
Pergunto ao grupo, que se constituiu como plateia, se algum deles gostaria de
estar no lugar de algum personagem para tentar dar um outro final a esta his-
tória. Tentamos quatro vezes, mas o fim da história sempre se repete. Roberto
(morador da rua Projetada) fala para o jovem demitido: “É o meu sustento,
In-conclusões necessárias
O desafio de cartografar a cidade tal como experimentada desde a sua margem
nos levou a adotar o hipertexto como linguagem. Esta solução baseou-se no
modo como a etnografia de variados espaços de vida e moradia pelos quais
nos conduziam nossos interlocutores seus moradores, foi produzindo uma
multiplicidade de abordagens diferenciadas que demandavam suportes, meios
e recursos variados.
Da escuta atenta das histórias de vida dos senhores trabalhadores aposentados
que oferecem à handycam suas narrativas, à fisicalidade da performance dos
jovens na atividade da “viração”, todos moradores de rua, à produção de al-
moços em que se observa uma socialidade da rua que se constitui em torno
do compartilhar comida, cachaça e pedra, inúmeros foram os recursos ado-
tados. Tantos quantos os pontos de vista que, ao diferirem uns dos outros, nos
apresentam suas múltiplas posições. Este é o primeiro achado do trabalho: na
margem só há diferir.
Em torno do problema da (in)visibilidade das classes trabalhadoras precarizadas
e da concomitante afirmação por parte de um discurso hegemônico de sua
abjeção, temos a reprodução do lugar da margem para as enormes minorias que
vivem a cidade a pé. Na rua velaram as minhas imagens, mostrar o invisível foi
impossível. Um tapa na lente está gravado. Ocultar a centralidade do negócio
do tráfico de drogas consideradas ilícitas para a reprodução da ordem atual é
o dado estruturado em nossa sociedade.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
toconstrução e, mais uma vez, a “viração” como atividade nômade, ambulante.
Aqui o vídeo é o meio e o depoimento, o registro da fala. A fotografia também
é muito bem-vinda, quase dádiva que funda relações. Os morros se conectam
uns aos outros, são caminhos pedestres que só se conhece se seguimos a trilha
dos que palmilham a cidade.
Depois, a ocupação de mulheres que ofereciam à pesquisa o seu coletivo cons-
tituído ao logo de trajetórias de violência institucional: formar meninas para o
trabalho doméstico, todas mães. Ouvir os seus depoimentos, pintar fachadas
e interiores, atualizar memórias que constituem, a despeito de todas as dife-
renças, um outro ponto de vista, este o mais frágil, por se afirmar político em
terra de controle armado. Outro universo ainda seria o do coabitar a ocupação
em que há proprietário, imposto e favor obrigatório. Distinta de todas essas
posições é a performance juvenil que encena a potência do constituir-se como
bando para enfrentar o olhar hegemônico que os faz minoritários.
Retomar tais posições e reuni-las como série em uma plataforma de experiên-
cias da cidade invisível assim como vivida pelas grandes minorias, foi o desafio
que enfrentamos.
Alguns problemas se colocam para tal cartografia: a questão da escala. Da
invisibilidade panorâmica que vê a casa e a rua, buscamos a profundidade de
campo que localiza detalhes fora de foco: corredores, vielas, passagens, esca-
das, caminhos que conduzem a espaços menores. Quartos-casa que abrigam
grupos, além do grupo, a pessoa, seus modos, suas construções. A abordagem
monadológica, aquela que nota que é sempre possível ver mais de perto, é a
que a solução hipermidiática vai configurando. No rosto, o caminho traçado
pelas rugas atualiza a história.
Outro problema colocado pela proposição cartográfica seria a questão da
projeção – adotar um eixo, um centro – aqui seria inviável, posto que cada
experiência difere fortemente das outras, a despeito de qualquer pretensão
identitária. Na margem não há centro, mas cada espaço tem a sua ordem
quando se o habita desde dentro.
A relação tempo e espaço se reconfigura não linearmente, mas redefinindo o
espaço segundo a sua apropriação, num tempo cíclico do amanhecer, entardecer,
anoitecer e vem a madrugada e assim sucessivamente. O mapa põe também
o problema da simbolização, mas aqui estamos num espaço antes de o código
ter seu sentido fechado; ao contrário, o sentido de faz na sua relação com o
ponto que é ponto de vista.
Bibliografia
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
ALVAREZ, J. & PASSOS, E. “Cartografar é habitar um território existencial”. PASSOS, Eduardo
et al. (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade.
Porto Alegre: Sulina, 2009.
ALVAREZ, Marcos C. & MORAES, Pedro R. B. “Apresentação”. Tempo Social, v. 25, n. 1, pp. 9-13. 2013.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Bra-
siliense, 1994.
BIRMAN, Patrícia. “Favela é Comunidade?”. In: SILVA, Luiz Antônio M. da (org.). Vida sob cerco:
violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2008.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. Usos & abusos da história oral. FERREIRA, M. & AMADO,
J. (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 1996.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. eBooksBrasil.com, 2003.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Liebniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.
_____. & GUATTARI, Felix. Mil platôs. São Paulo: Editora 34, 1996.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “Cascas”. Serrote, n. 13. 2013.
_____. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 2010.
FERRAZ, Ana L. M. C. “Morar na Praça Pública: redes e fluxos entre habitantes de rua”. Crítica e
Sociedade, v. 2, n. 2, pp. 22-41. 2012.
FRANCO, Maria S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.
FREIRE, Letícia de Luna. “Favela, bairro ou Comunidade: quando uma política urbano torna-se uma
política de significados”. Dilemas, v. 1, n. 2, pp. 95-114. 2008.
GLOWZCEWSKI, Barbara. “Linhas e entrecruzamentos: hiperlinks nas narrativas indígenas australia-
nas” e “Cruzada por Justiça Social: Morte sob custódia, revolta e baile em Palm Island (Uma colônia
punitiva na Australia)”. In: Conferências e diálogos da 25a RBA. Goiânia: ABA, 2007.
_____. Devires totêmicos: cosmopolítica do sonho. São Paulo: N-1, 2015.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: Editora UFBA, 2012.
KITCHIN, Rob & DODGE, Martin. “Rethinking Maps”. In: Progress in Human Geography, v. 31, n.
3, pp. 331-44. 2007.
KOWARICK, Lucio. “Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano”. Novos Estudos 63.
São Paulo, CEBRAP, pp. 9-30. 2002.
KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection. Nova York: Columbia University Press,
1982.
LEPECKI, Andre. “Coreopolítica e coreopolícia”. Ilha, v. 13, n. 1-2. 2012.
Etnografia e hipermídia: a cidade como hipertexto e as redes de relações nas ruas em Niterói/RJ
NEVES, Delma P. “Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre”. Antropolítica, n. pp. 99-130. 2010.
OVERING, Joana & GOW, Peter. “Key debates”. In: Anthropology: Aesthetics is a cross cultural
category. INGOLD, Tim (org.). Londres/Routledge, 1996.
PAZ, André & SALLES, Julia. “Dispositivo, acaso e criatividade: por uma estética relacional do web-
documentário”. Doc On-line, v. 14, pp. 33-69. 2013.
PELBART, Peter Pál. O avesso do Niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1, 2013.
_______. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
RAMELLA, Anna Lisa. “De-hierarchization, trans-linearity and intersubjective participation in ethno-
graphic research through interactive media representations: www.laviedurail.net”. Anthrovision,
v 2. N. 2. 2014.
RAPOSO, Paulo. Por detrás da máscara: ensaio de antropologia da performance sobre os carretos de
Podence. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2010.
ROLNIK, Sueli & GUATTARI, Felix. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
SAMAIN, Etienne. “As Mnemosyne(s) de Aby Warburg: entre antropologia, imagens e arte”. Revista
Poiesis, n. 17, pp. 29-51. 2011.
SELIGMANN-SILVA, Marcio. “Quando a teoria reencontra o campo visual. Passagens de Walter
Benjamin”. Concinnitas, a. 8, v. 2, n. 11, pp. 102-115. 2007.
SONTAG, Susan. On Photography. Nova York: Penguin Books, 1977.
TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Argumentum, 2010.
WACQUANT, Loic. “O lugar da prisão na nova administração da pobreza”. Novos Estudos, n. 80,
pp. 9-19. 2008.
WOOD, Denis. “The Anthropology of Cartography”. In: Mapping Cultures. ROBERTS, Les (org.).
Nova York: Palgrave/Macmillan, 2012.
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. Rio de Janeiro: Brasileira, 1994.
Filmografia
Caretos. (Rituais de Inverno com Máscaras). Catarina Alves Costa. 2013. 45 min.
Casas para o povo. Catarina Alves Costa. 2012. 15 min.
In the Light of Memory. Alyssa Grossman. 2010. 40 min.
La vie du rail. Ana Lisa Ramella. 2013. www.laviedurail.net
Out My Window. Katerina Cizek. 2012. http://www.outmywindow.nfb.ca/
Yapa: pistes de reves. Barbara Glowzcewski. 2005. DVDROM.
Bibliografia
BARTHES, Roland. S/Z, Oxford: Blackwell, 1990.
NICHOLS, Bill. “Questions of Magnitude”. In: CORNER, John. Documentary and The Mass Media.
Londres: Edward Arnold, 1986.
MACDOUGALL, David. The Corporeal Image: Film, Ethnography, and the Senses, Princeton Uni-
versity Press, 2006.
SUHR, Christian & WILLERSLEV, Rane. Transcultural Montage. Nova York/Oxford: Berghann, 2013.
Sobre os autores
coorganizador de Escrituras da imagem (Edusp, 2004) e Imagem-conhecimento (Papirus,
2009). Dirigiu os documentários Jean Rouch, subvertendo fronteiras (2000), Ritual da vida
(2005) e Mbaraká, a palavra que age (2011).
Elizabeth Edwards é antropóloga visual e histórica, professora emérita de história da fo-
tografia da Montfort University, Leicester, Reino Unido, e emeritus curator do Pitt Rivers
Museum, University of Oxford. Foi eleita membro da Academia Britânica em 2015. Suas
pesquisas versam sobre as relações entre a fotografia, história e antropologia, e suas práticas
sociais e materiais. Dirigiu o projeto PhotoCLEC sobre fotografia, museus e memória colo-
nial na Europa contemporânea. Sua monografia mais recente é The Camera as Historian:
Amateur Photographers and Historical Imagination 1885-1912 (2012). Atualmente está
trabalhando em outros aspectos da relação entre fotografia e história.
Ewelter Rocha é professor da Universidade Estadual do Ceará, mestre em etnomusicologia
(UFBA) e doutor em antropologia (USP). Atualmente desenvolve pesquisas abordando
a estética visual dos lugares sagrados e as performances musicais relativas ao catolicismo
popular nordestino, procurando relacionar sonoridades, corpo e iconografia religiosa. Em
2012, a sua pesquisa sobre o repertório musical associado a práticas penitenciais do sertão
do Cariri foi contemplada com o Prêmio Funarte de Música Brasileira. No ano seguinte,
a sua tese de doutorado ganhou o primeiro lugar no Concurso Silvio Romero. É líder do
grupo Pesquisa em Música, Cultura e Educação Musical (CNPQ).
Francirosy Campos Barbosa é doutora em antropologia pela USP e professora no Departa-
mento de Psicologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP,
onde coordena o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (GRACIAS), e
o Grupo de Imagem e Performance (GIP). Organizadora dos livros Olhares femininos sobre
o islã (Hucitec, 2010) e coorganizadora de Performances, artes e antropologia (Hucitec,
2010). Dirigiu os documentários Allahu Akbar (2006), Sacrifício (2007), Vozes do islã
(2007), Círculo de fogo (2013), Allah, Oxalá na trilha Malê (2015).
Marco Antonio Gonçalves é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e An-
tropologia da UFRJ e do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ. É mestre
e doutor em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ. Realizou Pós-Doutorado
na University of St Andrews (1997) e na New York University (2015-2016). Foi professor
visitante na Katholieke Universiteit Leuven (1998), na Universidade Complutense de
Madrid (2000) e pesquisadora convidada na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(2006). Atua nas áreas de pesquisa sobre cosmologia, criação de mundos culturais, etnologia
indígena, etnografia e imagem, narrativas e subjetividades. Coordena o Laboratório de Ex-
perimentações em Etnografia e Imagem no PPGSA-IFCS-UFRJ. Principais publicações na
área de Etnografia e Imagem: O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean
Rouch (Topbooks, 2008); Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens (7Letras,
2009); Etnobiografia: subjetividade e etnografia (7letras, 2013); Sensorial Thought: Cinema
and Perspective (Topbooks, 2008).
Nadja Marin é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Mestre em Artes pelo Granada
Centre for Visual Anthropology da University of Manchester e pesquisadora do GRAVI
Sobre os autores
coordenadora do GRAVI – Grupo de Antropologia Visual. Coorganizadora de Escrituras
da imagem (FAPESP, Edusp, 2004) e O imaginário e o poético nas Ciências Sociais (Edusc,
2005) e organizadora de Entre arte e ciência, a fotografia na antropologia (Edusp, 2015) e
de inúmeras fotos publicadas no Brasil e no exterior, além de vários artigos sobre fotografia
numa perspectiva antropológica. Co-dirigiu a etnoficção Fabrik Funk (2015). É editora da
Revista GIS: Gesto Imagem e Som.
Trinh T. Minh-Ha é cineasta, escritora, compositora e professora de Retórica, Gênero e
Estudos sobre a Mulher na University of Califórnia, Berkeley. Seu trabalho inclui inúmeros
livros, tais como o recente Lovecidal, Walking with The Disappeared (2016); D-Passage.
The Digital Way (2013); Elsewhere, Within Here (2011); The Digital Film Event (2005).
Realizou oito filmes de longa metragem, incluindo os mais recentes: Forgetting Vietnam
(2015), Night Passage (2004), The Fourth Dimension (2001), exibidos em várias homenagens
e retrospectivas ao redor do mundo; e ainda várias instalações colaborativas de grande escala,
dentre as quais Old Land New Waters (2007-2008, 3rd Guangzhou Triennale, China, 2008),
L’Autre marche (Musée du Quai Branly, Paris, 2006-2009), The Desert is Watching (Kyoto
Biennial, 2003); and Nothing But Ways (Yerba Buena,1999). Recebeu inúmeros prêmios,
entre eles o Wild Dreamer Lifetime Achievement Award no Subversive Festival, Zagreb,
Croatia (2014); o Lifetime Achievement Award da Women’s Caucus for Art (2012); o Critics
Choice Book Award da American Educational Studies Association (2012); e o Trailblazers
Award, MIPDOC, Cannes International Documentary Film Event, France (2006).
Vitor Grunvald é doutor em antropologia pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero,
fotógrafo e diretor cinematográfico registrado. É pesquisador do GRAVI e do NAPEDRA,
ambos da USP, e secretário executivo da Revista GIS: Gesto, Imagem e Som. Suas pesquisas
envolvem questões sobre imagem, performance, discussões teórico-metodológicas sobre ex-
perimentações com a imaginação etnográfica e apropriação de práticas artísticas para o fazer
antropológico, além de trabalhar há mais de dez anos com gênero e sexualidade, especialmente
a transgeneridade. Recentemente, foi também professor de cursos de extensão na Fundação
Escola de Sociologia e Política (FESPSP) e no Centro de Preservação Cultural da USP (CP-
C-USP) sobre estes temas e sobre as teorias e práticas do documentário e filme etnográfico.