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Victor Mendes
A
destruição do Patrimônio Cultural é um dos exemplos mais evidentes do
extremismo terrorista do chamado Estado Islâmico (Daesh), e pelos episó-
dios mais recentes, são comumente compreendidos como irracionais. Tal
abordagem deve ser revista de maneira crítica para compreender, segundo uma ótica teórica
das Relações Internacionais e do Patrimônio, como o ator que perpetra a destruição cultural
manifesta racionalidade por trás de um manto discursivo de extremismo ideológico, entendido
como definidor de sua organização. A ação terrorista é elemento estratégico para a relevância
internacional do ator em questão. Esta abordagem propõe a utilização do manto teórico de
Relações Internacionais com o objetivo de evidenciar a compreensão de que a destruição cul-
tural perpetrada pelo Estado Islâmico é evidência de racionalidade, na medida em que objetiva
projeção internacional e reconhecimento de seus objetivos. Em nossa proposta de análise, isso
é evidenciado pelo emprego direcionado da destruição cultural como recurso de poder soft e
pela imagem de irracionalidade da organização concebida a partir da transgressão dos valores
de preservação cultural reconhecidos internacionalmente.
A tomada de sítios culturais, como o que ocorreu na antiga cidade de Palmira,1 e a
transformação deles em bases militares e/ou lugares de execução, como aquelas realizadas no
anfiteatro romano em Palmira2 pelo terrorista Estado Islâmico, trazem à literalidade a teatrali-
zação do terror. A transformação do museu da cidade de Raqqa em uma prisão e base temporá-
ria, entre outros inúmeros sítios arqueológicos subvertidos em bases militares, e a exploração
ilegal de bens arqueológicos3 causam a subversão dos elementos culturais de vários povos.
1
“Um oásis no deserto sírio, ao norte de Damasco, Palmira contém as ruínas monumentais de uma antiga cidade
que um dia foi um dos mais importantes centros culturais no mundo antigo. Do primeiro até o segundo século, a arte
e a arquitetura, no caminho de diversas civilizações, casou as técnicas greco-romanas com as tradições locais e in-
fluência persas.” Tradução livre do texto: “An oasis in the Syrian desert, north-east of Damascus, Palmyra contains
the monumental ruins of a great city that was one of the most important cultural centres of the ancient world. From
the 1st to the 2nd century, the art and architecture of Palmyra, standing at the crossroads of several civilizations,
married Graeco-Roman techniques with local traditions and Persian influences.” (UNESCO, 2016).
2
“[Em 2005], o Estado Islâmico (ISIS) explodiu dois templos antigos em Palmira que não eram parte de suas
estruturas da Era Romana, mas que os militantes entendiam como pagãs e sacrílegas. No começo de julho, a orga-
nização divulgou um vídeo mostrando a execução de 25 soldados pró-governo no anfiteatro romano.” Grifos meus,
tradução livre de: “Isis blew up two ancient shrines in Palmyra that were not part of its Roman-era structures but
which the militants regarded as pagan and sacrilegious. In early July, it released a video showing the killing of 25
captured government soldiers in the Roman amphitheatre.” (SHAHEEN; BLACK, 2015).
3
Palestra: Destruição do patrimônio arqueológico sírio durante a guerra: como preservá-lo, na Universidade Cató-
lica de Santos, por SERIEH, 2016.
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A utilização física para fins de perversão dos espaços culturais caracteriza nesse contexto a
sobreposição das memórias culturais pela ideologia extremista da organização.
O Estado Islâmico (Daesh)4 é classificado como organização terrorista, entendido
como ator não estatal no plano das relações internacionais. Como atores, as organizações
terroristas são capazes de projetar influência tanto na esfera internacional quanto nas esferas
domésticas dos Estados. Qual a racionalidade do Estado Islâmico dentro da classificação de
organização terrorista, na utilização do fator cultural para delineação de poder voltado à sa-
tisfação de seus interesses? Para investigar as respostas a essa pergunta, nesta sessão faremos
aporte dos conceitos de recursos de poder definidos com base em abordagens notadamente
mais voltadas aos Estados Soberanos para explicar o funcionamento e utilização destes por
atores que não são necessariamente Estados, nem soberanos. No entanto, no que tange às or-
ganizações terroristas enquanto atores internacionais, é interessante considerar a abordagem
compreendida por Ekmekci (2011, p. 125, tradução nossa), ao explicar que:
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O jogo político internacional está marcado pela constante busca pelo poder, em que
atores, dentre eles os Estados, conflitam e cooperam segundo seus interesses, com o fim de
angariar recursos que lhes possam proporcionar estabilidade. O poder em potencial obtido por
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Ter recursos de poder não garante que você sempre terá o resultado dese-
jado. Por exemplo, em termos de recursos, os Estados Unidos eram muito
mais poderosos que o Vietnã, e ainda assim perdemos a Guerra. A América
era o único estado superpoderoso em 2001, mas falhamos em prevenir o
11 de setembro.
6
Aqui se destaca o conceito de fungibilidade, entendido como a capacidade e utilidade de um recurso
de exercer poder em diferentes contextos e conjunturas.
7
“Both the costs to A and the costs to B are relevant to assessing influence” (BALDWIN, 1989; BAR-
RY, 1979; DAHL, 1968; HARSANYI, 1962; SCHELLING, 1984, p. 268-290 apud BALDWIN, 2013).
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Terrorismo cultural
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Considerações finais
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uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física
dos homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para
a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemá-
tica dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que
empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em
seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito.
Nessa perspectiva, o Estado Islâmico é tanto agente genocida quanto etnocida. Ge-
nocida ao exterminar aqueles contrários à sua causa, ou representativo de contrariedade; geno-
cida ao mesmo tempo que etnocida, pois as pessoas que o constituem, que se tornam vítimas
da organização sob essas bases, são as mesmas que constituem as culturas locais, sendo elas
mesmas símbolos e elementos de recordação. Ao proibir, por meio do medo, todas as formas
de expressão cultural senão aquelas interessantes para a organização, torna-se etnocida. Parte
essencial disso é a destruição das bases de memória histórica e cultural das sociedades nos
espaços que ocupa.
O grupo se autointitula Estado Islâmico, mesmo que seu objetivo seja estabelecer
um califado9 segundo os modelos islâmicos. Considerando isso, Clastres (2004) descreve que
“toda organização estatal é etnocida, o etnocídio é o modo normal de existência do Estado”.10
No sentido do objetivo da organização de estabelecer um Califado, uma liderança sob a base
de um governo central, a promoção da erradicação cultural nas áreas que ocupa seria racional-
mente de interesse, já que seria parte essencial no processo do seu estabelecimento.
A conjunção dessa destruição gera ao mesmo tempo que é criada com o objetivo de
sobreposição cultural, a projeção e divulgação. Seria, em outras palavras, o aproveitamento da
concretização do terror para a confecção de poder, cujos interesses de sobreposição, destruição
e geração de poder dialogam com o objetivo de ampliar a base de existência ideológica do
Estado Islâmico.
Nesse processo, a projeção é um dos principais elementos dentro das estruturas de
poder soft nas relações internacionais, já que, para que haja o fator de influência de um ator
para o outro, o que define o poder, é necessário que o ator sendo influenciado conheça aquele
que o está influenciando, podendo assim conhecer as capacidades desse ator de coagir suas
ações. Da mesma forma, o ator que influencia precisa conhecer aquele que vai influenciar, para
direcionar de forma adequada os seus recursos de poder. O “fazer-se conhecer” é ao mesmo
tempo recurso de poder e elemento de direção de outros recursos de poder. Tomemos como
exemplo a colocação de Scifoni (2004, p. 10):
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aos anseios ideológicos, que podem ser compreendidos como “irracionais” à primeira vista
(MORRIS, 2015, tradução nossa).
O mesmo é válido ao verificarmos ações de destruição perpetradas pelo Estado Islâ-
mico voltadas para os Bens Culturais de projeção internacional nas áreas em que ocupa na Sí-
ria. O agente justifica a destruição a partir do discurso ideológico na medida em que faz dessa
destruição elemento de poder para perseguir seus interesses, sendo que nesse sentido o fator da
colocação política da organização se sobrepõe ao seu imediato fator ideológico.
Uma evidência para isso seria o contrabando de artefatos culturais para geração de
recursos econômicos, na ordem de 100 milhões de dólares por ano, o que vai de encontro ao
discurso de “destruição iminente” dos artefatos caracterizados como “profanos de acordo com
a ideologia da organização (MELLEN, 2015, tradução nossa). Fato a ser considerado é que a
organização necessita de fundos para atingir seus objetivos.
Logo, seriam aceitáveis algumas contravenções ao seu estatuto ideológico, na me-
dida em que contribuem com o objetivo final ou com a própria existência da Organização?
Podemos observar que a resposta afirmativa é plausível, já que isso se dá de fato com a não
destruição imediata, e o contrabando direcionado. Contrapondo nesse sentido o próprio dis-
curso extremista, que continua fazendo parte da imagem da Organização, que é, por sua vez,
utilizada como recurso de projeção. Nesse sentido, a organização apresenta evidente raciona-
lidade em suas ações.
No contexto apresentado, a organização terrorista ocupa uma clara posição de des-
vantagem militar e de recursos de poder hard na comunidade internacional, vastamente mais
equipada nesse sentido. Ao mesmo tempo, a organização terrorista ocupa uma posição de
vantagem potencial de poder soft, na medida em que o mundo teme a ameaça terrorista. Con-
siderando os recursos de poder à disposição dos terroristas, as divulgações da destruição cul-
tural, da brutalidade das execuções, se tornam protagonistas em suas ações. Nesse sentido, a
divulgação é tão importante quanto a ação em si. Esses recursos permitem a descrição de uma
influência (poder) que faz embate à comunidade internacional, comparativamente mais pode-
rosa em termos de poder hard.
A forma como o espaço internacional concebe o Estado Islâmico emana do discurso
que este constrói. Uma imagem de aparente irracionalidade concebe um elemento adicional de
dissuasão, pois descreve incerteza sobre como o ator pode agir, removendo qualquer “limite”
compreensível. Entendimento da falta desse limite de ação gera o medo, fundamento da pró-
pria ação terrorista. Parte essencial desse discurso da organização é a sistemática divulgação
da destruição dos Patrimônios Culturais da Humanidade, o que por representatividade seria
a transgressão de todos os princípios valorizados em retórica pela comunidade internacional.
Com essas considerações, podemos compreender que a organização busca conceber e reafir-
mar a imagem de irracionalidade a partir de suas ações. Nesse sentido, é ator racional e con-
traditório no que tange ao discurso que delineia e às ações que perpetra.
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Referências
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