Vous êtes sur la page 1sur 82

ETIENNE

BALIBAR

A
y; w
v - FILOSOFIA
DE
mi '
MARX

IPCH /
JORGE ZAHAR EDITQR
fv '
'

.
í <ò
MIO É tienne Balibar

A FILOSOFIA DE MARX

Tradu ção:
LUCY MAGALHã ES

Consultoria :
CARLOS NELSON COUTINHO

Jorge Zahar Editor


Rio de janeiro

UNICAMP
Klbliotee»*» - IFGH
_
N
-
. * TFOf Sf
[¿SSc?
J c
; ut íú.
3S B D .

/ Z( &V
^_ i
CM C -
I T -‘
0089037 -3
0 '

! N .° cro.... i SUMÁ RIO


Título original:
La philosophic de Marx
Tradução autorizada da primeira edi ção francesa
publicada em 1993 por Editions La Découverte,
de Paris , França, na coleção Repères
Copyright © 1993, Éditions La Découverte I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX?, 7
Copyright © 1995 da edição em l íngua portuguesa: Filosofia e n ã o-filosofia , 9
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja Corte e rupturas, 12
20031 -144 Rio de Janeiro, RJ Quadro cronológico, 18
Tel: (021 ) 240-0226 / Fax: (021) 262-5123
Todos os direitos reservados .
A reprodu ção não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui .violação do copyright. ( Lei 5.988 ) II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRáXIS à PRODUçãO, 23
As Teses sobre Feuerbach, 23
Composição eletrónica: TopTextos Edições Gráficas Ltda. Revolu çã o contra filosofia , 28
Impressão: Tavares e Tristão Ltda.
Prá xis e luta de classes , 30
ISBN: 2-7071 -2223-8 As duas faces do idealismo, 34
ISBN: 85-7110-313-5 (JZE, RJ ) O sujeito é a prá tica , 37
A realidade da “ essê ncia humana ” , 39
Uma ontologia da rela çã o , 43
CIP-Brasil . Catalogação-na -fonte A obje çã o de Stirner, 44
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
A ideologia alemã , 47

B 154f
Balibar, Etienne, 1942 -
A filosofia de Marx / Etienne Balibar ; tradução
Reviravolta da hist ó ria , 48
Lucy Magalhães ; consultor, Carlos Nelson Couti -
A unidade da prá tica , 52 •
nho.
160p.
— Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1995

Tradução de: La philosophic de Marx


III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçã O , 55
Inclui bibliografia. Teoria e prá tica , 56
ISBN 85-7110-313-5 Autonomia e limita çã o da consci ê ncia , 60
1 . Marx, Karl, 1818-1885
filosofia. I. Título. — contribuições em
A diferen ça intelectual , 63
As aporias da ideologia , 68

——
CDD 320.5312 O “ fetichismo da mercadoria ” , 71
95-0217 CDU 330.85 Necessidade da aparê ncia , 75
Marx e o idealismo , 80
A “ reifica çâ o ” , 85
A troca e a obriga çã o : o simbólico em Marx , 87
A quest ã o dos “ direitos humanos ” , 89
Do ídolo ao fetiche , 93
I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ?

IV / TEMPO E PROGRESSO : MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTó RIA ? , 97


A nega çã o da nega çã o , 99
As ideologias marxistas do progresso, 103
A integralidade da hist ória , 107
Um esquema da causalidade ( dial é tica I ) , 111
A inst â ncia da luta de classes, 114
O “ lado mau ” da hist ó ria , 117
A contradiçã o real (dial é tica II ) , 120
A verdade do economismo (dialé tica III ) , 124
Antievolucionismo?, 129
A idéia geral deste livro é compreender e explicar por que
Marx ainda será lido no séc. XXI ; n ã o s ó como um
monumento do passado , mas como um autor atual , pelas
V / A CI ê NCIA E REVOLUçã O , 135
A
quest ões que apresenta para a filosofia e pelos conceitos
Trê s percursos filosóficos, 136
que lhe propõe . Limitando- me ao que parece ser essencial ,
A obra em constru çã o, 139
pretendo dar ao leitor um meio de orientar-se nos textos
A favor de e contra Marx , 140
de Marx , e introduzi-lo nos debates que estes provocam .
També m desejo defender uma tese um tanto paradoxal :
independentemente de tudo o que se possa pensar, nãó
NOTAS , 147
há e nunca haverá uma filosofia marxista ,- em contrapar ¬
GUIA BIBLIOGRá FICO , 155
-
tida , a importâ ncia de Marx par a a filosofia é maior do
que nunca .
Primeiramente , é preciso chegar a um consenso sobre
o que significava “ filosofia marxista ” . Essa expressã o podia
visar duas coisas bem diferentes , mas que a tradi ção do
marxismo ortodoxo , elaborada no fim do séc . XIX e
institucionalizada pelos partidos-Estado comunistas depois
de 1931 e 1945, considerava como indissociá veis: a “ con ¬
cepção de mundo ” do movimento socialista , baseada na
id é ia do papel hist ó rico da classe oper á ria , e o sistema
atribu ído a Marx . Logo de sa ída , observamos que nenhuma
dessas duas idéias est á estritamente ligada à outra . Certa -

7
8 A FILOSOFí A DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 9

mente , diferentes express ões foram criadas para expressar


Materialismo dialé tico
o teor filosófico comum à obra de Marx e ao movimento
Kssa expressã o designou a filosofia na doutrina oficial dos partidos político e social que o reivindicava como mentor. A mais
comunistas , mas também para alguns de seus críticos ( ver Henri Lefebvre : c é lebre dessas expressões é materialismo dialético , relati ¬
Le matérialisme dialectique, PUF, ed . 1940). Ela nã o foi usada nem vamente tardia , mas inspirada pelo uso que Engels fez de
por Marx (que falava de seu “ método dialético” ) nem por Engels ( que diferentes f órmulas de Marx. Outras sugeriram que a
empregava a expressão “ dial ética materialista ” ), mas foi inventada , ao
que parece, em 1887, por Joseph Dietzgen, operário socialista que se
filosofia marxista n ã o existia propriamente em Marx , mas
correspondia com Marx. Entretanto, foi a partir de Engels que se fez a que surgira posteriormente , como reflexão mais geral e
-
sua elabora çã o por Lê nin ( Materialismo e empirio criticismo, Lisboa, mais abstrata sobre o sentido, os princ ípios, o alcance
Estampa , 1975), em torno de três temas diretrizes; a “ inversão materia ¬ universal da obra de Marx . Essa filosofia estaria , até
lista ” da dialética hegelíana, a historicidade dos princípios éticos mesmo, por ser constituída ,, formulada de modo sistemá¬
ordenados para a luta de classes, e a convergência das “ leis de evolu ção”
tico.1 Inversamente , nunca faltaram filólogos ou espíritos
na física ( Helmholtz), na biologia (Darwin ) c na economia política
( Marx) . Assim, Lênin tomou posição entre um marxismo bistoricista críticos para sublinhar a distâ ncia entre o conte údo dos
(Labriola ) e um marxismo determinista, próximo do “ social-darwinismo” textos de Marx e sua posteridade “ marxista ” , mostrando
( Kautsky). Depois da Revolução Russa, a filosofia soviética se dividiu que a existência de uma filosofia de Marx não implicava
entre “ dialéticos” (Dcborin ) e “ mecanicístas” (Bukarin ). O debate foi de modo algum a existência de uma filosofia marxista que
resolvido autoritariamente pelo secretá rio-geral Stalin, que mandou
publicar em 1931 um decreto identificando o materialismo dialético ao
lhe correspondesse.
marxismo-leninismo (cf. René Zapata , Luttes philosopbiques en URSS Esse debate pode ser decidido de um modo tão simples
1922-1931 , Paris, PUF, 1983). Sete anos depois, no opúsculo O mate¬ quanto radical. Os acontecimentos que marcaram o fim
rialismo dialético e o materialismo histórico (1938), codificou o conteúdo do grande ciclo (1890-1990 ), durante o qual o marxismo
enumerando as leis da dialética, fundamento das disciplinas particulares funcionou como doutrina de organização, nada acrescen ¬
e notadamente da ciência da história, assim como garantia a priori de
sua conformidade com a “ concepçã o proletá ria do mundo” . Esse sistema,
taram a essa discussão, mas dissolveram os interesses que
denominado abreviadamente diainat, se imporia em toda a vida inte¬ se opunham a ela . Na verdade , nã o existe filosofia mar ¬
lectual dos pa íses socialistas, e, com mais ou menos facilidade, nos xista , nem como concepçã o do mundo de um movimento
partidos comunistas ocidentais. Ele serviria para cimentar a ideologia social , nem como doutrina ou sistema de um autor
do partido-Estado e para controlar a atividade dos intelectuais (cf . o chamado Marx . Mas , paradoxalmente , essa conclusã o ne ¬
caso Lysenko, estudado por Dominique Lecourt , em Lyssenko, bisloire
réelle d’ une science prolétarienne, Paris, Maspero, 1976). Todavia, gativa , longe de anular ou diminuir a import â ncia de Marx
convém fazer duas correções nessa imagem monol ítica . Primeiramente, para a filosofia , lhe confere uma dimensã o muito maior.
desde 19.37, com seu ensaio “ Sobre a contradição” ( in O pensamento Libertos de uma ilusã o e de uma impostura , ganhamos um
de Mao Tsé-Tung, Sã o Paulo, Paz e Terra , 1979), Mao Tsé-Tung propusera p universo teó rico.
unia concep çã o alternativa que recusava a idé ia de “ leis da dialética ” e
insistia na complexidade da contradição (Althusser, mais tarde , se
inspiraria nela quando redigiu “ Contradi çã o e sobredetermina çã o ” , in A
favor de Marx , Rio de Janeiro, Zahar, 1979). Em segundo lugar, uma Filosofia e não -filosofia
escola , pelo menos , fez do materialismo dialético o ponto de partida
de uma epistemología histórica nã o desprovida de valor: a de Geymonat Temos aqui uma nova dificuldade . O pensamento teó rico
na It á lia (cf . André Tosei , “ Ludovico Geymonat ou la lutte pour un de Marx , por vá rias vezes , se apresentou n ã o como uma
matérialisme dialectique nouveau ” , in Praxis . Vers une refondation en
philosophic marxiste, Paris , Messidor/ Éditions Sociales , 1984). filosofia , mas como uma alternativa à filosofia , uma nâo-
filosofia , e mesmo uma jantifilosofiaj Ele consistiu talvez
10 A FILOSOFIA DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 11

na maior das antifilosofias da é poca moderna . De fato , fraqueza de Marx . Elas questionam a própria essê ncia da
aos olhos de Marx , a filosof í a , assim como ele a aprendera atividade filosófica : seu conte ú do , seu estilo ou seu mé ¬
na escola da tradiçã o que vai de Platã o a Hegel , e at é todo , suas funções intelectuais e pol í ticas. Isso era verdade
incluindo os materialistas mais ou menos dissidentes , como no tempo de Marx , e provavelmente ainda o é hoje. Por
Epicuro ou Feuerbach , era precisamente apenas urna conseguinte , pode-se afirmar que depois de Marx a filosofia
tentativa individual de interpreta çã o do mundo. Isso levava , nã o foi mais como antes. Ocorreu um acontecimento
na melhor das hipó teses , a deixá -lo como estava , e na irreversível , que n ã o é compará vel ao surgimento de um
pior, a transfigurá -lo. novo ponto de vista filosófico, porque n ã o obriga apenas
Entretanto , por mais contr á rio que tenha sido à forma a mudar de id é ias ou de mé todo , mas a transformar a
e aos usos tradicionais do discurso filosófico , n ã o há d ú vida pr á tica da filosofia . Naturalmente , Marx nã o foi o ú nico a
de que o pró prio Marx entrela çou enunciados filosóficos produzir historicamente efeitos desse gê nero. Para nos
com suas análises histórico-sociais e suas proposições de atermos à é poca moderna , basta citar Freud , em um campo
a çã o pol ítica . O positivismo , em geral , o acusou bastante diferente e com outros objetivos . Mas os exemplos seme¬
disso. Toda a quest ã o est á em saber se esses enunciados lhantes sã o na realidade muito raros . A cesura operada
formam um conjunto coerente . Minha hipótese é que nã o por Marx foi mais ou menos claramente reconhecida , aceita
se trata de nada disso , pelo menos se a id é ia de coer ê ncia com maior ou menor boa vontade ; suscitou violentas
à qual nos referimos continua a ser habitada pela id é ia refuta ções e obstinadas tentativas de neutraliza çã o . O que
de um sistema . A atividade teó rica de Marx, tendo rompido só fez com que ela se instaurasse e trabalhasse , com mais
com uma certa forma de filosofia , nã o o conduziu a um convicçã o ainda , a totalidade do discurso filosófico con ¬
sistema unificado , mas a uma pluralidade pelo menos tempor â neo .
virtual de doutrinas , nas quais os seus leitores e sucessores Essa antifilosofia , que seria , em um momento dado, o
se enredaram . Do mesmo modo , ela n ã o o conduziu a um pensamento de Marx , essa n ã o-filosofia que ela certamente
discurso uniforme , mas a uma oscila çã o permanente entre foi aos olhos da prá tica existente , produziu portanto o
o aqu ém e o alé m da filosofia . Por aquém da filosofia , efeito oposto ao que visava . Nã o só ela n ão pôs fim à
entendemos aqui o enunciado de proposições como “ con ¬ filosofia , mas antes suscitou , em seu seio , uma questã o
clusões sem premissas ” , como diriam Spinoza e Althusser . permanentemente aberta , da qual a filosofia pode viver
Por exemplo , esta cé lebre f órmula do 18 Brumá rio de Luís doravante , e que contribui para renová -la . Efetivamente ,
Bonaparte , que Sartre , entre outros , considerou como a n ã o existe algo como uma “ filosofia eterna ” , sempre
tese essencial do materialismo hist ó rico : “ Os homens fazem id ê ntica a si mesma . Na filosofia , h á guinadas, limiares
sua pró pria histó ria , mas n ã o a fazem arbitrariamente , em irreversíveis . O que aconteceu com Marx foi justamente
condições escolhidas por eles , mas em condições direta - 1 um deslocamento do lugar, das quest ões e dos objetivos
mente dadas e herdadas do passado. ” Por além da
2
da filosofia , que se pode aceitar ou recusar, mas que é
filosofia , entendemos um discurso que mostra que ela nã o bastante potente para que n ã o se possa ignor á -lo . Assim ,
é uma atividade aut ó noma , mas determinada pela posi çã o podemos enfim voltar- nos para Marx , e , sem diminu í-lo
que ocupa no campo dos conflitos sociais e principalmente | ou tra í-lo , l ê-lo como filósofo.
na luta de classes . Onde procurar, nessas condições , as filosofias de Marx?
Entretanto , essas contradições , essas oscila ções — Depois do que acabo de propor, a resposta é indubit á vel :
vamos repetir — n ão constituem de modo algum uma em nenhum outro lugar que não seja a totalidade aberta
I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 13
12 A FILOSOFIA DE MARX

era certamente incompat ível com a estabilidade das con ¬


de seus escritos. Nã o só n ã o h á nenhuma sele çã o a fazer
clusões. Marx é o filósofo do eterno recomeçar e deixou
entre “ obras filosóficas” e “ obras históricas ” ou “ econó¬
micas” , mas essa divis ão seria o meio mais seguro de nada
vá rias obras inconclusas . .. O conteú do de seu pensamento
n ão é separá vel de seus -deslocamentos. É por isso que
se compreender sobre a rela çã o cr ítica que Marx mantém
n ã o se pode , para estud á -lo, reconstituir abstratamente o
com toda a tradiçã o filosófica e sobre o efeito revolucio¬
n á rio que essa rela çã o produziu nela. Os desenvolvimentos seu sistema . É preciso tra ç ar a sua evolu ção, com suas
rupturas e suas bifurcações.
mais técnicos do Capital sã o també m aqueles nos quais
as categorias da l ógica e da ontologia , as representa ções
do indivíduo e do laço social foram arrancadas à sua
Depois de Althusser
argumentos — — a favor ou contra os seus
a discussão dos anos 60 e 70 preocupou-se
definição tradicional e repensadas em função das neces¬ muito com a “ ruptura ” ou “ corte ” , que ele fixava em 1845.
sidades da análise histó rica. Os artigos mais conjunturais, Contemporâ neo da emergê ncia da “ rela çã o social ” em
redigidos por ocasião das experiências revolucionárias de Marx , esse corte marcaria um ponto de nã o-retorno , a
'

1848 ou de 1871, ou para a discussão interna da Associa çã o origem de um afastamento crescente em rela çã o ao hu ¬

Internacional dos Trabalhadores, são também um meio de manismo teó rico anterior. Voltarei posteriormente a esse
inverter a rela ção tradicional entre sociedade e Estado, e tema . Essa ruptura cont í nua me parece efetivamente ine ¬

de desenvolver a idéia de uma democracia radical , que g á vel . Ela repousa em experiê ncias políticas imediatas,
Marx inicialmente esboçara em suas notas cr íticas de 1843, especialmente no encontro com o proletariado alemão e
escritas à margem da Filosofia do direito de Hegel. Os francês (ingl ês no caso de Engels) e no ingresso ativo no
escritos mais polêmicos contra Proudhon, Bakunin ou curso das lutas sociais (que tem como contrapartida direta
Lassalle sã o també m aqueles nos quais aparece o distan ¬ o abandono da filosofia universit á ria ) . Entretanto , o seu
ciamento entre o esquema teó rico de evolu çã o da econo¬ conte ú do depende essencialmente de uma elabora çã o
mia capitalista e a história real da sociedade burguesa , intelectual . Em compensa çã o , houve na vida de Marx pelo
que obrigou Marx a esboçar uma dialé tica original , distinta menos duas outras rupturas igualmente importantes , de ¬
de uma simples inversã o da idéia hegeliana do progresso terminadas por acontecimentos potencialmente desastrosos
do esp írito.. . para a teoria da qual ele se julgava seguro . Assim , esta
No fundo, toda a obra de Marx est á ao mesmo tempo só pôde ser “ salva ” , a cada vez , a preço de uma reformu ¬

impregnada de trabalho filosófico e em posiçã o de con ¬ la çã o , seja operada pelo pró prio Marx , seja feita por outro
fronto com a maneira pela qual a tradiçã o isolou , circuns¬ ( Engels) . Lembremos resumidamente o que foram essas
creveu a filosofia (o que é uma das molas de seu “ crises do marxismo ” avant la lettre. Isso nos fornecerá ,
idealismo ) . Mas isso acarreta uma ú ltima anomalia , que , ao mesmo tempo , um quadro geral para as leituras e as
de certa forma , ele experimentou em si mesmo . discussões que se seguirã o .

Corte e rupturas
1 Depois de 1848
Mais do que outros, Marx escreveu na conjuntura. Essa
A primeira coincide com uma mudan ça de época para todo
decis ã o n ã o exclu ía nem a “ paciê ncia do conceito ” , de
o pensamento do s éc. XIX : é o fracasso das revolu çõ es
que falava Hegel , nem o rigor das conseq úê ncias . Mas ela
14 A FILOSOFIA DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 13

de 1848 . Basta ler o Manifesto do Partido Comunista


Tr ês fontes ou quatro mestres ? ( redigido em 1847)3 para compreender que Marx aderira
Durante muito tempo , a apresentaçã o do marxismo como concepção de integralmente à convicção de uma crise geral iminente do
mundo cristalizou -se em torno da f órmula das “ três fontes do marxismo” : capitalismo , gra ç as à qual , tomando a frente de todas as
a filosofia alemã, o socialismo francês, a economia política inglesa. classes dominadas em todos os pa íses (da Europa ) , o
Isso tem origem no modo pelo qual Engels , em Anti-Dü bring (1878) proletariado instauraria uma democracia radical , que leva ¬
dividiu a sua exposiçã o do materialismo hist ó rico e esboçou a histó ria
ria , em curto prazo , à aboliçã o das classes e ao comunismo .
das ant íteses do materialismo e do idealismo , da metaf ísica e da dialética .
Kautsky sistematizaria esse esquema em uma conferência de 1907: Les A for ç a e o entusiasmo das insurreiçõ es da “ primavera dos
trois sources du marxisme . UOeuvre historique de Marx (trad franc. , povos ” e da “ rep ú blica social ” só podiam aparecer-lhe
Spartacus , s.d.), em que a “ ciencia da sociedade , partindo do ponto de como a execu çã o desse programa .
vista do proletariado” era caracterizada como “ a sintese do pensamento Maior ser á a queda . . . Depois dos massacres de junho ,
alemão, do pensamento francês e do pensamento inglês” , o que n ã o
tinha por fim apenas estimular o internacionalismo, mas apresentar a
a ades ã o de uma parte dos socialistas franceses ao bona -
teoria do proletariado como uma totaliza çâo da história europé ia , partismo , a “ passividade dos operá rios” diante do golpe
instituindo o reino do universal. Lê nin a retomaria em uma conferência de Estado assumiam um significado particularmente frus ¬

de 1913, Les trois sources et les trois parties constitutives dumarxisme trante . Voltarei a tratar do modo pelo qual essa experiê ncia
( in Oeuvres completes, Moscou -Paris, 1.19) . Mas ó modelo simbólico de
uma reunião das partes da cultura nã o tinha , na verdade , nada de novo.
fez vacilar a id é ia marxiana do proletariado e de sua
Ele traduzia a persistê ncia do grande mito da “ triarquia europé ia ” , missã o revolucion á ria . A amplitude das revolu ções teó ricas
exposto por Moses Hess (que dera esse t ítulo a um dos seus livros em que ela acarretou para Marx n ã o pode ser subestimada .
1841) e retomado por Marx em seus escritos de juventude, onde se Era o abandono da no çã o de “ revolu çã o permanente ” que
introduziu a noção de proletariado.
A partir do momento em que se afastou o sonho de operar a totaliza çâo
exprimia com precisã o a idé ia de uma passagem iminente
do pensamento segundo o arqu é tipo das “ três partes do mundo ” da sociedade de classes para a sociedade sem classes , e
(significativamente reduzidas ao espa ço europeu ), a questã o das “ fontes” o correspondente programa pol í tico , a “ ditadura do pro ¬
do pensamento filosófico de Marx, isto é , das rela ções privilegiadas que letariado ” (oposta à “ ditadura da burguesia ” ) . 4 Era o eclipse
ela manteve com a obra de teóricos do passado, tornou -se uma questã o
aberta. Em um livro recente (// filo di Arianna, Quindici lezioni di
duradouro do conceito de ideologia, mal tinha sido defi¬
filosofia marxista, Mil ã o, Vangelista , 1990), Costanzo Preve deu o nido e posto em pr á tica , cujas raz ões te ó ricas tentarei
exemplo , atribuindo a Marx quatro mestres: Epicuro (a quem ele indicar. Mas era tamb é m a definiçã o de um programa de
consagrou a sua tese , Diferen ça entre as filosofias da natureza em pesquisas sobre a determina çã o econ ó mica das conjunturas
Demócrito e Epicuro, 1841) , para o materialismo da liberdade , metafo-
rizado pela doutrina do clinamen ou desvio aleatório dos átomos;
pol íticas e das longas tend ê ncias da evolu çã o social . E foi
Rousseau, para o democratismo igualit á rio , ou a idéia de associa ção ent ã o que Marx voltou ao projeto de uma crí tica da econo¬
fundada na participação direta dos cidadã os na decisão geral ; Adam mia pol í tica , para reformular as suas bases teó ricas e lev á-la
Smith, para a idéia de que o fundamento da propriedade é o trabalho;
enfim , Hegel, o mais importante e o mais ambivalente , inspirador e
a termo — em todo caso at é a publica çã o do livro I do
Capital, em 1867 , à custa de um trabalho tenaz , no qual
adversario constante do trabalho de Marx sobre a “ contradiçã o dialética ”
e ã historicidade . A vantagem desse esquema é orientar o estudo para se pode perceber o poderoso desejo e a convicçã o ante ¬
a complexidade interna e os deslocamentos sucessivos que marcam a
rela çã o cr ítica de Marx com a tradiçã o filosófica .
cipada de uma revanche sobre o capitalismo vencedor , —
tanto atrav és do desvelamento de seus mecanismos secre ¬
tos , que ele pr ó prio n ã o compreende
monstra çã o do seu desmoronamento inevit á vel .

como pela de ¬

í
16 A FILOSOF í A DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA ou FILOSOFIA DE MARX ?
17

Depois de 1871
Althusser
Mas eis a segunda crise : é a guerra franco-alem ã de 1870 , Louis Althusser ( nascido em Birmandreis, Argé lia , em 1918, falecido em
seguida da Comuna de Paris . Esses fatos mergulham Marx Paris em 1990) é hoje mais conhecido do grande pú blico pelas
tragédias
na depressã o, e soam como uma volta do “ lado mau da que marcaram o fim dc sua vida (assassinato da esposa ,
internamento
psiquiá trico: cf . sua autobiografia O futuro dura muito tempo, S
historia ” (de que voltaremos a falar) , isto é , de seu desen ¬ ã o Paulo,
Companhia das Letras, 1993) do que por sua obra teórica .
rolar imprevisível , de seus efeitos regressivos , e do seu Entretanto,
esta ocupou um lugar central nos debates filosóficos dos
custo humano terr ível (dezenas de milhares de mortos na anos 60 e 70,
depois da publicação, em 1965, de A favor de Marx e Ler o Capital.
guerra , outras dezenas de milhares , al é m das deporta ções, Althusser apareceu então, com Lévi-Strauss , Lacan , Foucault ,
Barthes,
na “ semana sangrenta ” , que , pela segunda vez em vinte e cómo unía figura de proa do “ estruturalismo” . Assumindo a crise do
marxismo, mas recusando-se a atribuir sua causa à simples dogmatiza
cinco anos , decapita o proletariado revolucionario francés çã o,
dedicou -se a uma releitura de Marx. Tomando da epistemología hist ó rica
e aterroriza os seus colegas estrangeiros). Por que essa ( Bachelard) a noção de “ corte epistemol
ógico” , interpretou a crítica
volta paté tica ? Deve-se ávaliar corretamente o corte que marxiana da economia pol ítica como uma ruptura com o humanismo
resultou disso. A guerra europé ia vai contra a repre¬ teóricos o historicismo das filosofias idealistas (inclusive Hegel)
e como
senta çã o que Marx fazia das for ças diretrizes e dos conflitos a fundação de uma ciência da história , cujas categorias centrais
eram
a “ contradição sobredeterminada ” do modo de produ çã o e a “ a estrutura
fundamentais da política . Ela relativiza a luta de classes com dominante ” das forma ções sociais. Essa ciência se opunha
em proveito, ao menos aparente , de outros interesses e à
ideologia burguesa, mas demonstrava ao mesmo tempo a materialidade
de outras paixões. A detona çã o da revolu çã o proletá ria na e a eficacia histórica das ideologias, definidas como “ relaçã o imagin
á ria
Fran ça (e nã o na Inglaterra ) vai contra o esquema “ l ógico ” dos indiv íduos e das classes com suas condições de exist ência .
” Assim
de uma crise provocada pela pr ópria acumulaçã o capita ¬ como não existe fim da história , também n ão poderia haver fim da
ideologia . Simultaneamente, Althusser propunha uma reavaliação das
lista . O esmagamento da Comuna mostra a desproporçã o teses leninistas sobre a filosofia , que ele definia como “ luta de
das forças e das capacidades de manobra entre a burguesia classe
na teoria ” ( Lenine e a filosofia, Lisboa , Estampa , 1974) e utilizava para
e o proletariado. De novo, os operá rios entoam o “ solo analisar as contradições entre “ tendências materialistas” e “ tendê
ncias
f ú nebre ” de que falava o 18 Brumá rio... idealistas ” no seio da prá tica científica ( Filosofia e filosofia espontânea
Marx , é claro , resiste. No gê nio dos prolet á rios venci
dos , por mais curta que tenha sido a sua experiê ncia , ele
sabe ler a inven çã o do primeiro “ governo da classe
¬

—dos cientistas, Sã o Paulo, Martins Fontes, 1976). Em uma fase posterior


influenciada pela “ revolu ção cultural" chinesa e pelos movimentos

de maio de 1968 , Althusser criticou o que considerava a partir de
entã o como o “ desvio teoricista ” de seus primeiros ensaios , que
atribu ía
operá ria ” , ao qual faltaria apenas a forç a da organiza çã o. à influência do spinozismo, em detrimento da dialética ( “
Elementos de
Aos partidos socialistas em processo de constitui çã o , ele -
autocr ítica ", in Posições 1 , Rio de Janeiro, Graal , 1978). Reafirmando
a
prop õe uma nova doutrina da ditadura do proletariado, diferença entre marxismo e humanismo, esboçou uma teoria geral da
ideologia como “ interpela ção dos indiv íduos em sujeitos” e como sistema
como desmantelamento do aparelho do Estado durante de instituições ao mesmo tempo p ú blicas e privadas, assegurando
uma “ fase de transiçã o” , em que se defrontam o princípio a
reprodu ção das rela ções sociais ("Aparelhos ideológicos dc Estado ,
” in
do comunismo e o do direito burgu ês. Mas ele liquida a -
Posições 2, Rio de Janeiro, Graal, 1980).
Internacional ( permeada , é bem verdade , de incontorn á -
veis contradições) . Interrompe a reda çã o do Capital , cujo
rascunho fica abandonado no meio do cap í tulo sobre As
classes . . . , para aprender russo e matem á tica , e dedicar-se , da evolu ção social . Interferindo com os ajustes de contas,
ao longo de horas incont á veis, à retifica çã o de sua teoria ela ocupará os dez ú ltimos anos de sua vida . A Engels,
18 A FILOSOFIA DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 19

interlocutor de sempre e à s vezes inspirador , caber á Engels publica a Situação reconquista da Alemanha
sistematizar o materialismo histó rico , a dialé tica , a estra ¬ da classe trabalhadora na pelos exércitos do prínci¬
tégia socialista . Inglaterra. pe . Marx emigra para
1845 Stirner: O ú nico e sua pro¬ Londres .
Mas cada coisa a seu tempo . Estamos em 1845 : Marx priedade; Hess: A essên ¬
1850 Marx: As lutas de classe
cia do dinheiro. Marx, ex ¬
na França; Richard Wag
tem 27 anos, é doutor em filosofia pela Universidade de
¬

pulso , vai para a Bélgica ; ner: O judaísmo na músi¬


-
lena , ex- redator chefe da Gazeta Renana de Colonia e dos reda çã o das Teses sobre ca.
Anais Franco -Alemães de Paris , foi expulso da Fran ç a a Feuerbach e , com Engels , 1851 Golpe de estado de Lu ís
pedido da Prussia como agitador pol ítico ; sem dinheiro , da Ideologia alemã. Napoleão Bonaparte .
acaba de se casar com a jové m baronesa von Westphalen , 1846 Miséria da filosofia ( res ¬ 1852 Marx: O 18 Brumá rio de
e tê m uma filhinha . Como toda a sua gera çã o , a dos futuros posta à Filosofia da misé ¬
Luís Bonaparte . Dissolu ¬

“ homens de 48” , v ê o futuro diante de si . ria de Proudhon). Marx çã o da Liga dos Comunis ¬

adere à Liga dos Justos , tas .


que se torna Liga dos Co ¬
1853 Victor Hugo : Les cháti -
munistas , para a qual re¬
Quadro cronológico dige em 1847 , com En ¬
ments; Gobineau : Ensaio
sobre a desigualdade das
gels, o Manifesto do Par¬ raças humanas.
1818 Nascimento de Marx em péia; tese de doutorado
tido Comunista.
Trier ( Ren â nia prussiana ). de Marx ( Diferença da fi¬ 1854-1856 Guerra da Crim é ia .
1847 Lei das dez horas na In ¬
1857 Ruskin : The Political Eco¬
1820 Nascimento de Engels . losofia da natureza em
glaterra (limitando a jor ¬

1831 Morte de Hegel . Pierre Le- Demócrito e em Epicuró) . nomy of Art; Baudelaire :
nada de trabalho). Miche ¬
roux na França e Robert 1842 Marx é redator-chefe da As flores do mal.
let: O povo.
Owen na Inglaterra in ¬ Gazeta Renana . Caben
1848 Revolu ções européias (fe¬ 1858 Proudhon : Da justiça na
ventam a palavra “ socia ¬ Viagem a Icária. Revolução e na Igreja;
vereiro) . Voltando para
lismo ” . Revolta dos ope ¬ 1843 Carlyle : Passado epresen¬
a Alemanha , Marx se tor ¬
Mill : Liberty; Lassalle: A
rá rios das f á bricas de te; Feuerbach: Princípios filosofia de Herã clito o
na redator-chefe da Nova
seda de Lyon . da filosofia do futuro. Obscuro.
Gazeta Renana, ó rg ã o
1835 Fourier: La fausse indus ¬ Marx em Paris: reda çã o 1859 Marx : Contribuição para
democr á tico revolucio ¬
trie morcelée. dos Anais franco-alemães a crítica da economia po ¬
n á rio . Massacre dos ope ¬

1838 Feargus O’ Connor redige (contendo a Questão ju ¬


lítica. Início dos traba ¬
rá rios franceses nas jor ¬
a Carta do Povo (manifes ¬ daica e a Introdução à lhos do canal de Suez.
nadas de junho . Corrida
to do “ cartismo ” ingl ês) . - crítica da filosofia do di
¬
do ouro na Calif órnia . Darwin: A Origem das es ¬

Blanqui propõe a “ ditadu ¬ reito de HegeD . pécies. Fundação do En


Renan : O futuro da ciên ¬
¬

ra do proletariado ” . 1844 Comte: Discurso sobre o glishwoman’ s Journal


cia ( publicado em 1890);
1839 Marx estuda direito e fi ¬ espírito positivo; Heine : (primeira revista feminis ¬
losofia nas Universidades Deutschland , ein Winter- John Stuart Mill : Princi ¬
ples of Political Econo ¬ ta ) .
de Bonn e Berlim . mà rchen. Marx redige os 1861 Guerra de Secessão nos
my; Thiers: Da proprie ¬
1841 Feuerbach , A essência do “ Manuscritos de 1844 ” dade; Leroux : Da igual ¬ Estados Unidos. Aboliçã o
cristianismo; Proudhon : { Economia política e filo
¬
dade. da servid ã o na R ú ssia .
O que é a propriedade?; sofia) e publica com En ¬
Lassalle : Sistema dos di ¬
Hess : A triarquia euro- gels A sagrada família; 1849 Fracasso da Assembl é ia
nacional de Frankfurt e reitos adquiridos.
20 A FILOSOFIA DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 21

1863 Insurrei çã o polonesa . ternationale ) ; Bakunin : da çã o da Liga Agrá ria ir¬ ten - und Culturfrage-,
Victor Hugo: Os miserá ¬ L ’ Empire knouto -germa - landesa . Henry George: Marx : Carta a Vera Zas-
veis; Renan: Vida de Jesus,- nique I ( Dieu et l’État ). Progresso e pobçeza. soulitch .
Dostoievski: Humilhados 1872 Congresso de Haia ( “ ra ¬
1880 Anistia para os partici ¬ 1882 Engels: Bruno Bauer e o
e ofendidos. cha ” da Ia Internacional , pantes da Comuna . cristianismo primitivo.
1864 Reconhecimento do direi ¬ cuja sede é transferida 1881 Na Fran ça , lei sobre o 1883 Morte de Marx . Plekha -
to de greve na França . para Noya York ) . Tradu ¬
ensino primá rio gratuito , nov funda o grupo Eman ¬

Funda ção da Associaçã o çã o aissa do livro primei ¬


leigo e obrigat ó rio . Assas ¬ cipa çã o do Trabalho. Be ¬
Internacional dos Traba ¬ ro do Capital. Darwin : A sinato de Alexandre II bei: A mulher e o socialis¬

lhadores em Londres ; descendê ncia do homem , - pelo grupo Liberdade do -


mo, Nietzsche : Assim fa ¬

Marx é secretá rio do con ¬ Nietzsche: Nascimento da Povo . Dtihring: Die Ju - lou Zaratustra.
selho geral . trag édia . denfrage ais Racen -, Sit-
1867 Disraeli institui o sufrá gio 1873 Bakunin : Estatismo e
universal masculino na anarquia.
Inglaterra ; unifica çã o al¬ 1874 Walras: Elementos de eco ¬

fandegá ria da Alemanha . nomia pura.


Marx: O capital . Cr í tica 1875 Congresso de unifica çã o
da economia política, li¬ do socialismo alem ã o
vro primeiro ( O processo ( “ lassalianos” e “ marxis¬
de produçã o do capital) . tas” ) em Gotha . Tradu çã o
Conquista francesa da Co- francesa do livro I do Ca ¬

chinchina . pital.
1868 Primeiro congresso dos 1876 Vitó ria é coroada impera ¬
sindicatos brit â nicos . triz das í ndias . Spencer:
Haeckel: História da cria ¬ Principles of Sociology.
ção natural-, William Mor¬ Dissolu çã o oficial da In ¬
ris: The Earthly Paradise. ternacional. Dostoievski:
1869 Funda çã o da social-de ¬ Os possessos. Inaugura çã o
mocracia alem ã (Bebei , do Festspielhaus de Bay¬
Liebknecht ) . Inaugura ção reuth .
do canal de Suez. Mill: 1877 Marx : “ Carta a Mikhai-
The Subjection of Women. lovski” ; Morgan: Ancient
Tolstoi : Guerra e paz. Society.
Matthew Arnold: Culture 1878 Eèi anti-socialista na Ale ¬
and Anarchy. manha . Engels: Anti-Dü h -
1870-1871 G Ú erra franco-ale ¬ ring ( O Senhor Eugene
mã . Proclama ção do im ¬ Dtihring revoluciona a
pério alemã o em Versa ¬ ciência ), com um cap ítu ¬

lhes . Cerco de Paris , in ¬ lo de Marx.


surrei çã o da Comuna . 1879 Funda çã o do Partido
Marx: La guerre civile en Oper á rio franc ê s por
France ( Adresse de l ’ ln - Guesde e Lafargue. Fun -

A
II / TRANSFORMAR O MUNDO :
DA PRá XIS À PRODU çã O

Lemos na d écima primeira e ú ltima das Teses sobre Feuer ¬

bach: “ Os filósofos apenasj interpretaraml de modo diferente


o mundo ; o que importa é transformá-loO objeto desse
cap ítulo é começ ar a compreender por que Marx não se
limitou a isso, ainda que , em certo sentido , nada do que
ele tenha escrito vá al é m do horizonte dos problemas que
essa formula çã o apresenta .

As Teses sobre Feuerbach

O que sã o essas teses? Uma sé rie de aforismos, que ora


esboçam uma argumenta çã o cr ítica ,' ora enunciam uma
proposi çã o lapidar, à s vezes quase uma palavra de ordem .
Seu estilo combina a terminologia da filosofia alemã (o
que pode tornar a sua leitura dif ícil hoje ) com uma
interpela çã o direta , um movimento resoluto que prenuncia
de algum modo uma libera ção: um desfecho cont í nuo da
teoria , em dire çã o à atividade ( ou prática ) revolucioná ria.
Essas teses foram redigidas por volta de março de 1845 ,
enquanto o jovem universit á rio e publicista renano se
encontrava em Bruxelas, em liberdade condicional . Seu

23
24 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO : DA PRáXISK PRODUçãO 25

Karl Marx: Teses sobre Feuerbach ( 1845 ) parece que ele tenha destinado essas linhas à publica çã o :
elas se assemelham ao “ memorandum ” , f ó rmulas que sã o

“ I. O defeito principal , até agora , de todos os materialismos [...] é
que o objeto, a realidade efetiva , a sensibilidade , só é apreendido sob
lan ç adas no papel para que n ã o se percam e sirvam de
cont ínua fonte de inspira çã o .
a forma do objeto ou da intuição; mas nã o como atividade sensivelmente Nesse momento , Marx estava ocupado em um trabalho
humana, como prática, nã o de modo subjetivo. É por isso que o lado
ativo foi desenvolvido de modo abstrato , em oposição ao materialismo,
de que temos uma idé ia bastante precisa gra ças aos

pelo idealismo que naturalmente nã o conhece a atividade real efetiva , rascunhos publicados em 1932 e conhecidos a partir da í
sensível , como tal . Feuerbach quer objetos sensíveis — realmente pelo t ítulo de Economia política e filosofia , ou Manuscritos
distintos dos objetos pensados — mas nã o apreende a própria atividade
humana como atividade objetiva [ . ..1
de 18441 Trata -se de uma an á lise fenomenol ógica ( visando
extrair o sentido ou o n ã o-sentido) da aliena ção do

III . A doutrina materialista da mudança das circunstâ ncias e da
educa çã o esquece que as circunstâ ncias sã o transformadas pelos trabalho humano sob o regime do sal á rio . As influ ê ncias
homens e que o próprio educador deve ser educado. É por isso que de Rousseau , Feuerbach , Proudhon e Hegel se combinam
ela deve dividir a sociedade em duas partes , das quais uma é elevada a í estreitamente com sua primeira leitura dos economistas
acima dela . ( Adam Smith , Jean - Baptiste Say , Ricardo , Sismondi) , para
A coincidê ncia da mudança das circunstâ ncias e da atividade humana
ou autotransformaçã o só pode ser apreendida e racionalmente com ¬ desembocar em uma concepçã o humanista e naturalista
preendida como prática revolucionária. do comunismo , concebido como a reconcilia çã o do homem
IV.
— Feuerbach parte do fato da auto-aliena çã o religiosa , do desdo¬
bramento do mundo em um mundo religioso e outro mundano. Seu
com seu pró prio trabalho e com a natureza , e conseq ü en -
temente com a sua “ ess ê ncia comunit á ria ” , que a proprie ¬
trabalho consiste em resolver o mundo religioso em seu fundamento
mundano. Mas o fato de que o fundamento mundano se destaque de dade privada abolira , tornando-o assim “ estranho para si
si mesmo e se fixe em um reino autónomo nas nuvens só pode se mesmo ” .
explicar pelo autodilaceramento e pela autocontradiçã o desse funda ¬ Ora , Marx interromperia esse trabalho (que retomaria
mento mundano. Portanto, esse autodilaceramento deve , em si mesmo,
muito mais tarde , sobre bases completamente diferentes) ,
ser tanto compreendido em sua contradição quanto revolucionado
praticamente. De tal modo que , uma vez , por exemplo, que a fam ília para começar com Engels a reda çã o de A ideologia alem ã,
terrestre foi descoberta como o segredo da família celeste , é doravante que se apresenta antes de tudo como uma polê mica contra
a primeira que se deve destruir teórica e praticamente . [... ] as diferentes correntes da filosofia “ jovem - hegeliana ” , uni ¬

VI .— Feuerbach resolve a essê ncia religiosa na essê ncia humana. Mas


a essê ncia humana n ã o é uma abstra çã o inerente ao indiv íduo singular.
versit á ria e extra - universit á ria (Ludwig , Feuerbach , Bruno
Em sua realidade efetiva , ela é o conjunto das rela ções sociais. Bauer , Max Stirner , todos mais ou menos ligados ao
Feuerbach , que nã o entra na critica dessa essê ncia real efetiva , é, por movimento de cr ítica da Restaura çã o , inspirado por urna
conseguinte , obrigado a : leitura “ de esquerda ” do autor da Fenomenolog í a do espirito
1 . Fazer abstra ção do curso da hist ória e fixar o sentimento religioso e da Filosofia do direito ) . A reda çã o das Teses2, coincidiu
por si, e pressupor uni indivíduo humano abstrato — isolado.
2 . Logo , a essência só pode ser apreendida como ” gê nero“ , como
tom essa interrup çã o . É prov á vel que ela contenha algumas
universalidade interna , muda , ligando os indivíduos de modo natural. de suas raz ões teó ricas . Mas é també m uma quest ã o crucial
XI .— Os fil ósofos apenas interpretaram de modo diferente o mundo;
o que importa é transformá-lo. ”
saber que relaçã o exata elas mant ê m com as proposições
da Ideologia alemã .0 Voltarei posteriormente ao assunto .
Entre outros leitores cé lebres, Louis Althusser apresen ¬
amigo Engels n ã o tardaria a vir encontr á-lo, começando
juntos um trabalho que duraria até a morte de Marx . N ã o
tou essas Teses como “ a margem anterior ” de um corte
lan ç ando assim um dos grandes debates do marxismo

26 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR a MUNDO : DA PRáXISA PRODUçãO 27

contemporâ neo : para ele , os Manuscritos de 1844, com Cr í tica da economia pol í tica
seu humanismo caracter ístico , .estariam ainda “ aqu é m ” do
corte ; a Ideologia alemã, ou antes , sua primeira parte , com A expressã o “ cr ítica da economia pol ítica ” sempre aparece no t ítulo
ou no programa das principais obras de Marx , embora seu conteúdo
a dedu çã o das formas sucessivas da propriedade e do se transforme constantemente . Os “ manuscritos de 1844 ” já sã o o
Estado , cujo fio condutor é o desenvolvimento da divisã o rascunho de uma obra que devia intitular-se Zur Kritik der politischen
do trabalho , representaria a entrada em cena verdadeira , Oekonomie, t ítulo que se torna depois o da. obra publicada em 1859
positiva , da “ ciê ncia da histó ria ” . como “ primeira parte” de um tratado de conjunto, e o, subtítulo do
N ã o pretendo dar aqui uma explica çã o exaustiva . É Capital ( cujo livro primeiro, ú nico editado, pelo próprio Marx, será
interessante citar o trabalho de Georges Labica
4
— que publicado em 1867). A esse se acrescentam muitos textos inéditos,
artigos, partes de obras polêmicas .
estuda cada formulaçã o em detalhe , considerando os Parece portanto que essa expressão exprime a modalidade permanente
comentá rios posteriores , com todas as suas divergê ncias — da rela çã o intelectual de Marx com seu objeto científico. O objetivo
como revelador dos problemas internos que elas levantam . inicial era a crítica da alienaçã o pol ítica na sociedade civil -burguesa ,
Labica mostra com uma perfeita clareza como as Teses sã o assim como das “ matérias especulativas” , cuja unidade orgâ nica a
filosofia pretende exprimir. Mas um deslocamento fundamental interveio
estruturadas . De uma extremidade a outra , trata -se de rapidamente: “ criticar ” o direito , a moral e a pol ítica é confrontá -los
superar, atrav és de um “ novo materialismo ” , ou materia ¬ com a sua “ base materialista ” , com o processo de constituiçã o das
lismo prá tico , a oposição tradicional entre os “ dois campos” rela ções sociais no trabalho e na produ çã o.
da filosofia : o idealismo, isto é , principalmente Hegel , que Marx encontra ent ã o, à sua maneira , o duplo sentido da palavra crítica
projeta toda realidade no mundo do esp í rito , e o antigo na filosofia : destruição do erro , conhecimento dos limites de uma
faculdade ou de uma prá tica . Mas o operador dessa crítica , ao inv és
materialismo, ou materialismo “ intuitivo” , que reduz todas de ser simplesmente a análise , tornou -se a histó ria . É o que lhe permite
as abstra ções intelectuais à sensibilidade , ou seja , à vida , combinar “ dialeticamente ” a cr ítica das ilusões necessá rias da teoria (o
à sensa çã o e à afetividade , a exemplo dos epicuristas e “ fetichismo da mercadoria ” ), o desenvolvimento das contradições in ¬
de seus discípulos modernos: Hobbes , Diderot , Helvetius . .. ternas, inconciliáveis , da realidade económica (as crises, o antagonismo
capital /trabalho fundado na explora ção da mercadoria “ força de traba ¬
lho” ), enfim o esboço de uma “ economia pol ítica da classe operá ria ”
oposta à da burguesia ( Comunicação inaugural da Associaçã o Inter ¬

Crítica da alienação nacional dos Trabalhadores , 1864). O destino da cr ítica est á nas “ duas
descobertas ” que ela atribui a si mesma: a dedu çã o da forma dinheiro,
O fio condutor da argumenta çã o é bastante claro , a julgar a partir apenas das necessidades de circula ção das mercadorias, e a
pelos debates da época . Feuerbach 5 quis explicar a “ alie ¬ redução das leis de acumula ção à capitalização de “ mais-valia ” ( Mehr-
weri) . Elas remetem ambas à definiçã o do valor como expressã o do
na çã o religiosa ” , isto é , o fato de que os homens reais , trabalho socialmente necessá rio , na qual se enra íza a recusa do ponto
sens íveis , imaginam a salva çã o e a perfei çã o em um outro de vista do Homo oeconomicus abstrato , unicamente definido pelo
mundo supra-senswel (como uma projeçã o em seres e cálculo de sua “ utilidade ” individual.
situa ções imagin á rios de suas pró prias “ qualidades essen ¬
Para uma apresenta çã o dos aspectos técnicos da crítica da economia
ciais ”
amor
—que
particularmente o la ç o comunit á rio , ou la ço de
une o “ gê nero humano ” ). Tomando consciê ncia
pol ítica em Marx , cf . Pierre Salama e Tran Hai Hac: Introduction à
iéconomie de Marx ( Paris, La Découverte , coleçã o Rcpè rcs, 1992).

desse equ voco , os homens se tornariam capazes de se


í
“ reapropriar ” da sua essê ncia alienada em Deus , e por isso
mesmo de viver verdadeiramente a fraternidade na terra . o pró prio Marx , quiseram estender o mesmo esquema a
Na escola de Feuerbach , fil ósofos cr íticos , entre os quais outros fen ô menos de abstra çã o e “ expropria çã o ” da exis-
II / TRANSFORMAR o MUNDO: DA PRãXJSK PRODUçãO 29
28 A FILOSOFIA DE MARX

t ê ncia humana , especialmente o que constitui a esfera se por acaso se come çasse outra vez a interpretar o mundo,
^ sociedade , como uma comunidade ideal
pol ítica , isolada da e especialmente o mundo social , a recair sob o qualificativo
em que os homens seriam livres e iguais. Mas , diz Marx de filosofia , já que entre a filosofia e a revolu çã o n ã o h á
ñ as Teses , a verdadeira raz ã o dessa proje çã o n ã o é uma
meio- termo . Levada ao extremo, essa posiçã o pode ser um
ilusã o da consciê ncia , um efeito da imagina çã o individual : modo de condenar-se ao silê ncio .
é a cisã o ou divisã o que reina na sociedade , sã o os con ¬ Mas a brutalidade dessa alternativa nos revela a sua
flitos pr á ticos que opõem os homens entre si, e para os outra face : se “ dizer é fazer ” , por outro lado “ fazer é dizer ” ,
quais o cé u da religiã o ou o da pol ítica lhes prop õem e as palavras nunca sã o inocentes . Por exemplo , n ã o é
uma solu çã o miraculosa . A resolu ção verdadeira est á em inocente afirmar que as interpreta ções do mundo sã o
uma transforma çã o prá tica , abolindo a dependê ncia de diversas, enquanto a transforma ção revolucion á ria , impli ¬
certos homens em rela çã o a outros . Nã o é portanto à citamente , é una , ou un ívoca. De fato, isso significa que
filosofia que cabe suprimir a alienaçã o ( pois a filosofia existe apenas uma ú nica maneira de transformar o mundo:
nunca foi mais do que o coment á rio, ou a tradu çã o , dos a que abole a ordem existente , a revolu çã o, que n ã o
ideais de reconcilia ção entre a religiã o e a pol ítica ) mas poderia ser reacioná ria ou antipopular. Observe-sè que
à revolu çã o , cujas condições residem na exist ê ncia material Marx renunciaria muito cedo a essa tese: desde o Mani ¬
dos indivíduos e suas rela ções sociais. As Teses sobre festo , e mais ainda no Capital , ele reconheceria o poder
Feuerbach exigem , por isso mesmo, um desfecho ( Ausgang ) çom o qual o capitalismo “ transforma o mundo” , e a
definitivo da filosofia , ú nico meio de realiza ção do que quest ã o de saber se h á vá rios modos de transformar o
sempre foi a sua ambição mais alta : a emancipa çã o , a mundo, ou como uma transforma çã o pode inserir-se em
liberaçã o . outra , e até mesmo desviá-lo do seu curso, se tornaria
crucial . Aliá s , isso significa que essa ú nica transforma çã o
representa ao mesmo tempo a “ solu çã o” dos conflitos
Revolução contra filosofia internos da filosofia . Velha ambiçã o dos fil ósofos (Aristó¬
teles , Kant , Hegel ...), que a “ prá tica revolucioná ria ” viria
As dificuldades começam precisamente neste ponto. Sem assim realizar melhor do que eles \
d ú vida , Marx n ão se arriscou a publicar tal injun çã o , ou Mas n ã o é s ó isso: a f ó rmula encontrada por Marx ,
n ã o encontrou ocasiã o para faz ê-lo . De qualquer forma , essa injun çã o que por si só já é um ato de “ sa ída ” , nã o
ele a escreveu , e , como uma “ carta roubada ” , ela chegou
se tornou filosoficamente célebre por acaso . Pensando um
até n ós . Ora , o enunciado em quest ã o é bastante paradoxal .
pouco, podemos nos lembrar de que ela tem um parentesco
Em certo sentido , é absolutamente coerente consigo mes ¬

profundo, nã o só com outras palavras de ordem (como o


mo . O que ele requer, ele o faz imediatamente (até
“ mudar a vida ” de Rimbaud : sabe-se que Andr é Breton ,
poder íamos dizer , usando uma terminologia posterior, que
principalmente , operou essa conjun çã o),6 mas tamb é m com
ele tem algo de performativo). Escrever : “ Os filósofos
outros enunciados filosóficos , igualmente lapidares , tradi ¬
apenas interpretaram o mundo de outra maneira ; o que
importa é transform á -lo ” , é afirmar que h á um ponto de
cionalmente considerados como “ fundamentais ” , e que se
n ã o-retorno para todo pensamento que se queira efetivo, apresentam ora como tautologias, ora como ant íteses.
terrestre ou “ mundano ” . É també m proibir a si mesmo Observemos que todas essas formula çõ es , por mais dife ¬
rente que seja o conte ú do e mais antagó nicas as inten ções ,
voltar atr ás , para a filosofia . Ou melhor, é condenar-se ,
30 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRá XIS à PRODUçãO 31

t ê m em comum visar a quest ã o da rela çã o entre a teoria le ô nica , e enfim pela Restaura çã o e a Contra -Revolu çã o
e a pr á tica , a consciê ncia e a vida . Isso abrange desde o (sempre pelo Estado ) . E , ainda mais precisamente , trata-se ,
“ Pensar e ser sã o a mesma coisa ” de Parmê nides, até o na escala da Europa , de levar a termo o movimento
“ Sobre aquilo de que n ão se pode falar, deve-se silenciar ” revolucion á rio e torn á -lo universal , reencontrando a ins¬
de Wittgenstein , passando por Spinoza ( “ Deus é a nature ¬ pira çã o e a energia do seu “ lado esquerdo ” , esse compo¬
za ” ) , por Kant ( “ tive que limitar o saber para dar lugar à nente igualitá rio da Revolu çã o (representado principal ¬
f é ” ) , por Hegel ( “ o racional é real , o real é racional ” ). E mente por Babeuf ), de onde saiu , justamente , no começo
eis nosso Marx instalado no cora çã o da filosofia , e isso do séc. XIX , a idéia de comunismo .8 Marx insistirá muito
pelo seu movimento mais especulativo, aquele que se no fato de que n ã o se trata de uma concepção especulativa ,
esforça por pensar os seus próprios limites, seja para de uma cidade ideal ou experimental (como a “ Icá ria ” de
aboli-los , seja para instituir-se a partir do reconhecimento Cabet) , mas de um movimento social , cujas reivindica ções
representam simplesmente a aplica çã o conseq ü ente do
deles .
Tenhamos em mente esse profundo equ ívoco (que n ã o
princ ípio da Revolu çã o —
medindo a realiza çã o da liber
dade pela realizaçã o da igualdade e vice -versa , para
¬

deve ser tomado como uma contradiçã o redibit ó ria , mas


resultar na fraternidade . Em suma , o que constatam Marx
que també m nã o deve ser encarado como sinal de pro¬ e outros , é que n ã o h á meio- termo: se a revolu çã o se
fundidade insond á vel , o que n ã o tardaria a nos reconduzir det ém no meio do caminho , só pode regredir e reconstituir
a esse “ misticismo ” , cujas ra ízes , precisamente , Marx pro¬ uma aristocracia de possuidores que se servem do Estado ,
curava aqui mesmo. . .) e examinemos melhor duas questões reacion á rio ou liberal , para defender a ordem estabelecida .
nevrálgicas implicadas nas Teses: a rela çã o entre a “ prá tica ” Inversamente , a ú nica possibilidade de cumprir a revolu çã o
(ou prá xis ) e a “ luta de classes” e a antropologia ou e torn á -la irreversível é aprofund á -la , fazer dela uma
“ essê ncia humana ” . revolu ção social .
Mas quem sã o os portadores dessa revolu çã o social ,
herdeiros dos Montanheses' e de Babeuf ? Basta abrir os
Práxis e luta de classes olhos para a conjuntura europ é ia da é poca e escutar os
gritos de alarme dos propriet á rios: são os operá rios “ car -
As Teses falam de revolu çã o , mas n ã o usam a expressã o tistas” ingleses ( Engels acaba de descrevê- los em A situaçã o
-
“ luta de classes” . Entretanto , n ã o é arbitrá rio evocá la aqui , da classe trabalhadora na Inglaterra , Porto , Afrontamento ,
sob a condi çã o de precisar em que sentido. Graças ao 1975 , livro que se pode ler ainda hoje com admira çã o, e
trabalho dos germanistas,7 conhecemos melhor, h á alguns cuja influ ê ncia sobre Marx foi absolutamente determinan ¬
anos, o ambiente intelectual dessas formula ções, para as te ) , sã o os operá rios das f á bricas de seda de Lyon , os
quais Marx encontrou palavras contundentes , mas cujo artesã os dos sub ú rbios parisienses e das “ caves de Lille ” ,
fundo n ã o lhe é absolutamente próprio . descritas por Victor Hugo , sã o os tecelões da Silésia , de
A revolu çã o em que ele pensa se refere evidentemente quem Marx falou tanto em seu jornal de Col ó nia , a Gazeta
à tradiçã o francesa . É o que pretendem os jovens demo ¬
Renana.. . Em suma , sã o todos aqueles que chamamos
cratas radicais, é a retomada do movimento que foi
interrompido , e depois invertido , pela instituiçã o “ burgue ¬
sa ” da rep ú blica depois de Termidor, pela ditadura napo- * Partidá rios da Montanha , facçã o radical da Revolu çã o Francesa. ( N .T. )
32 A FILOSOFIA DE MARX
II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRáXISK PRODUçãO 33
agora (com uma velha palavra romana ) de proletá rios, que
teorias filosóficas e sociol ógicas ( como as dos filantropos
a revolu çã o industrial criou em massa , concentrados nas do séc . XVIII e do in ício do séc . XIX ) . Mas ela deve coin ¬
cidades , jogados na misé ria , mas que começaram a abalar cidir com “ o movimento real que aniquila o estado de
a ordem burguesa com suas greves, suas “ coalizões” , suas coisas existente ” , como Marx n ã o tardará a escrever na
insurreições. Sã o, por assim dizer, o povo do povo, sua
Ideologia alemã , explicando que essa é a ú nica definição
fra çã o mais aut ê ntica e a prefigura çã o do seu futuro . No materialista do comunismo .
momento em que os intelectuais cr íticos, cheios de boa
Chegamos ent ã o ao segundo aspecto : “ em ato ” també m
vontade e ilusões, se interrogam ainda sobre os meios de quer dizer que se trata de uma atividade ( Tã tigkeit) , de
democratizar o Estado , e , para isso, esclarecer os que um empreendimento que se desenrola no presente e no
chamam de “ massa ” , eles pró prios já passaram aos atos,
qual os indiv íduos se empenham com todas as suas forças
já recomeçaram efetivamente a revolu ção. f ísicas e intelectuais . Uma inversã o significativa se opera
Com uma f órmula decisiva , que retorna em todos os aqui . Moses Hess e outros “ jovens hegelianos ” , adversá rios
textos desse período , desde A sagrada família (1844) até
das filosofias da hist ó ria , que ruminam sempre o sentido
o Manifesto comunista (1847), Marx dirá que esse prole¬ do passado , e das filosofias do direito, que comentam a
tariado “ representa a dissolu çã o em ato da sociedade ordem estabelecida , propuseram uma filosofia da açã o
civil- burguesa ” ( bü rgerliche Gesellschaft), entendendo com (Feuerbach , por sua vez , publicara um manifesto por uma
isso: 1) que as condições de existê ncia dos prolet á rios (o
filosofia do futuro ) . No fundo, o que Marx quer dizer é
que se chamaria hoje exclusã o) est ã o em contradiçã o com isto: a a çã o deve ser “ agida ” no presente , e n ã o comentada
todos os princípios dessa sociedade ; 2) que eles pró prios ou anunciada . Mas ent ã o a filosofia deve ceder o seu lugar .
vivem segundo outros valores , que n ã o sã o os da proprie ¬ N ã o é nem mesmo uma “ filosofia da a çã o ” que corresponde
dade privada , do lucro , do patriotismo e do individualismo à exigê ncia e ao movimento revolucioná rios , é a pró pria
burgu ês; 3) que sua oposição crescente ao Estado e à . a ção, sem frases.
classe dominante é um efeito necessá rio da estrutura social Entretanto , essa injun ção de ceder o lugar n ã o pode
moderna , mas mortal para esta , a curto prazo . ficar indiferente à filosofia ; se esta é conseq ü ente , deve
ver nisso , paradoxalmente , a sua própria realização. Marx
pensa antes de mais nada na tradi çã o idealista alemã , da
A ação no presente qual ele pr ó prio est á impregnado , e cujas rela ções com a
id é ia revolucion á ria francesa s ã o tã o estreitas . Pensa na
As palavras “ em ato” ( in der Tai) sã o particularmente
injun çã o kantiana de “ fazer o seu dever” , de agir no mundo
importantes. Por um lado , elas evocam a atualidade , a de acordo com o imperativo categ ó rico ( cujo conte ú do é
efetividade , os “ fatos ” ( Tatsache) ; exprimem portanto a a fraternidade humana ) . Pensa nas palavras de Hegel na
orienta çã o profundamente antiut ópica de Marx , e permi ¬
Fenomenolog í a: “ O que deve ser est á també m em ato ( in
tem compreender por que a referê ncia à s primeiras formas
der Tai) , e o que apenas deve ser, sem ser, nã o tem
da luta de classes prolet á ria em processo de organiza çã o nenhuma verdade . ” Mais politicamente , pensa no fato de
é t ã o decisiva a seus olhos . A prá tica revolucion á ria de que a filosofia moderna identificou o universal com os
que falam as Teses n ã o deve realizar um programa , um princ ípios da Declaraçã o dos direitos do homem e do
plano de reorganiza çã o da sociedade ; ela deve ainda cidadã o. Mas, precisamente , ou esses princ ípios , sacrali-
menos depender de uma visã o de futuro proposta por zados em teoria , sã o ignorados e contrariados a cada
34 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRáXIS à PRODUçãO 35

momento pela sociedade burguesa , onde n ão reinam nem E porque , na pr á tica , esses princípios resultam sempre n ã o
a igualdade nem mesmo a liberdade , para n ã o falar da na revolu çã o , mas na educa çã o (ou até na edifica çã o) das
fraternidade ; ou eles começam a passar para os fatos , mas massas , cuja causa os filósofos se propõem generosamente
em uma pr á tica revolucion á ria , “ insurrecional ” (a prá tica a assumir . No tempo de Plat ã o , eles pretendiam aconselhar
daqueles que , juntos , se insurgem , substituindo , se neces¬ os pr íncipes em nome da Cidade ideal . Em nossa é poca
sá rio , pela “ cr ítica das armas ” as “ armas da crítica ” ). Antes democr á tica , eles pretendem educar os cidad ã os (ou “ edu ¬
de tudo , essa conseqii ê ncia é um tanto rude para a filosofia , car os educadores ” dos cidad ã os: os ju ízes , os médicos,
mas oriunda de seus próprios princípios , os quais se deve os professores , instalando-se , pelo menos moralmente, no
entender, quando Marx , nesse ponto , fala de converter o alto do edif ício universit á rio) em nome da razã o e da ética .
idealismo em materialismo . Isso nã o é falso , mas por tr ás dessa fun çã o do idealismo
se esconde uma dificuldade mais temível . Na filosofia
moderna (que encontra sua verdadeira linguagem com
As duas faces do idealismo Kant), quando se fala de consciê ncia , de espírito ou de
raz ã o, essas categorias que exprimem o universal sempre
Vamos nos deter um pouco . Se essas indica ções sã o exatas , tê m uma dupla face , e as formula ções de Marx nas Teses
isso quer dizer que o materialismo de Marx nada tem a n ã o deixam de fazer alusã o a isso . Elas combinam intima ¬

ver com uma referê ncia à matéria - e esse será o caso mente duas id é ias: a representação e a subjetividade. Ter
pensado sistematicamente essa combina çã o é justamente
durante muito tempo: até que Engels comece a reunificar
o marxismo com as ciê ncias da natureza da segunda metade a originalidade e o poder do grande idealismo (alemã o) .
do séc. XIX. Mas , no momento , trata-se de um estranho Evidentemente , a noçã o de “ interpreta çã o ” , à qual Marx
“ materialismo sem maté ria ” . Por que essas palavras , então? se refere , é uma variante da idéia de representa çã o. Para
Aqui , o historiador da filosofia retoma os seus direitos, o idealismo criticado aqui , o mundo é o objeto de uma
apesar dos golpes que Marx acaba de lhe dirigir. Ele deve contemplaçã o que procura ver a sua coerê ncia , o seu
explicar esse paradoxo , o que o conduz també m a mostrar “ sentido” , e por isso mesmo, queira-se ou nã o, pretendé
a confusã o que resulta disso ( mas, vamos repetir , essa impor-lhe uma ordem. Marx viu muito bem que h á uma
confusã o é tudo menos arbitrá ria ). Se Marx declara que solidariedade entre o fato de pensar uma “ ordem do
transformar o mundo é um princí pio materialista , procu ¬ mundo ” ( principalmente no registro social é pol ítico) e o
rando ao mesmo tempo diferenciar-se de todo o materia ¬ fato de valorizar a ordem no mundo: contra a “ anarquia ” ,
lismo existente (aquele que ele chama de “ antigo ” , e que mas també m contra o “ movimento ” ( “ Odeio o movimento
repousa precisamente na idé ia de que toda explica çã o tem que desloca as linhas ” , escreverá Baudelaire)... Também
como princípio a maté ria : o que é também uma “ interpre ¬ viu muito bem que , desse ponto de vista , os “ materialismos
ta çã o do mundo ” , contest á vel como tal ) , é manifestamente antigos” ou as filosofias da natureza , que substituem o
para assumir a posição oposta à do idealismo. A chave das espírito pela maté ria como princ ípio de organiza çã o ,
formulações de Marx n ão reside na palavra materialismo , contê m um forte elemento de idealismo , e a rigor n ã o sã o
mas na palavra idealismo . Mais uma vez , por qu ê? mais do que idealismos disfar çados (quaisquer que sejam ,
Primeira raz ã o: porque as interpreta ções idealistas da aliá s , as conseqii ê ncias pol í ticas muito diferentes que eles
natureza e da hist ó ria , propostas pelos fil ósofos , invocam acarretam ) . Isso nos permite compreender por que é t ã o
princípios como o esp írito , a raz ã o , a consciê ncia , a idé ia .. . f á cil para o idealismo “ compreender ” o materialismo e
36 A FILOSOFí A DK MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRáXISK PRODUçãO 37

logo refut á -lo ou integr á-lo (como se vê em Hegel , que O sujeito é a prática
n ã o tem nenhum problema com os materialismos , salvo
talvez com Spinoza , mas Spinoza é um materialista bastante Seu projeto foi bem-sucedido? Em certo sentido, perfeita ¬
at ípico .. . ) - Enfim , Marx viu que o cerne do idealismo mente , pois é muito pertinente dizer que o ú nico verda ¬

moderno pós-revolucioná rio consiste em remeter a ordem deiro sujeito é o sujeito prá tico ou o sujeito da prá tica ,
do mundo, a “ representa çã o ” , à atividade de um sujeito, ou , melhor ainda , que o sujeito nã o é outra coisa senão a
que as cria , ou , como se diz em linguagem kantiana , as prática, que , sempre , já começou e prossegue indefinida ¬
“ constitui ” . mente . Mas, com isso, sa ímos do idealismo? De modo
Passamos agora para a outra vertente do idealismo : algum , precisamente porque “ idealismo ” , historicamente
n ã o a filosofia da representa çã o (ou , se quisermos , a falando, engloba ao mesmo tempo o ponto de vista da
simples filosofia da prioridade das “ id éias” ) , mas a filosofia representa çã o e o da subjetividade . Na verdade , trata -se
da subjetividade (o que exprime bem a import â ncia deci ¬ de um círculo , ou de um comutador teó rico , que funciona
siva assumida ent ã o pela noçã o de consciê ncia) . Marx nos dois sentidos. É possível dizer que Marx, identificando
pensou que a atividade subjetiva de que fala o idealismo a essê ncia da subjetividade com a prá tica , e a realidade
é no fundo o vestígio , a nega çã o ( o reconhecimento e o da prá tica com a atividade revolucion á ria do proletariado
desconhecimento ao mesmo tempo) de uma atividade mais (que faz parte da sua pr ó pria exist ê ncia ), transferiu a
real , mais “ efetiva ” , por assim dizer : uma atividade que categoria de sujeito do idealismo para o materialismo . Mas
seria simultaneamente constituiçã o do mundo exterior e
també m é igualmente possível afirmar que , com isso , ele
formação ( Bildung ) ou transforma çã o de si. Prova isso a preparou a possibilidade permanente de representar o
insist ê ncia , em Kant , e mais ainda em Fichte , do vocabu
proletariado como um “ sujeito", no sentido idealista do
¬

l á rio do ato, da a çã o e da atividade ( Tat , Tã tigkeit ,


Handlung . É da í, na realidade , que vem a “ filosofia da termo (e , partindo da í, como uma representa çã o ou uma
abstra çã o por meio da qual “ interpreta -se ” de novo o
a çã o ” pregada pelos jovens hegelianos ) . Prova isso a
maneira pela qual Hegel descreve o modo de ser da
mundo , ou a mudan ça do mundo: não é exatamente o
consciê ncia como uma experiência ativa , e a fun çã o do que acontecerá quando, mais tarde , teóricos marxistas
conceito como um trabalho ( o “ trabalho do negativo ” ) . armados com a id é ia da luta de classes deduzirã o a priori
Em suma , n ã o é dif ícil ler nos aforismos de Marx a hipó tese o “ sentido da história ” ?) .
seguinte : assim como o materialismo tradicional esconde , Esses jogos dialéticos n ã o tê m nada de gratuito. Est ã o
na realidade , um fundamento idealista (a representa çã o , a estreitamente ligados à hist ó ria da noçã o de revolu çã o , e
contempla ção), assim també m o idealismo moderno es¬ por conseguinte t ê m uma face pol ítica e , simultaneamente,
conde , na realidade , uma orienta çã o materialista na fun çã o
que ele atribui ao sujeito agente , se pelo menos se deseja
filosófica . Desde o in ício do período moderno
revolu ções ditas burguesas : anglo-americana e francesa
— — o das

admitir que h á um conflito latente entre a id é ia de a invenção do sujeito, como categoria central da filosofia
representa çã o ( interpreta çã o , contempla çã o ) e a de ativi ¬ que concerne a todas as á reas da experiê ncia concreta ( a
dade ( trabalho , pr á tica , transforma çã o, mudan ç a ). E aquilo ciê ncia , a moral , o direito , a religiã o , a est é tica ) e permite
a que ele se propôs é simplesmente detonar a contradiçã o , unificá - las, está ligada à idéia de que a humanidade se
dissociar representa çã o e subjetividade , e fazer surgir por forma ou se educa a si mesma , à idé ia de que ela impõe
si mesma a categoria da atividade pr á tica . a si mesma as suas leis , e logo , finalmente , à idé ia de que
38 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO : DA PRáXISX PRODUçãO 39

ela se liberta a si própria das diferentes formas da opressã o , A realidade da “ essência humana”
da ignorancia ou da superstiçã o , da misé ria etc . 9 E o sujeito
gen é rico dessa atividade tem sempre duas faces: uma Voltemos às Teses, para evocar a outra grande quest ã o que
teó rica, outra concreta e prá tica , que para Kant era a elas levantam : a da essê ncia humana . As duas estã o
humanidade , para Fichte se torna , em certo momento , o evidentemente ligadas. “ Feuerbach resolve a essência re ¬
povo, a nação , para Hegel , enfim , os povos históricos, ligiosa na ess ê ncia humana ” , isto é , ele mostra , particular ¬

encarnando sucessivamente “ o esp írito do mundo ” , isto é, mente na Essência do cristianismo de 1841, que a id é ia
o movimento do progresso da civilização . de Deus n ã o é outra coisa sen ã o uma s í ntese das perfeições
Por sua vez , Marx reconheceu no proletariado (vimos humanas , personificada e projetada fora do mundo . “ Mas
acima que este é o “ povo do povo ” , auté nticamente a essência humana nã o é uma abstra çã o inerente ao
humano e comunitá rio) o verdadeiro sujeito pr á tico , aquele indiv íduo singular. Em sua realidade efetiva , ela é o
que “ dissolve a ordem existente ” e assim se transforma a conjunto das rela ções sociais ” { das ensemble der gesells -
si mesmo ( Selbsttàtigkeit , Selbstverã nderung ) , transforman ¬ chaftlicben Verb àltnisse , escreve Marx em uma mistura de
do ao mesmo tempo o mundo. Serviu -se dessa constata çã o francês e alem ã o): essa frase da Tese 6 n ã o provocou
( na qual se superp õem de modo impressionante a liçã o menos coment á rios do que a l l . Vá rias coisas sã o not á veis ,
da experiê ncia imediata e a tradiçã o especulativa mais se o texto é seguido ao pé da letra .
antiga ) para afirmar, por sua vez , que o sujeito é a prática. Marx levanta aqui a quest ã o da essê ncia do homem ,
Tudo isso , poré m , n ão o afasta verdadeiramente da histó ria ou responde a ela . Nada mais natural . Entretanto , essa
questã o , que pode ser considerada como constitutiva da
do idealismo ; pelo contrá rio. Fichte não disse outra coisa .
antropologia , n ão é de modo algum ó bvia . Em certo
Até se poderia sugerir, sem jogar com as palavras , que
sentido , ela é t ã o velha quanto a filosofia . Mas quando ,
isso fez de Marx e do seu “ materialismo da pr á tica ” a
em nossos dias, Claude Lévi-Strauss explica que a essê ncia
forma mais acabada da tradiçã o idealista , que permite do homem é o conflito da natureza e da cultura , ou ent ã o
compreender, mais do que qualquer outra , a vitalidade quando Lacan forja a palavra parlêtre,' para dizer que a
persistente do idealismo at é nossos dias . Justamente por ¬
essê ncia do homem é permeada pela linguagem , eles se
que essa transposição est á estreitamente ligada à tentativa inscrevem na mesma tradição que Arist ó teles ao definir o
de prolongar a experiê ncia á ria e de encarn á-la
revolucion
na sociedade moderna , com suas classes e seus conflitos
homem como o ser que disp õe da linguagem e pertence
à cidade , ou Santo Agostinho , que define o homem como
sociais . “ a imagem e semelhan ça de Deus na terra ” . Ali á s, se
Seria possível assim compreender que a adoçã o do considerarmos as coisas a partir de um n ível de generali¬
ponto de vista dos prolet á rios em insurreiçã o “ permanente ” dade suficiente , todos eles tratam , na verdade , da mesma
n ão teve tanto como resultado pô r fim ao idealismo , mas quest ã o . Desde a Antig ü idade até nossos dias , h á uma
antes instalar o dilema do materialismo e do idealismo , a longa sucessã o de definições da natureza humana ou da
quest ã o sempre renascente da diferen ç a entre os dois , essê ncia humana . O pró prio Marx proporá v á rias , que
no cerne da teoria do proletariado , e do seu papel
histó rico privilegiado . Mas com esse dilema , é de se esperar
que seja a filosofia que , expulsa pela porta , volte pela * Formada a partir de “ falar” e “ ser ” . Um termo equivalente em portugu ê s
janela . . . seria “ falesser” . ( N.T. )
40 A FILOSOF í A DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO: DA PRáXISK PRODUçãO 41 -

sempre girarã o em torno da rela çã o do trabalho e da que mostra que a trajet ó ria do /humanismo teó rico, converge
consciência . No livro I do Capital ,10 ele citar á uma com a do idealismo/ e da sua refuta çã o . O paralelo é
definiçã o muito caracter ística de Benjamin Franklin (o esclarecedor. De fato , vemos que Marx procede , em rela çã o
homem é “ a toolmaking animal ” , um ser vivo que fabrica à s teorias rivais (espiritualistas , materialistas) da natureza
ferramentas) , n ão para rejeitá-la , mas para completá-la , humana , a uma cr ítica do mesmo g ê nero que aquela que
precisando que a tecnologia tem uma história , que depende exerceu sobre as teorias do sujeito , da atividade e da
do “ modo de produ ção ” , lembrando depois que n ã o h á intuiçã o sensível . Dizer que “ em sua realidade efetiva ” ( in
tecnologia nem progresso, técnico sem consciência , refle ¬
seiner Wirklichkeif ) a essê ncia humana é o conjunto das
xã o , experimenta çã o, saber. E na Ideologia alemã, logo rela ções sociais, n ã o é, evidentemente , recusar a questão.
depois da formula ção que examinamos , escreverá : “ Pode¬ Mas é tentar deslocar radicalmente o modo pelo qual , até
mos distinguir os homens dos animais pela consciência , agora , ela foi compreendida , n ão só para o que diz respeito
pela religiã o e por tudo o que quisermos. Eles próprios ao “ homem” , mas, ainda mais fundamentalmente, para o
começam a se distinguir dos animais logo que começam que diz respeito à “ essência)’.
a produzir seus meios de existência, passo à frente que é Os filósofos fizeram uma Idéia falsa do que é uma
a conseqiiê ncia de sua organização corporal . Produzindo essência (e esse erro lhes é t ã o... essencial, que mal se
seus meios de existê ncia , os homens produzem indireta ¬ pode imaginar um filósofo sem isso). Eles pensaram,
mente a sua pró pria vida material ...” . Isso é um modo de primeiramente, que a essência é uma idéia, ou uma
procurar a resposta para a questã o da essência do homem abstra çã o (diríamos ainda , com uma terminologia diferente,
nas pr ó prias coisas , e que aliás fornece o ponto de partida um conceito universal) , sob o qual podem ser classificadas,
para toda uma antropologia biológica e tecnológica , mar¬ por ordem de generalidade decrescente, as diferenças
xista ou n ã o . específicas e finalmente as diferenças individuais; e, em
segundo lugar, que essa abstração genérica está , de certa
forma , “ alojada ” ( inwohnend) nos indivíduos do mesmo
O humanismo teórico gê nero, seja como uma qualidade que eles possuem ,
segundo a qual se pode classificá- los , seja até como uma
Entretanto , uma nuance crucial para compreender o alcan ¬ forma ou uma potência que os faz existir como có pias do
ce de nosso texto separa o simples fato de definir o homem mesmo modelo .
ou a natureza humana do fato de formular explí citamente Vemos ent ã o o que significa a estranha equa ção pro¬
a pergunta “ o que é o homem ? ” (ou : “ qual é a essê ncia posta por Marx . No fundo , as palavras “ conjunto ” , “ rela ¬
humana ? ” ) , e , mais ainda , de fazer dela a quest ã o filosófica ções ” e “ sociais” dizem todas a mesma coisa . Trata-se de
fundamental . Entramos ent ã o em uma problemá tica nova , recusar ao mesmo tempo as duas posições (ditas realista
que podemos chamar, como Althusser, de humanismo e nominalista ) entre as quais se dividem tradicionalmente
teó rico . Por mais surpreendente que possa parecer, essa os filósofos : a que afirma que o gê nero, ou a essê ncia ,
problem á tica é relativamente recente , e , quando Marx precede a existência dos indiv íduos , e a que afirma que
escreve , n ã o é absolutamente velha , pois data apenas do os indivíduos sã o a realidade primeira , a partir da qual se
fim do séc . XVIII . Na Alemanha , os nomes mais importantes “ abstraem ” os universais . De modo impressionante , nenhu ¬
sã o os de Kant ( Antropologia do ponto de vista pragmá tico, ma dessas duas posições é capaz de pensar o que h á de
1798) , de Guilherme de Humboldt 11 e de Feuerbach , o essencial na existê ncia humana : as relações . m ú ltiplas e
42 A FILOSOFIA DE MARX
II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRáXISX PRODUçãO 43
ativas que os indivíduos estabelecem uns
com os outros
( linguagem , trabalho , amor
, reprodu çã o, domina çã o, con ¬ uma resposta formal (e que conté m assim o pren ú ncio de
flitos etc . ), e o fato de que são essas rela ções que uma outra problem á tica, diferente do humanismo teó rico).
o que eles tê m em comum , o “ gê nero ” . Elas definem De fato , essa palavra existe , mas em pensadores do séc .
o definem XX ( Kojève , Simondon , La çan .. . ) : trata -se de pensar a
porque elas o constituem a cada instante
, sob formas
m ú ltiplas , fornecendo portanto o ú nico conte humanidade como uma realidade transindividual ] e até
ú do “ efetivo”
da noçã o de essência , aplicada ao homem ( de pensar a .transindividualidade como tal . 14 Nã o o que
isto é , aos est á idealmente “ em ” cada indiv íduo ( como uma forma ou
homens).
uma substâ ncia) ou o que serviria , do exterior, para a
classificá -lo, mas o que existe entre os indivíduos, em
O transindividual conseqúência de suas múltiplas interações.

Não discutamos aqui se esse ponto de vista


é absoluta ¬
mente original , próprio de Marx . O que é Uma ontologia da relação
certo é que ele
comporta conseq úências simultaneamente
no campo da
discussão filosófica (no n ível do que se chama Somos obrigados a reconhecer que aqui se esboça uma
gia ” )12 e no da pol ítica . As palavras
“ ontolo¬ “ ontologia ” . Mas ela substitui a discussã o sobre as rela ções
de que Marx se serve
recusam' ao mesmo tempo o ponto de
, do indiv íduo e do gê nero por um programa de pesquisa
vista individualista
(prioridade do indivíduo, e
principalmente a ficçã o de uma sobre essa multiplicidade de rela ções, que sã o transições,
individualidade que poderia ser definida por si mesma, transferê ncias ou passagens nas quais se faz e se desfaz
isoladamente , em termos de biologia , psicologia , compor ¬ a ligação dos indivíduos com a comunidade e que os
tamento econ ómico etc.) e o ponto de vista organicista constitui a eles pr ó prios . De fato , o que é mais impres ¬
( també m chamado, em
nossos dias, a exemplo dos anglo- sionante em uma tal perspectiva é justamente que ela
saxões, ponto de vista bolista: prioridade instaura uma completa reciprocidade entre esses dois
do todo e pólos , que nã o podem existir um sem o outro e sã o apenas,
especialmente da sociedade , considerada como
uma
dade indivisível , da qual os indivíduos seriam apenasuni cada um por sua conta , abstra ções , mas que sã o ambos
¬

os necessá rios ao pensamento .da rela ção ou da liga çã o


membros funcionais).13 Nem a “ mónada ” de Hobbes
e de ( Verb àltnis ).
Bentham , nem o “ grande ser ” de Auguste
Comte, por Nesse ponto, que pode parecer especulativo, estamos
conseguinte . É significativo que Marx (que
falava o francês mais perto de encontrar, por um curto-circuito caracter ís¬
quase tã o correntemente quanto o alemão)
tenha procu ¬
tico , a questã o da política . Nã o só , efetivamente , as
rado a palavra estrangeira ensemble ( “ conjunto ),
” eviden ¬
rela ções de que falamos nã o sã o nada mais do que prá ticas
temente para evitar o uso de das Ganze, o “
todo ” ou a diferenciadas, ações singulares dos indivíduos uns sobre
totalidade .
Talvez as coisas ficassem mais claras na forma ( os outros . Mas essa ontologia transindividual comporta , ao
n ã o no fundo) se acrescentá ssemos , por mas menos, uma ressonâ ncia com enunciados como a Decla ¬
nossa vez, uma raçã o dos direitos do homem e do cidad ã o (muito errada ¬
palavra ao texto , inventando-a se necessá rio, para
terizar essa concepçã o da ¡relaçã o constitutiva
carac ¬ mente considerada como um texto “ individualista ” ) e , mais
a questã o da essência humana , dando-lhe ao ', que desloca
ainda , com a prá tica dos movimentos revolucion á rios: uma
mesmo tempo prá tica que nunca opõe a realiza çã o do indiv íduo aos
44 A FILOSOFIA DE MARX II 7 TRANSFORMAR MUNDO : DA PRãXJS á. PRODUçãO
O 45
interesses da comunidade , que nem mesmo os separa, mas sobre Feuerbach , e nb entanto ela já fala uma outra
que sempre procura realizá-los um pelo outro . Pois , se é linguagem . As razões formais que acabamos de invocar
verdade que só os indivíduos podem , em ú ltima aná lise , nã o bastam para explicá -lo .
ter direitos e formular reivindicações, a conquista desses Creio que para isso h á uma raz ão muito precisa ,
direitos ou a liberta çã o (ou mesmo a insurreição) é n ã o conjuntural , mas que serve de revelador para uma dificul ¬
menos necessariamente coletiva.. dade de fundo. Alguns historiadores do pensamento de
Talvez se possa dizer que essa formula ção n ã o descreve Marx (especialmente Auguste Cornu ) a constataram , mas
um estado de coisas existente, ainda menos um sistema
muitos a ignoraram ou subestimaram , principalmente por ¬
de instituições , mas antes um processo (pelo menos tal
que , em geral , lê-se apenas a primeira parte do texto
como o vivem aqueles que dele participam). Mas é ( /. Feuerbach) , que uma longa tradição nos habituou a
exatamente isso que Marx quer dizer. E nessas condições,
compreende-se que a Tese 6, que identifica á essência compreender como uma exposi çã o aut ó noma do “ materia ¬
humana com “ o conjunto das rela ções sociais” , e a 3, a 7 lismo histórico” , ao passo que se trata , no essencial , de
ou a 11, que organizam todo o pensamento em função da uma resposta , e de uma resposta muitas vezes penosa
(todo leitor sabe disso por experiê ncia pró pria ) , que
prá tica revolucioná ria e da mudança , dizem , na realidade ,
fundamentalmente a mesma coisa . Vamos dizer a palavra , desafia um outro teórico. Esse teórico , cujo poder deve ¬

então: as relações sociais aqui designadas nã o sã o nada ríamos agora medir, é Max Stirner (pseudó nimo de Caspar
mais do que uma incessante transformação , uma “ revolu çã o Schmidt ) , autor de O ú nico e sua propriedade , publicado
permanente” (a expressão não foi inventada por Marx, mas no fim de 1844 :15 má s é alguns meses mais tarde , logo
terá um papel decisivo em seu pensamento até por volta depois da reda çã o das Teses, e por insistê ncia de Engels ,
de 1850). Para o Marx de março de 1845, n ão basta dizer, que Marx começou a ler laboriosamente o Ú nico . ..
como Hegel , que “ o real é racional ” e que o racional , Quem é Stirner, do ponto de vista teórico? Em primeiro
necessariamente , se realiza ; é preciso dizer que a ú nica lugar, é um anarquista , defensor da autonomia da socie ¬

coisa real e racional é a revolu çã o . dade , composta de indivíduos singulares , “ propriet á rios ”
de seu corpo , de suas necessidades e de suas idéias , diante
do Estado moderno, no qual se concentra , a seus olhos,
A objeção de Stimer toda domina çã o e que retomou para si os atributos
sagrados do poder, elaborados pela teologia pol ítica da
O que querer, alé m disso? Mencionei acima , entretanto, Idade Média . Mas , principalmente , Stirner é um nomina ¬
que Marx não poderia parar por ali: é o que devemos lista radical : entendemos com isso que , para ele , toda
compreender agora . Nã o o conseguiríamos , se nos con ¬
“ generalidade ” , todo “ conceito universal ” é uma ficçã o
tent ássemos em mostrar que , substituindo o sujeito pela forjada por instituições para “ dominar ” (organizando- a ,
pr á tica , gera-se um cí rculo , uma dificuldade l ógica , ou que classificando-a , simplificando-a e á té simplesmente no ¬

a noçã o de essê ncia corre o risco de se encontrar em meando- a ) a ú nica realidade natural , isto é , a multiplici ¬

desequil íbrio , entre a cr ítica interna da ontologia tradicio¬ dade dos indiv íduos , dos quais cada um é “ ú nico em seu
nal , e sua dissolu çã o na multiplicidade das pesquisas gê nero ” ( da í o jogo de palavras essencial de Stirner, que
concretas sobre as rela ções sociais . A ideologia alem ã , sem aliá s tem uma longa ascendê ncia : o próprio de cada um
d ú vida , é um texto muito próximo da inspiraçã o das Teses é a sua propriedade ) .
46 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRáXISK PRODUçãO 47

Vimos que Marx está desenvolvendo uma noçã o da A ideologia alemã


rela çã o social , que , pelo menos teoricamente , opõe o
nominalismo e o essencialismo . Mas a cr ítica de Stirner é Esses dois movimentos , é claro , est ã o estreitamente liga ¬
para ele tem ível , porque ela n ã o se contenta em visar os dos . Um pressupõe constantemente o outro , e é a isso
“ gê neros ” metaf ísicos tradicionais (todos mais ou menos que se deve a coerê ncia intelectual da Ideologia alemã , a
teológicos : o Ser, a Substancia , a Idéia , a Razã o, o Bern. . .) , despeito de sua redação inacabada e desequilibrada (o
ela engloba todas as noções universais , sem exceçã o, cap ítulo III sobre Stirner , “ Sã o Max ” , ocupa quase dois
antecipando assim certos desenvolvimentos de Nietzsche terços da obra , e consiste , em boa parte , em uma luta
e o que se chama hoje p ós-modernismo . Stirner nã o admite verbal com a argumenta çã o “ iró nica ” do Ú nico e sua
nenhuma crença , nenhuma Id é ia , nenhum “ grande relato” : propriedade , cujo resultado , do ponto de vista estritamente
nem de Deus nem do Homem , nem da Igreja nem do retó rico , é bastante incerto .16 A obra se organiza inteira ¬
Estado , e nem mesmo da Revolu ção . E efetivamente , nã o mente em torno da noçã o de / produ ção , tomada aqui em
h á diferenç a l ógica entre a cristandade, a humanidade, o sentido geral , para designar ' toda atividade humana de
povo, a sociedade, a nação ou o proletariado , assim como forma çã o e de transforma çã o da natureza . N ã o é exagero
entre os direitos humanos e o comunismo: todas essas dizer que depois da “ ontologia da pr á xis ” anunciada nas
noções universais sã o efetivamente abstrações , o que Teses sobre Feuerbach , A ideologia alemã exp õe uma
“ ontologia da produ çã o ” , pois, como o pró prio Marx diz ,
significa , do ponto de vista de Stirner, ficções. E essas
é a produ çã o que forma o ser do homem ( Sein , ao qual
ficções têm como uso substituir os indivíduos e os pen ¬
ele oporá a sua consciê ncia : Bewusst -sein , literalmente “ ser
samentos dos indivíduos: é por isso que o livro de Stirner
consciente ” ). Mais exatamente, é a produ ção de seus
n ã o cessar á de alimentar as cr íticas da esquerda ou da pr ó prios meios de existê ncia , atividade simultaneamente
direita , que explicam que í os homens n ã o ganham nada pessoal e coletiva ( transindividual ) , que o transforma , ao
trocando o culto da humanidade abstrata pelo da revolu çã o mesmo tempo que transforma irreversivelmente a natureza ,
ou da pr á tica revolucion á ria , igualmente abstrata , e que e que assim constitui “ a hist ó ria ” .
talvez eles corram o_risco de uma domina çã o ainda mais Mas , reciprocamente, Marx mostrará que a pró pria
perversa . T. ideologia é produzida , antes de se constituir como uma
É certo que Marx e Engels nã o puderam evitar essa estrutura aut ó noma de produ çã o (cujos “ produtos” sã o as
obje çã o, pois eles pretendiam ser ao mesmo tempo críticos ideias , a consciê ncia coletiva : é o objeto da teoria do
do idealismo, do essencialismo dos filósofos , e dos comu ¬ trabalho intelectual ) . A cr ítica da ideologia é o pré-requisito
nistas ( mais precisamente dos comunistas humanistas ) . necessá rio para um conhecimento do ser social como
Vimos que essa dupla perspectiva estava no centro da desenvolvimento da produ çã o : desde suas formas imedia ¬
categoria que acabava de se mostrar a Marx como a tas , ligadas à subsist ê ncia dos indiv íduos , até suas formas
"solu çã o ” dos enigmas da filosofia : a prá tica revolucion á ria . mais mediatas , que desempenham um papel apenas indi ¬
Como ele respondeu a esse desafio? Transformando a sua reto na reprodu çã o da vida humana . Para ter acesso a esse
noçã o simbó lica de fprá xis ” ; em um conceito histó rico e fio condutor de toda a hist ó ria , nã o basta contemplar os
sociológico de ¡produçã o , ) e levantando uma questã o sem fatos , é preciso passar pela crítica da ideologia dominante ,
precedentes na filosofia ( mesmo que a palavra n ã o seja porque ela é simultaneamente uma inversã o do real e uma
absolutamente nova ) : a quest ã o da ideolosia. autonomiza çã o dos “ produtos intelectuais ” , na qual os
48 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO : DA PRáXIS à PRODUçãO 49
vest ígios da origem real das id éias foram perdidos , e que Estado de direito que estende racionalmente os seus
nega a pró pria existê ncia dessa origem . poderes sobre toda a sociedade e que , reciprocamente ,
Eis por que eu falava de pressuposiçã o recí proca . Mas, “ totaliza ” as atividades. Essa universalidade jurídico-estatal
por isso mesmo a obje çã o de Stirner pode ser rejeitada , aparecerá , ao contrá rio , a Marx , como a inversão ideológica
pois n ã o se trata mais de denunciar a abstra çã o dos por excelê ncia das relações sociais . Trata -se , antes , do fato
“ universais” , das “ generalidades ” , das “ idealidades ” , mos¬ de que a história se transformou na interaçã o , na interde ¬
trando que ela substitui os indiv íduos reais ; mas torna-se pendência de todos os indivíduos e de todos os grupos
possível estudar a sua gé nese , a sua produ çã o pelos pertencentes à humanidade .
indiv íduos , em fun çã o das condições coletivas ou sociais A erudiçã o de Marx , já grande.,nessa é poca , se mobi ¬
nas quais eles pensam e se referem uns aos outros . E por lizou para demonstrar que a contrapartida da divisã o do
isso , em vez de evoluir indefinidamente no tudo ou nada trabalho é a evolu çã o das formas de propriedade (desde
(aceitar ou rejeitar todas as abstra ções , em bloco) , disp õ e- a propriedade comunit á ria , ou estatut á ria , at é a proprie ¬
se de um crité rio que permite discernir as abstra ções que dade privada formalmente acessível a todos) . Cada modo
representam um conhecimento real das que tê m apenas de produ çã o implica uma forma histó rica da apropria ção
uma funçã o de desconhecimento e de mistifica çã o . Melhor e da propriedade , que é simplesmente a sua outra face .
ainda : discernir as circunstâ ncias nas quais o uso de Por conseguinte , a divisão do trabalho é o próprio princípio
abstra ções é ou nã o mistificador. O niilismo inerente à da constituição e da dissolu çã o dos grupos sociais, cada
posiçã o de Stirner se encontra assim neutralizado em sua vez mais amplos, cada vez menos “ naturais ” , desde as
base , sem que por isso a necessidade de uma crítica radical comunidades primitivas até as classes , passando pelos
das id éias dominantes seja questionada . Muito pelo con¬ diferentes status, corpora ções , ordens ou estados ( Stá n-
tr á rio . de ) ... Cada um desses grupos, “ dominante ” ou “ dominado” ,
deve ser compreendido , em suma , como uma realidade
de face dupla , contraditó ria : simultaneamente como uma
Reviravolta da história forma de universaliza çã o relativa e como uma forma de
limita çã o ou de particulariza çã o das rela ções humanas . A
A ideologia alem ã apresenta -se portanto como uma g é nese sé rie dessas relações n ã o é sen ã o o grande processo de
ao mesmo tempo lógica e histó rica das formas sociais, nega çã o da particularidade e do particularismo , mas atrav és
cujo fio condutor é o desenvolvimento da divisã o do da experiê ncia e da realiza çã o completa das suas formas .
trabalho . Toda nova etapa da divisã o do trabalho caracte ¬ O ponto de partida do desenvolvimento era a atividade
riza um certo modo de produ çã o e de trocas . Da í uma produtiva dos homens envolvidos com a natureza : é o que
periodiza çã o que deve , evidentemente , fazer- nos pensar Marx chama o pressuposto real ( wirkliche Voraussetzung ),
intensamente na filosofia hegeliana da histó ria . Mais do no qual ele insiste longamente , contra as ilusões de uma
que um simples relato das etapas da histó ria universal , filosofia “ sem pressupostos ” . Quanto ao ponto de chegada ,
'

trata -se , de fato (como em Hegel ) dos momentos t í picos é a sociedade “ civil - burguesa ” ( biirgerliche Gesellschaft ) ,
do processo pelo qual a hist ória se universalizou , tornou -se fundada nas diferentes formas de comé rcio ( Verkehr, que
uma histó ria da humanidade . Entretanto, o conte ú do da se poderia traduzir també m por comunica çã o) entre pro ¬

exposi çã o é o contr á rio do espí rito objetivo hegeliano , pois priet á rios privados , concorrentes entre si . Ou antes , o
essa universaliza çã o n ã o consiste na forma çã o de um ponto de chegada é a contradiçã o que uma tal sociedade
50 A FILOSOFí A DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRÁ Xisk PRODUçãO 51

encerra , pois a individualidade apresentada como um isolados ,- só podem exercer- se em uma rede virtualmente
absoluto equivale , na pr á tica , para a massa , a uma preca ¬ infinita de intera ções entre os homens . A “ resolu çã o” da
riedade ou “ contingê ncia ” absoluta das condições de contradiçã o não pode consistir em um retorno a formas mais
exist ê ncia , assim como a propriedade (de si , dos objetos) “ limitadas” da atividade e da vida humanas , mas unicamente
equivale a uma expropria çã o generalizada . em um domí nio coletivo da “ totalidade das forças produtivas” .
Uma das grandes teses da Ideologia alemã , oriunda
diretamente da tradiçã o liberal , mas voltada contra ela , é
que a sociedade “ burguesa ” se constitui irreversivelmente O proletariado, classe universal
a partir do momento em que as diferenças de classe
prevalecem sobre todas as outras e praticamente as apa ¬ Tudo isso pode ser dito com outras palavras:ld proletariado
gam . O pró prio Estado , por mais hipertrofiado que pareça , constitui a classe universal da histó ria) ideia que n ã o
,

n ão é mais do que uma funçã o dela . É nesse momento encontrou em toda a obra de Marx uma expressã o mais
que a contradiçã o entre particularidade e universalidade , articulada e mais completa do que aqui . A iminência da
cultura e embrutecimento , abertura e exclusã o , é mais transforma çã o revolucion á ria e do comunismo repousa , de
aguda e se torna explosiva entre riqueza e pobreza , fato , sobre essa perfeita coincidê ncia , em um mesmo
circula ção universal dos bens e restriçã o do acesso a eles ,
produtividade aparentemente ilimitada do trabalho e con-
presente , da universaliza çã o das trocas , e
classe burguesa que elevou o interesse

particular
diante da
como tal
finamento do trabalhador em uma estreita especialidade .. .
Cada indiv íduo , por mais miserá vel que seja , torna-se vir¬
à universalidade — de uma “ classe que
” , ao contr
tem nenhum interesse particular a defender Privado de
.
á rio, nã o

tualmente um representante do gê nero humano , e a fun çã o todo status como de toda propriedade , logo de toda
de cada grupo se define em escala mundial . A histó ria “ qualidade particular ” ( Eigenschaft) , o prolet á rio as possui
est á ent ã o a ponto de sair da sua pró pria “ pré-hist ó ria ” . todas, virtualmente. Praticamente n ã o existindo mais por
Toda a argumenta çã o da Ideologia alemã tende , com si só, ele existe virtualmente por todos os outros homens .
efeito, a mostrar que essa situa çã o é , como tal , insusten¬ Observemos que “ sem propriedade ” em alemã o é eigen -
t á vel , mas que , - pelo desenvolvimento de sua pr ó pria tumslos. É imposs ível n ã o entender aqui , a despeito dos
l ógica , ela conté m as premissas de uma reviravolta ( Um- sarcasmos dirigidos a Marx por Stirner, o mesmo jogo de
wálzung ), que equivaleria simplesmente à substituiçã o da palavras de que este usara e abusara , mas voltado em
sociedade civil- burguesa pelo comunismo . A passagem sentido oposto , contra a “ propriedade privada ” . “ Só os
para o comunismo é , pois , iminente, logo que as formas prolet á rios da é poca atual , totalmente exclu ídos de toda
e as /contradições da sociedade civil- burguesa estejam manifesta çã o de si , podem chegar a uma manifesta ção de
completamente desenvolvidas. De fato , a sociedade nas si total , e n ã o mais limitada , que consiste na apropria çã o
quais as trocas se tornaram universais é tamb é m uma de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvi ¬
sociedade na qual “ as for ças produtivas estã o desenvolvi ¬ mento de uma totalidade de faculdades que isso implica . ” 17
das até o est á gio da totalidade ” . De um extremo ao outro A universalidade negativa se converte em universalidade
da histó ria , as “ forças produtivas” sociais , exprimindo-se positiva , a expropria çã o em apropria çã o , a perda de
em todas as á reas , desde a técnica até a ciê ncia e a arte , individualidade em desenvolvimento “ multilateral ” dos in ¬

nunca sã o apenas as dos m ú ltiplos indiv íduos . Mas dora ¬ divíduos , cada um dos quais é uma multiplicidade ú nica
vante elas sã o inoperantes enquanto forças de indivíduos de relações humanas .

52 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR MUNDO : DA PRá XISK PRODUçãO


O 53
Essa reapropria çã o só pode pois ocorrer para cada um n ã o voltou simplesmente para casa .. . Podemos compreen ¬
se ocorrer simultaneamente para todos. “ As trocas univer ¬ der isso evocando uma velha quest ã o do pensamento
sais modernas só podem ser subordinadas aos indiv íduos
dialético. Como mencionei acima , se a noçã o de práxis
estando subordinadas a todos.” Por isso , a revolu çã o nã o ou pr á tica revolucion á ria declarava , com uma nitidez
é comunista apenas em seu resultado , mas tamb é m em inigual á vel , que se a “ transformação do mundo ” dispensou
sua forma . Dir íamos que ela deve inevitavelmente repre ¬ toda filosofia essencialista , nem por isso era menos sus¬
sentar uma diminuição de liberdade para os indivíduos? cetível , paradoxalmente , de se apresentar como um outro
Pelo contrá rio , ela é a verdadeira libertaçã o , pois a nome da essê ncia humana . Essa tensã o se acentua com a
sociedade civil- burguesa destrói a liberdade no mesmo produ ção, tal como a analisa agora Marx . Não só porque
momento em que a proclama como princípio. Mas no há toda uma histó ria emp írica da produção (que obrigará
comunismo , que é o seu reverso, a liberdade se torna o fil ósofo a tornar-se economista , historiador , tecn ólogo ,
efetiva , porque responde a uma necessidade intrínseca , etnólogo...), mas principalmente porque Marx derrubou
cujas condições essa mesma sociedade criou . “ Em lugar um dos mais antigos tabus da filosofia : a distinçã o radical
da antiga sociedade civil- burguesa , com suas classes e seus entre práxis e poiesis.
antagonismos de classes” , anunciará o Manifesto , “ surge Desde a filosofia grega (que fazia dela o privilégio dos
uma associa çã o em que o livre desenvolvimento de cada “ cidad ã os” , isto é , dos senhores) , a práxis era a a çã o
um é o livre desenvolvimento de todos ” “ livre ” , na qual o homem n ã o realiza e n ã o transforma
A tese do proletariado “ classe universal ” condensa nada , a n ã o ser a si mesmo , procurando atingir a sua
assim os argumentos que permitem a Marx apresentar a própria perfeição. Quanto à poiesis (do verbo poiein:
condiçã o oper á ria , ou antes a condição do trabalhador fazer/fabricar) , que os gregos consideravam como funda ¬
assalariado, como o resultado de todo o processo da mentalmente servil , era a a çã o “ necessá ria ” , submetida a
divisã o do trabalho , a “ decomposiçã o” da sociedade civil . 18 todas as limita ções da rela çã o com a natureza , com as
Ela permite tamb é m a Marx ler como em um livro aberto, condições materiais. A perfeiçã o que ela procura nã o é a
no presente , a imin ê ncia da revolu çã o comunista . O do homem , mas a das coisas , dos produtos de uso .
‘partido ” do mesmo nome , cujo Manifesto ele redige ent ã o Eis pois o fundo do materialismo de Marx na Ideologia
com Engels , nã o será um partido “ distinto” , nã o terá alemã (que é efetivamente um materialismo novo ) : n ã o
“ interesses que [o] separem do conjunto do proletariado” , uma simples inversã o da hierarquia , um “ obreirismo teó¬
ele não estabelecerá “ princípios particulares” , mas será , rico” , se ouso dizer (segundo a acusa çã o de Hannah Arendt
simplesmente , esse movimento real que chegou à maturi¬ e outros) ,19 isto é , uma primazia atribu ída à poiesis sobre
dade , que se tornou manifesto para si mesmo e para a a práxis, em raz ã o de sua rela çã o direta com a maté ria ,
sociedade inteira . mas a identifica ção das duas, a tese revolucion á ria segundo
a qual a práxis passa constantemente para a poiesis e
vice - versa . Nunca h á liberdade efetiva que n ã o seja també m^
A unidade da prática uma transforma çã o material , que n ã o se inscreva histori ¬
camente na exterioridade , mas també m nunca h á trabalho
Ao mesmo tempo , esboça -se uma teoria que , embora negue que n ã o seja uma transforma çã o de si , como se os homens
energicamente ser uma filosofia , representa um novo ponto pudessem mudar suas condições de existê ncia , conservan ¬
de partida na filosofia . Marx saiu do “ desfecho". Mas ele do ao mesmo tempo uma “ essência ” invariante .
54 A FILOSOFIA DE MARX

Ora , essa tese n ão pode ficar sem efeito sobre o terceiro


termo do tr íptico cl á ssico: a tbeoria ou “ teoria ” ( na qual
toda a tradiçã o filosófica continuava a entender o sentido
etimol ógico de contempla çã o). As Teses sobre Feuerbach III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO :
recusaram toda contempla çã o e identificaram o crité rio da o PODER E A SUJEI çãO
verdade com a pr á tica (Tese 2 ) . Em contrapartida da
equa çã o “ pr á tica = produ çã o” que se estabelece agora , A
ideologia alemã d á um passo decisivo : identifica a theoria
com uma “ produ çã o de consciê ncia ” . Mais exatamente ,
com um dos termos da contradiçã o hist ó rica à qual d á
lugar a produ çã o de consciê ncia . Esse termo é precisa ¬
mente a ideologia , segunda inova ção de Marx em 1845,
pela qual ele propunha , de certa forma , à filosofia , que
se olhasse no espelho da prá tica . Mas ser á que ela poderia
reconhecer-se nesse reflexo?
Temos vá rias coisas a fazer neste capítulo . Por um lado ,
retomar a discuss ã o das teses propostas por Marx na
Ideologia alemã, explicitando a liga ção que se estabeleceu
entre uma concep çã o da hist ó ria fundada sobre a produ çã o
e uma an á lise do efeito de dominação ideológica no
elemento da consci ê ncia .
Mas , por outro lado , pois nada é simples , devemos
compreender os motivos de uma estranha vacila çã o do
conceito de ideologia . Ao contrá rio do que imagina um
leitor de hoje , para quem essa no çã o se tornou corrente
(ao mesmo tempo , ali á s , que os seus usos se dispersaram
em todos os sentidos ... ) e que esperaria , provavelmente ,
que , uma vez inventada , ela se desenvolvesse sem des-
continuidade , n ã o foi isso que ocorreu . Embora n ã o tenha
cessado de descrever e criticar “ ideologias ” particulares ,
Marx , depois de 1846 e de qualquer forma ap ós 1852 ,
nunca mais empregou esse termo (que será exumado por
Engels , 25 anos depois, nas obras que marcam a sua
pr ó pria entrada em cena na histó ria do marxismo: o
Anti -Dühring , 1878 , e Ludivig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã , 1888). Isso n ã o significa , entretanto , que
os problemas descobertos sob o nome de ideologia tenham

55
56 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 57
pura e simplesmente desaparecido; eles serã o retomados de compreender como ela pode , ao mesmo tempo , per ¬
sob o nome de fetichismo : ilustrado por um célebre manecer dependente do ser social ( Sein) , mas autonomi ¬
^
desenvolvimento do Capital. Ora , não se trata de urna zando-se cada vez mais em rela çã o a ele , até fazer surgir
pura variante de terminologia , mas de urna alternativa um “ mundo” irreal , fantástico, isto é, dotado de uma
teó rica cujas implica ções filosóficas sã o inegá veis . Ao
,
aparente autonomia , que substitui a hist ória real . Da í um
mesmo tempo que explorarmos a problemá tica da ideolo¬ afastamento constitutivo entre a consciê ncia e a realidade ,
gia , será preciso tentar compreender que razões levaram que um novo desenvolvimento histórico, derrubando o
Marx a substitu í-la , ao menos parcialmente , por outra . precedente , viria finalmente absorver, reintegrando a cons¬
ciê ncia na vida . Seria portanto , no essencial , uma teoria
do desconhecimento ou da ilusã o , o avesso de uma teoria
Teoria e prática do conhecimento.
Mas , se podemos , como. Marx , tentar descrever assim
A filosofia , manifestamente , n ã o perdoa a Marx a ideologia. o “ ser ” da consciê ncia ideol ógica (e n ão seria muito dif ícil ,
Ela mostra que é um conceito mal constru ído , que nã o ent ão, encontrar muitos precedentes filosóficos para uma
tem significa ção un ívoca e põe Marx em contradiçã o
consigo mesmo (o que n ã o é dif ícil: basta pô r lado a lado
tal descriçã o — daí a tenta çã o de utilizá-los para enrique-
cê-la e suprimir as dificuldades), nã o é desse modo que
a Sua condena ção sem apelo das ilusões e especula ções se pode compreender os objetivos que ele perseguia .
da consciê ncia burguesa , pronunciada em nome da ciê ncia També m n ã o se podem explicar particularidades da sua
da hist ó ria , e a monstruosa camada de ideologia que se dedu çã o, das funções suplementares (epistemol ógicas, po¬
construiu sobre os nomes do proletariado , do comunismo l íticas ) que ele incorpora ao longo de seu trajeto .
e do marxismo!) . Entretanto , a filosofia volta sempre a É preciso, portanto , remontar um pouco aqu é m cja
esse ponto , como se , apenas pelo fato de que Marx reda çã o que nos é proposta . Vê-se ent ã o que a problemá ¬
introduziu esse nome , ele tivesse suscitado o problema tica da ideologia surge no ponto de encontro de duas
que ela deve dominar para poder continuar ainda sendo quest ões distintas , ambas insistentes nas obras dos anos
filosofia .1
Voltarei a isso posteriormente . Por enquanto , tentemos
precedentes . Por um lado , a potência das ideias, potê ncia -
real , mas paradoxal , já que ela n ã o lhes vem delas pró prias ,
mostrar como se construiu a problemá tica da ideologia mas unicamente das forças e das circunst â ncias das quais
para Marx. Ora , a exposiçã o da Ideologia alemã, como elas podem apoderar- se.2 Por outro lado , a abstração,
indiquei , é n ã o só bastante confusa , mas enganosa , a esse isto é , como vimos , a filosofia ( mas que se deve entender
respeito. Ela inverte a ordem social na qual o texto foi em sentido amplo , incluindo todo o discurso liberal , o
redigido , relegando a parte polê mica para um segundo “ racionalismo” ou o “ pensamento crítico ” que se desen ¬
tempo , e propondo, de in ício , o desenvolvimento genético volvem agora no novo espaço da opinião pú blica , do qual
cujo fio condutor é a hist ória da divisã o do trabalho. Parece eles contribuem para excluir as for ças reais do povo e da
ent ã o que o conceito de ideologia prové m efetivamente democracia , pretendendo represent á- las ) .
de uma deriva çã o da “ superestrutura ” (essa expressã o é A combina çã o desses dois temas é precipitada por
empregada pelo menos uma vez) a partir da “ base ” Stirner, em raz ão de sua insistê ncia sobre a funçã o de
constitu ída pela “ vida real ” , a produ çã o . O essencial seria domina çã o que as id é ias gerais cumprem . Stirner leva ao
uma teoria da consciê ncia social ( Bewusstsein ) . Tratar-se- ia extremo a tese do idealismo : a da onipot ê ncia das id é ias ,
58 A FILOSOFí A DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO : O PODER E A SUJEI ÇÃO 59

que “ conduzem o mundo” . Mas ele inverte o ju ízo de valor domina çã o . Os indivíduos que constituem a classe domi ¬
que ela implicava . Enquanto representa çã o do sagrado, as nante possuem , entre outras coisas , igualmente uma cons ¬
id é ias n ã o liberam , elas oprimem os indiv íduos . Assim , ci ê ncia , e por conseguinte eles pensam .. . ” .3 Veremos que
Stirner leva ao c ú mujo a denega çã o das pot ê ncias reais o que eles “ pensam ” é essencialmente a forma do universal .
( pol íticas, sociaiá ) , m s obriga a analisar por si mesmo o
^
n ó das idéias e do poder. Para essa quest ã o Marx dar á ,
pela primeira vez na histó ria da filosofia , uma resposta
Na mesma proposiçã o se misturam , assim , um argumento
fenomenol ógico ( “ a expressã o ideal ” , “ as id éias da sua
domina çã o” ) e um argumento puramente sociológico (os
em termos de classes: n ã o em termos de “ consciê ncia de “ meios de produ çã o” materiais e intelectuais est ã o nas
classe ” (expressã o que nunca aparece ) , mas fazendo existir mesmas mã os). Essa é , precisamente , n ã o a solu çã o de
as . classes no duplo plano da divisão do trabalho e da
Marx para o problema da domina çã o , mas a sua reformu ¬
consci ê ncia , e logo fazendo també m da divisã o da socie ¬
~ la çã o do pró prio problema .
dade êm classes uma condição ou uma estrutura do
Seria instrutivo confrontar essa problem á tica (que joga
pensamento .
sistematicamente com o duplo sentido da palavra “ domi ¬
nar ” : exercer um poder, e “ reinar ” , estender-se universal ¬
mente , mais sensível ainda no alem ã o herrschend ) com os
A ideologia dominante
usos hoje correntes da palavra ideologia , sejam eles de
Assim , é realmente o tema da domina çã o que deve estar inspira çã o marxista ou n ã o. Ver íamos que estes recaem
no centro da discuss ã o. Marx n ã o faz uma teoria da tendencialmente de um lado ou outro de uma linha de
constituiçã o das ideologias como discurso , como sistema separa çã o cl á ssica entre o teórico ( problemá tica do erro e
de representa çã o particulares ou gerais , para propor ape ¬ da ilusã o , ou ainda do “ impensado ” de uma teoria cient í¬
nas posteriormente a quest ã o da domina çã o : ela . est á fica ) e o prático ( problemá tica do consenso , do modo de
pensamento ou do sistema de valores que “ cimenta ” a
sempre inclu ída na elabora çã o do conceito . Em contrapar ¬
tida , ele apresenta como um tropeço incontorn á vel que
coesã o de um grupo ou de um movimento social , ou que
“ legitima ” um poder de fato) , enquanto Marx procurara
“ os pensamentos da classe dominante sã o também , em
remontar aqu é m dessa distin çã o metaf ísica . Da í a dificul ¬

todas as é pocas , os pensamentos dominantes ; em outras


dade que sempre existe em falar de ideologia sem implicar
palavras , a classe, que é a potê ncia material dominante da
um dogmatismo positivista (a ideologia é o outro da
sociedade é tamb é m a potê ncia dominante espiritual . A
ciência) ou um relativismo historicista ( todo pensamento
classe que disp õe dos meios de produ çã o material dispõe , é “ ideol ógico ” pois exprime a identidade de um grupo).
ao mesmo tempo , dos meios de produ çã o intelectual , de
Marx procurava , antes, operar um efeito de divisã o cr ítica
modo que os pensamentos daqueles a quem s ã o recusados
no pr ó prio uso do conceito de “ verdade ” , relacionando
os meios de produ çã o intelectual sã o submetidos, por isso, todo enunciado , toda categoria , com as condições e
a essa classe dominante . Os pensamentos dominantes n ã o implica ções hist ó rico - pol í ticas de sua elabora çã o . Mas é
sã o mais que a expressã o ideal das rela ções materiais també m a prova da extrema dificuldade que existe em
dominantes apreendidas sob formas de id é ias , logo a assumir efetivamente essa posi çã o , principalmente por
expressã o das rela ções que fazem de uma classe a classe meio de categorias tais como “ ser ” , “ vida real ” ou
dominante ; em outras palavras, sã o as idéias de sua “ abstra çã o ” .
60 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 61

Autonomia e limitação da consciencia da exist ê ncia real , seguida de proje ção e de autonomiza çã o
de um “ reflexo fant ástico ” , ora comparado às criaturas
Podemos ent ã o-voltar- nos para a gé nese ou constituiçã o imagin á rias da teologia , ora comparado aos espectros da
marxiana da consciê ncia . É realmente de um mecanismo magia negra . Também recorreu à idéia nova da individua ¬
de ilus ão que se trata : Marx retoma para si um sistema de lidade como rela çã o, ou como funçã o da rela çã o sócial
met áforas de remota ascend ê ncia platónica (a “ inversã o que nã o cessa de se transformar na hist ória , cujo nasci ¬
do real ” na caverna ou na cá mara ó tica , camera obscura) .4 mento (ou renascimento) acabamos de seguir, entre as
Mas ele o faz de modo a escapar, no campo pol ítico, a Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã. Se combinarmos
duas idéias insistentes: a da ignorâ ncia das massas , ou as duas, obteremos esta definição formal do processo
da fraqueza inscrita na natureza humana (que lhe tornar ía ideol ógico: é a existência alienada da relação entre os
a verdade inacessível ) , e a da inculcaçã o (que traduziria indivíduos (que , como vimos , Marx designa globalmente
uma manipula çã o deliberada , logo uma “ onipot ê ncia ” dos com a palavra “ comé rcio” , Verkebr, para apreender simul ¬

poderosos), ambas abundantemente praticadas pela filo ¬ taneamente a sua face “ produtiva ” e a sua face “ comuni ¬

sofia iluminista a propósito das idéias religiosas e da sua cativa ” ).5 Em certo sentido, tudo está dito, mas pode-se
funçã o de legitima çã o dos regimes despóticos . detalhar, isto é , pode-se “ contar ” como isso deve ter
Marx encontrou (ou propôs) uma outra via , estendendo acontecido na história ; e é o que Marx faz, ao expor ( pelo
ao má ximo de suas possibilidades o esquema da divisã o menos em seu princípio) a sucessã o das formas de
do trabalho , de modo a fazê-lo explicar sucessivamente o consciê ncia , correspondendo aos está gios da propriedade
afastamento entre “ vida ” e “ consciência ” , a contradição e do Estado.
entre os “ interesses particulares ” e os “ interesses gerais” ,
e enfim o redobramento dessa contradiçã o na instala çã o
çle um mecanismo aut ó nomo , embora indireto , de poder A universalidade fictícia
(a divisã o do trabalho manual e intelectual , sobre a qual
insistirei). Ao fim dessa constru ção, o mecanismo “ ideoló ¬
gico” , que pode ser lido tanto como um processo social
como um processo de pensamento , aparecerá como uma
Assim , desde o in ício da hist ó ria , h á uma dualidade ou
uma tensã o do pensamento e da divisã o do trabalho (em
linguagem filos ófica , dir-se- ia o p ólo da “ interioridade ” e
o da “ exterioridade ” ). Um é simplesmente o avesso do
^
impressionante transforma çã o da impot ê ncia em domina ¬

ção: a abstra ção da consciê ncia , que traduz a sua incapa ¬ outro , sua reflexã o pelos indiv íduos. É por isso que os
cidade de agir na realidade (a perda da sua “ imanê ncia ” ), limites da comunicaçã o entre os indivíduos (o que se
torna-se a fonte de um poder justamente porque ela é poderia chamar o seu universo prá tico) sã o també m os de
“ autonomizada ” . É tamb é m o que , afinal , permitirá iden ¬
seu universo intelectual. Antes de ser uma quest ã o de
tificar a transforma çã o revolucion á ria da divisã o do traba ¬ interesses , é uma quest ã o de situa ção , ou de horizonte
lho com o fim da ideologia . para a exist ê ncia . Vamos repetir que Marx n ã o fez aqui
Mas , para isso é preciso combinar, em um equil íbrio uma teoria da “ consciê ncia de classe ” , no sentido de um
teoricamente instá vel , id é ias de proveniê ncias diferentes. sistema de idé ias que , conscientemente ou n ã o , expressa ¬
Marx recorreu à id é ia antiga de aliena çã o , sob a forma riam os “ objetivos ” desta ou daquela classe . Ele fez , antes,
que Feuerbach lhe dera (e com a qual , na verdade , ele uma teoria do cará ter de classe da consciê ncia , isto é , dos
nunca conseguirá “ acertar as suas contas ” ) , isto é , a cisã o limites de seu horizonte intelectual , que refletem ou
62 A FILOSOFí A DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: o PODER E A SUJEIçãO 63

reproduzem os limites da comunica çã o impostos pelas segue -se que todas as instituições comuns passam pelo
divisões da sociedade em classes ( ou em na ções etc.) O Estado e recebem uma forma pol ítica . Da í a ilusã o de que
fundo da explicaçã o é o obstáculo à universalidade , inscrito a lei repousa sobre a vontade , e até sobre uma vontade
nas condições da vida material , alé m das quais só é livre, destacada da sua base concreta . . . ” 6
possível pensar pela imagina ção . J á se vê que , quanto Mas a grande id é ia suplementar, acrescentada por Marx
mais se ampliarem essas condições , mais o horizonte da à sua exposição , é a divisã o do trabalho manual e
atividade dos homens (ou de suas trocas ) , coincidir á com intelectual. Ela é , de certo modo , importada para a
a totalidade do mundo , mais aumentará a contradição entre descriçã o da comunica ção alienada , transformando o que
o imaginá rio e o real . A consciê ncia ideol ó gica é primei ¬
era apenas, de fato , uma virtualidade de domina çã o em
ramente o sonho de uma universalidade imposs í vel . E vê-se uma domina ção efetiva . Por conseguinte , ela transforma a
que o pr ó prio proletariado ocupar á uma situa çã o limite , teoria da consci ê ncia , para depurá - la cie toda psicologia
n ão tanto diante da ideologia , mas sobre a sua margem , ( mesmo de uma psicologia social ) , e fazer dela uma
no ponto em que , n ã o tendo mais exterior, ela se trans¬ quest ã o dp antropologia pol í tica ./
forma em consciê ncia histórica real . Diante da universali ¬

dade efetiva , a universalidade fict ícia ou abstrata só pode


aniquilar-se. A diferença intelectual
Por que dever íamos, entã o, identificar a ideologia com
as generalidades e abstra ções da consciê ncia ? Por que nã o Em lugar de “ divisã o do trabalho manual e intelectual ” ,
fazer dela , ao contrá rio, uma consciê ncia irremediavelmen ¬ eu preferiria dizer a diferença intelectual em geral , pois
te. particular Marx d á , essencialmente , duas raz ões para se trata , ao mesmo tempo, da oposi çã o entre vá rios tipos
^
explicar como uma particularidade profissional , nacional de trabalhos — Marx cita o comé rcio , a contabilidade , a
ou social é idealizada na forma da universalidade (e ,
reciprocamente por que todo universal “ abstrato ” , todo
direçã o e a execu çã o — e da oposiçã o entre trabalho e
n ã o-trabalho, atividades “ livres” ou gratuitas em geral , que
ideal é a sublima çã o de um interesse particular ) . De fato , se tornaram o privilégio e a especialidade de alguns ( no
elas convergem , mas a segunda é muito mais original do comunismo , elas serã o acessíveis a todos ; e mais geral ¬
que a primeira . mente , o comunismo é impensá vel sem a supress ã o dessa
A primeira raz ã o , inspirada em Rousseau , é que n ã o divis ã o : esse tema será de novo central em 1875 , na Cr í tica
h á divisão hist órica do trabalho sem instituições, princi ¬ do programa de Gotha ,- é um dos raros elementos propria ¬
palmente sem um Estado (como se dirá mais tarde , sem mente utó picos , acompanhado de considera çõ es sobre a
um aparelho ) . O Estado é um fabricante de abstra ções , educa çã o do futuro , que desempenha um papel expl ícito
em razã o da ficçã o unitá ria ( ou do consenso) que ele deve na obra de Marx). 7 Mais tarde , como veremos , a quest ã o
impor à sociedade . A undvgrsahzaçào^da particularidad é da educa ção e de sua dependê ncia em rela çã o ao processo
a contrapartida da constitui çã o do Estado , comunidade ^ de trabalho capitalista se tornar á , ou voltar á a tornar-se ,
fict ícia cujo poder de abstra çã o compensa o defeito real crucial .
de comunidade nas rela ções entre os indiv íduos. “ Sendo É a aná lise da diferen ça intelectual que nos faz superar
o Estado a forma pela qual os indiv íduos de uma classe a tem á tica instrumental de uma ilusã o ou mistifica çã o posta
dominante fazem valer os seus interesses comuns e na a servi ço do poder material de uma classe . Ela apresenta
qual se resume toda a sociedade ' civil de uma é poca , o princí pio de uma domina çã o que se constitui no campo
64 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 65

da consciencia e a divide consigo pr ó pria , produzindo fun çã o? Essa leitura n ã o seria falsa , mas talvez excessiva ¬
efeitos materiais . A diferen ça intelectual é simultaneamente mente restritiva . Na verdade , Marx tem em vista uma
um esquema de explica çã o do mundo (da í vem a noçã o diferen ça que atravessa toda a hist ó ria e que , como tal ,
de um espírito , de uma razã o) e um processo coextensivo afeta tanto os intelectuais profissionais quanto os n ã o- in ¬
a toda a histó ria da divisão do trabalho. Marx diz explí¬ telectuais . Nenhum indiv íduo est á fora dessa divisã o (assim
citamente : “ A divisão do trabalho só se torna efetivamente como ningu é m est á fora da diferen ça dos sexos) . Sobre-
divisão do trabalho a partir do momento em que se opera determinando a diferen ça de classe sob suas formas
uma divisão do trabalho material e intelectual . A partir sucessivas , ela manifesta , ao mesmo tempo , a dimensã o
desse momento , a consciê ncia pode verdadeiramente ima ¬ de domina çã o que a acompanha desde a origem , e que
ginar que ela é diferente da consciê ncia da prá tica exis¬ se revela indissoci á vel da instituiçã o da cultura e do Estado .
tente, que ela representa realmente algo, sem representar Essa diferen ça é pois constantemente cultivada pelos
algo real .. . ” 8 Ela tem , portanto , tantas etapas histó ricas pró prios “ ide ó logos ” , mas ela é antes a condiçã o hist ó rica
quanto a própria divisão do trabalho. Mas o que , mani ¬ de sua existê ncia do que sua obra pessoal . Para compreen ¬
festamente , interessa sobremaneira para Marx , é o tra ço der a import â ncia dessa idé ia , uma incurs ã o pela filosofia
de união que re ú ne os primórdios remotos da civiliza çã o de Hegel é indispensá vel .
com os fenômenos atuais, quando se instala uma esfera
p ú blica burguesa: o papel das idéias e dos ideólogos na
pol ítica , e o papel que a sua autonomia relativa desem ¬ Os intelectuais e o Estado
penha na cria çã o de uma domina ção global , que nã o é a
deste ou daquele grupo de proprietá rios , mas verdadeira ¬ Marx descreveu o proletariado como uma “ classe univer ¬

mente a de uma classe inteira . “ A ilusão que consiste em sal ” , uma massa situada virtualmente alé m da condiçã o
acreditar que a domina çã o de uma classe determinada é de classe , cuja particularidade já seria negada em suas
unicamente a domina çã o de certas idéias ” (logo també m condições de existê ncia . Mas ele n ã o teria podido formular
a sublima çã o do interesse particular em interesse geral) é essa idé ia se , na Filosofia do direito de 1821, Hegel n ã o
o resultado da atividade dos ideólogos (Marx fala dos tivesse desenvolvido , por sua vez , uma teoria do “ Stand
“ ideólogos ativos ” da classe dominante) . Mas para isso , é universal ” .10 O que se deve entender com isso ? É o grupo
preciso que estes se mistifiquem a si mesmos, “ primeiro dos funcioná rios do Estado , na nova fun çã o que estã o
em suas questões ” , isto é , em seu modo de pensamento , adquirindo com a moderniza çã o deste , consecutiva à
e só podem faz ê-lo porque seu modo de vida , sua Revolu çã o . N ã o nos enganemos , entretanto; do ponto de
particularidade pró pria (ou “ independê ncia ” ) gerada pela vista de Hegel , o papel dos funcion á rios , em geral , n ã o é
histó ria , lhes fornece as condições para isso . Os ideólogos puramente administrativo : é essencial mente intelectual . E
est ã o à margem de sua própria classe , como as idéias que correlativamente , é por sua incorpora çã o ao Estado ( isto
eles produzem (Razã o, Liberdade , Humanidade ) est ã o além é , ao “ serviço p ú blico ” ) que os “ intelectuais ” ( die Gelehrten -
,

das prá ticas sociais. as pessoas instru ídas ) podem encontrar o seu verdadeiro
Dir íamos ent ã o que a an á lise de Marx resulta em um destino . Com efeito , é o Estado, em que os diferentes
esboço de sociologia pol ítica dos intelectuais modernos interesses particulares da sociedade civil devem ser torna ¬
(oU de sociologia do conhecimento : Wissenssoziologie ) ,9 dos compat íveis entre si e elevados ao n ível superior do
acompanhada de uma histó ria de sua formaçã o e de sua interesse geral , que lhes oferece a mat é ria e as condições
66 A FILOSOFIA DE MARX
III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 67
Gramsci
variadas da dependê ncia pessoal ) para que eles cumpram,
A obra de Antonio Gramsci ( 1891-1937), o maior dos dirigentes intelec ¬
a seu serviço , em toda a sociedade, uma atividade de
tuais do movimento comunista europeu depois de Lênin, se divide em mediação, ou de representa ção, e elevem assim a univer¬
três blocos de textos de status bem diferentes: os Escritos polí
(artigos e relat órios dos anos 1914- 1926,
ticos salidade ainda abstrata ao n ível da “ consciê ncia de si ” .
traduzidos em 4 vols., Lisboa ,
Seara Nova ), os Quaderni del cá rcere, redigidos depois da prisão de .
Deve-se reconhecer que essa teoriza ção exprime for¬
Gramsci pelo poder fascista italiano e editados durante a Libera çã o, e temente e com uma not á vel capacidade de antecipa çã o o
enfim a correspondencia (da qual fazem parte as Cartas do cá rcere, Rio sentido da constru ção administrativa , escolar e universitá ¬
de Janeiro, Civiliza çã o Brasileira , 1978).
ria , e do desenvolvimento das estruturas da pesquisa
Embora Mussolini tenha conseguido, conforme se gabava , “ impedir o
cérebro de funcionar ” , as prova ções f ísicas e morais suportadas final científica e da opinião p ú blica , que darã o pouco a pouco
¬

mente deram à luz um monumento intelectual , cujas sugestões nã o se aos Estados contemporâ neos a sua capacidade de “ regu ¬

esgotaram (cf . as obras de Christine Buci-Glucksmann , Gramsci et 'É la çã o” social , a igual distâ ncia do liberalismo puro e do
1 tat,
Pour une théorie matérialiste de la philosophie , Paris , Fayard , 1975 , e
autoritarismo . Se n ã o tivéssemos isso em mente , n ã o
de André Tosei, Marx en italiques. Aux origines de la philosophie
italienne contemporaine, Trans-Europ- Repress , Mauv êzin , 1991, e tam ¬ compreenderíamos a potê ncia exatamente oposta da teo¬
bé m o volume coletivo, Modernité de Gramsci , org . André Tosei, riza çã o da ideologia em Marx . Nem o objetivo que ela
Paris ,
Universidade de Besançon , Diffusion Les Belles Lettres, 1992). O visa , nem os problemas que levanta .
pensamento de Gramsci nã o pode ser resumido em algumas linhas.
Acima de tudo , talvez , a an á lise da diferen ça intelec¬
Indicamos quatro temas estreitamente interdependentes: 1) absolutamen
te estranho à tradi çã o do “ materialismo dialético ” , Gramsci
¬
tual , com a condiçã o de ser conduzida no registro do
vê no
marxismo uma “ filosofia da praxis ” , que ele interpreta primeiramente , conhecimento ao mesmo tempo que no da organiza çã o e
no momento da Revolu ção Russa de 1917 e do movimento dos ’’conselhos do poder, esclarece , em profundidade , a natureza dos
operá rios" de Turim , como uma afirmação da vontade contra o fatalismo
das organizações socialistas, e mais tarde como uma “ ciência da pol ítica ,
processos de domina çã o . N ã o é surpreendente que , de um
” modo ou de outro , a maioria dos marxistas aut é nticamente
de inspira çã o maquiavé lica , destinada a construir os elementos da
hegemonia dos produtores; 2 ) esse tema est á ligado a um “ alargamento fil ósofos (lembremos figuras t ã o diferentes como Gramsci ,
da “ teoria marxista do Estado", que não suprime a determina çã o de

Althusser, Alfred Sohn- Rethel)11 tenha sempre feito da
classe , mas insiste sobre a complementariedade da rela çã o de forças e “ solu çã o ” hist ó rica dessa diferen ça uma característica fun ¬
do “ consenso” obtido através das instituições culturais; 3) compreende se
assim que Gramsci tenha consagrado toda uma parte de seu programa
- damental do comunismo . De fato, Marx n ão se contentou
de estudos inacabado a uma história e a uma aná lise da funçã o dos em inverter as teses hegelianas e atribuir aos intelectuais
diferentes tipos de intelectuais, na perspectiva de uma reforma do la ço uma fun çã o de submissã o e de divisã o ( de “ inculca çã o
“ orgâ nico” que os une à s massas, quando uma classe social nova est á
ideol ógica ” , como se dizia no movimento de 1968) . Mas
ascendente; 4 ) essa reflexão critica comporta também uma dimensão
ética , nã o só pela procura de uma moral ou de um senso comum ele remontou at é a descri çã o da diferen ça antropol ógica
“ ” dos
trabalhadores, que os libere da hegemonia burguesa , mas também pela que sust é m a sua atividade e a autonomiza çã o de sua
formula çã o e ativa ção de um princ ípio regulador da a çã o pol ítica , fun çã o.
fundamentalmente leigo , dirigido contra toda ideologia messiâ nica
(“ otimismo da vontade, pessimismo da inteligê ncia ).

Essa diferen ç a n ã o é natural (embora se inscreva
incontestavelmente em fun ções distintas do organismo ) ,
-
pois ela se fornia e se transforma na hist ó ria . Mas ela
da sua atividade reflexiva . O Estado, que para Hegel é “ em també m n ã o é institu ída , no sentido de que resultaria de
si” universal, “ libera ” os intelectuais (da cren ça , das formas simples decis ões pol íticas (ainda que seja ampliada , utili ¬

zada e reproduzida por institui ções ) . Ela faz corpo com a


68 A FILOSOFí A DE MARX III / IDEOLOGIA FETICHISMO: O PODER E
OU A SUJEIçãO 69
cultura de civiliza ções sucessivas , entre as quais tra ça um dissolu çã o de todas as classes e inicia o processo revolu ¬
fio de continuidade . Marx situa essa diferenç a mais ou cion á rio . Assim , Marx usa de preferê ncia , para seu propó ¬

menos no mesmo nível de generalidade que a diferença sito , o termo massa, que ele volta contra o uso desdenhoso
dos sexos , ou a diferen ça entre vida urbana e vida que fazem dele os intelectuais burgueses . Assim como a
camponesa . Incorporada a toda organiza çã o social do massa prolet á ria é fundamentalmente “ expropriada ” ( eigen -
trabalho , ela divide todas as pr á ticas e todos os indivíduos tumslos) , ela é fundamentalmente “ desprovida de ilusões ”
consigo mesmos ( pois uma prá tica no sentido completo sobre a realidade ( illusionslos) , fundamentalmente exterior
do termo , práxis e poiesis, n ão pode ser nem puramente ao mundo da ideologia , cujas abstra ções e representa ções
/ corporal / nem puramente /intelectual mas deve ser uma
^
complementaridade , uma reciprocidade dos dois aspectos) .
Caso contr á rio , os “ intelectuais ” especializados (professo
res, publicit á rios, eruditos , técnicos, administradores, pe
¬

¬
ideais da rela çã o social para ela “ nã o existem ” . O Manifesto
repetirá a mesma coisa , ilustrando- a com frases que se
tornaram célebres , mas que parecem hoje rid ículas : “ Os
operá rios não têm pá tria ” , e assim també m são despren ¬
ritos . . . ) , n ã o poderiam tornar-se instrumentos de uma
didos das cren ças , esperan ças ou hipocrisias da religi ã o ,
desigualdade permanente , de uma hierarquia institucional
da moral e do direito burgu ês .. . Pela mesma raz ã o , eles
dos “ dominantes ” e dos “ dominados” ( ou , como dirá depois
Gramsci , dos “ governantes” e dos “ governados” ) . Isso quer n ã o poderiam ter “ ideólogos” , que se propusessem a
instru í-los ou a gui á -los , ou , como dirá depois Gramsci ,
dizer que eles não poderiam fazer dessa desigualdade ,
durante a mais longa parte da história , uma condiçã o “ intelectuais orgâ nicos ” ( o pró prio Marx n ão se considerava
material do trabalho , das trocas , da comunica çã o , da certamente como tal —nã o sem dificuldade crescente em
associa çã o . refletir a fun çã o de sua pró pria teoria na prá tica revolu ¬

cion á ria . Aqui ainda , Engels dará o passo decisivo , gene ¬

ralizando o uso da expressão “ socialismo científico ” ).


As aporias da ideologia Os acontecimentos de 1848-1850 deviam sublinhar
cruelmente a dist â ncia do real dessa representa çã o . Eles
Resta ent ã o perguntar por que Marx nã o prosseguiu teriam podido bastar, de fato , para determinar o abandono,
diretamente nesse caminho . Como sugeri acima , raz ões n ã o da idé ia de um papel universal do proletariado ( na
internas se combinam aqui estreitamente com razões de escala da história munSiaí, e da transforma ção revolucio ¬

conjuntura , que poriam em evidê ncia o que a constru çã o n á ria da sociedade inteira ) , sem a qual n ão h á marxismo,
de Marx ainda tinha de abstrato , at é mesmo de especula ¬ mas certamente de um proletariado “ classe universal ” . O
tivo , a despeito de seu esforço para encontrar a materia ¬ texto mais apadronante , a esse respeito , é O 18 Brumá rio
lidade da história . de Lu ís Bonaparte, j á citado . Seria necessá rio poder exa ¬
Na representa çã o que Marx faz do proletariado , a id é ia min á -lo detalhadamente . A procura de uma estrat égia da
de uma ideolngia do proletariado ( ou de uma “ ideologia classe operá ria diante da contra - revolu çã o é paralela a
prolet á ria ” , que ter á mais tarde o destino que se conhece ) uma nova an á lise da dist â ncia hist ó rica entre o que Marx
é evidentemente desprovida de sentido . O conceito de chama “ classe em si ” e a “ classe para si ” , o simples fato
proletariado n ão é tanto , na realidade , o de uma “ classe” das condições de vida an á logas e o movimento pol ítico
particular , isolada do conjunto da sociedade , mas o de organizado : n ã o como simples atraso da consciê ncia sobre
uma não -classe ) cuja forma çã o precede ¡mediatamente a a vida , mas efeito de tend ê ncias econ ó micas contradit órias .
70 A FILOSOFIA DE MARX
III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 71
Ele começou entã o a compreender que estas favorecem
ao mesmo tempo a unidade e a concorr ê ncia entre os O “ fetichismo da mercadoria ”
oper á rios . 12 O fato é que a experiê ncia imediata , na
Fran ça como na Alemanha ou na Inglaterra , ia revelar A teoria do fetichismo é exposta principalmente na pri ¬

a forç a do nacionalismo , dos mitos históricos ( republi ¬ se


meira çã o do livro I do Capital 13 Ela n ã o constitui apenas
,

canos ou imperiais ) , e at é mesmo das formas religiosas um dos pontos altos do trabalho filosófico de Marx ,
sobre o proletariado, ao mesmo tempo que a força dos completamente integrado à sua obra “ crítica ” e “ científica ” ,
aparelhos pol íticos e militares da ordem estabelecida . mas tamb é m uma grande constru çã o teórica da filosofia
Como conciliar a tese teórica de uma exterioridade moderna . Sua dificuldade é not ória , embora a id éia geral
radical entre as condiçõ es de produ çã o da ideologia e seja relativamente simples .
a condi çã o proletá ria , com a constata çã o de sua inter ¬ N ã o me deterei nas origens do termo “ fetichismo ” , na
penetra çã o cotidiana ? É not á vel que Marx nunca tenha rela çã o que ele mant é m com as teorias da religi ã o nos
invocado aqui uma noção implicitamente moral como a sécs. XVIII e XIX, nem no lugar que , pela sua retomada
da falsa consciê ncia ( mais tarde utilizada por Luk á cs e do termo , Marx ocupa na história da questã o do fetichismo
outros), e que nunca ele tenha falado de ideologia prole ¬ em geral.14 Por falta de espa ço, també m n ã o discutirei a
t á ria ou de consciê ncia de classe . Mas a dificuldade fun çã o que esse desenvolvimento cumpre na arquitetura
continuou a existir para ele , e acarretou o recalque do de conjunto do Capital, e especialmente na explica çã o da
pró prio conceito de ideologia . forma “ invertida ” sob a qual , nos diz Marx , os fen ô menos
Um outro fator operou no mesmo sentido: a dificuldade de estrutura do modo de produ çã o capitalista (que reme¬
que Marx tinha de definir como “ ideologia ” a economia tem todos ao modo pelo qual o aumento d è valor do
política burguesa, principalmente a dos clássicos: Quesnay , capital se alimenta de “ trabalho vivo” ) são percebidos na
Smith , Ricardo. Efetivamente , esse discurso teó rico de “ superf ície ” das rela ções econ ó micas (no mundo da con ¬
forma “ científica ” e claramente destinado a fundar a política corrê ncia entre as diferentes formas de capitais , o lucro,
liberal dos propriet á rios do capital n ã o ca ía diretamente a renda , os juros e suas respectivas taxas ).15 Mas procurarei
nem sob a categoria da ideologia (caracterizada pela explicar como se liga ao texto de Marx a dupla posteridade
abstra çã o e pela inversã o do real ), nem sob a de uma que podemos lhe atribuir hoje: por um lado , a id é ia da
histó ria materialista da sociedade civil , pois repousava , ao reificaçã o do mundo burgu ês nas formas da “ mercantili-
contr á rio , sobre o postulado da eternidade das condiçõ es za çã o ” generalizada das atividades sociais; por outro lado,
de produ ção burguesas (ou da invariâ ncia da rela çã o o programa de uma aná lise do modo de sujeiçã o implicado
capital /sal á rio). Mas é precisamente a necessidade de sair no processo de trocas , que encontra seu resultado no
desse dilema que conduziria Marx a mergulhar durante marxismo estrutural .
anos na “ crítica da economia pol ítica ” , alimentada pela O “ fetichismo da mercadoria ” , como nos diz Marx ,
leitura intensiva de Smith , Ricardo , Hegel , Malthus , dos consiste no fato de que “ uma rela çã o social determinada
estat ísticos e dos historiadores . .. E esta , por sua vez , ¿os pró prios homens [ ...] toma para eles a forma fantas ¬

desembocaria em um conceito novo , de fetichismo co ¬ magórica de uma rela ção eplxe coisas” . Qu ã mHa? “ As-
mercial. Tslãçõês sociais que seus trabalhos privados mant ê m apa ¬
recem aos produtores [ . . .] como relações impessoais entre
pessoas e rela ções sociais entre coisas impessoais . 1* De

72 A FILOSOFí A DI: MARX III ./ IBIBOIíGXGíIA ®U FETICHISMO: O PODER E A SlIJEIÇÀO 73

que “ coisas ” e de que rela ções “ pessoais ” e “ impessoais ” apresentam ” ) e a funçã o da moeda. É como um preç o ,
se trata ? logo urna relação de troca ,, pelo menos virtual , com uma
As mercadorias, produzidas e trocadas , que sã o objetos quantidade de dinheiro , que se apresenta o valor de troca .
materiais ú teis e que , como tal , correspondem a necessi ¬ Essa rela ção n ã o depende fundamentalmente do fato de
dades individuais ou coletivas , possuem també m uma outra que o dinheiro é atualmente gasto ou recebido, ou
qualidade , imaterial mas nã o menos objetiva: seu valor de simplesmente representado por um signo (moeda de cré ¬
troca Cgeralmente expresso na forma de um preço, isto é, dito , papel- moeda de curso legal etc. ): em ú ltima aná lise,
como uma certa soma de dinheiro). Essa qualidade , que e principalmente no mercado mundial (ou universal) que
lhes é individualmente atribuída , é portanto imediatamente Marx diz ser o verdadeiro espaço de realizaçã o da relaçã o
quantificá vel . Assim como um automóvel pesa 500 quilos, mercantil, é preciso que a referência monetá ria exista e
vale 100.000 francos. Naturalmente, para uma determinada
seja “ verificá vel” . A presença do dinheiro, diante das
mercadoria , essa quantidade varia no tempo e no espaço,
mercadorias, como condição de sua circula çã o, acrescenta
em fun ção da concorrência e de outras flutua ções, a mais
um elemento ao fetichismo, e permite compreender o uso
ou menos longo prazo. Mas, longe de dissipar a aparência
desse termo. Se as mercadorias (alimentos, roupas , máqui¬
de uma relação intr ínseca entre a mercadoria e o seu valor,
essas varia ções lhe conferem , antes, uma objetividade nas, matérias- primas, objetos de luxo, bens culturais e até
suplementar: os indivíduos vã o voluntariamente ao mer¬ o corpo das(os) prostitutas(os) , em suma todo o universo
cado , mas n ã o é em virtude de suas decisões que, no dos objetos humanos produzidos ou consumidos) parecem
mercado , os valores (ou os preços) das mercadorias ter um valor de troca , o dinheiro , por sua vez , parece ser
flutuam ; ao contrá rio , é a flutuação dos valores que o próprio valor de troca , e assim possuir intrinsecamente
determina as condiçõ es nas quais os indiv íduos tê m acesso o poder de comunicar às mercadorias que “ entram em
à s mercadorias . É pois nas “ leis objetivas ” da circulaçã o rela ção com ele ” essa virtude ou poder que o caracteriza .
das mercadorias, regulada pelos movimentos de valor, que
'
É por isso que ele é procurado por si mesmo, ó,entesouraif
os homens devem procurar os meios de satisfazer suas considerado como objeto de uma necessidade universal
necessidades e regulamentar entre si as rela ções de servi¬ que é acompanhada de temor e respeito , de desejo e
ços m ú tuos , de trabalho ou de comunidade , que passam repulsa ( auri sacra fames: “ a maldita sede do ouro ” ,17 dizia
por rela ções econ ó micas ou dependem delas. Dessa obje¬ o poeta latino Virg ílio em um célebre verso citado por
tividade elementar, que aparece logo na rela ção simples Marx , e o Apocalipse identifica claramente o dinheiro à
com as mercadorias no mercado , Marx fará o ponto de Besta , isto é , ao diabo) .
partida e o modelo da objetividade dos fen ô menos eco ¬ Essa rela çã o do dinheiro com as mercadorias , que
n ó micos em geral e suas leis , às quais se consagra a “ materializa ” o valor destas no mercado, é , evidentemente ,
economia pol ítica , e que ela sempre compara , precisamen ¬ suportado por atos individuais de venda e compra , mas é
te —seja explicitamente , pelo uso de conceitos mec â nicos
ou din â micos , seja implicitamente , pelos m é todos mate ¬
completamente indiferente à personalidade dos indiv íduos
que os efetuam , perfeitamente intercambiá veis a esse
má ticos de que ela se serve
da natureza .
— com a objetividade das leis respeito . Pode-se portanto pensar essa rela çã o seja como
efeito de um poder “ sobrenatural ” do dinheiro, que cria
Evidentemente , h á uma rela çã o imediata entre esse e anima o movimento das mercadorias , encarnando o seu
fen ô meno ( no sentido de que é assim que as coisas “ se pró prio valor imperec ível no corpo perec ível das merca -
111 / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODEIç E A SUJEIçãO 75
74 A FILOSOFIA DE MARX
: seus valores , proporções nas quais elas se trocam , por
Karl Marx: “ O cará ter fetiche da mercadoria meio de instituições sociais.
e seu segredo ” Na verdade , essas duas representa ções sã o simé tricas
( O capital, livro I , cap . I , 4 )
e interdependentes : elas se desenvolvem juntas e corres¬
“ De onde vem ent ã o o car á ter enigmá tico do produto do trabalho , logo
pondem a dois momentos da experiê ncia que os indiv í¬
que ele assume a forma mercantil? Evidentemente , dessa pró pria forma . duos, enquanto “ produtores- trocadores” , fazem dos fen ô¬
A identidade dos trabalhos humanos assume a forma material da menos de circula çã o e de mercado , que constituem a forma
objetividade de valor idé ntico dos produtos do trabalho. A medida do geral de toda a vida - econ ó mica . É o que Marx tem em
dispendio de força de trabalho humano por sua dura çà o assume a forma
de grandeza de valor dos produtos do trabalho . Enfim , as rela ções dos
vista quando descreve a percepçã o do mundo das merca ¬
produtores , nas quais sâ o praticadas essas determina ções sociais de seus dorias como a de realidades “ sens íveis supra -sens í veis ” ,
trabalhos , assumem a forma de uma relaçã o social entre os produtos nas quais coexistem estranhamente os aspectos de natural
do trabalho. e de sobrenatural , e quando declara a mercadoria como ,

O que h á de misterioso na forma mercantil consiste, portanto , simples ¬


mente no fato de que ela devolve aos homens a imagem das caracte ¬
um objeto “ m ístico ” cheio de “ sutilezas teológicas ” (suge ¬

r ísticas sociais de seu próprio trabalho como caracter ísticas objetivas rindo diretamente a compara çã o da linguagem econ ó mica
dos próprios produtos do trabalho, como qualidades sociais que essas com o discurso religioso) . O mundo moderno , ao contr á rio
coisas possuiriam por natureza: ela lhes devolve assim a imagem da do que dir á depois Max Weber, n ã o est á “ desencantado” ,
rela çã o social dos produtores com o trabalho global , como uma rela çã o
mas encantado, na mesma medida em que é o mundo dos
social existente fora deles, entre objetos. É esse mal -entendido que faz
com que os produtos do trabalho se tornem mercadorias, coisas sensíveis objetos de valor e dos valores objetivados .
supra -sens íveis, coisas sociais . Do mesmo modo, a impressã o luminosa
de uma coisa sobre o nervo ótico não se dá como excita çã o do nervo
ótico propriamente dito, mas como forma objetiva de uma coisa no
exterior do olho. Simplesmente, na visã o, há efetivamente luz , que é Necessidade da aparência
í
projetada de uma coisa , o objeto exterior, para uma outra , o olho. É
uma rela çã o f ísica entre coisas f ísicas. Ao passo que a forma mercantil Estando assim descrito o fen ômeno , qual é ent ã o o objetivo
e a rela çã o de valor dos produtos do trabalho na qual ela se expõe de Marx ? É duplo . Por um lado , através de um movimento
nã o tem absolutamente nada a ver nem com a sua natureza f ísica nem
com as rela ções materiais resultantes . É apenas a rela çã o social deter ¬ que se aparenta a uma desmistifica çã o ou desmitiza çã o ,
minada dos próprios homens que toma aqui , para eles, a forma trata -se de dissolver esse fenô meno , de mostrar nele uma
fantasmagórica de uma rela çã o entre coisas. De modo que , para apar ê ncia que repousa , em ú ltima an á lise , sobre um
encontrar uma analogia , devemos entrar nas zonas nebulosas do mundo mal -entendido . Deveremos portanto remeter os fen ô menos
religioso. Nesse mundo, os produtos do cé rebro humano parecem ser que acabam de ser evocados ( valor de troca como pro ¬
figuras aut ó nomas, dotadas de uma vida própria , mantendo rela ções
uns com os outros e com os humanos. Assim acontece no mundo priedades dos objetos, autonomia do movimento das
mercantil com os produtos da mã o humana . Chamo a isso fetichismo, mercadorias e dos preços) a uma causa real, que foi
fetichismo que adere aos produtos do trabalho logo que eles sã o mascarada ou cujo efeito foi invertido (como em uma
produzidos como mercadorias , e que, por isso , é insepará vel da produ çã o câ mara escura ). Essa an á lise se abre verdadeiramente para
mercantil . ” a cr ítica da economia pol í tica , pois , no mesmo momento
em que esta , movida por um projeto de explica çã o
cient ífica ( Marx pensa , evidentemente , nos representantes
dorias ; seja , ao contr á rio , como efeito “ natural ” da rela çã o da escola cl á ssica : Smith e principalmente Ricardo , que
das mercadorias entre si , que institui uma expressã o de
76 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA ou FETICHISMO: o PODER E A SUJEIçãO 77
ele distingue cuidadosamente dos “ apologistas ” do capital ) , Ao primeiro movimento da crí tica , que consiste em
se propõe a resolver o enigma das flutua ções do valor, dissolver a aparência de objetividade do valor de troca ,
reduzindo-o a urna “ medida invari á vel ” , que é o tempo de deve-se ent ã o acrescentar outro , que na verdade o condi ¬
trabalho necess á rio à produ çã o de cada mercadoria , adensa ciona , e mostra a constitui çã o da aparê ncia na objetivi ¬

o mistério, considerando essa rela çã o como um fen ô meno dade. O que se apresenta como uma rela çã o quantitativa
natural (e por conseguinte eterno). Isso se deve a que a dada é , na realidade , a expressã o de uma rela çã o social :
ciência económica , que procura a objetividade dos fenôme ¬
unidades independentes umas das outras só podem deter ¬
nos, de acordo com o programa de pesquisa do Iluminis- minar o grau de necessidade de seus trabalhos , a parte
mo , concebe a aparência como um erro ou uma ilusã o, de trabalho social que deve ser consagrada a cada tipo
um defeito da representaçã o, que se poderia eliminar pela de objeto ú til , a posteriori , ajustando a sua produ ção à
observa ção (no caso, antes de tudo, pela estatística ) e pela “ demanda ” . É a prá tica das trocas que determina as
dedu ção. Explicando os fenômenos econ ómicos por leis, proporções, mas é o valor de troca das mercadorias que ,
o poder de fascínio que eles exercem deveria entã o ser aos olhos de cada produtor, representa de modo inverso,
dissipado. Do mesmo modo, Durkheim , meio século de¬ como uma propriedade das “ coisas” , a rela çã o que o seu
pois, falará de “ tratar os fatos sociais como coisas” . pró prio trabalho mantém com o de todos os outros
Ora , o fetichismo não é — como seria , por exemplo,
uma ilusã o de ótica , ou uma crença supersticiosa — um
produtores. Assim sendo , é inevitável que , aos olhos dos
indiv íduos, seu trabalho apareça “ socializado” ptela “ forma
fenô meno subjetivo, uma percepçã o falsa da realidade . Ele valor ” , em vez de que esta se mostre como a expressã o
constitui , antes, o modo pelo qual a realidade (uma certa de uma divisã o social do trabalho. Da í a fó rmula que citei
forma ou estrutura social ) nã o pode não aparecer. Esse acima : “ As rela ções sociais que seus trabalhos privados
“ aparecer” ativo (ao mesmo tempo Schein e Erscbeinung , mant ê m aparecem aos produtores [...] como relações im ¬

isto é um engodo e um fen ômeno ) constitui uma media çã o pessoais entre pessoas e rela ções sociais entre coisas
ou fun çã o necessá ria , sem a qual , em condições históricas impessoais. ”
dadas , a vida da sociedade seria simplesmente impossível . A contraprova é fornecida por uma experiê ncia de
Suprimir a aparê ncia é abolir a relação social . É por isso pensamento a que Marx procede . Trata -se de comparar a
que Marx d á particular import â ncia à refuta çã o da utopia maneira pela qual a reparti çã o do trabalho socialmente
disseminada entre os socialistas ingleses e franceses do necessá rio se efetua nos diferentes “ modos de produ çã o ” :
começ o do see . XIX (e que reaparecer á v á rias vezes) da uns passados ( como nas sociedades primitivas fundadas
supressã o, do dinheiro , que cederia o lugar a bónus de sobre a auto-subsistê ncia , ou na sociedade medieval ,
trabalho ou a outras formas de redistribuiçã o social , mas fundada sobre a servid ã o) , outros imaginá rios ( como na
n ão se acompanharia de nenhuma transforma çã o no prin ¬ “ economia ” dom é stica de Robinson Crusoé em sua ilha )
cípio de troca entre unidades de produ çã o privadas. A ou hipotéticos ( como em uma sociedade comunista do
estrutura de produ çã o e de circula çã o , que confere um futuro na qual a repartiçã o do trabalho seria consciente ¬
mente planejada ). Ora , ou essas rela ções de produ çã o sã o
valor de troca aos produtos do trabalho, forma um todo,
livres e igualit á rias , ou sã o opressivas , fundadas sobre
e a existê ncia da moeda , forma “ desenvolvida ” do equi ¬
rela ções de forças , mas em todos os casos , “ as rela ções
valente geral das mercadorias, é uma de suas fun ções
sociais que as pessoas mantê m entre si em seus trabalhos
necessá rias . aparecem , pelo menos , como suas pr ó prias rela ções pes-
78 III / IDEOLOGIA ou FETICHISMO : O PODER E A SUJEIçãO 79
A FILOSOFIA DE MARX

soais , e n ã o se disfar çam como rela ções sociais das coisas, mercadorias expressassem nela o seu pró prio valor ; e
produtos do trabalho” . Em outros termos , essas sociedades reciprocamente , de modo que ela pró pria substitu ísse
,

sã o primeiramente sociedades de homens , iguais ou desi ¬ automaticamente todas as mercadorias , ou as “ comprasse ”


guais , e n ã o sociedades de mercadorias ( ou “ mercados” ) das
todas .
quais os pró prios homens seriam apenas intermediá rios .
Enfim , em terceiro lugar ( muitas vezes se esquece a
necessidade desse terceiro ponto , isto é , acredita -se que ,
do ponto de vista de Marx , basta deduzir formalmente a
Gé nese da idealidade necessidade de um equivalente geral para explicar a
moeda ) , trata -se de mostrar como essa fun ção é materia¬
Evidentemente , tal experiê ncia de pensamento n ã o poderia lizada em um gê nero de objeto determinado ( os metais
substituir a demonstra ção . Ela apenas indica a sua neces¬ preciosos ). A moeda é depois constantemente reproduzida ,
sidade . Essa demonstra çã o é um dos dois resultados ( com ou mantida em funcionamento por seus diferentes usos
a elucida çã o do processo de explora çã o do trabalho econ ó micos ( unidade de conta , meio de pagamento , objeto
de entesouramento ou de “ reservas” etc . ) A outra face
assalariado como fonte de aumento do capital) , ao qual
Marx desejaria ligar a sua reputa çã o cient ífica , sem nunca
dessa materializa çã o é ent ã o um processo de idealizaçã o
ter achado , ao que parece , uma exposi çã o absolutamente constante do material monetá rio , já que ele serve para
definitiva para ele . Ela coincide , de fato, com o conjunto exprimir imediatamente uma forma universal ou uma
da primeira seção do Capital (caps. I a III). Citarei somente “ id é ia ” .
as suas grandes linhas . Incontestavelmente , a despeito de sua abordagem t éc¬
nica e das dificuldades que comporta , esse racioc ínio de
Primeiramente , partindo do “ duplo cará ter ” do trabalho
( atividade t é cnica especializada , transformando a natureza Marx é um dos grandes textos filosóficos da forma çã o das
“ idealidades ” , ou dos “ universais ” , e da rela çã o que essas
em vista de produzir certos objetos de uso , e dispê ndio
de força humana f ísica e intelectual em geral , o que Marx entidades abstratas mant ê m com as prá ticas humanas . É
chama trabalho concreto e trabalho abstrato, e que , compará vel ao que propuseram Plat ã o , Locke ou Hegel
(que escreveu que “ a l ó gica é o dinheiro do espírito . . . ) ,
evidentemente , são as duas faces da mesma realidade , uma ”
individual , outra transindividual ou coletiva ) , trata -se de ou ao que proporiam depois Husserl ou Frege . Do ponto
mostrar como as pró prias mercadorias produzidas se tor ¬
de vista de Marx , entretanto, duas coisas eram mais
importantes.
nam objetos “ duplos ” , dotados de utilidade ( correponden -
do a certas necessidades) e de valor ( cuja “ subst â ncia ” é Uma faz dele o ponto de chegada de toda a economia
cl á ssica , em sua oposi çã o constante ao monetarismo.
constitu ída pelo trabalho socialmente necessá rio à sua
produ çã o) .
devia -se demonstrar que “ o enigma do fetiche dinheiro é
apenas o do fetiche mercadoria ” , ou seja , que a forma
Em segundo lugar, trata -se de mostrar como a grandeza
abstrata contida na rela çã o das mercadorias com o trabalho
de valor de uma mercadoria pode ser expressa na quan ¬
tidade de uma outra , o que é propriamente o “ valor de basta para explicar a l ógica dos fen ômenos monet á rios (e ,
al é m disso naturalmente , os capitalistas , os financistas etc ).
troca ” . É o ponto que parecia mais dif ícil e mais importante
a Marx , pois permitia deduzir a constituiçã o de um Podemos pensar que é essa atitude fundamentalmente
comum a Marx e aos economistas cl á ssicos que garante ,
“ equivalente geral ” , isto é, de uma mercadoria “ universal ” ,
em sua opini ã o , o cará ter “ cient ífico ” de sua teoria .
extra ída da circula çã o , de modo que todas as outras
80 A FILOSOFíA DE MARX III / IDEOLOGIA ou FETICHISMO: o PODER E A SUJEIçãO 81

Reciprocamente , ela explica em boa parte o descr é dito perder a import â ncia filosófica do texto de Marx , e que
comum que os atinge a partir do momento em que a noçã o explica a sua impressionante posteridade . Esta se divide
de valor-trabalho é recusada pela economia oficial . em orienta ções diferentes , mas que repousam todas sobre
A outra fundamenta a crítica da economia pol ítica : é a constata çã o de que n ã o existe teoria da objetividade sem.
a id é ia de que as condições que tornam necessá ria a teoria da subjetividade . Repensando a constituiçã o da
objetiva çà o “ fetichista ” da rela çã o social s ã o integralmente objetividade social , Marx ao mesmo tempo revolucionou
históricas. Elas surgem com o desenvolvimento de uma virtualmente o conceito de “ sujeito” . Ele introduziu , por ¬

produ çã o “ para o mercado” , cujos produtos só atingem tanto , um elemento novo na discuss ã o das rela çõ es entre
sua destina çà o final ( o consumo , sob todas as suas formas ) “ sujei çã o ” , “ subjuga çã o ” e “ subjetividade ” .
atrav és da compra e da venda . Esse é um processo milenar, Deve -se lembrar que , na tradiçã o do idealismo alem ã o ,
que só lentamente atinge um ramo de produ çã o depois desde Kant , o sujeito era , antes de tudo , pensado como
do outro, um grupo social depois do outro . Com o uma consciê ncia universal , ao mesmo tempo situada acima
capitalismo , entretanto (e segundo Marx , o elemento de todos os indiv íduos particulares (da í a possibilidade de
decisivo é a transforma çã o da pr ó pria for ç a de trabalho identificá -lo com a Razã o da Humanidade ) e presente em
em mercadoria , e por conseguinte o assalariamento ) , ele cada um deles: o que Foucault chamaria , mais tarde , o
se universaliza rá pida e irreversivelmente . Atinge-se um “ duplo emp í rico- transcendental ” ,18 e que vimos Marx de ¬
ponto de n ã o- retorno , o que nã o quer dizer um ponto nunciar, nas Teses sobre Feuerbach , como uma simples
que nã o possa ser superado: a ú nica progressão que variante do essencialismo . Essa consciê ncia “ constitui o
continua possível, doravante , consiste no planejamento da mundo ” , isto é , torna -o intelig í vel , por meio de suas
produ çã o , isto é , na retomada , pela sociedade ( ou pelos
trabalhadores associados), do “ controle social ” do dispên ¬
pr ó prias categorias ou formas de representa çã o
espa ço, o tempo , a causalidade ( Crítica da razã o pura ,
o —
dio de trabalho , cujas condi ções técnicas são preparadas 1781 ) . Aqu é m dessa constituiçã o subjetiva do mundo , Kant
justamente pela quantifica çã o universal da economia . A devia deixar de lado o dom í nio das “ ilusões necessá rias ”
transparê ncia das rela ções sociais nã o será ent ão uma da metaf ísica , ou do pensamento puro , sem refer ê ncia na
condiçã o espont â nea, como nas sociedades primitivas ( nas experiê ncia . Elas eram como que um preço inevit á vel da
quais Marx explica que ela tem como contrapartida a capacidade da razã o para forjar abstra ções . Além , esca ¬
representa çã o m ítica das for ças da natureza
à
—sua
ma is ou
maneira
pando à s limita çõ es da natureza e da experiê ncia , ele
menos o que Auguste Comte chamava situava uma “ raz ã o pura prá tica ” , isto é , uma liberdade
“ fetichismo” ) , mas será uma constru çã o coletiva . O feti ¬
moral incondicionada ( mas ainda mais implacavelmente
chismo da mercadoria aparecer á ent ã o como uma longa submetida a lei interior do dever, o famoso “ imperativo
transiçã o entre a domina ção da natureza sobre o homem categ ó rico ” ), aspirando à constituiçã o de um “ reino dos
e a domina çã o do homem sobre a natureza . fins ” , fundado sobre o respeito m ú tuo das pessoas. E
mesmo quando Hegel , recusando a separa çã o entre o
mundo natural e o mundo moral , mostrava na experi ê ncia
Marx e o idealismo hist ó rica o verdadeiro lugar da experi ê ncia da consci ê ncia ,
esse esquema da constitui çã o do mundo permanecia de ¬
Do estrito ponto de vista da crítica da economia pol ítica , terminante . Ele permitia compreender por que , afinal , o
poder íamos parar por aqui . Mas , como já disse , isso seria esp í rito ou a raz ã o que se perdeu ou alienou nas formas
82 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 83

da natureza e da cultura , em suas diversas experiê ncias, poderia ser uma confusão) dos três pontos de vista , que
apenas retorna para si mesmo, para a contempla çã o de correspondem respectivamente à ciê ncia (inteligibilidade
sua própria estrutura , de sua pró pria “ l ógica ” . dos fen ô menos) , à metaf ísica ( ilusões necessá rias do pen ¬

Ora , com a exposiçã o de Marx , através de um desvio samento puro) e à moral ou “ raz ã o prá tica ” ( imperativo
aparentemente contingente pela aná lise das formas sociais da conduta ). Mas a comparaçã o ressalta a originalidade
da circula çã o mercantil , e a crítica de sua representa çã o dessa teoria da constituiçã o do mundo em rela çã o à s que
econ ómica , a questã o da objetividade encontrava-se intei- a precederam na hist ó ria da filosofia (e que , é claro , Marx
ramente repensada . O mecanismo do fetichismo é, em conhecia intimamente ): é que ela n ã o procede da atividade '
certo sentido , uma constituiçã o do mundo : o mundo social ,
de nenhum sujeito , de qualquer forma de nenhum sujeito
estruturado pelas pe ía ções de trocá , que representa evi ¬ que seja pens á vel a partir do modelo de uma consciê ncia . J
^
dentemente o essencial da “ natureza ” , na qual vívem , Em contrapartida , ela eõ nstitui sujeitos /bu JEQTrnàsTde (^
pensam e agem hoje os individuos humanos. É por isso subjetividade e de consciê ncia , no próprio campo da /
que Marx escreve que “ as categorias da economia burgue¬ objetividade . sua posi çã o “ transcendente ” ou “ transcen ¬

sa ” s ã o “ formas de pensamento que tê m uma validade dental ” , a gubjefividade passou para uma posiçã o de efeito , -
social e logo uma objetividade ” .19 Antes de formular regras
de resultado do processo social .
ou imperativos , elas exprimem uma percepção dos fen ô¬
Ó ú nico “ sujeito ” de que fala Marx é um sujeito prá tico,
menos , da maneira pela qual as coisas “ estã o a í” , sem que
seja possível modificá -las à vontade .
m ú ltiplo , anó nimo , e por defini çã o n ã o-consci.ente de si
Mas nessa percepção combinam-se imediatamente o -
mesmo . Na verdade um não-sujeito , isto é , a sociedade,
real e o irngginarip (o que Marx chama o “ supra-sensível ” , como o conjunto das atividades de produ çã o , de troca , de
a “ fantasmagoria ” das mercadorias autó nomas , que domi ¬ consumo , cujo efeito combinado é percept ível para cada
nam seus produtores) , ou ainda o dado dos objetos de um fora dele , como propriedade “ natural ” das coisas . E é
experiê ncia com a norma de comportamento que eles esse n ão-sujeito ou esse complexo de atividades que
produzem . O cá lculo econ ómico , fundado sobre a camada produz representações sociais de objetos , ao mesmo tempo
imensa das medidas , contas e avalia ções que os indiv íduos que produz objetos represent á veis . A mercadoria , assim
mergulhados no mundo das mercadorias efetuam cotidia ¬ como o dinheiro , esperando o capital e suas diversas
namente , ilustra admiravelmente essa dualidade : já que ele formas, é eminentemente uma representa çã o ao mesmo
repousa ao mesmo tempo sobre o fato de que os objetos tempo que um objeto, é um objeto já sempre dado na
econ ó micos sã o sempre jã quantificáveis ( “ é assim mesmo ” , forma de uma representa ção .
é a natureza deles) , e sobre o imperativo social de Mas , vamos repetir, se a constituiçã o da objetividade
submetê-los (e com eles as atividades humanas que os no fetichismo nã o depende do dado prévio de um sujeito ,
produzem ) , a uma quantifica çã o ou racionaliza çã o sem de uma consciê ncia ou de uma razã o, por outro lado ela
fim , transpondo todo limite fixado previamente , seja ele constitui sujeitos , que s ão parte da pró pria objetividade ,
“ natural ” ou “ moral ” . isto é , eles s ão dados na experiê ncia ao lado das “ coisas” ,
das mercadorias , e em relaçã o com elas. Esses sujeitos ,
Génese da subjetividade n ã o constituintes mas constitu ídos , sã o simplesmente os
t
“ sujeitos econó micos” , ou mais exatamente todos os indi ¬
Do ponto de vista do idealismo cl á ssico , poderia parecer v íduos que , na sociedade burguesa , sã o primeiramente
que Marx procedeu simplesmente á uma reuniã o (que sujeitos econ ó micos ( vendedores e compradores , logo
84 A FILOSOFIA DF. MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO , O PODER E A SUJEIçãO 85

Luk ács
força de trabalho — uma impressionante “ fantasmagoria ” ,
diga -se de passagem , mas que , també m ela , tornou -se
A longa c dramá tica carreira de Luká cs Gyõ rgy ( nascido cm 1885, em absolutamente “ natural ” ) . A invers ã o operada por Marx é , r;
Budapeste, de nobreza judaica , també m se fez chamar Georg [von ] pois, completa : sua constitui çã o do mundo n ã o é obra de
Luk á cs e escreveu toda a sua obra em alemã o) se divide em quatro um sujeito , ela é uma g é nese da subjetividade ( uma forma
grandes períodos. Na juventude, estudou filosofia e sociologia na de subjetividade hist ó rica determinada ) como parte e
Alemanha com os neokantianos e Max Weber, e desenvolveu uma estética
inspirada pelo “ romantismo anticapitalista ” ( L’Á tne et les formes, tr . fr. contrapartida do inundo social da objetividade .
Gallimard, Paris, 1966), ao mesmo tempo que um firme interesse pela A partir da í , dois prolongamentos eram possíveis , e
m ística judaica ( cf . Michael Lõwy , Redemption et utopie . Le judaisme ambos foram tendencialmente propostos.
libertaire en Europe céntrale, Paris, 1988 ). Tornou -se marxista durante
a 1 Guerra Mundial , sofrendo sobretudo forte influ ê ncia de Rosa
Luxemburgo e do movimento “ spartakista ” , o que o levou a participar
da revoluçã o h ú ngara dos “ conselhos” , dos quais foi “ comissá rio de A “ reificação”
cultura popular" (1919). Sua antologia História e consciência de classe,
publicada em 1923, foi a tentativa mais impressionante de reatualizar a
ideia hegeliana de uma sí ntese dialética da objetividade e da subjetivi¬
O primeiro é ilustrado pelo livro de Luk á cs, escrito entre
dade, integralmente transposta para o elemento da “ consciência dc 1919 e 1922 , Hist ória e consciência de classe, em que se
classe” e da pr á tica revolucioná ria do proletariado , que é o resultado encontra exposta a grande ant ítese entre “ reifica çã o ” e
da hist ó ria . Condenado pelo marxismo oficial (ao mesmo tempo que a “ consci ê ncia do proletariado ” . 20 É simultaneamente uma
obra exatamente contemporâ nea e em muitos aspectos compará vel de
Karl Korsch , Marxisme et philosophic, tr. fr., Paris , Éd . de Minuit , 1964),
interpreta ção genial e uma extrapola çã o do texto de Marx ;
esse livro, embora renegado por seu autor, se tornaria a fonte aberta que ressalta seu lado rom â ntico (sem d ú vida alguma , em
ou oculta de boa parte do “ marxismo cr ítico” ocidental . Depois de sua razã o de outras influ ê ncias sofridas por Luk á cs, particu ¬

instala çã o em Moscou no in ício dos anos 30, e de sua volta à Hungria larmente as de Georg Simmel , autor de Filosofia do
socialista em 1945, Luká cs desenvolveu uma obra mais “ ortodoxa ” ,
erudita e sistemática , que engloba a teoria do “ realismo crítico” ( Le
dinheiro, 1900, e Max Weber, e de sua pró pria orienta çã o
roman historique, tr. fr., Paris , Payot , 1972), a história da filosofia ( Le de juventude ) . No fetichismo, Luk á cs l ê uma filosofia total
jeune Hegel , Sur les rapports de la dialectique el de l 'économie, tr. fr., (ao mesmo tempo uma concepçã o do conhecimento , da
Paris , Gallimard , 1981 , ) , a polémica pol ítico-filosófica ( La destruction pol í tica e da hist ó ria : a categoria de totalidade é , ali á s ,
ele la raison, tr . fr., Paris, L’ Arche , 1962, estudo sobre o irracionalismo
na filosofia alem ã e de seu papel na prepara çã o intelectual do nacio ¬
apresentada por Luk á cs como a categoria t ípica do modo
nal-socialismo ) . Aderiu em 1956 à revolu çã o nacional dirigida por Nagy de pensamento dial é tico , por oposiçã o ao pensamento
e , a partir de entã o, foi objeto de uma estrita vigilâ ncia policial . As “ anal ítico ” do entendimento abstrato , cuja g é nese , preci ¬
duas grandes obras de seu último período sã o a Estética ( 1963) e samente , a teoria da reifica çã o permite pensar ).
principalmente a Ontologia do ser social ( publicado depois de sua morte
em 1971), em que a “ consciê ncia de si do género humano” é estudada
Renegada por seu pr ó prio autor depois do refluxo da
como “ resolu çã o da rela çã o entre teleología e causalidade” , sobre o experiê ncia revolucion á ria dos anos 20 e sua pr ó pria
alicerce da aliena çã o e da desaliena çâ o do trabalho (cf . Nicolas Tertulian , adesã o ao marxismo ortodoxo da 111a Internacional , a teoria
artigo “ Ontologie de l’é tre social , in Dictionnaire critique du marxisme, lukacsiana da reifica çã o n ã o deixará de ter uma influ ê ncia
Paris, PUF, 2a ed . 1985 ) . consider á vel sobre a filosofia do séc . XX . Por um lado ,
ela estará na origem de boa parte dos marxismos críticos
propriet á rios , pelo menos de sua pró pria forç a de trabalho , do séc . XX , especialmente de muitos temas prediletos da
isto é , proprietários e vendedores de si mesmos enquanto escola de Frankfurt , de Horkheimer e Adorno, até Haber-
86 A FILOSOFíA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEI çã O 87

mas , que dizem respeito à crítica da “ racionalidade mo¬ a todas as atividades humanas , isto é , que a mercadoria
derna ” ou “ burguesa ” , mas també m à cr ítica da técnica e se torna o modelo e a forma de todo objeto social .
da ciê ncia como projetos de naturaliza çã o da historia e Assim , Luk á cs descreve um paradoxo : a racionalidade
do “ mundo vivido ” . Por outro lado , Lucien Goldmann mercantil estendida à ciê ncia est á fundamentada sobre uma
afirmou de maneirá convincente , em um curso publicado separa çã o é ntre o lado objetivo e o lado subjetivo da
posteriormente ,21 que referê ncias literais à Historia e cons¬ experiê ncia (o que permite subtrair o fator subjetivo —
ciência de classe aparecem nos ú ltimos pará grafos do livro
( inacabado) de Heidegger, Ser e tempo (1927) , consagrados
à historicidade : seria necessá rio ent ã o considerar que este
necessidades , desejos , consciê ncia —
ao mundo dos ob
jetos naturais e suas leis matem á ticas ) ; mas isso é apenas
¬

um prel ú dio à incorpora çã o de toda subjetividade na


é, em certo aspecto , uma resposta ao “ historicismo revo¬ objetividade (ou à sua reduçã o ao status de objeto , que
lucion á rio ” que se exprime na teoria da reificaçã o , mas as “ ciê ncias humanas ” ilustram , ou as técnicas de gest ã o
també m talvez o in ício de uma retomada ou recupera çã o do “ fator humano” , progressivamente estendidas a toda a
por Heidegger de certos temas de Luk ács, especialmente sociedade ) . Na verdade , esse paradoxo exprime a extrema
em sua teoria do anonimato social (o “ se ” ) , que caracteriza aliena çã o à qual chegou a humanidade no capitalismo , o
segundo ele a vida “ inauténtica ” , e mais tarde , em sua que permite a Luk á cs reencontrar teses sobre a imin ê ncia
teoria do “ racionaliza çã o ” do mundo pela técnica utilit á ria . da inversã o revolucion á ria , pr óximas das de Marx na
A teoria de Luk á cs repousa sobre a idé ia de que , no Ideologia alemã (que ele n ã o podia ter lido na é poca , já
mundo dos valores mercantis , os próprios sujeitos são ava¬ que o texto só foi publicado em 1932 ). Ele as formula
liados, e conseq üentemente transformados em “ coisas” , o todavia em uma linguagem muito mais especulativa ( he-
que se expressa pelo termo Verdinglicbtung ( reifica çã o ou geliana e schelingiana ) , e acrescenta um elemento de
coisifica çã o) que , para Marx , n ã o desempenhava esse messianismo pol ítico : o proletariado , cuja transforma çã o
papel . Marx dissera que as relações entre mercadorias em objeto é total , e por isso destinado a tornar-se o sujeito
(equivalê ncia , preço , troca ) sã o dotadas de autonomia , e da inversã o, isto é, o “ sujeito da histó ria ” (formula çã o
que elas acabavam , assim , n ão só por substituir as rela çõ es inventada por Luk ács) . Abolindo a sua pr ó pria aliena çã o,
pessoais , mas també m por represent á -las . ele conduz a hist ó ria ao seu fim (ou a recome ç a , enquanto
Luk á cs combina duas idéias diferentes. Primeiramente , hist ória da liberdade ) , realizando praticamente a id é ia
a id éia de que a objetividade mercantil —
a das categorias filosófica da comunidade humana . Assim , a filosofia se
econó micas e das operações que elas produzem
'
modelo de toda e

objetividade, principalmente da objetivi ¬
é o realizaria em sua aniquila çã o: o que coincide , de fato , com
um velho esquema do pensamento m í tico (o fim dos
~~
dade “ cient ífica ” no mundo burgu ês , o que permitiria tempos é uma volta ao “ nada ” criador das origens)T
compreender por que as ciê ncias quantitativas da natureza
(a mecâ nica , a f ísica ) se desenvolvem na é poca moderna
ao mesmo tempo em que se generalizam as rela ções A troca e a obrigação: o simbó lico em Marx
mercantis. Elas projetam sobre a natureza uma distin çã o
A extrapola çã o de Luk á cs é por si mesma importante e
entre subjetivo e objetivo que tem a sua origem nas pr á ticas
brilhante , mas tem como inconveniente isolar totalmente
de troca . Depois , a idéia de que a objetiva çã o , ou a a descri çã o do fetichismo de seu contexto te ó rico no
racionaliza çã o , como cá lculo e medida de valor, se estende Capital. Ora , este sugere um tipo de interpreta çã o com-
88 A FILOSOFIA DE MARX Il’l / IDEOLOGIA ou FETICHISMO: o PODER E. A SUJEIçãO 89
,

pletamente diferente , centrado nas questões do direito e estrutura comum ao fetichismo econó mico e ao fetichismo
do dinheiro, e desembocando assim no que chamar íamos jur ídico ( e moral ) é a equivalê ncia generalizada , que
hoje de an á lise das estruturas simbólicas ( terminologia de submete abstrata e igualmente os indiv íduos à forma de
que Marx n ã o poderia se servir, mas que permite explicitar uma circula çã o - ( circula çã o dos valores , circula çã o das
a quest ã o de suas descrições da dupla linguagem , que o obriga ções) . Ela supõe um código ou uma medida, ao '

universo das mercadorias “ fala ” : linguagem da equival ê n ¬ mesmo tempo materializada e idealizada , diante da qual
cia , da medida , formalizada pelo signo monetario, e a “ particularidade ” , e a necessidade individual devem se
linguagem da obriga çã o , do contrato , formalizada pelo apagar . Simplesmente , em um caso , a individualidade é
direito) . É a segunda posteridade filosófica de que falei. exteriorizada , ela se torna objeto ou val ò r, enquanto no
Citarei dois trabalhos bem diferentes por suas inten ções outro é interiorizada , torna -se sujeito ou vontade , o que
e pelas condições de sua reda çã o . O primeiro é o livro permite precisamente a cada uma completar a outra . Se ¬
do jurista sovié tico Pasukanis ( partid á rio do “ perecimento guindo esse caminho , n ã o se chega a uma teoria do sujeito
do Estado ” , executado durante o terror stalinista ), A teoria da hist ó ria , ou da passagem da economia ( mundo dos
geral do direito e o marxismo, publicado em 1924 , logo indiv íduos privados ) para a comunidade do futuro , como
quase ao mesmo tempo que o livro de Luk á cs . 22 Seu grande em Luk á c-s e seus sucessores. Mas podem -se encontrar em
interesse vem do fato de que Pasukanis parte novamente Marx as bases de uma an á lise dos modos de sujei çã o —
da aná lise marxiana da forma do valor, mas para conduzir
uma an á lise exatamente simétrica da constitui çã o do “ su ¬
o fetichismo econ ó mico- jurídico sendo um deles
se interessa pela rela çã o das pr á ticas com uma ordem sim ¬
que —
jeito de direito ” na sociedade civil - bruguesa ( para Pasuka ¬ bólica constitu ída na hist ó ria . Observemos aqui que essa
nis , que se inscreve , de certo modo, na tradiçã o do direito leitura de inspira çã o estruturalista ( que é naturalmente
natural , contra o positivismo jurídico , para o qual toda també m uma extrapola çã o) é de fato muito mais pr ó xima
norma jur ídica é apresentada pelo Estado , o fundamento que a de Luk á cs da cr í tica da ess ê ncia humana como quali ¬
do edif ício jur ídico é o direito privado , que se pode p ô r dade gen é rica “ alojada ” nos indiv íduos , formulada pelas
em correspond ê ncia , precisamente , com a circula çã o mer ¬ Teses sobre Feuerbach . Em contrapartida , ela obriga a con ¬
cantil ). Assim como as mercadorias individuais aparecem frontar Marx , passo a passo , com os resultados da antro¬
como portadoras de valor por natureza , assim també m os pologia cultural , da história do direito e da psican á lise .
indiv íduos que participam da troca aparecem como porta ¬
dores por natureza de vontade e de subjetividade . Assim
como h á urn fetichismo econó mico das coisas, h á um A questão dk> s “ direitos humanos”
fetichismo jurídico das pessoas, que na realidade formam
um ú nico , porque o contrato é a outra face da troca , e Como interpreta ções t ã o diferentes s ão poss íveis a partir
porque cada um é pressuposto pelo outro . O mundo vivido do mesmo texto? A resposta empenha toda a id é ia que se
e percebido a partir da expressã o do valor é na verdade faz da “ cr
ítica da economia pol í tica ” ern Marx , e ela exigiria
(e Marx indicou isso ; era até a raz ã o de sua releitura cr í tica acima de tudo que examin á ssemos de perto o uso duplo ,
da Filosofia do direito de Hegel , onipresente no Capital) profundamente anfibol ógico , como diriam os fil ósofos , que
um mundo econó mico- jur ídico . Marx fez do termo pessoa - por um lado , diante das “ coisas”
,

An á lises mais recentes , especialmente as de Jean -Jo- ( mercadorias e moeda ) constituidas pela circula çã o, as
seph Goux , 23 nos permitem esclarecer esse ponto . A pessoas sã o os individuos reais, preexistentes , empenhados
90 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 91

com outros ’ em uma atividade social de produ çã o ; por apresenta diante do outro como o portador do universal ,
outro lado , com essas mesmas “ coisas” , sã o fun ções da isto é , do poder de compra como tal . Homem “ sem
rela çã o de troca , ou ainda , como diz Marx , “ máscaras” qualidade particular” , qualquer que seja , aliá s, o seu status
jurídicas de que os indivíduos devem se revestir para poder, social ( rei ou lavrador), e a grandeza dos seus fundos
eles pr óprios , “ carregar ” as rela ções mercantis . Essa seria próprios (banqueiro ou simples assalariado) - - .
uma discussã o bastante t écnica e talvez fastidiosa . Mas
podemos indicar imediatamente uma grande implica çã o
pol ítica : é a questã o da interpreta çã o dos direitos humanos. Liberdade, igualdade, propriedade
A posição de Marx evoluiu visivelmente nesse ponto.
Em seus textos “ de juventude ” (antes de tudo o Manuscrito Essa liga ção privilegiada entre a forma da circula ção e o
de 1843 e a Questão judaica de 1844 , que conté m a famosa “ sistema da liberdade e da igualdade” é evidentemente
exegese das Declarações dos direitos do homem e do conservada no Capital. Sã o exatamente as “ propriedades” ,
cidad ã o francesas) combinam-se , como mostrou bem Ber ¬ Eigenschaften, atribu ídas pelo direito aos indiv íduos (a
trand Binoche , 24 uma inspira çã o oriunda de Hegel (crítica começar pela propriedade de ser propriet á rio, Eigent ú mer.
da abstra çã o metaf ísica dos “ direitos humanos ” , suposta - de novo o jogo de palavras fundamental que nos apareceu
mente existentes desde toda a eternidade e v á lidos em em Stirner) , requeridas para a circula ção das mercadorias
todas as sociedades) e uma inspira çã o oriunda de Babeuf como cadeia infinita de trocas “ entre equivalentes ” , e que
e dos comunistas igualit á rios ( cr ítica do cará ter burgu ês sã o universalizadas pelo discurso da pol ítica burguesa
do “ homem ” universal evocado pelas Declara ções, das como expressã o da essê ncia do homem . Pode-se portanto
quais todos os direitos remetem ao cará ter inaliená vel da sugerir que o reconhecimento geral desses direitos , em
propriedade e excluem o dever de solidariedade social ) . uma “ sociedade civil ” que pouco a pouco absorve o Estado ,
Os direitos humanos , isolados dos direitos do cidad ã o , “ verdadeiro É den dos direitos inatos do homem ” , onde “ só
aparecem ent ã o como a expressã o especulativa da cisã o reinam a Liberdade , a Igualdade , a Propriedade e Bent-
da essê ncia humana , entre a realidade das desigualdades ham ” 26 ( isto é , o princípio de utilidade individual ) , corres¬
e a ficçã o da comunidade . ponde à extensã o universal das trocas mercantis (o que
Essa an á lise evoluirá profundamente , sobretudo sob a os clássicos chamavam “ a grande rep ú blica comercial ” ).
influ ê ncia da polê mica de Marx com Proudhon e da crítica Mas o que interessa agora a Marx sã o as contradições
do liberalismo econ ó mico . Nos Grundrisse situa -se um que a universalidade dessa forma produz . Na esfera da
desenvolvimento importante , 25 que vê Marx identificar a produ ção, em que os trabalhadores assalariados entram
equa çã o da igualdade e da liberdade , cora çã o da ideologia por contrato , como livres vendedores de sua pró pria for ç a
dos direitos humanos ou da “ democracia burguesa ” , com de trabalho , ela exprime imediatamente uma rela çã o de
uma representa çã o idealizada da circula çã o das mercado ¬ forças : n ã o s ó pela s é rie indefinida das viol ê ncias que ela
rias e do dinheiro , que constitui a sua “ base real ” . A estrita recobre , mas enquanto meio de decompor o coletivo dos
reciprocidade da igualdade e da liberdade — ignorada produtores , entretanto tecnicamente requeridos pela gran ¬

pelas sociedades antigas e negada pelas sociedades me ¬ de ind ú stria , em uma justaposi çã o forçada de individuali ¬

dievais , enquanto as modernas v ê em , ao contr á rio , a dades separadas umas das outras . Trata -se mesmo , como
restaura çã o da natureza humana — pode ser
condições nas quais , no mercado , cada indiv íduo se
deduzida das se poderia dizer plagiando Rousseau , de “ forç ar os indi ¬
v íduos a serem livres ” . No mesmo momento , Marx descreve
92 A FILOSOFIA DE MARX
III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 93
o movimento do capital como o de um grande “ autó
mato” Do ídolo ao fetiche
independente dos indiv íduos , sempre “ sugando
” trabalho
excedente de modo a valorizar-se a si mesmo , e do qual
os capitalistas são apenas os instrumentos “ Podemos fazer o balan ço desse percurso que , seguindo a
conscientes” . oscila çã o do pró prio Marx , nos levou da ideologia ao
A referencia fundadora dos direitos
humanos à vontade fetichismo e à s suas diferentes possibilidades . de interpre ¬
livre dos indiv íduos é ent ã o anulada , exatamente
como ta çã o? Toda compara çã o deve , naturalmente , levar em
era anulada a utilidade social de cada trabalhador
parti ¬ conta ao mesmo tempo os elementos comuns à s duas
cular . Assim como o valor “ em si ” era projetado no corpo
do dinheiro , assim també m a atividade , a produtividade exposi ções , e a distâ ncia que os separa : por um lado, um
, texto provisório, nunca publicado ( mesmo que os vest ígios
a potência física e intelectual s ã o projetadas nesse
novo dessas formula ções se encontrem por toda a parte); por
Leviat ã que é o capital social , ao qual , de
modo quase outro lado, uma exposi çã o longamente trabalhada , insta ¬
“ teol ógico ” , elas parecem pertencer “ por natureza ”
, já que lada pelo autor em um ponto estratégico da sua “ crítica
os indivíduos só dispõem de tudo isso através dele 27
Entretanto, a ê nfase nessas contradições não pode da economia pol ítica ” . Entre os dois, uma reformula çã o
deixar de refletir sobre a significa çã o dos “ direitos completa do projeto “ cient ífico” de Marx , uma mudan ç a
huma ¬ de terreno, senã o de objetivo, uma retifica çã o de suas
nos ” , pois estes aparecem a partir de ent ã o ao
mesmo perspectivas de revolu çã o social , passando da imin ê ncia
tempo como a linguagem com a qual se mascara
a para a longa dura çã o .
explora çã o e como aquela na qual se exprime a
luta de O que é visivelmente comum à teoria da ideologia e
classe dos explorados: mais do que uma verdade ou do
que uma ilusã o , trata -se de uma causa. Por isso, O capital à do fetichismo é o fato de que elas tentam relacionar a
, condi çã o dos indivíduos isolados uns dos outros pela
em seu capítulo sobre “ A jornada de trabalho” , em
que extensã o universal da divisão do trabalho e da concorrência
sã o relatados os primeiros episódios da “ guerra civil entre
com a constitui çã o e o conte ú do das abstrações ( ou das
a classe capitalista e a classe operá ria ” , 2 8 ironiza a
inuti ¬ generalidades, dos universais) “ dominantes” na é poca
lidade do “ pomposo cat á logo dos direitos inaliená veis do burguesa . É ainda o fato de que elas procuram analisar a
homem ” , valorizando por contraste a “ modesta Magna contradi çã o interna que se desenvolve com o capitalist o
Charta de uma jornada de trabalho limitada pela lei ” , que entre a universalidade prá tica dos indiv íduos (a multipi
permite aos operá rios “ conquistar, enquanto classe , cidade de suas rela ções sociais , a possibilidade de desen ¬
uma
lei do Estado , um obst á culo social mais forte do que volver as suas atividades e as suas “ capacidades” singula ¬
tudo ,
que os impede de se venderem a si pró prios ao capital . res, que a técnica moderna d á ) e a universalidade teó rica

Mas , em suas perspectivas revolucion á rias de das noções de trabalho , de valor, de propriedade , de
supera çã o
do capitalismo , ele se encerra n ã o com a nega çã o da pessoa (que tende a reduzir todos os indiv íduos à condiçã o
liberdade e da igualdade individual Co que , na é poca , se de representantes intercambi á veis de uma só e mesma
começava a chamar de coletivismo ) , mas com a “ nega çã o espé cie ou “ essê ncia ” ) . Enfim , é a utiliza çã o de um grande
da nega çã o ” , isto é , “ de qualquer forma , a propriedade esquema lógico , proveniente de Hegel e de Feuerbach , e
individual fundada sobre as pr ó prias conquistas da era constantemente trabalhado por Marx , mas nunca abando¬
capitalista ” ( isto é , a socializa çã o dos meios de produ ¬ nado como tal : o da álfenaçadi
çã o ) .29 Aliena çã o quer dizer esquecimento da origem real das
id é ias ou generalidades , mas també m inversã o da rela çã o
94 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO : O PODER E A SUJEIçãO 95

“ real ” entre a individualidade e a comunidade . A cisã o da noções econ ó micas e as noções jur ídicas , a forma iguali ¬
comunidade real dos individuos é seguida de uma projeçã o tá ria da troca e a do contrato , a “ liberdade ” de vender e
ou transposição da relação social para urna “ coisa ” exterior, comprar, e a “ liberdade ” pessoal dos indiv íduos .
um terceiro termo. Simplesmente, em um caso, essa coisa Poderíamos ainda mostrar que os fenômenos de alie¬
é um “ ídolo” , uma representa çã o abstract que parece existir na çã o de que tratamos aqui se desenvolvem em sentido
por si mesma no cé u das idé ias (a Liberdade , a Justiça, a inverso : por um lado, eles dependem da crença , t ê m a ver
Humanidade, o Direito), ao passo que, no outro, ela é um com o “ idealismo ” dos indivíduos (com os valores trans¬
“ fetiche ” , urna coisa materiaDquc parece pertencer à terra , cendentes em que eles acreditam: Deus, ou a Na çã o, o
à natureza, que exerce sobre os indivíduos uma força Povo, ou mesmo a Revolu çã o ) , do outro lado , eles depen ¬
irresist ível (a mercadoria , e principalmente o dinheiro). dem da percepçã o, tê m a ver com o realismo ou o
Mas essa diferença comporta conseqiiências importan ¬ “ utilitarismo” dos indivíduos (com as evidências da vida
tes, que se desenvolvem tanto em Marx quanto em seus cotidiana : a utilidade, o preço das coisas, as regras do
sucessores, marxistas ou não. Vamos resumi-las esquema ¬ comportamento “ normal” ). Isso já não deixaria de ter
ticamente , dizendo que o que é esboçado pela Ideologia consequ ências pol íticas, pois sabemos que a política ( in ¬
alemã é uma teoria da constituição do poder, enquanto o clusive a pol ítica revolucion á ria ) é ao mesmo tempo uma
que é descrito pelo Capital, por meio de sua definição do questã o de ideais e uma questão de há bitos.
fetichismo, é um mecanismo de sujeiçã o. Os dois proble¬
mas, naturalmente , n ã o podem ser totalmente inde ¬

pendentes, mas atraem nossa atençã o para processos O Estado ou o mercado


sociais distintos, e empenham de modo diferente a reflexã o
sobre a liberaçã o. Mas essa diferen ça nos leva finalmente à grande oposi çã o
Essa alternativa poderia ser exposta em toda uma sé rie que resume todas as precedentes. A teoria da ideologia é
de registros. fundamentalmente uma teoria do Estado (entenda-se: do
Assim, no que diz respeito à referência ao trabalho e modo de dominação inerente ao Estado), enquanto que a
à produ çã o . Do lado da ideologia , a ê nfase é aplicada do fetichismo é fundamentalmente uma teoria do mercado
sobre a denega ção ou sobre o esquecimento das condições -
(entenda se : do modo de sujeição , ou de constituiçã o do
materiais da produ çã o , e dos limites que elas impõem . No “ mundo” de sujeitos e de objetos inerente à organiza çã o
campo ideológico, toda produ ção é negada , ou sublimada ; da sociedade como mercado e à sua domina çã o por
torna -se uma “ cria çã o” livre . É por isso que a reflexã o pot ê ncias mercantis) . Essa diferen ça se explica talvez pelos
sobre a divisã o do trabalho manual e intelectual , ou sobre momentos , ou até lugares diferentes (Paris , Londres: a
a diferen ça intelectual , é central . Vimos que ela permitia capital da política e a capital dos negócios) , nos quais
a Marx explicar o mecanismo gra ças ao qual uma domi ¬ Marx elaborou ambas , e pela idé ia diferente que ele fez
na çã o ideol ógica de classe se reproduz e se legitima . Do ent ã o das condições e dos objetivos da luta revolucioná ria .
lado da teoria do fetichismo , ao contrá rio , a ê nfase é Da idéia de uma derrubada da domina ção burguesa , que
aplicada sobre a maneira pela qual toda produ çã o é se tornou contradit ó ria com o desenvolvimento da socie ¬

subordinada à reprodu çã o do valor de troca . O que se dade civil , passou -se à id é ia de resolu çã o de uma contra ¬
torna central é a forma da circula ção mercantil , e a diçã o inerente ao modo de socialização produzido pelo
correspondê ncia termo a termo que se estabelece entre as capitalismo .
96 A FILOSOF í A DE MARX

Ela se explica també m


evidentemente, ligadas —
— mas as duas coisas est ã o ,
pelas fontes principais de sua
reflex ã o, que sã o també m os objetos de sua cr ítica . A
teor ía do fetichismo foi elaborada em contraponto à cr ítica IV / TEMPO E PROGRESSO:
da economia pol ítica , porque Marx encontrou em Smith e MATS IJMA FILOSOFIA DA HISTó RIA ?
principalmente em Ricardo uma “ anatomia ” do valor intei-
ramente fundada na quantifica çã o do trabalho e na noçã o
“ liberal ” de uma regula çã o autom á tica do mercado pelo
jogo das trocas individuais . Em contrapartida , se ele
^

teorizou a ideologia em fun ção do problema do Estado,


é porque Hegel , como vimos, dera uma surpreendente
defini çã o do Estado de direito como hegemonia exercen ¬
do- se sobre a sociedade.
Ent ã o , pode ser esclarecido o fato , muito notá vel , de
que teó ricos contempor â neos —que devem todos algo
,

essencial à noçã o marxiana da ideologia e principalmente


à sua concepçã o das condições de produ çã o da ideologia As discussões precedentes podem dar a impressã o de que
ou das idé ias — encontrem inevitavelmente quest ões de
origem hegeliana : os “ intelectuais org â nicos ” (Gramsci ) , os
a filosofia para Marx , no fundo , nunca teria mais do que
uma significa çã o pré via. Uma vez efetuada a proclama çã o
“ aparelhos ideológicos de Estado ” ( Althusser ) , a “ nobreza de um desfecho imediato da filosofia , o que encontrar ía ¬
de Estado ” e a “ violê ncia simb ólica ” ( Pierre Bourdieu ). mos , de fato? A cr ítica da ideologia e a an á lise do
Mas Engels, quando descobre o conceito de ideologia em fetichismo. Ora , urna é o pressuposto do retorno à s
1888 ( em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clá ssica pró prias coisas , a travessia da consci ê ncia abstrata que se
alemã) , propõ e-se a mostrar o que faz do Estado “ a
'

edificou sobre o esquecimento de suas origens na divisã o


primeira pot ê ncia ideológica ” , e desvelar a lei de sucessã o do trabalho . Mas a outra é o avesso da cr ítica da economia
hist ó rica das “ concepções de mundo ” ou das formas da política , suspendendo a aparê ncia de objetividade das
ideologia dominante que conferem aos Estados de classe formas mercantis , para remontar até a sua constituiçã o
a sua legitimidade ( religiosa ou jur ídica ) . Em compensa çã o,

social e definir a “ subst â ncia ” do valor : o “ trabalho vivo ” .


é na posteridade da an á lise do fetichismo que se devem Significaria isso que , do ponto de vista de Marx , a
procurar tanto as fenomenolog ías da “ vida cotidiana ”
filosofia se esgota em uma crítica da razã o (ou da desrazã o)
comandada pela l ógica da mercadoria , ou pela simbólica
do valor ( a escola de Frankfurt , Henri Lefebvre , Guy sociol ógica , econ ó mica e pol í tica ? Esse n ã o é , obviamente ,
Debord , Agn ès Heller ) quanto as an á lises do imagin á rio o seu projeto . A cr ítica da ideologia ou a do fetichismo
social estruturado pela “ linguagem ” do dinheiro e da lei j á fazem parte do conhecimento. Elas sã o um momento
( Maurice Godelier, Jean -J óseph Goux , ou Castoriadis , que no reconhecimento da historicidade das relações sociais
( e por conseguinte , se seaclmí te a equa çã o program á tica
substitui a estrutura pela institui çã o, ou mesmo Jean
Baudrillard , que inverte Marx , de certa forma , estudando apresentada na Tese 6 sobre Feuerbach , da historicidade
um .“ fetichismo do valor de uso” , ao inv és do “ fetichismo da "essê ncia humana ” ) . Elas afirmam que a divisã o do
do valor de troca ” ) . . trabalho , o desenvolvimento das for ças produtivas , a luta

97
98 A FILOSOFIA DF. MARX
IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 99
das classes se manifestam como o seu pró prio contr á rio .
A consciê ncia teó rica autonomizada na ideologia e a A negação da negação
representa çã o espont â nea dos sujeitos e dos objetos indu
zida pela circula çã o das mercadorias t ê m a mesma forma
¬
Lembremos as célebres frases do pref á cio da Contribui çã o
à crí tica da economia política (1859) : 2
geral : construir a ficçã o de uma “ natureza ” , negar o tempo
histó rico , negar a sua pr ó pria depend ê ncia de condições “ [. . . ] Na produ ção social de sua existê ncia , os homens
entram em rela çõ es determinadas , necess á rias , inde ¬
transit ó rias , ou pelo menos extrair-se disso , relegando-o
ao passado. pendentes de sua vontade , rela ções de produ ção que
correspondem a um grau de desenvolvimento determinado
Como diz a Misé ria da filosofia ( 1847): “ Os economistas
de suas forças produtivas materiais [ . . . ] . Em um certo ponto
tê m um modo particular de proceder. Para eles , existem
de seu desenvolvimento , as forças produtivas materiais da
apenas duas esp é cies de instituiçõ es , as da arte e as da
sociedade entram em contradi çã o [ . .. ] com as rela ções de
natureza . As instituições do feudalismo sã o instituições
artificiais , as da burguesia sã o instituições naturais. Nisso ,
propriedade no seio das quais elas tinham se movido até
ent ã o. De formas de desenvolvimento das forças produtivas
eles se parecem com os teólogos , que també m estabelecem
que elas eram , essas rela ções se transformam em obst á cu ¬
duas espécies de religiões . Toda religi ã o que n ã o é a sua
los . Ent ã o , abre-se uma é poca de revolu çã o social . A
é uma inven çã o dos homens , mas a sua pró pria religi ã o
mudan ça na base econó mica derruba mais ou menos
é uma emana çã o de De.us . Dizendo que as rela ções atuais
— as rela ções de produ çã o burguesas — s ã o naturais , os
economistas d ã o a entender que essas s ã o rela ções nas
rapidamente toda a imensa superestrutura [ . ..]. Uma for¬
ma çã o social nunca desaparece antes que estejam desen ¬
volvidas todas as for ças produtivas que ela era bastante
quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças
ampla para conter ; rela ções de produ çã o novas e supe ¬
produtivas de acordo com a natureza . Logo , essas pr ó prias
riores nunca as substituem antes que as condi ções materiais
rela ções sã o leis naturais independentes da exist ê ncia do
de existê ncia dessas rela ções tenham eclodido no pró prio
tempo . S ã o leis eternas , que devem reger sempre a
seio da velha sociedade . É por isso que a humanidade só
sociedade . Assim , houve hist ó ria , mas n ã o h á mais . ” 1
se propõe os problemas que ela pode resolver, pois ,
O momento cr ítico no trabalho de Marx remete pois observando bem , veremos sempre que o pr ó prio problema
a uma oposi çã o entre a natureza , ou o ponto de vista
só surge onde as condições materiais para resolvê-lo já
“ metaf ísico ” , e a hist ó ria ( Gramsci falará de “ historicismo
existem , ou pelo menos est ã o em vias de emergê ncia . Em
absoluto” ) . E a filosofia de Marx , acabada ou n ã o, convoca suas grandes linhas , os modos de produ çã o asi á tico , antigo ,
a si mesma para a tarefa de pensar a materialidade do
feudal e burgu ês moderno podem ser qualificados de
tempo . Mas essa quest ã o , como també m vimos , é indisso ¬
é pocas progressivas da forma çã o social econ ó mica
ci á vel de uma demonstra çã o constantemente reformulada :
Vamos reler agora algumas f ó rmulas importantes do
o capitalismo, a “ sociedade civil - burguesa ” trazem em si
Capital (1867):3 “ [...] o que está em embriã o no sistema
mesmos a necessidade do comunismo . Eles est ã o , como da f á brica é a educa çã o do futuro , que associar á , para
diria Leibniz , “ grá vidos do futuro ” . E esse futuro é amanhã .
todas as crian ças al é m de uma certa idade , o trabalho
O tempo , como tudo indica , é apenas o outro nome do
produtivo com o ensino e a gin á stica , e isso n ã o só como
progresso , a menos que seja a condi çã o de possibilidade m é todo para elevar a produ çã o social , mas ainda como o
formal deste. É essa quest ã o que , finalmente , devemos
ú nico mé todo para produzir homens, dos quais todas as
examinar.
dimensões sejam desenvolvidas [ . . . ] . A ind ú stria moderna
100 A FILOSOFIA DR MARX IV / TKMPO K PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 101

nunca considera nem trata a forma atual de um processo e suas condi ções de trabalho em capital , quando o modo
de produ çã o como se fosse definitiva . É por isso que sua de produ çã o capitalista est á instalado sobre suas pr ó prias
base t é cnica é revolucionaria , enquanto que a de todos bases , a socializa çã o posterior do trabalho e a transofrma -
os modos de produ çã o passados era essencialmente con ¬ çã o posterior da terra e dos outros meios de produ çã o em
servadora [ . . .]. Por outro lado, ela reproduz , sob sua forma meios de produ çã o explorados de maneira social , isto é
O
t h capitalista , a antiga divisã o do trabalho e suas particulari ¬ coletivos , tomam uma forma nova [...]. O que se deve
r dades fossilizadas . Vimos que essa contradiçã o absoluta expropriar doravante n ã o é mais o trabalhador inde ¬
[ ... ] se desencadeava na imola çã o orgi á stica ininterrupta
o le da classe oper á ria , na dilapida pendente , que trabalha em uma economia pró pria , por
çã o desmesurada das for ças sua conta , mas o capitalista , que explora um grande
g ij
de trabalho e na

{3 devasta çã o da anarquia social . Eis o lado n ú mero de trabalhadores. Essa expropria çã o se faz pelo
negativo . Mas se a mudan ça de trabalho n ã o se impõe jogo das leis imanentes da pró pria produ çã o capitalista ,
& mais doravante [ ... ] com a eficá cia cega e destruidora de
pela centraliza çã o dos capitais [ . . . ]. À medida que diminui
uma lei da natureza , que se choca por toda a parte com regularmente o n ú mero dos magnatas do capital que
o obst á culos , em compensa çã o a grande ind ú stria faz , ela
pró pria [ . . . ], da substituiçã o dessa monstruosidade [ . . . 1 por
usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo
de muta çã o cont í nua , agrava -se o peso da misé ria , da
(Y'i uma disponibilidade absoluta do homem para as exigê ncias opressã o , da servid ã o , da degenerescê ncia , da explora çã o ,
mut á veis do trabalho , uma quest ã o de vida ou morte ; assim e també m a cólera de uma classe operá ria em constante
també m , da substituição do indiv íduo parcial , simples aumento , formada , unificada e organizada pelo pr ó prio
no suporte de uma fun ção de detalhe , por um indiv íduo
totalmente desenvolvido , para quem diversas funções so¬
mecanismo do processo de produ çã o capitalista . O mono
p ó lio do capital se torna um obst áculo para o modo de
¬

ciais sã o outros tantos modos de atividade , que se sucedem produ çã o, que amadureceu ao mesmo tempo que ele e
uns aos outros [ ...] n ã o h á a menor d ú vida de que , gra ças sob seu dom í nio . A centraliza çã o dos meios de produ çã o
à inevit á vel conquista do poder pol ítico pela classe ope ¬ e a socializa çã o do trabalho atingem um ponto em que
rá ria , o ensino tecnol ógico , te ó rico e pr á tico conquistará se tornam incompat íveis com o seu invó lucro capitalista .
també m o seu lugar nas escolas oper á rias. Assim como Explode-se esse inv ó lucro . A hora da propriedade privada
també m n ã o h á a menor d ú vida de que a forma capitalista capitalista passou . Expropriam -se os expropriadores [ . . .] .
da produ çã o e as rela ções econ ó micas que sã o, nela , as A produ çã o capitalista gera , por sua vez , com a inexora ¬

dos operá rios , est ã o em contradiçã o diametral com esses bilidade de um processo natural , a sua pró pria nega çã o .
fermentos de subleva çã o e com o objetivo visado : a É a nega çã o da nega çã o [ . . . ].”
aboliçã o da antiga divisã o do trabalho . O desenvolvimento
das contradições de uma forma de produ çã o hist ó rica é ,
entretanto , a ú nica via hist ó rica que conduz à sua disso¬ Ambiguidade da dialética
lu çã o e à sua reconfigura ção [ . ..]” .
E , enfim , citemos ainda as frases de conclusã o do Assim sendo , como duvidar de que Marx foi , no séc . XIX ,
mesmo livro I , j á evocadas acima : 4 “ [.. .] Uma vez que esse entre Saint -Simon e Jules Ferry , um representante t ípico
processo de transforma çã o decompôs de modo suficiente ¬
da id é ia ( ou da ideologia ) do progresso ? “ H á poucas
mente profundo e global o conjunto da velha sociedade , sugest ões t ã o fantasistas ” , escreve Robert Nisbet em sua
quando os trabalhadores sã o transformados em prolet á rios History of the Idea of Progress, 5 “ quanto a dos marxistas
102 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA HISTóRIA?
DA 103
ocidentais, que desejariam hoje extrair Marx da tradiçã o ilustraçã o ( entre outras) de uma id é ia geral , o que é
evolucionista e progressista do séc . XIX . ” Para ele , sim ¬ interessante é utiliz á -lo como um revelador m analisador
plesmente o progresso n ã o é a modernidade , n ã o é o dos problemas inerentes a uma tal id é ia . ^
liberalismo, é ainda menos o capitalismo . Ou antes , “ dia-
leticamente ” , é o capitalismo , na medida em que torna o
socialismo inevit á vel , e vice-versa , é o socialismo , na As ideologias marxistas do progresso
medida em que resolve as contradi ções do capitalismo.. .
Essa é , sem d ú vida , uma das causas do descr édito Mas devemos primeiramente avaliar o lugar ocupado pelo
filosófico , que , hoje , atinge a “ concepçã o materialista da marxismo , como teoria e como movimento ou “ crenç a ” de
historia ” , à quaf-q nome de Marx est á ligado. De fato , massa , na histó ria social da idéia de progresso . Se , até um
vivemos hoje ja decadência da^ idéia. de progresso ,~ para
retomar uma expressã o de Georges Canguilhem .*’ A noçã o
^
de dialética , em sua versão hegeliana (dialé tica do “ espi¬
rito ” ) , ou marxiana ( dialé tica dos “ modos de produ çã o ” e
momento tardio em nossa é poca , n ã o houve apenas
doutrinas mais ou menos influentes ( e quem diz que elas
n ão existem mais?) , mas algo como um “ mito ” coletivo do
progresso , devemos isso , em grande parte , ao marxismo.
das “ forma çõ es sociais” ) , ou pós-engelsiana (dial é tica da Foi ele , por excelê ncia , que perpetuou a idé ia de que “ os
“ natureza ” ) ocupa , a esse respeito, uma posiçã o funda ¬
que est ã o embaixo ” desempenham um papel ativo na
mentalmente ambivalente . Ela aparece a alguns como uma hist ó ria , promovendo-se a si mesmos, e promovendo- a ,
alternativa ao positivismo do progresso. Ao esquema de “ para cima ” . Na medida em que a id é ia de progresso inclui
um movimento cont ínuo, uniformemente ascendente
progresso é o desenvolvimento da ordem ” , segundo a
— “o mais do que uma esperança — uma certeza antecipada
essa representa çã o lhe é absolutamente indispensá vel , e

expressã o de Auguste Comte , que reconhecia a sua pró pria n ão se compreenderia nada da hist ó ria do séc . XX se se
divida para com a filosofia iluminista , e particularmente fizesse abstra çã o dela . A partir da experiê ncia da Grande
Condorcet — ela opõe a representa çã o das crises , dos
conflitos “ inconciliá veis” e do “ papel da viol ê ncia na
Guerra , pelo menos , como escreve Val é ry , as civiliza çõ es
“ sabem que sã o mortais ” , e a espontaneidade do progresso
hist ó ria ” . Por outro lado , entretanto , ela pode ser designada se tornou propriamente inverossí mil . . . Só a idé ia de que
como a realiza çã o total da ideologia do progresso (de sua ele se cumpre de modo revolucion á rio , ou de modo
potência irresist ível ) , pois visaria reunir todo esse “ nega ¬ reformista , pelas massas que aspiram à pr ó pria liberta çã o ,
tivo” em uma síntese superior, para dot á -lo de um sentido pode portanto dar cr é dito a essa representa ção. Foi para
e pô-lo “ em ú ltima instâ ncia ” a serviço daquilo que ele isso que o marxismo serviu , e n ã o é de se admirar que ,
parecia contradizer. ao mesmo tempo , ele n ã o deixou de reforçar em seu
O objetivo deste cap ítulo é mostrar que , entretanto , as pró prio seio essa preemin ência da representa çã o do pro¬
coisas s ã o menos simples do que uma simples inversã o gresso .
dos ju ízos de valor poderia fazer supor. Elas sã o menos É exato falar aqui de marxismo , e n ã o apenas de
simples para o pró prio Marx (cujas opiniões n ã o nos socialismo . A tese do progresso social (de sua inevitabili ¬
importarã o tanto quanto seus raciocínios e seus estudos ). dade , de sua positividade ) certamente é um componente
Elas também o sã o , em raz ã o da multiplicidade das da tradiçã o socialista inteira , tanto em sua corrente “ utó¬
quest ões englobadas pela noçã o demasiado r á pida de um pica ” quanto em sua corrente “ cient ífica ” . Saint-Simon ,
“ paradigma ” do progresso . Mais do que ler em Marx a Proudhon , Henry George ( Progresso e pobreza foi publi -
104 A FILOSOFIA OF MARX IV / TEMPO I - PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTó RIA? 105

Cada um a seu modo , a alguns anos de intervalo ,


Benjamin
Gramsci e Walter Benjamin o criticaram impiedosamente ,
Nascido em Berlim em 1892 e morto em Port - Bou em 1940, onde se de dentro , e precisamente por causa disso . Nos Quaderni
suicidou por temor de ser entregue à Gestapo pela pol ícia franquista , del carcere, Gramsci descreveu o “ economismo ” da II- e
Walter Benjamin é considerado erroneamente como um representante IIIa Internacionais como um fatalismo, por meio do qual
da Escola dc Frankfurt ( Adorno, Horkheimer, o primeiro Marcuse, e os trabalhadores e suas organizações forjavam uma visã o
depois Habermas ), de quem foi apenas companheiro de viagem ” ,
"

introvertido e mal compreendido. Na juventude, sofreu forte influê ncia


de mundo “ subalterna ” , que fazia da emancipa çã o a
de Georges Sorel, autor, em 1908, das Reflexões sobre a violê ncia ( cf . conseq úê ncia inevit á vel do desenvolvimento das técnicas.
a antologia Mytbe et violence, Paris, Denoé l / Lettres nouvelles, 1971 ) e E Benjamin , em seu ú ltimo texto, as teses de 1940 Sobre
de Kafka . Foi amigo íntimo do teórico e historiador da m ística judaica a filosofia da história,7 fala de um “ historicismo” marxista ,
Gershom Scholem . Ma is tarde , seria convertido ao comunismo por sua que seria a tentativa ( vã , por definiçã o) de retomar, para
companheira Asja Lacks , uma revolucioná ria lituana . Foi muito ligado ,
os oprimidos, a visã o cont í nua e cumulativa , caracter ística
durante alguns anos , a Bertolt Brecht , com quem dividiria projetos de
literatura militante . Sua tese de doutorado sobre O conceito de crítica dos dominantes ou dos “ vencedores ” , certos de que estã o
de arte no romantismo alemão ( 1919, ed . brasileira , Iluminuras , Sào “ nadando a favor da corrente ” . Essa descriçã o, que n ã o
Paulo, 1993) e sua obra posterior sobre Origem do drama barroco deixa de evocar formula ções nietzschianas, atinge incon ¬
alemão ( ed . brasileira , Brasiliense, Sà o Paulo, 1984 ) n ão lhe permitiram testavelmente o seu alvo .
^
obter a habilita çã o universitá ria e o condenaram à insegurança , agravada
pela chegada do nazismo ao poder. O essencial de seu trabalho,
Lembremos o que foram as três grandes realiza ções do
constitu ído de fragmentos e de ensaios ( dos quais vá rios consagrados
“ progressismo ” marxista :
ao gr » nde inspirador de sua obra da maturidade , Baudelaire ( cf . Obras
escobadas, Brasiliense , Sã o Paulo, vol . III , 1989 ) , era destinado a formar
— primeiramente , a ideologia da social-democracia
alem ã , e mais geralmente da IIa Internacional . Suas diver ¬
uma obra hist ó rica , filosófica e estética sobre ‘passagens parisienses” gê ncias internas (epistemol ógicas: pois ela estava dividida ,
na arquitetura do Segundo Impé rio , na qual se analisa a combina ção
de fant á stico e de racionalidade que constitui a ‘cotidianeidade ” moderna
desde o in ício , entre uma concepçã o naturalista , em que
( Walter Benjamin , Paris capitule du XIXe . siècle , Le livre des passages, a liçã o de Marx se combinava com a de Darwin , e uma
trad J .Lacoste, Paris , Fd .du Cerf , 1989; e cf . Christine Buci-Glucksmann , concepçã o é tica , em que Marx era , antes , relido à luz de
La raison baroque de Baudelaire à Benjamin, Paris, Galilée, 1984 ) .
Depois de seu afastamento da URSS e no contexto tr á gico do nazismo,
Kant ; pol íticas: com a oposi çã o do revisionismo
tein , Jaur è s— e da ortodoxia — Kautsky ,
Berns ¬
Plekhanov ,

sua cr ítica das ideologias do progresso se orientou
Teses sobre a filosof ía da historia de 1940 — — sobretudo nas
para uma reflexã o ao Labriola apenas
) ressaltavam o consenso sobre o essencial :
mesmo lempo pol ítica e religiosa sobre o ‘tempo presente ” (Jetztzeit ) , a certeza do sentido da hist ó ria ;
momento de ruptura na historia em que se defrontam a destrui çã o e a
reden çã o ( cf . Michael Lõ wy , Redemption et utopie, op .cit., cap .6 e
— depois, a ideologia do comunismo sovi é tico e do
8
“ socialismo real ” . Designada por Althusser corno uma
conclusã o ). “ revanche p óstuma da IIa Internacional ” , ela apresentava
també m os seus pró prios debates: voluntarismo econ ómico
cado em 1879 ) . Mas foi o marxismo que , efetivamente , stalinista ; marxismo pós-stalinista , pouco a pouco inclinado
propôs uma epsèG dial é tica do progresso spcial { redo para a gest ã o do statu quo, e dividido entre os dois c ír ¬
^
* ¬
^

brando , de certa forma , o conte ú do da id é ia ) , e garantiu culos , de interesses à s vezes antagonistas , do “ campo
a sua circula çã o entre os grandes movimentos sociais e socialista ” e do “ movimento comunista internacional ” . O
pol íticos dos diferentes “ mundos ” europeus e extra -euro- mais interessante seria analisar a extrema tensã o que a
peus. caracterizou , e que explica talvez boa parte de sua in -
106 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO F. PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 107

flu ê ncia , entre um projeto de resist ê ncia à moderniza çã o mento deveria nos dissuadir de anunciar levianamente o
capitalista (até mesmo de retorna aos modos de vida “ fim das ilusõ es do progresso” a partir da. Europa , e mais
comunit á rios que ele destr ó i ) , e um projeto de ultramo- geralmente a partir do “ centro” (ou do “ Norte ” ) . Gomo se
dernidade, ou de supera çã o dessa modernidade, por um nos coubesse, mais uma vez , determinar onde , quando e
“ salto à frente ” no futuro da humanidade (nã o só “ os por quem devem ser procuradas a racionalidade , a pro ¬

sovietes e a eletrifica çã o ” , segundo a palavra de ordem de dutividade e a prosperidade . . . As fun ções cumpridas na
L ê nin em 1920 , mas a utopia do homem novo e a hist ó ria do movimento operá rio pela imagem da marcha
explora ção do cosmo); para a frente da humanidade e a esperan ça de ver um dia
— enfim , a ideologia do desenvolvimento socialista , ao
mesmo tempo elaborada no seio do Terceiro Mundo e
coincidirem a realiza çã o individual e a salva çã o coletiva
esperam ainda , també m elas , uma an á lise detalhada . 9
projetada sobre ele do exterior, depois da descoloniza çã o.
O importante , aqui , é que existem uma variante marxista
e uma variante n ã o- marxista da id éia de desenvolvimento. A integralidade da história
Mas suas fronteiras n ã o sã o fixas ; trata -se, antes , de uma
permanente emula çã o intelectual e pol ítica . É tornando-se , A cr ítica do progresso , em vias de ser banalizada pelas
no séc . XX , um projeto de desenvolvimento para a “ peri¬ filosofias “ pós- modernas” , 10 comporta ainda outras arma ¬
feria ” da economia - mundo capitalista ( da China a Cuba , dilhas. Ela se anuncia , na maioria das vezes, em uma
passando pela Arg élia ou Moçambique ) com , novamente , linguagem també m historicista : como cr ítica de uma re ¬

suas variantes reformistas e revolucion á rias , suas esperan ¬ presenta çã o dominante , substituiçã o de um “ paradigma ”
ças e suas catástrofes, que o marxismo revelou melhor a por um outro . Ora , essas noções indiferenciadas s ão mais
profundidade do la ço que o une ao fundo comum do do que duvidosas . Existiria mesmo uma noçã o, um para ¬
economismo progressista elaborado pelo pensamento ilu - digma do progresso , que teria reinado a partir da filosofia
minista , de Turgot e Adam Smith , at é Saint-Simon . Mas do Iluminismo até o socialismo e o marxismo? De modo
n ã o é menos incontest á yel que , sem o desafio , em parte algum . Nenhuma discussã o sobre esse ponto pode dispen ¬
real , em parte imagin á rio , representado pela “ solu çã o sar uma aná lise dos componentes da id é ia de progresso,
, marxista ” , as teorias do planejamento e do Estado aplicadas
cuja conjunção nã o é automá tica .
ao Terceiro Mundo n ã o seriam apresentadas como teorias As representa ções do progresso que se formam no fim
• alternativas do desenvolvimento social. Isso é bem vis ível
do séc . XVIII se apresentam antes de ' tudo como teorias
- a partir do momento em que reinam totalmente o libera ¬
lismo monetarista e sua contrapartida , “ a ingerê ncia hu -
(ou melhor , id é ias) da integoiidade da hist ó ria , sobre o
modelo de uma ç urva éspa ço-temporal , o que oferece
Tnanitá ria ” .
diferentes alternativas . A integralidade da hist ó ria pode ser
É importante lembrar essa hist ória , embora muito
apreendida na distin çã o de suas “ etapas” , na “ l ógica ” de
alusivamente , porque ela nos leva a relativizar a cr í tica do
pró prio progresso , ou pelo menos a n ã o receber sem -
sua sucessã o . Ou ela pode ser apreendida no cará ter
desconfian ça todas as suas evid ê ncias . O fato de que a decisivo de um momento privilegiado ( crise , revolu çã o,
ma is recente d as grandes realiza ções do progressismo inversã o ) que afeta a totalidade das rela ções sociais , o
marxista tenha sido uma ideologia ao mesmo tempo estatal , destino da humanidade . Assim també m , ela pode ser
racionalista e populista para escapar do subdesenvolvi- pensada como um processo indefinido , cuja orienta çã o ,
108 A FILOSOFíA DE MARX IV / TEMPO F PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 109

apenas, é caracterizada ( Bernstein , o pai do “ revisionismo” , seu “ princípio de diferen ça ” , afirmando que só são justas
dirá em urna frase famosa: “ O objetivo final [ Endzie¡ \ nã o as desigualdades que melhoram a situa çã o dos mais
é nada , o movimento é tudo” ) . 11
Ou ent ão, ao contr á rio , desfavorecidos ).12
ela pode ser definida como o processo que leva a um Enfim , uma representa çã o da hist ó ria como progresso
termo: “ estado estacioná rio” de homogeneidade ou de pode duplicar a id é ia de mudan ça com a de uma capaci ¬
equilibrio (como em Cournot ou Stuart Mill ) ou mesmo dade sempre maior de mudar, e é aqui , principalmente,
“ ultra-imperialismo” de Kautsky
Hegel , embora todos esses
— muito mais do que em
conservadores , liberais ou
que a ê nfase na educaçã o pode se atar, do interior , à idé ia
de progresso. Passa-se então a um quarto componente das
socialistas, tenham uma mesma imagem da resolu ção final teorias cl á ssicas do progresso, o que , em certo sentido , é
das tensões e das desigualdades . o mais importante politicamente , mas que é també m o
Mas principalmente, essas diferentes maneiras de re ¬ mais problem á tico filosoficamente : a id é ia de que a trans¬
presentar a histó ria como uma teleolog ía supõem que se forma çã o é uma transforma çã o de si , logo uma autotrans -
combinem duas teses independentes uma da outra . Uma formaçào, ou melhor ainda : uma autogeraçã o , na qual se
delas afirma a irreversibilidade e a linearidade do tempo. realiza a autonomia dos sujeitos.13 Até o dom í nio das forças
Da í a recusa ( e a apresenta çã o como mítica ou metaf órica ) naturais e a conquista dos recursos do planeta devem ser
de toda ideia de um tempo cósmico e de uma hist ó ria pensados, em ú ltima an á lise , nessa perspectiva . Como dizia
pol ítica cíclicos ou aleató rios. Notemos imediatamente que Marx nos Manuscritos de 1844 , a ind ú stria e as ciê ncias
a irreversibilidade n ã o é necessariamente ascendente : se ¬ da natureza sã o “ o livro aberto das forças essenciais do
guindo ou n ã o os modelos f ísicos da “ degrada ção da homem ” . Vê-se ressurgir aqui , por conseguinte , o problema
energia ” , boa parte dos teó ricos da hist ó ria no séc. XIX da práxis, com a diferen ça de que se trata de pensar n ã o
puderam assim opor à idéia de progresso a de decad ê ncia , uma transforma çã o individual , mas uma transforma çã o
mas conservando-se no interior do mesmo pressuposto coletiva . É por definiçã o uma idé ia leiga , ou pelo menos
( lembremos o Ensaio sobre a desigualdade das ra ças contrá ria a toda representa çã o do curso da hist ó ria como
humanas de Gobineau , publicado a partir de 1853, e mais resultado de uma vontade divina . Mas n ã o necessariamente
tarde invocado para valorizar diante do esquema da “ luta incompat í vel com diferentes transposi ções dos esquemas
de classes ” o da “ luta de ra ças ” ) . À idé ia de irreversibilidade teológicos do “ plano” ou da “ economia ” da natureza . A
deve pois acrescentar-se outra : a de aperfeiçoamento téc¬ dificuldade é pensá - la de modo imanente , isto é , sem fazer
nico ou moral (ou consistindo na combina çã o dos dois ) . intervir uma força ou um princípio exterior ao pró prio
Aperfei çoamento nã o significa apenas passagem do menos processo .
para o mais , ou do pior para o melhor , mas comporta a
id é ia de um “ balan ço ” positivo dos inconvenientes e das
vantagens , o que se chamaria hoje um optimum ( pensamos Uma teoria da evoluçã o?
aqui na maneira pela qual o esquema leibniziano do
“ melhor dos mundos possíveis” encontra -se na tradi çã o Os teó ricos do séc. XIX estavam à procura de “ leis ” da
progressista do liberalismo : desde Bentham , com sua mudan ça ou da transi çã o hist ó rica , para situar a sociedade
definiçã o da utilidade como m á ximo de satisfa çã o para o moderna entre o passado , que as “ revolu ções ” ( industrial ,
maior n ú mero de indivíduos possível , até Rawls , hoje , com pol ítica e até religiosa ) relegaram a uma pré- história da
110 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 111

modernidade , e o futuro mais ou menos próximo que a suas pró prias condi ções de exist ê ncia . E essa linha é ú nica ,
instabilidade , as tensões atuais deixavam pressentir . A o que significa n ã o só que ela permite determinar os
imensa maioria deles resolveu esse problema pela adoçã o avanços e os recuos (seja entre as sociedades, seja no
de esquemas evolucionistas . O evolucionismo é , para usar curso de sua histó ria pol í tica ) , mas que ela estabelece uma
novamente a terminologia de Canguilhem , a “ ideologia rela çã o necessá ria entre o “ começo ” e o “ fim ” da histó ria
cient ífica ” por excelê ncia do séc . XIX : isto é , um lugar de ( mesmo que esse fim , o comunismo , seja concebido como
troca entre os programas de pesquisas científicas e o o começo de uma outra história ).
imagin á rio teó rico e social ( a “ necessidade inconsciente Essas concep çõ es deram a volta ao mundo , e Marx
de acesso direto à totalidade ” ) . 14 Nesse sentido, era prati- encontrou , para expô- las , formula ções en é rgicas que , em
camente imposs ível n ã o ser evolucionista no séc . XIX , certo sentido , a tradiçã o marxista apenas glosou . Lembrei
exceto se se propusesse de novo uma alternativa teol ógica algumas delas acima . A compara çã o mostra claramente que
para a ciê ncia . Até Nietzsche , que escreveu (em O Anticris ¬
a id é ia de evolu çã o progressiva , para Marx , é insepar á vel
to , 1888) que “ o progresso é apenas uma id é ia moderna , de uma tese soBre a racionalidade da hist ó ria , ou , se
isto é , uma id é ia falsa ” , est á longe de escapar disso! preferirmos , sobre a inteligibilidade de suas formas, de
Mas isso significa também que o evolucionismo é o suas tendê ncias, de suas conjunturas .
elemento intelectual no qual se defrontam os conformismos
e os ataques contra a ordem estabelecida . Situar todos os
evolucionistas no mesmo plano é co‘ndenar-se a ver na Um esquema da causalidade (dialé tica I )
histó ria das id é ias , segundo as palavras de Hegel , apenas
uma vasta “ noite em que todos os gatos sã o pardos ” . O Essa tese se exprime , primeiramente , como mostra o texto
importante é , ao contrá rio , o que os distingue uns dos do Pref á cio à Cr í tica da economia pol ítica , sob a forma
outros: s ã o os pontos de heresia em torno dos quais eles de um esquema de causalidade histó rica . Nã o sendo um
se opõem entre si . A luta de classes não é a luta de raças, conhecimento , mas um programa de investigação e de
assim como as dial é ticas de Hegel , d è Fourier ou de Marx explica çã o , ele se enuncia em termos qualitativos e até
n ã o sã o a lei spenceriana da “ diferenciação” crescente metaf ó ricos : “ base ” e “ superestrutura ” , “ for ças produtivas ”
(evolu ção do simples para o complexo ) ou a lei de e “ rela ções de produ çã o ” , “ vida material ” e “ consci ê ncia
“ recapitula çã o ” da evolu çã o no desenvolvimento dos indi ¬ de si ” n ã o sã o em si mesmas realidades, sã o categorias à
v íduos , imposta por Haeckel a todas as disciplinas antro ¬ espera de aplica çã o concreta . Algumas procedem direta ¬
pol ógicas inspiradas no evolucionismo biol ógico . mente da hist ó ria e da economia pol í tica , enquanto outras
Podemos ent ã o voltar- nos para Marx . O objeto espe ¬ sã o importadas da tradi çã o filosófica . Esse esquema de
cífico ao qual ele aplicou esquemas de evolu ção foi a causalidade tem uma importâ ncia compar á vel a outras
hist ó ria das “ forma ções sociais ” , consideradas como deter¬ inova ções teó ricas no modo de explica çã o do real: assim
minadas por seu “ modo de produ çã o ” . Para ele , como é o esquema aristotélico das “ quatro causas ” ; ou o esquema
vimos , h á uma linha de evoluçã o progressiva dos modos newtoniano da for ça de atra çã o , da mat é ria ( “ força de
de produ çã o. Ela classifica todas as sociedades em rela çã o in é rcia ” ) e do v á cuo ; ou o esquema darwiniano de varia ¬
a um crité rio intrí nseco: a socializaçã o , isto é , a capaci ¬ bilidade individual e de “ seleçã o natural ” ; ou o esquema
dade , para os indiv íduos , de controlar coletivamente as freudiano das instâ ncias do “ aparelho psíquico ” ...

L
112 A FILOSOF í A DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 113

Sob a forma em que o encontramos aqui , devemos Determinação em ú ltima inst â ncia
constatar que esse esquema comporta uma tensã o quase
insuport á vel , pois , ao mesmo tempo , ele subordina intei ¬
O prefá cio à * 'Contribuição à crítica da economia política de 1859
ramente o processo hist órico a uma teleologia preexisten ¬
constituiu durante muito tempo o texto canónico da “ concepção mate ¬
te , 15 e afirma, entretanto , que o motor da transforma çã o rialista da hist ória ” , embora seja apenas, expl í citamente , um programa .
Os marxistas lhe consagraram milhares de pá ginas de coment á rios, bons
n ã o é outra coisa sen ã o as contradi çõ es da vida material , e maus . A expressã o “ determina çã o em ú ltima inst â ncia ” , que habitual ¬
“ científicamente constatá veis” . N ã o é pois surpreendente mente se procura esclarecer através desse escrito, nã o aparece clara ¬
que ele tenha sofrido constantemente interpreta çõ es diver ¬ mente nele. Ela seria forjada mais tarde por Engels: “ O momento
gentes , objeto de reformula ções permanentes na hist ó ria determinante na história é, em última instâ ncia, a produ çã o e a
do “ materialismo hist ó rico ” . reprodu çã o da vida real I ... J . Se algu ém distorce essa proposiçã o para
forçá - la a dizer que o fator econ ómico é o ú nico determinante , ele a
A esse esquema geral , veremos que os desenvolvimen ¬

transforma em uma frase vazia , abstrata , absurda . ” ( Carta a Bloch , de


tos do Capital acrescentam , se n ã o correções , ao menos 21 de setembro de 1890: cf . Marx c Engels , Étudespbilosophiques, Paris ,
um grau de complexidade maior. Efetivamente , eles expõem Éd.Sociales, 1974 ). A comparaçã o entre os dois textos e sua posteridade
o “ processo ” ou o “ desenvolvimento ” das rela ções sociais sugere entretanto que a formula çã o de Engels ainda não tem um
em três n íveis de generalidade decrescente . elemento de demarca çã o claro em rela çã o ao economismo, e até ao
tecnologismo, já que esses “ desvios” n ã o deixaram de ser aplicados ao
Em primeiro lugar , como anteriormente , existe a linha esquema marxiano de determina ção dos diferentes níveis ou instâ ncias
de progresso dos modos de produ çã o sucessivos ( asi á tico , da prá tica social . Isso se deve manifestamente ao fato de que a
escravagista , feudal ou senhorial , capitalista , comunista ) , “ determina çã o em ú ltima inst â ncia ” , por mais sutis que sejam as
que fornece um princ í pio de inteligibilidade para a suces ¬
dialetiza çôes ou a ções recíprocas que ela autoriza entre sociedade global
( “ forma çã o social ” ) e modo de produ ção, “ base económica ” e “ superes¬
sã o das forma ções sociais concretas . Esse n ível é o mais
trutura pol ítico- ideol ógica ” , forças produtivas e formas de propriedade,
evidentemente finalista - ele prov é m , sem outra mudan ça
,
apenas ressalta , finalmente , a teleologia do desenvolvimento hist órico .
a n ã o ser uma “ inversã o materialista ” , do modo pelo qual Compreende-se ent ã o por que , ao mesmo tempo em que escrevia que
Hegel e outros fil ósofos da hist ó ria ordenaram as é pocas a “ hora solitá ria da ú ltima inst â ncia nunca soa ” , Althusser propunha
da hist ó ria universal ( o “ despotismo oriental ” se torna o substituir as noções de a çã o recí proca e de a çã o em retorno das
“ modo de produ çã o asi á tico ” , o “ mundo antigo ” se torna superestruturas sobre a base pela noçã o de “ sobredetermina çã o” , que
traduz a complexidade irredut ível do "todo social ” , proposto pela
o “ modo de produ çã o escravagista ” etc . ) . Mas ele é també m dialé tica materialista ( “ Contradi çã o e sobredetermina çã o ” , in A favor de
o mais determinista > n ã o só por sua linearidade , mas Marx, op.cit . ) .
també m pela maneira pela qual fundamenta o tempo
irrevers ível da história sobre uma lei do desenvolvimento
ininterrupto da produtividade do trabalho humano . Obser ¬
economia , logo uma certa forma da luta de classes . Esta
vemos entretanto que se trata de uma determina çã o global , n ã o se desenrola da mesma maneira entre os senhores e
que n ã o exclui , em detalhe , nem bloqueios , nem estagna ¬
seus servos ou meeiros que entre capitalistas e seus
çã o , nem mesmo a volta para trá s . oper á rios .16 A rigor , o fim ou a supera çã o da luta de classes
Nesse n ível , a luta de classes n ã o interv é m tanto como em uma sociedade comunista n ã o é mais do que uma
o princípio da explica çã o , mas como seu resultado de conseqii ê ncia entre outras dessa evolu çã o . Reencontra -se
conjunto . A cada modo de produ çã o correspondem certas o quadro comparativo que foi evocado na an á lise do
formas de propriedade , um certo modo de desenvolvimen ¬
fetichismo da mercadoria , simplesmente ordenado no
to das forças produtivas e de rela çã o entre o Estado e a tempo .

i
114 A FILOSOFIA DF. MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 115

A instancia da luta de classes social . Embora ele o oprima , o capital nã o está “ fora ” de
seu povo. É ele que produz “ os seus pr ó prios coveiros ” .
Ora , no Capital, Marx desejou concentrar-se em um objeto Analogia esclarecedora , portanto , mas problem á tica .
muito mais específico ; n ã o sem razã o , pois ele questiona Enfim , Marx consagra muitas an á lises a um terceiro
a necessidade da revolu ção . Trata -se da “ contradiçã o ” entre n ível de desenvolvimento , ainda mais particular : a trans ¬
as rela çõ es de produ çã o e o desenvolvimento das forças forma çã o do pr ó prio modo de produ çã o, ou , se quisermos ,
produtivas e da forma que ela assume no capitalismo. o movimento da acumula çã o . Nos cap í tulos centrais do
Aqui , é importante ler atentamente os textos . As formula ¬ Capital consagrados à “ produ çã o de mais-valia absoluto e
ções que a ortodoxia avalizou , depois de Engels no relativo ” ,17 à luta pela dura çã o da jornada de trabalho , à s
Anti -Dtihring ( mas tamb ém do pr ó prio Marx em Miséria etapas da revolu çã o industrial ( manufatura , maquinaria ,
da filosofia ou no Manifesto comunista ) , fortemente in ¬
grande ind ú stria ) , n ã o é o simples resultado quantitativo
fluenciadas pela tradiçã o saint-simoniana , devem ser aban ¬
que lhe interessa ( a capitaliza çã o crescente do dinheiro e
donadas . N ã o se trata , evidentemente , de opor à fixidez dos meios de produ çã o). Mas é a maneira pela qual
da propriedade burguesa a mobilidade em si progressista evoluem a qualificaçã o dos oper á rios , a disciplina de
das for ças produtivas (do mesmo modo que , mais tarde f á brica , o antagonismo entre o sistema de salá rio e a
Keynes ou Schumpeter oporã o o empresá rio , o industrial , direçã o capitalista , a propor çã o do emprego e do desem ¬

ao especulador financeiro) . Trata -se da contradiçã o cres¬ prego ( logo , a concorrê ncia entre os trabalhadores poten ¬

cente entre duas tendências: a socializa çã o da produ ção


ciais ) . A luta de classes interv é m aqui de modo ainda mais
(concentra çã o , racionaliza çã o , universaliza çã o da tecnolo¬
específico , dos dois lados ao mesmo tempo. Do lado dos
gia ) e a tend ê ncia à fragmenta çã o da força de trabalho , à
capitalistas , dos quais todos os “ m é todos de produ çã o de
superexplora çã o e à inseguran ça para a classe oper á ria .
sobrevalor ” sã o m é todos de pressã o sobre o “ trabalho
A luta de classes intervé m portanto, de maneira decisiva ,
necessá rio ” e o grau de autonomia dos operá rios. E do
como o operador do processo de resolu çã o da contradi çã o ,
de que n ã o se pode prescindir . Só a luta que se organiza
lado dos prolet á rios, que reagem à explora çã o e determi ¬

nam assim o capital a procurar sempre novos mé todos .


a partir da “ misé ria ” , da “ opressã o ” e da “ có lera ” dos
prolet á rios pode “ expropriar os expropriadores ” , chegar à
De forma que a pró pria luta de classes se torna rigorosa ¬

mente um fator de acumula çã o , como se v ê no contragolpe


“ nega çã o da nega çã o ” , isto é , à reapropria çã o de suas
pró prias for ças absorvidas no movimento incessante de da limitaçã o da jornada de trabalho nos m é todos de
valoriza çã o do capital . organiza çã o “ cient ífica ” do trabalho e nas inova ções tec ¬

Esse ponto é ainda mais importante porque Marx fala nol ógicas : o que Marx chama de passagem da “ mais- valia
aqui de necessidade, e até de necessidade incontorn á vel . absoluta ” à “ mais- valia relativo ” (3a e 4a partes do livro I ) .
Vemos que esta n ã o é a necessidade que se imporia , a A luta de classes interv é m até por um terceiro lado , o do
partir do exterior , à classe operá ria , mas a que se constitui Estado , piv õ^da rela çã o de for ças entre as classes , e que
em sua pró pria atividade ou prá tica de libera çã o . O car á ter o agravamento da contradiçã o leva a intervir no pr ó prio
pol í tico do processo é sublinhado pelo uso impl ícito do processo de trabalho por uma “ regula çã o social ” , cada vez
modelo da Revolu çã o Francesa ; com a diferen ça de que mais org â nica . 18
a domina çã o que se deve “ explodir ” n ã o é a de um poder Detive - me nesses desenvolvimentos um pouco mais
moná rquico, mas a do capital na organiza çã o da produ çã o t é cnicos , primeiramente para convencer o leitor de que os
116 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 117

problemas da filosofía da historia para Marx n ã o devem sé rie é possível conceber como aberta . Pelo menos , esse
ser discutidos no nivel das declara ções mais gerais , mas é o sentido no qual se empenha o trabalho de Marx .
no nivel das an á lises , que é també m o da explicita çã o
má xima dos conceitos . Trata -se simplesmente de conside ¬
rar Marx como te ó rico ; o que vale para as figuras da O “ lado mau ” da história
consciê ncia em Hegel vale para o modo de produ çã o em
Marx . “ Ler O capital " est á ainda na ordem do dia . Mas Mas essa inversã o de perspectiva apenas ressalta mais
quero també m fazer a observa çã o seguinte : é precisamente ainda as dificuldades, ou mesmo as aporias com as quais
a combina çã o dos três n íveis de an á lise , desde a linha de se choca , outra vez , esse projeto de racionalidade . É preci¬
evolu çã o de toda a sociedade até o antagonismo cotidiano so determinar a sua significa ção , antes de voltar à maneira
no processo de trabalho , que constitui o que Marx entende pela qual , finalmente , se estabelecem em Marx as rela ções
por racionalidade da explica çã o histórica . Usando termos do “ progresso ” e da “ dialé tica ” .
Uma frase impressionante pode nos servir de guia : “ A
mais filosóficos , da í resulta que Marx recorreu cada vez
histó ria avan ça pelo lado mau . ” Marx a utilizou , em Miséria
menos a modelos de explicaçã o preexistentes , e que , cada da filosofia , contra Proudhon , que procurava conservar ,
vez mais , ele çópstruiu uma racionalidade sem verdadeiros de cada categoria ou forma social , o “ lado bom ” que faz
precedentes Essa racionalidade n ão é nem a da mecâ nica ,
^
nem a da fisiologia ou da evolu çã o biológica , nem a de
uma teoria formal do conflito e da estratégia , embora ela
progredir a justiça .19 Mas ela escapa a esse uso , e se volta
contra o seu autor : é a própria teoria de Marx , que , ainda
durante a sua vida , foi confrontada com o fato de que a
possa , em um ou outro momento , usar essas refer ê ncias . histó ria avan ça pelo lado mau , que ela nã o previra , que
A luta de classes , na mudan ça incessante de suas condi ções questiona a sua representa çã o da necessidade , e , a rigor
e de suas formas , é , para si mesma , o seu pr ó prio modelo . a certeza que ela acredita poder tirar dos pró prios fatos
Esse é precisamente o primeiro sentido que podemos que a histó ria , precisamente , avan ça , e que ela n ã o é ,
dar à idéia de dialética : uma lógica ou forma de explica çã o como a vida , segundo Macbeth , "a narrativa de um idiota ,
especificamente adaptada à interven çã o determinante da ruidosa , frené tica e desprovida de sentido ” .
luta de classes no pr ó prio tecido da histó ria . Althusser Quando Marx exerce a sua ironia à custa de Proudhon ,
teve razã o , nesse ponto , em insistir na transforma çã o a trata -se de recusar uma visã o moralizante e otimista da
que Marx submete as formas anteriores da dial é tica , e histó ria ( logo, afinal , conformista ) . Proudhon foi o primeiro
particularmente suas formas hegelianas ( trata -se do con ¬ a tentar adaptar esquemas hegelianos à evolu çã o das
fronto do “ senhor e do escravo ” na Fenomenolog í a ou da “ contradições econó micas ” e ao advento da justiça social .
“ divisã o do sujeito e do objeto ” na Lógica ) . N ão que ele Sua concep çã o do progresso da justiça repousava sobre a
n ã o lhes deva nada ; pelo contrá rio , em certo sentido , ele id é ia de que os valores de solidariedade e de liberdade
lhes deve tudo , já que nã o cessa de trabalhar sobre elas , se imp õem em raz ã o mesmo da universalidade que eles
mas pelo fato de que ele inverte a rela çã o que as “ figuras ” representam . Marx ( em 1846) fez quest ã o de lhe lembrar
especulativas mantê m com a an á lise concreta das situa ções que a histó ria n ã o se faz “ pelo lado bom ” , isto é , em razã o
concretas, como dir á Lênin . As situa ções n ã o ilustram da força intr ínseca e da excelê ncia dos ideais humanistas ,
momentos dial éticos preexistentes. Elas pró prias s ã o , antes , menos ainda pela for ça de convicçã o e pela educa çã o
tipos de processos ou de desenvolvimentos dialé ticos , cuja moral : mas pela “ dor do negativo ” , pelo confronto de
118 A FILOSOFí A DF MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 119

interesses , pela viol ê ncia das crises e das revolu ções . Ela joga a seus pés . Ele gostaria de deter-se , de despertar os
n ão é tanto a epopé ia do direito quanto o drama de uma mortos e reunir os vencidos. Mas do para íso sopra uma
guerra civil entre as classes , mesmo que esta n ã o tome tempestade que atinge as suas asas , t ã o forte que o anjo
necessariamente uma forma militar. Demonstra çã o estrita ¬ n ã o consegue mais fech á - las . Essa tempestade o leva
mente de acordo com o esp írito de Hegel , que Proudhon incessantemente para o futuro , ao qual ele volta as costas ,,

e outros porta -vozes do reformismo tinham , nesse ponto, enquanto que , no cé u diante dele , se acumulam as ru ínas .
compreendido muito mal . Essa tempestade é - o que chamamos progresso . ”
Demonstra çã o que , por esse pró prio fato, só pode A hist ó ria n ã o avan ç a somente “ pelo lado mau ” , mas
relan çar a nossa quest ã o. Nada est á mais de acordo, do lado mau , o da domina çã o e da ru ína . Texto em que
definitivamente , com a id é ia de um resultado garantido , se deve entender, alé m do “ marxismo vulgar ” e alé m de
do que uma dialética do “ lado mau ” entendida nesse Marx , uma terr ível ironia dirigida principalmente contra
sentido . De fato, ela tem , precisamen , . , como fun çã o — essa passagem da Introdu çã o ao curso de Hegel sobre a
e é realmente o caso de Hegel
racional do desenvolvimento

hist ó rico
mostrar que o fim
(que é chamado
filosofia da hist ó ria , que descreve a ru í na das civiliza ções
passadas como a condiçã o do progresso do esp í rito , isto
resolu çã o , reconcilia çã o ou s í ntese ) é suficientemente - é , da conservaçã o do que havia de universal em seu
poderoso para passar pelo seu contrário: a “ desrazâ o" “ princ í pio ” . 20 A ideologia prolet á ria seria fundada sobre a
(viol ê ncia , paixã o , misé ria ) , e nesse sentido para rcduzi - lo ilusã o mort ífera de retomar e prolongar esse movimento ,
ou absorv ê rlo , At é se poderia dizer, circularmente , que é que sempre serviu , n ã o para libertar os explorados , mas
a capacidade que ela demonstra para converter a guerra , para instituir a ordem e a lei . Resta ent ã o , como ú nica
o sofrimento e a injustiça em fatores de paz , prosperidade perspectiva de salva çã o, a esperan ça de uma cesura ou
e justiça , que “ prova ” o seu poder e a sua universalidade . interrupção imprevisível do tempo, de uma “ parada mes ¬
Se podemos hoje ler em Hegel outra coisa que n ã o seja ' si â nica do devir ” , que faria “ extrair, por detona çã o , uma
uma longa “ teodicé ia ” (segundo a sua pr ó pria expressã o, j é poca determinada do curso da hist ó ria ” ( tese XVII ) , e
tomada de Leibniz ) , isto é , uma demonstra çã o de que o ofereceria aos dominados , aos “ vencidos” de toda a his ¬
“ mal ” na hist ó ria é sempre particular, relativo , ao passo t ó ria , a possibilidade imprová vel de dar um sentido à s
que o fim positivo que ele prepara é universal e absoluto , suas lutas dispersas e obscuras . Perspectiva que se diz
n ã o o devemos à maneira pela qual ele foi transformado ainda revolucion á ria , mas nã o dialé tica , e primeiramente
por Marx? E mais ainda , à maneira pela qual essa trans ¬ no sentido em que ela invalida radicalmente a idé ia de
forma çã o marxista da dialética encontrou historicamente prá tica , ou de libera çã o como transforma ção , pelo seu
os seus pró prios limites? pró prio trabalho .
No ponto extremo do movimento cr ítico encontramos , Existe portanto , para uma dial é tica marxista , um cami ¬

nho possí vel entre o “ lado mau ” de Hegel e o “ lado mau ”


ent ã o , a formula çã o de Benjamin nas Teses sobre a filosofia
da história , j á citadas ( tese IX ) : “ Esse é o aspecto que de Benjamin ? Se esse foi o caso historicamente , pelo menos
deve ter necessariamente o anjo da hist ó ria . Ele tem o no sentido em que , sem Marx ( e sem a diferen ça de Marx
rosto voltado para o passado . Onde uma cadeia de
em rela çã o a Hegel ) , tal crítica de Hegel nunca teria
acontecimentos se apresenta a n ós , ele vê uma só catá s¬ ocorrido , trata -se de procurar até que ponto uma expressã o
teó rica corresponde realmente a essa singularidade hist ó-
trofe , que n ã o p á ra de empilhar ru ínas sobre ru í nas , e as
120 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 121

rica . Mas isso n ão pode ser discutido independentemente de que a contradição é inconciliá vel . Tanto mais pol í tico
dos acontecimentos que se entrecruzam com a teoria . porque deve procurar suas “ condi ções reais ” , logo sua
necessidade , em seu contrá rio aparente , a esfera do
trabalho e da vida econ ó mica .
A contradição real (dialética II) Podemos dizer as coisas de outra maneira , usando uma
met áfora matem á tica de que Marx se serviu muito: o que
Marx encontrou pelo menos duas vezes o “ lado mau ” da lhe interessa no curso da histó ria n ão é tanto a forma
historia , como mencionei acima : em 1848 e em 1871 . Sugeri geral da curva , a “ integral ” , mas a diferencial, o efeito de
que a teoria . do Capital era também, em certo sentido , “ acelera çã o ” , logo a rela çã o de for ças que atua a cada
uma resposta longamente adiada , formidavelmente desen ¬ momento e determina o sentido da progressã o . É , por
volvida , mas inacabada , ao fracasso das revolu ções de conseguinte , o modo pelo qual , individual e sobretudo
1848 , à “ decomposiçã o ” do proletariado que devia “ de ¬ coletivamente , a “ força de trabalho ” resiste e tendencial-
compor ” a sociedade burguesa . Assim sendo , deveríamos mente escapa ao status de pura mercadoria que lhe imp õe
nos surpreender por poder ler nessa resposta também a a l ógica do capital . O termo ideal de uma tal lógica seria
cr ítica interna da idé ia de progresso? o que Marx chama a submissã o ou “ subsun çã o ” real da
No Capital , Marx nã o usa praticamente nunca esse forç a de trabalho , por oposiçã o a uma subsun çã o simples¬
termo ( Fortschritt , Fortgang ) a nã o ser para opor a ele , mente formal , limitada ao contrato de trabalho : 22 uma
no esp í rito de Fourier , o quadro das devasta ções cíclicas exist ê ncia para os trabalhadores integralmente determinada
do capitalismo (o “ dispê ndio orgi á stico ” dos recursos e pelas necessidades do capital (qualifica çã o profissional ou
das vidas humanas , ao qual , na prá tica , corresponde a sua
desqualifica çã o , desemprego ou excesso de trabalho , aus¬
“ racionalidade ” ) . Logo , de um modo iró nico-, enquanto a
teridade ou consumo for çado , segundo o caso ). Mas esse
contradiçã o nã o se decidir entre a “ socializa çã o das for ç as
limite é historicamente inacessível . Em outros termos, a
produtivas ” e a “ dessocializa çã o ” dos homens , o discurso
an á lise de Marx tende a destacar o elemento de impossi ¬
do progresso que a filosofia e a economia pol ítica bur ¬

guesas fazem n ã o poderia ser mais do que sarcasmo e bilidade material contido no modo de produ çã o capitalista :
mistifica çã o . Mas a contradiçã o só pode ser resolvida , ou o m ínimo incompressível com o qual se choca o seu
simplesmente reduzida , pela inversã o da tendê ncia, pela “ totalitarismo ” pr ó prio , e do qual procede , em retorno , a
afirma çã o de uma conlratendência. prá tica revolucioná ria do trabalhador coletivo .
Aqui se revela o segundo aspecto: o que interessa a O manifesto já dizia que a luta dos trabalhadores
Marx n ã o é o progresso , mas o (processõ) ou o processus, começa "com a sua pr ó pria exist ê ncia ” . E O capital mostra
do qual ele faz o conceito dial éíictxqpor excelê ncia . 21 O que o primeiro momento dessa luta é a existê ncia de um
progresso n ã o é dado , n ã o é programado , s ó pode resultar coletivo de trabalhadores , seja na f á brica ou na empresa ,
do desenvolvimento dos antagonismos que constituem o seja fora dela , na cidade , na pol ítica ( mas na realidade
processo , e por conseguinte ele é sempre relativo a eles. sempre entre esses dois espa ços , passando de urn para
Ora , o processo n ã o é nem um conceito moral ( espiritua ¬ outro ) . A “ forma sal á rio ” tem como pressuposto tratar
lista ) , nem um conceito econ ó mico ( naturalista ), é um exclusivamente os trabalhadores como pessoas individuais ,
conceito l ógico e pol ítico Tanto mais l ógico porque é para poder vender e comprar sua força de trabalho como
constru ído , para al é m de Hegel , sobre o retorno à id é ia uma coisa de mais ou menos valor, para poder “ disciplin á -
122 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 123

los ” e “ responsabilizá - los ” . Mas o coletivo é uma condiçã o tend ê ncia capitalista na necessidade , qualquer que seja o
sempre ressurgente da pr ó pria produ çã o . Na realidade, hã momento em que ela interv é m .
sempre dois coletivos de trabalhadores , imbricados um no As três quest õ es da contradi çã o, da temporalidade e
outro , formados pelos mesmos indiv íduos ( ou quase ) , e da socializaçã o s ã o portanto rigorosamente indissoci á veis .
no entanto incompatíveis. Um coletivo- capital e um cole ¬ Vê-se bem o que est á em jogo: é o que a tradiçã o filosófica
tivo- proletariado . Sem o coletivo proletá rio , que nasce da a partir de Dilthey - e Heidegger chama uma teoria da
resist ê ncia à coletiviza çã o capitalista , o pr ó prio “ autocrata ” historicidade. Entendamos com isso que os problemas de
capitalista n ã o poderia existir. finalidade ou de sentido , que se apresentam no n ível do
curso da história da humanidade imaginariamente consi ¬
derada como uma totalidade , reunida em uma só “ Id é ia ”
Em direção à historicidade ou em um só grande relato , sã o substitu ídos por problemas
de causalidade ou de a çã o recíproca das “ forças da
Esse é o segundo sentido da “ dial é tica ” de Marx , que histó ria ” , que se apresentam a cada momento , a cada
esclarece o primeiro. O modo de produ çã o capitalista — presente. O que faz a importâ ncia de Marx , a esse respeito,
cuja “ base é revolucion á ria ” també m — não pode nã o
mudar. A quest ã o é saber em cjue sentido . Seu movimento ,
é que , pela primeira vez certamente , desde o conatus
( “ esforço” ) de Spinoza , a quest ã o da historicidade ( ou da
diz Marx , é uma imposssibilidade sempre diferida . N ã o “ diferencial ” do movimento , da instabilidade e da tensã o
uma impossibilidade moral ou uma “ contradiçã o nos ter¬ do presente em direçã o à sua pró pria transformaçã o) é
mos , mas o que se pode chamar uma contradiçã o real, proposta no elemento da pr ã tictf e n ã o no da gSflscf èngfes.
igualmente distinta de uma contradiçã o puramente formal a partir da produ çã o e das condi ções de produ Çãp n ã o
(dos termos abstratos que se excluem em virtude de sua da representa çã o e da vid á do ésp í rito. Ora , ocorre^ que ,
definiçã o ) e de uma simples oposiçã o real (das forças ao contrá rio dos gritos de alarme laríçados preventivamente
exteriores entre si , que agem em sentido contrá rio , e cuja pelo idealismo , essa mudan ça de dire çã o nã o é uma
resultante, o ponto de equil í brio, se pode calcular) . 23 Toda redu çã o , ainda menos uma substituiçã o da causalidade
a originalidade da dial é tica marxista est á , ent ã o , na pos ¬ histó rica pelo determinismo natural . De novo , como nas
sibilidade de pensar sem concessã o que a contradiçã o nã o Teses sobre Feuerbach , escapamos da alternativa do subje ¬

tivismo e do “ antigo materialismo” : mas , desta vez , é


é uma aparência , mesmo “ no fim das contas” , ou “ ao
francamente para o lado do materialismo . De qualquer
infinito ” . Ela n ã o é nem mesmo uma “ ast ú cia ” da natureza ,
forma , para a iman ê ncia . A contradiçã o é , nesse aspecto ,
como a insociável sociabilidade kantiana , ou da raz ã o ,
um operador mais decisivo do que a prã xis, que , entre ¬
como a alienaçã o hegeliana . A for ça de trabalho nunca
tanto, ela inclui .
pá ra de se transformar em mercadoria , entrando assim na Mas a questão de saber como uma concepçã o da
forma do coletivo capitalista ( que , no sentido forte , é o historicidade como “ contradiçã o real ” , que se desenvolve
pró prio capital , como “ rela çã o social ” ) . Entretanto, esse entre tend ê ncias contempor â neas , poderia coexistir com
processo comporta um res íduo incoercível , no fim , do lado uma representa çã o da “ totalidade da histó ria ” , feita de
dos indiv íduos e do lado do coletivo ( mais uma vez , essa etapas de evolu çã o e de sucessivas revolu çõ es , n ã o ficava
oposiçã o nos parece nã o- pertinente ) . E é essa impossibi ¬
de modo algum eliminada com isso. Ela até se tornava
lidade material que inscreve a mudan ça de direçã o da mais conflituada . Ora , em 1871 , Marx encontrou outra vez
124 A FILOSOFIA DE MARX
IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 125
o “ lado mau ” da historia , e , como mencionei, o que
resultou praticamente disso foi a interrupçã o de seu unificou no congresso de Gotha , por iniciativa dos discí¬
projeto. A partir desse momento, não parou de trabalhar, pulos de Marx ( Bebei , Liebknecht). Marx leu o seu projeto
mas estava certo de n ã o poder “ acabar ” , de n ã o chegar a de programa , inspirado no “ socialismo cient ífico” , e des¬
uma “ conclusão” . Não haverá conclusã o. cobriu que este , constru ído em torno da idé ia de um
Entretanto , vale a pena examinar as retificações a que “ Estado popular ” ( Volksstaat) , combinava , na verdade , uma
essa situa ção induz. Conhecemos pelo menos duas . Uma utopia da redistribuição integral do produto aos trabalha ¬
foi determinada conjuntamente pelo ataque de Bakunin dores com uma “ religiã o do Estado” , que nã o exclu ía nem
contra a “ ditadura marxista ” na Internacional e pela dis mesmo o nacionalismo. Ora , ele acabava de ser atacado
cord â ncia de Marx em rela çã o ao projeto de programa
¬
violentamente por Bakunin , que denunciava no marxismo
redigido em 1875 por Liebknecht e Bebei , para o Congresso um duplo projeto de ditadura : ditadura “ cient ífica ” dos
de Unifica ção dos Socialistas Alemã es. Ela desemboca dirigentes sobre os militantes ( o partido seguindo o modelo
naquilo que se chamou mais tarde , no marxismo , quest ã o do Estado que pretendia combater), ditadura “ social” dos
da “ transi çã o ” . A outra , logo depois, decorreu da necessi ¬ oper á rios sobre as outras classes exploradas (especialmen ¬
dade de responder a teóricos do populismo e do socialismo te os camponeses), e por conseguinte das na ções indus ¬
russo que o interrogavam sobre o futuro da “ comuna rural ” . triais sobre as na ções agrá rias como a R ú ssia . Marx estava
Ela levanta a quest ã o do “ desenvolvimento n ã o-capitalista ” . portanto acuado entre os seus adversá rios e os seus
Nenhuma das duas questionou o esquema de causalidade . partid á rios , como entre o martelo e a bigorna ... 24 No
Mas ambas fizeram vacilar a rela çã o de Marx e de sua mesmo momento em que o marxismo se apresentava como
dialé tica com a representa ção do tempo. o meio, para a classe revolucion á ria , de escapar ao dilema
sempre renascente de uma simples incorpora çã o à ala
“ democrá tica ” da pol ítica burguesa e de um anarquismo
(ou anarco-sindicalismo ) antipol ítico , ressurgia o problema
A verdade do economismo (dialé tica III )
de saber se existia uma pol ítica marxista propriamente
Nos anos que se seguiram à repressã o da Comuna e à dita .
dissolu çã o da Internacional ( pronunciada em 1876, mas Ora , de certo modo Marx respondera antecipadamente
praticamente decidida no congresso de Haia em 1872 ) , a essa quest ã o . N ã o poderia haver outra pol í tica marxista
ficou claro que a “ pol ítica prolet á ria ” , de que Marx senã o aquela que surge do pró prio movimento histórico,
pretendia ser o porta - voz e à qual , com Capital , ele pensava e ele tomou como exemplo a democracia direta inventada
dar um fundamento cient ífico, n ã o tinha nenhum lugar pela Comuna de Paris , essa “ forma de governo , enfim
garantido na configura çã o ideológica do “ movimento ope ¬ encontrada , da classe oper á ria ” ( A guerra civil na França) ,
rá rio” , ou do “ movimento revolucion á rio” . As tendê ncias da qual ele fez o n ú cleo de uma nova defini çã o da ditadura
do proletariado. Mas essa resposta n ã o permitia compreen ¬
dominantes eram reformistas e sindicalistas, parlamentares
ou antiparlamentares. O mais significativo a esse respeito der por que tantos oper á rios , tantos militantes , seguiam
foi a forma çã o dos partidos “ marxistas” , dos quais o outras ideologias ou outros “ sistemas ” , por que era neces ¬
sá ria uma organização ou uma instituiçã o para sua edu ¬
principal era a social-democracia alemã . Depois da morte
de Lassalle ( o velho rival de Marx , como este ex-dirigente ca çã o e sua disciplina , diante do Estado burgu ês . De
da revolu çã o de 1848 ) e a constituiçã o do Reich , ela se qualquer forma , estamos longe da “ classe universal ” , por ¬
tadora da imin ê ncia do comunismo.. .
126 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO I; PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTó RIA? 127

O enfraquecimento do Estado lucionista . N ã o creio que tenha sido isso que o pró prio
Marx tinha em vista . A id é ia de um “ modo de produ çã o
A essa quest ã o , as Randglossen sobre Bakunin e sobre o socialista ” é perfeitamente contradit ó ria com a sua repre ¬
programa de Gotha não responderam diretamente . Mas senta çã o do comunismo como alternativa para o capita ¬
elas deram uma resposta indireta , introduzindo a noçã o lismo , cujas condi çõ es j á seriam preparadas pelo pr ó prio
de transiçã o: “ Entre a sociedade capitalista e a sociedade capitalismo. Quanto à id é ia de - um “ Estado socialista ” ou
comunista situa-se o período de transforma çã o revolucio ¬ “ Estado do povo inteiro ” , pós- revolucion á rio, ela reproduz
n á ria daquela nesta . A isso corresponde um período de mais ou menos aquilo que ele criticava em Bebei e em
26
transi çã o pol ítica , em que o Estado só poderia ser a Liebknecht , como bem mostrou Henri Lefebvre . Em
25
ditadura revolucion á ria do proletariado. ” Pouco antes, contrapartida , é claro que o espa ço inserido “ entre a
esboçou-se a distinção entre “ as duas fases da sociedade sociedade capitalista e a sociedade comunista ” , dèscrito
comunista ” , uma em que ainda reinavam a troca de aqui em termos de período ou de fase , é o espa ço pró prio
mercadorias e a forma sal á rio como princípio de organi ¬
da política . Todos esses termos nã o traduzem mais do que
za ção do trabalho social , a outra em que “ terá desaparecido a volta da prática revolucionária, desta vez como uma
a humilhante subordina çã o dos indiv íduos à divisão do atividade organizada , no tempo da evolu çã o. Como se esse
trabalho ” e em que “ o trabalho n ã o ser á mais apenas um tempo devesse abrir-se ou estender-se para dar lugar,
meio de viver, mas se tornará ele pró prio a primeira “ entre ” o presente e o futuro , a uma antecipaçã o prática
necessidade vital ” , o que permitiria “ superar definitivamen
¬
da “ sociedade sem classe ” , nas condições materiais da
te o horizonte limitado do direito burgu ês ” e regular as antiga (o que Lê nin , com uma fórmula logicamente reve ¬

rela çõ es sociais segundo o princ ípio “ De cada um segundo ladora , chamaria um “ Estado / n ão-Estado” , marcando cla ¬

suas capacidades , a cada um segundo suas necessidades” . ramente a sua natureza de pergunta e n ã o de resposta ).
O conjunto dessas indica ções é uma descri çã o antecipada Igualmente distante da id é ia de imin ê ncia e da id é ia de
do enfraquecimento do Estado na transi çã o para o comu ¬
uma matura çã o progressiva , a “ transiçã o ” vislumbrada aqui
nismo , ou melhor, uma antecipa çã o do momento hist órico por Marx é uma figura pol ítica da “ n à o-contemporaneida -
(qualquer que seja a sua dura çã o) no qual se desenvolveria de ” do tempo hist ó rico consigo mesmo; mas que perma ¬
uma pol ítica de massa tendo como conte ú do o enfraque ¬ nece inscrita por ele no provisório.
cimento do Estado.
A tradição do marxismo ortodoxo , e especialmente a
do marxismo de Estado , nos pa íses socialistas , a partir do A comuna russa
fim dos anos 20 , tirou dessas indica ções o embrião de
uma teoria das etapas ou dos est ágios do “ per íodo de Uma abertura compará vel pode ser lida na correspond ê ncia
transi çã o” para a sociedade “ sem classes” , que culminou mantida por Marx , alguns anos depois , com os repre ¬

na definiçã o do socialismo , distinto do comunismo, como sentantes do populismo e do socialismo russo . Mal acabara
um “ modo de produ çã o ” espec ífico, e que naufragou de se defender contra Bakunin de preparar uma hegemonia
posteriormente com o pró prio sistema de Estados socia ¬ dos pa íses industrialmente desenvolvidos sobre os pa íses
listas . lndependentemente das suas fun ções de legitima çã o “ subdesenvolvidos ” ( lembremos que ele escrevera no pre ¬

do poder ( que Marx teria chamado “ apolog é ticas ” ) , essa f á cio da primeira ediçã o do Capital que os primeiros
utiliza çã o se inscrevia naturalmente em um esquema evo- “ mostram a imagem de seu pró prio futuro ” aos segundos ) ,

/
128 A FILOSOFíA DE MARX IV / TEMPO I: PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFí A DA HISTóRIA? 129

ele é solicitado a decidir o debate que opõe duas categorias -


interrompido, “ Para salvar a comuna russa , é necessá ria
de leitores russos do Capital aqueles que , da lei tendencial
,
uma revolu çã o russa . ”
(•expropria çã o dos pequenos propriet á rios pelo capital , Enfim , em terceiro lugar, a forma comunitá ria ( “ agru ¬
seguida da expropriação do capital pelos trabalhadores) pamento social de homens livres , n ão ligados por la ços
apresentada por ele como uma “ fatalidade histó rica ” , tiram de sangue ” ), que foi preservada por uma evolu çã o singular
a conclusão de que o desenvolvimento do capitalismo na ( “ situa çã o ú nica , sem precedentes na hist ória ” ), é um
R ú ssia é uma condiçã o pré via para o socialismo ; e aqueles arcaísmo-, mas esse arca ísmo pode servir para a “ regene ¬
que vêem na vitalidade da “ comuna rural ” cooperativa o ra ção da R ú ssia ” , isto é , para a constru çã o de uma
embriã o do que se chamaria hoje um “ desenvolvimento sociedade comunista , evitando os “ antagonismos ” , “ crises ” ,
n ão-capitalista ” , prefigurando o comunismo . Marx respon ¬
“ conflitos ” e “ desastres ” que marcaram o desenvolvimento
de uma . primeira vez em 1877.27 Em 1881 , é de novo do capitalismo no Ocidente , considerando-se o fato de
solicitado por Vera Zassoulitch , uma das dirigentes do que ela é contemporâ nea ( termo em que Marx insiste ) das
grupo Liberta ção do Trabalho. Conhecemos os quatro formas mais desenvolvidas da produ ção capitalista , cujas
rascunhos de sua resposta , da qual apenas uma versã o t écnicas ela pode adotar no “ meio ” ambiente .
28
muito sucinta foi enviada à sua destinat á ria . O que é O que é proposto nesses textos, portanto, é a idéia
impressionante é que essa idéia
perfeitamente clara . N ã o menos
— exata ou nã o
impressionante é que
—Marx
é de uma multiplicidade concreta de vias de desenvolvimen ¬

to histó rico. Mas essa id éia é indissociá vel da hipótese


tem a maior dificuldade , n ã o para formul á - la , mas para mats abstrata segundo a qual existem na hist ó ria de
assumi -la 29 diferentes forma ções sociais uma multiplicidade de “ tem
Primeiramente , a lei tendencial exposta no Capital nã o
¬

pos” contempor â neos uns dos outros , dos quais alguns se


se aplica independentemente das circunst â ncias histó ricas: apresentam como uma progressã o cont í nua , enquanto
“ E preciso descer da teoria pura para a realidade russa outros operam o curto-circuito do mais antigo e do mais
para discuti- la ( ...] os que acreditam na necessidade his ¬ recente . Essa “ sobredetermina çà o ” , como dir á depois
tó rica da dissolu çã o da propriedade comunal na R ú ssia
Althusser, é a pró pria forma revestida . pela singularidade
n ã o podem , em nenhum caso, provar essa necessidade
da hist ó ria . Ela n ã o segue um plano preexistente , mas
pela minha exposiçã o da marcha fatal das coisas na Europa
resulta da maneira pela qual unidades histórico-políticas
ocidental . Pelo contrá rio , eles teriam que apresentar argu ¬
mentos novos e absolutamente independentes do desen ¬ distintas , mergulhadas em um mesmo “ meio ” ( ou coexis¬
volvimento feito por mim . ” tindo em um mesmo “ presente ” ), reagem às tendências do
Em segundo lugar, a comuna rural ( institu ída pelo modo de produ çã o .
governo tzarista depois da aboliçã o da servid ã o em 1861 )
cont é m em seu pr ó prio seio uma contradiçã o latente ( um
“ dualismo í ntimo” ) entre a economia n ã o - mercantil e a Antievolucionismo ?
produ çã o para o mercado , que tem todas as possibilidades
de ser agravada e explorada pelo Estado e pelo sistema Assim, através de uma surpreendente reviravolta da situa ¬
capitalista , e levar á à sua dissolu çã o , isto é , à transforma çã o çã o , sob a pressã o de uma quest ã o vinda do exterior ( e
de certos camponeses em empresá rios e dos outros em com certeza também das d ú vidas suscitadas nele , quanto
proletariado agr ícola ou industrial , se o processo não for à exatid ão de algumas de suas pr óprias formula ções, pela
IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 131
130 A FILOSOFIA DE MARX

aplica çã o que lhe prop õem ent ã o os “ marxistas ” ) , o eco- Engels


nomismo de Marx d á à luz o seu contrá rio : um conjunto
de hip ó teses antievolucionistas. Uma ironia da teoria , é A colabora ção de Friedrich Engels (1820-1885) com Marx durante
quarenta anos impede que se façam distinções maniqueístas (o “ bom
como se pode chamar o terceiro tempo da dialé tica em dialético” Marx e o “ mau materialista ” Engels); mas nã o impede nem
Marx . Como n ã o ver que h á uma convergê ncia latente de reconhecer a sua originalidade intelectual , nem de avaliar a trans¬
entre as respostas a Bakunin e a Bebei , e a resposta a forma çã o por ele exercida sobre a problemática marxista . Os momentos
Vera Zassoulitch ? Uma é como que a rec íproca das outras : fortes de sua intervençã o situam -se em 1844 , quando publica A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra, onde se exprime uma versã o muito
aqui , o novo deve sempre abrir o caminho nas “ condi ções ”
mais completa do que em Marx , na mesma época , da cr ítica ao
do antigo , depois que uma ruptura pol ítica interveio ; ali , assalariainento como aliena çã o da essê ncia humana , e em outros
o antigo deve saltar por cima do mais recente , para utilizar aspectos depois de 1875. Na realidade, foi Engels quem decidiu dar
os seus resultados em “ contracorrente ” . uma forma sistemá tica ao “ materialismo hist órico ” , e , com isso, articular
Como n ã o ver també m que essas propostas em parte a estrat égia revolucioná ria , as an á lises de conjuntura e a cr ítica da
economia pol ítica . O aspecto mais interessante para n ós é a retomada
privadas , quase clandestinas , e meio rasuradas , sã o impli ¬ do conceito de ideologia, a partir de Anti-Dühring (1878) . Engels d á
citamente contradit ó rias , sen ã o com as an á lises da contra ¬ primeiramente uma definição epistemológica , centrada sobre a aparê ncia
di çã o real no Capital, ao menos com certos termos de que de “ verdades eternas” das noções de direito e de moral . Nos esboços
Marx se servira vinte anos antes , no pref á cio da Contri ¬ do mesmo per íodo , publicados depois (1935 ) sob o t ítulo “ Dialética e
natureza ” (cf . Engels , Dialética da natureza, Sã o , Paulo , Paz e Terra,
buição, quando ele apresentou o seu esquema de causa ¬
1976), essa definiçã o chega praticamente ao oposto das teses da Ideologia
lidade , em estreita associa çã o com a imagem de uma linha -
alemã , a ideologia , longe de n ã o ter “ hist ó ria própria ” , se insere em
ú nica de desenvolvimento da hist ó ria universal ? “ Uma uma história do pensamento, cujo fio condutor é a contradiçã o do
forma çã o social nunca desaparece antes que estejam de ¬ idealismo e do materialismo , que é sobredeterminada pela oposiçã o
entre o modo de pensamento “ metaf ísico ” (o que Hegel chamara “ o
senvolvidas todas as forças produtivas que ela é bastante entendimento” ) e o modo de pensamento “ dialético” (o que Hegel
ampla para conter [ ...]. É por isso que a humanidade só chamara “ a razã o” ). Evidentemente , trata -se , face à filosofia universitá ria ,
se prop õe problemas que pode resolver escreveu ele de dotar o marxismo de uma garantia de valor cient ífico. Mas esse
projeto ficou suspenso em razã o de suas aporias intr í nsecas e porque
ent ã o . E ainda : “ [ . . . 1 mas isso é muito pouco para o meu
a questã o principal nã o era essa . Ela reside no enigma da ideologia
cr ítico . Ele tem , absolutamente , que metamorfosear o meu
esbo ço hist ó rico da g é nese do capitalismo na Europa
proletária, ou da concepção do mundo comunista — termo preferido
por Engels porque permite contornar a dificuldade de uma noçã o de
ocidental em uma teoria hist ó rico- filosófica da marcha “ ideologia materialista ” . Os ú ltimos textos ( a partir de Ludwig Feuerbach
geral , fatalmente imposta a todos os povos , quaisquer que e o fim da filosofia clássica alemã, 1888, at é a Contribuição à história
do cristianismo primitivo, de 1894 -1895 e o artigo “ Socialismo de
sejam as circunst â ncias hist ó ricas em que eles se encon ¬ juristas ” , escrito com Kautsky em 1886) discutem ao mesmo tempo dois
trem , para chegar , em ú ltimo lugar, a essa forma çã o aspectos do problema : a sucessã o das “ concepções dominantes do
econ ó mica que garante , com o maior impulso dos poderes mundo ” , isto é , a passagem de um pensamento religioso para um
pensamento leigo (essencialmcnte jur ídico), e da í para uma visã o pol ítica
produtivos do trabalho social , o desenvolvimento mais do mundo fundada sobre a luta de classes , e o mecanismo de forma çã o
integral do homem . Mas eu lhe pe ço desculpas . ( Isso é das “ crenças ” coletivas na rela çã o das massas com o Estado. O
para mim , ao mesmo tempo , muita honra e muita vergo¬ materialismo histórico encontra -se assim dotado de um objeto e de um
nha . ) I . . . ] acontecimentos de uma analogia impressionante , desfecho.
mas que ocorreram em meios hist ó ricos diferentes , produ ¬
ziram esses resultados absolutamente desiguais [ o desen -
132 A FILOSOFí A DE MARX
IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 133
Lê nin fil ósofo ? volvimento ou nà o de assalariamento ] . Estudando cada
A partir do momento cm que o “ materialismo dialético” foi identificado
uma dessas evolu ções à parte , e comparando -as depois ,
com um “ marxismo-leninismo” (enquanto o corpo embalsamado do encontrar -se-á facilmente a chave desse fen ô meno , mas
“ fundador ” era depositado no mausolé u da Pra ça Vermelha de Moscou ), nunca se chegar á a isso com a chave falsa de uma teoria
o pensamento de Lênin — extra ído dos 47 volumes e suas Oeuvres hist ó rico -filosófica geral , cuja suprema virtude consiste em
completes, Ed . de Moscou , em milhares de comentá rios

se tornou
algo que nà o era uma filosofia : uma referê ncia obrigat ória , a ú nica que
ser supra - hist ó rica . ” 30 Assim como n à o h á capitalismo “ em
dava direito à expressã o O movimento é hoje inverso ( um exegeta geral ” , mas unicamente um “ capitalismo histó rico ” , 31 resul ¬
recente considera que se trata de um caso psicopatológico: Dominique tado do encontro e do conflito de m ú ltiplos capitalismos ,
Colas , le Leninismo, Paris , PUF, 1982 ) e ser á preciso muito tempo para assim també m n à o h á hist ó ria universal , apenas historici ¬
que se possa realmente estudar as argumenta ções de Lcnin , em seu
contexto e sua economia .
dades singulares .
No marxismo francês , dois filósofos , opostos em todos os aspectos , Sem d ú vida , n à o podemos evitar a pergunta : essa
analisaram a rela çã o de Lê nin com a filosofia de modo livre . Henri retifica çã o n à o deveria repercutir em outros aspectos do
Lefèbvre ( Pour connattre la pensée de Lénine, Paris, Bordas, 1957, e sua “ materialismo hist ó rico ” ? Antes de tudo, certamente , reper ¬
ediçã o com Norbert Guterman dos Cahiers sur la dialectique de Hegel, cussões sobre o modo pelo qual o pref á cio da Contribuiçã o
Paris , NRF, 1938) baseou -se principalmente nos inéditos de 1915 1916 , - descreveu a “ derrubada da superestrutura ” como a conse -
em que Lê nin procurou , nos filosófos cl á ssicos, sobretudo Hegel , mas q úê ncia mecâ nica da “ mudan ça da base econ ó mica ” . O
também em Clausewitz, os meios de pensar “ dialeticamentc” a guerra
como um processo, no qual continuam a agir as contradições pol íticas
que sã o , efetivamente , o “ meio ” , a “ alternativa ” , o “ dualis ¬
(cf . o vol . 38 das Oeuvres completes ) . Louis Althusser ( Lenine e a filosofia , mo ” , a “ transi çã o pol í tica ” , sen ã o outros tantos conceitos
Lisboa , Estampa , 1974 ) , cujas an á lises seriam prolongadas por Dominique ou met á foras que obrigam a pensar que o Estado e a
Lccourt ( Une crise et son enjeu, Paris , Maspero, 1973), procurou em uma ideologia agem sò bre a economia , e até constituem , em
releitura de Materialismo e empirio criticismo os elementos de uma circunst â ncias dadas , a pr ó pria base sobre a qual agem as
concepçã o “ prá tica ” da filosofia , como tra çado de uma linha de tendencias da “ base ” ? Mas , também certamente , nenhum
demarca çã o entre o materialismo e o idealismo na complexidade das
te ó rico , a partir do momento em que encontrou efetiva ¬
conjunturas intelectuais , em que se determinam mutuamente a ciê ncia
e a pol ítica . mente alguma novidade , pode reformular-se a si mesmo ;
Mas há outros momentos filosóficos em Lê nin , os ma is interessantes ele n à o tem força para isso , ou n à o tem vontade , ou
sendo certa mente : “ tempo ” . . . S à o outros que o fazem . E vale a pena observar
1 ) a reformula ção da id é ia de proletariado “ classe universal ” tentada aqui a “ a çà o inversa da ideologia ” , a verdadeira noçã o do
em Que fazer? ( Sã o Paulo, Itucitec, 1979 ) contra a id é ia de “ esponta ¬ economismo ( isto é , o fato de que as tend ê ncias da
neidade revolucioná ria ” , em termos de direçã o intelectual da revolu çã o
economia s ó se realizam pelo seu contr á rio: as ideologias ,
democr á tica (que deve ser confrontada com a replica de Rosa Luxem ¬
burgo , depois da revolu çã o de 1905: “ Greve de masse , parti et syndicat ” ,
as “ concepções de mundo ” , inclusive a dos prolet á rios ) ,
in Oeuvres /, Paris, Petite collection Maspero , 1976 ); esse é justamente o programa de estudos de Engels , no
2 ) no outro extremo, o trabalho teórico sobre a contradiçã o da lim dos anos 1880 . É verdade que , cem anos depois ,
revolu çã o socialista ( “ Estado” e “ n à o-Estado” , trabalho assalariado e confrontados uma vez mais com o lado mau da histó ria ,
trabalho livre ) que vai da utopia inicial ( “ O Estado e a Revolu çã o ” in os marxistas ainda trabalham nele .
Obras escolhidas, vol . 2, Sã o Paulo , Alfa -Omega , 1965 ) à s ú ltimas
reflexões sobre A cooperação ( 1923, OC , tomo 33 ) - Leia -se també m , a
esse respeito, Robert Linhart , Lénine, les paysans, Taylor, Paris, Seuil ,
1976 , e Moshe Lewin , Le dernier combat de Lénine, Paris, Minuit , 1978.
v/ A CI ê NCIA E A REVOLU çã O

Sei que o leitor que me seguiu at é aqui desejaria fazer


pelo menos duas críticas.
Primeiramente , pensa ele , você partiu de uma exposi ¬
çã o sobre as id é ias de Marx para uma discussã o “ com
Marx ” . Mas sem marcar nitidamente quando se passa de
uma para outra . Assim você facilita as coisas , projetando
“ vozes ” no texto e interpretando os sil ê ncios ou as meias
palavras .
Em segundo lugar , acrescenta , você n ã o expôs verda ¬
deiramente a doutrina de Marx . Aliá s , se já nã o a soubés¬
semos , você n ã o nos diria como ele definiu a luta de
classes , fundou a tese de sua universalidade e de seu papel
de “ motor da hist ó ria ” , demonstrou que a crise do capi ¬
talismo é inevit á vel e que sua ú nica sa ída é o socialismo
(ou o comunismo) etc . E por isso você n ã o nos deu os
meios de saber onde e por que ele se enganou , se alguma
coisa do marxismo pode ser “ salva ” , se ele é compatível
ou incompat ível com a democracia , com a ecologia , com
a bioé tica etc .
Vou começar por essa ú ltima crítica e me declaro
inteiramente culpado . J á que resolvi tratar da maneira pela
qual Marx trabalha na filosofia , e a filosofia em Marx , tive
que afastar n ã o só o ponto de vista do “ sistema ” , mas

135
136 A FILOSOFíA nr. MARX V / A Cr
êNCIA E A REVOLUçãO 137

també m o da doutrina . A filosofia nã o é doutrinal , nã o materialistas-sensualistas ( o que Althusser propôs chamar


consiste em opiniões ou teoremas ou leis sobre a natureza , de humanismo teó rico, e que também poderia ser dito
a consciê ncia , a história . . . E muito menos no enunciado antropologia especulativa ), leva para a problemá tica da
dessas opiniões ou leis mais gerais. Esse ponto é particu ¬ relação social Mas à custa de uma oscilação significativa
.

larmente importante aqui , pois a ideia de uma “ síntese entre um ponto de vista radicalmente negativo, ativista , o
geral ” , em que a luta de classes se articula com a economia , das Teses sobre Feuerbach , em que a relação nada mais é
a antropologia , a pol ítica , a teoria do conhecimento, é do que a atualizaçã o da prá xis, e um ponto de vista
pura e simplesmente o tipo do diamat , oficializado recen ¬ construtivo , positivo, o da Ideologia alemã , onde ele
temente no movimento comunista internacional (e deve-se coincide com a divisã o do trabalho e o comé rcio ou
dizer que , a n ã o ser pelo grau de sutileza , o mesmo ideal
de “ generaliza çã o ” també m reina entre muitos dos críticos
comunica ção — formas de desenvolvimento das forças
produtivas. Poder íamos dizer que, em um caso, a comu ¬
do diamat ) . Essa forma , naturalmente, é interessante do nidade humana (o comunismo) se faz pela evacuaçã o
ponto de vista da histó ria das idé ias e encontra alguns completa do velho mundo; no outro caso, pela plenitude
est í mulos em Marx . Outros, mais deliberados , em Engels do novo que , efetivamente , já está presente. Em um caso,
( que tinha diante de si concorrentes com os quais devia a prá tica revolucion á ria prevalece absolutamente sobre
medir-se , as “ teorias do conhecimento ” , “ filosofias da todo pensamento (a verdade é apenas um de seus mo ¬

natureza ” e “ ciê ncias da cultura ” do ú ltimo terço do séc. mentos) . No outro caso, ela é , se n ã o submetida ao
XIX ) . Ela encontrou alguns de seus mais fervorosos admi ¬
pensamento , pelo menos apresentada em todos os seus
radores entre os neotomistas da Universidade Pontif ícia detalhes por uma ciê ncia da história . Revolu çã o, ciê ncia
( esse incrível epis ódio pode ser lido em Stanislas Breton , ( revolu çã o na ciê ncia , ciê ncia da revolu çã o ): esses sã o os
De Rome à Paris , Itinéraire phdosophique ) . ’
Voltando resolutamente as costas à id éí a de doutrina ,
termos de uma alternativa que , no fundo nunca foi decidida
em Marx . O que quer dizer també m que ele nunca aceitou
resolvi problematizar algumas das quest ões que comandam sacrificar uma à outra : marca de sua intransigê ncia inte ¬
o pensamento de Marx — pois , se é verdade , como ele lectual .
pró prio propunha na Ideologia alem ã ( op . cit . , p . ll ) , que Segundo percurso , enxertado no precedente : aquele
“ as mistificações” “ já estão nas perguntas” , antes de estar que , de uma cr ítica das ilusões e das pretensões da
nas respostas , n ã o se deve supor que isso vale ainda mais “ consciê ncia ” , vai até uma problem á tica da constituiçã o
para as desmistificaçôes , isto é , os conhecimentos? E , para do sujeito , nas formas de sua aliena çã o ( aliena çã o à “ coisa ” ,
isso , retomar a partir do interior o movimento teó rico que , ao fetichismo da circula çã o mercantil , mas també m alie ¬
continuamente , “ desloca as linhas ” dessas perguntas . Es ¬
colhi para isso três percursos que me parecem privilegiados
na çã o à “ pessoa ” , ao fetichismo do processo jurídico
embora eu reconheça que o status do conceito de “ pessoa ”

( outras escolhas certamente eram possí veis ). em Marx é profundamente incerto ) Esse segundo percurso
.

n ã o é linear, mas marcado por uma not á vel bifurca çã o ( o


abandono do termo de ideologia ) . Ele passa por uma sé rie
Três percursos filosó ficos de an á lises : o “ horizonte social ” da consciência ( que é o
das rela ções transindividiiais e de sua limita çã o hist ó rica ) ;
() primeiro , partindo da cr í tica das defini ções cl á ssicas da a diferen ça intelectual , logo a domina çã o fora do pensa ¬

“ essê ncia humana ” tanto espiritualistas-idealistas quanto


, mento e no pensamento ; enfim , a estrutura simbó lica de
138 A FILOSOFí A DE MARX V / A CIê NCIA EA REVOLUçãO 139

equivalência entre os indiv íduos e suas “ propriedades” , diferen ça que O capital é justamente , entre os textos de
que é comum à troca mercantil e ao direito ( privado ) . Marx , aquele em que a tensã o é mais viva entre os dois
Terceiro percurso, enfim : o que vai da inven çã o de pontos de vista . O motivo de tudo isso é evidentemente
um esquema de causalidade ( materialista , no sentido de saber se , como diz uma f ó rmula do livro III do Capital
que derruba o primado da consci ê ncia ou das forças absolutamente de acordo com a tradiçã o idealista da
espirituais na explica çã o da historia , mas para lhes designar filosofia da história , a sociedade sem classes pós- capitalista
um lugar de “ media çã o ” , de instancia subordinada na ser á “ a passagem do reino da necessidade para o reino
eficacia do modo de produ çã o ) em direçã o a uma dialética da liberdade ” , 3 ou se a luta ( atual ) pelo comunismo
da temporalidade, imanente ao jogo das forças da hist ória representa um devir necessá rio da liberdade (isto é , a
( que n ã o sã o “ coisas ” !). H á vá rios esboços dessa dial é tica
inscriçã o de um movimento de libera çã o em suas pró prias
em Marx , sendo o principal o da “ contradi çã o real ” , isto condições materiais).
é , das tendê ncias e contratendê ncias de socializa çã o , ou
das realiza ções antagó nicas do coletivo , envolvidas uma
na outra , que ocupa uma grande parte do Capital. Mas A obra em construção
convém també m — se quisermos assumir alguns riscos na
leitura dos ú ltimos textos de Marx — dar toda a importâ ncia Mas voltemos à primeira obje çã o que me poderia ser feita .
à í d é ia de transiçã o do capitalismo para o comunismo Eu disse que ler Marx como fil ósofo sup õe instalar-se ao
(aqui , o momento da prá tica revolucioná ria efetua um
lado da doutrina , privilegiar os conceitos , e problematizar
regresso espetacular ao espa ço que a “ ciê ncia das forma ¬ o seu movimento de constru çã o , descontru çã o e reconstru ¬
ções sociais ” ocupara inteiramente ) , assim como à id é ia çã o . Mas acredito que se deve dar um passo a mais e ,
de caminhos de desenvolvimento alternativos, singulares, sem temer a incoerê ncia , dizer que essa doutrina nã o exis¬
esboçada por uma cr ítica interna do evolucionismo . te. Na verdade , onde estaria ela , isto é , em que textos ?
A dificuldade desse terceiro percurso reside no fato de “ Ele n ã o teve tempo ” , como se sabe , e é de outra coisa ,
que o surgimento de uma dialética temporal passou pelo que n ã o é uma distin çã o entre um Marx jovem ou velho ,
seu contrá rio , prevalecendo na maioria dos textos gerais fil ósofo ou erudito , que se trata aqui . Tudo o que temos
de Marx ( que sã o , definitivamente , raros ) : a idé ia de uma sã o resumos (o pref á cio da Contribui çã o) , manifestos
história universal da humanidade , a linha de evolu çã o (grandiosos ) e esboços longos e articulados , mas que
ascendente , uniformemente progressiva , dos modos de acabam sempre mudando de rumo e que —
é o caso de
produ çã o e das forma ções sociais . Aqui , é preciso ser
honesto , admitir que esse evolucionismo “ materialista ” e
lembrar — o pró prio Marx nunca publicou ( A ideologia
alemã , Grundrisse ou “ Manuscrito de 1857-1858” ) . N ã o h á
“ dial é tico” é t ã o marxista quanto a an á lise da contradi çã o doutrina , h á apenas fragmentos , an á lises , demonstra ções .
real — e que ele tem at é , historicamente , mais razões para
ser identificado com o marxismo. Era certamente nisso
Quero ser bem claro : Marx n ã o é , em minha opini ã o ,
um “ pós- moderno ” avant la lettre , e n ã o pretendo afirmar
que Marx j á pensava , quando pronunciou o célebre de que o seu pensamento se liga a uma busca deliberada do
chiste , lembrado por Engels em uma carta a Bernstein , de inacabado. Eu gostaria mais de pensar que ele , efetiva ¬
novembro de 1882 : “ O que é certo é que eu n ã o sou mente , nunca teve tempo de construir uma doutrina ,
marxista ” E Gramsci , quando escreve o seu artigo de 1917: porque a retificaçã o andava mais rápido. N ã o só ela
“ A Revolu çã o contra O Capital'* ( outro chiste ) . .., com a antecipava as conclusões , mas també m a critica das con -
140 A FILOSOFí A DE MARX V / A CIêNCIA U A REVOLUçã O 141

clusões . Por mania intelectual? Talvez, mas essa inania a filosofia de Marx est á no curso do» longo e dif ícil processo
estava a servi ço de uma dupla ética: é tica de teó de separa ção do “ marxismo histórico ” , que tem de atra ¬
rico (de
erudito ) e é tica de revolucioná rio. Encontramos novamente vessar os obstá culos acumulados por um sé culo de utili¬
os mesmos termos . Marx era demasiado teó rico para za ção ideológica . Ora , não se trata, para ela , de voltar a
“ alinhavar ” suas conclusõ .
es Demasiado revolucion á rio, seu ponto de partida , mas, ao contrá rio , de aprender com
seja para dobrar-se aos infort ú nios , seja para ignorar as sua própria história e transformar-se durante a travessia .
catástrofes, continuar como se nada tivesse acontecido Quem quer hoje filosofar em Marx nã o vem somente depois
.
Demasiado erudito e demasiado revolucioná rio para en ¬ dele, mas depois do marxismo: não pode contentar-se em
tregar-se à esperan ça do Messias ( embora esta , incon ¬ registrar o corte provocado por Marx , mas deve também
testavelmente , tenha feito parte dos bastidores de seu
pensamento ; mas um teó rico ou um pol ítico n ã o se definem
refletir na ambivalência dos efeitos que ele produziu
entre seus defensores como entre seus adversá rios.

pelo que recalcam , mesmo que sua energia venha em parte
Isso se deve também ao fato de que a filosofia de
disso e que o recalcado
— por exemplo, o religioso
fa ça parte daquilo que, niais seguramente, chegue aos — Marx n ã o pode ser hoje nem uma doutrina de organiza çã o
nem uma filosofia acadêmica ; isso quer dizer que ela deve
ouvidos dos “ disc í pulos ” , dos “ sucessores” ).
Mas ent ã o temos o direito de interpretar as meias se encontrar em uma posi çã o precá ria em rela çã o a toda
palavras de Marx . N ã o de considerar os fragmentos de seu instituiçã o. É certo que o ciclo de um século que eu
discurso como cartas que poder íamos embaralhar indefi ¬ evoquei ( 1890- 1990 ) marca o fim de toda filia çã o m ú tua
nidamente, à vontade Mas de nos apoiarmos em suas entre a filosofia de Marx e uma organiza çã o qualquer,
“ problemá ticas” , em suas “ axiom á ticas ” , em suas “ filoso¬ principalmente um Estado. Isso significa que o marxismo
fias ” , enfim , para levá- las ao extremo ( à s suas contradi ções , n ã o poderá mais funcionar como trabalho de legitima çã o:
limites e aberturas ) . Assim , em uma conjuntura inteiramen é urna condi çã o pelo menos negativa de sua vitalidade ;
¬

te nova , vemos o que podemos fazer com e contra quanto à condi çã o positiva , esta depende da parte que os
Muito do que est á esboçado em Marx est á longe de ter
encontrado a sua forma definitiva . Muito do que parece
ele.
_^ -
conceitos de Marx tomar ã o na cr í tica de outros trabalhos J
le 4egitrma çà o . Mas a dissolu çã o do la ço ( conflitual ) entre
hoje impotente , ou criminoso , ou simplesmente caduco no o marxismo e as organiza ções pol í ticas n ã o facilita , com
“ marxismo ” , j á o era , por assim dizer, antes dele , pois n ã o isso , a sua transforma çã o em filosofia acad ê mica : nem que
constitu ía uma inven çã o do marxismo . Entretanto , mesmo fosse apenas porque a universidade gastaria muito tempo
que ele tivesse apenas enfrentado a quest ã o da alternativa fazendo a an á lise de seu pró prio antimarxismo. Mais uma
para o “ modo de produ çã o dominante ” no próprio seio vez, o positivo e o negativo est ã o suspensos: o pró prio
desse modo ( que é també m , mais do que nunca , um modo futuro de uma filosofia acad ê mica é incerto, e a contri ¬
de circula çã o , um modo de comunica çã o, um modo de buiçã o id é ias vindas de Marx na resolu ção dessa outra
representa çã o ) . . . ele ainda teria utilidade para n ós! crise n ã o pode ser determinada a priori Mas é preciso
fazer hipóteses , e isso me leva à s razões que me fazem
pensar , como eu dizia no come ç o , que Marx será lido e
A favor de e contra Marx estudado em diversos lugares , no séc . XXI . Cada uma
dessas raz ões , como veremos , é també m uma raz ã o para
E obrigat ó rio , no entanto, reconhecer que o marxismo opor-se a Marx ; mas segundo uma rela çã o de “ nega çã o
é
hoje uma filosofia improv á vel . Isso se deve ao fato de que determinada ” , isto é , colhendo em seu pr ó prio texto as
142 A FILOSOFIA DE MARX V / A CIê NCIA E A REVOLUçãO 143
quest ões que só podem ser desenvolvidas tomando , em
pontos precisos, o oposto de suas teses . imanentes , de modo n ão somente retrospectivo , mas prin ¬
Primeiramente, uma pr á tica viva da filosofia é sempre
cipalmente prospectivo , ou , se quisermos, conjectural .
um confronto com a n ã o-filosofia . A histó ria da filosofia Contra os modelos da mudan ç a de direçã o e da evolu çã o
é feita- 4e- renova ções tanto mais significativas quanto mais linear , sucessivamente adotados por Marx e periodicamente
J indigesta para ela é a exterioridade com a qual ela se reencontrados por seus sucessores , é preciso liberar aqui
a terceira noçã o que , pouco a pouco , foi se tornando clara
mede . O deslocamento que Marx impôs à s categorias da
para ele: a da tend ência e de sua contradiçã o interna .
"''dial é tica é um dos exemplos mais claros dessa “ migra çã o ”
Em terceiro lugar, uma filosofia crítica n ã o é somente
do pensamento filosófico , que o leva a reconstituir a
pr ó pria forma de seu discurso a partir de seu outro . Mas
uma reflexã o sobre o inesperado que a histó ria apresenta ;
é preciso que ela pense a sua pró pria determina çã o como
esse deslocamento , por mais resolutamente que tenha sido
atividade intelectual ( isto é , que ela seja , segundo uma
empreendido , n ã o est á acabado, nem est á próximo de
f ó rmula muito antiga , “ pensamento do pensamento” ou
sê - lo , pois a terra estrangeira que deve ser abordada , a
“ idé ia da id é ia ” ) . A esse respeito , Marx est á na situa çã o
hist ória , muda incessantemente de configura çã o . Digamos
mais inst á vel poss ível , em raz ã o da teoriza çã o da ideologia
que a humanidade n ã o pode abandonar um problema que
que ele esbo çou . Eu disse que a filosofia n ã o lhe perdoava
ela ainda n ã o resolveu .
esse conceito , ou dificilmente o fazia , o 'que faz dele como
Em segundo lugar, a historicidade , pois é dela que se
trata , é uma das quest õ es mais abertas da atualidade . Isso
-
que um mal estar permanente e à s vezes declarado ( um
bom exemplo recente é o livro de Paul Ricoeur : Lectures
se deve , entre outras coisas , ao fato de que a universali ¬
on Ideology and Utopia) . 4 É que a ideologia designa para
za çã o da rela çã o social anunciada pelas filosofias da a filosofia o seu pró prio elemento de formaçã o , n ã o só
histó ria é doravante um fato consumado: n ão h á mais do como um “ impensado ” interior , mas també m como uma
que um só espa ço das técnicas e da pol ítica , da comuni ¬ rela çã o com os interesses sociais e com a pró pria diferen ça
ca çã o e das rela ções de poder. Mas essa universaliza çã o intelectual , para sempre irredut ível a uma simples oposiçã o
n ã o é nem uma humaniza çã o nem uma racionaliza çã o; ela entre a razã o e a desraz ã o . A ideologia é , para a filosofia ,
coincide com exclusões e cisõ es mais violentas do que o nome materialista de sua pr ó pria finitude . Entretanto , a
anteriormente . Se deixarmos de lado os discursos morais, mais flagrante das incapacidades do marxismo consistiu
que op õem a essa situa çã o a reformula çã o de princípios precisamente na tarefa cega que representava para ele o
jur ídicos e religiosos , h á , ao que parece , apenas duas seu pró prio funcionamento ideol ógico , a sua pró pria
possibilidades : voltar à id é ia da “ guerra de cada um contra idealiza çã o do “ sentido da hist ó ria ” e sua pr ó pria trans ¬
cada um ” (de que falava Hobbes ), que apela para a forma çã o em religi ã o secular de massas , de partidos e de
edifica çã o de uma potê ncia exterior de coer çã o , ou mer ¬ Estados . Vimos que pelo menos uma das causas dessa
gulhar a historicidade no elemento da natureza , o que situa çã o est á ligada ao modo pelo qual Marx opôs , na
parece desenhar-se na renova çã o atual das filosofias da juventude , a ideologia à pr á tica revolucion á ria do prole ¬
vida . Mais uma terceira , cuja forma , precisamente , Marx tariado , erigindo este , ao mesmo tempo , em um absoluto .
esbo çou : pensar a transforma çã o das instituiçõ es histó ricas É por isso que devemos aqui ocupar ao mesmo tempo duas
( ou melhor : a “ transforma çã o da transforma çã o ” , logo a
posições antit é ticas: a filosofia ser á “ marxista ” enquanto ,
alterternativa para as transformações imediatamente obser ¬ para ela , a quest ã o da verdade atuar na an á lise das ficções
vá veis) , a partir das rela ções de forças que lhes sã o cie universalidade que ela faz da autonomia ; mas ela deve
144 A FIUXSOI IA DE MARX
' V / A CI ê NCIA E A REVOLUçãO 145

ser primeiramente “ marxista ” contra Marx , fazer da dene ¬ referê ncia constantemente necessá ria . Justamente porque
ga çã o da ideologia em Marx o primeiro objeto de sua ela é a expressã o dessa dupla recusa do subjetivismo e
cr í tica . do naturalismo que , periodicamente , reconduz a filosofia
Em quarto lugar, a filosofia de Marx é , entre Hegel e para a idé ia de dial ética .
Freud , o exemplo de uma ontologia moderna da rela çã o , Enfim , em quinto lugar, tentei mostrar que o pensa ¬

ou segundo a expressã o que utilizei , do transindividual . mento da rela çã o social é , em Marx , a contrapartida da
Isso significa que ela se instala para além da oposiçã o prioridade atribu ída à pr á tica revolucion á ria ( “ transforma ¬
entre individualismo ( mesmo “ metodol ógico” ) e organicis- çã o do mundo ” , “ contratend ê ncia ” , “ transforma çã o na
mo ( ou “ sociologismo ” ), cuja hist ó ria ela permite tra ç ar e transforma çã o ” ) . Com efeito , transindividual é , primeira ¬
cujas fun ções ideol ógicas permite mostrar . Mas isso n ã o mente , essa reciprocidade que se instaura entre o indiv íduo
basta para caracteriz.ar sua originalidade , pois a féíacãò' ) e o coletivo no movimento da insurreiçã o libertadora e
pode ser pensada seja no modo da interioridade , seja no igualit á ria . O m í nimo incompress ível de individualidade e
modo da exterioridade , e at é mesmo , novamente , da de sociabilidade que Marx descreve a prop ósito da explo ¬
naturalidade . É o que ilustrariam , na filosofia contempo ¬ ra çã o capitalista é uma proeza de resistê ncia à domina çã o ,
râ nea , de um lado o tema da i 11 tersu bjeti uidade ( n ã o h á sobre o qual Marx quis mostrar que ele n ã o tinha que ser
“ sujeito” isolado que imagine o mundo , mas antes uma inventado ou suscitado , pois ele , sempre , j á começou .
comunidade origin á ria de m ú ltiplos sujeitos ) , de outro Pode-se admitir que foi para fundar essa tese que ele
lado , o da complexidade ( c u p s exposi ções mais sedutoras responsabilizou -se por uma periodiza çã o da hist ó ria uni ¬

se fundam metaforicamente sobre a nova alian ça da física versal que lhe permitia pensar que a luta daqueles que
e da biologia ). Marx nã o é redut í vel nem a uma nem a “ est ã o embaixo ” vem do pr ó prio fundo da hist ó ria coletiva .
outra dessas duas posições. Isso se deve a que o transí n- Entretanto , deve-se dar aqui um passo a mais , pois se
dividual , nele, foi fundamentalmente pensado como o Marx tivesse sido apenas o pensador da revolta , o sentido
correlato da ¡uta das classes, estrutura social “ ú ltima ” , que de sua oposi çã o constante à utopia estaria completamente
divide simultaneamente o trabalho , o pensamento e a perdido . Essa oposiçã o nunca se pretendeu um retorno
pol ítica Filosofar a favor de e contra Marx quer dizer aqui para aqu ém da pot ê ncia insurrecional e imaginativa re ¬
levantar a quest ã o, n ã o do “ fim da luta de classes ”
eterno desejo piedoso da harmonia social — —
, mas de seus
presentada pelo esp írito de utopia . Ela o ser á ainda menos
porque reconheceremos na ideologia o elemento ou a
lijnétes internos, isto é , das formas do transindividual que , pr ó pria mat é ria da pol ítica , voltando definitivamente as
mesmo confirmando-a por toda a parte , permanecem costas para a veia positivista do marxismo . Mas isso apenas
absolutamente irredut íveis a ela . A quest ã o das grandes sublinhar á ainda mais a interroga çã o contida no duplo
“ diferen ças antropológicas” , compará veis à diferen ça inte ¬ movimento antiut ópico de Marx : aquele designado pelo
lectual ( a começar pela diferen ça sexual ) pode servir de termo de “ prá xis” e aquele nomeado pela “ dial ética ” . E o
fio condutor. Mas poderia ser també m que, at é nessa que chamei a açã o no presente , e o que tentei analisar
dist â ncia tomada em rela çã o a Marx , o modelo da articu ¬ como um conhecimento teórico das condi ções materiais
la çã o entre uma problem á tica dos modos de produ çã o ( ou que constituem o presente . Depois de designar , durante
da “ economia ” , no sentido geral do termo ) e uma proble¬ muito tempo , a redu çã o da rebeli ã o à ciê ncia , ou o inverso ,
m á tica do modo de sujeição ( logo de constitui çã o do poderia ocorrer que a dial é tica acabasse simplesmente
“ sujeito ” , sob a a çã o das estruturas simbólicas ) , seja uma designando a quest ã o infinitamente aberta da conjunçã o
146 A FILOSOFIA DE MARX
_
de ambas (Jean Claude Milner usou esse termo em Cons ¬

tat ) . 5 E isso n ã o é condenar o pensamento Marx a um


programa mais modesto , mas dar- lhe , por muito tempo , o
lugar de “ passagem obrigat ó ria ” entre a filosofia e a NOTAS
pol í tica .

I / Filosofia Marxista ou Filosofia de Marx ?

1. Ver Georges Labica , “ Marxisme ” , in Encyclopaedia Universalis, Suple ¬


mento II , 1980 e os artigos “ Marxisme ” ( G . Labica ), “ Matérialisme dialcctiquc ”
( P. Macherey ) , “ Crises du marxisme ” (G . Bensussan ) no Dictionnaire critique
du marxisme, Paris , PUF, 2a ed. , 1985.
2 . K . Marx , Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Éd . Sociales , Paris, 1963,
[ed . bras . O 18 Brumá rio de Luts Bonaparte, in K . Marx c F. Engels , Obras
escolhidas, vol . 1 , Sà o Paulo , Alfa - Omega , 1980) p . 13. Cf . Jean - Paul Sartre ,
“ Question dc mcthode ” , in Critique de la raison dialectique, tomo I , Théorie
des ensembles pratiques, Paris , Gallimard , I 960.
-
3. Muitas edições , por exemplo Marx F. ngels , Manifesto do partido
comunista, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
4 . Sobre as vicissitudes da "ditadura do proletariado” em Marx e
sucessores, cf . meu artigo no Dictionnaire critique du marxisme (org. G .
Labica e G . Bensussan), op. cit . A melhor apresenta ção dos vá rios modelos
revolucioná rios de Marx é S . Moore: Three tactics. The Background in Marx,
Nova York , Monthly Review Press , 1963 -
II / Transformar o Mundo: da Praxis à Produção

-
1. Aos quais deve se acrescentar o conjunto das notas de leitura
publicadas pela nova Marx -Engels Gesamtausgabe ( vol. IV/ 2, Berlim , 1981).
O texto conhecido sob o t ítulo Okonomisch - philosophische Manuskripte é de
fato uma reunião das partes mais “ redigidas ” dessa obra . Tradu ção francesa :
Karl Marx, Manuscrits de 1844, trad e apresenta çã o de E . Bottigelli , Editions
,

Sociales, Paris, .1972. [ Ed . bras. “ Manuscritos económico-filosóficos” (ed .

147
148 A FILOSOFIA DI : MARX NOTAS 149
parcial , apenas o terceiro manuscrito) no volume Karl Marx, org . J . A . Gianotti , Cambridge , 1985; ir . fr . , Karl Marx, une interprétation analytique, Paris , PUF,
da coleçã o Os Pensadores , SP, Abril Cultural , 1974.1 1989 ) e por Jacques Bidet , Théorie de la modernité, seguido de Marx et le
2 . Publicadas em 1888 por Engels em anexo ao seu próprio ensaio, marché, Paris, PUF, 1990.
Ludwig Feuerbach e ofim da filosofia clá ssica alema ( in Karl Marx , Friedrich 14 . VerG . Simondon , [.' Individuationpsychique et collective, Paris , Aubier ,
Kngels , Obras escolhidas, Sà o Pau lo , Alfa -Omega , 1980 ) em uma versã o um 1989 -
tanto corrigida . 15. Max Stirner, L’unique et sa propriété, trad de Robert L . Reclaire , Paris ,
,

3. Também publicada postumamente cm 1932, cuja primeira parte se Stock Plus , 1972.
intitula de novo “ Feuerbach ” , e que nà o tardaria a passar pela mais sistem á tica 16. K . Marx e F Engels , L ' Idéologie alemande . Critique de la philosophie
das exposições gerais do “ materialismo hist órico” , sc se faz abstra çã o allemande la plus récente dans la personne de ses représentants Feuerbach ,
precisamente das obras de Engels. B .Bauer et Stirner, et du socialisme allemand dans celle de ses différents
4 . K . Marx . Teses sobre Feuerbach , in K . Marx e F. Engels , Obras escolhidas, prophètes, tr. fr. apresentada e anotada por G . Badia , Paris, Ed . Sociales ,
vol . 3, Sà o Paulo, Alfa -Omega 1980 . 1976. A ediçã o de Maximilien Rubel , subintitulada “ Conception mat é rialiste
5 . Ludwig Feuerbach , VEssence du christianisme, apresenta çã o de J . - P. du monde ” , em K . Marx , Oeuvres, III , Philosophie, “ Bibliothèque de la
Osier, Paris , Maspero , 1968. Cf. també m Ludwig Feuerbach , Manifestes Plê iade ” , Paris, Gallimard , 1982, foi alijada dos trechos atribu íveis a Engels ,
-
philosophiques, textes choisis ( 1839 1845 ), trad de Louis Althusser, Paris,
,
assim como daqueles considerados pelo editor como “ estranhos ao assunto
PUF, I 960 . central ” (o que fez o texto passar de 550 para 275 pá ginas! ) . [ Ed . bras. , Sà o
6 . “ Discours au Congrés des écrivains” 0935 ) , in André Breton , Manifestes Paulo, Martins Fontes, 1980.1
du surréalisme, Paris, J . -J .Pauvert , 1962. 17. L’ Idéologie allemande, op. cit . , p .71 -72.
7. E sobretudo , na França , aos estudos de Michel Espagne e de G é rard 18. “ Uma classe cujos interesses sã o os mesmos em todas as na ções e
Bensussan sobre Moses Hess, futuro teórico do sionismo , ent ã o socialista para a qual a nacionalidade já foi abolida , uma classe que se livrou realmente
muito próximo de Marx e Engels, que compartilharam com ele a descoberta do mundo antigo e que se opõe a ele , ao mesmo tempo. ” ( L id éologie
do comunismo como “ enigma resolvido da hist ó ria ” . Cf . Gé rard Bensussan , allemande, op. cit . , p .59. )
Moses Hess, la philosophic, le socialisme ( 1836 - 184 5 ), PUF, Paris , 1985; Moses 19 - Hannah Arendt , Condition de Thomme moderne ( 1958 ) , traduzido
Hess , Berlin , Paris, Londres ( La triarchie européenne ) trad , e apresenta çã o do inglês por G . Fradier, pref á cio de Paul Ricocur, Paris , Calmann - Lévy , 1961 .
Michel Espagne , Ed du Lérot , Tusson , 1988. Cf . um coment á rio por André Tosei , “ Mat é rialisme de la production , mat é ria -
8. Cf . Jacques Grandjonc , Communisme/Kommiinismus/Communism, lisme de la pratique: un ou deux paradigmes?’’, in VEsprit de scission . Etudes
origine et développement international de la terminologie communautaire sur Marx , Gramsci, Lukács, Universidade de Besan çon , Paris, Diffusion Les
premarxiste des utopistes aux néo-babouvistes, 1785- 1842, 2 vols., Trier, Belles Lettres, 1991 .
Schriften aus dem Karl - Marx - Haus, 1989 -
9. Cf . Kant , Vers lapaixperpétuelle . Que signifie s’orienter dans lapensée?
QiTest-ce que les lumières?, apresenta çã o de Françoise Proust , Paris, Gamier Ill / Ideologia ou Fetichismo: O Poder e a Sujeiçã o
Flammarion , 1991
10 . Capítulo V: “ Processo de trabalho e processo de valoriza çã o” , p¿.202. 1 . Marx , como sabemos, n ã o é o inventor do termo ideologia , criado
Cito o livro 1 do Capital na nova tradu çã o francesa , de acordo com a 4 ed . pelos... ideólogos ( Destul de Tracy , cujos Elementos de ideologia foram
alemã , sob a responsabilidade de J .-P.Lefebvre, Paris , Messidor / Ed .Sociales, publicados entre 1804 e 1815 ) . Ele n à o é nem mesmo o inventor da inversã o
1983; reed id ê ntica , col Quadrige , Paris , PUF, 1993.
, de seu uso, do positivo para o negativo, à s vezes atribu í do a Napoleá o. Para
11 . Humboldt fundou em 1810 a Universidade de Berlim , que hoje tem um exame detalhado do problema , consultar Patrick Quantin , Les origines de
o seu nome. Suas principais monografias em ling üística e filosofia foram l ideologic, Paris, Econó mica , 1987. Alé m das fontes imediatas, o termo tem
publicadas depois de sua morte em 1835 ( cf . Introduction à Toeuvre sur le toda uma genealogia filosófica que , atrav és de Locke e Bacon , nos reconduz
Kavi et autres essais, trad . í r . de Pierre Caussat , Paris , Seuil, 1974 ) . a duas fontes antigas opostas entre si : as “ formas” ( eidè ) plat ó nicas e os
12 . Termo forjado no see . XVII para designar o que Aristóteles chamara simulacros” ( eidôla) da filosofia epicurista .
“ ciê ncia dos primeiros princ í pios e das primeiras causas ” , e que ele identificava 2. “ Evidentemente a arma da cr ítica n à o pode substituir a cr ítica das
a uma reflexã o sobre o “ ser enquanto ser" ( on hè on ) , distinta do estudo dos armas: a força material deve ser derrubada por uma força material ; mas a
gê neros de ser particulares teoria se transforma , també m , em força material , logo que ela se apodera
13 - Cf . Louis Dumont , Homo equalis /. Genèse et épanouissemerit de l
( das massas. " Introduction à la critique de la philosophie du droit de Hegel,
idéologie économique, Paris , Gallimard , 1977, para quem Marx “ a despeito publicada em 1843 nos Anais franco -alemães, publicados em Paris por Marx
das aparê ncias [.. .] é essencialmente individualista ” . Uma conclusã o seme ¬
e Ruge ( cf . K . Marx , Critique du droit politique hég élien , trad e introd . de
,

lhante é atingida a partir de premissas diferentes por Jon Elster, um dos A - Baraquin , Paris , Editions Sociales , 1975, p 205 ) lEd bras , in Temas de
principais representantes do “ marxismo anal í tico ” ( Making Sense of Marx, .
ciê ncias humanas n 2 Sà o Paulo, LECH , 1977 . J
150 A FILOSOFIA DE MARX NOTAS 151

3. L’idéologie allemande, op . cit., p . 44 . 15. Sobre esse ponto , sugerimos a leitura do cap . XLVIII do livro III do
4 . Ver o livro de Sarah Kofman, Camera obscura . De l’idéologie, Paris, Capital editado por Engels, “ A forma trinit á ria ” , que tra ça uma linha de
Galilée , 1973- demarca çã o entre economistas “ clássicos” e “ vulgares” , e conclui: “ É o mundo
5. Se ousá ssemos plagiar Habermas, dir íamos que , para o Marx da encantado e invertido, o mundo pelo avesso, em que o Senhor Capital e a
Ideologia alemã, a consciê ncia é, evidentemente , logo de sa ída , uma “ a çã o Senhora Terra , simultaneamente caracter ísticas sociais e simples coisas,
comunicacional ” . Podemos constatar isso na descriçã o que ele propõe das dan çam sua ronda fantasmagó rica . Foi o grande mé rito da economia pol ítica
rela ções entre a consciê ncia e a linguagem : “ A linguagem é a consciência clá ssica dissipar essas falsas aparê ncias e essas ilusões” a autonomiza çã o e
real , prá tica , existente també m para outros homens , existente portanto a esclerose dos diversos elementos sociais da riqueza , a personifica çã o das
somente para mim mesmo també m , e exatamente como a consciência , a coisas e a reifica ção das rela ções de produ ção , essa religiã o da vida
linguagem só aparece com a necessidade do comé rcio com outros homens cotidiana . .. “ ( K . Marx, Le capital . Critique de V économie politique, livro III ,
[ ( op . cit ., p. 28) . Mas essa a çã o nã o est á submetida a priori a nenhuma Le procès d ’ensemble de la production capitaliste, tomo III , Paris , Éd . Sociales,
norma l ógica ou moral . Em compensa çã o, ela permanece indissociá vel de uma I 960, p . 207 -208. ) Voltarei a falar da quest ã o dos “ m é ritos da economia
teleología ou finalidade interna , que a identidade das noções de “ vida ” , cl á ssica ” .
“ produ çã o” , “ trabalho” e “ história ” exprime. Cf . J ü rgen Habermas, Théorie de 16. Le capital, livro I , op . cit . , p.83-84.
Vagir communicationnel, tr. frc . de Jean-Marc Ferry , 2 vols., Paris, Fayard , 1987 . 17. A palavra latina sacer tem o duplo significado religioso de benef ício
6. L'Id éologie allemande, op.cit . , p.74. e malef ício. A melhor descriçã o da circula çã o mercantil e monetá ria gerando
7. Étienne Balibar, “ Division du travail manuel et intellectuel ” , in a aparê ncia fetichista é a de Suzanne de Brunhoff , ” Le langage des marchan -
Dictionnaire critique du marxisme, op . cit .; a influ ê ncia de Fourier é aqui discs“ , in Les rapports d argent , Paris , PUG/ Maspero , 1979. Da mesma autora ,
muito profunda sobre Marx e Engels : cf . Simone Debout , VUtopie de Charles La monnaie chez Marx, Paris, Ed . Sociales, ' 1967 .
Fourier, Paris, Petite Bibliothèque Payot , 1978, assim como a de Robert Owen . 18. Michel Foucault , Les mots et les choses. Une archéologie des sciences
8. L’idéologie allemande, op . cit ., p . 29- 30 . humaines, Gallimard , Paris, 1966, cap . IX, “ O homem e seus duplos” , p .329s .
9 - Que se considera , geralmente, ter sido fundada por Karl Mannheim : 19 . Le capital , livro I , op . cit ., p .87.
cf . o seu livro Ideologia e utopia (1936 ), Rio de Janeiro , Zahar, 4 a ed ., 1982 . 20. Georg Luk á cs , Histoire et conscience de classe, Essais de dialectique
Cf . també m J ü rgen Habermas , Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro , Zahar, marxiste ( Geschichte und Klassenhewusstsein, 1923) . lEd . bras . Historia e
1983. consciê ncia de classe, Sã o Paulo , Martins Fontes , 1974 .]
10. A palavra Stand c traduzida , segundo o contexto, por ordem , status, 21 . Luden Goldmann , Luk ács et Heidegger, fragmentos póstumos esta ¬

estado . Quanto à descriçã o do papel dos intelectuais cm Hegel , consultem -se belecidos e apresentados por Y. Ishagpour, Paris , Denoè l /Gonthier, 1973 -
Uma boa discussã o das rela ções entre a filosofia de Heidegger c o marxismo
os Principes de la philosophic du droit, texto apresentado, trad e notas de
est á na obra de Jean - Marie Vincent , Critique du travail . Le faire et Vagir,
,

R . Derathé , Paris , Vrin, 1975, §§ 287 a 320 . Para uma aná lise dos desenvol ¬

Paris, PUF, 1987.


vimentos posteriores dessa problemá tica , ver Catherine Colliot -Thelene , Le
22. Evgueny Pasukanis, La théorie générale du droit et le marxisme,
désenchantement de V État de Hegel à Max Weber, Paris , Minuit , 1992 . apresenta çã o de Jean Marie Vincent , introdu ção por Karl Korsch , Paris, EDI ,
11. É lamentá vel que o livro de Sohn-Rethel , Geistige und kõrperliche
1970.
Arbeit . Zur Theorie der gesellschaftlichen Synthesis, Frankfurt a . M ., Suhrkamp , 23. Em Freud , Marx , économie et symbolique, Paris, Seuil , 1973 -
1970, um dos raros a se consagrar a essa quest ã o na tradiçã o marxista , nã o 24 . Em seu pequeno livro. Critiques des droits de Vhomme, Paris, PIT, 1989 -
'

esteja traduzido para o francês. 25. K . Marx , Manuscrit de 1857-1858 “ Grundrisse” , Paris , É d . Sociales,
12. O 18 Brumário é , dos textos de Marx , aquele no qual se encontra 1980 , tomo I , p .179-190
esboçada uma descriçã o do imagin á rio hist órico das massas. Cf . Paul-Laurent 26 . Le capital, livro I , cap . IV, p . 198.
Assoun , Marx et la repetition historique, Paris, PUF, 1978, e Pierre Macherey , 27. Ibid . , cap . XIII , "A maquiná ria e a grande industria ” , § 4 , “ A fá brica ” .
“ Figures de l ’ homme dJen bas ” , in À quoi pense la littérature?, Paris , PUF, 28. Ibid ., cap VIII , § 7 , ed . cit . p.333-338.
1990. 29 . Ibid . , cap . XXIV, § 7 , “ Tendê ncia histórica da acumula ção capitalista ” .
13- 0 pará grafo sobre “ O cará ter fetiche da mercadoria e seu segredo ”
forma a conclusã o do cap ítulo I. Na realidade , ele faz corpo com o breve
cap ítulo II , “ Das trocas” , em que se encontra exposta a correspond ê ncia entre IV / Tempo e Progresso: Mais Uma Filosofia da História?
categorias econó micas c categorias jur ídicas. Ambos ocupam o lugar, essencial
na l ógica hegeliana , da mediação entre o abstrato ( “ A mercadoria ” ) e o 1 . K . Marx, Misère de la philosophic. Réponse á la philosophic de la misère
concreto ( “ A moeda c a circula çã o das mercadorias” ). de M . Proudhon, 11. “ La métaphysiquc de 1’ économie politique ” , 1. “ La mé thodc,
14 . Tudo isso acaba de ser exposto com precisã o c clareza no pequeno septième el derniè re observation ” , Paris, Éd . Sociales , Paris, 1961 , p .129 .
livrò de Alfonso lacono, Le fétichisme . Histoire d ’ un concept , Paris, PUF, col . 2 . K . Marx , Contribution à la critique de V économie politique, tr. M . Husson
“ Philosophies ” , 1992 . e G . Badia , Paris. É d Sociales, 1957, p .4 -5.
152 A FILOSOFí A DI- MARX Nc >1AS 153

3 . No livro I , cap. XIII, “ La inachinerie et la grande industrie ” , op.ciu , do pensamento de Marx: cf . Mario Tronti, La classe ouvrière contre T État,
p . 544s . Paris, Galilee, 1978. Ver també m o debate que opôs Nicos Poulantzas ( Pouvoir
4 . Cap. XXIV, “ La prétendue "accumulation muíale ’; 5 7: “ Tendance
*
.
politique el classes sociales Paris, Maspero , 1968 ) a Ralph Miliband ( Marxism
historique de l ’ accumulation capilaliste” , op . cit. , p .855-857. and Politics, Oxford , 1977 ) sobre a “ autonomia relativa do Estado’ na luta

5 . Basic Books , Nova York , 1980. de classes.


6 . ( í . Canguilhem, “ La decadence de Ladée de progrés” , Revue de 19 K . Marx, Miséria da filosofia , op.cit . : Í... J é sempre o lado mau que
Métaphysique et de Morale, n.4, 1987. acaba prevalecendo sobre o lado bom . E o lado mau que produz o movimento
7 . Walter Benjamin, “ Theses sur 3a philosophic de Thistoiré” , in Essais, que faz a historia , ao constituir a luta ( Lembramos que Marx escreveu essa
vol .II , tr. fr M de Gandillac, Paris, Gonthiers-Médiations, 1983. obra diretamente em francés. )
8 . Em sua Réponse q John Lewis, Paris, Maspero, 1973- -
20 . “ Marchamos no meio das ru í nas I . .. J . Trata se da categoria do negativo
9 . Sobre a maneira pela qua! o marxismo transcreveu a ádéia revolucio 1...J que nos faz ver como o que era inais nobre e mais belo foi sacrificado
-
n á ria de socializa çã o em uma linguagem evolucionista , cf Jean ¡Robelin, no altar da história l ~. j. No nascimento e na morte , a Razão vê a obra que
Marxismo et socialisation, Mérid ãens/Klincksãeck, L ’lJtopie collectiviste, PUF, o trabalho universal do gé nero humano produz... ” ( G . W. F. Hegel , La raison
publicado em fins de 1993- dans I histoirc, Paris, UGE 10/ 18 , 1986, p .54 , 68 ) .
-
10 . Cf . Jean François Lyotard , La condition post - moderno, Paris , Minuit , 21 “ O termo processo, que exprime um desenvolvimento considerado
1979. no conjunto das suas condições reais, pertence liá muito tempo à l í ngua
11 . É douard Bernstein, Les présupposés du socialismo ( Die Voraussetzun científica de toda a Fu ropa. Na Franç a , foi introduzido timidamente sob sua
gen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, 1899 ) , tr fr. , forma latina: processus. Depois , deslizou , despojada desse disfarce pedante* ,
Paris , Senil , 1974 . para os livros de química , de fisiologia etc., e para algumas obras de metaf ísic a
12. John Rawls , A Theory of Justice X 1972 L Oxford University Paperback , Acabará por ser plenamente naturalizado Observemos que os alemã es , como
1980 , § 13 ( tr. fr. Senil ) . os franceses, na l íngua corrente , usam o termo processo ' em seu sentido
13 " Tudo o que se chama historia universal não é nada iríais do que a jurídico ” í Le capital , livro 1 , cap . V, Proves de travail el procés de valorisation .
'

gera çã o do homem pelo trabalho humano, do que o devir da natureza para nota de Marx para a edição francesa, op .cit ., p. 200 . )
0 homem ; existe pois a prova evidente e irrefutá vel de sua gera ção por si
22 Le capital , livro I , cap XIV; "Mais valia absoluta e mais valia relativa ”
mesmo , do processo de seu nascimento ( K . Marx, Mmuiscrits de 3844
'

Gf tamlx’in Un cbapitre incdiJ du Capital , apresenta ção de Roger Dangevillc,


( Economic politique et philosophic ), trad e apresenta ção de ¥.. Bottigclli .
Paris , UGF. 10. 18, 1971 .
,

Paris , Éd .Sociales , 1962, p .99 )


23 A possibilidade de pensar uma contradiçã o real é a pedra de toque
"

14 . Georges Canguilhem , “ Quest - ce qu une ideologic soentifiqueT in


'

Ideologic et rationalité dans Têistmre des sciences de la vie, Librairie Vrin .


da dialética marxista . Cf . Henri Lefebvre , Lógica formal , lógica dialética Rio .
Paris, 1977 . Uma excelente exposi çã o do evolucionismo antes e depois de
de Janeiro, Civiliza çã o Brasileira , 1975; Pierre Raymond , Materialismo dialec -
Darwin é Canguilhem , Lapassade, Pique mail e limaran, Du déveioppemenl à tique et logique, Paris, Maspero. 1977 Fia foi vigorosamente contestada ,
1 evolution au XIXr° . siec.le, Pads , reed PUF, 1985; cf . ¡tambem De Darwin au especialmente por Lucio Colletli , “ Contradiction dialeclique et non contradi -
darwinisme • science et ideologic, org. Yvette ( onry. Paris , Vrin , 1983-
'
/
citon , iti Le déciin du marxismo Paris , PUF, 198 « Sua reformula çã o foi o
15 - “ As rela ções de produ çã o burguesas são a ú ltima forma antagónica próprio objeto da elabora çã o de Althusser .
do processo de produ çã o social , nao no sentido de mu antagonismo individual , 24 Os documentos essenciais sã o constitu ídos pelas notas marginais
mas de um antagonismo que nasce das condrçòes de existencia social dos ( Randglossen ) redigidas
poi Mai \ , de um lado sobre o li\ ro de Bakunin ,
individuos ; entretanto, as forças produtivas que se desenvolvem rao seto da Estatismo e anarquia, publicado em 1873, de outro sobre o "Projeto de
sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para Programa do Partido Oper á rio Alemã o’ redigido em 1875. As primeiras
,

resolver esse antagonismo. Com essa fcwma çào serial acaba portanto a ficaram in éditas at é sua publica çã o no séc XX , com outros manuscritos de
pré-histó ria da sociedade humana .. . ” ( Pref ácio da Contribuição . , op .cit . ) Marx ( que são encontrados hoje principalmente no vol . XVIII das Marx Engels
16. Le capital, livro l , cap . VIII , La journ êe de travail , § 2: La fringa le
' "
ú'erke, Berlim , Diet /. Verlag , 196 » , p 597 -6 2 ) . As segundas , comunicadas na
de surtravail . Fabricant et boyard ” , p. 262s *
época aos dirigentes socialistas alem ã es a t í tulo privado ( Marx declara que
17 . A palavra “ survaleur ” 1 = valor exoedentel que substitui raa ú ltima
finalmente achou in ú til torna las p ú blicas , já que os operá rios socialistas
tradu çã o francesa o termo tradicional mas araulbagun de "raaaas-valia ”, equivale leram no projeto do programa aquilo que ele n ã o continha , isto c , uma
exatamente ao alem ã o Mehrwent : neologismo forjado por Marx para designar plataforma revoluc ioná ria .. . ) foram acrescentadas por F.ngcls , 20 anos depois ,
o aumento de valor do capital , «que provém do trabalho excedente operá rio a M1 <* própria Critica do programa de Erfurt < 1892 ) .
( em alem ã o ; Mehrarheit ; em ingl é s : smpkas value/surplus labour )..
18. Livro 1 , cap . XIII , § 9 ‘Legisla ção de f á bricas ( Clá usulas ¡referentrs 25 Gloses marginales au programme du Parti Ouvrici Allemand ", in K
à higiene e à educa çã o ) . Sua generalização na ¡Inglaterra ” ¡( p . 540 s . ) f a
Marx t; F. F.ngcls , Critique des programmes de Gotha et d Erfurt , Paris,
-
escola dita 'obreirista italiana , que acenituonn maus v\ dgc «osan rerate esse aspecto
"
l~ d Sociales , 1950 , p.
3^ Sobre as vanantes sucessivas da teoria da ditadura
154 A FILOSOFIA DE MARX

do proletariado” , cf o meu artigo do Dictionnaire critique ¿u marxismo,


op .cit . e també m Jean Robelin , Marxismo et socialisation, op.cit . .
26. Henri Lefebvrc , De l’ État , vol . II , Tbéorie marxiste de l’ État de Hegel
à Mao, Paris, UGE , col . “ 10/18” , 1976 .
27. Trata -se da Carta à redação de “ Otetcbestvenniye Zapisky” ( os Anais GUIA BIBLIOGRá FICO
da pátria) , conhecida sob o nome de “ Carta a Mikhailovski ” . F.ncontra -se
esse texto na antologia editada por Maurice Godelier no CERM / Éd . Sociales ,
Sur les sociétés précapitalistes. Textos cboisis de Marx , Engels, Lénine, 1970 ,
p. 349 s.
28. “ Cara cidadà : Uma doen ça de nervos que me ataca periódicamente
h á dez anos me impediu de responder mais cedo à sua carta ... ’ ( Ibid . ,
p .318- 342.) Observemos que todas essas cartas foram escritas em francés.
Marx aprendera a 1er russo , mas nà o o escrevia .
29. No mesmo momento, Engels esboçava considera ções semelhantes a
partir de sua leitura dos trabalhos do historiador Georg Maurer sobre as
antigas comunidades germâ nicas ( cf . “ La marche ” , in F. Engels, L’ Origine de
la famille, de la propriété privée et de T État, Paris , Éd . Sociales, 1975, p . 323 s. ;
e o coment á rio de Michael Lõwy e Robert Sayre , Révolte et mélancolie . Le
romantismo à contre-courant de la modernité, Paris , Payot , 1992 , p .128 s. ) .
Esses trabalhos continuam, entretanto , dominados pela influ ê ncia do evolu
¬

cionismo antropológico de Lewis Morgan , Ancient Society 1877 tr. fr. , La


( ) (
Orientar-se no interior da enorme bibliografia das obras de Marx , de seus
sociét é arebaique, apresenta çã o de Raoul Makarius, Paris , Anthropos, 1985) , seguidores e comentadores tornou -sc uma dificuldade em si . Ningu é m , exceto
por quern Marx sentia uma grande admira çã o. talvez alguns bibliotecá rios especializados , pode pretender dominar todo o
30 . “ Carta a Mikhailovski ” , op.cit . material disponível , mesmo que seja apenas em uma l íngua . ( O decl í nio da
31 . I . Wallerstcin , Le capitalisme historique, Paris , La Découverte, col . popularidade do marxismo, aliá s muito desigual conforme o pa ís em questão,
Repè res, 1985. é um fator agravante , pois teve o efeito de transformar em raridades muitos
textos e edições.) Apesar dos obstá culos , tentaremos indicar aqui algumas
leituras e instrumentos de trabalho , para completar as indicações dadas ao
V / A Ciência e a Revolução longo do texto.*
1 . Desclée de Brouwer, Paris , 1992 .
)
2 . Ver o texto em seus Écrits politiques, Gallimard , tomo I ( 1914 -1920 , 1 . Obras de Marx
ção de Andr é Tosei ) ,
ou em Antonio Gramsci , Textes seleçã o( e apresenta
Paris, Messidor/ Éd . Sociales, 1983- Aqui , aprcscntam -se dois problemas . Por um lado , a obra de Marx ficou
3. Le capital , livro III , op . cit . , tomo III , p .199 . Cf . também Engels
,
, inacabada . Como dissemos acima , isso se deve a limita ções que se impuseram
Anti - Dübring ( Monsieur EDithring bouleverse la science ), tr fr E . Bottigelli ao trabalho de Marx , a dificuldades intrínsecas, e a uma atitude intelectual
Paris , Éd .Sociales, 1950 , p .322 -324 . de constante questionamento, que levava o autor a “ retrabalhar ” seus
4. Columbia University Press , Nova York , 1986. conceitos , mais do que a terminar seus livros. Existem portanto muitos
5. Verdier, Paris , 1992 . inéditos, dos quais alguns se tornaram a posteriori “ obras” t ã o importantes
quanto os textos acabados . Por outro lado , a ediçã o desses textos ( a escolha
daqueles considerados como essenciais , e também a maneira de apresentá los -
e até de cort á -los) sempre foi motivo de lutas políticas entre diferentes

Para uma consulta mais ampla c detalhada , sugerimos a bibliografia geral que se
encontra ao final do Dicionário cio pensamento marxista, organizado por Tom Bottomore
(Jorge Zahar
Editor, 1988) , em que uma extensa pesquisa foi levada a cabo , incluindo
dados bibliográficos em diversas l ínguas. ( N . F.. )

155
156 A FILOSOFIA ni: MARX GUIA BIBLIOGRá FICO 157

“ tendencias", poderosos aparatos estatais, seguidores e années cl'enfance et de jeunesse La gauche hégclienne 1818- 1820/ 1844
estudiosos
ve /es , a edição das obras completas de Marx e Engels ( . Por ditas Paris, PUF, 1955 ); tomo II : Du lihéralisme democratique au communisme .
Marx -Engels (
Gesamtausgabe, citadas como MEC Í A ) foi brutalmente interrompida : La Gazette Rhénane. Les anuales franco- allemandes , 1842 - 1844 ( Paris , PUF,
a primeira
ve /. , nos anos 30 , quando o regime stalinista abortou 1958); tomo III : Marx à Paris ( Paris, PUF, 1961); tomo IV: La formation du
o trabalho de ediçã o
iniciado depois da Revolu çã o Russa por Riazanov ; a segunda matérialisme historique ( Paris, PUF, 1970) .
, quando o
"
socialismo real" desmoronou na URSS e na RDA, interrompendo ( Para a constituiçã o da noçã o de “ marxismo ” e as rea ções de Marx e
proviso
¬
riamente ? ) a realiza çã o da MEGA II ” . A escolha desta ou daquela
"
Engels, cf . HAUPT Georges, “ De Marx au marxismo ” in L Histoire et le
é de modo algum neutra ; com freq üccia que, sob o
edição nã o
mesmo t ítulo, não se mouvement social, Paris, Maspero, Paris, 1980; a melhor historia geral do
encontra exatamente o mesmo texto. A ediçã o mais conm í
nenle utilizada dos marxismo é a que foi publicada por Einaudi , Turim , cm 5 vols. ( 1978 e s . ):
textos originais alem ã es é a Marx -Engels Werke, publicada
em Berlim por Storia del marxismo, sob a dire çã o de E . J . HOBSBAWM et al.; cf . també m
Dietz Verlag ( 38 + 2 volumes ), 1961 -1968 . KOLAKOWSKI Leszek , Histoire du marxisme, tomo I : Les fondateurs. Marx,
N ã o existe edi çã o sistem á tica e cronol ógica das
obras completas de Marx Engels et leursprédécesseurs; tomo II : L’ Age d ’or. de Kautsky ci Lénine, Paris ,
e Engels em francês* como acontece em alemão, russo, ingl s Fayard , 1987, e GALLLISSOT René ( org.): Les aventures du marxisme, Paris ,
ê e espanhol.
Fizeram -se quatro tentativas , todas lacunares e muitas vezes Syros, 1984 .
critérios antagónicos . Sã o as seguintes:
obedecendo a
lima excelente exposiçã o da historia do marxismo filosófico ocidental
1 ) a ediçã o das Oeuvres philosopbiques, politiques
et économiques de -
encontra se em TOSEL Andró , “ Le d é veloppement du marxisme en Europe
Marx et Engels, traduzidas por Molitor, Paris , Editions occidental depuis 1917” in Histoire de la philosophic, Paris, Gallimard ,
Costes , 1946 e s. ( das
quais uma parte foi reproduzida recentemente pelas " Encyclopédie de la Pl é iade ” , tomo III ,
1974 .
Editions Champ Libre );
2 ) a série inacabada das Oemrres completes cie Karl
Marx e das Oeuvres
completes de Friedrich Engels, mais tarde reunidas em Oeuvres
de Marx et
Engels, elaborada pelas Editions Sociales. Alguns 3. Referê ncias complementares para os capítulos precedentes
textos també m foram
editados em formato de bolso, pelos mesmos editores;
3) os três volumes das Oeuvres de Karl Marx , publicados sob Filosofia marxista ou filosofia de Marx?
de Maximilien Rubel pela Biblioth èque de la Pl êiade , Gallimard ( a direçã o
l 1965; Economic II, 1968; Philosophic.
P.conomie
1982); Além das obras já mencionadas , podem ser consultadas:
4 ) a sé rie de reedi ções ou antologias , publicada nos anos 70 ASSOUN Paul Laurent e RAIJLET Gérard , Marxisme et théorie critique, Paris ,
por Roger
Dangeville, na Petite Collection Maspero e na coleção “ 10/ 18 ( Unió Payot, 1978 .
"
n Gené rale
D Editions ). Naturalmente, acrescentam -se a estas muitas
'
CENTRE D ÉTUDES ET DE RECHERCHES MARXISTES. Sur la dialect ique,
*

edições ou reedições
isoladas . Paris , Editions Sociales, 1977 .
De modo geral , as tradu ções das Editions Sociales e COLLETTI Lucio, II marxismo e Hegel , Bari , Laterza , 1969; ed fr Le marxisme
da Plê iade sã o as
melhores, mas há exceções , como textos importantes que n ã o et Hegel, Paris, Champ libre, 1976.
fazem parte
delas HORKHETMER Marx , Théorie traditionnelle et théorie critique , Pans, Gallimard ,
1974 .
KAUTSKY Karl , L Éthique et la conception matérialiste de Thistoire, reed . Paris,
'

.
2 Obras biogr á ficas e gen é ricas 1965 .
KORSCH Karl , Marxisme et philosophic ( 1923), Paris, Minuit , 196 i .
MEHRING Franz , Karl Marx , Histoire dc sa vie. trad KOSIK Karel , La dialectique du concret, Paris, Maspero, 1978
Ed . Sociales, 1983- Jean Mortier, Paris , LABICA Georges, Le marxisme léninisme, Paris , B . Huisman , 1984 .
RIAZANOV David , Marx et Engels , Paris , Anthropos, 1967. LEFEBVRF. Henri , M étaphilosophie, Paris, Minuit , 1965 ( reed . Paris , Le Syco
BRUHAT Jean , Marx et Engels, Paris , UGE , reed . 1971 . more . 1979 )
Será interessante completar essas leituras com a
Corrcspondance de Marx LF.FEBVRE Henri , Problemes actu éis du marxisme, Paris , PUF, reed . 1970.
e Engels , publicada pelas Editions Sociales, sob a MAC TS É TUNG , F.crits philosopbiques, Lausanne , La Cit é , 1963
direçã o de Gilbert Badia
e Jean Mortier. MERLEAU - PONTY Maurice , Les aventures de la dialectique, Paris , Gallimard ,
No que diz respeito á forma çã o intelectual de 1955 .
Marx, a obra insubstitu ível
continua sendo. CORNU Auguste , Kart Marx et
Friedrich Engels, lomo I : Les PAPAIOA Ñ NOU Kostas , De Marx et du marxisme, Paris , Gallimard , 1983 -
PLEKHANOV Georges , Problemes fonda mentaux du marxisme, Paris , fid .So¬
ciales , 1948; ed . bras Questões funda ment á is do marxismo, Sao Paulo ,
Hucitec, 1978 .
Assim como n ã o h á cm portugu ês ( NE )
RUBEL Maximilien , Marx, critique du marxisme, Paris , Payot , 1974

157
158 A FILOSOFí A DE MARX GUIA BIBLIOGRá FICO 159
S ÈVE Lucien , Une introduction à la philosopbie marxiste, Paris , Éd . Sociales, Michèle: Le statut de la religion chez Marx et Engels, Paris ,
BERTRAND
1980 . Éd.Sociales , 1979 -
STALIN Joseph , Matérialisme dialectique et matérialisme historique, Paris, Éd
CASTORIADIS Cornelius, L ’Institution imaginaire de la société, Paris , Seuil , 1975
Sociales , s.d . HABERMAS J ü rgen , Técnica e ciencia enquanto ‘ideologia ” ', in W. BENJAMIN
et alii , Textos escolhidos, Sà o Paulo, Abril Cultural 1980 .
Transformar o mundo: da práxis à produção L’ Espace public ( Stmkturwandel der Óffentlichkeit ), Paris, Payot ,
1986.
Al ém das obras já mencionadas: Martin , LTmagination dialectique . Histoire de T école de Francfort ( 1922-
AVINER1 Shlomo, The Social and Political Thought of Karl Marx, Cambridge ,
JAY
1950 ), tr. fr., Paris, Payot , 1977 .
Cambridge University Press , 1968. KORSCH Karl , Karl Marx, Paris, Champ Libre , 1971.
BLOCH Ernst , Droit naturel el dignité humaine ( Naturrecht und menschliche MICHEL Jacques, Marx et la société juridique, Publisud , 1983-
Wiirde, 1961), tr. fr. , Paris, Payot , 1976 . -
VINCENT Jean Marie, La théorie critique de Técole de Francfort , Paris , Galilée,
Le principe esperance ( Das Prin zip Hoffnung ), tr. fr. , Paris, Gallimard , 1976.
tomo I , 1976.
BLOCH Olivier, Le matérialisme, Paris, PUF, col. “ Que sais- je?” , 1985. Mais específicamente sobre a ideologia e a questão do poder:
BOURGEOIS Bernard , Philosopbie et droits de l’ homme de Kant à Marx, Paris, AUGE Marc, Pouvoirs de vie, pouvoirs de morí . Introduction à une anthropo-
PUF, 1990. logie de la répressioñ , Paris, Flammarion, 1977.
FURET François , Marx et la Revolution française, Flammarion , Paris, 1986; BADIOU Alain e BALMES François, De Tidéologie, Paris, Maspero , 1976.
.
ed. bras. Marx e a revolução francesa Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989 -
GTANNOTTI José- Artur, Origens da dialética do trabalho, Sà o Paulo, Difel , 1966.
BOURDIEU Pierre e PASSERON Jean -Claude, La reproduction , Paris , Minuit ,
1970.
GRANDJONC Jacques, Marx et les communistes allemands à Paris, Paris, BOURDIEU Pierre , Ce que purler veut dire. L’économie des échanges linguis-
Maspero, 1974 . tiques, Paris, Faya rd , 1982.
GRANEL G é rard , L’ Endurance de la pensée, Paris, Pión , 1968. DEBRAY Régis , Critique de la raison politique, Paris, Gallimard , 1981 .
GRANIER Jean , Penser la praxis, Paris, Aubier, 1980. DELLA VOLPE Galvano, Critique de Tidéologie contemporaine, Paris , PUF,
HEIDEGGER Martin , Lettre sur l’ humanisme, trad , e apresenta çã o de Roger 1976.
Munier, Aubier, Paris, 1964 . DUPRAT Gé rard ( org .), Analyse de Tidéologie, 2 vols., Paris , Galilée , 1981 e
HENRY Michel , Marx , tomo I : Une philosopbie de la réalité, Paris, Gallimard , 1983 -
Paris , 1976. LABICA Georges , Le paradigtne du grand - Hornu . Essai sur Tidéologie, Paris,
HYPPOI.ITE Jean , Études sur Marx et Hegel, Paris , Marcel Riviè re , I 960. PEC- La Brèche , 1987.
LABICA Georges , Le statut marxiste de la philosopbie, Baixelas , Complexe/ Dia - LEFORT Claude , “ L ère de l ’ idéologie ” , in Encyclopaedia universalis, vol .18
lectiques , 1976. ( Organum ) , Paris , 1968 .
MERCIER -JOSA Solange , Retour sur le jeune Marx, Paris , Méridiens- Klinck - MERCIER-JOSA Solange , Pour lire Hegel et Marx, Paris, Éd. Sociales, 1980.
sieck , 1986. RICOEUR Paul , “ L ideologic et ITitopie: deux expressions de l’ imaginaire
MAINFROY Claude, Sur la Revolution française. Écrits de Karl Marx et Friedrich social ” , in Du texte à Taction . Essais d’ herméneutique, II, Paris, Seuil ,
Engels, Paris, Éd .Sociales , 1970. 1986 .
NAVILLE Pierre , De Taliénation ã la puissance, Mareei Rivière , Paris , 1957 TORT Patrick , Marx et le problème de Tidéologie . Le modéle égyptien, Paris ,
Creed , como Le Nouveau Léviathan , I , Paris, Anthropos, 1970) PUF, 1988.
FAURE Alain e RANCI É RE Jacques, La parole ouvriére . 1830- 1951, Paris ,
UGE, col . “ 10/18” , 1976 . Mais espec íficamente sobre o fetichismo e a questã o do sujeito:
S É VE Lucien , Marxisme et théorie de lapersonnalité, Paris, É d . Sociales , 1969. BAUDRILLARD Jean , Pour une critique de Téconomiepolitique du signe, Paris ,
Gallimard , col. Tel , 1972.
SLEDZIEWSKI Elisabeth , Revolutions du sujet , Paris, Mé ridiens- Klincksicck , BIDET Jacques, Que faire du Capital? Matériaux pour la refondation du
1989 - marxisme, Paris, Klincksieck , 1985.
DEBORD Guy , La société du spectacle ( 1967 ) , Paris, Gérard Lebovici , 1987 .
Ideologia ou fetichismo: o poder e a sujeição GODELIER . Rationalit é et irrationalité en economic, Paris , Maspero, 1966 .
GODELIER Maurice, Horizons, trajets marxistes en anthropologic, Paris ,
Alé m das obras já mencionadas: Maspero, 1973 -
ADORNO T. W. e HORKHEIMER Max , Dialética do esclarecimento, Rio de GOUX Jean-Joscph , Les iconoclastes, Paris , Seuil , 1978.
Janeiro, Jorge Zahar, 4 a reimp. , 1994 HELLER Agnes, la théorie des hesoins chez Marx, Paris , UGE, col . “ 10/18 ” , 1978
rJ >M ÉTIENNE BALIBAR . nascido em 1942.
160 A FILOSOFí A DE MARX
professor de filosofia na Univer ¬

LEFÉBVRE Henri, Critique de la vie quotidienne, 3 vols., Paris, L' Arche,


1981 sidade de Paris I , foi disc í pulo e
LYOTARD Jean - François , Derives d partir de Marx et Freud, Paris, UGK, col .
10/18, 1973. colaborador de Louis Althusser.
MARKUS Gyorgy, Langage et production , Paris, Denoé l-Gonthier, 1982
POLANYI Karl , La grande transformation ( The Great Transformation , 1944 ) ,
Membro do Partido Comunista
tr. fr. , prefacio de Louis Dumont , Paris, Gallimard , 1982. Francês de 1961 a 1981 , continua a
-
RANCIARE Jacques, “ Le concept de critique et la critique de l’économie
politique des Manuscrits de 1844 au Capital , in ALTHUSSER et alii ,
' militar em diferentes organizações de
Lire le Capital , Paris , Maspero , Ia ed . 1965. direitos civis . Seus principais livros
SEBAG Lucien , Marxisme et structuralisme, Paris, UGK , col . 10/ 18, Paris, 1964
VINCENT Jean - Marie , Fétichisme et société, Paris, Anthropos , 1,973 - encontram - se traduzidos em diversas
l ínguas .
Tempo e progresso, mats uma filosofia da hist ória?

Além das obras já citadas:


ALTHUSSER Louis , “ Le marxismo n ’est pas un historicisme ” , in Lire le Capital,
-
Paris , Maspero, 1~ ed . 1965; 2 ~ ed . 1968; ed . bras. Ler p Çapital , JRio de
Janeiro, Zahar, 1980.
ANDERSON Perry , “ The Ends of History ” , in A Zone of Engagement , Verso,.
Londres e Nova York , Verso , 1992; ed . bras . O fim da história , Rio de
Janeiro, 2~ reimp. 1994 .
ANDREANI Toni , De la société à Thistoire, 2 vols . ( I . Les concepts communs
à toute société; II . Les concepts transhistoriques . Les modes de production ) ,
Paris, M é ridiens- Klincksieck , 1989 -
BLOCH Ernst , Le principe esperance, Paris , Gallimard , 3 vols., 1976 e s .
BUKHARIN Nicolai , La théorie du rnatérialisme historique. Manuel populaire
de sociologic marxiste, Paris , Anthropos, reed . 1977.
COHEN Gerald A . , Karl Marx 's Theory of History, A Defense, Oxford , 1978.
COR 1 AT Benjamin , Science, technique et capital, Paris , Seuil , 1976 .
Correspondance Marx- Lassallc ¡848- 1864 , apresenta çã o de S Dayan - Herz -
brun , Paris, PUF, 1977.
GORZ André , Critique de la division du travail ( antologia ), Paris , Seuil , col
Points, 1973.
HENRY Michel , Marx, tomo II . Une philosophic de l’économie, Paris, Gallimard ,
1976.
LABRTOLA Antonio , Saggi sul materialismo storico, Roma Riuniti , 1964 ; ed .
bras. Ensaios sobre o materialismo hist órico, Sao Paulo, Athena , s .d .
MARX / BAKUNIN , Socialismo antoritaire ou lihertaire, textos escolhidos e
apresentados por Georges Ribeill , 2 vols . , Paris, UGK , col . 10/18, 1975 .
MELOTTI Umberto, Marx e il Terzo Mondo . Per uno schema multilineare dello
sviluppo storico, Mil ão, 11 Saggiatore , 1972 .
-
NEGRI Antonio , Marx au d éla de Marx, Paris, Bourgois , Paris, 1979
RAYMOND Pierre , La resistible fatalité de Thistoire, Paris , J . E . Hallier / Albin
Michel , Paris , 1982 .
SCHWARTZ Yves , Experience et connaissance du travail , apresenta çã o de
Georges Canguilhem , posfacio de Bernard Bourgeois , Paris , Ed .Socia
les/ Messidor, 1988 .
TER RAY Emmanuel , Le marxismo devant les sociétés primitives, Paris , M . spero,
1968.
A FILOSOFIA DE MARX

O marxismo, atualmente em plena reformulação,


n ão estaria se tornando componente de um pensa ¬

mento mais amplo? Livre de qualquer pretensão de


constituir por si mesmo uma “ concep çã o de
mundo” , escapando às oscilações que marcaram seu
passado recente entre a condi ção de uma quase
religi ã o e a de uma pseudo-ci ê ncia o pensamento
,

filosófico oriundo de Marx reelabora suas questões


primeiras.
Ao cabo de um século e meio de controv é rsias apai
¬

xonadas, em que a “ filosofía marxista” foi tema ou


alvo. é hora de um balan ço e de um progn óstico, o
que Balibar realiza neste livro com elegâ ncia e
simplicidade.

-
ISBN 85-7110 313- 5

9 " 788571 11 103139

[ J - Z - El Jorge Zahar Editor

Vous aimerez peut-être aussi