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Paulistas

e colonos
de São Paulo

M
uito pouco se escreveu até hoje sobre a
Inquisição em São Paulo. Tema apaixo-
nante mas pouco pesquisado, malgrado a
existência de documentação substantiva dios envolvendo moradores da Capitania
que nos permite afirmar que este Monstrum de São Paulo – material em sua maior parte
Horribilem, o famigerado Tribunal do San- inédito e que aguarda que algum pesquisa-
to Ofício da Inquisição, teve atuação muito dor da terra lhe dê tratamento mais acurado
mais freqüente e repetida na Capitania de e a divulgação que está por merecer.
São Paulo do que até agora os historiadores Praticamente todos os crimes persegui-
revelaram. dos pela Inquisição foram praticados e de-
Quando se fala da presença do Santo nunciados em São Paulo, destacando-se 16
Ofício da Inquisição no Brasil, imediata- padres solicitantes, oito sodomitas, sete
mente se pensa no Nordeste, posto terem bígamos, sete feiticeiros, três autores de pro-
sido a Bahia e Pernambuco as capitanias posições heréticas, dois cristãos-novos e
mais atingidas pela famigeradas visitações ainda dois episódios envolvendo irregula-
de 1591 e 1618 (1). Embora bem menos ridades no exercício do cargo de Familiar
devassadas, também as capitanias do Sul, do Santo Ofício. Tais números certamente
inclusive São Paulo, padeceram terríveis estão sujeitos a acréscimos – sobretudo
constrangimentos e perseguições por parte quanto à presença dos cripto-judeus, a mi-
do incendiário Monstro Sagrado, tanto que noria religiosa mais perseguida pela sanha
dos 20 moradores do Brasil a serem quei- inquisitorial – sobre os quais o leitor inte-
1 Sônia Siqueira, A Inquisição
mados nos Autos de Fé de Lisboa, quando ressado encontrará maiores informações
Portuguesa e a Sociedade menos dois eram residentes nos planaltos notadamente nas obras de José Gonçalves
Colonial, São Paulo, Ática,
1978. de Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita
2 Arnold Wiznitzer, Os Judeus no Miguel de Mendonça Valhadolid (1731), Novinsky (3).
Brasil Colonial, São Paulo, Pi- ambos inculpados por praticar a Lei de Moi- Dos residentes na Capitania de São
oneira, 1966, p. 147.
sés (2). Paulo cujos nomes e desvios chegaram ao
3 José G. Salvador, Os Cristãos-
Novos: Povoamento e Conquis- Após prolongadas pesquisas na Torre Tribunal do Santo Ofício, nos concentrare-
ta do Solo Brasileiro, São Pau-
lo, 1976; Cristãos-Novos, Je-
do Tombo, de Lisboa, onde estão arquiva- mos inicialmente nos inculpados em cri-
suítas e Inquisição, São Paulo, dos mais de 40 mil processos inquisitoriais mes da fé: sete acusações de feitiçaria, três
Pioneira, 1969. Anita W.
Novinsky, Inquisição. Inventá- e outro tanto de denúncias e confissões per- denúncias de proposições heréticas e dois
rios de Bens Confiscados a tencentes à alçada do Santo Ofício, locali- casos de livres-pensadores. Numa segunda
Cristãos-Novos , Lisboa, Im-
prensa Nacional, 1977. zamos pessoalmente, até agora, 47 episó- parte deste ensaio analisaremos as histó-

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Agradeço ao CNPq a dotação
que me permitiu realizar pesqui-
sas na Torre do Tombo, onde co-
letei material para este ensaio. Este
artigo faz parte de um estudo mais

TT
amplo intitulado “Moralidade e Se-

O
xualidade no Brasil Colonial”, e

M
uma versão modificada foi origi-

IZ
nalmente publicada no D.O. Leitu-

LU
ra (SP, 9 (101), outubro de 1990;
10 (120), maio de 1992).

nas garras
da Inquisição
portuguesa LUIZ MOTT é professor
da Universidade Federal
da Bahia.

sas redes paulistas tão disputadas pelos


viajantes coloniais. É nessa segunda meta-
de do século XVIII que tem lugar a maior
rias de vida de 16 padres residentes na Ca- ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba
pitania de São Paulo envolvidos com me- e Itu – exatamente as áreas mais citadas nos
lindroso pecado: a solicitação no confessi- medonhos Cadernos do Promotor da
onário de suas penitentes para atos torpes, Inquisição de Lisboa.
na época chamada de “solicitatio ad
turpia”.
Deixaremos para outra ocasião o estu-
do dos demais desviantes sexuais: os oito HEREGES E LIBERTINOS
sodomitas (homossexuais masculinos) e os
sete bígamos. Desses doze episódios desviantes em
Os doze episódios atinentes aos chama- questão de fé ocorridos em São Paulo, co-
dos “crimes contra a fé” ocorreram entre os mecemos pelo mais recuado cronologica-
anos de 1741 e 1781, portanto no período mente – 1741 –, quando um cidadão re-
que inclui a restauração da capitania (1765) sidente na Vila de Araritaguaba (hoje Por-
e a chegada de seu primeiro bispo (1764), to Feliz) é denunciado ao Santo Ofício como
época em que essa região, até então muito libertino. Eis como o dicionarista Antônio
marcada pelo apresamento e tráfico de ín- de Moraes e Silva, ele próprio denunciado
dios, amplia sua base econômica, passan- à Inquisição de Coimbra por esse mesmo
do a incrementar, além da policultura de crime, definia o que era um libertino: “In-
subsistência, a florescente agroindústria divíduo que é incrédulo na religião e ofen-
açucareira e a manufatura têxtil, as famo- de as suas práticas; pessoa que sacudiu o

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jugo da revelação, entendendo que a razão “libertino”, ratificando a preferência do réu
por si só pode guiar com certeza no que res- por negros boçais, incluindo entre seus cúm-
peita a Deus, à vida futura etc., e por isso não plices alguns nativos de Angola, Congo,
segue os preceitos da religião, antes, pratica Benguela, além de crioulos, aos quais “re-
atos contrários aos seus princípios” (4). galava-os com comida e aguardente, brin-
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20- dando-os ele primeiro…”. Um sodomita
25 de setembro de 1741, inculpando Lucas reinol praticante da democracia racial em
da Costa Pereira, natural do Funchal, então pleno período escravista… Entre seus des-
morador na Freguesia de Nossa Senhora da vios religiosos, além dos já citados, cons-
Penha de Araritaguaba, sita na margem tava “só querer comer toucinho com cou-
esquerda do Rio Tietê, a cinco léguas de ves às sextas-feiras”. Sacrilégio cabeludo
Itu, célebre porto de onde partiam as mon- para aquela época em que qualquer
ções rumo à hinterlândia (5).O acusado era pecadilho levava os católicos a uma eterni-
“cirurgião aprovado” e constava ter per- dade de dias nas chamas do purgatório.
corrido “toda a América Meridional, assis- Quando do início desse Sumário, o ci-
tindo em muitas terras, aldeias e arraiais da rurgião Lucas já tinha se retirado de São
Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, entre Paulo, com destino às Minas de Goiás, tan-
elas Pindamonhangaba e Taubaté”. Devia to que somente por volta de 1747 é que a
beirar os 50 anos quando chegou à Inquisição conseguirá finalmente agarrar o
Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse sodomita libertino de Araritaguaba, sendo
cirurgião madeirense “come carne nos dias condenado primeiro à pena dos açoites, em
proibidos, não ouve missa e é acostumado seguida a dez anos de degredo nas galés
a ter atos sodomíticos, sendo agente, com del-Rei.
vários negros boçais para cujo fim os sus- Por conta das Visitas Pastorais realiza-
tenta com largueza” (6). Um de seus de- das no Bispado de São Paulo pelo padre
nunciantes ostentava nome pomposo: Ca- Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-
pitão Salvador Martins Bonilha, morador 71, diversos são os desviantes a ter seus
na mesma freguesia, que interpretou as prá- nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lis-
ticas libertinas do cirurgião andarilho como boa. Entre eles, o tropeiro Luiz Carvalho
“crime de judaísmo”, acrescentando ao rol Souto, também morador na Freguesia de
de suas culpas um hediondo sacrilégio Nossa Senhora Mãe dos Homens de
muitas vezes atribuído aos cripto-judeus: Araritaguaba, que, como o cirurgião do
“teria metido no fogo uma imagem do Me- Funchal, mantinha acesa nessa vila a cha-
nino Jesus!”. Zeloso, o comissário do San- ma iluminista da “seita dos libertinos”;
to Ofício local acondicionou num tufo de sendo acusado de comer carne nos dias proi-
algodão a referida imagem carbonizada e a bidos, não se confessar conforme ordenam
despachou além-mar para que os próprios os mandamentos da Santa Madre Igreja,
delegados inquisitoriais avaliassem o sa- defendendo ainda a herética proposição de
crilégio. Solícitos em cortar o mal pela raiz, que “o sexto mandamento (não pecar con-
ordenam os inquisidores a abertura de um tra a castidade) não era pecado e nem leva-
4 Antônio Moraes e Silva, Dicio-
nário da Língua Portuguesa, Sumário – ordem que leva seis meses de va ninguém ao inferno” (7). Centenas de
Lisboa, Empresa Literária
viagem para chegar do Reino às margens colonos e moradores não só do Reino de
Fluminense, s/d.
do Tietê. Aos 20 de agosto de 1743 tem Portugal mas também da Espanha foram
5 Manuel Aires de Casal,
Corografia Brasílica (1817), início o inquérito secreto “em um corredor igualmente denunciados ao Santo Ofício
Belo Horizonte/São Paulo,
Itatiaia/Edusp, 1976, p. 114. do Convento do Carmo da Vila de Itu”, por defender publicamente a mesma con-
6 Arquivo Nacional da Torre do
desempenhando o cargo de comissário do vicção: que a “fornicação simples”, como
Tombo (doravante ANTT), Santo Ofício o padre Miguel Dias Ferreira os teólogos chamavam às práticas sexuais
Inquisição de Lisboa, Caderno
do Nefando no 19, fl. 411, e como escrivão o carmelitano frei Diogo de gente desimpedida fora do casamento,
20/9/1741. Antunes. Uma dezena de testemunhas con- não era moralmente condenável.
7 ANTT, Inquisição de Lisboa, firma as acusações, insistindo, contudo, Além destes dois libertinos das margens
Caderno do Promotor no 129,
Araritaguaba, 25/9/1765. mais no crime de sodomia do que no de do Tietê, mais quatro moradores da Capi-

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tania de São Paulo são denunciados por Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal
emitirem opiniões contrárias à ortodoxia do Rossio a informação inculpando mais um
católica. Em 1762, na Vila de Taubaté, paulista: constava que Manoel José, vende-
Pascoal Pereira, solteiro, defendia que “as dor de fazendas secas, defendia que “no in-
almas condenadas haviam de ser remidas, ferno não se padeciam tormentos e os pa-
e sua condenação não seria eterna” (8), dres diziam isto para aterrorizar, pois (o
opinião muitas vezes ressuscitada ao longo castigo) era somente o não ver Deus” (13).
dos dois milênios da história cristã, e que Opinião absolutamente contrária aos dog-
teve em Giovanni Papini (1881-1956) seu mas da Sagrada Teologia que afirmava “so-
mais recente defensor. Proposição herética frerem os réprobos no grande lago da ira de
altamente revolucionária – não obstante Deus, duas sortes de castigos: a pena do da-
estar muito mais próxima da caridade cris- no, que consiste na privação da vista de Deus
tã do que a intransigência do preceito e a pena do sentido, o tormento de arder num
canônico católico oficial – pois abria espa- fogo que nunca se extinguirá!” (14).
ço para os réprobos (condenados ao infer- Ainda mais um paulista tem seu nome
no) de no futuro se beneficiarem da mise- registrado nos volumosos e temidos Ca-
ricórdia divina – relativizando destarte o dernos do Promotor da Inquisição de Lis-
medo da condenação eterna. boa, inculpado de proferir heresias relati-
Em 1770, na Devassa realizada pelo vas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda,
incansável visitador padre Policarpo de “morador em Jacuí, Capitania de São Pau-
Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa lo” , vivia amancebado com uma cunhada,
Senhora do Bonsucesso de Pindamonhan- e defendia que por esta causa não devia ser
gaba, saiu denunciado Pedro Antônio, “ne- excomungado conforme determinavam as
gociante de negros e animais”, acusado Constituições Primeiras do Arcebispado
de também defender que “Jesus não deixou da Bahia (§969 e seguintes), alegando ha-
o 6o Mandamento como pecado entre os ver muitos homens amancebados com suas
solteiros, e só o deixou por São Pedro ins- comadres, cunhadas e parentes, “e se Deus
tar…” (9) certamente alegando ter sido o não houvesse de dar o céu aos homens por
Príncipe dos Apóstolos o único dos discí- causa do 6o Mandamento, que guardasse o
pulos a ter a sogra citada no Evangelho. céu para palheiro, acrescentando que o 6o
Pelo visto, a defesa de que a “fornicação Mandamento não era pecado pois se o fos-
simples não era pecado” foi das proposi- se ninguém se salvaria”, defendendo ainda 8 ANTT, Inquisição de Lisboa,
Caderno do Promotor no 126,
ções heréticas mais constantes não só na abertamente a herética proposição de que Taubaté, 8/6/1762.
Península Ibérica, como também na Amé- “a fornicação simples não era pecado” (15). 9 ANTT, Inquisição de Lisboa,
rica Latina, inclusive em São Paulo Colô- Êta paulistaiada petulante! Caderno do Promotor no 129,
Pindamonhangaba, 10/12/
nia (10), vertente heterodoxa reforçada pela 1770.
generalizada e até hoje cantada opinião em 10 Ronaldo Vainfas, Trópico dos
verso e prosa de que “não existe pecado Pecados , Rio de Janeiro,

debaixo do Equador”. FEITICEIROS, CURADORES E Campus, 1989.


11 ANTT, Inquisição de Lisboa,
No ano seguinte, o mesmo sacerdote
comunica a Lisboa que na visita à Fregue-
MANDINGUEIROS Caderno do Promotor no 129,
Atibaia, 18/2/1771.
12 Aires de Casal, op. cit., 1976,
sia de São João de Atibaia saiu denunciado p. 114.
o sitiante Francisco Camargo Pimentel, por Entre 1762-81 chegam à Inquisição lis-
13 ANTT, Inquisição de Lisboa,
repetir o mesmo impropério: que “o 6 o boeta sete denúncias contra moradores da Caderno do Promotor no 129,
Itapeva, 4/10/1777.
Mandamento não era pecado” (11). Até na Capitania de São Paulo envolvidos com a
14 Abade Ambrósio Guillois,
remota Itapeva, situada junto à estrada real prática de diferentes tipos de sortilégios, Explicação Histórica,
na vizinhança do Rio Verde, pequena vila sendo três curadores, três feiticeiros e um Dogmática, Moral, Litúrgica e
Canônica do Catecismo, Por-
com matriz dedicada a Sant’Ana (12), ha- portador de uma “bolsa de mandinga” , três to, Livraria Internacional,
1878, p. 426.
via leigos que ousavam interpretar a dou- dos quais viviam em Guarapiranga, e os
trina à sua moda, em flagrante conflito com restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cru- 15 ANTT, Inquisição de Lisboa,
Caderno do Promotor no 131,
o ensinamento de Roma. zes e Sorocaba. Todos os protagonistas Jacuí, 27/7/1781.

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destes episódios, em sua maior parte, são sangüíneo ainda cheirava vinho”, sugerin-
descendentes de africanos, e suas histórias do ter sido recentemente surrupiado da sa-
permaneceram até hoje ignoradas na poei- cristia. Ao ser inquirido por que razão tra-
ra dos arquivos inquisitoriais, e é com ale- zia a dita hóstia consagrada, respondeu o
gria que os resgatamos à luz do dia, forne- mulato João que “era para comungar na
cendo aos estudiosos das religiões afro- hora de sua morte”, inspiração piedosa
brasileiras informações inéditas sobre prá- porém sacrílega, posto que até poucos anos
ticas divinatórias e cerimônias cabalísticas apenas os sacerdotes tinham o privilégio
praticadas em São Paulo na segunda meta- de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso
de dos Setecentos. Senhor Jesus Cristo. Só um estudo compa-
As chamadas bolsas de mandinga ou rativo dos outros réus do Brasil, que por
patuás eram amuletos apreciadíssimos pe- trazerem semelhantes bolsas de mandinga
los colonos afro-luso-ameríndio-brasilei- foram presos e processados nos cárceres
ros, tendo levado às barras do Tribunal da secretos da Inquisição, poderá esclarecer
Fé mais de uma dezena de escravos e liber- por que este escravo de Sorocaba teve
tos não só do Brasil, como também de Por- melhor sorte, sendo arquivado este Sumá-
tugal (16), sendo este o motivo da realiza- rio sem que os inquisidores determinassem
ção de um Sumário de culpas na Visita seu aprisionamento. Aliás, salvo erro, ne-
Pastoral de Sorocaba no ano do Senhor de nhum dos residentes em São Paulo acusa-
1767. “Vila considerável e florescente, é dos pela prática de feitiçaria chegou de fato
ornada com uma igreja paroquial da invo- a ser encarcerado pela Inquisição, nem mes-
cação de Nossa Senhora da Ponte, um re- mo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula,
colhimento de mulheres, um Hospício de escrava de Manoel Pereira Camargo, resi-
Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e dente em Cotia, infamada de ter morto a
outra dedicada a Nossa Senhora do Rosá- muitas pessoas graças a seus medonhos
rio, cuja construção os pretos continuam” feitiços (19).
(17). Famosa por sua feira de muares, em Sobre alguns destes feiticeiros e cu-
Sorocaba se concentrava buliçosa popula- radores dispomos de interessantes informa-
ção de tropeiros, vaqueiros, tangedores e ções sobre o modus operandi no exercício
viandantes, os principais aficionados desta de suas artes divinatórias. Vários deles vi-
devoção a um tempo sincrética e sacrílega, viam sob o jugo da escravidão, como o negro
à qual se atribuía o poder de “fechar o cor- José, escravo de Francisco Andrade, mora-
po” contra todo tipo de perigos físicos ou dor na Freguesia de Santana de Mogi das
malefícios diabólicos. Cruzes, contra o qual é feito um Sumário
O acusado era conhecido tão-somente em que 19 testemunhas fornecem interes-
pelo nome de João, Mulato Escravo. Ao ser santes detalhes etnográficos sobre suas
agarrado pela autoridade eclesiástica, aber- mistificações (20). É acusado de “curar
16 Luiz Mott, “A Vida Mística e
Erótica do Escravo José Francis- to o patuá que trazia no pescoço, dentro se feitiços no Distrito a fora, adivinhando
co Pereira”, in Tempo Brasilei- encontrou um pedaço de sangüíneo (espé- quem os botou, usando de uma panela (de
ro, (92-93), jan./jun. 1988,
pp. 85-104; Laura de Mello cie de guardanapo utilizado na missa para barro) nova, onde colocava caveiras de
Souza, O Diabo na Terra de
Santa Cruz, São Paulo, Com- limpar as derradeiras gotas do sangue de caranguejos (e de outros animais) com água,
panhia das Letras, 1988. Cristo conservadas no cálice), um pedaci- e na boca mete um dedal de prata dizendo
17 Aires de Casal, op. cit., 1976, nho de corporal (toalhinha destinada a abri- certas palavras, tendo um frango preto ao
p. 114.
gar partículas do corpo de Cristo caídas no lado da panela”. Uma testemunha dá outras
18 ANTT, Inquisição de Lisboa,
Caderno do Promotor no 129, altar), além da folha de um missal com informações: disse que as caveiras usadas
Sorocaba, 1767. oração e gravura de Jesus, uma hóstia con- por José eram de pássaros (corvos) e que,
19 ANTT, Inquisição de Lisboa, sagrada – que, segundo declarou o réu, fora- durante o “trabalho”, falava palavras em
Caderno do Promotor no 130,
Denúncia do Comissário Salva- lhe ofertada por um sacristão – “e muitas sua língua nativa, desenterrando com uma
dor Camargo Lima, 1781.
outras coisas, como raízes, dentes de co- faca, dentro ou fora das casas, assim como
20 ANTT, Inquisição de Lisboa, bra, etc. que por não serem da Igreja, foram pelas encruzilhadas das estradas, misterio-
Caderno do Promotor no 126,
Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762. queimadas” (18). Diz o documento que “o sas botijas ou saquinhos repletos de ossos

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de sapo, penas, vidros, cabelos, pimenta, qual, certa vez, chamando pelo Diabo à
agulhas e outros espantosos ingredientes. meia-noite, em vez de apenas um, aparece-
Tinha também o costume de tirar água da ram dois demônios, entrando um no corpo
dita panela e aspergir com a boca pela so- do escravo Felipe e o outro se apossando de
leira da porta, ou esguichando-a no chão seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de
quando abria os ditos buracos para desen- Santos garantia que, enquanto esteve pre-
terrar feitiços mantendo sempre o galo pre- so, uma cobra se encarregava de guardar os
to a seu lado, do qual, certa feita, tirou três feitiços que enterrara na casa de seu amo.
penas do rabo, com elas fazendo uma cruz Ao ser-lhe arrancada do pescoço sua bolsa
quando no ato de descobrir malefícios. A de mandinga, assim foram identificados
um doente recomendou o uso de seus ingredientes: um dedo de criança (21),
defumadores. Tudo leva a crer que o es- lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de
cravo José gozava de boa consideração por sapo, raiz de mil-homens (planta da famí-
onde passava, tanto que na época em que lia das Aristolóquias, usada como
morou na Freguesia da Sé, na cidade de contraveneno nas picadas de cobra),
São Paulo, freqüentou ilustres residências, unicórnio (chifre de rinoceronte). Irônico,
tendo tratado de dona Antônia Pinta do o Capitão do Forte da Praça de Santos con-
Rego, e em Mogi a Maria de Cândia clui assim sua denúncia: “Se o escravo
Siqueira, além de outros brancos e a incon- Felipe é feiticeiro, que o Santo Ofício con-
táveis negros. clua…” (22).
Enquanto este negro de Mogi das Cru- Encerramos esta primeira coleção das
zes era expert em desenterrar feitiços, na histórias dos moradores de São Paulo de-
Vila de Santos outro escravo era denunci- nunciados ao Tribunal da Inquisição pelo
ado exatamente pelo contrário: por ser au- crime de feitiçaria com três acusações
tor de terríveis malefícios. Chamava-se registradas na Vila de Guarapiranga (mu-
Felipe – e encontrava-se preso por ordem nicípio de Ribeirão Bonito, zona do
do Capitão do Forte da Praça de Santos, Paranapiacaba), no ano do Senhor de 1772.
sob a acusação de ter feito um feitiço tão Diferentemente de todos os demais casos,
forte e peçonhento contra seu senhor, o qual aqui o delatado é um branco, Bento de Lima
“só tem calma mediante os exorcismos da Prestello, sobrenome de origem italiana, e
Igreja”. Provavelmente pressionado por seu denunciante, Isidoro da Silva Costa,
violenta tortura, o preto Felipe confessou residente na Capela de São Miguel, no
ter praticado os seguintes malefícios: pri- mesmo distrito. Disse que este curador vie-
meiro misturou na comida de seu amo um ra das minas do Sabará, da Freguesia de
bocadinho de pó de defunto e dente de ja- Santo Antônio da Roça Grande, e assim
caré, provocando-lhe fortes dores nas ca- praticava seus rituais heterodoxos: “punha
deiras e barriga; em seguida, enterrou de- na mão do enfermo umas raízes contra be-
baixo da porta de sua casa um pássaro mir- ninos (‘doença que não apresenta caráter
rado, dois ovos de galinha e uma raiz gros- grave’), para saber se tinha ou não feitiços,
sa de butá (planta da família das Menis- e se a mão tremia, tinha; benzia então o
permáceas, também chamada “falso enfermo dizendo: Jesus, Nome de Jesus,
paratudo”, raiz medicinal preta por fora e Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe a
amarela por dentro). Disse ter feito este quem te acanhou. Deus te tire o mal que no
feitiço “para seu senhor ir mirrando, e que teu corpo entrou: o ar de lua, ar de figueira,
quando os ovos apodrecessem, também lhe ar de pereira, ar de perlezia, ar de corrupto,
21 Luiz Mott, “Dedo de Anjo, Osso
apodreceriam as entranhas e que a raiz do ar de inveja, ar de feitiçaria, ar de enchaque, de Defunto: os Restos Mortais
butá era para ele conservar a vida e não ar de maleitas e mais coisas que não estou na Feitiçaria Afro-luso-brasilei-
ra”, in D.O. Leitura, São Pau-
morrer logo”. O negro era o Cão! Disse ciente pelos poderes da Virgem Maria, São lo, 8 (90) novembro 1989, pp.
1-3.
mais, que fora o preto crioulo Manoel, en- Pedro e São Paulo, que o corpo de Fulano
tão trabalhando nas minas de Mato Grosso, fique são e salvo como na hora em que foi 22 ANTT, Inquisição de Lisboa,
Caderno do Promotor no 129,
quem lhe ensinara tais artes cabalísticas, o nascido, assim como Nosso Senhor sarou Santos, 7/10/1776.

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das cinco chagas. Padre-Nossos, Ave Ma- funda é chamar a atenção de todos, pesqui-
ria”. Além desta reza forte, o curador sadores e leitores, para o perigo representa-
Prestello é acusado de exorcizar os do pela hegemonia dos monstros sagrados
endemoniados – privilégio exclusivo dos – sejam os Minotauros, Chibungos,
sacerdotes detentores da autorização epis- Inquisições e espectros quejandos, que, à
copal – “fazendo adivinhações com uma moda dos mistificadores, quiromantes e
grande bolsa, batendo os pés no chão como prestidigitadores do além, pretendem ser
fazem os exorcistas, e com uma cruz de os donos de uma verdade revelada que no
contas fazia cruz na cabeça da pessoa en- mais das vezes não passa de simplória ali-
ferma que tinha espírito maligno, dizendo enação quando não condenável charla-
umas palavras incompreensíveis e também tanismo. Concluo a primeira parte deste
batia com a bolsa na parte dolorida do en- ensaio fazendo minhas as palavras lumina-
fermo” (23). res do dr. Antônio Gonçalves Gomide, que
Nessa mesma ocasião são denunciados em 1814 publicou um corajoso opúsculo
como feiticeiros mais dois moradores da desmascarando a falsa santidade de uma
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição beata mineira, sua contemporânea: “Tal-
de Guarapiranga: o escravo identificado vez me argúam dizendo: que te importa a
como João, preto mina, useiro em receitar piedosa fraude em que vivem satisfeitos os
remédios cabalísticos, o qual, ao ser procu- crédulos? Privá-los desta ilusão não é tirar-
rado por um tal Pedro Teixeira, respondeu lhes um entretenimento que os consola?
que “não podia curar sem falar com sua Respondo: A verdade é o principal elemento
gente” – provavelmente referindo-se a seus da vida social. A impostura aos ignorantes
ancestrais desencarnados, aos quais os na- eqüivale à opressão da força sobre os mais
tivos da Costa da Mina atribuem poderes fracos. O filósofo deve achar e promulgar
preternaturais. Embora africano nato, este a verdade” (25).
João de Guarapiranga já incluía em seus
rituais inovações apropriadas da tradição
luso-brasileira: “fez uma cruz no chão e no
seu meio pôs uma pedra de sal e pingava- AMORES CLERICAIS EM SÃO
lhe uma pinga de cachaça, dando logo asso-
bios na tal cruz, e saudava a todos com PAULO COLONIAL
Louvado Seja Cristo! e como não entendi-
am os tais assobios, explicava o preto de Abordamos a seguir uma outra catego-
boca”. ria de crimes igualmente devassados pelo
Além de João Mina, outro feiticeiro de Tribunal do Santo Ofício da Inquisição
Guarapiranga é citado na mesma denún- tanto no Reino quanto no Ultramar e que
cia: José Gonçalves, preto forro, o qual em São Paulo encontrou numerosos adep-
“fazia adivinhações por diferente modo – tos: a solicitação para atos torpes no con-
com uma boceta (caixinha de guardar rapé) fessionário.
dava assobios e depois aplicava os remé- “É melhor casar do que se abrasar”,
dios ensinados por sua gente” (24). ensinou o Apóstolo Paulo em sua primeira
Por mais de dois séculos esta dezena de Epístola aos Coríntios. Muitos cristãos, jul-
23 ANTT, Inquisição de Lisboa, feiticeiros, libertinos, hereges e curadores
Caderno do Promotor no 129,
gando-se chamados e vocacionados para a
Guarapiranga, 10/5/1772. ficaram esquecidos na poeira dos arquivos. vida religiosa, abraçaram o sacerdócio, quer
24 ANTT, Inquisição de Lisboa, Ao resgatar-lhes a memória, duas foram servindo a Igreja sob a jurisdição direta do
Caderno do Promotor no 129,
Guarapiranga, 10/5/1772. nossas intenções: estimular outros pesqui- Bispo – o chamado clero secular –, quer
25 Antonio Gonçalves Gomide,
sadores a rever cuidadosamente os manus- fazendo votos solenes nas Ordens Religio-
“Impugnação Analítica ao Exa- critos originais que aqui nos contentamos sas – os frades e monges do clero regular.
me Feito em uma Rapariga que
Julgaram Santa na Capela da em resumir, além de indicar sua localização Para estes, o celibato fazia parte de uma
Piedade, Comarca de Sabará”, arquivística, facilitando o trabalho de futu- opção pelo “caminho da perfeição”, inclu-
Rio de Janeiro, Imprensa Régia,
1814. ros estudiosos. Nossa intenção mais pro- indo a observância dos três votos: pobreza,

122 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 116-128, março/maio 2000


castidade e obediência. Para os padres se- em romances proibidos nem sempre clan-
culares, também chamados de “presbíteros destinos, conforme atesta farta documen-
do hábito de São Pedro”, não havia exigên- tação. Como o controle social exercido pela
cia dos votos religiosos, obrigando-os, con- população vis-à-vis os tonsurados era cons-
tudo, até hoje, ao cumprimento do celiba- tante, existindo duras penas para os sacer-
to, não como uma condição sine qua non dotes inculpados no delito de amancebia e
do exercício presbiteral, mas como parte de má fama pública (27), a fim de evitar tais
da disciplina eclesiástica da Igreja Católi- riscos muitos sacerdotes acautelavam-se ao
ca Romana. Portanto, fazem parte intrínse- máximo, quando cediam à tentação de pe-
ca da vocação religiosa os três votos, en- car contra o 6o mandamento. Considerando
quanto para sacerdócio tout court o celiba- ainda o rigor do enclausuramento femini-
to não passa de uma imposição canônica, no no Brasil de nossos tataravós, sendo
dispensada por exemplo na Igreja Católica praticamente impossível a uma moça ou
do Oriente, e que no futuro poderá ser mulher de família estabelecer conversação
abolida pelo Vaticano, conforme demons- em particular com homem algum, além do
tra desejar significativa parcela do clero senhor seu pai, irmãos e marido, não resta-
secular. va outro espaço de intimidade aos sa-
Se hoje em dia, com a abolição do uso cerdotes temerosos de serem vistos entran-
da batina e da tonsura (aquela coroinha do em casas de mulheres suspeitas, viúvas
usada pelos clérigos no cocuruto), os pa- desonestas ou mesmo “mulheres de trato
dres tornaram-se cidadãos comuns, in- ilícito”, senão o secreto dos confessioná-
distinguíveis na multidão, o mesmo não rios. Foi portanto no sagrado espaço do
ocorria até a época de João XXIII, e sobre- “tribunal da confissão” que muitos e mui-
tudo no período colonial, estando os sacer- tos sacerdotes deixaram-se abrasar por
dotes obrigados ao uso de hábito religioso paixões proibidas, confiantes de que suas
ou da sotaina. Se tais vestes e distintivos amadas, pelo respeito devido ao sacramen-
conferiam dignidade e respeito aos minis- to da penitência, e pelo temor da desonra,
tros do altar, por outro lado representavam conservariam secretas suas juras de amor,
uma espécie de prisão, pois onde estives- seus avanços libidinosos ou solicitações
sem, mesmo em terras desconhecidas, se- para atos torpes. Era este exatamente o
riam facilmente identificáveis por qualquer rótulo que o Direito Canônico dava para o
transeunte. As já citadas Constituições do delito perpetrado pelos confessores no ato
Arcebispado da Bahia, de 1707, carta mag- da penitência: “solicitatio ad turpia”.
na da vida religiosa colonial, prescrevem Mais do que pecado mortal contra o 6o
com minúcia de detalhes todo o guarda- mandamento da Lei de Deus, mais do que
roupa permitido e proibido para os cléri- delito contra o Direito Canônico, “solici-
gos, legislando desde os chapéus, anéis, cor tar” alguém, homem ou mulher, no confes-
da batina, ligas e meias, até os calçados sionário, constituía crime privativo do Tri-
permitidos quando os clérigos andassem bunal do Santo Ofício da Inquisição. Eis
na rua, ou celebrassem a santa missa. Pelo como o Regimento definia tal crime: “Se
visto alguns sacerdotes exageravam no algum confessor no ato da Confissão sa-
esmero e vaidade no vestir, obrigando as cramental, antes ou imediatamente depois
Constituições a proibir que usassem “vesti- dele, ou com ocasião e pretexto de ouvir
dos de cor, meia com pontas ou rendas de confissão, fingindo ouvi-la, solicitar ou de
ouro ou ligas de rosas…” (26). Foi contudo qualquer modo provocar a atos ilícitos e
no domínio da castidade que o clero no desonestos, com palavras ou tocamentos
Brasil colonial encontrou seu principal res- impudicos para si ou para outrem, às pes-
26 Constituições Primeiras do
valadouro: não podendo casar, muitos e soas a que ele se forem confessar, assim Arcebispado da Bahia, D. Se-
bastião Monteiro da Vide, São
muitos sacerdotes viviam “abrasados”, seja mulheres como homens, havendo prova Paulo, Tipografia 2 de dezem-
mantendo ligações duradouras com bastante ainda por testemunhas singulares, bro, 1853, § 441 e segs.
“mancebas”, seja saltitando aqui e acolá, se for clérigo secular, fará abjuração de leve, 27 Idem, ibidem, 966-988.

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será privado para sempre do poder de vo aqui será transcrever, sumariamente, as
confessar, e condenado nas mais penas jus- denúncias deste crime relativas ao Bispado
tamente agravadas pelo Santo Padre Bento de São Paulo. Mais do que enxovalhar a
XIV, e será degredado por oito até dez anos moral dos curas d’alma de antanho, nossa
para fora do Bispado e para sempre do lo- intenção é demonstrar uma faceta desconhe-
cal do delito, pelo escândalo que nele deu cida de um segmento social – o clero –, que,
com as suas culpas” (28). apesar das restrições canônicas proibitivas
A Inquisição tinha razão em castigar tão de atos ilícitos e desonestos, nem por isso
severamente os confessores libertinos, pois deixou de possuir e desenvolver sentimen-
esses padres desmoralizavam, pela sua ou- tos nobres de amor e paixão – alguns; en-
sada lascívia, a santidade de um sacramen- quanto outros, à imitação dos demais ho-
to que a duras penas a hierarquia da Igreja mens seculares de sua época, nortearam-se
de Roma tentava convencer os cristãos a pelo mesmo egoísmo e misoginia típicos
respeito de sua indispensabilidade para a de nossa ideologia machista.
salvação. Muitos foram os cristãos proces- Ao todo localizamos até agora 16 sa-
sados pela Inquisição por defenderem não cerdotes residentes na Capitania de São
ser necessária a confissão auricular – here- Paulo cujos nomes constam nos Cadernos
sia divulgada pelos protestantes, que pre- dos Solicitantes – documentação conserva-
tendiam que bastava o arrependimento ín- da na Torre do Tombo de Lisboa. Destes, 9
timo dos pecados para se obter o perdão de eram padres seculares, dependentes direta-
Deus (29). mente do bispo, 7 eram frades das Ordens
No Brasil, por volta de 500 sacerdotes Religiosas de São Francisco e de Nossa
foram acusados, junto à Inquisição, de te- Senhora do Carmo. As datas das denúncias
rem praticado a solicitatio ad turpia no variam de 1733 a 1761, mais da metade
confessionário. Destes, por volta de 10% concentrando-se na década de 40, período
chegaram de fato a ser processados e mere- em que é nomeado o primeiro bispo desta
cer os castigos previstos no Regimento (30). nova diocese, d. Bernardo Rodrigues No-
Foi sobretudo na segunda metade do sécu- gueira (1746-48). Quanto às freguesias
lo XVIII que o Santo Ofício perseguiu mais onde atuavam tais sacerdotes, destacou-se
diligentemente tal crime, demonstrando a Vila de Itu, com seis sacerdotes denunci-
uma preocupação da hierarquia eclesiásti- ados, seguida de Taubaté com 2 denúncias;
ca em depurar o rebanho cristão dos maus as demais, todas com apenas um solicitante:
pastores, que, travestidos debaixo da pele Araçariguama, Parnaíba, Mogi, Guara-
de cordeiro, agiam como lobos vorazes. piranga, Nossa Senhora da Piedade, Ilha de
Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de São Sebastião, São Miguel e Santos. Ne-
Janeiro foram as capitanias onde houve o nhum denunciado da cidade de São Paulo:
maior número de denúncias contra padres o mais próximo, de São Miguel.
solicitantes, aproximadamente 80% do Comecemos por Itu, “vila grande, abas-
total dos casos registrados no Livro de tada e florescente; cabeça da Comarca do
Padres Processados por Solicitação e seu nome, criada com uma igreja paroquial
28 Regimento do Santo Ofício
(1774), Lisboa, Edições Outros Crimes; mas não houve capitania da invocação de Nossa Senhora da Can-
Excélsior, 1974, título XV.
da Colônia que não tivesse seu nome ins- delária, um convento de Franciscanos, um
29 Luiz Mott, A Inquisição em crito neste indiscreto registro. Hospício de Carmelitas calçados, um Hos-
Sergipe, Aracaju, Fundação Es-
tadual de Cultura, 1989. A Capitania de São Paulo, se compara- pital de Lázaros com sua ermida, outra do
30 Lana Lage, Mulheres, Adúlteras da com as regiões supracitadas, conforme Senhor Bom Jesus, outra de N. Senhora do
e Padres, Rio de Janeiro, Dois
Pontos, 1987; “O Padre e a antecipamos, apresenta número muito in- Patrocínio e outra de Santa Rita. Todos os
Moça: o Crime de Solicitação ferior de habitantes denunciados e/ou pro- edifícios são de taipa, algumas ruas calça-
no Brasil do Século XVIII”, in
Anais do Museu Paulista, São cessados pelo Santo Ofício. Até agora, sal- das, as casas quase geralmente térreas com
Paulo, tomo 35, 1986-87, pp.
15-29.
vo erro, historiador algum referiu-se à perse- quintais” (31). Tal era o panorama de Itu
guição encetada contra os padres em 1817: voltemos mais de meio século
31 Manuel Aires de Casal, op. cit.,
p. 97 e segs. solicitantes desta capitania, e nosso objeti- antes, para 1737, data da primeira denún-

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cia contra um solicitante. E começamos com Igrejas, conventos e ermidas encenavam-
um caso invertido e relativamente raro: tudo se autos religiosos, danças de São Gonçalo
leva a crer tratar-se mais da sedução exer- e outras coreografias nem sempre tão ino-
cida por uma penitente face a seu confessor centes. A lista das solicitadas que denunci-
do que iniciativa deste. am frei Manuel quando de sua permanên-
Foi o vigário da Vara de Itu – a autori- cia em Mogi atinge sete filhas da terra, to-
dade eclesiástica máxima da freguesia – das com idade entre 20 e 25 anos e, com
quem enviou a denúncia a Lisboa. Diz que exceção de uma, todas eram senhoras casa-
Isabel de Sampaio, mulher solteira, no ato das. Era voz corrente que “o Ituano” trou-
da confissão, disse a frei Francisco de Je- xera muito dinheiro das Minas, e que cos-
sus Maria José (também chamado de frei tumava dizer “que daria o que Marta
Francisco de Godói, “o moço”) que “lhe Siqueira (mulher casada, 20 anos) quises-
queria muito e muito o amava”. A resposta se, para que lhe fosse falar (à hora) das Ave
do frade foi primeiro de prudência: “res- Marias”; para Josefa Siqueira, também
pondeu-a que não era bom dizer aquelas casada, 25 anos, segredou que “não tinha
palavras no confessionário – que as disses- mulher, nem outra pessoa com quem gas-
se depois, e o que queria. Ela então lhe dis- tasse o seu dinheiro e por isto queria gastá-
se que o amava muito ao que ele respondeu lo com ela”.
que muito a mais amava”. Paixão recípro- Tanta soltura, envolvendo conduta
ca, portanto, mas que, segundo informa- delituosa do conhecimento do Santo Ofí-
ções do dito vigário denunciante, não che- cio, não ficou oculta do vigário da Vara,
gou às vias de fato: “não passaram das pa- que fez sumário, inquirindo uma dezena
lavras amatórias…” (32). de testemunhas, todas confirmando a
O segundo caso envolve um natural de descaração do frade carmelita. Um lavra-
Itu: frei Manuel Antônio de Santa Joana, dor local, sr. Miguel Fragoso, chegou a
por alcunha “o Ituano”, frade carmelita. dizer: “não queriam os fregueses que o
Teve muito mais culpa no cartório Padre entrasse em suas casas por temerem
inquisitorial do que seu conterrâneo. Co- notícias do seu mau procedimento em ma-
meteu desatinos não só em Itu como na téria venérea, sendo voz pública que ele
Vila e Freguesia de Mogi das Cruzes, onde fugira da Vila de Mogi com a dita Rosa, e
também existia um convento da mesma que saía de noite e de dia de seu convento
ordem carmelitana. Contam os documen- para ir para o mato, e punha um negro à
tos que este frade estivera primeiro nas porta da casa de Rosa, de guarda, manten-
Minas Gerais, “vestido secular, fugido da do-a de mão posta, sustentando-a”. Frade
Vila de Mogi com uma mulher chamada ituano macho da peste! (33)
Rosa, dando muito escândalo pelas vilas O terceiro episódio, ainda em Itu, é de
onde passava”. Chegando a Itu, solicitou 1746, envolvendo o padre Francisco de
logo a Maria Gomes convidando-a para en- Campos, vigário da Igreja de Nossa Senho-
contrar-se com ele no quintal, prometendo ra da Penha. A denúncia foi feita por Maria
pagar-lhe pelos serviços. Ousado, disse para Bicuda, casada: disse que o sacerdote re-
Marta de tal que ia visitar-lhe os pais quan- clamava, no ato da penitência, “que tinha
do esta procurou-o para confessar-se pela razão de andar desconfiado com ela, por
primeira vez. Ao voltar dias depois ao con- que entendia que amava outra pessoa e que
32 Arquivo Nacional da Torre do
fessionário, o frade ralhou com ela “por não queria ser o segundo, nem o terceiro, Tombo (Lisboa), Caderno dos
Solicitantes no 143-4-20, folha
ter-se escondido quando foi à sua casa”, mas senão o primeiro amado dela”. Devia 77 (doravante abreviado:
abrindo então sua alma e dizendo que “ama- mesmo estar muito apaixonado e zeloso, ANTT, CS, fl.).

va muito do coração e que o levasse em sua tanto que “obrigou-a por preceito a só con- 33 Para o clero mineiro, consulte-
se: Luiz Mott, “Modelos de
graça”. Contou mais a virtuosa Marta, que fessar-se com ele!” (34). Santidade para um Clero De-
certa feita, numa dança que se fez na Igreja, Sobre o padre Agostinho Coutinho a vasso”, in Revista do Departa-
mento de História (UFMG), 9
disse-lhe o frade “que antes dançaria com documentação do Caderno dos Solicitantes (1989), pp. 96-120.
ela…”. Tempos barrocos estes, em que nas informa tão somente que este confessor 34 ANTT, CS, no 26 (1746).

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solicitara a Maria Ribeira, mandando um O episódio ocorrido em Taubaté pode-
moleque espiar onde ela morava – com ria ser rotulado de “briga de padres”, pois
certeza para entabuar futura aproximação trata-se de uma acusação recíproca de soli-
(35). Negros, mulatos, moleques e molecas citação – a terceiras pessoas , esclareço para
eram os grandes alcoviteiros na sociedade que o malicioso leitor não venha a imagi-
colonial, e contra o perigo de tais emissá- nar tratar-se de uma solicitação homoerótica
rios já admoestava o sisudo autor da Car- entre dois confessores – muito embora haja
ta de Guia de Casados, d. Francisco Ma- vários padres sodomitas que, como seus
nuel de Melo: “Negras e mulatas que saem colegas heterossexuais, fizeram do confes-
fora, não tivera. Negrinhas, mulatinhos sionário verdadeira filial de Sodoma e
filhos destas, são os mesmos diabos, ladi- Gomorra… O dito episódio ocorreu no ano
nos e chocarreiros: por castanhas levam e de 1736, quando chegou à bela vila de
trazem recados às moças e são delas Taubaté, provavelmente enviado pelo bis-
favorecidas…” po do Rio de Janeiro, diocese à qual per-
De frei Antônio do Rosário, também de tencia a Capitania de São Paulo até 1746,
Itu, só encontrei o nome no Livro de Pa- o comissário Francisco Pinheiro da Fon-
dres Processados por Solicitação e outros seca, incumbido de prender o vigário lo-
Crimes: era da Ordem Franciscana, estan- cal, padre João da Bessa Passos, por cul-
do sua denúncia registrada no Caderno no pas de solicitação que lhe foram imputa-
23 dos Solicitantes, fl. 208. De que era das numa devassa aí realizada anos antes.
acusado, qual a gravidade de seu crime, Acontece que, “para tornar o Comissário
ignoramos. pusilânime”, inventou o vigário que este
O último solicitante de Itu foi frei Inácio padre visitante solicitara na confissão a
da Conceição, também afiliado à Ordem uma mulher, “a qual por três vezes olhava
dos Frades Menores de São Francisco. admirada para seu marido”. (Observe o
Denuncia-o Joana Maria Ribeira: informou leitor que até na igreja, quando iam con-
que no ato da confissão “perguntou-lhe se fessar-se, algumas mulheres eram acom-
tivera saudades dele, se tinha chorado por panhadas por seus inseparáveis consortes.)
ele quando se ausentou de sua casa e se Mais detalhes sobre a vivência do catoli-
ajuizava o que lhe perguntara”. O pobre cismo no dia-a-dia no Brasil Colonial
franciscano devia mesmo estar muito ca- podem ser encontrados em meu artigo “Da
rente, pois, além destes anseios, “mandou- Capela ao Calundu: Religião e Vida Coti-
lhe bilhetes solicitantes…”, vacilo enorme diana” (38).
pois eram provas de primeira grandeza para Impossível averiguar se a acusação
algum seu inimigo usar tais bilhetes no mais contra o comissário Fonseca era verídica
temido tribunal de todo Reino e Colônia: a ou calúnia insidiosa. O certo é que indo a
“Casa negra do Rocio”, o Palácio da Santa referida mulher confessar-se segunda vez,
Inquisição – que de santa, só tinha o nome no Convento dos Frades, estes disseram-
e suas boas intenções de ser a dona da ver- lhe que estava excomungada, negando-lhe
dade e juíza implacável de todos divergen- a absolvição. Qual o motivo não informam
tes(36)! Voltemos a esta avoenga “pau- os documentos: talvez por considerarem
licéia desvairada” dos Setecentos… leviana a acusação contra a autoridade
Taubaté é, depois de Itu, a localidade eclesiástica, tanto que ao serem inquiri-
35 ANTT, CS, no 26 (1745). mais citada nos Cadernos dos Solicitantes. dos, separadamente, marido e mulher ne-
36 ANTT, CS, n o 30 (1759). “É uma vila considerável, a mais bem situ- garam a denúncia (39). Numa vilazinha
37 Aires de Casal, op. cit., p. 112. ada da província de São Paulo, uma légua do interior de São Paulo, frades e padres,
38 Luiz Mott, “Da Capela ao arredada do Rio Paraíba. A Matriz é dedi- comissários e visitadores, vigários da vara
Calundu”, in Laura de Mello e
Souza (org.),Vida Cotidiana no cada a São Francisco, e tem as capelas de e até capelães tinham poderes incomensu-
Brasil Colonial , São Paulo, Nossa Senhora do Pilar e do Rosário.” Pa- ráveis, podendo literalmente desgraçar a
Companhia das Letras, 1997.
recer tão simpático deve-se à pena do padre vida de pessoas honradas e alcovitar os
39 ANTT, CS, no 143-4-20, 0.
108 (1736). Aires de Casal (37). piores salafrários. Nesse caso específico,

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permanece a dúvida sobre quem estava nas Constituições Primeiras do Arcebis-
jogando limpo: se o padre era mesmo um pado da Bahia contra as “barregãs de clé-
impostor ou se esta anônima mulher de rigos”, castigos medonhos ainda mais te-
Taubaté. midos na crendice popular através dos ca-
Tudo leva a crer que o vilão deste qüi- sos de raparigas de padres que se tornaram
proquó era mesmo o padre Bessa dos Pas- pavorosas mulas sem cabeça (42).
sos, pois dez anos passados desse inciden- Na pequena Vila de Parnaíba, na mar-
te, eis que, no Caderno no 26 dos Solici- gem esquerda do Tietê, onde se destacava
tantes, de novo seu nome é registrado: a entre os imóveis, além da matriz, um hos-
acusante agora é Catarina Róis, casada, que pício dos beneditinos, ocorreu outro caso
declarou ter-lhe dito o pároco: “por que me de solicitação em que o mesmo sacerdote é
não avisou estando nesta vila há tantos dias, denunciado duas vezes em anos diferentes.
que eu fora à sua casa…”. Para fazer o que Trata-se do vigário local, padre Jacinto de
deu uma pequena prova noutra ocasião: Albuquerque Saraiva, que é acusado a pri-
“metendo os dedos pelos buracos da grade meira vez em 1737 por outro clérigo, o padre
do confessionário tocando-lhe no rosto”. Mateus Lourenço Carvalho, de São Paulo.
Em Portugal encontramos confessores que, Certamente o acusante recebera da “vítima”
em vez do dedo, metiam agulhas e espi- autorização para que escrevesse diretamen-
nhos de rosa a fim de ferir os dedos de suas te ao Santo Ofício de Lisboa, pois sendo
filhas espirituais: rituais sadomasoquistas sacerdote estava mais aparelhado para re-
que certamente não contariam com o bene- alizar esses trâmites. Eis o relato: disse
plácito dos teólogos do Santo Ofício (40). Margarida Siqueira de Camargo, mulher
No mesmo Caderno no 26 , encontra- casada, que, estando de viagem seu mari-
mos outra acusação de solicitação ocorrida do, o vigário solicitara-a no ato da confissão,
na Vila de Mogi: não temos condição de mais ainda, fora à sua casa insistindo na
distinguir se foi em Mogi das Cruzes, si- mesma intenção. Como recusasse, o vigá-
tuada a meia légua do Rio Tietê, ou Mogi rio passou a persegui-la, negando-lhe o
Mirim, “situada na estrada de Goiás”, indispensável atestado de ter cumprido o
menorzinha que a primeira, ostentando dever pascal da desobriga, alegando que
apenas uma igreja cujo orago era São José, não sabia a doutrina (43). A outra denúncia
o exemplo da pureza masculina. O delata- traz a data de 1745, sendo a autora Maria
do é o padre Francisco Mendes, vigário, Ribeira, que por ter-se tornado religiosa no
natural de São Paulo. Quem o acusa é Recolhimento de Santa Teresa, em São
Faustina Lopes Oliveira (41), que, apesar Paulo, atendia agora pelo nome de Irmã
de ser identificada negativamente como Maria de Jesus. Disse que certa feita, ao
“mulher solteira e dama”, termos que na confessar-se, padre Jacinto confidenciou-
época equivaliam mutatis mutandis a me- lhe que “não costumava procurar mulheres
retriz, demonstra ser possuidora de bons prostitutas, por não me desacreditarem, por
princípios religiosos. O padre lhe dissera isso procuro a Vossa Mercê”, solicitando-
“que se quisesse estar por sua conta, que a para atos torpes (44). Apesar de não tão
lhe assistiria com todo o necessário”. Em freqüentes quanto em Portugal, também no
outros termos, propunha que se tornasse Brasil há diversos casos de freiras e reco-
sua “amásia teúda e manteúda”. Recusou- lhidas que alcagüetam seus confessores por
40 ANTT, CS, no 26, 8. 123
se a tal solicitação torpe dizendo: “em lu- tentarem-nas em matérias de sensualidade. (1746).
gar sagrado, não lhe estava bem falar em Aliás, neste já referido Caderno no 26 dos
41 ANTT, CS, n o 26, fl. 88
semelhantes cousas, e nunca fora nem pre- Solicitantes, há, logo depois da denúncia (1743).
tendia ser amiga de clérigos!” Esta última contra o padre Jacinto de Parnaíba, outra 42 Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, op.
expressão aparece mais de uma vez nestes recolhida, Irmã Anastácia da Lux, enclau- cit., § 989 e segs.
documentos solicitatórios, e reflete a resis- surada no mesmo convento carmelitano de 43 ANTT, CS, no 143-4-20, fl. 75
tência de algumas mulheres, quiçá o medo, São Paulo, que aponta o padre Ventura dos (1737).
de tornarem-se alvo dos castigos previstos, Santos como implicado no mesmo delito: 44 ANTT, CS, no 26 (1745).

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mais ousado e sonhador, este clérigo tinha de persignar-se, o frade foi logo dizendo
planos rocambolescos. Disse à freirinha que “que queria ter ato carnal com ela”. Noutra
“prometia de a amar se fugisse com ele e ocasião, ao vê-la em frente à casa de seu
o acompanhasse para a Turquia, pois lá senhor, fez-lhe sinal para vir ter com ele,
também havia religião e viveriam ambos sem dúvida desejoso do mesmo fim (47).
juntos e que ósculos e amplexos entre No povoado de São Miguel nos arrabal-
homem e mulher não eram pecados, e só des de São Paulo, frei Salvador da
sim imperfeição de vida”. Como se vê, a Anunciação, em 1746, demonstra a mesma
serpente da tentação usa de insidioso preferência do frade anterior, no que
discurso e boa lábia para iludir as pessoas concerne à pele escura de suas conquistas.
virtuosas: a Divina Providência, contudo, “Nigra sum, sed formosa” já lembrava
foi mais forte… e Irmã Anastácia da Lux Salomão no sensual Cântico dos Cânticos.
resistiu a apelos tão tentadores de tornar- Nesse caso a eleita foi Simoa, “mulher
se mulher de padre na terra dos turcos, bastarda” – termo que no século XVIII era
onde a religião Católica Melquita e comumente empregado para referir-se às
Maronita autoriza os matrimônios mamelucas ou cafuzas, fruto geralmente
presbiterais. A visão liberal deste sacerdo- da união de um branco com uma índia ou
te, defendendo que beijos e abraços não de um mestiço com uma ameríndia. Disse
constituíam matéria grave de pecado, não a acusante que frei Salvador ameaçara-a,
correspondia ao ensinamento ortodoxo de “que se ela não desse o sim de se lhe en-
Roma, levando vários sacerdotes portu- tregar, a não havia de absolver” (48). Chan-
gueses, e não menos recoletas e freiras, às tagem porno-sacramental.
barras do Santo Tribunal. Tais religiosos De dois sacerdotes solicitantes, só te-
libertinos foram apelidados na época de mos seus nomes, localizados sempre na
“molinosistas”, defendendo que, se não mesma fonte, o Livro dos Padres Proces-
houvesse malícia, todos os atos, inclusive sados por Solicitação e outros Crimes:
a cópula, não poderiam ser considerados padre Francisco Vilela, pároco em Santos,
como pecados (45). denunciado em 1733, e o padre Domingos
Ainda na década de 40, outro frade é José Coelho, da Freguesia de Araçariguama
denunciado pelo mesmo delito: frei André – pequena vila distante hoje 50 quilômetros
da Silva Chaves, natural das Minas, da da Paulicéia, cujo cemitério secular foi
Ordem Carmelita da Bahia. Passando em cortado pela Rodovia Castelo Branco, e
1747 na Vila de Guarapiranga, sita no dis- onde o autor destas linhas passou inúmeras
trito de Ribeirão Bonito, perguntou o frade férias em sua meninice.
para Antonia Josefa Ferreira, casada com Deixamos para último lugar, nesta lista
um sapateiro, “se tinham filhos, se seu de solicitantes, o que por sua simplicidade,
marido desconfiava dela, se a cerca de seu meiguice e sucesso foi sem dúvida o mais
quintal era muito forte, se indo ele por lá felizardo destes amargurados celibatários:
poderia entrar pelo quintal sem que fosse o padre José da Silva Morais, pároco na
pressentido…”. Relatando tais perguntas a Ilha de São Sebastião, ano de 1746. Diz o
outro missionário, um capuchinho italia- documento que ao se aproximar do confes-
no, este julgou que o carmelita mineiro sionário Ana Maria, “mulher casada e gra-
merecia castigo, daí ter ele próprio se en- ve”, o sacerdote “deu-Ihe uma flor tendo
45 ANTT, CS, no 26, (1727). Luiz carregado de enviar a Lisboa esta acusação depois tratos ilícitos com ela” (49).
Mott, A Inquisição em Sergipe,
op. cit. p. 79. (46). Terá mesmo pulado a cerca o frade Estes padres certamente teriam acertado
46 ANTT, CS, n o 26, fl. 360 mineiro apaixonado? melhor caminho para suas vidas se tivessem
(1747).
Na Freguesia de Nossa Senhora da Pi- ouvido o conselho do apóstolo São Paulo:
47 ANTT, CS, n o 30. fl. 428
(1761).
edade é a vez de frei Manuel da Exaltação, “É melhor casar do que se abrasar…”. Nem
franciscano, ter seu nome envolvido com o o medo da fogueira inquisitorial, nem do
48 ANTT, CS, no 26 (17467).
Santo Ofício. Denunciou a escrava Teresa fogo do inferno foi suficiente para afastá-los
49 ANTT, CS, n o 26, fl. 120
(1746). que ao ajoelhar-se no confessionário, antes das tentações da carne.

128 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 116-128, março/maio 2000

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