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Resumo
Sabe-se que muitos teóricos, sobretudo aqueles que admitem sua filiação marxista,
reconhecem no trabalho a matriz fundante, o complexo que permite a efetivação e o
desvendamento do ser social, ocupando um lugar central na organização da sociabilidade.
No entanto, tudo isso tem sido posto em xeque por diversas correntes do pensamento
contemporâneo. Seus adeptos argumentam que o trabalho perdeu a força, o lugar, o valor e
o sentido que lhe têm sido atribuídos, não podendo mais ser considerado central, nem na
compreensão das formas atuais de sociabilidade, nem no desvendamento dos processos
contemporâneos de individuação. Enquanto alguns concluíram que a ciência tornou-se a
principal força produtiva em substituição ao valor-trabalho (Habermas), outros chegam a
falar de uma ―implosão da categoria trabalho‖ (Offe), categoria que não passa de um
―conceito inventado‖ no decorrer dos últimos 150 anos (Méda) e que seria, hoje, apenas um
mito, ―um cadáver‖ que, apesar de tudo, domina ainda a sociedade (Kurz et al). Neste
ensaio, trataremos dessa polêmica, sendo nossa pretensão explicitar os equívocos presentes
nos argumentos dos autores que preconizam o ―fim do trabalho‖.
Introdução
As teses que deram origem à polêmica sobre a qual pretendemos nos deter neste ensaio não
são recentes. Elas podem ser identificadas, por exemplo, em A Condição humana, uma obra
publicada por Hannah Arendt, em 1958. Nesta obra, caracterizada, com toda razão, por
Calvet, como ―bastante problemática‖, a autora tece uma série de críticas aos teóricos que
atribuíram demasiada importância ao trabalho, ―colocando-o acima de todas as outras
atividades‖ (CALVET, 1985, p. 131). K. Marx foi o teórico a quem direcionou grande parte
dessas críticas, a maioria decorrente de uma leitura profundamente equivocada de sua obra,
como fica demonstrado, de forma irrefutável, no ensaio de Calvet. Arendt fala de uma
―súbita e espetacular promoção do trabalho‖ que passou a ser considerado nos tempos
modernos como ―a mais estimada de todas as atividades humanas‖, dizendo que isto teve
início com Locke que afirmava ser o trabalho a fonte de toda propriedade, prosseguiu com
Adam Smith que descobriu ser ele a fonte de toda riqueza, e alcançou seu clímax em Marx
que considerava-o como sendo ―a origem de toda produtividade e a expressão da própria
humanidade do homem‖ (CALVET, 1985, p. 154). Arendt questiona, portanto, a época
moderna que glorificou o trabalho tornando-o fonte de todos os valores (CALVET, 1985, p.
137). Segundo ela, Marx teria construído uma obra recheada de contradições, sendo a maior
delas, a de ter definido o trabalho, por um lado, como uma ―eterna necessidade imposta
pela natureza‖ e, por outro, ter preconizado uma revolução que se destinava a ―emancipar o
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- Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG.
homem do trabalho‖ (CALVET, 1985, p. 137). E conclui sua crítica, caracterizando, de
acordo com ela, a atitude equívoca de Marx em relação ao trabalho:
[...] em todos os estágios de sua obra, Marx define o homem como animal laborans
para levá-lo depois a uma sociedade na qual esta força, a maior e a mais humana de
todas, já não é necessária. Resta-nos a triste alternativa entre a escravidão produtiva e
a liberdade improdutiva (ARENDT, apud CALVET, 1985, p. 157).
Calvet responde de forma incisiva — e a nosso ver definitiva — a essa crítica, ao dizer que
ela só poderia ser formulada a partir de uma deformação dos textos de Marx. Inicialmente,
esclarece, de forma categórica, que Marx jamais considerou o homem como ―animal
laborans‖, mas como ser social e que, ―desde o início, ao produzirem, os homens não agem
apenas sobre a natureza‖, conforme fica claro na Introdução à Economia Política:
ele (Marx) não propõe depois para esses homens [...] uma sociedade na qual o
trabalho não seria mais necessário, ele propõe, isto sim, [...] uma sociedade na qual
os homens estariam libertos do trabalho alienado (CALVET, op. cit., p. 157).
Arendt propõe que a vida ativa do homem seja dividida em três dimensões: o trabalho, a
obra e a ação:
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do homem: a ação‖ (FORTES, 2001, p. 177). Assim, ela propõe a ultrapassagem do
trabalho, dando lugar à ação: ação do homem sobre o homem, sendo esta, em grande parte
caracterizada pela linguagem:
Entre aqueles que adotam essa perspectiva, naturalmente após a mesma ter sido aberta por
Arendt, André Gorz é provavelmente o pioneiro com seu famoso ensaio Adeus ao
Proletariado, publicado, na França, em 1980. Eis alguns pontos básicos defendidos pelo
autor:
a) O trabalho não é mais uma atividade própria do trabalhador. Quer seja executado na
fábrica ou em escritórios, na imensa maioria dos casos, ele é uma atividade tornada
passiva, pré-programada, totalmente submetida ao funcionamento de um aparelho e que
não dá lugar à iniciativa pessoal (p. 86).
b) Não se coloca mais para o trabalhador a questão de se identificar com ‗seu‘ trabalho ou
com ‗sua‘ função no processo de produção. Tudo parece acontecer fora dele. O próprio
trabalho é uma certa quantidade de atividade reificada que vem de encontro ao
trabalhador e o submete (p. 86).
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- Calvez (id.) acrescenta com toda razão que, diante dessas considerações de Arendt, é impossível deixar de
pensar em Habermas e a atividade comunicativa que, para ele, é constitutiva do homem, conforme veremos
mais adiante.
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d) Não se coloca mais para o trabalhador como uma questão o liberar-se no interior do
trabalho, nem tornar-se senhor do trabalho ou conquistar o poder no contexto desse
trabalho. A única questão é liberar-se do trabalho, recusando, ao mesmo tempo, a
natureza, o conteúdo, a necessidade e as modalidades. Não se trata mais de conquistar o
poder como trabalhador, mas de conquistar o poder de não funcionar mais como
trabalhador (p. 87).
i) O trabalho deixa de ser para ele uma atividade ou mesmo uma ocupação principal para
se tornar um tempo morto, à margem da vida, onde se está ocupado em ganhar algum
dinheiro (p. 88).
l) Seja qual for o número de empregos que subsistam nas indústrias e nos serviços, depois
que a automatização tiver atingido seu desenvolvimento pleno, tais empregos não
poderão ser fonte de identidade, de sentido e de poder para aqueles que os ocupam (p.
91).
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n) A sociedade atual produz o supérfluo e o necessário, riqueza e desperdício e acaba
produzindo para trabalhar ao invés de trabalhar para produzir. Isto faz com que o
trabalho seja atingido de não-sentido, isto é, só tem como finalidade ocupar as pessoas.
Todo trabalho torna-se suspeito de ser um castigo inútil por meio do qual a sociedade
tenta mascarar para os indivíduos o seu desemprego, ou seja, a sua liberação possível do
trabalho social (p. 91- 92).
Essa obra foi seguida de uma ampla discussão sobre o assunto, sendo que vários autores
aderiram às teses de Gorz e as aprofundaram, enquanto outros as refutaram. A polêmica
estava posta.
Entre os que aderiram, pelo menos em parte, às idéias de Arendt e Gorz, temos: Claus Offe,
J. Habermas e Robert Kurz na Alemanha e, na França, sobretudo os trabalhos recentes de
Dominique Méda. Como seria impossível, em um espaço necessariamente reduzido de um
artigo, detalhar as teses desses autores, exporemos sucintamente alguns dos seus principais
argumentos:
a) Existe hoje um declínio das tentativas de compreender a realidade social através das
categorias de trabalho assalariado e, dentro do próprio materialismo histórico, tenta-se
rever e complementar modelos de realidade social centrados no trabalho (OFFE, 1989).
c) Está ocorrendo uma ―implosão da categoria trabalho‖, devido a diversos fatores, dentre
eles a grande diferenciação interna ao mundo do trabalho, que torna o fato de se estar
ou não empregado indiferente para o conteúdo da atividade social, política, estilo de
vida etc; a crescente ampliação do setor de serviços, onde os critérios de produtividade
perdem sua clareza e a produção é conceitual e organizacionalmente fundamentada
(OFFE, 1989).
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Com isso, as experiências, orientações e necessidades paralelas estão se tornando mais
proeminentes que as do trabalho (OFFE, 1989).
h) Os membros das subculturas, baseadas na economia informal, seriam hostis aos valores
e normas legais da sociedade do trabalho e poderiam facilmente juntar-se a uma cultura
do desemprego, uma não-classe de não-trabalhadores (OFFE, 1989).
i) O trabalho saiu de cena e, hoje, são os conflitos sociais e políticos que prevalecem: paz,
desarmamento, proteção ambiental, definição e instituição de papéis sexuais, direitos
civis e humanos (OFFE, 1989).
j) A utopia da idéia baseada no trabalho perdeu seu poder persuasivo, perdeu seu ponto de
referência na realidade. A centralidade do trabalho foi substituída pela centralidade da
esfera comunicacional ou da intersubjetividade. O trabalho tem um papel secundário na
sociabilização do ser social, na medida em que, na contemporaneidade, este papel passa
a ser preenchido pela esfera da intersubjetividade, que se converte no momento
privilegiado do agir societal (HABERMAS, 1987).
l) A relação entre produção social da riqueza, ou seja, entre desenvolvimento das forças
produtivas e emancipação humana, mostrou-se ilusória. Não é no paradigma da
produção, mas naquele da atividade orientada para a intercompreensão que a
emancipação tem seu princípio (HABERMAS, 1987;1988).
n) Podemos assegurar o mesmo nível de produção com cada vez menos trabalho. Além
disso, os postos reduzidos no setor industrial não estão sendo recuperados pelo setor
terciário. Após a revolução micro-informática, a produção de riqueza foi cada vez mais
separada da força de trabalho humana (HABERMAS, 1987; MÉDA, 1995; KURZ et al,
2002).
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o) O trabalho não pode mais assegurar todas as funções a ele atribuídas e torna-se
necessário sairmos do quadro tradicional de reflexão e pararmos de tentar dar a todas as
atividades a forma do trabalho com o pretexto de salvar o vínculo social. Trata-se de
organizar a repartição da riqueza produzida e recriar o vínculo social de outra maneira
que não seja unicamente por meio do trabalho (MÉDA, 1995; KURZ et al, 2002).
r) A natureza do vínculo social prometida pelo trabalho é insuficiente para fundar uma
sociedade, uma verdadeira solidariedade entre os membros de uma mesma sociedade.
Para fundar uma boa sociedade, um verdadeiro vínculo social, é preciso elaborar
instituições políticas, espaços de discussão e de debate, organizando, ao lado da esfera
produtiva, uma esfera pública. Trata-se de reduzir o lugar do trabalho para permitir o
exercício da atividade mais essencial das sociedades, suscetível de fundar o vínculo
social: a atividade política (MÉDA, 1995; HABERMAS, 1987).
b) O aumento do tempo livre não permite deduzir que o trabalho deixou de ser para nós
um dos tempos fortes da existência, pois ele continua a ser um importante regulador do
psiquismo, ocupando um lugar que não pode ser preenchido pelas interações socio-
afetivas, políticas etc (PERRET, 1997).
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c) O trabalho é que dá sentido e legitimidade à circulação monetária, sendo necessário
contrapeso às forças de dissociação liberadas pelo dinheiro. É isto que explicaria a
degradação do caráter dos indivíduos a quem se oferece uma renda sem exigir trabalho
em contrapartida. Neste caso, o vínculo social é deturpado e se torna pura relação de
dependência (PERRET, 1997) 3.
e) Ainda que esteja sofrendo uma redução importante, o trabalho abstrato continua a
cumprir papel decisivo na criação de valores de troca. O sistema produtor de
mercadorias mantém sua vigência, apesar de estar baseado em uma atividade laborativa
heterogênea, mas socialmente combinada e globalmente articulada. A ―sociedade do
capital e sua lei do valor necessitam cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais
das diversificadas formas de trabalho parcial ou part time, terceirizado‖ (ANTUNES,
1995; 2000).
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- A este respeito, vale a pena citar aqui uma crítica dirigida ao programa Fome Zero por uma de suas
―beneficiárias‖, uma mulher de uma pequena cidade nordestina, usada como uma espécie de ―laboratório‖
desse programa: ―a gente só pode ter uma vida digna, se a gente trabalhar e ganhar dinheiro.‖
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g) A separação feita por Habermas ―entre trabalho e interação ou, nos termos da Teoria da
Ação Comunicativa, entre trabalho e mundo da vida‖, não é aceitável, uma vez que ―a
práxis interativa, como momento da expressão da subjetividade, encontra seu solo
ontológico fundante na esfera do trabalho, onde o ato teleológico se manifesta pela
primeira vez em sua plenitude‖. É verdade que a esfera da linguagem (ou da
comunicação) ―é um elemento constitutivo central do ser social, em sua gênese e em
seu salto ontológico em relação às formas anteriores‖, mas isto não possibilita concluir
como o faz Habermas, que a esfera intercomunicacional tem um papel fundante e
estruturante do processo de sociabilização do homem. O trabalho ocupa esse lugar,
constituindo-se em ―categoria central e fundante, protoforma do ser social‖ porque
possibilita a síntese entre teleologia e causalidade que dá origem ao ser social. Sem
dúvida, ―o trabalho, a sociabilidade e a linguagem, constituem-se em complexos que
permitem a gênese do ser social [...]. Entretanto, o trabalho possibilita, pela primeira
vez [...] o advento do ato teleológico interagindo com a esfera da causalidade‖. Mas se
o trabalho constitui o momento predominante, a linguagem também é um complexo
fundamental do ser social e não pode ser separada e colocada em disjunção. Habermas
opera, portanto, uma ruptura em um ―liame ontologicamente indissolúvel‖.
A subjetividade só pode ser concebida dentro da esfera do universo laborativo, pois foi
nesta esfera que foi constituída, por meio do ato teleológico intrínseco ao processo de
trabalho.
crise da sociedade do trabalho abstrato e não pode ser identificada como sendo nem o
fim do trabalho assalariado no interior do capitalismo (eliminação esta que está
ontologicamente atada à própria eliminação do capital), nem o fim do trabalho
concreto, entendido como fundamento primeiro, protoforma da atividade e
omnilateralidade humanas. Fazer isso é efetivamente desconsiderar, na dimensão
necessária e essencial, a distinção marxiana entre trabalho concreto e trabalho
abstrato, resultando essa disjunção em grandes equívocos analíticos (ANTUNES,
2000, p. 168).
há uma diferenciação que nos parece decisiva e que, em geral, tem sido
negligenciada. A questão essencial aqui é: a sociedade contemporânea é ou não é
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predominantemente movida pela lógica do capital, pelo sistema produtor de
mercadorias? Se a resposta for positiva, a crise do trabalho só poderá ser entendida
como a redução do trabalho vivo e a ampliação do trabalho morto.
o papel central do trabalho, tanto na sua dimensão abstrata, que cria valores de troca
— pois estes já não seriam mais decisivos hoje – quanto na sua dimensão concreta,
uma vez que esta não teria maior relevância na estruturação de uma sociabilidade
emancipada e de uma vida cheia de sentido.
Como criador de valores de uso, coisas úteis, forma de intercâmbio entre o ser social
e a natureza, não me parece plausível conceber, no universo da sociabilidade
humana, a extinção do trabalho social. Se é possível visualizar, para além do capital,
a eliminação do trabalho abstrato – ação esta naturalmente articulada com o fim da
sociedade produtora de mercadorias -, é algo ontologicamente distinto supor ou
conceber o fim do trabalho como atividade útil, como atividade vital, como elemento
fundante, protoforma da atividade humana (ANTUNES, 2000, p. 215).
Conclusão
A polêmica caracterizada neste ensaio adquiriu seus contornos definitivos no decorrer das
três últimas décadas. Mongin (1997, p. x), considera que sua origem se encontra na
―disjunção entre crescimento e emprego‖ que atingiu o ―limite do insuportável‖, impondo o
desemprego de longa duração como um dado generalizado e preocupante. Ele constata que
uma de suas vertentes é composta por autores que ―pensam que a revolução tecnológica
está na origem de uma verdadeira crise da civilização e que não é mais possível fundar o
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reconhecimento social em torno do único valor trabalho‖. Mészaros (2000), por sua vez,
atribui essa negação da centralidade do trabalho, ―à crise estrutural do capitalismo‖.
Antunes (1995; 2000) também constata mudanças importantes ocorrendo no mundo do
trabalho (aumento do trabalho parcial, terceirizado, redução do trabalho vivo e ampliação
do trabalho morto), atribuindo, sobretudo, à redução do trabalho vivo, essa idéia de sua
extinção.
Para os autores que se opõem à tese sobre o fim do trabalho, o que está ocorrendo é um
grave equívoco de interpretação das transformações recentemente impostas ao mundo
produtivo. Embora estejam de acordo quanto ao teor e à gravidade dessas transformações,
os dois grupos discordam frontalmente no que diz respeito ao seu significado: enquanto o
primeiro, percebe nelas o esgotamento de uma ―ideologia‖ que colocaria o trabalho como o
espaço por excelência de humanização e de realização das potencialidades do homem, o
segundo, não apenas contesta essa tese de que o valor-trabalho não passa de mera ideologia,
como tenta extrair das transformações em curso os elementos que reafirmam a permanência
da centralidade do trabalho. Tosel (1995, p. 210), por exemplo, desenvolve a interessante
idéia de que a economia capitalista, ao funcionar, cada vez mais, por meio da
marginalização de uma parte crescente da sociedade, deixa evidenciar que é a própria
―centralidade do trabalho abstrato que produz a não-centralidade do trabalho na massa dos
excluídos do trabalho vivo‖. Ele constata que é nessa ―aparente descentralização do
trabalho‖ que se apóiam aqueles que opõem ―ao paradigma do trabalho, os paradigmas
concorrentes do agir comunicativo ou da esfera pública‖. No entanto, argumenta o autor, ―é
a centralidade do trabalho que, de qualquer forma, pelo mecanismo intocado da valorização
e da submissão real, se determina como desdobramento no não-trabalho‖. Em suma, para
esse autor, ―a centralidade do não-trabalho é a forma de manifestação atual [...] da própria
centralidade do trabalho‖. E mais do que isto: ―a busca do absoluto da mais-valia produz a
condenação ao não-trabalho como lazer forçado, como imposição do desemprego e da
inatividade necessária‖. O tempo livre passa por um ―apodrecimento‖ na forma do
desemprego. E se ―engendra não o supérfluo positivo do tempo disponível, mas a
superfluidade negativa dos não-trabalhadores, a figura antropológica negativa do ‗homem
supérfluo‘, tornado inútil‖ (TOSEL, 1995, p. 216). Portanto, Tosel destrói as ilusões dos
adeptos da ―sociedade do lazer‖, ao constatar que ―a especulação capitalista material exclui
[...] a dialética assegurada pelas esperanças da antropologia especulativa do homem social
reconciliando em si poiésis e práxis‖, pois, conforme Marx,
― a contradição capital e trabalho assalariado se desenvolve até à oposição completa, uma vez que o
capital é o meio, não apenas de desvalorização da força de trabalho, mas também da transformação
desta em força supérflua, na medida em que ela não serve mais para obter mais-valia‖ (apud:
TOSEL, 1995, p. 216).
A população supérflua fica, assim, na condição de ―exclusão interna‖, deixando de ser vista
até mesmo como ―plebe disponível‖ para outras formas de ―mais-trabalho‖. Ela torna-se a
própria ―negação da atividade‖, ―objeto passivo da inatividade e do sofrimento assim
induzido‖ (TOSEL, 1995, p. 216-217). Isso significa que os não-trabalhadores, sendo
resultado e complemento necessário da centralidade do trabalho abstrato, ficam
impossibilitados de tornar-se sujeitos ativos como propõem Gorz e Méda. Além disso,
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enviá-los às atividades comunicativas, separadas do trabalho útil, como pretende Habermas,
representa apenas mais uma manifestação dessa contradição e não sua resolução.
Freissenet (1995, p. 242), por sua vez, concorda com a idéia da ―invenção do trabalho‖ pela
modernidade, considerando tal ―invenção‖ como o resultado da descoberta da economia,
possibilitada pela emergência do capitalismo, que promoveu a separação da esfera
econômica das outras esferas de vida social. Ou seja, ele não descarta a tese de que certos
atributos do trabalho seriam historicamente postos, mas rechaça firmemente aqueles que
afirmam que ―a teoria do valor fundada no trabalho não foi confirmada teórica e
praticamente‖ e que ―o trabalho não é mais, quando não dizem que jamais foi, o elemento
fundamental ou exclusivo da produção de valor‖; isto é, aqueles que dizem que ―a
performance econômica não seria ou não seria mais diretamente ligada ao trabalho, ao seu
volume, sua qualidade, sua organização nas oficinas, mas à gestão da produção, à
organização da concepção, à relação com a clientela‖. A esses críticos, ele responde que
agem ―como se o trabalho se limitasse àquele da oficina, [...] [e] como se a emergência das
novas formas de concepção de gestão e de organização não correspondesse aos momentos,
às conjunturas, às fases da relação assalariada‖.
Perret (1997, p. 1-2) constata que, enquanto a noção de emprego é ―relativamente unívoca‖,
a de trabalho ―se revela de um uso e de um manejo delicado, fonte de numerosos
equívocos‖, uma vez que o trabalho é, ―em um sentido, uma realidade universal, um
atributo da condição humana, indissociável da propensão do homem, desde a origem, a
tornar artificiais suas condições de existência, mas é igualmente uma noção carregada de
significados próprios à época moderna e, como tais, suscetíveis de ser questionadas‖.
Portanto, assim como Freissenet, Perret admite que ―os valores, significados e funções que
atribuímos ao trabalho, são fruto de uma evolução cultural particular e não constituem de
modo algum uma invariante antropológica‖. Ao se referir às sociedades pré-modernas, ele
sinaliza que a repartição das tarefas não tinha em vista a eficácia, mas a reafirmação do
lugar em uma estrutura social à qual é preciso, antes de mais nada, assegurar a perenidade.
A especificidade da condição do homem moderno, ao contrário, é fundada no fato de que a
identidade social, em princípio, procede da ação, ou seja, não mais ―eu faço o que sou‖,
mas ―eu sou o que faço‖. Para o autor, ―sejam quais forem os questionamentos atuais, é
sempre (e sem dúvida mais do que nunca) na base desse pressuposto que precisamos pensar
o lugar do trabalho‖ (PERRET, 1997, p. 6). Ele admite também a hipótese de uma mudança
radical no trabalho, resultante ―de um processo histórico irremediável‖, levando ao mesmo
tempo à evolução dos bens e serviços produzidos (e, portanto, à natureza das demandas
dirigidas ao sistema econômico), à evolução do funcionamento dos mercados (sob o efeito,
sobretudo, da mundialização) e ao progresso das técnicas de produção, acarretando uma
substituição da máquina à intervenção humana surpreendente pela sua amplitude. Mas
alerta que este último aspecto avança muito mais lentamente em certas atividades que
exigem competências humanas específicas, além da gestão da incerteza:
o homem e somente ele possui a faculdade de interpretar uma informação em função do conjunto
do seu contexto material e social. Melhor (ou mais exatamente de uma outra maneira) que os
sistemas técnicos mais perfeitos, nós somos capazes de reagir instantaneamente a um
acontecimento imprevisto ou a uma ameaça difícil de ser detectada, mobilizando elementos de
apreciação diversificados e heterogêneos (inclusive critérios éticos), às vezes, sem relação direta
com a situação em questão. É o que permite (...) aos trabalhadores de uma indústria enfrentar
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diariamente uma gama enorme de imprevistos (...) e é também o que permite aos executivos
dirigentes de reagir rapidamente ao grande número de informações que chegam até eles
diariamente, avaliações do mercados, comportamentos dos acionistas etc. (PERRET, 1997, p. 19).
Perret se opõe também àqueles que, como J. Dumazedier, pensam que o trabalho não é
mais uma atividade importante para a maioria dos cidadãos dos países ricos, que estariam
direcionando seus interesses, seu prazer ou seus valores para outras esferas; ou Roger Sue,
que sustenta que o trabalho não é mais o tempo social dominante, tendo perdido,
simultaneamente, sua primazia qualitativa e sua dominação normativa, levando os
investimentos pessoais para a esfera privada, a cultura e os lazeres. Ele argumenta que, de
fato, existe cada vez mais uma vida fora do trabalho, mas isto seria devido apenas à redução
do tempo a ele dedicado, sendo que ―a gente não saberia deduzir disto que o trabalho
deixou de ser para nossos contemporâneos, um dos tempos fortes da existência‖. E
acrescenta que, muitos indivíduos ainda ―vivem o trabalho como uma paixão positiva muito
mais poderosa que toda forma de divertimento‖ (PERRET, 1997, p. 7). Ou seja, a redução
do tempo dedicado ao engajamento profissional nos países ricos, ―não retira em nada da
importãncia das regulações psíquicas operadas pelo trabalho. Este tem um papel
privilegiado na elaboração da imagem que cada um faz de si mesmo‖. E mais do que isso: o
trabalho tem ―um papel específico que não pode ser preenchido por outros contextos de
interação socio-afetiva‖, sendo um espaço privilegiado para se ―curar feridas narcísicas e
estabilizar a imagem de si‖ (PERRET, 1997, p 9-10).
A política, as artes, a vida associativa ou o esporte não podem de modo algum substituir o trabalho
porque não oferecem um apoio tão sólido à obra de acomodação da imagem de si. O trabalho,
porque é sinônimo de esforço e de constrangimento social, permite medir, ao mesmo tempo, à
realidade e aos outros em um processo longo, interativo, que converge normalmente em um
compromisso identitário que cada um pode considerar como aceitável (PERRET, 1997, p. 11).
Antunes (2000, p. 125) também propõe uma ampliação da noção de trabalho, ao invés de se
falar de sua extinção. Assim, ele constata, dentre outras transformações importantes, uma
crescente imbricação entre trabalho material e imaterial,
uma vez que se presencia a expansão do trabalho dotado de maior dimensão intelectual, quer nas
atividades industriais informatizadas, quer nas esferas compreendidas pelo setor de serviços ou nas
comunicações. Observa-se, assim, um avanço do trabalho em atividades de pesquisa, na criação de
softwares, marketing e publicidade, como exemplos do avanço do trabalho na esfera imaterial.
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a expansão do trabalho em serviços, em esferas não diretamente produtivas, mas que muitas vezes
desempenham atividades imbricadas com o trabalho produtivo, mostra-se como outra característica
importante da noção ampliada de trabalho, quando se quer compreender seu significado no mundo
contemporâneo4.
Como os dois primeiros equívocos já foram bastante tratados anteriormente, vamos nos
ater, neste momento, apenas ao último. A compreensão do trabalho como categoria
insuperável e trans-histórica, já que é inseparável do homem, está bem desenvolvida nos
textos marxianos, mas também em teóricos como Lukács e Chasin, que se dispuseram a
avançar e aprofundar as proposituras do grande pensador alemão. Neste caso, sua finalidade
é a autoconstrução humana, a produção do homem pelo homem, pois o homem é o único
ser que cria a si próprio, que se auto-constrói, sendo o trabalho uma categoria central neste
processo de auto-construção.
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Naturalmente, ressalta Antunes, não se pode esquecer que essas tendências presentes nos núcleos de ponta
dos processos produtivos, não expressam a totalidade dos contextos de trabalho, nos quais a precarização e a
desqualificação são freqüentes e estão em franca expansão. No entanto, mesmo nos países industrializados do
chamado terceiro mundo, essas duas tendências estão presentes, apesar de ocorrerem de forma diferente, em
função do caráter desigualmente combinado do sistema global do capital.
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Conforme vimos, Antunes recusa ―não apenas a disjunção entre trabalho material e imaterial‖, como
também a ―disjunção binária e dualista entre ‗sistema‘ e ‗mundo da vida‘, tais como aparecem nas
formulações habermasianas (ANTUNES, 2000, p. 129-130) De forma definitiva, ele conclui sua refutação a
Habermas, dizendo que, ―em vez da substituição do trabalho pela ciência, ou ainda da substituição da
produção de valores de troca pela esfera comunicacional, o que vem ocorrendo no mundo contemporâneo, é a
maior inter-relação, maior interpenetração entre as atividades produtivas e as improdutivas, entre as atividades
fabris e de serviços, entre as atividades laborativas e as atividades de concepção, entre produção e
conhecimento científico que se expandem fortemente no mundo do capital e de seu sistema produtivo‖
(ANTUNES, 2000, p. 134).
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Na sua Ontologia, G. Lukács6 determina a gênese da prática social a partir do ―complexo
do trabalho‖, cuja dinâmica de articulação entre suas categorias forma a base sobre a qual
tem lugar o processo de auto-construção do ser social. Portanto, para esse autor, o trabalho
é um complexo que instaura a diferença ou a peculiaridade ontológica fundante entre a
esfera do ser social e a esfera do ser natural. E mais do que isto: o trabalho é um complexo
que estabelece a estrutura e a dinâmica das formas superiores da prática social, razão pela
qual é definido como o modelo mais geral de toda e qualquer prática social humana. Lukács
tenta, assim, compreender os fundamentos da prática humana para abordar o problema do
processo de auto-formação do ser social. Portanto, é no ―intercâmbio do homem com a
natureza‖ que ele localiza o ―núcleo genético e criador das categorias prioritárias
definidoras da especificidade do ser social‖. O trabalho, para ele, ―é, acima de tudo, em
termos genéticos, o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento de suas
faculdades, processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo‖ (apud
FORTES, 2001, p. 15). Um dos aspectos inovadores do pensamento marxiano estaria no
fato de rechaçar a idéia tradicional de separação entre natureza e sociedade, ao tomar os
problemas pertinentes à natureza na sua efetiva inter-relação com a sociedade, isto é, não
como antíteses que se excluem mutuamente, mas como inter-relações entre complexos
distintos que se formam e se modificam em um processo de determinação reflexiva. O
trabalho ocupa nisso tudo uma posição privilegiada, uma vez que aparece como ―o
mediador do intercâmbio da sociedade com a natureza‖ (Prólogo, XVIII, in Fortes, p.13).
Mas poderíamos nos interrogar sobre as razões que levaram diversos teóricos a afirmar que
o trabalho é a categoria fundante do ser social, a atribuir a ele um caráter ontológico de
auto-construção humana, a entendê-lo como momento preponderante da gênese e do
processo de desenvolvimento social. Ou nos termos do próprio Lukács: porque sublinhar
particularmente o trabalho e atribuir a ele um lugar tão privilegiado no processo e no salto
da gênese do ser social? No Tomo II de sua ―Ontologia‖, esse autor deu uma resposta
relativamente simples e, ao mesmo tempo, convincente a essa questão:
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Essa obra ainda não se encontra totalmente traduzida para o português. Os interessados poderão encontrar
uma boa reflexão sobre o capítulo dedicado ao trabalho, na dissertação de Fortes, R. V. (2001): Trabalho e
gênese do ser social na “Ontologia” de G. Lukács, apresentado ao Mestrado em Filosofia da UFMG, em
2001. Para aqueles que quiserem consultar uma boa tradução, ver: Per l’Ontologia dell’Essere Sociale, Milão.
Guereni e Associati, 1990.
15
realizado. Somente o trabalho tem na sua essência ontológica um
caráter claramente intermediário; ele é, na sua essência, uma inter-
relação entre homem (sociedade) e a natureza, quer inorgânica
(utensílios, matéria-prima, objeto do trabalho etc), quer orgânica; inter-
relação que [...], antes de tudo, marca a passagem do homem que
trabalha a partir do ser meramente biológico ao ser social7.
Em uma entrevista concedida em 1967, Lukács esclareceu melhor ainda sua posição:
Tudo o que a cultura humana criou até hoje, nasceu não de misteriosas motivações
internas espirituais (ou coisas que o valham), mas do fato de que, desde o começo,
os homens se esforçaram para resolver questões emergentes da existência social. É
à série de respostas formuladas a tais questões que damos o nome de cultura
humana (LUKÁCS, apud Fortes, 2001, p. 13).
Assim, ele responde à questão formulada acima partindo da compreensão do homem como
um ser prático, que dá respostas, que reage às alternativas que lhe são postas pela realidade,
com o intuito de efetivar suas finalidades:
7
Em uma conferência proferida em 1993, J. Chasin traduziu essa proposição de Lukács. Ele afirmou,
inicialmente, que toda reflexão sobre o homem tem que ter o trabalho como ponto de partida, já que todo e
qualquer atributo do homem, toda e qualquer predicação humana, já é o resultado de sua auto-constituição, já
é o resultado do seu afastamento da animalidade, do seu afastamento da natureza. ―Só o trabalho é que guarda
um caráter intermediário‖. Em outros termos, é preciso começar pelo trabalho, ―porque o trabalho permite
articular dois níveis de ser: o ser humano que vai se constituir e o ser orgânico, vivo, animal que é o outro
pólo. Ou seja, o trabalho é o meio pelo qual o homem se metaboliza com a natureza [...]. Embora a vida
humana típica seja o afastamento progressivo da natureza, o homem não pode nunca deixar de se relacionar
com ela. Só que ele não se relaciona de modo direto, ele se relaciona pela intermediação do trabalho, que é
social. E é por isso que a categoria trabalho é intermediária: ela liga pontas diferentes (uma ponta é a natureza
e a outra ponta é a humanidade)‖.
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teórico qualifica as tematizações sobre o fim ou a superação do trabalho como ―superficiais
e grosseiras‖ argumentando que a categoria trabalho é de tal forma decisiva ―que todas as
práxis sociais estão implicadas por ela‖. Portanto, também para ele o trabalho ―é fundante,
isto é, ele é a base a partir da qual se agrega uma nova forma de ser aos seres anteriormente
existentes‖. É por isto que considera como uma forma ―rombuda‖ de observar os dados
sociais, ―dizer que o trabalho está morto‖. O trabalho, segundo ele, não pode ser extinto,
por ser ―peça ontologicamente estruturante do ser social‖ e dizer que o trabalho se
extinguiu é equivalente a dizer que o ser humano se extinguiu, pois ―não existe homem sem
trabalho‖. Além disso, conforme já dissemos, para Lukács, assim como para Chasin, é a
categoria trabalho que faz a intermediação entre a natureza e a humanidade e como o
homem não pode viver sem se relacionar com a natureza, o trabalho nunca pode ser extinto.
Em síntese, pode-se mudar a forma de trabalhar, mas em todas as formas de sociabilidade,
desde a mais rústica até a mais refinada, existe trabalho. ―Capturar o peixe, antes de se
conhecer o anzol, simplesmente adestrando o braço para, em um movimento rápido,
alcançá-lo, é trabalho, tanto quanto operar um computador de última geração‖.
Vimos que os autores que fazem parte do primeiro grupo afirmam que certos atributos do
trabalho só teriam surgido na sociedade moderna. Vimos também que, neste aspecto, não
existem discordâncias fundamentais entre os dois grupos. No entanto, eles diferem no que
concerne às conseqüências que extraem dessa constatação, sendo que os primeiros
concluem, a partir daí, que o trabalho perdeu sua centralidade e seu valor para o homem
contemporâneo. Esta conclusão não se sustenta teoricamente, estando também muito
distante do que tem sido evidenciado pela maioria das pesquisas. Ela carece, portanto, de
respaldo teórico e empírico. Vejamos alguns desses resultados:
O trabalho continua sendo visto pela maioria das pessoas como a base essencial
para a construção da identidade, para a integração social e para a realização
pessoal. A pesquisa de Robert E. Lane, apoiada por um vasto conjunto de dados,
―rompe completamente‖, de acordo com Perret, com a visão sacrificial do
trabalho veiculada pelo pensamento econômico (o trabalho como um tempo
sacrificado em vista de uma realização pessoal na esfera do lazer)‖. De acordo
com esses resultados, as atividades de trabalho são, ao contrário, preferidas às
atividades de lazer. Mas, o que realmente interessa, é o que conclui Perret: a
valorização (ou mesmo a paixão) por qualquer atividade de lazer, não implica
em ir contra o trabalho, mas, ao contrário, é possível constatar ―conexões e
conivências entre engajamento profissional e investimentos não profissionais‖,
possibilitando a integração entre os dois campos.
Tais resultados revelam também que as atividades não remuneradas não suprem
esse papel e, mesmo quando estas podem ser vistas como trabalho, não dão às
pessoas o mesmo senso de realização, além de fazê-las sentir-se à margem dos
acontecimentos.
O afastamento do trabalho, seja por doença, acidente, desemprego ou mesmo
aposentadoria, continua a ser fonte de grande sofrimento e de vazio existencial,
agravando os quadros de adoecimento já existentes ou criando outros. Isto
ocorre mesmo nos países em que os desempregados têm proteção material. Uma
evidência recente disto veio de uma pesquisa realizada em 17 países, por um
17
psicólogo francês, Dominique Clavier, constatando que o desemprego, quando
persiste por muito tempo, pode ocasionar distúrbios como doenças cardio-
vasculares, problemas neurológicos, insônia e dificuldades sexuais. O estudo
concluiu que a perda do trabalho provoca rupturas como a ausência de referência
e de identidade, além de pequenos ou grandes traumas com diversas
implicações: baixa auto-estima, ressentimento, sensação de abandono, de
incompetência, de frustração e culpa; instabilidade emocional, caracterizada por
insegurança, ansiedade, angústia, estresse e depressão, além do abuso de drogas
e de álcool; sentimento de exclusão social, abalo das relações familiares e
sociais; mudanças no poder aquisitivo; deterioração da saúde física; tentativas de
suicídio.8 Ramtin (apud ANTUNES, 2000, p. 133) fala também do
estranhamento daqueles que estão ―permanentemente desempregados ou
desempregáveis‖, dizendo que a realidade de sua alienação ―significa não
somente a extensão da impotência ao limite, mas uma ainda maior intensificação
da desumanização física e espiritual‖. Mas o aspecto vital dessa alienação,
acrescenta ele, deve-se ao fato de que a condição de integração social pelo
trabalho encontra-se ―crescentemente prejudicada pelo avanço tecnológico‖. Em
função disso, a ordem social começa ―a dar claros sinais de instabilidade e crise,
levando gradualmente a uma desintegração social geral‖. Assim, Ramtin fala das
manifestações da alienação dos desempregados que variam da rejeição da vida
social, do isolamento, da apatia, indo até à violência e à agressão diretas. Essa
―desumanização segregadora‖ está levando, segundo ele, às formas de
criminalidade, à formação de guetos de excluídos até ―às formas mais ousadas
de explosão social‖. Muitas outras pesquisas confirmam esses resultados e
colocam em xeque a conclusão de C. Offe (1989) sobre o enfraquecimento do
estigma do desemprego e sobre a tendência à quase normalidade da condição do
desempregado nos países mais ricos.9
Reconhecer que o mundo do trabalho tem passado por transformações importantes, que as
tecnologias estão desempregando, que se produz muito mais atualmente, com um
contingente muito menor de empregados, não implica, absolutamente, concluir que o
trabalho perdeu sua centralidade ou o seu valor, que o desemprego tornou-se algo normal,
que as pessoas estão prontas para redirecionar seus anseios para outros campos ou que se
sintam prontas para ―restabelecer‖ a cultura do ócio, como sugerem Kurz, Lohoff e Trenkle
(2002). O depoimento de um trabalhador metalúrgico desempregado, de 28 anos, é
emblemático em relação ao que temos encontrado em nossos estudos e em inúmeras
pesquisas às quais temos tido acesso: ―O trabalho tem sentido de vida pra mim. O homem
8
Os resultados deste estudo foram resumidos na Folha de São Paulo de 9/03/2003.
9
Para aqueles que se interessarem pelos resultados detalhados dessas pesquisas, sugerimos a leitura de Silva
(1994; 1997) e Borges (2001). Este último estudo resultou em uma dissertação de mestrado. Realizou-se uma
pesquisa com trabalhadores metalúrgicos, submetidos ao desemprego de longa duração, trazendo resultados
que confirmam integralmente aqueles encontrados pela maioria dos estudos sobre o tema. Ver também Lima
& Borges (2002). Um diagnóstico que estamos finalizando em torno de trabalhadores, afastados por
problemas de saúde, de uma grande empresa siderúrgica, revela claramente o agravamento da maioria dos
quadros após o afastamento. Tudo indica que, mesmo em casos como este, isto é, quando o trabalho adoece,
sua ausência é vivida como empobrecimento socio-afetivo, levando ao sentimento de inutilidade e de vazio
existencial.
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sem trabalho não é homem. Ele é um verme, não serve pra nada. O homem não se faz com
dinheiro, o homem se faz com trabalho, com as próprias mãos‖10.
Naturalmente, os adeptos da tese sobre o fim do trabalho diriam que esse trabalhador é
apenas mais uma vítima da ―ilusão‖, da ―ideologia‖ que transformou o trabalho em um
mito da sociedade moderna. Pensamos, ao contrário, que ele está falando de algo
profundamente verdadeiro, ditado essencialmente pela sua experiência, enquanto os que
defendem a perda do valor-trabalho parecem repetir velhas cantilenas, sem qualquer
respaldo da realidade (nem mesmo da própria realidade, uma vez que continuam a produzir
como nunca, dedicando-se freneticamente às suas atividades profissionais, ainda que seja
para dizer que o trabalho acabou!!). Além disso, os resultados acima nos reportam à fina
ironia de Negri e Hardt, ao concluírem que existem aqueles que conseguem ―excluir o
trabalho da esfera teórica, mas não podem, em todo caso, excluí-lo da realidade‖ (apud
ANTUNES, 2000, p. 130). Finalizando, gostaríamos de explicitar nossa concordância com
Mészaros (apud ANTUNES, 2000) quando este afirma que ainda permanece como ―uma
grande questão do nosso tempo [...] a necessidade de desafiar a subordinação estrutural
hierárquica do trabalho ao capital. [...] E o enfrentamento disso, tanto na teoria quanto na
prática social, é impensável sem a reafirmação vigorosa da centralidade do trabalho‖.
Referências
10
Depoimento extraído da dissertação de mestrado de Borges (2001).
19
GORZ, A (1982). Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Forense Universitária,
Rio de Janeiro.
KURZ, R., LOHOFF, E. & TRENKLE, N. (2002) Manifeste contre le travail. Éd. Léo
Scheer, Paris.
MÉDA, D. (1995). Le travail – une valeur en voie de disparition. Éd. Alto/Aubier, Paris.
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