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(P-508)

LOCAL DE ENCONTRO
ENTRE AS ESTRELAS
Autor
HANS KNEIFEL

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
(De acordo, dentro do possível, com o Acordo Ortográfico válido desde 01/01/2009)
O mês de agosto do ano 3.441, tempo terrano, está
chegando ao fim. Perry Rhodan, que regressou há pouco da
galáxia Gruelfin para a Terra, defronta-se com os destroços
daquilo que foi construído em séculos de trabalho duro.
Deixou a valente Marco Polo no porto da frota em Terrânia e
partiu com sessenta companheiros, inclusive Gucky e Atlan,
na Good Hope II, um pequeno cruzador espacial com
equipamentos especiais, para um destino desconhecido.
Perry Rhodan tenta investigar o misterioso Enxame, que
continua penetrando na galáxia. Acredita que deve ser
possível encontrar um meio contra a manipulação da
constante gravitacional causada pelo Enxame, que
transforma a maior parte dos seres inteligentes em débeis
mentais, ou ao menos convencer os que dirigem o Enxame a
não atravessar a Via-Láctea.
A primeira ação de Perry Rhodan é realizada no
“Planeta dos Cavadores”, um mundo situado nos confins da
galáxia, pelo qual o Enxame já tinha passado. Depois das
aventuras excitantes que enfrentou naquele mundo deserto,
passou a examinar um sistema solar e ajudar um mundo que
corre um perigo iminente por causa do Enxame.
Reginald Bell também se encontra nas proximidades do
Enxame. Viaja na Intersolar. Presta ajuda a quem precisa e
ao mesmo tempo descobre novos colaboradores no Local de
Encontro Entre as Estrelas...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Vyrner Rustage — Comandante de uma nave em fuga.
Falgur tan Gromand, Argoli Erion, Pegamoi Datras II e
Gooz B-8 — Fugitivos de Lepso.
Wycliff Calembour — Comandante da EX 8989.
Skytho Karrora — Um homem que vive em dois planos
existenciais diferentes.
Korvey Wokan — Psicólogo da EX 8989.
Reginald Bell — O Marechal-de-Estado que presta ajuda e
ganha novos colaboradores.
1

A Gerardus Mercator estava ocupada por dezessete pessoas, e nenhuma delas,


exceto talvez Argoli Erion, teria emprestado um solar que fosse a Vyrner. Muito menos
ao aconense que estava em pé atrás dele e há vários anos-luz não tinha outra ocupação
senão brincar com sua arma energética.
— Guarde esse brinquedo, Falgur! — disse Vyrner Rustage em voz alta. —
Ninguém tentará levar esta nave a um lugar diferente.
Falgur tan Gromand, o aconense, respondeu em voz baixa:
— Desconfio do senhor da mesma forma que o senhor desconfia de mim, terrano.
— Não desconfio do senhor, Falgur. Quando muito sinto compaixão. Não sei como
um homem sozinho pode ser tão nervoso.
Tinham partido no dia cinco de dezembro de 3.440, cerca de uma semana depois do
momento em que teve início o processo de deterioração mental no planeta. Já era o dia
vinte de agosto de 3.441 e todos estavam basicamente mais perto do destino, mas ainda
se encontravam muito longe para respirar aliviados. Só tinham percorrido um quarto da
ponte de matéria que ligava os diversos sóis.
E o culpado era Gromand, o aconense.
— Gostaria que respondesse a uma pergunta, Falgur — resmungou Rustage. — Por
que motivo me obriga pela trigésima vez a voltar ao espaço normal? O senhor sabe como
os outros reagem a isso.
O aconense, que era um homem alto, de ombros largos, com cerca de cinquenta
anos e aspecto muito bem-cuidado, sacudiu os ombros e continuou a brincar com sua
arma energética pesada. Mexeu na chave de segurança, olhou ao longo do cano, tirou o
pente de munição, voltou a colocá-lo. Estava nervoso, mas sabia perfeitamente o que
queria. Deu a resposta em tom contrariado.
— Receio, e também já lhe disse isto inúmeras vezes, Vyrner, que o senhor acabará
pousando com esta nave num planeta controlado pelos terranos ou até na Terra. Isso me
colocaria numa situação difícil.
Rustage, um homem de quarenta e nove anos, com cabelos castanho-escuros
longos, disse em voz baixa:
— O senhor está louco que nem os outros nesta nave cargueira.
— É possível — confirmou Falgur. — Mas nem por isso tenho vocação para
suicida.
— Ora, deixe-me em paz. Já viu que continuamos seguindo a ponte de matéria entre
a galáxia e a grande nuvem de Magalhães?
— Já — respondeu Falgur laconicamente.
O nome da Gerardus Mercator, uma nave cargueira moderna de cem metros de
diâmetro, era uma homenagem a um cartógrafo do início da idade moderna chamado
Mercator, pelo qual o comandante desaparecido nesse meio-tempo, que também se
transformara num débil mental, parecia ter uma predileção toda especial. A nave fora
construída há menos de seis meses e não era capaz de realizar voos a grande distância.
Até então Vyrner Rustage ocupara o posto de navegador e babá, conforme costumava
dizer em tom sarcástico. E havia mais. Mas o que mais lhe dava trabalho era conciliar os
gênios incompatíveis a bordo para evitar que os débeis mentais e os que tinham sido
salvos se atacassem uns aos outros. Todos se comportavam da forma menos inteligente
possível, com exceção talvez de Argoli Erion, uma beldade ruiva com um sorriso sedutor
nos lábios e um grande anel negro no dedo.
— Posso voltar ao espaço linear? — perguntou Vyrner.
— Desde que o destino continue sendo a nuvem de Magalhães — observou o
aconense.
Todos tinham escapado de uma espécie de inferno, mas parecia que não havia nada
que Falgur tan Gromand temesse mais que ter de pousar na Terra.
— Continua. É só dar uma olhada.
O aconense voltou a guardar o magazin na coronha da arma, destravou-a e dirigiu-
se à calculadora de rotas da espaçonave. Agora que as dezessete pessoas se encontravam
na região periférica da galáxia, onde havia poucas estrelas, o perigo parecia ter
diminuído. Mas apesar disso Falgur desconfiava até dos instrumentos positrônicos da
Mercator.
— Está certo — disse. — Pode sair do espaço normal.
— Muitíssimo obrigado! — murmurou Vyrner aborrecido.
Vinham de Lepso, um mundo pertencente aos livres-mercadores. Tinham deixado
para trás o caos absoluto. Mesmo em tempos considerados normais Lepso não podia ser
considerado um paraíso para os que queriam sossego e apreciavam uma vida
contemplativa, mas naqueles dias o planeta foi dominado pela fúria. A desgraça desabara
sobre Lepso de supetão, não poupando nem sequer os sáurios de briga e os animais de
luta especialmente criados, que eram obrigados a enfrentar-se nas arenas. Os cassinos e
casas de jogos, os parques e casas comerciais ficaram desertos, mas logo se
transformaram em objeto de saques das massas famintas que se comportavam como
crianças. Ninguém sabia como as outras pessoas, entre elas os três siganeses, tinham
conseguido tirar Vyrner Rustage do quarto de hotel que cheirava a um perfume forte. De
qualquer maneira eles o tinham feito sem dar a menor atenção à moça que se comportava
como uma criança de cinco anos, brincando com os copos, xícaras e garrafas vazias.
Vyrner, navegador da Mercator, mexeu em suas chaves, controlava os instrumentos
e apertou um botão vermelho.
A nave saiu do espaço normal.
O aconense guardou a arma, exibiu um sorriso frio e passou os dedos da mão
esquerda entre os cabelos abundantes.
— Pois é — disse. — Pelo menos podemos contar novamente com uma tripulação
completamente normal. Não está com fome?
Vyrner murmurou entre os dentes:
— Prefiro os aconenses assados. E uma cerveja como sobremesa.
O aconense irrompeu num riso forçado.
— O senhor vai ver, Vyrner — disse. — Ainda seremos amigos pelo resto da vida.
Ninguém confiava em ninguém. O aconense desconfiava sistematicamente de
qualquer gesto. Pensava que tinha algo a ver com ele. Os três saltadores, que
representavam o que restava de seu clã, viviam confabulando. Tinham perdido tudo,
menos a inteligência, a roupa do corpo e aquilo que traziam em quatro malas pequenas.
Somente Argoli Erion surpreendia o terrano com sua amabilidade constante e uma alta
dose de calma e moderação. A nave saía da galáxia à velocidade máxima, seguindo em
direção à grande nuvem de Magalhães. Seus ocupantes nem sabiam se lá estariam salvos.
Tinham ouvido pelo rádio os pedidos de socorro vindos de todos os quadrantes da Via-
Láctea e chegaram à conclusão de que o processo de debilitação mental se verificara em
todos os planetas.
Inclusive em sua nave.
O maahk, por exemplo, que permanecia no interior de seu cubo de sobrevivência de
vinte e sete metros cúbicos e acabara de pôr em perigo a si mesmo e à tripulação,
transformara-se num débil mental. Da mesma forma que um dos três siganeses. Dois dos
três antis também tinham regredido à infância. O resto pouco numeroso do clã dos
saltadores continuava normal e podia considerar-se salvo. E justamente Pegamoi Datras
II era um deles, e fora salvo. Ninguém previra isto. Dezessete pessoas — todas elas
escaparam de Lepso.
— O senhor vai ver, Falgur — disse Vyrner e levantou, depois de regular o relógio
e ligar os instrumentos ao piloto automático. — Ainda acabo lhe rachando essa cabeça
desconfiada.
— Todos os terranos são pacifistas — observou o aconense.
— A paciência rebenta como borracha que é esticada demais. Quem ficou
encarregado hoje do robô cozinheiro?
O aconense sorriu de uma forma maliciosa, enquanto saíam lado a lado da sala de
comando.
— Sua encantadora amiga — disse.
O terrano limitou-se a acenar com a cabeça.
O vozerio e os gritos em kraahamak, que saíam dos alto-falantes forçados ao
máximo da caixa de sobrevivência, tinham parado. O maahk voltara a ficar sentado numa
atitude relativamente pacata dentro de seu cubo, cuja parte superior era transparente.
Respirava hidrogênio, devia possuir quantidades suficientes de catalisador em forma de
metano, expirava amoníaco e a atmosfera de seu tanque tinha uma temperatura de quase
cem graus centígrados, sendo capaz de acabar com quase todas as outras formas de vida
existentes na nave, se o forasteiro enfurecido destruísse seu cubo. Mas agora que a nave
se encontrava no espaço linear e os raios misteriosos não faziam mais efeito, o ser cujo
nome não se conhecia se acalmara. Ninguém sabia o kraahamak, ninguém podia
comunicar-se com o indivíduo sem nome.
E ninguém, nem mesmo o navegador, sabia como essa criatura fora parar no
pequeno porão de carga vazio, juntamente com seu equipamento de sobrevivência.
De repente o aconense perguntou em tom indiferente:
— Vamos comer na cantina como de costume?
— Acredito que sim. Vamos descer — respondeu o terrano.
Não se podia dizer que se odiassem, mas desde o dia da decolagem o aconense, com
a partícula tan no nome, que mostrava que se tratava de um membro da nobreza, vivia
maltratando os nervos do terrano. Mas Falgur não era capaz de pilotar uma nave, muito
menos a pequena nave terrana de longo alcance em que se encontravam. Por isso estava
desconfiado e esperava que Vyrner acabasse pousando num planeta terrano. Vyrner faria
o diabo para que isso acontecesse — e ele mesmo se sentiria satisfeito quando alcançasse
a região do espaço cósmico que separava sua galáxia da nuvem de Magalhães, e mais
tarde a própria nuvem. Lá não correriam perigo — era ao menos o que esperavam.
Mas as constantes interrupções tomavam impossível um voo mais rápido.
Estas interrupções faziam a nave e os tripulantes atacados voltarem à zona dos raios
causadores do retardamento mental.
Além disso consumiam um tempo precioso e desgastavam os conversores.
— Quanto tempo ficaremos no espaço linear? — perguntou o aconense depois que
tinham chegado à cantina.
— Seis horas — respondeu Vyrner e farejou o ar. Sentia-se o cheiro de uma comida
gostosa. — Aproveite o tempo para dormir ou conversar com o maahk. Quem sabe se não
quer brindá-lo com uma canção aconense?
Falgur ficou calado.
Olhou para o relógio, recostou-se na poltrona estofada forrada de preto e examinou
as figuras que iam entrando e sentando. Estavam todos assustados e faziam questão de
deixar pelo menos uma poltrona vaga entre a que ocupavam e a do vizinho.
Os três saltadores sentaram bem juntos. Parecia que queriam proteger-se do cosmo
ameaçador, destruidor.
Spanda Stam, o patriarca, perdera sua nave porque um dos tripulantes que se
transformara num débil mental a fizera decolar enquanto o saltador se encontrava em
Orbana. Walide Stam, sua esposa, estava com ele. E o irmão da esposa, Trepan
Stamover. A moça que se juntara a eles era uma desconhecida.
Só sabiam que seu nome era Argoli Erion, que era muito bonita e se mostrava mais
calma depois de Vyrner.
Também sabia que cozinhava bem.
— Que coisa horrível! O silêncio, a incerteza! — disse Pegamoi em voz baixa ao
entrar na cantina. — Não sei por quê, mas acho que nem nessa nuvem estaremos salvos.
Não conseguiremos.
Rustage, um homem um pouco magro, de rosto moreno e rugas profundas entre o
nariz e o queixo, recostou-se na poltrona, cruzou os braços e fitou o novo arcônida com
um interesse quase clínico. Como se explicava que logo esse tipo efeminado, esse sujeito
convencido de vinte e quatro anos parecido com um lírio murcho, não fora atingido pelos
raios? Por que sua inteligência ainda funcionava?
Ninguém sabia.
Vyrner falou alto e em tom áspero, para que todos que estavam na cantina o
ouvissem.
— Faça o favor de controlar-se.
Pegamoi Datras II arregalou os olhos assustado e deu ao seu rosto uma expressão
muito triste. Dirigiu-se a Aptant Khyn, um médico ara que acabara de entrar.
— É repugnante, muito repugnante! — suspirou.
Deu de ombros e olhou para o balcão, onde o robô da nave trabalhava com a moça
saltadora, empilhando pratos e recipientes especiais na plataforma de serviço. Dali a
pouco os treze pratos apareceram sobre a mesa.
Para os siganeses tinham construído uma espécie de casinha de bonecos com
caixinhas vazias, latas de conservas e outros objetos. A casinha fora colocada na cantina.
A moça colocou na casinha algumas conchas petri tiradas dos talheres biológicos da nave
e colocou-as na casa aberta de um lado. Era a comida dos três siganeses.
“Quarenta e sete quiloparseks!”, pensou Vyrner. “Quarenta e sete mil vezes três
quartos de anos-luz! Aí terei paz deste clube de débeis mentais!”
Ele sabia.
Um segundo depois de ter pousado e desligado as máquinas, sairia correndo da
eclusa polar. Correria até não ver mais a nave e o que havia nela. Quatro saltadores, três
antis, dois aras, um novo arcônida degenerado, um barnita — naquele instante entrava
rolando pela porta e sentou em duas poltronas — três siganeses, um aconense e o
perigoso maahk... Era demais. Seria mais fácil e agradável transportar uma carga de feras
selvagens.
— Bom apetite! — disse o barnitense.
Seu nome era Gooz B-8. O diâmetro de seu corpo era igual à altura. Sua pele
esverdeada trazia uma variação cromática toda especial para a vida monótona a bordo.
Vyrner exibiu um sorriso forçado e por pouco não perdeu o apetite. Mas aí apareceu
Argoli Erion, sentou-se perto dele e perguntou em voz baixa:
— Como vai, Vyrner?
Rustage sentiu a raiva que ameaçava tomar conta dele desaparecer em um canto do
estômago. Respondeu em voz baixa:
— Quando vejo você, moça, esqueço quase todos os problemas.
Neste instante lembrou-se de uma ressaca que curtira num hotel de segunda classe,
onde acabou sendo encontrado pelos outros. Um dia descobriria como tinham feito para
encontrá-lo e por que acreditavam que justamente ele continuava normal em meio ao
caos.
Vyrner começou a comer.
2

Era a mão esquerda que tremia ligeiramente. A direita fazia um acréscimo


manuscrito ao diário de bordo positrônico. Não estava tremendo. A esquerda mostrava de
uma forma bem evidente o estado em que se encontravam os nervos do comandante
Wycliff Calembour. Wycliff escrevia devagar, e de vez em quando tirava os olhos da
folha de plástico para fixá-los no copo de uísque quase cheio, que estava à sua frente.
“...saímos da galáxia Nubecula Major, uma galáxia do tipo I também conhecida
como a Grande Nuvem de Magalhães. Temos à nossa frente um trecho de
aproximadamente trinta quiloparseks que teremos de percorrer antes de chegar aos
limites de nossa galáxia. Apesar de termos concluído as pesquisas de forma plenamente
satisfatória, todo mundo se preocupa com Skytho Karrora, que sofreu um choque ao
observar e filmar os ritos dos nativos de Classios IV, nos quais teve certa participação.
“Mas temos certeza de que os médicos e terapeutas do Império curarão Skytho.
“Também estamos um pouco preocupados com a falha de nosso hipertransmissor
principal. Ficaremos sem informações do Império Solar até deixar atrás de nós a ponte
de matéria e a última estrela existente entre a nuvem de Magalhães e nossa galáxia.
Enquanto isso nossa nave, a EX 8989, foi brindada com o apelido carinhoso Little Crazy
Bird...”
O comandante Calembour parafusou a tampa do estilete, virou a página e fez
retornar a poltrona ao trilho. Segurou o copo com a mão direita e tomou um grande gole.
O líquido ardia em sua língua e esquentava o esôfago.
— Droga! — disse. — Tenho de falar com o psicólogo.
O comandante virou-se para a direita, digitou um número no intercomunicador
embutido e falou para dentro do microfone.
— Korvey, pode fazer o favor de vir para cá? Desde que Karrora não lhe tome todo
o tempo.
Korvey Wokan, um psicólogo de quarenta anos que trabalhava na EX 8989,
respondeu:
— Já vou, chefe.
Fazia quase dois anos e meio que viajavam na mesma nave, mas o psicólogo e o
comandante continuavam a tratar-se de senhor. Mantendo esse tipo de distanciamento,
tinham-se aproximado mais do que fariam pelos meios convencionais.
Dali a alguns minutos soou o sinal da porta.
— Abra a porta a pontapés! — gritou Wycliff.
— Será um prazer.
O cosmopsicólogo sentou na poltrona presa do outro lado da escrivaninha, tirou um
charuto negro do bolso da camisa e acendeu-o seguindo um ritual complicado.
— Que é? — perguntou Wokan.
— Confusão — resmungou Wycliff.
— Ótimo. Que tipo de confusão?
Calembour encostou o dedo indicador da mão direita à testa e disse como quem
pede desculpas:
— Não é diferente das outras. Muitas perguntas. Primeiro: Como vai Karrora?
— Miseravelmente.
Calembour estava muito bem lembrado de certa noite, três meses atrás. Tinham
pousado num planeta sem nome e conquistaram a confiança dos nativos. Eram
humanóides, mas quase todas as ideias e atitudes desses seres de corpo fino e pele azul
eram tão radicalmente diferentes, tão estranhas que ninguém conseguia compreendê-las.
Mas uma chave desse entendimento estava nos ritos de iniciação à vida, realizados pouco
depois do pouso da nave. O imediato oferecera-se como voluntário e saíra com a máquina
fotográfica para encontrar essa chave. Encontrou-a, mas teve de pagar um preço elevado.
Ficou louco.
Ainda conseguiu chegar à nave. Calembour encontrou o amigo e carregou-o nos
ombros para o hospital da nave. Karrora ainda foi capaz de gravar seu relatório numa fita,
mas depois disso mergulhou num estado de completa confusão mental.
Procurava a escuridão, enrolava-se em posição fetal, temia tudo que estava ligado
ao espaço, cosmos, ambiente.
Preferia sempre os recintos menores e mais escuros. Mais tarde passavam a tirá-lo
de debaixo de mesas, de pequenos cubículos, debaixo dos pedestais das máquinas e dos
cantos mais escuros de seu camarote.
Não perdera a inteligência, mas não podia usá-la. Todas as pessoas a bordo sentiam
o que estava acontecendo e toda vez que viam Karrora experimentavam um forte
sentimento de culpa.
Alguma coisa se rompera em sua inteligência.
Luz, claridade, clareza — tudo isso ele temia. Só era capaz de pensar mais ou
menos claro quando se encontrava numa sala pequena, completamente escura, numa
posição em que seu corpo ocupava o menor volume possível.
— Hoje Skytho Karrora chegou ao lugar alcançado pela inteligência desses nativos
— disse o cosmopsicólogo. — Ainda não encontrou o caminho que leva dessa posição à
nossa realidade intelectual, ética e psíquica. Para nós, Skytho é um doente mental, mas na
verdade vive num sistema de conceitos completamente diferentes.
O comandante fez um gesto de pouco-caso.
— Isso eu sei, doutor. Só queria saber se houve uma melhora em sua condição, por
menor que fosse.
— Não — respondeu o psicólogo. — Analisamos o filme e o relato verbal e não
estamos em condições de compreendê-lo. Ele continua se recusando a desenvolver
qualquer espécie de atividade.
O comandante murmurou desesperado:
— Quer dizer que ainda teremos de procurá-lo e arrastá-lo ao banheiro, temos de
obrigá-lo a comer e beber alguma coisa e devemos ficar sempre de olho para que não
morra sufocado em algum canto.
Wokan virou-se, pegou um copo vazio e transferiu quase todo o conteúdo do copo
do comandante.
— Não é bom que o comandante fique embriagado — disse com um sorriso irônico
nos lábios. — Mas o psicólogo da nave pode tomar esta liberdade. Quem já viu num
psicólogo um homem normal?
— Eu, Korvey — murmurou Calembour.
— Foi por isso que resolvi aliviar seu corpo, Wycliff. Mas a resposta à sua pergunta
é não. Não constatamos nenhuma melhora.
Skytho era um homem ambicioso, mas amável. Naquele dia não passava de uma
sombra de si mesmo. A degeneração progredira com uma rapidez surpreendente. Os
medicamentos aplicados reduziam seu nível de atividade, consistente na retirada do
mundo humanóide da realidade. O homem andava pela nave como um fantasma. De
repente aparecia em algum lugar, completamente alienado e sem que ninguém esperasse,
apertava botões ao acaso, ria como quem sabia alguma coisa e desaparecia. Estava magro
que nem um esqueleto e representava um perigo latente para sua própria pessoa.
— Que podemos fazer? — perguntou Calembour. Dirigira a pergunta mais a si
mesmo.
— Esperar. O tempo cura todas as feridas.
Furioso, Wycliff derramou garganta abaixo o resto da bebida alcoólica, descansou o
copo com violência e disse em tom áspero.
— Este é mais um desses jogos de palavras inaceitáveis por causa dos quais muita
gente já foi morta.
— Conhece algo melhor? — perguntou Wokan.
— Não; se conhecesse já teria feito alguma coisa.
Wycliff sacudiu os ombros.
— Ainda bem que dentro de pouco tempo pousaremos na Terra — disse depois de
algum tempo. — Julian Tifflor encaminhará nosso amigo. Dentro de seis meses o
teremos de volta.
— O senhor é um otimista danado, Wycliff — respondeu Wokan com a maior
calma. — Principalmente quando ingere bebida alcoólica. Aí seu discernimento diminui
bastante.
— Não faz mal — respondeu o comandante. — Na manhã seguinte estou
completamente sóbrio. Dentro de oito horas faremos mais uma saída do espaço linear
para fazer um rastreamento de controle.
O psicólogo acenou com a cabeça.
Os porões de carga da nave estavam cheios de testemunhos de culturas estranhas,
com preciosas e importantes amostras de solo e fitas-cassete, pilhas de fotos e espécimes
hermeticamente fechados de exemplares colhidos em cerca de quarenta planetas visitados
pela EX 8989. Tinham sido encontrados dezenove planetas valiosos, que podiam ser
colonizados a partir da Terra. Eram muito parecidos com o planeta Terra e desabitados.
Os bancos de dados dos computadores de bordo positrônicos estavam repletos de
informações.
Mapas siderais...
Séries de exames astrofísicos...
Análises espectrais...
Tabelas de dados e as coordenadas de mais de cem sistemas solares... uma
preciosidade inestimável para a Terra.
Estava na hora de entregar tudo isso na Terra e gozar férias.
Bem, a gente veria...
— Wokan — disse o comandante e descansou os antebraços sobre a mesa. Apoiou
o queixo e olhou atentamente nos olhos do cosmopsicólogo, como se quisesse ler seus
pensamentos. — Uma pergunta curta entre homens desiludidos — e uma resposta
sincera. O que será feito de meu amigo?
O psicólogo não precisou pensar duas vezes. Inalou o fumo do charuto negro e disse
em voz baixa:
— Sempre consegui chegar mais longe sendo pessimista. Neste caso também
prefiro ser pessimista.
Os dois olharam por acaso para uma fotografia estelar especial, presa num bloco
maciço de flexoplástico preso à parede com quatro parafusos. Viram a estrutura da
galáxia da forma como ela é vista, de uma posição que corresponde mais ou menos à da
Grande Nuvem de Magalhães. Um pontinho amarelo brilhava no lugar em que ficava o
sol terrano.
Finalmente o comandante voltou a falar.
— Dentro de mais alguns dias estaremos em Terrânia City — disse em voz baixa.
— Lá muitos dos nossos problemas serão resolvidos.
Eles não sabiam se alguma coisa tinha mudado no lugar ao qual se dirigiam. A nave
EX 8989, a Little Crazy Bird, estava viajando há muito tempo.
Todos queriam descansar e passar férias na Terra.
— Vamos continuar no espaço linear? — perguntou o psicólogo Wokan. — Ou será
que voltaremos ao espaço normal?
Wokan já conhecia a resposta. O comandante Wycliff era um astronauta experiente,
que não gostava de assumir riscos. Quando o fazia, era um risco bem calculado.
— Voaremos junto à ponte de matéria que une as duas galáxias — disse Calembour.
— Ali existem estrelas que segundo nossos mapas funcionam como radiofaróis. Por isso
não correremos nenhum risco no que diz respeito à orientação.
— Obrigado.
Enquanto os dois estavam falando, o imediato Skytho Karrora saiu de seu camarote
escuro, passou pelo corredor vazio que nem um fantasma e chegou a um compartimento
de carga que não estava trancado. Depois de procurar um pouco encontrou uma caixa
feita de duas camadas de fibra de vidro isolada. Enfiou-se na caixa, colocou a tampa e
sentiu-se no seu mundo. Este mundo estava cheio de cores escuras, que brilhavam
intensamente. Era um belo mundo, que antes não conhecia.
3

Considerada a expectativa de vida dos terranos, Vyrner Rustage com seus 49 anos
podia-se considerar um homem relativamente jovem. Tinha rosto grande e um par de
olhos cinzentos afundados nas covas. O cabelo castanho-escuro, que já começava a ficar
grisalho junto às orelhas, estava em desordem. A barba por fazer cobria o pescoço, o
queixo e as faces. Vyrner tirou devagar a camisa suada, tocando na cicatriz oblíqua
produzida por uma queda. Caíra de uma plataforma antigravitacional juntamente com a
carga. Talvez fosse alguma coisa ligada a isso que o tornava imune aos efeitos das
misteriosas radiações. O comandante sorriu para sua imagem refletida no espelho, pegou
o pincel e o creme de barbear e espalhou espuma pelo rosto. Era o único tripulante que
numa atitude conservadora continuava seguindo o velho costume. Colocou uma lâmina
no aparelho e começou a barbear-se calmamente.
Quando estava enxaguando o rosto, a raiva que sentia da chamada tripulação que
vivia brigando em vez de cuidar da nave voltou a tomar conta dele.
— Eu devia fazer alguma coisa... — murmurou e tirou uma camisa limpa do
armário cuidadosamente arrumado. O sinal da porta interrompeu-o em sua atividade.
Depois de olhar ligeiramente para a arma narcotizante, gritou:
— Entre!
A escotilha deslizou para trás. Argoli Erion apareceu na abertura, fitou-o meio
embaraçada e disse:
— Só conheço um lugar em que se tem um pouco de sossego. É seu camarote,
terrano.
Vyrner fez um gesto e disse em tom calmo:
— Entre.
A face interna da escotilha voltou a aparecer, e com ela a foto tridimensional de
uma beldade escassamente vestida.
Argoli carregava uma bandeja, na qual se via louça de café, copos e uma garrafa.
Colocou-a na escrivaninha sobrecarregada, embaixo do retrato do irmão de Vyrner.
Depois sentou em uma das duas poltronas negras.
— Estou incomodando? — perguntou em voz baixa.
— Não, você nunca incomoda — respondeu Vyrner e abotoou a camisa. — Ou
quase nunca. O que está acontecendo desta vez lá fora?
Vyrner apontou com o polegar por cima do ombro, para a porta.
— Majie Odoardo está brigando de novo com Gooz B — respondeu a moça. —
Cada um acusa o outro pelo que come e pelo comportamento repreensível.
O médico ara, um homem magro, e o bamitense gordo estavam brigando. Era
interessante que numa situação de estresse como esta toda conversa terminasse em briga.
Vyrner Rustage tirou os objetos guardados em cima da outra poltrona e sentou-se.
— Foi muita gentileza sua — disse apontando para a louça. — Dentro de uma hora
voltaremos ao espaço normal.
— Aquele pessoal vai ficar bobo e infantil de novo? — perguntou Argoli assustada.
Rustage encolheu os ombros e disse:
— Não faço ideia. Não sou cientista, mas acho que os raios deixarão de fazer efeito
depois que tivermos saído da galáxia. Tenho uma teoria. Talvez os raios se orientem de
alguma forma por certos sóis manipulados de uma forma misteriosa. Mas tudo isto é
muito confuso e ainda não foi provado. A bordo da nave não existem instrumentos com
os quais se possa fazer uma verificação — afinal, não estamos numa nave exploradora,
mas numa unidade mercante. Além disso não sou cientista, Argoli.
A moça acenou com a cabeça. Distribuiu canecos, colocou café e bebida alcoólica
nos copos. Felizmente as provisões, calculadas para sessenta pessoas, não tinham sido
tocadas durante o caos. Não havia problemas de alimentação.
— Quanto mais tempo durar o voo, pior fica o estado de espírito a bordo — disse a
moça saltadora de repente. — Enquanto tínhamos de cuidar dos débeis mentais, os que
vivem brigando agora tinham com que distrair-se. Agora, que estão no espaço linear e
recuperaram o juízo, resolvem brigar.
Vyrner sorriu com uma expressão malvada.
— O que é uma prova de que a disposição de brigar está estreitamente ligada à
inteligência das pessoas. Mas não se preocupe; vão parar de brigar.
Vyrner fitou a moça.
Argoli Erion era mais parecida com uma moça terrana bonita do que deveria ser. O
que mais chamava a atenção naturalmente eram os longos cabelos ruivos, que caíam
sobre os ombros. O rosto com um par de olhos verdes fascinantes era estreito e exótico.
O corpo era parecido com o da moça que aparecia no pôster. Não fora à toa que Vyrner
mandara colar a ampliação. Argoli trajava uma mistura indefinível de roupas usadas
pelos saltadores e pelos terranos. Vyrner lhe dera peças de roupa tiradas dos camarotes
dos tripulantes desaparecidos. A moça fitou-o como quem espera uma revelação.
— O que vai fazer? — perguntou.
— Tomar medidas radicais! — respondeu Vyrner. — Para começar, vou cuidar
desse aconense que diz ser de sangue azul.
Vyrner mexeu o café. Houve um silêncio embaraçado.
— De onde é você? — perguntou depois de algum tempo.
A moça disse.
Era sempre a mesma história. Sua nave pousara no porto espacial de Orbana.
Quando o pessoal da repartição de assistência social aparecera a bordo para receber o
suborno, a epidemia psíquica começara de repente. Depois disso Argoli levara alguns
dias andando a esmo, à procura de outras pessoas normais. Acabara encontrando o
barnitense. Ele lhe fizera um relato prolixo sobre um terrano que curtia sua ressaca num
hotel barato. Esse terrano continuara surpreendentemente normal depois do colapso,
gabando-se, bebendo e mexendo com as moças, sem perceber que em torno dele todos
passavam a brincar como crianças.
Depois saíram à procura de Vyrner.
— E nós o encontramos. Vyrner sorriu embaraçado.
— Pois é — disse. — Foi isso mesmo. Parece que sou a única pessoa capaz de
conduzir este navio-fantasma cheio de individualistas histéricos e uma perigosíssima
jaula de maahk para a nuvem de Magalhães.
A moça tocou ligeiramente com o dedo em sua mão.
— Não parece — disse em voz baixa. — É. Vai fazer alguma coisa para impedir
essas brigas absurdas?
— Farei ou não quero mais chamar-me Vyrner — respondeu o comandante e
esvaziou o copo. A bebida alcoólica até parecia fogo líquido, mas ajudou a melhorar um
pouco o seu estado de espírito. Levantou, dirigiu-se a uma gaveta embutida e prendeu
uma pequena arma paralisante embaixo do braço esquerdo. Em seguida abriu o armário,
tirou uma jaqueta de linho fina e vestiu-a. Arregaçou as mangas até a metade do
antebraço e sentou-se.
— Que dirão os três indivíduos de sua espécie quando souberem que você está no
meu camarote? — perguntou.
Argoli deu de ombros.
— Parece que fazem questão de não assumir qualquer responsabilidade por minha
pessoa.
— E a responsabilidade coletiva do clã, o interesse pelos compatriotas?
Os lábios da moça crisparam-se num gesto depreciativo.
— Normalmente tudo isso existe. Mas não na situação anormal em que nos
encontramos. Eles perderam tudo, sua nave, sua fortuna e os familiares. Só salvaram a
própria pele e mais algumas preciosidades. Não se pode esperar que assumam sua
responsabilidade com entusiasmo.
Num gesto pensativo, Vyrner bateu com as unhas nos dentes incisivos. Em seguida
levantou o caneco e a moça voltou a enchê-lo com café preto bem quente.
— Está na hora de cuidar da direção da nave — disse.
— Posso ficar aqui ouvindo um pouco de música com a porta trancada? —
perguntou Argoli em voz baixa. — Datras está atrás de mim.
— Pegamoi Datras II atrás de você? — perguntou Vyrner estupefato.
A moça acenou com a cabeça.
Vyrner soltou um estrondosa gargalhada. Antes que acabasse o acesso de riso,
alguém bateu à porta. Rustage parou de rir e gritou:
— Entre!
Eram Ingrain Dulgant, o anti, Gooz B e Aptant Khyn, um médico ara. Entraram
como uma tempestade e começaram a falar todos ao mesmo tempo.
Dulgant gritou:
— Este bamitense gordo afirma ter direito a um tratamento especial por descender
dos terranos. Quando eu lhe disse que estamos todos na mesma canoa, ele respondeu que
esta canoa é uma nave terrana e que, se alguém deve ter certas prerrogativas, este alguém
é ele...
Aptant Khyn gritou com a voz fanhosa:
— Não podemos ser tratados como mendigos. Somos médicos muito conceituados.
Parece que a primeira coisa que teremos de fazer é tratar deste monte de gordura antes
que coma e beba até morrer. E olhe que ele faz isso às nossas custas, pois ele come pelo
menos quatro vezes mais que nós e além disso arrota que nem um animal. Esse cara...
O bamitense estava parado na porta, trêmulo. Levantou os braços curtos e gordos e
gritou em tom choroso:
— É claro que eu tenho razão. Descendo de colonos terranos do sistema de Ricolt.
Meu cérebro não pode ser influenciado. Não sou igual a esses bobalhões. Preciso comer
muito para viver!
— E o senhor não tem o direito de me atacar. Afinal, só foi salvo dessa nave
porque...
Argoli olhou para o terrano.
O navegador Vyrner Rustage estava calmamente apoiado no armário, com os lábios
cerrados e os olhos entreabertos. Mantinha os braços cruzados sobre o peito. Um dos
botões magnéticos da camisa estava aberto. As veias das têmporas eram cada vez mais
salientes. Finalmente abriu a boca, respirou profundamente e gritou com tanta força que
os três homens perderam a fala:
— Silêncio, idiotas!
Os homens assustaram-se e recuaram. Vyrner prosseguiu em voz baixa e áspera:
— Para mim chega!
— Já chega desde que decolamos. Daqui em diante usaremos métodos não-
convencionais e quem não quiser aceitá-los sairá da nave, num jato ou ficando no
próximo planeta que eu descobrir.
— Mas...
A voz do bamitense tremia.
— Não há mas nem porém — disse Vyrner. — Antes de mais nada, cada um de
vocês terá seu trabalho. Gooz B, vá aos porões de carga e confira as provisões com os
conhecimentos de carga. Todas as provisões. Fui bem claro? Ai do senhor se eu descobrir
que esqueceu um saquinho de plástico. Entendeu?
As bochechas flácidas do bamitense tremiam em sinal de protesto.
— Não estou aqui para trabalhar.
Vyrner já gastara o que ainda lhe restava da paciência maltratada. Tirou a mão
direita de debaixo da jaqueta e atirou no braço de Gooz. O bamitense soltou um grito
estridente.
— Depois que a paralisia de seu braço tiver passado, o senhor será bem-vindo de
novo — disse Vyrner. — Dê o fora. Os conhecimentos de carga estão sobre a mesa da
mapoteca, na sala de comando. Rápido!
O bamitense afastou-se gemendo. Desenvolveu uma velocidade considerável.
Vyrner passou a dirigir-se ao médico ara.
— Preste atenção, Aptant Khyn — disse em voz baixa. — Não quero dar uma de
diretor, mas a partir deste momento todos terão seu trabalho a bordo desta nave.
O ara contemplou-o com os olhos arregalados.
— Pois não.
— O senhor vai examinar a enfermaria, bem como os aparelhos e os estoques de
medicamentos. Quero que a enfermaria funcione perfeitamente quando precisarmos dela.
Entendeu?
O ara acenou com a cabeça. Não disse uma palavra.
— Diga a seu amigo Majie Odoardo que deve criar um procedimento para que
possamos comunicar-nos com o maahk.
— Transmitirei isso a ele. Posso retirar-me?
— O senhor deve.
— E eu? — perguntou o anti em tom rebelde. — Devo limpar as toaletes?
O rosto de Vyrner abriu-se num largo sorriso. Nem pensara nisso. Era uma ótima
ideia.
— Isso mesmo! — disse. — O senhor e seus companheiros cuidarão para que a
nave sempre esteja limpa. Os robôs faxineiros e materiais de limpeza estão à sua
disposição. Quando falo em limpeza, refiro-me a ela no sentido mais amplo da palavra.
Inclui as máquinas nas eclusas de hangar. Se tiverem alguma objeção, não se
constranjam. Podem sair da nave.
Parecia que o anti não acreditava no que Vyrner acabara de dizer.
— Sair enfiado num traje espacial? — perguntou sorrindo. — Em queda livre?
— Quando o senhor desejar ou eu julgar necessário. Ou sai da nave, ou comporta-se
de forma sensata. A limpeza será em benefício de todos.
O anti retirou-se em silêncio.
— O senhor está agindo com muita inteligência — observou a moça saltadora.
— A raiva ensina a agir — resmungou o terrano.
Neste instante a nave saiu do espaço linear. O maahk voltou a gritar e a agitar-se,
enquanto dois dos antis balbuciavam coisas sem sentido. De repente o sistema de
rastreamento automático deu o alarme.
Vyrner ergueu o braço para despedir-se, sorriu para Argoli e saiu correndo.
Atrás dele Argoli fechou a escotilha e respirou profundamente algumas vezes.
4

As estrelas apareceram na tela panorâmica da nave exploradora.


A ponte de matéria, indicada por um longo véu gasoso, iluminada pelos sóis que
ficavam atrás. As estrelas, que se enfileiravam irregularmente, como uma corrente de
bóias luminosas, entre a pequena galáxia Nubecula Major e a galáxia dos terranos.
E atrás de tudo isso — o Sol e a Terra.
Wycliff fez a nave correr a noventa e oito por cento luz, apertou uma tecla e falou
para dentro do microfone:
— Atenção, setor de rastreamento. Favor realizar uma análise em todas as direções.
— Entendido, comandante. O resultado será fornecido daqui a pouco.
Os instrumentos entraram em funcionamento.
Impulsos de rastreamento de longo alcance atravessaram o espaço. Um programa
bem definido fez com que as antenas girassem de uma forma que correspondia à face
interna de uma esfera. Cada setor do espaço foi apalpado, à procura dos ecos energéticos
refletidos por grandes objetos metálicos.
Por algum tempo não aconteceu nada, mas quando as antenas giraram no sentido do
deslocamento da nave...
— Contato, comandante!
— As especificações, por favor.
Uma tela iluminou-se, e dali a instantes os homens que se encontravam na sala de
comando leram os dados.
— Uma espaçonave, senhor!
Calembour leu os dados e disse em voz baixa:
— Uma nave. Não é muito grande. Saiu do espaço linear há algum tempo e
desenvolve mais ou menos a velocidade da luz. Não mantém uma rota de colisão, mas
segue em direção à nuvem de Magalhães. Setor de rádio!
— Falando. Usaremos a faixa da frota?
— A faixa da frota compreende todas as frequências usadas pelas naves terranas. Já
representa uma seleção.
Calembour soltou o microfone e examinou a tela que mostrava os resultados
fornecidos pelo setor de rastreamento.
— Entendido! — disse o setor de rádio. No mesmo instante a mensagem passou
pelas antenas da nave exploradora.
— Aqui fala a nave terrana EX 8989. Chamamos espaçonave vinda em sentido
contrário. Favor fazer contato. Aqui fala nave terrana...
Passaram-se alguns minutos.
— Devem estar dormindo, ou então não querem responder — disse Calembour
enquanto girava nos botões de regulagem do alto-falante.
A mensagem foi repetida várias vezes. A nave que vinha em sentido contrário devia
tê-la ouvido, a não ser que o rádio automático tivesse falhado.
Finalmente veio a resposta.
— Aqui fala a nave mercante terrana Gerardus Mercator. Por favor, tentem
encontrar-se conosco. Precisamos de ajuda e temos informações.
O piloto e o comandante entreolharam-se demoradamente com uma expressão de
dúvida estampada no rosto.
— Informações? — perguntou Wycliff esticando a palavra. — Que informações
serão estas?
— Não faço ideia!
Esperaram. Depois de algum tempo o comandante voltou a segurar o microfone.
— Que informações tão importantes têm para nós, Mercator?
Uma voz áspera respondeu em tom contrariado:
— Viemos da galáxia. Parece que lá reina o caos em todos os planetas. Nós lhes
diremos... Devemos ter um encontro e tentar uma manobra de atracação.
Wycliff Calembour sentiu uma mão gelada apertar seu coração. A bordo um homem
com um acesso de xenofobia total, e na galáxia o caos. O que queria dizer o comandante
da nave mercante? O caos? Que espécie de caos?
— Calma, comandante! — murmurou o piloto. — Vamos encontrar-nos com a nave
e falar com o pessoal. O senhor sabe como mentem os astronautas mercantes.
— Tenho a impressão maldita de que o homem que falou não estava mentindo coisa
alguma — disse Calembour com a voz abafada. — Notei pelo tom de sua voz que falava
muito sério.
Wycliff sacudiu os ombros e olhou para a tela de rastreamento.
— Rastreamento!
— Pois não, comandante! Que deseja?
— Escutem, rapazes — disse Calembour. — Façam o favor de verificar se nosso
amigo reduziu a velocidade e está preparando uma manobra de aproximação. Quero ser
avisado.
— Entendido.
Enquanto o comandante da nave exploradora esperava, o psicólogo entrou, parou
atrás de sua poltrona e depois de algum tempo perguntou em voz baixa:
— Viu Karrora? Sabe onde ele se encontra?
— Calembour virou a cabeça e respondeu em tom de espanto:
— Não! Será que não está no camarote? Estive lá há algumas horas para vê-lo
pessoalmente.
Wokan sacudiu a cabeça.
— Quis fazer-lhe uma visita para aplicar uma injeção. Mas não o encontrei no
camarote. As cobertas de sua cama estão reviradas.
Wycliff Calembour suspirou e apertou um botão. Sua voz saiu de todos os alto-
falantes da nave:
— Atenção! — disse Calembour a todos. — Estamos à procura de Karrora. A
última vez que foi visto estava em seu camarote. Deve ter-se escondido de novo. Por
favor, procurem-no e levem-no de volta ao camarote. Final.
— Obrigado, chefe — disse o psicólogo.
Em seguida saiu. Os homens viram na tela do rastreador a Gerardus Mercator
mudar ligeiramente de rota, para seguir em direção a um ponto em que as trajetórias das
duas naves se encontrariam. Os veículos estavam a mais de cinco anos-luz um do outro.
Depois de algum tempo o comandante disse:
— Entraremos no espaço linear e sairemos nas proximidades do ponto de encontro.
Aí pararemos. Entendido?
O piloto apontou para o equipamento de rádio e perguntou:
— Vamos avisar a nave mercante?
— Naturalmente.
Dali a alguns segundos o comandante falou para dentro do microfone:
— Aqui fala a EX 8989. Atenção, Gerardus Mercator. Vamos entrar no espaço
linear. Pararemos no espaço normal no ponto de cruzamento das rotas das duas naves
onde aguardaremos sua manobra. Estamos muito curiosos para saber que informações
têm para nós. Final.
A voz respondeu:
— Têm motivo para isso, EX 8989. Seguiremos para o ponto de encontro e
sairemos perto dos senhores. Temos inúmeros problemas. Final.
Wycliff estava cada vez mais nervoso à medida que se aproximava o momento do
encontro. Não tinha a menor ideia a respeito das informações que lhe seriam dadas. Mas
é claro que pensava em todos os tipos de perigo que talvez se tivessem transformado num
problema grave para a galáxia. Parecia que o homem da Mercator sabia muito mais do
que mostrava. Logo, o perigo devia ser maior do que acreditavam.
— Droga! — cochichou Calembour.
Sentiu que o pânico tomava conta dele. Não se esquivava ao perigo, desde que fosse
capaz de avaliar sua extensão. Mas naquele momento nem era capaz de imaginar o
sentido das declarações vagas de seu interlocutor. Fez um esforço para controlar-se e
falou entre os dentes.
— Que será que está havendo por lá? Ele se referiu à galáxia. É um ambiente muito
grande. O conflito não pode ter abrangido toda ela. Não é possível!
— Nada é impossível! — respondeu o piloto enquanto a tripulação percorria a nave,
à procura de Skytho Karrora. — Vamos esperar, comandante. Esperemos até que o
senhor tenha falado com o comandante da nave mercante. Sua fantasia está exagerando as
dimensões do problema.
Calembour apoiou o rosto nas mãos e sacudiu-se.
— Acho que o senhor tem razão — disse.
As naves corriam pelo espaço, em direção a uma série de coordenadas situadas no
espaço normal. A nave exploradora ia se aproximando do limite crítico correspondente às
estrelas periféricas da galáxia.
A nave mercante abandonava esta fronteira e corria para as estrelas da nuvem de
Magalhães.
A distância entre os dois sistemas era de quarenta e sete quiloparseks.
O lugar em que as naves queriam encontrar-se ficava a uns cinco quiloparseks de
uma linha imaginária formada por uma reta que unia as estrelas situadas no limite
exterior da roda de fogo. O tempo foi passando, e as preocupações do comandante
aumentavam. Trinta minutos depois de a nave ter saído mais uma vez do conjunto
espácio-temporal normal para realizar uma pequena manobra linear, o psicólogo entrou
em contato com o comandante pelo intercomunicador.
— Wycliff, faça o favor de vir ao camarote de Karrora.
— Encontraram-no? — perguntou Calembour em tom de alarme.
— Encontramos. Mais morto que vivo. O senhor vem?
— Naturalmente.
Quando viu o amigo deitado de olhos fechados. Wycliff sentiu raiva e compaixão
ao mesmo tempo. Skytho Karrora estava sob a máscara de oxigênio. Sua respiração era
um pouco menos superficial e ele se estendera sob o efeito dos antidistônicos. Já se
encontrava de novo ou ainda se encontrava no mundo do planeta misterioso.
— Enfiou-se numa caixa — disse Wokan em voz baixa a Calembour. — Sofreu um
ataque agudo de quenofobia, isto é, de horror aos espaços vazios. Tinha uma expressão
feliz no rosto, apesar de estar inconsciente.
— Talvez nosso amigo seja mais feliz que nós — disse o comandante. — É só
esperar até falarmos com o pessoal da nave mercante.
5

Cem metros. Era esta a distância entre as duas naves.


Elas vagavam na matéria cósmica, que era praticamente invisível. Um pequeno sol
vermelho iluminava este setor da ponte de matéria.
Os quatro homens tinham colocado trajes espaciais e jogado os capacetes para trás.
Nenhum deles dizia uma palavra. Estavam entregues aos seus próprios pensamentos. Há
pouco menos de sessenta minutos perguntas e respostas vinham se alternando. Vyrner
Rustage, o navegador, dissera a verdade.
Cylvadas, o piloto do jato, acenou com a cabeça e ligou a máquina. A eclusa interna
fechou-se, as luzes do hangar se acenderam e os portais enormes da parede externa se
abriram. O jato foi saindo do recinto iluminado, atravessou cuidadosamente o trecho de
vácuo que separava as duas naves e aproximou-se da eclusa do hangar da Mercator, que
estava aberta.
— Não consigo acreditar — resmungou Karsola. — Toda a galáxia, cada planeta,
tudo quanto é estação cósmica, quase todas as criaturas... transformadas em débeis
mentais. Não dá para acreditar!
Calembour ficou calado.
A eclusa fechou-se atrás do jato. Os sinais que indicavam a compensação da pressão
acenderam-se e no mesmo instante um barnitense, um terrano e um anti entraram no
hangar além dos quatro homens da nave exploradora. Os sete cumprimentaram-se e o
terrano, que os astronautas chamavam de navegador Rustage, disse:
— Sejam bem-vindos a bordo de uma nave que retrata a situação da galáxia,
senhores.
— Obrigado — respondeu Wycliff. — Parece que os senhores ainda conservam
certo humor macabro.
Vyrner acenou com a cabeça e levou-os ao interior da nave.
— O senhor não foi obrigado a cuidar de uma tripulação formada por crianças numa
viagem de dezenas de milhares de anos-luz — disse Vyrner em tom de recriminação.
O grupo sentou em tomo de uma grande mesa, na cantina da nave mercante.
Ficaram se olhando algum tempo, indecisos e cada um esperando que o outro falasse.
— Quer dizer que os senhores fugiram de Lepso — constatou Calembour. — Em
que se baseia a informação de que toda a galáxia foi atacada?
Vyrner bateu na mesa com a palma da mão e disse em voz alta:
— Por que não liga o rádio de vez em quando? Use o hiper-rádio e a faixa da frota.
A frequência o senhor conhece. O cosmo está cheio de pedidos de SOS. A propósito. O
senhor está forçando minha paciência. Não tenho nenhum motivo de mentir.
Korvey Wokan entrou na conversa. Levantou a mão num gesto apaziguador e disse:
— Não nos recusamos a acreditar no que diz, Vyrner. Mas parece tão absurdo que
chega a parecer incrível.
— Neste ponto o senhor tem razão — reconheceu Vyrner. — Se não tivéssemos
saído da área desses raios malévolos eu poderia apresentar-lhe dois antis, um siganês, um
maahk e um navegador. É verdade que este último está apenas completamente exausto e
com os nervos à flor da pele. Os outros praticamente não são donos do que dizem e
fazem.
— Isso só pode ser obra de um bando de criminosos amaldiçoados! — disse
Cylvadas.
O comandante sacudiu a cabeça e respondeu em voz baixa:
— Não tire conclusões apressadas, que podem ser falsas! Vamos abandonar o velho
esquema, que já está muito gasto. Não se pode dizer que todo homem ou outra criatura
responsável por isto tenha algo de mau em mente.
— Basta dizer que os nativos que iniciaram nosso amigo Karrora em seus ritos só
queriam ajudar-nos. Destruíram sua inteligência — sem querer. Só para ajudar-nos, do
que ninguém duvida. Provavelmente os raios que transformam as pessoas em débeis
mentais são um subproduto involuntário de um fenômeno diferente. Não sei do que se
trata, mas devemos cuidar-nos para não cair no esquema simplista de ver um malvado ou
um agressor em tudo que não é terrano.
— Obrigado pelo discurso — disse Karrora. — Mas acho que deveríamos fazer
alguma coisa por conta própria. Temos um jato especialmente equipado.
— Seria uma possibilidade, Vyrner. Faça o favor de contar o que descobriu. Seria
possível?
— Naturalmente — respondeu o navegador.
Depois refletiu por alguns segundos. Triste, lembrou-se de que sua pequena nave
poderia ter-se transformado num caso especial. Rhodan sempre tentara, mas nunca
conseguira por muito tempo unir os diversos planetas habitados pelos descendentes do
Homo sapiens em um único sistema político. Isto sem falar em outros povos da Via-
Láctea. Cada planeta formava uma pequena unidade econômica. Mais que isso, os
diversos grupos políticos queriam a independência total. Somente as relações comerciais
garantiam uma ligação frouxa entre os diversos planetas. A nave poderia transformar-se
num exemplo de como os indivíduos de vários povos reunidos num pequeno grupo
sabiam colocar-se a serviço de uma causa comum numa situação de emergência.
Mas o que tinha acontecido?
Nada. Ou melhor, bem o contrário. Todos brigavam com todos e era justamente o
terrano que se dava melhor com uma moça pertencente ao povo dos saltadores. Não se
tratava de um caso político, mas erótico. Ninguém confiava no vizinho. Parecia que até
os siganeses tinham medo de tomar partido.
— Se não puder acreditar no que acabo de contar, pegue o jato e faça um voo de
grande distância — disse Vyrner. — Mas é bom que instale um sistema automático de
retorno teleguiado ou controlável no tempo. Quem não for imune...
— Por que o senhor é imune? — perguntou Calembour em voz alta.
— Por causa de um ferimento grave na cabeça. O barniter ficou imune porque os
cérebros dessas criaturas vorazes foram estabilizados. Qualquer ser humano não-imune
transforma-se, sob a ação de um dos sóis mais próximos, numa criança que só segue o
instinto lúdico.
— Wycliff — disse o psicólogo. — Voarei no jato. Graças ao sistema de retomo
posso arriscar. Quando avistar o sol, tomarei uma injeção paralisante.
— Está certo — respondeu Calembour em voz baixa. — Esperem! Agora não.
Primeiro temos de saber tudo que precisamos. A propósito, Vyrner. Nosso rádio só
funciona a pequena distância.
O navegador acenou com a cabeça.
— Pelo menos a Grande Nuvem de Magalhães não foi afetada — disse o
comandante da nave exploradora.
— Ainda não! — observou Rustage.
O comandante fitou-o com as sobrancelhas erguidas.
— Tem medo de que isso aconteça?
— Tenho medo de que aconteça coisa pior — confirmou Rustage. — Pois é. Vou
contar o resto.
Rustage contou sua história desde o início. Fez um relato ligeiro do destino de cada
tripulante e explicou aos tripulantes da nave exploradora de como fora obrigado a impor-
se várias vezes. Finalmente sugeriu que se voasse no jato. Esperava que dessa forma
conseguiriam dados científicos exatos.
— Tem telerrastreadores a bordo? — perguntou. — Só dispomos dos aparelhos-
padrão que costumam ser usados nas naves mercantes. Seu alcance é reduzido e além
disso o poder de resolução não é muito grande.
— Sim, temos excelentes aparelhos — respondeu Calembour.
Os homens não sabiam o que fazer. Para uma das naves o problema era saber se
valia a pena voar para a zona de insegurança onde poderiam estar salvos, para a nuvem
de Magalhães. O problema da nave exploradora era outro.
Se fossem para casa, voariam para a desgraça pessoal.
O que deviam fazer? Esperar no espaço linear?
Ou voltar com a nave mercante e dirigir-se a uma colônia terrana na nuvem de
Magalhães, onde passariam o resto da vida ou tentariam organizar uma expedição para
salvar sua galáxia? Eram planos gerados nos segundos de desespero, que podiam ser
tudo, menos viáveis.
— Que vamos fazer, amigos? — perguntou o navegador da nave mercante em voz
baixa.
O psicólogo ajudou-o.
— Ambas as naves estão bem equipadas — disse em tom tranquilizador. —
Podemos ficar aqui por enquanto, esperando.
— Esperando o quê? — indignou-se Vyrner.
— Nada — respondeu Wokan. — Simplesmente esperando. Esperando e discutindo
o assunto. Talvez se trate de um fenômeno passageiro, cujos efeitos desaparecem com o
tempo. Acho que temos de encontrar um meio-termo entre as intenções dos dois
comandantes.
Vyrner lembrou-se de Argoli e baixou a cabeça.
— Concordo. Vamos esperar algum tempo. Mas para isso é necessário que todos os
tripulantes trabalhem. A esta hora não posso mandar limpar minha nave de novo.
Cylvadas apontou com o dedo polegar por cima do ombro e murmurou em tom
sarcástico:
— Temos trabalho para cem homens. Classificar, recolher, registrar, catalogar,
limpar objetos achados. Mande alguém, Rustage, e eu lhe garanto que este alguém vai
transpirar.
Vyrner deu uma risada irônica e disse:
— Além disso temos um problema específico. Há um aconense sentado na sala de
comando que por nada deste mundo se quer convencer de que não desejo entregar a nave
aos terranos. Tomou uma moça como refém e vive brincando com uma arma energética
carregada.
— Podemos convencê-lo do contrário — murmurou Karsola.
— Quer dizer que vamos esperar e fazer sair o jato. De acordo? — perguntou
Calembour.
Todos estavam de acordo.
***
Ainda bem que saímos do alcance dos raios que transformam as pessoas em débeis
mentais, pensou Vyrner enquanto se dirigia à sala de comando de sua nave ao lado de
Calembour e Karsola. Se um terço dos tripulantes ou apenas uns poucos tivessem voltado
a correr que nem crianças brincando, se os siganeses tentassem realizar uma operação
suicida para salvar os companheiros, provocando constantemente novos perigos para si
mesmo e para a nave, neste caso somente conseguiriam fazer metade do que pretendiam,
e isto mesmo de uma forma imperfeita.
Os três homens entraram na sala de comando. O aconense fitou-os com uma
expressão de insegurança e perguntou:
— Chegaram a uma conclusão?
— Chegamos — respondeu Vyrner. — Prometi que o senhor seria grelhado. Pode
guardar a arma.
Karsola caminhou devagar em direção ao aconense, que apontou a arma para ele.
Neste instante Calembour enfiou-se entre Falgur tan Gromand e a moça pertencente ao
povo dos saltadores. Vyrner estendeu a mão aberta para o aconense e disse:
— Liguei o intercomunicador de tal maneira que o senhor podia ouvir cada palavra
na sala de comando. Ainda tenho a intenção de voltar à galáxia e entregá-lo às
autoridades que provavelmente nem existem mais.
Falgur já estivera quase decidido quando os três tinham aparecido. Naquele
momento compreendeu que sua ação era inútil. Baixou a arma, travou-a e deu de ombros.
— Está certo — disse. — O bom senso levou a melhor. Espero que todos possamos
participar de alguma forma da aventura com o jato.
— O senhor poderá polir o casco! — prometeu Karsola.
Vyrner foi para perto de Argoli Erion. Ela se apoiou em seu ombro, e Vyrner
estendeu o braço esquerdo.
— O que estamos esperando? — perguntou.
— Daqui não se enxerga nada — respondeu o comandante da nave exploradora. —
Quem estiver interessado que nos acompanhe para dentro da nave exploradora, onde
estão aparelhos de observação de todos os tipos. Ainda insiste em voar, Korvey?
— Naturalmente.
O navegador apertou alguns botões e fez o anúncio. Depois disso cerca de metade
das pessoas resolveu ir para a outra nave. Parecia que lá a espera seria menos monótona.
As naves exploradoras terranas gozavam da fama não totalmente injustificada de ter uma
tripulação extraordinária, instalações exóticas e grandes atrativos.
— E o senhor? — perguntou Calembour.
— Primeiro estou supercansado, e depois gostaria de passar uma hora conversando
calmamente com Argoli.
— Acho que eu também gostaria disso — disse Argoli em voz baixa.
6

Aptant Khyn experimentara o pavor num lugar que sofria disso mais que qualquer
outro: nos cassinos da capital, onde se disputava no jogo tudo aquilo pelo que costumam
brigar os seres inteligentes.
Ao anoitecer o médico ara avisara seu amigo, vestira-se com esmero e pedira que o
levassem ao distrito de Orbana, que ficava perto das lagunas. Mal chegara lá, a vida
colorida e agitada tomara conta dele, envolvera-o em seu encanto, arrastara-o e não o
soltara antes que se encontrasse num bar. Tomou alguns copos a um preço razoável e em
seguida assistiu durante algum tempo às exibições de luta.
Ficou assustado com a selvageria dos diversos espécimes especialmente criados que
lutavam uns com os outros.
Mais assustado ficou com a selvageria muito mais pronunciada com que as massas
de apostadores instigavam os lutadores e fechavam as apostas... espantou-se com a
ganância e a expressão de brutalidade indisfarçada que viu nos olhos da maioria dos
expectadores. Era médica, sua moral podia ser tudo, menos brilhante, mas naquele
momento deparava com uma muralha de incompreensão.
Aptant voltou e fez alguns jogos de valor reduzido.
Ganhou várias centenas de solares, perdeu metade no jogo e depois comprou uma
refeição sofisticada. Quando estava tomando o café importado, uma moça sentou-se à sua
mesa. Ainda se lembrava perfeitamente da cena. Até parecia tê-la visto centenas de vezes.
— Seus olhos são grandes e inteligentes — disse a moça. — Está assustado,
forasteiro?
— Estou assustado, sim — respondera o médico sorrindo. — Mas meus olhos estão
grandes porque estão vendo uma coisa bonita.
— Nesse caso — respondeu a moça com a voz fria — não serei inconveniente se
pedir que me acompanhe.
— Para onde? — perguntou Aptant Khyn.
— Para qualquer lugar. Quero jogar um pouco sem ser molestada. Há muitos
astronautas mercantes terranos embriagados por aí. Hoje é pior que nos outros dias.
O rosto magro do ara crispou-se num sorriso.
— Minha fama de lutador universal ainda não está consolidada, moça — disse. —
A propósito. Meu nome é Aptant. Aptant Khyn.
— O senhor é mais atraente que seu nome — afirmou a moça. — Já pagou a conta?
Aptant acenou com a cabeça.
— Qual é seu problema? — perguntou.
— Curiosidade. Procuro uma pessoa fora do comum.
— Vamos — disse o médico. — Ainda me restam cento e cinquenta solares que
posso enfiar na boca de um demônio do jogo.
— Será um prazer.
Enquanto caminhavam lado a lado, tentaram descobrir mais um do outro.
Finalmente pararam junto a uma mesa onde se devia fazer o menor número possível de
pontos jogando nove dados. Quem, em cem jogadas, da qual podia participar qualquer
número de frequentadores, alcançasse o número mais baixo, ficaria com dois terços das
apostas. O valor da aposta era de dez solares.
Quando os dados da segunda ronda — a uma delas eles tinham assistido em silêncio
— caiu pela terceira vez sobre a mesa preta redonda, aconteceu.
Uma mulher gorda com cabelos cor de fogo — devia pertencer ao clã dos saltadores
— riu muito alto e começou a brincar com suas moedas de solar. Fazia pilhas e
derrubava-as. O crupiê empurrou furiosamente as fichas e as moedas, e murmurava
palavras curtas num dialeto desconhecido. Os outros frequentadores que estavam perto da
mesma mesa riram, apalparam-se como se fossem cegos e de vez em quando alguém caía
da cadeira. Um robô que passava com uma bandeja cheia de copos de champanha
começou a girar em pirueta. Primeiro um chuvisco de champanhe atingiu as criaturas que
riam e balbuciavam. Depois os copos de champanhe saíram voando como projéteis. Os
frequentadores sentaram em cima dos cacos e soltaram gritos de dor.
— Venha comigo! — disse o ara em tom de alarme e segurou o pulso da moça.
Estava havendo uma coisa que ele não sabia o que era e a melhor saída parecia ser a
fuga.
A moça agarrou-se a ele e disse com uma voz clara e artificial:
— Não vá embora, grandalhão. Brinque comigo! Há tantos discos coloridos por
aqui. E as outras crianças estão tão alegres.
Aptant puxou-a sem dizer uma palavra.
O ara tentou abrir caminho no meio da multidão. Aos poucos os movimentos
isolados foram-se juntando num redemoinho destruidor, que estendia ramificações em
todas as salas, causando estragos em meio às brincadeiras. Parte das luzes se apagaram.
As massas começaram a soltar gritos estridentes. Aptant conseguiu avançar mais dez
metros e pisou na mão de um ancião.
Finalmente, junto aos degraus da escada larga, a moça soltou-se.
Aptant fugiu escada abaixo. Quando virou a cabeça, viu a moça parada no topo,
girando. O ara saiu correndo de novo. Quando chegou ao último degrau e olhou para
cima, a moça tinha desaparecido.
Uma moeda de cinco solares desceu tilintando pelos degraus, caiu na rua e saiu
girando, girando como um pião...
***
— ...e saiu girando, girando como um pião. Que nem um disco de arremesso. O jato
afastou-se da nave com os propulsores chamejando e correu ao encontro das estrelas. Era
parecido com a moeda brilhante.
O ara baixou a cabeça. Seus olhos já não viam o quadro projetado na tela.
Aptant cobriu a cabeça calva e estreita com os braços e gemeu:
— Por que justamente eu continuo normal? Por que não me transformei numa
criança?
Era uma pergunta muito antiga que ele fazia a si mesmo, mas para ele era nova.
***
— Que houve, Khyn? — perguntou um dos homens da nave exploradora.
— Recordações desagradáveis de Orbana, em Lesso — respondeu Aptant Khyn em
voz baixa. — Será que o jato tem uma chance de chegar à galáxia?
Cylvadas entrou na conversa.
— Tem, sim — respondeu em tom áspero. — Trata-se de um modelo especial de
nave exploradora equipado com propulsores de grande alcance para o espaço linear. É
capaz de percorrer pelo menos trinta parseks, e mais ainda se forem usadas as reservas.
— Isso me deixa mais tranquilo — disse Khyn. — O jato será dirigido pelo
psicólogo?
— Será. Só por ele.
Khyn passou a mão pela testa alta, como se quisesse espantar seus pensamentos. Em
seguida perguntou em voz baixa:
— Escute... será que posso falar com o comandante?
— Pode. Fique à vontade. O comandante está em seu camarote.
O ara acenou com a cabeça, levantou e pediu que o outro lhe descrevesse o
caminho. Dali a pouco bateu na escotilha e quando o comandante gritou “entre”, entrou.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa?
Khyn sorriu; era um sorriso triste, resignado. Wycliff Calembour percebeu
imediatamente que aquele era um homem velho e experiente, pertencente a um povo
velho e experimentado, que se encontrava na segunda metade de seu longo caminho. Era
bem verdade que os aras geralmente colocavam sua experiência a serviço dos inimigos da
Terra. Mas no caso isto não importava. Na situação horrível em que se encontravam esse
problema não existia.
“Ainda não”, pensou Wycliff.
— Queria mesmo perguntar se posso fazer alguma coisa pelo senhor — perguntou o
ara.
Os dedos de Wycliff tatearam à procura do maço de cigarros.
— Por mim? Será que pareço doente?
O ara sentou-se, pegou o cigarro e disse, enquanto soprava uma nuvem de fumaça:
— Doente de tão preocupado que está. Com seu imediato. Ouvi uma conversa na
sala de comando, enquanto o jato estava sendo preparado. Como médico conheço certos
truques, mas deixei meu estojo na Mercator. Qual é o problema com seu amigo?
O comandante deu uma risada amarga.
— É um caso de quenofobia. Talvez seja cosmofobia. Sei lá.
O médico franziu a testa e murmurou:
— Um momento... a primeira doença que o senhor mencionou é um temor de
qualquer espaço aberto, amplo, inclusive de espaços vazios. A outra é o medo do espaço
ordenado, do espaço cósmico.
— Isso mesmo. Pode ajudá-lo?
O médico levantou os ombros magros e suspirou:
— Precisaria vê-lo, comandante Calembour.
— Deixe o comandante de lado — pediu Calembour em tom cansado. — Se de fato
toda a galáxia ficou mentalmente retardada, então os títulos militares e outros perderam
todo o sentido. Chame-me de Wycliff, ou Why, que é meu apelido.
— Quer levar-me para junto dele, Wycliff? — perguntou o médico. — Preciso vê-
lo.
— Acompanhe-me.
Dois indivíduos de povos diferentes atravessaram lado a lado os corredores vazios
da nave exploradora. Metade da tripulação estava dormindo enquanto a outra metade
estava sentada nos diversos setores, acompanhando a rota do jato, o funcionamento dos
instrumentos e o ajuste preciso das telas do sistema de telerrastreamento. Segundo a
opinião do comandante, Skytho Karrora devia estar dormindo em sua cama sob o efeito
de narcotizantes suaves. A porta abriu-se.
— Está escuro.
— Vou acender a luz.
A luz da sala fora amortecida com uma folha verde-escura cobrindo a luminária. O
interruptor deu um pequeno estalo e a luz verde encheu um quarto vazio. As cobertas
macias sobre a cama só mostravam vagamente os contornos de um corpo humano.
Calembour virou-se abruptamente e abriu a porta de deslizar que dava para a toalete e o
banheiro. Estes recintos também estavam vazios.
— Foi embora?
Calembour acenou com a cabeça.
— Foi. Resolveu esconder-se de novo. Já deve ter feito isso umas cinquenta vezes.
É claro que poderíamos trancá-lo ou amarrá-lo numa cama da enfermaria, mas não vamos
fazer uma coisa destas. Continua sendo nosso amigo. Temos tanta pena dele que sempre
o levamos de volta ao camarote. Será que não deveríamos fazer isto?
— Não sei, Wycliff — respondeu o ara em tom amável. — Nem pude vê-lo. Mas
procurá-lo.
— Acho que é a primeira coisa que devemos fazer.
Wycliff fez uma ligação com a sala de comando. Cerca de trinta e cinco pessoas
saíram à procura do companheiro. As buscas demoraram duas horas. Antes disso o jato
saiu do espaço normal e prosseguia em voo linear em direção à galáxia. Até lá as telas do
sistema de telerrastreamento mostraram uma imagem clara — uma formação penetrando
obliquamente na Via-Láctea.
Ninguém se interessou por isso.
Finalmente Karsola disse:
— Wycliff... tenho certeza quase absoluta de que nosso paciente se encontra no jato.
Médico e paciente voltaram a ficar juntos.
Wycliff gemeu. Esmurrou uma escotilha com a mão direita e pôs-se a praguejar em
voz baixa.
— Era só o que faltava. Vocês poderiam entrar em contato com Wokan?
— No momento não. Ele só voltará ao espaço normal dentro de uma hora. Nem
preciso contar o que vai acontecer depois.
— De fato.
Mais uma vez tinham sido condenados à inatividade. Além da espera desgastante a
incerteza sobre os efeitos que os raios produziriam no psicólogo. E, como se não
bastasse, a preocupação por Skytho. Ele provavelmente faria algum estrago ou ao menos
manteria ocupado o psicólogo. A teoria tão cuidadosamente montada de que a segurança
podia ser alcançada por meio de uma paralisação temporária estava desmoronando.
Finalmente, quando o nervosismo cedeu lugar ao sentimento de impotência e resignação,
o chefe do setor de rastreamento disse:
— O que estão vendo nas telas é aquilo que nas mensagens de rádio é designado
pelo nome de Enxame.
— Nas mensagens recebidas a bordo da Gerardus Mercator — disse o aconense.
Estava muito pálido e tremia que nem vara verde.
Viam a roda de fogo da galáxia em posição inclinada, ultrapassando de ambos os
lados os limites da tela.
Ainda viram, meio apagado, o anel de hidrogênio no centro galáctico.
E, mais apagado ainda, viram uma coisa parecida com uma estrutura alongada, em
forma de bolha. Parecia uma esponja gigantesca obliquamente enfiada na figura elíptica.
Parte dele já se encontrava entre as estrelas onde escapava à observação, mas a outra
parte dessa estrutura que se estendia por muitos anos-luz permanecia suspensa no cosmo,
entre os sóis e a claridade dos grupos de estrelas que cercavam a Via-Láctea.
— O Enxame! — murmurou Calembour. — Já acredito em tudo que Vyrner
Rustage disse.
7

Vyrner, um sujeito rude cuja única paixão eram os negócios, fora atingido no ponto
mais atingível.
E justamente por uma mulher.
Logo ele! Conhecia todos os portos mais ou menos interessantes e os endereços
mais caros e sofisticados. Afinal, ganhava bem e podia dar-se ao luxo de fazer aquilo que
lhe agradasse.
— De repente não há mais nada que esteja certo. Droga! — disse em voz baixa,
para não acordar a moça.
Levantou-se e foi à cabine de banho que ficava ao lado do alojamento. Ainda há
pouco exercera as funções de navegador, e um dos seus privilégios era ocupar instalações
mais luxuosas a bordo da nave.
Vyrner abriu uma minúscula geladeira e tirou um pacote de suco de frutas.
Derramou-o num copo e sentou-se na beira da cama, com um cigarro aceso entre os
dedos. Contemplou o rosto da moça.
Ela acordou e fitou-o.
— Está nervoso? — perguntou.
— Isso mesmo. Estou nervoso — respondeu Vyrner em voz baixa.
A moça colocou a mão sobre seu joelho.
— Por quê?
— Em parte por causa do maahk — mas também por sua causa.
A moça piscou os olhos. Parecia surpresa.
— Por minha causa?
Vyrner acenou com a cabeça. Rugas profundas formaram-se em seu rosto alongado.
— Sim. Por sua causa.
Enquanto o maahk estava encolhido, em silêncio, em seu tanque de sobrevivência,
provavelmente passando fome, enquanto Skytho Karrora e Korvey Wokan corriam no
jato em direção à galáxia, enquanto os tripulantes das duas naves aguardavam
ansiosamente os resultados do voo e olhavam fixamente para a tela que mostrava a
imagem do Enxame, Vyrner Rustage teve de reconhecer que além das experiências
comuns que se referiam a ele, existia uma outra forma de comportamento e
relacionamento humano.
— Encontramo-nos por acaso — disse Vyrner. — Você não deve nem pode esperar
nenhuma vantagem do contato comigo. Mas apesar disso nós nos... beijamos.
A moça afastou lentamente o belo cabelo da testa e levantou. Apoiou-se na parede
junto à cama e pegou o cigarro que Vyrner segurava nos dedos.
— Isso faz alguma diferença?
Vyrner deu de ombros. Não sabia o que responder. Finalmente disse em tom
titubeante:
— É a primeira vez que faço uma experiência como esta. Até hoje só lidava com as
moças que encontrava nos portos mercantes.
A moça sorriu e devolveu-lhe o cigarro.
— Não sou uma dessas moças dos portos mercantes, marujo — disse. — Faço
aquilo de que gosto voluntariamente.
— Você me ama? — perguntou Vyrner em tom de alarme.
— No momento, sim. Mas não pense que isto lhe dá algum direito. Procure
compreender o que quero dizer. Não me julgue muito parecida com o público que
costuma ter pela frente.
Vyrner acenou com a cabeça e respondeu em tom hesitante:
— Acho que é a única coisa que posso fazer, Argoli.
A moça sorriu.
Vyrner não sabia mais o que pensar. Tinham-se visto, encontrado, passado alguns
dias muito desagradáveis a bordo e fazia algumas horas que se tinham beijado pela
primeira vez. E agora ela tentava explicar-lhe que isto era a maneira normal e que ele não
tinha nenhum direito. A que espécie de direito se referia? Era verdade que ele não
comprara uma mercadoria e pagara por ela. E o proprietário ou locatário de uma
mercadoria naturalmente possuía certos direitos, direitos expressos. Será que era a esse
tipo de direito que ela se referia?
— A que espécie de direito você se refere, Argoli? — perguntou Vyrner em voz
baixa.
Argoli respondeu em tom indiferente.
— Não sou uma propriedade sua. Vim porque quis e vai chegar a hora em que irei
embora de novo. Da mesma forma que vim. Quando? Nem eu mesma sei.
De tão embaraçado que se sentiu, Vyrner esvaziou o copo de suco de frutas, vestiu a
camisa e parou perto da porta.
— Aonde vai?
— Vou ver se consigo falar com o maahk — respondeu ele em tom indeciso. Talvez
precise de alguma coisa, talvez haja algo que se possa fazer por ele.
A moça deixou-se cair para trás e puxou o cobertor macio até o queixo.
— Espero você aqui — disse. — Por favor, não fique muito tempo no porão de
carga.
Agora ele estava completamente confuso. Primeiro ela deixara claro que não lhe
concedia nenhum direito, e agora pedia para que não a deixasse só. Nunca vira uma coisa
dessas. Ou será que já tinha visto? Talvez sim, durante a infância, na Terra.
Vyrner sacudiu os ombros e saiu.
Dali a pouco estava de pé junto ao cubo em cujo interior via vagamente os
contornos do maahk. A estranha criatura, que tinha mais de duzentos e dez centímetros de
altura e cerca de um metro e meio de largura nos ombros, estava sentada no tanque, com
as costas apoiadas na parede. O tanque estava equipado com um sistema de renovação. O
corpo compacto estava apoiado sobre pernas robustas e o maahk usava trajes que
pareciam feitos de uma espécie de tecido metálico. A criatura respirava num ambiente de
mais de noventa graus centígrados, inspirando hidrogênio com impurezas que continham
metano e expirando amoníaco. Todas as luzes de controle estavam acesas. Logo, o
sistema de comunicação estava ligado.
Vyrner apertou o botão de chamada, pegou o livro que o médico deixara ali e
procurou as respectivas traduções.
— Faça o favor de acender a luz. Quero falar com o senhor — disse Vyrner.
Os maahks possuíam órgãos de fonação. Não havia nenhuma dificuldade em
comunicar-se com eles por via acústica.
O maahk mexeu-se e esticou o braço.
A parte superior do cubo iluminou-se. Vyrner viu a estranha criatura com uma
nitidez perfeita.
Os braços do maahk eram tão compridos que as mãos chegavam mais ou menos à
altura dos joelhos. Pareciam tentáculos elásticos feitos de tendões e músculos.
Apresentavam grandes saliências nos ombros e terminavam em mãos de seis dedos.
— Que deseja, terrano? — perguntou o maahk. — Como vim parar nesta nave? Até
hoje ninguém pôde explicar.
Vyrner traduziu devagar. Finalmente compreendeu.
— Ninguém sabe quem o colocou nesta nave, maahk. Gostaria que me dissesse se
está com fome, se posso fazer alguma coisa para ajudá-lo.
O crânio da criatura não-humanóide alcançava de ombro a ombro. Era parecido com
uma meia-lua com quatro olhos, que assentavam na crista daquela cabeça sem pescoço
em forma de meia-lua ou de foice. Duas pupilas alongadas garantiam a visão para a frente
e para trás.
— Estava em Lepso tratando de um negócio importante. Neste meio-tempo fiquei
sabendo que uma onda de debilidade mental assola o planeta. Todos se comportam como
crianças.
— É verdade — disse Vyrner.
Depois fez a tradução, o que lhe custou muito trabalho.
— Alguém o colocou nesta nave. Quando entrei nela, o porão de carga estava
aberto, com seu cubo dentro dele. Posso fazer alguma coisa para ajudá-lo?
Quatro olhos fitaram-no prolongadamente, sem mexer-se. Finalmente o maahk
disse:
— Minhas provisões de gases respiráveis são suficientes para um ano e os aparelhos
instalados na parte inferior do cubo funcionam perfeitamente.
A voz transmitida pelos alto-falantes e microfones internos e uma aparelhagem
idêntica na face externa do cubo saía de uma boca de lábios finos, de cerca de vinte
centímetros de largura, que ficava entre a cabeça e o tórax e exibia dentes afiados de
animal selvagem.
As partes visíveis da pele estavam cobertas por escamas do tamanho da unha do
dedo da mão de um ser humano, que emitiam um brilho cinza apagado.
— E a alimentação? — traduziu Rustage.
O maahk voltou a contemplá-lo em silêncio, dando a impressão de que não tinha
certeza se podia confiar no terrano. Depois de algum tempo disse:
— Um de nós que sai de seu planeta praticamente encerra a vida. Não fiz isso
porque teria de voltar. Tenho alimentos para um ano de seu tempo. Mas...
— Estou ouvindo — disse Vyrner.
— Receio que minhas reservas de energia não aguentem muito tempo. Fiz muito
barulho?
— Só disponho da eletricidade gerada na nave — respondeu Vyrner. — É claro que
posso conduzi-la aos seus mecanismos através de um cabo. De fato, o senhor se
comportou como uma criança teimosa e pôs em perigo todo mundo. A atmosfera que
respira para nós é mortal. Eu...
O maahk interrompeu-o.
— Estou preparado para esta eventualidade. Ligue um simples cabo de força. Em
Lepso sobrevivi a esse tipo de equipamento, numa nave dos saltadores. Meu cubo está
equipado com transformadores.
— Farei o que estiver ao meu alcance — disse Vyrner em voz alta. — Deseja mais
alguma coisa?
— Desejo — disse o maahk. — Mas o senhor não poderá satisfazê-lo. Quero voltar
ao meu planeta.
Vyrner levantou a mão.
— O senhor voltou a comportar-se como uma criança teimosa, um ser que perdeu
grande parte da inteligência.
Depois de um minuto o maahk respondeu:
— Antes viver com os membros de minha raça, exibindo um comportamento de
criança, que atravessar a galáxia numa nave estranha.
— Talvez exista uma possibilidade de ajudá-lo — disse Vyrner, embora soubesse
que as chances eram praticamente nulas.
— Fico-lhe muito grato, terrano — disse a estranha criatura.
Vyrner acenou com a cabeça.
Em seguida foi ao depósito da nave e pegou um cabo de alta voltagem. Enfiou uma
extremidade numa tomada que havia na parede e em seguida acendeu a lanterna e
procurou outro contato. Encontrou-o atrás de uma pequena portinhola onde havia três
tomadas diferentes. Uma delas combinava com os padrões da nave terrana.
O pino pesado deslizou pelos contatos.
— Obrigado, terrano! — disse o maahk.
— Por nada.
Vyrner contemplou o cubo iluminado pela metade. Viu a estranha figura no meio da
névoa. Estava pensativo, refletindo sobre o que podia ser feito. Mas por mais que
refletisse não descobriu nenhuma possibilidade.
O planeta de origem da estranha criatura ficava muito longe.
8

Pelo meio-dia de onze de setembro o jato dirigido por Korvey Wokan saiu do
espaço linear.
Wokan estava sentado em sua poltrona anatômica, com o bocal de uma pistola de
injeção semi-automática encostada ao cotovelo do braço esquerdo. Ficou com o dedo
indicador tenso, esperando para ver se o efeito esperado se verificaria. Nas últimas horas
vivia repetindo o que devia fazer.
Mas não houve nenhuma modificação; estava normal.
“Por enquanto faço parte do grupo dos sadios”, pensou.
Guardou a pistola e mexeu numa série de chaves. O aparelho de rádio foi ligado e
um pequeno monitor acendeu-se no console de comando do jato, embaixo da cúpula
grossa da sala de comando. Wokan viu vagamente a imagem do comandante.
— Jet chamando nave exploradora — disse com a voz calma. — Tudo em ordem.
Minha saúde mental continua perfeita. Os controles remotos e o sistema automático de
retorno continuam ligados.
A voz do comandante saída do alto-falante parecia vir do outro lado de uma rua
barulhenta.
— Está normal, Wokan?
— Estou. Não sinto nada. Tudo bem comigo.
De repente o comandante gritou:
— ...na nave? Cuide disso! Nós... preocupações... siga!
O psicólogo girou os botões e sacudiu a cabeça. A comunicação era miserável e só
faltava um salto para alcançar a área que, segundo Vyrner, era infestada.
— Não o compreendo muito bem! — disse em voz alta. — Por favor, fale mais alto.
O psicólogo esperou.
Enquanto examinava as escalas e mostradores da parte dianteira do rádio, viu pelo
canto dos olhos duas lâmpadas vermelhas se acenderem, piscando, para em seguida
apagar-se. Deviam ser as luzes de controle da...
— ...siga! De forma... rápido! Faça alguma coisa! ...as preocupações acabam nos
matando... Espaço normal... Espaço linear... Localizamos o Enxame!
O psicólogo ficou sentado e concentrou-se.
— Compreendi — disse finalmente em voz alta. — Prepararei imediatamente a
etapa seguinte.
Uma suspeita vaga lhe dizia que não havia compreendido tudo. A agitação a bordo
da nave exploradora devia ser muito grande. Além disso ele sabia que a nave não podia
dar-se ao luxo de perder mais um homem, de ter de cuidar de mais um doente mental.
Mexendo em algumas chaves, voltou a aumentar a velocidade do jato. Lamentou
que a comunicação pelo rádio tivesse sido tão ruim e dali a pouco deu início a mais uma
etapa de voo linear.
As estrelas desapareceram atrás da cúpula transparente.
Wokan ouviu o ruído das máquinas vindo de dentro do jato, o clique dos relês, os
ruídos de funcionamento de inúmeras máquinas automáticas pequenas.
Wokan inseriu os dados, fez uma ligação entre seu camarote e o piloto automático e
sabia que seria acordado uma hora antes de o jato voltar ao espaço normal — desta vez
muito além da região periférica da galáxia. Aí ainda teria tempo para preparar-se com
toda calma para o ingresso no estágio da infância.
De repente lembrou-se das luzes vermelhas. Tinham tremido um instante.
Provavelmente a ligação do controle remoto estava tão ruim como a feita pelo rádio.
Mas ele podia contar com o sistema de retomo automático acoplado à calculadora
de rota.
Depois que o jato alcançasse certa posição, seria feita a tomada de posição das
estrelas. Se a constelação desejada ficasse à sua frente, o piloto automático daria início à
manobra de regresso e Wokan voltaria a transformar-se de um indivíduo adulto com
inteligência de criança numa pessoa completamente adulta.
“Mas será que um psicólogo alguma vez pode ser considerado uma pessoa
completamente adulta?”, pensou.
Depois disso adormeceu.
***
Numa raiva impotente, Wycliff Calembour esmurrou o console com os punhos. Mas
logo se acalmou e gritou:
— Será que não podemos mesmo fazer nada?
— Não — disse Karsola com a voz abafada. — Não enquanto o jato não estiver no
espaço normal. Tenho certeza de que não compreendeu o que queríamos dizer-lhe.
— Sem dúvida — confirmou Aptant Khyn, o ara.
As duas naves continuavam à deriva uma ao lado da outra. A vida a bordo se
normalizara um pouco, principalmente porque a tripulação da nave exploradora arranjara
trabalho para todos os outros seres. Ninguém sentia tédio — muito menos depois de uma
mensagem de rádio que os chamara de volta à realidade.
— Que podemos fazer? — perguntou o bamitense enquanto derramava garganta
abaixo um litro de suco de frutas com mel.
Queixara-se de uma irritação da garganta. O ara sorrira e lhe dera esse conselho
pouco digno de um médico.
— Podemos esperar — murmurou o operador de rádio.
De fato podiam, mas isto só serviria para tornar piores as coisas.
— Pois eu posso dizer o que vai acontecer — afirmou Vyrner Rustage, que
acompanhara tudo pelo videofone.
— Deixe para lá — recomendou Calembour. — Nós sabemos.
Dentro de algumas horas aconteceu o seguinte:
Graças aos controles automáticos, o jato retomou ao espaço normal numa manobra
perfeita. As estrelas apareceram, e nesse instante o psicólogo se transformaria numa
criança. Se conseguisse paralisar-se, então haveria alguma esperança para os dois homens
e o objeto voador. Poderia ter certeza de que nenhum comando errado seria acionado.
Não por ele.
Se não conseguisse, poderia desativar tanto o controle remoto como o sistema de
regresso automático. Além disso seria capaz de mexer nos comandos errados, pondo em
perigo sua vida e a de Karrora e arriscando-se até a fazer explodir o jato.
O que estava acontecendo com o rádio?
Mas...
Ainda havia o antigo imediato.
Certamente já se recuperara dos calmantes. Não se podia prever o que faria, mas as
alternativas dentro de um jato eram bem restritas. Talvez voltasse a esconder-se, talvez
morresse por causa disso, mexeria em comandos nos quais nem se devia pensar para não
perder o juízo.
Bastava fazer a conta de cinco mais cinco.
Era o que estavam fazendo os homens que esperavam — e chegaram a uma
conclusão surpreendente que, apesar de correta, possuía sua própria lógica. Era uma coisa
em que ninguém podia pensar.
Pegamoi Datras II perguntou em tom nervoso e com uma expressão afetada no
rosto:
— O que pretendem fazer os terranos que se julgam tão inteligentes? Não querem
trazer o jato de volta ou derrubá-lo?
Datras recuou apavorado ao ver Cylvadas levantar, cerrar os punhos e vir devagar
em sua direção.
— Pelos deuses de Árcon! — balbuciou Pegamoi em voz baixa e nervosa. — Só fiz
uma pergunta. Ainda deve ser permitido fazer uma pergunta inocente.
— É melhor não fazer — aconselhou o homem e ficou mais descontraído.
Todos sabiam que as horas seguintes maltratariam seus nervos até o máximo de sua
capacidade.
Um jato — perdido?
Dois amigos — mortos, loucos, definitivamente perdidos?
O resultado da pesquisa — incerto?
Aos poucos foram-se passando trezentos minutos. Cada minuto parecia passar mais
devagar que o anterior. Ninguém falava, alguns homens saíram da sala de comando, e
dali a alguns minutos, quando o setor de rádio anunciou que dois botões de regulagem se
tinham queimado por causa da fadiga do material e estavam sendo substituídos,
Calembour suspirou. Estas coisas sempre aconteciam na pior hora.
***
Já podia mexer-se de novo.
Era capaz de sentir o corpo, controlar os músculos delgados. A primeira sensação
que experimentou foi a das necessidades de seu corpo. De repente. Irresistivelmente.
Encontrava-se num cubículo em que estavam armazenadas peças sobressalentes
guardadas em caixinhas de plástico. Escondera-se nesse lugar porque os outros amigos do
segundo mundo sempre o procuravam, encontravam e carregavam de volta ao seu
camarote, onde lhe eram aplicadas injeções e medicamentos. Finalmente não parecia ver
ninguém, encontrar-se com ninguém quando abandonava seu esconderijo.
— Penso! — murmurou.
Levantou-se e saiu por pouco tempo do primeiro mundo, onde se encontrava desde
que os nativos lhe tinham mostrado o caminho. Conhecia o caminho que levava ao
primeiro mundo, que até então fora o seu e o de seus amigos. Mas não permitiam que
percorresse todo o caminho de volta — faziam-no parar tranquilizando-o com
medicamentos.
Abriu a porta.
Viu-se numa sala aproximadamente circular, da qual saíam várias escotilhas
estreitas. Já podia percorrer o caminho de volta ao segundo mundo, porque não havia
mais nenhum medicamento que o inibisse. Sentia que ainda havia uma parede densa de
neblina separando-o de tudo, mas era dono de grande parte de suas recordações.
Seguiu adiante, abriu uma escotilha, entrou e apoiou-se, ao balançar, numa coluna
feita de vários aparelhos, dos quais partiam mangueiras curtas e compridas que
desapareciam nas paredes e no teto.
— Não sei — disse em voz baixa.
Quando seus dedos tocaram as teclas e as chaves comutadoras, eles desencadearam
acontecimentos misteriosos. Outra escotilha. Até que enfim — o lavatório, a toalete.
— Eu me lembro — disse e ouviu sua voz, identificada por meio de nuvens e véus
coloridos, que se transportava para o primeiro mundo.
Depois de algum tempo saiu.
— Fome.
Chegou logo à pequena cozinha de bordo. Mexeu nos comandos sem pensar.
Preparou num tempo muito curto uma pequena refeição muito nutritiva, bebeu
algumas rações supercongeladas e descongeladas às pressas e começou a sentir que
estava recuperando as forças.
Já conheço o caminho para o segundo mundo e o caminho de volta para o primeiro
mundo!
Mas havia muitos caminhos que conduziam a outros mundos, e estes ele não
conhecia. Só lhe restava o medo dos espaços abertos e do mundo bem organizado do
cosmo, das estrelas. E ainda havia uma névoa densa como uma parede diante de seus
olhos, que o impedia de enxergar claramente as coisas e conhecer seu sentido.
— Não estou mais com fome.
Acenou com a cabeça para sua imagem refletida num espelho.
Não sabia, por exemplo, que ao mexer em cerca de vinte chaves da sala de
máquinas, alterara completamente o programa de regresso automático. Olhou em volta e
viu que se encontrava novamente num jato espacial.
— Um jato! Nada mais que a nave... — disse.
Seguiu adiante, chegou ao poço do elevador antigravitacional e descobriu certas
coisas em seu arsenal e recordações que o fizeram saltar para baixo da cúpula de
gravitação reduzida. O posto de comando estava vazio.
— Preciso de tempo e sossego — disse em voz baixa.
Saiu do posto de comando, passou devagar pelo corredor circular e acabou entrando
numa pequena cabine escura. Sentou em um dos cantos do leito, encolheu os joelhos e
segurou-os com ambas as mãos. Depois continuou a refletir. A névoa não se abriu, mas
Skytho Karrora conseguiu perceber que em nenhum dos dois mundos se sentia
verdadeiramente em casa.
Todavia...
— Penso, logo existo de verdade — disse. — Se existo, os dois mundos também
existem. Logo, não estou doente.
Dali a trinta minutos o jato saiu do espaço linear. Numa questão de segundos a
névoa desmanchou-se diante dos olhos de seu espírito.
9

O objeto voador em forma de disco tremeu ligeiramente ao saltar da estrutura


espacial pertencente a uma categoria superior.
As estrelas apareceram.
O psicólogo Korvey ainda estava refletindo sobre a rapidez com que mudava o
significado dos sóis, com que eles se transformavam em estrelas que ele conhecia, mas
cujos dados exatos, cuja importância para a navegação espacial não cabia no âmbito de
suas reflexões, a seringa chiou.
Dentro de oito ou dez segundos o medicamento espalhou-se pela circulação e
atingiu o cérebro.
Depois disso Wokan ficou deitado na poltrona anatômica, imóvel e descontraído.
O jato continuou sua corrida pelo espaço... e estava ao alcance do sol e dos raios
que transformavam as pessoas em retardadas. Dentro de instantes o psicólogo se
transformou num adulto com mentalidade de criança.
— Tantas estrelas — disse em voz baixa. Mal era capaz de mover os músculos da
nuca e da laringe. — E tão longe.
— As estrelas são tão pequenas porque estão muito longe, Korvey! — disse uma
voz atrás dele.
O psicólogo estremeceu, mas o movimento nem alcançou seus joelhos e cotovelos.
Virou a cabeça e tentou olhar para trás mas só distinguiu uma sombra. Será que conhecia
a voz? Parecia que já ouvira muitas vezes — um companheiro com o qual costumava
brincar?
A sombra que estava atrás dele mexeu-se.
Depois de algum tempo colocou-se a seu lado, sentou na borda do painel e de
repente passou a ser Skytho.
— Skytho! — disse o outro homem surpreso.
Estava mesmo surpreso por ver o companheiro com o qual não falava há tanto
tempo.
Mas a voz de Skytho não era a de um companheiro com o qual costumava brincar;
era a de um adulto. Ligou o rádio, e de repente uma voz alta e nervosa encheu o espaço
embaixo da cúpula.
— Droga! Wokan! Responda! Onde está? O senhor continua normal?
Korvey não entendeu o sentido da pergunta. Uma mão passou perto de seu rosto,
girou o suporte rígido do microfone em noventa graus e disse:
— Aqui fala Skytho Karrora. Com quem estou falando?
— Aqui fala... Skytho! É você? O que fizeram com você? Está bem? Os ataques
que você sofria... passaram?
Skytho empertigou-se.
A névoa que cobria seus olhos tinha desaparecido. As lembranças desde o dia em
que dançara com os nativos apareciam claramente em seu espírito. Ele sabia o que tinha
acontecido, e o que não sabia exatamente, ele podia imaginar ou deduzir.
— Comandante Wycliff! — disse para dentro do microfone. Apesar de seu aspecto
franzino, a voz parecia firme e convincente. — Minha cabeça clareou completamente.
Mas Wokan está deitado, não se mexe e dá a impressão de ter regredido à infância.
O comandante explicou em voz alta o que tinha acontecido.
Fez um relato dos problemas da Crazy Bird e da Mercator, disse que o caos
desabara sobre a galáxia e que o jato se encontrava na área de influência dos raios
misteriosos. O psicólogo se paralisara antes de ser atingido por seus efeitos. E agora...
— Parece que os raios me fizeram bem — disse Skytho.
— Verificarei o que está havendo. Tenho ecos muito estranhos nas telas do
rastreador.
— O Enxame, o Enxame, na nave não se passa vexame... — balbuciou o psicólogo
em tom alegre, enquanto virava a cabeça de um lado para outro.
— É o Enxame. A radiação provém dele — disse o comandante. — Mude a rota,
Skytho! Para trás!
O homem que se encontrava à frente dos controles sacudiu a cabeça e disse em voz
baixa:
— Não!
— Volte! o Enxame é nossa desgraça! — esbravejou Calembour.
— Não, Why. Estou bom e dentro de um dia recuperarei as forças. Levarei
materiais valiosíssimos para vocês. Sei perfeitamente qual é o problema.
Skytho piscou para as estrelas e esperou a resposta.
— Eu proíbo... não, eu lhe peço, Skytho! Volte com o jato e com Wokan.
— Não, comandante. A sorte de todo mundo está em jogo. Não levarei muito
tempo. O jato está em perfeito estado?
Depois de algum tempo Calembour disse:
— Quando saiu daqui estava. Não se meta em aventuras loucas, Karrora!
— Não.
Skytho desligou o rádio com o gesto violento. Soltara todas as amarras.
Sentou-se ao lado do psicólogo, fitou-o demoradamente e em silêncio e finalmente
compreendeu.
Os raios!
Eles o tinham ajudado, mas a inteligência de Wokan se deteriorara?
Quem era o culpado?
O jato corria à velocidade da luz em direção às estrelas da galáxia, da ramificação
em espiral em cujo centro ficava o sol do planeta Terra.
As horas foram se passando.
Karrora também viu o Enxame, uma formação estranha que se deslocava em sentido
oblíquo para a galáxia. Pôs-se a refletir, enquanto dirigia o jato com os controles naturais.
Quais eram suas intenções? Quem eram estes seres estranhos?
De uma coisa ele tinha certeza.
Pertenciam ao primeiro mundo. Eram estranhos e incompreensíveis para todas —
ou quase todas — as pessoas que pensavam segundo os conceitos da lógica humana. Mas
o que faziam era para eles alheio a qualquer escala de valores. Não eram morais nem
imorais, mas no verdadeiro sentido da palavra, amorais.
Skytho Karrora não os conhecia, mas os compreendia.
Viu a quantidade enorme de campos defensivos transparentes de vários tamanhos.
Não viu mais nada. Mas um sentimento vago lhe dizia que este era o início de uma série
de acontecimentos que por muitos anos manteria a galáxia presa em seu garrote
asfixiante.
Skytho contemplou as telas dos rastreadores.
Examinou em cada ampliação os diversos setores da tela, girava constantemente os
botões de fixação de imagens e dirigia a nave com a sensibilidade refinada que adquirira
nos anos em que exercera as funções de imediato da nave exploradora. Finalmente,
depois de mais algumas horas — o psicólogo estava dormindo — descobriu um eco
energético muito intenso.
Uma nave.
— Uma espaçonave correndo em alta velocidade do lado em que está o Enxame
para os limites da galáxia. Será que pode ser um terrano?
Skytho pegou o rádio.
Num movimento resoluto mexeu com o controle principal e ligou o aparelho na
faixa da frota. Depois que tinha feito a ligação sentiu alguma coisa agarrar sua mente e
virá-la ao contrário.
Skytho estremeceu, virou-se ligeiramente e caiu da poltrona anatômica.
O jato começou a redemoinhar.
***
O grupo reunido no setor de rastreamento diminuíra bastante.
Alguns homens saíram, outros vieram juntar-se ao grupo. Alguns dormiam em suas
poltronas, e as antenas continuavam direcionadas para o ponto da galáxia em que se
encontravam o Enxame e o jato espacial.
— Não consigo compreender! — murmurou Cylvadas bocejando. — O psicólogo
transforma-se numa criança, e um doente mental volta ao normal.
— É possível que tenha sido ajudado pelos raios — disse Wycliff.
O transmissor da nave estava ligado. Chamavam o jato sem parar. Foi em vão.
Skytho não respondeu.
O controle remoto não estava funcionando. Skytho deve tê-lo destruído ou
desligado quando acordou.
Parecia que o sistema automático de regresso também não funcionava mais, senão a
conversa teria sido diferente e o jato já estaria voltando.
— O que está havendo no jato? — gemeu Falgur tan Gromand.
Ainda não compreendera tudo; mas agora, depois de ter conversado um sem-
número de vezes com os tripulantes da nave exploradora, já tinha certeza de que todos os
planetas da galáxia tinham sido afetados. Não podia ser de outro modo. Bastava aplicar as
regras da lógica para chegar a esta conclusão. Logo, os planetas aconenses também
tinham sido atingidos. Parecia que em alguns planetas havia pessoas “salvas”, em meio a
verdadeiras multidões de adultos com mentalidade infantil, que teriam de morrer de fome
se não recebessem ajuda de fora. Por alguns segundos um plano arrojado surgiu em sua
mente, mas Falgur logo o esqueceu.
— Não sabemos. Tomara que Skytho não exagere — estava muito fraco.
O aconense e o terrano olharam-se em silêncio.
Falgur compreendeu. Estes homens estavam marcados pela preocupação com os
amigos. Tinham viajado juntos por muito tempo e haviam enfrentado muitas aventuras. A
morte de um dos tripulantes atingi-los-ia em cheio.
Wheeler Karsola murmurou:
— Quanto mais o jato penetra na galáxia, maior é a certeza de que os conversores
queimarão na viagem de volta pelo espaço linear.
Os homens continuaram a esperar ansiosamente e em silêncio.
***
Spanda Stam sacudiu a cabeça. Estava desesperado.
— E nós? — murmurou. — O que nos resta? Não temos nave... não temos nada.
Walide Stam colocou a mão sobre seu braço e murmurou:
— Deveríamos ter saído de Lepso em nossa nave em vez de usar a dos terranos.
Condenaram-nos a ficar inativos. Que acha disto, Trepan Stam?
O irmão do patriarca dos saltadores sacudiu a cabeça e murmurou em tom
resignado:
— Não sei de nada. Ainda não consegui pôr os pensamentos em ordem. Sei que em
poucas naves dos saltadores existem pessoas que foram salvas. Quer dizer que inúmeras
naves de nosso povo vagam pelo espaço, à deriva, ou estão presas em planetas estranhos.
A ideia acaba me deixando louco. Que podemos fazer?
Spanda Stam suspirou.
— Voltar, decolar numa nave e sair à procura de sobreviventes? Seguir procurando
por meio do rádio e com o auxílio dos terranos ou de outras pessoas que por acaso não se
tenham transformado em débeis mentais? É uma tarefa que nós três não podemos
resolver.
— Vocês se esqueceram de Argoli? — perguntou Walide.
O patriarca segurou a barba e murmurou:
— Não podemos incluí-la em nosso raciocínio. Ela ama esse terrano magricela e o
acompanhará.
O clã dos saltadores — ao menos as poucas pessoas que restavam dele — fazia
parte do grupo dos que tinham sido salvos. Puderam ajudar durante a longa viagem pelo
espaço normal e não tinham sofrido as perturbações conhecidas.
— Por quê?
Era um conjunto de circunstâncias resultantes de uma série de coincidências
aparentemente sem importância. A moça desconhecida tivera de submeter-se a uma
operação de tumor com a idade de doze anos. A evolução da cirurgia cerebral,
principalmente nos centros galácticos, atingira um nível tão elevado que este tipo de
cirurgia acarretava riscos insignificantes — mas parecia que naquela oportunidade tinham
sido cortados alguns nervos, algumas células foram danificadas. Seja como for, Argoli
Erion não sentira os efeitos dos raios que transformavam as pessoas em débeis mentais.
E Spanda, Trepan e Walide Stam?
Estes há dez anos tinham realizado um voo de espionagem por ordem do comando
energético; ou melhor, apoiaram a operação com sua nave. Para isso tinham sido
submetidos a um processo de estabilização mental.
O patriarca martirizava o cérebro depois da decolagem precipitada.
Que fazer?
O império comercial dos saltadores deixara de existir, da mesma forma que os
outros grupos organizados da galáxia. Uma paralisia completa e uma confusão total
tinham-se espalhado. O que poderiam fazer três saltadores para pôr fim a esse estado de
coisas?
— Receio que tenhamos chegado a um ponto final — disse o patriarca.
— Precisamos de uma espaçonave para salvar nossos companheiros de raça —
observou sua mulher.
— Depois de cerca de sete meses? Na maioria estão mortos, encalharam, não
resistiram a pousos de emergência, suas naves colidiram com asteróides, precipitaram-se
em sóis... naturalmente deve haver outros saltadores que ficaram imunes. Basta lembrar
as inúmeras mensagens de rádio que recebemos.
— Acho que devemos voltar para Lepso e decolar com nossa nave depois que ela
tiver sido convenientemente equipada — disse o patriarca.
— Vyrner vai fazer o diabo! — concluiu Trepan. — Em hipótese alguma nos levará
de volta. Somos apenas em três. E somos os únicos que defendem nossos interesses
comuns. Estamos definitivamente perdidos, amigos.
10

Os homens que estavam à frente das telas de imagem da EX 8989, ou Little Crazy
Bird, estavam cada vez mais nervosos e atentos.
Tinham perdido completamente o contato com o jato espacial equipado para voos
de longa distância e missões táticas.
— Pelo menos já temos uma prova de que Vyrner Rustage não inventou nada! —
cochichou o comandante Calembour numa raiva impotente.
— É verdade. Mas isso não nos ajuda em nada — confirmou Rustage, que se
comunicava com eles pelo videofone. As duas naves continuavam vagando pelo espaço
lado a lado, numa região em que a ponte de matéria era pouco concentrada, longe das
estrelas que se espalhavam entre a Via-Láctea e a galáxia menor como bóias luminosas
ou faróis. A espera, a inatividade forçada... só serviam para maltratar ainda mais os
nervos dos homens.
— Só vou esperar mais quarenta e oito horas — murmurou Calembour em tom
abafado. — Depois faremos uma avaliação e entraremos em ação, amigos. Dividiremos
as responsabilidades. Recolheremos parte do pessoal da Gerardus Mercator; a outra parte
ficará a cargo de Vyrner. De acordo?
— De acordo — disse o navegador da nave mercante em tom zangado. — Resta
saber o que faremos. Qual será o destino das naves?
Karsola respondeu por meio de um olhar para o novo arcônida, que estava sentado
nos fundos da sala, lixando uma unha.
— Procuraremos uma colônia terrana que disponha de certos recursos técnicos,
desceremos nela e trataremos de inventar uma maneira de ajudar.
Pegamoi Datras II respondeu sem tirar os olhos da unha:
— Os terranos fariam o grande negócio de sua vida, se descobrissem um meio de
isolar-se do processo de retardamento mental.
Karsola respondeu num tom que quase chegava a ser delicado:
— Faríamos nossos maiores negócios com os aconenses, Pegamoi.
Datras II levantou, fez uma mesura desajeitado e disse em tom de espanto:
— Que quer dizer com isso, terrano?
— Quero dizer simplesmente que sendo um hóspede o senhor deve comportar-se
como tal, arcônida — disse Karsola em tom indiferente. — Tem de ser cortês, discreto,
gentil e prestativo.
Todos olharam para Pegamoi. Este inclinou a cabeça e encarou o terrano com a
maior arrogância de que era capaz.
— Compreendi, mas só aceito em parte — disse em tom delicado. — Quando nós já
desfrutávamos todos os recursos da inteligência e da civilização, os senhores seus
antepassados ainda viviam em árvores, raquíticos, atirando cocos e galhos pequenos uns
nos outros. Que lhe deu na cabeça de dirigir-se a mim nesse tom?
Karsola levantou-se e teve a impressão de não ter ouvido bem.
— Devo ter um problema de audição, arcônida — disse tão baixo que quase não
pôde ser ouvido e piscou os olhos num gesto de confusão. — Acho que não ouvi bem.
— Pois eu acho que ouviu — respondeu Datras II.
— Permite que eu o jogue pela eclusa de ar? — perguntou Karsola ao comandante.
— Fique à vontade — murmurou Calembour.
O arcônida recuou dando alguns passos elegantes para trás, enquanto Karsola ia em
sua direção. Os dois olharam-se nos olhos, mas aos poucos o medo começou a
manifestar-se no rosto do arcônida de cabelos brancos.
— Por que assume um comportamento tão irritante? — perguntou Karsola.
O arcônida esbarrou com as costas na parede e abriu os braços.
— Será que estou fazendo isso? — perguntou Datras.
— Sem dúvida. E vou quebrar-lhe os dentes por isso — disse Karsola com a maior
calma.
— Não! — sussurrou o arcônida assustado e cobriu a cabeça com os antebraços.
Karsola ficou parado à sua frente e sacudiu a cabeça.
— Primeiro abre o focinho e depois se acovarda — disse. — O senhor acha que
vale alguma coisa, Datras? Pode ser útil a alguém?
O arcônida olhou entre os antebraços e sacudiu os ombros.
— Não sei — respondeu. — Mas sei que estou vivo.
— Para alegria dos outros — resmungou o terrano. — Droga! Dê o fora daqui. Vá
para onde quiser. Para o inferno ou para a galáxia de onde veio.
Karsola virou-se e olhou para a tela na qual aparecia o rosto de Vyrner. O
navegador estava tão nervoso quanto os outros e o incidente certamente não serviria para
melhorar o estado de espírito das pessoas.
— Por que Karrora não responde? Está certo. Parece que é um homem corajoso.
Mas poderia dizer-nos o que está vendo, que informações recebe.
Calembour fez um gesto de pouco-caso.
— Talvez os raios o tenham afetado mais do que acreditamos. É mais do que ele
aguenta. Não sabemos. Tudo em ordem a bordo de sua nave, navegador?
— Tudo, Wycliff. Obrigado.
— Inclusive o maahk?
— Sim. Dispõe de alimentos suficientes em seu cubo de sobrevivência. Poderá
aguentar muito tempo. Mas se prosseguirmos pela grande nuvem de Magalhães, a
situação ficará crítica.
— Compreendo.
De repente, sem aviso e sem que se percebesse nenhuma causa, uma forte tensão
começou a espalhar-se a bordo das duas naves. Os homens ficavam nervosos sem motivo,
escorregavam de um lado para outro em suas poltronas. Alguns ficaram irritados e
começaram a discutir.
Talvez fosse a longa espera que tinha irritado os nervos e ameaçava causar uma
explosão. Alguns tripulantes que estavam dormindo ou trabalhando em outros lugares da
nave entraram na sala de comando e ficaram lá.
O rádio não recebia nenhuma mensagem.
As telas de rastreamento mostravam vagamente o Enxame — mas não o jato, que
era um objeto pequeno demais para ser captado.
O controle remoto estava ligado, mas não funcionava.
E o sistema de retorno automático?
***
A paralisação do psicólogo desaparecera em parte; ficara restrita a certos músculos.
O jato completou mais uma curva, os propulsores chamejaram por um instante e um
forte alavanco sacudiu a estrutura. O psicólogo caiu da poltrona, bateu no chão e saiu
rastejando para o corpo do outro homem.
— Ele dorme, ele dorme... que nem uma marmota — disse Wokan com voz de
criança.
Puxou as mãos do homem, tapou o nariz e acabou dando de ombros. Levantou
segurando-se no volante. O movimento giratório do aparelho acentuou-se, a nave
deslocava-se gingando em direção às estrelas e seguia uma rota perigosa que o levaria ao
lugar em que surgira o eco energético.
O psicólogo segurou-se, apertou duas chaves e percebeu que as luzes da cúpula de
comando se tinham apagado.
— Está escuro... — disse.
A respiração do homem deitado no chão começou a ficar ofegante. Mexeu-se. O
psicólogo estava com fome. Desceu pelo poço do elevador antigravitacional, saiu à
procura da cozinha de bordo e acabou encontrando-a.
Examinou as inúmeras gavetas, as latas e embalagens.
Finalmente conseguiu mexer em algumas chaves, apertar alguns botões. Derramou
chocolate quente, queimou os dedos no jato negro que saiu chiando da máquina de café e
começou a chorar. Mas quando tirou um sanduíche meio cru do fogão de radar esqueceu
as dores.
De repente sentiu faltar-lhe o ar. A respiração era pesada. O psicólogo fungou.
Anéis coloridos dançavam à frente de seus olhos.
A comida ficou presa na garganta. O psicólogo tossiu e derramou o conteúdo do
caneco.
O que estava acontecendo?
— Não sei... quero voltar a respirar... — choramingou o homem e saiu balançando
em direção à porta. Abriu-a com um gesto violento e voltou a respirar melhor.
Já não compreendia mais nada.
O jato prosseguia em sua rota agitada. As alavancas da direção mexiam-se devagar
sem que ninguém tocasse nelas.
O homem jogado no chão sacudiu a cabeça, ergueu-se sobre os cotovelos e pôs-se
de pé com uma rapidez surpreendente.
Inflou o tórax e lembrou-se.
— Droga! Devo ter ficado inconsciente — disse em voz baixa.
A primeira coisa que fez foi mexer no interruptor. As luzes acenderam-se. Em
seguida virou a cabeça e viu as luzes de alerta piscando. O sistema de regeneração e
renovação de ar!
— Foi Wokan! — constatou.
Estava com fome, com sede, e sentia um vazio estranho dentro de si.
Dali a alguns segundos as turbinas voltaram a girar e um jato forte e frio de
oxigênio puro saiu dos jatos de emergência.
De repente Karrora viu as estrelas.
Parecia que executavam uma dança louca atrás da cúpula de plexo. O imediato deu
um salto, bateu com o quadril na braçadeira da poltrona e sentou-se. Pôs as mãos na
direção, regulou a força dos propulsores e depois de olhar ligeiramente para as telas fixou
a rota.
O jato voltara a deslocar-se a oitenta por cento luz em direção às coordenadas onde
Karrora notara o eco energético.
— Será que conseguirei encontrá-lo de novo? — perguntou-se.
O estômago roncava furiosamente.
Skytho Karrora ignorou a fome.
Inclinou-se, fez a regulagem do rastreamento e bateu com a palma da mão no
console ao ver o eco mais claro e nítido que algumas horas antes.
— As emissões dos propulsores... — murmurou indeciso.
A julgar pelas especificações, devia ser uma nave terrana. O fato de deslocar-se na
direção do Enxame era um sinal de que estava sendo dirigida. Logo, devia haver pelo
menos uma pessoa “salva” a bordo.
Seria possível comunicar-se pelo rádio.
Skytho orientou-se e adiou a ligação por algum tempo. Levantou e foi à cozinha de
bordo. Wogan estava agachado à frente da escotilha semi-aberta. Mantinha a cabeça
baixa. Havia restos de comida espalhados em torno dele. Estava dormindo e acenava com
a cabeça.
— Bom apetite! — disse Skytho em tom seco.
O psicólogo roncava baixo.
Dali a vinte minutos tinha preparado com as provisões encontradas na cozinha uma
refeição ligeira, mas bastante nutritiva, que encerrou com uma vodca e com um café preto
bem quente. Sem dúvida o ataque que sofrerá fora consequência do estado de debilidade
geral. Atirou os restos da comida no triturador, desligou todas as chaves, inclusive as das
luzes e dos aquecedores e fechou a escotilha. Deixou o psicólogo adormecido onde estava
e voltou à sala de comando.
Ligou o rádio.
— A frequência da frota...?
Skytho colocou o microfone em posição, girou o botão do transmissor e conduziu
toda a energia disponível ao aparelho. Depois começou a falar alto, acentuando cada
palavra:
— Atenção! Chamo a nave terrana que se encontra perto do Enxame.
Esperou impaciente.
— Chamo a nave terrana! Responda, por favor — repetiu.
Observava de vez em quando os movimentos dos mostradores do rádio e da tela de
rastreamento. Teve a impressão de que ia descobrir uma coisa interessante e admirou-se
porque o radioperador da outra nave não respondia aos chamados.
— Aqui fala a Intersolar — disse de repente uma voz em meio ao crepitar das
interferências. — Quem está chamando?
O alívio do imediato foi tamanho que o fez amolecer na poltrona. Por alguns
instantes teve a impressão de que ia desmaiar de novo. Mas acabou sacudindo a cabeça.
Respirou profundamente algumas vezes e imaginou que isto o ajudaria a não perder os
sentidos.
— Aqui fala o imediato Skytho Karrora, da nave exploradora EX 8989. Quero falar
com a Intersolar. Estou numa rota de aproximação. Por favor, tentem localizar-me.
— Espere, por favor. Entendido? — transmitiu o radioperador da outra nave.
Quando pôs a mão no botão para reduzir a potência de transmissão de seus
instrumentos, Skytho percebeu que seus dedos tremiam como se estivesse com febre.
A Intersolar?
A nave-capitânia de Bell? Ou seria uma armadilha dos desconhecidos?
Seu nervosismo aumentou...
11

Nada tinha mudado. Ou será que tinha?


Parte da tripulação da nave exploradora se transferira provisoriamente para a nave
terrana e ajudara Vyrner a completar várias peças do equipamento.
Os três siganeses manifestaram o desejo de serem levados à nave exploradora.
“Ainda bem”, pensou Rustage. Teve mais medo que eles de que alguém de nós os
esmagasse com os pés ou que se metessem entre os polos de uma fonte de energia. A
lembrança das cenas que presenciara deixava-o apavorado. Durante a longa fuga Frigg
Doster, o siganês, um colaborador da USO vindo de Lepso, deixara a nave em pânico
porque tinham de procurá-lo constantemente.
Nele a debilidade mental se manifestara de forma muito intensa, numa tendência
para a curiosidade, na disposição de sair sempre à procura de novas descobertas.
Até tiveram de tirá-lo do microondas.
Vyrner examinou a lista que elaborara enquanto esperava um sinal de vida do jato.
— Não esperaremos muito — disse em voz baixa. — Dentro de cinco horas
partiremos com destino à Nuvem de Magalhães.
— E Skytho? — perguntou Argoli em tom de espanto. — E o psicólogo?
Vyrner sacudiu os ombros e riscou os nomes dos três homenzinhos da lista de
tripulantes.
— Calembour abandonou o jato. O comandante não quer que as duas naves
continuem expostas ao risco de serem atingidas pelos raios!
— Como são esquisitos os terranos! — disse a moça saltadora em tom de
recriminação.
Vyrner colocou um grande ponto de interrogação em vermelho atrás da palavra
maahk.
— Não somos mais esquisitos que os saltadores — resmungou. — Além de não se
preocuparem com você, eles tentam salvar seus companheiros de raça sem sair de Lepso.
A simples tentativa mereceria um castigo.
Os olhos da moça faiscaram de raiva.
— Acho que todo indivíduo tem o direito de decidir com toda liberdade a respeito
de sua vida e seus planos, sem estar sujeito a comentários depreciativos. Ou não tem?
Vyrner quis acariciar seus cabelos, mas ela bateu em sua mão.
— Está bem — disse Vyrner. — Mas quando o patriarca Spanda Stam quer que eu
o leve de volta para Lepso com um sistema positrônico defeituoso, colocando em perigo
nossa tripulação mais que problemática, além de minha pessoa, e tudo isso de graça —
acho que neste caso tenho o direito de fazer um comentário.
A moça voltou a acalmar-se.
— Acho que do seu ponto de vista você tem razão — murmurou. — Quais são as
intenções de Falgur tan Gromand?
Em vez de dar uma resposta, Vyrner colocou um ponto de interrogação atrás do
nome do aconense.
— Não tem uma ideia? — perguntou Argoli.
— Nenhuma. Como no caso do barnitense. A propósito. Acabou de ter uma ideia...
Dizem que no sistema de Ricolt, de onde vieram os barnitenses, ainda existe um oásis de
tranquilidade.
A moça olhou para ele confusa.
— Não compreendo.
Estavam sentados no camarote de Vyrner, desfrutando o silêncio que voltara a
reinar na nave. Apesar da música baixa e dos encantos de sua interlocutora, Bymer não
estava em condições de apreciar a situação. Trazia uma mágoa no íntimo; havia vários
motivos para isto. O sentimento de insegurança, que era uma expressão de seu
nervosismo, sua inquietação — deixavam-no doente.
— No sistema de Ricolt?
— Isso mesmo — disse Vyrner. — Os barnitenses são indivíduos adaptados a um
ambiente diferente. Na galáxia são considerados os comerciantes mais sagazes, com
exceção dos barbas ruivas conhecidos como os mercadores galácticos.
— Seus cérebros adaptados ao ambiente são paraestáveis, isto é, imunes a qualquer
espécie de influência. Tenho certeza quase absoluta de que os barnitenses não foram
atingidos pela deterioração mental que se estendeu a toda a galáxia.
— Para vocês isso significa que... — principiou a moça e inclinou-se.
— Isto significa para todos os planetas da galáxia que podem ser formados
comandos de barnitenses para os serviços de salvamento. Estou me adiantando — por
enquanto não se pode ter certeza de nada.
— Não o invejo nem um pouco por sua tarefa, Vyrner — cochichou a moça.
— Nem eu — disse Vyrner e colocou alguns pontos de exclamação atrás do nome
de Gooz B.
Vyrner cobrira as lentes da tela de imagens com um pedaço de plástico dobrado
além de desligar o alto-falante e o microfone. A tela só mostrava o cenário que se
oferecia na sala de comando da nave exploradora. Os homens, que estavam nervosos e
irritados, agrupavam-se em tomo dos aparelhos e conversavam. Via-se que lamentavam a
sorte dos dois amigos e a oportunidade perdida de obter informações de primeira mão.
O dedo de Vyrner parou na linha onde estava escrito:
Argoli Erion.
— Devo colocar um ponto de interrogação, um ponto de exclamação ou um traço?
— perguntou.
— Como?
Vyrner respirou profundamente e perguntou com a voz insegura e titubeante:
— Que posso fazer com seu nome? Você vai para bordo da nave exploradora ou
fica comigo? Quais são suas intenções?
A moça continuou séria. Sua resposta demorou um pouco.
— Quando partiremos?
— Dentro de algumas horas. Em direção à Nuvem de Magalhães. Talvez até
consigamos chegar a um planeta que represente nossa salvação.
— O que você prefere? — perguntou Argoli com uma estranha indiferença no tom
da voz.
Vyrner admirou-se por sentir o coração bater depressa e com força.
— Quero que vá comigo — disse em voz baixa. — Quais são seus planos? Não vejo
em você uma propriedade minha nem qualquer outra coisa. Ora! Não faz nenhuma
diferença.
— Por enquanto ainda estou com vontade de ficar com você — disse a moça. —
Não se esqueça do maahk. Ele se sente pior que você.
Vyrner não teve resposta.
Não conhecia outros padrões além dos seus e sua fantasia não chegava ao ponto de
poder imaginar que existiam outras pessoas além daquelas com as quais sempre lidara à
sua maneira. Estendeu o braço, colocou-o sobre os ombros da moça e puxou-a para perto
de si. Ela não tentou resistir, mas não parecia muito contente com o que Vyrner estava
fazendo. Ele beijou-a e perguntou em voz baixa:
— Que houve?
Argoli sacudiu os ombros.
— No momento não estou com vontade, Vyrner — disse. — Está zangado? Não —
acrescentou em tom pensativo. — Não pode estar. Está confuso. Não é isso?
— Sim, estou muito confuso.
— É porque até hoje só conheceu um tipo de moça. Tenho pena de você.
Vyrner estava furioso, inseguro e confuso. Encontrara uma moça que não podia ser
enquadrada em nenhum dos esquemas que praticara até então. Apesar disso tinha certeza
de que ela o amava. Vyrner deu de ombros, murmurou algumas palavras
incompreensíveis e olhou nos olhos verdes da moça.
— Acho que ainda preciso aprender muita coisa, não é? — perguntou.
— Isso mesmo — retrucou Argoli.
De repente viu Vyrner arregalar os olhos. Nervoso, inclinou se e olhou para alguma
coisa atrás dela. A moça virou-se e olhou para a tela. As figuras projetadas nela
começavam a mexer-se.
— Um momento! — gritou Vyrner, levantou de um salto e arrancou o revestimento
das lentes. Ligou o microfone, aumentou o volume dos alto-falantes e ficou na escuta.
— Acho que o jato fez contato! — cochichou.
Argoli levantou-se, ficou atrás dele e colocou as mãos sobre seus ombros. Enquanto
os dois olhavam e escutavam, fez subir os dedos e acabou acariciando seu pescoço.
Vyrner nem percebeu.
***
Era uma voz deformada, misturada com o ruído das interferências, mas apesar disso
pôde ser compreendida razoavelmente.
— Silêncio! — gritou Calembour.
O homem que se encontrava no jato estava dizendo:
— ...fala Skytho. Korvey Wokan, nosso psicólogo, transformou-se numa criança
depois de ter sofrido a paralisia. No momento está deitado em seu camarote. Amarrei-o
porque insiste em usar os conversores lineares como brinquedo. Ainda não sei se mexeu
em algum comando.
— Ótimo! Meus parabéns, Skytho — gritou Cylvadas e saltou da poltrona, de tão
entusiasmado que estava.
Mas acabou se controlando e voltou à poltrona. A expressão dos rostos mudara de
um instante para outro.
— Continue!
— Prestem atenção! Acabo de alcançar a nave-capitânia de Reginald Bell. Está
fazendo círculos em torno do Enxame sem parar. Também estou vendo perfeitamente o
Enxame, pelo menos quanto à extensão. É uma coisa gigantesca, quase do tamanho das
pequenas galáxias ou concentrações de estrelas que conhecemos.
— Bell está à minha espera. Por isso daqui a pouco entrarei no espaço linear. É
claro que o informarei sobre a situação que estamos enfrentando. A bordo da nave de
Bell estão todos normais. São algumas centenas de pessoas. No jato reina ordem.
Desmaiei uma única vez. Deve ter sido de fraqueza. É isto, alguma instrução?
Calembour pegou o microfone.
— Fale, Skytho!
— Tem instruções para o caso?
— Não — apressou-se o comandante em responder. — Nada de especial. Mas é
bom que diga a Bell qual é nossa situação, como é o relacionamento entre os débeis
mentais e os que foram “salvos”, e pergunte-lhe se receberemos instruções especiais.
Daqui a pouco iríamos voltar à nuvem. Você chamou bem na hora.
— Não chamei antes porque estava ocupado. Mas está certo. Provavelmente
voltarei a comunicar-me pelo transmissor da Intersolar. Os transmissores de vocês ainda
não puderam ser consertados?
— Não — respondeu o radioperador. — Não encontramos peças sobressalentes na
Gerardus Mercator.
Calembour interrompeu.
— Faça o favor de falar com Bell a respeito do problema dos barnitenses. Talvez
possamos dispor de um planeta inteiro cujos habitantes adaptados ao ambiente são
indivíduos paraestabilizados que continuam normais. Trata-se do sistema de Ricolt. Está
certo, Gooz B?
O barnitense de pele verde confirmou com um aceno de cabeça.
Suas bochechas flácidas tremiam e ele revirou os olhos quando disse:
— Também penso assim, comandante.
— Só isso? — perguntou Skytho.
— Só isto. Boa sorte. Final.
O rádio continuou ligado, mas Skytho interrompeu a ligação com o jato. Tinha
muito trabalho pela frente.
E a Intersolar...
12

O problema do homem que se encontrava no jato em forma de disco era muito


claro. Continuava normal, fora salvo por assim dizer, mas da mesma forma que o
psicólogo estava exposto aos raios que causavam a deterioração mental.
Os conjuntos biopositrônicos também tinham perdido a inteligência.
Cometeriam erros.
— A distância?
O homem começou a trabalhar com a calculadora embutida em seu console.
Enquanto mandava somar os resultados, pôs-se a refletir para descobrir uma saída. É
mais fácil dar cem passos bem devagar que correr um quilômetro.
— Droga! Quanta coisa!
A distância era quase exatamente de trinta e cinco anos-luz. Quase chegava a ser um
milagre ele ter conseguido fazer contato pelo rádio. Trinta e cinco anos-luz eram mais de
onze parseks.
A capacidade total do conjunto biopositrônico seria capaz de realizar manobras
lineares numa distância de um parsek. Skytho programou lentamente um passo. Todas as
células receberam a mesma tarefa. Em seguida fechou a calculadora embutida em seu
console e programou dez repetições do primeiro comando. Enquanto isso o jato
aumentava de velocidade.
O rádio de novo.
— Aqui fala o jato EX 8989. Quero falar com a Intersolar. A resposta foi imediata.
— Intersolar falando. Estamos voltando do sistema Rubi ômega. Mais
precisamente, do planeta Hidden World I. Estamos na escuta.
— Completarei um total de onze etapas lineares. Depois disso devo estar perto dos
senhores. Peço desde já permissão de entrar na eclusa.
— Permissão concedida. Estamos à sua espera. As máquinas do jato estão em
ordem?
Skytho não tinha a menor dúvida sobre os riscos que corria. Um sorriso frio cobriu
meu rosto quando disse:
— Tomara. Voltarei a chamar. Sigo diretamente para sua nave. Final.
— Boa sorte. Final.
Skytho não pensava no primeiro mundo nem no segundo, mas somente na tarefa
que tinha de cumprir. Acompanhou os movimentos e indicações dos mostradores dos
instrumentos mais importantes. Depois de algum tempo apertou um botão. O jato saltou
para o espaço linear, sacudiu-se ligeiramente e permaneceu no misterioso ambiente entre
as dimensões. Cada nervo do corpo do homem era solicitado ao máximo de sua cabeça.
Foi obrigado dez vezes a fazer análises-relâmpago.
Dez vezes deviam aparecer mais ou menos as mesmas estrelas à sua frente. Depois
de cada salto o eco energético projetado na tela do rastreador devia ser maior e mais
nítido. Depois de algum tempo devia ver a Intersolar, mesmo que fosse somente com
uma sombra esférica à frente das estrelas.
O homem esperava...
Enquanto isso sofria verdadeiros tormentos. Fitou os equipamentos biopositrônicos
com uma expressão de súplica e sua respiração era difícil. As palmas das mãos estavam
úmidas. Ele sabia muito bem que o nervosismo podia fazê-lo perder os sentidos de novo.
O psicólogo estava deitado na cama, de onde não podia sair. As máquinas rugiam com
uma intensidade inquietante. A que lugar da tão martirizada Via-Láctea seria levado no
primeiro salto?
Onde iria parar?
A probabilidade de os onze saltos seguirem o mesmo esquema era bastante
reduzida. O homem nem chegou a calcular suas chances; preferiu esperar, nervoso e
inativo. Chegou a sofrer um ataque de fraqueza que o deixou inconsciente por alguns
segundos. Não se arriscava a ir buscar um pouco de glicose concentrada e ingeri-la. Ficou
grudado na poltrona anatômica e inclinou o corpo. Grandes pingos de suor apareceram
em sua testa, enquanto um filete descia entre as omoplatas.
O cronômetro...
O ponteiro foi subindo irregularmente, marca após marca. Com uma lentidão
infinita... finalmente chegou a hora.
O jato sofreu um forte solavanco...
...e estava de volta ao espaço normal.
— Só alguns segundos — murmurou o homem com a garganta ressequida.
Contemplou as estrelas e armazenou nas telas as constelações que ficavam à frente
da curvatura da ramificação da Via-Láctea. A tela de rastreamento. O eco ainda estava lá.
No mesmo lugar. Neste instante o jato voltou a tremer e saiu do espaço normal.
— Só mais dez vezes... — cochichou Skytho com a voz fraca e recostou-se.
Tinha de comer alguma coisa.
A segunda permanência no espaço linear terminou...
A terceira começou...
Por enquanto tudo fora bem. Skytho começou a simpatizar em pensamento com os
engenheiros. Tinham instalado o conjunto biopositrônico de tal maneira que mesmo em
meio às dificuldades tremendas ainda era capaz de conduzir o jato em segurança através
do espaço linear.
Sua salvação dependia disso.
A Intersolar foi-se transformando numa obsessão, num símbolo. Ou pelo menos
num ponto de referência.
A quarta permanência no espaço linear.
A quinta e a sexta.
Finalmente a oitava.
Durante a oitava etapa de voo linear Skytho atravessou a nave. Seus nervos se
agitavam. Precisava de alguma coisa para quebrar a monotonia. De descontração, dum
meio de descarregar a tensão acumulada.
Fumar?
Finalmente encontrou um maço de cigarros amassado numa gaveta da cozinha.
Acendeu um, fez bem depressa um, dois tragos e sentiu o gosto amargo da fumaça na
língua.
— Não é o verdadeiro! — disse.
Resolveu procurar o psicólogo, fazê-lo comer alguma coisa ou pelo menos ocupar-
se com ele.
Enquanto abria a escotilha, sentiu o cheiro de queimado. Em seguida: uma
detonação forte, quase sem barulho, que sacudiu violentamente o casco da nave. Um
crepitar demorado parecia sair de todas as paredes e vigas ao mesmo tempo.
Skytho saiu correndo, saltou para dentro do poço do elevador ascendente e flutuou
para cima. Ficou pálido ao ver os sinais luminosos no console.
Todos os conversores lineares se tinham queimado.
— É o fim! — disse.
Sentou-se na poltrona, contemplou as estrelas e tentou encontrar o impulso da
Intersolar.
A nave estava à sua frente, mas fora de seu alcance.
Era impossível conversar com o psicólogo, uma vez que ele voltara a regredir à fase
infantil de sua vida.
— Será que as máquinas de propulsão comuns ainda estão funcionando?
Skytho realizou um teste ligeiro. Estavam funcionando. Encontrava-se a mais de
dez anos-luz do lugar onde queria chegar. E agora? Era de enlouquecer. Logo foi
obrigado a rir da comparação — entre o estado em que se encontrava ao esconder-se e o
momento em que esses pensamentos lhe vieram à cabeça. A diferença era muito pequena.
— Vamos pedir socorro, Korvey — gritou em voz alta. — Como?
Korvey, que continuava em seu camarote, não respondeu. Skytho levou apenas
alguns segundos para ajustar o aparelho e direcionar a antena.
— Jato EX 8989 de novo. Peço socorro à Intersolar. Meus conversores lineares
acabam de queimar-se. O jato foi atirado de volta ao espaço linear. Podem ajudar?
— Pergunta entendida, Karrora. Estamos discutindo o assunto. Espere, por favor.
Skytho esperou dez minutos. Finalmente o radioperador voltou a chamar.
— Imediato Karrora! — disse. — Há alguns minutos saiu uma corveta com três
tripulantes. O senhor terá de encarregar-se sozinho da manobra de entrada na eclusa. Um
dos hangares será aberto para recolher seu jato. Traremos o senhor para cá. De acordo?
— De acordo — disse Karrora. — Esses títulos obsoletos ainda são usados a bordo
de sua nave? Digo que são obsoletos porque existem poucas pessoas para as quais ainda
significam alguma coisa.
— Não usamos mais os títulos, mas é muito difícil a gente desacostumar-se deles —
disse o radioperador em tom indiferente. — Afinal, foram usados durante milênios.
Sempre fica alguma coisa no subconsciente.
— Sem dúvida! — suspirou Skytho. — Final.
— Final.
Tempo de sobra.
Agora Skytho tinha tempo.
Skytho preparou comida para si e para o psicólogo, tomou um chuveiro e vestiu
roupas limpas, jogou uma partida de kashoy-plar dimensional com Wokan, derrotando o
psicólogo de uma forma vergonhosa, a ponto de chorar e tentar golpear Skytho com a
tábua curva.
Skytho sofreu mais com isso do que o psicólogo.
***
Nas primeiras horas do dia 14 de dezembro de 3.441 Skytho e Bell estavam
sentados frente a frente. Encontravam-se no camarote de Bell, e não havia ninguém com
eles além de Julian Tifflor.
— O senhor foi recolhido pela corveta. Ela chegou aqui sã e salva e já preparamos
um jato novo apropriado para voos a grande distância para o senhor — disse Tifflor. —
Faça o favor de contar.
Skytho acenou com a cabeça e começou.
Fez um relato ligeiro da missão da nave exploradora, de seu último voo, que deveria
terminar na Terra, e do contato com a Gerardus Mercator. Disse quais tripulantes Vyrner
Rustage tinha trazido de Lepso e aludiu ao problema dos barnitenses. Bell não sabia mais
a este respeito do que ele mesmo. A Intersolar captara milhares de mensagens de SOS,
mas ainda não falara com o sistema dos indivíduos adaptados ao ambiente. Em
comparação com as amplidões da Via-Láctea, as potencialidades da nave gigantesca eram
praticamente nulas. Até o encontro dos dois fora um puro acaso.
Skytho fez um relato das dificuldades enfrentadas a bordo das duas naves,
mencionou sua doença e o psicólogo que estava sob os cuidados das mulheres da
Intersolar.
Concluiu com uma série de perguntas.
— Senhor — principiou. — Tínhamos duas naves de reserva. Uma delas ainda não
foi contaminada pelos raios... A propósito. São mesmo raios? Ou defrontamo-nos com
uma espécie de vírus?
— Radiações! — disse Tifflor em tom áspero.
— Obrigado. Uma das naves ainda não foi afetada pelo processo de deterioração
mental. A outra tem algumas pessoas salvas a bordo. Veio do inferno em que se
transformou Lepso. Que devemos fazer? Pretendíamos retirar-nos para a Grande Nuvem
de Magalhães. Quando saímos de lá, ela ainda não tinha sido afetada.
Bell e Tifflor entreolharam-se.
— Deixemos isso para mais tarde — disse Tifflor. — Gostaríamos de apresentar
nosso relatório. Fizemos algumas observações muito interessantes.
Nas horas que se seguiram Skytho foi informado sobre a data da invasão, enquanto
ia sendo feita uma gravação em fita.
Falaram-lhe sobre milhares de naves que vagavam pelo espaço, indefesas.
De Pontonac e da tentativa de descobrir os segredos do Manipulador.
De Y'Xanthomrier, que chora pedras vermelhas...
Do mundo dos cavadores, para onde tinham sido levados os nativos. De Icho Tolot
e de certas pedras esquisitas.
Do perigo que ano-luz após ano-luz ia estendendo seus tentáculos em direção à Via-
Láctea.
— Encontramo-nos com Rhodan sempre que podemos. Além disso montamos uma
grande rede de informações...
— Desta forma dispomos sempre de dados atualizados. Numerosas estações onde
chegam as notícias dos salvos nos proporcionam uma visão de conjunto dos lugares em
que tentamos prestar ajuda urgente. A situação começa a estabilizar-se.
Tifflor interrompeu-o.
— ...somente aos poucos, a passos microscópicos. Ficaríamos satisfeitos se
houvesse em cada planeta pelo menos um ou dois aparelhos capazes de evitar que seus
companheiros de raça morram de fome.
De uma coisa Skytho tinha certeza, pelas informações recebidas:
Toda a galáxia, com exceção de alguns pontos insignificantes que não alteravam o
quadro geral, estava nas últimas. Nunca se enfrentara uma situação como esta, desde que
as primeiras criaturas começaram a andar eretas e a pensar.
Ou será que já se enfrentara?
Talvez a Via-Láctea já tivesse sofrido uma devastação igual a esta.
Bell levantou e ficou andando nervosamente de um lado para outro.
— Tenho oportunidades excelentes de usar as duas naves — disse. — Não vou dar
ordens, mas gostaria de fazer alguns pedidos insistentes.
— Pois não. Estou ouvindo — disse Skytho.
O gravador de fita ainda estava funcionando, gravando cada palavra que era dita.
— Vamos primeiro à Gerardus Mercator. Que tipo de pessoa é Vyrner Rustage?
Skytho lamentava, mas não sabia; mas apreciava-o bastante. Poucos homens tinham
levado uma nave tão longe com uma tripulação destas.
— Faça o favor de dizer a Vyrner... — pediu Bell.
Enquanto falava, Skytho foi-se dando conta de que o esquema exposto se prestava
muito bem para melhorar a situação dos “salvos”. Recebendo o poder, assumiriam novas
responsabilidades.
— Calembour deverá seguir com destino ao seguinte lugar... — disse Tifflor. —
Sua tarefa é muito importante para nós.
Tifflor indicou o destino e Skytho confirmou com um aceno de cabeça. .
Já sabiam o que deviam fazer.
A espera chegara ao fim.
13

Para ele a permanência na gigantesca Intersolar representava algo parecido com a


visão do paraíso. Era sem dúvida um paraíso altamente técnico com pequenos defeitos,
que além disso sofria os efeitos do vazio. Só havia algumas centenas de pessoas a bordo,
e a gente praticamente não os via. Setores inteiros estavam energeticamente mortos. As
esteiras rolantes não funcionavam, somente as luzes de emergência estavam acesas e os
robôs andavam zumbindo de um lado para outro, como fantasmas. Seus cérebros
biopositrônicos tinham sido retirados e substituídos por outros puramente positrônicos,
retirados de série completamente antiquadas.
Skytho Karrora contemplou-se no espelho de seu camarote.
— O segundo ato pode começar! — disse.
Não somente o jato, mas também ele, tinham recebido equipamentos novos. Tomara
um chuveiro, fora examinado pelos medo-robôs e médicos da nave. Uma terapia rápida
na base de medicamentos reconstituintes, algumas refeições excelentes, um corte de
cabelo robotizado, a barba feita, e até um novo relógio positrônico. Roupas novas. O
mesmo procedimento fora aplicado no psicólogo, que na região dos raios de deterioração
mental continuava a comportar-se como uma criança.
— Não poderia estar mais bem preparado — disse Karrora. Já se sentia mais forte e
fazia votos de que o balançar entre o primeiro e o segundo mundo não se repetisse.
Naturalmente lhe tinham dado as peças sobressalentes do hipertransmissor e um
transmissor de reserva. Os depósitos da grande nave estavam repletos de equipamentos.
Skytho programou a rota do destino, devagar e com cuidado; conseguira ler os
dados armazenados. A EX 8989 esperava no brilho difuso da ponte de matéria que unia
as duas galáxias.
Finalmente o jato saiu pela eclusa.
O veículo em forma de disco deu uma volta em torno da nave, fixou-se na rota de
destino e acelerou. Uma mensagem foi transmitida; Tifflor em pessoa estava no
microfone.
— Boa sorte, Skytho — e não se esqueça de libertar o psicólogo antes que seja
tarde. Esperamos que seja bem-sucedido.
— Obrigado, Mister Tifflor — disse Skytho. — Farei o que puder.
— Quanto a isso não temos a menor dúvida.
— Final.
O jato espacial aumentou a velocidade. Deixou para trás as estrelas do braço em
espiral e correu em direção às duas pequenas concentrações de estrelas. Um sentimento
de euforia tomou conta do homem que estava sentado junto aos controles. Só se sentia
triste quando pensava no psicólogo, que estava deitado em seu camarote, muito bem-
cuidado, com as mãos e os pés amarrados. Era relativamente fácil para um adulto abrir o
fecho das amarras — mas para uma criança elas representavam uma imobilidade quase
total. Desta forma a possibilidade de uma pane técnica não existia. Também parecia que
não havia a possibilidade de uma recaída no primeiro mundo.
Os médicos da Intersolar tinham implantado um medicamento fixo no músculo do
braço. Das substâncias depositadas na cápsula de plástico transparente o corpo retirava o
que precisava. O medicamento devia fazer efeito pelo menos durante três meses. Até lá
Skytho devia ter certeza sobre a probabilidade dos dois mundos, para poder deslocar-se
livremente entre eles como se estivesse num barco em água rasa.
Naquele momento o jato desenvolvia velocidade igual à da luz e estava entrando no
espaço linear.
Skytho controlou seus sentimentos; não havia nada de errado. Aos poucos estava
ficando cansado. Os músculos ainda doíam um pouco por causa da massagem robotizada
a que se submetera na Intersolar. Dentro de algumas horas voltaria ao lugar que por
enquanto era seu lar, onde se encontravam seus amigos — na nave exploradora. Por
algum tempo a Little Crazy Bird seria para ele uma das espaçonaves mais importantes de
que dispunha a Terra e ele ajudaria a protegê-la. O veículo não podia arriscar-se além do
círculo imaginário atrás do qual começava o processo de deterioração mental.
— Os instrumentos. Preciso controlá-los com muito cuidado — disse a si mesmo.
Girou a poltrona anatômica e examinou um por um os instrumentos, as escalas, os
mostradores coloridos, os controles de potência e os outros dados. Tudo funcionava
perfeitamente no jato.
Um convés abaixo dele Korvey Wokan acordou e percebeu que estava amarrado.
Compreendeu.
Estavam no espaço linear. Talvez regressando.
Korvey respirou profundamente algumas vezes e murmurou:
— Isto significa simplesmente que Skytho conseguiu chegar à Intersolar e que
estamos voltando. Fomos salvos.
Depois disso virou-se para a parede e adormeceu de novo.
***
Cerca de cento e vinte criaturas — entre humanóides e não-humanóides —
aguardavam ansiosamente as próximas ações. Faltavam poucas horas para a meia-noite
do dia quinze de setembro. Todos sentiam que uma coisa importante tinha acontecido.
Mas ninguém sabia o que era.
— Suponhamos — disse Calembour — que Karrora tenha conseguido livrar-se do
mal que tanto o perturbava. Dali se conclui que pode permanecer ao alcance das
radiações sem sofrer nada.
— Com Wokan acontece exatamente o contrário — acrescentou Cylvadas. — Nos
lugares atingidos pelas radiações ele se transforma numa criança. Quando está no espaço
linear volta ao normal, e se o jato — supondo que ele já tenha partido — voltar ao espaço
normal aqui, Wokan continuará normal. O que está havendo com Skytho?
— Não faço a menor ideia. Só existem duas alternativas — disse o comandante.
Era isso mesmo.
Skytho podia regredir ao seu estado quenofóbico, ou então ficara curado por causa
dos raios. Mas não havia nenhuma prova psicoterapêutica concreta disso.
— De qualquer maneira vamos esperar a chegada do jato? — perguntou Vyrner
pelo rádio.
— É o que pretendemos fazer, navegador — respondeu Calembour.
O tédio voltara a tomar conta dos presentes. A nave fora cuidadosamente arrumada
por dentro, todas as listas tinham sido escritas ou impressas, os objetos achados haviam
sido catalogados, os filmes revelados, todas as fotos tinham sido ampliadas. Os serviços
qualificados ainda mantinham ocupada mais ou menos metade da tripulação, mas os
hóspedes estavam sem trabalho. O mesmo acontecia com a nave mercante — e o
nervosismo voltou a apoderar-se dos homens.
Mas de repente os acontecimentos se precipitaram.
O homem que estava sentado junto à tela do rastreador começou a gritar que nem
um louco.
— Comandante! O jato! Aproxima-se em rota de colisão!
Calembour saiu da poltrona, deixou cair o microfone e correu para junto da tela.
— Rápido! — gritou. — Realizar manobra de desvio. Tudo depende de uma fração
de segundo.
Os homens que se encontravam na sala de comando saíram correndo para todos os
lados.
O jato prateado, que brilhava à luz dos faróis, corria diretamente para a nave.
Roçaria primeiro no casco da Gerardus Mercator e em seguida colidiria com o
campo defensivo da EX 8989.
Seria a morte de Skytho e Korvey...
***
Karrora travava uma luta consigo mesmo.
Estava mergulhado numa trágica auto-observação. Fazia isso com o restinho de
inteligência que parecia estar escondida em um canto de sua mente, assistindo trêmulo
enquanto ele enlouquecia. A voz de Calembour estalou e trovejou nos alto-falantes
regulados no volume máximo. Enquanto isso Karrora estava sentado na poltrona, trêmulo
e incapaz de fazer qualquer movimento.
O jato acabara de sair do espaço linear perto do destino e seguia sua rota em linha
reta à velocidade máxima de mergulho.
Um convés embaixo, Wokan lutava para livrar-se das amarras.
Primeiro, logo depois da entrada no espaço normal, enquanto estava lidando com
nós e fivelas, aparecera Karrora. Acordara-o e conversara demoradamente com ele.
Durante algumas horas os dois permaneceram em seu mundo normal, perfeitamente
definível pelo intelecto.
Wokan praguejou contra os fechos magnéticos. Finalmente conseguiu soltar a mão
esquerda.
Lá em cima Calembour continuava a gritar.
— Avaria... Colisão... Reduzir velocidade... Rota de colisão... você ficou louco...
Desligar máquinas...
Foi o que o psicólogo compreendeu.
Depois que tinham concluído os controles e comido alguma coisa, Karrora sugeriu
que se tomassem medidas para garantir a segurança depois da reentrada no espaço
normal.
Queria narcotizar-se depois de sair do espaço normal para fazer um controle, ou
então trancar-se. Enquanto isso o psicólogo cuidaria da direção e dos instrumentos.
Conseguiu libertar a mão direita e puxou violentamente as largas faixas estofadas
que cercavam os tornozelos.
Não se chegara a fazer isso...
Certamente Skytho adormecera ou regredira ao estado de quenofobia. O jato não
entrara no espaço normal. Só saíra do espaço linear naquele instante, quando já chegara
perto do destino.
Os pés ficaram livres.
— Vamos! Depressa! — disse o psicólogo a si mesmo, abriu a escotilha às pressas e
precipitou-se pelo corredor circular. Atirou-se dentro do poço do elevador
antigravitacional e saltou para junto dos controles.
“Já é tarde”, pensou ao ver surgir as duas naves.
Seguiam pela rota de colisão.
Calembour continuava a gritar no posto de comando.
O psicólogo fitou por apenas um segundo o quadro que se oferecia atrás da cúpula
transparente.
Uma das naves soltava fogo por todos os bocais de jato e, vista por ele, subiu
devagar.
Wokan atirou-se por cima do console, ligou a direção manual e puxou na alavanca.
O jato descreveu um ângulo “para baixo” em sua rota, mergulhou alguns metros
abaixo da outra nave, foi atingida por um instante pelos fluxos de partículas e continuou
em alta velocidade. O psicólogo voltou a puxar as alavancas.
Continuou desviando a nave para baixo.
Neste instante os propulsores da EX 8989 chamejaram, fazendo a nave entrar na
rota.
— Saiam do meu caminho, idiotas! — gritou Wokan e empurrou a alavanca com
toda força para dentro do console. O jato freou e a aceleração negativa forçou as
máquinas. As luzes de controle piscaram. O jato e a nave exploradora deslocaram-se com
uma precisão que parecia ser obra da matemática da destruição em direção a um ponto do
espaço em que fatalmente colidiriam.
Skytho acordou.
Estivera mais uma vez no primeiro mundo e de lá tentara ir ao segundo mundo.
Conseguira voltar com muito trabalho, passo após passo e naquele momento acordou no
segundo mundo, depois de ter sofrido um grande choque.
Ergueu-se muito tenso.
Viu à sua frente raios de luz e também viu labaredas subindo num ângulo de
noventa graus em relação aos raios. Ouviu uma voz retumbante e a respiração pesada
entre as palavras. Levantou-se, seus braços agitaram-se descontroladamente e encostaram
em alguma coisa.
Skytho percebeu que batera com tanta força que as juntas dos dedos estavam
sangrando.
Finalmente acordou.
Compreendeu imediatamente, mas parecia paralisado quando redescobriu a
realidade.
O psicólogo cambaleou para a esquerda, afastando-se do console...
O jato corria exatamente na direção de uma das duas naves...
A espaçonave saiu da rota. As alavancas da direção estavam numa posição tão
desfavorável que dentro de alguns segundos haveria uma violenta colisão.
— Não! — gemeu Karrora.
Calculou os dois ângulos, empurrou as alavancas da direção manual para a direita e
o jato ficou de cabeça para baixo, passando silenciosamente, a noventa por cento da
velocidade da luz, rente ao campo defensivo da nave e precipitando-se para o espaço
vazio intergaláctico.
14

As duas naves afastaram-se com os propulsores chamejantes. Calembour não tirava


os olhos das telas panorâmicas, depois que desistira de dizer alguma coisa aos homens do
jato.
O jato mergulhou por baixo da Mercator.
Entrou obliquamente na nova rota da EX 8989.
— Pare! Freie! — gritou.
O piloto passou diretamente da aceleração máxima para a aceleração negativa. Os
neutralizadores de gravidade da nave uivaram. Trabalhavam em regime de sobrecarga. O
sistema de renovação de ar cuspiu uma nuvem de fumaça amarela enquanto o jato
passava junto à nave girando ininterruptamente em torno do eixo longitudinal fictício e
saiu dos feixes de raios dos faróis de aterrissagem.
— Devemos agradecer ao destino! — cochichou Calembour.
— O que aconteceu a bordo dessa nave? — especulou o piloto da nave exploradora.
Calembour deu de ombros.
A tela de rastreamento mostrava uma imagem clara e nítida do jato. O objeto voador
passou a girar cada vez mais devagar e estabilizou-se. Os propulsores cuspiram fogo,
formando um feixe brilhante que se destacava contra o fundo do espaço vazio.
— Estão reduzindo a velocidade — disse Karsola. — Será que ambos
enlouqueceram?
— Essa possibilidade sem dúvida existe! — respondeu o comandante.
O jato espacial reduziu drasticamente a velocidade. Os astronautas sabiam o que se
podia exigir dos propulsores. O disco passou a deslocar-se cada vez mais devagar e
depois de algum tempo descreveu uma curva fechada. Continuou nela até completar um
ângulo de cento e oitenta graus. Depois disso ouviu-se uma voz que tinha um tom
estranho.
— Aqui fala Wokan — murmurou alguém. — Desculpe, mas isto não pôde ser
evitado.
— O jato já está sob controle? — perguntou Calembour.
— Está — respondeu Wokan de uma forma que quase não pôde ser compreendido.
— Estamos prontos para entrar na eclusa. Poderiam parar a nave e abrir uma?
— Quase não se entende o que você diz — disse Wycliff. — Como vai Skytho?
— Mais ou menos. Há pouco tentou quebrar minha mandíbula. Estou nos controles.
Karsola, o piloto e Calembour entreolharam-se em silêncio e sacudiram a cabeça. O
comandante fez um gesto e os outros dois retiraram-se para ajudar na manobra de entrada
do jato.
— Dá para entender, comandante? — perguntou Karsola.
— Não. Mas daqui a pouco teremos a explicação.
Quando Vyrner Rustage voltou a aparecer na tela, o comandante levantou a mão. O
navegador da Gerardus Mercator olhou para ele em silêncio e com as sobrancelhas
levantadas. Estava pálido como cera; ainda não se recuperara do susto causado pela
colisão de que tinham escapado por pouco.
— Que foi isso? — murmurou.
— Aguarde trinta minutos, parceiro. Aí saberá tudo. Prepare-se para vir à nossa
nave. Tenho a impressão de que os dois têm uma informação muito importante.
— Está certo.
O jato voltou e entrou no espaço adjacente da nave. Sinalizou com o farol. Um
segmento do campo defensivo foi desligado e os portais de uma das eclusas de hangar se
abriram. O disco foi entrando devagar. Depois que a escotilha se fechara e o processo de
compensação de pressão foi concluído, a eclusa polar do jato abriu-se. Parecia que
finalmente terminara a longa e perigosa viagem.
Vinte homens entraram correndo na eclusa e esperaram embaixo do jato, enquanto o
comando prendia o veículo nos suportes magnéticos.
— Estão chegando! — murmurou alguém.
Os dois homens saíram do jato. O psicólogo trazia um gravador de fita a tiracolo.
Na outra mão seguravam uma maleta branca.
Apesar dos lábios inchados sorria.
— Conseguimos! — disse. — Trazemos notícias excelentes da Intersolar.
Skytho saiu da eclusa inferior atrás dele.
— Não se preocupe — disse em voz baixa. Havia longos intervalos entre as
palavras, dando a impressão de que ele tinha de refletir. — Estou praticamente normal.
Mas receio que a quenofobia logo volte a tomar conta de mim.
Os dois homens foram escoltados à cantina pelos companheiros. Calembour
aproximou-se o mais depressa que pôde e sacudiu suas mãos. Via-se que estava mais
calmo e alegre — mas sobressaltou-se ao ver os trajes dos dois homens.
— Vejo que estão recondicionados! — disse desconfiado.
— Dê-nos algum tempo, Why! — pediu o psicólogo. — Os últimos minutos foram
enervantes não apenas para vocês.
— Compreendo perfeitamente. Falaram com Bell?
— Falamos — respondeu Wokan. — Faça o favor de convocar todos os presentes.
É bem verdade que teremos de dispensar a presença do maahk.
A tensão desfez-se de um instante para outro.
As duas naves aproximaram-se e seus movimentos foram neutralizados. O raio de
tração da nave exploradora ancorou a Mercator junto ao casco e os tripulantes da EX
8989 flutuaram para a outra nave enfiados em trajes espaciais.
A cantina foi-se enchendo.
Enquanto os técnicos montavam uma espécie de tribuna e faziam as ligações
necessárias, o psicólogo e o comandante se afastaram dos outros e conversaram em voz
tão baixa que ninguém pôde entendê-los.
Wokan segurava uma toalha molhada com água gelada e molhava constantemente o
lado direito do queixo, embaixo do maxilar. Enquanto falava seus lábios grossos se
crispavam num sorriso doloroso.
— Que houve com Skytho? — cochichou Calembour preocupado.
O psicólogo deu de ombros.
— Conversei com ele durante a fase do hiperespaço. Ele conhece seu problema
melhor que eu.
Korvey Wokan falou a respeito do primeiro e do segundo mundo e do que pensava
dos seres que viviam dentro do Enxame. Relatou as dificuldades enfrentadas por Karrora
quando queria voltar à realidade, saindo de uma parte de seu mundo imaginário. De
qualquer maneira não seria tratado mais com narcotizantes.
— Quer dizer que devemos contar com uma recaída?
— Sem dúvida — disse Wokan em voz baixa. — Mas não da forma que
conhecemos. Skytho ainda levará muito tempo balançando entre seu mundo de fantasia e
a realidade, indefeso e sem vontade própria. Continuará assim enquanto não compreender
perfeitamente o caminho e os meios.
— Quer dizer que os raios que deixam as pessoas mentalmente deterioradas
ajudaram-no em vez de prejudicá-lo?
— Isso mesmo. Tornou o conflito transparente para ele. Já sabe que sofre ataques
de quenofobia que não pode evitar.
— Por quanto tempo ainda continuará normal? — perguntou o comandante em tom
sério.
— Durante algumas horas ainda será capaz de contar o que sabe. Quando falava
com Bell na Intersolar, eu estava sob os efeitos das radiações. É uma situação repugnante,
embora a lembrança desses momentos se tenha apagado até certo ponto.
— Vamos começar? O pessoal da Mercator chegou — disse Karsola.
— Vamos.
A cantina estava cheia. Algumas pessoas ainda usavam os trajes espaciais leves.
Colocaram os capacetes e as luvas sobre a mesa. Um grande grupo formado por
tripulantes da nave exploradora se aglomerara junto à moça pertencente ao povo dos
saltadores. Rustage contemplava a cena com uma expressão zangada. Os homens faziam
as observações que costumavam ser trocadas em ocasiões como esta. Argoli parecia
deleitar-se com os elogios, o que não deixou Vyrner nem um pouco contente. Sentou
aborrecido, cruzou as pernas e começou a fumar.
Finalmente, depois que se pedira silêncio várias vezes, as vozes se reduziram a um
murmúrio baixo.
Skytho e Korvey estavam sentados numa posição um pouco mais elevada. Skytho
levantou e abriu os braços.
— Silêncio, por favor! — pediu.
— Como sabem, viemos da Intersolar. Daqui a pouco a fita gravada por Bell e
Tifflor nos revelará por que a nave estava justamente no lugar em que foi detectada por
nós.
— Primeiro vamos ao seguinte.
— O jato está repleto de equipamentos importantes e valiosos. Temos rádios novos
e muitas peças sobressalentes para os principais setores das duas naves. O jato é novo e
capaz de voar a grandes distâncias. Veio da nave grande. A situação na galáxia é bem
mais grave do que acreditávamos.
— Bell confiou a nossas duas naves tarefas independentes, mas muito importantes.
— Com isto passaremos a falar de nossos hóspedes.
Skytho voltou a sentar-se e fez um sinal para o psicólogo.
Calembour, que não tirava os olhos de Skytho, percebeu que o amigo lutava de
novo consigo mesmo, ou com a área cinzenta que havia dentro dele. Os tendões do
pescoço ficaram salientes e as veias nas têmporas latejavam.
— Temos a bordo um hóspede muito exótico, um maahk — principiou Korvey
Wokan. — Manifestou perante Vyrner o desejo de ser colocado em um dos planetas dos
maahks. Talvez isso seja possível, mas primeiro gostaria de fazer uma pergunta a
Vyrner...
— Farei tudo que for possível — disse Vyrner.
Korvey acenou com a cabeça e respondeu em tom seco:
— Dessa forma nos aproximaremos muito mais das ideias de Bell. Tudo que
acontecer daqui em diante será ditado pela situação amarga da galáxia. Bell lhe pede que
volte a Lepso — ou a outro planeta.
No mesmo instante o silêncio tomou conta do recinto. Os homens viraram a cabeça
e encararam Rustage. Vyrner pigarreou e perguntou com a voz rouca:
— Sabe o que está exigindo?
O psicólogo não sorriu ao responder.
— Não estou exigindo absolutamente nada. Reginald Bell pede. Leve a Mercator de
volta a Lepso ou a outro planeta. O destino é quase tão importante quanto a missão.
Vyrner sacudiu a cabeça.
— Todos nós... eu... estamos satisfeitos por termos escapado ao inferno. Ninguém
pode exigir que eu ou qualquer outro volte para lá de sua livre e espontânea vontade.
No silêncio que se espalhou em seguida todos ouviram os suspiros profundos do
psicólogo.
15

A fita rodou durante duas horas.


As pessoas que participavam da reunião ouviram o que Skytho, Bell e Tifflor
falavam.
Os alto-falantes da nave, acoplados ao toca-fitas, reproduziam cada palavra.
Ouviram os pedidos insistentes de Bell e aos poucos compreenderam que solução
Bell e Tifflor queriam dar a esse problema setorial.
O comandante da nave exploradora levantou e disse em voz alta:
— Acho que devemos atender aos pedidos de Bell. Isto por dois motivos, ambos
vantajosos para nós. Primeiro ficaremos fora da galáxia, isto é, fora do alcance dos raios
de deterioração mental. Não será difícil para nós. Se alguma vez formos atacados pelos
raios, ainda poderemos contar com Skytho.
O comandante virou-se ligeiramente e olhou para o amigo.
Skytho também levantou-se. Protegeu os olhos com o antebraço e inclinou-se.
Saiu do lugar atrás da mesa em posição mais elevada, passou cambaleando perto de
Wokan e olhou em volta, de cabeça baixa. Finalmente descobriu a estreita porta de correr
de uma gaveta de provisões.
Saiu tateando em sua direção que nem um sonâmbulo, empurrou a porta e com a
mão esquerda desligou as luzes internas.
— Silêncio... escuridão...— ouviram-no cochichar os que estavam mais perto.
Em seguida agachou-se no canto inferior do armário e empurrou a porta, só
deixando aberta uma fresta estreita.
Não a fechou completamente por saber que o organismo humano precisa de ar e
oxigênio.
— É o murmúrio produzido pelas vozes do segundo mundo.
Calembour cobriu o rosto com as mãos. Quando voltou a olhar para os outros, eles
viram que tinha de fazer um grande esforço para controlar-se.
— Droga! — disse.
Todos ficaram calados.
Calembour apontou com a cabeça para a porta do armário.
— Dentro de pouco tempo poderemos contar de novo com Skytho — disse em voz
baixa. — Peço que sinalizem com a mão. Devemos aceitar a sugestão de Bell? A
alternativa seria uma fuga covarde.
Todos os tripulantes da nave exploradora, menos Calembour e o imediato, ergueram
a mão.
— Aceito. Faremos a viagem — disse Calembour.
Em seguida sentou numa mesa e olhou para Vyrner.
— Vai conosco, companheiro? — perguntou.
Vyrner deu uma risada sarcástica.
— Desde que alguém cuide do maahk, desde que os antis cuidem de seu terceiro
homem, desde que de vez em quando não seja obrigado a cuidar pessoalmente de cada
um de nossos hóspedes encantadores, aceitarei a proposta de Bell. Mas a pergunta
principal continua sem resposta.
Pegamoi Datras II disse em tom afetado:
— Fico encantado por estar nos seus pensamentos, terrano. Não sei mesmo o que
nós, os salvos, faríamos em nosso planeta.
— Todos os senhores, aconenses, antis e arcônidas — disse o psicólogo em tom
insistente. — No momento os senhores têm um poder muito grande e uma
responsabilidade que não é menor. Se forem os únicos homens a pousar em seu planeta,
dominarão o mesmo.
— Nem me lembrava disso — resmungou o aconense perplexo. — Seria um meio
de controlar nossos companheiros de raça, ajudá-los a transformar nosso planeta de novo
num mundo habitável, organizar um estado agrário. Vamos tomar uma decisão rápida,
Vyrner?
O navegador levantou a cabeça.
— Hum?
— Podem levar-me a Lepso ou, se for possível, a um planeta aconense.
Naturalmente estou disposto a ajudar com a nave. Além disso podem contar com minha
colaboração na solução de todos os problemas, embora não seja um astronauta. Prometo
que não viverei mais brincando com a arma energética.
O sorriso que cobriu seu rosto chegava a ser cordial.
— Concordo — murmurou Vyrner, embaraçado.
Imaginava a carga que assumia com isso. Todo o caminho de volta, com...
Interrompeu seus pensamentos e apontou para Korvey.
— Farei o voo de volta, dirigirei a nave num ziguezague maluco através da galáxia,
senhores. Mas em hipótese alguma com o estúpido conjunto biopositrônico.
— Já temos a lista dos equipamentos enviados por Bell — observou Karsola. —
Estamos em condições de adaptar os conjuntos positrônicos das duas naves. É um dia de
trabalho para dez homens. Isto o deixa mais tranquilo, Vyrner?
Vyrner Rustage acenou várias vezes com a cabeça. Sentiu-se bastante aliviado. Mas
apesar disso sentia pavor ao lembrar-se dos dias, semanas ou até meses em que teria de
largar os homens um por um em seus planetas. E Argoli?
— Dois votos a favor — disse Calembour. — E o senhor, futuro regente de planetas
neo-arcônidas, representante do soberano de Árcon?
— Sigo a maioria — respondeu Pegamoi em tom afetado. — Acho que os outros
senhores presentes também se manifestarão a favor. Mas aí surge outro problema.
Rustage estava com vontade de apertar o pescoço de Pegamoi.
— Qual é? — perguntou furioso. — Precisa de um mordomo?
— Acho que não. Tenho o senhor, Rustage. Mas o que poderei fazer para retribuir a
hospitalidade da nave e de seu competente navegador?
Argoli Erion agarrou o braço do navegador e puxou-o de volta ao assento. O terrano
teve de fazer um grande esforço para acalmar-se.
— Os siganeses nos acompanharão — disse Karsola.
— Vyrner, Falgur tan Gromand, Pegamoi Datras II — qual é sua posição em
relação ao plano, Gooz B?
O barnitense, um ser de pele verde, acenou com a cabeça.
— Verei se posso formar alguns comandos de resgate no sistema Ricolt. Irei com os
senhores.
Os antis também se juntaram aos outros. Rustage ainda estava assinalando os nomes
numa lista, quando o patriarca dos saltadores disse com a voz retumbante:
— Spanda Stam, Trepan e Walide Stam também irão. Têm uma boa nave. Vamos
reequipá-la e tentaremos salvar o maior número possível de clãs dos saltadores. O senhor
concorda com isto, terrano?
— Concordo — respondeu Vyrner martirizado.
Os antis e os aras também pareciam fascinados pela ideia de governar ou controlar
um planeta, em meio a milhões ou até bilhões de seres que tinham regredido à infância.
Concordaram.
— Quer dizer que podemos cumprir ambas as missões. Teria muito prazer em
destacar alguns homens para acompanhá-lo, Vyrner — mas o senhor sabe o que
aconteceria.
— Tudo bem! — disse Vyrner. — Vamos decolar quanto antes — faça o favor de
consertar o conjunto positrônico.
— Combinado, amigo Vyrner! — disse Calembour.
***
Dali em diante tudo foi feito com rapidez alucinante. Os hóspedes foram levados de
volta à Gerardus Mercator. Os terranos tinham usado um truque psicológico bem simples
— o apelo às fraquezas de cada criatura — para entusiasmar os indivíduos de outros
povos pela experiência.
As fraquezas de cada criatura — a possibilidade de assumir responsabilidades e
exercer o poder. Na situação em que se encontravam o poder era uma farsa, representava
apenas um pretexto, pois a ideia de dominar um planeta cheio de adultos que se
comportavam como crianças e eram refratários à educação não passava de uma faca de
dois gumes.
O conjunto biopositrônico foi consertado, peças importantes foram substituídas por
um conjunto positrônico. O conjunto já não poderia exercer tantas tarefas como no estado
normal, mas havia muitos aparelhos positrônicos secundários a bordo, cuja capacidade
podia ser aumentada ligando uns aos outros.
Finalmente a Gerardus Mercator partiu.
Seguiu com destino ao planeta Lepso ou, conforme a situação que se encontrasse
pela frente, a um outro mundo onde era possível encontrar espaçonaves e equipá-las.
Algumas destas naves seriam tripuladas por estranhos e partiriam em várias direções e
com destinos diferentes.
O veículo esférico correu em alta velocidade pela matéria difusa da ponte que ligava
as ilhas siderais, foi acelerando ao máximo de sua capacidade e entrou no espaço linear.
A outra nave ficou para trás.
Vyrner Rustage contemplou na tela o pontinho insignificante que se destacava
diante do vazio sem fim do espaço cósmico.
— Pois é — disse em tom pensativo. De repente sentia-se mais maduro ou mais
velho. De qualquer maneira estava mudado. — Temos um objetivo. Ou melhor, eu tenho.
A moça chamada Argoli estava sentada a seu lado, sobre a braçadeira da poltrona
anatômica, com o braço em seu pescoço.
— Também tenho um — disse. — Só aguardo o fim do voo.
— Ora... — disse Vyrner espantado. — Não iríamos à Terra depois de concluir
nossa missão?
A moça sorriu.
— Meu objetivo também é este. Você tinha alguma dúvida?
Vyrner ficou calado algum tempo antes de responder em tom embaraçado:
— Sim. Tive muitas dúvidas. Se quiser terei muito prazer em deixá-la em Lepso ou
outro planeta.
— Não — respondeu Argoli e sacudiu com a cabeça. — Quero ficar onde você
estiver. Não tenho o direito de abandoná-lo.
A EX 8989 desapareceu das telas.
A nave mercante Gerardus Mercator encontrava-se no espaço linear. Seu destino era
um ponto de um dos braços da galáxia habitada por débeis mentais.
***
Enquanto isso:
— ...terá pela frente uma vida agradável, mas nada tranquila. Se realmente quiser
arriscar-se a cumprir seu plano, isso representará a salvação de milhões de criaturas.
Soberanos regionais... uma espécie de reis governando súditos que não passam de débeis
mentais.
Calembour encarou o psicólogo, enquanto a nave exploradora acelerava e se
aproximava da velocidade da luz.
— A responsabilidade será maior que o prazer — disse o psicólogo.
Cylvadas deu de ombros.
— O problema é deles — murmurou. — Fizemos o que estava ao nosso alcance.
Eles têm de compreender que não havia outra possibilidade. Garantir a sobrevivência de
todos os povos desta galáxia, passinho após passinho.
A nave exploradora tinha uma missão especial Era a quarta vez que Calembour
apertava a tecla de partida do aparelho. A voz de Bell era bem nítida.
— ...e para o senhor, Mister Calembour, tenho uma tarefa tão interessante quanto
perigosa.
— Mantenha sua nave afastada da galáxia.
— Voe com seu pessoal para o Mundo dos Cem Sóis; naturalmente conhece os
dados e as coordenadas.
— Não faço a menor ideia de que efeitos o plasma produziu sobre os raios. Existem
inúmeras possibilidades que podemos imaginar e é possível que nenhuma delas se
verifique. Dirija-se ao mundo dos pos-bis para buscar auxílio, se possível.
— Fica a seu cargo decidir o que será feito depois disso.
— Desejo todas as felicidades possíveis ao senhor e a nós. Bem que precisamos. O
Império Solar, Rhodan e todos nós... nos encontramos pouco acima do zero absoluto. A
galáxia foi pacificada de uma maneira bastante duvidosa...
Calembour acenou com a cabeça para Cylvadas e Wokan e disse em tom resoluto:
— Vamos começar!
Os propulsores superpotentes da EX 8989 arremessaram a nave em direção ao
espaço. Em algum lugar, à sua frente, onde os albores da galáxia começam a confundir-se
com a escuridão do infinito, ficava seu destino.

***
**
*
Deixamos para trás o espaço cósmico e vamos
para a Terra — mais precisamente, para Terrânia City.
Lá, o pequeno grupo exausto e sobrecarregado, dirigido
por Galbraigth Deighton e Roi Danton, não pode cuidar
de tudo. Os problemas a serem resolvidos são muitos.
Um desconhecido tira proveito da situação
precária dos imunes. Quer o poder — e é ajudado pelos
Bandidos de Terrânia.
Os Bandidos de Terrânia — é este o titulo do
próximo volume da série Perry Rhodan.

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