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Sacerdote desde 1978, o Cónego João Seabra possui formação académica em Direito pela
Universidade de Lisboa, em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa e em Direito
Canónico pela Universidade Pontifícia de Salamanca. A sua obra de doutoramento foi
apresentada em Janeiro de 2008, na Faculdade de Direito Canónico da Universidade
Pontifícia Urbaniana, sob o título “A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de 20
de Abril de 1911”.
Cón. João Seabra (JS) – A situação jurídica da Igreja Católica antes de 1910 era a de uma
Igreja oficial num Estado confessional. Isso tinha consequências: por um lado, de protecção à
religião oficial do Estado; por outro, de pretensão do Estado de um poder concreto sobre a
Igreja que se manifestava em muitas coisas – era o Rei que nomeava os Bispos, embora
tivessem de ser aprovados pela Santa Sé (às vezes o governo não conseguia nomear os Bispos
que queria, mas a Santa Sé nunca conseguia nomear um Bispo que o governo não quisesse),
era o governo que nomeava os párocos e provia à sua sustentação, as paróquias eram
circunscrições eclesiásticas e civis…
Havia uma mistura entre o Estado e a Igreja que, evidentemente, trazia grandes desvantagens
para ambos. Nesse sentido, a Lei da Separação é de separação: os párocos deixavam de fazer
parte das juntas de freguesia, de exercer funções civis na vida social e política, os Bispos
deixavam de ser nomeados pelo Governo. O Papa pôde, quando houve condições propícias,
nomear Bispos sem qualquer interferência do Estado.
JS – Não é que a Lei da Separação deixasse fazer isso, mas porque não se respeitou o artigo
95.º, que autorizava que se mantivessem em funções cultuais os Bispos e párocos, nas
JS – Na Lei da Separação, o culto está entregue a umas comissões que o Ministério da Justiça
controla, mas a Igreja recusou aceitar as “cultuais”. Os párocos ficam todos estipendiados
numa lista nacional de pensões, a funcionar no Ministério das Finanças, mas recusaram-se a
receber essas pensões. Há muitas coisas na Lei que tornariam a Igreja completamente
submetida ao Estado e só não ficou assim porque adoptou uma prática de desobediência civil,
de resistência activa e passiva. O decreto de Moura Pinto, em 1918, no governo de Sidónio
Pais, acabou por dar forma jurídica à situação de facto, que se tinha criado.
JS – É muito importante para compreender o conflito que aconteceu perceber que a Igreja, os
Bispos, não pretendiam a manutenção do estatuto da religião de Estado – embora pudesse
haver, entre os Bispos, algum mais idoso ou mais ligado à monarquia que achassem que o
melhor era ter a Igreja ligado ao Estado -, não era essa a mentalidade dominante. Aparecem
mesmo antes da publicação da lei várias pessoas a desejar a separação, mas que fosse o
reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja, com respeito pela liberdade eclesiástica,
não uma escravização da Igreja ao Estado.
AE – Pode haver tendência para desvalorizar o impacto real da Lei da Separação na vida da
Igreja?
JS – Como escrevo no meu livro, a maior parte das pessoas que se referem à essa lei nunca a
leu. Dos que a viram e folhearam, a maior parte viu os primeiros quatro artigos: liberdade,
separação, que ninguém pode perseguir por causa de convicções religiosas, a República não
reconhece nenhum culto. A maioria fecha a lei no artigo 4.º, pensando que os conflitos do
passado devem ter sido culpa da intolerância da Igreja, mas não é disso que se trata. Trata-se
de uma lei de perseguição religiosa, uma perseguição feroz, violenta, que fez sofrer
muitíssimo Bispos e padres, que prejudicou a evangelização e que tinha como objectivo,
consciente e assumido, a extinção do catolicismo.
JS – Nós não devemos iludir-nos com os efeitos da perseguição: as perseguições fazem mal, a
Igreja ficou muito mal-tratada na perseguição republicana. Dezenas de casas religiosas foram
extintas, algumas congregações que se tinham restaurado com muita dificuldade, a seguir ao
Liberalismo, não mais voltaram e perdeu-se um património eclesiástico muito grande que
nunca foi devolvido inteiramente- o que implicou durante o século XX um esforço hercúleo
de construção, sacrificando gerações de padres. Perdeu-se também muita vida católica
associativa.
Claro que se ganhou uma certa unidade, porque havia dispersão do episcopado e alguma
Os Bispos do constitucionalismo monárquico, por outro lado, não eram propriamente pastores
dos seus padres, mas figuras públicas. Durante a perseguição, os Bispos vieram a revelar-se
grandes pastores, pensemos em D. Manuel Vieira de Matos, D. António Barbosa Leão, o Cón.
Manuel Luís Coelho da Silva, que depois foi Bispo de Coimbra, o Cón. José Alves Matoso,
depois Bispo da Guarda.
Homens que foram
realmente líderes dos seus
padres.
JS – A Lei da Separação
espoliava a Igreja, mas
concedia gratuitamente, em
utilização, as igrejas e
catedrais que fossem
necessárias para o culto - embora todos os bens da Igreja passassem para o Estado -, cinco
seminários (Braga, Porto, Coimbra, Évora e Lisboa, em São Vicente de Fora – note-se que ali
não funcionava um seminário desde 1905) e concedia aos Bispos e padres a utilização de
paços e casas paroquiais que fossem necessárias para a habitação. Também é verdade que
dizia que era apenas o estritamente necessário, mandando ocupar a outra parte por serviços
públicos, e não assegurava vivedoria aos sucessores.
Ainda assim, poderia ter-se tido como prioridade salvar essa parte do património, mas para
manter na posse dos Bispos e dos párocos essas partes dos paços episcopais e das casas
paroquiais que a Lei da Separação lhes concedia, a lei punha como condição que os
eclesiásticos não tivessem incorrido na pena de privação dos benefícios materiais concedidos
pelo Estado.
Ora, isso significava que os Bispos e padres que não aceitassem as cultuais, que não
aceitassem as pensões perdiam, necessariamente, o paço episcopal e a casa paroquial. Isso é
uma coisa muito pesada: quando os Bispos fazem a sua pastoral, em 1911, dizendo que não se
podem aceitar as cultuais, sabem que vão ficar sem paço episcopal; quando os párocos
obedecem à pastoral do Bispo, sabem que vão perder a casa paroquial – estamos a falar de
homens de idade, que vivem há 30 anos numa casa ampla, confortável, que têm lá o pai e a
mãe e que ficam sem casa de um dia para o outro. Isto aconteceu de Norte a Sul do país, para
não ceder na libertas ecclesiae, na liberdade de Igreja.
O que estava em causa era uma forma de governo eclesial contrária à doutrina da Igreja e uma
JS – A separação quer dizer coisas diferentes. Normalmente usamos a expressão para nos
referirmos ao sistema norte-americano, onde desde o primeiro instante jamais houve uma
religião de Estado. Esta separação é acompanhada por um grande respeito pela experiência
religiosa, pelo reconhecimento da individualidade e da existência das comunidades. Neste
sentido, a doutrina católica foi aceitando que um Estado estivesse separado da Igreja, nesta
situação, e ficou configurada com Leão XIII, com a doutrina da tolerância, do ralliement.
A segunda lei da separação relevante, que é a lei brasileira (1890), que também surgiu num
momento de convulsão política, reconhecia a personalidade jurídica da Igreja, a validade do
casamento católico para efeitos civis, mantinha integralmente o património eclesial.
Havia muitas modalidades jurídicas, nos vários sistemas, de leis de separação nas quais a
Igreja não era perseguida. O modelo de Afonso Costa é o modelo da separação francesa, que é
uma lei de sujeição da Igreja ao Estado.
Por isso vale a pena perceber bem o que quer dizer a separação, porque nós imitamos a
França, em pior. Nos EUA, quando foi assinada a Declaração de Independência, em
Filadélfia, o Mayor da cidade deu uma festa, que incluía uma mesa com comida kosher, para
que todos os judeus pudessem vir. Quando, uns anos depois, Napoleão quis estender o regime
da Concordata a todas as religiões, convocou uma reunião com os membros do Grande
Rabinato de Paris e a reunião foi marcada para o Sábado.
Estes dois episódios dão a diferença do que quer dizer a separação: num caso, o Estado
respeita a natureza da experiência religiosa, deixa que as religiões sejam como são; no caso
francês, o Estado impõe uma sua maneira de ver o mundo – a ética republicana de que agora
tanto se fala – e as religiões têm de se sujeitar à visão que o Estado tem da religião, porque o
Estado sabe como é que as religiões devem ser, ele é que diz como é que se organizam. Esta
foi a mentalidade em que Afonso Costa pegou, transformando a Lei da Separação numa lei de
perseguição à Igreja.
JS – Nós temos dificuldade em perceber até que ponto é que o anticlericalismo ideológico
parecia legítimo aos republicanos. Para eles era absolutamente claro que a religião era uma
coisa má, portanto proibir, perseguir e dificultar a religião era uma questão cívica, não havia
nada contra a liberdade em impedir a superstição, como eles diziam. É como se a promoção
da religião fosse uma actividade ilícita, que devia ser combatida por todos os meios e todos os
meios eram legítimos.
AE – Mas essa leitura escapa às análises que se fazem sobre esta matéria?