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Numa noite de 1991, Sibylle Lacan,

filha do famoso teórico da psica11áJise


Jacques Lacan, escreve de uma só vez
este livro - texto frag1nentado,
facebok.com/lacanempdf
carregado de forte e1noção, que a
at1tora afirma não se tratar de t11n
diário, 1nas sim de um pitzzle. •

Lembra11ças sofridas qt1e expõem sua


relação de amor e ódio co1n urn pai
UM PAI
todo-poderoso, que amava se1n
restrições outra filha, Juditl1, fruto de
seu segundo casa1nento.
Um Pai é, acima de tudo, t1m
desabafo doloroso. Laca11 foi, com
SibylJe, t1m pai ausente. Já separado da
primeira mull1er 11a época do seu
11ascime11to, Sibylle e set1s dois irmãos
• • •
1mag111avam-no se1npre em viagem.

Set1s e11contros restringiam-se a
esparsos jantares requintados e
posteriores decepções.
Jacques Lacan, ao se casar pela
8Cgt111cla vez com Sylvia Bataille, 1
l)Ot1co co11tato ma11tinha com os fill1os r.�,aril
( I<) !)ri 1neiro casame11to. Conta Si bylle '
ulttJm
,, 11t"' ,:tté 1nesmo para at1rnentar a pensão ENC O N!R AR O
É FÁCIL
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LIVflO
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Leia também: Sibylle Lacan
CESARE PAVESE
O Oficio de Ví"ver

ALBERTO MORAVIA
Diário Europeu

BREECE D'J. PANCAKE


Contos Cortantes
UM PAI
puzzle
CHRISTOPH RANSMAYR
O Ultimo Mundo
Tradução
·Maria Amália Ramos

l
'
Copyright© 1994 by Editions Galli1nard
Capa: projeto gráfico de Leonardo Carvalho
Editoração eletrônica: In1age1n Virtual, Nova Friburgo, RJ
1996
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Lacan, Sibylle
Ll29p Um pai: puzzle / Sibylle Lacan; tradução de Maria Amália
Ramos.-Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1996.
I 08p.

Ti·adução ele: Un pere


ISBN 85-286-0556-6

1. Lacan, Jacques, 1901-1981. 2. Psicanalistas - França


-Biografia. 3. Psicanálise. I. 'Titulo. a todos que acreditaram em mi1n

CDD-921.4
95-2182 CDU-92(LACAN, J.)

Todos os direitos reservados pela:


EDITORA BERTRAND BRASIL S.A.
Av. Rio Branco, 99-20º a11dar-Centro
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' . . ., . . .. .
Advertência 9

Um Pai 13

Epílogo 99

'

ADVERTÊNCIA

Este livro não é um romance ou uma (auto)bio­


grafia romanceada. Não tem nada de ficção. Nele não
será encontrado nenhum detalhe inventado a fim de
embelezar a narração ou encorpar o texto. Meu obje­
tivo foi outro: fazer surgir em minha memória tudo o
que se passou de importante, de forte trágico ou
cômico entre meu pai e eu. Falar do pai que Jacques
Lacan foi para mim e não do homem em geral, muito
menos do psicanalista. Trata-se de uma obra puramen­
te subjetiva, fundada tanto nas minhas lembranças da­
quela época quanto na visão que hoje tenho das coisas.
• Escrevi a primeira página de uma só vez, numa
., noite de outubro de 1991. Em certo sentido, ela ficou,
por isso, a mais "perfeita". Sempre escrevi assim, de ma­
neira espontânea, impulsiva, sem correções ulteriores.
Para mim, era uma quest�o de princípio. Infelizmente,

9
isso só funciona para textos extremamente curtos, e, neste ''Miller" é o sobrenome que Jt1dith adotará �1pós seu
caso, foi preciso em seguida trabalhar: corrigir, procurar casamento com Jacques-Alain Miller.
a palavra certa, depurar ao máximo a narração. Sem con­ Quanto aos lugares, acredito estar claro, no textc>,
tar o extenuante esforço de memória.. que rue Jadin designa o étpartamento onde moramos,
O subtítulo puzzle vem do fato de o texto não ter minha irmã, meu irmão e eu, junto com mamãe, até
sido escrito de maneira linear. Fui escrevendo ''peda­ a. idade adulta, qu,:1ndo nos separamos. Qt1anto à rue
ços" em desordem ou, melhor, seguindo a ordem de de Lille, será que há quem não saiba que o consultório
sua imperiosa aparição na memória, decidindo que do doutor Lacan ficava na 1·ite de Lille, 5, em Paris?
não poderia ser de outra forma só no final definir
seus lugares. Escrevi mais ou menos ''às cegas'', sem
esboço,* não sabendo de antemão a que quadro, a que
imagem eu chegaria, quando fossem juntados os pe­
daços, as partes, as peças.
Eu gostaria ainda de apresentar ao leitor não-ini­
ciado algumas indicações sobre a topografia familiar.
''Blondin'' é o sobrenome de solteira de minha mãe,
que ela retomou q.uando se divorciou de meu pai. Ma­
mãe foi a primeira esposa de Jacques Lacan, meu pai,
com quem teve três filhos: Caroline, Thibaute eu.''Ba­
taille'' é o sobrenome da segunda esposa de meu pai.
Eles tiveram uma filha, Judith, que recebeu o sobre­
nome Bataille, pois quando nasceu seus pais ainda
não estavam divorciados dos respectivos parceiros.

* No original, "sans dess(e)in", onde "dessein" significa projeto,


e "dessin", desenho. (N. da T.)

10 11
-- -- -- ·- ----�- --
- - ----�
- -
- - -- -

UM PAI
Quando nasci meu pai já não estava mais lá. Eu
até poderia afirmar que, quando fui concebida, ele já
estava em outro lugar; já não vivia de fato com minha
mãe. Um encontro no campo entre marido e mulher,
quando tudo já estava acabado, está na origem de meu
nascimento. Sou fruto do desespero, alguns dirão do
desejo, mas nesses eu não acredito.
Por que, então, essa necessidade de falar de meu
pai, uma vez que foi minha mãe que eu amei e conti­
nuo a amar após sua morte, após a morte deles?
Afirmação de minha filiação, esnobismo eu
sou a filha de Lacan ou defesa do clã Blondin-Lacan
diante do clã Bataille-Miller?
., Seja lá o que for, nós éramos, minha irmã, que já
não vive mais, meu irmão mais velho e eu, os únicos
que possuíam o nome ·Lacan. E é bem disso que se
trata.

15

Segundo minhas lembrançé1s, só conheci meu pai


após a guerra (nasci no final de 1940). Não sei o que
aconteceu, na realidade, e nunca interroguei mamãe
sobre isso. Provavelmente, ele "passou". Em minha
realidade, existia mamãe, e ponto final. Aliás, eu não
sentia nenhuma falta dele, já que nunca havia sido de
outro jeito. Sabíamos que tínhamos um pai, mas, ap 4-
rentemente, os pais não estavam lá. Para nós, mamãe
era tudo: o amor, a segurança, a autoridade.
Uma imagem dessa época fixou-se em minha me­
mória, como uma fotografia que eu tivesse tirado e
conservado: a silhueta de meu pai, diante da moldura
• da porta da entrada, numa quinta-feira em que veio
nos visitar: imenso, envolto num vasto sobretudo, ali
., parado e já abatido por não sei que cansaço. Um hábito
se tinha instaui;-ado: ele vinha almoçar na rue Jadin,
uma vez por semana.
Tratava minha mãe formalmente e a chamava de

17
''minha cara". Mamãe, quando se referia a ele, dizia
''Lacan .,,
Ela nos aconselhara, no início do ano escolar,
quando preenchíamos o questionário ritual, a escre­
ver: ''profissão do pai: médico" . Nesta época, a psi·
canálise não estava nada longe do charlatanismo.

Foi em Noirmoutier, onde passávamos regular­


mente as férias de verão, que o ''anormal" se insinou
em nossas vidas. Algu ns amiguinhos conformistas nos
contaram que nossos pais eram: divorciados e que, de­
vido a isso, mamãe iria para o inferno(!). Não sei qual
das duas informações me chocou mais. Na hora da
sesta, meu irmão e eu tivemos um longo conciliábulo.

'

18 19
. Os ano s passavam. Mamãe de sempenhava todos
os papéi s. Nós éramos "lindos", . inteligente s e íamos
bem na e scola. Ela se orgulhava de nós, mas espera­
va que crescês semos. Desde o tempo da guerra ela ti-
11ha uma obsessão: nos Iev;:1r todo s os três, é:lté a idade
él: dulta.
No s aniversário s, papai dava-no s presente s ma­
ravilhosos (acho que compreendi, bem mais tarde, que
não era ele quem os e scolhia).

21 '
Num tempo intemporal, num espaço indeter­
minado mas meu irmão me disse há alguns anos
que não se tratava de um sonho aconteceu algo
extraordinário. Infância . . . Bretanha . . . Thibaut, meu
pai e eu. O que nós fazíamos lá, junto com meu pai?
Onde estava minha mãe? Por que, em minhas lem­
branças, Caroline não aparece? Nós três estávamos vi­
sitando um castelo medieval. Em uma torre, Thibaut
descia co1·rendo as escadas em caracol. Onde eu me
situava exatamente em relação a ele? Onde estava meu
pai? Mas eu vejo isto: em uma curva, do lado direito,
há uma abertura que dá para o vazio, uma porta sem
· borda nem parapeito. Thibaut, num impulso de garo­
to, se precipita. Meu pai o agarra pelas roupas. Milagre!
..
Segunda cena: quando encontramos mamãe, eu
lhe conto, transtornada, queThibautquase tinha mor­
rido. Nenhum grito, nenhum choro, aparentemente
nenhuma emoção. Não entendo. Nunca entendi. Meu

23


irmão não guardou nenhuma lembrança trágica desse
acontecimento. Meu pai nunca mais falou sobre isso.
Mé11nãe, que 11ão reagiu na época, também jamais evo­
cou o terrível drama, por tão pouco evitado.
Formentera é o nome da ilha que escolhi como
segundo lugar, como local de férias: FORTE-ME-EN­
TERRA.

A vida em casa erél regida pelo direito de primo­


genitura. Mamãe reproduzia, assim, o que vivera em
sua infância como eu, ela tinha sido a mais nova -
e considerava isso ''normal'', inevitável, enfim, a ordem
natural das coisas. No topo, ficava Caroline, quatro
anos mais velha do que eu (embora a distância pare­
cesse bem maior). Ela possuía todas as qualidades...
e todos os privilégios. Ainda jovem, parecia uma mu­
lher, alta, cabelos longos e espessos, louros, de uma
tonalidade rara em nossa região, plena como um Re­
noir (enquanto eu sempre fui a menorzinha da classe,
uma mistura de feminilidade e jeito de menino), bela
na opinião de todos (eu só conseguia ser "bonitinha''),
incrivelmente bem-dotada e inteligente sempre ex­
celente aluna, primeira classificada em concurso na­
• cional, estudos universitários brilhantes (eu era boa
aluna, mas com muito esforço). Resumindo, Caroline
era uma deusa encarnada, que vivia num mundo à

24 25
parte, mais próxima do de mamãe do que do nosso. Talvez essa opressão permanente que sofri por
''Nosso" significa meu e de meu irmão, que fomos, parte de meu irmão e minha irmã explique meu amor
durante toda a infância, "os menores". No entanto, à justiça e minha revolta diante de todas as humilha­
operava-se ainda outra divisão: Thibaut, além de ser ções coisas boas em si mesmas , mas o que dizer
um ano mais velho do que eu, era menino vantagem sobre minha necessidade excessiva de ''reconhecimen­
inco11testável aos olhos de mamãe, apesar das idéias to'' e minhé:1 extrema sensibilidade, beirando mesmo a
que ela defendia sobre é:l igualdade dos sexos. Assim, susceptibilidade?
era natural que ele não arrumasse a cama, jamais pu­ Meu pai foi mais longe em seu diagnóstico: assis­
sesse a mesa, além de outros "detalhes" que feriam pro­ tindo um dia, estupefato, a esse jogo cruel e destrutivo,
fundamente meu senso de justiça. ele interveio em meu favor e, dirigindo-se a Thibaut e
As vezes, meu irmão e eu nos aliávamos contra a Caroline, terminou afirmando: ''Vocês vão torná-la
nossa irmã, que não titubeava, em casos extremos, em uma idiota".
empregar a força para reinar; a situação mais comum, E se um pai servisse em primeiro lugar para isto:
entretanto a atmosfera dominante, se ouso afirmar fazer j ustiça. . .
- era a demonstração em cada ocasião de minha in­
ferioridade. A fórmula consagrada a meu respeito -
uma ''brincadeira'', lógico, e mamãe sempre ria disso
- era "boba, feia e má". Outra frase freqüente era:
''Sibylle é tudo, menos ladra'' (!). E claro que tudo isso
seria muito engraçado se a "vítima'' não fosse sempre
a mesma ou se, às vezes, al gum cumprimento, ou gesto
de carinho, viesse compensar essa obstiné:1ção em me
rebaixar. Nas brigas, mesmo qt1ando mamãe achava
' que eu tinha razão, seu veredicto nunca era público,
para não ofender os mais velhos; o mesmo 11ão acon­
tecia quando et1 era considerada a culpada.

26 27
Eu ficava sozinha com meu pai quando saíamos
para jantar. Ele me levava a grandes restaurantes, e,
nessa ocasião, eu degustava pratos de luxo: ostras, la­
gostas e sobremesas deliciosas o cúmulo da volúpia
para mim era, então, merengue gelado. O principal,
entretanto, era estar com meu ·pai, e eu me sentia bem.
Ele era atento, amoroso, "respeitoso' '. Enfim �u me
sentia uma pessoa, inteira. Nossa conversa era entre­
cortada por silêncios tranqüilos, e, às vezes, sobre a
mesa, eu pegava a mão dele. Ele nunca me falava de
sua vida particular e eu não fazia perguntas a esse res­
peito, nem me passava pela cabeça fazê-lo. Ele surgia
do "nada", e eu não estranhava nem um pouco. O es­
sencial era ele estar lá, e eu ficava "radiante, encantada'',
como disse o poeta.


Eu me vejo, ainda adolescente, como se o tempo
não existisse, chegando para um almoço familiar, e,
antes de me sentar, proclamando em voz alta (nin­
guém tinha perguntado nada): "Eu nunca me casarei!''
Declaração exemplar (visto o lugar que me era
dado naquela mesa); mas nunca consegui me recordar
o que poderia ter provocado es.se grito do fundo do
coração, essa declaração pública, essa pedra jogada nas
águas paradas e tranqüilas de uma refeição comum de
uma família (quase) comum.

31 '
Logo que eu nasci (ou será que mamãe ainda es­
tava grávida de mim?), meu pai anunciou alegremente
à minha mãe, com aquela crueldade das crianças feli­
zes, que ele ia ter um filho. Não sei qual foi a atitude
de minha mãe nem as palavras que ela pronunciou:
teria deixado transp.1recer seu sofrimento ou reprova­
ra-o, ficara furiosa ou se mostrara forte e digna, guar­
dando só para ela esse desmoronamento interior, essa
impressão de ter recebido o golpe de misericórdia, a
morte invadindo a alma? A única coisa que sei, porque
mamãe me contou, é que meu pai lhe disse, à guisa
de conclusão: "Eu lhe devolverei isto multiplicado por
, ,
cem ( 1. ) .
Minha mãe, sempre muito direita e fiel, ficou so­
zinha com seus três filhos pequenos num período em
que a guerra estava instalada, o ocupante, presente, e
se anunciava um período de horror planetário, cujo
fim não se podia prever.

33

. '
Quando eu nasci, mamãe quase não cuidou de
mim; ela não me desejara e estava em outro lugar, no
fundo de seu abismo pessoal. Posso guardar-lhe rancor
por isso? No entanto, acredito que toda a minha
vida foi marcada por essél vinda ao mundo em solidão
afetiva.
Um ano depois de meu nascimento, a pedido de
minha mãe, foi homologado o divórcio.
Foi por ocasião do casamento de minha irmã mais
velha eu estava com dezessete anos nessa época -
que fiquei sabendo da existência de Judith, menos de
um ano mais nova do que eu. Mamãe nos havia es­
condido o fato, porque, segundo nos explicou, meu pai
não se ''casara''; à época era assim. Mas acredito que
outros rancores, outros sofrimentos tenham motivado
ess� silêncio. Judith, afirmou meu pai, queria e devia
assistir ao casamento da irmã. Mamãe cedeu.
Essa notícia me perturbou. Tinha outra irmã e
estava impaciente para conhecê-la.
O futuro me reservava muitas desilusões . . .

34 35
Meu primeiro encontro com Judith me arrasou.
Ela era tão amável, tão perfeita, e eu, tão desajeitada,
tão inábil. Ela era a socialidade, a descontração, eu, a
camponesa do Danúbio.* Ela parecia uma mulher, eu
ainda tinha cara de criança. Esse sentimento durou
muito tempo. Posteriormente, encontrei esse espécime
feminino e sei o que dele esperar. Mas, naquela época,
eu me sentia acabrunhada, culpada. E, ainda por cima,
ela fazia filosofia, e eu apen� línguas estrangeiras.
Quantas vezes ela cruzou comigo, na Sorbonne, e fin­
giu não me reconhecer. Para mim era o martírio, pois
não tinha ainda a lucidez necessária para condená-la.
Em duas ocasiões eu passei férias com meu pai. A pri­
meira vez foi em Saint-Tropez, a segunda, na Itália,
numa praia, mas não lembro mais o nome. Em Saint-

* Referência à fábula de La Fontaine: O Camponês do Danúbio.
(N. da T.)

37
Tropez, Judith estava lá. Ela me fez perceber toda a
minha mediocridade. Uma lembrança alucinada é a
visão de meu pai e Judith dançando, como dois namo­
rados, em um baile popular em R amatuelle. Mas em
que mundo eu tinha caído? Um pai não é um pai? Na
Itália, Judith veio nos encontrar, voltando de uma via­
gem à Grécia com colegas de faculdade, que pareciam,
todos eles, apaixonados por ela. Vários haviam sido
descartados em Atenas; os eleitos ficaram até o fim. Quando tínhamos dezesseis, dezoito anos (?),
Meu pai mostrava-se orgulhoso dessa história. Comi­ mamãe perguntou a meu irmão e a mim se queríamos
go, nenhuma confidência. Ela era a rainha. Por acaso nos chamar Blondin. Instintivamente, recusamos.
eu conhecia a Grécia? Eu tinha algum pretendente?
Naquele verão, pela primeira vez, fiquei, misteriosa­
mente, doente: um esgotamento geral, falta de desejo,
falta de prazer, uma perturbação horrível. Para me
tranqüilizar, eu pt1nha a culpa no calor. Quando re­
tornei a Paris, tudo voltou ao normal.

38 39
E m abril de 1 962 eu estava com vinte e um
élnos fiquei doente. 1udo levava a acreditar que fos­
se uma gripe, e foi disso que me trataram. Fiquei de
cama durante uma semana, depois a febre desapare­
ceu, e me declararam curada. Outros sintomas, entre­
tanto, persistiam: imensa fadiga física eu tinha ne­
cessidade de doze horas de sono e intelectual: sentia
certa dificuldade para acompanhar meus cursos e mais
ainda para memorizar. De manhã até a noite, experi-
mentava a impressão insuportável de ter algodão den-
tro da cabeça. N ão conseguia mais ler. Nem o cinema
me estimulava. Em resumo, estava sem energia, só me
restando a vontade de sarar. Acreditava que ''tinha"
algu ma coisa. Fui a muitos médicos clínicos gerais
e especialistas e fiz inúmeros exames. Nada foi de­
tectado. No entanto, consegui terminar meus estudos,
• aproveitando o que já sabia, como uma sonâmbula.
Eu deveria viajar para Moscou em dezembro, e

41 '
por um período de um ano, aperfeiçoando meu russo, estava, vi, de repente, uma mulher saindo de lá, com
mas também para gozar de um ano de transição, uma passos rápidos. Alguns segundos depois, saiu um ho­
espécie de férias, antes de entrar na vida ativa. Esse mem. Estupefata, reconheci meu pai.
projeto era muito importante para mim, e minha an­ Como pudera ele me impingir esse suplício, a fim
gústia aument;:1va com a passagem do tempo, só de de satisfazer,primeiro, o seu desejo ? Como se atrevera
pensar em não conseguir realizá-lo. a vir transar na rue Jadin, a dois passos da residência
De acordo com minhas le1nbré1nças, foi mamãe de seus filhos e de sua ex-mulher ? Completamente
quem teve a idéia de pedir é1 ajuda de meu pai. Marcado indignada, me afastei da janela.
um encontro para determiné1do dia, determinada l1ora,
na rueJadin, fiquei esperé1ndo ansiosamente a entrevista.
Se todos aqueles médicos estúpidos não tinham conse­
guido curar-me, qt1em, a não ser meu pai este emi­
nente psicanalista cujo gênio eu já não punha em dúvida
- poderia escutar-me, salvar-me? A situação transfor­
mava-se em pesadelo, pois as pessoas que me cercavam,
como não conseguiam compreender nada dos males de
que me queixava, pareciam desconfiar de que se tratasse
de moleza, preguiça e até mesmo impostura.
Vejo-me na sacada, na hora combinada, esprei­
tando a chegada de meu pai. O tempo passava, e ele
não chegava. Minha impaciência ia aumentando. Co­
mo ele podia estar atrasado para um encontro nessas
circunstâncias?
A rue Jadi11 é curta, podendo ser vista inteirinha.
A alguns metros de casa havia um hotel de encontros, .
discreto, freqüentado por pessoas ''chiques". De onde

42 43
A continuação da história ? Compreensivelmente,
minhas lembranças se embaralham. Tudo o que regis­
trei do discurso que me fez meu pai naquele dia é o
seguinte: separar-me de minha mãe me faria muito
bem, eu devia partir, sem hesitação. Fiquei completa­
mente desconcertada. Que relação poderia haver entre
minha mãe e aquele estado horroroso em que eu me
encontrava? Afinal, o que ele sabia sobre as minhas
•. .relações com mamãe? Durante toda a minha infância
e a adolescência, eu sempre demonstrara grande inde­
pendência, passando a maior parte do tempo em com­
panhia de amigos da minha idade, mal percebendo o
papel primordial representado por uma mãe, e, ainda
assim, só por meio de sua existência e presença. Nos
períodos de férias, desde pequenininha., eu sempre me
separava de minha mãe sem problemas, como a maio­
• ria das crianças, completamente absorvida pelo prazer
que me esperava. (Já os momentos de reencontro, na

45
estação, eu me lembro, sempre me emocionaram mui­
to. Eu a via de longe, subindo a plataforma, alt.:1 , esbelta
e loura, atenta, seu andar traduzindo todo o amor de
uma mãe que ia, er1fim, poder abraçar a filha.)
Portanto, a sagrada família inteira me estimulava
a partir meu pai, meu tio materno, cirurgião, um
primo neurologista, t1ma grande amiga de meu tio,
médica emérita que me examinara, e minha própria
mãe. Embarquei, como previsto, no dia 18 de dezem­ Quand o vo lte i da U ni ão So vi ét ic a, no in íc io de
bro de 1962, decidida a não falar mais nada sobre o 1 964 ' meu es ta do em na da m ud ar a. C om o m e pr om e-
ni ng ué m so br e m eu so fr im en to e, cu -
assunto, com ninguém, durante um ano, acontecesse tera, não falei a
o que acontecesse. Comecei a escrever meu diário no en te , ni ng ué m pe rc eb eu na da . N a em ba ix ad a
riosam
próprio trem que me levava para o outro lado da Eu­ an ça , on de tr ab al ha va , eu ha vi a co ns e gu id o en ­
da Fr
m , po is as ta re fa s fic av am ab ai xo da m in ha
ropa, sentindo que, para mim, essa e1·a a única maneira ga na r be
tê nc ia e da m in ha fo rm aç ão . Q ua nt o às pe ss oa s
de não afundar completamente, de não me perder de compe
co nt re i e qu e fre qü en te i, ru ss os e fr an ce se s, ap a­
uma vez escrever, já que eu não conseguia ler, fixar que en
te vi am em m im m ui ta s qu al id ad es nu nc a
os dias, já que eu não tinha mais memória, agarrar as rentemen
ej ad a se nd o at é co ns id er ad a "a le gr e' ',
palavras antes que elas me escapassem, encontrar um fui tão cort
um a pa ss ag em de m eu di ár io , qu e re li
reflexo, uma prova de minha existência em pedaços de como mostra
, em qu e eu ha vi a an ot ad o, su rp re en ­
papel, em páginas rascunhadas sem a menor preocu­ h á alguns anos
pação estética. Tentar sobreviver, apenas. dentem en te , a ob se rv aç ão d' e um a am ig a ru ss a, a m eu
respei to : "k ak ay a ve ss el ay a! " To da se m an a, du ra nt e um
ano, en vi ei pa ra m am ãe , po r m ei o da m al a di pl om á­
tica, um a ca rta em qu e eu co nt av a tu do o qu e po di a
interess á- la ou di ve rt i-l a, se m nu nc a fa ze r a m en or al u­

são a m eu s m al es . E la po de ria ac re di ta r qu e eu es -

46 47
,.
tivesse ''curada''. E bom lembrar que, em tempos nor- pai, considerando meu pedido, diz que vai se "infor­
mais, et.1: teria feito enormes progressos em russo, con­ mar''. Tomadas as informações, ele me explica que as
siderando a boa base adquirida na Escola de Línguas sonoterapias criam dependência e que devem ser evi­
Orientais, m eus dons para as línguas vivas em geral e, tadas (retrospectivamente, eu me perguntei muitas ve­
principalmente, � fato de estai- fora das horas de traba­ zes como meu pai, um psiquiatra, poderia ter tido ne­
lho, mergulhada na�vida russa. Isso, entretanto, não cessidade de fazer uma pesquisa sobre esse assunto;
ocorreu, e eu sempre lamentei. No fim de minha es­ mas deixemos pra lá). Foi então, e só nesse momento,
tada, eu apenas co,rseguia entender e me fazer enten­ que ele me propôs fazer análise. ''Eu não posso tratar
der com dificuldade e falhas de memória, b em longe de você'', ele se sentiu obrigado a me explicar (como
de falar correntemente o russo. se eu fosse tão ignorante, que não soubesse disso), ''mas
Mas voltem-os él Pé1ris, ao mês de janeiro de 1 964. vou lhe indicar alguém''.
S entindo-me incapaz de assumir um traball10, decidi Ele me encaminhou para a Madame A., com
· voltar à universidade para ganhar tempo e testar de quem fiquei durante aproximadamente um ano; na­
novo minha capacidade intelectual. Das pessoas que da' mudava, o trajeto de metrô me esgotava. Inter­
m e cercavam, escondi o problema de saúde, esperan­ rompi. Após certo tempo, reitero minha queixa. Ele
do, num extremo esforço, tentar, pela última vez, re­ escolhe outra analista para mim, Madame P., com
solvê-lo sozinha. Mais c edo do que eu esperava, fui quem me tratei durante vários anos. Antes de pro­
obrigada a renunciar. Era impossível estudar, apren­ curá-la, eu havia encontrado aquele que seria meu
der, gravar. Sempre o mesmo esgotamento, o mesmo primeiro amante e, graças a ele, eu começara uma
estado de moleza, uma estranha ausência de emoção. lenta recuperação : era a primeira pessoa que me es­
Minha vida era um inferno. cutava e que acreditava em mim, sem tentar com­
Acabei tudo revelando; desespero de minha mãe, preender, sem duvidar de minhas palavras, ele me
gozação de meu irmão, SOS a meu pai. Peço-lhe uma amava do jeito que eu era, apaixonadamente. (Faço
sonoterapia, sem saber, aliás, exatamente o que isso questão de aqui, ao longo do tempo e do espaço, ma­
significava; minha obsessão: dormir o maior tempo nifestar-lhe meu reconhecimento.)
possível, para despertar repousada . . . e curada. Meu A Madame P. era uma pessoa amável e simpática,

48 49 '
e creio que o trabalho que fiz com ela foi muito útil.
O problema é que, com o passar dos anos, for am-se
acumulando indícios, e chegou um momento em que
tive certeza, de que ela era a amante de meu pai. Aban­
donei-a imediatamente.
Alguns meses depois, um amigo se referiu a essa
ligação na minha frente e então compreendi que toda
a Paris psicanalítica estava a par disso, salvo eu.
(Eu mesma escolhi meu terceiro analista' mas exi- Mais ou menos dois anos após a manifestação de
gi dele que isso ficasse em segredo.) minha "doença'', interroguei meu pai sobre o assunto
(''Mas o que eu tenho ?''). Ele me respondeu: se es­
tivéssemos no século dezenove, diriam que você é neu-
.
1·astenica.
,'\

( Outra pessoa, cujo nome �ão vou citar, refere-se


a "melancolia'' e afirma que não tem cura. Meu analis­
ta não estava de acordo com este último ponto.)

' ·.

..

50 51 '
Antes de começar a trabalhar seriamente, o que
fiz com muita dificuldade, isto é, durante o período
que antecede 1975, ''consultei'' periodicamente meu
pai por causa das dúvidas que eu tinha sobre a orige1n
de minha doença, devido aos sintomas puramente físi­
cos: cansaço permanente, imensa.necessidade de sono,
grande decolagem horária em relação à norma em mi­
nha vida quotidiana, etc. Sua atitude, nessas ocasiões,
costumava variar. Em geral ele falava algo do tipo ''E
como vai indo sua análise?", o que me deixava triste e
perplexa. Em alguns momentos em que conseguia
convencê-lo do caráter insuportável, insuperável e
imutável de meus males, ele igualmente me enviou a
um clínico geral, recomendando-me que eu lhe dis­
sesse para se limitar à sua especialidade. Enfim, ele
esperava que o médico agisse como médico e. não se
perdesse em considerações psicológicas.
E quando, um dia, eu lhe perguntei se eu não

53
sofria, talvez, de uma afecção orgânica do cérebro, ele
me respondeu que, se fosse o caso, já teria sido cons­
tatado, fazendo, implicitamente, alusão à evolução fu­
nesta desse tipo de lesão. Não sei o que era mais forte,
a estupefação ou o pavor.

Eu tinha uns trinta anos. Era uma época em que


não estava trabalhando, por me sentir incapaz de fazê­
lo; uma época de vazio e de dor. A época de Montpar­
nasse, a errância. Um dia em que eu estava no Café
Select, um velho conhecido um rapaz que se tor­
nara psicanalista veio em minha direção, logo que
me viu. Tinha uma notícia interessante para me dar.
)
Você sabe, disse ele, que no Who s Who seu pai só tem
uma filha, Judith ? Tudo escureceu em minha cabeça.
A cólera só veio mais tarde.
(Algu ns dias depois, senti a necessidade de ir eu
mesma conferir, na editora: o amigo-que-me-queria­
bem estava certo.)

54 55 '
Odiei meu pai durante muitos anos. Poderia ter
sido diferente? Ele não havia nos abandonado, a todos
-mamãe, minha irmã, meu irmão e eu com todos
os estragos que essa ausência havia produzido? Só Ca­
roline parecia ter saído ilesa ao menos para um ob­
servador externo , ela nunca se abriu comigo. Lem­
brem-se de que Caroline tinha sido a única a ter um
pai e uma mãe durante a primeira infância. Os alicer­
ces j á estavam feitos. . .
Esse ressentimento, essa fúria apareceram relati-
vamente tarde em minha análise. Levei muito tempo
para me revoltar. Eu o culpava pelo desastre familiar,
à medida que, pouco a pouco, ia tendo consciência
disso, e pelo meu desmoronamento pessoal no final da
adolescência. Conheço a importância que ele atribuía
ao "discurso da mãe'', mas por que mamãe deveria ficar
contando ''estórias"? Aliás, ela não nos contava muita
coisa, ela nunca nos ''jogou" contra ele. Os fatos fala-

57
vam por si mesmos. Ele quase não cuid
ava d e nós e
permanecera totalmente ausente durante os
primeiros
anos de nossa vida, d a minl1a e d a de T h
... .
ib au t. Foi
mamae quem nos criou e que nos amou to
dos os dias
de nossa vida. Meu pai vivia a sua vida,
a sua obra, e
nossa vi d a era como um acidente dentro
de su a his­
tória, u m a face de seu passado, que, no
entanto, ele
não podia ignorar. Sei que el e nos amava, d
o jeito dele.
Era um pai intermitente, em pontilhado.
Sei também Um dia, marquei um encontro com meu pai; um
que tinha consciência dessa falta conosco, /

tal como se jantar, como de hábito. E urgente, eu dissera a Glória,


pode notar no episódio abaixo.
a fiel secretária. Sobre o que eu queria conversar com
·umél noite, quando fui en
contrá-lo na ru e de Li'l­ tanta pressa? Não me lembro mais.
le, pétra jantar, ele estava com a manicure, qu
e lhe pres­ Eu ainda morava narueJadi'n, já voltara da Rússia,
tava serviços. Ele me apresentou a ela, com
orgulho. devia ter vinte e três ou vinte e quatro anos. Meu pai
A mocinha, dirigindo-se a mim, começou :
''Então, seu veio buscar-me de carro, como costumava fazer na­
pai ...'' '' T ão pouco", interrompeu pâpai

, com · um quela época. Ainda na calçada, lançou-me um olhar
suspiro.
furibundo: "Espero que você não venha me dizer que
vai se casar com um imbecil !"
''Pai, tão pouco", mas pai, apesar de tudo. Ele des­
confiava sistematicamente, de todos os meus namora-

dos. Se, por azar, eu evocava na sua presença a exis-
tência de algum deles, logo me perguntava: "Quem
é ?'' (E eu não entendia). ''Como ele se chama?'' Como
se meus "namoradinhos'' fossem celebridades ou como
se o nome deles (pqr mais desconhecidos que fossem)
pudesse trazer-lhe alguma informação sobre eles. Pro-

58 59 '
nunciar aqueles nomes era tarefa
. . . bastante d11 ·r,-1c1'1,· eu
t1nh a a impressão de estar respond
endo a u m interro- •

gató�io, de estar entregando alguém


. Mas, se tentava
esquivar-me, explicando q u e aquil
o não acrescentaria
nada, ele insistia, e eu acabava ced
endo à vontade dele .
De fato, arrancar de mim o nome
do homem que eu
ar�ava, antes mesmo que eu tivess
e manifestado o de­
se1 0 de fa l a r sobre isso, parecia-me o . -
. _
c ú m u lo da in d IS
cr1çao e ceder diante de su a insist
ência , o cúmulo dc·l Quando mocinha, acontecia de eu ir pass ar ttm
covard,1a .
fim de semana na casa de campo de meu pai, em Gui­
trancourt. Ficava num quarto no mesmo anda r que
ele, ma s do outro l ado da escada, no fundo de um cor­
redorzinho. O motivo principal era que esse quarto,
muito agr adável e que dava para o jardim, tinha ba­
nheiro privativo.
Eu me lavava com prazer, pois o banheiro era es­
paçoso, claro e tinh a um encanto meio fora de moda,
comum nas ca sas interioranas, o que correspondia à
minha noção de estética.
Numa manhã, eu estava de pé, na banheira, en­
saboando o corpo. De repente (não havia tranca), ouvi
o barulho da porta se abrindo. Virei-me, sobressaltada,
meu pai est ava no vão da porta. Ficou um momento
parado, em seguida disse-me educa damente ''Des­
cu lpe, querida" e se, retirou calmamente, fechando a
porta.

60 61 '
,

Uma o111adela sempre vale a


pena . ..
(Fiquei FURIOSA.)

Mamãe precisou trabalhar logo que ficou sozi­


nha. Ela exerceu durante muito tempo a profissão de
anestesista, junto ao irmão. Mais tarde, quando come­
çaram a exigir diploma para preencher essa função, ela
procurou desesperadamente outro emprego. Durante
um período, pintou echarpes e fez desenhos publici­
tários (dedicara-se apaixonadamente à pintura quan­
do solteira), mas seu "estilo'' não correspondia ao gosto
da época, e ela teve de abandonar esse trabalho. Tam­
bém teve de abandonar, depois de alguns dias de ex­
periência, um ''emprego'' de vendedora em uma buti­
que burguesa: para ela o comércio era uma fobia. E,
depois, parou de procurar. Mamãe já não era jovem, e
eu percebia que ela se sentia humilhada. Precisol1, en­
tão, organizar-se unicamente com a pe11são alimentar
de meu pai, que era pequena e tinha por carélCterística
não acompanhar o aumento do custo de vida. Era uma
espécie de "esquecirnento" de meu pai, e, como mamãe

62 63
não era do gênero a reclamar dinheiro, a pensão não
se alterava. Mas nós aind a estávamos em casa meu
irmão e eu e C aroline já estava c asada ou pres tes a
se c asar.
Vivíamos, então, na mais estrita economia, aliás,
excelente educ ação para "crianças", mas exercício pe­
rigoso e m enos divertido para uma mulher madura;
p ara quem, aos poucos, tudo se ia tornando supérfluo.
Anos mais tarde, depois de ter sido a última a Re·visitando minhas lembranças, por mais longe
ab andonar a rue fadin, resolvi conversar com mamãe que eu vá, vejo sempre no consultório de meu pai, do­
sobre essa questão de dinheiro e perguntei-lhe, sem minando a cena sobre a l areira, uma foto, grande, de
rodeios, quanto papai lhe dava por mês. A qu antia era Judith. Ess a foto, em preto e branco, muito �onit a,
irrisó1·ia, e insisti que ela exigisse que meu p ai aumen­ inostr ava-a jovem, sentada sobri amente vestida, de
t asse, como era sua obrig a ção, a pensão que ele lhe suéter e saia reta com os longos cabelos pretos e lisos
dava. M amãe recusou firmemente; estav a acima de penteados para trás, de modo a liberar a test a.
.
suas forças. Na época, eu encontrava freqüentemente O que logo me impressionou quando entrei pela
meu pai e decidi discutir o assunto, por minha inici a­ primeira vez nesse consultório foi sua semell1ança com
tiv a. O result ado foi um verd adeiro sucesso: ele ime­ papai. Como ele, Jt1dith tinha rosto oval, cabelos pret �s
diatamente dobrou a pensão de m amãe. e nariz along ado (tenho c abelo c astanho-.claro, nariz
(Posteriormente, tentei obter outr a "atualiz ação" arrebitado, rosto triangular e maçãs do rosto salientes).
d a qu antia. Em vão. Meu pai est ava ficando velho, e, Impression ava-me, além disso, su a belez a, a inteligên­
com o p ass ar dos anos, seu apego incontrolável ao di­ cia da expressão, a elegância d a pose.
nheiro se acentu ava.) Nenhum a outr a foto na s ala.
d iz e r a se u s p a ci e n te
.

s, a n o
/
s, a
Meti p ai p are c ia
e v in te a n o s: E is a q u i m in h a f i l h a ,
mim durante mais d
, eis a q u i m in h a f1 lh a amad a.
eis a�ui minha filha ú n ic a

64 65 '
Foi em 1 963, durante minha estada na R ússia,
que me pergt1ntaram, pel::1 primeira vez, se eu tinha
alguma ligação de parentesco com J acques Lacan.
(Lembro-me ainda do secretário de embaixada que me
fez a pergunta.)
Por que destaco esse f ato aparentemente insigni­
ficante? Para deixar be1n claro que 11em durante a in­
fância, nem durante a adolescência, nem no colégio
ou na faculdade fui "a filha de", e acho qt1e isso foi
bom, uma chance, uma liberdade.
Adulta, após meu retorno da União Soviética, a
pergunta se tornou mais freqüente, e minha reação era
moderada, como meus sentimentos. Será que eu que­
ria mesmo ser a filha de Lacan ? Isso me deixava orgu­

lhosa ou irritada? Era agradável ser, aos olhos de alguns,
apenas '.'a filha de'', isto é, ninguém?
Com o passar dos anos e com a ajuda da análise,
meus sentimentos p ara corn meu pai foram-se clarean-

67 '
do e a b andando. Eu o reconh
� eço p lenamente como
�eu p a i. M a s , principalmente o que é b e m mais
impor�ante �o j e eu te12hofé em
mi1n e pouco importa
q u e m e meu p a i. Pensando bem
, a li á s, não somos todos
sempre a filha (ou o filho) d e
nossos p a is ?

Um dia eu já era bem adulta estava jantando


com meu pai em u m restaurante. Como sempre, era
para mim um momento privilegiado, mas confesso
que hoje já não me lembro dos detalhes daquela noite.
(Teria sido especialmente amistosa, calorosa ?) E m
contrapartida, do que se seguiu, não me esqueci.
Levei meu pai até a rue de Lille, em meu carro,
um pequeno Austin, e, no momento de nos separar­
mos, ele me disse: ''Tenha cuidado com você, minha
querida, e me telefone quando chegar em casa." Ele
insistiu. Estranhei; ti�ha vida independente, sempre
me deslocava e viajava sozinha até para o outro lado
do mundo sem que ele manifestasse a menor preo­
cupação. De repente, tinha diante de mim u mpai quase
maternal, que me pedia para tranqüilizá-lo após um
trajeto corriqueiro, dentro de Paris. Representei meu
papel e prometi telefonar-lhe a·s sim que chegasse.
Chegando a casa, liguei imediatamente, temendo
68
(1
69 '
acordá-lo caso perdesse um m
inuto: "Quem está fa -
lando? O q u ê ? O que acontecet1
·? " O hornem caiu· das
nuvens. P re c isei re lembrar-lhe
suas própr1·as recomen-
daçoes.
-
Enqua to desl igava, confirme
. � i que, de fato, eu
tinha um pai esc1uisito, meio b
iruta,* segundo él ex­
pressão que lhe era cara.

F lores. . . Meu pai me oferecia flores em ocasiões


\ solenes, graves, pot�ncialrnente perigosas. Paradoxal-
. .
mente, as cenas que conservo intactas na memoria es- /

tão l igadas a irres istível sentimento de comicidade.


Como já disse, em dezembro de 1 962 parti para
Moscou, a fim de trabalhar na embaixada da França
durante todo um ano: as quatro estações. Decidimos
que eu iria de trem mais barato do que o avião -
e eu estava pronta para atravessar toda a Europa, con­
tornando, porém, a Alemanha Oriental, seguindo a
orientação do Quai d'Orsay* (na época, as chancela­
rias ocidentais assim pretendiam protestar contra a
construção do ''muro").
Era minha primeira viagem longa (três dias e três
noites dentro de um trem) e minl1a primeira grande
·x- N o o rigi a�, "zinzi11", expre ss separação da família, dos amigos, do país. Além disso,
� ã o fa miliar e popular qtte corre
ponde a biruta", "lelé". (N. d s­
a T.) -x- Ministério das Relações Exteriores da França. (N. da T.) •

70 71 '
r

eu ia para o outro lado da ''cortina de ferro'


' ' e isso' fronteira soviética? Mais uma vez espantada pelé1 es­
num momento crucial da guerra fi·ia (a "crise
dos mís- quisitice de meu pai, agradeci efusivamente.
seis" acabava de ser solucionada). (O mais impo
rtante, No final das contas, ''a coisa'' fez a felicidade de
para mim, entretanto, o 1nai s duro, a única co
isa que duas pessoas: em uma estação secundária, na Polônia,
de fato m e in q t1ietava e sobre a qual ninguém co­ um jovem instalou-se no meu compartimento. Sua
mentava é que eu estava partindo doente em todo noiva o esperava na estação seguinte. Entre os eslavos,
o meu ser, até em minhas capacidades intelect o hábito de oferecer flores está mt1ito mais vivo do que
uais: se­
ria ca pa z de enfrentar possíveis problemas n entre nós. Encantada, aproveitei a oportunidade e re­
aquele
país totalitário ? Corria risco d e ser presa por passei-lhe a orquídea que, dessa forma, pôde cumprir
al gu m a
imprudência? Seri,1 capaz d e executar as tare sua verdadeira missão.
fas que
me atribuiriam ?)
Estava na plata forma da estação, conversan
do
com mamãe, depois de ter colocado a bagage
m n a ca­
bine ( eu havia despachado a lguns dias antes d
uas ma­
las e um ba ú, pois era preciso levar TUDO, tin
ham-me
alertado). A h or a da partida se aproximava.
De pai,
n em sinal. Ah, lá estava ele, apressado, vindo em
nossa
direção, arfante. E o que segt1rava com su
as duas
m ão s? Seu presente de despedida, é claro : um

a grande
caixa transparente contendo uma suntuosa
orq uídea!
Detesto orquídeé1s, essas flores d e luxo, pret
ensiosas e
mortíferas. M as não fa z m al , meu p ai não era
obrigado
a saber isso; a questão er a: o que fazer com es
se objeto
frágil e desajeitado p ar a carreg ar, durante
setenta e
duas horas, sobretudo na h o ra de mudar de
trem ' na

72 73 '
A segunda "cena de flores" aconteceu alguns anos
mais tarde, em 1969, quando eu ia ser submetida, em
' '

caráter de urgência, a uma intervenção cirúrgica. Tra-


tava-se de uma cirurgia traumatizante para uma mu­
lher jovem, cuja amplitude não se podia prever: antes
de tudo era preciso "abrir ". Resumindo havia outros
aspectos preocupantes: o sofrimento, as possíveis se­
qüelas a questão que eu me colocava, e com razão,
era: será que eu poderia ainda ter filhos ? Meu pai veio
visitar-me na véspera da operação, decidida naquela
manhã, e devo confessar que ele me tratou de modo
bem diferente daquele usado por meu tio, o cirurgião,
que tinha sido até um pouco rude, durante os·dias em
que eu ficaria em observação em seu setor. Indo direto
ao essencial, falou-me com muita ternura e gravidade:
''Querida, prometo qt1e você vai saber toda a ver-da de."
Mas estou me afastando do assunto : as flores· . No
'

dia seguinte à operação (para o leitor sensível as �inalo

75 '
. .
que so me reararam o ovar10
/
/

e a trompa esquerdos),
lá pelas qu atro horas da tarde, ba tem à porta de meu
qu�:1rto. "Pode entrar." Então aparece na moldura da
porta um vaso enorme, qt1ase um bosque denu·o de
um pote de barro, e, atrás, pequenininho, meu pai,
segurando o vaso como se fosse o sa ntíssimo sa c1·amen­
to. Morro de vontade de rir.
Conversamos aqueles assuntos comuns entre
doente e visita ( eu nunca experimentara sofrimento Meu pai nao era um esportista e o m1n1mo que se
& ,...,

/ / •

físico tão grande em toda a minha vida); depois meu pode dizer (foi mamãe quem o ensinou a andar de
pai ajoelhou-se ao pé d a cama e permaneceu nessa bicicleta, quando ele tinha mais de trinta anos). Mas,
posição, estranl1a pé1ra um não-crente, durante um com a idade, tomou gosto pelas proezas, com todos os
bom tempo. riscos que uma atração tardia costuma comportar.
Enquanto ele permanecia imóvel, recolhido, de Minha primeira lembrança a esse respeito foi o
olhos fechados, pensei, rindo inte1·iormente: ele está relato que ele nos fez, numa qt1inta-feira, de sua ini­
preparando seu seminário. ciação no esqui, provocando hilaridade geral. Inicia­
ção tão fulgurante, que lhe quebrara uma perna. "Se
me tivesse visto, minha cara", dizia ele él mamãe, com
ingenuidade e orgulho bem infantis, "as pessoas fica­
vam boquiabertas à minha passagem . . . "
Pude admirar com meus próprios oll1os seus dons
de nadador no verão que passamos juntos na Itália.
Papai, deitado na areia, ao sol, mergu.lh ado na leitura
de uma obra erudita, levantava-se, de repente, vestindo
um calção grande, verde-esmeralda brilhante, corria
em direção à água com passos largos e com o corpo na

76 77 '
posição apropriada br,1ços estendidos, mãos juntas
(como a família Fenouillard·x· ) se precipitava no mar,
com um grande "pluf'. Depois, vigorosamente, dava
braçadas em direção ao alto m,1r . . . não muito longe.
Um outro dia tínhamo-nos encontrado para
jantar ele me contou que havia atravessado Paris
inteira a pé sem senti1· nenhum cansaço, concluindo
que nossa Cé1pité1l era realmente uma aldeia. Fiquei
confusa, pois sempre tinha visto meu pai cé1minhar Por mais de uma vez o comportamento de meu
co1n passos lentos, o rosto em geral voltado para a ponta pai com as pessoas de ixou-me sem jeito. O exemplo
elos pés, visivelmente ausente, e era inimaginável que de m,1mãe, que tratava todos com o mesmo respeito e
ele pudesse sentir prazer nesse tipo de exercício. a mesma benevolência, e minha própria concepção do
Evocé11·ei, finalmente, uma cena que chocou em ser humano, meu semelhante, noção que exclui qual­
profundidade minl1,1s convicçõe s de esquerda. Um dia qt1er hie1�arquia lig,1da ao nascimento ou à posição so­
em que saía de casa, ele enco·ntrou o carro imprensado cié1.l, explicam o fato de a atitude de meu pai ter-me
entre dois veículos. Depois de pedir aj tida a uns infe­ chocado.
lizes passantes, conseguiu que colaborassem, levan­ Se não 1·esistissem e se consentissem, os "subalter­
tando o carro. Ele dirigia a operação oralmente, sem nos'' podiam e spera·r o pior ... a menos que meu pai,
esboçar o menor gesto. Faltou pouco para agradecer cujo humor era imprevisível, estivesse, naquele mo­
com um ''�brigado, gente boa. " mento, predisposto à sedução.
Outros ' antes de mim, já .
relataram com talento
- e até mesmo com complacência a relação dele
com Paquita, sua velh,1 empregada espanhola que, nos
* La Famille Fenouillard - livro infantil elo início do século,
últimos anos, substituía Glória no consultório a partir
muito popular na França. Prect1rsor de histórias em quadri­
nhos, apresenta de forma humorística, as aventuras e peripé­ de determinada h ora. A coitada ficava tão afobada, que
cias de u1na família pequeno-burguesa. (N. da T.) parecia um pião, girando de um lado para outro, a cada

78 79 '
contrét-ordem de seu patrão. Dava pena ver, e eu ficava tor não acha gosto nenhum naquilo, mas se coloca.,
envergonhada de meu péli. resolutamente, do lado do "povo", do oprimido, do
(Em compensação, um motorista de táxi não he­ humilhado e responde da forma mais serena que con­
sitou, unia noite, em nos colocar para fora do carro na segue "Está muito bom".
primeira esquina, de tal forma meu pai se mostrara Meu pai era assim.
odioso, antes mesmo de ele dar a partida.)
Mas vou relatar um incidente que me machucou
muito à épocél (aind·a mais que eu também estava im­
plicada nele) e que hoje, apesar de tudo, me .tàz sorri1·
por seu caráter ubuesco. -i<- Na ocasião, eu flertava com
os 1neios esquerdistas. Meu pai levou-me a um restau-
1·ante famoso. Atravessamos a porta, salamaleques do
1naít1·e, aZélr dele. Mil atenções com o "doutor'' e sua
respeitável filha. Instalamo-nos em uma mesa, num
canto. Penumbra. Clima de gente rica (muito rica).
Meu pai, segurando o cardápio, elogia a qualidé1de das
trufas élO natural. Inicialmente cética, deixo-me con­
vencer. Chegando a trufa, o maítre espera, o corpo le­
vemente curvado. Sob o 9lhar ansioso dos dois ho­
mens, coloco na boca o primeiro pedaço . . . e acontece
a catástrofe. Com voz tonitruante, meu pai ameaça:
''EstéÍ bon1, está bom? Se não estiver, vamos embora,
você sabe. " S01·riso crispado do maftre. A filha do dou-

* Referência à peça "Ubu Rei", de Alfi-ed Jarry. O pai Ubu é um •


persona.gem comicamente cruel e covarde. (N. da T�)

80 81 '
Meu pai sen1pre suscitou minha admiração · por
sua capacidade de abstração. O mundo podia agitar-se
todo à sua•
volta, contudo se ele estivesse trabalhando,
nada perturbava ou distraía seus pensamentos.
Durante as férias na Itália, que já evoquei, ele
tinha escolhido para local de trabalho o cômodo central
da villa. Impossível evitá-lo quando se ia de um quarto
a outro ou quando se entrava ou saía da casa. Vejo-o
sentado a uma mesa grande, cheia de livros e de papéis,
imóvel, ausente, enquanto os membros da casa, em
roupa de verão, não paravam de passar.
Uma ·tarde, fizemos um passeio pelo mar. Um
marinheiro dirigia o barco que tinha um pequeno mo­
tor. O espetáculo era magnífico: as falésias vertigino­
sas, o azul profundo do Mediterrâneo, a cintilação da
luz sobre a água, o brilho do _ sQl, tudo inebriava. Meu
pai, no entanto, não tirava o nariz de seu Platão. (As

83
vezes o marinheiro lançava-lhe um olhar preocu-
pado.)
Em Guitrancourt, o costume era tomar chá no
escritório de meu pai. Ele gostava que ficássemos lá.
Nossas conversas não o atrapalhavam em nad,1. Con­
tinuava a trabalhar, diante da grande vidraça que davél
para o jardim, e, em sua fixidez mineral, ele tinhél algo
de uma esfinge.
Vi meu pai chorar duas vezes. A primeira, quan­
do ele nos anunciou a morte de Merleau-Ponty,* a se­
gunda, quando Caroline morreu. Atingida de frente
por t1m mau motorista japonês em urna estrada à bei­
ra-mar, no crepúsculo, minha irmã morreu na hora.
O colega de escritório que a acompanhava ''a serviço''
a Juan-les-Pins conta que, pouco antes do choque, ela
'

deu um grito bem forte.


O caixão, levado a Paris em um pequeno avião fre­
tado, foi colocado na cripta da igreja onde seria realizada
a cerimônia religiosa. Minha mãe, prostrada, lívida, de­
bruçava-se sobre o caixão. Meu pai chegou. Iam levar o
corpo. Meus ''pais" se acharam de pé, um ao lado do
outro. Meu pai segurou a mão de mamãe, e as lágrimas

* Maurice Merleati-Ponty, filósofo francês ( 1908- 1961). •

(N. da T.)

84 85
. cobriram seu rosto. De certa maneira, era a única filha
deles.

Já evoquei minha ''doença'' e alguns de seus sin­


tomas. Mas esse não é o objeto de meu livro. Limitar-
. .
me-e 1, portanto, é:l comentar é:lpenas o que e necessar10
/ /

para a compreensão do que estou escrevendo. O "in­


ferno'' de que falei durou muito tempo após minha
volta da União Soviética. A idéia do suicídio começou
a aparecer como única solução para tanto sofrimento.
Qua�e nada mudava, apesar da análise. Numa noite
em que fui até a casa de meu pai, ''em caráter de emer-
. gência", desesperada, fiz-lhe uma indagação crucial:
o que seria de mim, quando ele não estivesse mais aqui
para garantir minha vida material?
Ele me olhou com seriedade e compaixão e me
respondeu serenamente, como �e fosse uma evidência :
" ,,.
"Mas voce tera a sua pa1·te. "
Parece que o concei to de herança não fazia parte
de meu universo mental.

86 87 '
Vi meu pai vivo pela última vez uns dois
anos antes de sua morte. I-Iá bastante tempo eu não
tinha notícias dele. Em geral era eu quem lhe telefo­
nava, quem .dava o primeiro passo. Nessa época eu
quis testar e não me manifestei. Eu tinha parado de
lhe pedir dinheiro para viver, à custa de uma vida as­
cética, lógico, mas me sentia.aliviada de poder, enfim,
me virar sozinha e não ter de "mendigar''. Nada con­
versamos, aliás, sobre isso: simplesmente um dia deixei
'
de ir buscar minha "pensão" no escritório de Glória.
(Será que meti pai notou? Não dá para saber. A única
pessoa que poderia ter chamado sua atenção sobre o
fato era Glória. Será que o fez? Não sei.)
Seja como for, em março de 1980, precisei fazer
uma operação e não tinl1a dinheiro para isso, nem se­
guro-saúde. Não sem uma certa malícia (já que ele
não se preocupava comigo, ia ser obrigado a fazê­
lo . . . ), aproveitei a ocasião para rever meu pai. Marquei •

89 '
um e �contro por intermédio de Glória, como sempre.
Entrei em seu consultório, onde ele me esperava imó­
vel, duro, cara f echada e, alegremente, perguntei como •

ele ia. Não me respondeu, mas me perguntou em um


tom que eu não conhecia, o que eu qiteria. Conversar,
revê-lo . . . , respondi, surpres.:1 . E o que mé1is? H ti mi­
lhada, disse que precisava faze� uma operação, que
não tinha o dinheiro necessário, e que, por conseguin­
No início do mês de agosto de 1981, Glória -
te, esperava que ele pudesse me ajudar. Sua única res­
sempre ela telefonot1 para aconselhar-me com
posta foi não, e em seguida se levantou para encerrar
muita insistência a visitar meu pai, em Guitr�tn­
- ". Nen huma pergunt.:1 sobre minha saúde. In-
a '' sessao
court. Não estava transmitindo um pedido de meu
créciula, tentei ''acordá-lo", mas em vão, ele me disse
pai, mas tinha certez.: 1, dizia, que isso lhe daria muito
novamente não, segt1ran�o a porta aberta diante de
prazer. Em resumo, ela me indicava meu dever. Foi
mim. Nunca meu pai me tratara assim. Pela primeira
nesse dia que me explicou o que acontecera um ano e
vez, eu estava lidando com um estranho. Na calçada
meio antes e que eu ignorava completamente: meu pai
da 1"ue de Lille, jurei só rever este tipo em seu leito de
não andava bem (oh, eufemismo!). Não precisou mais
morte.
nada, sumiu meu ressentimento, eu queria vê-lo o
Só muito mais tarde, tarde demais, é que Gló-
mais rapidamente possível. Entretanto por quê ? -
ria me contou que, nessa época, ele já dizia não a
Glória marcou o encontro para o fi n al do mês ! Passa­
todo mundo. Ela me vira sair tran stornada, eu tinha
ram-se duas ou três semanas e eu, emocionada, me
contado tudo para ela, por que não me disse nada na
preparava para rever meu pai. Na véspera do encontro,
ocasião?
que, lembro-me claramente, deveria ocorrer num do­
mingo, novo telefonema de Glória, dessa vez para des­
marcar. Meu pai seria internado com t1rgência, "para
fazer uns exames''. Onde ? Impossível saber. (Meu

90
91 '

..,
Deus ! como eu era "jovem''! Não insisti para que_ me esteve todos os dias à sua cabeceira, forçando a barra­
dissessem onde se encontrava meu pai!). Quanto à gra­ gem de Judith. Ele me escondeu até o último momento
vidade da situação, a secretária, que passara dos servi­ - a certeza de que ele ia morrer a extrema gravi­
ços do Mestre aos de sua filha a outra evitou dade da operação a que meu pai fora submetido e seu
informar-me. Quinze dias depois, fui para Viena, onde estado geral a morte pairava permanente. Fui, por­
deveria trabalhar, por um certo período, como tradu­ tanto, mais uma vez tratada como um ser de segunda
tora em um organismo internacional. No dia 9 de se­ categoria. Foi esta a explicação que ele me deu: todos
tembro, no meio da tarde, recebi um telefonema de os dias, ele perguntava a meu pai se queria ver-me e
meu irmão, em meu escritório. Meu pai, disse ele, ia este sempre e mais uma vez respondia não. Mas
morrer naquela noite. Eu deveria pegar o primeiro meu irmão lhe havia perguntado se ele queria vê-lo ?
avião. Como se pegar um avião fosse o mesmo que Sei que no hospital, depois de sua operé.1ção, por
pegar um táxi. Eu me encontrava na periferia de Viené.1 , poucos e breves instantes, meu pai recuperou a lucidez,
e meu passé.1porte e minhas coisas estavam no l1otel, a memória do que havia sido. Tenho certeza de que,
no Centro. Era humanamente impossível voltar a Paris se eu estivesse lá, ele teria, em algum momento, me
no mesmo dia, e tive de decidir partir na manhã se­ re-conhecido, e os anos que se seguiram terié.1m sido
guinte. F iquei em estado de choque. A morte do pró-:­ bem menos penosos para mim.
prio pai é algo inimaginável. Incapaz de ficar sozinha,
pedi a uma colega que "jantasse'' comigo e, depois que
ela foi embora, fiquei no restaurante até tarde da noite,
bebendo um copo atrás do outro.
Chegando a Paris, telefonei do aerop�rto. Meu
paijá não era. Fui direto para a rue d'Assas, onde morava
Judith e para onde o corpo de meu pai havia sido trans­
portado.
Acuso meu irmão. Ele conseguiu saber, por inter­
médio de Glória, onde meu pai estava hospitalizado e

92 93
O enterro de meu pai foi duplamente sinistro. Pri­
meiro, porque enterrei meu pai e, segundo, porque eu
queria que as pessoas que o amavam estivessem lá.
Ap1·oveitando meu entorpecimento, a falta de reação
de meu irmão e sua posição privilegiada, Judith to­
mou, sozinha, a decisão desse enterro "na intimidade",
esse e11terro-rapto, só posteriormente anunciado pela
imprensa. Ainda tive que st1portar a presença de alguns
pequenos senhores da Escola da Causa,* cuja mão evi­
tei apertar. Judith e Miller tinham organizado tudo. O
''clã" estava todo lá, e Thibaut e eu parecíamos presen­
ças indesejáveis. ( Somente Marianne Merleau-Ponty
veio cumprimentar-me). "Todos uns traidores'',

pensei.
A apropriação post-morte1n de Lacan, de nosso

·X· Escola da Causa Freudiana (ECF) , fund.ada em outubro de


1980. (N. da T.)

95
\

pai, começava. Mas como reagir quando se está de luto


.
e se está lidando com administradores calculistas? Foi
tudo muito rápido. A partir de então, eu me opus a
Judith com o passar do tempo, cada vez com maior •

determinação sempre que considerei necessário e


legítimo, mas, naquela hora, estava com a cabeça lon­
ge. No dia seguinte ao do enterro, voltei para Viena.

Vários anos após a morte de meu pai, passei por


Guitrancourt, onde ele está enterrado. Voltava de um


fim de semana em Honfleur, em companhia de um
namorado. Naquela época eu estava sem carro e apro-
veitei a oportunidade um passeio fora de Paris e o
fato de ter condução para lhe fazer uma visita.
O cemitério de Guitrancourt fica na encosta de
uma colina, nél saída da cidade. Felizmente o portão
.está sempre aberto, e isso permite que se entre sem
falar com ninguém. Pedi a meu amigo que esperasse
na estrada, embaixo. Eu queria ver meu pai sozinha,
sem testemunhas, só nós dois. (Vamos deixar sem co­
mentários a reação contrariada e aborrecida do rapaz.)
Era um encontro particular, íntimo.
Subi por entre os túmulos floridos ( flores artifi­
ciais?) até o de meu pai, situado no alto do cemitério.
Uma feia laje de cimento, com seu nome e as datas

96 . ,. 97
tradicionais (nascimento e morte). Fiquei emociona­
da. Há tantos anos não conversávamos.
Era um dia claro e frio, de ar puro. Eu levara uma
rosa vermelha. Coloquei-a com cuidado sobre a lápide,
procurando, lentamente, a posição ideal, depois fiqt1ei
imóvel, esperanclo que o contato se estal1elecesse. A
E PI L O G O
/

coisa ficava um pouco mais difícil, pois haviét ''um im­


becil'' me esperando embaixo e seu mau humor me
distraía. Tentei em vão me concentrar, estar lá, inteira.
Em desespero de Célusa, coloquei a mão sobre a
pedra gelada, até queimar. (Tantas vezes, no passado,
nós ficávamos de mãos dadas.) Aproximação dos cor­
pos, élproximação das almas. A magia se fez. Enfi m eu
estava com ele. Querido pajJai, eit o amo. vócê é meupai,
você sabe. Ele me ouviu. Tenho certeza.
De volta a Paris, no meio da noite, escrevi t1mé1
longa carta para uma amiga e lembro-me de que ela
terminava assim: "Não se deve deixar os mortos muito
sozinhos''.

98

O "último sonho''*

Sonhei que meu pai estava sarando (ele não tinha


morrido) e nós nos amávamos. Era uma história só
nossa, entre ele e eu. Se havia pessoas presentes, eram
apenas figu rantes, eu não as olhava, e elas não inter-.
vinham em nada.
Era uma história de amor, de paixão. Havia tam­
bém o risco de que ele morresse, porque sua "ferida"
podia a qualquer momento reabrir, e não era prudente.
Eu estava com medo, mas isso não dependia de mim.

* Extraído do meu diário. Viena, 19 de setembro de 1981. Sonho


anotado dessa forma, ao despertar. (N. da A.)

101
reguiem*

luz. leve martelar de passos. no g1·upo, crianças,


flores, o caminho sobe lentamente em direção ao ce­
mitério. imagem fixa e em movimento. foi aí que cl10-
rei: fechada dentro de um caixão, a morte ainda pal­
pável se confronta pela última vez com as cores. o é:l f
em movimento, horizontes verdejantes das colinas,
palpitação do mundo.

* Extraído do meu diário, Paris, outubro de 198 1 . O enterro:


esboço. (N. doa A.)

103 '
No Jacqites Lacan, de Elisabeth Roudinesco;* pu­
blicado em setembro de 1993, a autora evoca, no fim
do capítulo "Túmulo para um faraó", os últimos mo­
mentos de meu pai.
Ela escreve: '' ( . . . ) brt1scamente, a sutura mecâni­
ca se 1·ompeu, provocando uma peritonite seguida de
septicemia. A dor era insuportável. Tal como Max
Schur à cabeceira de Freud, o médico tomou a decisão
de administrar a droga -x- -x- necessária a uma morte sua-

* Essa obra, tradt1zida por Paulo Neves, foi pt1blicada pela


Companhia das Letras, em 1994. O trecl10 citado encontra-se
11as páginas 405 e 406. (N. da T.)
** Na segunda edição, "droga" vem substituir "dose de mor­
fina". (N. da A.)

105
ve. No último instante, Lacan fuzilou-o com o olhar. "·*
Quando li esta última frase, s enti um desespero
indizível. Derramei lágrimas que rapidamente se
transformaram em soluços convulsivos. Deitada no
sofá da ''sala grande", afundei numa torrent e de lá­
grimas ardentes que, aparentemente não parariam
• •
Jamais.
A idéia de que meu pai se tinha visto sendo em­
purrado para o nada, de que soubera, por uma fração
de segundo, que ele iria não mais ser parecia-me insu­
portável. Sua fúria nesse momento, sua não-aceitação
da sorte comum a todos os homens, tornavam-no mais
querido, pois aí eu o reconhecia completamente: "obs­
tinado", segundo as últimas palavras que lhe atribuem.
Acredito ter sido esse o dia em que me senti mais
próxima de meu pai. A partir desse momento, não cho­
rei mais ao pensar nele.

agosto de 1991 --junho de 1994

* Sublinl1ado por mim. (N. ela A. )

106 '
dispensava, comparativamente à
adoração irrestrita que possuía por
Juditl1, Sibylle sucumbe a uma terrível
depressão. Decidida a superar à
distâncja esse relaciona1nento q.t1e tanto
ll1e causava amargura, decide partir
para a União Soviética, para aprimorar
seus co11hecimentos de lí11gua russa e
superar st1as consta11tes decepções.
Um Pai, contudo, é mais do que
apenas t1m grito de rejeição. E a estréia
de Sibylle Lacan na literatura e,
conseqüentemente, um novo
nascimento. Livro curto e cinzelado,
Sibylle Lacan retraça, em pouco mais
de vinte cenas, seus laços tortuosos
com o pai . Um pai qt1e só publica 110
Who 's who sua última paternidade. Um
pai imprevisível e sedutor,
1nundialmente famoso, qt1e não exerce
na viela da filha u1n papel coadjuvante.
Ele é o ator pri11cipal de uma relação
desgastante, nada diferente de tantos
ot1tros pais.
U,n Pai é um grito de amor, solitário,
cujos ecos t1ltrapassam o tempo da
leitt1ra e permanecem na me1nória.


i
presso na<:J;rol...,�..,,,•. ""'
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