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EDITORA UFMG
Flavio de Lemos Carsalade
Camila Figueiredo
CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade ( )
Camila Figueiredo
Danielle Cardoso de Menezes
Eduardo de Campos Valadares
Élder Antônio Sousa Paiva
Fausto Borém
Maria Cristina Soares de Gouvêa
Belo Horizonte
Editora UFMG
2017
Camila Figueiredo
Eliane Sousa
Anne Caroline Silva e
Maria Margareth de Lima
Lira Córdova
Bruna Fernandes e Roberta Paiva
Cássio Ribeiro
Ederson Tadeu
Site Pixabay
P Warren Marilac
Imprensa Universitária UFMG
© 2017, O autor
© 2017, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
T266p Teixeira, Maria Juliana Gambogi
A profetisa e o historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet;
/Maria Juliana Gambogi Teixeira. – Belo Horizonte: Editora UFMG,
2017.
312 p. (Origem)
Inclui bibliografia.
CDD: 133.4
EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 CAD II Bloco III
www.editoraufmg.com.br editora@ufmg.br
Para os meus meninos: ao que já partiu (Celso),
aos que vêm chegando (Pedro, André, Tomás e Miguel).
defendida em junho de 2005. Escusado dizer, portanto, que
anos desde sua defesa, essa tese deu origem a alguns artigos,
nos quais retomo, explicito ou redireciono argumentos aqui
apresentados. Esses textos aparecem, sempre que necessário,
junto aos tópicos aos quais se reportam.
JeanMichel Rey
VIII
De repente, ele [Michelet] desabou, alquebrado por uma crise cardíaca
que durou quatro dias. Sobre essa última doença, recolhi uma história que
jamais vi impressa e que me foi contada há muito tempo. O médico chega
para examinar Michelet.
– Tragam lençóis frescos, disse ele, mudem essa roupa de cama…
Michelet escuta a palavra e, num sobressalto, diz:
– A roupa de cama, doutor, você fala dela; sabe o que é essa roupa?
A roupa de cama do camponês, a do operário… Roupa de cama, grande
tema… Quero fazer um livro sobre ela…
– Acalmese, senhor Michelet, acalmese, disse o médico.
Ele morreu, e esses panos, em nome dos quais se exaltara, envolveram
seus restos mortais.4
Cavalheiro,
Vós me cumulastes de elogios, como escritor, e vosso artigo é muito
bom e muito sério, salvo que é parcial num ponto.
Sendo novo na crítica, ignorais ainda que esse nome de poeta que me
outorgais é justamente a acusação sob a qual se acreditou até agora espe
zinhar o historiador. Essa palavra respondeu a tudo.
Em vão me esforcei por dar à história uma base séria e positiva numa
infinidade de pontos. Exemplos: a história do banco (em meu livro da
Reforma), o orçamento de Filipe (nas guerras de Religião etc.). A eleição
de Carlos Quinto, tratada politicamente por Mignet, o foi por mim finan
ceiramente, ou seja, na verdade.
Mesmo assim se escreveu por toda a parte que eu era um historiador
de fértil imaginação.
Eu vos saúdo cordialmente e peço que acrediteis em minha gratidão.14
Ousar uma nova língua; não aquela da inocência bárbara, que tudo
dizia sem se enrubescer, sem se dar conta das profundezas; não aquela da
orgulhosa Antiguidade, que usava e abusava, desprezava a humanidade,–
mas a da ternura moderna, que, nas coisas do corpo, sente e ama a alma, ou
melhor, nem alma nem corpo, mas em todos os pontos, o espírito: a língua
de um Rabelais sério e apaixonado.24
Este lugar, completamente africano, tem clarões de aço que, durante
o dia, cegam. Mas nas manhãs de inverno, sobretudo em dezembro, era
repleto de um mistério divino. (…) De seis às sete da manhã, eu contem
plava um momento admirável. A cintilação viva (ousaria dizer, dura) das
estrelas envergonhava a lua e resistia à aurora. Antes que ela aparecesse e
depois, enquanto durava o combate entre as duas luzes, uma transparência
prodigiosa do ar permitia ver e escutar a distâncias incríveis (…)
Um azulado indefinível (que a aurora rosácea respeitava, não ousando
pintar), um éter sagrado, um espírito, fazia, da natureza, espírito.
No entanto, já era perceptível um progresso, lentas e doces alterações.
Uma grande maravilha estava por chegar, explodir e eclipsar tudo. Dei
xemola vir, mas não a apressemos. A transfiguração próxima, os deslum
bramentos que chegam com a luz, em nada afetam o charme profundo de
se estar ainda na noite divina, semiescondido, sem se separar por completo
do prodigioso encantamento… Vem Sol! Já te adoramos, conquanto apro
veitando desse último momento de sonho…
Ele vai nascer… Aguardemos com esperança, com recolhimento.25
Essa dupla face do crepúsculo, preservada nas faces duplas e dú
bias da narrativa, será objeto da Parte 3 deste livro. Recorrendo aos
princípios teóricos e aos liames contextuais antes expostos, buscase
aí uma hipótese de interpretação para as ousadias que dão forma
ao pensamento de La Sorcière. Deixando os detalhamentos para as
páginas a seguir, seu núcleo principal encaminhase na direção de
uma leitura dessa obra como parte de um projeto ao mesmo tempo
historiográfico e poético. Melhor dizendo, uma leitura que busca
recuperar no texto alguns elementos que configurariam, quando
relidos sob prismas próximos àqueles de Michelet, a possibilidade
de pensar em sua historiografia como algo da ordem de uma po
ética da história.
O principal desafio de uma tal operação com o passado seria,
portanto, o de reoperar com os limites através dos quais a tradição
separara o terreno da poíesis do da história: o primeiro, aberto ao
espanto filosófico; o segundo, circunscrito ao estabelecimento do
particular. Porém, todos os que já leram alguma coisa de Michelet
sabem ser essa uma historiografia do suspense. Não se pensa aqui
no gênero literário, até porque o historiador é propositivo demais
em seus julgamentos para que fosse capaz de provocar esse tipo de
surpresa. Portanto, esse efeito de suspense diz, sobretudo, de um
ritmo narrativo que parece suspender o objeto de suas histórias:
suspensão do passado, suspensão do sabido. O que faz com que seus
textos tragam consigo algo daquilo que Proust descobriu através
dos prefácios micheletianos, a saber, o fato de a unidade da obra
ser sempre algo que aparece a posteriori e cuja descoberta é motivo
dos encantos, das surpresas e das reviravoltas que, sem pudores,
invadem suas narrativas.
Edmund Wilson foi um dos que viu nesse traço a marca do estilo
e do método historiográfico micheletiano. Melhor dizendo, foi um
dos que reconheceu a confluência entre o estilo de escrita e o modo
de pensar a história. Daí as paralelas distantes nas quais dispõem o
historiador moderno e a historiografia micheletiana: