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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Jaime Arturo Ramírez


Sandra Regina Goulart Almeida

EDITORA UFMG
Flavio de Lemos Carsalade
Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade ( )
Camila Figueiredo
Danielle Cardoso de Menezes
Eduardo de Campos Valadares
Élder Antônio Sousa Paiva
Fausto Borém
Maria Cristina Soares de Gouvêa
Belo Horizonte
Editora UFMG
2017
Camila Figueiredo
Eliane Sousa
Anne Caroline Silva e
Maria Margareth de Lima
Lira Córdova
Bruna Fernandes e Roberta Paiva
Cássio Ribeiro
Ederson Tadeu
Site Pixabay
P Warren Marilac
Imprensa Universitária UFMG
© 2017, O autor
© 2017, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
T266p Teixeira, Maria Juliana Gambogi
A profetisa e o historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet;
/Maria Juliana Gambogi Teixeira. – Belo Horizonte: Editora UFMG,
2017.
312 p. (Origem)

Inclui bibliografia.

Civilização medieval. I. Título. II. Série

CDD: 133.4

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 CAD II Bloco III

www.editoraufmg.com.br editora@ufmg.br
Para os meus meninos: ao que já partiu (Celso),
aos que vêm chegando (Pedro, André, Tomás e Miguel).
defendida em junho de 2005. Escusado dizer, portanto, que

a lista dos agradecimentos. Antes, porém, de passar a eles,

anos desde sua defesa, essa tese deu origem a alguns artigos,
nos quais retomo, explicito ou redireciono argumentos aqui
apresentados. Esses textos aparecem, sempre que necessário,
junto aos tópicos aos quais se reportam.

Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade

Não tenho nenhuma dúvida de que, sem a excelência

dessas agências, este texto jamais teria existido. Meus

Rey (Paris VIII), foram indispensáveis na ocasião e perma


necem sendo referências intelectuais e afetivas em minha
vida. Foi, também, um privilégio contar com as arguições
de Ruth Silviano Brandão (UFMG), Olgária Chaim Ferez
Matos (USP/UNIFESP), Jacyntho Lins Brandão (UFMG) e

doutoramento. Seus comentários foram imprescindíveis


e restam sendo balizas em meu percurso. Também devo
muitíssimo a Muriel Louâpre (Paris V) e Paule Petitier (Paris
VII), com quem aprendi e sigo aprendendo muito do que
escrevo sobre o nosso autor em comum. Quero, ainda, reco
Jacob Rogozinski (Paris VII), cujo interesse e acolhida à
pesquisa que deu origem a este texto foram sinônimo de
fortuna inesperada. Imensa gratidão e carinho tenho por

e apoiou este trabalho desde seus primeiros passos.

Entre a defesa e a publicação, muitos anos, pessoas e institui


ções se somaram à lista daqueles que colaboraram ativamente
para a concretização deste livro. À Faculdade de Letras da
UFMG e, muito especialmente, à Câmara de Pesquisa, devo
as condições necessárias para transformar, ainda que tardia
mente, a tese em livro. Nesse caso, agradeço, em particular,
aos colegas Marcos Rogério Cordeiro Fernandes (presidente
da Câmara), Eliana Amarante de Mendonça Mendes, Maria
Cecília Bruzzi Boechat, Maria do Carmo Viegas, Vera Lúcia
Menezes de Oliveira e Paiva, Luiz Fernando Ferreira Sá e
Matheus Trevizam (membros da Comissão de publicação),
o acolhimento à minha demanda. Os pareceristas anônimos
que aprovaram o pedido de publicação colaboraram, com
sugestões e comentários preciosos, para o aprimoramento
do material em questão.

que, ao longo desses anos, se interessaram por este traba


lho, me fazendo acreditar que sua publicação poderia ter
alguma serventia: Jacyntho Lins Brandão (UFMG), Andréa
Sirihal Werkema (UERJ), Pedro Dolabella Chagas (UFPR),
Humberto Guido (UFU), Sérgio da Mata (UFOP), Fernando
Nicolazzi (UFRGS), Temístocles Cézar (UFRGS).

No terreno pessoal, abro um pequeno parêntesis para regis


trar minha imensa dívida com as minhas meninas (Carmelita,
Eliza, Letícia e Fabiana) que, por razões que partilhamos,

as entrelinhas. Também lá está Mauro Luiz Engelmann – com


quem deixo o meu amor e o desejo de porvir.
“Eu morria sozinho”, disse Pascal.
Esse é o destino comum da humanidade. (…)
Falei antes do ofício de Camões nas margens assassinas da Índia:
Administrador do bem dos falecidos.
Sim, cada morto deixa um pequeno bem, sua memória, e pede que
dela cuidemos. Para quem não tem amigos, seria preciso um magis
trado que os substituísse. Pois a lei, a justiça é mais segura do que
todas as nossas ternuras fugazes, nossas lágrimas tão logo secas.
Essa magistratura é a História. E os mortos são, para dizer como o
Direito romano, essas miserabiles personae com as quais o magistrado
deve se preocupar.
Jamais, em minha carreira, perdi de vista esse dever de historiador.
Dei a muitos mortos esquecidos a assistência de que eu mesmo
precisarei.

Jules Michelet, Histoire du XIXème siècle


Desconheço se existem, em língua portuguesa, estudos de refe­
rência sobre a obra de Jules Michelet, seja em seu conjunto, seja ainda
sobre um aspecto particular de seu trabalho como historiador. Sabe­
­se que sua considerável produção ocupa, ao lado da de seu amigo
Edgard Quinet, um lugar de extrema importância na cena francesa
do século XIX. Entretanto, se sua obra foi reconhecida e celebrada
em seu tempo, ela o foi de um modo polêmico, senão claramente
conflituoso. O mais das vezes, tais conflitos mascararam o que havia
de profundamente novo nessa obra, sua extrema originalidade,
assim como seu caráter perturbador. Quem quer que tenha lido
um pouco de Michelet sabe que ele é, de fato, inclassificável e isso,
em primeiro lugar, em razão de seu estilo inovador, mas também
devido aos procedimentos e às questões que introduz no campo
da história. Ele destoa do século ao qual pertence, desconcerta
fortemente seus contemporâneos – aliás, tanto os historiadores
quanto os escritores – e, portanto, não tem sucessores. Seu projeto
de “ressurreição integral” do passado não foi cumprido ou foi tão
deformado que perdeu todo o sentido. Tentaram categorizá­lo como
uma espécie de escritor romântico, o que, evidentemente, nada diz
sobre seu modo de escrita nem sobre sua maneira de construir a
história. Quiseram, ainda, encarar sua obra apenas como uma ma­
neira subjetiva de abordar os problemas da historiografia: o que é,
no mínimo, fazer prova de uma visão estreita, que não contempla,
em absoluto, as suas produções e as transformações que elas intro­
duziram na disciplina histórica. Enfim, Jules Michelet permaneceu
ignorado pela maioria de seus contemporâneos, desconhecido ou,
muito simplesmente, incompreendido.
Charles Péguy foi um dos primeiros – senão o primeiro – a reco­
nhecer, no início do século XX, todo o alcance da escrita de Michelet,
a compreender a profundeza de seu gesto e seu aspecto crítico, a
perceber o quanto tudo isso abalava esse saber então nascente que
era a história em meados do século XIX. Péguy se serviu da obra
micheletiana para criticar vigorosamente tanto Renan quanto o
positivismo nascente. Nesse ponto, aliás, foi seguido por Walter
Benjamin, e essa filiação, notável sob todos os aspectos, deve ser
levada em consideração. Sabemos, porém, que o próprio Péguy
foi, desde o início, objeto de polêmica ou de rejeição, quando não
alvo de uma severa ignorância ou de desconhecimento. Também
sabemos que foi necessário tempo, tanto na França quanto na Ale­
manha, para que lessem, com atenção, a obra de Walter Benajmin e
compreendessem toda a sua importância. Acredito que foi graças,
em grande parte, a esses dois pensadores – Charles Péguy e Walter
Benjamin – que a produção de Michelet tornou­se gradativamente
mais acessível a diferentes leitores, conseguindo atrair a atenção de
estudiosos de diferentes disciplinas. Pois essa obra não interessa
apenas aos historiadores no senso estrito do termo: assim como a
de Edgar Quinet, aliás, ela transborda o campo da historiografia,
acenando em direção a vários outros campos de estudo: a filoso­
fia, a teoria política, a literatura, a poética. Com efeito, a produção
de Michelet nada tem de unívoca e, ao não se deixar restringir à
simples historiografia, mantém seu interesse ainda nos dias atuais,
comodamente chamados de modernidade.
Acredito que a capacidade da obra micheletiana para tocar, de
diferentes formas, um bom número de campos da reflexão contem­
porânea pode se tornar evidente por meio da leitura do livro de
Juliana Gambogi. Todo o estudo da autora testemunha esse fato, e
o cuidado que ela toma em sublinhar os aspectos metodológicos da
produção desse historiador é de grande utilidade para o trabalho
teórico contemporâneo. O Michelet que a estudiosa nos restitui é,
em mais de um aspecto, estimulante, apaixonante e é de se desejar
que este livro seja lido como parte de um bom número de debates
intelectuais, hoje importantes na Europa, mas também (até onde
sei), na América Latina. De qualquer forma, o estudo de Juliana
Gambogi se inscreve numa verdadeira interdisciplinaridade, o
que é, certamente, uma de suas maiores qualidades. Deveria, por
consequência, interessar a um público diversificado, e não apenas
aos historiadores de profissão.
No campo intelectual francês, Michelet gradativamente se tor­
nou um personagem decisivo, cuja obra reteve a atenção de alguns
pensadores, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.
Dentre os mais importantes, menciono os trabalhos empreendi­
dos pelo filósofo Claude Lefort que, no campo da teoria política,
demonstraram o quão fecunda pode ser uma leitura minuciosa da
obra de Michelet. Esse interesse está longe de cessar. Ao contrário
disso, jovens pesquisadores, de várias partes do mundo, continu­
am a se debruçar sobre a produção do grande historiador francês,
buscando desenvolver, a partir dessa obra, estudos que toquem
questões historiográficas ou ainda, na perspectiva da teoria políti­
ca, problemas de método – principalmente no que tange à famosa
“servidão voluntária” de La Boétie ou o estatuto da democracia após
a Revolução de 1789. Isso, sem evocar outros aspectos decisivos
de sua obra: a sua maneira bastante singular de dar voz àqueles
que nunca a tiveram; o tratamento do “silêncio”, cujo papel é cru­
cial na história de um país; além de tantos outros pontos que, de
maneira resumida, remeteriam à junção da história e da literatura
ou, ainda, da história e da filosofia. Algumas dessas questões são
explicitamente mencionadas no curso deste trabalho, outras apenas
aludidas, o que, de qualquer modo, nada lhe tira de seu interesse,
quando não o enriquece.
É importante, na verdade, pois, ter em mente a amplidão da
obra de Michelet; nem precisaríamos evocar suas dimensões e seus
diversos focos para dar conta de tamanha riqueza e profusão. O
que nos deixa pelo menos pressentir as dificuldades de sua leitura
e de sua interpretação, dificuldades que são intrínsecas à própria
obra, inerentes ao seu brilho. Nenhum comentário pode ignorar
tais desafios, qualquer que seja o ponto de partida, o recorte ou
o ângulo eleito pelo leitor. Acreditamos que assinalar problemas
dessa ordem é mais do que necessário: trata­se, com efeito, de um
exercício que faz parte do trabalho de leitura e de interpretação e
não deve, de forma alguma, ser encarado como um obstáculo para
o entendimento dessa obra maior.
Razão suplementar para estar atento aos diferentes trabalhos
que se arriscam nessa direção, que não temem abordar um ou outro
aspecto da produção micheletiana, tanto mais quando nos chegam
de uma outra cena intelectual, de um outro contexto cultural. É
o caso de A profetisa e o historiador que, a meu ver, apresenta um
subtítulo muito modesto: “sobre A Feiticeira de Jules Michelet”.
Pois é evidente que a autora, que trabalhou longo tempo em Paris,
conhece em detalhes a cena francesa, utilizando e citando com
discernimento os principais trabalhos relativos à obra de Michelet
realizados nos seus últimos anos. Isso é manifesto e constante ao
longo de todo o livro. Mas o mais importante é o que ela retém e
a maneira como trata esse material – o que forja a riqueza de seu
livro. Pois todo trabalho relevante – e este é, manifestamente, um
deles – é, de uma maneira ou de outra, uma tomada de posição em
relação às interpretações já existentes, assim como uma maneira de
se inscrever num campo intelectual em construção. No caso deste
trabalho, para ser bastante sucinto, ele se inscreve num campo que
opera na interjeição entre a cena francesa e a cena brasileira, sem
ignorar a diferença entre os dois contextos. Esta é uma parte da
originalidade deste livro e uma parte de sua riqueza também: não
esquecer o lugar de onde vem, deixar evidente aquilo com o qual
trabalha e mesmo aquilo contra o qual se debate, não evitando
a menção aos diferentes obstáculos encontrados no decorrer do
percurso. Para o público de língua portuguesa, este estudo deveria
ser a ocasião para entrar no universo de Michelet, a ocasião para
se confrontar com certos aspectos desconcertantes, propriamente
perturbadores, da obra do pensador francês. Confronto com certos
aspectos e não – o que seria da ordem do impossível – com toda
a obra de Michelet. E diria mais: deveria ser a oportunidade de se
defrontar com alguns elementos particularmente esclarecedores
do pensamento micheletiano e que, em razão do tratamento a eles
aplicado, tornam­se efetivamente emblemáticos da obra inteira.
Dentre esses elementos, destacamos dois principais.1 O primeiro
refere­se à relevância colocada sobre A Feiticeira, provavelmente, o
livro mais conhecido de Michelet, mas não o mais bem lido, nem
sequer o mais bem compreendido, tampouco o mais simples. Já
o segundo elemento refere­se à leitura minuciosa apresentada a
nós nestas páginas, uma leitura que se demora sobre os detalhes,
colocando em evidência os pontos mais importantes desse livro
fundamental. Desses pontos, restringimo­nos, aqui, a evocar apenas
os seguintes: os paradoxos narrativos que são abertos pelo histo­
riador a propósito dessa figura que atravessa toda a história do
Ocidente; o trabalho bem particular realizado por Michelet sobre as
lendas e a utilização destas em uma perspectiva poética; o modelo
de racionalidade que construiu para abarcar uma figura maior
que é a Feiticeira; as ferramentas utilizadas pelo historiador para
construir um personagem dessa envergadura; o sutil vai e vem que
se estabelece entre a história e a lenda, o qual, ademais, apresenta
prolongamentos ou equivalentes no restante da obra; a reflexão
sobre as diversas modalidades do lendário que, igualmente, busca
analogias em outros contextos.
Todos esses pontos (e não posso, aqui, ser exaustivo) são exa­
minados e analisados com extremo cuidado, postos em perspectiva
de uma maneira feliz. Uma das forças do livro de Juliana Gambogi
encontra­se nesse trabalho de descrição e, sobretudo, de análise,
graças ao qual o leitor terá em mãos todo o necessário para alcançar
o que faz a grande originalidade de A Feiticeira e seu aspecto único
na historiografia do século XIX. Com efeito, não encontro nada de
equivalente nos Oitocentos francês, nada de tão poderoso, nem de
mais estimulante do que essa narrativa. E essa imensa originalidade
encontra­se evidenciada por este livro.
Juliana Gambogi soube manter reunidos os diferentes aspectos
do raciocínio de Michelet, e apontar de que modo eles se articulam;
mas também soube analisá­los com grande rigor, demonstrando
como poderemos reencontrá­los, sob distintas formas, no conjunto
do corpus micheletiano. Falar dessa forma sobre A Feiticeira não é, de
modo algum, restringir o comentário, nem mesmo mutilá­lo. Pelo
contrário, trata­se, antes, de uma maneira de justificar a opção por
trabalhar prioritariamente com esse livro de Michelet, ao demons­
trar, a cada momento da abordagem, que as análises empreendidas
aqui valem – sob certas condições, é claro – para outras obras do
autor. É, pois, um percurso que cumpre o que ambiciona (e penso
que isso será perceptível para qualquer leitor, mesmo para aqueles
que não conhecem o conjunto da obra do historiador francês). E
este será, ainda, um dos êxitos deste estudo: fornecer ferramentas
para a leitura de uma grande parte da obra de Michelet ao se fixar,
preferencialmente, sobre apenas um de seus livros. A autora sou­
be, com perfeição, revelar a exemplaridade de A Feiticeira, tirando
proveito máximo disso e tornando seu livro uma excelente intro­
dução ao conjunto da obra de Jules Michelet. Graças, portanto, ao
fio condutor adotado neste livro, saberemos como nos orientar na
imensa obra desse historiador­filósofo.
O outro tema importante, explicitamente tratado aqui, refere­
­se à ligação de Michelet com Vico. Desde os primeiros passos, a
obra de Michelet se associa à estranha obra de Giambattista Vico
– pensador solitário do século XVIII italiano e autor da enigmática
Ciência Nova. O historiador francês o traduziu e teve uma importante
contribuição na difusão de sua obra na França, onde o italiano era
totalmente desconhecido. Tendemos, com frequência, a negligenciar
os trabalhos de juventude de Michelet, como se estes se tratassem de
uma simples etapa preparatória, cedo ultrapassada pela maturidade
da obra. Ao contrário, o que bem demonstra Juliana Gambogi é a
importância dessa referência precoce a Vico e, principalmente, do
tema constante de uma história escondida nas línguas – espécie de fi­
lologia, adaptada aos problemas da história micheletiana, disciplina
na qual a língua viria a se tornar, em boa medida, o “testemunho
das coisas”. É necessário seguir com atenção a apresentação de Vico
proposta por este livro, bem como as análises detalhadas a partir
das quais fica demonstrado como esse filósofo, de uma certa forma,
acompanhou toda a démarche de Michelet. Compreende­se, então,
que Vico funciona como o fio de Ariadne, atravessando toda a obra
micheletiana, tanto mais quando nos lembramos o quanto esse fi­
lósofo foi sensível ao peso do lendário na história, ao fato de que o
lendário pudesse se tornar, efetivamente, fonte maior para a história.
Aliás, essa é uma dimensão que também aparece, de forma um
pouco distinta, num outro livro de Michelet, intitulado Origens do
direito francês buscadas nos símbolos e fórmulas do direito universal – tí­
tulo que fala por si mesmo, indicando precisamente um dos focos
do pensamento de seu autor. Toda a explanação teórica que este
livro propõe sobre Origens é convincente. Sabemos, pelas leituras
de seus textos iniciais, que Michelet havia projetado, nos seus anos
de formação, um texto que jamais escreveu: História da civilização
descoberta nas línguas. Tudo isso será, aqui, relembrado de maneira
oportuna, de forma a demonstrar o lugar que ocupam na economia
da obra do autor.
Um dos méritos do trabalho empreendido por Juliana Gambogi
é abordar com seriedade esses diferentes aspectos, concentrando­se
neles e, dessa forma, evidenciando a coerência que articula e mantém
reunido um conjunto de textos, à primeira vista muito heterogêneos.
É também o que lhe permite levar em consideração o papel da poesia
lendária, refletindo sobre o seu estatuto e sobre os vínculos entre
essa forma de poesia e o que costumamos chamar de história. De
certo modo, este livro é, também, uma espécie de meditação sobre
a fronteira existente entre gêneros distintos: a literatura, a história,
a poesia, a prosa – e assim por diante. Uma meditação que versa
sobre as diferenças instituídas entre esses gêneros: o que elas podem
significar, de onde procedem, o que representam, o que combatem
– e muitas outras questões de mesma ordem, atestando haver aqui
um verdadeiro questionamento.
Ao escolher como seu principal objeto de estudo A Feiticeira e,
em momento algum, esquecer as obras de Michelet que podem se
relacionar com esse texto, Juliana Gambogi constrói com paciência
sua leitura e, dessa maneira, amplia consideravelmente o seu corpus
inicial. Ela evita, assim, cair nas grandes ou fáceis generalizações e
coloca em perspectiva uma grande parte da produção intelectual
de Michelet.

Jean­Michel Rey
VIII

Maria Fernandina Batista


Maria Juliana Gambogi Teixeira
Tradução
Quando pensamos em Michelet, a qual Michelet nos referimos? Ao historiador
clássico, o narrador de Aníbal, das Cruzadas? Ao filósofo historiador, tradutor e
comentador de Vico e de Grimm? Ao orador do Collège de France, moralista,
apóstolo e revolucionário? Ao historiador panfletário, que revela a política das
cortes, dos Valois, dos Bourbons? Ao poeta, ao naturalista embriagado, que canta
o amor, a mulher e o mar? Ao velho desesperado que se isola e amaldiçoa o sé-
culo? Quantos homens reunidos nesse único vocábulo – Michelet! A hagiografia
republicana banalizou sua memória. Basta um pouco de atenção para reencontrá-lo
tal como foi, imenso, estranho, quase incompreensível.1

O desafio lançado por Halévy já se faz quase centenário e, no


entanto, mantém­se ainda como um problema válido para a com­
preensão da obra micheletiana. Obra tão extensa quanto variada,
ela parece guardar consigo o estranho sortilégio de se fazer maior
à medida que fez habitar, lado a lado, traços contrastantes entre si:
poética e historiográfica, erudita e panfletária, clássica e moderna.
Assim, quando o leitor se aventura em quaisquer de seus títulos,
vê­se, num primeiro momento, instado a abandonar qualquer de­
finição exclusiva desse autor, a qual não admitisse, imediatamente,
acolher o seu contrário. Bem verdade que, flertando com a filosofia,
com a literatura, com a política e com as ciências naturais, Michelet
não pretendeu nem admitia outro título salvo o de historiador.
Apresentar  completa  e  coerentemente  a  obra  micheletiana 
representa por si só um desafio ao qual, em princípio, somente a 
biografia poderia responder em detalhes.2 Não obstante, atentando 
a suas grandes linhas, pode­se observar uma matriz principal, re­
presentada pelos volumes que compõem o título História da França. 
Título senão o mais ambicioso, certamente constituiu o fio narrativo 
mais extenso perseguido por Michelet. Tem seu ponto de partida 
na Gália Antiga e sua conclusão no fim do século XVIII, narrando 
a  Revolução. Alguns  dos  livros  mais  conhecidos  do  historiador, 
tais como Renascimento e Reforma e História da Revolução Francesa, os 
quais se tornaram, pela fama ou pela especificidade do tema, títulos 
autônomos, participam, originalmente, desse projeto, cuja ambição 
à totalidade parece flagrante. Se o recorte temporal já confirmaria 
esse traço, a inflexão que Michelet lhe conferiu viria a corroborar sua 
magnitude pela extensão dos interesses explicitamente almejados. 
Ver a França como “alma e pessoa”, como ele afirmou ter visto em 
História da França, significava cuidar de seu corpo – “raças”, “solo”, 
“clima”, “alimentação”, “tantas circunstâncias físicas e fisiológicas” 
que vão se alterando ao longo dos séculos –; cuidar também de seu 
espírito – das “leis”, dos “atos políticos”, das ideias, dos costumes, 
“do grande movimento progressivo, interior, da alma nacional” –, 
sem esquecer, ainda, dos “pequenos detalhes eruditos, em que o 
melhor, às vezes, permanecia escondido em fontes inéditas”.3
Sua  historiografia  move­se  assim,  tentada  a  abraçar  toda  e 
qualquer fonte e a acolher todo  e qualquer  objeto  de  estudos. O 
anedotário micheletiano fornece exemplos curiosos desse “tudo é 
história” sob cujo império praticava sua disciplina. Halévy é um 
dos divulgadores de uma anedota que vale citação:

De repente, ele [Michelet] desabou, alquebrado por uma crise cardíaca 
que durou quatro dias. Sobre essa última doença, recolhi uma história que 
jamais vi impressa e que me foi contada há muito tempo. O médico chega
para examinar Michelet.
– Tragam lençóis frescos, disse ele, mudem essa roupa de cama…
Michelet escuta a palavra e, num sobressalto, diz:
– A roupa de cama, doutor, você fala dela; sabe o que é essa roupa?
A roupa de cama do camponês, a do operário… Roupa de cama, grande
tema… Quero fazer um livro sobre ela…
– Acalme­se, senhor Michelet, acalme­se, disse o médico.
Ele morreu, e esses panos, em nome dos quais se exaltara, envolveram
seus restos mortais.4

Portanto, se os objetos mais idiossincráticos poderiam atiçar seu


interesse e render histórias cujo viés hagiográfico revela­se, ao fim,
tragicômico, é verdade também que o paradigma historiográfico
com o qual Michelet lidara fundava­se, conscientemente, em uma
tradição enciclopédica a qual, grosso modo, filiara­se: “abraçar
todas as ciências e todos os tempos (…) Com efeito, tudo se liga
a tudo; nenhuma especialidade que não confine em suas bordas a
universalidade das coisas.”5
Produzida pouco a pouco, História da França levou 34 anos para
ser concluída – os primeiros tomos datam de 1833 e o último, ele o
escreveu em 1867 –, para em seguida ser retomada, contemplando
doravante a história do século XIX, ausente no plano inicial. Sua
História do século XIX será interrompida em seu terceiro tomo com
a morte, em 1874, do historiador.
O título magno, no entanto, não bastou para conter a loquacidade
de Michelet. Abrindo interstícios em meio a esse grande projeto,
títulos paralelos e filões a princípio estranhos à historiografia serão
concebidos. Nesse último caso, destacam­se duas matrizes: de um
lado, seus “livros de combate” (como os batizou Halévy), nos quais
o historiador privilegia questões político­sociais de seu tempo; de
outro, suas especulações sobre a história natural.6
Ao frenesi produtivo de Michelet, seus editores atuais – conquan­
to menos apressados e mais cuidadosos com a questão mercadoló­
gica – vieram acrescentar muito mais páginas do que aquelas que o 
historiador, como era hábito seu, pagou para publicar. Não só seus 
papéis privados (o Diário e a Correspondência) se tornaram públi­
cos, quanto também seus cursos – na École Normale e no Collège 
de France – e ainda uma série de títulos inacabados. O projeto de 
publicação das obras completas de Michelet na França, capitanea­
do por Paul Viallaneix e uma equipe de especialistas, começou na 
década de 1970, levado a cabo pela Flammarion. Infelizmente, ao 
que parece razões de vendagem fizeram com que as Obras completas
permanecessem  incompletas.  Dos  21  tomos  planejados,  ficaram 
faltando 6. Alguns dos títulos que deveriam aparecer nesses tomos 
inexistentes são famosos o bastante para serem facilmente encon­
trados em outros formatos: assim, História da Revolução Francesa, O
Povo e A Feiticeira. Outros, porém, seriam artigos exclusivos de sebo 
não fosse o projeto de uma jovem editora (Éditions des Équateurs) 
de relançar todos os títulos que compõem a História da França. Con­
duzida, desta vez, por Paule Petitier, a edição completa perfaz, no 
total, 17 volumes. Vida longa aos jovens editores!

O objeto principal deste ensaio é o livro La Sorcière [A Feiticeira], 


de 1862.7 Tratando do tema da feitiçaria, essa narrativa divide­se em 
duas partes – dois “livros”, para utilizar a terminologia de Michelet 
– temática, cronológica e formalmente distintas. O “primeiro livro” 
versa sobre a “idade lendária” da feiticeira, cobre o feixe de tempo 
que  vai  dos  primórdios  do  cristianismo,  convertido  em  religião 
oficial do Império Romano até o século XIV, e caracteriza­se por 
apresentar uma narrativa que se aproxima do estilo lendário, num 
texto  altamente  figurativo  e  poético.  O  “segundo  livro”  trata  da 
expansão do fenômeno da feitiçaria e de alguns processos inquisi­
toriais que a tiveram como foco, cronologicamente contemplando
do século XV até o XVIII e distinguindo­se por uma prosa mais
analítica, altamente detalhista e crítica.
La Sorcière pertenceria, pois, a um filão historiográfico de Miche­
let desenvolvido em paralelo a sua História da França. Nesse caso,
poderia ser alinhada juntamente a uma série de outras produções
que completam e/ou ampliam a historiografia do autor, tais como
História romana (1831), Memórias de Lutero (1835), As mulheres da
Revolução (1854) ou A Bíblia da humanidade (1864). No entanto, e
diferentemente do parco reconhecimento que envolve estes últimos
títulos, o destino crítico de La Sorcière é bem mais afortunado.
Não por acaso, essa obra foi definida por Roland Barthes como
o “livro de predileção de todos os que amam Michelet”, porque,
“reunindo (…) todas as tentações” do historiador, “instala­se
deliberadamente na ambiguidade, ou seja, na totalidade”.8 No
entendimento do crítico, essa totalidade deve­se à presença forte
do “mito” – ou da lenda –, através do qual a narrativa abrir­se­ia
tanto para o campo da História quanto para as terras da Literatura,
embaralhando­os. Essa confusão de fronteiras recobre, na realidade,
os dois terrenos mais expressivos nos quais se estabeleceu a fortuna
crítica micheletiana, concernentes não apenas a La Sorcière, mas a
toda a obra do autor.
Mas esse livro também soube atrair para si leituras que chegam
de outras terras, além daquelas da História e da Literatura. Se for
ou não o livro predileto, é fato ser este o título mais generoso de
Michelet, ao menos do ponto de vista dos conhecimentos disci­
plinares atuais. La Sorcière já atraiu os cuidados da Psicanálise, da
Antropologia e da Filosofia, juntamente, é claro, com os da História
e os da Literatura.9
Por outro lado, também é fato que essa capacidade de inspirar
leituras de extrações distintas não é de todo estranha ao que Michelet
ansiava alcançar com sua história, nem ao que pretendera nessa obra
específica. Nesse caso, La Sorcière talvez pudesse ser lida como a
mais perfeita realização de um voto que, certa vez, esse historiador
formulara como o fim último de toda a sua produção. Diante dos
“fios partidos” da tradição, quisera “refazer” sua disciplina em
“bases mais sólidas”, de modo que essa releitura do passado per­
mitisse entrever “o embrião que traz em seus flancos: o futuro”.10 A
tópica clássica da história magister do futuro, revista pela chave da
fortuna crítica de La Sorcière, comprovaria, em parte, seu cumpri­
mento. Ao menos no que toca os modos de conhecimentos a serem
desenvolvidos posteriormente, Michelet teria sabido, a crédito dos
leitores desse livro, compor um texto que não recua diante do que
ainda estava por vir.
No caso deste ensaio, o interesse específico é oferecer uma leitura
que privilegie aquelas “bases sólidas” próprias e disponíveis ao
historiador. Por isso, o campo de exploração aqui é exíguo, quando
diante da totalidade de sua fortuna crítica. Restringi­me a colocar
em primeiro plano alguns liames teóricos, formais e históricos que
teriam informado, diretamente, a escrita de Michelet nesta obra. Ou
seja, esta leitura limita­se a extrair e interpretar alguns dos dados
disponíveis ao horizonte intelectual desse autor, em especial aqueles
que ele próprio destacou.
Esse corte metodológico apoia­se em dados internos e externos
ao livro escolhido. Em primeiro plano, destaca­se o fato de que, a
seguir a fortuna crítica desse texto – literalmente afortunada quando
comparada à recepção típica do restante da obra – e na esteira da
ambição historiográfica de Michelet, é de se supor que ele tenha
encontrado, ao menos ali, um modo eficaz de professar o futuro.
Num segundo plano, essa eficácia remete, porém, a algo que se
pode considerar o desafio maior de sua recepção, a saber, o fato de
que a figura de um autor profético ou de um autor­profeta,11 gênio
intuitivo e de alto talento literário, é a imagem que mais se colou
– de todas aquelas descritas por Halévy – ao rosto dessa obra para
os leitores atuais. E essa imagem sobrevive, para além das feiticeiras
micheletianas, dizendo de um feitiço cujo segredo, intimamente
ligado ao talento narrativo, se mantém.
Sem pretender desfazer o segredo, aqui a pretensão seria o de
interpelá­lo, destacando alguns de seus elementos que pareceram
importantes na composição de uma parte dessas “profecias”. Essa
ambição não é estranha às principais matrizes críticas que trataram
de Michelet na atualidade.

Como foi sugerido antes, a fortuna crítica micheletiana, primor­


dialmente assentada entre o campo histórico e o campo literário, tem
como desafio comum lidar com um autor em torno do qual paira
o espectro da profecia.12 Esse espectro alimenta­se tanto do fato de
tratar­se de um historiador classificado na escola dos românticos,
quanto de essa classificação reforçar­se pelo reconhecimento de que
suas histórias são obra de um grande talento literário. Através dessas
marcas de leitura, a imagem de Michelet deixa­se absorver numa das
figuras mais célebres de sua época: a do homem de gênio, imbuído
de talento e imerso na inaudita riqueza de uma subjetividade na
qual sua produção alimenta­se e dá­se a ler como produto, ao fim
e ao cabo, “artístico”.
Uma arte estruturalmente pessoal, particular ao sujeito que a
realiza, na qual se poderia buscar inspiração para compor outras
obras de arte (como fez Flaubert em Salammbô, relendo a História
romana de Michelet, ou Zola; extraindo dessa historiografia um dos
paradigmas de seu realismo).13 Porém, essa arte da escrita miche­
letiana, já reconhecida pelos seus pares, é também a característica
que mais lhe parecia pôr em perigo a boa sorte de suas profecias: a
de serem reconhecidas como fruto de um trabalho de constituição
de uma ciência da história. Numa carta dirigida a Taine, a consci­
ência desse perigo testemunha que o estabelecimento da fronteira
entre a obra de arte e a obra de história já se fazia presente e era
percebido pelo historiador como ameaça séria à compreensão de
seus trabalhos. Escreve Michelet:

Cavalheiro,
Vós me cumulastes de elogios, como escritor, e vosso artigo é muito
bom e muito sério, salvo que é parcial num ponto.
Sendo novo na crítica, ignorais ainda que esse nome de poeta que me
outorgais é justamente a acusação sob a qual se acreditou até agora espe­
zinhar o historiador. Essa palavra respondeu a tudo.
Em vão me esforcei por dar à história uma base séria e positiva numa
infinidade de pontos. Exemplos: a história do banco (em meu livro da
Reforma), o orçamento de Filipe (nas guerras de Religião etc.). A eleição
de Carlos Quinto, tratada politicamente por Mignet, o foi por mim finan­
ceiramente, ou seja, na verdade.
Mesmo assim se escreveu por toda a parte que eu era um historiador
de fértil imaginação.
Eu vos saúdo cordialmente e peço que acrediteis em minha gratidão.14

Essa parcialidade do crítico – que educadamente Michelet tributa


à sua jovialidade – sobreviveu, malgrado seus vários esforços em
combatê­la, como um espectro que ronda os textos desse historia­
dor. Não por acaso, em torno desse espectro organizam­se as duas
linhagens principais da fortuna crítica micheletiana, a historiográfica
e a literária.
Grosso modo, essas linhagens deixam­se recuperar, para além
das visadas singulares que contêm, sob a chave de matrizes de lei­
tura. Ou seja, elas organizam e delimitam duas respostas distintas
acerca do estatuto de leitura da obra micheletiana. Na matriz
historiográfica, o modelo interpretativo mais corrente pode ser
exemplificado por um instigante comentário de Philippe Ariès,
acerca das relações que a Nova História estabeleceu com a obra dos
historiadores românticos:

O historiador romântico, Augustin Thierry ou Michelet, propunha­se a


evocar o passado, fazê­lo reviver com todos os seus aspectos pitorescos e
saborosos, com a sua cor própria. No relato autêntico dos acontecimentos
passados, os historiadores procuravam o mesmo desenraizamento que
poetas e romancistas pediam à ficção, e à ficção histórica. Ora, essa preocu­
pação de desenraizamento, que dali em diante orientava o historiador para
o quadro vivo, era justamente um sentido rudimentar da diferença entre
os tempos. Rudimentar, porque se satisfazia com uma evocação simples­
mente pitoresca e permanecia na superfície das coisas: era mais o gosto das
curiosidades do que o das variações em profundidade da estrutura mental
ou social. Porém, esse espanto diante do passado permanecia sendo uma
importante aquisição da história. Descobria­se com entusiasmo o que era o
outro. É por isso que, apesar de suas lacunas e seus erros, Michelet conserva
ainda hoje (e hoje mais do que ontem) um interesse apaixonante. Ele era
sensível demais às singularidades da história para não ter apreendido, por
intuição, os contrastes, as diferenças que o historiador contemporâneo re­
encontra com uma base científica mais segura, mas sem contradizer quanto
ao fundo as intuições divinatórias, embora incertas, do romântico genial.
Faltava, porém, aos autores dessa primeira metade do século XIX, um
método crítico para estabelecer uma documentação segura (…) Por isso,
exceto algumas intuições de visionário de Michelet, sua obra permanece
hoje letra morta.

Esse trecho parece extremamente propício para exemplificar


o modo como Michelet pôde rivalizar, como historiador e para
historiadores, com grandes autores da literatura. O caráter primá­
rio de sua produção intelectual, condenado, a bem seguir o texto,
não por falta de méritos, mas pelo contexto – a primeira metade do
século XIX –, instituiu um corte perene entre ele e a historiografia
moderna. Esse corte, cujas formulações são tão diversas quanto
serão as linhagens de interpretação abertas pela historiografia
contemporânea, não parece ter sido revertido. Para citar uma outra
variante dessa mesma cisão (cuja fórmula também é uma emula­
ção a Michelet), pense­se em Certeau: “Michelet se estabeleceu na
fronteira onde, de Virgílio a Dante, construíram­se ficções que ainda
não eram história.”16
Reunindo­o a dois dos maiores nomes da literatura ocidental, a
visada de Certeau não deixa de inspirar­se ainda numa definição
possível e moderna do que é um profeta: aquele que diz o que os
outros interpretam ou realizam. De par com ela, vai a mística ro­
mântica do gênio (como outro modo, talvez, de nomear a Musa de
Virgílio e a Beatriz de Dante), conformando poetas que, por razões
estranhas à Razão, acederiam a uma forma de Verdade que, hoje,
através de análises, reconfigura­se a partir dos limites do real. Ou,
dito de outro modo, com Michelet estar­se­ia diante de um sujeito
altamente complexo, agudamente sensível, capaz, por isso, de al­
cançar, ainda que por outras vias, o que constitui o primeiro grau
da pesquisa historiográfica: o espanto diante do passado. Elemento
que se casa perfeitamente com não poucas assertivas espantosas
para um historiador, tais como “eu sempre fiz questão de ensinar
apenas o que eu não sabia”, ou bem a “história é ressurreição”.
Sendo assim, não seria difícil entender como Michelet acabou por
sair da historiografia para assentar­se na história de uma época, e
mais precisamente, para entrar na história literária. Se o empuxo em
direção ao Outro é o ponto comum entre historiadores e escritores,
como quer Ariès, a resposta a esse empuxo é que os diferencia e
diferencia Michelet. Enquanto os primeiros se calçam de método
científico, cuja elaboração seria posterior à geração romântica, só
restaria projetá­lo em meio aos últimos, aqueles cujos trabalhos se
apoiariam não em métodos e pesquisas, mas em dotes pessoais e
intransferíveis: a imaginação, a sensibilidade e a capacidade, neste
caso, também técnica, de produzir um texto cuja força de evocação
é problema da e para a Literatura. Vamos a ela.
Mantendo o intento de apontar tão só matrizes das distintas
recepções de Michelet na História e na Literatura, cabe reconhecer
que, para esta última, Roland Barthes foi o mais renomado e o mais
profícuo dos críticos a enfrentar as profecias micheletianas. Reco­
lhendo justamente aquilo que a historiografia não se sentira apta a
tratar, Barthes soube detectar e explorar a complexidade escritural
desse narrador, sem por isso apagar o fato de se tratarem de his­
tórias. De tantas coisas, ensinou a atentar para a importância dos
significantes na constituição dessas narrativas e explorou a relação
entre o sujeito e seus fantasmas na constituição dos textos e temas
tipicamente micheletianos. Enfim, soube reconhecer na linguagem
um dos vórtices principais do pensamento do historiador. Porém,
e malgrado seus esforços, acabou por reconhecer que havia algo
em Michelet que resistia a sua atualização, a sua “citabilidade” no
presente, como a definiu o semiólogo.17
Seguindo suas palavras, o que resiste na releitura do historia­
dor é o que chamou de páthos micheletiano, a saber, sua ideologia
“pequeno­burguesa” “escrita ingenuamente” que, como um resto
de sua época, ameaçava perdê­lo para a modernidade. Esse “dis­
curso unitário”, atrás de significados e de sentidos para as coisas, é
a urdidura da trama significante que se exibe em seus textos. Não
se separando, esse sentido impediria a dispersão micheletiana na
modernidade, alienando­o de “qualquer leitura psicanalítica e, por
outro lado, [sustentando] um pensamento organicista da História
que só pode lhe fechar a leitura marxista”.18
A saída, com Barthes, seria uma leitura “discriminatória”, que
despregasse o texto do discurso, o autor de sua época, o homem de
suas ideias.19 Essa leitura discriminatória, tão sofisticada quando em
mãos do intérprete, cria, no entanto, um outro impasse, versando
agora sobre a possibilidade de entender suas profecias. Pois, nesse
caso, seu entendimento dependeria de uma certa dose de exclusão
da lógica interna do pensamento que lhes forjou, em proveito do
que as epistemes modernas poderiam reconhecer como comum.
Conquanto por caminhos tortos, essa discriminação do que se
poderia chamar “historicidade” de Michelet paga­se ao preço da
manutenção do profeta ou do gênio inexplicável – em novos termos,
na mística em torno do Escritor –, daquele que sabe sem saber.

Seis anos antes do artigo de Halévy, um contemporâneo e conter­


râneo seu também se veria às voltas com Michelet. Em A Prisioneira,
Marcel Proust empresta a seu narrador algumas divagações que
ecoam aquela imensidão obscura em meio à qual se embrenha e se
perde de vista a face micheletiana. O primeiro passo de Proust, no
entanto, foi o de submergir a estranheza de Michelet na imensidão
de estranhezas que nasceram naquele século. Assim, o narrador
parecia ter encontrado um compasso comum para a compreensão
da singularidade micheletiana, cuja virtude seria a de resgatá­la
de seu isolamento, quiçá de sua mitificação. Reunindo­o a vários
nomes célebres do período, Proust oferece, pois, uma perspectiva
que reabre o horizonte próprio ao historiador, observando o texto
no tempo, a obra nas ideias, o homem no mundo que o envolvia:

(…) considerava eu quanto, em todo caso, essas obras participam do


caráter de ser – ainda que maravilhosamente – sempre incompletas, caráter
que é o de todas as grandes obras do século XIX, cujos escritores mais
eminentes deixaram nos seus livros a marca de sua personalidade, mas,
observando­se a si próprios ao trabalharem, como se fossem ao mesmo
tempo o operário e o juiz, tiraram dessa autocontemplação uma beleza
nova, exterior e superior à obra, impondo­lhe retroativamente uma unidade,
uma grande que ela não tem. Sem nos determos naquele que viu em seus
romances, depois de escritos, uma Comédia humana, nem naqueles que a
poemas ou ensaios sem conexão entre si intitularam A lenda dos séculos e
A Bíblia da humanidade, não podemos, todavia, dizer deste último que ele
encarna tão bem o século XIX, que as maiores belezas de Michelet devemos
procurá­las menos em sua obra mesma do que nas atitudes que ele toma
em face dessa obra, não na sua História da França ou na sua História da
Revolução, mas nos prefácios que escreveu para os seus livros? Prefácios,
isto é, páginas escritas depois de escritos os livros, nas quais os aprecia e às
quais cumpre juntar aqui e ali algumas frases que começam de ordinário
por um: “Devo dizê­lo” que não é nenhuma precaução de sábio, senão
cadência de músico. (…)
Unidade ulterior e não factícia, senão esboroar­se­ia como tantas sis­
tematizações de escritores medíocres, que com grande esforço de títulos e
subtítulos querem aparentar terem tido em vista um único e transcendente
desígnio. Não ficaria, talvez até mais real por ser ulterior, por ter nascido
de um momento de entusiasmo em que é descoberta entre pedaços a que
só falta unirem­se. Unidade que se ignorava a si mesma, logo vital e não
lógica, que não proscreveu a variedade nem arrefeceu a execução.20

No que fora um problema para Halévy, Proust encontra então


uma resposta, formulada através de um pequeno desvio que,
recosturando as histórias e as suas artes, também recostura a face
micheletiana. Se há que se buscar um rosto único e, ao mesmo
tempo, comum à época – sugere o narrador –, ele talvez deixasse
captar, na moldura do páthos da totalidade, as várias faces e formas
de expressar a paixão pelo inacabado.
Proust abre, assim, uma visada para esse historiador que amplia
a perspectiva de sua recepção. Se o narrador evoca Balzac ou Hugo,
talvez pudéssemos evocar ainda muitos outros nomes, tais como
Comte, Marx, Freud e, no limite, próprio autor de Em busca do tem-
po perdido, lista ínfima da dimensão superlativa que caracterizaria
alguns projetos concebidos ou inspirados pelos ares do século XIX.
Por essa via, talvez fosse o século XIX que, de fato, merecesse
aqueles termos através do quais Halévy definira Michelet: “imen­
so, estranho, quase incompreensível”. Para alguns, a única forma
de tratá­lo é renomeando­o conforme sua vastidão: em cem anos,
cumpriram­se várias eras, como sugere Hobsbawm em sua trilogia
dedicada aos Oitocentos.21 Essa vastidão, por seu turno, é, para
outros, um indício forte de nossa proximidade e mesmo de nossa
filiação com aquele século. François Furet, ao comentar os dilemas
particulares aos especialistas da Revolução Francesa, indica a ne­
cessidade de se reconhecer o quanto de paixões nossas alguns dos
eventos dessa época ainda são capazes de despertar. Por isso, mais
do que exibir as credenciais de sua pesquisa, o que esse historiador
sugere para os que adentram o terreno de estudos da Revolução
talvez pudesse ser estendido para todos aqueles que adentram, à
cata de um autor ou de um acontecimento, a história do século XIX.
Campo minado e mitologizado, ele parece exigir de seus visitantes
– qualquer que seja o endereço da visita – que este “anuncie suas
cores”, a bandeira que defende, antes de adentrar tal terreno.22
No caso deste ensaio, o esforço foi o de extrair da rica paleta de
cores do período aquelas que foram as mais próximas do “operário­
­juiz” de La Sorcière. O que significa delimitar a interpretação a um
horizonte de sentidos familiar ao historiador, mesmo critério que
conduziu a seleção dos intérpretes micheletianos nos quais esta
leitura apoia­se.
O primeiro matiz dessa opção de leitura conduziu ao reconheci­
mento da importância que a obra do filósofo Giambattista Vico teve
na formação do historiador. A influência confessa do pensamento
de Vico, assim como a singularidade das reflexões desse filósofo
sobre a lenda – tema e motivo capital em La Sorcière –, incitou a
tentativa de elaboração de um Vico micheletiano, como uma fonte
obrigatória para o entendimento do método do historiador.23 À
primeira vista, pode soar estranho pensar no método como chave
de leitura para uma obra celebrada por sua dimensão poética. Ora,
o caso é que, não bastasse Vico também se notabilizar no trato com
a poesia, não bastasse ainda o próprio Michelet ter se dedicado ao
tema com Origens do direito francês (principal referência teórica de
La Sorcière), o historiador ainda por cima achara por bem conduzir
a leitura desse livro, propondo seu entendimento como o de uma
“obra de arte” cuja “parte fundamental é o método”. Razão pela
qual a Parte 2 deste estudo foi dedicada à leitura do filósofo em­
preendida pelo historiador e à compreensão da ideia de método
historiográfico daí resultante.
O segundo matiz deste ensaio é o de tentar entrecruzar a biblio­
grafia micheletiana ao contexto sociopolítico desse autor. Buscou­se
explorar, assim, alguns elementos bibliográficos e contextuais mais
ou menos distantes do momento de produção do livro, mas que ali
mereceram um tratamento específico por parte do historiador. Nes­
se caso, os entrecruzamentos propostos nesta leitura tenderam a se
restringir ao domínio do público, no duplo sentido da palavra: os
textos que Michelet torna públicos e os que mais se esforça por fazer
ouvir, a partir dos quais se extraiu um conjunto de temas caros ao
historiador e que, de diversas maneiras, parecem ter atravessado o
caminho de La Sorcière. Esse exame apresenta­se especialmente con­
centrado na Parte 1, conquanto ressurja ao longo de toda a análise,
rearticulado em função dos elementos específicos de cada um dos
capítulos. Nesse caso, desses temas destacar­se­ia a “questão” por
excelência da obra micheletiana, da qual parte e na qual encerra sua
historiografia: a Revolução. Campo minado, como ensina Furet. A
fim de evitar suas armadilhas, a leitura aqui proposta retoma­o em
diagonal, concentrando­se nas interpretações do próprio Michelet
e, mais especificamente, na forma como algumas delas emprestam
inteligibilidade à narrativa de La Sorcière.
O terceiro matiz é o da direção desta leitura. Se a ambição
principal deste ensaio é a de buscar princípios de inteligibilidade
capazes de ajudar na compreensão da historiografia micheletiana,
exemplificada aqui pela feiticeira­profetisa de La Sorcière, essa
ambição sustenta, como seu aspecto preambular, um olhar para
Michelet que o captura como um pensador, no sentido forte do
termo. Pensador suis generis – embora não estivesse sozinho nessa
trilha – porque, para além das paixões comuns com seus contempo­
râneos (a paixão pelo inacabado, a paixão pela filosofia da história
ou a paixão pela Revolução), reconhecia que a singularidade de um
pensamento deve implicar, em seu horizonte de expressão, um trato
também singular com a linguagem. Nos termos de Michelet, esse
pensamento próprio significa:

Ousar uma nova língua; não aquela da inocência bárbara, que tudo
dizia sem se enrubescer, sem se dar conta das profundezas; não aquela da
orgulhosa Antiguidade, que usava e abusava, desprezava a humanidade,–
mas a da ternura moderna, que, nas coisas do corpo, sente e ama a alma, ou
melhor, nem alma nem corpo, mas em todos os pontos, o espírito: a língua
de um Rabelais sério e apaixonado.24

Perseguir as marcas dessa nova língua conduziria, em função dos


matizes de leitura antes expostos, a um outro ensaio que, embora
sedutor, não é este. Pois uma tal leitura parece impor, em primeiro
plano, reconstituir as pegadas de Rabelais no texto micheletiano,
cuja principal virtude – a da alegria, tal como fora explorada em
Renascimento e Reforma ou em O Banquete – contraria o tom que
parece predominante em La Sorcière. Tom crepuscular, tom trágico, 
ainda que preservando, em meio à tragédia, outra virtude, a “da 
esperança”, da qual Michelet seria altamente dotado. Dispersos ao 
longo de todo o livro, esse tom e essa virtude encontram­se reunidos 
nas últimas palavras do epílogo de La Sorcière, quando o historiador, 
de volta a um presente tão árido quanto o dos arredores de Toulon, 
lugar onde escreveu o livro, diz:

Este lugar, completamente africano, tem clarões de aço que, durante 
o dia, cegam. Mas nas manhãs de inverno, sobretudo em dezembro, era 
repleto de um mistério divino. (…) De seis às sete da manhã, eu contem­
plava um momento admirável. A cintilação viva (ousaria dizer, dura) das 
estrelas envergonhava a lua e resistia à aurora. Antes que ela aparecesse e 
depois, enquanto durava o combate entre as duas luzes, uma transparência 
prodigiosa do ar permitia ver e escutar a distâncias incríveis (…)
Um azulado indefinível (que a aurora rosácea respeitava, não ousando 
pintar), um éter sagrado, um espírito, fazia, da natureza, espírito.
No entanto, já era perceptível um progresso, lentas e doces alterações. 
Uma grande maravilha estava por chegar, explodir e eclipsar tudo. Dei­
xemo­la vir, mas não a apressemos. A transfiguração próxima, os deslum­
bramentos que chegam com a luz, em nada afetam o charme profundo de 
se estar ainda na noite divina, semiescondido, sem se separar por completo 
do prodigioso encantamento… Vem Sol! Já te adoramos, conquanto apro­
veitando desse último momento de sonho…
Ele vai nascer… Aguardemos com esperança, com recolhimento.25

Essa dupla face do crepúsculo, preservada nas faces duplas e dú­
bias da narrativa, será objeto da Parte 3 deste livro. Recorrendo aos 
princípios teóricos e aos liames contextuais antes expostos, busca­se 
aí uma hipótese de interpretação para as ousadias que dão forma 
ao pensamento de La Sorcière. Deixando os detalhamentos para as 
páginas a seguir, seu núcleo principal encaminha­se na direção de 
uma leitura dessa obra como parte de um projeto ao mesmo tempo
historiográfico e poético. Melhor dizendo, uma leitura que busca
recuperar no texto alguns elementos que configurariam, quando
relidos sob prismas próximos àqueles de Michelet, a possibilidade
de pensar em sua historiografia como algo da ordem de uma po­
ética da história.
O principal desafio de uma tal operação com o passado seria,
portanto, o de reoperar com os limites através dos quais a tradição
separara o terreno da poíesis do da história: o primeiro, aberto ao
espanto filosófico; o segundo, circunscrito ao estabelecimento do
particular. Porém, todos os que já leram alguma coisa de Michelet
sabem ser essa uma historiografia do suspense. Não se pensa aqui
no gênero literário, até porque o historiador é propositivo demais
em seus julgamentos para que fosse capaz de provocar esse tipo de
surpresa. Portanto, esse efeito de suspense diz, sobretudo, de um
ritmo narrativo que parece suspender o objeto de suas histórias:
suspensão do passado, suspensão do sabido. O que faz com que seus
textos tragam consigo algo daquilo que Proust descobriu através
dos prefácios micheletianos, a saber, o fato de a unidade da obra
ser sempre algo que aparece a posteriori e cuja descoberta é motivo
dos encantos, das surpresas e das reviravoltas que, sem pudores,
invadem suas narrativas.
Edmund Wilson foi um dos que viu nesse traço a marca do estilo
e do método historiográfico micheletiano. Melhor dizendo, foi um
dos que reconheceu a confluência entre o estilo de escrita e o modo
de pensar a história. Daí as paralelas distantes nas quais dispõem o
historiador moderno e a historiografia micheletiana:

Este sabe o que vai acontecer no decorrer de sua narrativa histórica,


porque já tem na cabeça o conhecimento dos fatos reais que ocorreram;
Michelet, porém, consegue levar­nos de volta a períodos anteriores, de
modo que sentimos as mesmas incertezas dos personagens do passado,
acreditamos em sua fé heroica, ficamos desanimados quando lhes ocor­
rem catástrofes inesperadas, sentimos – ainda que já conheçamos os fatos 
que estão por acontecer – que não sabemos direito o que o futuro reserva. 
Michelet tem uma sensibilidade de poeta para cada mudança de ritmo, 
movimento ou escala; e desenvolve uma técnica infinitamente variada para 
registrar fases diferentes.26

Ritmo,  movimento,  escala:  estamos  de  volta  às  margens  de 


Proust.  Margens  que,  sem  apagar  o  reconhecimento  do  talento 
próprio a Michelet, também trazem de volta a técnica musical, de­
volvendo­nos ao terreno de uma sabedoria partilhável. Esse desejo 
de partilhar o que sabe da história, fundamental em seus prefácios, 
é traço primordial de La Sorcière e de todas as suas narrativas. Nesse 
caso, na cadência dos seus “Devo dizê­lo”,27 Michelet alcança, ao 
menos, dizer de sua intenção de partilhar os fundamentos a partir 
dos quais estabelecera uma obra cuja unidade é sempre objeto pos­
terior a ela mesma, cuja leitura pede uma nova escrita, cuja reflexão 
pede um novo pensamento.
Traço característico de La Sorcière. Retomando um velho tema, 
recuperando diversos textos seus, Michelet escreve esse livro como 
um prefácio – à moda proustiana – cuja unidade estaria no desejo e, 
mais, na necessidade de reabilitar a figura da feiticeira como pilar 
de todas as revoltas sob as quais se fundamenta uma certa ideia de 
mundo moderno. Essa necessidade o fará ousar, numa nova língua, 
reescrever sua própria história acerca dos caminhos passados que 
deram forma ao presente. Enfim, ela o obrigará a descobrir, numa 
tragédia, numa lamentável narrativa, imagens críticas; porém, quem 
sabe, capazes de provocar o pensamento de seus contemporâneos.
Como em todos os outros textos, a reabilitação da Feiticeira im­
plica uma ressurreição, ou ainda, uma recriação do passado, cuja 
evocação pretende fazê­lo presente. Essa é a tarefa ou a meta que 
o historiador estipulou para si mesmo. Tarefa que se assemelha à 

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