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O Cinema em Sala de Aula:

representações da Idade Média em


O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud

Edlene Oliveira
Possui graduação e mestrado em História pela Universidade de Brasília. Obteve o título de doutor em História
pela mesma instituição. Atualmente é professora adjunta da área de Teoria e Metodologia do Ensino de
História do Departamento de História da UnB. É ainda coordenadora do Laboratório de Ensino de História
da UnB (LABHIS). Publicou o livro Entre a Batina e a aliança: sexo, celibato e padres casados pela editora
Annablume além de diversos capítulos e artigos em revistas científicas. Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Medieval e Ensino de História principalmente nos seguintes temas: relações de
gênero, sexualidade, religiosidade, cinema e livro didático.

Resumo
Este artigo discute como a Idade Média representada no filme O Nome da Rosa (Der Name
Der Rose, Jean-Jacques Annaud, 1986) constitui um importante meio para o ensino de História
Medieval nas escolas. Ao mesmo tempo em que constrói e reforça estereótipos e preconceitos
sobre a Idade Média, o cinema pode ser fonte privilegiada de desconstrução desses estigmas,
de aprendizagem e conhecimento na área de História, considerando as especificidades da
linguagem cinematográfica e as possibilidades interpretativas e poéticas próprias da liberdade
inerente à sétima arte.
Palavras-chave: Cinema; História; Ensino de História; O Nome da Rosa.

Abstract
This article discusses how the Middle Age depicted in the film The Name of the Rose (Der Name
Der Rose, Jean-Jacques Annaud, 1986) is an important means to teach Medieval History at
schools. At the same time that it builds and reinforces stereotypes and prejudices about the
Middle Age, the movies can serve as privileged source to de-construct these stigmas, enabling the
learning of and knowledge about History, considering the specificities of the movies’ language and
the interpretative and poetic possibilities ensuing from the freedom inherent to the Seventh Art.
Keywords: Movies; History; History Education; The Name of the Rose.

Recebido em: 29/03/2011 Aprovado em: 30/04/2011

Domínios da Imagem, Londrina, ano IV, n. 8, p. 31-40, maio 2011 31


Edlene Oliveira

O Cinema em Sala de Aula:


representações da Idade Média em O Nome da Rosa de
Jean-Jacques Annaud

O estudo da imagem na escola linguagem cinematográfica no caso dos


filmes históricos1 exibidos em sala de aula,
Apesar das pesquisas atuais terem uma preocupação geral dos estudantes e do
avançado muito na análise das imagens, meio acadêmico diz respeito à fidelidade da
percebendo-as não apenas como meras reconstituição histórica de uma determinada
ilustrações de textos, o recurso imagético época (MONGELLI, 2009, p.10). O
pode ser ainda mais explorado no Ensino historiador Louis Gottschaclk, explicita essa
de História e, conseqüentemente, na preocupação quando afirma que
formação do professor, pois os docentes ora
nenhuma película de natureza histórica deve
aparecem priorizando o documento escrito,
oferecer-se ao público até que um reputado
ora trabalhando as imagens isoladamente historiador a tenha criticado e corrigido (apud
de maneira superficial e inadequada. Ivan NÓVOA, 2008, p.27).
Gaskell reflete que
A veracidade histórica não é um dos
embora os historiadores utilizem diversos tipos critérios que levam o grande público a uma
de material como fonte, seu treinamento em
geral os leva a ficarem mais a vontade com os
sala de projeção, nem se configura como uma
documentos escritos (1992, p.237). imposição para a linguagem cinematográfica,
todavia deveria ser um compromisso social
A educadora Áurea Maria Guimarães dos grandes diretores que tencionam abordar
destaca os benefícios e o aprimoramento temas históricos, como foi o caso do filme de
do processo formativo dos docentes e Annaud.
dissentes que estudam as questões teóricas
e metodológicas do trabalho com imagens. Uma fonte cinematográfica para se entender
Para ela, a interpretação de uma imagem não a Idade Média
é jamais uma descrição literal, pois instiga a
a percepção do observador, ultrapassando Dirigido por Jean Jacques Annaud e
as diretrizes traçadas pelo educador: “Ser baseado no romance homônimo de Humberto
educador hoje é buscar o visível [ou invisível] Ecco, O Nome da Rosa (1986) é um filme
que se esconde nas imagens da linguagem” cuja fidelidade histórica à época medieval é
(2000, p.8) ressaltada por muitos estudiosos do cinema.
É interessante observar que, apesar A história se passa em 1327 quando o
da problematização da especificidade da monge franciscano inglês e ex-inquisidor

Segundo a definição de Barros, estes seriam os filmes que buscam representar ou estetizar eventos ou processos históricos conhecidos,
1

e que incluem entre outras as categorias dos “filmes épicos” e também dos filmes que apresentam uma versão romanceada de
eventos ou vidas de personagens históricos ou filmes de ambientação histórica, considerando os filmes que se referem a enredos
criados livremente mas sobre um contexto histórico. (2008, p.44)

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William de Baskerville (Sean Connery) e Adso não é obra minha, é obra de Jean-Jacques
von Melk (Christian Slater), um noviço que Annaud”.
o acompanha, chegam a um mosteiro no Nos créditos de abertura de O Nome da
norte da Itália no qual participariam de um Rosa aparece na tela o aviso: “um palimpsesto
conclave para discutir se a Igreja devia ou não da novela de Umberto Eco”. O termo grego
doar parte de suas riquezas. No entanto, a palimpsesto refere-se a um manuscrito que foi
atenção para o evento é desviada devido aos apagado para que um segundo texto pudesse
assassinatos que acontecem no mosteiro e ser escrito sobre ele, mas com traços do texto
que são explicados pelos monges como obra original remanescente. Pouco conhecido,
do Demônio, opinião não compartilhada por sobretudo pelo espectador comum, Annaud
Baskerville, que começa a investigar os crimes diz que o vocábulo foi escolhido em comum
e a solucioná-los lentamente. acordo com Eco para demonstrar que o
Jorge Nóvoa considera a versão fílmica filme seria uma interpretação e não cópia
de O Nome da Rosa um “retrato da realidade fiel do romance (documentário “A Abadia
com a máxima fidelidade” (2008, p.30). do Crime”).
Tal idéia é reforçada pelo fato da película O leitor de uma obra escrita estabelece sua
ser realizada com a colaboração direta de própria interpretação particular de um texto
importante equipe de medievalistas, dirigida escrito individualmente. Já o espectador de
pelo renomado historiador francês Jacques cinema é mediado por uma série de variáveis,
Le Goff (NÓVOA, 2008, p.30). pois a produção cinematográfica é uma obra
Todavia, apesar do minucioso trabalho de coletiva. Um filme baseado em um romance é
pesquisa, o medievalista Rivair de Macedo a transcodificação deste, “propondo significar
criticou a transposição do romance de Eco visualmente um conjunto de significações
para o cinema pois acredita que verbais” (FLORY; MOREIRA, 2006, p.45). A
adaptação cinematográfica de um romance
Annaud optou pela simplificação do enredo envolve a mediação de uma equipe de
complexo da história, alterou o papel de certos
personagens e minimizou ou enfatizou certos
pessoas que estão encarregadas do trabalho
temas tratados no romance (2009, p.28). interpretativo dos atores, da direção de
arte (elaboração do cenário, do figurino e
Não pretendo esgotar as possibilidades maquiagem), do movimento das câmeras em
de diferentes leituras do filme O Nome da cena pelas variações de plano (foco grande,
Rosa e não é intenção deste artigo fazer plano, plano de conjunto), da edição de
comparações valorativas sobre a película imagem e som (cortes e montagem), da trilha
de Annaud2 e o romance de Umberto Eco. sonora e da construção do roteiro.
Ao acompanhar os debates em relação à Como sublinham Suely Flory e Lúcia
fidelidade narrativa e histórica do filme, Moreira
o próprio Eco, no documentário alemão
o filme é uma leitura partilhada [...] em
“Die Abtei des Verbrechens” (a Abadia do
oposição ao ato individual de re-inventar os
Crime)3, de 1986, sai em defesa do cineasta sentidos do texto na qualidade de leitor/re-
afirmando: “o filme que estão fazendo criador da narrativa literária (2006, p.45-46).

2
Jean-Jacques Arnaud, diretor francês, já tinha experiência na direção de filme de temática histórica. Dirigiu em 1981 “A Guerra
do Fogo”, que recebeu vários prêmios na França (dois César, um de melhor diretor e outro de melhor filme).
3
Este Documentário faz parte dos Extras do DVD “O Nome da Rosa”, distribuído pela Warner Home Vídeo - Brasil.

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Ainda para as autoras, o tempo é um na reprodução dos manuscritos ilustrados em


importante fator de diferenciação entre a latim, grego e árabe, decorado com folhas de
linguagem fílmica e literária pois ouro em pergaminhos antigos e os desenhos
das peças foram submetidos aos historiadores
é preciso o trabalho dos roteiristas e diretores da França para aprovação. Segundo Jacques
para significar a complexidade vertical
do tempo da narrativa na complexidade
Le Goff, a pesquisa minuciosa assegurou a
horizontal/espacial do filme (Idem). veracidade do filme (“Abadia do Crime”).

Apesar das críticas à versão filmada de “O O medievo pela tela: entre o mundano e o
nome da Rosa”, o cineasta Annaud realizou divino
um projeto ousado cujo objetivo era levar
o espectador a conhecer a Idade Média e A primeira cena analisada ocorre quando
reconstruir com fidelidade esse momento William, recém acomodado em sua cela,
histórico. “Se Eco, numa determinada cena, tenta esconder do abade alguns instrumentos
diz que um monge deixou cair a batina, eu que carregava na bolsa (um quadrante,
tinha que mostrar como era a batina, a cor, um astrolábio e uma ampulheta). É como
o desenho, a textura” esclarece Annaud, se tivesse ocultando algo que pudesse
(documentário “A Abadia do Crime”), incriminá-lo. Nesta cena percebe-se que
ressaltando a responsabilidade e o desafio na Idade Média os conflitos entre a religião
enfrentado para criar uma reconstituição de e a ciência eram muito tensos e podiam
época minuciosa. resultar em uma condenação por heresia
Em busca desse realismo, o Diretor e até mesmo a morte na fogueira. A
contratou o medievalista francês Jacques cena pareceu criada especificamente para
Le Goff, além de uma enorme equipe que mostrar esse embate. É uma cena curta, mas
passou quatro anos preparando cada detalhe extremamente emblemática. No livro de
do filme. Em uma pesquisa monumental, Eco, o personagem Adso fala desse perigo
recolheu mais de 300 livros sobre o século ao comentar sobre os instrumentos que o
XIV. Passou três anos visitando 300 mestre carregava consigo: “Pensei tratar-se
mosteiros na Itália, Espanha e Reino Unido de bruxaria” (ECO, 1986, p.28).
até encontrar na Alemanha Ocidental, uma Em outra cena, Willian e Adso vão até
abadia cisterniense do século XII (construída o Scriptorium para recolher informações
em 1145) de arquitetura românica, quase sobre os monges mortos e ao chegar lá, a
inalterada por 800 anos de existência. câmera faz um passeio, dando uma visão
Segundo o produtor Bernd Eichinger, panorâmica do ambiente. A partir daí o
a autenticidade histórica era fundamental espectador pode ver mesas, cadeiras e
para um projeto em que “a Idade Média instrumentos de trabalho usados pelos
é o personagem principal” (documentário monges para “iluminar”, produzir, transcrever,
“a Abadia do Crime”). Cada hélice, cada copiar e traduzir os livros. O funcionamento
peça de mobiliário e cada livro foi feito à do Scriptorium não é o foco da cena. A parte
mão na Itália. Carpinteiros esculpiram em principal é o debate filosófico entre William
carvalhos envelhecidos os bancos para e Jorge de Burgos sobre o papel político-
a nave e as mesas do Scriptorium. Dois religioso do riso naquela sociedade. Ou seja,
ilustradores trabalharam durante seis meses enquanto o espectador tem em primeiro

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plano uma discussão profunda sobre o caráter coisa ultrapassada, irracionalidade e barbárie
revolucionário ou sacrílego da ironia, pode para ser um período de diversidades de idéias,
contemplar uma gama de informações sobre inclusive de experimentação científica como
como era uma oficina de produção literária demonstram os inúmeros manuscritos de
nos mosteiros medievais. Aparentemente medicina, matemática, astronomia, alquimia,
despretenciosa, a cena mostra as dificuldades geometria e arquitetura produzidos no
do trabalho desses monges, o quanto de medievo. A medievalista francesa Regine
esforço humano, habilidade e arte eram Pernoud argumenta que no século XIII já
empregados para produzir livros. Os monges se conhecia a pólvora de canhão, o uso das
copistas eram, ao seu modo, verdadeiros lentes convexas e côncavas, o álcool, o ácido
artistas. A sequência curta, mas carregada de sulfúrico, o ácido clorífico e o ácido azótico
sentido, mostra ainda quanto a Idade Média (1996, p.157). Já Jacques Le Goff vai mais
é uma época de contrastes. A mesma Igreja longe e afirma que o medievo é o momento
que tenta controlar com “mão-de-ferro” de criação da sociedade moderna (1985,
a produção e a difusão do conhecimento, prefácio).
também reserva um espaço e seus melhores No embate do Scriptorium podemos
homens para a preservação e produção do ainda notar na sociedade medieval as visões
conhecimento. antagônicas sobre o riso que traduzem, em
A película ajuda problematizar o certa medida, os conflitos entre os âmbitos
mito da Idade Média como “Idade das sagrado e profano que balizam todo o
Trevas”, um retrocesso se comparada a medievo. Uma das perspectivas do riso é
Antiguidade Clássica e um atraso em relação representada por Jorge de Burgos, o ancião,
à Idade Moderna e à contemporaneidade. espécie de guardião do conhecimento
É importante lembrar que a fronteira que beneditino, que vê o riso ou a alegria como
separa o medievo da Idade Moderna é algo demoníaco, fonte de perversão, pecado
arbitrária e só se justifica por questões e dúvida sobre a legitimidade da Igreja e
metodológicas, pois inúmeros conceitos, da existência de Deus, como descrito na
representações e instituições considerados fala de Jorge, ao responder à Willian o que
modernos são originários da tradição havia de tão alarmante no riso: “O riso mata
medieval. Um exemplo notório é o conceito o temor. E sem o temor, não pode haver fé.
de universidade surgido e implementado no Porque se não se teme ao demônio não há
século XIII. Essas ponderações não significam mais necessidade de Deus”. Percebe-se nesse
defender uma interpretação ancorada na diálogo claramente a rigidez e a ortodoxia da
idéia de que não houve transformações da Ordem Beneditina, representada por Jorge,
Idade Média para a Idade Moderna e que, em relação ao pensamento Franciscano,
portanto, deveríamos valorizar apenas as defendido por Willian. Ao destacar as
permanências. É claro que houve mudanças, diferenças de pensamento dentro da Igreja,
mas também continuidades e atualizações. o educador pode demonstrar a complexidade
Muitas práticas medievais foram adaptadas, de uma instituição formada por diferentes
ressignificadas e reelaboradas a partir das tradições por meio de contrastes e conflitos
necessidades modernas. internos.
Nesse sentido, a Idade Média deixa de Para fundamentar seu argumento,
ter um significado obscurantista, sinônimo de Jorge de Burgos afirma que Jesus Cristo

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nunca riu e nem utilizou a comédia na sua de magia no interior do mosteiro no qual
pregação. Lembro que no medievo o riso era aparece um gato preto, uma galinha e uma
concebido uma característica que marcava a mulher camponesa. A narrativa deixa claro
inferioridade do homem diante de Deus e a que a saliva da mulher é um dos elementos
sua diferença e superioridade sobre outros rituais utilizados pela feitiçaria arquitetada
animais (SUCHOMSKY apud ALBERTI, 1995, pelo monge. Porém ela é vista como culpada,
p.05) A interpretação de Jesus como mártir em uma indicação de como no medievo as
influenciou boa parte do discurso repressor mulheres eram frequentemente associadas
e dogmático de várias correntes da Igreja. aos pecados da carne e à bruxaria, um crime
Se Cristo se deu em imolação para redimir considerado tipicamente feminino. Acusada
os pecados da humanidade, o prazer e o riso de desvirtuar o comportamento do monge,
deveriam ser evitados sob pena de ofender a mulher é julgada e condenada à fogueira.
a experiência sacrificial do Messias. Esta é uma cena importante, pois evidencia
A certa altura Jorge argumenta que “o a idéia hegemônica do sexo feminino como
riso é uma brisa demoníaca que deforma os um ser maléfico e perigoso. O filme aponta
traços do rosto e faz os homens parecerem claramente que os monges se fartavam
com os macacos”. Le Goff e Truong (2006, de favores sexuais e do “auxílio mágico”
p.76) lembram que no imaginário medieval,
de mulheres pobres em troca de comida.
a divisão espacial do corpo entre cabeça e
Todavia, em uma inversão de papéis, ela é
tronco estabelecia uma hierarquia de valores
vista como a aliciadora de membros do clero,
na qual o ventre estaria relacionado aos
induzindo-os à luxúria e à fetiçaria.
apetites da carne. O riso vulgar, licencioso,
Na Idade Média, a vítima do Diabo e sua
é chamado “abaixo da cintura”, ou seja,
principal agente era a mulher, cujo pendor
próximo à pélvis e por isso associado ao
para o mal é respaldado pela tradição cristã,
prazer sexual, totalmente condenável para
desde que o mito do pecado original atribuiu
monges celibatários.
à Eva a expulsão do Paraíso e a queda da
Rompendo com essa perspectiva,
humanidade. No Eclesiastes está prescrito
Willian via o riso como parte essencial do
que: “pouca maldade é comparada a da
homem podendo ser utilizado tanto para a
mulher, caia sobre ela a sorte dos pecadores
transgressão como para a edificação cristã.
Trata-se da libertação da carga negativa do (25: 19, p.1281) ; “foi pela mulher que
riso, mas não da exigência do seu controle. O começou o pecado, por sua culpa todos
mais interessante e crucial é que Willian cita morremos” (25: 24, 1282). Tomás de Aquino
o pensamento de Aristóteles para justificar lembra a tendência da mulher ao mal,
seus argumentos representando a imagem de sublinhando sua subalternidade ao homem,
um clérigo esclarecido que busca preservar e sua imperfeição, sua debilidade e a facilidade
interpretar o conhecimento clássico à luz do de ser corrompida, o que justifica o controle e
cristianismo. a vigilância sobre o comportamento feminino:
“A mulher é um macho deficiente. Não é
Bruxaria e Heresia: a diabolização da mulher então surpreendente que este débil ser,
e das heterodoxias marcado pela imbelicitas de sua natureza,
ceda as seduções do tentador, devendo ficar
Em outro trecho do filme, um monge é sob tutela”. (São Tomas de Aquino. Suma
flagrado pelo inquisidor preparando um ritual Teológica I, quesão 92, q.93 e q. 99p.79).

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O fato da camponesa não se pronunciar em idealizada e santificada do feminino, não


nenhum momento do filme pode ilustrar menos mediada pelo olhar patriarcal.
bem o silenciamento e o papel subalterno Quando Adso, após manter relações sexuais
do feminino na Idade Média com a camponesa, pergunta a Willian o que
Mas a grande ligação entre a mulher e o acha do amor por uma mulher, ele responde:
Demônio é a sua natureza sexual e mundana “acho difícil convercer-me que Deus tivesse
que a torna uma criatura extremamente criado um ser tão vil sem dotá-lo de algumas
sedutora, encantadora e lasciva, atributos virtudes”. O mestre franciscano admite, assim
que utiliza para levar o homem à luxúria. O como muitos pensadores da época, que
compêndio medieval Malleus Maleficarum, o feminino também poderia ser virtuoso.
escrito em 1484, é um verdadeiro tratado Aliás, no filme o personagem mais coerente
misógino que alerta os sacerdotes e os com a filosofia fraternal do cristianismo é o
leigos sobre os ardis demoníacos da mulher: neófito Adso, que se apaixona pela mulher e
“Toda bruxaria tem origem na cobiça se compadece de sua situação miserável, sem
carnal, insaciável nas mulheres” (KREMER; ao menos saber seu nome.
SPRENGER, 1991, p. 121), portanto era A virtude feminina geralmente estava
“maior o contingente de mulheres que relacionada à sua castidade e o maior
se entregam a essa prática, inclusive as arquétipo dessa pureza foi consagrado pela
predispondo à cópula com o demônio” imagem da Virgem Maria. Em diálogo entre
(Idem, Ibidem, p.84). As perversões sexuais Adso e Urbetino de Casale, este aponta a
masculinas seriam exceções “porque sendo Virgem Maria e diz:
intelectualmente mais fortes que as mulheres
são mais capazes de abominar tais atos” (idem, Ela é linda, não é? Quando uma fêmea, por
natureza tão perversa, torna-se sublime por
ibidem, p.332). Essa visão é confirmada no santidade, então ela pode ser o nobre veículo
filme pelo personagem Urbertino de Casale, da graça.
um franciscano que se exilou no mosteiro e a
certa altura alerta Adso: “Havia algo feminino, Em outra cena Adso roga desesperado,
algo diabólico no jovem que morreu. Ele tinha aos pés de uma imagem da Virgem Maria,
os olhos de uma moça buscando relações clamando por um milagre que salve a
com o Diabo”. camponesa, condenada injustamente a ser
Como se observa na cena do julgamento queimada na fogueira.
da mulher e dos dois monges, os processos Maria na Idade Média é representada
inquisitoriais contra feitiçaria seguiam um como modelo feminino de perfeição e
script que induziam os acusados a assumir santidade, considerada a redentora de Eva
a culpa publicamente sob a justificativa de que veio a mundo com a missão de livrá-la da
serem influenciados pelos ardis demoníacos: maldição do Pecado Original, como assinala
o bispo Irineu de Lyon (130-200):
os réus repetiam mais ou menos os estereótipos
inquisitoriais então divulgados na Europa pela
foi precisamente por meio de uma virgem
boca de pregadores, teólogos, juristas, etc
transgressora [Eva] que a humanidade foi
(GINZBURG, 1991, p. 206).
ferida e tombou, mas foi por outra Virgem
[Maria] que, por ter obedecido à palavra de
Retratando muito bem a misoginia Deus, a humanidade ressuscitada recebeu vida
(apud PELIKAN, 2000, p.67).
medieval, o filme ainda aborda uma visão

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Como virgem que deu a luz e se manteve Como “fábrica de sonhos”, o modelo de
imaculada, Maria é o arquétipo a ser seguido cinema para o grande público consagrado
pelo feminino medieval, ou seja, o da mãe pela indústria norte-americana tem certas
que deve procriar sem se entregar ao prazer. regras “infalíveis” de sucesso e a romantização
Se a condenação à bruxaria tinha o objetivo dos personagens é uma delas. Entretanto,
de combater rituais pagãos, perseguindo esse detalhe não invalida a qualidade do
assim outras formas de prática espiritual, filme enquanto valioso documento para se
a perseguição às heresias deveria evitar compreender o medievo. Cabe ao professor
qualquer desobediência interna aos ditames apontar inclusive esses paradoxos para
da ortodoxia cristã definidos pela Cúria reforçar a idéia do cinema como fonte
Romana. No filme vemos o embate entre histórica, sujeita como qualquer outra,
o ideal de pobreza dos frades franciscanos as condições de produção impostas pelo
que travam uma acalorada discussão com os contexto em que foi criada.
ricos membros do papado. Ameaçada de ser
considerada herética em vários momentos, a Referências Bibliográficas
Ordem franciscana continuou submetida à
autoridade da Igreja, mas influenciou inúmeros ALBERTI, Verena. O riso, as paixões e as faculdades
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