Vous êtes sur la page 1sur 137

Universidade Brasil

Centro de Formação de Psicólogos

ANGELA BARBOSA FELICETE

MARIA LUZINETE RODRIGUES DE MACEDO ALVES

PSIQUE E O HOMEM CONTEMPORÂNEO: NOVOS DESAFIOS E


ANTIGOS CONFLITOS

PSYCHE AND CONTEMPORARY MAN: NEW CHALLENGES AND OLD


CONFLICTS

São Paulo, SP
2016
ii

Angela Barbosa Felicete

Maria Luzinete Rodrigues de Macedo Alves

PSIQUE E O HOMEM CONTEMPORÂNEO: NOVOS DESAFIOS E


ANTIGOS CONFLITOS

Orientador: Prof. Ms. Fábio Pinheiro Santos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentada ao Curso de Graduação de Psicologia


da Universidade Brasil, como complementação dos créditos necessários para
obtenção do título de Graduação em Psicologia.

São Paulo, SP
2016
iii

FICHA CATALOGRÁFICA

ALVES, Maria Luzinete Rodrigues de Macedo; FELICETE, Angela


Barbosa

Psique e o homem contemporâneo: novos desafios e antigos conflitos

Orientador: Prof. Ms. Fábio Pinheiro Santos

Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Universidade Brasil,


Curso de Psicologia.

1. Identidade Social. 2. Ideologia. 3. Psique. 4. Subjetividade.


5. Trabalho.

.
iv

Angela Barbosa Felicete

Maria Luzinete Rodrigues de Macedo Alves

Aprovado em ____/____/____

______________________________

Orientador: Fábio Pinheiro Santos

Mestre

______________________________

Examinador: Ângelo Ortelan

Mestre

São Paulo, SP
2016
v

AGRADECIMENTOS

“Viver é afinar um instrumento


De dentro pra fora de fora pra dentro
A toda hora a todo o momento
De dentro pra fora de fora pra dentro...”
(Walter Franco, Serra do Luar)

Agradeço a Deus por essa vitória que é a conclusão do curso de Psicologia. A minha
amada família que sempre me incentivou, não deixando que eu desistisse desse
sonho, mesmo com as dificuldades que surgiram no caminho.
Angela Barbosa Felicete.

Agradeço pelo carinho e paciência do meu marido e meus filhos, que puderam
entender e respeitar esse momento único em minha vida.
Luzinete Alves.

Por fim, nosso profundo agradecimento a todos os mestres que estiveram conosco
durante essa trajetória, em especial ao professor Fábio.
A prestimosa contribuição de cada um encontra-se contida nos tópicos deste
trabalho, entrelaçada em nossas palavras através do conhecimento e da orientação
que tão afetuosamente compartilharam conosco, e que hoje se transforma na
conquista desse ideal por nós almejado.
Angela e Luzinete.
vi

PSIQUE E O HOMEM CONTEMPORÂNEO: NOVOS DESAFIOS E


ANTIGOS CONFLITOS

RESUMO

O presente estudo consiste num levantamento bibliográfico acerca dos aspectos


teóricos da relação do homem com o trabalho. Com base na Psicologia Social, tal
pesquisa tem o objetivo de apresentar alguns conceitos relevantes para a reflexão
dessa delicada relação que se estabelece desde o início da vida humana.
Considerando o trabalho como uma atividade essencial ao desenvolvimento
integral do homem, contempla-se nessa revisão questões pertinentes tanto a
origem do trabalho quanto o sentido deste ao homem. A proposta é promover um
exame na literatura para uma análise da possível ruptura de mecanismos que
remetem à estagnação do homem frente a um sistema social alienante, que o
condiciona e retira seu poder de criticidade e escolha. Assim, partindo das
contribuições da Filosofia e Sociologia, o estudo aborda a subjetividade que
permeia a formação da identidade do indivíduo e os elementos sociais implicados
nessa constituição, destacando-se a compreensão da ideologia e do capitalismo
diante do entrelaçamento de valores subvertidos que se estabelece com seus
vínculos. Com isso, chega-se ao entendimento de processos psíquicos
subjacentes que perfazem a estrutura humana em sua capacidade de transformar
e mudar o sentido de valores intrínsecos e extrínsecos, tão notoriamente
conturbados nas sociedades líquidas e efêmeras da contemporaneidade, para uma
dimensão simbólica que se ajuste a sua integração psicossocial na atualidade, que,
por vezes, não resultam em um equilíbrio satisfatório para a psique do indivíduo.

Palavras-chaves: Identidade Social; Ideologia: Psique, Subjetividade; Trabalho.


vii

PSYCHE AND CONTEMPORARY MAN: NEW CHALLENGES AND


OLD CONFLICTS

ABSTRACT

This study is a literature about the theoretical aspects of man's relationship to work.
Based on social psychology, this research aims to present some relevant concepts
for the reflection of this delicate relationship that is established from the beginning
of human life. Thus, considering the work as an activity essential to the full
development of man, it is contemplated that review relevant matters at the source
of the work and the sense of this man. The proposal is to promote examine the
literature for an analysis of possible failure mechanisms that lead to stagnation of
man against an alienating social system, the conditions and removes its power to
criticality and choice. Thus, starting from the Philosophy and Sociology
contributions, the study addresses the subjectivity that permeates the formation of
individual identity and social elements involved in this constitution, especially the
understanding of ideology and capitalism before the intertwining subverted values
that is established with their links. This brings to the understanding of underlying
psychological processes that make up the human structure in its ability to transform
and change the direction of intrinsic and extrinsic values, as notoriously troubled in
net and ephemeral societies contemporary, for a symbolic dimension that fits their
psychosocial integration today, which sometimes do not result in a satisfactory
balance to the individual psyche.

Keywords: Social identity; Ideology: Psyche, Subjectivity; Job.


viii

Sumário

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11
1.1 – OBJETIVOS .................................................................................................. 15
1.1.1 – Objetivo geral .......................................................................................... 15
1.1.2 – Objetivos específicos .............................................................................. 15
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................... 16
2.1 – O HOMEM E O TRABALHO ......................................................................... 16
2.1.1 – A relação do desenvolvimento humano com o trabalho ......................... 16
2.1.2 – O trabalho humano ................................................................................. 18
2.1.3 – Sociedade capitalista .............................................................................. 27
2.1.4 – O trabalho no capitalismo ....................................................................... 32
2.2 - PELOS CAMINHOS DA PSICOLOGIA .......................................................... 38
2.2.1 – O começo ............................................................................................... 38
2.2.2 – As origens filosóficas da Psicologia ........................................................ 41
2.2.3 – A Psicologia através dos tempos ............................................................ 47
2.2.4 – A Psicologia Científica ............................................................................ 51
2.2.4.1 – Behaviorismo .................................................................................... 53
2.2.4.2 – Gestalt .............................................................................................. 55
2.2.4.3 – Psicanálise ....................................................................................... 58
2.3 – ENTENDENDO A SUBJETIVIDADE HUMANA ............................................ 64
2.3.1 – O homem pelo olhar da Psicologia Social .............................................. 64
2.3.2 – Os elementos sociais constituintes da personalidade humana ............... 67
2.3.2.1 – A cultura ........................................................................................... 67
2.3.2.2 – A linguagem ...................................................................................... 68
2.3.3 – Os grupos sociais ................................................................................... 75
2.3.3.1 – Socialização primária........................................................................ 75
2.3.3.2 – Socialização secundária ................................................................... 83
2.3.4 – Identidade social ..................................................................................... 89
2.3.5 – Representações sociais .......................................................................... 95
2.4 – O UNIVERSO PSÍQUICO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO .................... 101
2.4.1 – Novos desafios, antigos conflitos .......................................................... 101
2.4.2 – Em busca de novos caminhos .............................................................. 105
2.4.3 – A identidade do homem contemporâneo .............................................. 112
ix

3. MÉTODO .......................................................................................................... 121


4. DISCUSSÃO..................................................................................................... 122
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 132
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 135
x

Lista de Figuras

Figura 1: Tripalium .................................................................................................... 20


Figura 2: Distribuição Econômica da População em Idade Ativa em Fev/2016 ........ 25
Figura 3: Evolução da taxa de desocupação de Jan/2003 a Fev/2016 ..................... 26
Figura 4: Distribuição Econômica da População Ocupada em Fev/2016 .................. 26
11

1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos cinco anos de estudo no curso de Psicologia tivemos muitas vivências,
dentro e fora do ensino acadêmico, que concomitantemente fizeram parte dessa
transformação que o aprendizado nos incita a realizar. Experiências que antes
passava-se desapercebida ou com um outro significado. Contudo, como estudantes
de psicologia ganharam um olhar diferente, como um objeto antigo já por nós
conhecido vestindo uma nova roupagem, destacando-se e ganhando uma forma
relevante. Foi este novo olhar que nos fez refletir sobre uma antiga situação, também
vivenciada por nossas experiências particulares, e desejar compreender o sofrimento
do trabalhador de frente com a impossibilidade de um trabalho formal, levando-o a
estagnação ou submissão de suas ações.
Vemos em Lane (2006) que o indivíduo se constitui através de suas relações,
porém observamos que o significado destas relações sobre nós nem sempre são
claros ou como gostaríamos que fossem.
Alguns eventos e situações trazem implicações em nossas vidas que nos
coloca em xeque diante das nossas escolhas, defrontando com conceitos e valores,
que, segundo Moscovici (2000), não os questionamos mais por estarem arraigados
em nós como caminhos certos a seguir, mesmo quando essa bússola interna parece
estar quebrada.
Lane (2006) também convida a pensar sobre inúmeras situações que podem
empregar uma marca nociva em nossas vidas, muitas dependendo da forma como
são estabelecidas as relações interpessoais, e da maneira como cada pessoa percebe
a sua realidade.
Essa incongruência entre o sentir e o agir é passível em todo o tipo de relações
que construímos. Algumas contradições ainda por forças externas que estão além de
nossa vontade, e, conforme Bauman (2005), provocam grandes abalos em nossa
identidade, podendo desnortear esse fluxo natural que seguimos e nos deixar a mercê
de nossas fraquezas, sem encontrarmos um meio criativo e adequado para
retomarmos a marcha.
Por todos estes mecanismos psíquicos endógenos e exógenos, é possível
entender que um mesmo evento pode ser simples e corriqueiro para alguns, mas
complicado e angustiante para outros, como, por exemplo, a falta de um emprego.
12

Entende-se por trabalho uma atividade humana que possui relevância não
apenas para suprir as necessidades básicas de sobrevivência do homem, mas como
uma das principais atividades humana que auxilia o homem em seu desenvolvimento
integral, tanto físico quanto psíquico e mental (ARANHA; MARTINS, 1993).
Segundo Codo (1989), a visão capitalista do sentido de “produção de trabalho”
da nossa sociedade traz uma conotação estereotipada que reflete num impacto
negativo ao psiquismo de muitas pessoas, vendo-se como um pária social, sem valor
e significado em sua vida quando não possuem um emprego formal.
Acredita-se que o homem é um ser produtivo não só pelo fruto do seu trabalho
capital à sociedade, mas também por meio de suas relações. Dessa forma, é preciso
entender quais os significados que perpassam entre o homem e seu trabalho para o
auxiliar na busca de uma vivência construtiva, gerindo sua vida com autonomia
financeira, cooperando consigo e com os outros.
De uma forma geral a relação do homem com o trabalho é um processo
histórico, que vem se construindo ao longo dos tempos e hoje, mais que antigamente,
levando em conta o conceito que vivemos em nossas relações de liquidez, cunhado
por Bauman (2009), esse processo vem sendo transformado a todo instante trazendo
mudanças velozes não só ao ambiente de trabalho, como também em vários
desdobramentos que repercutem e implicam em todo o nosso contexto social.
Moscovici (2000) afirma que a maioria das relações são definidas por
representações sociais que internalizamos sem darmos conta do seu real valor e
significado.
Por essa concepção adquirida pode-se inferir que ao vermos uma pessoa
trabalhando num serviço informal, como vendedor ambulante em vagões de trens,
automaticamente atribuímos um papel social insignificante dentro do contexto de
trabalho, sem pararmos para analisar que esta pessoa pode ser extremamente eficaz
em sua atividade, estando satisfeita tanto com seus ganhos econômicos quanto com
sua realização pessoal.
Geralmente atribuímos sentido de valor ao sucesso profissional somente a
padrões de trabalho já reconhecidos socialmente, como, por exemplo, relacionar um
funcionário executivo de uma multinacional bem vestido com uma pessoa realizada
em seu sucesso profissional, podendo essa percepção inicial ser contrária a realidade
sentida por esta pessoa.
13

Na compreensão do significado de suas representações, é preciso entender


como foi construído o “eu” do sujeito que irá se manifestar nas diversas esferas de
sua vida que, segundo Goffman (2006), o representa diante da sociedade com
diversos papéis sociais distintos, porém entrelaçados e intrínsecos em um só sujeito,
que o distingue e caracteriza sua personalidade.
Atualmente num momento de crise econômica em nosso país, onde há um
movimento de redução do quadro de funcionários em muitas empresas, a perda da
identidade masculina pode causar no homem grandes abalos em sua vida psíquica,
visto que historicamente o gênero masculino sempre teve sua identidade assegurada
como o provedor da casa e chefe de família (LANE, 2006).
Dados históricos revelam essa construção da identidade de gêneros ditada por
normas sociais em que, conforme Aires (2006), desde a Idade Medieval até a Idade
Moderna o homem foi se moldando as necessidades de cada época. Séculos de
aprendizagem cultural que foram passados a cada geração, deixando seus resquícios
que se encontram latentes na sociedade contemporânea.
De acordo com o autor eram necessidades provindas da idade média,
reguladas por meio de cartilhas que ensinavam um modelo ideal de gênero a seguir.
Inicialmente necessidades às boas maneiras e costumes que elevassem o homem a
um nível social melhor, sendo, portanto, padrões sociais que garantissem ao homem
uma boa reputação para conquistas de melhores condições financeiras por intermédio
da sociedade. Assim, ao gênero masculino cabia a negociação e autoridade, e ao
gênero feminino, a beleza e delicadeza (AIRES, 2006).
Mais tarde, com o advento da família moderna, essa configuração dos papéis
de gêneros é modelada por outra necessidade vigente. A mulher em seu papel mais
delicado e amoroso passa a atuar somente na vida privada cuidando dos interesses
familiares, da casa e dos filhos, e o homem por sua força física e domínio social tem
seu papel garantido na esfera pública, exercendo o trabalho no controle das atividades
financeiras e comandando a família em suas relações sociais (AIRES, 2006).
Diante do novo contexto atual, busca-se a reflexão de como o indivíduo se
ajusta a essa realidade incerta de trabalho, tendo por vezes a necessidade de uma
inversão de identidade na troca de papéis entre o homem e a mulher, sem maiores
consequências ao seu mundo íntimo. Quais os processos e mecanismos psicológicos
possibilitariam a adequação da nova condição social ao indivíduo, e quais o
14

impossibilitariam levando o homem apenas a um prestar de contas de sua identidade


com a sociedade, que, talvez, poderia engessar suas ações para transformação de
sua realidade.
A partir desses fatores sociais, através de uma revisão da literatura,
direcionamos essa pesquisa dentro dos conceitos de identidade social e
representações sociais. Como proposta, iniciaremos a discussão analisando o
desenvolvimento evolutivo do homem e do trabalho, conhecendo os processos sócios-
históricos implicados nessa evolução, para então, pelo viés de sua historicidade, ser
possível compreender seus significados para reconstrução de seus significantes
(LANE, 2006).
15

1.1 – OBJETIVOS
1.1.1 – Objetivo geral

Refletir acerca da relação do homem com o trabalho, considerando a cristalização de


papeis sociais que estagna e submete a ação do homem à alienação social nos
tempos atuais.

1.1.2 – Objetivos específicos

 Verificar o valor atribuído ao trabalho para o homem, diferenciando o significado


do valor econômico e social;
 Distinguir o processo de construção do eu e de identidade social;
 Identificar os valores subjetivos que permeiam a constituição da psique
humana;
 Compreender a formação de representações sociais ao homem
contemporâneo.
16

2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.1 – O HOMEM E O TRABALHO


2.1.1 – A relação do desenvolvimento humano com o trabalho

Engels (1999) evidencia a relação do corpo humano com o trabalho, salientando que
o homem ao utilizar suas mãos para o trabalho torna-se ereto, depois passa a produzir
instrumentos de caça, utensílios para a sua preservação e manutenção que o tornou
mais resistente e astuto, chegando a criação da linguagem para a mediação de suas
relações, um meio de comunicação efetiva e mais complexa que o conduziram a
civilização e dominação dos outros seres.
Os autores Marx (1996) e Engels (1999) demonstram o quanto a evolução do
homem foi seguida pela evolução de seu trabalho, sendo posteriormente seus
conceitos servindo de base para a elaboração de outros estudiosos.
Aprimorando suas técnicas de trabalho que preservassem melhor sua espécie
e o mantivesse a salvo dos predadores, os estudos revelam que o homem seguiu
criando sua história que o conduziu paulatinamente ao progresso, sempre em
conjunto com o seu trabalho de acordo com as suas ideias e necessidades. Desejos
e ideais que foram se complexando com o passar dos tempos, exigindo-lhe também
atividades mais complexas.
Em seus estudos sobre o papel do trabalho na formação humana, Engels
(1999) afirma que as práticas contínuas de trabalho rudimentares foram
primeiramente modificando o corpo do homem primitivo, aprimorando seu corpo para
obter melhores condições em suas atividades, o adaptando para que se tornasse mais
resistente e apto para o trabalho, com consequentes realizações e conquistas de seus
fins.
Com pensamentos mais abstratos e complexos, o homem foi criando ideias
procedidas de sua evolução física, colocando-as em prática através de atividades
mais engenhosas, conseguindo alcançar pelo trabalho condições que o elevaram ao
patamar do animal mais inteligente e criativo da Terra, o do ser humano (ENGELS,
1999).
A priori eram atividades que visavam apenas a mediação com a natureza para
a sua sobrevivência, sendo o trabalho apontado inicialmente por Marx (1996) como:
17

“um processo, em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu
metabolismo com a Natureza”.
Apesar de sabermos que os animais também exercem influência e mudanças
sobre a natureza, suas atividades não são ações coordenadas que possuem um
padrão intencional de atuação sobre ela, pois diferente da atividade humana: “só o
que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modifica-la pelo mero fato de sua
presença nela. O homem, ao contrário, modifica a Natureza e a obriga a servir-lhe,
domina-a” (ENGELS, 1999).

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a


abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a
construção dos favos de sua colmeia. Mas, o que distingue, de
antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu
o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do
processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início dele
existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente
(MARX, 1996, p.298).

É por esta condição que o homem se diferencia do animal, não pelo trabalho
que executa, mas pela forma intencional que o faz.
Engels (1999) explica que por estas necessidades naturais o trabalho se tornou
parte integrante do homem, já que estas dificuldades iniciais do meio exigiram
mudanças no homem primitivo para alcançar os seus objetivos que só puderam ser
alcançados por intermédio de seu trabalho, afirmando, portanto, que o
desenvolvimento humano está estreitamente ligado com o seu trabalho.
Essa afirmação também está contida em Marx (1996) ao esclarecer que através
de suas atividades naturais o homem influencia e é influenciado pela natureza, pois
ao manipula-la ele a modifica, e este resultado sob o homem acaba por também
modificá-lo, num processo simultâneo de forças internas e externas que se
desenvolvem por essa relação.
Assim toda essa prática trouxe ao homem o seu enriquecimento psicossocial,
pois por meio dessas atividades naturais a humanidade construiu suas relações
sociais, seja na elaboração de materiais que o auxiliavam em sua sobrevivência ou
pela formação de agrupamentos, como as famílias, que contribuíram para o seu
desenvolvimento tanto psíquico quanto moral.
Contudo, saindo de um pequeno grupo para a civilização o homem foi criando
sistemas de trabalho para suprir essa demanda de trabalho. Inicialmente de atividades
18

naturais para a sua preservação até chegar a esquemas grandiosos como, por
exemplo, a construção de pirâmides, que pelo conceito de cooperação simples em
grande escala de Marx (1996), este já era um princípio de trabalho que: “baseia-se
em relações diretas de domínio e servidão, na maioria das vezes na escravidão”.
Para Engels (1999) a civilização e sua crescente necessidade de atividades
mais complexas levou o homem ao entendimento de organizar suas atividades,
separando-as de quem as idealizava para quem as executassem, o que também
fomentou as relações de dominação pelo trabalho daqueles que sabiam mais e, com
isso, mantinham o poder sob os demais.

Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro


lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as
sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do
trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano, tanto mais
quanto numa fase muito recuada do desenvolvimento da
sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a cabeça que
planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a
realizar o trabalho projetado por ela (ENGELS, 1999, p.18).

Dessa forma, Marx (1996) e Engels (1999) demonstram as transformações


paulatinas de uma atividade natural humana para uma atividade imposta de trabalho
ao homem. O trabalho já não era mais somente uma atividade natural para a sua
preservação, tornou-se também um meio de obter facilidades e riquezas para alguns,
o que posteriormente constituiu a conhecida especulação e manipulação da mão de
obra dos mais desafortunados para aqueles que detinham o poder, mais tarde
reconhecida como o capital.
Ainda por meio dessas atividades incessantes o homem foi desenvolvendo sua
habilidade mais preciosa, o pensamento, aprimorando sua inteligência prática para
uma inteligência mais reflexiva, que o marcam e o distinguem fundamentalmente dos
outros seres por seu raciocínio lógico e abstrato.

2.1.2 – O trabalho humano

Em sua marcha evolutiva o homem ganhou espaços, cruzou oceanos, conquistou


terras e expandiu seus poderes e conhecimentos pelo mundo. Difundiu sua marca
indelével através dos tempos em suas sociedades. Evidências de seu progresso
evolutivo, fruto de um trabalho notório de excelso domínio e magnitude cujo bojo se
19

encontra em seu enorme potencial lógico e criativo transformador, mas que excede
os limites de sua dominação ao prescindir dos mais fracos pela ambição dos mais
fortes.
Ao evoluir o homem expande seus horizontes. Saindo em busca de novas
moradias o homem vai se adequando as novas exigências de clima, alimentação e
segurança, instrumentalizando-se e criando utilitários para servir as suas
necessidades. Percebe a possibilidade de construir melhores condições condizentes
com a sua nova realidade, capacitando-se na construção de novas ferramentas que
utiliza para a adaptação do novo mundo (ENGELS, 1999)
Em sua civilização, a atividade humana não é mais somente para subsidiar a
sobrevivência do homem, passando a auxiliá-lo muito mais em seu desenvolvimento
biopsicossocial. Abstraindo suas necessidades o homem passa a representa-la
através dos objetos que constrói, servindo-lhe de instrumento de trabalho,
transcendendo o tempo com a sua evolução (CODO, 1989).
É a natureza que fornece ao ser humano os elementos necessários para a
construção destes instrumentos, além dos subsídios primordiais para a sua
sobrevivência, utilizado numa atividade de trabalho para criar e recriar a realidade,
conforme as suas necessidades.
Em uma visão filosófica sobre o trabalho, Aranha e Martins (1993) explicitam
que o trabalho é uma forma do homem atuar sobre o mundo em que vive. As
dificuldades encontradas pelo homem em seu desenvolvimento primitivo, foram
superadas pela necessidade de satisfazer os seus desejos, através de uma ação
deliberada que resultou em uma atividade transformadora de si e de seu meio.
Ao cortar um pedaço de madeira para a construção de uma casa, o homem
está modificando a paisagem natural e alterando o fluxo da natureza, ao mesmo tempo
em que se modifica ao transformar a sua condição anterior de moradia. Isto lhe
confere uma mudança em seu mundo, que irá marcar sua passagem no espaço e
tempo, trazendo-lhe satisfação por meio do trabalho ao produzir algo que supre seus
desejos e necessidades.
Para as autoras, o trabalho humaniza o homem pois o remete a desafios que
irão transcender suas necessidades, mobilizando recursos internos e externos para a
realização dos objetivos que se propõe a conquistar, em uma ação planejada que
desenvolve processos mentais e psíquicos, impulsionando o seu crescimento.
20

Isto significa que, pelo trabalho, o homem se auto-produz:


desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer as
forças da natureza e a desafiá-las; conhece as próprias forças e
limitações; relaciona-se com os companheiros e vive os afetos
de toda relação; impõe-se uma disciplina. O homem não
permanece o mesmo, pois o trabalho altera a visão que ele tem
do mundo e de si mesmo (ARANHA; MARTINS, 1993, p.27).

Pelo trabalho o homem foi encontrando formas melhores de produzir mais


conhecimentos, aprimorando as técnicas anteriormente utilizadas para a construção
dos objetos, numa relação dialética de aprendizado e transformação.
Contudo, Aranha e Martins (1993) enfatizam a conotação pejorativa
relacionada ao conceito de trabalho, presente em sua dimensão histórica,
demonstrando como o desenvolvimento do homem pelo trabalho foi marcado por
relações conturbadas em seu exercício.
Desde a Antiguidade as concepções de trabalho estão ligadas ao sofrimento e
dor. Isso porque a semântica da palavra trabalho vem do latim tripaliare, originária do
substantivo tripalium, um instrumento romano de tortura utilizado para amarrar os
condenados ou animais que apresentavam dificuldades para ferrar (ARANHA;
MARTINS, 1993).

Figura 1: Tripalium
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/curiosidades-etimologicas/trabalho-tortura-e-outras-
lutas-viva-o-primeiro-de-maio/

Pela concepção do conceito dado à palavra, percebe-se que as formas de


produção de trabalho vão se alterando, modificando também as relações de trabalho
e o resultado deste ao homem.
21

Na Grécia antiga o trabalho manual cabia somente aos escravos, sendo


humilhante e desvalorizado. Já o trabalho intelectual era destinado aos homens livres,
por ser visto como mais racional, dignificando-os. Em Roma o ócio era um prazer
atribuído apenas aos senhores ricos e livres, tendo na palavra negocium a negação
deste prazer, pela compreensão do trabalho como ausência de lazer. Para Platão, a
contemplação das ideias era uma das melhores atividades humana, sendo destinada
apenas aos homens livres por possuírem a ociosidade para tal exercício. (ARANHA;
MARTINS, 1993).
Com a civilização, a humanidade foi criando modelos socioeconômicos que
pudessem extrair forças de trabalho suficientes para a sua preservação e
desenvolvimento.
Essa organização societária do trabalho são as formas de produção que cada
sociedade cria, e as forças produtivas são as características da maneira que irão
modificar a natureza pelo trabalho, seja ele artesanal, manufaturado, industrial ou
tecnológico. Os meios necessários para a sua produção formam o conjunto de
instrumentos e técnicas utilizadas, podendo ser variados porque dependem de sua
forma de produção (HERMISDORFF, s.d).
Ao longo da história a humanidade atuou de variadas formas sobre a natureza,
sendo as formas de produção de trabalho modificadas segundo o contexto da época,
e os interesses sociais contidos nesta relação do homem com o trabalho.
Na pré-história o trabalho era pela busca de suprir suas necessidades, sem
normas e leis que o definisse ou o regesse em forma econômica. Seu modo de
produção é o primitivismo, pois o homem trabalhava apenas para suprir sua
subsistência, sem recursos ainda para a conservação de alimentos e sua
permanência. Mais tarde enriquecido em seus conhecimentos, o homem desenvolve
sua força de trabalho para a produção agrícola, surgindo assim na Antiguidade o início
da civilização humana (HERMISDORFF, s.d).
Na Grécia e em Roma a agricultura predominava como força produtiva, através
da conquista dos mais fortes sob os mais fracos. Foram através de lutas e guerras
que o domínio do homem sob a terra o fez expandir suas riquezas em detrimento dos
mais fracos, tornando-se estes escravos ou servis. Surge aqui o modo de produção
econômico do trabalho pelo escravismo, em que as atividades de trabalho manual que
22

incluísse esforço físico eram destinadas aos menos desfavorecidos e escravos, e as


atividades intelectuais aos seus senhores (ARANHA; MARTINS, 1993).
De acordo com as autoras, esse modelo predominou até a Idade Média, tendo
a religião influenciado no modo do homem entender o significado do trabalho humano.
Na gênese bíblica Adão e Eva são expulsos do paraíso e condenados a viver
pelo trabalho, “comerás o teu pão com o suor de seu rosto”, além de destinar-se a Eva
o “trabalho” do parto, unindo o conceito de trabalho ao sacrifício e sofrimento. São
Tomás de Aquino ensinava que o trabalho deveria ser alternado com a oração, porém
a atividade manual mais como forma de punição e expiação para afastar os maus
pensamentos e a oração como meio de redenção, pois ainda prevalecia o pensamento
de que apenas a atividade intelectual enobrece o homem (ARANHA; MARTINS,
1993).
Nessa mesma época, surge na Idade Média a forma de produção do trabalho
pelo feudalismo. Os donos de terra eram os latifundiários que doavam parte de suas
terras para aqueles que não possuíam meios de produção de trabalho, passando de
escravos para servos, produzindo seu trabalho em terras que lhes eram doadas.
Porém, a maior parte de sua produção era expropriada por seus senhores,
ficando apenas o suficiente para a sua subsistência, tornando-se submissos e
obedientes por estarem presos a esta condição de trabalho. Essa organização
societária era mantida pelo poder econômico concentrado entre a nobreza e o clero,
denominados de feudos. A força produtiva do trabalho torna-se centrada naqueles que
não possuíam a terra, os camponeses, que passam a ser os seus servos
(HERMISDORFF, s.d).
Na Idade Moderna as formas de produção do trabalho irão modificar
significativamente as relações de trabalho e sua organização, porém com poucas
mudanças predominantes nas relações econômicas e políticas da sociedade.
Aranha e Martins (1993) enfatizam a importância da urbanização e do comércio
para o declínio do feudalismo. Na Era Moderna surge no iluminismo formas de
contestação do homem perante a sociedade. A humanidade passa a se interessar
mais pelo trabalho mecânico, que o separa da religião e o une a ciência.
Com o crescimento da produção agrícola descobre-se novos meios de
produção por modernas técnicas de trabalho, aumentando a produtividade agrária. Os
camponeses passam a vender seus produtos e terem melhores resultados
23

econômicos, comprando a sua liberdade. Cresce o interesse pelo trabalho e pela arte
mecânica, que irá aumentar a produtividade e levar o homem a comercialização e a
produção manufaturada. Dá-se o início a uma nova ordem econômica, antes
provindas apenas do setor primário, a agricultura, passando agora para o setor
secundário, o industrial (ARANHA; MARTINS, 1993).
Essa nova classe econômica provém dos burgos, que saem do campo para
vender o seu produto na cidade, aumentando o comércio das capitais e estimulando
as navegações em busca de novos mercados. Por esta expansão do comércio os
camponeses passam a procurar trabalho nas cidades, criando uma nova força
produtiva de trabalho pela sociedade burguesa, surgindo as manufaturas para o
exercício do trabalho artesão, culminado para o fim do feudalismo e o início da forma
de produção econômica do capitalismo (HERMISDORFF, s.d).
O autor verifica que embora os burgueses se assemelhassem na forma de
dependência e exploração de trabalho dos artesões, eles possuíam objetivos em
comum, o interesse de acabar com o poder feudal e expandir o desenvolvimento
econômico e social.
Contudo, o trabalho manufaturado irá gerar uma nova ordem de exploração,
em que o artesão venderá sua força de trabalho em troca de salário, tornando-se
novamente escravo daquele que possui a matéria prima e os instrumentos de
trabalho, agora não mais o feudo e sim o burguês (ARANHA; MARTINS, 1993).
Essa transição do feudalismo pelo capitalismo teve sua ascensão após a
revolução industrial no século XVIII, antes predominada pelos burgueses na forma de
produção de trabalho gradativamente passada ao capitalismo, porém mantendo suas
características em seu meio de produção.
Aranha e Martins (1993) ressaltam essa semelhança na forma de produção,
pois enquanto a humanidade se desenvolvia, cresciam os barracões de trabalho para
maior produtividade econômica, aumentando o capital burguês pela exploração da
força de trabalho.
No século XIX, o resplendor do progresso não oculta a questão
social, caracterizada pelo recrudescimento da exploração do
trabalho e das condições subumanas de vida: extensas jornadas
de trabalho, de dezesseis a dezoito horas, sem direitos a férias,
sem garantias para velhice, doença e invalidez; arregimentação
de crianças e mulheres, mão de obra mais barata; condições
insalubres de trabalho, em locais mal-iluminados e sem higiene;
mal pagos, os trabalhadores também viviam mal alojados e em
promiscuidade (ARANHA; MARTINS, 1993, p.28).
24

Com o avanço socioeconômico, surgem novas perspectivas do conceito de


trabalho ao homem. Com o desenvolvimento e crescimento do setor industrial no
século XIX, novas políticas de trabalho aparecem para contemplar essa mudança
econômica e social, “ocorrendo o nascimento de uma nova classe social, o
proletariado” (ARANHA; MARTINS, 1993).
Essa nova classe social é constituída dos trabalhadores que vendem sua força
de trabalho para os empresários, donos do capital, ficando essa atividade restrita as
normas e regras que regem as forças produtivas do trabalho. O homem passa a
receber pelo valor atribuído por sua atividade, não mais em troca de subsídios para a
sua sobrevivência como na forma de produção escravista ou feudal, mas pela forma
capitalista da venda de sua força de trabalho ao dono do capital.
As regras e normas de trabalho variam conforme a sociedade a que está
inserido. No Brasil, foi durante o governo de Getúlio Vargas, presidente reconhecido
por suas causas trabalhistas, que ocorreu a instituição da CLT – Consolidação das
Leis de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº. 5452 de 01/05/43. A partir desse novo
regime de trabalho, outras normas foram sendo agregadas para o cumprimento de
suas determinações, possibilitando um aprimoramento de suas diretrizes em relação
a segurança e saúde do trabalhador (ARANHA; MARTINS, 1993).
Na sociedade pós-moderna o poder socioeconômico está concentrado em uma
nova força produtiva de trabalho, o setor terciário (serviços).
Com o crescimento tecnológico no século XX, as indústrias passam a depender
do desenvolvimento de técnicas de informação e comunicação para gerir sua
produção que, segundo Aranha e Martins (1993), permanecem ainda com a forma de
produção capitalista na exploração da atividade humana pela venda de sua força de
trabalho aos empresários.
Por essa visão histórica infere-se que o trabalho, visto de forma econômica,
seria toda atividade remunerada exercida pelo homem. A partir de sua rentabilidade
financeira o homem se mantem, podendo contribuir com o seu desenvolvimento
individual e auxiliar no crescimento da sociedade.
Atualmente no Brasil, estudos revelam uma proporção de pessoas que
trabalham formalmente pelo regime de CLT e outras de forma informal, sem registros
oficiais que comprovem sua renda, além de outras maneiras de ocupação econômica.
25

Dados apontam o índice de pessoas que exercem uma atividade econômica,


colhido nas seis principais regiões de poder econômico brasileiro: Belo Horizonte,
Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Distribuição Econômica da População em Idade Ativa em Fev/2016


70 63,4
60 54,3 53,3 53,8 52,7
50 45,7 46,7 46,2 47,3

40 36,6

30 Masculino

20 Feminino

10

0
População em População População não População População
idade ativa economicamente economicamente ocupada desocupada
ativa ativa

Figura 2: Distribuição Econômica da População em Idade Ativa em Fev/2016


Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de
Emprego

De forma geral vemos que o gênero masculino se sobrepõe economicamente


ao gênero feminino. Pelo quadro acima percebe-se que a mulher segue socialmente
em desvantagem econômica ao homem, fazendo parte do maior quadro da população
desocupada ou fora da economia do país, mesmo sendo a maioria da população em
idade ativa.
26

Figura 3: Evolução da taxa de desocupação de Jan/2003 a Fev/2016


Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de
Emprego

O gráfico acima demonstra o índice da taxa de desemprego atual no Brasil, no


mesmo conjunto das seis áreas principais abrangidas, apontando um aumento no
percentual do ano de 2015 para 2016.

Distribuição Econômica da População Ocupada em


Fev/2016
60
50,7
50

40

30
20
20

8 8,5
10
3,9

0
Empregados com Empregados sem Funcionários públicos Empregadores Trabalhadores por
carteira assinada carteira assinada conta própria

Figura 4: Distribuição Econômica da População Ocupada em Fev/2016


Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de
Emprego
27

Pelos dados apontados verifica-se que o poder econômico brasileiro está


centrado em uma minoria da população, que detém o capital para a distribuição de
renda da maior parte da população, confirmando a desigualdade socioeconômica
entre as classes.
Porém, em outra perspectiva do conceito de trabalho, Aranha e Martins (1993)
demonstram a importância social do trabalho para o homem, não apenas como uma
atividade econômica, mas como uma atividade humana essencial ao seu
desenvolvimento.

Por ser uma atividade relacional, o trabalho, além de


desenvolver habilidades, permite que a convivência não só
facilite a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos instrumentos,
mas também enriqueça a afetividade resultante do
relacionamento humano: experimentando emoções de
expectativa, desejo, prazer, medo, inveja, o homem aprende a
conhecer a natureza, as pessoas e a si mesmo (ARANHA;
MARTINS, 1993, p.24).

Com a atual crise financeira do país, percebe-se um aumento no índice de


pessoas sem trabalho remunerado, que, por vezes, podem encontrar-se sem
conhecimento de como desenvolver outra atividade que não seja por meio do trabalho
formal, apontando na pesquisa como sendo o principal recurso financeiro da
população abrangida.
Em uma crítica à sociedade capitalista, Aranha e Martins (1993) esclarece que
essa falta de criatividade para buscar outros recursos fora do trabalho alienado ao
capital é comum ao homem no capitalismo, pois “quando se submete passivamente
aos critérios de produtividade e desempenho no mundo competitivo do mercado”, não
valoriza mais a relação da atividade humana no trabalho, apenas o valor de sua força
de trabalho que emprega ao mercado capitalista, que implicitamente desapropria o
homem do valor de si mesmo e retira seu poder de criticidade e prazer em sua
atividade (ARANHA; MARTINS, 1993).

2.1.3 – Sociedade capitalista

O desenvolvimento econômico e o aumento da produtividade trouxeram fundamentais


mudanças na forma da produção humana do trabalho. Essa ascensão
28

socioeconômica levou o homem a uma divisão entre classes dominantes e classes


oprimidas, sendo que:

Em consequência, os interesses das classes dominantes


converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto
esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência
dos oprimidos. Isso encontra sua expressão mais acabada no
modo de produção capitalista, que prevalece hoje na Europa
ocidental (ENGELS, 1999, p.27).

O prenúncio da sociedade capitalista apresenta-se por meados do século XVI


com o surgimento mundial da circulação de mercadorias pelos navios mercantes, e
sua concentração de poder e riqueza entre os latifúndios (MARX, 1996).
É possível reconhecermos neste início os resquícios das classes dominantes
pelos feudos e as classes oprimidas pela grande maioria da população de
trabalhadores, característica irrefutável do capitalismo de poucos que vivem com
muito e de muitos que vivem com pouco.
Engels (1999) salienta que a expressão da economia capitalista encontra-se
articulada na obtenção de maiores lucros e ganhos financeiros. O autor elucida que
seus únicos objetivos estão vinculados ao acúmulo de dinheiro, na forma de
capitalistas individuais que possuem grandes concentrações de produção, sem uma
premissa de valores que contemple outras preocupações, como o equilíbrio social ou
ecológico para a saúde e a segurança da raça humana, a qual os mesmos capitalistas
também se incluem.
O capital, segundo Marx (1996), é um processo econômico de circulação de
mercadorias que irá proporcionar a abstração do dinheiro como o seu produto final.
Porém, o capitalismo não é apenas a aquisição do dinheiro para subsidiar a existência
humana, mas sim o seu acúmulo que o transforma em riquezas. É por este acúmulo
de dinheiro exorbitante e seus métodos utilizados para a conquista e permanência de
seus objetivos, que se denominará por capitalismo o sistema econômico de uma
sociedade.
A partir desta concepção marxista do capital foi possível entender as divisões
das classes sociais, sendo seu estudo apontado como um divisor de águas que
auxiliou na distinção e esclarecimento do valor social e do valor econômico atribuído
ao trabalho, e, suas consequentes variações de papéis do homem perante a
sociedade.
29

Uma das possíveis compreensões está na divisão marcante de classes sociais


que leva a uma contradição fundamental na sociedade capitalista. Através de sua
dominação de classe, o capitalismo subverte o papel do trabalhador ao desvinculá-lo
do seu trabalho, enunciando o seu valor exacerbado pelo produto em detrimento de
seu produtor, isso porque quem detém os meios de produção é o capital, e somente
por seu intermédio é possível à execução do trabalho, portanto, ele é o dono do
produto e de seu produtor (LANE, 2006).
Mesmo sendo conceitos diferentes, a escravidão e o capital se assemelham
por sua forma, estando ambos subordinados por aqueles que detém o poder, antes
títulos e patrimônios, e depois as mercadorias e instrumentos de trabalho. A diferença
entre os dois está no pressuposto do capitalismo de liberdade do trabalhador, que ao
contrário do escravo é um homem livre para negociar e vender a sua força de trabalho
humana (MARX, 1996).
Contudo, Codo (1989) reforça que essa liberdade visada pela mudança do
processo de produção de trabalho, se efetivou ao homem somente ao nível simbólico
e não concreto, já que esta transformação ocorreu apenas aos meios de explorações
advindas de suas atividades, passando de escravos do feudo para escravos do
capital.
No entanto, toda atividade humana tem como objetivo um fim, seja ideal ou
concreto, que se objetiva por uma necessidade que deverá ser acompanhada por uma
ação em conquistá-la (LANE, 2006).
A autora argumenta que na sociedade capitalista o consumo é o fim, objetivado
por uma necessidade desencadeada por um ideal estratégico de se criar desejos que
mantenham suas necessidades constantes, ou seja, um ciclo sem fim proposto para
alimentar o seu real objeto, o capital (LANE, 2006).
Este é um dos conceitos proposto por Marx (1996), ressaltado pelo autor que
para o capitalismo o valor do trabalho está contido na sua relação com o consumo,
não em seu valor útil para o homem. Desta forma, o consumo de uma mercadoria é
que irá determinar o seu valor capital, não apenas o seu valor utilitário para o homem.
É por esta estratégia alienista que a economia capitalista sobrevive.
Com esta fórmula o trabalho humano não é mais um veículo para satisfazer as
necessidades do homem, ele passa a ser uma ferramenta operacional de produção
30

de troca de mercadorias, em que um produto vale mais pelo o seu consumo do que
por sua necessidade (MARX, 1996).
Codo (1989) revela que por este advento é possível perceber uma separação
no sentido do trabalho para o homem, pois:

Ocorre aqui um primeiro processo de alienação, no sentido de


separação entre ação e sobrevivência humana, o trabalho
humano perde sua especificidade e se transforma em valor
abstrato, confundindo-se com a moeda que o representa
(CODO, 1989, p.144).

Essa afirmação é reforçada por Lane (2006), ao esclarecer que no capitalismo


o trabalho do homem passa a girar em torno de prover o seu consumo, alienando-o
de perceber que este está objetivado no fato de criar desejos incessantes para manter
a máquina operante do capital, obtendo assim maiores riquezas através de uma
ideologia dominante.
Este conceito de ideologia dominante surge em Marx (1996) ao trazer a
ideologia também para o campo político e social, apontando que os ideais das classes
dominantes deturpam a realidade a seu favor para o seu completo domínio.
O autor esclarece que a atividade humana para o capital é apenas lucro,
resultado final da sua força de trabalho, onde o trabalhador não é visto como homem,
mas como instrumento útil de trabalho.

Sua cooperação começa só no processo de trabalho, mas no


processo de trabalho eles já deixaram de pertencer a si mesmos.
Com a entrada no mesmo eles são incorporados ao capital.
Como cooperadores, como membros de um organismo que
trabalha, eles não são mais do que um modo específico de
existência do capital (MARX, 1996, p.449).

O homem ao contribuir com o seu trabalho não está empregando apenas sua
força de trabalho nele, está empregando muito mais, a sua força psíquica. É por esta
razão que a atividade humana modifica a natureza e é modificado por ela ao utilizar
desses instrumentos criados pela força de seu trabalho, podendo ser tanto utilitário
manual, como um utensílio, quanto intelectual, como a linguagem ou o pensamento
(LANE, 2006).
Com isto se evidencia o quanto uma sociedade capitalista não se interessa
pelas forças psíquicas integradas no processo de trabalho humano que não possam
31

ser consumidas pelo capital. As relações de trabalho que interessam ao capital são
apenas quantitativas, de ordem financeira, abstraindo-se da complexidade que se
desdobram dessas relações para o homem.
Por este motivo é que o trabalho está além do consumo capitalista. O valor do
trabalho humano é mais do que apenas sua sobrevivência, está na permanência de
sua condição humana enquanto ser social.
Contudo, Lane (2006) demonstra que através da alienação de consumo contida
na ideologia dominante do capitalismo, a ação do trabalho capitalista pode inverter o
significado do objetivo da atividade humana e subverter suas necessidades.
As autoras Aranha e Martins (1993) revelam que atualmente o homem padece
de um consumismo desenfreado estimulado pela sociedade capitalista,
principalmente através da comunicação de massa.

A estimulação artificial das necessidades provoca aberrações do


consumo: montamos uma sala completa de som, sem gostar de
música; compramos biblioteca "a metro" deixando volumes
"virgens" nas estantes; adquirimos quadros famosos, sem saber
apreciá-los (ou para mantê-los no cofre). A obsolescência dos
objetos, rapidamente postos fora de moda", exerce uma tirania
invisível, obrigando as pessoas a comprarem a televisão nova,
o refrigerador ou o carro porque o design se tornou antiquado ou
porque uma nova engenhoca se mostrou "indispensável". E
quando bebemos Coca-Cola porque "E emoção pra valer!",
bebemos o slogan, o costume norte-americano, imitamos os
jovens cheios de vida e alegria. Com o nosso paladar é que
menos bebemos... (ARANHA; MARTINS, 1993, p.33).

Esta reflexão mostra um paradigma discutido por Bauman (2009), confirmando


que na atualidade vivemos em uma sociedade de consumo. Para o autor, a satisfação
do homem moderno está centrada na atividade de suprir suas necessidades que são
alimentadas diariamente pela máquina do capitalismo, o consumismo, levando a
contemporaneidade em um declínio cada vez maior, antes uma sociedade de
produtores no início do capitalismo, e hoje, uma sociedade de consumidores.
Dentro deste contexto o homem se torna apenas rentabilidade financeira para
a sociedade capitalista, resultado final de sua força de trabalho acrescido de seu
aprisionamento pelo consumismo. O trabalho humano, por vezes, passa a ser
patrimônio utilitário do capital que conecta sua atividade laboral em um bem da
sociedade, deixando de ser um bem singular inerente a cada ser humano.
32

O homem possui necessidades que são inatas à sua condição humana. Desde
necessidades básicas ligadas a preservação do organismo para suprir condições
fisiológicas, como proteção e segurança, até a uma escala de necessidades
complexas ligadas ao equilíbrio emocional por suas relações intrapessoais e
interpessoais, para o seu bem-estar biopsicossocial (CARPIGIANI, 2014).
Por essa relação de trabalho com o capitalismo, o homem deixaria de atuar
diretamente por seus interesses diante da sociedade e, com isso, suas necessidades
básicas não seriam atendidas a partir de seus princípios, mas reguladas por normas
e convenções da sociedade.
Assim, no capitalismo o trabalho deixa de ser uma atividade prioritária à vida
humana, que lhe serve como instrumento para o seu crescimento e desenvolvimento
individual, como nos primórdios, em que o homem exercia o trabalho como uma
atividade natural para suprir necessidades de interesses próprios. Na sociedade
capitalista a atividade de trabalho humano torna-se uma atividade social, voltada para
suprir as necessidades do capital.

2.1.4 – O trabalho no capitalismo

Esta distinção entre a atividade humana e a atividade social é apresentada por Codo
(1989) como diferenças provindas do processo de trabalho capitalista. Para o autor, o
capitalismo modifica a atividade laboral do homem num trabalho social, vinculando-
as, sendo que: “a ação do homem passa a pertencer à sociedade, a ser regulada
pelas leis de oferta e procura, acumulada como capital”.
Antes o trabalho que era uma ação humana para a produção de maior
desenvolvimento do homem, se torna pelos meios de produção capitalista uma ação
social, que, portanto, deve ser controlada por normas sociais (CODO, 1989).
O trabalho humano é como um patrimônio inigualável que sustenta todo o
mecanismo capitalista, pois a cooperação no processo de trabalho fomenta a
produtividade levando a maiores ganhos de capital. Um grupo de pessoas trabalhado
num mesmo fim, aumenta sua produção e consequente formação de valor do produto,
que fatalmente o conduzirá ao consumo (MARX, 1996).
O sistema de industrialização veio edificar essa realidade ao trazer em seu
processo de trabalho a máquina, instrumento de trabalho que, segundo Codo (1989):
33

“vem introduzir um fenômeno qualitativamente distinto no fracionamento do trabalho


humano”.
Com o advento da maquinaria o trabalho humano se verticaliza ainda mais. O
homem passou a trabalhar diretamente com a máquina, ficando isolado do seu grupo
de trabalho, não precisando atuar diretamente com o conjunto para estar conectado
com o todo, já que muitas vezes para colocar em funcionamento uma linha de
produção basta apenas acionar um botão, sem necessariamente se relacionar com
os seus colegas de trabalho.
Isso o conecta com o grupo sem precisar estar presente, por outro lado essa
facilidade nas relações de trabalho acentua a verticalidade do trabalhador, que se vê
sozinho em suas atividades, subordinado apenas aos seus superiores (CODO, 1989).
Codo (1989) vai além e condena esta ação do sistema de produção capitalista
comparando-a com um ato ilícito, de roubo da essência transformadora do homem,
pois, conforme o autor, por não se perceber no ato empregado de seu trabalho, o
homem não se produz, não se transforma, já que sua transformação lhe foi roubada
ao ser escamoteada em seu contrato de trabalho.
Por outro lado, em outra perspectiva Lane (2006) revela que: “é neste processo
que o trabalhador se despersonaliza, se torna parte da máquina; suas ações são
apenas força de trabalho que ele vende, são mercadorias e como tal alienáveis-
alienadas”, e, dessa forma, ao não se reconhecer em sua atividade produzida o
homem não se identifica com ela e passa a desconhecer o real valor de seu trabalho.
Por ver em sua produção apenas uma parcela de si, e não o conjunto todo, o
homem menospreza o seu potencial por não conseguir avaliar o sistema por inteiro.
Não compreende que o produto final acabado somente foi possível realizar pela
parcela da contribuição de seu trabalho, empregado na construção do produto inicial
idealizado (LANE, 2006).
Com a industrialização diminuiu-se o tempo gasto na produção da mercadoria,
valorizando o seu consumo e aumentando o capital, porém sem diminuição da jornada
de trabalho ao trabalhador, ao contrário, seu tempo aumentou para suprir a demanda
de produção, e, consequente, lucratividade. Contudo, “o desenvolvimento do capital
não se deu por igual, na medida em que, desenvolver-se para o capitalismo é a
maximização das desigualdades” (CODO, 1989).
34

É possível perceber a alienação do homem no trabalho, quando este não


percebe que sua atividade, por menor que seja, é fundamental para os meios de
produção do capitalismo, sem compreender o seu verdadeiro papel no processo de
trabalho (LANE, 2006).
Por esta estratégia Lane (2006), esclarece que a sociedade capitalista subverte
os valores de trabalho ao homem, pois ao mesmo tempo que o integra no processo
de trabalho, o capitalismo retira seu potencial de desenvolvimento de sua atividade,
criando um paradoxo que o condicionará submissamente por não compreender a sua
força implícita na criação do seu trabalho.
Ao compor esse paradoxo, a ideologia dominante do capitalismo violentou o
verdadeiro sentido do trabalho ao homem. Sua ação prejudicial está ao preconizar a
separação entre o trabalho manual e o intelectual.

Desta forma o capitalismo implica na existência de duas classes


sociais... É esta contradição fundamental da sociedade
capitalista que a ideologia dominante procura encobrir, não de
forma consciente ou premedita, mas decorrente da própria
divisão de trabalho em intelectual e manual, cabendo a classe
dominante o pensar a própria sociedade, e assim, decorrente da
sua posição social, criar explicações a partir de uma visão
fragmentada da sociedade (LANE, 2006, p.56).

Discriminando a atividade manual da atividade intelectual, o capitalismo


fragmentou sua realidade contida ao desmembrar uma ação que leva ao mesmo
significado: de uma atividade produtiva que tanto pode se dar no simbólico quanto no
concreto, porém os dois convergem para a mesma ação de produtividade e
desenvolvimento humano (LANE, 2006).
Na economia capitalista o trabalho humano interessa para a sociedade apenas
como desdobramento de uma atividade rentável que custeia a vida humana. Todavia,
para que esse mecanismo se mantenha, o capital busca apoio em outras esferas,
como a ciência e a educação, que muitas vezes servem ao capitalismo antes de
servirem à humanidade (CODO, 1989).
No início do século XX surge a racionalização científica no processo de
trabalho, introduzida por Henry Ford nas indústrias automobilísticas e depois
aprimorada por Frederick Taylor, expandindo-se por todo meio de trabalho.
Esse sistema científico no processo de trabalho, conhecido como taylorismo, é
um conjunto de regras sistematizadas em técnicas metodológicas, que engessou a
35

atividade do homem no trabalho, mecanizando seus movimentos e ratificando as


formas de produção do capitalismo pois “visa o aumento de produtividade com a
economia de tempo, a supressão de gestos desnecessários e comportamentos
supérfluos no interior do processo produtivo” (ARANHA; MARTINS, 1993).
Codo (1989) faz ainda uma crítica à ciência, ao trazer que historicamente uma
das vertentes tradicionais da Psicologia nasceu por meio da produção de trabalho com
o surgimento das indústrias, auxiliando na organização da identidade do trabalhador
e a situar o homem como um instrumento de trabalho pelos testes psicométricos.
Assim, como na ciência, uma das principais vias para a disseminação da
ideologia dominante se dá também por meio do sistema educacional. Mosé (2013),
revela o quanto em sua construção estão implicados os modelos culturais e sociais
necessários aos interesses da sociedade vigente.
Na sociedade capitalista o que se tem é um ensino escolar raso e fraco, sem
alcançar um aprendizado mais profundo que seja capaz de orientar e mudar vidas,
formando alunos que consigam articular o conhecimento com a sua realidade,
podendo dessa forma ter uma compreensão maior do todo e interferir criticamente na
lógica da sociedade que reflete em suas vidas (MOSÉ, 2013).
Mosé (2013) esclarece que estando empobrecidos intelectualmente, os
indivíduos são desconectados da sociedade, como pedaços soltos que podem ser
manipulados conforme a conveniência de outros que se tornam enriquecidos pela
aquisição de melhores conhecimentos. Não sendo partes de um todo, os homens se
tornam fragmentos de um sistema que podem ser articulados estrategicamente, como
peças de um tabuleiro.
Esta similitude em fragmentar o pensamento para controle da ação é vista pelo
mesmo conceito na produção de trabalho capitalista, em que ao verticalizar os meios
e horizontalizar o processo de trabalho, isola-se o homem e aliena-o em uma relação
de poder pelo capital (CODO, 1989).
A partir dessa dominação o regime capitalista estimula a competitividade
reforçando a rivalidade em todos os setores, principalmente o econômico e
educacional, formando pessoas mais individualistas e egocêntricas.

Os jovens e as crianças, afastados das questões humanas e


sociais, das questões políticas, vão sendo treinados a ver o
mundo apenas a partir de si mesmos, de sua condição, que pode
36

ser de “vencedor” ou de “perdedor”, de arrogância ou de revolta


(MOSÉ, 2013, p.50).

Em suas relações sociais no trabalho o homem também é incitado nessa


competição para suprir uma demanda de consumo. Através da disputa do melhor
profissional para se manter no trabalho, o homem passa a se superar em suas
atividades, e, com isso, produzir mais e consumir mais. Novamente uma faceta da
ideologia dominante que gera uma contradição social, levando o homem ao consumo
e sua alienação (LANE, 2006).
É por esse processo que o homem se torna escravo da produção de trabalho
para obter melhores resultados, dominado pelo sistema gerando as disputas e
rivalidades, onde deveria ocorrer o contrário; o processo de trabalho ser dominado
pelo homem, construindo parcerias nas relações de trabalho que lhe garantissem
maior eficácia para que ele possa desfrutar melhor de seu tempo e de suas
potencialidades, saindo do individual para o coletivo, e não o contrário.
Bauman (2009) ressalta essa contradição que vive o homem moderno em
nossa sociedade. Para tentar sobreviver dentro desse paradigma sufocante do
capitalismo, o homem é induzido para a sua individualização, o que garantirá maiores
disputas e mais consumos.
Ao sair dessa colmeia para encontrar sua singularidade, o homem se defronta
com diversos apelos sociais, para Bauman (2009), impossíveis de se confrontar. Isso
porque são estímulos que reforçam seus papéis sociais reconhecidos, levando o
homem a buscar padrões coletivos que se encaixem com suas necessidades
individuais, mantendo à custo sua singularidade onde a busca do individual recai no
coletivo.
O autor aponta uma sociedade de indivíduos que busca sua singularidade entre
os apelos de uma sociedade de consumo. Pessoas que disputam o primeiro lugar ou
o destaque, pautando suas ações pelo consumismo em voga, igualando-se ao coletivo
ao invés de particularizar-se por sua autenticidade, o que o excluiria de seu círculo
social por não estar identificado com o consumo atual. O autor ainda esclarece que:

[...] contudo, a sociedade dos indivíduos fornece a seus


membros os meios de conviver com essa impossibilidade – ou,
em outras palavras, de fechar os olhos à essencial e incurável
impossibilidade da tarefa, ainda que o lote das tentativas
fracassadas continue crescendo e se torne cada vez mais denso
(BAUMAN, 2009, p.29).
37

Essa alienação do homem na sociedade capitalista se repercute por todas as


instâncias de sua vida, em que a falta de criticidade e consciência política e social,
aliena o homem de si mesmo, de seus direitos e necessidades (CODO, 1989).
Essa mesma concepção do homem alienado pelo trabalho no capitalismo é
vista em Aranha e Martins (1993), ao afirmarem que:

Com a ampliação do setor de serviços, aumenta a classe média,


multiplicam-se as profissões de forma inimaginável e nos
aglomerados urbanos os escritórios abrigam milhares de
funcionários executivos e burocratas em geral. Na nova
organização acentuam-se as características de individualismo
que levam à atomização e dispersão dos indivíduos, o que faz
aumentar o interesse pelos assuntos da vida privada (e menos
pelas questões públicas e políticas), além da procura hedonista
de formas de lazer e satisfação imediata (talvez justamente
porque o prazer lhes é negado no trabalho alienado!) (ARANHA;
MARTINS, 1993 p.31-32).

O conhecimento de diversas áreas das ciências humanas possibilita a quebra


desse paradigma para o desenvolvimento humano. Esclarecimentos contidos na
antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, entre outras, favorecem o entendimento
ao homem, permitindo a sua retirada desse círculo alienante.
De modo específico, a Psicologia tem muito a contribuir para a compreensão
dos mecanismos psíquicos implicados na construção destes significados, podendo,
pelo viés psicológico da condição humana, auxiliar individualmente o homem em suas
necessidades para reencontrar-se na sua marcha evolutiva.
38

2.2 - PELOS CAMINHOS DA PSICOLOGIA


2.2.1 – O começo

No início da civilização, entre lutas e conquistas, o homem caminhava amealhando


riquezas e maiores conhecimentos tecnológicos que o conduziram ao progresso da
humanidade. Contudo, mesmo diante de riquezas infindáveis e poderes soberanos, o
homem sentia necessidade de compreender além das forças externas que regiam os
fenômenos da natureza possíveis de serem manipulados e observados por sua visão.
Acostumado em dominar e submeter a natureza a seu favor, o homem buscava
o entendimento da realidade que ainda o perturbava, a compreensão de fenômenos
naturais regidos por forças internas inalcançáveis aos seus olhos, porém vívido e real
aos seus sentidos. Estes fenômenos eram a expressão da subjetividade humana, com
toda a sua grandeza e diversidade psíquica, que aos olhos do homem saindo do
primitivismo, eram cheios de mistérios e magia (CARPIGIANI, 2014).
Dessa forma, o homem recorre ao pensamento mítico para compreender
fenômenos naturais miraculosos que escapavam ao seu entendimento rudimentar da
vida, que somente mais tarde através da razão e da lógica passaram a fazer sentido.
É nesse sentido que Aranha e Martins (1993) afirmam que o mito surge, para
apaziguar suas dores e situar o homem diante da realidade da vida, auxiliando-o a
caminhar por entre o mundo desconhecido da psique humana. É através do
pensamento mítico que o homem busca entender o seu lugar no mundo e o turbilhão
de sensações advindas desta relação, situando-o perante as adversidades para
melhor compreensão da vida.
Enquanto processo vivo de compreensão da realidade, o mito
surge como verdade. Quando pensamos em verdade, é comum
nos referirmos as explicações racionais em que a coerência
lógica é garantida pelo rigor da argumentação e da exigência de
provas. Mas não é essa a verdade do mito, que é verdade
intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem exigência
de comprovação. O critério de adesão do mito é a crença, e não
a evidência racional. (ARANHA; MARTINS, 1993 p.61).

Carpigiani (2014) relembra que foi entre os povos antigos, como na Grécia e
em Roma, que o mito ganhou forças se manifestando em todas as esferas da vida
humana, com a expressão do sobrenatural e dos deuses, o que “representa a tentativa
de organização e compreensão da desconhecida e assustadora força da natureza,
por meio do poder de divindades”.
39

A autora traz uma referência sobre a compreensão do trabalho no pensamento


mítico, retirado da obra de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, escritor grego do século
VII a.C., que vale a pena destacarmos:

Os deuses se irritam com quem ocioso vive; na índole se parece


aos zangões sem dardo, que o esforço das abelhas,
ociosamente destróem, comendo-o; que te seja cara prudentes
obras a ordenar, para que teus celeiros se encham do sustento
sazonal. Por trabalhos os homens são ricos em rebanhos e
recursos. E, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais.
O trabalho, desonra nenhuma, o ócio, desonra é (Hesíodo apud
Carpigiani, 2014, p.3).

Neste poema de Hesíodo é possível reconhecer a concepção de trabalho


análoga a sua visão histórica, em que os mais ricos sobrepunham a força produtiva
do trabalho sob os mais pobres, necessitando de suas atividades para maior
enriquecimento e nobreza. Pela leitura do poema, podemos inferir que através do
pensamento mítico se buscava a compreensão de uma ordem natural desse modelo
societário que incitasse o homem ao trabalho, traços de uma herança cultural que
sobrevive ainda no imaginário de muitas pessoas na atualidade, visto em ditos
populares como “Deus ajuda a quem cedo madruga”.
Em uma análise geral, Aranha e Martins (1993) destacam que a atuação do
homem no mundo pelo pensamento mítico se faz por meio da expressão coletiva e
não individual. Com o mito o homem é visto por seu valor coletivo, pois toda a atividade
humana é comandada por divindades que irão ordenar suas ações, criando ritos e os
desapropriando da consciência de sí por retirar sua criticidade e responsabilidade de
seus atos.
Na consciência mítica um ato ilícito reflete por todo o coletivo, sendo preciso
expurgar o mal através de rituais sagrados que restabeleçam as normas, originando-
se os ritos e tabus. Assim, o homem passa a não ser responsável por suas ações, que
são apenas expressão da vontade divina, com reflexos por toda a comunidade, já que
seus atos estão implicados no coletivo, controlados por forças divinas, vontades
externas alheias aos desejos do homem (ARANHA; MARTINS, 1993).
Contudo, Carpigiani (2014) esclarece que é por este pensamento mítico que
inicialmente o homem busca entender o seu mundo interno, refreando seus impulsos
e colocando ordem em sentimentos incompreensíveis e desgovernados, que por ora
não havia um conhecimento humano que estruturasse sua compreensão.
40

Com o mito o homem passa a se relacionar com a realidade que o cerca dentro
de suas possibilidades psíquicas, atuando sobre o mundo sem prejuízos à sua psique.

Pense nisso: é como se o homem, ainda imaturo em seu


processo de desenvolvimento e, portanto, ainda sem recursos
para reconhecer suas próprias condições internas, projetasse
seus sentimentos de forma a depositar no mundo fora dele vida,
sabedoria, sentimentos e poder... Para Homero, a intervenção
maléfica ou benéfica dos deuses sempre está dominando a
essência do comportamento dos heróis, pois são os deuses que
comandam suas ações. O mito corresponde à satisfação do
desejo humano de encontrar o sentido e a sistematicidade dos
fenômenos que o envolvem (CARPIGIANI, 2014, p.5).

É por essa função mediadora entre o real e o possível à compreensão humana,


que Aranha e Martins (1993) afirmam que o mito ainda hoje se encontra presente no
cotidiano humano. Os autores ressaltam que sua expressão se mantém contida em
diversas formas do pensar, não da maneira irracional que dominava o pensamento do
homem primitivo, mas na forma mítica de compreender valores intrínsecos à
constituição psíquica do homem.
Isso porque, segundo as autoras, o ser humano através das forças do
inconsciente que o rege, busca pelo imaginário e nas fantasias, formas de recriar a
realidade inatingível que o cerca. Essa expressão mítica do homem contemporâneo
pode ser encontrada em variadas formas, como nos contos de fadas ou nas histórias
infantis que retratam o mito da princesa e do herói, do bem e do mal, entre outras.
Ainda na sociedade pós-moderna, conforme Aranha e Martins (1993), é
possível encontrarmos componentes míticos em festividades como o carnaval; em
jogos esportivos como o futebol; ou, ainda, personalidades reconhecidas socialmente
pelo meio artístico e político, que, de certa forma, representam seus delírios
imaginários:
Em outras palavras, tudo o que pensamos e queremos se situa
inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos
míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho
posterior da razão. A função fabuladora persiste não só nos
contos populares, no folclore, como também na vida diária do
homem ao proferir certas palavras ricas de ressonâncias míticas:
casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja definição
objetiva não esgota os significados subjacentes que ultrapassam
os limites da própria subjetividade. Essas palavras nos remetem
a valores arquetípicos, isto é, valores que são modelos
universais, existentes na natureza inconsciente e primitiva de
todos nós (ARANHA; MARTINS, 1993, p.64-65).
41

Para compreender o significado destes valores e conceitos subjetivos ao


homem, é preciso adentrar em seu mundo psíquico particular, conhecimento este
possível de ser encontrado pela Psicologia Científica em suas variadas vertentes.

2.2.2 – As origens filosóficas da Psicologia

Em sua evolução o homem conquistou diversas áreas de conhecimento como o senso


comum, a religião, a ciência, a filosofia e as artes. Todas estas áreas são de domínio
do homem, porém, para que este conhecimento se torne ciência, é necessário que o
mesmo tenha um objeto de estudo, uma linguagem rigorosa e formal para que todos
a entendam, além de objetividade, métodos e técnicas que comprovem sua
veracidade, para que seja compreendido e reproduzido em sua íntegra.
Afora os critérios acima, ainda é preciso que o cientista se afaste do objeto e o
veja de uma forma distanciada de sua realidade, para que não contamine ou se
confunda com o seu objeto de estudo. Devido a todos estes critérios rigorosos, a
Psicologia empreendeu um longo caminho até alcançar seu status de ciência, pois
compreende o estudo do homem, tendo assim seu objeto ligado estritamente com o
cientista (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Segundo os autores, a Psicologia está contida na área das Ciências Humanas,
e “colabora com o estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica
de contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana”, sendo, portanto,
seu estudo amplo e diversificado por estar contido na análise de variadas formas da
atuação humana.
Dessa forma, para Bock, Furtado e Teixeira (2002), a Psicologia percebe o
homem como um ser multideterminado, um ser que se difere do animal por articular
em si vários atributos em conjunto, possuidor de subjetividade, raciocínio lógico,
linguagem simbólica, genética, cultura, trabalho, sociabilidade, entre outros, sendo,
portanto, um ser multideterminado, já que todos esses elementos é que determinam
a espécie humana.
Carpigiani (2014), confirma que: “a Psicologia se constitui num conjunto de
conhecimentos sobre o mundo psíquico humano”, porém ressalta que podemos
encontra-la em algumas áreas das Ciências Biológicas e Humanas, isso porque, suas
42

origens provem de áreas longínquas do conhecimento humano, da Filosofia e


Medicina.
A palavra Psicologia é de origem grega, significa conhecimento da mente,
nascida dos estudos iniciais de vários filósofos gregos, o qual foi dado o nome de
Filosofia, a ciência que estuda a origem do homem e o seu significado. Mais tarde
esses estudos foram sendo aprimorados e a Psicologia deixou de fazer parte da
Filosofia, formando sua própria ciência (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Contudo, até conseguir seu status autônomo de ciência, a Psicologia manteve-
se amalgamada ao campo da Filosofia desde tempos remotos, através dos estudos
de diversos filósofos e pensadores que buscavam além da origem do homem, também
o entendimento da psique humana. Portanto, para se conhecer as origens da
Psicologia é necessário conhecer sua nascente, o surgimento da Filosofia.
Foi entre o pensamento pré-socrático na Antiguidade, que na Grécia surgiram
os primeiros estudos do homem sobre a sua origem e o entendimento da alma. Essa
compreensão se fez necessária devido ao movimento social da época, que exigia
novos modelos e técnicas de aprendizagem, desconectando-se do pensamento mítico
para um pensamento mais teórico (CARPIGIANI, 2014).
Bock, Furtado e Teixeira (2002), revelam que os gregos por sua história são
considerados um dos povos mais evoluídos, em que numa época aparentemente sem
recursos e ainda primitiva, conseguiram a expansão de seus territórios através de
técnicas e conhecimentos futuristas, gerando riqueza e poder ao seu povo, podendo
este se ocupar mais com os problemas da alma e maior tempo para desenvolver a
arte.
Uma época marcada pelas transformações culturais desse povo, que para
entender o funcionamento do universo e as causas humanas, passaram a designar
um deus para toda a ação desenvolvida, buscando compreender através do
pensamento mítico as razões da existência humana. Assim, a religião predominava
no controle da vida das pessoas, já que toda existência era compreendida como sendo
por desejo de deuses imortais, e aos mortais cabia simplesmente acatar aos seus
desígnios ficando à mercê de seu humor, e de sua sorte (CARPIGIANI, 2014).
Alguns pensadores ligados a arte passaram a questionar o direcionamento
dado pela política e principalmente pela religião, questões míticas profundas que, até
então, todos seguiam sem questionar. A partir desses pensadores pré-socráticos
43

(assim denominados por iniciar essa linha de pensamento antes de Sócrates), essas
questões começaram a ser repensadas pelo povo, iniciando uma dissociação mítica
e religiosa do homem natural (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
A partir desse movimento, conforme Carpigiani (2014), deu-se início a uma
linha de pensadores pré-socráticos que começaram a esboçar o corpo dessa ciência
através da percepção. Esses filósofos pensavam nessa relação do homem com o
mundo e como isso acontece; de forma idealista, sendo as ideias humanas que
formam o mundo dando-lhe origem e sentido; ou materialista, o mundo já formado
pela matéria que o homem sente e vê.
Porém, o marco da Filosofia está ligado a personalidade de um filósofo que a
impulsionou, Sócrates, tendo logo depois seu desenvolvimento mais aprofundado por
outros dois pensadores, Platão e Aristóteles, que contribuíram enormemente para a
evolução dessa nova ciência, e futuramente da Psicologia (CARPIGIANI, 2014).
Sócrates, homem simples, não deixou nada escrito sobre os seus
pensamentos, sendo o primeiro dos filósofos, portanto o responsável por essa linha
de pensamento que trouxe uma ciência nova, a Filosofia. Também por sua
metodologia, Sócrates é considerado por muitos o responsável pelo surgimento
posterior da Psicologia (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).

Sócrates aproximou o homem de sí e o pensamento da


humanidade passou a incluí-lo como parte dos fenômenos e
processos naturais, observador e observado, sujeito e objeto,
integrante dinâmico da natureza. Esse passo no
desenvolvimento do pensamento serviu como respaldo para o
surgimento da Psicologia séculos depois (CARPIGIANI, 2014,
p.25).

Através de um método de raciocínio que trazia o homem para mais perto de si,
colocando-o de frente com sua realidade e se abrindo para novas ideias que
permitissem uma interação maior com seu meio, Sócrates contribuiu para a
transformação social da Grécia. Sua teoria era simples, porém bastante arrojada para
a sua época que possuíam homens presos a dogmas e conceitos, acostumados a
serem conduzidos por deuses imortais que lhes retiravam o poder de discernir sobre
suas escolhas (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Segundo Carpigiani (2014), o que Sócrates propunha era que ao analisar uma
questão o homem limpasse sua mente de quaisquer outros conceitos que tinha
44

anteriormente sobre o assunto, olhando-a inteiramente livre de críticas, recebendo-a


sem nenhum pré-julgamento para então analisa-la por outros ângulos, se permitindo
assim receber novos conceitos e novas ideias. Sua frase mais conhecida, “só sei que
nada sei”, resume a sua tática pela ironia e a maiêutica, podendo a partir da ignorância
experimentar novos conceitos e se abrir para o novo.

Por isso seu método começa pela parte considerada


"destrutiva", chamada ironia (em grego, perguntar"). Nas
discussões afirma inicialmente nada saber, diante do oponente
que se diz conhecedor de determinado assunto. Com hábeis
perguntas, desmonta as certezas até o outro reconhecer a
ignorância. Parte então para a segunda etapa do método, a
maiêutica (em grego, "parto"). Dá esse nome em homenagem a
sua mãe, que era parteira, acrescentando que, se ela fazia parto
de corpos, ele "dava à luz" idéias novas. Sócrates, por meio de
perguntas, destrói o saber constituído para reconstruí-lo na
procura da definição do conceito. Esse processo aparece bem
ilustrado nos diálogos relatados por Platão, e é bom lembrar que,
no final, nem sempre Sócrates tem a resposta: ele também se
põe em busca do conceito e às vezes as discussões não chegam
a conclusões definitivas (ARANHA; MARTINS, 1993, p.93).

Por este processo da ironia-maiêutica, Carpigiani (2014) esclarece que


Sócrates induzia o homem a pensar por si próprio, tornando-se responsável pela
condução de sua vida. Seguindo por esta linha poderia separar o senso moral e
religioso, percebendo suas falhas e as falhas do sistema social em que vivia, voltando-
se para uma vida mais crítica e responsável baseado num raciocínio lógico. Seus
pensamentos foram bem aceitos pela juventude da época, que pelo espírito livre e
revolucionário próprio dessa fase, aderiram prontamente assimilando suas ideais e
seguindo-o.
Para Bock, Furtado e Teixeira (2002), Sócrates acreditava na imortalidade da
alma e que a alma trazia valores morais e racionais soberanos ao corpo, por isso as
ações do homem devem sempre aproximá-lo da nobreza de sua alma, através da
razão, para que ambos estejam em acordo e caminhem em direção ao bem. Dessa
forma ele distinguia o homem do animal, sendo o homem movido pela razão e o animal
por instintos.
Esse seu pensamento revolucionário para a época trouxeram muitas
contestações e críticas, principalmente dos religiosos e políticos, sendo, por isso,
condenado e morto (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
45

Platão foi um dos discípulos de Sócrates, e esteve presente até o final de seu
julgamento e morte. Era de uma família aristocrática, descendente de políticos e reis.
Tinha conhecimentos políticos, deixou muitos escritos de sua obra e formou sua
própria escola de investigação filosófica, chamada de Academia, a primeira
universidade do mundo (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Baseado no pensamento socrático, segundo Carpigiani (2014), Platão
constituiu suas próprias teorias e as deixou escrita em duas linhas de pensamentos:
uma que fala sobre o conhecimento da alma e os sentidos com suas subjetividades,
e outra que diz sobre o conhecimento do corpo e suas relações político-sociais.

Do seu mestre aproveita a noção nova de logos, e continuando


o processo de compreensão do real, cria a palavra idéia (eidos),
para referir-se à intuição intelectual, distinta da intuição sensível.
Portanto, acima do ilusório mundo sensível, há o mundo das
idéias gerais, das essências imutáveis que o homem atinge pela
contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos.
Sendo as idéias a única verdade, o mundo dos fenômenos só
existe na medida em que participa do mundo das idéias, do qual
é apenas sombra ou cópia. Por exemplo, um cavalo só é cavalo
enquanto participa da idéia de "cavalo em si". Trata-se da teoria
da participação, mais tarde duramente criticada por Aristóteles
(ARANHA; MARTINS, 1993, p.93).

Aranha e Martins (1993), ainda afirmam que para Platão o homem viveu como
espírito puro no mundo das ideias, porém esquecem de tudo ao serem prisioneiros do
corpo, considerado o “túmulo da alma”, recordando-se dessas lembranças
adormecidas da alma pelos sentidos, sendo esta a sua teoria da reminiscência.
Platão constrói seus pensamentos na ideia da alma tripartida, sendo: razão,
moral e desejo atributos da alma. Suas outras linhas de pensamentos, como a política
e o funcionamento do organismo, também são constituídas nesse conceito tripartido
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Os autores esclarecem que o pensamento platonista deriva da imortalidade da
alma e, que, para Platão, a alma antes de unir-se ao corpo já tem suas ideias e
conceitos, sua moral, independente do corpo. Dessa forma, o corpo serve como abrigo
para a alma que sofre por ter consciência de sua condição eterna. Não podendo
usufruir com as paixões do corpo por já possuir sua moral, a alma busca na razão,
seu outro atributo divino, conciliar e harmonizar esse estado do corpo-alma.
O pensamento platônico revela um estado conflitante entre corpo e alma.
Segundo Platão, a alma é soberana ao corpo devendo este se submeter a ela, porém,
46

isso apenas será possível se o homem souber conciliar os atributos divinos da alma
pelo conhecimento de si, através da contemplação das ideias, para chegar a um bem-
estar psíquico e corpo saudável (CARPIGIANI, 2014).
Aristóteles foi outro grande nome da Filosofia. Discípulo de Platão, também de
família aristocrática, porém mais ligada a medicina e política. Foi preceptor do filho do
rei Filipe, Alexandre, e fundou mais tarde sua própria escola denominada Liceu
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Por ser um estudioso de métodos investigativos, Aristóteles mesmo sendo
amigo de Platão, não concordava integralmente com suas teorias, pois acreditava que
eram necessárias metodologias que oferecessem bases científicas a elas. Com seus
métodos e teorias, foi Aristóteles que deu ao homem bases para elaboração de um
corpo científico aos seus conhecimentos (CARPIGIANI, 2014).
Segundo a autora, suas teorias foram sistematizadas, organizadas e
elaboradas dentro de um método mais científico investigativo, sendo sua obra
numerosa, constituída de forma clara e objetiva quanto aos seus pensamentos e
métodos, o que por “tal visão de construção do conhecimento individual facilitou a
expansão do caminho filosófico em direção ao naturalismo e ao empirismo”.
Aristóteles pensava a relação alma-corpo de forma diferente de Sócrates e
Platão, entendendo a alma como mortal, sendo um veículo que se unia ao corpo para
assegurar-lhe a harmonia de vida.

Ele tratou da questão da dicotomia corpo-alma da seguinte


forma: a alma não poderia viver sem um corpo que ela pudesse
animar porque ela está inexoravelmente ligada ás funções desse
corpo por meio de sensações, percepções, memórias, etc.
Dessa maneira, a alma não é entendida como uma substância
angustiada, presa no corpo, lutando para se livrar dele e retornar
a seu mundo de plenitude e conhecimento. Ao contrário, a alma
é o que assegura a harmonia das funções vitais (CARPIGIANI,
2014, p.31).

Com essa metodologia, ordena as coisas denominando por grupos ou


categorias e coloca as inanimadas de um lado e as criaturas vivas de outro, onde
todas possuem o poder de transformação, sendo os inanimados dependentes de um
agente externo e as criaturas vivas com potencialidade para alcançar sua
transformação, passando de potência para ato e gerando novas potências num ciclo
rotativo dentro da natureza, tendo um elemento originário que é Deus, o primeiro a
47

criar esse movimento de transformação. Para Aristóteles, somente através do


conhecimento destes grupos o homem poderia entender sua realidade
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Carpigiani (2014) acredita, que de forma mais lógica e concreta Aristóteles
trouxe seus estudos sobre o corpo e alma dentro de uma concepção científica,
assegurando a importância do corpo como fonte de conhecimento e a alma originária
de um ser superior, necessária para a manutenção do corpo e existência da vida,
sendo “possível pensar, como muitos estudiosos, que se Sócrates deu ao homem a
Filosofia, Aristóteles deu a ele a Ciência”.

2.2.3 – A Psicologia através dos tempos

Ao falarmos sobre a Psicologia enquanto ciência, é preciso retomarmos alguns


caminhos históricos que lhe deram base para compreensão de sua diversidade em
seu campo metodológico e teórico.
Nesse sentido, Carpigiani (2014) relembra que na Antiguidade “os filósofos
preocuparam-se com a ética e com o conhecimento, com a alma e com a fé, com as
sensações, com o prazer e com a morte”. Dentro dessa constelação de saberes, surge
o cristianismo como uma maneira de entender o sentido da vida humana por meio da
redenção da alma sob os pecados do homem.

A consolidação da cultura ocidental é sustentada por uma base


estrutural cujos pilares são: helenismo, judaísmo e cristianismo
[...] Observe: por uma lado, o paganismo romano incorporou o
conhecimento dos gregos, um povo politeísta, por outro lado a
negação da chegada do Messias prometido, pelos judeus.
Realmente é possível constatar uma mescla desordenada de
culturas, fés e condutas sociais que gerou um campo propício
para investida em um processo de sistematização, que veio por
meio da doutrina cristã e da criação de métodos pedagógicos
que tinham a função de organizar o Império Romano. Esse foi o
principal trabalho dos padres durante os quatros primeiros
séculos da Era cristã: consolidar o cristianismo no espaço
geográfico e nos moldes da administração do Império Romano
(CARPIGIANI, 2014, p.41-42).

Assim na Idade Média o império do povo grego foi dominado pelos romanos,
surgindo uma nova potência que iria monopolizar o poder pela religião, instituindo uma
48

nova política com bases religiosas da Igreja Católica, e caracterizando esse período
da História da humanidade como a Era Cristã (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Os autores salientam que na Era Cristã todas as ciências, a política e a
economia ficavam sob a custódia da Igreja, tendo esta instituição o poder absoluto
das coisas por conhecer e estudar sobre a divindade, o ser superior que comandava
a raça humana. Dessa forma, todo o saber era monopolizado por uma única
instituição, a Igreja, que o distribuía da maneira que entendesse ser a mais adequada
para a redenção humana (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Com isso, também o estudo da mente teve sua relação com os estudos da fé
cristã, estando ligado aos pensamentos de alguns religiosos como São Francisco de
Assis, Santa Clara, São Geraldo D’Avillac, entre outros, destacando-se dois filósofos
importantes para a Psicologia: Santo Agostinho e São e São Tomás de Aquino
(CARPIGIANI, 2014).
Santo Agostinho baseou seus pensamentos pela teoria de Platão, defendendo
a imortalidade da alma. Para este religioso a alma seria a sede da razão e que liga o
homem ao divino, a Deus, portanto os pensamentos humanos passam a serem
estudados pela igreja, já que são interpretados como uma manifestação divina no
homem (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Já em São Tomás de Aquino, segundo os autores, houve uma mudança na
maneira de pensar a relação entre o homem e Deus, pois este filósofo baseou-se nas
teorias de Aristóteles para distinguir o conceito entre essência e existência. O
pensamento tomista, ao contrário de Aristóteles, considera que para se obter a
igualdade entre alma e essência somente Deus poderia reuni-las, tornando o homem
perfeito (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Dessa forma, ele considerava a existência do homem como uma busca pela
essência para se alcançar a perfeição, encontrada apenas através de Deus. Com esse
argumento, São Tomás de Aquino consegue contemporizar o descrédito do povo com
a Igreja diante do seu autoritarismo, manifestado pelo surgimento do protestantismo,
num momento em que também surgia a revolução francesa e industrial
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Mesmo diante desse quadro social caótico e com muitos adversários, a igreja
católica consegue manter ainda por um tempo seu monopólio científico, político e
49

econômico, cristalizando o pensar humano nas fronteiras dogmáticas da religião


(CARPIGIANI, 2014).
O Renascimento é caracterizado como um período histórico de muitas
transformações para a humanidade. Nessa época surge o mercantilismo, abrindo
novos caminhos territoriais e com isso gerando novas experiências, novas
descobertas e possibilidades de riqueza e conhecimento humano. O homem passa a
novos descobrimentos e junto com ele a ciência evolui. A troca de informações, o
novo, possibilita desbravar não só novos territórios quanto novas ciências, ampliando
possibilidades que até então estavam limitadas e restritas por um único ângulo, o da
religião (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Surge ainda grandes nomes artísticos como Michelangelo e Leonardo da Vinci,
que contribuem com sua arte para a evolução da anatomia humana, auxiliando
posteriormente no avanço da medicina. Também o salto da ciência com a descoberta
do sistema heliocêntrico de Copérnico, logo após corroborada pelo telescópio de
Galileu, derruba o sistema geocêntrico colocando o sol no centro do universo, e a
Terra, consequentemente o homem, em seu devido lugar, estabelecendo as bases
teóricas que posteriormente Isaac Newton e Albert Einstein utilizariam para o avanço
da Física (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Entre tantos nomes históricos surge os filósofos Francis Bacon e René
Descartes, que contribuíram enormemente para a evolução cientifica. Bacon contribui
com o método investigativo, trazendo novos conceitos para o surgimento do
empirismo científico, enquanto Descartes “libertou a investigação e o próprio
pensamento dos dogmas teológicos e tradicionais rígidos que dominaram o
pensamento durante séculos” (CARPIGIANI, 2014, p.48).
Descartes trouxe o conceito do dualismo, como a alma sendo separada do
corpo, elementos distintos por substâncias diferentes um do outro, o dualismo
metafísico. Sua teoria proporciona argumentos sólidos e racionais para que a ciência
possa estudar o corpo após a morte, sem infringir as leis morais que antes não era
permitido pela Igreja, já que o corpo era sede da alma (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA,
2002).
Segundo Carpigiani (2014), Descartes reforça a teoria mecanicista e muda a
visão sobre o funcionamento do corpo e do mundo, possíveis de entender através de
seu pensamento analítico por partes, como numa máquina, situando a ciência em
50

bases rigorosas e metodológicas, surgindo assim o método cartesiano ou


racionalismo.

Descartes representou a passagem da Renascença para o


período moderno da ciência e, segundo alguns autores,
representou também os primórdios da Psicologia moderna [...]
Desse modo, apreende-se do pensamento cartesiano, que o
corpo é um conjunto de reflexos – visão mecanicista que
dominava o novo tempo no qual ele vivia – o que, em certa
medida, rebate a ideia de soberania da alma, e que ele, o corpo,
é composto por matéria física e é regido pelas leis da Física, e
da Mecânica [...] Descartes criou uma perspectiva filosófica que
redireciona a atenção do estudo da alma para o estudo das
operações mentais realizadas pela mente, ou seja, a capacidade
de pensar é o ponto central da mente, que é imaterial e inextensa
(CARPIGIANI, 2014, p.48-49).

No século XIX surge o capitalismo e com ele as mudanças sociais e


econômicas trazem uma visão diferente do mundo, exigindo modelos, técnicas e
conceitos atualizados para suprir essa nova ordem social. Surgem novas
necessidades, o homem revestido de novos conhecimentos passa a reivindicar seu
papel no universo, atuando de forma mais dinâmica para ordenar toda essa confusão
deixada pela revolução francesa e industrial (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Sai o feudalismo e entra a burguesia, causando mudanças na organização
socioeconômica no planeta que exige teorias e respostas novas condizentes com o
novo sistema. A fé foi questionada e o homem passa a buscar suas respostas numa
outra base, a ciência.
O capitalismo pôs esse mundo em movimento, com a
necessidade de abastecer mercados e produzir cada vez mais:
buscou novas matérias-primas na Natureza; criou necessidades;
contratou o trabalho de muitos que, por sua vez, tornavam-se
consumidores das mercadorias produzidas; questionou as
hierarquias para derrubar a nobreza e o clero de seus lugares
há tantos séculos estabilizados [...] O servo, liberto de seu
vínculo com a terra, pôde escolher seu trabalho e seu lugar
social. Com isso, o capitalismo tornou todos os homens
consumidores, em potencial, das mercadorias produzidas. O
conhecimento tornou-se independente da fé. Os dogmas da
Igreja foram questionados. O mundo se moveu. A racionalidade
do homem apareceu, então, como a grande possibilidade de
construção do conhecimento (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA,
2002, p.37-38).

Surgem novos pensadores, nomes importantes que impulsionaram e marcaram


essa nova etapa científica da humanidade, como Darwin com a teoria evolucionista
por seleção natural, dando novo enfoque a biologia, e o positivismo de Augusto Comte
51

para a Filosofia, que estimula a nova ciência em bases mais rigorosas e empíricas e
impulsiona o conhecimento pelas ciências naturais, mais propriamente pela Física
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Os autores explicitam que toda essa movimentação no campo da ciência
moderna possibilitou novos horizontes também para a Psicologia, que sai
gradativamente do campo filosófico para o campo científico, mais especificamente da
Fisiologia e Neurofisiologia, que compreende o sistema nervoso central como chave
para o conhecimento da psique, pois “o pensamento, as percepções e sentimentos
humanos eram produtos desse sistema” (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.39).
Carpigiani (2014) confirma esse início da Psicologia atrelada ao campo da
Física e Biologia, lembrando que na época as discussões voltadas à descoberta do
átomo, moléculas e células, deram o impulso necessário para os primeiros passos da
Psicologia Científica nascer entre os laboratórios das universidades de Medicina e
Fisiologia.

2.2.4 – A Psicologia Científica

Foi nesse cenário novo e conturbado da ciência moderna que a Psicologia surge como
ciência. Paulatinamente saindo da área da Filosofia ganha autonomia e passa a ser
conceituada como uma ciência nova e única para os estudos dos processos psíquicos
do homem.
Dessa forma, Bock, Furtado e Teixeira (2002) esclarecem que no início do
século XIX, outros estudiosos chegaram à conclusão de que a Psicologia não poderia
ser definida como sendo apenas estudo da alma por não ter um objeto concreto de
estudo e, a partir disso, passaram a estudar e desenvolver outras teorias para a
definição de um objeto de estudo para a Psicologia, pois “ para se conhecer o
psiquismo humano passa a ser necessário compreender os mecanismos e o
funcionamento da máquina de pensar do homem, o cérebro”. Assim:

A Neuroanatomia descobre que a atividade motora nem sempre


está ligada à consciência, por não estar necessariamente na
dependência dos centros cerebrais superiores. Por exemplo,
quando alguém queima a mão em uma chapa quente, primeiro
tira-a da chapa para depois perceber o que aconteceu. Esse
fenômeno chama-se reflexo, e o estímulo que chega a medula
espinhal, antes de chegar aos centros cerebrais superiores,
52

recebe uma ordem para a resposta, que é tirar a mão


(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.39).

Com isso, passa a se estudar o fenômeno psicológico enquanto ciência, o qual


se denominou esse estudo de Psicofísica. Um dos estudiosos que contribuíram para
o avanço desse estudo foram os alemães Fechner e Weber, formulando a Lei de
Fechner-Weber que institui a relação entre o estimulo e a sensação, possibilitando
assim a sua mensuração cientifica (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Wilhelm Wundt, segundo os autores, foi outro alemão que impulsionou os
estudos da psicofísica, e garantiu a autonomia da Psicologia enquanto ciência, criando
o primeiro laboratório para realizar experimentos na área da Psicofisiologia. Seu
método de estudo é voltado para a extrema atenção concentrada através da
observação do objeto, denominado introspeccionismo, e por ele “desenvolve a
concepção do paralelismo psicofísico, segundo o qual aos fenômenos mentais
correspondem fenômenos orgânicos”.
A parir de seus estudos experimentais em laboratórios, a Psicologia passou a
ter um objeto de estudo definido com métodos matemáticos empíricos, formulando
novas teorias e delimitando seu campo científico, ganhando com isso seu status de
ciência (CARPIGIANI, 2014).
Porém, segundo Bock, Furtado e Teixeira (2002), a Psicologia Cientifica ganha
novos ares que irá sustenta-la e solidificar as suas raízes. Saindo da Alemanha a
Psicologia se fortalece nos Estados Unidos, tomando por bases iniciais três
abordagens:
 O Funcionalismo – busca compreender o funcionamento da consciência já que
o homem a utiliza para adaptar-se ao meio. Seu método de estudo é o
introspeccionismo de Wundt, elaborado de forma experimental em laboratório.
 O Estruturalismo – também se interessa pela consciência e se diferencia do
funcionalismo porque não se preocupa como ela funciona, e sim com seus
aspectos estruturais do sistema nervoso central. Seu método de estudo é igual
ao funcionalismo, pelo introspeccionismo.
 O Associacionismo – não possuía bases filosóficas e sua teoria acreditava na
importância da estrutura e do funcionamento do sistema nervoso, porém que
existe uma associação entre esses dois pontos que conduziam a um processo
de aprendizagem por associação de ideias, no qual as mais simples vão sendo
53

associadas a outras similares até chegarem a um pensamento mais complexo.


Dessa teoria se formulou a Lei do Efeito, por essa lei entendia que todo ser vivo
tende a repetir seus comportamentos quando são recompensados por ele, só
não acontecendo essa repetição quando for imediatamente castigado por essa
ação.

Partindo desse princípio, a Psicologia se consolida como ciência e seus


métodos de estudos e teoria ganham novos conceitos e técnicas, se diversificando
por estes desdobramentos que irão caracterizar seu campo metodológico por sua
diversidade científica, porquanto seu objeto de estudo, a subjetividade humana,
também é diverso e complexo (CARPIGIANI, 2014).
Bock, Furtado e Teixeira (2002), salientam que no século XX essas abordagens
iniciais da Psicologia que se instituíram através de bases experimentais de laboratório,
mais ligadas ao campo da Medicina excluindo suas raízes filosóficas, foram
substituídas por três principais teorias: o Behaviorismo, a Gestalt e a Psicanálise.

2.2.4.1 – Behaviorismo
O Behaviorismo nasceu como uma reação aos teóricos defensores do estudo da
introspecção e da psicanálise, que buscavam explicações sobre o funcionamento
interior, e não observável, da mente.
Essa corrente contrária as teorias que se preocupavam principalmente com a
consciência, da maneira como esta era estudada pelas outras escolas da época,
buscava compreender o homem segundo o seu comportamento, analisando-o por
suas ações dentro de um tempo e espaço, modificando inteiramente o objeto atual de
estudo da Psicologia. John Broadus Watson foi seu principal estudioso, instituindo o
termo Behaviorismo para denominar essa nova corrente teórica, originário do termo
inglês Behavior, que significa comportamento (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Por seu pensamento a Psicologia se fortalece enquanto ciência, pois com sua
metodologia ela rompe com seu status de uma ciência da alma, por objetos de estudos
imensuráveis e com poucos recursos para uma observação consistente
empiricamente. Dessa forma, Watson volta-se exclusivamente para o estudo do
comportamento objetivo, levando em conta certas variáveis do meio que
54

proporcionariam estímulos para o organismo responder de determinada forma


(CARPIGIANI, 2014).

Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e


sem mente, livre de conceitos mentalistas e de métodos
subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e controlar.
Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da
Psicologia, o Behaviorismo foi, desde Watson, modificando o
sentido desse termo. Hoje, não se entende comportamento
como uma ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma
interação entre aquilo que o sujeito faz e o ambiente onde o seu
“fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo dedica-se ao estudo
das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do
indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações)
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.45).

Bock, Furtando e Teixeira (2002), revelam que a partir dos estudos de métodos
experimentais aplicáveis, os behavioristas definiram o comportamento humano
segundo dois conceitos principais: o comportamento reflexo ou respondente, quando
reagimos de forma involuntária a um estímulo, e; o comportamento operante, quando
reagimos a um estímulo por meio da vontade consciente, compreendendo que toda
ação humana opera sobre o meio e influência ou é influenciado por ela.
Após Watson, o mais importante behaviorista foi Burrhus Frederich Skinner, e
sua linha de estudo ficou conhecida como Behaviorismo Radical. Enquanto a principal
preocupação de outros teóricos estava voltada para os métodos das ciências naturais,
a teoria de Skinner voltava-se para a explicação científica, definindo como prioridade
para a ciência do comportamento o desenvolvimento de termos e conceitos que
permitissem explicações verdadeiramente científicas (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA,
2002).
O conceito do comportamento operante foi a principal linha teórica de Skinner,
desenvolvendo a partir dela diversos outros conceitos de aprendizagem que
abrangem todos os tipos de comportamento, podendo seu método ser aplicado em
qualquer atividade da área humana (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Conforme Carpigiani (2014), “para Skinner, o homem deveria ser entendido em
função e como consequência das influências ou forças existentes no meio”, tendo,
portanto, desenvolvido diversos conceitos relacionados ao ensino-aprendizagem que
permitissem técnicas apropriadas ao controle e preservação do comportamento
humano. Para tal, Skinner utilizou-se da Lei do Efeito (estímulo e resposta),
55

desenvolvendo intricados conceitos para o controle do comportamento, segundo as


leis do comportamento operante. Abaixo alguns dos principais conceitos de sua linha
de estudo:
 Reforço positivo ou negativo – estímulo que conduza a uma resposta
comportamental desejada, quando positivo é obtido e quando negativo é
removido o comportamento.
 Punição – quando o estímulo é aversivo ou não se tem mais o reforço positivo
com o intuito de anular uma resposta comportamental indesejada.
 Extinção – quando se extingue o estímulo que conduzia uma resposta,
deixando de ser reforçado, gerando o fim do comportamento.
 Generalização – quando leva o comportamento apreendido a outros meios,
percebendo a semelhança entre as coisas.
 Discriminação – é o processo inverso da generalização, quando se percebe as
diferenças entre os comportamentos.

A civilização tem caminhado do controle aversivo para uma


abordagem positivista. Hoje há apenas alguns lugares no mundo
onde a escravidão ainda é praticada, onde o trabalho é feito
debaixo do chicote. Nós substituímos a punição física pelo
pagamento de salários e andamos preocupados em achar
outros reforçadores (Skinner apud Carpigiani, 2014, p.80)

Carpigiani (2014), afirma que pelo refinamento de sua corrente teórica,


atualmente o Behaviorismo está sendo aplicado em diversas áreas com a finalidade
de entender, auxiliar ou aprimorar o comportamento humano, compreendendo que “o
ambiente é soberano na construção da personalidade humana”, podendo seus
métodos e técnicas serem utilizados na área da educação, organizacional, saúde,
entre outras, pois estando focada no comportamento sua teoria abrange todos os
campos de atividade humana.

2.2.4.2 – Gestalt
De origem alemã, nasce uma nova teoria com os teóricos Max Wertheimer, Wolfgang
Kohler e Kurt Koffka, baseados em estudos psicofísicos, na busca de seus estudiosos
em construir uma teoria forte da psicologia que perdurasse suas bases teóricas, se
contrapondo à teoria do Behaviorismo americano (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA,
2002).
56

Seu objeto de estudo é o comportamento do homem através do meio,


abrangendo não só o ambiente em que está, mas também sua relação sociocultural,
pois o conceito dessa nova teoria está na base filosófica de Kant, filósofo do século
XVIII que defendia a ideia que a percepção provinha de uma experiência única e
pessoal, e não apenas de um processo mental em resposta aos órgãos sensoriais
(CARPIGIANI, 2014).

Considerando o córtex cerebral um sistema dinâmico em que os


diversos elementos da sensação interagem de inúmeras
maneiras, a teoria desenvolvida por eles compreende o
processo de percepção como uma relação entre a experiência
psicológica e a cerebral, ou seja, para a Gestalt, a percepção da
realidade não é entendida como uma cópia da sensação e essa
definição envolve conhecimentos de Física, Química e Biologia,
sobre os quais os três autores se debruçaram, cada um a seu
tempo [...] A definição mais geral e finalmente adotada pelos
psicólogos envolve, além do aspecto da forma, o estudo dos
processos de aprendizagem, recordação, percepção, impulso,
atitude emocional, pensamento, ação, etc. Na verdade, o
movimento gestaltista reacendeu o pensamento psicológico,
reanimou as pesquisas e relocalizou o sujeito intrapsíquico nas
discussões em Psicologia, dando consistência ao estudo da
percepção e da aprendizagem. O princípio regente é a lei da boa
forma – gute Gestalt (CARPIGIANI, 2014, p.91-92).

Os gestaltistas consideravam relevante a percepção e a sensação que o


indivíduo tem sob um determinado estímulo, influenciando o seu comportamento,
“levando em consideração as condições que alteram a percepção do estímulo”. Com
isso, seus estudiosos buscavam compreender os processos psicológicos da mente,
quando sua resposta é diferente da realidade que lhe foi apresentada, a partir da
“teoria do isomorfismo, que supunha uma unidade no universo, onde a parte está
relacionada ao todo” (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Dessa forma, segundo os autores, para a Gestalt o todo tem papel fundamental
na compreensão do objeto percebido, por isso a aprendizagem se dá através dessa
relação entre o todo e a parte, por ser compreendido que nem sempre as situações
vividas pelo homem apresentam-se de forma tão clara que permita sua percepção
imediata.
Essas situações dificultariam o processo de aprendizagem, porque não
permitem uma clara definição entre a figura e o fundo, quando os dois não são
compreendidos distintamente e levam o indivíduo a diversas interpretações diferentes
da realidade do objeto, impedindo a relação parte-todo para a definição desse objeto.
57

Quando o indivíduo tem uma compreensão imediata da forma, esse evento para a
Gestalt é designado pelo termo insight (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Ao contrário da teoria behaviorista que isola seu objeto de estudo, para a
Gestalt ao estudar o comportamento humano de forma isolada sem considerar sua
história social e cultural, acaba-se perdendo o seu significado e possível controle das
variáveis, já que cada indivíduo percebe o meio por uma realidade diferente das
demais pessoas, devendo, portanto, estudar o comportamento de forma global,
levando em consideração as condições que alteram a percepção do estímulo
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Os gestaltistas, segundo Bock, Furtado e Teixeira (2002), compreendem que o
comportamento humano é determinado pela percepção do estímulo, ficando
submetido a lei da boa-forma, sendo o campo psicológico do indivíduo entendido
como se fosse um imã que o conduz a procurar a boa-forma, denominando esse
conceito como força do campo psicológico.
Carpigiani (2014) confirma que na Psicologia da Gestalt, a organização
perceptual é a sua base de estudo para a compreensão do comportamento humano,
e a qualidade da percepção dependerá tanto de fatores internos quanto de fatores
externos, que se inter-relacionam na composição da subjetividade humana.

Os fatores internos levam os indivíduos a perceber coisas


diferentes da realidade, o que não acontece com os fatores
externos, e nisso reside a diferença, pois, enquanto cada
indivíduo possui um grupo único de fatores internos que
influenciam uma situação perceptual, os fatores externos são
idênticos para todos os membros de determinada sociedade
(CARPIGIANI, 2014, p.94).

Também o ambiente é de suma relevância para os gestaltistas, compreendido


entre o meio geográfico, espaço em que está o sujeito, e o meio comportamental,
determinado pela percepção do sujeito diante desse espaço físico que culminará na
forma de seu comportamento (CARPIGIANI, 2014).
Essa linha teórica da Gestalt parte do pensamento do alemão Kurt Lewin, um
estudioso teórico, que teve um papel fundamental para a Psicologia da Gestalt. Lewin
não era adepto da Gestalt, porém se fundamentou em sua teoria através de
conhecimentos adquiridos com estudiosos gestaltistas (CARPIGIANI, 2014).
58

Lewin estabeleceu princípios da Física para elaborar uma nova teoria


psicológica denominada Teoria de Campo, e seu principal conceito é de espaço vital,
concebendo que o campo psicológico do indivíduo abrange o espaço da sua vida, ou
seja, são todos os elementos que interagem com esse sujeito no momento de
determinada situação, não somente os elementos físicos da relação sujeito-meio que
determinam seu comportamento, podendo ser estes elementos também seus anseios,
sonhos, desejos, etc (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Dessa forma, a realidade do indivíduo ultrapassa os limites de percepção do
sujeito com o objeto, extrapolando para toda a sua existência ligada a situação vivida,
correspondendo a uma totalidade dos fatos, que podem influenciar no seu
comportamento num determinado momento. Sua teoria colaborou para diversos
aperfeiçoamentos de trabalhos na Psicologia, como o entendimento dos processos
grupais e, principalmente, em relação ao seu conceito de Campo Social, que
contribuiu para o aprofundamento das teorias em Psicologia Social (CARPIGIANI,
2014).

2.2.4.3 – Psicanálise
O termo Psicanálise é usado tanto para se referir a uma teoria, quanto a um método
de investigação ou a uma prática profissional. Sua teoria foi concebida no início do
século XX por Sigmund Freud, médico e estudioso de Viena, que compreende o
comportamento humano com base em sua vida psíquica, daquilo que está oculto e
não observável, mas que se manifesta no comportamento do sujeito em decorrência
aos traumas vividos durante a sua infância (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Segundo Carpigiani (2014), Freud possuía especialização em neurologia, e por
seus estudos realizados em sua prática clínica, percebeu pela análise de seus
pacientes que todos temos problemas mentais, construindo a partir desse fato a
pisque humana. Através da sintomatologia da histeria, Freud descobre que sua causa
está ligada com a sexualidade humana, e sua tese revoluciona a ciência na área da
saúde mental.
Grande parte de suas pesquisas estão baseadas em suas experiências
pessoais. Em sua trajetória profissional ele trabalhou com psiquiatras de renome,
como Jean Charcot e Josef Breuer. Ambos utilizavam o método da hipnose, sendo
59

esta a primeira técnica utilizada por Freud em seus estudos


(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Os autores apontam que seu método de estudo é através da interpretação dos
conteúdos trazidos pelos pacientes sobre as suas vidas, e “busca o significado oculto
daquilo que é manifesto por meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias,
como os sonhos, os delírios, as associações livres, os atos falhos”. Segundo sua
teoria, tudo que está guardado dentro da mente humana é um instrumento importante
para a análise e compreensão dos comportamentos e fenômenos sociais relevantes.

A vida humana seja no âmbito individual, seja no social, está


sujeita a um movimento cíclico, com tendências à repetição,
movimentos que se evidenciam nas decisões cotidianas do
homem comum, nas obras dos artistas, nas descobertas dos
cientistas que se dispõem dela tratar ou a ela retratar. A
psicanálise traz, na essência de sua teoria, a preocupação em
compreender os atos e produções psíquicas do ser humano.
Para isso, desenvolveu uma teoria geral do homem que se
propõe a estuda-lo na intersecção entre seus aspectos genético,
histórico e dinâmico, com o intuito de encontrar ligações causais
entre os três ângulos, reunindo passado, presente e futuro da
história do indivíduo (CARPIGIANI, 2014, p.108).

Posteriormente Freud passou a estudar os pacientes por um método


investigativo criado por ele, técnica denominada como associação livre . Deixando
seus pacientes à vontade sem fazer muitas perguntas, instituindo o método cartático
em que o paciente fala sobre suas emoções e com isso expurga aquilo que o aflige,
ele pôde perceber o quanto as pessoas se perdiam ao falar de determinado assunto
ou encobriam algumas ideias, e a esse evento ele deu o nome de Resistência.
Também pelo mesmo método de pesquisa, Freud percebeu que muitos esqueciam
fatos insuportáveis e dolorosos da sua vida, fugindo da realidade, e a esse evento deu
o nome de Repressão (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Seu método de estudo torna-se explicito em Carpigiani (2014), esclarecendo
que Freud publicou uma extensa obra durante toda a sua vida, relatando suas
descobertas e formulando leis gerais sobre a estrutura e o funcionamento da psique
humana, postulando que entre a percepção e a tomada de consciência está a psique,
fora do circuito anatômico. Apresentou a primeira concepção sobre a estrutura e o
funcionamento da personalidade, sendo fundada na existência de três instâncias
60

psíquicas, que a princípio Freud denominou-as Inconsciente, Consciente e Pré-


Consciente:

Os estados em que as ideias existiam antes de se tornarem


conscientes é chamado por nós repressão, e asseveramos que
a força que instituiu a repressão e a mantém é percebida como
resistência durante o trabalho de análise. Obtemos assim o
nosso conceito de Inconsciente a partir da teoria da repressão.
O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente.
Percebemos, contudo, que temos dois tipos de inconscientes:
um que é latente, mas capaz de tornar-se consciente, e outro
que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho,
capaz de tornar-se consciente. Esta compreensão interna
(insight) da dinâmica psíquica não pode deixar de afetar a
terminologia e a descrição. Ao latente (que é inconsciente
apenas descritivamente, não no sentido dinâmico), chamamos
de pré-consciente; restringimos o termo inconsciente ao
reprimido dinamicamente inconsciente, de maneira que temos
agora três termos: consciente, pré-consciente e inconsciente
(cujo sentido não é mais puramente descritivo) (Freud apud
Carpigiani, 2014, p.112-113).

Carpigiani (2014) ainda ressalta que a Psicanálise nasce paralelamente ao


surgimento da Psicologia, distintamente, cada qual seguindo suas técnicas e métodos
discriminadamente.
Sua teoria passou por diversas reformulações durante a sua obra, e Carpigiani
(2014) salienta o quanto os seus conceitos auxiliaram no conhecimento do
funcionamento da mente humana, tendo influenciado diversas áreas do conhecimento
humano e servido de base para muitas outras áreas de estudo. Contudo, inicialmente
a sociedade médica de sua época não recebeu sua teoria de forma acolhedora e
receptiva, sendo esse fato compreendido por Freud devido à dificuldade na “aceitação
da sexualidade infantil e o reconhecimento de que o homem é dominado por
processos psíquicos que desconhece”.
Bock, Furtado e Teixeira (2002), esclarecem que isso deve-se ao fato de que
em sua teoria, Freud postulava que a sexualidade humana é a chave que move a vida
psíquica, sendo, portanto, todos os seus mecanismos regidos por conflitos de ordem
sexual e que se originaram no início da vida do indivíduo, ou seja, em sua infância.
Suas concepções causam surpresas e choque aos conceitos da sociedade vigente,
que concebiam a infância como uma época pueril e inocente, e a sexualidade,
principalmente para as mulheres, como apenas um fator reprodutivo e biológico do
ser humano, e não como defendido por Freud, como também uma fonte de prazer.
61

Para os autores, na sua teoria a libido é fonte de energia sexual e essa energia
é construída pelo prazer da satisfação de realização dos desejos presentes no
indivíduo. Portanto, a sexualidade de Freud é a constituição de tudo aquilo que seja
prazeroso e proporcione satisfação ao inconsciente, sendo o objeto libidinal um objeto
que satisfaça esse prazer.
Em sua tese, conforme Bock, Furtado e Teixeira (2002), o ser humano passa
desde os primeiros anos de vida até a puberdade por um processo de
desenvolvimento psicossexual, ao qual “tem a função sexual ligada à sobrevivência e,
portanto, o prazer é ligado ao próprio corpo”. Com isso, Freud postula as cinco fases
do desenvolvimento psicossexual do ser humano:
 Fase oral (0 a 1 ano e meio) - é considerada a erotização pela boca.
 Fase anal (1 ano e meio a 3 anos) - a zona de erotização é o ânus.
 Fase fálica (3 a 6 anos) - ocorre o descobrimento dos órgãos sexuais.
 Período de latência (6 anos até a puberdade) – considerado como um intervalo
na evolução da sexualidade.
 Fase genital (puberdade em diante) – quando a zona de erotização está fora
do corpo.

Durante as fases de desenvolvimento, outros processos psíquicos irão suceder


na vida psíquica do homem. Para compreender sua teoria, um dos conceitos chave
utilizado por Freud é o Complexo de Édipo para a estruturação da personalidade. Nele
Freud se utiliza do mito para tecer uma analogia entre o inconsciente e os desejos
infantis, descrevendo os intrincados mecanismos da psique humana pelo símbolo da
mitologia grega (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Aranha e Martins (1993) explicam que no mito o rei Édipo é sentenciado pelo
oráculo de matar o pai para casar com a mãe, ao qual ele foge de sua predestinação
incansavelmente. Contudo, seu amor demasiado por sua mãe não permite que
escape de sua sina, acarretando-lhe sofrimentos e culpas por gerações.
Seguindo pela mesma perspectiva, Freud introduz o conceito do Complexo de
Édipo, auxiliado por outros mecanismos psíquicos, no desenvolvimento da psique
humana. Segundo ele, para a criança a mãe é o seu objeto libidinal e o pai seu rival,
devendo ocorrer a ruptura entre a díade mãe-bebê para que a criança possa se
desenvolver psicossocialmente. Caso isso não ocorra, a criança ficará presa aos laços
62

afetivos da mãe, ocasionando traumas e conflitos futuros que comprometerão seu


desenvolvimento psíquico na fase adulta (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Segundo os autores, mais tarde Freud reformula alguns conceitos de sua
teoria, institui que a vida psíquica é regida pelo princípio do prazer e pelo princípio da
realidade, substituindo os termos Inconsciente, Consciente e Pré-consciente, por:
 Id - considerado o reservatório da energia psíquica, localiza-se as pulsões vida
e morte, é regido pelo princípio do prazer.
 Ego - responsável pela ordem, suas funções são percepção, memória,
sentimento e pensamentos. É regido pelo princípio da realidade e funciona
como uma balança mediadora entre as duas outras instâncias.
 Super ego - ocorre devido ao Complexo de Édipo, com as internalizações das
proibições, dos limites, da autoridade, e do julgamento moral.
No entanto, segundo Carpigiani (2014), “a relação recíproca dessas três
instâncias é de dinâmico e permanente combate”, pois para Freud, a verdadeira
realidade é a realidade psíquica. Mesmo com o equilíbrio do princípio da realidade,
sempre o ser humano tenderá pelas preferências do Id e não da realidade externa
determinada pelo Ego, o que resultará num jogo indelével de forças entre as duas
realidades e instâncias psíquicas. E será esse conflito que permitirá o equilíbrio
psíquico do homem.
Durante sua obra Freud postulou dezenas de ideias e diversos conceitos,
como, por exemplo, os mecanismos de defesas e o conceito de Castração, que
formam a base de sua teoria para a compreensão do funcionamento da psique
humana, auxiliando a ciência no discernimento do que é saudável e do que é
patológico na humanidade (CARPIGIANI, 2014).
É por entre essas três principais correntes teóricas da Psicologia Científica que
outras escolas e abordagens psicológicas surgiram. Uma gama de autores no
desdobramento de diversos estudos, fundamentaram conceitos e ideias sobre a
subjetividade humana dentro da ótica individual (Psicanálise), experimental do
comportamento (Behaviorismo) ou relacional com o meio (Gestalt), produzindo
conhecimentos gerais e específicos desse ser em crescente mutação (LANE, 1989).
Sendo o homem mutante e dinâmico, a Psicologia vem se transformando ao
longo do tempo para acompanhar a análise de seu objeto em suas especificidades.
Atualmente a Psicologia possui um campo variado de conhecimento dentro das
63

Ciências Humanas, criando técnicas e métodos para abranger a incrível e complexa


idiossincrasias do caráter de ser humano.
Especificidades que vão desde a análise pontual de um dado objetivo da vida
humana, até os aspectos fundamentais pertinentes a intrincada rede das relações
sociais que o hominizam, campo fecundo de estudo que abrange a área da Psicologia
Social (LANE, 1989).
64

2.3 – ENTENDENDO A SUBJETIVIDADE HUMANA


2.3.1 – O homem pelo olhar da Psicologia Social

A Psicologia estuda o homem em seus variados aspectos para a compreensão de sua


subjetividade, que o caracterizará em um ser único e individual. Como vimos no tópico
anterior, através da análise do seu comportamento busca apreender os significados
subjacentes às reações e emoções que perpassam pela conduta humana, e que
compõe a sua subjetividade, ou seja, aquilo que determina a ação singular do homem.
Porém, por sua complexidade não é possível mensurar o homem apenas por um
aspecto, sendo, portanto, estudado pela Psicologia pelos diversos âmbitos que se
constitui, ou, é constituído, em ser humano.
Para a compreensão das atitudes humana, em sua evolução científica a
Psicologia estuda desde os seus aspectos fisiológicos de reações orgânicas, até suas
atitudes intencionais determinadas por seu comportamento observável e, não
intencionais, reações determinadas por um comportamento inconsciente (LANE,
2006).
Além dessa gama de aspectos estudados pela Psicologia, também é
considerado por ela os meios e ambientes que são produzidas suas ações, pois,
segundo Lane (2006), para o estudo da individualidade humana, a Psicologia analisa
as “leis gerais que, a partir das características da espécie, dentro de determinadas
condições ambientais, prevêem os comportamentos decorrentes”.
Dessa forma, uma das ramificações das ciências psicológicas que estuda os
fenômenos humanos é a Psicologia Social, que busca pela lógica indutiva
compreender o homem, a partir de seus aspectos sociais para o entendimento e
predição de sua individualidade (LANE, 2006).
Essa vertente da psicologia é assinalada por Bock, Furtado e Teixeira (2002),
como fundamentada pelos estudos da teoria marxista e da teoria do construtivismo
social do psicólogo russo Vigotski, que deu origem a Psicologia Sócio-Histórica.
Por esta nova abordagem, a Psicologia Social entende o homem em suas
bases relacionais pela sociedade, pois compreende seu desenvolvimento e
constituição psíquica apenas possível a partir de suas relações e transformações
sociais (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
65

Por seus movimentos sociais o homem vai se constituindo e se desenvolvendo


em um mundo cheio de relações, transformações e conhecimentos históricos que lhe
são passados por gerações. Com isso o ser humano se constrói juntamente com o
desenvolvimento da sociedade, pois tem por base não só suas experiências únicas,
mas também influências históricas de outras pessoas que reconstroem o mundo em
que vive, antes mesmo do seu nascimento (LANE, 2006).
Contudo a autora esclarece que tais atividades que determinam a sociabilidade
do homem, estão contidas numa complexa rede de elementos sociais que irão
influenciar e auxiliar na formação da personalidade humana.
Elementos sociais como, por exemplo, a linguagem, irão subsidiar as respostas
emocionais de cada indivíduo, se inter-relacionando com outros elementos
constituintes de sua psique, como, por exemplo, a educação. É na reciprocidade
desses elementos que se influenciam mutuamente que o homem produzirá sua
subjetividade, moldando sua personalidade que determinará seu comportamento
individual (LANE, 2006).
Para Bock, Furtado e Teixeira (2002), a forma singular da experiência vivida
pelo homem, perpassa por diversos mecanismos psíquicos subjacentes aos
significados contidos à conceitos e atividades, que foram construídos para suprir
necessidades em determinado momento histórico e social da humanidade.

O homem constrói sua existência a partir de uma ação sobre a


realidade, que tem, por objetivo, satisfazer suas necessidades.
Mas essa ação e essas necessidades têm uma característica
fundamental: são sociais e produzidas historicamente em
sociedade. As necessidades básicas do homem não são apenas
biológicas, elas, ao surgirem, são imediatamente socializadas.
Por exemplo, os hábitos alimentares e o comportamento sexual
do homem são formas sociais e não naturais de satisfazer
necessidades biológicas. Através da atividade o homem produz
o necessário para satisfazer essas necessidades [...] São essas
relações que definem o lugar de cada indivíduo e a sua
atividade. Por isso, quando se diz que o homem é um ser ativo,
diz-se, ao mesmo tempo, que ele é um ser social
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.89-90).

Por este olhar psicossocial, Lane (2006) alerta ser necessário apreender o
significado que contém esses elementos, para compreender a realidade interna do
homem, ou seja, a sua subjetividade, e consequente maneira de se relacionar
externamente no mundo. Elementos que são considerados como fenômenos sociais,
66

pois configuram as relações sociais e influenciam a maneira como o homem se


relaciona em sociedade.
É por estes fenômenos que a Psicologia Social irá buscar respostas para o
comportamento humano, compreendendo os significados das relações sociais por trás
de cada conceito e valor que compõe a subjetividade humana, “desde como seus
membros se organizam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e
instituições necessários para a continuidade da sociedade” (LANE, 2006, p.10).
É por este entrelaçamento de emoções, atividades e troca nas relações sociais
que o homem irá se constituir e deixar sua marca indelével na humanidade, pois ao
ser influenciado socialmente, ele também poderá influenciar a sociedade por suas
atitudes, numa transformação mútua e dialética que caracteriza o desenvolvimento
humano e o surgimento de novas sociedades (LANE, 2006).
No entanto, a autora adverte que a sociedade se transforma continuamente,
modificando suas normas e estabelecendo novas regras, conforme as necessidades
do grupo social que se articulam nela.
Nesse sentido, Lane (1989) afirma que além de entender os significados
subjacentes aos conceitos, é preciso ainda situar o homem em sua ação, capturando
os aspectos sociais e históricos do grupo que fazem parte da experiência vivida, que
indissociavelmente irão compor a singularidade da realidade sentida em seu processo
sócio-histórico, pois:

É dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que


vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a
reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social
e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção
efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo –
objeto da Psicologia Social (LANE, 1989, p.16).

Por esta perspectiva, entendendo o homem como um ser social, pela Psicologia
Social é imprescindível abranger a historicidade do indivíduo, não sendo possível
compreender as emoções humanas de forma atemporal, como um ser estático,
tampouco por um único ângulo, sem considerar os elementos sociais implicados em
sua história (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Com isso, para a compreensão da totalidade humana é preciso conhecer os
aspectos individuais desses elementos sociais que fazem parte da constituição da
67

psique humana, entendendo suas funções e objetivos dentro dessa complexa e


intrigante forma de viver do homem social.

2.3.2 – Os elementos sociais constituintes da personalidade humana


2.3.2.1 – A cultura

Para chegar até à civilização, o homem desbravou diversos caminhos, conhecendo


novas rotas e superando outras, que não mais lhe serviam em suas necessidades.
Foi paulatinamente construindo meios de sobrevivência que lhe permitiam conviver
com os demais da sua espécie, criando uma intrincada rede de normas, regras e
costumes que pudessem organizar sua rotina, viabilizando suas relações sem
obstaculizar os meios para chegar às suas necessidades diárias.
Aranha e Martins (1993), caracteriza o homem por sua ação lógica e
premeditada, ao não utilizar somente de seus instintos, transformando o meio e a si
mesmo. Ao dispor da natureza em seu favor o homem cria novas normas, modifica
outras e estabelece uma maneira diferenciada da que conhece pela natureza. Assim,
agindo por meio de sua vontade, o homem intervém em dados naturais para que
concorram melhor em sua convivência.
Com isso, os autores esclarecem que a humanidade criou variadas formas de
se relacionar em sociedade, por vezes em oposição aos aspectos naturais, a qual hoje
chamamos de cultura, um processo de “autoliberação progressiva do homem, que o
caracteriza como um ser de mutação, um ser de, que ultrapassa a própria existência”.
Num sentindo antropológico, Chauí (2000) designa cultura como sendo a
criação humana de uma ordem simbólica, a qual marcou a divisão do homem em ser
humano. A partir do símbolo o homem passa a se reconhecer em suas práticas,
mesmo estando ausente. Pela lei simbólica ele interpreta sua realidade,
representando-a a qualquer tempo e espaço. Assim, cultura seria um conjunto de
sistema que possibilita a interdição, estabelecimento de normas e atribuições de
valores e significados às práticas humanas, caracterizando sua civilização.
É por estes princípios únicos criados pela lei simbólica que o homem se
diferencia do animal, mesmo que viva completamente isolado dos outros homens,
pois, ainda assim, trará em suas lembranças e atitudes o aprendizado e influência da
convivência em sociedade, da cultura de seu grupo (ARANHA; MARTINS, 1993).
68

Por outra análise, Chauí (2000) faz uma distinção sobre o significado ambíguo
do conceito de cultura atualmente, em que é possível entende-la tanto como um
processo de transformação da natureza pela aquisição de novos costumes, quanto do
aperfeiçoamento educacional humano.
A autora esclarece que a palavra cultura vem do verbo cultivar, de origem latim,
e que a princípio estava ligado ao cuidado com o desenvolvimento do homem num
sentido amplo, da sua alma e essência. Era o cuidado que os mais velhos tinham com
o espírito da criança, para torna-los homens virtuosos moralmente, aperfeiçoando sua
natureza instintiva. Mais tarde, a partir do século XVIII, a cultura se ligou aos
resultados desses cuidados humanos, passando a compreender a formação do
homem em seus princípios educativos, nos diversos conhecimentos humanos da arte,
religião, filosofia e ciência, ligado mais especificamente ao entendimento do homem
eruditamente culto.

A esse sentido histórico-antropológico amplo, podemos


acrescentar outro, restrito, ligado ao antigo sentido de cultivo do
espírito: a Cultura como criação de obras da sensibilidade e da
imaginação – as obras de arte – e como criação das obras de
inteligência e da reflexão – as obras de pensamento. É esse
segundo sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e
escola (educação formal), de um lado, e, de outro lado, a
identificar a Cultura e belas-artes (música, pintura, escultura,
dança, literatura, teatro e cinema, etc.). Se, porém, reunirmos o
sentido amplo e o sentido restrito, compreenderemos que a
Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por
meio de práticas que criam a existência social, econômica,
política, religiosa, intelectual e artística (CHAUI, 2000, p.375-
376)

A cultura possibilitou ao homem sua condição civilizada, trazendo com ela


vários mecanismos que irão solidificar sua sociabilidade e fundamentar novos
esquemas de convivência social, como a educação, o trabalho, a família. Porém, para
alcançar essas novas relações sociais, foi preciso estabelecer padrões de condutas e
modelos de comunicação para o entendimento dessa nova ordem. Um dos
mecanismos fundamentais advindos desse sistema é a linguagem (ARANHA;
MARTINS, 1993).

2.3.2.2 – A linguagem
69

Com o advento da linguagem a humanidade expandiu significativamente sua


comunicação, e, consequente, sociabilidade. Para Lane (2006), foi a partir da
aquisição da linguagem que o homem pode se relacionar socialmente. Por suas
necessidades de comunicação com o grupo, o homem estabeleceu uma nova forma
para se relacionar entre os seus, para poder assim “transmitir ao outro o resultado, os
detalhes de uma atividade ou da relação entre uma ação e uma consequência”.
Aranha e Martins (1993) destacam a linguagem como um sistema simbólico. A
partir de um símbolo o homem designou signos arbitrários para o representar, dando
nomes e, com isso, simultaneamente, atribuindo valores e conceitos a esses
símbolos. Dessa forma, foi possível ao homem transmitir seu conhecimento e se fazer
entender pela expressão destes símbolos que representavam suas ideias perante os
objetos, coisas, situações e emoções.
Os autores esclarecem que ao nomear um símbolo este passa a ter um
significado que representa uma ideia ou conceito, designado por um signo que por si
só não traduz o seu significado, por ter sido criado de forma arbitrária, sem uma
semelhança que o identifique como tal. Por isso, um nome dado as coisas, objetos e
emoções, não são simplesmente palavras, pois se assim o fossem não
conseguiríamos apreender o seu significado, tornando-se vazias e sem sentido.
Em uma única palavra está colada a ela um significado que lhe foi atribuído por
um grupo em algum determinado momento, dando-lhe um conceito por vezes
complicado, porém compreensível o suficiente para que o grupo entenda o seu valor
diante do símbolo por ela representado (ARANHA; MARTINS, 1993).
Contudo, os autores enfatizam que para isso ser possível é necessário que a
representação deste símbolo seja aceita pelo grupo que a nomeou, compreendendo
o seu significado pelo conceito a ele atribuído, e não apenas por seu signo. Essa
aceitação do grupo é denominada por convenção social, ou seja, quando um grupo
aceita os conceitos atribuídos aos símbolos regidos pelo grupo, tomando para si o seu
valor e significado.

O homem é o único animal capaz de criar símbolos, isto é,


signos arbitrários em relação ao objeto que representam e, por
isso mesmo, convencionais, ou seja, dependentes de aceitação
social. Tomemos, por exemplo, a palavra casa. Não há nada no
som nem na forma escrita que nos remeta ao objeto por ela
representado (cada casa que, concretamente, existe em nossas
ruas). Designar esse objeto pela palavra casa, então, é um ato
70

arbitrário. A partir do momento em que não há relação alguma


entre o signo casa e o objeto por ele representado, necessitamos
de uma convenção aceita pela sociedade, de que aquele signo
representa aquele objeto. É só a partir dessa aceitação que
poderemos nos comunicar, sabendo que, em todas as vezes que
usarmos a palavra casa, nosso interlocutor entenderá o que
queremos dizer. A linguagem, portanto, é um sistema de
representações aceitas por um grupo social, que possibilita a
comunicação entre os integrantes desse mesmo grupo
(ARANHA; MARTINS, 1993, p.42)

É assim que um mesmo conceito dado a um objeto pode ser representado de


forma universal, ou, ainda, particular, circunscrito apenas a um determinado grupo.
Essa representação por signos fez com que o homem estabelecesse relações
simbólicas que conservassem suas ideias, podendo transmiti-la por gerações, na
formação de um mundo cultural (LANE, 2006).
Dentro desse contexto simbólico a autora afirma que a linguagem ganha
importância não apenas por sua expressão oral, contida em um esquema de sons e
fonemas, mas também por seu desdobramento em esquemas escriturais, visuais,
linguísticos e conceituais, tornando-se um instrumento imprescindível para o
desenvolvimento humano.
Lane (1989) ressalta que por seu caráter funcional de ligação entre os símbolos
e conceitos, a linguagem auxilia o homem na construção do pensamento simbólico,
podendo abstrair o significado de um dado objetivo para torna-lo subjetivo, com
valores e conceitos restritos, modificado a partir da determinação de suas
necessidades. A linguagem sai do coletivo e torna-se pessoal, “ou seja, a palavra se
relaciona com a realidade, com a própria vida e com os motivos de cada indivíduo”

O nome tem a capacidade de tornar presente para a nossa


consciência o objeto que está longe de nós. O nome, ou a
palavra, retém na nossa memória, enquanto idéia, aquilo que já
não está ao alcance dos nossos sentidos: o cheiro do mar, o
perfume do jasmim numa noite de verão, o toque da mão da
pessoa amada; o som da voz do pai; o rosto de um amigo
querido. O simples pronunciar de uma palavra representa, isto
é, torna presente à nossa consciência o objeto a que ela se
refere. Não precisamos mais da existência física das coisas:
criamos, através da linguagem, um mundo estável de idéias que
nos permite lembrar o que já foi e projetar o que será. Assim é
instaurada a temporalidade no existir humano. Pela linguagem,
o homem deixa de reagir somente ao presente, ao imediato;
passa a poder pensar o passado e o futuro e, com isso, a
construir o seu projeto de vida (ARANHA; MARTINS, 1993,
p.42).
71

Com isso o homem ganha mais um atributo, o do ser pensante. A partir do


desenvolvimento da linguagem o homem se apropria da abstração das ideias e
começa a pensar não apenas por uma lógica concreta, daquilo que vê, mas também
do que não vê, porém sente, cria, projeta e idealiza (LANE, 2006).
Devido um único símbolo possuir diversos significados contidos nele, Aranha e
Martins (1993) também destacam uma nova ordem nas relações após a criação da
linguagem. Por esta nova ordem as relações vão se complexando, assim como as
sociedades, criando diferentes formas do homem conviver com o seu grupo pelos
significados atribuídos às palavras, dando-lhes sentidos, normas e regras.

A diferença entre a linguagem humana e a do animal está no fato


de que este não conhece o símbolo, mas somente o índice. O
índice está relacionado de forma fixa e única com a coisa a que
se refere. Por exemplo, as frases com que adestramos o
cachorro devem ser sempre as mesmas, pois são índices, isto
é, indicam alguma coisa muito específica. Por outro lado, o
símbolo é universal, convencional, versátil e flexível. Considere-
mo-nos a palavra cruz. Além de ser uma convenção é "de certa
forma arbitrária (é assim em português; o inglês diz cross, e o
francês croix). Mas a palavra cruz não tem um sentido unívoco,
na medida em que faz lembrar um instrumento usado para
executar os condenados à morte; pode representar o
cristianismo; referir-se à morte (ver seção de necrologia dos
jornais); se usada de cabeça para baixo, adquire outro
significado para certos roqueiros; pode significar apenas uma
encruzilhada de caminhos; ou um enfeite, e assim por diante,
com múltiplas, infindáveis e inimagináveis significações
(ARANHA; MARTINS, 1993, p.23).

Para Lane (1989), essa nova forma de sentir o mundo coloca o homem em um
outro universo, num mundo determinado socialmente por convenções, regras e leis,
um local onde o pensar e falar podem ser realizados separadamente do agir, conforme
os interesses do indivíduo. O homem materializa o seu pensamento na ação, e o
subjetivo se torna objetivo, subordinado à sua vontade e interesses.
Segundo a autora, ao atribuir significados diferentes a um mesmo objeto, o
homem descobre que pelas relações simbólicas pode discriminar o falar da ação e
direciona-los conforme sua vontade, pois “para o indivíduo as palavras terão um
sentido pessoal decorrente da relação entre pensamento e ação, mediadas pelos
outros significativos”.
Assim as palavras ganham força e peso, e seu valor torna-se variável, atribuído
conforme o sentido que se queira dar a ele. Com isso, nem sempre o que se pensa
72

ou diz condiz com a realidade concreta, mas com o que se deseja que ela seja. Por
poder ser utilizada de forma arbitrária, distinta do objeto a que se refere, a linguagem
pode se tornar um instrumento de dominação quando é usada de forma intencional,
manipulada ou deturpada em seu significado (LANE, 2006).
Por outro lado, o poder da linguagem explicita uma análise filosófica, pois a
força da linguagem é vista por Chauí (2000) como um instrumento de comunicação
para disseminar tanto o conhecimento como o desconhecimento, dependendo dos
significados atribuídos a ela. Com isso as palavras ganham poder conforme as
diversas situações em que são pronunciadas, ganhando valor por estes contextos
históricos, podendo estes conter significados mágicos, míticos, divinos, solenes e de
direitos indiscutíveis, segundo a situação ao qual estão designadas.

A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da


comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida
social e política, do pensamento e das artes. No entanto, no
diálogo Fedro, Platão dizia que a linguagem é um pharmakon.
Esta palavra grega, que em português se traduz por poção,
possui três sentidos principais: remédio, veneno e cosmético. Ou
seja, Platão considerava que a linguagem pode ser um
medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo
diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa
ignorância e aprender com os outros. Pode, porém, ser um
veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar,
fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais
palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser
cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a
verdade sob as palavras. A linguagem pode ser conhecimento-
comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução
(CHAUI, 2000, p.173).

É por suas significações variadas que para muitas pessoas algumas palavras
se tornam tabus (como sexo ou diabo) ou leis divinas (como o “sim” em casamentos
religiosos), enquanto para outros elas nada significam, pois não conhecem ou
compreendem o valor atribuído a elas. Porém, dependendo da pessoa que a
pronuncia a palavra ganha sentido e força, conforme outorga concedida ao outro
(CHAUÍ, 2000).
Numa perspectiva social Lane (2006) salienta que nas sociedades mais
complexas, a linguagem serve como meio de alienação por aqueles que detém o
conhecimento e poder sob as demais pessoas, pois o uso do poder das palavras por
meio da sedução, criam condições para o homem usurpar o sentido particular dado a
elas. Retirando o seu valor singular, as palavras tornam-se soltas e moldáveis a outro
73

significado, podendo ganhar novo sentido condicionável aos interesses de seu


usurpador.
Segundo Aranha e Martins (1993), a palavra alienação vem do latim e a grosso
modo significa aquilo que pertence a outro, assim “sob determinado aspecto, alienar
é tornar alheio, transferir para outrem o que é seu”.
Marx (apud Aranha e Martins, 1993), ao estudar a história da humanidade por
seus movimentos sociais e políticos, retoma o conceito básico de alienação e institui
em sua teoria a divisão social de classes pela ideologia dominante derivado do
fenômeno da alienação social, sendo este seu principal conceito para a compreensão
da dialética social. Ao perceber a ação de uma classe dominante sob outra dominada,
Marx conceitua a ação nociva da ideologia na sociedade, e neste sentido a alienação
pode se dar em três âmbitos: social, econômico e intelectual.
No âmbito social a alienação se dá por meio do desconhecimento que o homem
tem de seu valor diante da sociedade, que possuem forças para transforma-la e
transformar-se, outorgando ao Estado este poder como seres determinados
historicamente pela sociedade. Com a alienação econômica o indivíduo torna-se
dependente do capital, submetendo-se passivamente a seu consumo sem criticidade,
fortalecendo o comércio e tornando-se parte do capital, mercadoria alienável. Já na
alienação intelectual ocorre a separação dos que pensam daqueles que executam
pela divisão social do trabalho intelectual do manual. Assim, o homem se torna um ser
separado, aquele que pensa não é o mesmo que executa e vice-versa, podendo com
isso ser manipulado em suas atividades por não se ver por inteiro nela (CHAUÍ, 2000).
Nas sociedades capitalistas a alienação perpassa pela maior parte das
atividades humanas, seja no trabalho, na educação, na cultura ou lazer, pois, como
vimos anteriormente, estas sociedades se fazem pela produção-consumo, sendo
indispensável que o homem se torne alheio aos seus interesses para servir de
instrumento aos fins de produção do capital (ARANHA; MARTINS, 1993).
Estas formas de alienar o homem social o mutila de sua condição humana, pois
retira seu poder de escolha e autoridade sobre si. Como visto no tópico sobre o
trabalho capitalista, ao não reconhecer sua produção nas coisas que realiza o
indivíduo desconhece seu valor, e, consequente, poder de transformação que possui
sobre a sociedade e a si mesmo. Alienado socialmente, ele perde sua capacidade de
74

escolha por seus interesses, com isso torna-se apenas meio para conquista de
outrem, nunca de seus próprios ideais.

O torvelinho produção-consumo em que está mergulhado o


homem contemporâneo impede-o de ver com clareza a própria
exploração e a perda de liberdade, de tal forma se acha reduzido
na alienação ao que Marcuse chama de unidimensionalidade
(ou seja, a uma só dimensão). Ao deixar de ser o centro de si
mesmo, o homem perde a dimensão de contestação e crítica,
sendo destruída a possibilidade de oposição no campo da
política, da arte, da moral (ARANHA; MARTINS, 1993, p.34).

Ao lado da concepção restrita de ideologia dominante marxista, Aranha e


Martins (1993) conceitua a ideologia de maneira ampla, não apenas por sua
conotação negativa à sociedade, mas também como um “conjunto de ideais,
concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão”, que pode ser
caracterizado por um sistema de organização objetiva de ideais que dão sentido as
ações das pessoas.
É por este sentido que muitos se referem a uma teoria ou prática por sua
ideologia, ou seja, pelo conjunto de conhecimentos que norteiam seus métodos,
regras e condutas. Desta forma, num sentido amplo, é possível se referir ao caráter
ideológico de uma escola que embasa sua orientação pedagógica; a ideologia de uma
religião que sistematiza as regras de condutas aos seus adeptos; ou, ainda, a
ideologia política que estabelece um conjunto de concepções partidárias que irão
direcionar suas ações políticas (ARANHA; MARTINS, 1993).
No entanto, os autores ressaltam que os conceitos ideológicos são
considerados como algo natural que provém das forças da natureza, sendo, portanto,
comum para todos os homens, o que produz uma concepção universal dos atos
humanos, opondo-se a ideia de uma sociedade construída historicamente pela ação
do homem, e sim determinada pela natureza. Desta forma, a ideologia estende seus
ideais por toda a sociedade, sem considerar a história de cada grupo e o respeito por
sua alteridade.

É interessante observar que a ideologia não é concebida como


uma mentira que os indivíduos da classe dominante inventam
para subjugar a classe dominada. Também os que se beneficiam
dos privilégios sofrem a influência da ideologia, o que lhes
permite exercer como natural sua dominação, aceitando como
universais os valores específicos de sua classe [...] É assim que
75

a empregada “boazinha” não discute salário e não implica se


trabalha além do horário. Também os missionários que
acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas
certamente não percebiam o caráter ideológico de sua ação ao
querer implantar uma religião e moral estranha às do povo
dominado. A universalidade das ideias e dos valores é uma
abstração, ou seja, as representações ideológicas não se
referem ao concreto, mas ao parecer social. Por exemplo,
quando nos referimos à “sociedade una e harmônica”, lidamos
como uma abstração, porque ao analisarmos concretamente os
homens nas suas relações sociais, descobrimos as divisões de
classes e os interesses divergentes (ARANHA; MARTINS, 1993,
49).

Na medida em que a ideologia universaliza e naturaliza seus ideais, provoca a


aceitação passiva de seus conceitos e, consequente, dominação. Mas um sistema
ideológico é produzido pelas inúmeras possibilidades de abstrações que a linguagem
e a cultura permitem ao homem. São através dessas mediações nas relações sociais
que o homem constrói sua visão do mundo, permeada de significações já produzidas
historicamente e repassada ao indivíduo na formação de sua sociabilidade (LANE,
2006).
Porém, é nas particularidades de pequenos grupos que o ser humano constitui
sua individualidade para alcançar a dimensão de ser social. Instituições criadas na
historicidade da ação humana, para sustentar e fortalecer seus interesses nas
relações sociais, mas que também fomenta e constrói sua própria personalidade.

2.3.3 – Os grupos sociais


2.3.3.1 – Socialização primária

Um sujeito ao nascer em sociedade conhece sua primeira instituição social: a família.


Apesar da família ser vista como um grupo natural e universal para todos, sua
organização foi instituída historicamente dentro de normas e regras sociais para a
manutenção, reprodução e controle da sociedade.
Por ser a primeira relação social que o indivíduo estabelece ao nascer, Lane
(2006) aponta a família como sendo o primeiro grupo que introduz princípios sociais
ao sujeito, auxiliando na sua constituição segundo a prevalência social de seu meio,
tendo, portanto, a função reguladora de socialização primária na formação do homem
social. Porém, suas características encobrem funções de cunho ideológico, tornando-
76

se também um conjunto de representações fundamentais para a perpetuação e


controle da sociedade.
No entanto, esse grupo social que conhecemos na atualidade segue o modelo
das características da família burguesa. Mas a instituição familiar nem sempre se
manifestou dessa forma, apesar de muitos não levarem em conta essa premissa,
tomando a família da sociedade capitalista como natural e imutável, ou seja, para
muitos “a família nuclear burguesa torna-se sinônimo de família” (REIS, 1989).
O autor esclarece que o grupo familiar foi se transformando ao longo do tempo,
objetivado por interesses sociais que se manifestaram em sua função e
características, tendo sempre como princípio a função básica de socialização de seus
membros, dentro de um conjunto de valores e papeis que os defina socialmente.
Dentro da história desse grupo social, a família passou por momentos históricos
diversos que nem sempre incluíram restrições às normas, obediência e controle da
sexualidade como temos hoje nos grupos familiares. Vale lembrar que nas sociedades
primitivas a organização familiar girava em torno de princípios de sobrevivência e
reprodução, sem levar em conta aspectos que hoje se configuram essenciais à
estrutura familiar, como, por exemplo, a privacidade e a proibição do incesto (REIS,
1989).
Engels (apud Reis, 1989) acredita que foi no núcleo das famílias primitivas que
iniciou a primeira divisão social do trabalho, mediada pela divisão sexual entre o
homem, para o trabalho intelectual, e a mulher, para o trabalho manual.
Posteriormente essa seria a principal divisão que fundou o modo de produção
capitalista pela dicotomia entre o trabalho manual e intelectual.
Em sua historicidade, estudos apontam a instituição familiar com quatro
principais modelos: a família aristocrática, a família camponesa, a família proletária e
a família burguesa. Na aristocracia as famílias viviam subordinadas à conservação de
seus patrimônios e aos favores da monarquia. Não havia privacidade e as condições
sanitárias eram precárias, o que concorria para um alto índice de natalidade e
mortalidade infantil. As relações eram hierárquicas estabelecidas pela tradição,
cabendo ao homem ás relações de guerra e força, e a mulher a organização da vida
social no castelo (REIS, 1989)
Segundo Reis (1989), o sexo era praticado livremente e sem restrições, mesmo
porque a sexualidade era tida como algo natural tanto para os adultos como para as
77

crianças, pois a “família aristocrata não atribuía valor algum a privacidade,


domesticidade, cuidados maternos ou relações íntimas entre pais e filhos”. Assim, os
filhos eram educados por criados e familiares, não sendo sua educação exclusiva aos
pais. A formação das crianças privilegiava a obediência ás normas da sociedade,
ligado a manter a hierarquia social e os bons costumes externos. A punição para a
desobediência das regras era o castigo físico, o que conduzia a um sentimento de
vergonha, e não de culpa.
A dinâmica da família camponesa era parecida com a da família aristocrata,
pois ambas se situam na mesma época entre os séculos XVI e XVII. Os hábitos
sanitários eram comuns, assim as duas mantinham o mesmo alto índice de
mortalidade e natalidade infantil. Também a educação dos filhos não era exclusividade
da familiar nuclear (REIS, 1989).
O autor esclarece que na família camponesa o trabalho era o centro das
atenções, por isso a educação das crianças era compartilhada por toda a aldeia, pois
“a família não era o espaço privado ou privilegiado e os laços emocionais se estendiam
para fora dela”. Desde cedo os filhos aprendiam a conviver com os adultos, interagindo
com a aldeia e aprendendo suas normas sociais, que possuía rígidas punições para
os que as transgredisse. Dessa forma, como na família aristocrata, o que mais se
temia era a vergonha pela exposição do indivíduo diante da comunidade por seu ato
incorreto.

Apesar de a pequena família nuclear ser a unidade mais comum,


este não era o grupo social mais significativo para os seus
membros. Era à aldeia que todos estavam integrados por sólidos
laços de dependência. A aldeia regulava a vida cotidiana através
dos costumes e das tradições [...] Em função dessa dependência
da aldeia e dos vínculos que assim surgiam, os pais das crianças
camponesas não eram os únicos objetos de identificação. Estes
eram dispersos por toda a aldeia. Assim como entre a
aristocracia, era comum a criança camponesa passar por um
período de aprendizagem em casa de outra família (REIS, 1989,
p.107-108).

O autor informa que este modelo de grupo familiar centrado para fora de si,
prevaleceu até o período inicial da industrialização. Depois a família camponesa foi
cedendo seus costumes para um novo modelo de família, adequando-se com as
novas normas socioeconômicas do regime capitalista.
78

No início do século XIX, segundo Reis (1989), surge a família proletária


“caraterizada por formas comunitárias de dependência e apoio mútuo”, hábitos
conservados da família camponesa já que a maioria dos proletariados provinham do
campo. Seus costumes de higiene e educação dos filhos também não sofreram
mudanças. As crianças eram criadas livres, pela comunidade ou parentes, sem rígido
controle ao comportamento sexual ou moral.
Já por volta da metade do século XIX muda-se o cenário da classe operária
com melhoras no setor industrial com vistas à saúde do trabalhador, ocorrência devida
aos movimentos filantropos. Essa melhora na condição socioeconômica se reflete na
instituição familiar, modificando também suas características e se aproximando do
modelo de família burguesa por nós hoje conhecida. É a partir desse contexto que os
papeis sociais entre o homem e a mulher tornam-se mais distintos (REIS, 1989).
Para o autor é no cenário da sociedade burguesa do século XX, e com a
mudança do proletariado para as regiões do subúrbio, que a dicotomia dos papeis
entre o homem e a mulher se consagraram. Devido a intensa horas de trabalho
imputadas pelo regime capitalista e a distância do percurso da casa para o local de
trabalho (antes o trabalho era próximo ao lar, nas aldeias ou comunidades), o homem
passou a permanecer a maior parte do tempo fora de casa, longe da família, e a
mulher cada vez mais presa ao ambiente familiar, longe das outras atividades da vida
social.
O homem começa a trabalhar nas industrias, passando o dia inteiro na fábrica.
Ao sair do trabalho se dirige aos bares para aliviar sua carga solitária e exaustiva de
serviço antes de retornar para a casa, ao lado de outro grupo social, os amigos,
reforçando seu papel na vida pública. Já a mulher, devido ao movimento higienista da
ciência da época, ao qual primava-se por uma noção básica em prevenção de saúde,
se viu excluída dos serviços da fábrica para manter a higiene no lar. Sua preocupação
passa a girar em torno dos cuidados da família e administração da casa, e para isso
é preciso se manter no lar e priorizar a educação dos filhos, privando-os de doenças
e cuidando para que tenham um futuro de sucesso (REIS, 1989).
Assim a mulher se torna cada vez mais cativa do lar. Com a ausência do marido
integra-se com outras mulheres apenas para a discussão de seus afazeres maternos
e domésticos, na manutenção de seu papel na esfera privada, junto ao seu novo
círculo social. Está fundada a dicotomia entre os papeis masculinos e femininos,
79

criando-se novos padrões de relacionamentos que irão influenciar a dinâmica do


grupo familiar, desenvolvendo novas características pautadas dentro de interesses
sociais da ideologia dominante (REIS, 1989).
Vaitsman (1994) confirma que pelo desenvolvimento industrial e posterior
advento do capitalismo, o modelo de família burguesa surgiu como forma de se manter
os bens da propriedade privada dentro do mesmo núcleo, juntamente com a hierarquia
centrada de poder. Com isso, mantinha-se socialmente a ideologia dominante pela
divisão de classes, na produção de trabalho com aqueles que possuíam propriedades,
e a reprodução dos papéis hierárquicos na família, pela divisão sexual do trabalho.
A autora esclarece que pelo desenvolvimento econômico da sociedade, a forma
anterior de trabalho realizado dentro do âmbito doméstico para troca e consumo
próprio, no capitalismo é sugestionada como improdutiva, considerada útil apenas a
forma de trabalho remunerado, produzida fora de casa nos comércios e indústrias.

As atividades produtivas – o trabalho remunerado – tornaram-se


um domínio masculino. E as improdutivas – o trabalho doméstico
– um domínio feminino. O desenvolvimento da sociedade
capitalista, mais tarde sociedade industrial moderna, levou a
uma redefinição não só das relações entre as classes, mas
também das relações de gênero. A família privatizou-se e
transformou-se em família conjugal moderna, perdendo suas
funções produtivas – segundo a concepção econômica que
passou a representar como produtiva apenas as relações
exercidas na esfera do trabalho remunerado. Construía-se um
mundo feminino, privado, da casa, que passou a se colocar
como oposto a um mundo público, da rua, que se tornou no
imaginário social e na ideologia oficial, um mundo masculino
(VAITSMAN, 1994, p.29-30).

Por essa nova relação familiar Reis (1989), aponta que o homem passou a
possuir ascendência sob a mulher, já que o seu trabalho se tornou mais valorizado
por seu poder econômico, ficando a esposa e os demais membros do grupo familiar
dependentes emocional e financeiramente do marido. A mulher se desconecta dos
outros grupos sociais que lhe davam suporte nos modelos anteriores de família,
vendo-se na família burguesa “a mercê do marido”. Seu sucesso agora depende do
sucesso profissional do marido, e dessa forma passa a servi-lo e apoia-lo para o tornar
cada vez mais “livre e autônomo, segundo o ideal burguês”.
Com isso institui-se uma nova forma nas relações familiares regida pelo ideal
individualista das sociedades capitalistas. Pela ideologia dominante, através da
80

aliança do casamento com outros núcleos, diferente das formas pretéritas de união
conjugal pelos antigos modelos de família, as instituições familiares agregam mais
propriedades mantendo a hegemonia de poder na posse de seus bens. Também pela
autoridade do poder masculino sob a mulher, no modelo de família burguesa o pai é
visto como o soberano da família, e o primogênito seu sucessor. Em casos de família
extensa, os avós mantem o poder na ausência do pai, e a criança desde cedo aprende
em suas relações sociais a obedecer e respeitar dentro dessa autoridade vertical
(LANE, 2006).
A autora ressalta que dessa forma a sociedade passa a universalizar
comportamentos familiares construídos socialmente, ditos agora como naturais.
Institui-se as relações de monogamia, a mulher torna-se “rainha do lar” e o homem o
“chefe de família”, inculcando valores como fundamentais para se obter esta estrutura
social da família. É por esta lógica da ideologia dominante que a virgindade passa a
ser um bem sagrado para o casamento, pois através dela o homem garante a
legitimidade de seus filhos, perpetuando suas posses e propriedades privadas dentro
do núcleo familiar.

No casamento a atividade sexual feminina deveria restringir-se


as necessidades de procriação. As mulheres burguesas
passaram a ser consideradas seres angelicais, acima das
necessidades animais do sexo. Dessa forma o casamento
burguês passou a caracterizar-se por uma dissociação entre
sexualidade e afetividade. A família era o recanto do afeto mas
não do prazer sexual. Esse passou a ser buscado fora do lar
pelos homens, em geral através de conquistas de mulheres de
classes inferiores (REIS, 1989, p.111)

Chauí (2000) reforça que nas sociedades capitalistas a instituição familiar, além
de auxiliar na transmissão do capital pelos herdeiros, também produz alguns conceitos
considerados como crime ou antinatural pela concepção da ideologia dominante, os
quais são transmitidos e mantidos pelos grupos sociais.
A autora aponta como exemplo o adultério, considerado em nossa sociedade
um crime, por vezes não só pela perda da honra, porém, talvez mais ainda pela perca
da legalidade da procriação, e, consequente, capital. Também assinala que as
relações homoafetivas trazem ao imaginário social diversos preconceitos, sendo visto
por muitos como uma perversão ou doença.
81

Essa visão distorcida da união homossexual permeia conceitos ideologizados


sobre a naturalização do casamento heterossexual, provindos da concepção
dominante do casamento como forma de manter a posse do capital por um herdeiro
legítimo, o que não ocorreria em uma união homoafetiva, portanto, antinatural (CHAUÍ,
2000).
Vaitsman (1994) confirma que é por esta ideologia dominante que se
institucionalizou a família, legitimando interesses historicamente construídos como
sendo naturais, povoando o imaginário do homem social com abstrações, por vezes,
divergentes da realidade sentida por ele.

Foi esta cultura que no mundo ocidental veio legitimar, durante


mais de três séculos, a segregação das mulheres na nova
sociabilidade pública, lugar privilegiado das atividades políticas,
educacionais, artísticas, culturais, empresariais, científicas e
administrativas. A família centrada nos filhos, na concepção de
amor moderno e materno, na mulher rainha do lar e no pai
provedor financeiro, dominaria então, senão as práticas, pelo
menos a concepção burguesa de família a partir do século XVIII
na Europa (Aries, 1981; Shorter 1975; Ussel, 1980; Badinter,
1980), nos Estados Unidos (Degles, 1981; Lasch, 1979; Coontz,
1988) e no Brasil a partir do final do século XIX (Freyre, 1961;
Costa, 1983; Mello e Souza; 1951; Willens, 1953) (VAITSMAN,
1994, p.31)

Lane (2006) endossa que a disseminação da ideologia dominante na família se


reproduz através dos pais pela educação da criança, reforçando os papeis sociais de
homens e mulheres, mantendo a ideologia da docilidade feminina, feita para ser mãe
e as tarefas domésticas, e força masculina, criado para sustentar e dirigir a família.
Bock, Furtado e Teixeira (2002), apontam a família como principal veículo de
produção da subjetividade do indivíduo. O adulto é contemplado pela criança como
um ser único e poderoso, visto que sua sobrevivência depende deles. É o adulto que
supre todas as necessidades biológicas e emocionais do bebê, sendo por meio dessa
relação de poder por sua dependência física, psíquica e emocional que a criança se
desenvolve, tendo a família como o primeiro modelo de identificação a seguir. É no
bojo dessa instituição social que o indivíduo se desenvolve psicossocialmente, através
da transmissão de hábitos, valores, tabus e normas cultivadas pela família.
Atualmente o grupo familiar é reconhecido por sua importância na constituição
física, psíquica e social da criança, sendo considerado fundamental para o seu pleno
desenvolvimento. No Brasil instituiu-se leis pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
82

(ECA), que garantam a sua prática, a qual na falta do grupo familiar a criança deverá
ser acolhida por uma “família substituta” ou em núcleos institucionais que cumpram a
sua função (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
É desta forma que a instituição familiar atua como um processo de socialização
primária para o indivíduo, sendo o primeiro contato que a criança tem com um grupo
social, portanto, passível de se moldar e controlar segundo princípios ideológicos
sociais.

Com o isolamento da família nuclear e a consequente


intensificação das relações afetivas entre os seus componentes,
a criança ficou na total dependência de seus pais para a
satisfação de suas necessidades afetivas. Ela aprendia a
importância da vida emocional e ficava à mercê dos pais para
receber sua cota de afeto. Era função dos pais, principalmente
da mãe, suprir essa necessidade dos filhos. Mas esse afeto não
era dado incondicionalmente. Ele passou a ser associado às
condutas que os pais esperavam dos filhos [...] Estava formada
pois a cadeia que une amor e autoridade: para ter o amor dos
pais, o que era de importância vital para a criança burguesa,
seria necessário que ela também o amasse; ama-los seria
corresponder às expectativas com as quais os pais a cobriam.
Portanto, amar é submeter-se e não amar seria uma alternativa
insuportável [...] A situação conflitiva pela criança culminava com
o aparecimento em cena da ambivalência e do sentimento de
culpa. (REIS, 1989, p.112-113).

Em sua relação de dependência com a família, a criança apreende valores que


serão perpetuados por sua vida, pois estão carregados de significados afetivo-
emocional provenientes desse primeiro contato humano. Serão por esses significados
que ela se identificará com os demais, construindo seu universo particular a partir dos
valores emocionais colados aos conceitos de sua primeira relação social (LANE,
2006).
Por esse jogo nas relações familiares, Lane (2006) caracteriza a família como
um grupo de controle social, pois é por ele que a criança aprende a cultura do seu
grupo e os primeiros conceitos ideologizados que serão internalizados e reproduzidos
em seu comportamento na sociedade.
No entanto, a autora salienta que no decorrer de suas experiências o indivíduo
passa a ter contato com outros grupos sociais, que irão relativizar seus desejos e
proibições na disputa de poder com a família. Estes grupos farão parte da socialização
secundária do indivíduo, onde serão confrontados os valores e conceitos adquiridos
com a família em sua socialização primária.
83

Lane (2006) analisa essa relação balizadora da família entre os outros grupos
sociais, como sendo uma generalização dos conceitos ideológicos que passivamente
internalizamos como naturais. São os hábitos e costumes aprendidos no grupo familiar
e, por estarem ligados aos princípios de sobrevivência, se tornam fortemente
vinculados ao indivíduo, reproduzido inconscientemente como um processo natural
por todos os âmbitos de sua vida, aos quais se desdobram em respostas categóricas
afirmativas do tipo: é assim que as coisas sempre foram e continuarão sendo.
É por este motivo que Lane (2006) afirma ser a família uma instituição
extremamente conservadora, pois tem por base princípios que foram definidos
secularmente como naturais, e não discriminados como historicamente construídos
para a produção de papeis nas relações sociais. Essa falta de discernimento impede
o homem de perceber qual ação seria melhor para as suas necessidades, ou qual
serviria apenas para a reprodução de seu papel social, levando-o por vezes a
alienação pelo jugo da ideologia dominante.

É assim que formam aqueles valores que sentimos tão


arraigados em nós, que até parece termos nascidos com eles.
Esta visão única do mundo e de um sistema de valores só irá ser
confrontada no processo de socialização secundária, isto é,
através da escolarização e profissionalização, principalmente na
adolescência, época em que o jovem questiona os “outros
significativos”, não por ser uma fase natural, como muitos
pretendem, mas porque através de outros laços afetivos e
através do seu pensamento e experiências sociais e/ou
intelectuais o jovem se depara com outras alternativas, com
outras visões de mundo, que o levam a questionar aquela que
ele construiu como sendo a única possível (LANE, 2006, p.44).

2.3.3.2 – Socialização secundária

A escola, enquanto instituição social exerce papel fundamental na formação da


personalidade do indivíduo no processo de socialização secundária. Porém, ela
também é uma construção sóciohistórica do homem, pois o seu surgimento deu-se
em conjunto com o desenvolvimento da história humana, conforme as necessidades
da sociedade (LANE, 2006).
Bock, Furtado e Teixeira (2002), relembram que na Antiguidade a prática da
educação era obtida através da participação das tarefas diárias, ou seja, era “apenas
viver a vida cotidiana do grupo social ao qual se pertence”. Não havia uma instituição
84

específica, educar era sinônimo de seguir exemplos, dos quais as pessoas


internalizavam os conceitos morais e comportamentos desejados da época, a partir
das experiências do meio social ao qual se pertencia.
Foi na Idade Média que a educação passou a ser institucionalizada. Criou-se
um local para a transmissão do saber, onde apenas a aristocracia e o clero detinham
o conhecimento, e, portanto, o poder. Era um espaço privilegiado, que apenas os de
classes nobres ou religiosos poderiam adentrar para o seu aprimoramento intelectual
e moral. Mais tarde a aristocracia cedeu lugar para a burguesia, porém a escola ainda
se manteve como um núcleo institucional para poucos, servindo somente às famílias
nobres na arte de educar o homem para as relações sociais
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
É apenas com o desenvolvimento industrial que a escola passou a contemplar
outras classes sociais, o proletariado. Foi pelo crescimento do poder econômico que
a instituição escolar se tornou um meio de universalizar as práticas educacionais, já
não mais possíveis no âmbito familiar, não somente para a vida pública e moral, mas,
principalmente, para a vida profissional.

O desenvolvimento da industrialização foi, sem dúvida, o fator


decisivo das grandes mudanças ocorridas nos séculos 19 e 20.
A industrialização deslocou o local do trabalho da casa para a
fábrica, transformando, com isso, os espaços das casas e das
cidades [...] O trabalho ingressou na esfera pública, deixando de
ocupar os espaços da casa. Outra conseqüência desta mudança
ocorreu na família, que não podia mais, sozinha, preparar seus
filhos para o trabalho e para a vida social. Era preciso entregar
essa função a uma instituição que soubesse educar, não mais
para a vida privada, do círculo familiar e do trabalho caseiro, mas
para o trabalho que se encontrava no âmbito da vida pública,
cujas regras, leis e rotinas iam além dos conhecimentos
adquiridos pela família. A escola tornava-se, assim, esta
instituição especializada (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002,
p.262).

Segundo Mosé (2013), a escola no Brasil iniciou no século XX. Instituição de


rede pública, porém de difícil acesso, pois era elitizada e com ótimos professores que
ofereciam um ensino de excelência voltado para uma educação clássica,
“predominando como a escola das certezas”. Havia estudos e cursos variados de
nobre gabarito, além de idiomas, arte e literatura, que levava o aluno ao conhecimento
das diversas atividades humanas. Porém esse quadro se modifica, e “após a segunda
Guerra Mundial nasceu a escola das promessas, a escola para todos”.
85

Ao mudar sua ideologia, passando para uma escola sem distinção de classes,
ocorre uma mudança e o ensino começa a ser direcionado para uma educação da
classe trabalhadora, voltada para o conhecimento mais técnico da mão de obra
industrial. Toda a dedicação e cuidado que havia no início dos educadores para obter
uma educação esmerada, privilegiando um ensino mais erudito que desperte a
reflexão maior sobre o conhecimento humano, se transformou em repasse de
informações para que os alunos obtenham melhor posição e desempenho no trabalho
(MOSÉ, 2013).
A escola adotou critérios aparentemente neutros na avaliação de desempenho
dos alunos, estimulando os mais aptos e reforçando as desvantagens dos menos
predispostos ou preparados para o processo de aprendizagem escolar, num sistema
de seletividade que contribuiu para as desigualdades educacionais, além de relacionar
o nível de escolaridade com o sucesso no trabalho profissional (GOUVEIA, 1993).
Com isso se enaltece a individualidade na educação, estimulando a
competividade e rivalidade entre seus alunos, colaborando com o lema das
sociedades capitalistas e difundir sua ideologia dominante. Na escola o que se
propaga não é a dominação pelo poder da autoridade, esta será apenas reforçada
pois já foi articulada no seio da família, e sim a reprodução nas relações sociais de
valores que defina qual é o melhor, o mais apto, para a manutenção e crescimento de
uma sociedade de produção-consumo (LANE, 2006).
Lane (2006) salienta que a instituição escolar serve como um canal mediador
das relações sociais entre o indivíduo e a sociedade, pois por meio da transmissão de
valores, culturas e conhecimentos, ela desempenha sua função de reprodução social
através de seu sistema educacional.
Ao estudar o sistema educacional, Aranha e Martins (1993) analisam os
conceitos ideológicos implícitos nos textos didáticos que são veiculados ao ensino da
primeira série, os quais estão carregados de representações normativas à valores
alienantes, com o intuito de adequar o comportamento do indivíduo conforme os
padrões vigentes da sociedade.
Segundo os autores são concepções universalistas que encobrem um discurso
idealizado de uma sociedade utópica. Por estes parâmetros cria-se uma realidade
distante da experiência concreta vivida pela criança, na qual essa lacuna formará uma
distorção na visão de mundo em sua fase adulta.
86

A concepção de trabalho iguala em plano imaginário todos os


tipos de profissão e oculta o fato de as pessoas serem
submetidas a trabalhos árduos, alienados. Esses textos
mostram a sociedade como una e harmônica, cada pessoa
cumprindo o seu papel como se fosse um Destino a que não se
pode fugir e ao qual se deve conformar (alegremente, de
preferência...). A impressão que se tem é que a riqueza e a
pobreza fazem parte da natureza das coisas, e não são
resultado da ação dos homens. Resta aos pobres a paciência e
aos ricos a generosidade. Também a família é apresentada sem
conflitos, com papéis bem marcados: o pai tem a função de
provedor; a mãe é a "rainha do lar"; a criança é atenciosa e
obediente e, caso não seja, isso é mostrado como um desvio
que precisa ser corrigido; a empregada, geralmente negra, é feliz
por ser "quase" alguém da família. Simula um mundo sem
preconceito em que as raças se irmanam... (ARANHA;
MARTINS, 1993, p.52).

Bock, Furtado e Teixeira (2002), confirmam que desde seu sistema pedagógico
ao seu método de ensino, a instituição escolar se tornou um veículo formador de
padrões sociais, uma criação da sociedade para suas necessidades, distanciada da
realidade vivida por muitos de seus educandos.
Os autores salientam que muito desta incongruência é concebida por meio de
seu sistema ideológico que naturaliza a diversidade social, levando a ideia de que
somos todos iguais, portanto, o ensino poderá ser igual para todos. Com isso
compreende-se que o aluno que não aprendeu se deve exclusivamente à sua
responsabilidade, a sua falta de empenho e esforço em buscar aprender como o seu
colega de classe.
Lane (2006) adverte que essa tese do esforço individual estimula a
competividade e rivalidade, não só entre os alunos, como também entre os
professores que passa a selecionar os bons dos maus. A equipe escolar passa a
reconhecer e valorizar aqueles que se destacam por seu “esforço individual”, por
vezes sem levar em consideração os demais aspectos implicados no processo ensino-
aprendizagem.
Em uma crítica ao conservadorismo estéril da instituição escolar, Cortella
(2014) afirma que não existe uma norma didática para todos os alunos, e algumas
crianças fogem ás regras por diversos fatores alheios aos anseios do professor, que
seguem padrões de dominação e poder imposto pelo próprio sistema educacional-
pedagógico seletivo.
87

Todos estes elementos estão implicados na ideologia dominante do sistema


educacional, que mascara a realidade de uma desigualdade social universalizando a
educação, levando a crer que fatores socioeconômicos não possuem influências no
processo ensino-aprendizagem. Contudo, uma criança convivendo em um ambiente
de vulnerabilidade social possui menos recursos, tanto financeiro como por vezes
afetivo-emocional, para suplantar condições adversas que se apresentem em suas
relações, o que interfere sobejamente na aquisição de seu aprendizado intelectual
(LANE, 2006).
Segundo Giancaterino (2007), se torna incontestável as influências do contexto
social, ao qual o aluno está imerso no processo ensino-aprendizagem, pois “educar
foi e continua sendo uma tarefa eminentemente social”. É por este tocante que a
afetividade tem relação direta sob o desenvolvimento intelectual, já que seu
contingente permeia processos cognitivos que obstruem ou favorecem a prática da
aprendizagem.
O aprendizado se dá por meio de processos mentais e psíquicos, os quais
estão associadas as funções cognitivas da atenção, memória, pensamento e
linguagem. Dentro desse processo, as emoções, desejos e sentimentos são molas
propulsoras que estimulam as funções cognitivas. Dessa forma, os aspectos
cognitivos estão concomitantemente associados aos aspectos afetivos, que por sua
vez perpassam pelos aspectos sociais relacionais do indivíduo, convergindo numa
relação de interdependência no processo ensino-aprendizagem (GIANCATERINO,
2007)
Além do estimulo à competição, a instituição escolar também fortalece as
relações de poder construídas no grupo familiar. Dentro do sistema educacional há
uma relação de dominação inquestionável do professor para com o aluno, em que
este último o verá como autoridade do saber, não só entre os muros da escola, mas
por um conjunto de conhecimentos que extrapola o nível intelectual (LANE, 2006).
Nesse processo de identificação, a autora salienta que o aluno poderá crer num
mundo ideologizado que lhe é passado pelo professor através da transmissão de
valores religiosos, éticos e morais, traduzido por suas atitudes e palavras, que poderá
leva-lo a uma visão de mundo dogmatizada. Ou ainda, quando não há confluência das
ideias do professor com a do aluno, este tende a estigmatiza-lo criando rótulos que
88

acentua as diferenças do aluno com os demais da turma, reforçando as diferenças


das classes sociais.
Por um lado, o professor impõe autoritariamente seu poder sob o aluno sem
dar-lhe espaço para aprender criativamente, e o aluno por sua vez, hostiliza e agride
recusando-se participar desse processo de aprendizado. Com isso o professor se
frustra por não conseguir enquadrar o aluno em seus métodos e o aluno se retrai,
fugindo do conhecimento e da educação necessária para o seu desenvolvimento
(CORTELLA, 2014).
Em uma análise psicossocial Leite (1993) confirma essa relação conflituosa e
atribui sua causa às projeções dos professores e introjeções dos alunos, contribuindo
para que essa relação professor-aluno se desenvolva muitas vezes de forma intensa,
acarretando danos para a construção da identidade do aluno.
O professor atua como transmissor de padrões de cultura, responsável por
algumas qualidades sociais importantes para o aluno, apoiando sua construção de
identidade na passagem da socialização primária para a secundária. Por isso, grande
parte do comportamento do aluno é determinado pelo professor, pois a criança em
sua introjeção dá excessiva importância à sua palavra. Assim como seus pais, o
professor é a representação da autoridade máxima de poder para a criança, tendo,
por vezes, deixado em seu registro mnemônico, uma fala ou atitude sua que marca
significativamente a criança até à fase adulta (LEITE, 1993).
Já os professores, o autor alerta que avaliam seus alunos por um mesmo
padrão, segundo o método seletivo do sistema educacional, projetando suas
expectativas e frustrações. Com isso salientam seus aspectos positivos ou negativos,
o que estimula a dimensão desses comportamentos e pode provocar uma maneira
deturpada do aluno se valorizar, gerando uma percepção errônea de suas qualidades,
com poucas chances de reversibilidade futura.

É desta forma que aquelas crianças cujo ambiente familiar pouca


coisa tem em comum com aquele que é trabalhado na escola,
se sentem estranhas e marginalizadas pois, sempre que alguns
forem capazes de atender às expectativas do professor, isto é o
bastante para que se estabeleça um padrão de "bom" e "mau"
aluno, que vai sendo reforçado ao longo das séries e assim
selecionando, não os mais aptos, mas os que se aproximam
mais da visão de mundo inerente aos padrões dominantes
(LANE, 2006, p.48).
89

Entretanto, a escola não é a única formadora da socialização secundária do


indivíduo. Existem outros grupos sociais que se intercalam mutuamente nessa rede
de relações, colaborando para a totalidade da personalidade humana. Nesse
intercâmbio estão os grupos de amigos, as instituições religiosas e de trabalho, entre
outras, que permeiam a subjetividade do indivíduo, e irão fundamentar, cada qual de
forma singular e idiossincrática, esse processo de formação do homem (LANE, 1989).
É por meio dessas relações que se interpõem que o indivíduo chegará em sua
personalidade, mas não sem antes constituir sua identidade social que lhe dará bases
para moldar e modifica-la, conforme o jogo em suas relações e necessidades.

2.3.4 – Identidade social

O desenvolvimento de nossa identidade entre milhares de seres humanos, é um


processo pelo qual o sujeito passa desde o seu nascimento até o último dia de sua
vida. No entanto, reconhecer a singularidade de cada pessoa com suas preferências
e características, dentro de um universo que os agrupam por semelhanças e os define
como iguais, pode ser algo confuso, até mesmo paradoxal, ao próprio indivíduo.
No entanto, é por essas características em comum que o sujeito inicia seu
processo de individualidade. É pelo confronto na relação com os grupos que o
indivíduo se diferencia dos outros seres humanos, constituindo suas particularidades
no interior de cada grupo social ao qual faça parte e se identifique (LANE, 2006).
Como visto na socialização humana através dos grupos sociais, cada sujeito
nasce dentro de um grupo definido por sua trajetória cultural, histórica e social. São
heranças indissociáveis de nossa identidade que o nascituro já encontra em seu
berço, pois são características dadas antes do seu nascimento que o identificará
diante de seu grupo e na sociedade (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Há ainda atributos como o nome do sujeito, suas características fisiológicas e
maneiras de se relacionar com as pessoas e objetos, que irão distingui-lo dos demais
indivíduos do seu grupo, formando suas particularidades. Ao mesmo tempo será o
seu sobrenome, sua genética, gênero, etnia e outras características culturais e
sociais, que irão aproximá-lo no reconhecimento de mais um membro de determinado
agrupamento, tornando-o igual aos demais (CIAMPA, 1989).
90

O autor revela que por entre essa gama de semelhanças e contrários o sujeito
vai construindo sua identidade. Entretanto antes de nascer já é dado ao indivíduo
características próprias, herdadas de seu grupo para a sua identificação como cidadão
de uma sociedade. Inicialmente informações gerais pertinentes ao grupo social que
lhe são atribuídas sem o questionar, como, por exemplo, a cultura; religião; orientação
sexual. Porém, conforme o seu desenvolvimento, essas características vão sendo
confirmadas ao longo do tempo, ou, modificadas, num processo de
identificação/rejeição com os outros indivíduos de seu grupo (CIAMPA, 1989).
A esse processo Bock, Furtado e Teixeira (2002) se referem a um estágio de
diferenciação entre o “eu” (sujeito) e o outro. É nesse intercâmbio que o indivíduo irá
se perceber como sujeito, uno e diferente das demais pessoas que o cerca, sendo,
portanto, imprescindível as relações sociais para a construção da sua identidade.

Eu passo a ser alguém quando descubro o outro e a falta de tal


reconhecimento não me permitiria saber quem sou, pois não
teria elementos de comparação que permitissem ao meu eu
destacar-se dos outros eus. Dessa forma, podemos dizer que a
identidade, o igual a si mesmo, depende da sua diferenciação
em relação ao outro (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.203).

Por esta perspectiva, Ciampa (1989) afirma que “diferença e igualdade é uma
primeira noção de identidade”. São pelos relacionamentos, o contato com o outro, que
o indivíduo se descobre e descobre o mundo em que vive. E por este reconhecimento
o homem constrói sua identidade, o qual será fornecido primeiramente por sua
socialização primária.
Em nossa sociedade, segundo Bock, Furtado e Teixeira (2002), será no grupo
familiar que a criança irá se deparar com as primeiras diferenciações de si, através do
contato dos pais ou cuidadores. Um toque, um olhar, um cuidado com o “bebê que vai
dando a ele o seu valor como pessoa”. É por meio desse contato em suas primeiras
relações que a criança vai aprendendo a reconhecer suas necessidades físicas e
emocionais, e aquele que as supri terá um peso maior de referência para que ela o
siga como modelo de identificação.
Por isso, o espaço familiar é de suma importância para o crescimento da
criança, pois ele deve fornecer um espaço seguro para o descobrimento de sua
identidade, com medidas de continência para o seu desenvolvimento físico, psíquico
e emocional.
91

Serão essas referências que fornecerão as características morais, éticas, e


mesmo de conduta, que servirão como base de identificação para a formação da
identidade do sujeito. Será por este mesmo processo, com base nas referências que
construirá das relações com outras pessoas dos diversos grupos sociais, que na
socialização secundária o sujeito irá definir também seus modelos de identificação.
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Dessa forma, os autores salientam que em seu desenvolvimento o sujeito vai
se reconhecendo no outro, e por essa troca de experiências vai compondo as
características subjetivas de sua identidade na interface de suas relações:

Isto porque, o que quero como mulher, por exemplo, tem como
referência várias mulheres que foram importantes para mim, ao
longo de minha vida: é um amálgama de características de
minha mãe, daquela professora tão especial, da heroína de um
romance e da mãe de uma amiga minha. Este é um modelo com
o qual me identifico e vou procurando construir minha identidade
(BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002, p.203).

Por este motivo Ciampa (1989) confirma que o homem constrói sua identidade
ao longo da vida, não sendo algo imutável e definido por um único momento, pois será
a multiplicidade de experiências e vivências acumuladas que darão subsidio para esse
processo que é contínuo, podendo ser confirmado, porém também negado, a todo
instante.
O autor alerta que uma pessoa mantém sua identidade quando esta é
reconhecida pelo grupo ao qual pertence ou se identifica. Com isso, essa identificação
terá validade mediante o reconhecimento de seu grupo, pois isso o iguala e confirma
seu pertencimento pelas mesmas características de seus membros. No entanto, a
falta deste reconhecimento determina ao indivíduo o contrário, que não faz parte do
grupo, já que suas características não se igualam aos demais.

Nós nos “tornamos” nosso nome: pense em você mesmo com


outro nome (não como outra, mas você mesmo com outro
nome); há um sentimento de estranheza, parece que não
“encaixa”. Geralmente as pessoas se sentem ofendidas quando,
por qualquer motivo, trocamos seu nome; é sinal de amizade e
respeito não esquecer e nem confundir o nome das pessoas que
prezamos [...] Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos
igualando, conforme os vários grupos sociais que fazemos parte:
brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos estrangeiros
(“nós os brasileiros somos... enquanto os estrangeiros são...”);
homem ou mulher (“os homens são... enquanto as mulheres
92

são...”). Os exemplos podem se multiplicar indefinidamente (“os


corintianos são... enquanto os torcedores dos outros grupos
são...”) (CIAMPA, 1989, p. 63-64).

Por isso Ciampa (1989) alega que este senso de pertencimento é que dá
sentindo ao homem, pois no mesmo tempo que o iguala também o nomeia, dando-lhe
substância, um ser próprio e individual. Sem este reconhecimento perde-se a
singularidade, por se perder as referências e o conteúdo que preenchiam a substância
contida na representação do nome dado.
Contudo, serão as ações do indivíduo que irão manter o reconhecimento de
sua identidade diante de seu grupo, e não apenas a nomeação de um ato. Uma
pessoa pode se tornar um advogado, porém será por suas atividades profissionais
que ele será reconhecido como tal, e não apenas por sua formação em Direito que lhe
conferiu essa identidade. Isso porque, caso não exerça a profissão de advogado terá
apenas o nome e não o conteúdo, impossibilitando que sua ação profissional seja
reforçada, o que provocaria a perda deste reconhecimento profissional (CIAMPA,
1989).
Para o autor será por meio “de comportamentos que reforcem sua conduta”
que se realiza esse processo de reconhecimento da identidade do sujeito. Sem esse
reconhecimento do grupo a identidade se torna rasa de conteúdo, sem reforçadores
que a sustentem e a torne válida. Dessa forma, o movimento incessante de suas
atividades de “agir, trabalhar, fazer, pensar, sentir, etc., já não mais substantivo, mas
verbo”, presentifica e constitui o homem enquanto ser, pertencente de uma identidade
que até mesmo o precede.
Nesse sentido Ciampa (1989) esclarece que, por vezes, o sujeito possui uma
identidade que lhe foi dada no desdobramento de suas ações, concedida sem que ele
próprio tenha intencionalmente a constituído. São os predicados da ação do sujeito
que propaga a sua identidade, isso porque “a não ser por gozação, você chamaria
“trabalhador” alguém que não trabalhasse?”
Por esta perspectiva Bock, Furtado e Teixeira (2002) compreendem a
identidade do sujeito como mutável, modificada por estes movimentos que são
variáveis, pois não dependem apenas do indivíduo, e sim da inconstância relacional a
qual tanto se influencia quanto se é influenciado pelo outro. É por este viés das
relações sociais que o indivíduo irá moldar a sua identidade social, confirmando a
93

atribuição dos predicados na prática de suas ações, ou rejeitando-os na mudança por


novas atitudes contrárias.
Lane (2006) observa nesse processo, uma multiplicidade de papeis sociais que
são concedidos ao sujeito, levando-o a diversas representações de si próprio, para
produção de sua identidade. Dessa forma uma pessoa pode representar o papel social
de filho, pai, esposo, aluno, carioca, eletricista, baterista, torcedor de clube esportivo,
católico, indefinidamente, dependendo das suas múltiplas experiências e relações
sociais. É o desempenho desses inúmeros papeis que formarão o conjunto dessa
identidade, representado apenas por um único sujeito.
A cada situação da vida, Ciampa (1989) sugere que o sujeito ao mesmo tempo
que confirma, também responde por um determinado papel, conforme as convenções
sociais da situação apresentada. Por exemplo, quando está no trabalho a sua conduta
profissional deverá direcionar suas ações; no grupo religioso o seu comportamento
será pertinente as crenças que a regem; na roda de amigos se comportará de forma
mais informal; e assim por diante.
Dessa maneira, em cada situação isolada o indivíduo está respondendo e
repondo a permanência desses papeis, representado por uma parcela de si, que não
são excludentes, apenas respondem separadamente de forma interdependentes,
conectadas pela intrínseca gama de experiências que subjetivam o sujeito.

Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma


totalidade, manifesta-se uma parte de mim como
desdobramento das múltiplas determinações a que estou
sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai;
com meu pai, como filho; e assim por diante. Contudo, meu filho
não me vê apenas como pai, nem meu pai apenas me vê como
filho; nem eu compareço frente aos outros apenas como
portador de um único papel, mas sim como o representante de
mim, com todas minhas determinações que me tornam um
individuo concreto. Desta forma, estabelece-se uma intrincada
rede de representações que permeia todas as relações, onde
cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo
qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento
originário para cada uma delas (CIAMPA, 1989, p.67).

Pela representação desses diversos papeis, Ciampa (1989) analogamente


compara a história de cada pessoa com a atuação de um ator, ao qual “nós mesmos
somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos”. É na vivência de
cada personagem que o ator por vezes oculta, ou ora revela sua identidade, de forma
relativa as determinações normativas a que está imposto pela sociedade.
94

Ciampa (1989) observa nesse intrincado processo, que comumente os outros


deixam de reconhecer uma pessoa por seus predicados, surpreendendo-se com sua
atuação tanto positivamente quanto negativamente. Como também é passível do
sujeito confundir seus papeis na atuação de seus personagens, como se o ator
incorporasse um outro personagem, novo e diferente de todos, perdendo o contato
com os demais personagens que compõe sua identidade.
É por esse jogo das relações sociais que o indivíduo vai permeando, criando
sua história e sendo criado por ela, pois é no seio dessa mediação social, influenciado
por sua condição sócio-histórica, que sua identidade se produz.
Segundo Lane (2006), essas condições sociais são determinadas pelas regras,
normas e convenções de cada sociedade, criadas para a manutenção e controle
social. Serão por esses determinantes sociais que os papeis se orientam em seu
desenvolvimento, na convergência de condutas que garantam a reprodução, e,
consequente, permanência das normas sociais.
O desenvolvimento do homem social é observado por Lane (2006), por meio
de uma intrincada rede de relacionamentos, que se tornam “práticas consideradas
essenciais, e, portanto, valorizadas”. Dessa forma, o que foge a esse modelo padrão
tem uma conotação nociva ao meio social, pois está fora dos padrões reconhecidos,
portanto, desconhecido e fora de controle.
Quando o desempenho de um papel difere da reprodução normativa desse
modelo, há uma quebra da ordem social, em que o indivíduo por algum motivo
transgrediu suas práticas. Por essa ocorrência geralmente as sociedades atribuem
sanções, de menor ou maior penalidade, na culminância de leis que façam valer o
cumprimento das regras em suas relações sociais (LANE, 2006).
Dentro da perspectiva psicossocial, a autora observa que os determinantes
sociais ao orientar a formação dos papeis sociais, que em certa medida direcionam o
comportamento humano, subsequentemente também auxiliam na produção da
subjetividade humana, pois perpassam pelos mecanismos psíquicos interligados ao
processo de aprendizagem, ao qual está submetido todo ser humano em seu
desenvolvimento social.
Uma aprendizagem adquirida nos grupos sociais e que serão reforçadas pela
reprodução dos papeis, o qual estes serão mantidos através dos reforçadores de
95

comportamentos para validar sua prática, e, conseguinte, formação da identidade do


indivíduo que será reconhecida diante da sociedade (LANE, 2006).
Com isso, Lane (2006) verifica que a identidade do sujeito está
indissociavelmente interligada aos determinantes sociais, que limitam e restringem os
papeis ao qual o homem se movimenta na construção de sua individualidade. Nessa
dinâmica, por vezes, o sujeito se torna cativo, restrito em sua liberdade por ser
condicionada não só pelas práticas institucionais, mas também em grande parte pela
mediação simbólica do imaginário social, que sustentam as práticas sociais
influenciando todo o seu grupo.

Estas normas são o que basicamente caracterizam os papeis


sociais e que determinam as relações sociais: os papeis de pai
e mãe se caracterizam por normas que dizem como um homem
e uma mulher se relacionam quando eles têm um filho, e como
ambos se relacionam com o filho e este, no desempenho de seu
papel, com os pais. [...] Esta análise poderia ser feita em todas
relações sociais existentes em qualquer sociedade – amigos,
namorados, estranhos na rua, que interagem
circunstancialmente, balconista e freguês – em relação a todos
existem expectativas de comportamentos mais ou menos
definidos e quanto mais a relação social for fundamental para a
manutenção do grupo e da sociedade, mais precisas e rígidas
são as normas que a definem (LANE, 2006, p.13-14).

Segundo Lane (2006), nesse sentido as expectativas conduzem as relações


sociais, moldando as identidades e fomentando a personalidade humana. Essas
expectativas contidas no imaginário social, são alimentadas diariamente nas relações
sociais através do entendimento que o homem tem do seu mundo. É por sua
interpretação da realidade vivida que o sujeito irá balizar sua conduta e das outras
pessoas, mediadas pelas representações sociais adquiridas em sua socialização,
segundo os valores, crenças e conceitos aprendidos em sua cultura e grupo social.
Entretanto, as relações sociais se modificam continuamente e por essa
dinâmica alteram as práticas e costumes de um grupo, podendo acarretar frustrações
e angústias ao indivíduo, por não alcançarem mais as expectativas que antes eram
mantidas.

2.3.5 – Representações sociais


96

Para compreender o motivo de muitas pessoas se manterem circunscritos a


interpretações de conceitos ultrapassados pela cultura, ou mesmo deturpados em
valores ideológicos, a Psicologia Social estuda o conceito das representações sociais,
que é o processo no qual o ser humano estrutura sua visão de mundo, conforme os
significados atribuídos aos símbolos em sua experiência de vida (LANE, 1989).
Como vimos, pela função da linguagem o homem se comunica criando
símbolos para interpretar a realidade vivida, que serão repassados para o
entendimento e comunicação em seu grupo. Contudo, é no interior dos grupos sociais
que esses símbolos ganham um significado pessoal ao ser transmitido por uma figura
de autoridade, portanto, recheado de emoções, valores e sentimentos colados às
palavras, que são reforçados ou rejeitados ao longo da trajetória de vida do indivíduo
(LANE, 1989).
Assim, por meio de suas relações sociais o indivíduo vai interpretando os
significados dos símbolos aprendidos em sua socialização. Porém, a autora alerta que
essa interpretação só será possível por meio de sua ação, no confronto do
aprendizado com a realidade sentida. Dessa forma o indivíduo confirma o seu
aprendizado, percebendo no concreto o valor atribuído ao símbolo, dando-lhe sentido
pela ação.
É por este olhar que Moscovici (2000) afirma ser as representações sociais um
fenômeno social e não um conceito. Segundo o autor, as representações sociais se
consolidam no bojo do senso comum através de mecanismos psíquicos que
mobilizam e reconfiguram a ação do indivíduo, sendo, portanto, uma manifestação
social.
Senso comum é o conhecimento que o homem adquire através das
experiências cotidianas do seu grupo, passadas de geração a geração, contribuindo
para a formação da cultura de um povo. Esses conhecimentos são adquiridos de
forma espontânea, sem a preocupação de uma exatidão científica ou comprovação
da realidade dos fatos apresentados. Nascem de uma necessidade específica do
homem em ajustar suas tarefas diárias, como, também, do seu entendimento e
interpretação da realidade em que vive (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Por isso alguns conhecimentos do senso comum nem sempre são verdadeiros,
pois não passaram pelo empirismo do crivo científico, que comprove a veracidade
destes fatos, podendo ser apenas falácia ou simplesmente parte da cultura de um
97

grupo. Contudo esses conhecimentos se propagam e tornam-se crenças populares,


tidas até mesmo como verdades absolutas para muitos. É dessa forma que surgem
conhecimentos antigos, enraizados por crenças populares, como, por exemplo:
colocar um fio vermelho na testa da criança para tirar o soluço; a mulher não poder
lavar o cabelo no período menstrual; fazer mal a ingestão em conjunto de manga e
leite a noite; entre outros (ARANHA; MARTINS, 1993).
Com isso os autores advertem que pela simplicidade do senso comum, o
mesmo se torna um conhecimento ingênuo dos fatos, passível de ser dogmatizado
por preceitos conservadores e preconceituosos.
Porém, Bock, Furtado e Teixeira (2002), ressaltam que há casos em que a
ciência extrai do cotidiano alguns fatos e situações, comprovando através de estudos
empíricos sua eficiência ou adequando e melhorando a eficácia do seu desempenho.
Por exemplo, muitos remédios farmacológicos tiveram sua essência extraída do senso
comum, a partir de receitas caseiras ensinadas por gerações, tendo sua eficácia
comprovada cientificamente pela manipulação de ervas em fármacos.
Também o inverso é verdadeiro. O homem pelo senso comum traz para a sua
realidade um dado científico sem fazer dessa apropriação algo difícil de se executar
ou entender, por mais complexo que seja sua descoberta científica. Por exemplo,
medir a distância para se chegar a um local sem precisar elaborar antes uma equação
matemática ou física, ou ainda, ao fazer uso de um aparelho tecnológico, o homem
abstrai esse conhecimento da ciência e o torna parte de sua realidade, de seu senso
comum (BOCK;FURTADO;TEIXEIRA, 2002).
Por esses fatores Moscovici (2000), alerta para o fato do senso comum possuir
um domínio sobre o imaginário social, auxiliando nos processos psíquicos de
estruturação das representações sociais, pois a partir de um conceito já formado o
senso comum irá adequá-lo conforme sua realidade, trazendo-o para o seu cotidiano
através das relações sociais.
Segundo o autor, é por meio das conversas informais entre os grupos que uma
ideia ganha forma, se ajusta a realidade e se torna compreensível para as pessoas
envolvidas. A representação de uma ideia antes incompreensível e distante da
realidade dessas pessoas, ganha sentido ao ser redimensionada para o âmbito
individual do grupo, dentro de sua visão de mundo.
98

Bock, Furtado e Teixeira (2002), observam esse dado ao confirmar que o senso
comum se aproxima da ciência por uma visão de mundo particular. Isso acontece
quando as pessoas se apropriam de termos científicos para denominar fatos ou
situações similares, sem se preocuparem com a explicação técnica e correta desses
conceitos. É por esse intermédio que o senso comum se apropria de termos dados
pela ciência através de um estudo rigoroso, passando a denomina-los rotineiramente.
Passa assim a circular indiscriminadamente por entre as pessoas, um conceito antes
técnico e científico na forma popular de denominações como neurótico, surtado,
bipolar, etc.
Essa forma de apreender um dado novo e representá-lo no cotidiano
genericamente, é denominado por Moscovici (2000) como um processo de
ancoragem. Por ser fundamental a familiarização das representações simbólicas para
o convívio social, esse mecanismo do senso comum analisa e classifica uma ideia
nova e a reconfigura por uma ideia familiar, catalogando-a dentro de modelos
existentes para que seja assimilada, e assim mantida nas rodas de conversas.

O que eu quero dizer é que os universos consensuais são locais


onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer risco,
atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma
as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mas do
que contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam,
sempre de novo, as mesmas situações, gestos, ideias. A
mudança como tal somente é percebida e aceita desde que ela
apresente um tipo de vivência e evite o murchar do diálogo, sob
o peso da repetição. Em seu todo, a dinâmica das relações é
uma dinâmica de familiarização, onde os objetos, pessoas e
acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a
prévios encontros e paradigmas. Como resultado disso, a
memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o
presente, a resposta sobre o estimulo e as imagens sobre a
“realidade” (MOSCOVICI, 2000, p.54-55).

Existem ainda alguns conhecimentos que não se referem a um fato observável


ou vivenciado pelo homem, porém interpretados pelo senso comum através do
entendimento de outras pessoas, atribuindo-lhes significados que serão repassados
nas relações grupais. São questões que não existem uma definição única, como o
entendimento sobre o que é Deus, a morte e o infinito, e pelo senso comum o homem
abstrai o entendimento desses conceitos a partir dos vínculos afetivos construídos em
sua socialização com os grupos sociais (LANE, 2006).
99

Segundo Moscovici (2000), quando uma palavra não possui uma imagem
atribuída para a sua representação ela é comparada por uma outra que possa dar-lhe
substância, tornando o abstrato em tangível por meio de símbolos que possam liga-lo
ao seu conteúdo. Por esse mecanismo uma palavra ganha sentido e se torna
concreta, sendo disseminada pelo senso comum até ser absorvido seu conhecimento
como algo real e familiar, passando do plano desconhecido para o comum e natural.
Contudo, o autor alerta ser necessária a familiarização do termo com crenças
e conceitos já preexistentes, para que possa ser possível sua ancoragem, como, por
exemplo, a figura de pai (conceito conhecido) com a figura de Deus (conceito novo).
Após esse processo de adequação, o novo vai ganhando espaço paulatinamente pela
remodelagem do velho.
Quando o conceito é aceito pelo senso comum, as palavras se descolam das
imagens primordiais e ficam soltas, podendo ser enquadradas na vida comum. É
dessa forma que palavras não convencionais depois de um tempo passam a ser
utilizadas de forma ordinária, para descrever situações ou fazer comparações com
outros termos similares, tornando-se até mesmo gírias ou ditos populares: “a luta é
grande, mas Deus é maior” (MOSCOVI, 2000).
Esse processo é denominado pelo autor de objetivação, quando o conceito
incorpora a realidade cotidiana do homem comum, fazendo sentido e integrando em
sua rotina. O que era estranho torna-se familiar, fazendo parte da vida do sujeito pela
apreensão de termos conciliáveis com a sua realidade.

Uma vez que uma sociedade tenha aceito tal paradigma, ou


núcleo figurativo, ela acha fácil falar sobre tudo o que se
relacione com esse paradigma e devido a essa facilidade as
palavras que se referem ao paradigma são usadas mais
frequentemente. Surgem então formas e clichês que o
sintetizam e imagens, que eram antes distintas, aglomeram-se
ao seu redor. Mostrei (MOSCOVICI, 1961/1976) como a
psicanálise, uma vez popularizada, tornou-se uma chave que
abria todos os cadeados da existência pública, privada e política.
Seu paradigma figurativo foi separado de seu ambiente original
através de uso contínuo e adquiriu uma espécie de
independência, do mesmo modo como acontece com um
provérbio bastante comum, que vai sendo gradualmente
separado da pessoa que o disse pela primeira vez e torna-se um
dito corriqueiro (MOSCOVICI, 2000, p.73)

Para Lane (1989), o indivíduo interpreta e reinterpreta sua realidade pela


representação social ao concretizar suas ações objetivadas no contato com o outro,
100

ou seja, através do reconhecimento de seu grupo. Em contrapartida, vimos como os


grupos sociais se constroem institucionalmente, mediados pela ideologia que
constituem os papeis e identidade social.
Por esse motivo, a autora adverte que as representações sociais estão repletas
de ditames sociais, prescrições que advém de uma sociedade já formada e posta ao
indivíduo em seu desenvolvimento humano, sendo, portanto, possível de ser
manipulada pela ideologia dominante.
No entanto, Moscovici (2000) ressalta a abrangência das representações
sociais ao sugerir que elas são elaboradas partindo-se do micro ao macrossistema.
Ao trazer as representações sociais como manifestação do senso comum, o autor
evidencia um processo que se forma de dentro para fora, da ação do indivíduo para a
aceitação coletiva, e não o inverso, como na ideologia dominante que o macro
influencia o microssistema. Isso denota a importância de se conhecer as variáveis
desse percurso, circunscritas em crenças e valores sistêmico, para reconfiguração
das distorções figurativas que são partilhadas pelo sujeito no núcleo social.
Essa proposição leva a um outro caminho: ampliar o olhar para entender o
homem contemporâneo a partir de seus conflitos e vínculos coletivos, até chegar à
sua singularidade.
101

2.4 – O UNIVERSO PSÍQUICO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO


2.4.1 – Novos desafios, antigos conflitos

O homem contemporâneo possui na atualidade lutas diferentes das que trilhou no


princípio do seu desenvolvimento humano. O que antes era comum e necessário,
como as conquistas de impérios com guerras e lutas explícitas para a sobrevivência,
hoje, em sua maioria, não há mais. Para muitos, essa apropriação territorial foi sendo
modificada pela história e redimensionada em outros âmbitos, exigindo do homem
novas atitudes para conquistas íntimas e abstratamente territoriais.
Numa visão sócio-histórica da contemporaneidade, Vaitsman (1994) esclarece
que a forma de produção do sistema capitalista ganhou novo espaço na atualidade.
Os setores agrícolas e industriais cederam lugar para o terceiro setor, que
progressivamente modifica o panorama socioeconômico das sociedades mais
complexas. A alta tecnologia invade a modernidade e expande o setor de serviços. As
relações de trabalho se modificam, e, consequentemente, alteram a infraestrutura
social, a dinâmica familiar e pessoal do homem contemporâneo.
Segundo a autora, para alguns pensadores a pós-modernidade surgiu como
um fenômeno urbano ligado as mudanças tecnológicas. Por essa nova forma de
comunicação, a sociedade passou a se organizar dentro um sistema de signos e
imagens “onde as imagens do meio de comunicação de massa e publicidade criam
desejos através de um tempo extremamente volátil”.
Vaitsman (1994) sinaliza a construção de uma comunicação puramente
simbólica, que se desenvolve num domínio atemporal determinado pelo espaço. As
barreiras geográficas são destruídas e o ciberespaço descortina ao homem infinitas
possibilidade de se relacionar, seja com o trabalho ou no lazer. A lógica espacial
sobrepõe o tempo e o capitalismo passa a explorar sobremaneira essa nova visão,
alterando radicalmente o cotidiano do homem social.
Bauman (2009) argumenta que pela facilidade do mundo tecnológico, o homem
se vê diante de inúmeras possibilidades de escolhas, que no fundo promovem uma
ilusão de liberdade distorcida da realidade, pois todas são concernentes à produção
de consumo. Pela exploração massificada do consumo, a sociedade incita o sujeito a
consumir por diversas motivações, criando um círculo vicioso que o levará a suprir
suas necessidades apenas pelo intermédio fugaz e fluído do consumo.
102

Para o autor, as promessas de consumo propagadas com a globalização


influenciam não só o setor econômico, mas se articulam com outras áreas tendo
predominância essencialmente no setor social. Com as mudanças socioeconômicas,
houve uma evasão da população rural para o meio urbano, que buscavam se integrar
no progresso tecnológico propagado pela globalização. Isso colaborou para o
decréscimo na economia do setor agrícola e um aumento da população nos centros
urbanos.
Essa superpopulação desestrutura a infraestrutura urbana e desencadeia um
aumento de favelas, comunidades carentes, falta de emprego e condições sociais
básicas para acomodar a população excedente. Contudo, o capitalismo não perde seu
poder de consumo nessa nova ordem, pois cresce a expansão econômica do setor
informal que colaboram com a diversificação das classes sociais, passando a
contemplar também a população de baixa renda (BAUMAN, 2009).
Com isso a expansão do capitalismo atinge todos as classes sociais, e o giro
do capital muda a forma de produção de trabalho, criando-se arranjos mais flexíveis
que, por vezes, correspondem com as necessidades de muitos trabalhadores, porém
aumentam as desigualdades de renda (VAITSMAN, 1994).
Conforme Vaitsman (1994), as formas de trabalho se flexibilizam e crescem os
contratos temporários, terceirizados, pequenas empresas individuais e autônomas.
Difunde-se o homework e explode o e-commerce. A moeda concreta torna-se um
conceito simbólico mediado via cartão eletrônico, aceito em qualquer local e espaço.
Essas facilidades mescladas com a instantaneidade trouxe expansão e diversidade
aos meios de consumo, não apenas ao comércio, como, também, as áreas de lazer,
esportes, artes, educação, saúde.

Harvey argumenta que a aceleração no tempo de giro do capital,


a flexibilidades das práticas de trabalho e a fragmentação
favorecendo o individualismo, tiveram consequências importante
para aquilo que seriam os modos pós-modernos de pensar,
sentir e fazer: acentua-se a volatilidade e a efemeridade da
moda, dos produtos, produções técnicas, processos de trabalho,
idéias, ideologias, valores e práticas estabelecidas. Enfatiza-se
os valores e virtudes da instantaneidade, fast food, as comidas
semiprontas, os descartáveis (VAITSMAN, 1994, p.48).

Numa crítica à sociedade contemporânea, Bauman (2009) confirma essas


transformações caracterizando-a por uma sociedade de consumo e cunha o sentido
103

de liquidez em suas relações. Para o autor, vivemos em uma época de fugacidade


estonteante, em que nossas ações e relações se tornam baseadas numa fluidez
efêmera, numa forma de vida que converge em uma modernidade líquida, porque
liquidifica qualquer base sólida para construção de relações reais e duradouras.
Vaitsman (1994) também relembra que na sociedade moderna o capitalismo
incentivava a individualidade e com isso verticalizava as relações, promovendo
diversas formas de poder como visto anteriormente. Já na sociedade pós-moderna,
sem as amarras contextuais de conceitos tão repressivos, a divisão sexual de trabalho
é modificada, passando a horizontalizar as relações que expandem a produção de
consumo, porém aumentam as diferenças nas relações que potencializa a
individualidade na atualidade.
Por esse desdobramento, a autora aponta a relação de gênero como uma das
diferenças mais marcantes no pós-moderno. Anteriormente a mulher não possuía um
lugar social na forma de produção capitalista, pois era tida como improdutiva. Dessa
forma, por não ocupar um papel produtivo de trabalho, também não possuía poder
sobre seu corpo e si mesma. Como vimos seu papel social competia ao espaço
privado, sendo propriedade da família e do casamento. Atualmente, apesar de ainda
muitas formas de opressão ao gênero feminino existir, essa realidade já não se mostra
tão explicitamente como antes na sociedade moderna.
Ao homogeneizar seus direitos com o homem, a mulher enaltece as
singularidades dos gêneros e funda um paradoxo social. Diferente dos papeis
separatistas da sociedade moderna, na atualidade as relações buscam a igualdade,
porém para alcançar essa condição manteve-se as diferenças bem marcadas,
sulcadas num ideal de livre escolha que, por conseguinte, aflora consequências
sociais provindas dessas singularidades (VAITSMAN, 1994).
Os resultados dessa nova maneira nas relações sociais repercutem também
na instituição familiar, que modifica sua dinâmica a partir de um conceito romanceado
da escolha conjugal por um par que se complemente, único e perfeito, livre de
imposições sociais e patriarcais. Contudo, são as singularidades de cada um que
trazem dificuldades para a uniformidade da antiga concepção burguesa do casamento
(VAITSMAN, 1994).
A união de amor eterno é colocada à prova na dicotomia da divisão sexual de
trabalho, em que pela liberdade financeira que o capitalismo lhe confere, a mulher
104

passa a ter maior empoderamento na relação, perdendo seu papel de “rainha do lar”
e, por conseguinte, da identidade pertinente apenas ao privado nas relações sociais
(VAITSMAN, 1994).
A autora sinaliza que a liberdade de escolha levou ao declínio a antiga união
matrimonial mantida “até que a morte os separe”, por vezes, a custas de sacríficos.
Por essa nova dinâmica conjugal, ao escolher livremente por seus parceiros, o
casamento torna-se uma decisão apenas do casal, e não como antes, por escolha da
família. Assim, se a união não der certo a próxima escolha será a separação, não sem
antes gerar uma carga excessiva de culpa para encontrar o erro, ou, o responsável,
por este declive, que se tornou uma responsabilidade exclusivamente do casal.
Sem a submissão feminina os casamentos burgueses entraram em conflito, e,
com ele, os papeis e identidade de gêneros, antes bem marcados e definidos, se
desestabilizam.
Nas circunstâncias históricas atuais, a noção de eternidade das
relações e dos sentimentos foi abalada e isto manifesta-se no
fato de que lá onde o indivíduo encontrava maior estabilidade e
segurança, casamentos e famílias passaram a desfazer-se e
refazer-se continuamente. O tipo moderno de família e
casamento entrou em crise porque foram abalados seus
fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a dicotomia entre
público e privado atribuída segundo o gênero [...]
Desempenhando múltiplos papeis na esfera pública e em sua
vida cotidiana, muitas mulheres deixaram de restringir suas
aspirações ao casamento e aos filhos. Desafiaram a dicotomia
entre público e privado, conquistaram direitos como cidadãs,
constituíram-se como indivíduos. O individualismo patriarcal foi
abalado e a igualdade entre homens e mulheres colocou-se
como possibilidade social (VAITSMAN, 1994, p.35-36).

Por este mesmo ideal de livre escolha propagado pela sociedade pós-moderna,
Cortella (2014) observa que as relações familiares se diluíram progressivamente,
advertindo que podem trazer sérias complicações ao psiquismo da nova geração. O
novo modo de convivência familiar alterou-se e as pessoas possuem maior liberdade
de ir e vir dentro do lar. Isso influenciou na apenas a maneira de pais e filhos se
relacionarem, mas modificou também até mesmo o espaço dentro de casa. Com a
frequente ausência dos pais pelo trabalho, a casa se tornou um espaço transitório, em
que a família circula entre os ambientes, sem se deterem para a conversação e troca
de ideias.
Não há tempo para encontros de conversa ou diálogos demorados. A sala,
antes um espaço social privilegiado da casa, passou a ser um espaço vazio,
105

ornamental. Atualmente os encontros familiares são realizados em espaço públicos,


que de preferência minimize o tempo gasto da convivência, sendo a escolha por um
local que possibilite a família unir o lazer com as necessidades básicas, sem
necessariamente leva-los a um encontro efetivo salutar, fundamental para uma
discussão dialógica que sustente e atualize ambas as gerações (CORTELLA, 2014).
Segundo o autor cada qual escolhe o seu lazer, sua comida e o seu espaço, de
preferência em um único local, o shopping center, que não necessita que estejam
juntos no mesmo ambiente. Essa liberdade, sustentada pela lógica da praticidade,
confere a cada membro uma individualidade sem igual, que pode conduzir a um
ostracismo familiar pela simples falta da convivência, que antes era mantida por esses
encontros familiares, essenciais para a manutenção das relações.

Antes a refeição que tinha de ser esquentada de uma vez só,


hoje, com o micro-ondas, pode ser aquecida no momento em
que desejarmos. Aliás, qual o discurso por trás disso? Liberdade.
“Meus filhos são livres, eles se viram” Claro que se viram. O que
precisa ser observado é qual o impacto disso na vida deles
(CORTELLA, 2014, p.75).

Com isso o capitalismo se exacerba e o consumo se torna o ponto central da


sociedade. A tecnologia viabiliza formas de conectar tudo e todos, isso muda a cultura
e inova os hábitos e maneira do homem pós-moderno de se relacionar, ao mesmo
tempo que expande os meios de produção do capitalismo.
Bauman (2009), acredita que essas mudanças culturais e relacionais na
contemporaneidade convergem para a maximização da individualidade humana. O
homem na sociedade contemporânea, por seu ideal de livre escolha busca por meios
de se realizar através de autoidentificação e autorreferência que o direcionem. Assim
cada vez mais surgem as receitas práticas de autoajuda, em que o faça-você-mesmo
leva o indivíduo a buscar por si exteriormente, nas prateleiras do mercado.

2.4.2 – Em busca de novos caminhos

Para Bauman (2009), a Era digital em que vivemos, estimulada pelo capitalismo
exacerbado, fomenta esse torvelinho na atualidade. Segundo o autor, a sociedade
atual se caracteriza pela rapidez das informações que chegam ao domínio público
106

promovida pelo avanço tecnológico, e uma informação que é atual hoje, amanhã
poderá já estar ultrapassada, sem dar tempo ao indivíduo digerir a notícia para refletir
com calma e assertividade sobre uma tomada de decisão.
Esse mundo tecnológico e digital é visto por Cortella (2014), como um novo
paradigma que causa confusão na sociedade. Segundo o autor, a geração atual vive
num momento de muita informação e possibilidades, e a velocidade que ela chega
exige da sociedade cautela e discernimento para não cair na armadilha de acolherem
o novo não de forma veloz, mas apressadamente.

Hoje não temos uma sociedade obrigatoriamente mais veloz –


algumas coisas são mais velozes -, mas temos uma sociedade
mais apressada. Apressada na relação, na pesquisa, no contato,
na afetividade, portanto, uma superficialidade resultante desse
apressamento. [...] Um exemplo: há 20 anos, quando alguém ia
mostrar um álbum de fotos, ia se detendo sobre elas pouco a
pouco. E os comentários iam surgindo. Agora, a pessoa pega o
celular e com o dedo vai passando numa velocidade tal, que não
permite fruir nenhuma das fotos (CORTELLA, 2014, p.54-55).

Da mesma forma que o indivíduo mantém um consumo líquido, pois há uma


multiplicidade de opções à sua espera, as relações sociais também se tornam
líquidas, pela mesma razão de se ter inúmeras possibilidades de escolhas que podem
ser descartadas com a fugacidade de um toque. Dessa forma, surge a geração “touch”
que se mantém conectada com apenas um toque, acreditando na produção do menor
esforço para a construção de suas conquistas (CORTELLA, 2014).
Chauí (2000), ao chamar a atenção para esse amontoado de informação que
chega ao homem contemporâneo, confirma essa visão de cautela que se deve ter na
atualidade. Para a autora, todas essas informações não são suficientes para um
domínio de conhecimento, mas, por vezes, apenas útil para dificultar a busca da
verdade.
Ultimamente recebe-se tanta informação pela comunicação de massa, mais
ainda pelas mídias sociais, que se o indivíduo acolher passivamente esse amealhado
de informações como se fossem conhecimento, poderá se ver ludibriado por uma
ideologia maior, interessada apenas em propagar sua versão unilateral da realidade.

Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o


desejo de buscar a verdade. Pode parecer paradoxal que assim
seja, pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas
ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24 horas
107

diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que


possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema
e de teatro, vídeos, fotografias e computadores. Ora, é
justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de
informação que acaba tornando tão difícil a busca da verdade,
pois todo mundo acredita que está recebendo, de modos
variados e diferentes, informações científicas, filosóficas,
políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras,
sobretudo porque tal quantidade informativa ultrapassa a
experiência vivida pelas pessoas, que, por isso, não têm meios
para avaliar o que recebem [...] E, sobretudo, como há outras
pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o
policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que
podem saber, o que podem e devem fazer ou sentir, confiando
na palavra desses “emissores de mensagens”, as pessoas se
sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque há
ignorância (CHAUÍ, 2000, pg.113).

Como visto anteriormente, pelo poder da linguagem o homem pode utiliza-la


como veículo de manipulação para disseminação da ideologia dominante, e não
somente como instrumento de comunicação. Por esse motivo, a autora adverte ser de
extrema necessidade que se reflita ponderadamente sobre as informações que
chegam, transformando informação em conhecimento através de uma reflexão crítica
e com parcimônia.
Cortella (2014) discute essa condição ao enfatizar “que não se deve confundir
informação com conhecimento, dado que aquela é cumulativo e este é seletivo”. O
autor revela sua preocupação pela nova geração que vislumbra nessa facilidade uma
alternativa de ganhos rápidos, sendo, por vezes, reforçado pelos pais que não dispõe
de tempo para supervisionar suas atividades, modificando dessa forma não só a
dinâmica da família contemporânea, como, também, os valores éticos e morais da
sociedade.
Em uma análise psicossocial, Bauman (2009) também observa que cada vez
mais as decisões são tomadas com menos criticidade e cautela do que se deveria.
Com isso, as características atribuídas à sociedade pós-moderna, rápida e efêmera,
se refletem não só no campo social quanto psíquico do ser humano, ao responder
impulsivamente aos estímulos que lhe chegam rapidamente, garantindo-lhe assim
uma satisfação imediata.
Numa sociedade de consumo, o ganho deve ser sempre instantâneo para que
não dê tempo ao indivíduo refletir sobre sua decisão, caso contrário, ele será
descartado por algo novo na prateleira que satisfaça essa condição imediata. Com
isso o indivíduo se condiciona a essa imediaticidade, levando-o cada vez mais ao
108

consumo rápido e líquido, numa compulsão tenaz por conquistas imediatas


(BAUMAN, 2009).
Para Cortella (2014), essa imediaticidade nas relações incute um sentimento
de impaciência nos processos da vida, o que leva a uma noção deturpada de ganhos
e uma falta de projetos sólidos que conduza a conquistas reais. O prazer de sentar-
se à mesa para as refeições familiares, de buscar a permanência douradora em
relações afetivas ou de trabalho, são sentidas por uma impaciência, uma perda de
tempo que o indivíduo contemporâneo aparenta não ter mais a dispor.
O autor discute que o jovem também passou a pensar o tempo de forma
diferente, assim como os adultos. Atualmente diversos fatores colaboram para difundir
esse comportamento na infância e juventude. Tudo é “fast”, até a mídia pela
exploração de consumo, diminuiu o tempo dos blocos infantis na televisão. As
mensagens instantâneas, o controle remoto, o lazer, a comida... tudo é rápido, o que
gera uma impaciência e total desinteresse aos processos de longo prazo.
Segundo Cortella (2014), por esse motivo muitos jovens não conseguem se
fixar em uma atividade longa. Acostumados a rotinas rápidas, tornam-se impacientes
e intolerantes, buscando escapar de qualquer atividade que traga a ideia de um
processo demorado. Isso os induz a um tédio diante da vida, pois, em contrapartida,
ela lhe oferta tudo de forma veloz, que o jovem acredita ser sem o menor esforço.
Assim, ao mesmo tempo, esse tédio concerne a juventude uma desvalorização do
tempo, resultando num abalo nos valores morais e éticos desse indivíduo, que
repercutirão no futuro da sociedade.

Há uma ausência da consolidação do esforço [...] Numa casa, a


ausência de um micro-ondas nos levava a fazer a comida todos
os dias. Ajudar nas tarefas de casa fazia parte do caráter no dia-
a-dia, arrumar o próprio quarto, fazer uma compra, descascar a
batata. A facilitação hoje no mercado em relação a produtos
prontos, aquilo que chamei de “miojização da vida”, afrouxou a
nossa dedicação. Hoje não é incomum que alguém chegue aos
20 anos de idade sem nunca ter arrumado uma cama ou ajudado
a lavar louça. Nossa cultura, que foi escravocrata em grande
medida, contribuiu para acentuar essa ligação do trabalho
manual com tarefa de menor valor [...] O primeiro sinal de que
se está melhorando de vida é libertar-se de atividades
domésticas – não precisa lavar nem passar roupa, nem cozinhar,
nem limpar. E essa onda veio com uma facilitação do mundo da
tecnologia em relação a essas tarefas (CORTELLA, 2014, p.91-
92).
109

Dentro desse contexto, Bauman (2009) observa que a cultura incorporou uma
“síndrome consumista”, tornando-se o consumo um hábito comum a todos, que se
desdobram para conseguir manter o padrão cultural vigente. Contudo, essa nova
maneira de agir e pensar tem consequências psíquicas que não são apuradas por
uma análise superficial ao nível individual, porém, sentidas no âmbito social.
Nesse sentido, Vaitsman (1994) aponta que para alguns pensadores as
transformações da sociedade contemporânea reverteram-se em uma lógica cultural
do capitalismo, em que pela flexibilidade do giro do capital dá-se um novo sentido aos
valores culturais e morais, estimulando o comportamento do homem pós-moderno a
procura do novo, do volátil, do efêmero, em oposição aos rígidos e sólidos valores
morais da sociedade moderna.

Essas transformações na organização sócio-econômica e


cultural, que atingiram boa parte do mundo contemporâneo,
ajudariam a explicar porque as pessoas passaram a se descartar
com muito mais facilidade não apenas dos bens, mas também
de valores, estilos de vida, relações estáveis e ligações com as
coisas, construções, lugares, pessoas e modos herdados de
fazer e ser: o sentido de que “tudo que é sólido desmancha no
ar” raramente teria sido tão penetrante [...] Essas
transformações são um indicador de que a fragmentação, a
incerteza e a instabilidade aumentaram na dinâmica social,
econômica e cultural do capitalismo recente, radicalizando, mas
com isso também modificando algumas das condições da
modernidade. E permitem compreender a fragmentação pós-
moderna como um fenômeno social, resultado de processos
históricos que apresentam articulações entre si e que também
estão presentes no modo como homens e mulheres constroem
suas identidades (VAITSMAN, 1994, p.48-49).

Bauman (2009) confirma que a cultura na sociedade líquida-moderna condiz


ao reverso de seu conceito original, que antes se submetia a regulação e ordenação
de condutas estáveis de longo prazo, sendo que, nas sociedades de consumo, esses
preceitos estariam totalmente contrários a nova ordem social. Dessa forma, a cultura
acompanha os mesmos critérios voláteis e efêmeros da modernidade líquida, que
promove a descontinuidade e o esquecimento de um consumo desenfreado e
transitório.
A “síndrome consumista” à qual a cultura contemporânea se
rende cada vez mais tem como centro uma enfática negação da
virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação”
– princípios fundadores da “sociedade de produtores” ou
sociedade produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores
reconhecidos, a ”síndrome consumista” destronou a duração,
110

promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade acima


do valor da permanência (BAUMAN, 2009, p.83).

Essa reversão de valores é fomentada pelo capitalismo por uma nova


estratégia de consumo. Cada vez mais as propagandas e anúncios conduzem o
homem moderno para a não satisfação de seus desejos, produzindo apenas
indicadores que os estimulem, sem, contudo, os satisfazê-los. São produções que
estimulam as sensações, que incitam o imaginário e conduzem o consumidor a novos
desejos para suprir os antigos, ultrapassados, porém nunca devidamente saciados
(BAUMAN, 2009).
Por essa lógica capitalista, o autor afirma que toda a produção da sociedade
de consumo é modificada a partir desses princípios. Cria-se estimuladores em todas
as áreas de consumo que irão levar a novos desejos, amarrando o consumidor numa
rede de marketing inexorável que abarca todos os domínios da vida pública e privada.
Bauman (2009) avalia que atualmente o consumo penetra setores antes
inexplorados, criando padrões de consumo através da “marketização dos processos
da vida”. Com isso, muitas atividades humanas se tornam produtos de consumo,
postos à venda, e, portanto, negociáveis pelo mercado financeiro. As relações
interpessoais, o corpo, a infância, lazer, velhice, casamento, trabalho; áreas que
passam a ser exploradas pelo mercado de consumo, disponíveis em prateleiras
acessíveis nos e-commerce e shopping centers da vida.
Cresce a insatisfação e a frustração, pois tudo é rápido, curto e transitório.
Dessa forma, é impossível manter controle sobre os domínios da vida. O que se
difunde é a insegurança pelo medo de ser também trocado e descartado, pela próxima
oferta melhor que aparecer na fila dos padrões de consumo (BAUMAN, 2009).
Porém, ironicamente o autor sentencia que enquanto isso, a sociedade de
consumo continua a girar e oferecer seus produtos, sempre com a mesma promessa
instigante para a solução final de seus problemas, sem, contudo, conseguir alcança-
la, pois logo em seguida aparecerá um novo padrão de comportamento que a suplante
no mercado.
Nesse sentido, aprofundando a visão psicológica, Jung (2008) ao analisar a
personalidade humana afirma que o homem para obter sua civilidade sacrifica-se em
busca de uma imagem ideal educando-se dentro dos moldes sociais prescritos, nem
111

sempre condizentes com o seu caráter, o “eu” de sua essência que se encontra nos
escaninhos inconscientes da psique.
No intuito de alcançar essa condição social, o sujeito cria máscaras para
desempenhar seu papel ideal diante da sociedade, ocultando-se por trás delas como
um ator que representa seu papel no teatro. Essa condição provém de um arquétipo
do inconsciente coletivo, denominado pelo autor como persona, justamente por ter
esse significado de atuação artística através de máscaras. Dessa forma, diante das
relações sociais será a persona do sujeito que estará atuando, mediando seus
conteúdos inconscientes e conscientes (JUNG, 2008).
Jung (2008) ao mencionar a influência do social nos processos psíquicos,
analisa que o ego se identifica com a persona, pois seus desejos se localizam no
consciente que perfazem as expectativas e atitudes concretas da realidade externa,
da vida social, da qual o arquétipo da persona molda suas imagens ideais. Dessa
forma, por vezes a persona se cristaliza em máscaras adaptadas em um certo
contexto social, para manter o ego seguro dentro da perspectiva limitada de sua
constituição, ocorrida em seu desenvolvimento psíquico e emocional durante sua
socialização.
Essa cristalização da persona pode levar muitos indivíduos a compensar a falta
de uma identidade sólida por um papel social que se identifique, vinculando-se
inflexivelmente as regras institucionais, como um abrigo seguro as fragilidades
psíquicas oriundas da sociedade líquido-moderna que incita o medo e a insegurança.

O cargo que ocupo representa certamente minha atividade


particular, mas é também um fator coletivo, historicamente
condicionado pela cooperação de muitos e cuja dignidade
depende da aprovação coletiva. Portanto, se identificar com o
meu cargo ou título, comportar-me-ei como se fosse o conjunto
complexo de fatores sociais que tal cargo representa, ou como
se eu não fosse apenas o detentor do cargo, mas também,
simultaneamente, a aprovação da sociedade. Dessa forma me
expando exageradamente, usurpando qualidades que não são
minhas, mas estão fora de mim. “L’état c’est moi”, é o lema de
tais pessoas (JUNG, 2008, p.29).

Entretanto, para Bauman (2005), na sociedade líquido-moderna o Estado


também não cumpre mais o dever de manter uma união sólida com a nação, sendo
mais vantajoso para o capitalismo investir numa política neoliberal, ora incitada pela
globalização que leva o indivíduo cada vez mais a prática de cada um por si, para
112

assim “garantir a si mesmo vantagem sobre os demais”, e colaborar com os


pressupostos do capitalismo.
Sem o refúgio do Estado-nação os indivíduos procuram reencontrar esse
pertencimento necessário para a validade de suas identidades em outros territórios,
que, no entanto, por vezes se deparam com grupos “virtuais” interessados apenas em
acumular quantidades de relacionamento. Relações sem qualidades que são
mediadas por bases frágeis e descartáveis, de fácil acesso e difícil permanência.
Nesses ciclos a intimidade da convivência é uma ilusão, estimulada pela necessidade
autoreguladora da manutenção da identidade, que nos convida ao simulacro do
pertencimento social (BAUMAN, 2005).

O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio


um sentimento ambíguo. [...] Em nossa época liquido-moderna,
em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói
popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem
alternativa – é algo cada vez mais malvisto [...] Resumindo:
“identificar-se com...” significa dar abrigo a um destino
desconhecido que não se pode influenciar, muito menos
controlar. Assim, talvez seja mais prudente portar identidades na
forma como Richard Baxter, pregador puritano citado por Max
Weber, propôs que fossem usadas as riquezas mundanas: como
um manto leve pronto a ser despido a qualquer momento.
Lugares em que o sentimento de pertencimento era
tradicionalmente investido (trabalho, família, vizinhança) são
indisponíveis ou indignos de confiança, de modo que é
improvável que façam calar a sede por convívio ou aplaquem o
medo da solidão e do abandono (BAUMAN, 2005, p.36-37).

2.4.3 – A identidade do homem contemporâneo

Como vimos, o homem para manter a sua condição humana necessita das relações
sociais, contudo, conforme Bauman (2005), quando o homem contemporâneo não
encontra um nível de qualidade segura para seus relacionamentos, assim como no
consumo líquido, ele passa a buscar nas relações líquidas apenas quantidades,
tentando com isso aplacar o problema da ambivalência gerado na sociedade pós-
moderna, ou, ao menos, conter a necessidade inerente do contato humano.
Bauman (2009) observa que contrariamente ao imediatismo vigente, as
relações afetivas precisam de tempo para se construir, para se formar laços afetivos
mais fortes que resistam aos desafios e percalços comum a qualquer convivência.
113

Diante de relações líquidas e fugazes os laços se tornam mais frágeis, passíveis de


rompimento por qualquer desventura.
Atualmente o vício do consumo que toma conta da sociedade, instiga o
indivíduo a obter prazer imediato por produtos prontos, acabados. O investimento em
uma relação de longo prazo que requer esforço, dedicação e, por vezes, rendição,
num processo de transformação incerto ao que se vai obter no final, não é a ideia que
se deseja de parceria na sociedade líquido-moderna (BAUMAN, 2005).

Se não é possível confiar na qualidade, quem sabe a salvação


não está na quantidade? Se todo relacionamento é frágil, quem
sabe o recurso de multiplicar e acumular relacionamentos não
vai tornar o terreno menos traiçoeiro? Graças a Deus você pode
acumulá-los – justamente porque eles são, todos eles, frágeis e
descartáveis! E assim buscamos a salvação nas redes, cujas
vantagens sobres os laços fortes e apertados é tornarem
igualmente fácil conectar-se e desconectar-se (como explicou
recentemente um rapaz de 26 anos de Bath, o “namoro na
internet” é preferível aos “bares de solteiros” porque, se algo der
errado, “basta deletar” – num encontro cara a cara, não é
possível descartar-se com tanta facilidade do parceiro
indesejado). E nós usamos nossos celulares para bater papo e
enviar mensagens, de modo que possamos sentir
permanentemente o conforto de “estar em contato” sem os
desconfortos que o verdadeiro “contato” reserva. Substituímos
os poucos relacionamentos profundos por uma profusão de
contatos pouco consistentes e superficiais (BAUMAN, 2005,
p.75-76).

Na sociedade moderna as identidades eram definidas no berço, e o que a


sociedade exigia do indivíduo é que a mantivesse da mesma forma que lhe foi
concedida, intacta ao longo de sua vida. Na pré-modernidade o indivíduo se liberta
dessa condição imutável de sua identidade, quebrando conceitos, tradições e
verdades inverossímeis. Foram lutas por direitos civis e sociais que a sociedade pré-
moderna conquistou seu avanço, chegando à contemporaneidade a custas da erosão
da soberania ditatorial, por um ideal de liberdade (BAUMAN, 2005).
Assim a sociedade líquido-moderna busca, cria e reinventa novas identidades,
que ao final podem ser descartadas com um simples apertar de tecla, quando não se
coadunam mais com os interesses. Dessa forma, ao mesmo tempo que buscam a
identificação para a confirmação de suas identidades e reconhecimento social,
também pressentem a proximidade da exclusão social, caso não sejam aceitos por
essa rede, gerando angústias, ansiedades e insegurança (BAUMAN, 2005).
114

Numa análise de grupos institucionais, Deleuze e Guattari (apud Baremblitt,


1986), abordam a questão da influência do coletivo sobre o comportamento do
indivíduo, refletindo o quanto a identidade do homem é moldada pelo institucional,
bem como os seus desdobramentos psíquicos sobre o comportamento humano.
Segundo os autores, a sociedade ao instituir suas normas e regras auxiliam na
formação psíquica do indivíduo por duas maneiras; ao se relacionarem nos grupos
sociais como grupo-sujeito ou grupo-submetido.
O grupo-submetido é composto de pessoas que reproduzem as normas sociais
que lhe são instituídas de forma automática, como máquinas. Para esse grupo os
papeis sociais são fixos e inegociáveis, submetidos as regras de poder verticalizadas,
sem reflexão ou questionamentos. Já o grupo-sujeito seria seu oposto. São as
pessoas que pelo enunciado de suas vozes, visam suas necessidades sem se
pautarem exclusivamente às normas instituídas, ao contrário, instituem novas normas,
provocando mudanças e transformações, quebrando regras ultrapassadas e
contraproducentes (BAREMBLITT, 1986).
O autor afirma que é possível uma pessoa transitar entre a dinâmica dos dois
grupos; saindo do grupo-sujeito e passando para o grupo-submetido, e vice-versa.
Contudo, ele alerta que a posição de grupo-sujeito em nossa sociedade
contemporânea, pode trazer consequências difíceis ao indivíduo que contradiga
normas instituídas alienadamente, sendo, por vezes, visto com preconceitos,
tornando-se recluso ou excluído socialmente.

Transpondo isto para o que nos interessa, o grupo sujeito


existiria então como tal graças a uma área intermediária de
simbolização e produção, de questionamento do instituído, de
formulação de alternativas e de transformação. Pelo contrário, o
grupo submetido, como afirmamos anteriormente, permaneceria
numa posição de demanda frente a um objeto instituído em que
depositaria a sua própria onipotência (BAREMBLITT, 1986, p.
54).

Nessa busca por refúgio o indivíduo se vê paradoxalmente sem muitas


escolhas, em que ao submeter-se pelas normas instituídas aliena-se de si mesmo, ou
então se pronuncia diante do coletivo e ao fazê-lo, por vezes, poderá ser excluído ou
estigmatizado por suas escolhas.
Para Vaitsman (1994), pela liberdade conferida à sociedade pós-moderna,
surgem uma multiplicidade de escolhas. Os comportamentos se tornaram múltiplos,
115

influenciando os papeis e as identidades que se adequam ao novo contexto social. Na


sociedade contemporânea a ideia do igual, daquilo que é comum a todos coexiste ao
lado do particular, do diferente. Mistura de línguas, raças, sexualidade ou preferências
de qualquer tipo, são aceitas nesse universo heterogêneo, sem limites de tempo e de
espaço geográfico.

O pós-moderno no casamento e na família caracteriza-se pelo


fato de que, em circunstâncias contemporâneas, diferentes
padrões de institucionalização das relações afetivo-sexuais
passaram legitimamente a “coexistir, a colidir, a interpenetrar-
se”. Entre grupos sociais – como as classes médias urbanas –
onde predominavam normas mais rígidas de comportamentos,
papeis sexuais dicotômicos, a heterogeneidade e a diversidade
impuseram-se, como práticas e como discurso. O casamento
moderno e a família conjugal moderna, cada vez mais, passaram
a conviver legitimamente com uma pluralidade de outros
padrões de casamento e família. (VAITSMAN, 1994, p.52).

Entretanto, Cortella (2014) adverte que uma das contradições provindas da


geração pós-moderna é que a juventude atual possui tanta flexibilidade que podem
leva-la ao fundamentalismo. Uma geração hibrida, que abre as portas para tudo o que
há de novo, sem os conceitos rígidos vividos anteriormente, característicos da
sociedade moderna. Contudo, é por sua aceitação incondicional ao novo que é
possível ser inconsequente, pois “é tão aberta que pode acolher a intolerância”.
Acostumados à liberdade e novidades que surgem velozmente de forma
simultânea, abraçam qualquer ideia que se afinam, por vezes, irracionalmente.

Essa simultaneidade de possibilidades é uma característica da


pós-modernidade. Uma época de maior liberdade religiosa e um
fundamentalismo violento. Uma época de maior aceitação de
pessoas de orientação sexual diversa e o maior número de
assassinatos praticados em sociedades onde há essa liberdade.
E não estou me referindo a Rússia, ao Irã, mas a fatos que
acontecem na avenida Paulista, em São Paulo (CORTELLA,
2014, p.103).

Para Bauman (2005), essa característica irrefletida da sociedade líquido-


moderna provém de uma necessidade de pertencimento que passam as identidades
no pós-moderno. Com os relacionamentos instáveis, de curto prazo sem planos de
permanência, o que se vive é apenas o presente, causando insegurança e ansiedade
na sociedade, pois o futuro exige planejamentos de longo prazo, coisa difícil de
116

conseguir na atualidade pela efemeridade dos padrões de consumo oferecidos à


população.
Por essa fluidez nas relações sociais, todas as estruturas institucionais foram
atingidas, interferindo significativamente na constituição da identidade dos indivíduos.
Pelas relações líquidas e efêmeras, atualmente os papeis sociais, antes sólidos e
permanentes, se tornam fugazes e incertos, causando instabilidade às identidades e
insegurança emocional aos indivíduos (BAUMAN, 2005).
Na contemporaneidade com uma cultura de conceitos efêmeros e voláteis, os
valores também se modificam rapidamente, deixando o indivíduo perdido e incerto.
Essa volatilidade retira as bases confiáveis que sustentam o sentimento de
pertencimento, necessário para a identificação de uma identidade. Dessa forma,
muitos buscam nos grupos fundamentalistas a segurança contra o caos psíquico da
sociedade de consumo, substituindo seus valores perdidos pela certeza de suas
verdades absolutas (BAUMAN, 2005).
Vimos que uma identidade se edifica por seus relacionamentos, pela
confirmação ou rejeição de valores e conceitos que lhe dão base para a manutenção
de seus papeis. Com poucas escolhas de grupos que possuam conceitos e valores
estáveis, para muitos as ideias fundamentalistas podem ser bem-vindas.
O valor conspicuamente ausente é o da fé e o da confiança, e
assim também o da autoafirmação. O fundamentalismo
(incluindo o religioso) oferece esse valor. Invalidando
antecipadamente todas as proposições concorrentes e
recusando o diálogo e a discussão com dissidentes e “heréticos”,
ele instila um sentimento de certeza e elimina todas as dúvidas
do código de comportamento simples, de fácil absorção, que
oferece. Transmite uma confortável sensação de segurança a
ser ganha e saboreada dentro dos muros altos e impenetráveis
que isolam o caos reinante lá fora. [...] Essas congregações
assumem obrigações e deveres abandonados por um Estado
social em processo de encolhimento. Também prometem
defender a sua fé contra as “identidades” vigentes,
estereotipantes e estigmatizantes impostas pelas forças que
governam o “mundo lá fora” inóspito e hostil – ou mesmo voltam
as acusações contra os acusadores, proclamando que “o negro
é lindo” e assim transformando os supostos passivos em ativos
(BAUMAN, 2005, p.93).

Para Jung (2008), o homem em busca de sua identidade se utiliza da imitação,


se identificando pela repetição dos sentidos que o iguala ao outro. Nesse processo é
possível que alguns acabem se perdendo na extensão do outro, sem conseguir mais
117

diferenciar o singular, que é seu individual, da semelhança com o outro, que é do


coletivo.
Esse atributo de identificação humana corresponde a um intricado processo de
mecanismos psíquicos, que abarcam tanto o inconsciente individual quanto o
inconsciente coletivo. Assim como o homem possui uma identidade pessoal que o
individualiza entre os membros de seu grupo e outra identidade de caráter coletivo,
que o iguala aos seus semelhantes, o homem também possui dois inconscientes. Um
seria o inconsciente individual, formado pelas particularidades da existência pessoal
do indivíduo, e o outro um inconsciente coletivo, com formas e conteúdos psíquicos
herdados da humanidade coletivamente (JUNG, 2008).
Segundo o autor, o inconsciente coletivo possui um conjunto de arquétipos, que
são imagens primordiais simbólicas comuns a todas pessoas. Os arquétipos em si
não possuem conteúdo formado, são simples figuras associativas à cultura,
geralmente de elementos mitológicos, e vão ganhando forma a partir da vivência do
indivíduo que o vai suprindo conforme suas expressões do consciente, de suas
experiências e energias psíquicas.
No inconsciente coletivo além do arquétipo da persona se encontram também
os arquétipos da sombra, que representa todas as características indesejáveis do ego
e que não queremos enfrentar, além da Anima no homem, que define todas as
características femininas necessárias para o equilíbrio das características masculinas,
e o Animus na mulher, arquétipo que atua no mesmo processo inverso ao do homem,
ou seja, define as características masculinas necessárias para o equilíbrio feminino.
Além desses arquétipos se encontram ainda outros derivados, como o arquétipo da
mãe, do filho, do herói, do mágico, entre outros (JUNG, 2008).
Jung (2008) entende a personalidade humana por um meio de um equilíbrio do
homem em busca da sua totalização, através dos arquétipos que vão ganhando forma
dentro de uma etapa gradativa até alcançarem o self, seu equilíbrio psíquico,
integrando o consciente com o inconsciente, reformulando os arquétipos à vivência
concreta do indivíduo em busca de si mesmo, dentro de um processo denominado de
individuação.
No entanto, o indivíduo que possui uma identidade totalmente ajustada ao
contexto social, está com seu ego identificado com o arquétipo da persona, que lhe
118

confere uma compensação em seu inconsciente individual, nem sempre benéfica para
o conjunto de sua psique.

A construção de uma persona coletivamente adequada significa


uma considerável concessão ao mundo exterior, um verdadeiro
auto-sacrifício que força o eu a identificar-se com a persona. Isto
leva certas pessoas a acreditarem que são o que imaginam ser.
Essas identificações com o papel social são fontes abundantes
de neuroses. O homem jamais conseguirá se desembaraçar de
si mesmo, em benefício de uma personalidade artificial. A
simples tentativa de fazê-lo desencadeia em todos os casos
habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos, angústias,
ideias obsessivas, fraquezas, vícios, etc. O “homem forte” no
contexto social é, frequentemente, uma criança na “vida
particular”, no tocante a seus estados de espíritos. Sua disciplina
pública (particularmente exigida dos outros) fraqueja
lamentavelmente no lar e a “alegria profissional” que ostenta
mostra em casa um rosto melancólico. Quanto a sua moral
pública “sem mácula”, tem um aspecto estranho atrás da
máscara – e não falemos de atos, mas só de fantasias: suas
mulheres teriam muitas coisas para contar. Quanto ao seu
abnegado altruísmo, a opinião dos filhos é outra (JUNG, 2008,
p.80-81)

Dessa forma, em busca de pertencimento para autoafirmação de sua


identidade, muitos podem perder-se na identificação com suas personas, ajustando-
se em padrões de comportamentos voláteis que satisfazem apenas aos padrões de
consumo, e não as necessidades intrínsecas de si mesmo.
Essa volatilidade que os padrões de consumo conferem as relações sociais, é
vista com preocupação por Cortella (2014). Por seus discursos de praticidade e
instantaneidade, a sociedade tem aberto mão de certos costumes e tradições culturais
essenciais a formação psíquica do indivíduo. Ritos culturais que atualmente estão
sendo descartados, mas que deveriam ser perpetuados por seus benefícios para a
preservação psíquica do sujeito.
Como exemplo, o autor observa que atualmente as pessoas estão deixando de
ir nos velórios por conta do tempo desprendido nesses cerimoniais. Em algumas
cidades a tecnologia vem propiciando formas dos amigos e familiares prestarem suas
homenagens, sem participarem integralmente, ou fisicamente, da cerimônia. Há
países aderindo ao drive-thru para essas ocasiões, passam e fazem uma homenagem
sem precisar sair do carro, e no Brasil há casos que utilizam o recurso de webcam
para um velório à distância.
119

Com a morte nós não nos conformamos. Mas nós nos


confortamos. Ou seja, ganhamos forças juntos. E esse é um dos
sinais mais fortes de humanidade da nossa história. Quando
alguém próximo falece, nós fazemos uma série de cerimônias,
nos juntamos em torno daquele que perdeu alguém para que ele
se sinta fortalecido. Hoje quase já não se vê isso. A criança não
vivencia mais essa situação. Qual o argumento? “Eu não quero
que ela passe por isso”. Ah é? Depois, ela não sabe enfrentar
perda. As vezes perda de ano letivo, perda de trabalho, perda
de pais que se separam, perda física de alguém e assim por
diante. Parte delas inclusive se habitou à ideia de morte apenas
no videogame, em que, quando uma personagem falece, é só
dar o comando e reiniciar (CORTELLA, 2014, p.76-77).

Para Jung (2008) esse é um fator relevante, causador de muitos conflitos ao


homem moderno. Isso porque, segundo o autor, os povos primitivos mantinham seus
rituais míticos principalmente para se defender do desconhecido “interno”, de seu
inconsciente coletivo. Através de um rito de passagem, por exemplo, o menino se via
defronte a situações que o desprendia da condição infantil, com toda a proteção
materna que isso lhe conferia, tomando de compreensão para seguir sua vida sem as
amarras psíquicas ligadas ao amor da mãe, mas com as defesas de suas próprias
escolhas e consequências concernentes de um adulto.
Com isso, Jung (2008) esclarece que por mais que sejam provindos de uma
cultura primitiva, esses ritos auxiliavam na compreensão ou quebra de costumes que
estão ligados à energia psíquica do inconsciente coletivo, arquétipos que toldam a
ação consciente do indivíduo, promovendo incompreensão de seus atos, conflitos e
angústias. No caso do homem a ligação afetiva com a mãe é uma relação simbiótica
de difícil separação, sendo, por vezes, mantida pelo homem através do seu arquétipo
da Anima que projeta na parceira a personificação da super-proteção materna,
alimentando-a com seus hábitos infantis.

Assim como o pai protege o filho contra os perigos do mundo


externo, representando um modelo da persona, a mãe é a
protetora contra os perigos que o ameaçam do fundo obscuro da
alma. Nos ritos de puberdade, o neófito recebe instruções acerca
das coisas do "outro lado", e isto o tornará capaz de dispensar a
proteção materna. O homem moderno civilizado terá que sentir
forçosamente a falta desta medida educacional que, apesar de
seu primitivismo, é excelente. A conseqüência desta lacuna é
que a anima, sob a forma da imago materna, é transferida para
a mulher. Depois do casamento, é comum o homem tornar-se
infantil, sentimental, dependente e mesmo subserviente; em
outros casos, torna-se tirânico, hipersensível, constantemente
preocupado com o prestígio de sua masculinidade superior
(JUNG, 2008, p.84).
120

Bauman (2005) acredita que os valores que nos ligava a antigas tradições
foram perdidos na onda consumista da cultura pós-moderna globalizada, sucateado e
descartado para abrir espaço a novos modelos e padrões de consumo. Isso levou o
indivíduo da sociedade líquido-moderna a reinventar novos papeis para suprimir os
antigos incompatíveis com a nova era.
Contudo, alguns hábitos culturais são tradições que deveriam ainda fazer parte
da sociedade pós-moderna, não por um costume incipiente, mas por seu valor aos
processos da psique que favorecem a integridade emocional e psíquica ao indivíduo.
121

3. MÉTODO

Esta pesquisa trata-se de uma revisão bibliográfica acerca dos aspectos teóricos da
relação do homem com o trabalho. Tomando por base a Psicologia Social,
direcionamos esse estudo a partir dos conceitos de identidade social e representações
sociais, além da compreensão sobre a ideologia e do capitalismo que compõe a
subjetividade da sociedade ocidental, e remete o homem contemporâneo a
mecanismos psíquicos idiossincráticos para a formação de sua psique.
122

4. DISCUSSÃO

O trabalho sempre foi uma atividade presente ao homem desde seu primitivismo.
Inicialmente por suas atividades físicas o trabalho se torna relevante à evolução
humana, não apenas biológica como, também, cognitiva e socialmente (ENGELS,
1999).
Essa percepção do trabalho sobre a condição humana nem sempre esteve
presente de forma clara para a humanidade. Em sua civilização o homem se deparou
com vários desafios e confrontos, tendo o trabalho acompanhado essa trajetória
justamente por sua condição inerente à humanização (ARANHA; MARTINS, 1993).
Esse fato se faz observável pela historicidade do trabalho humano, que por
suas atividades paralela a sobrevivência torna-se um dos veículos essências para a
manutenção da vida humana, de tal modo que as sociedades passam a se organizar
conforme suas formas de produção do trabalho (ARANHA; MARTINS, 1993).
Contudo, ao longo da história percebe-se como outros elementos foram sendo
incorporados ao sentido de trabalho, não mais apenas uma atividade inerente à
sobrevivência e desenvolvimento humano, como, também, uma ferramenta disponível
para controle, exploração e dominação de massa (ARANHA; MARTINS, 1993).
Ao conceito de trabalho são associados outros valores que irão fornecer meios
para uma pequena parcela da sociedade manter o seu domínio sob os demais. Dessa
forma, se utilizando da força de trabalho para manter o poder, foram se entrelaçando
a ele conceitos religiosos e morais no entendimento humano sobre a atividade laboral,
ganhando um sentido nocivo de dor, sacrifício e honra. Com isso, por meio dessa luta
de forças outros significados se associaram ao trabalho, como a exploração e o poder
(ARANHA; MARTINS, 1993).
Entretanto, foram pelas vias do trabalho que a humanidade progrediu e
avançou em todas as áreas das atividades humanas, principalmente social e
intelectualmente. É através das diversas formas de produção de trabalho que as
sociedades paulatinamente superaram obstáculos e venceram desafios. Mesmo que
a grande população não tenha clara noção de sua importância dentro desse contexto,
isso somente foi possível pelo desempenho e esforço desta massa em suas atividades
de trabalho, fazendo girar a roda do capital em seus diversos setores econômicos dos
países.
123

No entanto, devido a sua história de manipulação e escravidão, o homem


passou a relegar o trabalho apenas em seu valor de sobrevivência financeira, sem
considerar o seu valor biológico, social e psíquico para a totalidade humana
(ARANHA; MARTINS, 1993).
Essa noção distorcida do conceito de trabalho veio de encontro aos propósitos
das sociedades capitalistas. Ao dividir as classes sociais entre dominantes e
oprimidas, o capitalismo estimulou a submissão ao trabalho em troca de seu valor
econômico, menosprezando os demais valores oriundos dos processos mentais e
psíquicos subjacentes às atividades de trabalho. Pela conquista de seu trabalho o
homem se empodera de suas potencialidades, vendo-se não apenas como
trabalhador, mas como um indivíduo capaz e responsável (LANE, 2006).
Com o capitalismo as sociedades ganham força com a produção em massa se
desenvolvendo sobejamente, ao passo que o indivíduo cada vez mais se aliena ao
capital, esquecendo de sua importância humana diante das sociedades capitalistas
(LANE, 2006).
Essa compreensão ao homem se torna difícil, pois nas sociedades capitalistas
não é apenas o trabalho que é capitalizado, mas também a educação, ciência, lazer,
cultura. Para a sua sobrevivência o capitalismo submete todas as atividades humanas
alienadas a produção, que levarão o homem consequentemente ao seu consumo,
mantendo-o cativo na produção-consumo de valores subvertidos para que a ideologia
dominante passe a direcionar a roda do capital, girando sempre em seu favor (CODO,
1989).
Essa estratégia do capitalismo se engendra sutilmente na vida cotidiana do
homem. Chega como meio de sobrevivência pelas vias do trabalho, ganhando força
ao fragmentar suas atividades e dividir sua forma de trabalho por manual e intelectual.
Após o seu estabelecimento, sua ideologia se estende por outros meios da vida,
sustentando sua lógica pela mesma maneira, fragmentando e desconectando os
sentidos para melhor manipular e alcançar os seus objetivos de dominação (CODO,
1989).
Por esse artifício das sociedades capitalistas a ideologia dominante sutilmente
se faz presente na vida do homem, fazendo parte de sua rotina de tal forma que
naturaliza seus conceitos ideológicos e os torna valores universais e indiscutíveis, que
124

serão posteriormente reproduzidos por toda a sociedade pela alienação do homem


(ARANHA; MARTINS, 1993).
Contudo, é possível ao homem refrear sua estratégia ao se aliar ao
conhecimento de várias áreas das ciências humanas. A partir do entendimento do
sistema capitalista o homem adquire condições para intervir com criticidade em sua
vida. Retirando deste conhecimento sabedoria interna suficiente para tomar decisões
externas com bom-senso e não apenas mediadas pelo entendimento ingênuo do
senso comum (ARANHA; MARTINS, 1993).
Ainda por intermédio da evolução das ciências psicológicas, utilizando-se de
técnicas e ferramentas, a Psicologia Social pode orientar o homem nesse caminho,
pois seus conhecimentos abrangem o entendimento da formação da subjetividade
humana e toda a gama de elementos psíquicos que permeiam as relações sociais,
dos quais, mediante esta intrincada rede, se formará a individualidade do homem
(LANE, 2006).
A partir de seus movimentos sociais a Psicologia Social busca a compreensão
das particularidades do homem, sendo estas em grandes partes movidas por ações
coletivas, que, em contrapartida, são o pano de fundo para as idiossincrasias que
compõe a personalidade do sujeito (LANE, 2006).
É desta forma que a cultura se constrói, pela necessidade de uma comunicação
coletiva que atenda as particularidades dos grupos. Assim, por uma ação grupal a
humanidade transcende o tempo, se perpetuando através da lei simbólica que atende
não apenas uma necessidade individual, mas transforma o modo de agir, sentir e
pensar de toda a humanidade (ARANHA; MARTINS, 1993).
No entanto, com o nascimento da cultura surge a linguagem, e junto a ela novos
sistemas de dominação e poder. A linguagem abre espaço para novos meios de agir
e pensar, e esta nova forma do homem se relacionar o impulsiona rapidamente ao
progresso intelectual e social, ao mesmo tempo que o paralisa quando se vê dominado
pelo uso arbitrário da linguagem (LANE, 2006).
É por meio do poder da linguagem que as classes dominantes utilizam sua
força e subvertem os valores discriminados nas palavras, criando ideologias que
alienam o homem de seus princípios e os submetem aos seus conceitos e ideais
(LANE, 2006).
125

Dessa forma, a ideologia dominante consegue abarcar diversas áreas das


relações humanas em seus sistemas de alienação, pois a linguagem se torna um meio
universal de comunicação entre os homens. Por se constituir dos interesses do capital,
a alienação perpassa por instituições historicamente construídas pela ação do
homem, formadas para a manutenção e controle da sociedade (ARANHA; MARTINS,
1993).
Com isso, novamente nos defrontamos com a influência do coletivo no
individual, pois esse controle social da ideologia dominante é fomentado a partir de
conceitos e valores reproduzidos alienadamente pelo indivíduo, no interior dos grupos
sociais que conduzem a socialização do sujeito, e, consequente, constituição de sua
identidade (LANE, 2006).
Para Lane (2006) a sociedade se utiliza de instituições sociais que auxiliam na
formação da subjetividade do sujeito. A primeira instituição social que contribui para a
disseminação de ideologias é o grupo familiar. Com uma dinâmica centrada numa
autoridade vertical, tendo na figura do pai o poder soberano do grupo, a instituição
familiar propaga ideologias que serão reproduzidas pelo indivíduo ao longo de sua
vida.
Isso porque atualmente o que se tem está pautado no modelo de família
burguesa, um grupo familiar que foi historicamente constituído para suprir as
demandas da sociedade capitalista, e não o contrário, auxiliar nas necessidades do
grupo familiar. Na família burguesa sua dinâmica se iguala aos hábitos da sociedade,
copiando suas funções centrada no trabalho e sua hierarquia de poder pela divisão
sexual de trabalho, ou seja, tornando-se totalmente competitiva e patriarcal (REIS,
1989).
Conforme os índices apurados pelo IBGE da distribuição econômica no Brasil,
podemos verificar que essa reprodução dos conceitos ideologizados pela família
burguesa persiste até o momento em nossa sociedade, pois a mulher ainda possui
uma representatividade econômica menor do que a do homem, confirmando a
hierarquia de poder patriarcal pela divisão sexual do trabalho.
Com esse modelo de família as relações giram em torno dos costumes
capitalistas, o que torna mais difícil ao sujeito romper com essa teia alienante. As
necessidades de seus membros se tornam correlatas as necessidades da sociedade.
Busca-se o sucesso financeiro do gênero masculino, pois é o provedor da casa, a
126

excelência na reputação da mulher, que é o patrimônio da família, e o brilhantismo


dos filhos, que serão os herdeiros e mantenedores do capital e das tradições familiares
(REIS, 1989).
Dessa forma a afetividade no grupo familiar torna-se carregado de ideologias,
que irão ser reproduzidas por seus membros como valores emocionais e sociais a
serem seguidos. Por ter a família o papel de assegurar a segurança física e emocional
da criança, esses valores são seguidos incondicionalmente, pois estão vinculados a
sentimentos de dependência afetiva, sendo reforçados por uma educação familiar
burguesa que reproduz conceitos ideologizados de verdades absolutas, além de uma
autoridade soberana incutida pela segurança do poder econômico (LANE, 2006).
O sujeito se vê cada vez mais engendrado nessa teia pela sociedade, que se
inicia pela socialização primária com a família, depois passa para a socialização
secundária com o grupo escolar, posteriormente seguida dos outros grupos sociais.
As instituições de ensino, assim como a instituição familiar, também estão recheadas
de ideologias pelo mesmo motivo da primeira, por ser uma criação da sociedade,
portanto, com funções e objetivos para a manutenção e controle social (LANE, 2006).
O sistema educacional das escolas também foi moldado dentro de padrões
sociais, para a reprodução de comportamentos que garantam a manutenção das
normas reguladoras da sociedade. Assim, sua didática serve como veículo de
disseminação para naturalizar diversidades sociais e universalizar a educação, tirando
a responsabilidade do sistema educacional e social, e colocando-a nos ombros do
indivíduo (LANE, 2006).
Por esse sistema de ensino mais uma vez subverte-se valores que dificultam a
compreensão dos problemas do sujeito, muitos dos quais estão implicados em
questões sociais, mas que ao serem ideologizados, mascaram-se com outros fatores
e se fundem ao torvelinho de emoções íntimas do indivíduo (LANE, 2006).
Essa dificuldade de clareza dos valores sociais e emocionais instigado pela
ideologia, perpassam por todas as relações da instituição escolar, não apenas pelo
aluno, como, também, pelo professor. Vinculado a um sistema educacional que
estimula a competição e autoridade, muitos professores não percebem a reprodução
de seu papel dentro desse esquema, e reforçam relações de poder que deixam
marcas irreversíveis na subjetividade do aluno (LEITE, 1993).
127

Além dessa identificação pela relação professor-aluno, como vimos o indivíduo


possui anteriormente outros componentes sociais que se entrelaçam na sua
socialização, compondo uma rede de elementos interdependentes na constituição da
subjetividade para a formação de sua identidade (LANE, 2006).
Cada um desses elementos garantem um valor subjetivo, que ao todo constitui
a formação da identidade do sujeito. São pelos grupos sociais que o sujeito se percebe
como único. Ao mesmo tempo, para se tornar uma pessoa singular é preciso que o
indivíduo se reconheça pertencente a um lugar, a um grupo de pessoas definidas e
reconhecidas socialmente (CIAMPA, 1989).
No entanto, será a qualidade do valor atribuído por esses grupos que darão
forma e sentido à figura desse indivíduo. Se em sua socialização se vê como bom
filho, bom aluno, bom amigo, etc., por esses reforçadores terá maior propensão em
manter e reproduzir esses papeis adquiridos (CIAMPA, 1989).
Assim também como o seu inverso é verdadeiro. Os papeis sociais que o sujeito
representa podem ser validados pela reprodução de sua atuação, ou, a qualquer
momento, rejeitados e negados pela falta de reciprocidade de seus predicados
(CIAMPA, 1989).
Nesse sentido, mais uma vez se confirma que é possível ao indivíduo romper
com essa teia posta pela sociedade, que o condiciona e retira sua liberdade de
escolha no intuito de forjar o controle e manutenção da sociedade.
Para Lane (2006), contrariando a socialização que cristalizam os papeis sociais
à custa da reprodução de ideologias que se formam no exterior, o sujeito possui
alternativas para quebrar esses ditames sociais que se tornam endógenos, através da
compreensão desse ciclo ideológico que visa naturalizar os comportamentos para a
submissão de suas regras e normas.

Devemos considerar também o reverso da moeda. Falamos em


dominação, autoridade, liderança como se, conscientemente,
uns quisessem dominar outros; porém, o que de fato ocorre é
que os dominados têm como necessário ter alguém que tome as
decisões, que pense por eles, em outras palavras, é mais fácil
para eles acompanhar os que pensam, os que tomam a
iniciativa, do que assumir a responsabilidade das decisões e da
própria participação (LANE, 2006, p.54).

Contudo sabe-se que essa é uma escolha difícil, pois corresponde a um


processo de formação subjetiva a nível inconsciente, da qual o sujeito se vê
128

intrinsicamente tolhido por estar correlacionado não apenas com as suas


necessidades, como, por vezes, muito mais com as expectativas do imaginário social
que direciona em grande parte as suas ações (LANE, 2006).
Essas expectativas dos grupos sociais suscitadas pelo imaginário social são
fomentadas no bojo do senso-comum, através de mecanismos psíquicos que
reestruturam a linguagem e conceitos, reciclando-os para que possam circular
normalmente nos círculos de conversas informais, sem causar estranheza ou repúdio
aos membros da comunidade (MOSCOVI, 2000).
Dessa forma, as representações sociais provem do entrelaçamento de seus
significados particulares com as ações individuais da população junto ao senso-
comum, que as interpreta e molda-as para o entendimento particular do sujeito
(MOSCOVI, 2000).
A partir do senso-comum muitas ideias se propagam como naturais e
universais, pois foram antes decodificados para uma linguagem simples, que possa
ser aceita na compreensão do sujeito, mesmo sendo complexa, sem causar-lhe
grandes modificações em suas ações e no seu cotidiano. Assim, é na roda de bate-
papo que muitos incorporam conceitos sem perceber, habituando-se a eles como se
fossem naturais em seus costumes (MOSCOVI, 2000).
Com isso, é possível pela exploração midiática que os conceitos ideologizados
sejam partilhados e aceitos pelo senso-comum em suas representações sociais,
condicionando os comportamentos em seus papeis cristalizados (LANE, 2006).
Entretanto, além desse meio de exploração conhecida, por essa lógica surge
outra questão a qual novamente vemos a possibilidade de intervir nesse processo
cíclico e reverter esse esquema que parte exógena para se formar endogenamente.
A partir dessa visão sistêmica pode-se descontruir valores ideologizados
aceitos naturalmente, intervindo mais uma vez de fora para se alcançar dentro, numa
compreensão de seus reais significados e funções para a economia psíquica do
sujeito (MOSCOVICI, 2000).
Atualmente percebe-se que essa prática se torna urgente e necessária diante
do estilo de vida contemporâneo. As instituições sociais deixaram de suprir a
segurança primordial para a construção das identidades, o que contribuiu para um
sentimento de insegurança e medo na população (BAUMAN, 2005).
129

Por trás do fenômeno social da globalização, a tecnologia com sua navegação


entre as conexões rápidas e simultâneas, esconde outro fenômeno social: o
adoecimento psíquico da sociedade. Cada vez mais as pessoas se mostram ansiosas
em preencher o espaço que existia antes com seus grupos sociais, porém inseguras
de serem excluídas dessas novas relações, que demonstram com sua efemeridade e
superficialidade, ser condizente com o receio da sociedade líquido-moderna pelo
abandono (BAUMAN, 2005).
Pelo ideal de livre escolha o amor também se tornou líquido na sociedade pós-
moderna, assim como as demais relações sociais. Dessa forma, a
contemporaneidade se caracteriza por diversas ambivalências, e uma delas é a luta
do indivíduo para manter sua liberdade, contudo ela vem acompanhada de
responsabilidades, coisa que o homem moderno anseia desesperadamente se
despojar. Compromissos afetivos são vínculos que o amarra e o impede de seguir
livre para escolher por novas oportunidades que surgem instantaneamente ao mesmo
tempo que passam velozmente diante dos seus olhos (BAUMAN, 2005).
Diante de tantas novidades, tendo que se multiplicar, inventar e reinventar em
novos papeis e identidades, o que o homem contemporâneo receia é também ser
descartado como qualquer produto de consumo após todo o sacrifício para formar e
manter sua identidade diante da sociedade (BAUMAN, 2005).
Nesse sentido Jung (2008) vislumbra uma alternativa suscitada pela psique.
Para assegurar sua identidade o sujeito se identifica com sua persona, ajustando seu
ego ao contexto social, porém em detrimento de seu equilíbrio psíquico, tendo uma
vida externa ajustada com o social, porém uma vida íntima diferente, particular e alheia
ao seu mundo externo.

A persona é um complicado sistema de relação entre a


consciência individual e a sociedade: é uma espera de máscara
destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre
os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do
indivíduo [...] A sociedade espera e tem que esperar de todo
indivíduo o melhor desempenho possível da tarefa a ele
conferida; assim um sacerdote não só deve, objetivamente,
executar as funções do seu cargo, como também desempenhá-
las, sem vacilar a qualquer hora e em todas as circunstâncias.
Esta exigência da sociedade é uma espécie de garantia: cada
um deve ocupar o lugar que lhe corresponde, um como um
sapateiro, outro como poeta. Não se espera que alguém seja
ambas as coisas. Nem é aconselhável que o seja, pois seria
130

estranho demais para os outros. Tal indivíduo por ser “diferente”,


suscitaria a desconfiança (JUNG, 2008, p.79).

No entanto, atualmente a condição de uma identidade fixa e sólida não é mais


condizente com o momento fluido que vivemos. Não estar disponível as novas
oportunidades na área profissional, social e afetiva gera um desconforto ao indivíduo
livre, limitando suas escolhas tão duramente conquistadas (BAUMAN, 2005).
Sem a proteção do Estado-nação ou de uma cultura que assegure ao indivíduo
uma identidade forte, o ego flutua inseguro, conseguindo, por vezes, aportar em terras
inóspitas que exigem sua completa rendição, talvez como grupo-submetido,
ajustando-se ao inconsciente coletivo de sua persona e acolhendo passivamente as
normas e regras instituídas, ou, sua defesa como grupo-sujeito, intervindo
conscientemente nos ditames sociais, mesmo a custo de ser “diferente”.
Para Jung (2015) isso determina o jogo de adaptação da natureza determinada
e dirigida dos conteúdos da consciência, que lutam contra o inconsciente em sua
função complementar. Nesse sentido, os processos psíquicos que subjazem na
consciência determinam sua tenacidade aos objetivos do ego, levando muitos
indivíduos a conquista de suas intenções. Dessa forma, abrindo mão de conteúdos
inconscientes o indivíduo se coloca à disposição do ego em seus processos psíquicos
de persistência e regularidade.

Estas qualidades são absolutamente necessárias para todas as


competências, desde o funcionário mais altamente colocado até
o médico, o engenheiro e mesmo o simples “boia-fria”. A
ausência de valor social cresce, em geral, à medida que estas
qualidades são anuladas pelo inconsciente, mas há também
exceções, como, por exemplo, as pessoas dotadas de
qualidades criativas. A vantagem que tais pessoas gozam
consistem precisamente na permeabilidade do muro divisório
entre a consciência e o inconsciente. Mas para aquelas
organizações sociais que exigem justamente regularidade e
fidedignidade, essas pessoas excepcionais quase sempre
pouco valor representam (JUNG, 2015, p.65).

Jung (2000) compara a vida psíquica ao ciclo do sol em quatro etapas. A


primeira e segunda etapa seria equivalente a infância e juventude, em que o indivíduo
percorre sua jornada exuberante, irradiando sua luz externamente com o objetivo de
alcançar o topo mais alto, cobrindo a todos com seus raios de luz, o que equivale ao
exercício desprendido pelo individuo a nível social, familiar, profissional, assim em
131

diante. Já a partir do seu cume ao atingir o meio-dia, seria correspondente a terceira


e quarta etapa equivalente a meia-idade e velhice, em que ele passa a reverter sua
luz para dentro de si, recolhendo inversamente a luz que seriam todos os valores e
ideais adquiridos pela manhã, declinando-se, diminuindo de intensidade e calor, até
chegar ao cair da noite, ao fim da vida.
Com isso, surge novamente a possiblidade do sujeito intervir conscientemente
em suas escolhas e relações sociais, dessa vez como numa higiene psíquica de
dentro para fora. Para isso, por este olhar, seria imprescindível que o homem se
preparasse para a vida olhando para dentro de si e se ocupando dos valores
construídos e apreendidos da infância até a idade adulta.

Quando moro numa casa que eu sei que vai desabar sobre a
minha cabeça nos próximos dez dias, todas as minhas funções
vitais são afetadas por estes pensamentos; mas se me sinto
seguro, posso viver nela de maneira normal e confortável
(JUNG, 2000, p.168).

Costumes e valores adquiridos socialmente deveriam ser analisados na vida


adulta, e, se necessário, retirado as máscaras sociais da persona para se confrontar
com seu arquétipo da sombra, que, para muitos, pode estar associado as fraquezas
que o condiciona e submete à alienação social. Isso possibilitaria que seu entardecer
não fosse constituído por bases insólitas, ilusórias ou fugazes, atualmente tão
escancaradamente ofertadas na sociedade líquido-moderna, causando as
inseguranças e os temores percebidos na vida do homem contemporâneo.
132

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho possui um significado forte para a vida do ser humano, pois através da
atividade profissional o homem passa a ser economicamente independente, tendo
subsídios para se desenvolver e prosseguir com sua vida. Esse valor atribuído ao
trabalho possui um significado maior que o seu valor econômico, pois a independência
concedida pelo trabalho confere ao homem também poder de ação, dando-lhe
empoderamento sobre a sua vida para agir conforme as suas necessidades.
Porém, nas sociedades capitalistas o valor do trabalho se restringe apenas ao
seu valor econômico, sobressaindo-se acima dos outros valores advindos do trabalho
que influenciam sobremaneira seu mundo íntimo. Cresce o consumo junto com o
trabalho ao lado de mecanismos sociais e políticos que empobrecem o poder de
criticidade e escolha do homem, passando a pensar de forma alienada sem se dar
conta do engessamento social que o cativa.
As ideologias a que é exposto desde seu nascimento o prende numa rede de
pré-conceitos idealizados que subvertem os valores essenciais para o seu
desenvolvimento psíquico-emocional. Por vezes, a realidade passa a conviver em
segundo plano, encoberta pelas inúmeras informações apreendidas subjetivamente
em sua socialização que reforçam um sistema de controle social mantido pelo
alheamento de seu comportamento.
Com isso, atrelado a essa rede distorcida do conceito de trabalho, percebe-se
o quanto é difícil para o homem compreender a função primordial dessa atividade
essencial ao seu desenvolvimento, principalmente nos tempos atuais em que o
consumo desenfreado do capitalismo acirra a rivalidade e exacerba o individualismo,
ao contrário de promover a cooperação entre os indivíduos que o levaria a desenvolver
processos externos menos incisivo ao seu mundo interno, pois ao cooperar com
outros isso poderia se reverter numa reflexão e discussão das necessidades coletivas,
levando o sujeito a um entendimento mais próximo de sua realidade externa e interna.
Há ainda que se pensar nos estímulos hedonistas que a sociedade de consumo
produz, no qual muitos se frustram em não encontrar no exterior as respostas que
deveriam ser procuradas em seu íntimo. Nota-se com isso um aumento homérico de
pessoas insatisfeitas, sensíveis e irritadas com o meio, buscando cada vez mais o
133

isolamento no menor esforço de suas ações, evitando assim o contato com essa
realidade imperfeita e frustrante.
Centrado no individualismo o homem se engessa em seus papeis sociais,
alheio aos mecanismos psíquicos tão caros para a sua vida emocional, que o
condiciona ou o impulsiona a atitudes irrefletidas. Essa cristalização de papeis fica
mais acentuada nos tempos atuais, em que vivemos numa sociedade que
supervaloriza o consumo de produtos prontos e perfeitos, sendo cada vez melhor o
próximo do que o anterior, sem dar chance de apreciarmos ou corrigirmos seu
antecessor.
Por esses fenômenos é possível pensar na correlação com a forma do homem
manter-se passivo diante de muitas dominações do sistema social, submetido e
dominado por ditames e regras sociais sem vontade de romper com essa rede que o
engessa, pois para sair desse entrelaçamento é necessário resistência para lutar
contra o domínio de suas fraquezas, virtudes que na atualidade não são promovidas
ou enaltecidas pelos interesses da sociedade de consumo.
Assim, o antigo torna-se rapidamente velho, inútil e descartável. As identidades
que eram certas e seguras na modernidade, passam a ser incertas, necessitando
serem recicladas ou repostas por novas e mais dinâmicas. Isso também produz no
indivíduo um senso de insegurança pelo temor de não se encaixar em um novo papel
social, e, com isso, também ser excluído e descartado como os produtos que
consome.
A certeza da qual muitos foram educados antigamente, como, por exemplo, de
que a identidade profissional provinha da durabilidade do cargo e do tempo de serviço,
hoje são quimeras, mal vistas pelo mundo corporativo que apostam no acumulo de
conhecimento rápido e na instantaneidade da adaptação de várias funções.
Essa contradição vivida pode gerar conflitos e angústias em muitos
trabalhadores, que ao preferir uma colocação formal de trabalho, talvez, garantam
uma estabilidade não só profissional, mas também psíquica, já que por meio deste
papel social é possível ao indivíduo manter-se seguro com sua persona, identificado
com seu ego e submetido ao social em benefício da inclusão que esta identificação
aparentemente garante com o seu grupo. Ao contrário de um trabalho informal que os
colocaria na margem não apenas social, mas, talvez, também de sua psique ao
aproxima-lo mais do inconsciente coletivo, descompensado pelo consciente com a
134

perda de sua identidade social, o que lhe causaria um desequilíbrio emocional


profundo.
Dessa forma, atualmente na contemporaneidade nota-se a urgência de
encontrar novos métodos e técnicas que contemplem todas as atividades humanas,
para auxiliar o homem a reencontrar seu equilíbrio psíquico tão fragilmente exposto
em todos os âmbitos sociais, diante da polarização dos valores e conceitos oriundos
do conflito gerado entre a nova Era digital e a individualidade da modernidade.
Por esse olhar, considerando tanto o mundo íntimo do universo individual do
homem quanto o coletivo da vivência em sociedade, se faz imprescindível ao indivíduo
buscar novos mecanismos internos para que possa sair de preceitos sólidos e
douradores para novos arranjos mais flexíveis e voláteis, que perfazem atualmente
todos os âmbitos da vida contemporânea, principalmente do trabalho.
Assim como no mito da caverna de Platão, acredita-se que o conhecimento
sobre o funcionamento da vida social, retirando o véu de ideologias que sempre foram
tão minuciosamente articuladas e inculcadas na formação da identidade do sujeito,
possa levar o homem a compreensão de suas atitudes no micro, ressignificando
valores arraigados em seu inconsciente que possam imobilizar suas ações.
Contudo, essa prática externa para muitos talvez não seja suficiente ao seu
bem-estar psíquico. Junto a este conhecimento, atualmente pela demanda mental que
gera maiores adoecimentos psíquicos ao homem na pós-modernidade, faz-se
necessária uma higiene de dentro de sua psique para fora no coletivo, harmonizando
arquétipos do inconsciente coletivo em entendimento a um comportamento mais
ajustado com suas necessidades intimas e sociais de seu consciente.
Entende-se que os estudos e discussão sobre o tema proposto são
inesgotáveis, já que a condição humana é mutante, não cabendo estagnação diante
de teorias e conceitos deterministas.
Porém, acredita-se que diante da cristalização de papeis sociais que engessa
a ação do sujeito em decorrência de preceitos ideologizados, por estes apontamentos
é possível fornecer ao homem um norte propício de seu caminho a seguir na vida, não
menos indolor, porém mais seguro a sua economia psíquica rumo ao seu
desenvolvimento integral, dentro do macrossistema do nosso pequeno sistema solar
chamado Terra, que o trabalho lhe oferta.
135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, M. L. A; MARTINS, M. H. P. Filosofando introdução à filosofia. São Paulo:


Moderna, 1993.
ARIES, P. Da família medieval à família moderna. In: História social da criança e da
família. Ed. LTC, 2006, p.225-271.
BAREMBLITT, G. O conceito de grupo na obra de Guattari e Deleuze. In: Grupos
teoria e técnica. 2º. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
BAUMAN, Z. Vida líquida. São Paulo: Zahar, 2009.
BAUMAN, Z. Identidade. São Paulo: Zahar, 2005.
BOCK. A, M, B; FURTADO. O; TEIXEIRA. M, L, T. Psicologias: uma introdução ao
estudo da Psicologia. 13.ed. reform. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
CARPIGIANI, B. Psicologia das raízes aos movimentos contemporâneos. São Paulo:
Cengage Learning, 2014.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
CIAMPA, A. C. Identidade. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: o
homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.58-77.
CODO, W. O fazer e a consciência. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia
Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.48-57.
_________Relações de trabalho e transformação social. In: LANE, S.T.M., CODO, W.
(Orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense,
1989, p.136-151.
CORTELLA, M.S. Educação, Escola e docência. Novos tempos, novas atitudes. São
Paulo: Cortez, 2014.
DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo:
Cartaz - Oborê, 1992.
ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Ed.
eletrônica: Ed.Ridendo Castigat Mores, 1999.
GARRETT, R. O. S; SILVEIRA, C. H. Noções de higiene ocupacional e segurança do
trabalho. Disponível em:
{https://www.unifei.edu.br/files/arquivos/APOSTILA_Nocoes_de_Higiene_Ocupacion
al_e_Seguranca_do_Trabalho.pdf}. Acesso em: 12/05/2016.
136

GIANCATERINO, R. Escola, professor e aluno: os participantes do processo


educacional. São Paulo: Madras, 2007, p. 63-135.
GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2006.
GOUVEIA, A. J. A escola, objeto de controvérsia. IN: PATTO, M. H. S. (Org.).
Introdução a Psicologia Escolar. 2ª. Ed. São Paulo: T. A Queiroz, 1993, p.17-23.
HERMISDORFF, J. E. T. R. O trabalho humano, história do capitalismo e economia
solidária. Disponível em: { http://www.intecoop.unifei.edu.br/cartilha.pdf}. Acesso em:
09/05/2016.
IBGE. PME – Indicadores IBGE Fevereiro/2016. Disponível em:
{ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Mensal_de_Emprego/fascicu
lo_indicadores_ibge/2016/pme_201602pubCompleta.pdf}. Acesso em: 16/05/2016.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 5º. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
__________ O eu e o inconsciente. 21º. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
__________ Espiritualidade e transcendência. Petrópolis: Vozes, 2015.
LANE, S. T. M. A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a
Psicologia. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: o homem em
movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.10-19.
____________ Consciência/alienação: a ideologia ao nível individual. In: LANE,
S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1989, p.40-47.
____________ Linguagem, pensamento e representações Sociais. In: LANE, S.T.M.,
CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1989, p.32-39.
____________ O processo grupal. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia
Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.78-98.
LANE, S.T.M. O que é Psicologia Social. Coleção primeiros passos, 39. São Paulo:
Brasiliense, 2006.
LEITE, D. M. Educação e relações interpessoais. In: PATTO, M. H. S. (Org.).
Introdução a Psicologia Escolar. 2ª. Ed. São Paulo: T. A Queiroz, 1993, p. 234 - 257.
LIBÂNEO, J. C. Psicologia educacional: uma visão crítica. In: LANE, S.T.M., CODO,
W. (Orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense,
1989, p.154-180.
137

MARX, K. O capital. Crítica da economia política. Livro I, vol.I, tomo I. Círculo do Livro
Ltda. São Paulo: Ed.Nova Cultural, 1996, p.161-315.
MIRANDA, M. G. O processo de socialização na escola: a evolução da condição social
da criança. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: o homem em
movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.123-135.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 2000.
MOSÉ, V. A escola e a fragmentação da vida. In: MOSÉ, V. (Org.). A escola e os
desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
REIS, J. R. T. Família, emoção e ideologia. In: LANE, S.T.M., CODO, W. (Orgs.).
Psicologia Social: o homem em movimento. 8ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.99-
124.
VAITSMAN, J. Flexíveis e plurais – identidade, casamento e família em circunstâncias
pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.27-74.
VEJA.COM. Trabalho, torturas e outras lutas: viva o Primeiro de Maio!. Disponível em:
{http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/curiosidades-etimologicas/trabalho-
tortura-e-outras-lutas-viva-o-primeiro-de-maio/}. Acesso em: 15/05/2016.

Vous aimerez peut-être aussi