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PERROT, Philippe. O valor das aparências. In: ______.

O trabalho das aparências: o corpo


feminino (séculos XVIII e XIX). Paris: Éditions du Seuil, 1984.
Livre tradução: Renata Leahy (pala discussão no Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura - UFRB)

A extrema sociabilidade do século XVIII é há muito tempo comprovada como uma feliz e
evidente necessidade. “Nós somos organizados para viver em sociedade como as perdizes para
viver em companhia”, declarava Saint-Lambert. Operando sobre o registro esperado do “espírito” e
pela troca ritualizada dos signos de cortesia, a comunicação encontrava poucos obstáculos. Sob o
esmalte brilhante das conveniências, não se procurava a alma “secreta” da personalidade
“verdadeira”. O público permanecia impermeável ao privado. Certamente convencionais, essas
relações sociais não parecem hoje “fictícias” e “obrigatórias” senão ao olhar de uma
“espontaneidade” ou de uma “autenticidade” do sentimento que ignorávamos então. Desde que não
persigamos compulsivamente a veracidade do “eu”, o outro não é um mistério para ninguém, e a
relação se estabelece, suave ou lúdica, sem as complacências da expressão efusiva ou a seriedade da
confissão.
De fato, é com o fim do século, na onda do sentimentalismo pré-romântico, que emerge com
força uma nova percepção de si e do outro, uma honradez da singularidade individual, e, com ela,
uma consciência infeliz da separação das consciências pela opacidade das aparências. Se estas
continuam tradicionalmente criticadas pelo sermão ou o teatro cômico como expressão de um
malefício, de uma vaidade socialmente ou sexualmente deslocada, os descobrimos também, e desta
vez dolorosamente, como a expressão de uma impotência em traduzir o sentimento sincero.
“Como seria agradável viver entre nós, se a aparência fosse sempre a imagem das
disposições do coração”, escreveu Rousseau, primeiro espeleologista {estudo das cavernas e dos
organismos que vivem dentro delas} moderno desse abismo separando o ser e o parecer, e
nostálgico inveterado de uma transparência inicial. Pois na origem da humanidade (como na de toda
vida humana), “antes que a arte tivesse forjado nossas maneiras e aprendido com nossas paixões a
falar um idioma pronto, nossos costumes eram rústicos, mas naturais; e a diferença dos processos
anunciava à primeira vista a diferença das características. […] os homens encontravam sua
segurança na facilidade de se penetrar reciprocamente, e esta vantagem, a qual nós não sentimos
mais o preço, os poupava bem os vícios”. As aparências emanavam das consciências e participavam
em sintonia. É somente no curso da entrada em civilização que “cada um começa a observar os
outros e querer ser observado ele mesmo”; é somente na “queda” progressiva da natureza frente a
sociedade que “a estima pública teve um preço”. No momento em que a inocência renunciou, se
declarava a guerra das máscaras: “Foi preciso em seu benefício se mostrar outro que aquele que se
era efetivamente. Ser e parecer tornaram-se duas coisas bem diferentes e dessa distinção saíram o
esplendor imponente, o truque enganador e todos os vícios referentes ao cortejo.
A narrativa “histórica” dessa intrusão do fictício em um estado da natureza conhecido como
um paraíso perdido nos importa aqui por seus efeitos históricos: suas ressonâncias sociais, suas
traduções políticas. Assim, como demonstrador da dialética das aparências e do espetáculo,
Rousseau desenvolve um debate crucial e já apaixonado sobre o luxo e o princípio da igualdade.
Aos olhos da burguesia ascendente, com efeito, o escândalo da desigualdade reside, em primeiro
lugar, em seu sintoma mais provocante: a despesa suntuária; essa maneira de se atar a glória e a
honra pelo desperdício, esse deboche teatral de bens e de energias, esse desprezo exibicionista da
economia e da acumulação que desconsideram o interesse comum, o investimento produtivo e toda
racionalidade econômica. Tal como Mandeville na Fábula das Abelhas, alguns autores,
naturalmente, defendem o luxo como um “vício privado” convertido em “benefício público”, como
um motor da vida econômica, como um estímulo à produção e ao comércio. Dever-se-ia, contudo,
“se emburguesar”, tornar-se sóbrio, medido, decente, privado, útil, transformado em “facilidade”,
ou seja, em conforto. Não mais reservado a uma pequeno quantidade de pessoas, em signo
ostentatório de privilégio, mas largamente difundido, em elemento discreto de bem-estar. Condillac,
Diderot, Helvétius, Beccaria e outros distinguirão, deste modo, o “luxo de magnificência” do “luxo
de comodidade”. Mas com Rousseau, em nome da simplicidade natural e da virtude primitiva,
“tudo é fonte de mal, para além do necessário físico”. E esse mal, nós o vimos, procede bem mais
profundamente da mentira e da ilusão. “Mais o interior se corrompe e mais o exterior se compõe”:
“O homem do mundo é inteiramente em sua máscara, o que ele é não é nada, o que ele parece é
tudo para ele.” Também a vaidade, que engendra o luxo, engendra sobretudo as boas maneiras, que
destroem a transparência natural e a confiança no outro. “As suspeitas, os sombreamentos, os
receios, a frieza, a reserva, o ódio, a traição se esconderão sem cessar sobre esse véu uniforme e
traiçoeiro […]. Não se ousa mais parecer o que se é […]. Jamais se saberá bem, então, com quem se
negociou.” Jean-Jaques se lança a céu aberto. Mas se oferecendo a todos os olhares, divulgando sua
alma, “colocando seu coração a nu”, buscando dizer sua verdade, ele não será melhor compreendido
por tudo isso, nem mesmo reconhecido. É a experiência trágica do sentido dado aos gestos e às
palavras, que tão logo expressos não pertencem mais a seu autor. O que ele faz, o que ele sente, o
que ele pensa será interpretado apesar dele, portanto contra ele. O que era para ele evidência
imediata, o retorna irreconhecível e falso. A transparência não é suficiente para se encontrar intacto
e verdadeiro na observação e na consciência de outrem. Será a obra das Confissões, que são antes
de mais nada, como escreveu Jean Starobinski, uma tentativa de retificação do erro dos outros, e
não a busca de um ‘tempo perdido’”. Intus et in cute, “interiormente e sob a pele”, é usado em
epígrafe do primeiro livro, mas essa prioridade do dentro sobre o fora só importa na medida em que
este dentro se fará ouvido e compreendido de fora. Como grande afirmador da autenticidade
individual, Rousseau exterioriza suas disposições afetivas, suas impulsões pessoais, através de uma
aparência que ele não cessa de trabalhar para torná-la mais clara, mais ajustada ao que ele pensa ser
e sentir. Às testemunhas de sua verdade íntima, ele gostaria ainda que ela apareça como ele a vê,
que ela transpareça em transparência. Daí uma atitude que ele prefigura exemplarmente, um
comportamento que se multiplica e que vai agora prevalecer: que se queira ou não manifestar seus
sentimentos interiores, são eles que contam doravante no estabelecimento de uma relação onde se
deve ser ou parecer “sincero”.

***
Mas assim que a aparência deixa de se hastear em máscara evidente, estritamente definida
por uma função e exigida por um papel, ela se torna um enigma a decifrar. Não é mais um corpo-
semáforo, às mensagens simples, visíveis de longe e visíveis a todos, que lemos para conhecer uma
identidade social; é um corpo-mosaico encrespado, saturado de pequenos hieroglifos que
deciframos para conhecer uma personalidade individual. Um texto se imprimindo à flor da pele ou
se incrustando na ossadura, um texto escrito pela vida, o hábito, a inclinação, a sensação, a emoção,
um texto onde o sentido prolifera, mas onde o verdadeiro e o falso se entrelaçam. Pois o dever da
autenticidade, impossível aliás, traz também seu simulacro: o segredo revelado frequentemente é
somente um falso segredo, um truque hábil, uma máscara invisível, fazendo valer um personagem
de empréstimo. Ao resto apontam novas suspeitas: a simplicidade fictícia não esconde um
acumulado de afetação? “Veja esta ‘linda mulher’, escreveu o abade Coyer: […] ela não tem senão
um avermelhado e pouco de branco, ela não possui nem mesmo negro em suas sobrancelhas nem
um vermelho em seus lábios […]. Nossa Bela é tanto mais mascarada que ela o parece menos.”
De qualquer forma, como tradução do ser – tradução oficialmente franca embora
frequentemente falha –, medimos a intensidade da atenção dada ao parecer. O modo mesmo de
abandonar suas “poses” ou de refinar sua colocação revela como negativa a importância que lhe é
concedida. O sobre-investimento psíquico se opera em proporção a esse sub-consumo ostentatório.
Abramos novamente as Confissões, quando Jean-Jacques “toma o hábito” contra “o mundo”: “Eu
comecei minha reforma por meu adorno, disse ele; eu deixei a cobertura dourada e as meias
brancas, eu peguei uma peruca redonda, eu encostei a espada, eu vendi meu relógio […].” O gesto é
grave, enfático, pleno de uma “autoconsciência” traindo uma preocupação ansiosa de tudo aquilo
que se refere à sua “imagem”. Concessão mínima às convenções do século: a peruca; mas uma
peruca redonda que anuncia, porque implica, o banimento do acessório parasita ou divertido. A
vontade de simplicidade se quer aqui verdade expressiva.
Limpar a vaidade, deixar se abrir a via leva ao ser, o postulado da correspondência entre o
“moral” e o “físico” o exige imperiosamente. Com Diderot, Rousseau é, aliás, um dos raros
escritores “fisionomistas” do século XVIII. Ele sabe observar, descrever e sugerir para muito além
do estereótipo. Seja com “certas perturbações da alma […] se marcam sobre a face, nada é mais
certo”; seja com “a fisionomia anuncia o caráter […]”. E se do corpo de Manon ignorava-se tudo,
em contrapartida, que precisões sobre o de Julie! Em la Nouvelle Héloïse, “o corpo não mente”,
nota justamente Roger Kempf. A virtude é nela encarada, toma carne e relevo. A opulência dos seios
valaisanes {referente à região suíça de Valais} informa a franqueza, a generosidade, uma função
natural plenamente consentida, e se opõe à magreza dos pescoços parisienses, traiçoeiros,
mesquinhos, viris, inaptos a alimentar por causa de libertinagem. Quando Saint-Preux detalha sua
“bela Julie”, que ele reconhece “pelo coração” todos os recantos, nada compete a essa perfeição
obrigatória das heroínas tradicionais. É mesmo pelos defeitos, que falam melhor das qualidades
moreis, que ela se faz amar verdadeiramente. Como Sophie, que “não é bela”, “apenas bonita” e
portanto “ideal”, Julie é tão pouco “feita para pintar” – tão outra –, que seu retrato lisonjeado pelo
pintor desaponta violentamente seu amante: “Ele não fez essa mancha quase imperceptível que você
tem sob o olho direito, nem aquela que está no pescoço do lado esquerdo. […] Ele esqueceu a
pequena cicatriz sob o lábio. Ele fez seus cabelos e suas sobrancelhas da mesma cor, mas não o são:
as sobrancelhas são mais castanhas, e os cabelos mais acinzentados. […] Ele fez a parte inferior do
rosto exatamente oval. Ele não notou esta leve sinuosidade que, separando o queixo das bochechas,
deixa seu contorno menos regular e mais gracioso. Eis os defeitos mais sensíveis. Ele omitiu muitos
outros, e eu o sei com muita má vontade.” O próprio Rousseau, na segunda edição de seu romance,
fica furioso que uma impressão muito fria de Martinet venha a substituir a segunda gravura original
de Gravelot. Não é a beleza alcançada – inumana – que torna desejável, nem mesmo as qualidades
compensatórias da desgraça, é a acreditação da irregularidade, o charme indescritível da
imperfeição como manifestação física da pessoa moral, como forma sublime por sua significação.
Em Diderot igualmente, “para definir a beleza de uma mulher, a moral e o físico se confundem […].
A emoção estética é inseparável […] da emoção moral […].” Sem fala de Greuze, claro, o pintor
dos “movimentos da alma”.
E se é verdade que do sentimento de início simulado, da sinceridade primeiramente fingida,
nós acabamos finalmente por aderir ao jogo, o que era somente entusiasmo torna-se logo uma
maneira de existir. Se o cavaleiro de Jaucourt {erudito francês que contribuiu com artigos para a
Enciclopédia} pudesse se perguntar “como fazer as observações sobre a expressão das paixões em
uma capital […] onde todos os homens acordam em parecer não sentir nada”, nós veremos,
portanto, a emoção se desfazer pouco a pouco de seu incognito. Menos afetadas, menos
discriminatórias, as boas maneiras se justificariam primeiramente pelo sentimento: “[…] o ar, o
tom, o gesto, o sotaque, o olhar […] enriquecem o prazer de estar junto ao invés de o destruir,
escreve L.-S. Mercier. […] Podemos ser desajeitados; andar mal, se sentar mal, assoar torto,
derrubar os bancos, dançar como um filósofo, e mesmo machucar um pequeno cão; mas a bondade
do coração, a afabilidade natural se distinguirão sempre da ignorância da roupa e dos hábitos.”
A extensão do intimismo em detrimento da vida pública, a personalização das relações
sociais em detrimento da consciência social, a afirmação reforçada de sua identidade em detrimento
de um “eu” lúdico e plural, levam ao procurar-se e a se conhecer “em verdade”, a se entregar ao
emitir um código de interações mundanas (a civilidade) para se submeter ao código da revelação
mútua (a sinceridade). O ser “profundo”, a verdade passional (evasiva) e caracterológica
(permanente) tornam-se a busca obsessiva do indivíduo voltar a si. É toda a diferença que se cava
entre o amor barroco dominado pelas exigências da honra e do cerimonial, e o amor sentimental
que vai se impor como um fim em si, escapando à exigência teológica e moral para se fascinar de
proximidade afetiva. É toda diferença marcada entre a conversação, em que o objeto e a finalidade
eram sustentar um tipo de urbanidade brilhante e de socialidade opaca – o sujeito sendo somente
uma maneira de o fazer –, e a discussão, em que o objeto e a finalidade se encontram agora no
próprio sujeito: na interação compreensiva e na busca da verdade. Em uma se instaurava uma
dissociação completa entre o ser e o dizer: “Seus sentimentos não partem de seus corações, suas
luzes não estão no espírito deles, seus discursos não representam seus pensamentos”; em outra,
tenta-se aproximar o ser do dizer: de fazer falar “autenticamente” os sentimentos, com o perigo
pessoal de se encontrar sozinho, estranho e oposto ao mundo (como Rousseau), também com o
perigo coletivo de perturbar toda uma forma de socialização, de deslocar toda uma maneira de
integração comunitária.

***
Nesse contexto narcísico, compreendemos portanto o sucesso obtido pela obra do pastor de
Zurique, Jean-Gaspard Lavater, as considerações infinitas que têm como objeto seu Ensaio sobre a
fisionomia destinada a fazer conhecer o homem e a fazê-lo amar (4 volumes traduzidos do alemão
entre 1781 e 1803), em seguida sua Arte de conhecer os homens pela fisionomia (10 volumes
traduzidos entre 1806 e 1809). Duas obras expondo um vasto sistema: “A ciência, o conhecimento
da relação que liga o exterior ao interior, a superfície visível a qual ela cobre de invisível”; duas
obras de uma imensa ambição, porque elas gostariam de penetrar os segredos da alma humana
decifrando os criptogramas da aparência. Ligados ao movimento do Sturm und Drang {tempestade
e ímpeto; movimento literário romântico alemão que ocorreu entre 1760 a 1780, uma reação ao
racionalismo do Iluminismo do século XVIII e ao clacissismo francês}, o jovem Goethe e o
gravador Chodowiecki darão suas contribuições. Indo aos sinais originais, bem anteriores à palavra,
bem anteriores às convenções, dever-se-ia encontrar o sistema, invariante e universal, da “expressão
falante das superfícies”: “O olho treinado do conhecedor de fisionomia […] compreende a língua
mais bela, mais eloquente, mais justa, mais ingênua, mais expressiva de todas; a língua natural do
espírito e do coração; a língua natural da sabedoria e da virtude.” A figura, a atitude, a corpulência,
o movimento, o som da voz, a textura das fibras, a coloração, os cabelos, os pelos, falam “uma
língua”, com efeito, para quem sabe ouvir, e contam sobre as disposições morais e psicológicas de
cada um, para quem sabe observar. Os olhos verdes são próprios aos coléricos, azuis denotam um
caráter mais doce; os dentes pequenos e curtos indicam uma grande força física, negligenciados
indicam maus sentimentos; o pescoço longo e afilado é aquele dos fleumáticos e dos afeminados,
grosso e grande é aquele dos Hércules e magnânimos; o joelho arqueado revela a astúcia, ossudo,
ele mostra a força e a indecência…

Quanto mais o perfil do olho forma um ângulo obtuso com o perfil da boca, mais indica um homem fraco ou limitado.

A programação funciona à imagem de um léxico, inexorável, totalitário. E a essa fatalidade


do corpo, tornado “transparente” ao olhar instruído que o percorre em todos os sentidos, ninguém
saberia fugir. (Ainda menos os animais ou os vegetais: o anatomista J.-J. Sue só discerniu até os
“vermes intestinais […] uma fisionomia […] decidida”, até nas “árvores frutíferas, […] uma
expressão de bondade”! Tudo como na “teoria dos inchaços”, resultante dos trabalhos craniológicos
e cranioscópicos do médico alemão F.-J. Gall, e que vai permitir, desta vez, detectar os defeitos e as
qualidades do indivíduo pelas protuberâncias de sua caixa craniana, a festa do truque é aqui
excluída, o resultado da mentira é trincado. De uma parte, “há no exterior do homem um grande
número de coisas as quais ele não tem nenhuma possibilidade de carregar a menor dissimulação
[…]. Quem poderá transformar um queixo saliente em um queixo redondo, e um redondo em um
saliente?”; de outra parte, não há nenhuma simulação que não tenha índices estabelecidos, sensíveis,
mesmo assim não os saberíamos determinar pelos signos e palavras”. Assim, ao querer ser um
outro, se cai sobre um osso, ou se trai a si mesmo.

***
“Hiper-realista”, “hiperexpressiva”, a caricatura é lançada evidentemente no avanço
fisionômico; com ele, uma parte da medicina clínica – vendo aí uma possibilidade de aplicar seu
método ao domínio moral – e todos os “egotismos”, self-feelings {sentimentos próprios},
Selbstgefühlen, amores proprii ou outras novas impetuosidades para o estudo da individualidade
física e mental. Portanto, se “o porte da máscara é a essência mesma da civilidade”, a fisionomia,
que põe abaixo as máscaras, não corre o risco de perturbar as relações sociais, incitando somente a
desconfiança geral? Ao contrário, respondem seus defensores, ela clarifica enfim a troca de
sentimentos: “Se você possui uma testa ossuda, longa e alta, não se associe jamais com uma cabeça
que tem quase a circularidade de uma esfera; se possui uma cabeça praticamente redonda como uma
esfera, não se associe jamais com uma testa alta, longa e ossuda”; mas também, “a fisionomia
conduz os corações em direção aos corações; ela só funda as amizades mais duráveis, as mais
sagradas. Nada de base sólida, de vínculo mais indissolúvel pela amizade que a queda de um nariz,
o contorno de uma boca, o olhar de um olho”! Quanto ao resto, o “falso” não é mais essa convenção
admitida explicitamente.
Ao homem “público”, ao homem forte de suas “maneiras”, voltado para o único mundo
exterior, se substitui lentamente o homem “privado”, o homem da interioridade, todo absorvido por
seu “eu”, fechado em sua intimidade. Ao primeiro, os signos claros e claramente de extroversão. Ao
segundo, os signos obscuros e espessos da introversão. Mais recuo, outra vez, nos faz ver a
centralização progressiva do Eu ocidental que, de um Augustin a um Amiel, passa do grande
propósito da Redenção divina à curiosidade do si por si, sem transcendência, de uma cultura
extensiva e centrífuga a uma cultura intensiva e centrípeta. Montaigne, Rousseau, Rétif, Kant,
Fichte, Stendhal são alguns marcos reveladores dessa evolução. Pouco a pouco, o conhecimento de
si não difunde mais o conhecimento de Deus, pouco a pouco, o exame de consciência não serve
mais para se humilhar frente a Ele, pouco a pouco se emancipa a ideia de uma pura experiência
interior, pouco a pouco se exerce certa tirania do sentimento sincero, se experimenta certo deleite da
confidência e do registro íntimo, ou se pratica, através da agenda pessoal, uma maneira de medir a
curva de seus estados da alma. De uma apreensão geral e metafísica do homem mergulhado em uma
vida essencialmente pública, sem existência pessoal sobre a qual fundar a individualidade singular,
chega-se ao “culto do eu”, núcleo não mais “odioso”, mas único, de uma vida essencialmente
privada, objeto de observações minuciosas e apaixonadas.
Por esse movimento, deste modo, vai se aumentar uma nova importância concedida às
aparências, reflexo não mais somente do personagem em sua posição social (se fazer reconhecer),
mas também da pessoa em sua verdade interior (se fazer conhecer). O fim do século XVIII marca
nesse sentido uma mutação decisiva, que Rousseau prefigurou exemplarmente e que a Revolução
não fez senão ratificar, acelerando-a. Sem dúvida, cada cidadão exprimirá ainda uma opinião
pública, e exibirá seu civismo pelas formas e cores tumultuosas que sobressaem sempre ao antigo
regime das aparências: da saia das “tricotadoras”, do barrete tipo frígio {chapéu tipo touca, usado na
cor vermelha por republicanos franceses na tomada da Bastilha em 1789} ou tipo carmagnola dos
“sans-culottes” ao jogo de rosetas mais discretos dos burgueses moderados, a série graduada de
emblemas patrióticos não esconde nem revela o mundo subterrâneo do “eu”; e, aliás, essas
agitações semióticas permanecem eventuais, essas ocorrências vestimentares continuam
passageiras. Mas isso que o advento da burguesia amplifica a longo prazo, o que ela transforma
profundamente, o que ela vai tornar irreversível diz bastante respeito a uma maneira de se ver e de
se conceber, de se apresentar e de se representar. E rompendo com as extravagâncias da classe
tombada, impondo agora à superfície dos corpos o abandono de uma série de usos julgados
perniciosos, sua austeridade espetacular – já formalizada pela anglomania e pela anticomania –
assume, antes de tudo, uma potente significação moral. Não teriam os modos antigos “murchado os
corações, arrombado a sensibilidade, mirrado as almas, desunido as famílias, corrompido os
costumes?” Demasiado brilhantes, demasiado luxuosos para serem honestos, não iriam eles ao
encontro do interesse geral?
Pesados, de cheiro forte, ativos, soníferos, os perfumes serão logo substituídos pelas
essências mais tônicas, como a água de Colônia. O cuidado corporal fará alguns progressos no
sentido de uma higiene menos vaidosa e mais sanitária. Enquanto por volta de 1780 só se
encontrava em Paris uma dezena de estabelecimentos de banho, serão contabilizados trinta e sete
em 1831. “Não se pode negar que desde a Revolução, nota o Dr. P.-J. Marie de Saint-Ursin, o povo
de Paris ganhou muito no aspecto da limpeza, e consequentemente da saúde. Uma pomada rançosa,
um pó sujo não mascaram mais os cabelos belamente pretos, ou de um louro prateado.” À
“salubridade pública”, o imperativo higienista alia uma visibilidade sem equívoco. O pó, “com o
qual duzentos mil indivíduos branqueiam seus cabelos”, escrevia L.-S. Mercier em 1782, e que
“alimentava dez mil desafortunados, […] essa substância extraída da terra” e passada
“infrutiferamente sobre a nuca de tantos desocupados”, o pó, com efeito, desaparece. Brissot, o
primeiro, dá o exemplo, mas ele ainda cobre o elegante Robespierre; e Bonaparte só o abandonará
após sua campanha na Itália. E se “tal aristocrata dispensava em farinha tanto por seus cabelos
quanto por seu estômago”, entre esses dois poderíamos medir. Já as mulheres deixarão o hábito do
pó com aquele das perucas. Os cabelos naturais, livres e reduzidos, substituem os cabelos
“estranhos”, “tomados de empréstimo das cabeças de mortos”.
Não abolida, mas fortemente atenuada, a maquiagem também muda de regime. As
bochechas vermelhas “como uma roda de carruagem”, ou como o sangue do povo vampirizado,
caíram em desuso. E os princípios de uma cosmética apelando ao “natural” não será transgredida
impunemente. Também aquelas que procuram retornar ao excesso de outrora limpam a injúria
naturista: “Mulheres vãs e falsas, o que? esse carmin não é maquiagem? e quando, rivais de Guérin
e Lefebvre, vocês nos oferecem essas pinturas móveis, dignas não do prêmio do talento, mas
daquele da perfídia; quando seus rostos animados de luxúria e de rouge/blush vegetal, oferecem a
galeria do século XVIII, perante o qual empalideceria os de Rembrandt, de Rubens, vocês ousam
evocar a natureza e vocês se vangloriam de seguir essas leis?”

Quanto ao corpo em relevo e em movimento, “as mulheres mais sábias que suas avós”,
reconhece o mesmo autor, “libertam-se dos entraves dos corpos, […] e elas relegaram os paniers
{estrutura em forma de cesta, armada abaixo da saia}; […] seu olho continua a poder desenhar os
contornos de uma silhueta que não há mais entre ele e seus desejos que um muro de linho”. A queda
do corpete de barbatana de baleia – após uma carreira multissecular – reduz, contudo, o campo e a
intensidade do pudor? Ela não reflete mais o momento de um maior domínio da vida impulsiva por
uma interiorização mais forte das normas desse pudor? Momento significativo, em verdade, de um
processo de melhor autocontrole, onde o objeto do desejo se autoriza a uma falha de armadura.
“Deixemos então as mulheres se vestirem como as Aspácias {Aspasie: cortesã de Atenas, famosa
por seu espírito tanto quanto por sua beleza}, exclama Henrion, ou, melhor dizendo, se desvestirem
como as Graças; se elas continuam esposas fiéis, mães gentis, amigas sinceras, elas serão sempre
decentes […].” Modestos, leves e vaporosos, os vestidos em crepe, em linho, em tecido de Jouy
{estampa criada na cidade de Jouy-en-Josas (França), no século XVIII} casam-se e sustentam, em
todo caso, as formas reais. Elas obedecem a linha, de acordo com as condições do tempo. E se a
curva dos rins é apagada por um sapato sem salto e por um tamanho muito aumentado sob os seios,
a parte baixa da panturrilha emerge do longo tecido. Mas tantas liberdades, nos o dissemos, não são
para ofender a decência. De fato, elas se ajustam inicialmente às virtudes da Natureza e da
República. O funcionalismo vestimentar, a racionalidade gestual, o higienismo, promovidos e
consagrados pela Revolução, procedem de seu puritanismo ético e econômico: fazer dos corpos
nivelados e produtivos, guerreiros e fecundos. Ao testemunharem os discursos sobre o projeto de
um “costume nacional”, de onde são proibidos todo traço de investimento de aparição
inconveniente e vaidosa, todo vestígio de obstáculo ao desenvolvimento dos membros e ao trabalho
fácil, toda marca de insalubridade e de incivismo. “Nossas vestes são de ferro, proclama o Dr. B.-C.
Faust em 1792, elas são a invenção dos séculos bárbaros e góticos. É preciso que vocês quebrem
também esses ferros, se vocês querem ser livres e felizes.” Homens e mulheres já se vestem de
maneira mais prática, mas não seria preciso conceber, agora, uma vestimenta exemplar? “Sob o
império dos Déspotas, escreve por sua parte Bienaimé, a classe inútil dos ricos desocupados
determinava a forma a ser dada às vestimentas, […]. Os homens livres não caminharão sobre os
traços desses seres frívolos […].” A lição de Rousseau não é esquecida: “A natureza, ao destinar o
homem à ação e ao trabalho o construiu nessas magníficas proporções que fazem simultaneamente
sua força e sua beleza. […] Mas à medida que a Sociedade envelhece e se corrompe, as ideias
acessórias vêm a se juntar às ideias primitivas e as alteram; o vestuário deixa de ser um puro objeto
de utilidade, ele se torna um objeto de representação; a fantasia o dirige, a arrogância o domina; ele
serve para distinguir a fortuna e as fileiras. São esses os abusos a reformar: ele entra no espírito da
regeneração francesa de trazer o traje a seu objetivo original e aos costumes da igualdade. O
vestuário que é atualmente em uso pelo homem tem inconvenientes muito graves; tudo nele é
atadura e coação; ele não é nem agradável nem cômodo; ele não se presta suficientemente às
pretensões da vaidade. O das mulheres é também contrário tanto à sua saúde quanto à sua graça; ele
é particularmente funesto às mães de família.” Também, “ele, então, não teria grandes vantagens a
substituir, a essa maneira viciosa de se vestir, uma veste nacional, ditada pela razão e aprovada pelo
bom gosto? Sob um vestuário melhor entendido que o nosso, os homens se tornariam mais
saudáveis, mais fortes, mais ágeis, mais apropriados a defenderem sua liberdade; as mulheres
dariam ao Estado crianças melhor constituídas”.
“Salubridade, decência e comodidade” estão nos princípios de diversos projetos –
largamente inspiradas de teorias aeristas {teoria do século XVIII que conferia ao ar um papel
primordial nas infecções e epidemias} –, revestindo os cidadãos da cabeça aos pés. O pé, de resto,
fazendo o objeto de uma real solicitude. Seus dedos, sobretudo, amordaçados, maltratados durante
séculos em sua fortaleza de couro ou de tecido – “triste bota, sapato informe, fivela servil” –, não
deveriam eles recuperar sua liberdade de ação e de expressão? A ideia é cara a Amaury Duval, chefe
do Escritório das ciências e das artes no ministério do Interior: “[…] uma simples sola presa por
alguns laços […] os permitiriam se mexer livremente, acrescentaria à expressão da figura inteira;
pois nos enganaríamos, se pensássemos que nossos pés não têm movimentos variados na alegria, na
dor, em todas as nossas paixões; que nós não temos […] uma fisionomia nos pés como nos
músculos do rosto”.
Antiga “repressão social”, segundo a expressão de Ernest Labrousse, o burguês não
empregará toda sua riqueza para compensar em parecer suas humilhações passadas; ela lhe servirá
mais para justificar um ser sem grandeza certamente, sem transcendência, mas talentoso, capaz de
inventar e de produzir, de investir e de acumular. Sua roupa exprimirá sua contenção: uma moral da
economia, um senso de esforço e de decência, de todo modo, um controle de energias. Mas se, a
esse respeito, a Revolução consagra uma ruptura capital na evolução da silhueta masculina – indo
sempre em direção de mais austeridade –, ela não é senão um parêntese, em contrapartida, à silhueta
feminina, rapidamente reenviada a seus contornos antigos. A mulher só será libertada em um
instante bem curto, com efeito, das prisões vestimentares e de seus tormentos. Pois aqui também a
Revolução é confiscada. Sólida e flexível, como David a pintou, a saúde em popa, longe das dores
de cabeça e dos vapores, respirando, comendo, desafiando a intempérie, ela verá terminar, já com o
Império, esse intermédio de liberdade, essa fase efêmera do aspecto ousado e ostentação de
iniciativas. Eis, desde 1810, sua silhueta recolocada em um “corset”, que retoma gradualmente a
carreira do “corpete de barbatana de baleia”; seus quadris logo reinflados por uma “crinolina”,
depois por uma “tournure” {evolução da crinolina}, que repetirá o “panier” e o “faux-cul” {“falso
fundo”: anquinha}; e seu pé atrofiado de novo, captado pelos sapatos de salto alto… As formas
mudam de nome, não de natureza. O que elas induzem – rigidez e contorções – não faz senão
reconduzir uma imagem da mulher espetacularmente inútil, força de improdutividade total, objeto
de consumo puro. Contudo, não é a posição própria que ela representa, mas a do marido ou do
amante. Perpetuando sozinha a exigente elegância aristocrática, a ela, doravante, ser a fachada
social, o sinal estatutário de um homem que não pode se manifestar ao mundo diretamente,
abertamente, sem transgredir a moral do trabalho, da poupança e da sobriedade. Uma moral que deu
progressivamente fim ao porte da peruca, do pó, das maquiagens e dos perfumes; das bijuterias, das
rendas, dos brocados, das cerdas e das cores. Uma moral que reencerra o corpo em um tecido cada
vez mais sóbrio, em movimentos cada vez mais moderados e em uma anatomia cada vez mais
oculta. Assim, o uniforme aparente das calças substitui a função distintiva dos culottes {calções} e
do jogo de pernas que eles colocavam em cena. Pois “o culotte obriga a saber andar, cumprimentar,
se apresentar” e “a perna […] resume nela toda a atitude do indivíduo; a perna é a iniciativa; é a
educação pela esgrima, fundamental para os gentlemen; é a conservação da forma esbelta e direita,
incompatível com os trabalhos do plebeu”. A calça, por outro lado, puxa a cortina sobre esse indício
físico de superioridade social. De fato, a brandura, a monotonia, a “respeitabilidade” engomada do
envelope masculino e dos comportamentos que ele implica, traduzem uma consciência aguda dos
encargos explosivos de tudo aquilo que assinala o desejo, de tudo aquilo que trai a vergonha, de
tudo aquilo que toca à intimidade do corpo. Consciência aguda pois angustiada, evidentemente,
vulnerável e medrosa: não arriscar jamais a novidade, a elegância singular, a cor viva, a revelação
da epiderme, que colocariam coisas demais em relevo; mas, ao contrário, neutralizar a aparência,
nos dois sentidos do termo, desarmando-a e banalizando-a. A roupa preta, se acordando tão bem,
como Mercier já notava, com “a repugnância em fazer uma longa limpeza pessoal”, roupa burguesa
por excelência, a mais opaca, a mais encouraçada e a mais insignificante das roupas, ilustra, a esse
respeito, essa ludicidade paralítica que corta o ímpeto espontâneo, que adere à força os escrúpulos e
a introspecção tanto quanto exclui “a pose” ou a ênfase do gesto, agora ridículos.
No entanto, sob a indiferenciação crescente, sob o nivelamento generalizado, emerge
furtivamente um outro sistema de diferenças, bem mais sutil e não menos feroz, onde conta agora o
detalhe, sempre mais tênue, mas sempre mais pregnante: o nada que faz tudo. Isso testemunha o
desencadeamento do desejo de “distinção”, articulado a esse fenômeno de “uniformização”. E
Tocqueville salienta: “o limite, a trocar de forma mais que de lugar.” O outro é, aliás, portador de
signos tão mais numerosos e complexos a manejar que eles são melhor decifrados por
programações mais finas. Certamente, em sua maneira de parecer, a burguesia vai cavar
demarcações espetaculares, através do dimorfismo sexual (jamais homens e mulheres serão tão
dessemelhantes) ou na relação público-privado (o como se deve ser rígido e solene do “exterior”, se
opondo ao novo confortável do “interior”). Mas o século XIX abre primeiramente e sobretudo a era
das multidões anônimas onde o indivíduo não existe senão pelo signo particular; a era do plural,
onde o singular não exite senão pelo detalhe “revelador”. Série estatística e sinalização
antropométrica, confecção industrializada e sob medida artística, cemitério coletivo e túmulo
individual, casas estandardizadas e numeradas: incessante vai e vem do “eu”, atirado, dividido entre
as novas exigências da uniformização e da distinção, do conformismo e da personalidade.

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