Vous êtes sur la page 1sur 134

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS.

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA

MIRANICE MOREIRA DA SILVA

ENTRE MÁSCARAS E SERPENTINAS:


Por uma história dos festejos carnavalescos feirenses (1891-1939)

Feira de Santana
2013
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA – UEFS.
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA.

MIRANICE MOREIRA DA SILVA

ENTRE MÁSCARAS E SERPENTINAS:


Por uma história dos festejos carnavalescos feirenses (1891-1939)

Dissertação apresentada ao
Programa de Mestrado em História
Cultura e Poder da Universidade
estadual de Feira de Santana-Ba para a
obtenção do título de Mestre em
História.
Área de concentração História
Cultural.
Orientador: Prof. Dr. Rinaldo
César Nascimento Leite.

Feira de Santana
2013
MIRANICE MOREIRA DA SILVA

ENTRE MÁSCARAS E SERPENTINAS:


Por uma história dos festejos carnavalescos feirenses (1891-1939)

A banca examinadora considera


essa dissertação adequada para a
obtenção do título de Mestre em
História pela Universidade
Estadual de Feira de Santana

Aprovado em:

Banca examinadora

___________________________________
Prof. Dr. Rinaldo Cesar Nascimento Leite (Orientador)
UEFS

____________________________________
Prof. Dr. Milton Araújo Moura.
UFBA

________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira.
UEFS
Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado

Silva, Miranice Moreira da


S581e Entre máscaras e serpentinas: por uma história dos festejos
carnavalescos feirenses (1891-1939) / Miranice Moreira da Silva. – Feira
de Santana, 2013.
134 f.

Orientador: Rinaldo César Nascimento Leite.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Feira de Santana,


Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Poder, 2013.

1. Carnaval – Feira de Santana. 2. Festas populares. I. Leite, Rinaldo


César Nascimento, orient. II. Universidade Estadual de Feira de
Santana. III. Título.

CDU: 394.25(814.22)
Aos meus amores eternos:
Olímpio, Joana e Cleonice. Obrigada por tudo.
AGRADECIMENTOS

Bom, após todas as “sofrências” da pesquisa, dúvidas e medo, chega o momento de


apresentar resultados. Terminei minha dissertação, fiz da melhor forma que pude e hoje sinto
orgulho de minha produção, com suas qualidades e lacunas. Mas ninguém caminha sozinho, e
em minha caminhada encontrei pessoas que a tornaram leve, agradável e feliz. Então
comecemos os trabalhos, a feliz tarefa de agradecer, feliz, mas também traiçoeira, pois posso
cometer a terrível deselegância de não citar alguém importante. Contudo há de convir que as
atividades cerebrais de um mestrando no final de uma dissertação não é lá algo excepcional,
então acredito que estarei perdoada.
Esse trabalho se quer teria começado sem o apoio e a crença de que ele era possível do
meu orientador Rinaldo Leite, que desde o período da graduação me incentivou rumo à
pesquisa. Rinaldo, muito obrigado por toda a dedicação, cuidado e respeito com que sempre
tratou o meu trabalho, mais que um orientador tornou-se um amigo, para mim você é um
exemplo profissional e pessoal.
Sou grata a Ione Sousa pelas conversas divertidas e bastante proveitosas. Muito
obrigada pelas sugestões valiosíssimas. Foi um prazer tê-la como professora e amiga.
Agradeço a UFES, a instituição onde dei meus primeiros passos como historiadora. Encontrei
professores, que sem sombra de dúvidas, serão referências por toda a minha caminhada. Além
dos professores, os funcionários sempre estiveram dispostos a contribuir com a realização
desse trabalho, em especial todos do Mestrado em História, Cultura e Poder. Não posso deixar
de citar os funcionários do Museu Casa do Sertão, sempre muito gentis e prestativos. Sou
grata também a professora Ana Maria e ao professor Milton Moura, por suas leituras atentas e
contribuições para esta pesquisa. E como não citar Diana, que sempre me ajudou quando
precisei.
Agradeço a turma 2011 do Mestrado em História Cultura e Poder. As discussões em
sala foram sempre muito proveitosas, em especial com Anselmo com suas dicas e sugestões e
nossos diálogos, uma bela surpresa. E a Karine Costa, minha querida amiga de todas as horas.
O que dizer amiga das nossas prosas, sempre muito boas? Começamos juntas nessa
caminhada do mestrado, amizade que começou no apagar das luzes da graduação e foi se
fortalecendo com o tempo. Obrigada, Kari, por tudo, por dividir comigo o peso da caminhada
e as alegrias.
Agradeço por ter amigos acima de tudo, eles estiveram sempre ao meu lado para me
ouvir e incentivar nos momentos difíceis: Greice e Jaciara, vocês são muito importantes,
adoro vocês. Daniele, Luciel e Eric, que desde sempre foram incríveis, amigos em todos os
sentidos. Sem vocês não teria sido tão legal e feliz. Aline Aguiar, que sempre me incentivou
na minha pesquisa. Aos meus amigos do trabalho, que além do incentivo, tiveram a
flexibilidade em me ajudar, em especial as “batutinhas friends” que tornaram as minhas
manhãs mais leves e divertidas, obrigada.
E a minha família, razão do meu viver, meu eterno amor. Meu pai e minha mãe,
Olímpio e Joana, mais que pais, meus amigos queridos de todas as horas. Obrigada por
existirem na minha vida e serem meus pilares. E minha irmã, Cleonice. Acho que a melhor
frase que nos resume é: “amizade nossa é coisa tão grande que não sei nem falar, só sei
sentir”. Amo vocês demais. Por último e não menos importante a Deus, que trouxe para
minha vida essas pessoas incríveis.
RESUMO

SILVA, Miranice Moreira da. Entre máscaras e serpentinas: por uma história dos festejos
carnavalescos feirense. 1891-1939. Dissertação (Mestrado). Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia. Universidade Estadual de Feira Santana, Feira de Santana-Ba, 2013.

Os festejos carnavalescos da cidade de Feira de Santana-Ba, entre os anos de 1891 e 1939, são
o foco desse estudo. Trata-se de um trabalho que segue pelo campo da história cultural e
busca compreender as práticas e os significados múltiplos que esse cenário festivo apresenta.
É identificada na cidade a existência do entrudo, do carnaval e da micareta. Este trabalho
considera tais denominações fazem parte de uma festa, que são os folguedos carnavalescos,
pois do ponto de vista prático apresentam elementos similares. Entretanto, quando tratamos
do aspecto dos significados, eles assumem caracteres diferentes, sobretudo entre as disputas
de representação entre o entrudo e o carnaval. Ao longo do trabalho busca-se entender os
conceitos de festa e festas carnavalescas, sob a perspectiva histórica e antropológica;
descrevem-se as práticas, como e quando ocorriam as festas carnavalescas na cidade; analisa-
se como eram significadas as práticas carnavalescas. Percebe-se nessa etapa o caráter
educativo da festa, de como a festa é apropriado como um espaço difusor dos ideais de
civilidade. As principais fontes utilizadas foram os jornais, Folha do Norte, Folha da Feira, O
Progresso e O Arlequim. Além dos jornais, recorreu-se ao livro 31 anos de Micareta de
Helder Alencar, que faz uma espécie de almanaque festivo, e também a Revista Panorama da
Bahia, que fez um número comemorativo de 50 anos de folia, na qual foi construído um
retrospecto das festividades carnavalescas.

Palavras Chaves: Festas – Festas carnavalescas – Feira de Santana.


ABSTRACT

SILVA, Miranice Moreira da. Entre máscaras e serpentinas: por uma história dos festejos
carnavalescos feirense. 1891-1939. Dissertação (Mestrado). Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia. Universidade Estadual de Feira Santana, Feira de Santana-Ba, 2013.

The carnival celebrations in the city of Feira de Santana-BA, between the years 1891 and
1939, are the focus of this study this is a work that follows the field of cultural history, seeks
to understand the practices and the multiple meanings that this scenario festive presents. It
identified the existence of the town entrudo, carnival and micareta. This paper considers such
designations are part of a party that is the carnival amusements, for the practical point of view
have similar elements. However, when dealing with the aspect of meaning, they assume
different characters, especially between representation disputes between the entrudo and the
carnival. Throughout the work seeks to understand the concepts of party and carnival
celebrations, in the historical and anthropological perspective, describes the practice as and
when occurred the carnival celebrations in the city, looks like they were meant practices
carnival. It can be seen at this stage of the educational character party, as the party is an
appropriate space diffusing the ideals of civility. The main sources used are newspapers,
Folha do Norte, Folha da Feira, O Progresso and O Arlequim. In addition to newspapers,
resorts to the book 31 years Micareta Helder Alencar, which makes a sort of almanac festive,
and also the magazine Panorama da Bahia, which has a number commemorating 50 years of
micareta, which makes it a retrospect the festivities carnival.

Keys - Words: Parties - Parties Carnival - Feira de Santana.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO___________________________________________________________10

Capítulo 1: O que é esse carnaval?___________________________________________ 22


1.1. A festa como um objeto histórico ________________________________________ 23
1.2. O carnaval é mutável __________________________________________________ 27
1.3. Festas carnavalescas ___________________________________________________ 30
1.4. As concepções de festas carnavalescas ____________________________________ 33
1.5. O mito da evolução carnavalesca _________________________________________43

Capítulo 2: Os carnavais da cidade ___________________________________________47


2.1. Os carnavais feirenses ___________________________________________________48
2.2. A organização dos folguedos _____________________________________________ 51
2.3. O carnaval dos anos trinta e a suposta “crise” carnavalesca ______________________ 62
2.4. Micareta: outro carnaval (?) _______________________________________________72

Capítulo 3: Carnaval e micareta: a construção dos significados


festivos__________________________________________________________________ 83
3.1. Disputas ideológicas no cenário brasileiro __________________________________ 84
3.2. A construção de significados dos festejos carnavalescos em Feira de Santana______ 88
3.3. Muito além de uma sobreposição ao entrudo_________________________________ 99
3.4. A “criação” da micareta_________________________________________________ 102
3.5. Carnavais: festa da pluralidade _________________________________________ 106
3.6. Os múltiplos significados: trabalho e lazer __________________________________ 115

Considerações finais ______________________________________________________119

Bibliografias_____________________________________________________________123

Fontes__________________________________________________________________128

Anexos _________________________________________________________________130
INTRODUÇÃO

A temática do carnaval apareceu entre os historiadores nas últimas décadas do século


XX dentro da corrente historiográfica da nova História Cultural, movimento este que trouxe
novos objetos à pesquisa histórica. Essa inquietação teve como um ponto decisivo a Escola
do Annales, originada na França em 1929.1 A partir dessa crise de paradigmas, novos
problemas surgiram. A História Cultural nasceu um pouco depois, como um contraponto a
uma das vertentes da Escola dos Annales, que é a História das Mentalidades. Para Chartier,
um dos percussores da vertente Histórica Cultural, as mentalidades contemplavam aspectos
do cotidiano, do âmbito cultural e social, porém caiu na mesma armadilha do universalismo,
que era tratá-los de forma reducionista, ou seja, deixava escapar as especificidades das
relações humanas2.
As discussões sobre os novos problemas ganharam espaço e fomentaram o diálogo
historiográfico. Ciro Flamarion foi um dos autores que buscou compreender esse movimento,
emitindo sua opinião acerca dessa abordagem. Ao opinar sobre as representações, o autor fez
um panorama sobre o pensamento de Chartier e sobre a construção do seu pensamento
histórico. Flamarion3 afirmou que Chartier posicionou-se teoricamente a partir da crítica feita
a Clifford Geertz4, quando afirmou que as formas simbólicas ao serem organizadas e
apropriadas ocultavam as diferenças. E Chartier, ao aproximar a sua interpretação de
Bourdier, especificamente quanto à discussão de habitus, fortaleceu seus ideais. Para
Chartier, o habitus seria o fator que é determinado pelas relações sociais e que ao mesmo
tempo determina as percepções sociais.
Antes dessas inovações históricas, a discussão festiva era bastante explorada pelos
antropólogos. Com o advento da Nova História Cultural, os historiadores ligados a essa
abordagem passaram a observar os festejos enquanto uma possibilidade para pensar o

1
Esse movimento teve como idealizadores Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernanda Braudeu, Georde Buby,
Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. Este último produziu um dos maiores clássicos sobre o carnaval.
O carnaval de Romanes. A revista foi uma inovação no pensamento histórico, que propunha: “Em primeiro
lugar, a substituição da história tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo
lugar, a história de todas as atividades humanas e não apensa história política”. BURKE, Peter. A Escola doa
Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1997. P. 11-12.
2
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
Portugal. Difel. 1990. Esse texto de Chartier é justamente uma tentativa de buscar respostas para a insatisfação
coma frente da história cultural desenvolvida na França nas décadas de 60 e 70.
3
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma opinião sobre as representações sociais. In: CARDOSO, Ciro Famarion;
VAINFAS, Ronaldo. (0rg.). Domínios da História: teoria e metodologia. Rio de Janeiro. Campus, 1997. P. 14.
4
Cf. Burke, a marca deixada pela antropologia através dos trabalhos de Geertz foi importante para a chamada
nova história cultural. BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2005
11

cotidiano e as práticas de determinada sociedade. Isso deve ser pensado sem perder de vista
os conflitos sociais envolvidos nas formas de brincar. Sobre esse aspecto, a história cultural
possibilita pensar a história sob outros ângulos. Trouxe à discussão sujeitos antes não
contemplados pelo estudo da História. Além disso, fez emanar novas abordagens históricas;
permitiu pensar a construção dos significados da cidade e de que forma esses sujeitos a
ocupam, quais as interpretações eles imprimem nesse espaço, que é constantemente
construído e re-significado.5
Essa óptica cultural retoma a ideia dos sujeitos e as suas práticas culturais, porém isso
não significa um abandono dos aspectos econômicos e sociais. Durante muito tempo,
erroneamente a História Cultural foi associada ao abandono das estruturas e de um relativismo
extremo. Sobre essas críticas, Flamarion6 afirmou que na verdade Chartier teria se tornado tão
reducionista quanto o que ele havia criticado, pois teria priorizado as relações culturais como
fatores determinantes das sociedades. O que ocorre é justamente o contrário, no estudo das
práticas culturais as estruturas são levadas em consideração para contextualizar o objeto de
estudo.7
A proposta da História Cultural é voltar o olhar para as especificidades estruturais do
loco da sua pesquisa8. Durante um longo período esta temática foi vista como uma perspectiva
irrelevante. Contudo os aspetos do cotidiano apresentam questões políticas, econômicas e
sociais, não existe ruptura entre esses universos, eles estão imbricados, misturados de tal
forma que a sua separação é inviável. E quando tal prática separatista é efetuada, limita o
âmbito histórico e as possibilidades do objeto de estudo.
Por este motivo, é pertinente uma leitura das “pequenas estruturas”, pequenas no
sentido da busca das especificidades, pois as generalizações na História Cultural correm o
mesmo risco de qualquer análise histórica, que é o da homogeneização, que recai na anti-
história. Isso porque se percebermos as estruturas culturais como uma massa uniforme, perde-
se o sentido da pesquisa, a busca pelo peculiar, pois ao construir uma história
contemplaríamos todas as outras e a pesquisa teria um fim pronto e determinado, restando

5
Sobre festas, ver PRIORE, Mary Del. Festa e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000. A
historiadora, logo na introdução, faz uma espécie de defesa da temática, apontando para as possibilidades
festivas ao afirmar que se trata de: “Expressão teatral de uma organização social, a festa é também fato político,
religioso ou simbólico” p. 10. Afirma ainda que seja uma temática que além da pura descrição dos festejos,
obriga o historiador sobre as abordagens metodológicas para esta análise.
6
FLAMARION, op.cit.
7
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Nesse trabalho Chartier faz a
seguinte caracterização dos estudos de história cultural: “A História Cultural, tais como a entenderam, tem por
principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler” p. 17.
8
Idem, p.17
12

apenas a pura reprodução. Contudo, a história, antes de qualquer coisa, é movimento. Não se
pode perder de vista que as práticas culturais são resultado de ações humanas, de sujeitos
localizados em um tempo e um espaço historicamente construído. E as ações humanas
mudam, se repetem, são significadas re-significadas dentro de um contexto que é próprio de
cada realidade.
A partir de uma observação, Chartier afirmou a partir da percepção das peculiaridades
podem ser compreendidas as relações entre sistemas de crença, valores culturais e
representações, pois a realidade é descontinua e heterogênea9. Isso não significa que as micro
realidades sejam recortado de contextos “maiores”, e que entre elas não existam relações. Pelo
contrário, através desses “close-ups” pode-se pensar essa relação entre as estruturas
“menores” e “maiores”. As festas são características das comunidades, porém o formato e a
dinâmica que ela assume é própria de cada lugar. Embora estabeleça ligações com outras,
mesmo que tratem da mesma festa, os seus significados e suas re-significações são únicos.10
A crítica à História Cultural e principalmente ao modelo de representações consistiu
no fato de que haveria apenas uma inversão da pirâmide. Segundo os críticos, a História
Cultural não teria proposto nada de novo, e sim uma substituição dos fatores econômicos em
prol dos culturais11. Porém essa crítica tornou-se frágil ao passo que os estudos culturais
indicavam para a busca das especificidades. Não foi proposta pelos estudiosos culturais uma
hierarquia, e sim uma análise que possibilitou pensar nas relações e em práticas do cotidiano,
bem como a negação de modelos prontos. Todavia não significa que as especificidades
neguem uma totalidade, há uma ligação entre essas estruturas.
Sob esta perspectiva, o presente trabalho analisa as origens das festas carnavalescas
em Feira de Santana-Ba, no período entre 1891 e 1939. O termo festejos carnavalescos12 é
mais adequado nesse trabalho, pois dentro desse recorte temporal foram identificadas práticas
denominadas de entrudo, carnaval e micareta. A partir da análise desse recorte, objetiva-se

9
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações
10
GINZBURG, C. Olhos de Madeira: Nove Reflexões sobre a Distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001. No capítulo que trata de representação faz uma ressalva sobre isso que o fato de existirem semelhanças
entre as culturas não permite associá-lo de forma indiscriminada, e tratá-las dessa forma é retirar delas o caráter
histórico. p.87.
11
As críticas feitas ao método da história cultural partiram, sobretudo, da escola marxista, afirmando que as
leituras eram subjetivas e que faltava algo que ligasse ao real, uma relação econômica ou social. Além disso, o
marxismo tradicional, ortodoxo, acusava os historiadores da história cultural de superestimar a homogeneidade
cultural. Sobre esse debate ver BURKE, O que é história cultural.
12
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800; tradução Denis Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. Para Burke, festas carnavalescas enfatizam os termos da renovação, comilança,
sexo violência ou inversão. Isso no contexto europeu dos séculos XVI ao XVII. Em Feira de Santana optei por
está denominação, pois elas, o entrudo, o carnaval e a micareta, apresentam práticas semelhantes que as
permeiam, claro que sendo re-significadas, a partir de suas relações.
13

perceber de que forma as re-significações carnavalescas ocorreram e como ocorre a


sobreposição ao entrudo e os conflitos envolvidos na construção da festa. Nesse contexto esse
trabalho analisa as vivências carnavalescas em Feira de Santana. Mesmo identificando
práticas associadas ao entrudo, os jornais não apontaram para a sua caracterização. Essa
modalidade festiva apareceu de forma atrelada ao carnaval, usada para caracterizá-lo e
diferenciá-lo da prática carnavalesca mais antiga.
Algumas explicações quanto ao uso das nomenclaturas são importantes: quanto estiver
fazendo referência à manifestação carnavalesca de forma geral, farei uso do termo festas
carnavalescas ou folguedos carnavalescos. O termo carnaval será utilizado para denominar o
que era identificado como civilizado. Entrudo fará referência às práticas que antecedem ao
carnaval civilizado. A nomenclatura micareta será utilizada para fazer referência aos festejos
que ocorriam após o período da quaresma. Além desses termos, serão utilizadas as separações
entre práticas carnavalescas, usadas para denominar os festejos carnavalescos independente da
temporalidade, e o período carnavalesco que designará os festejos que ocorriam no momento
que antecediam a quaresma.
O carnaval apareceu na cidade de forma mais expressiva em 1891, “sobrepondo” o
entrudo, prática originalmente portuguesa. Posteriormente, o carnaval passou a coexistir com
a micareta em 193713. Apesar de ser forte a ideia de uma sequência festiva e, mais que isso, a
concepção de ruptura, é importante compreender entrudo, carnaval e micareta como um tipo
de festividades similares, dentro de uma condição geral que são as festa carnavalescas.
Essa concepção de diferenciá-la é em grande parte muito mais uma questão de
designar significados do que uma mudança substancial da estrutura da festa. Em uma
mudança de entrudo para o carnaval existe uma modificação de representação; mas no que diz
respeito à alteração do carnaval para a micareta, não ocorreu mudanças substanciais na
estrutura. Ela continuou com os mesmos elementos, porém em uma data diferenciada. Logo,
essas manifestações não representam festas individuais e distintas. Maria Clementina Cunha14
afirma que, durante a maior parte do século XIX, entrudo e carnaval significavam o mesmo
conjunto de brincadeiras e a diferenciação de significado só apareceu no fim do século XIX,
com o advento das idéias civilizadoras e modernista no Brasil.

13
ALENCAR, Hélder. 31 anos de Micareta. Feira de Santana-Ba UEFS, 1968 também afirma que em Feira de
Santana existiam esporadicamente festejos do tipo carnavalescos após a quaresma, a páschoela, ou páscoa
carnavalesca.
14
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval Carioca entre 1880 e
1920. São Paulo: Companhia das Letras. 2001.
14

A festa carnavalesca em Feira de Santana também sofreu o impacto da necessidade de


modernizar-se, sendo caracterizado pela substituição do “bárbaro” entrudo pelo “civilizado”
carnaval. O ideal de civilidade e modernidade não se restringiu apenas aos elementos
modernizadores de higienização, limpeza das ruas e das construções modernas de infra-
estrutura, também tinha como projeto atuar no comportamento e nas práticas cotidianas. O
objetivo era educar as pessoas em um molde considerado mais adequando, que em palavras
do período, significava civilizar.15 Segundo as fontes, sobretudo o Folha do Norte, existia
uma necessidade em relacionar a cidade à imagem de civilizada, com expressões do tipo: “a
Feira, (...) já é uma cidade adestrada e que muito merecidamente goza dos forros de
16
civilidade” . Frases como estas perpassavam as notícias sobre os festejos feirenses, o que
indica que os projetos de civilidade atuaram também no âmbito das festas. Dessa forma os
sujeitos que compunham os festejos carnavalescos estavam imbuídos de intencionalidades,
para além de tais momentos festivos.
Isso pode ser verificado com reportagens de primeira página que associavam o entrudo
às práticas denominadas bárbaras e o carnaval à civilidade e a modernidade. Feira de Santana
apresentou na prática do entrudo uma peculiaridade, pois na maioria dos estudos sobre o tema
o entrudo teria perdido a sua vigência ainda no século XIX. Segundo Louzada,17o entrudo
passou a ser proibido pelas forças polícias na capital do Império, Rio de Janeiro, em 1854 e a
partir de então passou a ser visto como incivilizado e inapropriado. Em Feira de Santana, o
entrudo foi citado pelos jornais enquanto uma prática que ameaçava a modernidade feirense
até o fim da década de 1920. Essa peculiaridade apresentou-se como um contraponto a um
dos projetos e significados construídos sobre os festejos.
A escolha do recorte inicial de um festejo é bastante complexa, pois mesmo que os
historiadores encontrem indícios materiais não podem afirmar que antes daquele momento
não existiam os festejos. Há dois autores que citaram esse marco inicial na cidade de Feira de

15
LEITE, Rinaldo Nascimento. E a Bahia civiliza-se... Ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um
contexto de modernização Urbana – Salvador (1912-1916) dissertação de mestrado. Salvador. UFBA, 1996. O
autor atenta para essa amplitude dos ideais de civilidade e modernidade “Eis, em síntese, as aspirações das elites
com referência à civilização e modernização: 1) atitudes racionalizadas moralizadas e cultas dos indivíduos; 2)
adoção de padrões culturais europeus; 3) reformas que permitissem a implantação de uma nova estética e a
introdução de modernas tecnologias, tais como a abertura de avenidas e o alargamento de ruas”. P.13. No caso
de Feira de Santana, os dois primeiros itens são pertinentes ao tratar das práticas. Porém o terceiro aparece como
um pano de fundo, pois a escolha dos espaços estava atrelada a esses ideais. As festas ocorridas em locais
fechados, as sedes das filarmônicas, eram classificados como adequadas e civilizadas, enquanto os cortejos
perpassavam por ruas largas da cidade a Rua da Direita, atual Conselheiro Franco.
16
Folha do Norte, Feira de Santana, Janeiro de 1910, nº 20, ANO II.
17
LOUZADA, Wilson (org.) Antologia de Carnaval. Cruzeiro, 1945. p, 11.
15

Santana. Helder Alencar18 determinou que em 1891 que havia carnaval nesta cidade, isso
fundamentado em uma publicação do Jornal O Município. Servindo como um contraponto a
essa discussão, Reginilde Santa Barbara afirma que “O carnaval feirense teve início em 1924,
sendo celebrada como a festa da civilização que fazia frente ao entrudo, prática que já havia
19
algum tempo, estava em desuso na cidade” . Tem-se, então duas datações diferentes em
estudos anteriores. Nesse caso o que causou a discordância foi a nomenclatura empregada,
ambos utilizaram a palavra carnaval, mas com sentidos diferentes, Santa Barbara identificou
1924, como o surgimento do carnaval dito civilizado, enquanto Alencar o empregou em um
sentido mais amplo. Por esse motivo ambos apontam para datas diferentes.
No trabalho com as fontes foi possível detectar e catalogar as práticas carnavalescas
nos jornais a partir de 1901, então a princípio seria seguro afirmar essa data. Entretanto em
uma matéria exibida em 1939 surge um forte indício de que o marco de 1891 seria também
coerente.

Podemos alcançar estrondoso sucesso, porque há vastos exemplos na Bahia e


nesta cidade mesma.
Após o período áureo dos carnavaes bahianos – 1887 à 1889, triênio em que
os “Fantoches” e a “Cruz Vermelha se mostraram inexcedíveis em
sumptuosidade, em primores de arte, em expressão cultural (...) foi isso em
1890 e os “Fantoches” exibiram um cortejo magnificente.
No anno seguinte, porém, este victorioso clube teve que engendrar uma
deliciosa sarrabullhada, em que o luxo se enrodilhava como cômico, com os
arranjaram, em 1892, um tuti frut enfronhando-se em dominós branco, de
morim, orlando de rubro [...] Um ano depois surgia a “Embaixada chinesa”.
(...) também entre nós as Jardineiras nos últimos bandos de máscaras, não
foram menos aplaudidos do que o cordão Veteranos da Feira o tem sido.20

A reportagem como um todo tratou de uma justificativa para a permanência do


carnaval durante o período carnavalesco – espaço de tempo que antecede a quaresma. Durante
essa reportagem fez uma digressão para citar os carnavais anteriores. Ao fazer isso, trouxe um
quadro geral da Bahia, nesse caso Salvador, afirmou a existência dos festejos dos anos de
1887 a 1892. Logo no início do fragmento, disse que a exemplos da Bahia, ou seja, Salvador,

18
Cf. ALENCAR, Hélder. Op.cit. O trabalho de Helder Alencar é utilizado neste trabalho não enquanto uma
referência bibliográfica, mas como uma fonte, pois mesmo sem representar um documento do período estudado,
o autor faz um levantamento dos elementos carnavalescos desde a chamada prática do Entrudo.
19
SANTA BARBARA, Reginilde Rodrigues. O caminho da Autonomia na conquista da dignidade:
sociabilidade e conflitos entre lavadeiras em Feira de Santana (1929-1964). Dissertação de mestrado UFBA.
Janeiro/2007. p. 16.
20
Folha do Norte, Feira de Santana, 4 de fevereiro de 1939, Ano XXX. Nº 1543
16

esta cidade (Feira de Santana) havia estrondosos carnavais nesse período. Mais adiante, ao
elencar os anos áureos do carnaval da “Bahia”, falou “também entre nós as jardineiras” dando
a entender que nos anos citados havia nesta cidade os festejos, exemplificando com a
participação das Jardineiras. Esse indício aponta para a existência de carnaval em Feira de
Santana na última década do século XIX. Aliados ao fragmento do Jornal O comercial,
apresentado por Alencar e os dados da pesquisa é possível afirmar a existência de
manifestações carnavalescas em 1891 na cidade de Feira de Santana.
O recorte final foi estabelecido como 1939, por entender, através da leitura das fontes,
que é neste ano que a micareta deixa de ter a sua existência atrelada ao festejo de fevereiro,
pois entre 1937 e 1939, a micareta tinha a sua existência vinculada ao fracasso do carnaval.
Seria um festejo complementar a este, que não teria conseguido satisfazer aos anseios
festivos. O termo satisfazer foi amplamente utilizado no jornal Folha do Norte para justificar
a existência da micareta. A partir da década de 1930 noticiava-se uma insatisfação com o
carnaval, sentimento que foi atribuído aos participantes da festa. Porém como os jornais que
circulavam na cidade nesse período não tinham o espaço do leitor, não foi possível verificar
de onde partia essa insatisfação. Portanto essas questões serão discutidas com maior
profundidade no segundo capítulo.
A escolha desse marco, 1939, não indica o fim do carnaval. Esse término foi
sinalizado por Aldo Silva em 1944: “ De 1944 em diante, somente a micareta tem espaço na
imprensa, somente ela realiza-se na cidade, contando com o apoio do comércio e gerando
21
oportunidade de negócios” . O autor baseia-se no fim das fontes sobre o carnaval para
estabelecer o seu recorte. Porém assim como é ariscado determinar o nascimento de
manifestações culturais, também é perigoso determinar o fim. Identifica-se o ano de 1939,
como determinante para a substituição de datas festivas mediante o crescimento da autonomia
da micareta em relação ao carnaval.
O fato de identificar o ano de 1891 como um marco para analisar os festejos
carnavalescos não descarta a possibilidade de que muito antes disso, essa vivência
carnavalesca não estivesse presente na cidade. As práticas denominadas carnavalescas
apareceram em estudos, como o trabalho de Emanuell Le Roy Ladurie22 que afirma sobre a
sua existência em períodos mais remotos. As vivências carnavalescas nas sociedades são
bastante antigas. E não existe nenhum indício que descarte a possibilidade de em Feira de

21
SILVA, Aldo José Moraes. De terra sã a berço da Micareta: estratégias constitutivas da identidade social em
Feira de Santana. Revista de História Regional. 104-133, Inverno, 2008.
22
LE ROY LADURIE, Emmanuel. O carnaval de Romans: da candelária à quarta-feira de cinzas, 1579-1580.
São Paulo: Companhia das letras, 2002.
17

Santana ter sido diferente, ou seja, não podemos descartar a possibilidade de que as
manifestações carnavalescas tenham sido bem mais antigas do que esse marco de 1891.
A referência sobre essas práticas carnavalescas em 1891 aparece na fonte reproduzida
por Alencar23 do jornal O Município, em um levantamento feito pela Folha do Norte em 1939
no jornal. Voltam a aparecer notícias sobre o carnaval no jornal O Progresso em 1901 de
forma tímida e com pequenas notas. Essa escassez de notícias é justificada porque os jornais
que circulavam nesse período na cidade eram de pequeno porte, formado por quatro laudas,
logo as informações que seriam publicadas passava por um crivo de relevância, não eram
como os jornais de hoje, em que são divididos em diversos cadernos. Tudo de relevante
deveria caber naquele pequeno espaço; e nas primeiras décadas do século XX, o que
prevalecia nesses folhetins eram os aspectos políticos.
Voltando a trajetória festiva, segundo as fontes, o carnaval começou a declinar nos
anos 1930, quando lhe foi atribuída um contexto de “crise”. Em 1937, como uma tentativa de
resolver a “crise”, foi criada, por sujeitos do grupo Folha do Norte, a micareta, para
complementar o carnaval, que não teria conseguido suprir os anseios da “sociedade feirense”.
A partir de 1939, a micareta passou a representar os festejos carnavalescos na cidade, tendo
um maior destaque dentro dos meios de comunicação que o carnaval. Dessa forma, esse
recorte é essencial para entender de que forma se estabelecem as práticas carnavalescas em
Feira de Santana-BA e de que forma as relações que estão para além dos festejos interferem
nessa construção.
Para essa investigação, as fontes impressas fundamentam a pesquisa, apesar de
atualmente serem fontes bastante utilizadas, são instrumentos de leitura relativamente novos.
Os jornais utilizados foram: Folha do Norte, Folha da Feira, O Município, O Progresso.
Nesse sentido, Clóvis Ramaiana24 apresenta um panorama dos jornais feirenses, localizando-
os quanto ao espaço ocupado nas relações de projetos políticos; o que é pertinente, pois os
jornais não noticiam apenas, eles constroem significados.25
Além desses periódicos, foi utilizada a publicação O Arlequim (1939), que circulava
apenas no período da micareta. Esse folhetim tinha circulação gratuita e contava como diretor

23
ALENCAR, Alencar. Op.cit.
24
O L I V E I R A , C l ó v i s F r e d e r i c o R . M . De Empório a Princesa do Sertão: utopias civilizadoras em
Feira de Santana (1893-1937). Dissertação de Mestrado. UFBA. 2000.
25
SCHWARCZ, Lilian Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: companhia das Letras, 1987. Nesse texto a autora traz uma contribuição metodológica
para os historiadores que trabalham com jornais. “tudo (nos jornais) parecia então bastante ‘conhecido’, sendo
que, para o leitor mais distante, uma das dificuldades é justamente a de conseguir penetrar por esses valores às
vezes silenciosamente compartilhados nessa notícia pretensamente irrelevantes, mas ganha outro colorido
quando inserido em todo esse contexto” p. 62.
18

o personagem Zé- ri- alto, um personagem que faz alusão ao Zé-Pereira. “Quanto á origem do
nome, dizem uns que, em certas localidades de Portugal é o bombo, um instrumento musical,
conhecido por Zé-Pereira” 26. Tal personagem tinha como objetivo divulgar, com um mês de
antecedência, a programação e as músicas que seriam executadas durante os três dias de festa.
Uma característica marcante desse informativo era a presença de inúmeros anúncios das casas
comerciais da cidade.
Nessas publicações existiam mais anúncios do que notícia, por esse motivo, supõe-se
que o dinheiro que financiava essa publicação vinha da publicidade, permitindo a circulação
gratuita. Porém, nessa participação comercial há um ponto de controvérsia, pois as fontes
também indicam certa resistência dos comerciantes que não contribuíam a contento para a
realização dos festejos carnavalescos em fevereiro.
É importante pensar os jornais não apenas como instrumento de notícia e sim como
sujeitos que constroem as ideias de carnaval; pensá-los também enquanto objeto, pois atuam
diretamente no processo de construção dos significados dos festejos carnavalescos.
27
Roger Chartier em, A aventura do livro , atentou para o aspecto da produção dos
textos escritos, apontou para a necessidade de compreendê-los em conjunto, interligar os
processos da construção textual, analisar qual a intencionalidade e à que público a publicação
é direcionada. Como o autor dedicou a sua pesquisa às práticas de leitura, é importante não só
pensar a produção dos jornais, mas também a que público ele pretende atingir. No período
estudado não encontro a presença desse leitor nos jornais, pois estes em questão não
ofereciam um espaço para o leitor expressar sua opinião. Então, a forma de identificar esses
posicionamentos e a dimensão dessas leituras será percebida na prática, nas quais os conflitos
possibilitaram pensar os divergentes significados.
Para essas leituras históricas sobre os festejos carnavalescos feirenses, alguns autores
são fundamentais do ponto de vista teórico e metodológico, dentre eles Roger Chartier28. Este
pensou a tríade representação, prática e apropriação a partir da qual podemos tornar a festa
legível. Além disso, ajuda-nos a pensar a história a contrapelo, pois a historiografia do
carnaval costuma contemplar o carnaval das capitais, como Rio de Janeiro, São Paulo,
Salvador. Essa perspectiva aponta para contribuir para o estudo do carnaval. Pensar as
especificidades das vivências carnavalescas em Feira de Santana, mas articulá-las a uma
estrutura e um projeto de remodelação dos costumes e práticas que atendiam ao projeto

26
FAZENDA, Vieira. O Zé-Pereira. In Louzada. Op.cit, p. 41.
27
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. São Paulo:
UNESP/IMESP, 1999.
28
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações.
19

modernizador e civilizado. Segundo Chartier, as práticas identificam e fazem reconhecer


grupos. Estas, por sua vez, estão imbuídas de significados e passíveis de leitura.
As representações resultam de jogos de interesses dos grupos envolvidos e faz do
discurso instrumento para legitimar determinadas práticas. Nesse ponto, ele apresentou uma
ressalva metodológica, pois as fontes analisadas pelo historiador não foram construídas longe
desses conflitos. Isso ajudou a pensar os jornais enquanto um disseminador de ideais e
intencionalidades, por isso é importante contextualizar a fonte e o lugar de onde ela fala. A
construção da notícia foi elaborada por pessoas que têm opiniões construídas dentro de um
contexto e certamente esses posicionamentos apareceram na notícia, estando carregadas de
significados e intencionalidades.
Nesse aspecto, Darnton29 apresentou uma contribuição metodológica para o trato com
as fontes escritas, principalmente como perceber os modos de escrever, a construção do texto,
e o que é descrito. Porém isso vai além da escrita, o historiador deve ter esse cuidado com
todo o tipo de fonte que lhe é apresentada. Em um dado momento devemos encará-la como
um objeto também, inserido em um contexto de produção.
Tendo como fonte principal do trabalho os jornais, essas colocações sobre a confecção
e recepção das informações são importantes para não tomar o que diziam os jornais como
representantes e porta-vozes do povo e a voz da verdade. O jornal diz uma das versões, não se
pode achar que o que eles noticiavam sobre os festejos carnavalescos fossem a opinião de
todos os sujeitos que compunham a festa. As contribuições de Darnton e Chartier estão na
importância de compreender de que forma um mesmo texto pode repercutir de formas
diferentes (aprendidos, manipulados e compreendido).
Além destes, Natalie Zemon Davis30 apresenta também contribuições metodológicas.
A historiadora norte americana tem na literatura uma de suas principais fonte, pensando
através dela, a multiplicidade de significados de práticas culturais, dando ênfase ao estudo das
simbologias. Em seu texto “As Mulheres por cima” ela pensou nas inversões simbólicas
através das trocas de papéis entre homens e mulheres e os lugares e os limites dessa prática.
Ao pensar sobre as festas carnavalescas, percebeu este festejo dentro do contexto de uma
Europa moderna em transformação. Ela não desconsiderou esse fator ao refletir os aspectos
culturais, pelo contrário, questionou em que medida essa estrutura interfere na construção de
significado do seu objeto.

29
DARNTON, Robert. O burguês organiza seu mundo: a cidade como texto In: DARNTON, Robert. O grande
massacre de gatos. 4ª Ed. São Paulo. Graal 1986.
30
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da frança moderna. 2ª Ed. São Paulo.
Paz e terra, 2001.
20

O carnaval é polissêmico e um dos seus significados é a ideia de inversão social


trabalhada por Davis, isso possibilita pensar a festa como um espaço no qual as relações
sociais ditam a sua dinâmica e não o contrário. As festas, em específico a carnavalesca, não
são algo que está acima dos sujeitos, elas não pairam em um plano superior. A festa só existe
a partir da prática dos sujeitos, localizados em um tempo, espaço e contexto social.
Mikhail Bakhtin, apesar de estabelecer uma distância dos outros autores no aspecto
teórico, ofereceu contribuições para quem pesquisa essa temática. Ele trabalhou sobre os
significados do carnaval, os espaços e as nuances dessa vertente cultural. Fez sua reflexão
partindo da ideia de que o mundo carnavalesco representa uma segunda vida, ao afirmar que:
“ Ele (o carnaval) se situa nas fronteiras entre a arte a vida. Na realidade, é a própria vida
apresentada como elementos característicos da apresentação”31. O evento carnavalesco
funcionou em sua análise, não como uma ruptura, mas sim como outra perspectiva da vida.
Nesse aspecto, contribuiu para pensar a dualidade do mundo, pois nos festejos
feirenses foi possível perceber a movimentação dos agentes participantes entre os diversos
espaços e momentos, a vida cotidiana estava presente nessa movimentação carnavalesca.
Pessoas que ocupavam uma posição na filarmônica como o músico Mané de Emilia, que no
cordão das Melindrosas ocupava também o papel de folião e dirigente. Ou no caso dos donos
do jornal Folha do Norte, que teciam críticas e noticiavam o carnaval e eram membros da
comissão da Filarmônica 25 de Março, em cujas sedes ocorriam os bailes.
Significativas também foram as contribuições de Maria Clementina Cunha32 ao
apresentar o desenvolvimento da festa carnavalesca no Brasil, suas ideologias e significados.
Trabalho semelhante ao que Alexandre Lazzari33 desenvolveu em Porto Alegre, na qual
analisou a decadência do carnaval na cidade. Ambos apresentaram uma boa discussão sobre o
entrudo. Esses trabalhos são fundamentais para pensar a temática da festa carnavalesca.
Com base no aporte teórico e metodológico, e com o objetivo de compreender as
vivências carnavalescas em Feira de Santana e seus conflitos, o presente estudo foi dividido
em três capítulos.
O capítulo 1, “O que é esse tal carnaval?”, tem como finalidade discutir as questões
teóricas sobre os festejos carnavalescos. Inicialmente, discutir como a temática sobre festas
em geral pode ser tratada e como ela pode ser passível de leitura e as múltiplas possibilidades

31
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Media e o Renascimento: o contexto de François Rebelais.
São Paulo: HUCIREC. Brasília: 1993. p.6.
32
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op.cit.
33
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas, SP:
Editora da Unicamp/Cecult, 2001.
21

de análise. Em seguida, afunilam-se um pouco mais as discussões, tratando estritamente dos


festejos que são considerados como carnavalescos. Aborda-se, ainda as formas como as festas
carnavalescas são tratadas, sob a perspectiva histórica e antropológica. Na última parte
discutir um aspecto, a ser retomado mais profundamente no terceiro capítulo, que toca na
questão de que existiriam, dentro dos festejos carnavalescos, práticas que obedeceriam a uma
sucessão festiva: entrudo, carnaval e, no caso de Feira de Santana, micareta.
O capítulo 2, “Os carnavais da cidade”, tem o intuito de apresentar um panorama
festivo dos carnavais de Feira de Santana. Primeiramente fez-se uma caracterização das
práticas carnavalescas da cidade, como e quais elementos podiam ser encontrados nos festejos
e a forma como brincavam. Em seguida, discutir como ocorria a organização anual dos
carnavais da primeira década do século XX, examinando a frequência com que os festejos
ocorriam. Foi dedicada uma seção exclusiva para discutir os anos de 1930, quando os jornais
apontavam para uma crise carnavalesca e começou a ser gestada a ideia da micareta. E para
finalizar, levantar a problematização sobre a micareta ser outro carnaval ou apenas uma
mudança de data.
O capítulo 3, “Carnaval e micareta: a construção dos significados festivos,” tem a
finalidade de pensar como as práticas carnavalescas foram significadas e como, dentro dos
significados construídos, surgiram os conflitos representativos e as diferenças estabelecidas
sob o ponto de vista ideológico. A princípio tratar como no cenário brasileiro ocorreram às
diferenciações dentro dos festejos carnavalescos. Pensa-se às disputas de representação no
contexto festivo de Feira de Santana e quais as estratégias foram utilizadas na construção de
representações. Analisar, em seguida, como os carnavais podem adquirir conotações
diferentes a partir do lugar e as possibilidades que eles apresentam. Além disso, discute-se o
entrudo e como a sua caracterização negativa serviu para fundamentar a carnaval. E por fim é
analisado como um mesmo espaço festivo pode ser entendido como um local de trabalho e de
disputas, além de espaço do lazer, e o diálogo entre os espaços festivos.
Capítulo 1:
O que é esse tal carnaval?
23

1.1. A festa como um objeto histórico.

A festa carnavalesca, assim como todas as práticas festivas, revela várias facetas da
realidade social. Por ser uma produção específica de um tempo e de uma sociedade, sua
análise permite observar elementos culturais, sociais e a depender do enfoque, econômico. E
nos últimos anos, sobre a luz da Nova História Cultural, tem ganhado cada vez mais espaço
no campo histórico.
Segundo Mary Del Priore,

O tempo da festa tem sido celebrado ao longo da história dos homens como
o tempo de utopia. Tempo de fantasia e de liberdade, de ações burlescas e
vivazes, a festa se faz no interior de um território lúdico onde se exprimem
igualmente as frustrações, revanches e reivindicações de vários grupos que
compõem uma sociedade. Mas o tempo da festa eclipsa também o calendário
da rotina e do trabalho dos homens, substituindo-o por um feixe de funções.
Ora ela é suporte para a criatividade de uma comunidade, ora afirma
perenidade das instituições de poder34.

Essa conceituação de festa é propícia para iniciar o debate sobre os festejos


carnavalescos. A princípio, a festa se caracterizaria como o tempo de utopias, ou seja, o tempo
onde o sonho ganharia a possibilidade de realizar-se. Abre-se margem para pensar o tempo da
festa como o tempo que difere da vida cotidiana. Porém, seria possível desvincular uma coisa
da outra? Uma máxima do pensamento histórico contemporâneo ao trabalhar a festa é
compreendê-la dentro de um emaranhado de relações que de ilusórias não têm nada. O irreal
da festa acaba se tornando uma falácia, as relações que são construídas desses espaços
festivos são frutos dos conflitos e posicionamentos construídos historicamente
A ideia de liberdade também ganha força quando o assunto é festejo. Porém, a
liberdade é bastante limitada pelos os órgãos públicos, especificamente a força policial,
presentes para coibir as práticas indesejáveis. Um exemplo dessa intervenção policial poderá
ser apreciado em outro momento, quando o Estado brasileiro passa a combater a prática
carnavalesca do entrudo. Nesse espaço lúdico as questões sociais não desaparecem. Seria
possível eliminar, pausar a memória histórica dos sujeitos que constroem a festa? A resposta é
não, o festejo abala a organização rotineira de uma comunidade. Entretanto, a festa não é algo

34
Del Priore, Mary Lucy. Festas e utopias coloniais. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 9.
24

que paira sobre os humanos e em um determinado período pousa com suas características
prontas e acabadas em uma localidade.
Nesse contexto, não cabe aos sujeitos históricos a reprodução inalterável da festa, eles
agem e constroem o festejo a partir de vivências bastante específicas. Isso não significa dizer
que os festejos antigos rompem definitivamente com os contemporâneos, porém a
particularidade é algo que deve ser levado em consideração.
Outro elemento caracterizador da festa é a ideia de oposição ao cotidiano. É inegável
afirmar que o período festivo altera o cotidiano das pessoas, havendo uma organização que é
atípica, entretanto não se pode confundir alteração da rotina com inversão do cotidiano.
Burke35, ao discutir sobre o carnaval na Idade Moderna, caracterizou esse período como “o
mundo de cabeça para baixo”, expressão comumente utilizada para referenciar os festejos que
antecediam a Quaresma. Porém Davis36faz uma colocação que parece muito mais coerente: o
mundo pode ser posto de cabeça para baixo, mas ele não é endireitado. Quando o camponês,
ou o operário vestia-se de rei ou burguês eles continuavam a reproduzir as práticas antigas. Os
papeis são invertidos, mas as práticas rotineiras não são esquecidas, elas estão mais presentes
do que nunca.
A festa era um momento “em que pessoas paravam de trabalhar, comiam, bebiam e
consumiam tudo que tinha”.37 O festejo representa um momento de extravagância com
características específicas que classificam um evento como festivo ou não: “era uma época de
desperdício justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia. Seu caráter
de ocasião especial vinha simbolizado nas roupas que o povo usava para dela participar- as
melhores”.38 Apesar de atentar para a ideia de que um festejo não se desprende da realidade
que está inserida, isso não significa que ela não apresente certas rupturas momentâneas.
Os movimentos, as rupturas, que são características de todas as ações humanas,
também estão nos festejos, pois não podemos pensar que por serem consideradas tradições, as
festas são imutáveis, muito pelo contrário. Um dos exemplos é a dinâmica da cidade que
muda, havendo convergência das atenções para os festejos, sobretudo quanto ao comércio. O
vestuário foi um dos elementos típicos, em Feira de Santana os festejos carnavalescos
movimentavam o comércio da cidade, os reclames indicavam a festa como um motivo para

35
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800.
36
DAVIS, Natalie Zemon. Op. cit.
37
DEL PRIORE, Mary Lucy. Op.cit.
38
Idem. p 9.
25

investir nas roupas. “Para o carnaval, procurem o atelier de chapéus da Francellina de Mello
Lima” 39. Era comum anúncios como esses a medida que os festejos se aproximavam.
Essa ideia de movimento e de construção indica que a festa não existe até que os
sujeitos pensem, organizem e excutem. Desse modo ganham uma forma especifica a partir das
ações desses sujeitos, as escolhas, renúncias, conflitos e concepções da forma e do significado
de suas práticas. E por sua vez essas só têm sentido no momento em que estão sendo gestadas
e executadas. Os festejos são nada mais do que produções humanas, que estão localizadas em
um tempo e um espaço socialmente construído.
Del Piore40 enfatiza ainda uma alternância, uma dualidade na qual ou ela é fonte de
criatividade ou espaço que indica a perenidade das instituições de poder. Ouso dizer que não
há essa alternância; a festa é ao mesmo tempo fonte de criatividade e perenidade das relações
sociais. E ainda outras tantas possibilidades. As melhores definições das práticas festivas são:
multiplicidade, polissemia e re-significações. Nesse aspecto, Del Priore fez um
esclarecimento:

Os jogos, as danças e as músicas que as recheiam não só significam


descanso, prazeres e alegrias durante a sua realização; eles têm
simultaneamente importante função social: permitem às crianças, aos jovens,
aos espectadores e atores da festa introjetar valores e normas da vida
coletiva, partilhar sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários.41

Essa caracterização não pensa os folguedos apenas como descanso e um lazer


desprovido de historicidade, mas também um espaço de poder. Essas disputas estão para além
das questões partidárias, as relações de poder ocupam todas as relações humanas. Outro
elemento pouco discutido é a ideia da educação, “introjetar valores e normas”, através da
aparente desordem dos festejos, é um importante momento para demonstrar à população os
hábitos adequados dos festejos. Nisso a ideia das festas civilizadas em oposição aos
“bárbaros” costumes tem no âmbito festivo um solo fértil para a sua propagação.
Entretanto a concepção do permitido é comum entre os estudos sobre o carnaval, na
qual os dias de Momo propiciavam uma espécie de alvará, permissão para que o folião fizesse
brincadeiras que no cotidiano seriam reprimidas. Contudo não significa que durante os

39
Folha do Norte. Feira de Santana, 3 de fevereiro de 1912. Ano IV Nº 105.
40
DEL PRIORE, Mary Lucy. Op.cit.
41
Ibidem. p.10.
26

festejos não houvesse nenhuma repressão. Mas a sua apresentação nos jornais indicava a
liberdade necessária à sanidade psicológica dos foliões. Para além da ideia da permissão, na
qual a população teria um espaço para enlouquecer e para vestir a fantasia, os festejos são
caracterizados como algo que é inclusive saudável à população:

O carnaval é uma necessidade para todos os povos cultos. É uma válvula de


segurança que dá evasão ao milhar de vexames de toda a casta recalcada por
trezentos e sessenta e dois dias no seio da colle, atividades evitando
explosões ruidosas, é a compensação permitida para todos os males advindos
no decurso de todo um anno”.42 (Sic)

Essa percepção apontada pelo jornal Folha do Norte não fugiu a algumas
interpretações sobre as idéias do permitido e do necessário. Em Feira de Santana, nas
primeiras décadas do século XX, era bastante comum em alguns setores aqui representados
pelo jornal. Os termos utilizados, a exemplo de “válvula de segurança” e “evitando
explosões”, indicavam outra interpretação ou função dos festejos, nesse caso o carnavalesco,
que era o de segurança pública, apontava para uma preocupação em conter as chamadas
explosões, que provocariam uma desordem e prejuízos à sociedade.
As festividades geralmente costumam ser divididas em categorias, a mais comum é a
separação entre as festas sagradas e as profanas, respectivamente, aquelas que são dedicadas
aos ritos religiosos, e as pagãs, representadas por todas as outras modalidades festivas que não
se aplicam ao primeiro grupo. Contudo isso não significa que essas modalidades não
estabeleçam entre si um diálogo. Essa divisão é construída a partir de uma percepção que
obviamente não traduz toda a complexidade. O próprio festejo carnavalesco tem a sua
determinação temporal limitada por um elemento cristão que é a Quaresma.
As festas apresentam um panorama bastante fértil ao pesquisador. Outro exemplo
dessa relação entre o profano e o sagrado é o próprio movimento entre essas duas esferas.
Pensar esse trânsito entre o sagrado e o profano é romper com barreiras específicas de que os
participantes dessas modalidades festivas eram distintos e opostos. Os festejos religiosos, a
exemplo da Festa de Santana, padroeira da cidade, tinham até a década de 1980 um momento
sagrado da novena e os eventos considerados profano, que era o bando anunciador, a levagem
da lenha e as lavagens da igreja. Estes em alguns discursos de padres tinham um caráter

42
Folha do Norte, Feira de Santana, 13 de Janeiro de 1932. Ano XXIII, Nº 1178.
27

carnavalesco.43 E segundo Batista, os grupos que cantavam nessa festa eram os mesmos que
estavam nos festejos carnavalescos, bem como os patrocinadores da festa eram os mesmos.

1.2. O carnaval é mutável.

O termo mutável se aplica ao carnaval porque ele apresenta conotações diferentes a


partir de sua realidade e temporalidade. O carnaval muda de acordo com a sociedade que o
produz, como foi dito no tópico anterior. Pensar festas carnavalescas pode conduzir a uma
generalização, ou seja, entender que tais manifestações assumem sempre as mesmas
características, independente do lugar e do tempo. Como todas as ações humanas, elas são
mutáveis. O carnaval identificado por Le Roy Ladourie44 do século XVI não é igual aos
contemporâneos. Assim como nos dias atuais, o carnaval carioca difere do carnaval de
Salvador, que por sua vez apresenta peculiaridades em relação à micareta em Feira de
Santana.
Retomar nesse momento os diversos contextos do carnaval ao longo das experiências
humanas seria algo impossível, diante de tamanha multiplicidade de significados. Por esse
motivo o que será feito nesse momento é uma retomada superficial de como ao longo do
tempo as funções45 do carnaval ganharam formas diferentes.
As manifestações denominadas como carnavalescas são antigas, a antropóloga
Marilene Pinheiro46 as identificou desde a Idade Antiga, especialmente em festas romanas,
dedicadas ao deus Dionísio, que na mitologia grega representava a juventude, também é
reconhecido como deus do vinho e da festa. A autora afirma que nesse período havia a
presença de carros alegóricos com esculturas ligadas a sexualidade, mulheres e homens nus
desfilando, bebendo e comendo bastante, o que a fez pensar que esse era um momento de
carnavalização. Isso porque no entendimento antropológico quebras no cotidiano, o que sai da
rotina, são vistas como ato carnavalesco. E é essa a ideia defendida por tal autora. Ela
identificou esse momento como manifestações primárias do carnaval.

43
Cf. BATISTA, Silvania Maria. Conflitos e comunhão da festa da padroeira de Feira de Santana. Feira de
Santana: UEFS, 1997.
44
LE ROY, LADURIE, Emmanuel. Op.cit.
45
Cf. LE ROY LADURIE, Emmamnuel. Op. Cit. O carnaval assume funções nas sociedades, que são mutáveis a
partir dos interesses do momento.
46
PINHEIRO, Marlene M. Soares. A travessia do avesso: sob o signo do carnaval. São Paulo: ANNABLUME,
1995.
28

Le Roy Ladurie, ao contextualizar a França na Idade Moderna, identificou o carnaval


como uma festa de inverno e retomou alguns aspectos da Idade Média: “Formalmente, o
carnaval delfinês funcionou muito tempo como festa de fim de ano ou a mudança de ano. O
ano no Delfinado, na Idade Média e por sua vez até o século XVI, começava ora em 25 de
setembro, ora em 25 de dezembro ou ainda em 25 de março.” 47
Nesse contexto, o carnaval estaria ligado a uma mudança de ciclo. A passagem de ano
que o autor fez referência não é a que estamos habituados, que tem fim após 365/366 dia. Essa
era um período em que as sociedades européias eram basicamente agrícolas, seus calendários
seguiam a lógica da natureza. Então, muito provavelmente, essas datas estariam ligadas as
mudanças de estações do ano. No contexto geográfico da Europa, Hemisfério Norte, 25 de
setembro marcaria o outono; 25 de dezembro, o inverno; e 25 de março a primavera. O
carnaval teria a função de comemorar a fertilidade. Parte, sobretudo, da ideia de transição ou
marginalidade, ou seja, as festividades estavam localizadas temporalmente na mudança de
ciclos da natureza, o que a antropologia chama de ritos de passagem.
Esse significado não levou em consideração o fato que é comumente associado aos
festejos carnavalescos, que viria a ser sua relação com a igreja católica. Diversidade que é
compreensível, pois o carnaval é historicamente construído, logo não podemos pensá-lo de
forma estática. A concepção religiosa foi fruto de um processo que trouxe para esse evento
festivo uma funcionalidade que é diferente e que faz todo o sentido para uma realidade
específica. E do ponto de vista cristão católico, o carnaval, segundo Le Roy Ladourie48, na
realidade que ele estudou:

Enterra sua vida de pagão, entrega-se ao último desregramento paganizante,


antes de penetrar nos tempos da escassez quadrazimal do catecúmeno, o qual
conhecera em fim, na Páscoa, seu renascimento, em relação aos jejuns e as
pregações da quaresma, funcionam como um prelúdio lógico, antítese
previa49.

Essa mudança ocorreu na França a partir do século XVI e serve de exemplo para
aprofundar um pouco mais o debate. Trata-se de uma análise de carnaval que apresentou duas
concepções: uma cristã e outra não cristã. Entretanto ambas apresentaram como característica

47
LE ROY LADURIE. Op. cit. p.321.
48
Idem, p. 32.
49
Idem. p. 323.
29

comum o encerramento de um ciclo e o início de outro. Enquanto em uma tinha a função de


despedir-se de uma estação do ano e comemorar o surgimento de uma próxima, a outra, cristã,
tinha a função fechar o período dos aspectos mundanos para receber o período da
espiritualidade.
Essa é apenas uma das múltiplas especificidades encontradas no carnaval. E a
pergunta que surge a essa altura é: como funcionava o carnaval na realidade brasileira. Essa
influência chegou aqui com a prática de comemorar os dias que antecediam a quaresma. Tal
prática era conhecida como entrudo. O carnaval era um termo desconhecido em Portugal no
século XV/XVI, apenas na Itália e França o carnaval era conhecido e praticado.50
Esse entrudo, de acordo com Araújo, designaria entrada, princípio da primavera.
Portugal nesse sentido também sofrera a cristianização do festejo. Isso porque a prática do
entrudo, a princípio era feita em comemoração às mudanças de estações do ano, fim do
inverno e entrada da primavera. A cristianização transformou o significado festivo, que
passou a sinalizar o “fim” da carnalidade.
Foi o significado cristão dessa prática portuguesa que chegou ao Brasil. Isso porque
essa modalidade chegou ao país já com o significado ligado à igreja. A característica do
entrudo português era identificada como um momento de manifestações de alegria, de uma
estrutura barulhenta e excessiva. Os portugueses divertiam-se de maneira singular, desfilando
em procissão burlesca que passavam pelas ruas sujas de lama, monstruosas e imundas51. Com
essa caracterização de agitação extrema, o entrudo lembra um tipo de manifestação muito
difundida pela Europa moderna, o charivari52 (Barulho, tumulto, dor de cabeça).
E é esse entrudo português que foi a primeira referência carnavalesca que o Brasil
conheceu. Os outros grupos formadores da sociedade brasileira, como africanos e os nativos,
com suas experiências musicais, posturas e ideais, somaram suas vivências a essa forma de
festejar. Então outra forma de festejar foi configurada, pois não era delas mais o festejo
português, trata-se de uma festejo brasileiro.
Um elemento brasileiro incorporado ao entrudo foi uma brincadeira com os limões de
cheiro que já representava uma forma mais refinada de jogar o entrudo. Havia no Brasil uma
diferenciação entre as formas de festejar o entrudo, uma mais “violenta”, com o hábito de
atirar objetos como ovos, águas fétidas e pós de pixe, prática que foi bastante combatida no

50
Cf. Araújo, Patrícia Vargas. Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século
XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG; Fapemig; FFC, 2008.
51
Ibidem.
52
DAVIS, Natali Zemon. Op.cit. DARNTON, Robert. Op.cit.
30

Rio de Janeiro, Minas Gerais, Porto Alegre53 por ser considerada violenta. O entrudo também
abrigava o costume de atirar laranjinhas de cera, com águas de cheiro, que ao serem
arremessadas não causavam tantos danos.
E partir da década de 1880 foi forjada uma oposição entre o entrudo e o carnaval,
importado da cultura veneziana e francesa. Essa oposição, segundo Cunha54, só passou a
existir nesse momento, ou seja, antes desse período, carnaval e entrudo não eram percebidos
como coisas diferentes, significavam a mesma coisa, festejar os dias de Momo.

1.3. Festas carnavalescas.

Ao tratar de festas carnavalescas, o termo carnaval é comumente utilizado para


caracterizar os festejos que ocorrem no último fim de semana que antecede o ritual religioso
da Quaresma. Este marco religioso é um rito cristão no qual os fiéis passam por um período
de uma suposta diminuição dos prazeres da carne em detrimento de uma elevação espiritual.
Nesse contexto, o carnaval ficou conhecido por como uma “despedida” dos aspectos
mundanos.

O carnaval, que com o defluir da moral, transfigurou-se em uma diversão


cristã, celebrada antes das sete semanas mestras de abstinência de jejuns,
penitencias e recolhimento. É, pois, a desterro preventivo desse período de
tristura e meditação em que tantos se comprazem as almas contemplativa
(...). Provido do italiano carnavalle, em sua etymologia mais aceitável,
significa o adeus à carne, a despedida dos prazeres, às vésperas da
quarentena de compunção religiosa55.

A prática carnavalesca teve, em Feira de Santana através dos jornais, sua existência
associada ao elemento cristão, a ideia do carnavalle; uma referência à carne. Essa
conceituação do carnaval pode ser pensada em dois aspectos. O primeiro está associado à
alimentação. “Foi a carne que compôs a palavra carnaval. O maciço consumo de carne de

53
CUNHA, Maria Clementina. Op. cit. ARAÚJO, Patrícia Vargas. Op.cit. LAZZARI, Alexandre. Op.cit.
54
CUNHA, Maria Clementina. Op. cit.
55
Folha do Norte, Feira de Santana, 14 de fevereiro de 1931. Ano XXII. Nº 1126.
31

porco, de vaca e outras” 56. A comilança anterior ao período de jejum e abstinência da carne.
A Quaresma é um período que os fiéis tinham um resguardo maior, quarenta dias sob uma
orientação de não dar tanta importância aos prazeres da carne, com uma alimentação restrita,
e com dedicação maior às orações. Isso para esperar o momento maior que é o domingo de
páscoa. Porém essa concepção não está relacionada apenas ao aspecto alimentar, ela se
referencia também ao aspecto sexual, em oposição ao espiritual. O mundano ganhava ênfase
antes do recolhimento espiritual, uma despedida dos prazeres do corpo, o carnavalle.
Além dos festejos do período carnavalesco, havia também a festa pós-período
carnavalesco que era a micareta, um festejo que até os dias atuais ocorre depois da
Quaresma. Isso porque os festejos, por consenso, não ultrapassam o início da quaresma.
Classificar os folguedos nessas duas etapas é apenas uma das possibilidades de investigação,
existem ainda outras concepções que pensam a carnavalização para além da relação com a
Quaresma.
Essa multiplicidade é explicada porque as manifestações populares têm como principal
característica a polissemia e as re-significações, e com as práticas carnavalescas não poderiam
ser diferentes. Ao longo da trajetória de cada sociedade, os sujeitos imprimiram na sua forma
de brincar sentidos diferentes que dialogaram com o contexto social que está inserido, por isso
ao trabalhar festejos carnavalescos os significados mudam de acordo com o momento
estudado.
Para a compreensão de tal temática alguns aspectos são importantes antes de
iniciarmos uma leitura mais cuidadosa sobre os folguedos carnavalescos. A primeira coisa é
reconhecer que o carnaval além de uma prática festiva, é também uma significação. São
folguedos associados à ideia de civilidade.
Em segundo lugar, convencionou-se por muito tempo estabelecer uma linearidade
dentro desse âmbito festivo. Essa concepção obedece à seguinte lógica: a primeira experiência
carnavalesca foi entrudo, uma herança da colonização portuguesa. Dentro dessa cronologia
limitadora, o entrudo teria sido substituído na passagem do século XIX para o século XX.
Substituição essa que teria sido fomentada por uma “necessidade” de reformulação dos
costumes. Dentro do quadro das representações, o carnaval surgiu com suas plumas e confetes
trazendo para o Brasil os ares europeus. Entretanto, as críticas tecidas ao entrudo apareceram
muito antes, nos meados do século XIX foi possível verificá-las.

56
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. p.253.
32

Alvarás e editais lançados pela polícia para dar fim ao festejo, até que, em
1854, a polícia por meio de um delegado mais combativo, conseguiu
extingui-lo. Mas era época mesmo do entrudo chegar ao fim, pois já
começavam a surgir no Brasil os primeiros bailes de forma que as
brincadeiras de rua iam sendo substituídas por novos divertimentos, como o
Zé-Pereira (Folia ao som de tambores e zabumbas) e Estrondos, espécies de
blocos atuais.57

A ideia de sequência festiva é algo que apareceu nas fontes, como algo imediato: fim
de uma modalidade, início da outra. Entretanto essas rupturas são bastante questionáveis.
Como barrar as práticas de um costume e automaticamente iniciar outro? Será mesmo que
eram práticas diferentes? As diferenças atribuídas entre o entrudo, carnaval e micareta são
diferenciações que não são perceptíveis quanto às práticas, elas pairam nos significados que
lhes são atribuídos, nas reapresentações atribuídas. As práticas carnavalescas são mutáveis,
porém essa mutação não ocorre de forma abrupta e sem estabelecer releituras e re-
significações.
No estudo específico de Feira de Santana, essa cronologia seguiu adiante com a
invenção da micareta, oficialmente inaugurada em 1937, que seria um festejo a realizar-se
quinze dias após o termino da quaresma. Imediatamente, chega-se a uma conclusão: as
práticas carnavalescas, mesmo que não contenham em suas práticas elementos religiosos,
mantém uma relação direta com o aspecto cristão católico.
A micareta, também uma prática carnavalesca, trouxe um problema histórico que deve
ser tratado com bastante atenção, pois essa modalidade provoca uma dúvida quanto a sua
classificação representativa, isso porque é considerado um carnaval fora de época, dessa
forma seria apenas uma mudança de data. Então qual seria a especificidade? Isso será
discutido mais adiante.
O importante, nesse momento, é compreender essas manifestações enquanto práticas
carnavalescas e não como festas diferentes. Vale ressaltar também que estas práticas não
devem ser analisadas dentro da perspectiva da rivalidade. Isso porque dentro do jogo das
representações convencionou-se que as práticas festivas estabelecem entre si elementos
antagônicos. Entre entrudo e carnaval, por exemplo, a ideia de bárbaro versus civilizado.
As disputas e os conflitos não partem unicamente dos simpatizantes do entrudo, do
carnaval ou da micareta; os conflitos existem independentes dessas divisões. Em alguns

57
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p. 86.
33

momentos inclusive os conflitos entre tais folguedos aparecem, mas eles são muito mais
visíveis nas reapresentações que são forjadas, desavenças que também ocorrem na prática,
mas não com o mesmo peso. As fontes indicam inclusive a convivência entre tais práticas
dentro do cenário brasileiro (entrudo e carnaval) e no âmbito feirense (entrudo, carnaval e
micareta).

1.4. As concepções de festas carnavalescas.

O termo festas carnavalescas é muito utilizado nesse trabalho, logo conceituá-lo é


importante. Apesar de retratar uma realidade da Europa, Peter Burke fez uma denominação de
festas carnavalescas, que serve para começar a análise sobre tais interpretações. Ele afirmou
que as práticas carnavalescas possuem elementos que as caracterizam:

Em primeiro lugar, um desfile, em que provavelmente haverá carro alegórico


com pessoas fantasiadas de gigantes, deusas, diabos e assim por diante (...)
um segundo elemento recorrente no ritual carnavalesco era algum tipo de
competição, as disputas no regime, as corridas de cavalo e as corridas a pé
eram muito populares (...) um terceiro elemento recorrente no carnaval era
apresentação de algum tipo de peça, geralmente uma farsa. No entanto é
difícil traçar uma linha entre uma peça formal e ‘brincadeiras’ informais.58

Nesse conceito não há nada que limite as práticas carnavalescas a uma data específica,
não faz referência a um período carnavalesco. A princípio na realidade européia e segundo a
visão do autor, bastava que houvesse essas características para que a manifestação fosse
classificada enquanto carnavalesca. Porém há uma barreira que não poderia ser ultrapassada,
seu limite é a Quaresma: “a estação do carnaval começava em janeiro, ou mesmo em finais de
dezembro, sendo que a animação crescia à medida que se aproximava a Quaresma” 59.
Os elementos destacados por Burke não podem ser transpostos para a realidade
feirense, mas alguns aspectos são pertinentes. O desfile, o cortejo dos grupos que brincam os
“dias de Momo” pelas principais ruas da cidade em Feira de Santana, representava uma
característica que é pertinente aos festejos carnavalescos em geral. O cortejo “principal” tinha

58
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. p. 248.
59
Idem. p. 248.
34

como palco a Rua da Direita, atual Rua Conselheiro Franco. As disputas também davam a
tônica dos festejos carnavalescos, sejam disputas entre clubes ou as guerras de serpentinas,
bem como o uso de máscaras.
Maria Isaura Queiroz discutiu algo permite lembrar o fato de que os festejos não
constituem uma homogeneidade.

Todavia, a população sempre se mostrou dividida em dois grupos opostos:


os carnavalescos e os não carnavalescos. Os primeiros consideram “um
dever” comemorar os Dias Gordos, que para eles é a festa mais importante
do ano. Os não carnavalescos, por razões variadas, condenam a folia que,
segundo eles, toma conta das gentes durante quatro dias, transformando bons
pais de famílias em palhaços e permitindo as boas mães de família que
tomem ares de meretrizes.60

Esse é um dado relevante, que por vezes pode passar despercebido, o fato de que não estamos
tratando de uma unanimidade. Algumas publicações e as próprias manchetes de jornais nos
levam a essa falsa ideia, que não traduzem a complexidade. Essa divisão entre carnavalescos e
não carnavalescos é importante para romper a ideia de harmonia e aceitação.
A explicação para os não-carnavalescos é mais ampla, pois considera a infinidade de
motivos que levam ao não aceitar a festa. Entretanto, os carnavalescos também abrigam uma
gama de motivos que os colocam nesse grupo; os músicos podem estar ali por divertimento,
mas também por uma oportunidade financeira, assim como os outros grupos sociais:
comerciantes, políticos, grupos que utilizam o espaço para festejar como um lugar de disputa
de memória e aqueles que participam pela diversão. São complexas as relevâncias
carnavalescas.
Nessas discussões sobre o significado carnavalesco associado ao aspecto religioso,
Maria Isaura Queiroz apresentou, a partir de suas memórias de carnavalesca, conforme auto
denomina-se, certos questionamentos:

Durante quatro dias e quatro noites levávamos esta vida exultante,


retomando as atividades normais na Quarta-feira de Cinzas... O cansaço da
maratona era facilmente esquecido, estava compensado pelo divertimento do
Reinado de Momo. O carnaval não tinha, para nós, nenhuma significação

60
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vívido e o mito. São Paulo: Brasiliense; 1999. p.
14.
35

religiosa, não conhecíamos o significado da Quarta-feira de Cinzas. O


carnaval já havia perdido no país muito do seu significado religioso, que
atualmente se extinguiu por completo61.

Esse afastamento do significado religioso é prático. A maioria das pessoas que estavam
festejando não associava a sua atuação a um elemento religioso, porém essa relação continua,
pois o carnaval ainda tem como seu limite temporal a quarta-feira de Cinzas, e as tentativas de
transpor esse limite ainda podem causar desconforto nos grupos religiosos. E no período que
se detém essa pesquisa, o desconforto por parte dos líderes religiosos com os festejos de
momo era muito forte.

Micareta, depois de uma semana santa cheia de consolação. A‘mi-carême’


neste ano (1938) atingiu o máximo de intensidade e de vibração. Fizeram
carros alegóricos e trouxeram outros da capital. A Rádio Sociedade não faz
senão propagar sambas carnavalescos. Aqui, além dos rádios particulares a
Casa da Louça por meio de seus alto-falantes retransmite todos estes
programas. São os inimigos da igreja os promotores desta festa e o fizeram
com a intenção de desviar as esmolas para San’Ana que querem
suplantadas.62

Ao que parece a aceitação do carnaval era algo tolerável, pois logo após esse
momento, a Quaresma ‘limparia’ os excessos e restabeleceria a ordem. Porém o retorno nos
eventos mundanos afrontaria e muito a religiosidade. Estas foram palavras do Padre Almicar
que declarou livremente que os organizadores desse evento carnavalesco eram os inimigos da
igreja. Segundo Silvania Batista, a filarmônica 25 de Março foi impedida de participar dos
festejos de Santana por seu estreito envolvimento com o carnaval fora de época, boicote que
também ocorreu em relação a Filarmônica Euterpe feirense.
Sobre os festejos carnavalescos, Sebe63 fez uma divisão para pensar o carnaval. Com o
objetivo de buscar as origens carnavalescas, procurou na mitologia egípcias explicações.
Afirmou que a gênese carnavalesca estava no culto voltado á deusa Ísis, a deusa da natureza,
que em festas era homenageada pelos mortais durante as colheitas. Nesse período, ainda antes
da era cristã, o tempo da alegria seria o tempo da fecundação, o nascimento do resultado do

61
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Op.cit. p. 14.
62
Livro do tombo I da Catedral de Santana. (1930-1968). In: BATISTA, Silvania Maria. Op.cit.
63
SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo. Editora ática, 1986.
36

trabalho. O tempo da resignação seria o gestar da fecundação, o trabalho árduo do preparar a


terra, semear, cuidar do broto até que o fruto, a fecundação ocorresse.

As bacanais, lupercais e saturnais poderiam ter sido algumas variações da


festa carnavalesca. Suas celebrações implicavam a existência de rituais
libertadores das atitudes reprimidas e obrigava a extroversão a
permissividade, prevalecendo o tempo dos vícios.64

Sebe, para definir os festejos carnavalescos, utilizou o critério da ruptura com o


cotidiano, algo que romperia com a rotina. Apresentou essas manifestações como um
antecedente das festividades carnavalescas. Também apareceu em sua hipótese mais uma vez
a ideia da liberdade em oposição à repressão e as obrigações do cotidiano “uma vez por ano é
65
lícito endoidecer” . Aliás, a dualidade, a batalha entre os opostos é característica marcante
na caracterização sobre os festejos carnavalescos, como: liberdade versus repressão, fome
versus comilança, sexo versus abstinência, violência versus calma.
Marlene Pinheiro também considerou as festas da antiguidade como gestoras dos
festejos carnavalescos: “festas de Baco/dionisíacas de Roma, caracterizadas por cortejos com
grandes carros similares a barca navais – carrum navalis - de onde exibiam mulheres nuas,
homens também nus cantavam canções obscenas convocando a todos para os prazeres da
66
carne” . O nome utilizado para designar o ritual do festejo é semelhante à nomenclatura
contemporânea “carrum navalis,” que lembra bastante a palavra carnaval. Soma-se ai a ideia
da carnalidade relacionada à sexualidade. Isso se assemelha ao carnavalle, os prazeres da
carne: comilança de carne e sexualidade aflorada.
Na linha estabelecida por Pinheiro para pensar as origens carnavalescas relacionadas
às transformações sociais, indicou para uma contextualização histórica. Segundo a autora as
origens carnavalescas vêem “da mitologia greco-romana, pois já com o nome de Momo, o
deus teria migrado para a era cristã, dando origem aos carnavais de Veneza e Turim na Itália”
67
. Essa ideia de migração reflete o crescimento do cristianismo ainda no Império romano. A
re-significação leva os festejos pagãos para o cenário cristão:

64
SEBE, José Carlos. Op.cit. p.11
65
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p.14.
66
Idem. p. 63.
67
Idem p.14.
37

As festas carnavalescas iniciavam-se a 25 de dezembro, confundindo-se com


as comemorações natalinas, o ano novo e a Epifania. A Igreja, então, incluiu
o carnaval (festa pagã) no seu calendário católico, determinado que seu
término ocorreria dias antes da Páscoa.68

Segundo as crônicas e os autores, esta era uma festa bastante popular, logo seria
oportuno que a Igreja católica quisesse ter sobre os festejos algum domínio, mesmo que fosse
só para limitar sua atuação, nesse caso antes do período da Quaresma.

Com a incorporação ao calendário cristão, não é mais a passagem de uma


estação a outra que regula os acontecimentos festivos. Não é mais somente a
transformação da natureza, a época das colheitas e das estações que
determinam os ritos de uma comunidade; estes agora passam a correr
também de acordo com evento histórico e de acordo com um calendário
muito bem organizado de rito e festas69.

Houve uma tentativa de estabelecer um formato para o festejo, não que isso já não
ocorresse, mas era necessária uma normatização que atendesse aos interesses de uma
comunidade cristã. Não apenas estabelecer o momento adequado para que os festejos
carnavalescos acontecessem, mas retirar dele o significado “pagão”, e atribuir um significado
cristão.
Porém a mesma antropóloga Marilene Pinheiro70 afirmou que manifestações
carnavalescas podem apresentar-se em vários outros momentos, sem a obrigatoriedade de
uma data fixa. A autora conseguiu identificá-los em vários momentos, distintos do chamado
período carnavalesco.
Essa percepção apresentada por Pinheiro justifica-se por acreditar que qualquer rito
que saia da normalidade, que quebrasse a ordem poderia ser considerada carnavalização.
“aqui se encaixaria perfeitamente o recente movimento dos ‘caras-pintadas’, quando a
sociedade brasileira, ou partes dela, saiu às ruas, num ritual carnavalizado, a exigir o
impeachment. Nos rostos, as máscaras pintadas” 71. As máscaras e as palavras de ordem, nesta
concepção, são linguagens carnavalescas.

68
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p.14
69
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Op.cit. p. 24
70
. PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p 63.
71
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p 63.
38

A autora buscou elementos dentro dos eventos festivos que os identificassem como
carnavalescos ou não. Ainda sobre o entendimento de que o movimento dos caras pintadas
seria um momento de prática carnavalesca fez a seguinte afirmação: “a certeza de que, por
meio de uma ação não violenta, protegido pela ‘brincadeira’ e o disfarce da máscara
ritualística, conseguiu inverter a situação do país”.72 Nesse fragmento Pinheiro levou em
consideração dois aspectos: as máscaras e o desejo de inversão do país.
As máscaras em forma de pintura foram utilizadas por alguns grupos, e ao que parece,
não tinham a mesma concepção que encontro nas fontes ao trabalhar os folguedos
carnavalescos. Ao invés de disfarçar algo, o objetivo naquele momento do impeachment era
enfatizar o nacionalismo e identificar o porquê da luta. Além disso, apontou esse movimento
dos caras pintadas como um evento político que esteve disfarçado pela brincadeira, e por uma
ação que não violenta. Teria sido esse elemento, caracterizado pela autora como carnavalesco,
o responsável pela mudança política? A insatisfação e a ruptura não ocorreram no campo
carnavalesco, as máscaras que a autora cita foram instrumentos de protesto que demonstraram
a insatisfação com o contexto político, porém não foi a o único elemento nesse processo. A
autora entende os eventos carnavalescos como um momento que além de quebrar a ordem, é
algo pacífico, brincadeiras e confraternização. E que esta teria sido uma alternativa para
inverter a condição política naquele período.
Essa prática de mascarar-se se apresenta como elemento de análise dos festejos
carnavalescos, tanto para os historiadores quanto para os antropólogos: “o povo usava
máscaras, alguns com narigões, ou fantasias completas. Os homens se vestiam de mulher, as
mulheres de homens, outros trajes populares eram os de padre, diabos, bobo, homens e
animais selvagens” 73. Sobre a importância do disfarce, a antropóloga Pinheiro faz a seguinte
inferência: “o rosto é a marca evidente da identidade, é aquilo que de imediato nos diferencia
uns dos outros, porque é o retrato do eu. Então, a persona mascarava de simbólico o
simbólico” 74. O rosto, segundo a autora, é a primeira máscara, que representa a pessoa, e em
um momento de carnavalização, usa outra máscara, essa de cunho provisória facilmente
retirada. Por isso usa o termo “mascarar de simbólico o simbólico.
A metamorfose é nesse aspecto a palavra chave. O disfarce talvez seja o elemento que
dê a sensação de liberdade, pois através disso as pessoas agem sem serem identificadas e sem
ter que enfrentar a cobrança moral após os festejos carnavalescos. Porém quanto à possível

72
Idem. p. 19.
73
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. p. 249.
74
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit. p. 30.
39

inversão social proporcionada pelo ato de se travestir é algo que suscita dúvida, pois, como foi
citada anteriormente, uma mulher ao se vestir de homem, altera o seu comportamento ou
reproduz o comportamento masculino? Ao vestirem-se de animais, reproduzem o
comportamento animal? E assim por diante. O fato de trocarem os papéis - homens/mulheres,
ser humano/ animal – não implica em uma transformação de comportamento. Essa inversão
significa que havia uma mudança dos atores, mas o roteiro e os personagens eram os mesmos.
Quando a autora afirmou ser um evento não violento, abriu outro ponto de discussão: a
violência não é travada apenas em batalhas corporais, existem linguagens que podem muito
bem, sem usar a força física, traduzir atos violentos contra quem se dirige. Um exemplo disso
é encontrado quando se analisa as músicas dos festejos feirenses. Verdadeiras batalhas sociais
eram travadas com um tom debochado e violento, batalhas essas fundamentadas no lugar
social de cada grupo. Isso seria uma violência simbólica, ou seja, é uma ação que apesar de
não usar a força bruta, o combate físico, causava um desconforto nos grupos criticados.
Em certa medida, a visão de Marilene Pinheiro alargou o sentido de festejos
carnavalesco. Um exemplo disso pode ser percebido nas comemorações religiosas, nas quais
qualquer manifestação que fuja da ordem religiosa é caracterizada como costumes
carnavalescos. Silvania Batista75, em seu trabalho sobre a festa de Santana na cidade de Feira
de Santana, apresentou um panorama sobre essa teia de relações entre as práticas
carnavalescas e festejos religiosos.76
É possível perceber os festejos carnavalescos como um complexo de práticas que
ganharam mais força em um período que antecedia a Quaresma, mas que seu conceito não é
restrito a isso, muito menos a uma temporalidade. No caso específico deste estudo, o foco é:
as práticas carnavalescas que ocorrem no mês de fevereiro/março (entrudo e carnaval)
abril/maio (micareta), este fora do período carnavalesco tomando como referência a
concepção cristã. Os meses tendem a variar porque a datação da Quaresma é pautada no
calendário lunar e não no solar, que é à base do nosso calendário.
Os antropólogos costumam localizar as festas enquanto uma quebra do cotidiano, uma
inversão social. Maria Laura Viveiro de Castro e Renata de Sá Gonçalves fazem a seguinte
consideração:
75
BATISTA, Silvania Maria. Op.cit.
76
Um exemplo dessa carnavalização, para além do que se convencionou chamar de Carnaval em Feira de
Santana, é o combate ao Bando Anunciador, como o próprio nome sugere, era um grupo que tinha a função de
anunciar os festejos de senhora Santana quinze dias antes do novenário de Santana. Porém tinha ares
carnavalescos, com músicas de tom jocoso, debochado e que tocavam muito fortemente a sexualidade. Essa
carnavalização estava desarticulada temporalmente dos festejos que ocorriam no mês de fevereiro, ou certos
casos, em março, a depender do calendário, contudo as práticas ocorridas naquele caracterizava o enquanto
carnavalesco.
40

Carnaval é bom para brincar, é bom para fazer, é bom para pensar. Festa
civilizatória, cujos rastros dourados buscamos na poeira do tempo. Festa
contemporânea sempre desdobrada em interrogáveis multiplicidade. Salve
sua majestade o Carnaval, o carnaval! Quando brincamos, colocamos sob
sua subversiva égide, que tudo descentra. Se o fossemos, nos engajamos em
seu febril vórtice festivo. Para tudo se acabar em cinzas na quarta-feira e
logo, quase sorrateiramente, retornar, renovando gradualmente forças até o
novo anúncio, em alto e bom som, da incomparável graça do aqui e do
agora. Quando pensamos sobre o carnaval, estamos também ao seu serviço,
e a mesma absorvente majestade requer que nos curvemos diante de sua
surpreendente complexidade77.

Essa concepção do carnaval coloca os sujeitos ao seu serviço. Ideia essa que apresenta
o festejo enquanto uma anomalia, algo que é estranho ao cotidiano. Talvez nessa concepção
se fundamentassem as manchetes dos jornais: “Vai começar o Tríduo de Mômo”, “Mômo
vem ai!”. O reinado nunca é dos homens e mulheres que compõem a festa. Ele é de Mômo, o
deus da folia e do riso, um ser que paira no imaginário das pessoas. Assim, a loucura e os
desmandos são sempre anistiados, pois estes estão a serviço do festejo, e extravasar é normal
durante esse período.
A ideia da monarquia da folia é realmente bastante forte em Feira de Santana nos
primeiros anos do século XX: “Está decretada para mais algumas hora o início do Regime
oficial da alegria. Ao poder do eterno deus do riso e da loucura jamais resistiu a gente sadia e
moça sem preocupações e sem mágoa.” 78
Em certa medida é pertinente, pois os festejos não aparecem dentro de uma rotina, eles
não ocorrem todos os dia, então nessa concepção ocorre sim um rompimento. Contudo não é
possível, dentro da perspectiva histórica, conceber os festejos como uma inversão. Natalie
Davis79, mesmo trabalhando uma realidade diferente da que abordo, faz uma ressalva sobre
essa idéia de inversão. A outra nos diz que um mundo de ponta cabeça pode ser modificado,
mas não endireitado, ou seja, por mais que as coisas sejam alteradas, elas ainda seguem uma
ordem social e econômica que atravessa a festa. “Pensar a festa como a instauração

77
CAVALCANTI, Maria Laura, GONÇALVES, Renata (org.) Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2009. p. 9.
78
Folha do Norte. Feira de Santana. 6 de fevereiro de 1932. Ano XXIII Nº 1177.
79
DAVIS, Natalie Zemon. Op.cit.
41

unicamente da desordem e de um tempo de ‘tudo avesso’ é deixar de levar em conta o diálogo


que se estabelece entre o mundo festivo e a realidade social” 80.
Na realidade brasileira em geral, convencionou-se também espacializar os festejos
carnavalescos, identificando os locais em que eles ocorriam e ocorrem. Quanto a isso, as
afirmações indicam para a ideia de que se trata de uma festa urbana:

As atividades carnavalescas foram, desde o início, características das


aglomerações urbanas do país: grandes e pequenos proprietários rurais e os
próprios sitiantes, isto é, os habitantes dispersos no meio rural, partiam para
a vila ou para a sede do município quando queriam divertir-se nos Dias
Gordos, a festa não parece ter se realizado em propriedades rurais.81

A limitação geográfica talvez seja facilitada até pela própria disposição do espaço
urbano, que permite uma aglomeração e funciona como um ponto de encontro. Wilson
Louzada82, em 1945, ampliou um pouco mais as possibilidades, apontadas pela delimitação
feita por Maria Isaura Queiroz. Segundo ele, os festejos carnavalescos, por ele identificado
como entrudo, eram praticados apenas entre os habitantes dos centros urbanos, e entre as
populações sertanejas esses festejos eram menos praticados. Faz uma ressalva de que se o
lugar fosse desenvolvido, em suas palavras, adiantado, essas práticas eram possíveis. Para
Louzada, os festejos carnavalescos eram característicos dos centros urbanos, mas isso não
implicaria a inexistência dessas manifestações fora desse eixo.
Esta primeira delimitação prioriza apenas o espaço físico, indicando inclusive a
convergência de pessoas tanto do campo quanto da cidade para festeja. Por ser um local que
concentra a administração e o sistema de serviços, a cidade oferecia uma facilidade maior de
aglutinação de pessoas e a organização do evento. Mas o pensamento de Louzada já aponta
outro aspecto:

O carnaval, cujas origens se perdem na antiguidade Greco-romana, adquiriu


no Brasil uma importância fundamental como expressão máxima de festa
popular. Antes do carnaval, só conhecíamos o entrudo, precursor do culto de
Momo, que chegou até nós por intermédio dos portugueses, ainda nos
tempos coloniais. O entrudo, tal como era praticado no Brasil, parece eu só

80
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Op.cit. p. 36.
81
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Op.cit. p. 14.
82
LOUZADA, Wilson. Op.cit.
42

chegou a adquirir real popularidade entre os habitantes dos centros urbanos.


No interior do país, entre as populações sertanejas ou matutas, esses festejos
eram menos conhecidos e praticados, exceto talvez nas regiões próximas das
cidades adiantadas. As cheganças, os reisados, os bumba-meu-boi, os
festejos de junho, as cavalgadas, o Natal, o dias de reis, e outras espécies de
folguedos, monopolizavam com certeza o interesse dos aglomerados
humanos das zonas menos povoadas. Imunizando-os contra a influência
daquele divertimento popularíssimo nas cidades.83

Essa interpretação indicou não só o espaço físico, mas o comportamento das pessoas
como condição de existência para os festejos carnavalescos. Nesse caso o fator que
possibilitaria os festejos carnavalescos era o grau de adiantamento da localidade. Esse
adiantamento estaria ligado ao grau de urbanização em cidades que não fossem tão “matutas”,
e também quanto à densidade populacional.
Talvez essa concepção de Louzada sirva para justificar uma preocupação esboçada nos
jornais na época em Feira de Santana: “a comissão também, conjuntamente com o governo da
cidade estão empenhados em proporcionar ao povo um espetáculo digno dos foros de
civilidade dessa maravilhosa cidade” 84. Era como se a presença do festejo indicasse um grau
de “desenvolvimento”. Essa era uma preocupação presente nos jornais, o que foi um
importante instrumento da formação de significado e das representações, mas isso é tema do
último capítulo, quando essa questão será retomada.
Os olhares sobre os festejos carnavalescos são diversos também, e Sebe85 faz uma
classificação, dividindo os estudiosos do carnaval em dois grupos. Para os pesquisadores
continuistas, o carnaval é uma festa antiga, que sempre existiu, mas que com o passar do
tempo foi adaptada. Nessa concepção, o carnaval aparece como a comemoração da vida,
sendo que o elemento da beleza é fundamental. Os circustancialistas formam o segundo
grupo, concebendo o carnaval muito mais pelos valores momentâneos que aparecem na
celebração. Isso não implica em um abandono de uma tradição, mas entendem que as
especificidades explicam muito melhor que as visões generalistas, uma festa que é renovável.
Essa última categoria tem ganhado muito espaço dentre as pesquisa, pois há um entendimento
que a ideia da linearidade limita muito o campo de estudo.

83
LOUZADA, Wilson. Op.cit. p. 11.
84
Folha do Norte. Feira de Santana, 4 de março de 1939. Ano XXX, Nº. 1554.
85
SEBE, José Carlos. Op.cit.
43

1.5. O mito da evolução carnavalesca.

Leonardo Pereira86 fez considerações sobre festejos carnavalescos: não se deve pensar
em uma sucessão de representações que não se encontram e não lutam no campo social pelo
domínio. Foi citada anteriormente uma perspectiva que coloca os festejos carnavalescos em
uma sequência que obedece à lógica do entrudo, carnaval e micareta, está última em algumas
cidades. Porém o erro é entendê-las como festas opostas. Os jogos do entrudo, carnaval e
micareta enquanto práticas culturais não cabem em uma datação específica, muito menos o
estabelecimento de um único significado.
A caracterização dos jogos do entrudo é um tema constante dos viajantes estrangeiros,
que em seus diários retratam o que mais acham de pitoresco nas sociedades visitadas. Um
desses relatos é propício neste momento, aquele dos missionários D.P. Kidder e J.C. Fletcher,
que estiveram no Brasil entre 1836 e 1865. Dessas viagens resultou o livro Brazil and the
Brasilians. Nesse relato de viagem fizeram a seguinte caracterização:

O entrudo, que corresponde ao carnaval na Itália, estende-se por três dias


antes da Quaresma e é geralmente considerado pelo povo como uma visível
determinação para compensar, por meio de divertimento, longo retiro que
irão guardar na Quaresma. O entrudo, entretanto, não é mais celebrado como
quando estive pela primeira vez no Rio. Dava-se então uma saturnal do mais
líquido aspecto e todas – homens e mulheres e crianças – entregavam-se a
êle, com o abandono que constituía o mais forte contraste com a sisudez e a
inação habitual dos mesmos. Antes de ser reprimido pela polícia, constituía
um notável acontecimento87.

Esse fragmento apresentou concepções da prática festiva. Fizeram uma comparação entre o
entrudo e o carnaval da Itália. O entrudo corresponderia ao carnaval da Itália, ligação que foi
feita em correspondência ao período carnavalesco.
A idéia do tempo do permitido, aquele em que as pessoas se entregam aos prazeres
mundanos diante dos dias limitados, foi mais uma vez reforçado. Além disso, algo que parece
obvio, mas aponta para a característica de movimento histórico, para ideia de que tradição não

86
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do
século XIX. 2. Ed. rev. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2004
87
D.P. Kidder e J.C. Fletcher (1836-1842/ 1851-1865). Op.cit.
44

é imobilidade, se localiza na citação de que o entrudo não é mais o mesmo de quando


estiveram no Brasil pela primeira vez.
Em outro trecho descrevem tais práticas:

Não era com chuva de confetes que as pessoas se saudavam nos dias do
entrudo, mas com chuveiros de laranjinhas e ovos, ou antes, com bolas de
cêra feitas com forma de laranja e ovos, cheias d’água (...). Êsse jogo não se
limitava às crianças ou às ruas, mas era feito na alta roda, tanto quanto na
classe inferior, fora e dentro de casa “88

A prática de jogar objetos contendo água uns nos outros era uma característica que
sempre apareceu nas descrições que tratam do entrudo, e embora essa tenha sido uma prática
cultural associada aos negros escravizados e sua linhagem, segundo os memorialistas89, esse
hábitos considerados bárbaros perpassavam entre as classes. Evidente que há que se fazerem
algumas ressalvas, para não cometermos o erro de eliminar as particularidades das práticas
entre grupos sociais e econômicos diversos.
O entrudo, como foi citado no tópico “O carnaval é mutável”, teve um significado
não-cristão e que sofreu com o tempo mudanças em seu significado, passando por um
processo de cristianização, com um significado atribuído pela Igreja católica. A concepção de
entrudo que chegou ao Brasil foi o de sentido cristão. Segundo Moraes Filho90, o entrudo
chegou às terras brasileiras por meio dos navegantes portugueses. Estes viajantes
colonizadores teriam colhido no Oriente, especificamente na Índia, muito dos elementos que
se transformaram no entrudo português. Essa prática lusitana, assim como afirmam Patrícia
Araújo91 e Marlene Pinho92, era diferente das que ocorriam no resto da Europa. Ambas citam
o seguinte trecho:

Nós portugueses, nunca compreendemos que o entrudo pudesse ser uma


festa de espírito como na França de Luiz XV: o nosso Entrudo, o santo
Entrudo lisboeta, foi sempre fundamental e caracterizadamente porco. O
século XVIII, então, excedeu todos os outros. Foi o século típico do entrudo
nacional93.

88
LOUZADA, Wilson. Op.cit. p. 13.
89
MORAES FILHO, Melo. Op.cit
90
Idem.
91
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Op.cit.
92
PINHEIRO, Marlene M. Soares. Op.cit.
93
DANTAS, Júlio. Gazeta de Notícias, 21/02/1909. Apud: PINHEIRO, Marilene. Op.cit. p. 81.
45

Mesmo que o entrudo fosse um brinquedo exclusivo de Portugal, e o carnaval fosse a


forma de festejar Momo, ou despedir-se dos aspectos mundanos antes de adentrar o período
da Quaresma, as formas de brincar sempre assumiam uma peculiaridade de cada local.
No Brasil o entrudo foi identificado como a primeira prática carnavalesca. Desde o
período monárquico, havia críticas ao modo de festejar o entrudo, atribuindo lhe o significado
de algo que era agressivo e violento. Na passagem da Monarquia para a República, essas
tensões foram agravadas, pois além do caráter de violento foi acrescido o elemento da
incivilidade.
Patrícia Araújo ao estudar os festejos carnavalescos em Minas Gerais, na passagem do
século XIX para o XX, apresentou uma contribuição para esta questão:

O movimento de “substituição” do entrudo pelo carnaval, este último


considerado modelo e padrão de uma festa, deixa vislumbrar as mudanças
pelas quais passavam a própria sociedade brasileira, e mineira em particular,
da mesma forma que suas ambigüidades e contradições. Sensações de
moderno/antigo, novo/velho, mudanças/ permanências, imitação/inovação
engolfam os indivíduos e permeiam as experiências sociais de forma e graus
variados (...) no tocante à festa, procuravam constituí-la retirando ou
negando tudo que fosse considerado impróprio ou “incivilizado”. Em nome
de uma sociedade refinada, organizada, moderna, “as pessoas de bom tom”
deveriam adotar os novos padrões de conduta e ação tanto para se divertirem
como também para o mundo social.94

Tratou-se de um projeto que visava reformar a sociedade, e os festejos não estavam


livres desse processo. Contudo os padrões partiam de uma determinação do ideal, daí para as
práticas é outra questão. Um projeto não significa a aceitação imediata nem a implantação
total e absoluta de algo, principalmente no que diz respeito às práticas culturais. Por esse
motivo que a ideia de sucessão festiva com rupturas abruptas não fazem sentido. O
movimento histórico é processual e como premissa fundamental apresenta sempre as
permanências e rupturas, as fronteiras são móveis e neste caso partem do ponto de vista
representativo e não prático.

94
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Op.cit. p.120.
46

O capítulo que segue adentra pelo universo das práticas e de como a feitura dos
festejos acabaram por construir um cenário festivo feirense. Perceber os grupos e de que
forma os feirense, das primeiras décadas do século XIX, saldavam momo.
Capítulo 2
Os carnavais da Cidade.
48

2.1. Os carnavais feirenses

Helder Alencar assegurou que “são antigas e muito antigas as festas de Momo na feira
de Santana. Elas datam de quando o carnaval ainda era uma festa bárbara, denominadas de
95
entrudo” . Alegou que na cidade prevalecia a prática do entrudo, e somente por volta de
1891 as práticas carnavalescas, associadas à ideia de civilizado teriam surgido na cidade.
Porém essas delimitações conceituais partem de uma atribuição de significado e
representações forjadas e trata-se muito menos de uma ruptura das práticas. Negar as
mudanças abruptas a ponto de separar as festas não significa imobilidade. As práticas mudam,
pois, como trata de um evento histórico o movimento lhe é inerente
Os festejos apareciam separados e noticiados como se fossem categorias diferentes:
entrudo, carnaval e micareta. O antagonismo estabelecido entre o entrudo e o carnaval foi
algo que transpôs o ambiente festivo, como foi dito anteriormente, era uma disputa de
significado. A criação do conflito entre carnaval e entrudo foi algo que esteve para além dos
festejos. Ela envolveu a negação de costumes considerados bárbaros como resultado do desejo
de reforma comportamental, como um projeto de transformar os hábitos e imprimir um novo
modelo social. Porém nesse capítulo trataremos o que foi separado, como uma coisa só:
práticas carnavalescas, a ponto de descrevê-las como práticas e não como significados.
O primeiro passo é caracterizar as práticas dentro de sua organização. As práticas
caracterizadas como o entrudo envolviam a confecção das laranjinhas. Segundo a observação
de Morais Filho, ao estabelecer um diálogo entre os festejos do Rio de Janeiro e Salvador, no
ano de 1886, a confecção das laranjinhas e limões era algo que movimentava a comunidade
muito antes dos folguedos:

Coloquemos no passado e descrevamos a folia, segundo os mais velhos. Na


Medina social, raro era o chefe de família que, de quinze a vinte dia antes
do entrudo, não estivesse atropelado com os pedidos de cera que lhes faziam
a senhora, uma filha, etc. Para a confecção dos limões, vários ingredientes
tornavam-se preciosos, bem como as essências para aromatizar água, o
carmim e o anil para colori-los, tudo isso adicionado de um funilzinho de
folha de flandres, por meio do qual enchiam.96

95
ALENCAR, Helder. Op.cit.
96
MORAIS FILHO, Melo. Op.cit. p. 132.
49

Morais Filho identificou a movimentação quase um mês antes do evento festivo, com
a confecção dos elementos que são essenciais às brincadeiras. O festejo começava antes
mesmo das folganças, a preparação da festa era o momento da gestação, o momento em que
está sendo pensada, articulada. Essa gestação movimentava os espaços tanto quanto a festa em
si.

As escravas e as sinhás moças entregavam-se todo o tempo ao fabrico dos


limões de cheiro, eram expostos à venda em bandejas, cestinhas, pratos, etc.
que as famílias colocavam sobre as janelas de suas casas, sobre bancos e
cadeiras das salas térreas, ou em tabuleiros à porta dos sobrados. Sendo
confiada a quitanda de algum moleque ou preta velha, que negociava com os
compradores.97

A dinâmica econômica também era fomentada, eis mais um dos múltiplos significados
da prática do entrudo, mas uma possibilidade analítica que os festejos carnavalescos
apresentam. Ao que tudo indica esse fabrico das laranjinhas e limões era uma atividade
feminina, tanto em Salvador quanto no Rio de Janeiro.
Ainda segundo Moraes Filho, esses festejos traziam consigo durante a prática várias
intencionalidades e a constante introdução de novos elementos. No contexto de Minas Gerais
os limões e as laranjinhas-de-cheiro eram considerados, dentro do entrudo, uma forma mais
comedida de festejar: “no século XIX foram incorporadas à brincadeira os limões-de-cheiro,
considerados uma forma mais refinada de jogar. Contudo, o refinamento acabava quando
esgotava a provisão de limões.” 98
Mesmo tratando especificamente do entrudo, tal pratica carnavalesca apresentava
divisões na forma de seus jogos: um entrudo mais sofisticado que utilizavam os limões-de-
cheiro e as laranjinhas-de-cheiro; e um entrudo que era mais “violento”, no qual usava
vermelhão, pó de peixe. Um agressivo e outro adequado. Porém essa inserção de elementos
“grosseiros” não foi exclusividade de Minas Gerais, no contexto baiano há indícios de tal
prática.

97
MORAIS FILHO, Melo. Op.cit. p. 133.
98
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes. Op.cit. p. 41.
50

A introdução de vermelhão99, dos pós de sapato o de pixe no jogo do


entrudo, deram motivos a conflitos, justas reclamações, do mesmo modo que
caroços cobertos de cera, com que alguns perversos entendiam divertir-se,
ocasionando acidentes100

O trecho a seguir abriu uma discussão quanto uma das utilizações e intencionalidades do
entrudo que era considerado adequado:

Do brinquedo do entrudo, influentes existem que ainda se lembram das belas


pontarias que fizeram dos belos alvos que atingiam dos deliciosos namoros
que entabularam naquelas tardes que se foram e de cujo crepúsculo apenas
um ou outro raio lhe esclarece a noite sombria da saudade.101

Havia duas formas, identificadas no mesmo período, das práticas. Na primeira, os


elementos carnavalescos foram utilizados para um enfrentamento, que gerou reclamações e
conflitos. Provavelmente esses caroços disfarçados de cera e os pós de sapato e de pixe eram
atirados em algum desafeto. O segundo fragmento já apresenta outro aspecto. O fato de
acertar uma laranjinha em um objeto afetivo que poderia propiciar uma aproximação e um
possível namoro, que poderia terminar durante os festejos de Momo ou prolonga-se, dando
origem a casamentos. O certo era que esse era mais uma forma de estabelecer vínculos. Essa
riqueza de detalhes descritos sobre os festejos carnavalescos do final do século XIX não foi
encontrado nas fontes referentes a Feira de Santana, principalmente sobre o processo de
fabricação tão bem detalhado por Morais Melo.
Os jornais desse período não tinham o hábito de noticiar o entrudo, a não ser para
criticá-lo e colocar-se a favor da sua extinção. Porém em um dos fragmentos encontrou-se
elementos para identificar o jogo do entrudo em Feira de Santana: “Vários entretenimentos do
carnaval, cujas festas traduzem o prazer e a alegria constituem o chic das cidades mais cultas,
mais civilizadas do mundo, onde a graça e a pilheiria, o belo e o agradável fizeram
desaparecer para sempre as grosseiras laranjinhas e a estúpida seringa”102. O jornal identificou
o entrudo dessa forma, o que me permitiu afirmar que o entrudo que ocorreu em Feira de

99
Sulfato vermelho de mercúrio pulverizado. In: AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora da
língua português – 19 ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 763.
100
MORAIS FILHO, Melo. Op.cit. p. 132.
101
Idem. p. 136.
102
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de Janeiro de 1910. Ano II. Nº 20
51

Santana das primeiras décadas do século XX era similar aos jogos identificados em outros
momentos e espaços. Dada a resistência ao jogo do entrudo, perceptível na crítica a essa
prática carnavalesca, é provável que o disfarce utilizado para esconder caroços e pedras
recobertos de ceras tenha sido utilizado pelos feirenses, mas isso é apenas uma hipótese, as
fontes não apontaram para essa complexidade.
O hábito de jogar coisas é característico dos festejos, seja atirar laranjinhas e águas
(cheirosas ou pútridas) sejam serpentinas ou lança-perfume. Os festejos eram organizados em
três dias, iniciavam-se no domingo e terminavam na terça-feira, antes da quarta-feira de
cinzas, o que seria a data limite para a realização dos festejos carnavalescos. Durante esses
três dias, identificados como gordos, os dias de fartura e extravagância, retomando o que foi
discutido no primeiro capítulo, a oposição aos dias de resignação e Quaresma.

2.2. A organização dos folguedos.

Apesar de Helder Alencar ter identificado e apresentado um fragmento do jornal O


Universo sobre a existência dos clubes carnavalescos em 1891, só encontra-se registros nos
arquivos referentes aos festejos carnavalescos em Feira de Santana-Ba a partir de 1901. Essas
notícias aparecem de forma tímida, se comparada ao destaque que lhes foi dado no período
da década de 1920 e 1930:

Carnaval

Embora as repetidas pancadas de água que estiveram quase dando fim aos
folguedos e as folias carnavalescas nesta cidade, ocorreram tudo muito
animado em todos os pontos da mesma.
Especialmente entre os foliões clube Filhos da Turquia, exhibindo um
“visioso” carro alegórico, com estandarte, seguindo um grande número de
mascarados a pé ou a cavalo. Durante os dois dias de folguedo não se deu o
menor distúrbio, se bem que se notava muita concorrência de povo.
No dia 17 houve espetáculo no theatro Santana, com a assistência do referido
clube.103

103
O Progresso. Feira de Santana, 24 de fevereiro de 1901, Ano I, Nº 6º.
52

Segundo esse fragmento, pode-se afirmar que nos festejos carnavalescos feirenses
existia a presença, já no começo do século XX, de carros alegóricos como elementos festivos
e estandartes. Essa era uma das principais características dos festejos carnavalescos em sua
forma civilizada, ou seja, o carnaval enquanto representação de uma forma de brincar era
marcada pela presença de carros alegóricos. Era o carnaval para se ver, feito normalmente
pela elite que poderia bancar os gastos com os carros. Outro indício era sobre a espacialidade,
quando afirma que o festejo foi animado em todos os pontos da cidade. Deve se lembrar que a
cidade na passagem do século XIX para o XX não tinha as proporções atuais, mas nos permite
deduzir que havia manifestações carnavalescas espalhadas pela cidade e não apenas em um
ponto específico.
Nesse momento foi identificado apenas um grupo carnavalesco, os Filhos da Turquia,
o nome sugestivo, pois faz referência a um elemento oriental. Cabe então uma especulação
sobre qual seria a explicação para o nome desse clube. Segundo os dados do IBGE104, na
passagem do século XIX para o século XX o Brasil passou a receber um grande contingente
de imigrantes árabes: “entre 1871 e 1900 apenas 5400 pessoas tinham aportado no Brasil e
95% dos imigrantes eram árabes” (...) até 1920, mais de 58.000 imigrantes árabes haviam
entrado no Brasil, sendo que o estado de São Paulo recebeu 40% deste total “105.
O período de imigração árabe para o Brasil de forma mais significativa coincide com o
surgimento do grupo que fez referência a essa cultura oriental. Entretanto nos dados do IBGE,
o estado da Bahia não apareceu como um dos maiores destinos desses imigrantes, o que não
significa que eles não tenham chegado ao solo baiano. Como os jornais costumavam publicar
notícias mundiais, as pessoas poderiam tomá-los como referência sem necessariamente ter
influência direta de um Turco, para que o Clube Filhos da Turquia tenha existido. Além
disso, nesse período o contexto árabe era um motivo carnavalesco, o seu luxo e riqueza eram
referências para a confecção das indumentárias.
Outra questão é quanto à dinâmica da festa, costumava-se festejar durante três dias:
domingo, segunda e terça-feira, porém a fonte cita apenas dois dias de festejo ocorridos nas
ruas. O último dia, ao invés da realização do festejo ocorrer no espaço público, ela foi
organizado pelo clube os filhos da Turquia, no Teatro Santana. Isso não aponta para uma
regra, na qual dois dias dos festejos eram na rua e o último em clubes, trata-se apenas de um
exemplo, que demonstra a existência dos festejos tanto em espaços públicos, quanto em locais
particulares.

104
http://www.ibge.gov.br/brasil500/arabes/razaoemigarabe.html
105
Idem.
53

Echos do Carnaval.

Evohé... Evoé...
Zig zig Bum! zig bum! Bum... bum...
Fomos surpreendidos na última terça-feira gorda com o passeio de um grupo
carnavalesco que quebrou a monotonia da nossa terra. Uma verdadeira
surpreza, pois tão mysteriosamente foram organizados, que nossa população
tão grande fartura de alegria teve.
Evohé!... Evohé!...
Aos sons de estridulo Zé-Pereira, acompanhado de reco-reco, bombos e
tambores, vimos um formidável grupo que trazia letras douradas de seus
dous anos de existência, (...) O Grupo Carnavalesco Flor de Arromba
compunha um grupo de cincoenta phantasiados z’elhos, diabos, reis,
princesas, morcegos, burros, caveiras diabinhos e muitos jagunços armados
de espingardas a tira colo, foices no lombo, chuchos, paus, etc.106

Sobre o carnaval de 1910 encontrou-se apenas notícias quanto à terça feira. Mas isso
não implica que nos dias anteriores não tenha ocorrido o carnaval. Como foram citados
anteriormente, os jornais desse período eram de pequeno porte e especificamente o jornal
Folha do Norte tinha uma circulação semanal. Nesse caso, a notícia referente à terça-feira
havia ocorrido há quase uma semana, logo o noticiário não era tão detalhado em virtude da
divisão em quatro laudas de tudo que havia sido “relevante” ao longo da semana que passara.
Por esse motivo existia uma limitação quanto aos detalhes dos festejos.
Voltando à análise da fonte, o ato de se fantasiar não seguia uma norma, na qual cada
grupo devesse sair às ruas com as mesmas indumentárias. Nesse caso dos festejos das
primeiras décadas do século XX em Feira de Santana, não se apontou para a normatização das
vestimentas. As fantasias eram as mais diversas possíveis. Sobre o trajeto feito pelo
aparentemente único cordão não houve nesse ano uma especificidade sobre as ruas, mas
apontou o paço municipal como um ponto de passagem e parada:

O espalhafatoso e barulhento Zé-Pereira percorreu as várias ruas da cidade,


até que estacionou diante do prédio da Intendência, numa saudação de honra
ao poder municipal. Ahi principiavam os cantos e danças característicos.
Piruetas e negaças, requebros e contorções davam vida interessante ao
cordão carnavalesco, muito bem ensaiado nas evoluções que faziam seus
mascarados, de tal modo que, além dos apetrechos que traziam, embocavam
vários instrumentos musicais.

106
Folha do Norte. Feira de Santana, 12 de Fevereiro de 1910, Ano II. Nº 22
54

Empenhava o primeiro estandarte um majestoso rei, vermelhaço como um


inglês, cabelos cinzentos, bronzeados e galhões de coronel, andar pausado,
methodico, a que, com uma gravidade imperialesca, avançou a frente do
grupo, cantando com a música do – Nem que chova o que chover107.

O cortejo percorria algumas ruas da cidade, porém tinha como ponto de referência o
paço municipal, muito embora a festa carnavalesca não fosse uma festa incluída no calendário
oficial da prefeitura. Além da reverência ao poder público, o cordão citado tinha uma aparente
organização, do ponto de vista do cortejo, na evolução e na cadência do desfile. O uso de
máscaras foi outra característica neste momento festivo.
O trecho abaixo representou um momento decisivo do festejo, pois era o momento em
que um homem fantasiado de rei entoava um cantou que aparentemente iniciava o festejo,
funcionando como um rito de passagem. Primeiro ele se apresentou ao poder público e ai
então os folguedos tiveram um início formal.
O canto entoado pelo majestoso rei foi este:

- Eis aqui o grande chefe,


Eis o chefe papa-figo
Grito, berro dou tabefe,
Não do amigo do amigo,

Eis aqui a minha gente,


Flor da gente de arrelia,
Povo pouco mais violento
Arromba ferro estropia.

-Não há ninguém mais decente,


Desde o Sobradinho ao tomba!
Viva a flor da nossa gente
Viva o grupo Flor do Arromba

Na casa branca da serra,


Que eu ficava horas inteiras,
Nada arranco ha folha guerreira
A estas magras algibeiras.

Sob o disfarce e a chalaça


Eleva-se o meu papel,
Mas... Quem nasceu para cachaça
Nunca chega a moscatel

- Eil-o o mestre, sábio e seriol

107
Folha do Norte. Feira de Santana, 12 de Fevereiro de 1910, Ano II. Nº 22
55

Vem contra mim? Leva surra,


Sou a flor. mistério
Chamam-me catão coturra

Quem nos vê julga trazemos


Da aliança a niveta pomba.
Jamais! Fartaremos, fartaremos
De entregas a “Flor do Arromba”

Quem mais valente e bonito,


Mais sagaz, mais mordedor?
Ali dentro... Tenho dito,
Sou até imperador!

Nisso só? E no mocinho,


Quem me vence, venha ver?
Mas emfim, sou um santinho,
Só sei trahi e morder

Ai, as lutas d’esta vida!


Morre quem vive de donho
Que é da gloria appetecida?
Aos pés a Lyra depoente

Seja a vida um riso aberto


Para o bem e as illusões,
Embora comamos, certo
Do município os tostões108

O início da letra mostrou uma espécie de apresentação, isso retifica o que foi dito
anteriormente, quando o rei da folia apresentou ao poder público e as suas intenções em nome
do seu povo, pois ele era um rei com seus súditos a pedir passagem. A letra expôs também
elementos contraditórios, pois é um povo violento que arromba ferro, mas em contrapartida é
denominado como um povo decente. A violência nesse caso referiu-se ao ato da alegria e não
do fazer mal. É uma música que funcionou como uma espécie de abre alas carnavalescas. Nas
duas últimas estrofes estabeleceu um comparativo com a vida ‘real’, na qual ele não é
imperador, pois afirmou “ali dentro... tenho dito, sou até imperador!”. A vida, segundo a
canção, devia estar aberta ao riso para o bem e as ilusões.
Voltando ao trecho que antecedeu a canção, a figura do Zé-Pereira apareceu como um
sujeito da festa que funcionava como um espírito festivo, se é que assim pode-se denominar.
E nesse momento abre-se um parêntese para afirmar que esse sujeito festivo não aparecia
apenas no período carnavalesco. No Folha da Feira ele aparecia como um personagem que

108
Folha do Norte. Feira de Santana, 12 de Fevereiro de 1910, Ano II. Nº 22,
56

assinava a parte humorística do jornal, pequenos textos de humor que também tinham um
caráter crítico.
Vale ressaltar que isso não implica em uma prática carnavalesca. Mas aponta para a
forma de como um elemento carnavalesco pode ser utilizado para além do período
carnavalesco. Como já foi mencionado, Zé-Pereira era o nome dado a um bombo que dava o
ritmo aos festejos carnavalescos. É uma personificação de instrumento musical carnavalesco.

Imagem: Jornal Folha da Feira, de Junho de 1933, ANO V. Nº 246;

Segue a transcrição do documento:

Humorismo
57

Ao toque da fanfarra

Cumpre a policia corrigir uma horda de desocupados, malandros perniciosos


os que infestam a cidade, em detrimento ao decoro público.

Molequeira desabrida
Malcreada, patranheiras,
Pschlada, corriqueira,
Vive ahi, a solta, ao léo...
A polícia me parece,
Que s’quece dessa gente,
Remitente, estoleada...
Uns – de calças arregaçadas.
Outros – nus e sem chapéo.
Zé- Pereira.109

Dois elementos chamam atenção; a primeira foi a estética. A utilização de um


elemento carnavalesco, o Zé-Pereira, que não bastasse o nome ainda está com toda uma
indumentária carnavalesca, fantasiado. Entretanto ele está recortado da sua temporalidade,
trata-se de uma reportagem do mês de junho quando costumeiramente os trabalhos
carnavalescos já teriam sido encerrados. Esse elemento foi prontamente associado ao humor,
ao deboche, à crítica. Zé-Pereira não estava preso à temporalidade carnavalesca na percepção
dos editores do Jornal Folha da Feira, que tinha como diretor e proprietário Martiniano
Carneiro e redator Corrêa Carmo. Ele servia como uma cortina de fumaça para apontar os
problemas em um tom de brincadeira, como as feitas no período carnavalesco.
A segunda tratou-se do textual, nessa percepção o texto é pensado junto com a
imagem. É perceptível uma crítica voltada para o poder da polícia, que aparentemente, não
tem cumprido com o que “Zé-Pereira” entende como sendo a sua obrigação, que era defender
o decoro público, corrigindo os desordeiros. O texto não fez nenhuma referência aos festejos
carnavalescos, mas já serve de previa para despertar um olhar mais cuidadoso para o que será
discutido no capítulo a seguir. Isso porque os festejos estavam imbuídos dessas
intencionalidades ordeiras, hipótese que foi fortificada com esse fragmento, no qual um
elemento carnavalesco foi utilizado para estabelecer crítica à horda de desocupado.
Partindo dessa ideia de ordem social, vale lembrar que nem sempre os festejos foram
prioridades nas páginas dos jornais feirenses. Por esse motivo, em alguns anos os jornais
vistoriados, não foram encontradas informações esse evento festivo. Dentro desse contexto os

109
Folha da Feira. Feira de Santana, 27 de Junho de 1933, Ano V. Nº 246;
58

anos de 1911 a 1914 e o período de 1919 a 1921 foram os casos mais evidentes dessa escassez
de notícia. Entretanto, o fato de não ter sido noticiado, não implica automaticamente em uma
prova irrefutável para afirmar que não teriam existido os folguedos nesses anos. Não foi
encontrado, por hora, nenhum outro documento que aponte para a existência de práticas
carnavalescas na cidade nos períodos citados.
Contudo nesses anos de silêncios referentes aos folguedos carnavalescos eram
corriqueiros os anúncios que faziam referência ao carnaval da capital:

Pelo motivo das graves agitações porque, ora passa a Bahia e principalmente
sua capital, agitações que vão até enlutando lares, porque a combinação
política, no assalto do poder, não pesam crimes e até assassinatos, não mais
se effectuará o anunciado passeio de recreio a Sociedade 25 de Março à
cidade do Salvador, pelo carnaval deste ano.110

As referidas agitações políticas, das quais a fonte apontou, estavam relacionadas à


sucessão do governador do Estado da Bahia. “Em 1911, começaram as especulações em torno
do futuro governador baiano. Seabra, aliado desde o início do governo federal, era aventado
como um nome forte, mas sofria enorme resistência da situação local de muitos chefes
políticos tradicionais, a exemplo de Rui Barbosa.”111 As disputas políticas dominavam o
cenário baiano e as tenções foram aprofundadas à medida que as eleições se aproximavam. A
proposta de Rui Barbosa em transferir a capital para o interior do estado, Jequié, e o
adiantamento das eleições agravaram a situação, segundo Rinaldo Leite.
O governo federal posicionou-se ao lado de Seabra e a causa se estendeu pelo ano de
1912:

No dia 10 de janeiro de 1912, cumprindo ordens da presidência e do ministro


da Guerra, o general Sotero Menezes, responsável pelo comando militar da
região, enviou um ultimato ao governador para que cumprisse a ordem
judicial e o ameaçou de fazê-lo respeitada a força. Aurélio Viana persistiu
em não aceitar a determinação. Assim, a partir das catorze horas do mesmo
dia, os canhões instalados nos fortes do mar e do Barbalho iniciaram o
Bombardeio do centro de Salvado, dirigindo tiros, principalmente, contra o

110
Folha do Norte. Feira de Santana, 3 de fevereiro de 1912, Ano IV, Nº 105.
111
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. A Rainha destronada, Discurso das Elites como sobre Grandezas e os
infortúnios da Bahia nas Primeiras Décadas da republicana. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2005. p. 319.
59

Palácio do Governador e a antiga Câmara Municipal, local de funcionamento


da Assembleia legislativa112.

Essas foram as agitações pelas quais passavam a Bahia e essas manchetes ocupavam grande
parte dos folhetins da época.
Entretanto outros anúncios do mesmo ano de 1912 apontaram para a pertinência de
um clima carnavalesco: “Para o carnaval, procurem o atelier de Chapéus de Francellina de
113
Mello Lima” . O fato de uma casa comercial investir em um reclame anunciando serviços
voltados para o carnaval indicava que havia uma mobilização voltada para o festejo, pelo
menos naquele ano de 1912; quanto aos outros períodos, as fontes não permitem fazer tal
afirmação. Será que os festejos não aconteceram? Ou eles não foram noticiados devido ao
contexto político baiano? O dado do reclame indicou que a segunda é mais plausível, pois não
foi encontrado nenhum motivo que impedisse essa realização.
As chamadas para os passeios à capital não foram algo pontual do ano de 1912, eles
voltaram a aparecer em 1914, primeiro em forma de anúncio: “Carnaval de 1914. Pomposo
passeio de recreio da 25 de Março à capital do estado em 22 de fevereiro.” 114 Quando estava
mais próximo dos festejos, as chamadas eram intensificada e detalhadas:

Passeio à capital.

Conforme se vem anunciado, realisa-se nos vindouros dias 21, 22 e 23 o


passeio de recreio à capital do Estado, promovido pela Sociedade 25 de
Março.
Partindo desta cidade às 22 horas de 21 chegarão aos passantes à cidade do
Salvador às 8 horas da manhan seguinte, estando-lhes preparados pomposa
recepção, promovida pela colônia feirense e pela sociedade Recreio do
Bomfim e Muturia dos Musicos do 1º grupo da polícia.
Nessa recepção tomarão parte várias corporações orpheicas bem como
Recreio do Pilar e Lyra de Appolo e Carlos Gomes Lyra de S. Braz.115

Os indícios apontaram que na década de 1910 já existia um deslocamento de Feira para


Salvador, o que representava uma concorrência ao carnaval feirense.

112
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. A Rainha destronada, Discurso das Elites como sobre Grandezas e os
infortúnios da Bahia nas Primeiras Décadas da republicana. p. 320.
113
Folha do Norte. Feira de Santana, 3 de fevereiro de 1912, Ano IV, Nº 105.
114
Folha do Norte. Feira de Santana, 21 de janeiro de 1914, Ano VI, Nº 206.
115
Folha do Norte. Feira de Santana, 14 de fevereiro de 1914. Ano VI, Nº 209.
60

Com o passar do tempo e mediante as acomodações políticas, as notícias sobre os festejos


carnavalescos passaram a ter maior freqüência a partir de 1922, porém de forma tímida, com
notícias sintéticas, pequenas notas. E essas reportagens não citavam o carnaval de rua, apenas
os bailes promovidos pela Filarmônica 25 de Março:

O carnaval, o baile da 25. Um grupo de admiradores da 25 de Março realiza


um baile à fantasia no palacete da apreciada corporação orfheica. Todos os
associados da 25 terão entrada franca nessa festa, que assignaria o carnaval
deste anno com uma chic na chronica social feirense116.

A fonte permite afirmar que nos festejos carnavalescos existiam bailes a fantasia em
espaço privados, no caso específico das filarmônicas, ou seja, os folguedos não estavam
limitados ao espaço da rua. E o jornal posicionou-se como se a modalidade de festejo privado
representasse a totalidade carnavalesca, o que indica a posição ideológica desse veículo de
informação mediante a festividade. Ao que indica as fontes, a participação nesses bailes
ocorriam mediante pagamento, exceto, como sinalizou o fragmento, se fosse um sócio da
entidade promotora do baile.
Em 1923 ainda era tímida a aparição das notícias referentes às folganças
carnavalescas, mas uma delas e apresentou um elemento contraditório:

Carnaval.
Momo passou ao largo. E a cidade viveu os três dias da troca e da folia no
ram-mam de uma placidez inalterável
Nada, absolutamente nada assignalaria entre nós o Carnaval si não fora o
grupo Phantasmas, composto por geniais senhorinhas e que na terça-feira, á
tarde, percorreu esfuziante de alegria às ruas da urbe117.

O trecho apontou para um desânimo em relação aos dias de carnaval, indicou para
uma ausência dos festejos durante o período carnavalesco, que fora salvo pela ação de um
grupo. Essas lacunas fazem pensar se a referência de carnaval nesse período era uma prática
corriqueira ou uma construção, que tinha como ideal uma festa carnavalesca comum as
cidades tidas como urbanizadas. Isso porque os festejos, pelo menos neste ano, segundo a

116
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1922, Ano XIV, Nº 519.
117
Folha do Norte. Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1923, Ano XV, Nº 670
61

fonte, foram idealizados e realizados apenas por um grupo. Logo, o carnaval era realizado,
mas não com o empenho que em alguns momentos lhe era atribuído e nem com uma grande
efervescência.
Durante os anos 1920, as notícias eram pontuais geralmente uma reportagem que
apresentavam um resumo dos dias festivos, reportagens mais sucintas:

O carnaval entre nós

Programa chistoso expressivo correu desde os primeiros dias da semana,


celebre e arrebatador por toda a cidade, anunciante entre nós do carnaval, a
se realizar em amanhã e terça-feira.
Dada a grande animação com que se apresenta e diz de como vão ser
festejados os dois dias determinados, parece que iremos assistir em verdade
momentos carnavalescos.
As tardes dos referidos dias, atos enfeitados, correrão as ruas da cidade. Tais
farão ainda álacres cordões de moças phantasiadas e mascaradas de todo
gênero.
Em repetidas noites ocupando o coreto da aprazível Praça de Sant’Anna,
philarmonicas locaes farão brilhantes tocatas, ocasião em que gentis
senhorinhas e rapazes phantaziados disputarão animadas batalhas de
confetes, lança-perfume e serpentinas.118

Esse fragmento permitiu fazer algumas afirmações: mesmo não especificando as ruas
pelas quais passavam o carnaval, tinha um segundo ponto de referência além do paço
municipal, que era o coreto da Igreja de Sant’ Anna, que vem a ser a catedral da cidade. As
caracterizações das práticas também eram constantemente renovadas, o ato de usar fantasias,
usar máscaras e molhar uns aos outros com o lança perfume e as batalhas de confetes. “A
frente de suas legiões aguerridas e fartamente municiadas de confetes, serpentinas e
perfumadores e lança-perfume, Momo – o eterno deus do Riso e da loucura aproxima-se.”119
O carnaval tinha como prática a guerra das serpentinas, dos confetes e do lança perfume.
Comparando à prática do entrudo, encontramos mais semelhanças que divergências. No
entrudo a guerra era feita com laranjinhas e pós. A guerra de objetos, molhar uns aos outros
era a mesma. Em ambos os casos, o que mudou foram os objetos utilizados.
Foi a partir da metade da década de 1920, que os jornais, sobretudo a Folha do Norte,
apresentaram uma preocupação maior em anunciar os folguedos não apenas durante o festejo,
mas também com certa antecedência, inclusive apresentando uma comissão e certo empenho

118
Folha do Norte. Feira de Santana, 21 de fevereiro de 1925, Ano XVII, Nº 776.
119
Folha do Norte. Feira de Santana, 30 de janeiro de 1926, Ano XVIII, Nº 858.
62

em realizar algo melhor. Talvez essa preocupação tenha surgido a partir da percepção de este
espaço festivo também era um espaço de disputas políticas, o que justificaria a atenção dada
aos festejos:

Sabemos que a comissão promotora dos festejos no anno passado indicará


para membro do corrente anno aos influentes cavalheiros Srs. Elpidio
Raymuno da Nova, negociantes José Olympio da Silva, Alvaro Rubem, Joel
Barbosa, Marinosio Mello o que importa dizer que o carnaval de 1926 não
será menos brilhante e animado do que o de 1925. Essa é a opinião de toda a
população de Feira de Santana.120

A forma como os festejos eram abordados mudaram com a administração de Raul Silva como
diretor do jornal Folha do Norte, pois foi dado ao festejo um destaque que permitiu uma
análise mais aprofundada e detalhada, começando as reportagens a partir do mês de Janeiro.

2.3. O carnaval dos anos trinta e a suposta “crise” carnavalesca.

A partir da década de 1930 os festejos carnavalescos passaram a ser noticiados em um


contexto de “crise”. A referida crise, segundo Helder Alencar121, estaria ligada à construção
da Rodovia 324, que ligam as cidades de Feira de Santana e Salvador. Porém não seria seguro
afirmar que a construção de uma rodovia esvaziaria uma cidade a ponto de não existir o
carnaval, pois a criação de infraestruturas para locomoção não garantiria a pronta mobilidade.
Essa teoria da “crise” carnavalesca aliada à concorrência com o carnaval de Salvador
fomentado pela construção da rodovia, também foi levantado por Aldo Silva, quando afirmou:

A abertura da rodovia concluída em 1929 criou a possibilidade, portanto, de


os feirenses desfrutarem do carnaval em Salvador. Em 1932 essa prática já
se mostrava em franca expansão, com a população preferindo a festa na
capital, de modo que Feira de Santana via-se progressivamente esvaziada de
seus foliões, fato, aliás, claramente percebido pelos munícipes de então, para
os quais o carnaval daquele ano havia sido apenas ‘modesto’.122

120
Folha do Norte. Feira de Santana, 30 de janeiro de 1926, Ano XVIII, Nº 858.
121
ALENCAR, Helder. Op.cit.
122
SILVA, Aldo José Moraes. De terra Sã à berço da micareta: estratégias constitutivas da identidade social
em Feira de Santana. p.122.
63

O dado sobre a facilidade do trânsito entre Feira de Santana e a capital é inegável,


porém esse fator não foi determinante para a chamada “crise” carnavalesca, pois muito antes
de 1929, ano de conclusão da rodovia Br. 324, alguns grupos, em especial as filarmônicas, já
promoviam passeios à capital durante os festejos carnavalescos. Como já foi citado
anteriormente, e retomo neste momento como um caráter demonstrativo, os passeios eram
uma prática comum durante o período carnavalesco:

Passeio à capital.

Conforme se vem anunciado, realisa-se nos vindouros dias 21, 22 e 23 o


passeio de recreio à capital do Estado, promovido pela Sociedade 25 de
Março.
Partindo desta cidade às 22 horas de 21 chegarão os passantes à cidade do
Salvador às 8 horas da manhã seguinte, estando-lhes preparados pomposa
recepção, promovida pela colônia feirense e pela sociedade Recreio do
Bomfim e Muturia dos Musicos do 1º grupo da polícia.
Nessa recepção tomarão parte várias corporações orpheicas bem como
Recreio do Pilar e Lyra de Appolo e Carlos Gomes Lyra de S. Braz.123

Essa facilidade pode ter colaborado, mas a prática da migração rumo ao carnaval
soteropolitano não surgiu por causa da rodovia.
Outro ponto a ser pensado, que foi suscitado por Aldo Silva:

O êxodo dos foliões, especialmente daqueles tidos como “influentes”,


determinou a derrocada do carnaval feirense. As figuras mais abastadas e
destacadas preteriam a festa local em favor dos festejos na capital,
influenciando assim boa parte da comunidade, que seguia o mesmo
caminho.124

O chamado êxodo não era algo que promovia o esvaziamento da cidade, apenas alguns
grupos, por sua questão social vantajosa, tinha acesso ao carnaval soteropolitano. A
concorrência com o carnaval de Salvador é anterior à construção da rodovia. O que mudou foi
a forma como essas alternâncias, entre carnavais mais expressivos e os menos entusiasmados,
passavam a ser tratados pelos veículos de informação.
123
Folha do Norte. Feira de Santana, 14 de fevereiro de 1914. Ano VI Nº 209.
124
SILVA, Ala do José Moraes. De terra Sã à berço da micareta: estratégias constitutivas da identidade social
em Feira de Santana. p.123.
64

Nisso a Revista Panorama da Bahia ajudou no debate dessa problemática, pois


quando a Micareta completou 50 anos de existência foi lançado um número comemorativo
que se prestou a fazer um dossiê e nele apareceu o seguinte dado:

Folião solitário: Na realidade, Feira de Santana passou a viver grandes festas


momescas a partir da criação da Mi-carême. Manoel Fausto dos Santos, ex-
jogador de futebol e desportistas amador conhecido como “Mané de Emília”,
com 87 anos de idade, lembra-se perfeitamente que o Carnaval em Feira de
Santana começou a existir em 1929. O comerciante Antônio Azevedo, filho
de Feira, mas residente no Rio de Janeiro, ficou decepcionado quando
resolveu vir passar o Carnaval na terra natal em 29. A festa simplesmente
não existia. “Ele então me incentivou a estimular a realização da festa,
consultamos vários intelectuais que na época trabalhavam na “Folha do
Norte” e o primeiro resultado prático foi a fundação do ‘Clube Carnavalesco
as Melindrosas” em 4 de fevereiro de 1929, da qual fui presidente por Vários
anos.125

Segundo essa referência, antes mesmo de 1929, os festejos carnavalescos não


conseguiam estabelecer em Feira de Santana uma regularidade, talvez isso ajude a entender as
lacunas em alguns anos das primeiras décadas do século XX. Nesse ponto a contribuição de
Aldo Silva, que é coerente com esse dado e as leituras das fontes que seguem, é a ideia de
uma construção da festa. O dado acima diz que a partir de uma comparação com o carnaval
carioca, que na ocasião era a capital do país, surgiu uma reformulação dos festejos com o
envolvimento de um dos principais jornais da cidade, o Folha do Norte. Esse fator explica o
porquê da riqueza dos detalhes do referido jornal ao documentar e divulgar a festa a partir de
1930.
Na década de 1930 houve um esforço em renovar, “salvar” as festividades
carnavalescas. Nesse contexto surgiu o cordão das Melindrosas como uma injeção de ânimo
aos festejos carnavalescos. Segundo o dado da Revista Panorama da Bahia, essa iniciativa
não teria sido suficiente.

A iniciativa de Antônio Azevedo, apoiada por outros foliões não foi


suficiente, entretanto, para fazer com que o carnaval fosse realmente uma
festa animada em feira de Santana no período de 29 a 36. “Tanto que em 36
“as melindrosas” foram participar da festa momesca de Muritiba, ocasião em

125
Revista Panorama da Bahia, 20 de abril de 1987, Ano 4, nº 80. p. 12.
65

que aconteceu a primeira desavença no clube, tendo como desfecho a criação


de um novo clube carnavalesco: Flor do Carnaval.126

Além de concorrer com o carnaval da capital do Estado, existiam outras localidade que
tinha o festejo carnavalesco pré-quaresma, nesse caso ocorreu também uma migração do
clube carnavalesco para o recôncavo, a cidade de Muritiba. Dessa forma, o esvaziamento da
cidade não ocorria só por causa da construção da BR. 324, tendo como destino apenas
Salvador, visto que os grupos carnavalescos tinham outros destinos.
A maior atenção dada às décadas que antecedem a criação da micareta apresenta um
panorama de como se deram os festejos. O primeiro dado é que o evento festivo passou a ser
noticiado, como já foi dito, com quinze dias de antecedência e não mais em uma nota de
véspera. “O Carnaval avisinha-se: mãos à ombro foliões. Falta apenas uma quinzena para que
Momo – o eterno e sempre almejado deus do riso e do prazer - surja, dominador, na urbe
127
feirense, instituindo seu ephemero, mas salutarissimo reinado” . As notas sobre o festejo
cresciam gradativamente à medida que este se aproximava e existia um apelo, uma espécie de
justificativa para valorizar o momento:

Todas as classes deveriam, aliás, empenhar-se pelo esplendor do Tríduo da


Folia em seu próprio interesse, porque eles iriam aproveitar a circulação do
dinheiro que se retrai e até sonega pesar de ser evidente a necessidade da
contribuição geral. O commercio, os profissionais da volante, os artistas de
varias espécies, confeccionadores de vestes e artigos apropriados, além de
outros têm compensações vantajosas do que por ventura, venham a depender
em auxílio às grandes festas locais. A verdade desse assertivo é
irrefutável.128

Uma justificativa que atentou para os benefícios econômicos que os comerciantes


poderiam ter caso houvesse um empenho para que a festa ocorresse, seria então um bom
negócio investir nas festas locais, pois isso só traria benefícios. E as justificativas seguiram
para além do caráter econômico, perpassando como foi citado no capítulo anterior, por uma
questão social e segundo a fonte “psycologica”:

126
Revista Panorama da Bahia, 20 de abril de 1987, Ano 4, nº 80. p. 12.
127
Folha do Norte. Feira de Santana, 31 de Janeiro de 1931, Ano XXII, Nº 1124.
128
Folha do Norte. Feira de Santana, 7 de Fevereiro de 1931, Ano XXI, Nº 1125.
66

O carnaval é uma festa civilizadora e necessária até do ponto de vista


psycologico, ‘pois é uma grande válvula de segurança aberta para a
expansão do prazer franco a que a vida atctual, a mais torturante (...) de
todas as epidemias as que menos receio e terrores inspiram é provocar
alegria é isto é o carnaval129.

Após a vasta propaganda realizada sobre os festejos carnavalescos, com convites à


participarem da festa desde a sua organização, com justificativas econômicas e sociais, o
carnaval de 1931 foi realizado na segunda quinzena do mês de fevereiro e um balanço foi
feito pelo jornal Folha do Norte sobre o festejo:

Os brilhos e os delírios de carnaval, nesta urbe notadamente na terça-feira


gorda, excederam as previsões optimstas dos próprios momocratas.
A comissão organizadora e executiva do tríduo da alegria está de parabéns
pelo êxito de seu louvável emprehendimento resultante de esforços titânicos
a supprir a deficiência de numerários.
Porque, em verdade (seja nos permitido a franqueza ao registrarmos os
eventos álacres da quadra em que as verdades podem e devem ser ditas) ela
não foi auxiliada como merecia.130

Os festejos foram realizados, mesmo apresentando um saldo positivo no qual se afirma


que as expectativas dos otimistas foram superadas, ao final do balanço deixou transparecer
que não alcançou o esperado. Talvez essa insatisfação com o fato de não ter tido o apoio
desejado, tenha desencadeado a ideia da crise. E isso passou a ser cada vez mais freqüente.
Apesar dos anos da década de 1930 serem caracterizados como uma crise carnavalesca, os
mesmo veículos informativos apontaram para uma sequência festiva, inclusive foram os anos
que se encontrou uma quantidade maior de reportagens sobre o período carnavalesco.
E à medida que os anos avançavam a ideia da crise ganhava mais força, chegando a
anunciar prematuramente a redução do brilho do festejo daquele ano.

Carnaval
Está decretada para mais algumas horas o início do regime oficial da alegria.
Ao poder do eterno deus do riso e da loucura jamais resistiu a gente sadia e
moça sem preocupações sem mágoas.
129
Folha do Norte. Feira de Santana, 14 de fevereiro de 1931, Ano XXII, Nº 1126.
130
Folha do Norte. Feira de Santana, 21 de fevereiro de 1931, Ano XXII, Nº 1127.
67

A crise absorvente reduzirá de muito os trilhos e animação do transcorrido


triende. Será modesto o tríduo do prazer em 1932. Sob o controle de
comissão esforçada, cujas actuação dedicada foi o seu tempo encarado como
prodigiosa pelo muito que realizaram, pelo êxito extraordinário de quando
empreenderam, o carnaval implantou-se victorioso na Feira, com a sua
característica de festa typica essencialmente popular.131

As dificuldades em realizar os festejos poderiam muito bem diminuir o brilho da festa,


segundo a versão do jornal, mas não a impediu de ser realizada. Um questionamento é
pertinente, seria essa a opinião de todos, será que o brilho deixou de ser intenso para todos ou
era essa impressão de um grupo? Não se pode em momento algum perder a dimensão de que a
imprensa foi um veículo de ideais e que não representava a totalidade muito menos uma
unanimidade.
Dado importante para os folguedos feirenses ocorreu em 1932, quando o trajeto do
cortejo carnavalesco foi delimitado com maior rigidez:

Este ano a autoridade policial alterou o percurso, o tornando obrigatório,


segundo edital publicado, mas em verdade, da maneira porque elle virá a ser
cumprido, não satisfará ao público eu sua generalidade, aprovará tão
somente aos comodistas que, por ventura residam nas ruas senhor dos passos
e Barão de Cotegipe.132

A mudança do trajeto apontou para uma organização que limitou os espaços do


festejo, garantindo um controle maior. Isso porque quem organizou e decretou a mudança foi
a força policial, órgão que era responsável por manter e cumprir a ordem e as condutas
“adequadas”.
Voltando ao aspecto de que a crise não teria sido algo que interrompesse com os
festejos, o próprio jornal no ano seguinte acabava corroborando para essa ideia de que a crise
era para alguns e não comprometia a todos a ponto de impedir a realização do festejo: “o
período é de penúria, de crise de tudo, elle não impediu, porém que a alma popular se
entregasse às expansões mais vivas e inebriantes, celebrando a festa oficial da Alegria.” 133
Os festejos por mais tradicional que possam parecer, sempre estão em constante
transformação, seja na mudança de um cortejo ou na introdução de novos elementos e
131
Folha do Norte. Feira de Santana, 6 de fevereiro de 1932, Ano XXIII, Nº 1177.
132
Folha do Norte. Feira de Santana, 6 de fevereiro de 1932, Ano XXIII, Nº 1177
133
Folha do Norte. Feira de Santana, 4 de março de 1933, Ano XXIV, Nº 1233.
68

comportamentos. Em uma reportagem, essas mudanças ficam um pouco mais perceptíveis do


ponto de vista das práticas.

Apresentem-se, foliões!
Mais uma quinzena a decorrer e implanta-se nesta urbe o regime
momocratico.
O eterno deus risonho renuncia jamais o seu pomposo reinado e seus adeptos
são incontáveis em todos os centros cultos.
São, muitos muitíssimos os citadinos que anseiam pelo tríduo da folia, em
que renovarão as batalhas incruentas a confetes, serpentinas, perfumadores,
ou melhor, lança perfumes.
Essas rodas elegantes de mocelinhas jovens e rapazes discutem-se a
adaptação de figurinos carnavalescos para os dias 11 e 13 de fevereiro
próximo, nos quais além dos corsos e passeatas vespertinas, affectara-se-ão
bailes a fantasia em várias partes. (...) Haverá surpresa.
Dizem-nos que projetam um bloco dos camisas...
Ah! O ledor tem interesse em saber qual o motiz? Com franqueza;
ignoramos. 134

A adequação das vestimentas carnavalescas deu o tom de mudanças. Por questões


climáticas, as vestimentas daqui deveriam ser adaptadas para um conforto maior. O corso
citado na fonte já era algo corriqueiro nos festejos carnavalescos, uma espécie de carro
alegórico, em menores proporções do que estamos habituados a ver, mais que era sempre
decorado com brilho e com alguns personagens em destaque. Permaneceram também os
jogos: guerras de objetos e o costume de molhar uns ao outros. Nesse caso específico o uso da
serpentina e do lança-perfume.
Nesta mesma reportagem apareceram os interesses do jornal, enquanto não apenas um
noticiador, mas uma empresa voltada para o mercado e o lucro. Após toda a propaganda em
torno do festejo, finaliza desta forma:

Aliada uma notícia agradável.


A secção de papelaria da Folha do Norte está devidamente apparelhada para
fornecer a todos os momophilos a preços convidativos, máscaras, cabeleiras,
barbas, toda espécie de disfarces, ornamentos de vários materiais
divertidíssimos feito em summa. Uma complexidade admirável de artefactos
carnavalescos que incomparável indústria allemã tem inventado e produzido
vale a pena verificar o tempo passa veloz.135

134
Folha do Norte. Feira de Santana, 27 de janeiro de 1934, Ano XXV, Nº 1280.
135
Folha do Norte. Feira de Santana, 27 de janeiro de 1934, Ano XXV, Nº 1280.
69

O interesse em divulgar os festejos carnavalescos era algo que trazia benefícios ao


grupo Folha do Norte, pois aliado à divulgação dos festejos estavam também a divulgação e a
propaganda de lojas dos patrocinadores da cidade, como fornecedoras dos elementos
indumentários necessários ao ato de brincar os dias de Momo.
A micareta teve como ano de criação 1937, porém há notícias sobre esse festejo em
datas anteriores e em locais diferentes de Feira de Santana:

Passou breve, fugaz como todas as coisas que proporcionam prazer, o tríduo
da Folia. Os folguedos dos primeiros dias de reinado de Momo único
decorreram algo frio, pesas da elevada temperatura ambiente. Fizeram-se
notadas inconveniências e falhas.
O movimento comercial da tardinha e da noite de sábado afiguraram-se a
muitas pessoas promissor de extraordinária animação affluencia de foliões a
Avenida da Alegria, (denominação dada por experimentando carnavalescos
às ruas Conselho Franco e dos Remedios, onde a circulação avulta em dias
de carnaval) o que, no entanto, não ocorreu (...). Os momophilos feirenses
querem ressarcir-se da relativa frieza do carnaval citadino e da quarentena
nesta de abstinência, promovendo festa álacre em sábado de aleluia e
domingo de Páschoa.136

Nesse trecho indica a organização de uma festa posterior ao carnaval, com um complemento
ao carnaval. Tratou também das falhas que impediram a realização de um festejo satisfatório,
isso na percepção do jornal. E alguns grupos carnavalescos já estavam a organizar o novo
festejo. Estes aparecem como informativos.

O novo e já promissor Bloco dos Farristas realizará festas campestres


inclusive a queima de um Judas na Praça da Matriz, que fica próximo a sua
sede fará passeata pelas principais artérias da urbe.
Somos informados de que o já festejado Bloco dos Duvidosos também
empreenderá attraente diversões nos dois dias mencionado.
Mais um cordão:
Cogita-se da organização de um novo bloco ou cordão que pretende estrear
nas próximas festas da Páschoa, vulgarmente chamado de Mi-carême, no
qual figurarão 30 senhorinhas e outros tantos rapazes de nossa sociedade.137

136
Folha do Norte. Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1934, Ano XXV, Nº 1281.
137
Folha do Norte. Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1934, Ano XXV, Nº 1281.
70

Os dois primeiros anúncios não seriam o suficiente para definir que essa seria uma
prévia da micareta, pois a queima de Judas é algo comum do sábado de Páscoa, porém por
estar aliada ao carnaval, é como uma espécie de ação para desencadear outro momento
carnavalesco que permite fazer tal afirmação. Hipótese esta que é fortificada com o último
anúncio, que é a criação de um novo bloco especialmente para a Mi-carême, um clube
aparentemente feminino, as Melindrosas.
Ainda sobre a “crise”, há uma contradição sobre esse suposto fracasso do carnaval de
1934. O jornal Folha da Feira faz o seguinte balanço

Carnaval e carnavalescos

O tríduo carnavalesco deste anno foi festejado pelos foliões inveterados.


Domingo, segunda e terça-feira os carnavalescos vieram à rua num completo
pandemônio.
Deram notas alegres: Os duvidosos, as Melindrosas, Doutro Planeta e outros
grupos esfusiantes.
As Philarmônicas 25 e Euterpe abriram os seus salões para a realização de
bailes e phantasias.
Inúmeras caretas encheram a urbe de graça e humor.
Vários automóveis enfeitados deslisaram pelas ruas da cidade.
Apezar dos pezares o carnaval não foi tão friamente como se antecipava.
Várias pessoas adeptas da folia carnavalesca preparavam-se para tomar a
frente dos festejos a Momo do próximo ano de 1935.138

Os dois jornais noticiaram o mesmo evento no mesmo período, e os dois apresentam


percepções que em alguns momentos chegaram a ser opostas: enquanto o Folha do Norte
apontou um fracasso absoluto, um esvaziamento de alegria, o Folha da Feira afirma que foi
bastante animado, com as ruas cheias de pessoas e a presença de vários automóveis
enfeitados. Nesse ponto voltamos a questão que abre esse tópico; que carnaval que está em
crise? Vê-se aqui são duas concepções do momento festivo que nos permite não negar que as
crises tivessem ocorrido, mas problematizá-la e pensar que não estamos tratando de
homogeneidade.
O panorama festivo dos anos seguinte, no jornal Folha do Norte do ano de 1935,
seguiu a mesma lógica de abordar um carnaval em crise cada vez mais acentuada

138
Folha da Feira. Feira de Santana, 19 de Fevereiro de 1934, Ano 1934, Nº 281.
71

Moderníssimo e sem o enthusiasmo crescente da multidão folga, decorreu o


carnaval nesta cidade. Pode-se afirmar que foi o mais fraco dos Tríduos de
Folia
A bem dizem nem mesmo foi um tríduo, porque no período de tempo
decorrido das vinte e duas horas de domingo gordo até as dezesseis horas do
ultimo dia de Momo o que ocorreu foi um hiato desconcordante do regime
momocrático.139

Porém mesmo com o “esvaziamento” provavelmente os grupos que permaneciam na cidade


promoviam os festejos carnavalescos:

Tivemos informações de que certo número de pessoas interessadas pela folia


carnavalescas nesta cidade tomou a peito a tarefa de promover meios no
sentido de que o rei Momo não passe esquecido entre nós.
Domingo, portanto teremos a cidade vibrar com ruas cheias de graça e
encanto, vivendo momentos de verdadeiros delírios. Na segunda e na terça-
feira, não menos será a animação dos foliões de toda a espécie carnavalesca,
o que nos faz esperar muitas surpresas durante o desejo do tríduo da
alegria.140

Essa reportagem retomou um momento anterior aos festejos daquele ano, porém
verificou-se que uma denominada crise do carnaval não significava o desinteresse geral para
com os festejos antecedentes a Quaresma. Segundo a fonte, existiam pessoas organizadas para
permanecer na cidade durante a festa e promover os folguedos carnavalescos. O Jornal Folha
da Feira quando tratava do mesmo período do apresentado pelo Jornal Folha do Norte,
apresenta uma versão um pouco mais branda sobre a suposta “crise”, indicava para uma
organização que prometia animação.

A Feira amanheceu hotem com a Rua Direita toda enfeitada de bandeirolas e


inúmeras máscaras percorreram a cidade, em grupos isolados, destacando-se,
pela manhã, um cordão muito bem organizado, composto de gentis
senhorinhas que entoaram harmoniosas canções, despertando a gente, como
para um alvará de anos.141

139
Folha do Norte. Feira de Santana, 9 de Março de 1935, Ano XXVI, Nº 1338.
140
Folha da Feira. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1935, Ano VII, Nº 333
141
Folha da Feira. Feira de Santana, 4 de março de 1935. Ano VII, Nº 344.
72

Ao analisar as duas reportagens que trataram do mesmo momento festivo, pareceu que
eram duas cidades diferentes e na verdade eram. As concepções dos grupos jornalísticos eram
diferentes e isso interferiu na forma de ler a cidade, e nesse caso específico o momento
festivo. Enquanto o Jornal Folha do Norte apontou para o não acontecimento dos festejos em
alguns momentos dos três dias alegando um esvaziamento da cidade, o Jornal Folha da Feira
firmou que havia foliões e que estes saíam às ruas. Por esse motivo é que afirmar uma crise
carnavalesca é algo muito perigoso, muito provavelmente poderia ocorrer uma crise
econômica ou de outro caráter na cidade e como os festejos são produções de um contexto
social havia a alternância entre carnavais mais pomposos, por assim dizer, e os festejos mais
simples.

2.4. Micareta: outro carnaval (?)

Muito embora tenha sido convencionado dizer que a micareta teria surgido no ano de
1937, devido as fortes chuvas que teriam interrompido o bom andamento do carnaval daquele
ano, é plenamente possível afirmar que se trata de um mito fundador. Isso porque antes
mesmo disso a prática carnavalesca pós-quaresma já era apontada em anos anteriores.
Em 1934, ao apresentar um panorama festivo daquele ano, o Jornal Folha do Norte
fez referência a um complemento festivo que ocorreria após a Quaresma, fonte que inclusive
já foi citada: “Cogita-se da organização de um novo bloco ou cordão que pretende estrear nas
próximas festas da Páschoa, vulgarmente chamado de Mi-carême, no qual figurarão 30
senhorinhas e outros tantos rapazes de nossa sociedade”.142.
Inclusive, o documento abaixo aponta para isso:

Bahia, 1 de abril de 1935.

Illmª. Snr. Presidente da Associação da imprensa.

Saudações cordiais.

Pelo presente solicitamos de V.S. o seu voto a um dos nomes desta lista, que
deverá substituir, de acordo com o concurso público em toda a imprensa, o
nome ”Mi-carême”.

142
Folha do Norte, Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1934, Ano XXV, Nº 1281
73

Gratos pela presteza da resposta nos firmaram pela diretoria da “Associação


de chronistas Carnavalescos”
São estes os nomes a que alludiamos.
Refolia.
Arlisquimada.
Micareta. (x)143
Carnavalito
Festa outondial.
Mascarada.
Bicarnaval
Precaremes.
Brincadeira.144

O concurso ocorrido em 1935 para a substituição do nome da Mi-carême indica, no


mínimo, a existência do festejo anterior a essa data, como um segundo carnaval que ocorria
após o domingo de páscoa, uma espécie de retomada dos festejos carnavalescos após o
período de resignação católica, que é a Quaresma. Corroborando para esse indício de que a
micareta não teria surgido em 1937, os jornais noticiavam desde esse ano de 1935 a existência
de um festejo carnavalesco pós-quaresma, que a partir dos anos seguintes ganharam mais
visibilidade.

Para incitamento dos foliões impõe-se a necessidade de que em domingo de


páscoa, 21 do mês por vir, realizem passeatas vespertinas e nocturnas os
impulsores do passado carnaval, que por razão de haver sido relativamente
mais fraco do que os dos annos anteriores carece de um complemento de
folia com o que concordam todos os feirenses, sem distinção de sexo, idade,
estada social e posição ou situação econômica.
Preparem-se todos, pois, para um carnaval Suppietico, denominação que não
serve para afigurar mais adequadamente que o impróprio termo francês Mi-
carême, que jamais poderá designar bem o dia festivo que sucede ao fim da
quaresma145.

A fonte não permite afirmar categoricamente, mas a forma como foi tratado esse
festejo carnavalesco realizado após a Quaresma indicou uma familiaridade, como se esse não
fosse o primeiro, mas algo que era possível de acontecer com muita tranqüilidade. Outro
aspecto que se tornou comum a partir de então foi ler esse folguedo carnavalesco como um

143
O “x” colocado ao lado da palavra micareta indica uma marcação de um voto da enquete aplicada. Essa
marcação foi feita à caneta no documento original.
144
Associação dos Chronistas Carnavalescos, 1 de abril de 1935, Bahia.
145
Folha do Norte. Feira de Santana, 16 de Março de 1935, Ano XXVI, Nº 1339.
74

complemento ao carnaval, como se a sua condição de existência fosse o sucesso ou o fracasso


carnavalesco de fevereiro. Se o carnaval conseguisse satisfazer não haveria a necessidade de
realizar a Mi-carême.
No ano de 1937, costumeiramente indicado como o ano da criação da micareta, os
festejos carnavalescos foram divididos em dois momentos, o que antecedeu a Quaresma
(carnaval) e o que a sucedeu (micareta). Durante o pré-carnaval, a manchete intitulada “o
carnaval de 1937” chamava à atenção para o festejo. “Informamos que a velha guarda
carnavalesca vai influir junto a Commissão Executiva, o que, em acontecimento, concorrerá
para que surjam novidades em penca durante o regime momocrático.”146. A diferença é que
nesse momento o festejo pós-quaresma passou a ser noticiado em jornais de outras cidades,
talvez a partir desse dado de crescimento da repercussão.

A micareta foi este ano o segundo carnaval. Superou todas as festas dessa
natureza anteriormente realizada em brilho, arte e beleza.
O contágio da alegria ali reinou durante três dias, causando as mais
agradáveis impressões aos visitantes.
Os bailes e as fantasias excederam todas as expectativas, enquanto os grupos
cantavam e álacre, os clubes, as fantafarras e os cordões faziam para eles
momentos deleitosos, vivendo momentos de emoção.
Enfim, a micareta de Feira de Santana foi uma das maiores festas do gênero
que se pode imaginar147.

O Folha do Norte apontava que a suposta crise teria ocorrido devido ao êxodo de
foliões e com a micareta, segundo essa fonte, ocorria justamente o contrário. Isso porque a
cidade passou a ser uma alternativa para aqueles que desejassem prolongar os festejos
carnavalescos. Talvez por isso esse momento carnavalesco tenha ganhado maior notoriedade,
pois não haveria a concorrência com os outros carnavais.
Nesse contexto de “crise”, a micareta passou a ser noticiada de forma mais
contundente. O que antes podia ocorrer de forma eventual como uma páscoa carnavalesca
ganhou um destaque maior. Essa é uma modalidade de carnaval fora de época que no ano de
1937 passou a ter uma comissão: “Manoel da Costa Ferreira, Adalberto Sampaio, Alvaro
Moura, João Matos, Manoel Narciso da Natividade, Gumercindo Almeida, Manoel Fausto
dos Santos, Rosalvo França, Arlindo Ferreira e Lindouro Lima.” 148

146
Folha do Norte. Feira de Santana, 9 de janeiro de 1937. Ano XXVII Nº 1434.
147
O tempo. Castro Alves, 10 de abril, 1937.
148
ALENCAR. Helder, op.cit.
75

Porém outra fonte indicava nomes diferentes para a comissão de 1937: “organizados
por Cl. Heráclito de Carvalho (Prefeito de Feira de Santana) como presidente. Comissão
executiva: Oscar Erudilho, Hermógenes Santana, Álvaro Moura Carneiro, Rodolfo Balalai,
149
Pedro Matos e Vitor Santana” . O crucial aqui não é averiguar qual foi a verdadeira, visto
que as duas podem ter existido, mas pensar que não havia uma homogeneidade, vários grupos
podiam organizar o festejo, não necessariamente estaria sobre o controle de um grupo apenas.
E o envolvimento do prefeito da cidade apontou para o envolvimento de políticos em uma
modalidade carnavalesca, que passava a receber um “apoio” de grupos privilegiados da
cidade. Não se deve perder de vista que esses espaços também serviam e servem de palco de
disputas políticas, de construção de uma memória.
Nos anos subsequentes a folia pós-quaresma passou a ganhar cada vez maior destaque
no Jornal Folha do Norte, e andou atrelada ao “fracasso” do carnaval:

Não vacilaremos em chamar segundo carnaval, á grande festa a fantasia que


se está organizando para o domingo de Paschoela, a véspera de Quasimodo e
dos dois seguintes. Se momo tivesse reinado effetivamente durante o tríduo a
que tinha incontestado direito em Fevereiro deste ano. Mi-carême ou meia-
quaresma, que só poderá designar com propriedade, a tradicional usança
festiva das lavadeiras e estudantes de Paris, não exprime, em absoluto, o
verdadeiro gênero das festas projetadas, mesmo porque se não efectúa no
tempo marcado pelo calendário. Isto é, o dia em que o período das sete
semanas de abstinência, jejuns e penitencias se divide exactamente ao meio e
teria transcorrido em o derradeiro domingo de Março ultimo.
Mais insustentável ainda é o termo Micareta – hibrido intolerável, metade
francez e metade portuguez, e que se pudesse significar algo, seria – meia
caraça ou meia máscara.
Dahi a razão porque não utilizaremos desses dois vocábulos excusados e
inexpressivo.150 (Sic)

O caráter condicional da micareta mais uma vez apareceu, pois ela só foi realizada devido ao
“fracasso” do carnaval. Tanto que o festejo “complementar” só é anunciando mediante um
balanço daquele carnaval.
A fonte também indicou para a diferença entre mi-carême ou meia-quaresma e os
festejos que ocorriam em Feira de Santana. No cenário feirense, a festa era realizada após o
fim da quaresma. E essa reportagem apresentou uma contradição, afirmou que os termos mi-
carême e micareta eram inadequados. Entretanto, nessa mesma edição o jornal lançou mão ao

149
Documento lotado no Museu Casa do Sertão localizado na Universidade Estadual de Feira de Santana-Ba.
150
Folha do Norte. Feira de Santana, 16 de abril de 1938, Ano XXIX, Nº 1501
76

mesmo tempo das duas nomenclaturas como títulos de reportagens. Isso apontou para uma
divergência interna sobre qual seria a melhor palavra para simbolizar o festejo pós-quaresma.
Sobre o conceito de micareta, a fonte indicou que esta teria sido uma mistura de vocábulos em
português e francês, uma tentativa de adaptar o termo francês aos hábitos carnavalescos de
usar máscaras. Já o conceito de mi-carême veio da França:

Aconteciam desde o século XV, quando no meio da Quaresma, populares


faziam a queima do Judas e a Serração da Velha, uma celebração grotesca
que consistia (ainda hoje) em espantar a morte. A inspiração da micareta está
ligada a dramatização de uma velha (símbolo de morte, doença e desgraças)
que seriam serradas entre gritos e uivos do público em geral151

A ligação entre mi-carême e os festejos carnavalescos foi estabelecido bem depois e já em


território brasileiro, segundo Benoit Gaudin:

Nem a serração da velha nem a mi-carême confundiam-se então com o


carnaval. Eram festas distintas, festejos diversos, costumes diferentes. Essa
situação perdurou até 1914, data e que pela primeira vez, a mi-carême foi
comemorada como se fosse um verdadeiro carnaval, ou melhor, um carnaval
fora de época. Esta estréia aconteceu em Salvador e foi uma iniciativa do
Clube carnavalesco Soteropolitano Fantoches da Euterpe, que obteve a
adesão dos dois outros grandes clubes da época. O Clube Cruz Vermelha e
os Inocentes em Progresso152.

Nessa perspectiva a micareta foi uma reinvenção do carnaval após o período carnavalesco. E
mesmo sendo noticiado como Mi-carême em várias reportagens, o que ocorria em Feira de
Santana não era um evento de meia-quaresma. Porém Vanicléia Santos apontou para a
existência da mi-carême em sua forma original em Jacobina, assim como Feira, interior da
Bahia:

151
SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no sertão da Bahia. Projeto História. São Paulo,
vol. 28. Jun 2004.p. 244.
152
GAUDIN, Benoit. Da mi-carême ao carnabeach: história da(s) micareta(s). Tempo social vol.12. São Paulo,
May, 2000. p. 48-49.
77

Quando um dos grupos realizava a malhação e queima do Judas na Praça da


Matriz, sede da paróquia desde 1938, o padre se irritava com aqueles
festejos, pois o Senhor ainda não havia ressuscitado no sábado de Aleluia. E
o povo fazia festa, dançava, ria, comia, conversava gritava. Seria impensável
para o povo não haver esta parte complementar153.

Os festejos em Jacobina começavam ainda durante a Quaresma, diferente do que ocorria em


Feira de Santana. Mas a ideia de complemento é pertinente nos dois casos.
No seu trabalho Gaudin, contextualiza a utilização da micareta em Feira de Santana:

Para compensar o enfraquecimento do seu carnaval, Feira de Santana adotou


a micareta, que já era conhecida... De outros carnavais. Interessante é notar
que o fenômeno de adoação da micareta, por cidades do interior baiano,
começou desde bastante cedo, já nos anos 1920 e aconteceu em outras
cidades além de Feira de Santana: a título de exemplo, Irará pequena cidade
do Recôncavo, já tinha seu segundo carnaval no ano de 1927.154

Não é o foco descobrir o local em que a micareta fora criada, e a busca pelas origens
não é algo primordial para esta discussão, mas o que a tornou peculiar nesta cidade. O fato da
repercussão e a visibilidade dada à micareta e ainda com maior visibilidade que o próprio
carnaval deu à cidade o título de percussora do evento. Enquanto em outras cidades a micareta
tinha um caráter de segundo carnaval, para os feirenses aos pouco ele estava se tornando o
principal evento carnavalesco.
Ao contrário do que era noticiado sobre o carnaval, o festejo pós-quaresma esbanjava
alegria e era satisfatório:

Nas sociedades carnavalescas cresce dia a dia, com a laboriosidade e a


azafama da confecção de alegorias, indumentárias, adorno, quanto se torna
indispensável para o brilho máximo do cortejo cresce o entusiasmo
contagiante dos foliões ardorosos, que não são exclusivamente os moços,
mas também a velha guarda carnavalesca, que parodiando aquela em que
tanto confiava o espírito guerreiro de Napoleão, afirmava sempre: a velha
guarda morre, porém não se rende nunca.
A velha guarda feirense pelo que se tem visto, observado e admirado, têm
razão de ser, pois, animadíssima, empolgante, encantadora.155

153
SANTOS, Vanicléia Silva. Op. cit. p. 247.
154
Folha do Norte. Feira de Santana, 1928. Apud GAUDIN, Benoit. Op.cit. p.50.
155
Folha do Norte. Feira de Santana, 16 de abril de 1938, ANO XXIX, Nº 1501.
78

A fonte apontou, para além do “sucesso” festivo, a participação de sujeitos que


brincavam o carnaval em fevereiro. Estes eram apontados como a velha guarda carnavalesca
em um trecho que dizia: “a velha guarda morre, porém não se rende nunca”. O fato de
ocorrerem dois períodos carnavalescos indica que para um grupo ainda era vantajoso e viável
a realização dos festejos antes da Quaresma. Mesmo com a permanência dos festejos
carnavalescos em fevereiro, a micareta, a partir de 1937, passou a existir com regularidade.

A cidade sob o regime carnavalesco vibrou de alegria intensa.


Passaram breve e deleitoso como a coisas muito anheladas o ephemero reino
da folia, transferido do tempo apropriado e oportuno, na vigência do verão,
em fevereiro deste ano, para depois da Quaresma, tendo tido início em noite
da véspera do Domingo de Pachoéla156 ou Quasimodo, com o animadíssimo
baile à fantasia no palacete-sede da sociedade veterana da Feira.
Decorativas de effeito, à incidência de luz copiosa jorrada de pujantes focos
elétricos através de reflectores coloridos, emprestavam aspectos
157
maravilhosos aos elegantes salões.

E no ano seguinte, 1939, as notícias sobre o festejo pós-quaresma apareciam assim que
os festejos carnavalescos de fevereiro terminavam às vezes na mesma matéria que trazia os
informativos sobre o carnaval ou o seu resumo. Neste ano, de 1939, após o fim do festejo foi
“modesto”, isso sob a perspectiva do jornal Folha do Norte.

Será um carnaval modesto, durante o qual a Avenida da Alegria não


ostentará, como outrora, adequadas decorativas de carrancas, palmas e
bandeirolas, nem a iluminação pública terá o costumado acréscimo de
gambiarras; sem influência, talvez de forasteiros jovilescos predispostos a
confraternização como citadinos folgazes no ardoroso culto ao eterno deus
do riso: mas cordões, blocos, ranchos, batucadas movimentarão a urbe ao
tinir das soalhas de pandeirêtas e adufes, as toalhas dos réco-recos, aos
sons rauciosos de cuícas e tambores, a estridência das charandas, os artejos
de banjos e violões, acordes, melodicas de vozes feminis, guizalhadas,
zabumbeiros, interjeições de prazer ardoroso, evhohés, em plena ebriedade
dos sentidos, ebriez de enthusiasmo, de perfumes, de cores, de
sons...158(Sic)

156
A partir das leituras das fontes, entende-se que esse termo faz referência ao segundo domingo depois do
domingo de páscoa.
157
Folha do Norte. Feira de Santana, 30 de abril de 1938. ANO XXX Nº 1503.
158
Folha do Norte. Feira de Santana, 18 de fevereiro de 1939, ANO XXX, Nº 1545.
79

O primeiro elemento a ser analisado é o fato de uma decadência no aspecto decorativo, não
haveria a mesma pompa de outros anos, não existiria acréscimo das gambiarras, cedidas pelo
governo municipal. Porém um elemento contraditório surge, mesmo com essa perda
decorativa, o jornal indica que ocorrerá carnaval e que nele todos os elementos necessários
para a sua realização. Nesse caso o caráter modesto pareceu estar muito mais atrelado à
decoração do que ao entusiasmo das pessoas.
Em 1939, após os festejos carnavalescos, ainda surgia a ideia da micareta como uma
festa que só ocorreu porque o carnaval não tinha conseguido o seu objetivo, isso na
perspectiva dos editores do Jornal Folha do Norte.

Agora mesmo, porque não se sentiu fartamente agraciado pela folia, Zé-povo
a desejar por uma segunda quadra de prazer, a qual parece não sonegar em
16, 17 e 18 dia abril provindouro pela paschoéla, pois é para a realização da
qual vai agir, desde já uma comissão organizadora, com esse objetivo a qual
conta com o valioso apoio do governador desta comuna e com o concurso do
comércio progressista.159

A atenção que não foi dada ao carnaval em fevereiro por parte da prefeitura, quando
este não complementou a iluminação, pareceu que não é a mesma dada ao carnaval de abril.
Nessa edição, o jornal destaca o apoio valioso do prefeito da cidade. Isso porque, além da
iluminação, o poder público também era responsável pela segurança. Entretanto, mesmo com
os elementos para a realização da festa (cordões, grupos, batucadas e músicos), durante o
Domingo gordo “não houve alvorada carnavalesca. A carreatas matinais não se congregaram
em bandos como nos anos anteriores.” 160
Na edição seguinte do jornal, em um balanço sobre o carnaval daquele ano, voltou-se a
cogitar a realização da Mi-carême em virtude do “fracasso” carnavalesco.

O nosso carnaval não conseguiu satisfazer. Ele apenas esboçou o entusiasmo


para a Mi-carême e esta sim promete abafos (...) a comissão da Mi-carême,
conjuntamente com o governo da cidade, estão empenhados em proporcionar
ao povo um espetáculo digno dos forros de civilidade dessa terra
maravilhosa161.

159
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1939, ANO XXX, Nº 1546.
160
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1939, ANO XXX, Nº 1546.
161
Folha do Norte. Feira de Santana, 4 março de 1939, ANO XXX Nº 1547.
80

Mediante a importância que passou a ser atribuído aos festejos carnavalescos de abril,
o grupo Folha do Norte lançou um folheto denominado de O Arlequim. Esse folhetim tinha
como editor chefe Zé-Pereira, um pseudônimo. A organização dos conteúdos seguia a
seguinte dinâmica: as laterais de todas as páginas eram ocupadas com reclames das mais
diversas áreas. Espremida entre os anúncios duas colunas resumiam a programação festiva,
desde os bailes das filarmônicas aos cortejos – incluindo horários e ponto de concentração.
Em sua segunda parte, as músicas que seriam executadas e seus respectivos compositores
eram apresentados bem como a que agremiação estava vinculada. Pode-se afirmar que a
maior parte desse folheto era ocupada por patrocinadores, logo o apoio dos comerciantes era
de muita importância.
O Jornal Folha do Norte deu a seguinte nota sobre o folheto:

O Arlequim
Devemos uma boa notícia aos Srs. Negociantes industriais, que devem, o
quanto desejarem, divulgar amplamente suas mercadorias e produtos assim
aos que se deleitavam com leitura leve.
Em comemoração a futuros folguedos carnavalescos de abril vindouro.162

E a micareta foi realizada com o nome de segundo carnaval:

Configuram-se os augúrios.
A festa de franca alegria de arte e fino gosto de civilização e cultura que a
feira celebrou, da noite de 15 a de 18 do passante, constituíram um
verdadeiro segundo carnaval, magnífico e concorridíssimo mais do que o
primeiro, effectuado em Fevereiro deste ano.163

Nesse ano de 1939 a micareta passou a ganhar autonomia diante dos festejos de
fevereiro. Ela não foi apresentada mais enquanto uma festa complementar que estaria
condicionada ao carnaval. Indicou pela primeira vez que a micareta ocorreria em 1940,
independente do sucesso ou não do carnaval.

162
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de Fevereiro de 1939, ANO XXX, Nº 1546.
163
Folha do Norte. Feira de Santana, 22 de abril de 1939, ANO XXX, Nº 1554.
81

Somos informados de que u’a comissão de dirigentes do festejado clube Flor


de Carnaval dará início amanhã a sua missão de solicitar das donas de casa,
no perímetro urbano, a quota semanal de duzentos réis, que poderá ser
aumentada consoante a generosidade doadora, para auxilio da exibição do
glorioso grêmio carnavalesco local na Paschoéla de 1940.164

Os festejos de paschoéla dependiam de doações para a sua existência, logo a


arrecadação deveria começar o quanto antes, com uma espécie de cota mínima de 200 réis
paga por semana. A responsabilidade de pagar a semanada era das mulheres, das donas de
casa.
O festejo carnavalesco de abril, que depois ficou definitivamente conhecido como
micareta, passou a ser vistos como algo importante para a cidade:

Na Feira a Micareta culminou.


Ocupando-se do magnífico carnaval feirense, editorou À Tarde, da Bahia,
em 17 declinante:
A micareta em Feira de Santana, cidade líder do Sertão, é transformada num
verdadeiro e amplo carnaval. A população nos dias de Momo transfere-se
para a capital e faz seus três dias carnavalescos após a semana da Páschoa.
Hotem foi o primeiro dia do reinado local. Turistas de todos os recantos das
cidades limitrophes e especialmente da capital encheram hotéis e lares. Não
havia mais onde hospedar gente.165

Ao contrário do que acontecia durante o carnaval, quando era noticiado que a cidade
estava vazia nos festejos pós-quaresma a lotação era garantida inclusive com a presença de
pessoas de outras cidades, ou seja, ocorria o movimento inverso. Nesse momento a cidade
passou a ser um atrativo para as cidades vizinhas, garantindo, sem concorrências, o sucesso do
festejo.
É importe ressaltar que a micareta não representou uma oposição ao carnaval, ela não
trouxe uma modalidade nova de se festejar, os mesmos sujeitos, grupos que faziam parte do
carnaval permaneceram na micareta. A micareta foi re-significação da mi-carême, o qual
assim como ocorreu em outras localidades, assumiu uma característica carnavalesca como um
segundo carnaval. Em Feira de Santana, além dessa re-significação, cada vez mais
representava o principal evento carnavalesco, colocando os festejos de fevereiro em segundo
plano.

164
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de abril de 1939, ANO XXX, Nº 1555.
165
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de abril de 1939, Ano XXX, Nº 1555.
82

Alencar166 ainda apresentou um dado novo, havia também um grito carnavalesco,


quando informou ter havido uma espécie de pré-micareta. Esse evento teria ocorrido em 1937,
chamando-se de Festa de Zíngaros. No dicionário167, essa palavra que designa cigano, mas
também músico. Não foi a primeira vez que palavras que fazem referência ao universo
oriental apareceu na festa. Não foi encontrado nenhum elemento que pudesse comprovar a
ligação dos festejos carnavalescos com esse universo oriental, mas como foi citado no, nesse
período o Brasil recebeu um grande número de pessoas oriundas do Oriente. Tratava-se de
grito carnavalesco organizado apenas por mulheres168. A micareta tinha três comissões:
administrativa, de propaganda e a comissão feminina, esta última responsável pela pré-
micareta.
Havia uma divisão sexual das comissões, a presença feminina era algo que só ocorre
na Festa dos Zíngaros, que, diga-se de passagem, fazia parte da micareta, pois era uma espécie
de comemoração anunciadora deste evento, uma prévia desse festejo. Elas aparecem nos
jornais com expressões do tipo “o baile organizado pelo belo sexo”.
Ao discutir as práticas carnavalescas, especificamente o carnaval e a micareta,
percebe-se que estas são semelhantes, o que as diferenciam é a data: uma ocorria no período
carnavalescos e a outra “fora de época”. Contudo há o campo dos significados, que levam em
consideração não apenas as práticas, mas a elaboração de sentidos que caracterizam cada uma
delas. Foi a partir da oposição ao entrudo, que o carnaval justificava a sua presença. O mesmo
jogo de significados e representações tornaram a micareta a protagonista dos festejos
carnavalescos na cidade.

166
ALENCAR. Helder. Op.cit.
167
AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora. 19ªed. São Paulo: Saraiva 2009
168
Segue a lista das mulheres dessa comissão: Jacy Assis, Ceres Figueredo, Eurina Boaventura, Cremilda
Sampaio, Mariana Assis, Eunice Alves Boa Ventura, Maria Luisa Motta, Eldira Boaventura, Bernadete Lima
Santos.
Capítulo 3
Carnaval e micareta: a construção dos significados festivos
84

3.1. Disputas ideológicas no cenário brasileiro.

“Entre o entrudo e o carnaval existe uma diferença grande, profunda,


considerável. É que o entrudo é nosso e o carnaval, estrangeiro” 169.

Durante o período estudado em alguns momentos os jornais fizeram referência ao


entrudo. Qual a diferença entre o carnaval e o entrudo? Ambas não eram tratam como festejos
carnavalescos? Esse trecho de Moraes Filho parece simples, mas é fértil para começar a
discussão. O que diferenciaria o carnaval do entrudo seria muito mais o significado, o que eles
representavam do que sua prática; um é nosso o outro é estrangeiro. Mesmo sendo o entrudo
oriundo de povos estrangeiros, por volta do século XIX este já não era mais considerado dessa
forma, havia adquirido elementos que o tornavam diferente do praticado em Portugal.
Entretanto o carnaval trazia consigo práticas e significados estrangeiros, sobretudo costumes
europeizados. E essa diferenciação apareceu no texto de Moraes Filho:

É certo que o carnaval, como temos, melhor se harmoniza com o progresso


moderno; mas não é menos exato que o entrudo, exceção feita das grosserias
porquês eram próprias, interessava o maior número de pessoas e esmaltava-
se de um resto de poesia que se irradiava no lar doméstico. Quanto a
desastres e conseqüências funestas, resultado de ambos, parece-nos que
nenhum deles apresenta como devedor170.

Na ocasião em que Moraes Filho escreveu este artigo, na Bahia do fim do século XIX,
a divergência entre carnaval e entrudo não aparecia com tanta evidência. E mais uma vez
apontava mais semelhança do que diferenças, quando afirmou que as conseqüências funestas
não tão positivas eram resultados tanto do carnaval quanto do entrudo. A ideia do carnaval
como um espetáculo perfeito e oposto ao entrudo ainda não tinha atingido o seu auge. Mesmo
que no discurso de Moraes Filho entrudo e carnaval já apareciam como festas distintas.

169
MORAIS FILHO, Melo. Op.cit. p.129.
170
Idem.p 129.
85

A classificação dos festejos carnavalescos foi o primeiro passo para a diferenciação


entre carnaval e entrudo, e a partir de então, foram colocados como opostos. E nisso o Rio de
Janeiro passou a ser referência para muitos estudos relacionados a este costume, surgido com
o projeto de civilidade dos hábitos que também perpassavam pela normatização carnavalesca.
Com base nisso o entrudo passou a ser proibido em 1854.
O entrudo, com suas práticas consideradas violentas, foi sempre criticado e alvo de
debates. Os motivos das criticas eram os “violentos” costumes de atirar coisas uns nos outros.
Porém foi com a chegada da referência carnavalesca da Europa, ditas “civilizadas”, no século
XIX, que as críticas ganharam outro elemento, a comparação passou a ser entrudo (bárbaro) e
carnaval (civilizado). Isso deu a tônica ao contexto festivo no século XX.
E a questão a ser apurada, nesse momento é a construção de significado atribuída a
estas manifestações e os instrumentos utilizados nessa representação. Para isso faz-se
necessário o entendimento de que as festas sempre estão em movimento, seja em relação às
práticas ou aos significados atribuídos a esta. A maioria dos trabalhos sobre o assunto busca
as respostas sobre a transição do entrudo para o carnaval. Entretanto mais do que a ideia de
mutação, deve se perceber quais os argumentos provocava isso. Como afirma Chartier171,
trata-se de uma disputa de representação. E as famosas distinções entre os festejos
carnavalescos foram forjadas a partir dos meados do século XIX. Porém os jornais feirenses
fizeram referência ao entrudo, nas primeiras décadas do século XX, prática atrelada à barbárie
e a incivilidade. E sobre esse discurso tornou-se necessário a existência do carnaval.
Sobre isso, Maria Clementina Cunha172 afirmou que até meados do século XIX não
existia uma distinção entre a prática do entrudo e do carnaval. A partir dos projetos de
civilidade e modernidade, construiu-se esse discurso; apoiado pelos poderes públicos munidos
de saberes higienistas e médicos, criadores de um ideal de cidade, promotor da oposição entre
o carnaval e o entrudo, respectivamente “civilizado” e “bárbaro”.
Acerca de como esse conflito representativo foi visto na Bahia, a historiadora Márcia
Barreiros Leite, em seu estudo sobre as formas de lazer das mulheres da elite em Salvador
entre os anos de 1890 e 1930, debateu sobre a forma como essas representações de festas
carnavalescas eram tratadas:

171
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações.
172
CUNHA, op.cit.
86

Longe dos jogos do entrudo, que inviabilizaram a participação com


segurança do elemento feminino na festa, o carnaval inaugurado
oficialmente na penúltima década do século XIX, tinha uma feição
civilizadora e disciplinar, que estimulou mais sistematicamente a presença
de mulheres e crianças acompanhada por seus familiares, nas brincadeiras173.

O foco do trabalho de Márcia Barreiros Leite era sobre as mulheres de elite. Entretanto
é pertinente fazer algumas colocações para não cometer equívocos sobre a leitura do entrudo.
O festejo carnavalesco denominado de entrudo não era algo específico de uma classe social,
não se pode partir da premissa de que o entrudo era de uma classe economicamente baixa e o
carnaval de classes abastadas. Moraes Filho, em seu texto sobre o entrudo, deixou
transparecer o envolvimento de diversos grupos sociais e também o envolvimento de
mulheres no festejo: “Ninguém que trouxe o chapéu alto deixava de tornar-se alvo às
pontarias dos rapazes e das moças, que, das janelas ou dos cantos das ruas, disparavam-se os
projéteis do entrudo.” 174
A contribuição de Márcia Barreiro Leite é para pensar as diferenças entre entrudo e
carnaval, fundadas a partir de disputas ideológicas. Contudo mesmo sendo bastante cuidadosa
ao afirmar que havia uma inviabilidade da presença feminina com segurança durante o
entrudo. É arriscado fazer esta afirmação, pois, ao que parece, essa insegurança teria sido
forjada para justificar a supervalorização do carnaval como algo mais adequado. É pertinente
que o discurso elaborado a partir do século XIX tenha recomendado a não participação das
famílias no que era denominado de práticas incivilizadas. E nessa construção as elites tiveram
um papel importante, que foi destacado por Rachel Soihet, quando fez um estudo sobre o
histórico da gênese da diferenciação entre entrudo e carnaval:

Paris, com suas avenidas, praças, teatros e cafés entusiasmava a burguesia


emergente e a intelectualidade do Rio de Janeiro na Belle époque. Difundiu a
cultura ali acumulada, emblemática do progresso e da modernidade era dever
dessas elites. Cabia-lhes igualmente, não medir esforços para expurgar os
hábitos grosseiros e vulgares, fruto da herança lusa, negra e indígena,
símbolo do atraso e do arcaísmo. Os festejos carnavalescos constituíam uma
das dimensões desse universo cultural que era preciso transformar. Urgia

173
LEITE, Márcia Maria Barreiros. Educação, cultura e Lazer das mulheres de elite em Salvador 1890-1930.
Salvador-Ba, 1997. p. 162.
174
MORAES FILHO. Op.cit. p. 130.
87

eliminar o velho entrudo trazido pelos colonizadores e extremamente


popular.175

E na intenção de identificar as elites como parte importante nessa construção


representativa dos festejos carnavalescos, Márcia Barreiros Leite ressaltou o contexto baiano
nisso tudo: “assumindo um caráter ‘civilizado’ as manifestações momescas vão integrar as
elites aos festejos da rua, garantindo segurança aos participantes. As famílias passaram assim
176
a ter sua possibilidade de lazer.” O envolvimento dos grupos de elite foi crucial para a
construção de significados que passam a atribuir ao carnaval além do caráter de civilidade,
citado por Márcia Barreiros, ideia de que se tratava de algo seguro.
Retomar o memento político do país na passagem do século XIX para o século XX
talvez possa trazer maior clareza para o entendimento dos aspectos apresentados tanto por
Márcia Barreiros quanto por Rachel Soihet. O Brasil passara por um período de transição,
quando saíra do regime monárquico para a construção republicana. O movimento estava para
além das inovações políticas. O projeto buscava um modelo europeu de civilidade, a
normatização urbana e de comportamento. Urbanisticamente falando, as cidades foram
reformadas para evitar a propagação popular, aglomerações; foram modificados com avenidas
largas177. Isso não foi algo exclusivo da capital do país, em Feira de Santana essa era uma
preocupação na década de 1930:

As progressistas administrações que têm tutelado a Feira fizeram e fazem-na


a cidade apresentar um aspecto encantador, digno dos mais francos elogios.
As suas casas são elegantes, numerosos e distintos palacetes ornam as suas
ruas e avenidas, dando aparência de uma capital. Os quarteirões bem
dispostos formam quadrados retangulares. Dentre as suas principais vias
públicas, destaca-se a “Avenida Senhor dos Passos.178

O desejo em organizar as ruas e mantê-las em um padrão perfeito, casas e ruas


alinhadas, não foi algo exclusivo da questão urbanística. Construir uma nação republicana

175
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca, da Belle époque ao tempo de
Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008, p. 81.
176
LEITE, Márcia Maria Barreiros. Op.cit. p. 162.
177
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo.
Cia das Letras, 1997.
178
Folha da Feira. Feira de Santana, 19 de junho de 1933. Ano V, Nº 247.
88

perpassava por negar tudo o que vinha anteriormente, pelo menos o que era conveniente, visto
que a organização social não foi transformada com a República.
O cenário carnavalesco no Brasil também foi alvo dessas reformas. O entrudo, que
segundo Moraes Filho, foi trazido ao Brasil pelos colonizadores, deveria ser substituído pelo
carnaval, que significaria um rompimento com as heranças coloniais e imperiais. E
retornamos a citação que inicia esse capítulo: “é que o entrudo é nosso e o carnaval,
estrangeiro179”

3.2. A construção de significado dos festejos carnavalescos em Feira de Santana.

Em Feira de Santana o entrudo foi utilizado como um elemento para fortalecer a ideia
do carnaval, a partir do antagonismo a bem social que lhe foi atribuído. Áurea Miranda,
poetisa feirense do século XIX, início do XX fez um poema que ajudou a pensar as dualidades
e antagonismos que identifica na festa.

A festa e o mendigo

Na festa tudo ri! O miserável


Estende a mão e a todos pede esmola
Debalde sempre! Seu gemer se envolta.
Nas asas do festim para o insondável...

Nesse indifferentismo deplorável,


Ninguém o tristonho escuta e nem consola;
Ele que é puro e ao próximo não dóla.
Dos maus expia a lei inexorável...

E passa além a festa, a cantoria


Das musas populares dos brasões,
E dorme o pobre sobre a pedra fria!

Entre o rico-ladrão e o pobre-honrado


Prefiro o último sem vacilação:
- Deus abraça a estes, aqueles acolhe o diabo!180

179
MORAIS FILHO, Melo. 1986. p.129.
180
MIRANDA, Áurea. Fragmentos D’ Alma... Versos da adolescência. Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia. MCMXVIII. Bahia.
89

Apesar de esse não ser um poema que trata especificamente do carnaval, trouxe a
inspiração para pensar o jogo das oposições simbólicas. Isso porque a autora trouxe no
mesmo texto dois aspectos que ela considerou opostos: a festa e o mendigar. Ela tem um
posicionamento religioso e sua crítica é feita a festa em defesa da caridade. Porém ela usou a
estratégia da oposição e trouxe à tona a festa para mostrar como ela era um empecilho à
caridade, algo que não estaria preocupado com o próximo. Ela usou a festa para depreciá-la.
Nessa obra ela caracterizou a festa dentro de um caráter negativo, pois impede a
percepção do cuidado com o outro necessitado. A festa, assim como foi apresentado em
outras interpretações, estaria em oposição à miséria, pobreza. Entretanto, nessa visão, era a
extravagância e as cantorias que simbolizam o negativo, o elemento que desvirtuava. A
punição para tal comportamento estava no acolhimento do diabo, mais uma vez a posição
entre as ações corretas (sagradas) da caridade, e o riso, cantoria, ações condenáveis (profano).
E é esse ponto que serve como analogia para pensar a construção do ideal festivo em
Feira de Santana. Os jornais no início do século XX não o caracterizavam pura e
simplesmente, o intuito era de fundamentá-lo, para isso lançou-se mão do entrudo, da mesma
forma que Áurea Miranda fez com a festa. Entre os documentos analisados há apenas uma
reportagem que teve como tema principal o entrudo e quase nada se fala das práticas, a notícia
é fundamentada na oposição entre o entrudo e o carnaval. Ao invés de descrevê-lo, a matéria
faz uso do entrudo para depreciá-lo e apresentar o carnaval como o adequado. Mas assim
como no Brasil, em Feira de Santana essa contradição foi construída de forma lenta, em
alguns momentos, esse mesmo entrudo, combatido, era aceito e praticado sem maiores
ressalvas.
Sobre Feira de Santana, Helder Alencar trouxe pistas de que em 1877 existia a prática
carnavalesca denominada como entrudo e não havia em seu relato nenhum indício de que esta
fosse combatida, ou que pertencesse a um grupo social específico.

Entre 1877 - durante o entrudo feirense – no baile das mascaras do Hotel


Globo, o moço Francisco Xavier de Macêdo recebeu uma estocada e, no
local denominado Minadouro desancaram a pauladas Martin Levino Diêgo.
Como pode se notar a fama do minadouro data de longos anos.181

181
ALENCAR. Helder. Op.cit.
90

Os festejos, carnavalescos eram realizados nesse período também em espaços


fechados, como o Hotel Globo, um desses espaços de realizações de bailes de máscaras. A
violência aparecia, porém ela não estava servindo nesse momento como um instrumento de
depreciação do entrudo.
Dentro do próprio baile, os conflitos lá estavam: Xavier de Macêdo sofreu uma
estocada, que significa golpe com uma arma branca e pontiaguda, o que viria a ser um punhal.
A prática ocupava os diversos lugares e ao que parece não representava nesse momento um
problema para o andamento da ordem social feirense. Segundo a fonte, ela existia de forma
aceitável.
Mas na realidade feirense, também, a diferenciação ideológica começou a surgir de
forma tímida e gradativa, no sentido de criar uma oposição entre carnaval e entrudo. Assim
como afirmou Pereira182, ao analisar a presença das mulheres no carnaval carioca e a para a
preocupação de extinguir o entrudo: “os desfiles pretendiam abolir o entrudo e outras práticas
difundidas entre a população desde os tempos coloniais, substituindo-os por formas de
diversão que consideravam mais civilizadas” 183
Em Feira de Santana esse processo ocorre de forma mais lenta e algumas práticas do
entrudo, que segundo os estudiosos de carnaval teria sido extinto ainda no século XIX,
adentra pelo século XX. Em 1910, o jornal Folha do Norte dedicou uma reportagem para
fazer uma denúncia da prática do entrudo:

Feira, que é já uma cidade adestrada e que muito merecidamente gosa dos
foros de civilidade deve abolir por uma vez esta velha, archaica e perniciosa
diversão. Substituindo-a pelos vários entretenimentos do carnaval, cujas
festas traduzindo o prazer e a alegria constitui hoje o chic das cidades mais
cultas, mais civilizadas do mundo, onde a graça e a pilheira, o belo e o
agradável fizeram desaparecer para sempre as grosseiras laranjinhas e as
estúpidas seringa.184

O entrudo era uma prática carnavalesca comum em muitas regiões do país, Louzada
185
afirmou ser o entrudo uma prática que se limitou aos habitantes dos centros urbanos, e no
interior do país essa prática não encontrou espaço. Porém em Feira de Santana, interior da

182
PEREIRA, Cristina. S. Os senhores da alegria: a presença das mulheres nas grandes sociedades
carnavalescas cariocas do século XIX. IN: CUNHA. Op.cit.
183
Idem, ibidem, p. 317.
184
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de janeiro de 1910, Ano II, Nº 22.
185
WILSON Louzada. op.cit.
91

Bahia, os jogos do entrudo pareciam estar presentes ainda, pelo menos era o que noticiavam
os jornais186, que como na fonte anterior demonstrava interesse em substituí-lo, sob a
justificativa de não combinar com a civilidade que a cidade apresentava naquela ocasião.
Segundo Moraes Filho, no contexto baiano esta ideia também estava sendo fundamentada:

O carnaval, porém, cuja origem é comum a todas as civilizações, da mais


bárbara a mais adiantada, nós só tivemos de 1855 prá cá e no Rio de Janeiro,
pois em todo este país brincavam-se e ainda se brinca o entrudo, segundo os
estilos tradicionais. É certo que o Carnaval, como temos, melhor se
harmoniza como progresso moderno, mas não é menos exato que o entrudo,
exceção feita das grosserias que lhes eram próprias, interessava a maior
número de pessoas e esmaltava-se de um resto de poesia que irradiava no lar
doméstico 187.

Nesse aspecto não se via no entrudo uma grande ameaça, a não ser por algumas
atitudes grosserias, mas nada que fosse comprometer a alegria, muito pelo contrário. Essa
análise sobre o entrudo na Bahia ajudou a questionar a ideia de que o carnaval teria se
sobreposto o entrudo, que entrou em desuso graças a sua incivilidade. Nesse caso, é
justamente o tom debochado que atraía a participação das pessoas. Quando afirmou que o
entrudo irradiava “no lar doméstico” para a maioria dos foliões, o entrudo não representava
uma grosseria aos seus costumes, pois estas eram executadas em seus lares, além das ruas.
“Esse jogo não se limitava as crianças ou ás ruas, mas era feito na alta roda, tanto quanto na
classe inferior, fora e dentro de casa.” 188
Em Feira de Santana, segundo Alencar189, o entrudo passou a ser uma prática
condenada por um ramo da sociedade. Essa condenação era feita através do jornal, veículo de
informação importante na construção de um ideal de festa carnavalesca.

O comercial (jornal que circulou na cidade por algum tempo) (...) condenava
em 1871, o entrudo feirense, com a seguinte nota ‘o divertimento do entrudo

186
Sobre a presença do entrudo no interior da Bahia ver MARQUES, Edicarla dos Santos. Uma história social
dos carnavais de Amargosa: modos de brincar e os “cão”, 1940-1980. Dissertação (Mestrado) UEFS. Feira de
Santana-Ba, 2010.
187
MARQUES, Edicarla dos Santos . Op.cit. p. 129-130.
188
LOUZADA, Wilson. Op.cit. p. 13.
189
ALENCAR. Helder. Op.cit.
92

passou nesta vila sem lamentar-se de graça alguma, graças ao desuso em que
vai caindo êsse péssimo brinquedo. 190.

Segundo essa fonte, há indícios de que o combate ao entrudo foi feito no mínimo a
partir de 1871, mas nesse momento ainda não sobre a justificativa de incivilidade, e sim por
sua violência. Assim que os ideais de civilidade na cidade de Feira de Santana começaram,
ainda no império. Porém ganhou maior vigor na cidade no final do século XIX início do
século XX, momento que coincidiu com o advento da República. Isso se explica pelo fato de
se negar ainda mais tudo que fizesse lembrar o Brasil colonial e imperial. E ao passo que se
avançava para o século XX, esse significado negativo em relação ao entrudo ganhava maior
fôlego.

Attendendo às muitas reclamações que nos tem sido trazidas ao nosso


escriptorio chamamos a atenção das auctoridades competentes para abusivos
e prejudicalissimo jogo do entrudo, que extinto quase entre nós, agora
pretendem fazer voltar com todas as suas desastradas consequências.
Quantas vítimas, quantos prejuízos não têm sido causado por tão
extravagante divertimento? (...) Assim, pois confiamos que se não façam
medidas repressoras para o caso, igualmente nos dirigiremos aos pais de
família, que devem quanto antes ir afastando os seus filhos desses
inveterados e prejudiciais costumes191.

Apesar de logo no início da transcrição fazer referência a um grande número de


reclamações sobre o entrudo, título da reportagem, o jornal não trouxe nenhuma dessas
reclamações para exemplificá-los, e muito menos nomearam os grupos insatisfeitos com a
prática do entrudo. A notícia centrou-se na apresentação do entrudo como um problema que
incomodava muitas pessoas, a ponto de serem feitas denúncias. Entretanto essas denúncias
não apareceram nos jornais, foi apenas a palavra do articulista. Isso deixa margem à dúvidas
quanto a suposta insatisfação ou, se ela existia, quais eram as suas proporções.
A notícia tinha inclusive um caráter apelativo, no qual solicitou que os pais de família
afastassem seus filhos de tal prática. Isso indicou que a tomada de atitude para acabar com os
jogos do entrudo não deveria ser apenas das autoridades, mas também da sociedade sob forma
de abandono de tal modalidade. Outra questão foi a ênfase que se deu ao fato de essa ser uma

190
Idem, p.18.
191
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de Janeiro de 1910. Ano II, Nº 20.
93

prática erradicada na cidade. Se assim fosse, esse tipo de problema não aconteceria; logo, a
prática do entrudo era recorrente e tal costume não estava extinto. Esse retorno indicou uma
resistência da tradição, o modelo do carnaval civilizado encontrava um obstáculo para ser
implantado. E a sua implantação perpassava pela negação e depreciação do entrudo.
O apelo para a moral familiar passou a ser um instrumento na tentativa de minar a
prática do entrudo. Esses costumes poderiam destruir a possibilidade de desenvolvimento. O
trecho denotou uma profunda insatisfação, e chegou a ameaçar as autoridades, caso uma
providência não fosse tomada. Esses prejuízos provavelmente estavam relacionados ao
projeto civilizador. Todo o esforço em remodelar os costumes estaria ameaçado caso o
entrudo continuasse a fazer parte dos costumes festivos. E o antônimo desse hábito era o
carnaval, “adequado”, “civilizado”. Em Feira de Santana um fragmento retirado do Jornal O
comercia, citado por Alencar, disse: “Em 1891 embora ainda persistisse o entrudo, a imprensa
falava do Carnaval (...). O Carnaval vencia o Entrudo com seus limões e laranjinhas de cera,
192
com água perfumada ou excremento” . O carnaval surgia como prática carnavalesca ainda
envolta no jogo do entrudo, com a persistência dos sujeitos em praticá-lo. Tratava-se de uma
disputa, uma guerra simbólica, na qual a civilidade representada pelo carnaval lutava para
vencer e livrar a sociedade da barbárie.
Não se pode perder de vista que os adeptos do entrudo reagiram a essa imposição,
mesmo que isso não aparecesse de forma explícita nas fontes; a dificuldade na extinção da
festa apareceu na quantidade de tempo para a implantação do carnaval e na própria fala dos
intelectuais da época: “o carnaval vencia o entrudo”, a vitória advinha de uma longa batalha
na mudança da mentalidade. Essas práticas foram re-significadas no carnaval e em seguida na
micareta. As mudanças de significado estavam na forma como o evento festivo passou a ser
percebido e pó isso passaram a ser desiguais, e em alguns momentos, opostos, mas isso não
significava que as práticas sejam diferentes, quanto a sua execução.
Em 1917, outro aspecto peculiar, percebeu-se uma reportagem que não retratava a
realidade feirense, porém bastante significativa para compreender o conflito ideológico a
respeito da realidade estudada:

Carnaval no Rio... Não é muito alegre para os vagabundos. Amanhã, pleno


carnaval, lembram-se disto, com tristeza, os vagabundos cariocas, há esta
hora trancafiados pela polícia do Sr. Aurelino Leal segundo narra um
despacho da Agência Americana (...). A polícia começou a limpar o Distrito
192
ALENCAR, Helder. Op.cit.
94

Federal, prendendo os vagabundos, desordeiros e gatunos, como elementos


perigosos que são durante o carnaval193

Mesmo não se referindo especificamente ao caso de Feira de Santana, essas notícias da


capital do país não é sem razão. O texto teve uma conotação provocativa, uma sugestão de
qual atitude deveria ser tomada no caso feirense. Essa ideia de desordeiros era algo que fazia
parte da construção de significado tanto do carnaval, quanto do entrudo. Se a cidade desejasse
livrar-se dos hábitos indesejáveis, ela deveria seguir o exemplo do Distrito federal, com a
ação policial a reprimir os “vagabundos”.
A apesar dos festejos carnavalescos não serem da responsabilidade da prefeitura, a
interferência do poder público era possível, pois a festa teria também um papel educador. O
carnaval, mesmo sob um forte discurso de liberdade, deveria seguir uma ordem, como o
próprio jornal diz, “servir a uma população adestrada”. A ideia de limpeza que perpassava
pelas condutas higienistas apareceu também aqui, como uma forma de limpar a sociedade dos
responsáveis pela desordem social.
A depreciação do entrudo era fundamental para fazer do carnaval um modelo festivo
que educaria a população e a transformaria a cidade em um espaço civilizado em seus hábitos.
Matérias simpáticas ao carnaval ganhavam grandes proporções, principalmente nas páginas
do Jornal Folha do Norte. O modo como os festejos eram noticiadas nos meios de
comunicação era diferenciadas. O jornal Folha da Feira o noticiava, mas de uma forma mais
sucinta, diferente da maneira como eram tratados nos editoriais do jornal Folha do Norte, que
começava a noticiar sobre os festejos carnavalescos com um mês de antecedência, no mês de
janeiro, terminando apenas em março, com um balanço festivo.
Em um dos balanços festivos, o jornal trouxe a participação de um dos grupos que
compunha o festejo, “Os Duvidosos” e sobre eles emite um juízo de valor, avaliou a
participação e apontou o que eles consideram positivos e negativos.

À tarde, apesar do brilhantismo dos “Duvidosos” que, pelo louvável esforço


de sua diretoria, muito contribuíram para a beleza da festa, apesar da
originalidade dos “cablocos” que nos fizeram lembrar o Brasil de hontem,
com seus caciques e guerreiros executando danças selvagens 194.

193
Folha do Norte. Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1917, Ano IX, Nº 362.
194
Folha da Feira. Feira de Santana, 4 de março de 1935, Ano VII, Nº 344.
95

Nesse trecho, o jornal caracterizou “Os Duvidosos” como um grupo esforçado que
lutava para alcançar a civilidade, mas ainda tinha em suas raízes elementos que contradiziam
essa prática. A denominação de caboclos é uma denominação dada à miscigenação entre o
branco e o indígena. Em outro momento, diz que trazer o caboclo e os tambores fazia
referência ao Brasil de “hontem”. Isso deveria ser superado, porque remetia a um período
colonial. Nesse documento, a crítica foi direcionada aos “Duvidosos” que, mesmo
esforçando-se, ainda estão com elementos atrasados de um país que é o de “hotem”, porém a
sua crítica é mais sutil. O Jornal Folha do Norte era mais direto ao combate ao entrudo:
“separa-se o joio do trigo, a cicuta do agrião a festa do riso será um benefício para o orgasmo
social.” 195
Essa disputa foi travada no plano prático, visto que alguns se mantiveram fiéis ao
entrudo, mas foi no campo da ideias que ela foi mais forte. As disputas ocorrem não apenas
em relação ao entrudo e carnaval. Os conflitos certamente ocorriam dentro dos adeptos do
“civilizado” carnaval e os praticantes do entrudo. Isso porque esses conflitos eram
alimentados pelos posicionamentos sociais e por diferentes percepções e interpretações. E a
existência de tais conflitos não criou barreiras intransponíveis.
Em meio as proibições e críticas, o entrudo, em algumas localidades do Brasil, passou
a ter modificações, em uma tentativa de adequar o jogo a um molde mais “civilizado”.
Segundo Louzada, ao tratar da proibição do entrudo: “os carnavalescos passaram a usar de
outros meios menos grosseiros, e começa-se a empregar, em lugar de violentas, duchas,
196
banhos muito mais delicados, banhos de flores” . Sugeriu-se a substituição de elementos,
mas a prática de jogar objetos nos outros era a mesma, contudo apegaram-se nessas pequenas
transformações.
Como foi caracterizado no segundo capítulo, o entrudo tinha como característica
principal o fato de molhar as pessoas com limões de cera ou laranjinhas recheadas de líquido,
que poderia ser de qualquer espécie. E foram com base nisso, que, segundo Rachel Soihet, os
higienistas pautaram a sua justificativa para fundamentar a proibição:

Em 1831, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, por intermédio da


Junta de Salubridade Geral, dirigiu um apelo ao corpo clínico da capital,
pedindo sua colaboração na organização de um mapa demonstrativo das

195
Folha do Norte. Feira de Santana, 13 de fevereiro de 1932, Ano XXII, Nº 1178
196
LOUZADA, Wilson. Op.cit. p. 14.
96

moléstias e mortes causadas direta ou indiretamente pelo entrudo que:


“apesar de fazer a delícia de muita gente, era contrário à razão e aos hábitos
doces e polidos que devem caracterizar um povo civilizado”.197

O desejo defendido pela Revista Semana de São Paulo, que foi trazida por Soihet - que
estava totalmente inserido na teia de relações políticas e foi um eficiente formador de opinião
e memória - era um projeto de civilidade para as cidades, que tomavam a realidade européia
como o modelo ideal. Porém a sua aplicabilidade em Feira de Santana encontrou entraves que
dificultaram a sua execução. Esses entraves não foram algo exclusivo da cidade de Feira de
Santana, pois no texto de Rachel Soihet tratou disso ao afirmar que proibições não
significavam a aceitação e aplicabilidade imediata198.
Assim como o saber médico foi utilizado para justificar o combate ao entrudo no
contexto brasileiro, em Feira de Santana ele também foi utilizado, como uma necessidade
psicológica, a ideia de válvula de escape. E além da justificativa médica, científica, havia
também a social e moral que era discutida e apresentada nos jornais:

O carnaval de 1932 na Feira evidenciou muita coisa que se torna precioso


divulgar, que sendo festa essencialmente popular, cabe a cada indivíduo
empreender o que convenha a seu vizo prazeiroso e a contar com seu próprio
esforço para realização do mesmo, que tão só a satisfação do anseio de
divertir-se e dentro da orbita do dever moral que incube a cada um cumprir
extritamente dever a ser galgado: que a competição no exteriorizar das galas
e dotes naturais ou adquiridos não exclui a cordialidade e a confraternização,
embora passageira.199

O papel de preservar a moral era também uma atribuição dos foliões e toda e qualquer
atitude que indicasse para isso deveria ser valorizada, e foi isso o que aconteceu em 1932. O
saber médico serviu para criticar o entrudo, em Feira de Santana ele também serviu para

197
DÓREA, Escragnolle. Entrudo e carnaval. Revista da semana. São Paulo, v.34, nº. 11, 25 de Fevereiro. 1934.
Apud: SOIHET, Rachel. Op.cit. p 85.
198
SOIHET. Op. cit. apresenta a participação da imprensa e dos intelectuais na construção dos festejos na
primeira metade do século XX: “Também inúmeras são as crônicas de intelectuais condenando o entrudo, para o
que se vale de uma série de pretextos, em especial da oposição civilização/selvageria. Esse fato demonstra que
não foi fácil terminar com tão consagrada manifestação cultural, pois se forjavam reiteradamente, novas formas
de conservá-las. Assim, lançam-se em 1878, as bolas carnavalescas (...) em substituição os antigos limões de
cheiro. (...) Um ano depois surgem as bisnagas, igualmente proibidas pela polícia e substituídas por seringas, que
lançavam água, vinagre...” SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca, da Belle
époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008. p.86.
199
Folha do Norte. Feira de Santana, 13 de Fevereiro de 1932. Ano XXIII, Nº 1178.
97

justificar a presença do carnaval e a questão moral servia para dar á essa modalidade
carnavalesca a ideia de tranquilidade e harmonia. Isso foi um forte elemento da implantação
dos ideais de civilidades, que em alguns momentos foi traduzido como questão de ordem e
moralidade.
A preocupação em aliar Feira de Santana à ideia de civilidade também apareceu em
um poema de Áurea Miranda, poetisa feirense do início do final do século XIX e início do
XX. Apesar de ter passado muito mais tempo em Salvador do que em Feira de Santana
mantivera contanto com a cidade e fez o seguinte poema:

A Feira de Santana

Salve!Mil vezes salve terra amada,


Onde da vida tive a luz primeira!
És de alto preço a jóia cobiçada.
Pela exótica gente aventureira!

Amante do progresso, a gloria alcançada,


Irmã da musa excelsa e sobranceira,
Trazes na fronte augusta e mérito,
A santa aureola da genial obreira

Teus campos verdes são ninhos de amores,


Teu céu é berço de eternas bonanças,
Teu todo infundo graças e primores

Quanto o meu peito ufano se orgulhece


Por ter nascido nesse mar de esp’ranças
__ Por teu provir eu faço ardente prece.

Áurea Miranda (1907) 200

Apesar do poema não ter como principal temática a civilidade, mostrou, entre outros
elementos, uma busca pelo progresso, que em seu poema já havia sido alcançado. Sob um
ponto de vista romântico enfatizou uma cidade que era perfeita, na qual a natureza foi
exaltada, a ponto de causar orgulho. Porém colocou a cidade como um lugar de esperança, um
local que estar por vir algo melhor.

200
MIRANDA, Áurea. Fragmentos D’ Alma... Versos da adolescência. Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia. 1907.
98

Esta preocupação com o progresso, como já foi discutida, estava em todos os aspectos.
E através dos clubes carnavalescos, inspirados nos carnavais e bailes a fantasia européia, era
apresentada a forma mais adequada de festejar e a partir de então, até o comportamento
festivo seria moldado. O surgimento de associações como os clubes carnavalescos eram
anunciado com destaque de primeira página. Dentre esses clubes carnavalescos estavam “Os
Filhos da Turquia”:

Communicam-nos que o clube carnavalesco Filhos da Turquia, sociedade


recentemente fundada nessa cidade, realiza no domingo do carnaval uma
esplendida passeata despertando a população desta cidade com seus ruidosos
sons de caixa e bombos. Que Venham os amigos da folia!201

Grupos como os Filhos da Turquia eram considerados “amigos da folia”. Qual seria o
argumento para considerá-los amigos da folia? Existiriam os inimigos? Deixo um indício para
ser fomentado: “Quantas vítimas, quantos prejuízos não têm sido causado por tão
202
extravagante evento” esse evento extravagante era o jogo do entrudo. Seriam esses os
inimigos da festa e da cidade? Eleger um “inimigo” justificava a luta e os esforços para
construir um carnaval ideal.
E nesse jogo de representações, o entrudo foi fundamental para implantação do
carnaval, não porque as suas práticas fortaleceram ao festejo civilizado, mas porque a partir
da oposição, criou-se uma espécie de cisão, quem era adepto do carnaval estava quase que
automaticamente em oposição ao entrudo. E como os ideais de civilidade já estavam presentes
na mentalidade de alguns setores da sociedade, essa foi uma estratégia eficaz. E com o passar
do tempo o termo entrudo deixou de aparecer nas reportagens que tratavam dos festejos,
passando a ideia de superação, algo que foi naturalmente superado.

3.3. Muito além de uma sobreposição ao entrudo.

201
O Progresso. Feira de Santana, 24 de fevereiro de 1901, Ano I. Nº 6.
202
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de janeiro de 1910, Ano II. Nº 20.
99

Passada a fase do entrudo, a cidade começa a viver o período carnavalesco


propriamente dito e, em 1891 a imprensa falava em Carnaval, que teve a sua
1ª agremiação fundada em 1924, o Clube Carnavalesco 2 de Julho203

Nesse documento foi identificado o ano de 1891 como um marco para as atividades
carnavalescas, porém uma organização formal só foi fundada em 1924204. Então nesse
intervalo, cabe a problematização de qual teria sido a atividade carnavalesca realizada. As
fontes apontavam, como foi discutido anteriormente, para a existência de agremiações
carnavalescas anteriores à 1924, como o exemplo dos “Filhos da Turquia”, então este poderia
ser o marco para a suposta sobreposição do entrudo e implementação de um carnaval, este
sim nos moldes civilizados.
E esses moldes de civilidade estavam para além dos festejos carnavalescos, apareciam
em diversos âmbitos de lazer. As reportagens apresentavam notícias sobre as filarmônicas,
que eram apresentadas como uma alternativa “civilizadora” de diversão, sobretudo a 25 de
Março e a Vitória, as mais antigas da cidade, que além das diversas atividades de lazer, eram
também colaboradoras dos festejos carnavalescos. Segundo Aline Santos,205 a Filarmônica 25
de Março, surgiu em 25 de Março de 1868 e esta teria dado origem a Vitória a partir de
divergências internas em 1873, organizada pelo Padre Ovídio Alves. E essas primeiras
filarmônicas estavam presentes em muitos espaços de lazer, sejam nos religiosos ou profanos.
Organizavam passeios, como foi discutido no capítulo anterior, eram vistos como os
responsáveis pelos eventos de bom gosto:

Com um esplendido espetáculo[...] cômico-dramático dirigido pelo


inteligente actor Sr. Avelino Gonçalves, realiza amanhã, o seu benefício a
gentil e distinta associação Gremio Protectoras da 25 de Março (...). O
espetáculo para qual está havendo um grande prêmio de bilheteria, a
apreciada banda musical da 25 de Março, que durante os intervalos, deleitará
os espectadores com peças do seu vasto repertório.
Como sempre promovidos pelo belo sexo, será uma bonita festa, onde nada
faltará: luz, riso, flores e música e sobretudo o chic (...). O governo, que
206
levará certamente uma grande irreverência aos nosso sant’Annas.

203
ALENCAR, Helder, op.cit. P. 21.
204
Esse marco serviu de base para a fundamentação de Reginilde Santa Barbara para Justificar o marco do
surgimento do Carnaval nesta cidade.
205
SANTOS, Aline, op.cit. p. 3.
206
Folha do Norte. Feira de Santana, 29 de novembro de 1909. Ano I, Nº 10.
100

A Filarmônica Vitória também ocupava esses espaços, e assim como a 25 de Março,


era colocada pelos jornais como um elemento de benefício moral e social para a sociedade:

Realizaram-se nos dias 30, domingo ultimo de janeiro, e 2 de fevereiro,


quarta-feira passada a kermesse que anunciou a estudiosa Philarmônica
Victoria. Para esta festa, em beneficio da excelente sociedade, gloria desta
terra, nada faltou para abrilhantar.
As 7 ¹/² horas da noite, reunidos vários sócios da Victoria, saíram tendo uma
maravilhosa banda musical à frente do prédio onde tem a sua sede, a Rua da
Direita e em marcha iluminada a fogos (...) percorreram a praça Jovi
Pedreira, Rua Barão de Cotegipe, Campo do Gado e travessa do França,
saindo na Praça do Remédios (...)
No coreto, do espaço a espaço, executava a banda, ora maravilhosa valsa,
ora adorados dobrados, ora harmoniosos trechos de opera. (...)
A festa terminou a uma hora da manhã, quando a Philarmônica abandonou o
coreto (...) o delírio dos applausos, seguidos de quase toda a massa de
senhoras, senhoritas, cavalheiros e populares que a ouviam na Praça do
Remédios207.

Em ambas as notícias sobre os eventos das filarmônicas apareceram o caráter de procissão, na


qual as pessoas da sociedade “senhores e senhoras” eram contemplados com espetáculo, bem
como os “populares”.
E nesse momento os projetos políticos apareciam em todos os espaços, sejam eles
partidários ou não. Em um anúncio de um baile pré-carnavalesco realizado pela Filarmônica
Vitória, esse projeto para a cidade apareceu de forma mais evidente. “A existência dessas
sociedades demonstram eloqüentemente que, em conquista, apesar de longínqua, os seus
hábitos trabalham também para a perfeição – moral- social.” 208.
As filarmônicas não foram e nem são instituições carnavalescas, elas não foram
criadas com esse intuito: “as filarmônicas eram agremiações musicais, compostas geralmente
por um regente e mais ou menos 40 músicos, e seu demais familiares, alguns eram ligadas a
209
setores das elites políticas, outras pertencentes a outros setores.” Os componentes
mantinham uma relação de associados com estas entidades.
Diante de tamanha expressividade atribuída a esses grupos, esses locais também foram
apropriados pelos ideais da época como um instrumento formador de opinião e costumes, e
atuaram também nos momentos carnavalescos. E os meios de comunicação, especialmente o

207
O Município. Feira de Santana, 7 de fevereiro de 1910, Ano II, Nº 81.
208
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginária. RBH. Junho de 2007.
209
Folha do Norte. Feira de Santana, 20 de Novembro 1909, Ano I. Nº 12.
101

jornal Folha do Norte, entrou em campanha em prol da sua realização, como uma forma de
comprovar que, assim como as cidades desenvolvidas, Feira de Santana estava inserida nesse
processo.
O apelo para que a festa do carnaval ocorresse, e que se sobrepusesse aos hábitos do
entrudo passou pelo fim do século XIX, e adentrou o século XX. As notas começavam, em
sua maioria, ressaltando a grandiosidade e superioridade da festa da “civilidade” e sua
superioridade. E a capital do país cada vez mais se tornou uma referência mais forte.

Tornando instituição brasileira, notadamente na capital do país, onde se


constituir potente fator de turismo, o carnaval emplacou victorioso em todo o
Brasil, tendo logrado nessa urbe progressista um triênio glorioso.
Festa de civilização que teve o poder de erradicar costumes nacionais,
bárbaros entrudo, apesar de sua existência multisecular no velho mundo e
nos paizes colonizados por europeus, o tríduo de Momo- eterno deus do riso
e da Satyra – interessa a todos.210

A ideia de vitória do carnaval sobre o entrudo mais uma vez foi utilizada, percebe-se
que o entrudo apareceu como um coadjuvante, e como algo superado, mas então porque citá-
lo? É justamente com o propósito de sepultá-lo que ele foi retomado, parece entranho isso,
mas era fundamental reafirmar a sobreposição, mais do que esquecê-lo era necessário
lembrar-se desse feito e quem foi o responsável por isso, fortificando cada vez mais a ideia do
carnaval como absoluto. Porém na prática a aplicabilidade dos significados não encontrava a
mesma eficácia.

Todavia não obstante o esforço da comissão organizadora, a expectativa dos


festejos carnavalescos, a quem ninguém queria renunciar, as contribuições
solicitadas até o presente recolhidas não correspondem à expectativa geral,
impedindo dest’ arte a positivação de diversos emprehemdimentos
projetados (...). Todas as classes deviam, alias, empenhar-se pelo esplendor
do tríduo da folia em seu próprio interesse, porque eles iriam aproveitar a
circulação do dinheiro que se retraia e até se sonega, apesar de ser evidente a
necessidade da contribuição geral211

210
Folha do Norte. Feira de Santana, 10 de fevereiro de 1934, Ano XXVI, Nº 1282.
211
Folha do Norte. Feira de Santana, 7 de fevereiro de 1931, Ano XXI, Nº 1125.
102

Nesse trecho o apelo não foi o da civilidade e da modernidade, procurava-se justificar o


evento para além da simbologia, precisava-se de um argumento prático. Logo os benefícios
econômicos foram apresentados, pois segundo o jornal Folha do Norte seria uma excelente
oportunidade comercial para uma cidade que teve origem justamente a partir de uma feira.
O espaço festivo passou a ganhar cada vez mais uma conotação educativa, pois através
das recomendações e as normas estabelecidas, os comportamentos eram moldados, ou ao
menos a tentativa de fazê-los: “o carnaval é do povo, todos têm jus a fantasiar-se, mascarar-se
(...) a serpentina e lança perfume e divertir-se, em summa sem attentar contra o direito do
próximo.” 212.
Esse direito não foi explicitado quanto ao seu sentido, mas ao caracterizá-lo indicava
um modelo; o brinquedo não era com laranjinhas e águas fétidas, farinha e ovos, mas sim com
serpentina e lança-perfume, elementos característicos dos carnavais de salões, civilizados.

3.4. A “criação” da micareta.

A micareta surgiu enquanto uma festa regular em 1937, porém essa modalidade de
carnaval fora de época ocorria na cidade muito antes. “A primeira micareta ocorreu na cidade
em 1934, realizada pelo cordão ‘os duvidosos’” 213. Porém essa modalidade era feita de forma
esporádica, sem o compromisso de apresentarem-se todos os anos. Inicialmente o festejo pós-
quaresma foi identificado como mi-carême. Essa nomenclatura deixou de ser utilizada, pois
ocorriam quinze dias após a quaresma.

Algumas páscoas da folia tinham sido levadas a efeito antes de 1937, de


apenas um ou dois dias, para marcar o fim da quaresma, mas nunca com
intenção de ser transformada numa festa de tamanhas proporções de nome
nacional, verdadeiro e autêntico carnaval, muito mais animado (...). Em
1934, por exemplo, realizou-se, de forma pálida e fraca é bem verdade, um
baile micaretesco, promovido pelo cordão “Os duvidosos”. O baile,
desprovido de muita animação, foi levado a efeito no bairro da Barroquinha,
na Praça 2 de Julho. Em 1936, a mocidade feirense fez realizar, no sábado de
Aleluia, na Sociedade Filarmônica Vitória, o “baile dos malandros”. Aquêle
histórico sábado de aleluia, chamado de Folia Complementar do carnaval, ou

212
Folha do Norte. Feira de Santana, 21 de fevereiro de 1932, Ano XXII, Nº 1176.
213
ALENCAR, Alencar. Op.cit. p.25
103

de Segundo Carnaval do ano, era, para praticamente, o embrião da


micareta214

A micareta não foi ao que tudo indica uma invenção abrupta, essa prática de “complemento”
do carnaval ou comemoração de fim de quaresma era costume corriqueiro em Feira de
Santana. Então o foco neste momento é compreender o porquê uma festa secundária, no
contexto carnavalesco, ganhou espaço e essa visibilidade em detrimento do “civilizado”.
Observar que quanto a esse festejo, a crise não atingia a micareta. Esta modalidade, segundo a
fonte, ocorria sem maiores problemas.
Esse documento suscita a hipótese de que havia uma diferenciação entre os grupos que
praticavam a micareta. O texto relata que dois grupos diferentes realizaram a festa de fim de
Quaresma, porém a um foi atribuído o sucesso e a outro o desânimo. E o responsável pelo
embrião da micareta não foi o festejo realizado no Bairro da Barroquinha e sim o organizado
na Filarmônica Vitória, realizado pela “mocidade feirense”.
A páscoa carnavalesca, um festejo carnavalesco realizado ao término do período da
Quaresma, realizada em 1934 foi caracterizada como pálida, mas este foi o primeiro baile
carnavalesco pós-quaresma, porém não foi reconhecido como embrionário. Descobrir quem
inventou a micareta não é o objetivo aqui e sim questionar o porquê das escolhas, os
silenciamentos e as ênfases. Isso é fundamental para a construção de uma memória festiva.
Talvez a resposta para tal questionamento comece a ser percebida a partir da mudança
de postura diante da “crise” carnavalesca e a forma como o “novo” festejo foi caracterizado:
“festa essencialmente popular e necessária a todos os povos, ela não exige no entanto, pompas
215
e luxo, requintes de arte, como alguns presumam” . As notícias a partir de 1937 ganharam
outro modelo, que parte de uma versão mais simplificada. O chic não era mais o objetivo da
festa e a alegria passa a ser o argumento essencial. A idealização da micareta mantinha
característica ordeira tão desejada pelos idealistas, mas segundo a fonte, não era uma festa
luxuosa, e talvez esse tenha sido o diferencial da micareta, que mantinha o seu caráter
educador, mas com uma leveza maior quanto ao rigor dos trajes e indumentária. E também
porque dentro do projeto de construção festiva e com o empenho dos articulistas o rejeitado
entrudo já teria sido vencido.
Se antes o objetivo do carnaval era civilizar através das pompas e luxo, a micareta
pregava o “arrebatamento de alegria louca, franca e sã que outrora dominava a cidade nos dias

214
ALENCAR, Helder. Op.cit. p. 25.
215
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1939, Ano XXX, Nº 1544.
104

216
de folguedo carnavalesco.” . Era uma proposta que tentava harmonizar elementos da
loucura, que caracteriza os festejos carnavalescos, devendo também atentar para a sanidade
comportamental.
Diante da análise das fontes no contexto da passagem do carnaval para a micareta,
apresenta-se a hipótese de que a escolha da mi-carême como festa carnavalesca foi a solução
encontrada para superar o “fracasso” do carnaval, como foi discutido no segundo capítulo. O
mesmo jornal Folha do Norte, que indicava a necessidade de uma festa “civilizada”,
europeizada, passa a construir outra imagem. Nessa representação, o objetivo era buscar
elementos que atraíssem os foliões. Essa “nova” modalidade revisitou práticas antes
combatidas: “Os caboclos da aldeia, também estão se arrumando... Uma índia já falou em
nome do pajé declarando que os caboclinhos estarão na rua, com toda a sua grande tribo,
arcos e fichas.”217
As referências mudaram. O índio, pajés, que em outro momento eram vistos como
referentes a um país de hontem, a exemplo da crítica feita aos “Duvidosos” passaram, a partir
dessa nova reconfiguração, a ser valorizado. E nesse período as concepções sobre a
construção social do país mudou. A partir da década de 1930 houve uma tendência maior a
valorização nacional, o nacionalismo de Vargas. Porém não se perdeu as ideias civilizadoras,
só que na micareta elas foram diluídas, apresentadas com mais sutileza: “A comissão da mi-
carême, conjuntamente e com o governo municipal da cidade, está empenhados em
proporcionar ao povo um espetáculo digno dos foros de civilização dessa terra
maravilhosa.”218 Os ideias de civilidade apareceram, no entanto não da forma como era feito
nos anos de 1891 a 1937. O método de enfrentamento direto e negação de práticas do entrudo
não eram tão evidentes quanto antes.
Como o carnaval era associado a uma prática civilizadora, tópico discutido no segundo
capítulo, esse festejo, que ocorria em fevereiro, não conseguia satisfazer, sendo denominado
de “crise carnavalesca”. A apropriação de um costume já existente na cidade teria sido uma
alternativa para dar continuidade ao projeto de implantar um festejo carnavalesco que
atendesse aos anseios de civilidade. A partir de então passou a ser construído em torno do
festejo uma estrutura que a tornou mais evidente que o segundo carnaval.

216
Folha do Norte. Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1939, Ano XXX, Nº 1544.
217
Folha do Norte. Feira de Santana, 9 de abril de 1938, Ano XXIX, Nº 1501.
218
Folha do Norte. Feira de Santana, 11 de março de 1939, Ano XXX, nº 1548
105

A colossal Mi-carême de 1939. Pascoéla de 1939


O meado do mez próximo assignalará para esta urbe progressista uma breve,
porém defectuosa quadra de encantamento para o bem, olhos e ouvidos de
ver e de ouvir attenta não só os citadinos, como dos milhares de
excussionistas vindos da capital.219

Trata-se de uma matéria de um folhetim criado exclusivamente para cobrir os festejos


carnavalescos pós-quaresma, coisa que não ocorria com o carnaval de fevereiro. E ressalta o
caráter progressista atribuído a urbe, que avançaria para o “bem”. E outro fator, os festejos
conseguiam atrair grupos de outras cidades.

A escolha da Micareta para “substituir” o Carnaval não foi nada


despretensiosa: “E como esta festa de pascoéla, realizadas esparsamente, foi
nascendo a micareta feirense, foi aparecendo o desejo de determinar, de uma
vez por todas com a as festas carnavalescas, hoje integrada na alma do povo
feirense e na vida da cidade220

É provável que ao mesmo tempo em que ocorria o carnaval, essa modalidade até então
esporádica tenha tido a liberdade de mesclar elementos pertencentes ao entrudo e ao carnaval.
Sem os rigores de ser classificada como bárbara ou civilizada. A micareta apresentava
elementos referentes aos batuques que antes era criticado: “A ruidosa massa humana que de
certo vai encher com a sugestão das fantasias, coloridos de vozes dos entusiásticos, de ruídos
doidos ás ruas da cidade, já esta compondo a ressonância para os três dias da Mi-carême,
fazendo roncar a cuíca, os tambores.” 221
Conseguir estabelecer na cidade um modelo festivo adequado só foi possível quando
ocorreu uma mudança de data, saindo do mês de fevereiro para depois da Quaresma. Não
ocorre em Feira de Santana uma sobreposição de festas. A oposição entre carnaval e entrudo,
inventada nos últimos anos do século XIX foram travadas no campo das idéias e das práticas.
O “segundo carnaval”, que em outras localidades era apena um complemento, ganhou
em Feira de Santana feições de protagonismo. O ano de 1939 fecha com o seguinte balanço:

219
O Arlequim. Feira de Santana, 15 de abril de 1939, Ano I, Nº 1.
220
ALENCAR, Helder. Op.cit. p. 25.
221
Folha do Norte. Feira de Santana, 4 de março de 1935. Ano XXX Nº 1548.
106

Confirmaram-se os nossos augúrios.


A festa da franca alegria, da arte e do fino gosto, de civilidade e cultura que
a Feira celebrou, dá noite de 15 à 18 do passante, constituíram um
verdadeiro segundo carnaval, magnífico e concorridíssimo, mais pomposo e
movimentado que o primeiro, effectuado em fevereiro desse ano222

A fonte indicou a existência de dois eventos carnavalescos, o de fevereiro, dentro do período


carnavalesco, e o de abril, pós-quaresma. Mas foi nesse momento que a micareta tomou
dimensões maiores, tornando-se a referência do carnaval fora de época no Brasil. Mesmo não
tendo sido a inventora dessa modalidade carnavalesca, apropriou-se disso e construiu a sua
identidade. Nesse contexto a micareta foi uma re-significação do carnaval. Ela, desde 1937 foi
ganhando um espaço cada vez maior no cenário festivo da cidade de Feira de Santana e em
1939 passava a ser identificada com um grau de importância maior que o “primeiro carnaval”.

3.5. Carnavais: festa da pluralidade.

Carnaval

A mascarada passa alegre sacudindo


Os guizos do prazer, o pó das amarguras
A descuidosa vai cantarolando e rindo
Assim alerquiando em gestos e mesuras

São manequins da vida, o gozo repartido


Numa “revanche” doida as sua desventuras...
E nada mais querendo e nada mais sentindo,
Que exaltação fugaz de repetidas loucuras.

Tristonha humanidade, espelho de “Pierrot”


Engana teu martyrio, assim ele enganou
Tocando soluçante um velho bandolim.

Repete a tua força, extravagante e fina


Que neste mundo ingrato, a nossa pobre sina
É bem um carnaval esplendido e sem fim.

Georgina Erismann. (1933) 223

222
Folha do Norte, Feira de Santana, 22 de abril de 1939, Ano XXX, Nº 1554.
223
Poema publicando no Jornal Folha do Norte, Feira de Santana, 25 de fevereiro de 1933, Ano XXIV, Nº 1231.
107

Georgina Erismann era uma poetisa muito conhecida na cidade, tendo composto
inclusive o hino à Feira de Santana. Ela costumava publicar seus textos e poesias com
frequência nos jornais da cidade. Este seu poema foi publicado às vésperas do carnaval
feirense de 1933. Algumas ideias nesse poema suscitaram algumas questões. A primeira dela
trouxe a referência de que os festejos retiram da cidade o pó das amarguras. Nessa perspectiva
apresentada no poema, havia uma desarticulação e uma quebra da rotina, que significaria uma
pausa dos problemas em detrimento de uma alegria que é externa.
Outro aspecto legível no poema é o fato de identificar a festa como manequins da
“vida o gozo repartido” - ao que parece, essa confraternização, o ato de repartir, deveria ser
tomado como um exemplo a ser seguido. Arlequim, com seus gestos de mesura, ou seja, de
cortesia significava o exemplo a ser seguido para além do festejo para a vida. O espaço festivo
é também um local de apresentação de modelos educativo, na qual os foliões também são
espectadores, pois apesar da aparente desventura e extinção da ordem, existem os dias
específicos, os locais do cortejo, bailes e tocatas. A ordem e o modelo fazem parte dos
festejos carnavalescos e as intencionalidades e os projetos são perfeitamente aplicados nesses
momentos.
Trouxe ainda a figura do Pierrot, que sofrera por uma desilusão amorosa da sua
Colombina. Erismann comparou a tristeza de Pierrot a uma desilusão da humanidade, logo o
carnaval seria uma ilusão para distrai os percalços. A tristeza de Pierrot tem seu consolo no
toque do seu bandolim, enquanto a humanidade tem no carnaval a revanche dos dias de
martírio. Nesse aspecto, a autora acabou corroborando com a ideia difundida de quebra na
ordem e de que nesses festejos os conflitos desapareceriam. Isso porque a ideia que
prevaleceu sobre os festejos carnavalescos foi de harmonia.
Entretanto os conflitos existem em todas as relações, muito embora boa parte dos
conflitos existentes nos festejos tenha surgido muito mais por conta das representações
atribuídas às práticas. Existiam também as disputas práticas para ver quem fazia o melhor
festejo, quais as melhores fantasias e músicas.

A perturbadora Avenida de Alegria vae refestar-se de guizalhadas, de


acordes melódicos, de casquinadas de riso franco e desartificiosos, de
jororos tenuissimos de ether perfumado, de olhares, de ama vios... Insistem
para que eu... Não diga!... Mas o chronista é teimoso e, quando quer
resolutante ninguém o demove de um propósito. O voto carnavalesco da
terra e o maestrino feirense, alliados sempre para o bem das ouças de
momophilos, esquivando-se ao concurso de marchas e de sambas dos
108

chronistas carnavalescos da imprensa da capital não renunciaram, porém, a


deliciar seus muito atinados patrícios e a bisbilhotice impenitentes do meu
próximo descobriu u’a marcha novinha em folha, musica do professor Santo
e letra de Aloísio, que está sendo ensaiada a capricho pelas Farristas... Não
diga!... É o titulo da nova composição, cuja letra publicaremos na edição
vindoura. E quando a musica... Não diga!... Eu tenho fé. Tendo sido
publicada em jornais da capital com incorreções a letra do samba do
professor Estevam Moura premisso em 1º lugar no concurso de composições
(...) para o Carnaval da Bahia, reproduzimos directamente do original a
poesia de Carls Ramayana (Pedro Mattos) 224

Os festejos envolviam competições que iam desde a disputa dos sambas ou marchas
carnavalescas até as fantasias, alguns cordões faziam mistério quanto à vestimenta justamente
para surpreender os foliões e também aos outros blocos, apresentando o que havia de melhor.

Grupos fantasiados passarão as principais artérias urbanas, disseminando


sons vozes, deliciando ouvidos. As constantes Melindrosas exibirão um
figurino de requintado gosto, segundo nos informa um sabetudo
impressionante e os duvidosos apresentar-se-ão trajados de... As vestes, não
sabemos, mas as obras... Isto sim. Salvo engano, o uniforme será alvi-rubro.
É possível que surjam surpresas, mesmo em veículos225

Mesmo assim, as disputas estavam presentes dentro do festejo, seja ela como resultado
das representações ou fruto de disputas carnavalescas entre carros e canções.
As manchetes dos jornais costumavam imprimir aos festejos, sejam eles denominados
como carnaval ou micareta, um caráter de unanimidade, como se estes fossem algo que
representasse a cidade com anúncios do tipo: “E a cidade viveu os três dias da troca226 e da
227
folia” . As notícias sobre os festejos carnavalescos seguiam a lógica de apresentar a festa
enquanto um elemento pertencente a uma cidade que se apresentava enquanto singular. Essa
postura não estava relacionada pura e simplesmente ao ato de anunciar os elementos
característicos da festa. Mas também de imprimir um ideal de cidade.

224
Folha do Norte. Feira de Santana, 23 de fevereiro de 1935, Ano XXXVI. Nº 1336
225
Folha do Norte. Feira de Santana, 23 de fevereiro de 1935, Ano XXXVI. Nº 1336.
226
A pesar de na grafia original a palavra esteja como troca, é possível que tenha erro e a possibilidade é que seja
troça, que segundo o dicionário significa zombaria, escárnio, caçoada. In: Amora, op.cit. p. 740, um termo que
melhor se adapta a citação.
227
Jornal Folha do Norte. Feira de Santana, 17 de fevereiro de 1923, Ano XV. Nº 670
109

228
As propostas de sociedades civilizadoras, que buscavam as reformas morais, não
estavam limitadas apenas às filarmônicas. Os cordões também eram noticiados nos jornais,
seguiam os mesmos preceitos e nessas reportagens era evidenciada a contribuição educadora
dos festejos pelos grupos que as organizavam. A reportagem com o título A festa oficial da
folia está chegando afirmava o seguinte:

É porque assim, é todos devemos concorrer para que ele (o carnaval) se


realize com o máximo de brilho, testificando o desenvolvimento crescente da
grande festa de civilização que veio erradicar o costume grosseiro e bárbaro.
Entrudo, relegando a perpétuo esquecimento.229

Existia uma comoção e uma intencionalidade apresentada no jornal em atribuir ao


festejo um significado para além do ato puro de simplesmente festejar. Nesse momento era
que os conflitos de representação apareciam e surgiam a oposição entre a ideia de bárbaro e
civilizado, moderno e atrasado. Disputas que surgiam de idealizações e atribuições de
significados das formas de festejar. Executar o carnaval significaria testificar se havia na
cidade a civilização. Tal projeto idealizava a normatização de uma prática.
Porém homogeneizar práticas é algo improvável, isso porque o festejar é por si só
plural, fruto de uma amálgama das cidades. Assim como afirmou Pesavento230 compreender
as cidades perpassa por admitir que estas práticas possuem várias linguagens que as
representam; um conjugado de elementos que se entrecruzam e ganham significados a partir
das relações estabelecidas entre os sujeitos e grupos que compõem as cidades. Partindo da
ideia de que a cidade possui vários significados, é possível ampliar as perspectivas de análise
e identificar não apenas uma, mas várias cidades, que coexistem e conflitam. Nesse contexto,
as multiplicidades festivas, seus vários significados perpassam pela relação dos sujeitos que
as constroem, pois estes imprimem nesse processo de construção comemorativa suas
experiências e vivências e sua concepção de cidade.

228
Cf. SILVA, Aldo José Moraes. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana: elementos para o
estudo da construção da identidade social no interior da Bahia (1833-1927) Dissertação do Mestrado (UFBA)
Salvador, 2000. As tendências de civilização nesta cidade tiveram início ainda no período imperial e assim como
no restante do país ganhou mais força com a implantação da República e envolveu o projeto modernizador aliado
ao discurso higienista e científico. No caso de Feira de Santana, o alinhamento das casas, cuidados com a
salubridade e reformas que buscavam a civilização.
229
Folha do Norte. Feira de Santana, 31 de Janeiro de 1931, Ano XXII. Nº 1124
230
PESAVENTO, Sandra. Op.cit.
110

Isso porque essas linguagens são extremamente móveis, ao passo que ao analisá-las
deve-se considerar essa mobilidade para não correr o risco de aprisioná-las em modelos que
não correspondem às vivências e a complexidade que estão inseridas, pois elas são social e
temporalmente construídas; fora de seu contexto elas perdem o sentido.
Segundo Pesavento231, existem diversas formas de significar a cidade através da
literatura, imagens, músicas, oralidade e a escrita. Destaca-se, a partir dessa contribuição, a
festa, um elemento que está inteiramente imbricado nas formas de representar as cidades. A
construção dos festejos perpassa pela atuação de sujeitos. Os sujeitos não são pacientes, que
apenas sofrem a ação. Trata-se de uma ação reflexiva, na qual estes praticam e sofrem as
consequências de tal prática. Nesse sentido, as intencionalidades surgem. Como a cidade é
múltipla, em seus significados e integrantes, essa diversidade propicia a pluralidade festiva,
pois é infundado dissociar uma coisa da outra.
As festas constituem-se como um espaço de comemoração e brincadeiras, além disso,
é também um espaço de disputas e conflitos, sejam estes de situações consideradas simples,
corriqueiras, ou de disputas políticas. Isso porque a presença política era comum.
A música, nesse contexto festivo, tornou-se palco desses conflitos e como uma forma
de identificação dos grupos. Na década de 1930 os blocos mais famosos eram: As
Melindrosas, Os Filhos do Sol e A Flor do Carnaval, e através das suas marchinhas percebem-
se o perfil de cada um desses clubes e quais eram os elementos que alimentavam os conflitos
da micareta em Feira de Santana.
A primeira música232 a ser analisada é de autoria do cordão Flor do Carnaval, que fez
referência a participação de clubes externos que participavam da micareta sob o caráter de
reforços:

Os amantes do Sol
Saiam da rua
Deixem a Flor
Deixem a Flor
Que não tem piruá
O Cruz Vermelha veio da Bahia por ouvir falar
Que a Flor do Carnaval desta vez ia abafar
E este ano ainda não vieram nada
Para o ano é que a coisa está gozada
A Cruz Vermelha veio mesmo?
Veio sim sinhô

231
PESAVENTO, Sandra. Op.cit.
232
O que se faz aqui é uma analise de letras de musica e não da musicalidade. Pois não podemos saber que tipo
de e entonação era dada em cada nota, o ritmo isso certamente enriqueceria nossa análise.
111

Com o sol se ajuntar


Veio sim sinhô
E quem foi que abafou?
233
Foi a Flor, foi a Flor, foi a Flor.

A música carnavalesca foi direcionada aos Filhos do Sol que levantaram esforços na
tentativa de vencer outros blocos. Uma questão que se constrói ao longo dessa análise: será
que esse era um conflito apenas para ganhar a disputa de uma Micareta? Ou uma disputa de
percepções da sociedade e modos de vida que estão além do festejar? Para começar a
responder essa pergunta analisa-se o trecho da música que afirma: “aqui não tem piruá”. Os
Filhos do Sol, a quem se dirigem essas marchinhas tinha em sua estrutura mulheres de classe
média alta de Feira de Santana e estas teriam promovido a vinda de clubes da capital. A Flor
do Carnaval, dissidente das Melindrosas, era composta por moças filhas de lavadeiras do
Tanque da Nação. Apareceu um elemento de diferenciação de classe entre as mulheres e
homens que brincavam micareta em feira de Santana.
Além desses elementos sociais, é possível perceber a crítica que se faz aos Filhos do
Sol, que lançou mão de elementos externos, tomando os como superiores em uma tentativa de
ganhar o carnaval, tendo a “Bahia” 234 como parâmetro de qualidade.
Outra letra comemorativa da vitória da Flor do Carnaval apresentou outros elementos
a serem problematizados:

Não tem Cruz Vermelha


Nem verde, nem branca
Nossa terra é ideal...
Pois quem abafa toda banca
É a Flor do Carnaval
A Nossa Glória já está alcançada
Vencemos com nosso grande esforço
Sem igual...
A Feira hoje se sente deslumbrada
Com a Flor do Carnaval.

A letra apresentou um caráter de desabafo, que remeteu em alguns trechos a idéia de


valorização da terra, resumiu a sua mensagem em questionar o motivo de se buscar em outras
localidades representações carnavalescas se “Nossa Terra é ideal...”. Não caberia, segundo o
clube, à Feira de Santana, pois nela existiria um bloco que seria capaz de vencer a disputa
233
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.13.
234
Durante o século XIX e quase metade do século XX Salvador era chamada de Bahia, inclusive pelos próprios
baianos que via a Bahia restrita a Salvador no Máximo se estendia até o recôncavo.
112

com apena “nosso grande esforço”. Essa letra possibilita entender que as rivalidades
carnavalescas representavam também oposições políticas; enquanto os Filhos do Sol
buscavam referências externas, tidas como mais moderna, a Flor do Carnaval defendia a
valorização do local. Isso ajuda a compreender o porquê da viagem das Melindrosas à
Muritiba ter sido um dos motivos de desavenças internas, que resultou a Flor do Carnaval.
Sobre essa cisão, Aloísio Resende compôs uma marchinha para o clube das
Melindrosas em resposta a divisão do bloco, intitulada: Gosta de mim quem quer.

Você pode me deixar


Gosta de mim quem quer
Por isso não vou chorar
Gosta de mim quem quer
Ter amor não se obriga
Eu não vou chorar
E nem vou me acabar235

Outra composição ainda sobre a rivalidade entre Melindrosas e Flor do Carnaval dizia
assim:

Pisa na fulô
Pisa na fulô
Quero ver você pisar...
Na pisada do vapor
Pisa, pisa, pisa,pisa
Eu plantei um pé da Flor
Lá no meu quintal,
Para dar ao meu amor
No dia de Carnaval
Pisa na fulô
Já mandei ver no
Barbalho
Porque foi que isto se deu;
Depois de tanto trabalho
Meu pé de fulo
Morreu.

Essa rivalidade dos clubes carnavalescos estendida até a música e apresentada nos
desfiles, cantadas diversas vezes durante a festa, correspondia ainda à divisão dos foliões, que

235
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.13
113

não estavam envolvidos diretamente na organização dos festejos antes de apoteose festiva.
Os que simpatizavam com as Melindrosas eram avessos aos adeptos dos Filhos do Sol e
ressentidos com a Flor do Carnaval. “em algumas ocasiões, a disputa saiu das partituras e no
meio da avenida, foi decidida a tapas e puxões de cabelos energicamente trocados pelas
garotas”236.
O festejo micaretesco não se resumia as renuncias da seriedade. Até que ponto o
carnaval e a micareta eram “confets... risos... loucura... (...) serpentinas multicores rasgando o
espaço”? Como afirmavam os poetas da época, que apresentavam um caráter romântico,
idealizado, e noticiado pelo jornal Folha do Norte, chegando a ser até contraditório ao que nos
apresentam as letras musicais. Essas letras apresentavam conflitos que não eram exclusivos ao
âmbito da festa e passavam a denunciar posturas de uma estrutura social e os conflitos dessa
sociedade que produzia na micareta.
Os Filhos do Sol e as Melindrosas além de blocos distintos eram de classes
econômicas e sociais opostas; a primeira oriunda de uma localidade onde se concentravam a
elite da sociedade feirense, Campo do Gado, onde hoje é o Nordestino. O segundo bloco
originário de um dos bairros pobre da cidade onde se concentravam as lavadeiras da cidade237.
Esse conflito social estava também presente nas musicas: “Lavadeira, teu sabão tira lodo.
Lavadeira, lava a roupa do teu sinhô”238
Esse trecho fez parte de uma das músicas cantadas pelos “Filhos do Sol”, na qual
tentam uma desvalorização do Cordão das “Melindrosas”. O termo lavadeira, nessa letra,
assumiu um caráter depreciativo; em um propósito de associá-las ao lodo, em oposição ao
limpo, que não se envolve com a sujeira. Em resposta as “Melindrosas” respondem:

Não sinto frio nem calor


Não tenho medo, pois tenho ventilador
Vá bater em outra porta
Comigo não tem lorota
Eu não conto lorota239

236
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.13
237
Sobre as lavadeiras do Tanque da Nação ver em Santa Barbara op.cit.
238
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.13
239
Idem. p.13
114

Afirmaram com isso que as lorotas que cantavam não impediram de serem derrotados
na micareta, sua “limpeza nobre”, não fazia deles vencedores do carnaval. E em seguida
cantavam para os “Filhos do Sol”:

Me deixe, me deixe
Que eu sou da fontinha
Me deixe, me deixe
Seu negro sedutor
Me deixe, me deixe
Seu negro traidor240

Essa letra das “Melindrosas” estabeleceu uma identificação “que eu sou é da fontinha”
faz referência à ideia de pertencimento ao bairro Tanque da Nação, no qual existia uma fonte
e ao redor da qual se reuniam as lavadeiras.
O conflito entre Filhos do Sol e Flor do Carnaval resultou em uma paródia da música
lig-lig-lig-lé, cantada pelo cordão Flor do Carnaval para os Filhos do Sol, direcionada
especificamente ao Coronel da Guarda Nacional Álvaro Simões:

Vai o coroné
Na ponta do pé
Lig, lig, lig, lig, lig, lig, lé
Dançando no Sol
Que lindo papé
Sinhô
Esse negócio de Sol não convém
Não vá
Fazer o astro
Demais se esquentar
Isto
Parece coisa de candomblé
Lig, lig, lig, lé
O mais feroz
Maneca cala essa boca
Deixa de tanto falar
Onde foi que já se vil cachorro, sem dormir?
Ferroz é urso, pantera,
Hiena, tigre, leão
Mas, o cão quem foi que disse?
Só você meu paspalhão
O cachorro, sempre foi
Meigo, terno e prazenteiro,
Assim nos diz o Fiel.241

240
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.14
115

Pode-se analisá-la em duas etapas; a primeira foi direcionada ao “coroné” que faz o
papel vergonhoso nos “Filhos do Sol”. O segundo ponto foi em relação a Maneca Ferreira,
um dos idealizadores da Folha do Norte que propuseram a micareta, um dos porta-vozes dos
“Filhos do Sol”.
Como sinalizou Santana242, as festas constituem um ponto de encontro entre as mais
diversas pessoas e esse encontros nem sempre são harmoniosos. Esses indivíduos ocupam as
festas e a significam de forma bastante particular. Essas experiências estão o tempo todo nos
espaços das festas. Nesse ambiente festivo ocorrem batalhas e confraternizações, guerras não
apenas no sentido momesco de serpentinas e águas cheirosa (carnaval) ou pútrida (entrudo),
mas também em relação à forma de pensar uma cidade e um modo de festejar ideal.

3.6. Os múltiplos significados: trabalho e lazer.

As apropriações dos espaços e dos significados na festa apontam para uma divisão de
tais festejos. Foi possível identificar em Feira de Santana a princípio dois espaços: os locais
abertos (rua) e os ambientes fechados (privados). O primeiro era o local onde os desfiles dos
clubes carnavalescos ocorriam. O segundo fez referência aos bailes que geralmente eram
realizados nas sedes das filarmônicas, que se apresentavam enquanto um local adequado para
brincar os dias de Momo. Entretanto essa classificação não significa algo estático que
impediria o trânsito dos sujeitos entre esse dois espaços.
Ocupantes dos locais abertos, os cordões funcionavam como uma estrutura
organizada, porém não tão burocratizada quanto os clubes. Apresentavam um caráter mais
popular, se é que assim se pode denominar. Essas “classificações” não permitem criar
fronteiras rígidas entre elas, pois as fontes indicaram o trânsito entre esses grupos. Esses
“limites” eram bastante frágeis e extremamente móveis.
O cordão das “Melindrosas” era um dos exemplos desse movimento. A Revista
Panorama da Bahia, ao confeccionar um caderno comemorativo sobre os 50 anos de
micareta, deu indícios de um movimento pendular:

241
Revista Panorama da Bahia. 20 de abril de 1987, Ano 4. N°80. p.14
242
SANTANA, Charles D Almeida. Op.cit.
116

A primeira marchinha da Mi-carême, que foi feita para as “Melindrosas” (...)


foi composta pelo maestro Estevam Moura, ‘Jazz-band’, que tanto animou
os bailes da Mi-carême da “25 de Março”. Segundo ‘Mané de Emília’, as
partituras foram extraviadas, inclusive as últimas que se encontravam em
poder de ‘ Tuto’, que também é um músico.243

Um artista que tocava em um local também promovia os festejos carnavalescos no


formato de baile tinha no carnaval uma fonte de trabalho. Mas o mesmo carnaval que era uma
fonte de renda também funcionava como um espaço de lazer quando estes sujeitos estavam no
cordão das melindrosas.
O espaço da filarmônica abrigava músicos, que tinha nesse local a fonte do trabalho,
do cantar e tocar pela sobrevivência. O fato de ser um funcionário ou associado de
determinada agremiação não o impediria de circular por outros espaços enquanto folião.
Apresenta-se aqui outro significado festivo que não se resume apenas em brincar. A festa
também era uma fonte de renda.
Mané de Emília foi um exemplo dessa dualidade, assim como “Tuta”244, músico da
Filarmônica 25 de Março e fundador do cordão das Melindrosas. Se as relações carnavalescas
fossem tão estáticas, o mais lógico seria que eles fizessem parte única e exclusivamente dos
cordões carnavalescos, porém eles estão presentes na categoria mais “civilizada” dos bailes
realizados nos espaços das filarmônicas. É pertinente a partir de então pensar o movimento
pendular; um sujeito pobre que ocupava um dos espaços elitizados da festa e compôs uma
música para um grupo composto em sua maioria, por mulheres negras e lavandeiras do bairro
pobre do Tanque da Nação. Isso é possível se pensarmos as relações construídas por ele com
cada extremo. Eles ocupavam duas funções diferentes dentro dos festejos, a de folião e
trabalhador. Entretanto isso não pode ser confundido com a democratização. Sua função era
tocar e animar os bailes. A festa simbolizava para ele também uma forma de sobrevivência.
No mesmo espaço podem-se identificar duas apropriações da festa, o trabalho e o
lazer. Essa relação também foi explorada por Charles D’Almeida Santana quando analisou as
apropriações carnavalescas de seus sujeitos migrantes do recôncavo baiano para Salvador
entre as décadas de 1960 e 1980. Esse estudo contribui para pensar as multiplicidades de se

243
Panorama da Bahia. 50 anos de folia. 1987 p. 13
244
Idem. p.13
117

pensar os festejos e como eles são construídos na memória das pessoas e, o mais importante, a
circulação nos vários espaços festivos
No cenário festivo da cidade, as filarmônicas assumiam características diversas e
exemplifica a mobilidade de grupos que atuavam em festejos carnavalescos e também em
outras atividades. E ao executar esse movimento traziam e levavam grupos, permitindo as
trocas de influências.

Além disso, a participação de tais grupos era fundamental nos bailes


carnavalescos e eventos religiosos, como a Festa de Nossa Senhora Santana,
nos desfiles cívicos pelas ruas da cidade, bem como inauguração de obras
públicas, além é claro da participação nos eventos cotidianos da cidade.245

Muito embora as filarmônicas não constituíssem instituições carnavalescas, durante os


festejos elas assumiam um importante papel nisso. Esse protagonismo era disputado entre os
grupos. As filarmônicas tinham fortes influências políticas. As figuras políticas da cidade,
como Arnold Silva, eram participantes assíduos, inclusive nas diretorias. Esta característica
fazia do espaço festivo um local de disputa de poder partidário.
Além das filarmônicas, os cordões também estavam presentes em outros momentos
festivos. As Melindrosas, segundo Reginilde Santa Barbara246, apresentavam-se nas festas e
quermesse com o objetivo de angariar fundos. O que aparentemente simbolizava apenas lazer
funcionava nesse caso, uma forma de manutenção dos cordões.
Essa dualidade não era algo que ocorresse apenas internamente. Além da participação
de clubes como as Melindrosas, entidade carnavalesca, em festejos diversos da cidade, existia
também a migração para festejos de outras cidades. As Melindrosas efetuavam passeios para
apresentar-se em outros carnavais: “As melindrosas foram participar da festa momesca de
Muritiba.247”
É pertinente afirmar que existia uma relação sólida entre os grupos participantes dos
festejos carnavalescos e outras localidades, que permitiam um intercâmbio de ideais e
influências festivas. E as filarmônicas, durante esse momento festivo assumiam uma posição
de destaque. Esse movimento, porém não era só de saída. Os festejos carnavalescos de Feira
de Santana também recebiam grupos de outros municípios, sobretudo de Salvador.

245
SANTOS, Aline. Op.cit. p. 4-5.
246
SANTA BARBARA, Reginilde. Op.cit.
247
Panorama da Bahia. 50 anos de folia. 1987. p. 13
118

O Dalvaro (aqui pra nós) está tomando a frente da cousa. Disseram-me que
irá evidar todos os esforços para trazer os carros da “Cruz vermelha” já
arranjou uns 2.000$, mas são preciso 4.000$! Isso Santana intera! Contanto
que a Cruz Vermelha venha.248

O sujeito citado era um dos proprietários do jornal Folha do Norte, Dalvaro Silva, irmão de
Arnold Silva. Nesse aspecto, o jornal se mostrava mais uma vez atuante na construção da
festa.
Assim como tinham que pagar para que outros grupos viessem à Feira, era possível
que as associações feirenses também recebessem por isso. Talvez isso explique o porquê em
pleno período carnavalesco os grupos aceitassem sair da cidade para participar de outros
carnavais. Esse movimento certamente trouxe contribuições para que as transformações
ocorressem, ações estas que deram o movimento à festa.
Após a análise desse movimento, percebe-se uma a relação das festas carnavalescas
com outras modalidades. Foi citado anteriormente que tais eventos estabeleciam relações
tanto com as festas religiosas locais quanto com carnavais em outras cidades. Este último
fomentado pelos passeios promovidos pelas agremiações. As relações carnavalescas não
podem ser classificadas como estruturas rígidas, elas são móveis e articula-se com outros
setores. Por esse motivo estão associadas com as relações do cotidiano que perduram para
além dos dias de Momo.

248
Folha do Norte. Feira de Santana, 16 de abril de 1938, Ano XXIX, nº 1561.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os festejos em geral são uma temática recente para o universo dos historiadores, fruto
da ascensão da história cultural que trouxe à luz historiográfica objetos que eram tratados no
campo antropológico. Com o acréscimo desse campo do saber, os historiadores puderam
ampliar as possibilidades de leituras históricas. Para isso foi conveniente estabelecer diálogo
com outras fontes de saber, especificamente a antropologia e trazer maior riqueza as
discussões.
Voltando especificamente para os festejos carnavalescos, práticas que estiveram
presentes desde muito cedo nas experiências humanas, sendo identificadas desde a
antiguidade clássica. Essas festividades sofreram mutações e refletiram em suas práticas e
sentidos e em cada momento e local assumiram características peculiares. Isso porque as
experiências humanas não são vivenciadas da mesma forma em todos os lugares. Cada
localidade guarda suas peculiaridades, um contexto que lhe é próprio e que interfere na forma
como os grupos festejam. Entretanto, enfatizar as peculiaridades e afirmar que cada lugar
abriga um contexto que é particular e único não indica uma desarticulação com contextos
maiores. Muito pelo contrário, tudo está interligado, mas o que traz a peculiaridade é a forma
como os grupos entendem o contexto e atuam no que é peculiar.
A presença dos festejos carnavalescos foi identificada ainda no Brasil colônia, fruto
da influência lusa, praticado sob o formato de entrudo. Os estudos no Brasil sobre tais
folguedos, muitos citados ao longo do texto, indicam que tinham como características gerais o
hábito de molhar as pessoas e sujá-las em um jogo do qual participavam os mais derivados
grupos sociais. Aparentemente essa prática encontrou um ambiente propício para a sua
realização até meados do século XIX. Até esse momento não é identificado nenhuma
associação negativa para com ele.
A partir de meados do século XIX, essa relação começou a ganhar outros rumos. Ao
que tudo indica esse não foi um movimento isolado, estudos sobre festas carnavalescas no Rio
de Janeiro, Minas Gerais, Porto Alegre, Salvador indicam a transição entre o século XIX e o
século XX como um marco decisivo re-significação dos folguedos carnavalescos. A oposição
criada entre carnaval e entrudo ganhou força com a entrada no século XX. Naquele momento
passou a existir uma divisão entre as festas carnavalescas no Brasil, o entrudo começou a ser
associado a tudo que era incivilizado e o carnaval como sinônimo de civilidade e
modernidade. Momento este que coincidiu com a mudança política do país, que deixara de ser
120

monárquico e construía-se em republicano. Essa mudança perpassava não apenas pelo aspecto
político, criar um novo país significava, além da estrutura política, significava construir uma
imagem e conduta que fosse diferente e isso incluía também as formas de lazer e as
festividades. Os ideais de civilidade, modernidade progresso deveriam ser aplicados em todas
as esferas.
Ao analisar o caso de Feira de Santana é possível localizar a tentativa de implantar
esse projeto. As fontes jornalísticas, que foram a base desse trabalho, em quase todas as
edições faziam referência aos festejos carnavalescos como um sinônimo de avanço e
desenvolvimento da urbe. Mas diferente do que aconteceu no restante do país, essa disputa
ideológica ganha essa dimensão a partir da primeira década do século XX. Ao passo que
enfatizavam a grandiosidade e os benefícios do carnaval, faziam criticas ao entrudo, muitas
vezes denominadas práticas bárbaras. O que indica possivelmente a permanência das práticas
denominadas como entrudo ainda no século XX nesta cidade. E isso não foi algo específico
de Feira de Santana. Na cidade de Amargosa-Ba, segundo Edicarla Marques249 houve a
entrudo nas primeiras décadas do século XX.
Percebeu-se que na construção do carnaval os jornalistas lançaram mão da depreciação
do entrudo, nas primeiras décadas do século XX ele foi citado em oposição ao carnaval e
através disso, era evidenciada a importância do festejo “civilizado”. Essa aparição do entrudo
para exaltar o carnaval foi desaparecendo dos jornais sobre a justificativa de que este havia
sido superado pelos bons hábitos do carnaval. Por isso é seguro afirmar que a utilização do
entrudo com este sentido de antagonismo foi fundamental para a construção do sentido do
carnaval.
Muito provavelmente isso possa ter acontecidos em outras localidades, pois a criação
de um projeto festivo e a sua apresentação à sociedade, não garante que este será aceito, sem
nenhuma intervenção, e sua aplicabilidade um sucesso. E quando se trata de manifestações
culturais, isso é ainda mais impreciso. Rachel Soihet250 foi direto nesse ponto, quando afirma
que os foliões cariocas, mediante as proibições policiais do uso das laranjinhas e limões de
cera, criavam outros elementos para driblar a vigilância popular e continuar com o jogo do
entrudo.
Havia diferenças entre as práticas, carnaval e entrudo, mas elas eram bastante simples,
mas foram ampliadas no aspecto simbólico. Enquanto os adeptos do entrudo molhavam as
pessoas e jogavam pós, no carnaval molhavam com lança-perfume e jogavam confetes e

249
MARQUES, Edicarla dos Santos. Op.cit.
250
SOIHET, Rachel, op.cit. p. 86.
121

serpentinas. As práticas eram bastante similares, fantasiar-se, sair às ruas ou aderir clubes
eram características presentes de forma geral nos festejos carnavalesco. Porém os seus
conflitos foram travados muito mais no campo das ideias e das representações do que na
prática. Dividir os festejos carnavalescos em categorias, entrudo, carnaval e micareta, e tratá-
los dentro de uma linearidade é uma questão ideológica.
A cidade de Feira de Santana, para além das dicotomias forjadas entre entrudo e
carnaval teria inventado o carnaval fora de época. De acordo com o senso comum, a micareta
teria sido criada em 1937 devido às fortes chuvas que impossibilitaram a realização do
carnaval naquele ano. Entretanto as fontes indicaram que nesta cidade o hábito, mesmo que
esporádico, de realizar um festejo carnavalesco após a quaresma não surgiu em 1937, há
indícios de que no mínimo em 1934 essa prática já existia, sobre a nomenclatura de páscoa
carnavalesca ou pascoéla carnavalesca.
O que acontece é que mediante uma suposta crise carnavalesca, a partir de 1937 esse
momento carnavalesco pós-quaresma passou a ser fomentado e visto como uma alternativa ao
“fracasso” de fevereiro. Naquele momento, existiam três nomenclaturas: segundo carnaval,
seguida mi-carême e por fim micareta, que foi a que se fundamentou e tornou-se a única
utilizada. Essas denominações também tinham seus significados políticos, os que defendiam o
termo segundo carnaval desejavam primar pela originalidade, que segundo eles não eram
contemplada como os termos mi-carême e micareta, ambos estariam ligados a influência
francesa, uma visão europeia da festa.
Sobre essa “crise”, ressalvas devem ser feitas, pois mesmo que aos noticiários
apontassem para o esvaziamento da cidade, o festejo ocorria, embora sem satisfazer as
expectativas de alguns. Sobre os motivos que teriam levado a essa crise, a construção da BR-
324 apareceu como a principal, pois teria facilitado o trânsito entre Feira de Santana e a
capital, Salvador. Porém não podemos afirmar que a concorrência tenha sido apenas com
Salvador, pois na década de 1930 alguns grupos além de migrarem para capital, transferiam-
se durante os folguedos para cidades como Muritiba - BA. Além disso, a migração ocorria
muito antes da construção da rodovia, pelo menos a parir da segunda década do século XX.
Por isso é ariscado determinar a existência de uma crise carnavalesca. Crise para quem, se os
festejos perduraram mesmo com a implantação da micareta? E se houvesse uma crise, eleger
um elemento apenas é igualmente perigoso.
Percebe-se também que os festejos carnavalescos nunca assumem um apenas um
significado. Essa temática traz em si a multiplicidade nas formas de festejar, nas formas de
interpretar e significá-las. Os espaços da rua (público) e dos salões (privados) são os mais
122

simples. Dentro dos salões a polissemia está presente, ali se encontram os foliões, os
organizadores e os músicos e cada um deles estabelece com a festa uma relação diferente.
No espaço da rua, essa polissemia ganha proporções ainda maiores, pois é um espaço
onde os mais diversos grupos ocupavam as ruas e nesse momento as suas relações e tensões
do cotidiano não desaparecem. Os comerciantes os músicos, que no espaço festivo poderia se
portar como um profissional em um momento e em outro ser folião. E a divisão desses
espaços não implica necessariamente a imobilidade entre esses espaços e grupos. O
movimento é outra característica dos festejos carnavalescos, os papeis são mutáveis.
Mesmo tendo estabelecido um recorte que buscou abarcar as festividades
carnavalescas, o trabalho não tem o objetivo de delimitar nascimentos e mortes, nesse caso do
carnaval, visto que a micareta, festa carnavalesca pós-quaresma perdura até os dias atuais e o
mesmo não aconteceu com o carnaval. Quando o assunto é manifestações culturais, precisar
nascimentos e mortes, a famosa busca pelas origens faz perder de vista a complexidade e o
movimento que elas assumem. Por esses motivos, todos os esforços da pesquisa foram para
compreender como os sujeitos praticavam e significaram dos festejos carnavalescos. E através
dele foi possível identificar que as festividades carnavalescas em Feira de Santana, além de
representarem um espaço de lazer e encontros, serviram também como um espaço de disputas
sociais, políticas e, sobretudo para a construção de memórias.
BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Jaime. Uma teoria da festa. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. CABRAL, Otávio,
ARAÚJO, Zezito (orgs). O negro e a construção do carnaval no Nordeste. Maceió:
EDUFAL, 1996.

ALMEIDA, Luiz Sávio de. Carnaval e carnavais. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. CABRAL,
Otávio, ARAÚJO, Zezito (orgs). O negro e a construção do carnaval no Nordeste. Maceió:
EDUFAL, 1996.

AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora. 19ªed. São Paulo: Saraiva 2009

ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em
Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG;
Fapemig; FCC, 2008

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Media e o Renascimento: o contexto de


François Rebelais. São Paulo: HUCIREC. Brasília: 1993.

BATISTA, Silvania Maria. Conflitos e comunhão na festa da padroeira em Feira de Santana.


Feira de Santana. Monografia de especialização. Feira de Santana. UEFS, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

BRITO Sandra. O carnaval e o mundo burguês. Revista da Faculdade de Letra, Porto, III
série. Vol. 6, PP. 313-338, 2005.

BURKE, Peter. A Escola doa Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia.


São Paulo: UNESP, 1997. P. 11-12.

______Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800; tradução Denis


Bottmann.São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______ O carnaval de Veneza. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Carnavais e outras
F(r) estas. Campinas SP: UNICAMP, 2005.

______ O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2005.


124

CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma opinião sobre as representações sociais. In: CARDOSO,
Ciro Famarion; VAINFAS, Ronaldo. (0rg.). Domínios da História: teoria e metodologia. Rio
de Janeiro. Campus, 1997.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O rito e o tempo: ensaios sobre o


carnaval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo. Cia das Letras, 1997.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, Portugal. Difel. 1990

______ A aventura do livro: do leitor ao navegador; conversações com Jean Lebrun. São
Paulo: UNESP/IMESP, 1999.

COUTO, Edilece Sousa. Festejar os santos em Salvador: tentativas de reformar e civilização


dos costumes (1850-1930). In: BELLINI, Lígia, SAMPAIO, Gabriela R., SALES SOUZA,
Evergton (org.). Formas de crer. Ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro
(sécs. XIV-XXI). Salvador: Corrupio/Edufba, 2006.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval Carioca
entre v1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras. 2001.

D.P.Kidder e J.C.Fletcher. O Brasil e os brasileiros (Esboço histórico e descritivo). V. 2.1941


In: Louzada, Wilson. Antologia de Carnaval. Editora O Cruzeiro. Rio de Janeiro. 1945.

DARNTON, Robert. O burguês organiza seu mundo: a cidade como texto In:
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural da
França. 4ª Ed. São Paulo. Graal, 1986.

DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da frança moderna.
2ª Ed. São Paulo. Paz e terra, 2001.

DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000.
FAZENDA, Vieira. O Zé-Pereira. In: LOUZADA, Wilson. Antologia de Carnaval. Editora O
Cruzeiro. Rio de Janeiro. 1945.
125

GAUDIN, Benoit. Da mi-carême ao carnabeach: história da(s) micareta(s). Tempo social


vol.12. São Paulo, May, 2000.

GINZBURG, C. Olhos de Madeira: Nove Reflexões sobre a Distância. São Paulo:


Companhia das Letras, 2001.

GODI, Antônio Jorge Vitor dos Santos. Hermenêutica, Mistérios E Estéticas Carnavalescas.
In: Humanas: revista do Departamento de ciências Humanas e Filosofia - UEFS – Ano 1, nº1
( jan/junho. 2002) –Feira de Santana: UEFS, 2002.

http://www.ibge.gov.br/brasil500/arabes/razaoemigarabe.html

LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915).
Campinas, SP: Editora da Unicamp/Cecult, 2001.

LE ROY LADURIE, Emmanuel. O carnaval de Romans: da candelária à quarta-feira de


cinzas, 1579-1580. São Paulo: Companhia das letras, 2002.

LEITE, Rinaldo C.N. A Rainha destronada, Discurso das Elites como sobre Grandezas e os
infortúnios da Bahia nas Primeiras Décadas das republicanas. São Paulo, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2005

______E a Bahia civiliza-se... Ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto


de modernização Urbana – Salvador (1912-1916) dissertação de mestrado. Salvador. UFBA,
1996.

LEITE, Márcia Maria da Silva Barreiros. Educação e lazer das mulheres de elite de Salvador.
1890-1930. Dissertação de mestrado. Salvador. UFBA 1997.

LOUZADA, Wilson. Antologia de Carnaval. Editora O Cruzeiro. Rio de Janeiro. 1945.

MARQUES, Edicarla dos Santos. Uma história social dos carnavais de Amargosa: modos de
brincar e os “cão”, 1940-1980. Dissertação (Mestrado) UEFS. Feira de Santana-Ba, 2010.

MIRANDA, Áurea. Fragmentos D’ Alma... Versos da adolescência. Instituto Histórico e


Geográfico da Bahia. MCMXVIII. Bahia.

MORAES. José Geraldo Vinci de. História e Música: canção e Conhecimento. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, p. 203-221. 2000.
126

MORAIS FILHO, Mello. O entrudo. In: Louzada, Wilson. Antologia de Carnaval. Editora O
Cruzeiro. Rio de Janeiro. 1945.

NAPILITANO, Marcos. História e Música Popular: um mapa de leituras e questões. Revista


de História. São Paulo, nº 157, p. 153-171. 2007.

O LIVE IR A, C l ó v i s Fr ed eri co R . M . De Empório a Princesa do Sertão: utopias


civilizadoras em Feira de Santana (1893-1937). Dissertação de Mestrado. UFBA. 2000.

PEREIRA, Cristiana S. Os senhores da alegria: a presença das mulheres nas grandes


sociedades carnavalescas cariocas em do século XIX. CUNHA, Maria Clementina Pereira.
(org.) Carnavais e outras f(r)estas: Ensaios de História Social da Cultura.
Campinas-SP, Editora da UNICAMP: 2002.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de
Janeiro do século XIX. 2. Ed. rev. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2004
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: Visões Literárias do Urbano v.2.
Porto Alegre - RS. UFRGS: 2002;

PINHEIRO, Marlene M. Soares. A travessia do avesso: sob o signo do carnaval. São Paulo:
ANNABLUME, 1995.

POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. Editora Itapuã, Salvador-BA 1968.


QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vívido e o mito. São Paulo:
Brasiliense; 1999.p. 14.

REIS, João José. Tambores e tremores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século
XIX. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Carnavais e outras F(r)estas: Ensaios de
História Social da Cultura. Campinas SP: UNICAMP, 2005.

SANTA BARBARA, Reginilde Rodrigues. O caminho da Autonomia na conquista da


dignidade: sociabilidade e conflitos entre lavadeiras em Feira de Santana (1929-1964).
Dissertação de mestrado UFBA. Janeiro/2007.

SANTA CLARA, Anderson de Rieti. Música nos Coretos: Ruídos nos Palacetes: o cotidiano
das filarmônicas de Santo Amaro da Purificação- Bahia (1898-1932). Feira de Santana,
UEFS, 2009.
127

SANTANA, Charles D’ Almeida. Linguagens Urbanas, Memórias da Cidade. São Paulo.


Annablume, 2010.

SANTOS, Aline Aguiar Cerqueira dos. Entre bailes e tocatas musicais: filarmônicas em Feira
de Santana. VII ENECULT: Encontro de estudos multidisciplinares em cultura. Agosto de
2011. Salvador–Ba.

SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no sertão da Bahia. Projeto


História. São Paulo, vol. 28. Jun 2004.p. 244.

SCHURMANN, Ernest. F. A música como linguagem: uma abordagem histórica. São Paulo.
Editora Brasiliense. 1989.

SCHWARCZ, Lilian Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em


São Paulo no final do século XIX. São Paulo: companhia das Letras, 1987.

SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo. Editora Ática.1986.

SEVECENKO, Nicolau. A inserção Compulsória do Brasil na Belle Époque. In:


SEVECENKO, Nicolau. Literatura como missão. Companhia das Letras: Rio de Janeiro,
2007.

SILVA, Aldo José Moraes. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana:
elementos para o estudo da construção da identidade social no interior da Bahia (1833-1927)
Dissertação do Mestrado (UFBA) Salvador, 2000.

______ De terra sã a berço da Micareta: estratégias constitutivas da identidade social em


Feira de Santana. Revista de História Regional. 104-133, Inverno, 2008.

SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca, da Belle époque
ao tempo de Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008.

_______Festa da Penha: Resistência e interpenetração. CUNHA, Maria Clementina Pereira.


(org.) Carnavais e outras f(r)estas: Ensaios de História Social da Cultura. Campinas-SP,
Editora da UNICAMP: 2002.
FONTES

ALENCAR, Hélder. 31 anos de Micareta. Feira de Santana-Ba UEFS, 1968.

Associação dos Chronistas Carnavalescos, 1 de abril de 1935, Bahia.

Folha da Feira, de Junho de 1933. Ano V, Nº 246;


Folha da Feira, 19 de Fevereiro de 1934. Ano 1934. Nº 281.
Folha da Feira, 25 de fevereiro de 1935. Ano VII. Nº 333
Folha da Feira, 4 de março de 1935. Ano VII. Nº 344.

Jornal Folha do Norte 1909. Ano I. Nº 12


Folha do Norte, 12 de Fevereiro de 1910. Ano II. Nº 22,
Folha do Norte, 29 de Janeiro de 1910. Ano II. Nº 20
Folha do Norte, 3 de fevereiro de 1912. Ano IV. Nº 105.
Folha do Norte, 21 de janeiro de 1914. Ano VI. Nº 206
Folha do Norte, 14 de fevereiro de 1914. Ano VI Nº 209.
Folha do Norte, 17 de fevereiro de 1917. Ano IX. Nº 362.
Folha do Norte, 25 de fevereiro de 1922. Ano XIV. Nº 519.
Folha do Norte, 17 de fevereiro de 1923. Ano XV. Nº 670
Folha do Norte, 21 de fevereiro de 1925. Ano XVII. Nº 776.
Folha do Norte, 30 de janeiro de 1926. Ano XVIII. Nº 858.
Folha do Norte, 31 de Janeiro de 1931. Ano XXII. Nº 1124.
Folha do Norte, 7 de Fevereiro de 1931. Ano XXI. Nº 1125.
Folha do Norte, 14 de fevereiro de 1931. Ano XXII. Nº 1126.
Folha do Norte, 21 de fevereiro de 1931. Ano XXII. Nº 1127.
Folha do Norte, 6 de fevereiro de 1932. Ano XXIII. Nº 1177.
Folha do Norte, 13 de fevereiro de 1932. Ano XXII. Nº 1178
Folha do Norte, 21 de fevereiro de 1932. Ano XXII. Nº 1179.
Folha do Norte. 4 de março de 1933. Ano XXIV. Nº 1233.
Folha do Norte, 27 de janeiro de 1934. Ano XXV. Nº 1280.
129

Folha do Norte, 10 de fevereiro de 1934. Ano XXVI. Nº 1282.


Folha do Norte, 17 de fevereiro de 1934, Ano XXV. Nº 1281.
Folha do Norte. 23 de fevereiro de 1935. Ano XXVI. Nº 1336
Folha do Norte, 9 de Março de 1935. Ano XXVI. Nº 1338
Folha do Norte, 16 de Março de 1935. Ano XXVI. Nº 1339.
Folha do Norte, 9 de janeiro de 1937. Ano XXVII. Nº 1434
Folha do Norte 9 de abril de 1938, Ano XXIX. Nº 1500
Folha do Norte, 16 de abril de 1938, Ano XXIX. Nº 1501.
Folha do Norte, 30 de abril de 1938. Ano XXX. Nº 1503.
Folha do Norte, 4 de fevereiro de 1939. Ano XXX.Nº 1543.
Folha do Norte, 25 de fevereiro de 1939. Ano XXX. Nº 1546.
Folha do Norte, 4 março de 1939, Ano XXX. Nº 1547.
Folha do Norte, 11 de março de 1939, Ano XXX. Nº 1548.
Folha do Norte, 22 de abril de 1939, Ano XXX. Nº 1554.
Folha do Norte, 29 de abril de 1939, Ano XXX. Nº 1555.

Jornal O Progresso, 24 de fevereiro de 1901. Ano I. Nº 6º.

http://www.ibge.gov.br/brasil500/arabes/razaoemigarabe.html

Carnaval: poema publicando no Jornal Folha do Norte, 25 de fevereiro de 1933. Ano XXIV,
Nº 1231.
Miranda, Áurea. Fragmentos D’ Alma... Versos da adolescência. Instituto Histórico e
Geográfico da Bahia. 1907.

O Arlequim. 15 de abril de 1939, Ano I, Nº 1.


O Progresso, 11 de fevereiro de 1901. Ano I. Nº 58.
O tempo, Castro Alves, 10 de abril, 1937.
Panorama da Bahia. 50 anos de folia. 1987 p. 13
ANEXOS

Anexo I.

DATAS QUE OCORRERAM OS FESTEJOS CARNAVALESCOS E A PÁSCOA POR


ANO ESTUDADO.

Ano Carnaval Páscoa Micareta


1891 * * **
1901 17 -19 de fevereiro. 7 de abril. **
1909 20 - 23 de fevereiro. 11 de abril. **
1910 6 - 8 de fevereiro. 27 de março. **
1912 19 - 20 de fevereiro. 7 de abril. **
1914 22 – 24 de fevereiro. 12 de abril. **
1917 18 - 20 de fevereiro. 8 de abril. **
1921 6 – 8 de fevereiro. 27 de março. **
1922 26 – 28 de fevereiro. 16 de abril. **
1923 11 – 13 de fevereiro. 1 de abril. **
1924 2 – 4 de março 20 de abril. **
1925 22 – 24 de fevereiro. 12 de abril. **
1926 14 – 16 de fevereiro. 4 de abril. **
1930 2 - 4 de março. 20 de abril. **
1931 15 – 17 de fevereiro. 5 de abril. **
1932 7 – 9 de fevereiro. 27 de março. **
1933 26 - 28 de fevereiro. 16 de abril. **
1934 14 -16 de fevereiro. 1 de abril. **
1935 3 -5 de março. 21 de abril. **
1936 23 – 25 de fevereiro. 12 abril. **
1937 7- 9 de fevereiro. 28 de março. 4 - 6 de abril.
1938 27-1 de março. 17 de abril. 24 – 26 de abril.
1939 20 – 21 de fevereiro. 9 de abril. 15 – 18 abril.
131

Anexo II

Memorialistas.

Áurea Miradora

Nasceu em Feira de Santana, onde seus pais eram radicados e eram professores: Alípio
Severiano de Miranda e Amélia Severiano de Miranda, ambos atuavam profissionalmente em
escolas de Feira de Santana (Estado da Bahia). Áurea Miranda foi para Salvador, ainda bem
jovem para estudar na melhor escola formadora de professores, que era a Escola Normal.
Depois de diplomar-se, permaneceu na capital, exercendo o magistério.
A maior parte de sua atuação na cena literária da capital deu-se entre 1910 e 1920. Atuou
junto a periódicos, principalmente, como militante feminista, incrementando e descrevendo os
avanços da luta da mulher pelo voto no Brasil. Um trecho de seu artigo, "A Vitória do
Feminismo", mostra sua posição diante do mundo e da condição da mulher.251

Georgina Erismman:

Poetisa, declamadora, musicista, compositora, professora, pianista. Natural de Feira de


Santana - Bahia, filha de Camilo de Mello Lima e Leolinda Bacelar de Mello Lima. Nascida
em 27 de janeiro de 1893. Formada em magistério, foi nomeada professora de música em
1927 para a Escola Normal Rural de Feira de Santana (CUCA). Na Escola Normal, forma um
coral composto de alunas, faz lançamento do Hinário, e em 1928, apresenta o Hino à Feira.
Georgina Erismann continuou produzindo seus poemas, hinos, canções e crônicas, algumas
dessas obras são publicadas em jornais locais e da capital.
Algumas obras de sua produção; poemas: Adeus, Adeus Bahia, A Fuga das Andorinhas,
Balão, Chuva, Elegia, Exortação, Inquietude, Mestra, Quaresma, Rede, Solicitude, Zabumba,
etc. Hinos: A Bandeira (em parceria com Gastão Guimarães), À Feira, Ao Trabalho, Ao Três
de Maio (em parceria com Maria Luiza de Souza Alves), Canção Patriótica e Redenção (Para

251
http://www.escritorasbaianas.ufba.br/aurea/biotraj.html
132

Treze de Maio). Suas composições são diversificadas: fox trote, canção, valsas, tango de
salão, tango argentino, marcha carnavalesca: Ângelus, Campânula, Cantigas ao Luar, Garota,
Mártir, Mestiça, Moreninha, Noiva, Saci Pererê, Sayonara, Seresta, Sombra, Tropeiro, etc.252

Hélder Alencar:

Nascido em Feira de Santana, Alencar é formado é jornalista e advogado, atua como


procurador jurídico da Universidade Estadual de Feira de Santana e mantém um interesse
sobre a pesquisa histórica sobre sua cidade natal. Foi um dos colaboradores da criação do
extinto jornal Feira Hoje.

Melo Moraes Filho:

Melo Morais Filho (Alexandre José de Melo Morais Filho), poeta, cronista e folclorista,
nasceu em Salvador (BA), em 23/02/1843 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 01/04/1919.
Formou-se em medicina em Bruxelas, Bélgica, e revalidou o diploma no Rio de Janeiro em
1876. Colaborador de jornais e revistas deixou grande bibliografia etnográfica e folclórica.
Foi o primeiro tradicionalista do seu tempo. Encabeçando campanha pela valorização de
festas, autos e bailes populares, muitos dos quais encenou.
Publicou Cancioneiro dos ciganos, Rio de Janeiro, 1885; Ciganos no Brasil, Rio de Janeiro,
1886. Festas populares do Brasil, Rio de Janeiro, 1888, Festas do Natal, Rio de Janeiro,
1895; Cantares brasileiros: cancioneiro fluminense, 2 volumes, Rio de Janeiro, 1900; Festas
e tradições populares no Brasil, nova edição, revista e aumentada, Rio de Janeiro,
1901; Serenatas e saraus , 3 volumes, 1901-1902; Histórias e costumes, Rio de Janeiro,
1904; Fatos e memórias, Rio de Janeiro, 1904; Quadros e crônicas, Rio de Janeiro, s.d. 253

252
http://www.feiradesantanna.com.br/georginaerisman.htm
253
http://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/melo-morais-filho.html#ixzz2UPw91OCx
133

Wilson Louzada.

Literário brasileiro que concentrou sua produção em poemas publicados entre as décadas de
1940 e 1950 dentre eles: Cancioneiros do amor: poesia portuguesa (1950); Cancioneiro do
amor: poesia brasileira (1952); Antologia de Carnaval (1945). Em suas produções aparece
sempre como organizador da produção literária de sua época e de mais antigos.

Vous aimerez peut-être aussi