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AO REENCANTAMENTO DO MUNDO*
A ciência moderna baseia-se na ideia de uma separação total entre o sujeito cognitivo e
a Realidade, que é suposta ser completamente independente do sujeito que a observa.
Mas, ao mesmo tempo, à ciência moderna se deram três postulados fundamentais que
se estendiam a um grau supremo, no plano da razão, na busca das leis e da ordem:
1. A existência de leis universais de caráter matemático;
2. A descoberta dessas leis através da experiência científica;
3. A reprodutibilidade perfeita dos dados experimentais.
Os extraordinários sucessos da física clássica, de Galileu, Kepler e Newton a Einstein,
confirmaram a correção desses três postulados. Ao mesmo tempo, eles contribuíram
para o estabelecimento de um paradigma de implicação, que se tornou predominante
no início do século XIX.
A física clássica baseia-se na ideia de continuidade, de acordo com a evidência fornecida
pelos órgãos dos sentidos: não se pode passar de um ponto para o outro do espaço e do
tempo sem passar por todos os pontos intermediários.
A ideia de continuidade está intimamente ligada a um conceito-chave da física clássica:
causalidade local. Todo fenômeno físico pode ser entendido por uma cadeia contínua
de causas e efeitos: cada causa em um determinado ponto corresponde a um efeito em
um ponto infinitamente próximo e cada efeito em um determinado ponto corresponde
a uma causa em um ponto infinitamente próximo.
O conceito de determinismo é central na física clássica. As equações da física clássica
são tais que, se as posições e velocidades dos objetos físicos forem conhecidas em um
determinado momento, suas posições e velocidades podem ser previstas em qualquer
outro momento. Como os estados físicos são funções de posições e velocidades, segue-
se que, se alguém especifica as condições iniciais (o estado físico em um determinado
momento), pode-se prever completamente o estado físico em qualquer outro instante
dado.
A objetividade da física clássica está fundamentalmente ligada ao conhecimento de um
objeto que evolui numa dimensão temporal e no espaço tridimensional.
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O cientificismo toma posse dessa objetividade, resultado de um realismo clássico que
agora desatualizado.
Não é surpreendente, então, que o homem ocidental tenha transformado a Natureza
de parceira em escrava. A Natureza é feita, segundo tal filosofia cientificista, para ser
dominada, possuída, manipulada.
A Filosofia Natural alemã tentou, sem sucesso, resistir a esse movimento. O romantismo
não poderia fazer nada contra a força bruta da crescente tecnociência.
O grande evento que pulverizou os fundamentos do cientificismo foi a revolução
quântica³ que ocorreu explorando o mundo infinitamente pequeno e infinitamente
breve.
A mecânica quântica está em total violação com a mecânica clássica.
De acordo com a descoberta de Planck, a energia possui uma estrutura discreta e
descontínua. A descontinuidade significa que entre dois pontos não há nada, nem
objetos, nem átomos, nem moléculas, nem partículas, nada. E até mesmo a palavra
"nada" é demais.
Uma quantidade física tem, de acordo com a mecânica quântica, diversos valores
possíveis, atribuídos a probabilidades bem definidas. Mas, a partir de uma medida
obtida experimental, se obtém, obviamente, um resultado específico para a quantidade
física em questão. Esta abolição abrupta da pluralidade de valores possíveis de um
"observável" físico pelo ato de medida tem uma natureza obscura, mas indicou
claramente a existência de um novo tipo de causalidade.
Sete décadas após o nascimento da mecânica quântica, a natureza desta novidade da
causalidade foi esclarecida por um teorema teórico rigoroso de Bell e por experimentos
de grande precisão. Um novo conceito assim se introduziu na física: a não-
separabilidade.
As entidades quânticas continuam a interagir independentemente da sua distância.
Aparentemente, surge um novo tipo de causalidade - uma causalidade global que diz
respeito ao sistema de todas as entidades físicas, como um todo.
As entidades quânticas – os quanta – são corpúsculos e ondas ou, mais precisamente,
não são nem partículas nem ondas.
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³ Basarab Nicolescu, Nós, a Partícula e o Mundo, Edições Rocher, Monaco, Coleção
"Transdisciplinaridade", 2002.
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Para muitos pesquisadores, a transdisciplinaridade, baseada no realismo quântico, é
hoje uma forma de reencantar o mundo através da interação de todas as áreas do
conhecimento. Concerne à transdisciplinaridade, como o prefixo "trans" indica, o que é
ao mesmo tempo entre as disciplinas, nas diferentes disciplinas e além de toda
disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo presente, dos quais um dos
imperativos é a unidade do conhecimento.4
A palavra "mundo" deve ser especificada, pois há muitos significados dessa palavra.
Na terminologia transdisciplinar, a palavra "mundo" significa o universo interior do
homem, o universo externo e a interação entre esses dois universos.
Por mais paradoxal que possa parecer, é a física moderna que contém em si a luz da
renovação. A transdisciplinaridade captura esse germe transformando-o em uma árvore
do conhecimento.
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níveis de realidade foi afirmada por diferentes tradições e civilizações, mas essa
afirmação baseou-se em dogmas religiosos ou na exploração do universo interior.
O surgimento de pelo menos três níveis diferentes de Realidade no estudo dos sistemas
naturais - o nível macrofísico, o nível microfísico e o espaço cibernético (ao qual
devemos adicionar um quarto nível, no momento puramente teórico, as supercordas,
consideradas pelos físicos como a última textura do universo) -, é um evento importante
na história do conhecimento. Isso nos leva a repensar nossa vida individual e social, a
dar uma nova leitura ao conhecimento antigo, a explorar de outro modo o
conhecimento de nós mesmos aqui e agora.
No campo dos sistemas sociais, podemos distinguir os seguintes níveis: nível individual,
nível de comunidades geográficas e históricas (família, nação), nível de planeta, nível de
comunidades no ciber-espaço-tempo e nível cósmico.
Na presença de vários níveis de realidade, o espaço entre disciplinas e além das
disciplinas é cheio de informações, já que o vácuo quântico está cheio de todas as
potencialidades: da partícula quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados que
condicionam a aparência da vida no universo.
A unidade que liga todos os níveis de Realidade, se existir, deve ser necessariamente
uma unidade aberta. É assim que entendemos hoje o antigo princípio da
interdependência universal. De fato, uma vasta autoconsistência parece governar a
evolução do universo, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, do
infinitamente curto ao infinitamente longo.
Este é um fato fundamental para o encantamento do mundo. Num mundo governado
pela auto-suficiência universal, tudo é um sinal. Deste modo, encontramos a nossa
conexão matricial não só com a Terra, mas com todo o cosmos.
Existe, naturalmente, uma coerência de todos os níveis da Realidade, mas essa
coerência está orientada: uma flecha está associada a qualquer transmissão de
informações de um nível para outro. Para que haja uma unidade aberta, devemos
considerar que o conjunto de níveis de Realidade é estendido por uma área de não
resistência às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou
formalizações matemáticas. A não resistência desta zona de transparência absoluta é
simplesmente devido às limitações de nossos corpos e nossos órgãos dos sentidos,
independentemente dos instrumentos de medida que prolongam esses órgãos dos
sentidos.
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O conjunto de níveis de realidade e sua zona de não-resistência complementar
constituem o OBJETO transdisciplinar.
Os Níveis de Realidade podem ser explorados através da existência dentro de nós dos
diferentes NÍVEIS DE PERCEPÇÃO.
O conjunto de níveis perceptivos e sua zona de não-resistência complementar
constituem o SUJEITO transdisciplinar.
O conhecimento não é externo nem interno: é externo e interno. O estudo do UNIVERSO
e o estudo do ser HUMANO se apoiam mutuamente. A experiência de si mesmo têm
tanto valor cognitivo quanto a experiência da Natureza tem para o conhecimento
científico.
A zona de não-resistência desempenha o papel de TERCEIRO OCULTO, que permite a
unificação, na sua diferença, do sujeito transdisciplinar e do Objeto Transdisciplinar.
Permite e exige a interação entre o sujeito e o objeto. A zona de transparência, ou de
não-resistência, corresponde ao SAGRADO, ou seja, o que não se submete a qualquer
racionalização.
Vale lembrar a importante distinção feita por Edgar Morin entre racional e
racionalização.6 O sagrado é racional, mas não é racionalizável. O sagrado não se opõe
à razão: na medida em que garante a harmonia entre o sujeito e o objeto, o sagrado é
parte integrante da nova racionalidade. O sagrado é o que conecta. Não é, por si só, o
atributo de uma religião ou outra: "O sagrado não implica a crença em Deus, em deuses
ou espíritos. É ... a experiência de uma realidade e fonte da consciência de existir no
mundo ", escreve Mircea Eliade.7 O sagrado é antes de tudo uma experiência, expressa
em um sentimento, o da presença do Nós, daquilo que conecta seres e coisas e
consequentemente induz nas profundidades do ser humano respeito absoluto pelas
alteridades unidas pela vida comum em uma mesma Terra. O sagrado, como uma
experiência de um real irredutível, é de fato o elemento essencial na estrutura da
consciência e não um mero estágio da história da consciência.
A realidade engloba o sujeito, o objeto e o terceiro oculto, que são as três facetas de
uma e mesma realidade. Sem uma dessas três facetas, a Realidade não é mais real, mas
uma fantasmagoria destrutiva.
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𝑜6 Edgar Morin, Método III - Conhecimento do Conhecimento / 1. Antropologia do
conhecimento, Seuil, Paris, 1986.
𝑜7 Mircea Eliade, O teste do labirinto, entrevistas com Claude Henri Rocquet, Rocher,
coleção "Transdisciplinaridade", Monaco, 2006, p. 176.
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Para dizer a verdade, "a natureza viva" é um pleonasmo, porque a palavra "natureza"
está intimamente relacionada a de "nascimento". A palavra latina natura tem como raiz
nasci (nascer) e designa a ação de nascer, bem como os órgãos femininos da geração. A
Natureza Viva é a matriz da autoconsciência do homem.
Galileu teve a visão da Natureza como um texto em linguagem matemática que ele
poderia decifrar e ler. Esta visão, que atravessou os séculos, provou ser uma grande
eficiência. Mas hoje sabemos que a situação é muito mais complexa. A natureza nos
parece muito mais um pré-texto: o livro da Natureza não é para ler, mas para escrever.
Um extraordinário, inesperado e surpreendente Eros cruza os níveis de Realidade e os
níveis de percepção. Artistas, poetas, cientistas e místicos de todas as idades
testemunharam a presença deste Eros no mundo.
O cruzamento dos níveis de Realidade pode ocorrer graças a uma nova lógica, uma lógica
quântica, a do terceiro incluído10 , que nos diz que existe um terceiro termo T que é ao
mesmo tempo A e não-A. Daí, o terceiro incluído está inscrito no próprio coração da
física quântica pelo postulado fundamental da superposição de estados quânticos.
Se permanecemos em um nível de Realidade, cada manifestação aparece como uma
luta entre dois elementos contraditórios (exemplo: onda A e partícula não-A). A terceira
dinâmica, a do estado T, é exercido em outro nível de realidade, onde o que parece ser
desunido (onda ou corpúsculo) estão na verdade unidos (quanton), e o que parece
contraditório é percebido como não contraditório. A lógica do terceiro incluído é uma
lógica da complexidade e até, talvez, sua lógica privilegiada na medida em que permite
a travessia, de forma coerente, nos diferentes domínios do conhecimento. A
transdisciplinaridade é verdadeiramente um conhecimento do terceiro.
Mas hoje vivemos uma escabrosidade completa do pensamento binário. A lógica binária
da verdade absoluta e da falsidade absoluta age com um descaso que deixa qualquer
um intrigado. "A luta do bem contra o mal", "Deus está conosco!" - tantos slogans que
tornam a multidão feliz com aprovação e culminam com essa incrível afirmação que,
inconscientemente, repete um conhecido slogan leninista: "Quem não está conosco
está contra nós!" O assassinato da transcendência é o ponto culminante do pensamento
binário. O relativo se torna um absoluto de tal maneira que se pode afirmar qualquer
coisa e seu oposto. Os adversários agem cada "em nome de Deus"? Qual Deus? Haveria
tantos deuses como religiões?
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Estamos no limiar de uma nova era de iluminação? Estou convencido disso. A luz em
questão é sempre a mesma: a da razão. Mas uma razão ampliada, aberta, em diálogo
permanente com aquilo que a transcende. O pensamento dos limites está intimamente
ligado ao conhecimento dos limites da razão. Este pensamento de limites, que irá
integrar razão e mistério, é o novo horizonte do conhecimento no século XXI.
Quando a caixa de Pandora se abriu, os males que escaparam ameaçaram os humanos
que povoavam a Terra. No fundo da caixa desejamos encontrar, escondida, a esperança.
Esperança, esta, por sinal, que a transdisciplinaridade pretende testificar.
Basarab NICOLESCU
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