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DAMIÃO DE GÓIS E SEU AMIGO ZAGA-ZABO: A

HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA NA FIDES, RELIGIO


MORESQVE AETHIOPVM.

MARIA DA CONCEIÇÃO SILVEIRA DE ALMEIDA

Tese de Doutorado submetida ao Programa


de Pós-graduação em Letras Clássicas, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor
em Letras Clássicas.

Orientador: Professor Doutor Carlos


Antônio Kalil Tannus.

Rio de Janeiro
Abril de 2008
DAMIÃO DE GÓIS E SEU AMIGO ZAGA-ZABO: A HETEROGENEIDADE
ENUNCIATIVA NA FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM.

Maria da Conceição Silveira de Almeida


Orientador: Carlos Antônio Kalil Tannus

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Clássicas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Carlos Antônio Kalil Tannus.

_______________________________________________
Profª. Doutora Alice da Silva Cunha.

________________________________________________
Profª.Doutora Vanda Santos Falseth.

________________________________________________
Prof. Doutor Airto Ceolin Montagner.

________________________________________________
Prof. Doutor Francisco de Assis Florêncio.

________________________________________________
Profª. Doutora Flora Simonetti Coelho – UERJ, Suplente.

________________________________________________
Prof. Doutor Miguel Barbosa do Rosário – UFRJ, Suplente.

Rio de Janeiro
Abril de 2008
Dedico

Aos meus filhos, Rafael, Felipe e Guilherme,


porque, depois do amor, o maior legado a um filho é o
exemplo.

À minha maior e eterna amiga e irmã Vanadir, que


é a autora dessa parte da minha história.

Ao meu inesquecível Mestre José de Oliveira


Magalhães (in memoriam), quia latine scire bonum est.
Agradeço, de todo coração,

Ao meu ex-professor Márcio Luiz Moitinha Ribeiro, que


assentou as primeiras pedras com que esse longo
caminho foi aplainado;

À minha Coordenadora atual, Professora Cecília Lopes


de A. Araújo e também à minha ex-Coordenadora,
Professora Vanda Santos Falseth, do Departamento de
Letras Clássicas por toda compreensão e
solidariedade;

Aos meus colegas de Departamento pela generosidade


demonstrada em tantas vezes que tiveram que assumir
tarefas que me caberiam, para que eu pudesse concluir
este trabalho;

Aos meus alunos e ex-alunos pelo incentivo, amizade e


extrema paciência, nesse momento conturbado, que,
entretanto, eu desejo que eles, um dia, também
conheçam;

A todos os meus ex-professores pela irretribuível


dádiva dos seus saberes;
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas,
que, na pessoa do seu ex-Coordenador, Professor
Henrique Fortuna Cairus, sempre nos auxiliou nas
dificuldades com solicitude, eficácia e boa-vontade;

Ao colega Cristiano Pinto de Moraes Bispo, por ter-me


apresentado à África;

Ao aluno Sérgio Rangel de Souza Filho, que sabe tudo


sobre música polifônica;

À Banca Examinadora, que me deu a honra e o prazer


de aceitar o desafio de avaliar este trabalho,
principalmente dentro desse curtíssimo prazo.
Ao meu orientador:

Um agradecimento muito especial ao Professor


Carlos Antônio Kalil Tannus, que mais que
orientador foi O amigo, daqueles que sabem
dispensar, não só confiança, mas também todo o
apoio indispensável e necessário, conforme o caso;
de quem somente recebi palavras de incentivo. E
isso foi decisivo para que esse trabalho fosse,
enfim, concretizado.
RESUMO

DAMIÃO DE GÓIS E SEU AMIGO ZAGA-ZABO: A HETEROGENEIDADE


ENUNCIATIVA NA FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM

Maria da Conceição Silveira de Almeida

Orientador: Carlos Antônio Kalil Tannus

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Letras Clássicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras
Clássicas.

Esta tese tem como escopo o estudo da polifonia, evidente no opúsculo Fides,
Religio Moresque Aethiopum, de Damião de Góis, não apenas pelas características do
texto, mas também por suas condições de produção, determinadas pelas relações de seu
autor nos meios cultos da Europa do século XVI, quer ao serviço da Coroa portuguesa,
quer empenhado em aperfeiçoar seu saber humanístico por meio do estudo nos maiores
centros culturais da época, o que teve como resultado a produção de uma obra singular,
condicionada por seu profundo patriotismo e pela lealdade à fé católica, embora
impregnada de piedade cristã, tolerância religiosa e ideais de concórdia.

Palavras-chave: Damião, Renascimento, Preste João, Etiópia, intertextualidade,


heterogeneidade mostrada, polifonia, inquisição, humanismo, Grandes Navegações
Portuguesas.

Rio de Janeiro
Abril/2008
ABSTRACT

DAMIÃO DE GÓIS AND YOUR FRIEND ZAGA-ZABO: THE ENUNCIATIVE


HETEROGENEITY ON FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM

Maria da Conceição Silveira de Almeida

Orientador: Carlos Antônio Kalil Tannus

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Letras Clássicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras
Clássicas.

This thesis has as target the study of the polyphony, evident in the booklet Fides,
Religio Moresque Aethiopum, of Damião de Góis, not only for the text characteristics,
but also for its production conditions, determined by the relations of its author in
cultural environments of the Europe on the XVIth century, either to service of the
Portuguese Crown, either pledged in perfecting his humanistic knowledge through the
study in the biggest cultural centers of that time, what had as result the production of a
singular work, conditioned by his deep patriotism and by the loyalty in the catholic
faith, although impregnated of christian mercy, religious tolerance and concord ideals.

Key-words: Rebirth, Priest John, Great Navigations, Ethiopia, Damião, humanism,


polyphony, intertextuality, showed heterogeneity, inquisition.

Rio de Janeiro
Abril/2008
RÉSUMÉ

DAMIÃO DE GÓIS ET SON AMI ZAGA-ZABO: L’HÉTÉROGÉNÉITÉ


ÉNONCIATIVE EN FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM

Maria da Conceição Silveira de Almeida

Orientador: Carlos Antônio Kalil Tannus

Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Letras Clássicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras
Clássicas.

Cette thèse a comme cible l'étude de la poliphonie, évident dans le livret Fides,
Religio Moresque Aethiopum, de Damião de Góis, non seulement par les
caractéristiques du texte, mais également par ses conditions de production, déterminées
par les relations de son auteur dans les cercles cultivés de l'Europe du XVI siècle, soit
mis à la besogne de la Couronne portugaise, soit au besoin de perfectionner son savoir
humaniste au moyen de l’étude aux plus grands centres culturels de l'époque, ce qu'a eu
en conclusion la production d'un travail singulier, conditionné par le sens de patriotisme
profond et par la loyauté à la foi catholique, bien qu'impregné de la piété chrétienne, de
la tolérance religieuse et des idéaux de concorde.

Mots-clés: Damião, Renaissance, Prêtre Jean, Ethiopie, intertextualité, hétérogénéité


montrée, la poliphonie, inquisition, l’humanisme, Les voyages portugais.

Rio de Janeiro
Abril/2008
SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO..........................................................................................................12

2.CONTEXTO HISTÓRICO ......................................................................................19

2.1-Renascimento e Humanismo.................................................................................20

2.2-O estabelecimento da Inquisição...........................................................................22

2.3-A Igreja em face da cultura humanística...............................................................25

2.4-O Renascimento português....................................................................................25

2.4.1-As descobertas de além-mar........................................................................26

2.4.2-Causas e conseqüências da expansão marítima portuguesa.........................30

2.4.3-D. João III, um paradigma das contradições da época.................................32

3.DAMIANVS A GOES, EQVES LVSITANVS.........................................................37

3.1-A origem.................................................................................................................38

3.2-Agente comercial e diplomata................................................................................40

3.3-Historiador e humanista.........................................................................................45

3.4-Um “europeu” em Portugal....................................................................................71

3.5-Cronista ou historiador?.........................................................................................72

3.6-A denúncia, o processo, o fim................................................................................77

4.ASCENSÃO, APOGEU E QUEDA DO IMPÉRIO DO PRESTE JOÃO.............83

4.1-Cultura e civilização..............................................................................................84

4.2-A Antigüidade Clássica e a África Subsaariana....................................................87

4.3-Breve História da Etiópia......................................................................................97

4.4-Civilização Etíope e Civilização Ocidental.........................................................102

5.FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM..................................................106

6.A FÉ, A RELIGIÃO E OS COSTUMES DOS ETÍOPES....................................201

Carta I: De Damião de Góis ao Pontífice Romano.....................................................202

Parágrafo 12: Damião de Góis: primeira embaixada portuguesa à Etiópia................204


Carta II: Da regente Helena a D. Manuel I.................................................................207

Parágrafo 26: Damião de Góis: retomada da narrativa sobre a embaixada................209

Carta III: Do Preste João da Etiópia a D. Manuel I....................................................210

Carta IV: Do Preste João da Etiópia a D. João III......................................................215

Carta V: Do Preste João da Etiópia ao Sumo Pontífice............................................. 219

Carta VI: Do Preste João da Etiópia ao Sumo Pontífice............................................223

Parágrafo 53: Damião de Góis: a produção do texto e o relato de Zaga-Zabo...........225

Parágrafo 55: Exposição de Zaga-Zabo (texto nuclear).............................................226

7.A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA NA FIDES......................................249

7.1-Heterogeneidade enunciativa e polifonia discursiva............................................251

7.2-Universo, campo e espaço discursivo..................................................................252

7.3-O latim e outros signos.........................................................................................253

7.4-Fenômenos dependentes da heterogeneidade mostrada.......................................254

7.5-Intertextualidade...................................................................................................257

7.6-Discurso direto e indireto (de LS).........................................................................261

7.6.1-Discurso indireto de LE...............................................................................269

7.6.2-Discurso indireto de LI................................................................................272

7.6.3-Discurso direto e indireto de LP..................................................................273

7.7-Justificação, explicação, ressalva........................................................................274

7.8-A negação............................................................................................................276

7.9-O diálogo com o pensamento erasmiano.............................................................278

7.10-O diálogo entre Damião de Góis e Zaga-Zabo..................................................287

7.11-O diálogo com a tradição clássica.....................................................................289

8.CONCLUSÃO ..........................................................................................................290

9.BIBLIOGRAFIA......................................................................................................296
1. INTRODUÇÃO.

O pobre Zaga-Zabo fora figura solitária na corte de


Portugal. Esquecido pelo rei, atormentado por teólogos que
estavam ansiosos por lhe pôr à prova a ortodoxia, e
desesperadamente orostálgico, os doze anos que passou na
Europa devem ter-lhe parecido uma eternidade. Mas ao menos
conseguiu um amigo que muito o honra – o humanista Damião de
Góis. Este brilhante sábio, discípulo de Erasmo, mergulhado na
cultura dos clássicos, e recém-chegado dos principais centros do
saber da Europa, parece ter dedicado estima e afeição genuína
ao monge negro educado nas serras isoladas da Etiópia. [....] O
mesmo espírito de universalismo que o tinha levado a travar
relações de amizade com Lutero e Melanchton, seus irmãos
intelectuais, induziu-o agora a investigar as doutrinas da Igreja
abexim com grande curiosidade.*

*SANCEAU, 1940, p. 258.


O corpus desta tese de Doutorado, o opúsculo Fides, Religio Moresque
Aethiopum, do humanista Damião de Góis, oferece-nos um retrato nítido da profunda
crise que transformou o período renascentista numa época de paradoxos e o ocidente em
palco de episódios dramáticos, decorrentes da intolerância e da incompreensão.
Paradoxos, porque o Renascimento cultural, que germinou na paz silenciosa dos
mosteiros, veio promover o resgate do saber, o reconhecimento e a valorização das
potencialidades humanas, mas viu a luz sob a égide da Igreja romana em franca
expansão, e esta, temerosa das conseqüências deste saber para a fé e a ortodoxia
católica, passa a manter um rígido controle sobre o desenvolvimento dos estudos
humanísticos e a produção cultural que daí adveio. Os episódios dramáticos derivaram
dos mecanismos de repressão e dos métodos utilizados com o fim de inibir o avanço do
livre pensamento ou de quaisquer manifestações do gênio humano que viessem a
contestar as verdades estabelecidas.

É em face deste momento particular que o livro de Damião de Góis foi


publicado, destinando-se, como era desejo de seus idealizadores – pois a iniciativa do
autor foi estimulada por outros humanistas, tanto laicos como religiosos – a promover o
diálogo entre as forças conflitantes, tomando como modelo o cristianismo perseverante
e primitivo dos etíopes, que durante séculos defenderam sua fé contra todas as
adversidades. Por isso, traduziu em latim o relato recebido em Pádua, onde completava
seus estudos humanísticos, e que lhe fora enviado pelo bispo Zaga-Zabo, de quem
sempre se declarou amigo, em cumprimento da palavra dada, quando de passagem por
Portugal, tomou conhecimento das dificuldades encontradas pelo religioso africano para
levar a bom termo a missão para a qual fora designado pelo Preste João da Etiópia.

A escolha, para a análise desta obra, da teoria polifônica, concebida por Mikail
Bakhtin a partir de um tropo da música e, posteriormente desenvolvida por Oswald
Ducrot e ampliada por Júlia Kristeva, Dominique Mangueneau e outros teóricos do
discurso, como os nossos José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros¹, vem ao
_____________________
1-Estes autores procuram mostrar que, na verdade, “não há textos polifônicos ou monofônicos, pois, nestes últimos, as vozes se
ocultam sob a aparência de uma única voz.” (BARROS, 2003, p. 6)

13
encontro das próprias características estruturais e ideológicas do texto, pois ela atravessa
em sua totalidade as questões que se nos apresentam e permite analisar sob uma nova
ótica os textos latinos do Renascimento, signos de um movimento caracterizado tanto
pelo debate de questões polêmicas, sobretudo as religiosas, quanto pelo diálogo em
torno de interesses culturais comuns. Neste sentido, o opúsculo de Damião de Góis é
explicitamente polifônico, como também o era o próprio movimento humanístico.

A teoria polifônica de Bakhtin teve origem no estudo da obra de Dostoiévski e


da sátira menipéia – Saturae Menippeae (Varrão, séc. I a. C.)¹ – e foi reformulada por
outros analistas do discurso, que reconheceram nela uma importante ferramenta para o
estudo da participação das vozes e dos pontos-de-vista, que vindos de outros discursos
respondem contratualmente pela construção dos sentidos dos inúmeros e diferentes
textos.

Organizamos nossa pesquisa, dividindo o trabalho em sete partes das quais a


primeira corresponde a esta introdução. Em seguida temos um estudo do contexto
histórico, conteúdo do capítulo 2, cujos fundamentos foram recolhidos das obras de
Jacques Le Goff, sobre o período medieval; dos eruditos portugueses, Professor José
Serrão, Américo da Costa Ramalho, e outros pesquisadores do Humanismo
renascentista português, citados na bibliografia; de Baigent e Leigh que investigaram a
origem e o estabelecimento da Inquisição no contexto europeu; e, certamente, de autores
de História de Portugal, como Antônio Borges Coelho e Roland Mousnier,
principalmente os capítulos dedicados às Grandes Navegações e à expansão
ultramarina, cuja contribuição também se refletiu na produção humanística dentro e fora
da nação lusa.

O terceiro capítulo apresenta um pouco da biografia e faz uma breve descrição


da obra de Damião de Góis, com base, principalmente no estudo de Mrs. Elizabeth Feist
Hirsch, estudiosa norte-americana, a quem se deve a pesquisa mais completa sobre o
historiador português, e que, além do pioneirismo nem sempre reconhecido, teve o
mérito de revelar o humanista cosmopolita para os seus próprios compatriotas.
_____________________
1-A sátira menipéia contém, diz ainda Bakhtin, uma combinação espantosa de elementos na aparência heterogêneos e
incompatíveis: o diálogo filosófico, os discursos oratórios, a aventura, o naturalismo, o fantástico, a utopia, etc.
(BARROS & FIORIN, 2003, p. 53)
14
Sobre essa pesquisadora não podemos deixar de refletir aqui sobre a atitude de
alguns acadêmicos portugueses que, mesmo bebendo fartamente na rica fonte em que se
constituiu seu livro – pois é inevitável reconhecer, em estudos posteriores, não apenas
paráfrases, mas algumas reproduções exatas do texto da biógrafa americana –, desferem
pesadas críticas e, por vezes, injustas à autora, que dedicou mais de dez anos de sua vida
ao estudo de Damião de Góis, e sob orientação e supervisão do eminente português e
respeitado erudito A. da Veiga-Simões, ao qual ela não deixa manifestar sincero e
honesto reconhecimento. As ressalvas dizem respeito principalmente ao seu
desconhecimento de alguns fatos, só mais tarde elucidados sobre o humanismo
português, cujos estudos, na verdade, se intensificaram em Portugal, sobretudo na
segunda metade do século passado. De qualquer forma trata-se de um deslize
insignificante diante da magnitude da obra, hoje fonte de consulta obrigatória para
qualquer um que se debruce sobre a intrigante figura desse grande humanista.

Alguns autores europeus, como Marcel Bataillon e Albin Beau, também


investigaram Damião de Góis, desenvolvendo estudos importantes, bem anteriores aos
dos portugueses que, somente no final do século XX, começaram a se dedicar com mais
afinco à vida e à obra do insigne historiador.

Como este livro de Damião de Góis trata dos fundamentos da cultura etíope – o
que o próprio título da obra antecipa – e das suas tentativas de aproximação com o
ocidente europeu, incluímos um estudo sobre essa nação africana, que corresponde ao
capítulo 4. Para isso investigamos, não só a obra de autores modernos dedicados aos
estudos africanos, como Jean-Marie Lambert e Catherine Coquery-Vidrovitch, mas
também de autores ibéricos do século XVI e XVII, que muito escreveram sobre a
Etiópia, entre os quais o jesuíta espanhol Pero Paes e o padre português Baltazar Teles.

O quinto capítulo traz a reprodução do original publicado em Paris, em 1541, da


obra aqui estudada, e, no sexto, apresentamos a tradução que dela fizemos. Este
capítulo contém, além de algumas notas explicativas, índices que não correspondem ao
texto original – como a numeração dos parágrafos e a indicação dos discursos dos

15
principais locutores – mas que foram acrescentados para facilitar a localização dos
enunciados recortados para análise da polifonia, tema central dessa tese, e que vem
desenvolvida no capítulo 7. Com a mesma finalidade procuramos também identificar as
partes constituintes do opúsculo, conforme esquema abaixo:

Carta I: Escrita em latim pelo próprio Damião de Góis e dirigida ao Papa Paulo III.

Parágrafo 12: Damião de Góis explica as origens das Grandes Navegações e fala dos
primeiros contatos de Portugal com a Etiópia.

Carta II: Escrita pela rainha Helena, regente e avó de Davi, futuro Imperador da
Etiópia ao rei dos portugueses D. Manuel I, escrita no ano de 1509, e vertida em latim
por Damião de Góis.

Parágrafo 26: Damião de Góis retoma a narrativa sobre a embaixada portuguesa à terra
do Preste João e dá algumas informações sobre a Fides.

Carta III: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para D. Manuel I,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.

Carta IV: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para D. João III,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.

Carta V: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para o Sumo Pontífice,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.

Carta VI: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para o Sumo Pontífice,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.

Parágrafo 53: Damião de Góis esclarece as condições de produção do livro até dar a
palavra a Zaga-Zabo, cujo relato o próprio humanista reproduziu em latim.

16
Parágrafo 55: Exposição de Zaga-Zabo, texto nuclear da Fides, Religio Moresque
Aethiopum, em versão latina do historiador português.

A análise da polifonia do texto está desenvolvida, conforme o estudo da


heterogeneidade enunciativa de Mangueneau, de mais fácil manejo, cuja contribuição
consiste na caracterização dos fenômenos que evidenciam as vozes que participam da
enunciação – entre os quais, o discurso direto – e o esboço da teoria polifônica de
Ducrot, cujas notações – tais como L (locutor), E (enunciador), etc. – tomamos
emprestadas para a identificação dessas vozes.

As relações do nosso autor com humanistas de diferentes nacionalidades e sua


capacidade de dialogar, exercitada ao longo de sua vivência na corte de D. Manuel I e
aperfeiçoada em suas andanças pela Europa, como legado do reino português, estão na
origem do seu pensamento humanístico, e explicam sua afinidade com o pensamento de
Erasmo de Roterdã, príncipe dos humanistas, de quem procurou, com grande empenho,
tornar-se amigo. Os ideais irenistas que Erasmo professava e deixou registrados em
suas obras, perpassam todo o opúsculo estudado nesta tese, porque foi imbuído do
mesmo espírito de tolerância cristã que Damião de Góis tomou a si a missão de advogar
junto à Cristandade o reconhecimento da religião da Etiópia, recorrendo, para tanto ao
testemunho documental das relações anteriormente estabelecidas entre o rei português e
o Preste João, e ao auxílio de todas as vozes favoráveis que se levantaram – como
veremos a seguir – e que explícitas ou implícitas dialogam por intermédio do discurso
do autor.

Antes de prosseguir com nosso estudo, faz-se necessário definir as notações,


baseadas na teoria desenvolvida por Ducrot, com as quais identificamos os responsáveis
pelas vozes e/ou pontos-de-vista que se manifestam nesta obra de Damião de Góis:

LS – discurso portador da verdade religiosa – (Locutor porta-voz da mensagem sagrada,


do texto bíblico)
LI – discurso portador de mensagens meramente informativas – (Locutor responsável
pelas intermediações)

17
LE – discurso portador de verdades da religião etíope – (Locutor porta-voz das tradições
da Etiópia)
LP – discurso portador da mensagem do próprio L – (Sempre que L se representa por um
dêitico, afastando-se do discurso original)
LC – discurso portador do saber clássico (Quando o texto dialogar com os textos
antigos)

Para evitar uma lista interminável de L, chamamos de LS qualquer discurso


retirado do texto bíblico, quer se trate das palavras de Deus, de Jesus, de um Apóstolo,
ou outras. Da mesma forma, LE poderá representar qualquer personagem e seu
respectivo discurso, citado a partir dos livros etíopes.

Reconhecemos o risco assumido na escolha da teoria polifônica, para aplicar a


um texto não literário, uma vez que ela foi concebida para analisar um romance. Mas os
estudos modernos têm demonstrado a aplicabilidade da análise polifônica aos mais
variados tipos de discurso, mesmo aos que não são tipicamente narrativos, o que, de
qualquer modo, não é o caso da Fides – que é uma obra historiográfica – pois um dos
pressupostos em que se assenta a construção do texto histórico diz respeito, e de um
modo especial, ao narrativismo,

...que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso,


inerentes a seu estatuto lingüístico, a prioridade na criação das narrativas históricas. De
acordo com essa tese, as histórias ficcionais inventadas por escritores e as narrações dos
historiadores não diferem umas da outras em nenhum aspecto essencial, já que ambas
seriam constituídas pela linguagem e igualmente submetidas às suas regras na prática da
retórica e da construção das narrativas. (MALERBA, 2006, p. 11)

Portanto, história é narração, e o fato de situar-se no limite entre ciência e


literatura, reforça sua característica de discurso polifônico, tal como se manifesta no
simples relato de um acontecimento cotidiano, porque a nossa linguagem habitual é um
tecido de vozes reveladoras do nosso acervo discursivo.

18
2. CONTEXTO HISTÓRICO

Obviamente que surgiram tendências dentro do


movimento humanista, diferenças que se distinguiam entre si,
quer pela tradição filosófica a que se ligavam (platonismo,
aristotelismo), quer pela temática que abordavam de preferência
(estudo da natureza, da história, da personalidade humana, da
matéria religiosa), quer pela prática a que se dedicavam
(política, pesquisa científica, arte, poesia). O ideal transcendente
e a perspectiva teocêntrica da Idade Média são sucedidos pelo
racionalismo e pelo antropocentrismo.*

*SEVCENKO, 1984, p. 14.


A Idade Média, apesar de revelar uma Europa em declínio sob muitos aspectos,
se comparada ao Império Romano que, no Ocidente, desapareceu como unidade política
em 476, precisa merecer uma avaliação livre do preconceito, em especial dos que,
entusiasmados, dedicam-se ao estudo do período que ficou conhecido como
Renascença, sem refletir sobre as origens deste movimento cultural que iria marcar
indelevelmente todo o mundo ocidental a partir do século XIV.

2.1-Renascimento e Humanismo.

Entre a queda do Império Romano do Ocidente e o surgimento da burguesia,


houve um período de gestação silenciosa de uma nova mentalidade que culminaria na
ruptura com os valores tradicionais baseados no regime feudal, na incondicional
submissão à intransigência do clero e na prepotência da alta nobreza. A cultura,
portanto, não permaneceu estagnada, como parece sugerir a expressão “Idade das
Trevas” atribuída à Idade Média, pois foi nessa época que se copiaram e recopiaram os
clássicos da Antigüidade no interior dos mosteiros. São dessa época Santo Isidoro de
Sevilha (560-636) e os sábios do Renascimento Carolíngeo (911), Pedro Pisa, Alcuíno e
Eginhard. Dante Aliguieri (1265-1321) denota em sua obra um profundo conhecimento
da Antigüidade Clássica e pertence a um período de significativa produção intelectual.
São também da Idade Média inúmeras lendas recolhidas do imaginário do povo e que
irão enriquecer a literatura ocidental, além de algumas delas servirem de inspiração para
as ações transformadoras empreendidas poucos séculos depois¹. A tomada de
Constantinopla, em 1453, não serviu, portanto, para despertar uma Europa que sequer
adormecera, mas sim para acelerar um processo que já se anunciara em diversos pontos
do continente.

Fazer descer o céu sobre a terra, trazer para baixo a Jerusalém celeste, tal foi o
sonho de muitos no Ocidente medieval. Se me demorei na evocação deste mito –
mesmo simplificando-o em demasia – foi porque, apesar de disfarçado e combatido
pela Igreja oficial, ele perturbou os espíritos e os corações e nos revela em suas
_____________________
1-A lenda do Preste João para as Grandes Navegações portuguesas. (N. A.): “O desejo de chegar a esse aliado da
Cristandade foi uma das motivações ideológicas conexas das grandes Descobertas”. (CERQUEIRA, 1997, p.1)

20
profundezas as massas populares da Idade Média, suas angústias econômicas e
fisiológicas ante esses dados permanentes de sua existência: a sujeição aos caprichos da
natureza, às grandes fomes, às epidemias; suas revoltas contra uma ordem social que
esmagava os fracos e contra uma Igreja que era beneficiária e garantia desta ordem; seus
sonhos: sonho religioso, mas que atrai o céu à terra e só entrevê a esperança ao fim de
terrores indizíveis. (LE GOFF, 2005, p. 189)

Reações contra a opulência e a corrupção do clero já se verificavam na


Inglaterra, com John Wycliffe, em 1381, e, na Alemanha, com Jan Huss, em 1415, este
condenado à fogueira pelo papa João XXII. Na Itália, Francesco Petrarca (1304-1374),
a quem se atribui a criação do soneto, escreveu poemas cuja temática já anunciava a
modernidade, e Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) iniciou, ao lado de Marsilio
Ficino (1433-1499), seu mestre, e Lorenzo Valla¹, um movimento que logo atingiu os
países baixos e foi recebido com entusiasmo pela burguesia nascente. Assim renascia o
Humanismo.

Na verdade, o pensamento humanístico foi concebido pelos gregos, quando


tentaram explicar a existência humana racionalmente, deixando de lado as superstições
e a própria religião. Sócrates pode ser considerado o primeiro mártir que o ideal
humanístico produziu. E o resgate das letras e da filosofia da Antigüidade clássica, se
por um lado representou um grande avanço do conhecimento intelectual e científico, por
outro, mergulhou a Europa em uma grave crise religiosa cujas implicações políticas e
econômicas, opunham o clero e a nobreza às aspirações de mudança manifestadas pelos
representantes dos meios cultos e dos segmentos produtivos da sociedade.

Assim Humanismo e Renascimento, que se confundem em expressões como


Renascimento humanístico e Humanismo renascentista, constituem conceitos
indissociáveis, pois o Renascimento, por si só corresponde ao resgate das obras e das

____________________
1-“A norma lingüística estabelecida por Valla demarcava definitivamente o latim medieval do que se denominará o
latim clássico”. (REBELO, 2002, p.128)

21
línguas clássicas, como fonte de todo o conhecimento necessário e desejado num mundo
em transformação. Mas essa cultura traz no seu bojo a revalorização do ser humano
como produtor do seu próprio saber, e apto a fazer escolhas, indo ao encontro do destino
que lhe convém, o que, isoladamente, define o Humanismo.

O melhor conhecimento da Antigüidade, com efeito, determinara um


renascimento das matemáticas, e da astronomia, a partir de meados do século XV. Em
Pádua, Ferrara, Veneza, com o florentino Toscanelli, em Viena, com Peuerbach (1423-
1461), em Nuremberg, com seu discípulo Regiomantanus (1436-1511), em Sagres, na
junta reunida por D. João II, rei de Portugal (1481-1495) e da qual participava o
nuremberguês Martinho Behaim, as idéias dos Antigos acerca da esfericidade da Terra
fizeram-se patrimônio comum. (MOUSNIER, 1995, p. 24, v. IX)

O Renascimento teve início paralelamente ao florescimento das artes e do


conhecimento científico, elementos fundamentais da cultura humanística, mas sua
expansão e suas conseqüências não se concretizariam de imediato, pois na contra-mão
desse movimento, de inspiração nitidamente burguesa, a aliança (antiga e conveniente)
providencial entre a nobreza e o clero promoveu a revitalização de um sistema de
repressão das vontades e da liberdade de pensamento, este também originário da Idade
Média, que iria retardar em séculos o progresso da humanidade.

2.2-O estabelecimento da Inquisição.

Um novo tipo de Cruzada, já não somente empenhada em resgatar os lugares


sagrados das mãos dos infiéis, mas em combater heresias que se disseminavam no
interior da própria Europa, é lançado pelo Papa Inocêncio III. Os perseguidos eram os
cátaros ou albigenses (de Albi, no sul da França), cuja religiosidade, semelhante à dos
bogomilos e dos maniqueus¹, desafiava as doutrinas e a própria estrutura da Igreja
Romana, pois para eles “Se a maior virtude era a apreensão espiritual e experiencial de

____________________
1-“Nos dois primeiros séculos da era cristã, florescera em Alexandria um dualismo gnóstico, cuja influência resultará
no maniqueísmo de Mestre Mani, da Pérsia, no terceiro século. Os bogomilos dos Bálcãs foram outro reduto, pode-
se dizer, de dissidentes hereges dentro dos limites do Ocidente cristianizado”. (BAIGENT & LEIGH, 2001, p. 23)

22
cada indivíduo, o sacerdote tornava-se supérfluo [....] e o dogma teológico
irrelevante, mera invenção intelectual que brotava da arrogante mente humana...”¹.
No início do século XIII, a adesão de um número cada vez maior de católicos a esse
cristianismo, cujos pregadores “não intimidavam, não extorquiam, nem traficavam com
a culpa”² resulta em significativa queda nas rendas da Igreja, e, diante da ameaça de
expansão dos cátaros fora dos limites da França, o Papa solicita, em carta, ao rei da
França e a outros dignitários da nobreza o auxílio da força militar para eliminar os
hereges, com a promessa de recompensá-los com as terras confiscadas. A preservação
dos tesouros já conquistados pela Igreja e seu crescimento potencial justificava lançar
cristãos contra outros, também cristãos. Tal foi a Cruzada Albigense, com instruções de
que não se levasse em conta idade, sexo ou status. Centenas de cátaros foram
queimados, mais de quinze mil pereceram no massacre; os que sobreviveram ou
conseguiram fugir, para a Catalunha ou a Lombardia, continuaram a praticar seu credo
na clandestinidade.

Mas a ameaça que representara num dado momento a heresia cátara causara
indignada impressão a um monge, ex-estudante da Universidade de Palência e subprior
dos monges da catedral de Osma, ao norte da Espanha, quando, em 1203 fazia sua
primeira viagem à França: era Dominic de Guzmán. Três anos depois, numa segunda
visita, e encontrando-se com os representantes locais do Papa, juntamente com seu
bispo elaborarou um projeto estratégico. Incapaz de concorrer com os cátaros, que
inegavelmente superavam os padres em virtudes cristãs, Dominic exortou seus frades,
que possuíam uma rica cultura, a viajarem descalços, fazendo pregações, pois estavam
mais habilitados que os monges locais para o debate erudito, podendo assim competir
com os pregadores itinerantes cátaros, que além da probidade, tinham igual cultura e
eloqüência.

O apoio dado ao flagelo dos cátaros, Simon de Montfort, valeu a Dominic – que
também julgou e condenou às chamas inúmeros suspeitos de catarismo – generosas
doações de ricos cidadãos católicos de Toulouse (três casas, numa das quais fundou a
Ordem dos Dominicanos, oficializada pelo Papa Honório III, em 1216). Obrigados
a se retirar de Toulouse, onde foram repudiados pela população, em virtude de suas
_____________________
1-Conf. BAIGENT & LEIGH, 2001, p.24.
2-Idem, p. 25.
23
práticas arbitrárias, espionagem, denúncias e perseguições, os dominicanos
estabeleceram-se em Paris, Bolonha e regiões da Espanha. Em 1233, o novo Papa,
Gregório IX, emitiu uma Bula em que os incumbia de dar incessante combate à heresia,
usando de todos os métodos disponíveis, solicitando o braço secular se necessário. Em
seguida anunciou a instalação de um tribunal permanente, constituído de irmãos da
Ordem e nomeou em Toulouse os dois primeiros Inquisidores oficiais, em 1234. Neste
mesmo ano, Dominic, morto em 1221, foi canonizado, tornando-se São Domingos, e
sua ordem já era detentora de quase cem casas.

A prática de queimar hereges, iniciada por Simon de Montfort, foi adotada


incondicionalmente, agora com a bênção do Papa. Muitos religiosos católicos, que se
opuseram àquele regime de terror que se iniciava, quando não recebiam o benefícios de
ser afastados ou transferidos também se tornavam réus do tribunal¹.

Na Alemanha, ainda que teoricamente governada pelo Sacro Império Romano, o


poder da Inquisição era quase nulo. Na Inglaterra e na Escandinávia, os códigos legais,
desenvolvidos sem a influência da lei romana, asseguravam direitos a todos os homens
livres, e nem na estrutura legal, nem na religiosa havia precedentes favoráveis às
atividades dos Inquisidores. Por isso não nos surpreende que justamente nesses países
seriam lançadas as bases do movimento que ficou conhecido como a Reforma
Protestante.

É na Península Ibérica, em especial na Espanha, que a Inquisição mostrará sua


face mais tenebrosa. Ainda não unificada no século XII, e com algumas regiões em
poder dos mouros, um dos principados cristãos que primeiramente aceitou de bom
grado o estabelecimento do fatídico tribunal foi Aragão. Em Castela, Leão e Portugal
ele não existiu até 1376. Mas com a ascensão ao trono de Castela, em 1474, da rainha
católica, casada com o futuro rei de Aragão², deu-se a unificação dos dois reinos, e
logo teve início um verdadeiro saneamento, étnico e religioso em seus domínios. Para
_____________________
1-Conf. BAIGENT & LEIGH, 2001, p. 143, o próprio Inácio de Loyola, em 1526, esteve preso e acorrentado durante
três semanas pela Inquisição espanhola, sob suspeita de heresia, enquanto sua obra intitulada Os Exercícios
Espirituais era examinada e investigada. Depois de libertado ficou proibido de pregar durante quatro anos.
2-Nos manuais escolares são conhecidos como os reis católicos, Fernão de Aragão e Isabel de Castela. (N. A.)

24
isso instituíram sua própria Inquisição, que, portanto, não era, na origem, submetida ao
Papado. Tratava-se de um instrumento da ortodoxia religiosa, mas a serviço
principalmente da política real.¹

2.3-A Igreja em face da cultura humanística.

Com o Renascimento humanístico, o conhecimento que há muito era monopólio


da Igreja, torna-se domínio profano, e o próprio ensino da Bíblia que só era
disponibilizado aos leigos depois de devidamente interpretado e filtrado pelos
sacerdotes, com o advento da imprensa e as traduções para o vernáculo tornara-se
acessível a qualquer leitor. Junte-se a isso o progresso técnico e as descobertas
científicas e eis mais uma vez o poder da Igreja Romana ameaçado, dessa vez sob a
mira de um inimigo muito mais poderoso: o saber.

Uma nova dissidência do cristianismo, estimuladora da conquista do saber pelo


homem comum como um dom de Deus legado ao homem, mas que a Igreja Romana
precisava rotular de maquinações do demônio, deu origem à Reforma Protestante.
Dentro dos limites alcançados pelo braço da Igreja, o conhecimento, qualquer que fosse
a sua natureza, se representasse uma ameaça à fé e à prevalência do clero sobre a
vontade humana, deveria ser extirpado. Institui-se o Index Librorum Prohibitorum que
censurava obras, tão logo eram publicadas, e conhecê-las ou possuí-las tornava-se uma
nova modalidade de crime de heresia. Livros de humanistas como Erasmo de Roterdã
e de Martinho Lutero, líder da Reforma, livros sobre alquimia, astrologia, traduções da
Bíblia e do Novo Testamento, ou qualquer livro que o Santo Ofício julgasse imoral
passavam a figurar no Index. Em 1950, novos autores ainda eram acrescentados à lista,
e só em 1966 o funesto catálogo foi definitivamente abolido.

2.4-O Renascimento português.

Contrariamente ao pensamento do Professor Américo da Costa Ramalho², José


_____________________
1-“A Inquisição era tanto um instrumento calculado para aumentar o orçamento como para eliminar os hereges”.
(HIRSCH, 2002, p. 194).
2-“Existiu durante muito tempo a crença de que o Humanismo Renascentista era um fenômeno tardio em Portugal”.
(RAMALHO, 1998, p. 15)
25
Sebastião da Silva Dias¹ defende que “O humanismo já era velho de mais de um
século, na Itália, e, havia algumas décadas também despontara em Portugal, quando D.
João III subiu ao trono de seus avós.” Este autor também se refere a um humanismo
“medievo”, em Portugal, embora tardio, quando o italiano já “se encaminhava, através
das letras humanas, para uma concepção da cultura, laica nos seus conteúdos e
autônoma, pelos seus princípios, em face da teologia.”²

Para o Professor Ramalho, o movimento humanístico chega a Portugal com


Cataldo Parisio Siculo, em 1485, requisitado para ensinar D. Jorge, filho bastardo de D.
João II e servir como secretário latino do rei e, posteriormente, de seu sucessor, Dom
Manuel. Podemos entender assim que Cataldo, com seus conhecimentos e suas obras,
inaugura em Portugal o Humanismo dito literário, pois uma outra manifestação do
Humanismo, mais pragmático que ideológico, já se concretizara em Portugal, quando os
portugueses deram início ao desenvolvimento de técnicas que iriam propiciar a
conquista dos mares, desafiando temores e superstições, acreditando na sua capacidade
de ir, ele mesmo, em busca do seu destino, o que, como dissemos acima, é a própria
definição do Humanismo. Com efeito, o contato com o mundo desconhecido fez com
que a humanidade (ocidental) tomasse “consciência de si mesma”³.

2.4.1-As descobertas de além-mar.

Fosse por razões políticas ou religiosas (um prolongamento das cruzadas), o fato
é que era ainda de inspiração medieval o projeto dos portugueses de se lançar ao mar.
Em 1406 já navegavam pelas costas da África e, em 1445, alcançaram Cabo Verde.

Dom Henrique, o Príncipe Navegador, fundou em Sagres, perto do Cabo de São


Vicente, uma escola de navegação que atraiu marinheiros de Gênova e Florença e
astrônomos alemães. Logo os portugueses seriam imitados pelos espanhóis. Depois da

_______________________
1-DIAS, 1969, p.1.
2-DIAS, 1969, p. 33
3-MOUSNIER, 1995, v. IX, p 106.

26
reconquista de Granada, último reduto muçulmano na Espanha¹, os reis católicos
decidiram financiar a famosa viagem de Cristóvão Colombo, que indo à procura de uma
nova rota para as Ásia, na direção do Ocidente, chegaria ao continente americano em
1492. Assim como para Portugal, em relação às possessões pouco a pouco conquistadas
na África e à ocupação do Brasil a partir de 1500, o discurso da propagação da
verdadeira fé mantinha-se inalterado, e com isso podiam contar com o apoio da Igreja
para suas incursões cada vez mais lucrativas.

Tendo partido em primeiro lugar, os espanhóis e portugueses reservaram-se o


monopólio das novas terras. Levaram o Papa a confirmar seus direitos, pois o
pontificado reivindicava uma soberania internacional. Numa carta de 12 de novembro
de 1199, Inocêncio III explicava ao patriarca de Constantinopla que, marchando sobre o
mar para ir ao encontro de Jesus, Pedro ‘exprimiu por este gesto o privilégio do
pontificado único que lhe dava o direito de governar todo o Universo’. (MOUSNIER,
1995, p.86, V. IX)

E tanto a África, quanto as colônias americanas iriam enriquecer os reinos


europeus com sua variedade de riquezas extrativas entre as quais, naturalmente, os tão
cobiçados minerais². Esse enriquecimento permitiu que Portugal começasse a enviar e a
manter os estudos dos jovens aristocratas nos maiores centros de cultura da Europa,
como Pádua, Bordéus e Lovaina. A esses estudantes denominavam “bolseiros”.

Muitos foram os estudantes que se deslocaram à Itália, o berço do Humanismo e


do Renascimento (sic) na Europa. [....] Só em Florença, entre 1473 e 1503, foram alunos
do Studio cerca de 54 portugueses. E há humanistas italianos na corte portuguesa, desde
a regência do Infante D. Pedro. É, de fato, com a Ínclita Geração que começam as
grandes preocupações culturais em Portugal, particularmente com a visão cultural
européia do Infante D. Pedro. E não podemos esquecer a influência de Cataldo Sículo,
o introdutor oficial do Humanismo entre nós, que chegou a Portugal em 1485, para
desempenhar o cargo de orador oficial do rei e, ao mesmo tempo, para dar uma
_____________________
1-Durante oito séculos, a Península Ibérica esteve sob domínio muçulmano. Há que se destacar desse período, além
da herança técnico-administrativa, que muito proveito trouxe aos dois países, “a louvável tolerância dos regimes
islâmicos” (BAIGENET & LEIGH, op. cit., p. 92), que foi logo esquecida por Portugal e Espanha no trato com os
outros povos de diferentes credos.
2-“Além do entusiasmo dos europeus, houve igualmente causas econômicas, que pouco a pouco se tornaram as mais
importantes. A Europa do século XV ressente-se da falta de metal precioso.” (MOUSNIER, 1995, v. IX, p. 24)

27
educação, em moldes humanísticos, a um dos filhos de D. João II, D. Jorge. (MOSER,
2006, p. 149)

Mas a produção cultural escrita também não esteve ausente do mundo português.
A esse respeito veja-se a menção do Professor Ramalho à oratio de Dom Garcia de
Meneses, bispo de Évora, feita perante o papa Sisto IV e o Sacro Colégio, em Roma, a
31 de agosto de 1481. Assim conclui sua defesa o eminente Professor:

Esta antecipação do início do Humanismo Renascentista em Portugal para


1485, irritou bastante gente. Não que os opositores, cujos nomes não citarei, tivessem
outras hipóteses melhores para apresentar, mas pelo gosto de não conceder a um
português a modesta satisfação de ter proposto qualquer coisa de novo. Se a proposta
viesse dum estrangeiro, seria aceite sem dificuldade. (RAMALHO, 1969, p. 18)

Também a esse respeito, José Sebastião da Silva Dias manifesta-se e justifica


pela falta de continuidade, no tempo e no espaço, das atividades identificadas com o
Humanismo, a referida rejeição do pioneirismo português por alguns dos seus
compatriotas:

As primeiras manifestações gerais de interesses classicistas, no nosso país,


remontam, embora sob a capa ainda do medievalismo, aos círculos jurídicos e culturais
dos filhos de D. João I. Acentuaram-se, logo depois, na obra de Gomes Eanes de
Zurara, cujo gosto pela erudição profana, pela retórica e pelo feito como índice de valor
individual, têm aí a sua inspiração e explicação naturais. (DIAS, 1969, p. 1)

Não importa para nossa avaliação do Renascimento em Portugal estabelecer o


alcance da antigüidade do Humanismo que lá despontou. Que seu apogeu coincidiu
com a explosão das idéias novas que se disseminaram, a partir do século XV, por toda a
Europa, é também um fato histórico aceito sem reservas, bem como a diversidade
dessas manifestações do potencial humano em diferentes ramos do saber e os aspectos
da originalidade do movimento em cada localidade. Portugal e Espanha conquistaram
os oceanos¹ e aumentaram seus domínios repartindo seus tesouros com a Igreja.

28
Pela bula de Alexandre VI (Inter coetera, de 4 de maio de 1493) e de Júlio II
(Ex quae, de 24 de janeiro de 1506), os portugueses tinham sob o seu patrocínio todo o
Oceano Índico e os mares da China, podendo criar bispados, nomear bispos, dispondo
do monopólio da evangelização. Nenhum eclesiástico podia dirigir-se para as regiões
da Ásia das monções sem autorização do rei de Portugal e sem passar por Lisboa ou
Goa. (MOUSNIER, 1995, p. 250, v. X)

Suas pegadas foram seguidas por outros reinos, mas que não estavam igualmente
dispostos a se submeter à usurpação do papado.

As relações com o clero foi um dos fatores determinantes do modo de apreensão


das influências do classicismo renascido. A cultura greco-romana redescoberta dera ao
Ocidente raízes comuns que todas as pessoas instruídas podiam compartilhar, mas a
apropriação dessa herança cultural não apresentaria uniformidade nem unanimidade
entre os herdeiros. A Alemanha, cuja romanização tardia, deficiente e logo
interrompida, permitiu uma visão mais independente da contribuição advinda do
conhecimento dos clássicos, pôde também preservar a lucidez em sua tênue
subserviência à Igreja Romana. O mesmo se deu nos países onde uma verdadeira
aculturação foi efetivada pelas tribos germânicas que fizeram ruir o Império Romano.

As diferenças que marcaram o progresso científico na Península Ibérica em


relação ao que se desenvolvia nos outros países, logo provocaram um choque de idéias
que incompatibilizaram a crença religiosa com a ciência². Sempre temerosa de ver suas

_____________________
1-“Apenas os europeus conseguiram resolver os problemas da navegação de alto mar. [....] o leme axial com
charneira de cadaste, inventado no século XIII, possuía uma forte ação sobre a água, graças ao seu longo safrão.”
(MOUSNIER, 1995, p.25-26, v. X)
2-“A aliança do Humanismo e do Cristianismo tinha-se tornado uma espécie de idéia fixa do pensamento europeu
quando as inquietações religiosas de aquém Alpes se fundiram com as inquietações culturais da Itália. O fenômeno
processou-se, em fase intensiva, na França, nos Países-Baixos e na Baixa Alemanha, na segunda, terceira e quarta
décadas do século XVI. A sua idéia diretriz tem os pés fincados, se assim nos podemos exprimir, em dois campos: a
defesa das belas-letras, contra a barbárie literária e filosófica, e a acentuação dos fatores éticos, para lá dos esquemas
teológicos, encerrados na mensagem cristã. ” (DIAS, 1969, p. 21)

29
verdades contestadas, a Igreja aumenta a repressão e passa a identificar novas formas de
heresia, ou seja, tudo o que contrariasse os interesses da Igreja era então passível de
condenação pelos tribunais da Inquisição.

2.4.2-Causas e conseqüências da expansão marítima portuguesa

O aperfeiçoamento das técnicas de navegação permitiu aos portugueses chegar


cada vez mais longe.

Os portugueses inventaram, certamente durante o século XV, a caravela munida


de dupla guarnição: velas quadradas para o vento pela ré, velas latinas para avançar
contra o vento, combinação que possibilitou descer e remontar os alísios. (MOUSNIER,
1995, p.27. v. IX)

Em 1500 Portugal detinha o monopólio de quase todos os produtos da Índia.


Comprar diretamente as especiarias, sem precisar pagar aos mercadores italianos,
genoveses e venezianos, era o desejo da maioria dos reinos europeus que se haviam
tornado grandes consumidores dos produtos do Oriente, especialmente da pimenta.

Com seu pendor natural para o comércio, logo os portugueses instalaram


feitorias em pontos estratégicos do Oriente ao Ocidente. Como mercadores eram
francos e liberais, e inicialmente, realizavam transações comerciais mesmo com os
muçulmanos, o que era então inevitável.

Quando Vasco da Gama atingiu Cochim, em 1498, o comércio do Oceano


Índico estava perfeitamente organizado, de tal modo que os europeus que lá se
sucederam, até 1715, limitaram-se a substituir os comerciantes do século XV, tomando,
em seguida, uns o lugar dos outros, sem a introdução de modificações sensíveis no
mecanismo já existente. O comércio marítimo estava em mãos dos muçulmanos, árabes
e persas, que possuíam e dirigiam a maioria dos barcos e praticavam boa parte do
comércio terrestre. (MOUSNIER, 1995, p.234, v. IX)

30
A valorização do homem preceituada pelo ideal humanístico com o tempo iria
demonstrar que não se referia a qualquer homem, mas ao homem ocidental e, sobretudo,
europeu. Mais uma vez os muçulmanos, que se deslocavam nas rotas de comércio
deixaram de interessar como parceiros comerciais. Eliminando-os a Península poderia
controlar, sozinha, o comércio por mar e também pelo interior do continente africano,
onde era praticado pelas caravanas organizadas e conduzidas por muçulmanos,
caravanas de sal e metais preciosos. Proveniente da África uma outra mercadoria veio a
despertar a cobiça cada vez maior dos mercadores portugueses, pois também alcançara
elevado preço na Europa, com a decadência do regime feudal: o escravo. A experiência
mal sucedida de escravização dos indígenas da América tornou mais atraente o negócio
do escravo africano. O comércio “perfeitamente organizado”, conforme a citação
acima, também se referia ao mercado de humanos, que os portugueses logo trataram de
aperfeiçoar e expandir.

A propagação da verdadeira fé e a conversão ou eliminação dos infiéis era o


argumento bastante para afastar a concorrência dos árabes e encher os navios ibéricos
também de escravos.

O objetivo da Europa durante dois séculos foi, antes de tudo, a Ásia. Atingir ‘as
Índias’, Índias propriamente ditas, China, Japão, drenar suas riquezas, converter seus
habitantes ao cristianismo e à civilização européia [....], e com sua ajuda assaltar o Islã
pela retaguarda, esmagá-lo, a fim de haver na terra apenas uma fé e uma civilização, tal
foi sempre o fim último, o ideal por vezes longínquo e confuso, mas sempre presente,
sempre atraente. (MOUSNIER, 1995, p.147, v. IX)

As colônias ganharam em produtividade com o emprego da mão-de-obra


escrava, mas o custo das longas viagens e a pirataria tornaram os preços cada vez menos
competitivos. Outros países, por sua vez, como Inglaterra e Holanda, também
resolveram enfrentar os riscos de sair em busca da fatia que lhes cabia do Novo Mundo
e de seus produtos.

Com isso tudo, eram, aliás, homens do Renascimento. Confessavam, não sem
ingenuidade, seu desejo de glória, sua sede de ultrapassar os grandes capitães da

31
Antigüidade, Alexandre, César, Pompeu, Aníbal. Um generoso orgulho sustentava-os
frente aos sofrimentos. (MOUSNIER, 1995, p.91. v. IX)

Sofrimento que logo iria se refletir no orçamento da Coroa portuguesa. As


guerras freqüentes para garantir as possessões de além-mar e a concorrência das outras
nações que também se lançaram ao comércio marítimo começam a esgotar as riquezas
acumuladas nos anos de prosperidade. A atividade econômica interna se ressentia da
falta de mão-de-obra (a população não chegava a um milhão e meio de pessoas) e
incentivos, pois Portugal se acostumara a viver do comércio marítimo das especiarias e
quase nada produzia.

2.4.3-D. João III, um paradigma das contradições da época.

Aclamado aos 19 anos, o filho e sucessor de D. Manuel, o Venturoso, Dom João


III, foi “quem sentiu todo o peso da demasiada expansão econômica” (HIRSCH, 2002,
p.19) promovida pelo pai. Ofuscados pelo aporte de riquezas, a nação dera total apoio
aos empreendimentos cada vez mais ousados do seu rei, mesmo quando o país já não
possuía nem contingente humano nem condições financeiras para manter um império
tão vasto.

Seu nascimento assistiu ao nascimento do teatro em Portugal, brindado que foi


com a recitação por Gil Vicente do Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro diante
da parturiente, D. Maria de Castela. Não se pode afirmar que a notícia deste
acontecimento tenha gravado alguma profunda impressão no espírito do jovem herdeiro,
mas a verdade é que, principalmente pela valorização cultural ocorrida em Portugal
durante seu reinado, o período de 1498 a 1580 ficou conhecido como Século de Ouro.

Tendo recebido uma educação refinada, assistida pelos melhores mestres da


época e atento às notícias que chegavam de todos os cantos da Europa, quis promover a
mesma renovação cultural em seu território. Para isso ampliou e aperfeiçoou o sistema
de concessão de bolsas instituído por seu antecessor, enviando estudantes a Pádua, Paris
e para onde quer que, na Europa, pudessem instruir-se com excelência. Foi mais longe:
32
transferiu a Universidade, de Lisboa para Coimbra¹. Também criou o Colégio das
Artes, como parte de seu programa de reforma do ensino, onde os estudantes deveriam
ser preparados para a Universidade.

Nesse ambiente de renovação cultural que foi preponderante na afirmação do


Renascimento português, reuniam-se em torno de seu irmão D. Luís e de sua irmã
caçula D. Maria, intelectuais e artistas, a exemplo dos Círculos literários que se
espalhavam pelo restante da Europa.

Inúmeros humanistas, a convite de D João III, acorreram ao reino, alguns,


mestres das principais Universidades para onde anteriormente eram enviados os
estudantes portugueses. Resultado dessa efervescência cultural foram nomes como: os
eruditos Garcia de Resende, poeta e organizador do Cancioneiro Geral; Diogo de
Gouveia, teólogo e diplomata, tio de André de Gouveia; o poeta Sá de Miranda,
Bernardim Ribeiro, romancista, e João de Barros, gramático e historiador; o matemático
especialista em náutica, Pedro Nunes; o botânico e médico Garcia da Orta; o pintor
Francisco de Holanda, os arquitetos João de Castilho e Miguel de Arruda; e também
Luís de Camões, o poeta mais conhecido mundialmente. Entre os estrangeiros, ou que
se destacaram em suas atividades fora de Portugal estavam Luís Vives, filósofo e
pedagogo espanhol, André de Resende, cronista e arqueólogo, André de Gouveia, ex-
reitor do Colégio da Guiena, Damião de Góis, historiador e legado do reino, os
escultores franceses João de Ruão e Nicolau Chanterene. Para o Colégio das Artes
vieram, além do humanista flamengo Nicolau Clenardo, Diogo de Teive, que foi
professor no Colégio da Guiena e George Buchanan, dramaturgo e também ex-professor
do Colégio da Guiena, entre outros. Erasmo de Roterdã, inúmeras vezes convidado, por
intermédio de André de Resende e Damião de Góis para lecionar na Universidade de
Coimbra, por prudência ou impossibilidade nunca chegou a aceitar, mas dedicou a D.
João uma de suas obras.

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1-“Não se sabe ao certo se o rei teria seguido uma sugestão de Ludouicus Viues (Luís Vives) que, ao dedicar-lhe o
trabalho De discipulis, em 1531, sugeria que transferisse a Universidade de Lisboa para um local mais propício ao
estudo que o movimentado porto da metrópole portuguesa.” (HIRSCH, 2002, p. 197)

33
Além do seu apreço pela cultura – ou por razões econômicas, pois se tornara
oneroso para a Coroa a manutenção dos seus “bolseiros” –, uma outra hipótese é
apresentada para explicar sua decisão de educar os jovens portugueses dentro dos
limites do reino: as idéias reformistas trazidas do exterior e que poderiam comprometer
as relações de Portugal com os dois maiores poderes católicos da época, a Santa Sé e
Carlos V, seu cunhado. Era o rei quem pessoalmente nomeava o reitor da Universidade,
o que, portanto, permitia-lhe manter o controle sobre o ensino que era ministrado.

As principais feitorias, dentro e fora do continente continuavam atuantes, e as


relações de comércio com a Inglaterra, os países do Báltico, a Flandres e a Polônia, se
intensificaram bem como a atividade diplomática, inclusive com a Santa Sé.¹

Como parte de sua política de além-mar e por meio de uma vigorosa atividade
naval, conquistou Chalé, Diu, Bombaim, Baçaim e Macau, mas por razões econômicas
perdeu Safim, Azamor, Arzila, Arguz e Alcácer-Ceguer. À concorrência espanhola,
seguiu-se a francesa no Índico e no Pacífico, por isso resolveu investir na colonização
do Brasil, que se iniciou em 1548 com a distribuição das Capitanias Hereditárias e a
nomeação de um Governador-geral.

Mas a política de D. João III como um todo foi um grande paradoxo. No início
de seu reinado ratificou as leis criadas por seu pai, D. Manuel (leis manuelinas), contra a
discriminação dos judeus. O rei humanista, amante das belas letras e do progresso
científico, acabou por ceder à pressão espanhola – principalmente da parte de sua
mulher D. Catarina, que era irmã de Carlos V² – e instaurou a Inquisição em 1536,
finalmente autorizada pela Bula do papa Paulo III. Curiosamente isto aconteceu um ano
antes da criação do Colégio das Artes para o qual haveria de requisitar tantos mestres
humanistas portugueses e estrangeiros. Inicia-se então uma violenta perseguição aos
_____________________
1-Em 1525, D. Martinho de Portugal substituiu D. Miguel da Silva como embaixador de Portugal na Cúria. (conf.
DIAS, 1969, p. 90-108).
2-O acordo de casamento de D. Manuel com D. Maria já incluía uma cláusula de conversão obrigatória dos judeus ou
sua expulsão. A pressão cada vez maior da dos reis espanhóis nesse sentido levou D. Manuel a enviar uma missão
secreta a Roma, em 1515, para solicitar ao Papa autorização para o estabelecimento da Inquisição, ao estilo da
existente na Espanha. Na verdade, os judeus expulsos, ou que de lá conseguiram fugir, foram acolhidos em Portugal
por D. João II, mediante o pagamento de uma indenização, e a presença de judeus no reino, representava, sem dúvida,
um aporte de capital. Isso significava o fortalecimento também político do país vizinho, o que para os espanhóis não
era conveniente. (conf. BAIGENT & LEIGH, 2001, p. 142-3)

34
judeus, que se refugiaram, principalmente, nos Países Baixos. Em conseqüência,
agrava-se a crise econômica, e Portugal, que fora um dos países mais ricos e poderosos
da Europa, precisa recorrer a empréstimos externos. Pouco depois os humanistas que
lecionavam no recém criado Colégio começam a ser afastados e substituídos por
mestres ligados ao clero, e alguns são denunciados à Inquisição e presos, como
aconteceu a Diogo de Teive e George Buchanan. O desenvolvimento de algumas
ciências foi, assim, interrompido, pois o Colégio das Artes, em 1555, e o ensino em
geral foram entregues aos jesuítas, que expurgaram e perseguiram os antigos mestres e
passaram a ministrar ensinamentos totalmente desvinculados da realidade que se
avizinhava.

Não apenas o clero, mas também a nobreza e o próprio regime pressentiram que
a libertação do homem pelas idéias e pela apreensão do conhecimento acabaria por
reconfigurar o arranjo político-social – o que séculos mais tarde se verá acontecer –,
pois este é um sistema no qual o fortalecimento de uma parte fatalmente leva ao
enfraquecimento da outra ou a torna supérflua até à extinção. Ao promover o resgate
de uma forma de expressão que estimulava a igualdade do pensamento e a
internacionalização do conhecimento, o Renascimento corrigia os antagonismos e
igualava as forças. Mas toda autoridade necessita exercer um poder palpável e
mensurável, que a igualdade anula, pois o ser humano passa a se compreender a partir
de si mesmo e a repelir o jugo.

O Humanismo fechava-se na divulgação das ciências e do conhecimento, em


parte devido ao fanatismo religioso, mas em parte também pelo temor das
conseqüências que uma grande revolução cultural poderia trazer ao próprio regime. E
foi sem dúvida esse temor que assaltou o espírito de D. João III e o fez retroceder em
sua política cultural, que se mostrara tão promissora. Assim, na Península Ibérica, foi
principalmente o humanismo cristão que conheceu o apogeu. Em outros centros da
Europa recorria-se à ambigüidade nas artes, enquanto a comunidade científica
dissimulava como podia os lentos progressos de suas pesquisas e experimentos. O
humanismo cristão, na sua versão jesuítica¹, negava o homem na sua humanidade e
recolocava Deus no centro.
_____________________
9-Também o humanismo cristão sofreu uma cisão, dando origem a uma corrente erasmista e outra jesuítica. (conf.
HIRSCH, 2002, p. 5)
35
De resto, e de uma maneira geral, não só em Portugal mas em toda a Europa o
Humanismo foi um movimento gorado – como gorado têm ficado ou vão ficando todos
os empreendimentos verdadeiramente¹ humanos. Parece que aos homens repugna a sua
própria humanização e que todos aqueles que, pelo espírito, têm dignificado a espécie
não representam mais que uma doença da própria humanidade, assemelhando-se à
perola em relação à ostra. O demagogismo luterano e a intolerância católica pós-
trentina esmagaram o humanismo, fazendo-o abortar quando apenas florescia.
(CHAVES, 1935, p.10)

A corrente protestante, do mesmo modo, não foi imune ao radicalismo.


Cornelius Musius, clérigo católico conservador e humanista, um amigo holandês a
quem Damião de Góis, certa vez, presenteou com um cálice de prata de origem etíope,
era também um erasmista convicto. “Na velhice, Musius libertou-se da poderosa
influência do humanismo. Provou sua lealdade absoluta pela religião católica ao morrer
como um mártir às mãos dos protestantes em 1572.” ²

O aragonês Michael Villanueva (Servetus), teólogo, físico, humanista e médico,


formado em Paris, que estudou a circulação pulmonar inspirado em escritos bíblicos,
também pregava a volta a um cristianismo puro como Jesus ensinara. A contestação da
Santíssima Trindade o fez cair em desgraça entre católicos e protestantes. Foi preso e
julgado em Lion, na França, mas conseguiu fugir. Novamente preso, em Genebra, foi
julgado e condenado por um tribunal eclesiástico presidido pelo próprio Calvino. Foi
queimado vivo, em fogo lento, com requintes de sadismo e crueldade em 27 de outubro
de 1553, em Champel, próximo de Genebra³.

O período renascentista pode, portanto, ser assim sintetizado:

1-Movimento humanístico > antropocentrismo > curiosidade científica.


2-Discurso humanístico > reflexões sobre a humanidade do homem > reforma religiosa.
3-Reforma religiosa > contra-Reforma > rejeição do pensamento científico.
4-Jesuítas encarregados da educação > negação do humano como tal > retrocesso >
teocentrismo.
_____________________
1-Grifo nosso.
2-HIRSCH, 2002, p. 147.
3-REZENDE, 2002. http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/Servet.htm

36
3. DAMIANVS A GOES, EQVES LVSITANVS.

O homem que se curva aos sentimentos e aos ideais se


lança voluntariamente às causas justas e perdidas.*

*TAINE, Hyppolyte, 1994, p.49.


Ao escrever uma tese de doutorado, costumamos não concentrar as atenções em
muitos pormenores acerca da biografia do autor, uma vez que temos como foco
principal aspectos da obra que são relevantes para o estudo a ser desenvolvido e fatos
importantes do seu contexto de produção. No caso de Damião de Góis, entretanto, a
biografia está intimamente relacionada à sua produção intelectual, sobretudo, a Fides,
pois não foi ele um humanista de carreira, alguém que em virtude do estudo e da obra
produzida veio a ser identificado com o movimento renascentista e o pensamento
humanístico, mas um homem de Estado que, por convicção, decidiu aprofundar-se em
estudos que lhe permitiriam, mais tarde, produzir uma obra plenamente identificada
com os ideais dos homens do seu tempo. Entre esses estudos, o aprendizado mais
consistente e tardio do próprio latim como primeiro passo efetivamente dado para a
concretização dos seus propósitos deu-se, como veremos em seguida, por incentivo e
sugestão de outros humanistas, que faziam parte do seu círculo de amizades fora de
Portugal. A infância passada quase toda na Corte de D. Manoel I, quando Portugal
ampliava os limites do mundo, proporcionou-lhe um contato precoce com personagens
e acontecimentos que marcariam indelevelmente seu modo de entender o próprio
homem e de amar seu país natal.

As explorações portuguesas e a atmosfera de paixão pelos


Descobrimentos que então fervilhavam em Lisboa tiveram na juventude de Góis
uma influência tão forte como a da escola de Erasmo, esse “príncipe dos
humanistas”, que viria a ser seu amigo pessoal e seu mentor. (HIRSCH, 2002, p. 1)

Mais que o simples autor do livro ora estudado, sua instigante vivência, e suas
múltiplas facetas fazem de Damião de Góis também um personagem, a cuja trajetória
sempre vale a pena dar o devido destaque.

3.1-A origem

Em fevereiro ou março de 1502, nasce em Alenquer mais um filho de Rui Dias


com sua quarta mulher, Isabel Gomes de Limi – neta do fidalgo flamengo Nicolau de

38
Limi – o futuro humanista português Damião de Góis. Pouco se sabe da sua primeira
infância, passada em sua vila natal, mas aos nove anos de idade é iniciado, como pagem
de D. Manuel, na vida da Corte, onde já vivia seu meio-irmão Frutuoso de Góis nas
funções de guarda-roupa. Há duas versões para explicar a presença dos jovens Góis
junto ao rei, que tomou a si também a formação intelectual, principalmente do pequeno
Damião. Valendo-se da prerrogativa de ficcionista, Fernando de Campos em A Sala das
Perguntas, relata um acontecimento semelhante à história de Anfitrião e Alcmena,
seduzida por Zeus (PLAUTO, O Anfitrião), alegando, para tanto, uma curiosa semelhança
física entre D. Manuel – que se teria tomado de amores por Isabel de Limi – e Rui Dias
de Góis, o que permitiu ao rei partilhar do seu leito enquanto o fidalgo encontrava-se
ausente, no desempenho de alguma missão. Também compartilha dessa suposição o
musicólogo e historiador do grande humanista, Mário de Sampaio Ribeiro¹, da
Academia Portuguesa da História, como explicação plausível para a proteção especial
que tanto O Venturoso quanto seu sucessor D. João III, dedicaram a Damião de Góis.
Para sustentar tal hipótese, o estudioso menciona a injustificada “permanência do
monarca na quinta da Telhada, desde o mês de setembro até outubro de 1501, quiçá
mesmo em data anterior, e o estranho nascimento do futuro humanista.”²

O fato histórico e atestado por documentos é que a vila de Alenquer fora doada
por D. João II à rainha D. Leonor³, em Carta de 22 de agosto de 1480, e o senhorio foi
mais tarde confirmado à irmã por D. Manuel I. Como era uma região de “ares
aprazíveis” servia de assento aos reis portugueses, que só viriam a substituí-la por
Almeirim, após o reinado de D. Sebastião. Daí teria nascido o grande apreço de D.
Manuel pelos habitantes da vila e a concessão de cargos de nomeação régia, bem como
os privilégios concedidos a muitos ilustres cidadãos alenquerenses, como João Martins
e Diogo Esteves.4

_____________________
1-O mesmo que em 1941, quando se fez a trasladação dos restos mortais do humanista para a Igreja de São Pedro,
observou, ao ver-lhe no crânio, a marca semelhante a uma fratura, que levantou a suspeita de um provável
assassinato. (conf. TAVARES, 1999, p. 41)
2-SERRÃO, 2002, p. 112.
3-“Além de ter fundado as Misericórdias, D. Leonor é também citada como protetora das artes e patrocinadora da
publicação de inúmeros livros da época. Com ela Gil Vicente divide as honras pela fundação do teatro em Portugal.”
(Idem).
4-Idem, p. 112-117.
39
Do lado paterno, Damião de Góis era neto de Gomes Dias de Góis, que recebeu
do infante D. Henrique, a quem acompanhara a Ceuta, em 1415, a exploração de
algumas saboarias, pois eram monopólio do infante. O filho de Gomes Dias, Rui Dias
de Góis, também cavaleiro da Casa Real e morador da cidade, tornou-se mais tarde
almoxarife da rainha viúva de D. João II, senhoria da vila de Alenquer, que de lá recebia
o principal das suas rendas. Tais fatos atestam, portanto, a origem nobre do humanista.
Apesar de oriundo de uma família abastada, nada se podia comparar ao fausto da Corte
que revelariam ao jovem pajem o vasto mundo que se estendia para além do porto de
Lisboa.

Pouco antes de morrer, em novembro de 1513, Rui Dias de Góis assinou o


testamento onde deixou registrado um pedido, quase uma súplica, ao rei e à D. Leonor:
que não lhes tirassem, à mulher Isabel e aos filhos pequenos, a fazenda, nem lhes desse
tutor enquanto a mãe fosse viva. O pedido não deixou de ser atendido por D. Manuel,
ao menos em parte, pois ele próprio acabou por se tornar o tutor de Damião de Góis,
que viveu no Paço da Ribeira, na intimidade do Monarca até a morte deste, em 1521.
Como pajem e, mais tarde, em 1518, como moço de câmara do rei, testemunhou o
período áureo do reinado de D. Manuel, convivendo com fidalgos renomados,
guerreiros e navegadores. Assistiu ao nascimento do futuro cardeal-infante, regente e
Inquisidor-Geral D. Henrique. Conheceu Gil Vicente¹ e os poetas que freqüentavam a
Corte² tendo permanecido depois ao lado de D. João III até ser designado por este para
desempenhar, no estrangeiro, funções de suma importância no interesse da Coroa
Portuguesa.

3.2-Agente comercial e diplomata.

Em 1523 seguiu para a Flandres para ocupar o cargo, inicialmente de secretário


da Feitoria portuguesa em Antuérpia³, em parte divido à sua ascendência flamenga, mas
principalmente porque D. João III conhecia suas qualidades e nele depositava grande
_________________________
1-“É possível que Góis tivesse ganho o gosto pela discussão franca de pontos controversos de religião através de Gil
Vicente, muito antes de se ter familiarizado com o Elogio da Loucura de Erasmo.” (HIRSCH, 2002, p. 14)
2-“Entre estes, Pedro Andrade Caminha, o maior inimigo de Camões e que seria mais tarde um dos acusadores de
Góis perante a Inquisição.” (DÓRIA, 1944, p. 10)
3-Cidade portuária e centro comercial localizado na Flandres, região ao Norte da Bélgica. “Os vereadores de
Antuérpia, em sinal de reconhecimento pela contribuição de Portugal para a prosperidade da sua cidade, tinham-lhe
oferecido em 1511 o majestoso edifício de Kipdorf [....] que se passou a chamar Casa da Índia...” (HIRSCH, 2002, p.
23)
40
confiança, como se pode avaliar pelas missões de que foi encarregado mais tarde.
Posteriormente, em 1530, tornou-se escrivão, substituindo Rui Fernandes de Almada
que sucedeu o antigo feitor, João Brandão, chamado a Portugal. Lá permaneceu até
1529. De agente financeiro passou à atividade diplomática e, por mandado de D. João
III, neste mesmo ano, dirige-se à Polônia, incumbido de negociar o casamento¹ do
infante D. Luís² com Edwiges, filha de Segismundo I. Primeiramente embarcou em um
dos inúmeros navios mercantes que por ali circulavam, até Danzig, onde tratou de
questões relacionadas às ligações comerciais entre portugueses e hanseáticos, pois estes
tinham obtido de D. João III, em 1528, a confirmação geral dos seus privilégios.
Depois, seguiu por terra até Vilna, onde se encontrou com o monarca polonês. Esta
viagem à Polônia, repetiu-a em 1531, e se sua missão era de fato ajustar o casamento do
infante com a princesa polonesa³, pela segunda vez não logrou êxito. Neste mesmo ano
antes de seguir para a Polônia foi mandado à Dinamarca, e é nessa viagem que trava seu
primeiro contato com os reformadores.

Ainda em 1528 é encaminhado à Inglaterra com a delicada missão de assegurar


ao rei Henrique VIII – “sem ofender os católicos”4 – a neutralidade de D. João III com
relação às intenções do monarca inglês de divorciar-se de Catarina de Aragão, tia do
Imperador Carlos V. Nessa viagem trava amizade com Thomas More5, John Fisher e
revê John Wallop, figuras importantes do cenário político daquele reino.

Quando Góis conhecera Wallop em Portugal, o inglês defendia a causa católica


e tinha ido lutar em África lado a lado com os soldados portugueses; mas agora Wallop
era íntimo colaborador de Thomas Cromwell, que iria em breve substituir Thomas
Wolsey nas boas graças de Henrique VIII. Góis, contudo, não parece ter achado
extraordinária essa mudança de lealdades da parte de Wallop. (HIRSCH, 2002, p. 29)

______________________________
1-Mas nas palavras do próprio embaixador “fui ter ao rei da Polônia, à cidade de Pósnia a tratar com mercadores e
outras pessoas com quem tinha que negociar.” (MARQUES, 2002, p. 18)
2-“...uma das figuras políticas cimeiras do tempo de D. João III e patrono dos círculos humanistas da Corte.” (BARRRETO, 2001,
p. 3)

3-“...convidado ao castelo da princesa, pôde ver por si próprio que a proposta noiva era ‘discreta e bem parecida’.”
(HIRSCH, 2002, p. 30)
4-“Portugal não desejava ver estremecidas suas relações com a Inglaterra, sobretudo pela importância do Canal da
Mancha para o tráfego marítimo para Antuérpia e outros portos europeus. Além do mais haviam-se espalhado boatos
de que Portugal pretendia atacar a ilha por mar.” (HIRSCH, 2002, p. 28)
5-“More estivera em Antuérpia antes da chegada de Góis, que soube dele por referências dos antigos feitores.” (Idem)

41
Mesmo assim, a participação do amigo na condenação e execução de Fisher e
Moore, de quem se tornara admirador e também amigo, não deixou de lhe causar
desgosto.

Ao concluir a segunda missão à Polônia, decide fazer uma visita a Wittenberg


onde conhece Lutero e Melanchton, passando depois pela Prússia e novamente pela
Polônia até a Rússia, também a serviço de D. João. Em Wittenberg assistiu a uma
pregação de Martin Lutero e foi convidado por este para jantar em sua casa, onde vivia
modestamente. Depois, também Filipe Melanchton desejou que o fidalgo
testemunhasse sua pobreza – que afinal era um dos pontos de controvérsia entre
católicos e protestantes – e convidou-o para a ceia. Com ambos debateu sobre diversas
questões da época e, principalmente, sobre religião.

Na Dinamarca, em 1531, deveria fazer negociações com o rei Frederico que era
protestante e, a ele também, transmitir a neutralidade de D. João III, quanto ao conflito
que se desencadeara entre aquele e Carlos V¹. Observe-se o esforço do rei português
para evitar que as querelas religiosas prejudicassem suas boas relações com outros
países e Damião de Góis, pelo seu trânsito fácil entre personalidades de todas as
tendências, sem dúvida teve uma grande contribuição a dar ao seu monarca. Os
progressos econômicos na Prússia também atraíram a atenção do rei português; por essa
razão a missão à Polônia incluiu uma passagem por aquele país, “e guardou uma viva
recordação do caloroso acolhimento que lhe foi dado pelos russos.”²

Por sua própria conta realizou em seguida uma expedição ao rio Don para
conhecer as tribos tártaras, que seus amigos, Grapheus e André de Resende,
consideraram audaciosa, e não só lhe criticaram a intrepidez, por causa da reputação que
tinha aquele povo de ser brutal e incivilizado, mas também lhe dedicaram poemas
celebrando seu retorno a salvo de aventura tão arriscada.

_____________________
1-“D. João III tinha o problema de proteger seus interesses econômicos sem se deixar envolver em nenhuma liga e,
contudo, sentia-se obrigado a dar apoio moral a Carlos V por causa dos laços dinásticos que uniam Portugal e
Espanha (caso pudesse fazê-lo sem sacrificar seus próprios interesses).” (HIRSCH, 2002, p. 24)
2-HIRSCH, 2002, p. 32.

42
Em 1532 regressou a Antuérpia e iniciou seus estudos na Universidade de
Lovaina, ainda tentando conciliar a vida acadêmica com a atividade diplomática.
Manteve-se sempre um defensor ferrenho dos interesses de Portugal junto aos reinos
europeus, levando a bom termo a maioria de suas intervenções, graças à sua habilidade
nas relações humanas e ao seu notório prestígio, decorrente da circunstância de ser o
representante do rei de um pequeno país que, em virtude de suas conquistas e
descobertas, se tornara famoso e respeitado. A atividade desempenhada como
secretário e escrivão da Feitoria portuguesa em Antuérpia dotou-o de grande
conhecimento na área econômica e mercantil¹ que transparece em sua obra, tornando-a,
portanto, fonte de consulta indispensável e obrigatória para os analistas econômicos que
buscam levantar dados da economia portuguesa no século XVI. Em alguns de seus
trabalhos defendia o monopólio das especiarias, mas também a liberdade de comércio
dos estrangeiros em Portugal², além de algumas vezes alertar o rei sobre os
inconvenientes de sua política monetária e da cunhagem de moedas.³

Damião de Góis, cujo nome figura em todas as histórias da literatura e da


cultura portuguesa, constituiu um autor que, seja pelas suas preocupações intelectuais de
“humanista estrangeirado”, seja pela própria atividade desenvolvida na primeira fase da
sua vida, nos legou uma série de análises e de opiniões acerca de diversos aspectos
econômicos da sociedade portuguesa do seu tempo. (CASTRO, 1978, p.20).

Portugal, assim como a Espanha, dependia da assistência financeira dos


banqueiros alemães, como Fugger, Welser e Hochstaetter, e também com estes Damião
de Góis negociou e fez amizades, principalmente com o primeiro, cujas empresas e
atividades comerciais equiparavam-se às do reino português em volume de negócios e
de capital.

_____________________
1-MARQUES, 2002, p. 14.
2-Outro humanista que também teria feito apreciações de caráter econômico foi Jerônimo Osório, professor da
Universidade de Coimbra e bispo de Silves; entretanto sua posição difere da de Damião de Góis, pois foi “um
paladino da agricultura e de suas vantagens”; em suas obras critica o comércio e a navegação “pela sua importância
subordinada e porque, embora sendo úteis, todavia [....] afrouxam os laços para com a pátria”. (conf. CASTRO, 1978,
p. 14)
3-“Com base nestas concepções (ou coincidindo com elas), o governo de D. Sebastião teria tentado evitar a saída de
ouro e de prata para a Inglaterra. A partir destas posições de Damião de Góis já se tem sustentado que foi ele,
possivelmente, o primeiro mercantilista português.” (CASTRO, 1978, p. 24)

43
tesoureiro da Casa da Índia, mas ele recusa e pede autorização ao rei para seguir em
peregrinação a Santiago de Compostela, a fim de pagar uma promessa e depois
prosseguir em seus estudos. Durante quatro anos permanece em Pádua, onde conclui
sua formação intelectual. Foi durante esse curto espaço de tempo em Portugal, em
1533, que conheceu e se tornou amigo do bispo etíope Zaga-Zabo do qual obteve o
relato que figura na obra estudada nesta tese. Esse relacionamento, ainda que breve,
pode ser encarado como um gesto característico do talento diplomático de Damião de
Góis, pois dedicou ao religioso um tratamento amável, com que procurou não apenas
satisfazer a sua curiosidade de investigador de assuntos religiosos e da cultura de povos
distantes, mas também dissipar a má impressão causada pelo tratamento hostil que
na ocasião o bispo vinha recebendo dos altos representantes do clero e da nobreza¹.

A tolerância de Damião de Góis era ditada pelo sonho que acalentava no seu
íntimo e várias vezes manifestou às autoridades eclesiásticas, incluindo o próprio Papa.
Ele alimentava a esperança da integração do cristianismo etíope no seio da Igreja
católica, como compensação pelas fraturas internas que a haviam enfraquecido com o
aparecimento do protestantismo. (LAVAJO, 2002, p. 35)

Ao final de 1531, Damião de Góis afastou-se da atividade diplomática, mas


ainda permaneceu como escrivão na Flandres até 1533. Mais tarde confidenciaria em
carta ao Cardeal Sadoleto que não apreciara o encargo, embora tenha revelado uma
desejável habilidade como negociador, e nisso não desapontou a confiança do rei. Mas
muito pudera aprender sobre política e cultura nas suas andanças pelos países da
Europa, ampliara seu círculo de amizades e adquirira maior compreensão de suas
inclinações pessoais. Segundo Mrs. Hirsch “sem a experiência diplomática, as
realizações intelectuais de Góis teriam assumido um caráter bastante diferente.”²

_____________________
1-“No encontro que tivera com os teólogos da Sorbonne Pedro Margalho e Diogo Ortiz Villegas, o embaixador etíope
evitara a discussão de pontos divergentes do cristianismo etíope para não provocar susceptibilidades. Apesar disso
não conseguiu evitar as críticas e hostilidades que contra ele se levantaram em Portugal...” (LAVAJO, 2002, p. 32)
2-Op. cit. p. 34.

44
3.3-Historiador e humanista.

A partir de 1532, Damião de Góis passou de mero espectador a agente do


movimento cultural que agitava a Europa e deu início à produção de uma obra que, de
uma forma ou de outra, sempre esteve relacionada às suas atividades de agente
financeiro, diplomata, representante, enfim, do rei de Portugal. Foi neste ano que
publicou seu primeiro opúsculo Legatio Magni Indorum Presbyteri Joannis ad
Emmanuelem Lusitaniae Regem, dedicado ao Arcebispo de Upsala, Johann Magnus
Gothus, ainda sob orientação de Cornelius Grapheus, que foi quem o ajudou a lapidar o
seu latim, língua em que haveria de produzir a quase totalidade de suas obras. Além
de discípulo e amigo, veio a tornar-se também patrono de Grapheus, que era poeta e
que, como fora costume entre os autores clássicos e foi imitado pelos autores do
Renascimento, imortalizou Damião em um extenso poema¹ carregado de afeição e
reconhecimento, enaltecendo, principalmente, os valores morais além dos inúmeros
talentos do humanista.

O nome de Damião de Góis figura nos estudos humanísticos portugueses ao lado


de outros grandes nomes como André de Resende², Pedro Nunes³ e o bispo Jerônimo
Osório4, sendo que os dois últimos não alcançaram o mesmo relevo no cenário europeu.
Contudo existem controvérsias e mesmo contradições acerca do seu desempenho como
latinista. Por essa razão recolhemos e reproduzimos abaixo, para serem confrontadas,
as avaliações dos autores consultados nesta pesquisa:

_____________________
1-Pictura Illustris Damiani de Goes e Clarissimo Damiano Goi Lusitano, nomine Regio ex Scythis redeunti.
Grapheus regressava à cidade após um ano em cárcere da Inquisição em Bruxelas, o que lhe custou o cargo de
secretário de Antuérpia. (conf. HIRSCH, 2002, p. 36)
2-Resende foi estudante de Artes em Alcalá e de Teologia em Salamanca. Foi poeta e frade dominicano, entretanto de
pendor erasmista, tanto que em 1531 publicou o Erasmi Encomium. De volta a Évora em 1533, foi incumbido da
educação literária dos infantes D. Afonso e D. Duarte, que morreram em 1540. Então os inimigos de suas idéias
conseguiram afastá-lo do Paço. Teve o cuidado de silenciar sobre suas inclinações e assim evitou para si mesmo
maiores dissabores, o que nunca fez Damião de Góis que também ele celebrou em versos: Carmina ad Damianum a
Goes. (conf. HIRSCH, 2002, p. 84)
3-Professor da Universidade de Lisboa e depois de Coimbra, matemático, cosmógrafo régio, tradutor de Vitrúvio,
Plínio e Ptolomeu. Publicou de sua lavra: Tratado da Sphera (1537) e De Crepusculis (1542), as mais citadas. (conf.
LEITÃO, 2002, p. 40 e 46)
4-Jesuíta, poeta e historiador. Apesar da sua independência de espírito, foi um dos incentivadores do estabelecimento
da Inquisição em Portugal, talvez para apagar a impressão de falta de ortodoxia, que a defesa da fé “cultivada”
presente em suas obras, fazia suspeitar. A maior parte de sua produção humanística foi desenvolvida em plena
Contra-Reforma. Roma e a Inquisição de Lisboa expurgaram mais tarde alguns dos seus escritos, em particular o De
Iustitia. (conf. HIRSCH, 2002, p. 222)

45
“Mesmo sem dominar o alemão conhecia muito bem o latim.” (RODRIGES,
2002, p. 62)

“Homem de negócios, feitor do rei, diplomata. Góis utiliza um latim corrente,


de comunicação imediata e informativa [....] num estilo simples, direto [....] mas tem a
fluência que o torna de leitura aprazível.” (REBELO, 2002, p. 132)

“...pois ele, como salienta Bataillon, nunca possuiu com segurança o latim...”
(CHAVES, 1935, p. 8)

“...que ele falava o flamengo, língua que devia ter constituído, enquanto não
praticava aceitavelmente o latim...” (BATAILLON, 1935, p. 23)

“...deste aprendiz de latinidade que, graças aos seus aturados estudos,


conseguiu, enfim, dominar, como já demonstrou Amadeu Torres.” (MARTINS, 2002, p.
XIV)

“Como Góis tinha a noção de que sua habilidade lingüística estava bem pouco à
altura do que ambicionava...” (HIRSCH, 2002, p. 37)

O Cardeal Bembo [....]assegurou-lhe [....] que ele havia de “merecer o louvor de


todos os que amavam a língua latina...” (HIRSCH, 2002, p. 129)

“Foi certamente ele (Grapheus) quem lhe fez sentir a necessidade de aprimorar
o domínio da língua latina que adquirira na corte portuguesa...” (CASTRO, 1978, p. 126)

“Desse honesto estudo latino resultaram as traduções do De Senectute, de


Cícero [....] e do Ecclesiastes de Salamam...” (CASTRO, 1978, p. 130)

“Os trabalhos que o humanista fora publicando credenciavam-no para tal


empresa (escrever sobre a gesta dos portugueses), tanto mais que se exprimia em latim.”
(NASCIMENTO, 2002, p. 142)

“De fato, ninguém deve exigir de Góis a fidelidade exclusiva a um modelo, que
ele não privilegiou, nem elegâncias retóricas que ele não pretendeu construir; muito
menos haverá que reclamar requintes de expressão em escrita quotidiana, feita no
intervalo dos negócios, sem retoques pela urgência do tempo, mas também sem deslizes
de maior.” (NASCIMENTO, 2002, p. 159)

46
“...Góis nunca chegou a ser um bom estilista em latim.” (HIRSCH, 2002, p. 42)

“Como latinista Góis, no seu estilo, é claro, fluente e elegante, repassado


daquela nobreza expressional que teve seu apogeu com César e Cícero, o que muitos
dos seus amigos atrás citados salientaram no seu tempo.” (DÓRIA, 1944, p. 17)

“De Portugal levava apenas os rudimentos do latim e a leitura das histórias de


cavalaria...” (DIAS, 1969, p. 381)

“O texto do Ecclesiastes – que Góis, esforçadamente, nos oferece numa


translação em português, difícil de superar na sua época...” (ALMEIDA, 2005, p. 308)

“Esse homem que não conhecia muito bem o latim, foi sobretudo um latinista, o
que, de alguma forma, constitui um paradoxo.” (TAVARES, 1999, p. 53)

Um latinista, sem dúvida nenhuma, pois de outra maneira não teria conseguido
produzir – em latim – uma obra tão vasta, abordando uma tal variedade de temas, e que
teve o reconhecimento de seus contemporâneos, principalmente nos círculos
humanísticos europeus e com os quais manteve intensa correspondência. Sempre em
latim. A crítica despropositadamente severa como se pôde observar, deve-se muitas
vezes à interpretação equivocada de testemunhos mais criteriosos como o de Marcel
Bataillon.

Os opúsculos latinos de Damião de Góis admitidos por Shott no corpo histórico e


geográfico do mundo espanhol tiveram uma nomeada mais durável e mais européia do que
as suas crônicas portuguesas [...] Aí reside a real importância do seu humanismo. A sua
contribuição documental foi assaz rica para que os elogios que ele recebeu dos seus
contemporâneos não tivessem sido mais que manifestações de pura cortesia. (BATAILLON,
1935, p. 36)

Com efeito, foi Cornelius Grapheus, membro do Conselho Privado da cidade, seu
primeiro mestre de latinidade, pois Góis, impressionado com a agitação cultural que
sacudia a Europa e solicitado com insistência para que disponibilizasse informações
sobre as navegações portuguesas – acabando por se tornar um porta-voz dos feitos
portugueses nos meios cultos que então freqüentava – sentiu a urgente necessidade de
aprimorar o conhecimento do latim, que sendo a língua comum a todos os intelectuais,

47
qualquer que fosse a língua materna, permitia que se lessem as obras produzidas, que
assim mais rapidamente se tornavam conhecidas.

Desde 1533 até 1545 dedicou-se ao estudo e ao convívio com os maiores


humanistas da época, às viagens pela Alemanha, pelos Países Baixos e pela Itália, à
publicação de livros e a negócios políticos e militares de sua nova pátria, a Flandres.
(MARQUES, 2002, p.17)

Damião de Góis chegou à Flandres pouco depois de por lá terem-se demorado


Thomas More, Dürer¹ e Erasmo de Roterdã, pois o enriquecimento de Antuérpia
e a proximidade da Universidade de Lovaina atraíam muitos homens cultos e célebres.

A admiração por Erasmo tivera início ainda na Corte portuguesa, aonde


chegavam os ecos dos movimentos culturais trazidos por estudantes de volta à pátria ou
por estrangeiros em visita ao reino. O convívio com Grapheus será decisivo na adesão
incondicional e definitiva de Góis ao pensamento do “príncipe dos humanistas”.
Contudo, apenas em torno de dez anos passados fora de Portugal é que o português
tentará avistar-se com o filósofo. Isso vai acontecer no final de 1532, mas não seria
desse primeiro encontro, quando levou em mãos uma carta de apresentação de Rutger
Rescius², que se estreitariam os laços de amizade que por toda a vida haveriam de unir
os dois homens de sentimentos afins. Segundo Mrs. Hirsch, era sua intenção tornar-se
humanista, mesmo que modesto antes de avistar-se com o mestre holandês.

Então conheceu Johann Magnus, arcebispo exilado de Upsala, que lhe foi
apresentado por Joannes Dantiscus, embaixador polonês junto a Carlos V. Magnus que
exercera a diplomacia a serviço do rei da Suécia, de lá fugiu quando Gustavo Vasa
converteu-se ao protestantismo. Suas opiniões sobre o catolicismo e a admiração por
Erasmo o tornaram merecedor da confiança de Damião, que submeteu à sua apreciação
o relato que fizera da questão da Etiópia, pois desde a visita de Mateus, legado etíope, a

_____________________
1-A Albert Dürer, pintor e escultor, é atribuído um controverso retrato de Damião de Góis. Era amigo de Grapheus e
suspeito como religioso. Também retratou Erasmo. (conf. BATAILLON, 1935, p. 23)
2-Depois da partida de André de Resende, Góis passou a ocupar o seu lugar na casa de Rescius, que além de
professor de grego no Colégio de Busleiden, era também editor. (conf. HIRSCH, 2002, p. 85)

48
Portugal vinha amadurecendo em seu íntimo o desejo de defender aquele cristianismo
perante as autoridades eclesiásticas. Assim ao regressar da segunda missão à Polônia,
com mais afinco entregou-se aos estudos, até que pôde verter para o latim as cartas do
Preste João para D. Manuel e para o Papa, trazidas por Mateus.

Esta primeira incursão no campo das humanidades resultou na publicação da


Legatio...1, em cujo prefácio presta homenagem a Magnus como responsável que foi
pela mudança de rumo que se verificaria em sua carreira. Também por inspiração de
Johann Magnus, acrescentou à Legatio... a primeira edição da Deploratio Lappiannae
Gentis. O povo da Lapônia, que estivera sob supervisão eclesiástica de Magnus,
quando este fora bispo em Upsala, era impedido pelos príncipes e pela alta nobreza de
converter-se ao cristianismo, para que, a esse pretexto, continuassem pagando altos
tributos, que não eram exigidos dos que professavam a fé cristã. Sensibilizado com a
sorte daquele povo afastado do convívio dos demais pela geografia e pela religião,
tempos depois escreveria também uma Lappiae Descriptio, publicada em 1540, depois
de, ao que se supõe², ter visitado a região, pois nessa obra menciona a impressão que lhe
causaram o rigor do clima e a visão das renas, além de fornecer informações de
interesse da Geografia³. Em 1915 a Deploratio e a Descriptio foram traduzidas para o
sueco por Gösta Thörnell.

Damião de Góis reencontrou Magnus uma segunda vez em Dantzig, em 1531 e


pela última vez na Itália. Como o Concílio de Mântua, do qual esperava participar, não
se realizou, Johann e seu irmão Olaus ficaram sem recursos financeiros. Apesar do
apelo dirigido ao Papa pelo amigo português, então estudante em Pádua, em favor do
religioso, este morreu em 1544, exilado de sua pátria e desamparado pelo clero.

_____________________
1-João More, filho de Thomas More traduziu o opúsculo para o inglês. “A introdução de John fazia eco da tolerância
religiosa do pai e de Góis, que advogavam uma fé católica não dogmática.” (HIRSCH, 2002, p. 29)
2-“No século XVI, a missão comercial portuguesa em Antuérpia enviou à Suécia Damião de Góis, com o objetivo de
sondar as oportunidades de negócio, mas não há qualquer confirmação de que se tenha encontrado com o rei Gustavo
Vasa, primeiro monarca do reino independente., pois até 1523, a Suécia encontrava-se ainda ligada à Noruega e à
Dinamarca.” ( http://www.embassyportugal.se/relations_porto.html, 2006)
3-Não estaria nessa obra sua única contribuição à pesquisa geográfica. Os relatos, feitos por carta, de suas viagens
pelo norte europeu, a sua Descrição da Cidade de Lisboa e os opúsculos sobre a Etiópia muito auxiliaram na
reconfiguração do mundo pós-Quinhentos. (conf. NASCIMENTO, 2002, p. 130)

49
Na passagem pela Prússia, em 1531, encontrou-se, em Marienwerder, com
Paulus Speratus, um dos primeiros adeptos de Lutero, que era na ocasião bispo na
Pomerânia. O bispo, que estivera algum tempo na cadeia em virtude de suas idéias
protestantes, guardou uma profunda impressão desse contato, que foi, provavelmente,
incentivado pelos amigos de Wittenberg, e antes da partida de Góis enviou-lhe um
bilhete em que expressava o grande prazer que tivera por “encontrar nesse mundo
bárbaro um homem que merecia ser chamado de humano.”¹ Nessa mesma viagem
travou conhecimento com Tiedman Giese, de Dantzig, que além de cônego de
Frauenburg era primo e amigo de Nicolau Copérnico. Com ele Damião de Góis pode
debater francamente sobre a sua inquietação espiritual, visto que Giese era também um
observador atento dos fatos religiosos do seu tempo e tinha uma atitude conciliadora
perante a reforma protestante, demostrando vivo interesse pelo que o então diplomata
vira em Wittenberg. Com freqüência consultava tanto Erasmo quanto Melanchton sobre
assuntos religiosos; apesar disso, e porque tinha uma postura eclesiástica irrepreensível,
sua fé nunca foi posta em dúvida, mesmo nos meios mais radicais do
catolicismo, tanto que tempos depois escreveria a Góis falando de sua nomeação para
bispo de Culm e mais tarde sucederia Dantiscus no bispado de Ermland. Mas não foi
somente a compreensão do bispo para com as idéias do humanista que aproximou os
dois homens. Giese, que fora colaborador do primo astrônomo e defensor de suas
teorias, e Góis, familiarizado que era com os problemas de astronomia e navegação,
debateram, na ocasião, e depois por cartas², sobre as questões que a ambos interessava,
incluindo o gosto pela Geografia, que igualmente partilhavam.

Da passagem por Wittenberg resultou o estabelecimento de fortes laços de


amizade entre Damião de Góis e Filipe Melanchton³. A maioria dos católicos de

_____________________
1-HIRSCH, 2002, p. 50.
2-“...durante anos Giese tentou manter-se a par das atividades de Góis e teve especial satisfação, como lhe disse numa
carta, ao tomar conhecimento das relações do amigo com Erasmo.” (HIRSCH, 2002, p. 52)
3-Principal amigo e colaborador de Lutero, apesar de alguns pontos de divergência com as teses deste. Apresentou
em Augsburgo a célebre Confissão de Augsburgo, onde pretendia provar que os protestantes, embora com inovações
mantinham-se dentro da Igreja. Foi professor de grego na Universidade de Wittenberg, humanista, amigo e
admirador de Erasmo, auxiliou Lutero na tradução da Bíblia para o alemão. Foi acima de tudo um educador. Veja-se
sua lição sobre a “Melhoria dos estudos dos jovens”, na qual inculcava o regresso às fontes e a importância das
línguas clássicas, não deixando de combater o latim degenerado. Também enalteceu o valor da história, das ciências
naturais e das matemáticas. Defendia como uma urgente tarefa do movimento reformador a necessidade de dar às
escolas, igrejas e universidades uma organização estável e um claro espaço interno. (conf. RODRIGUES, 2002, p.
67-73)

50
pensamento liberal admirava o reformador de Nurenberg, incluindo Erasmo e os
cardeais Sadoleto¹ e Bembo, que desejaram encontrar juntos um meio termo que
evitasse a separação irreversível entre as duas correntes da Igreja.

Mas as relações de Damião de Góis com os reformadores não se limitaram às


duas importantes figuras de Wittenberg. Também esteve em conversações com João
Pomerano (ou Johannes Bugenhagen), em Lübeck, Martin Bucer e Gaspar Hedio, em
Estrasburgo, Farel, em Genebra, Ulrich Zwinglio, em Zurique e Sebastião Münster, em
Basiléia, acabando por envolver-se mais do que convinha a um católico nas querelas
religiosas do norte europeu. Embora sua motivação não fosse outra que entender com
profundidade o que se passava, existia o risco de parecer contrário à ortodoxia católica
e sobre isso o próprio Erasmo o alertou, aconselhando-o a afastar-se dos protestantes e
continuar os estudos em Pádua, na Itália.

A essa altura, Damião de Góis já manifestava sua discordância com relação a


alguns aspectos do dogmatismo católico, por exemplo quanto à validade da confissão
auricular, sobre a venda de indulgências e a observância do jejum. Nisso a sua conduta
se aproximava do pensamento de Lutero². Entretanto jamais negou sua fé e seu desejo
de ver a expansão e a unidade da Igreja, mesmo sendo favorável ao diálogo, sobretudo
religioso, pois como humanista aspirava ao bem da humanidade inteira³. Já falamos do
seu apelo em favor dos lapões, mas não lhe bastou a publicação da Deploratio. Mais
tarde, quando se tornou amigo de Erasmo, a ele também recorreu, solicitando sua
interferência.
_____________________
1-“O Cardeal Sadoleto, conhecedor da fama de que Damião de Góis gozava entre os humanistas protestantes alemães
e, ao mesmo tempo, da sua fidelidade à Igreja católica, serviu-se dele como intermediário de uma carta para
Melanchton, na qual tentava induzir o luterano a regressar ao grêmio da Igreja católica.” (LAVAJO, 2002, p. 17)
2-Martin Lutero foi frade eremita de Santo Agostinho. Em 1511, de volta de uma viagem a Roma trocou o convento
de Erfurt pelo de Wittenberg. Em 31 de outubro de 1517 afixou as 95 teses (em latim), nas quais entre outras críticas,
atacava as indulgências e o culto dos santos. A bula Exsurge Domine, de Leão X, condenou Lutero, que depois foi
definitivamente banido do império pela dieta de Worms (1521). São suas obras principais: Apelo à Nobreza Cristã,
De captiuitate babilonica, De libertate christiana. As bases da crença luterana são a justificação pela fé e a Sagrada
Escritura como única fonte da vontade de Deus. Considerava o ensino como condição imprescindível para uma boa
formação cristã.. Aprendeu grego com Melanchton, que o convenceu a traduzir a Bíblia, mas não a partir da Vulgata.
Foi um dos primeiros a fazer do alemão uma língua literária. O conflito com Erasmo pôs fim à ligação entre
Humanismo e Reforma, mas para os jesuítas Erasmo nunca deixou de ser considerado luterano e suas obras, desde a
Contra-reforma, pós Concílio de Trento, passaram a figurar no Index. (conf. RODRIGUES, 2002, p. 63-66)
3-Contudo a aceitação do islamismo, que não reconhecia Cristo como Salvador, não fazia parte da atitude espiritual
de Damião de Góis. Além disso há que se pensar que a aliança com os muçulmanos, naquele momento, iria de
encontro aos interesses portugueses e, como já ficou demonstrado, entre as virtudes do humanista, destacava-se um
fervoroso patriotismo. (conf. HIRSCH, 2002, p. 25)

51
A obra que melhor reflete sua atitude conciliadora, e que despertou um grande
interesse nos meios cultos da Europa foi sua defesa, junto ao Papa Paulo III, da inclusão
do cristianismo etíope no seio da Igreja romana. O padre Francisco Álvares que
participou da primeira embaixada de Portugal à Etiópia, relatou suas experiências
naquele reino na Verdadeira Informação das Terras do Prestes João, que foi logo
traduzida para o alemão. Coube a Damião de Góis verter para o latim o relato do bispo
Zaga-Zabo – que procurou corrigir alguns equívocos do primeiro embaixador do Négus,
Mateus. Na carta introdutória, Damião procura chamar a atenção do Sumo Pontífice
para a sinceridade da fé daquele povo africano e para o seu desejo de submeter-se à
doutrina romana. Trata-se, com efeito, da Fides, Religio Moresque Aethiopum,
publicada em 1540 e que causou enorme furor entre o clero e a aristocracia portuguesa.
A obra foi condenada pelo censor, inicialmente só a parte referente ao relato do bispo,
depois passou a figurar no Index. Nos meios mais progressistas e fora de Portugal o
livro foi porém valorizado pela sua contribuição para o conhecimento da história, da
geografia e dos aspectos sociais dessa parte remota da África. Voltaremos, no capítulo
7, a esse opúsculo, que a par com a amizade por Erasmo de Roterdã, tanto dissabores
iria trazer ao seu autor.

O tratamento recebido de Erasmo no primeiro encontro foi bastante frio,


demonstrando o filósofo que não tinha idéia de quem era de fato o visitante, e na carta
que solicitou a Góis que levasse a Bonifacius Amerbach¹, em Basiléia, sequer fazia
menção do portador. Antes de Damião de Góis um outro português tinha visitado
Erasmo. Tratava-se do “jovem e notabilíssimo humanista” Marcial de Gouveia², que
assim como seu irmão André de Gouveia, admirava Erasmo e Melanchton. Por ele
Erasmo tomou conhecimento da má impressão causada por seus comentários no
Chrisostomi Locubrationes, dedicado a D. João III, sobre o monopólio das especiarias,
e é Góis quem posteriormente se encarregará de promover a reabilitação do humanista
holandês perante o monarca.

_____________________
1-Bonifacius Amerbach era jurista, professor de Direito e amigo de Erasmo. (N. A.)
2-Marcial de Gouveia, membro de uma famosa família de estudiosos de várias religiões, foi mais tarde perseguido
pela Inquisição em Portugal. (conf. HIRSCH, 2002, p. 89)

52
O segundo encontro de Desidério Erasmo e Damião de Góis, que não
desanimara de pertencer ao círculo de amigos do mestre, que tanto admirava, deu-se no
final de 1533. De regresso à Flandres após a primeira passagem por Friburgo, mandou
a Erasmo uma bela taça dourada, para que se lembrasse dele, preparando assim um
ambiente amigável para uma futura visita.

Damião de Góis retornava de Portugal após recusar o cargo de tesoureiro da


Casa da Índia¹ em Lisboa e, em 11 de abril, ao sabê-lo hospedado em Basiléia, na
“Estalagem da Cegonha” – em companhia de Amerbach e do famoso jurista Zasius –,
Erasmo escreveu-lhe um bilhete onde manifestava o desejo de que a decisão de
renunciar ao importante cargo lhe trouxesse felicidades e, ao mesmo tempo oferecendo
sua hospitalidade ao “jovem e esperançoso humanista português”, que nesse mesmo dia
já estaria em casa do filósofo, com quem passou cerca de cinco meses, em conversas
sobre humanismo e latinidade.

Para Damião de Góis isso constituía o auge da sua carreira, bem como
uma felicíssima experiência pessoal. Conhecer Erasmo na intimidade e beneficiar
diretamente dos seus vastos conhecimentos criava em Góis um sentimento de veneração
e um afeto crescente. Vinte anos após a morte do seu grande amigo, Damião de Góis
ainda sentia a perda desse mestre venerando quase tão agudamente como se ele tivesse
acabado de falecer. (HIRSCH, 2002, p. 93)

A correspondência trocada entre Erasmo e Damião de Góis nada revela sobre a


influência daquele sobre o discípulo em matéria religiosa, entretanto sabe-se que o
português intensificou seus contatos com protestantes enquanto esteve em Friburgo, e
que manifestava suas opiniões com uma sinceridade temerária, tanto que foi
aconselhado a deixar a cidade, que ainda era predominantemente católica. Numa carta
escrita em Lovaina, ao saber sobre partida de Góis para breve, Conrad Goclenius atribui
a culpa desse afastamento aos inimigos católicos.²
_____________________
1-“Para evitar as pressões da Corte e as intrigas palacianas, Góis retirou-se para o famoso santuário de Santiago de
Compostela, na Galiza, por um período de contemplação e exame interior. Desse lugar solene enviou por fim o seu
pedido de demissão ao rei ‘que Sua Majestade recebeu bem’”. (HIRSCH, 2002, p. 90)
2-“Que todos os deuses do Olimpo e do Hades destruam com duro castigo esses crocodilos, essas serpentes e hienas
que com línguas venenosas te expulsaram duma situação tão desejada e que, para mais, tinhas procurado com grande
risco.” Trata-se de trecho de uma carta de Goclenius, enviada de Lovaina a 10 de junho de 1534. (conf. HIRSCH,
2002, p. 96)

53
Desde a ida para Pádua, Damião de Góis não voltaria a se avistar com o filósofo
holandês, mas continuaram a se corresponder até a morte deste. Numa carta escrita a
Amerbach, Góis dizia que lhe “tinha causado uma enorme mágoa despedir-se de
Erasmo.”

Tencionando fazer mais investigações sobre o movimento evangelista, Damião


de Góis não seguiu direto para a Itália. Além das conferências que tivera em Basiléia
com Amerbach e com o teólogo, matemático, lingüista e geógrafo Sebastian Münster,
também conversou com Simon Grynaeus, simpatizante dos protestantes e professor de
Filosofia na Universidade de Basiléia, além de perito em música antiga. Em virtude do
seu enorme interesse pelos Descobrimento, “entre ele e Góis encetou-se animada
correspondência”. A seguir hospedou-se em Genebra, na casa de Guillaume Farel,
responsável pela introdução da Reforma na cidade Suíça, com quem manteve acaloradas
discussões sobre temas religiosos.

Finalmente chegou a Pádua e encontrou na cidade italiana um catolicismo


aparente, e superficial, embora com menos dissidências que o de Friburgo. Na parte
norte uma comunidade abraçara o protestantismo segundo as idéias de Oecolampadio,
de Basiléia, Bucer de Estrasburgo e do genebrino Farel, pois muito próximo dali,
Veneza debatia-se em controvérsias religiosas, por causa do fluxo contínuo de
mercadores alemães, que traziam as idéias luteranas para a Itália, e das teorias
antitrinitárias de Michael Servetus. De Nápoles ao sul da Itália, o exilado espanhol Juan
Valdés, com o apoio do pregador capuchinho Ochino introduzira novas idéias
religiosas, e a princesa Renée de Ferrara abrigou em sua corte muitos refugiados
protestantes, entre eles o poeta Clément Marot, que era perseguido na França. Em carta
escrita de Pádua a Amerbach, e levada até este por Marot, Damião de Góis pede ao
amigo que mostre ao poeta o que lá for digno de ser visto e recomenda o portador como
alguém que “Deus achou digno de muitos dons e de grande encanto, e que excede todos
os outros poetas franceses, (tal como Roma, segundo Virgílio excedia todas as outras
cidades).”¹ Marot, entretanto não se declarava protestante, luterano, zwuingliano, ou
papista, mas crente em Deus e em Cristo, e foi essa fé simples que muito entusiasmou
Góis e favoreceu a grande amizade que aproximou os dois homens.
____________________
1-HIRSCH, 2002, p. 118.
54
Sabendo como Damião de Góis estava acostumado ao luxo, embora fosse muito
modesto, Erasmo recomendou a Bembo que o instalasse com um fidalgo francês ou
alemão. Mas vamos encontrá-lo dividindo um apartamento com dois conhecidos de
Lovaina: Splinter van Hargen (católico e seu futuro cunhado), e Joachim Polites, que
tinha sido professor no colégio de Guyenne, em Bordéus e participara ativamente nos
círculos ligados a Erasmo. Era adepto da Reforma e, sem conflitos como os dois outros,
“acabou por encontrar no protestantismo sua pátria religiosa.”¹

Antes de deixar a Itália, Damião de Góis publicou em Veneza, em 1538, a


tradução para português do De Senectute², dedicada ao Conde de Vimioso, D. Francisco
de Portugal. Supõe-se que sua saída de Pádua não se deveu de fato ao seu gosto pelas
viagens, mas a um incidente – que levou, também Polites, a recomendar ao humanista
que se resguardasse contra “algumas pessoas malévolas” – provavelmente ocorrido
quando Roque d’Almeida (ou Jerônimo de Paiva), que era cunhado do historiador João
de Barros, desejoso de voltar ao convívio de Góis, chegou à Itália levando-lhe cartas de
Melanchton e de Lutero. A carta de Lutero o destinatário logo destruiu, mas não teve
suficiente cautela ao debater livremente com o amigo recém-chegado sobre questões
religiosas, na presença do jesuíta português, Simão Rodrigues, que “ficou enfurecido
com as heresias pronunciadas por Góis”, o que resultou em exaltada discussão. Inácio
de Loyola, que se encontrava em Veneza, foi a Pádua desculpar-se com Damião de Góis
pelo comportamento desrespeitoso do padre e ficou hospedado com os companheiros na
residência do fidalgo. Desse episódio nasceu todo o ódio que Simão Rodrigues
carregaria contra Damião de Góis por toda a vida, até a intrigante morte do humanista,
em 1574, após deixar o cárcere.

Pouco depois da discussão com o jesuíta, Damião foi procurado pelo Cardeal
Sadoleto que lhe pediu ajuda “num ousado passo religioso para se aproximar de
Melanchton.”³ O clima religioso da Itália não era mais ameno do que em outras partes

_________________________
1-HIRSCH, 2002, p. 119.
2-Trata-se da única contribuição de Góis para a difusão da literatura da Antigüidade [....] e representava a aplicação
direta dos ensinamentos de Erasmo sobre o valor do vernáculo. (conf. HIRSCH, 2002, p. 159)
3-Ao aceitar de bom grado o papel que devia desempenhar, Damião de Góis afirmou aquilo que o cardeal “já sabia,
isto é, que tinha contraído uma amizade que estava longe de ser medíocre com esses que se chamam protestantes.”
(HIRSCH, 2002, p. 123)

55
da Europa, que ele visitara; além disso, nas mais altas esferas da hierarquia católica,
examinavam-se as idéias protestantes e alguns já se inclinavam a ceder de boa vontade
em alguns pontos.

A carta que Sadoleto¹ enviara a Melanchton por intermédio de Damião de Góis,


cautelosamente “no interesse público”, sequer mencionava o nome do destinatário. Já
vimos anteriormente que o próprio Erasmo também defendia uma Igreja Católica
tolerante e livre de dogmas, para que fosse possível a reconciliação com os protestantes.

Além do humanista Pietro Bembo, a quem fora calorosamente recomendado por


Erasmo, e de Jacopo Sadoleto, Damião de Góis conquistou também o afeto de Lazzaro
Buonamico, que passou a guiá-lo nos estudos de história e filosofia e apresentou-o a
muitas figuras eminentes do humanismo, do clero e da política. “Os estudos
humanistas, no sentido estrito, apesar da devoção a Cícero e à admiração por Horácio,
não constituíam o principal objetivo de Góis.”² Mais uma vez, sua inclinação pela
história e o encorajamento recebido em Pádua neste sentido tiveram conseqüências que
marcariam profunda e definitivamente o espírito do fidalgo estudante. “Bembo já havia
insistido para que ele fosse o historiador de todas as grandes conquistas feitas pelos
portugueses” e por isso mesmo, em 1538, ao regressar a Lovaina, publica mais um
livro, Comentarii Rerum Gestarum in India, muito elogiado por Polites, que “felicitava
Portugal por ter um porta-voz tão eficiente.”³. Dedicou-o, naturalmente, a Pietro
Bembo, com quem continuou mantendo correspondência mesmo depois do retorno a
Portugal.

Outras duas personalidades das relações italianas de Damião de Góis em Pádua


foram Cristoforo Mardruzzo, bispo de Trento, que seria o anfitrião do futuro Concílio,
e o cardeal Reginald Pole, sacerdote inglês exilado, que depois de ter feito oposição ao
divórcio de Henrique VIII, foi para a Itália reunir-se aos célebres cardeais reformistas.

Mardruzzo foi mediador entre a Alemanha e a Itália, e além de ser um homem


de vasta cultura, era amante da música. A correspondência trocada com Damião até
1555 teve “caráter invulgarmente genuíno e pessoal”.

_____________________
1-HIRSCH, 2002, p. 123.
2-HIRSCH, 2002, p. 128.
3-HIRSCH, 2002, p. 121.
56
Entre os representantes italianos do movimento humanístico, apenas com Paolo
Giovio, ao que parece, Damião de Góis não chegou a se encontrar, apesar da comunhão
de interesses. Mas as divergências, relacionadas ao monopólio português das
especiarias, fez com que, somente por intermédio de amigos comuns, tivesse um,
notícias do outro.

Em Pádua pôde manter ininterrupta a correspondência com os amigos que


constituiu ao longo de sua trajetória européia, portugueses ou estrangeiros, entre eles,
Nicolau Clenardo, que em 1537 encontrava-se em Portugal.

O período que viveu em Pádua foi intercalado com algumas viagens a Roma e a
outros lugares de relevo do país; também viajou para o estrangeiro. Em 1536, quando
morreu Erasmo, esteve hospedado em Augsburgo e em Nurenberg. Mais tarde, já em
Portugal, pelo menos podia dividir com André de Resende as recordações da vivência e
das atividades de ambos na Europa que em muito se assemelhavam.

...o poeta e humanista André de Resende também tinha ficado completamente


cativado pelo pensamento humanístico do mestre holandês. Não é de surpreender que
Resende e Góis fossem amigos íntimos e que Resende, apesar de nunca ter estado com
Erasmo, encorajasse Góis na busca do saber e na ambição de vir a conhecê-lo
pessoalmente. (HIRSCH, 2002, p. 83)

André de Resende, assim como Damião de Góis, era contrário à fúria com que
os católicos conservadores de Lovaina atacavam Erasmo. Um decreto proibindo as
obras do holandês fez com que Resende abandonasse definitivamente a Universidade e
a cidade onde vivera por muitos anos, e seguisse em diversas missões diplomáticas
juntamente com Pedro de Mascarenhas, mas não deixou de reagir aos ataques dos
“sofistas imbecis”, compondo, como era de praxe, um elogio à obra de Erasmo, o
Carmen Erutidum et Elegans Angeli Andreae Resendii Lusitani Stolidos Politioris
Literaturae Oblatratores, modernamente intitulado “Elogio de Erasmo”.¹

______________________
1-Resende enviou o poema a Erasmo, que o mandou publicar por Froben, em 1531, sem permissão do autor. (conf.
HIRSCH, 2002, p. 84)

57
De volta a Lovaina, em 1538, duas grandes mudanças operaram-se na vida de
Damião de Góis. Primeiramente decide fixar-se na cidade, mas recusando-se a maiores
envolvimentos em questões de verdades religiosas. Depois casa-se, em 1539, com a
irmã de Splinter, Joana van Hargen, que “provinha de uma proeminente família católica
holandesa”¹, buscando assim um ritmo de vida menos agitado. Além do casamento,
reatar os laços com os antigos amigos e retomar os estudos, agora na Universidade de
Lovaina, passaram a ser a tônica dos interesses de Damião de Góis.

Com efeito, em 4 de junho de 1539 matriculou-se na Universidade de Lovaina,


e, em 1540 nasceu seu primeiro filho, Manuel – “em honra do rei que havia sido seu
tutor e educador”. Nannius homenageou o recém-nascido com um poema no qual
declarava que ele era abençoado com três pátrias: Portugal, Holanda e a Flandres.
Antes do regresso a Portugal o casal teve mais dois filhos. O do meio, Ambrósio, seria
o preferido do pai.

Entre 1539 e 1542 publicou suas obras mais importantes, e pretendia passar o
resto de sua vida naquele ambiente que “tão bem se coadunava com a sua índole”,
conforme confessou em carta a Beatus Rhenanus.

Em 1539 escreveu, em forma de panfleto, De Rebus et Imperio Lusitanorum, no


qual rebatia as críticas severas de Paolo Giouio ao monopólio português das especiarias,
defendendo seu rei com fervor patriótico, que era uma das “causas” significativas da
época e que, ao lado da sua contribuição para os novos métodos científicos e da
manifestação da tolerância religiosa, perpassaram a obra do humanista. No ensaio
Embaixada Russa, Giouio declarava que grandes males advinham para as outras nações
por serem excluídas por D. João III – que com isso obtinha um lucro excessivo – do
negócio das especiarias.

Em meados de 1542 esvreveu Hispania, dedicada a Petrus Nannius², humanista


e professor de latim em Lovaina, pois foi quem o incentivou a usar seu vasto
conhecimento sobre a Espanha e Portugal para corrigir os equívocos e injustiças
_____________________
1-“Ao contrário de qualquer outra das comunidades a que Góis tinha-se associado, a sociedade a que ela pertencia
não tolerava discussões em matéria de religião.” (HIRSCH, 2002, p. 151)
2-Nannius não deixou de afirmar que o texto “cumpria os preceitos retóricos (a maneira de Suetônio)”.
(NASCIMENTO, 2002, p. 149)

58
cometidos por Sebastian Münster, que no seu Ptolomeu fizera observações depreciativas
sobre a Espanha. Em Hispania, Góis adverte o geógrafo da necessidade de visitar os
locais descritos para colher informações precisas e verdadeiras, e “descrever depois o
que tinha visto com seus próprios olhos”, e não, violando seu dever de intelectual,
basear-se em fontes duvidosas como a obra do aragonês Michael Servetus¹. Satisfeito
com o resultado de sua intervenção na produção do opúsculo e porque apoiava
integralmente o “motivo patriótico subjacente ao tratado”², Nannius fez o mesmo que
Grapheus, anos antes, fizera com a Legatio, deu-a a imprimir sem o conhecimento do
autor, incluindo o ensaio nela contido, Pro Hispania adversus Münsterum Defensio.

Os Comentarii Rerum Gestarum in India 1538 citra Gangem, publicados no


mesmo ano em que escreveu Hispania, narram a vitória dos portugueses na ilha de Diu,
em frente à costa ocidental da Índia. Além celebrar um acontecimento histórico, tinha
também um objetivo patriótico³, porém sem ser motivado por nenhuma controvérsia.
Assim, da mesma forma que Beatus Rhenanus investigava o passado da Alemanha e
André de Resende pesquisava antigas festas portuguesas, o Cardeal Bembo, que fora
certa vez encarregado de escrever a história de Veneza, convenceu Góis a traduzir para
o latim o relato português do primeiro cerco de Diu, que foi por isso dedicado ao
Cardeal. O texto, segundo Mrs. Hirsch “segue mais ou menos um molde estabelecido
pela tradição humanista”, não perdendo oportunidade de elogiar a coragem dos soldados
portugueses.4 A obra interessou vivamente aos seus pares, tanto que Henrique
Glareanus “elogiou os portugueses por serem a única nação a lutar pela preservação da
Cristandade, enquanto todos os outros cristãos se deixavam dormir.”5

_____________________
1-“O famoso professor respondeu às acusações num longo parágrafo da Cosmografia”, atribuindo os erros contidos
no Ptolomeu, à falta de colaboração de Góis, que, por pura rivalidade, não tinha partilhado com ele seus
conhecimentos sobre o Oriente e as navegações portuguesas. (conf. HIRSCH, 2002, p. 163)
2-“És forte na apologia, mas isso é causado pelo teu amor à pátria. Quem amar o patriotismo e considerar que o
estudo da pátria é uma virtude há-de-te amar.” (HIRSCH, 2002, p. 162)
3-Para Damião de Góis, os portugueses eram civilizadores e evangelizadores. (conf. HIRSCH, 2002, p. 153)
4-“Devido à importância da vitória dos portugueses, o trabalho foi prontamente traduzido para italiano e para
alemão.” (HIRSCH, 2002, p. 173)
5-Idem, 2002, p. 174

59
O mesmo sentimento demonstrado na elaboração da Deploratio Lappiannae
Gentis, encontra-se presente na Fides, Religio Moresque Aethiopum. Damião de Góis
tinha prometido a Zaga-Zabo a tradução para o latim da exposição que o sacerdote
etíope fizera sobre os princípios da sua Igreja, não só para corrigir os erros que se
encontravam na Legatio, mas também para fazer chegar ao Papa a mensagem da
Cristandade dos confins da África¹. Embora privado dos seus livros que se perderam na
longa viagem da Etiópia à Europa, o bispo completou a narrativa em um ano e enviou-a
a Pádua, onde a tradução foi iniciada. Publicada em Lovaina, em 1540 pela primeira
vez, foi dedicada a Paulo III. Em 1541 foi reeditada em Paris, em 1544, novamente em
Lovaina, e seguiram-se a estas as reedições de Leão, Colônia, Genebra e Frankfurt.

No mesmo ano em que Góis conheceu Zagazabo, o Négus da Etiópia fez outra
tentativa para unir sua Igreja à de Roma. Deu poderes ao eclesiástico português
Francisco Álvares, que tinha ido à Etiópia como membro da delegação enviada por D.
Manuel I, em 1520, para que no regresso a Portugal fosse, em seu nome, prestar
obediência ao Papa. Ao mesmo tempo enviou Zagazabo para a Europa, ordenando-lhe
que trouxesse a resposta do Pontífice. O momento histórico ocorreu em janeiro de
1533, quando o Padre Álvares, acompanhado do embaixador Português D. Martinho, se
encontrou com Clemente VII em Bolonha2. Enquanto esperava pela resposta do Papa –
resposta essa, que quando chegou, era evasiva – Zagazabo passou muitos anos de
desencorajamento na Europa. (HIRSCH, 2002, p. 179-180)

Damião de Góis enviou a obra a alguns amigos na Europa. A Beatus Rhenanus


confessou em uma carta que, ao usar da sua autoridade a favor da religião etíope, estava
consciente da própria ousadia, mas desejava mostrar “como um povo primitivo
considera sagrada a religião cristã”. Inácio de Loyola quis conhecer o livro, mas não se
sabe que juízo fez do Cristianismo descrito na obra, entretanto, a julgar pela opinião dos
demais jesuítas, que o condenaram “por numerosos erros”, é provável que não tenha
dado a ele sua aprovação.
_____________________
1-“Zaga-Zabo veio como embaixador, juntamente com Francisco Álvares, na armada de Heitor da Silveira que
regressou a Portugal em 1527.” (LAVAJO, 2002, p. 28)
2-“Francisco Álvares, ao que parece, morreu efetivamente na Itália, mas Zaga-Zabo deve ter embarcado, de volta à
Etiópia, em 1539, com D. João Bermudes.” (SANCEAU, 1940, p. 257)

60
Em Portugal houve enorme resistência ao trabalho. Góis trocou correspondência
com seu amigo Jorge Coelho, que era secretário do Cardeal D. Henrique, mas
inicialmente recebeu informações apenas sobre o entusiasmo da Corte e do Cardeal com
os Commentarii. Só mais tarde o secretário lhe daria notícias sobre a decisão de D.
Henrique de não deixar distribuir em Portugal a segunda parte da obra, pois o inquisidor
Margalho tinha grandes reservas sobre a religião de Zaga-Zabo. Entre os “erros”
apontados um dizia respeito ao casamento dos sacerdotes, que aproximava a religião
etíope do luteranismo; outro era a fidelidade ao Antigo Testamento, que os aproximava
do calvinismo; e também a prática da circuncisão, com que se assemelhavam aos
judeus. Por isso consideraram hereges o bispo e o povo que ele representava. Em
contrapartida, a Universidade de Lovaina¹, cuja Faculdade de Teologia era
reconhecidamente conservadora em assuntos de fé, deu seu selo de aprovação à obra.
Fora de Portugal, o livro teve o mérito da consagração definitiva de Damião de Góis
como historiador, e ele passou a ser referido como “o historiador da Etiópia”.

Em 1542, quando se preparava para ir com a família para a Holanda, numa


viagem que fazia anualmente, um acontecimento inesperado daria novo rumo a sua
vida. Um exército francês comandado por Martin van Rossem invadiu Lovaina², e
Damião, que regressou imediatamente para tomar parte na defesa da cidade, foi posto à
frente de um grupo de estudantes que se alistaram às pressas. Encarregado de negociar
a paz com o comandante Nicolas de Baoussu, foi feito prisioneiro juntamente com seu
colega Adrian de Blehen e levado para a Picardia, porque Lovaina inesperadamente
retomou as hostilidades. A primeira grande decepção de Damião de Góis viria desse
episódio, pois o governo de Lovaina pagou o resgate exigido pelos franceses para
libertar Adrian, mas nada fez em relação ao português, que levado depois para
Fontainebleau, ficou quase um ano na prisão. Indignado com o tratamento dado por
Lovaina a um eminente súdito seu³, D. João III negociou o resgate e ordenou que
_____________________
1-“Apontava-se que o tratado, depois de cuidadosamente examinado, mostrava ter uma história digna de ser
contada.” (HIRSCH, 2002, p. 188)
2-“Francisco I renovava assim suas antigas pretensões de domínio político e militar da Flandres.” (CASTRO, 2002, p.
119)
3-E a esposa deste não recebeu melhor tratamento. “Johanna, que tinha chorosamente acompanhado o marido no
regresso a Lovaina, concebeu um plano ousado, mas não insensato, que Gabriel Garchie, amigo de Góis, pôs em
execução. Garchie [....] tinha feito penetrar subrepticiamente na prisão um estudante francês, Jean de la Rive, na
intenção de forçar uma troca de prisioneiros. Mas a Universidade de Lovaina, reprovando esse ato, fez soltar o
estudante e obrigou Johanna a pagar as despesas.” (HIRSCH, 2002, p. 143)

61
Damião de Góis regressasse a Portugal.

Outras humilhações adviriam quando do seu retorno a Lovaina, que passara a


discriminá-lo como estrangeiro que era. Por essa razão escreveu a Carlos V relatando
minuciosamente os acontecimentos e o tratamento dado a ele e a sua mulher: “Não há
nada de mais vergonhoso do que uma cidade ingrata; por isso os romanos puniam tais
atos por lei.”¹

Entretanto alguns amigos o defenderam. Nannius, falando perante os estudantes


disse que “O vosso lider Damião de Góis estava nas mãos do inimigo. Por mais que os
intrigantes o ataquem, foi ele quem obteve do inimigo a garantia de que, se a paz fosse
assinada, vocês poderiam permanecer a são e salvo na cidade, ou abandoná-la sem
perigo”.² Joannes Berzoza festejou a libertação de Góis com uma Gratulatio,
imaginado os deuses da Antigüidade descendo “do paraíso para tomarem parte nos
festejos e para os adornarem com sua presença, reduzindo à impotência os inimigos de
Góis.”³

A carta de Carlos V, escrita de próprio punho ao comandante francês e


condenando o tratamento que a França infligira a Damião de Góis trouxe-lhe algum
consolo, além do mais, para demonstrar que apreciara seus serviços concedeu-lhe um
brasão de armas do qual pediu confirmação a D. João III4. Só Lovaina jamais lhe
manifestou qualquer forma de reconhecimento.

As conseqüências de todos esses contratempos tiveram um alcance maior do que


o desejado pelo humanista, que se via, inicialmente, obrigado a voltar a viver
definitivamente em seu país natal quando acalentara o sonho de residir para sempre na
Flandres. Tentando ainda gozar em paz os últimos meses de permanência, mudou-se de
Lovaina para Antuérpia. Daí desculpou-se por carta a D. João III pela demora da
partida, alegando doença da mulher. Nesse intervalo fez publicar, em 1544, Aliquot
Opuscula, outra razão que se supõe plausível para o atraso da viagem de volta à pátria.
_____________________
1-Conf. HIRSCH, 2002, p. 156.
2-Idem
3-Idem, p. 157.
4-A confirmação foi dada em 15 de agosto de 1567, por carta de D. Sebastião, em reconhecimento pelos elevados
serviços prestados nos reinados de D. Manuel I e D. João III. (conf. VITAL, 2002, p. 49)
62
Este livro, editado também por Rutger Rescius, incluía todas as obras que o humanista
publicara até então, além da correspondência trocada com os amigos ilustres e várias
personalidades da época.

Deixando para trás um profícuo período de experiências culturais e pessoais,


Europa a fora, Damião de Góis desembarca em Lisboa em 1545, levando esposa e três
filhos pequenos. Por lá ficaram amigos com os quais continuou a se corresponder, entre
eles William Zenocarus, Louis de Praet e Joannes Stratius (com quem estudou em
Pádua em 1535), todos diplomatas e humanistas como ele próprio; Caelio Calcagnini,
de Ferrara, Viglius Aytta¹, que era frísio e fora professor de Direito Romano em Pádua;
o ilustre jurista Alciati, Bonifacius Amerbach e Justus Velsius, médico, matemático e
filósofo, natural de Haia, que dedicou escritos a Góis e a Viglius. Longe também o
tempo em que orgulhosamente fornecia a todos os interessados, dados sobre os
Descobrimentos e o Novo Mundo, que seus amigos humanistas incluíam em suas obras;
tempo em que alguns compatriotas ainda o veneravam como João de Barros, que se
tornou seu compadre, e André de Resende, o grande amigo, que endereçou-lhe duas
epístolas em versos – De uita aulica e Ad eundem. Na primeira falava dos
inconvenientes de viver muito próximo dos governantes, como em breve o próprio
historiador haveria de descobrir.

Logo que chegou foi designado para preceptor do infante D. João, pai do futuro
rei D. Sebastião, mas, para sua infelicidade, era confessor do jovem príncipe o jesuíta
Simão Rodrigues, seu companheiro de quarto em Pádua. Fosse por inveja ou por temer
a influência do pensamento de Góis sobre o infante, no mesmo dia o padre formaliza a
primeira denúncia contra o ex-colega à Inquisição de Évora. Assim o humanista não
assumiu a função, que de qualquer modo não foi transferida ao jesuíta, pois logo
Antônio Pinheiro ficaria encarregado da instrução do infante.

Em 1546 publicou em Lisboa Vrbis Louaniensis Obsidio, a pedido de Carlos V,


a quem dedicou a obra, pois o imperador desejava conhecer pormenores a respeito do
cerco da cidade, bem como da sua prisão. A esta seguiu-se, em 1549, De Bello
_____________________
1-Foi Viglius quem relatou a George Hoermann, feitor dos Fugger sobre a captura de Góis pelos franceses. Foi
professor em Pádua e também trabalhou com Rutger Rescius e Petrus Nannius no colégio de Busleiden, em Lovaina.
Teve um papel decisivo na revolução do pensamento jurídico ocidental. (conf. HIRSCH, 2002, p. 73)

64
Cambaico Ultimo Comentarii Tres, sobre o segundo cerco de Diu, em 1546, publicada
em Lovaina e dedicada a D. Luís.

Na dedicatória ao Infante D. Luís, que precede a edição do De Bello Cambaico


Ultimo julga haver razões para dar seu contributo à obra que outros adiavam e que a ele
lhe era solicitada por amigos. (NASCIMENTO, 2002, p. 143)

Até 1548, permaneceu em Alenquer, enquanto ajudava a esposa, acostumada aos


ambientes suntuosos dos Países Baixos, a adaptar-se ao modo de vida simples dos
portugueses. De lá enviou ao monarca um exemplar da Urbis Louaniensis Obsidio, e
com ele manteve permanente comunicação, sempre atento ao que se passava no país,
aconselhando o rei, quando necessário, em assuntos comerciais e financeiros.

Em 1548 é nomeado interinamente guarda-mor da Torre do Tombo, em


substituição ao filho do cronista Rui de Pina, Fernão de Pina, de quem herdaria não
apenas o cargo, mas também o destino funesto. Só seria confirmado no posto em 1550,
quando sai a sentença condenatória do seu antecessor, que regressou definitivamente à
Guarda. Foi o ano também da segunda denúncia feita por Simão Rodrigues, desta vez à
Inquisição de Lisboa, para onde então se transferira com a família.

De volta à Corte, resgata o estilo de vida a que se acostumara durante sua longa
permanência na Europa do norte, e tanta ostentação escandalizou algumas pessoas. Ia à
missa todos os domingos e nos dias de festa, mas sempre atraía a si todas as atenções,
pois fazia-se acompanhar de um lacaio, um pajem e um escravo, que transportava uma
cadeira. Além do mais sua, casa era freqüentemente visitada por estrangeiros aos quais
ele prodigalizava sua hospitalidade, à maneira do que aprendera na Europa. Segundo
Antônio Álvaro Dória, teria sido essa conduta e as opiniões heterodoxas distraidamente
emitidas em conversas informais que levaram à segunda denúncia, que mais uma vez
não resultou na sua prisão, como desejava o inimigo jesuíta. Nesta ocasião era
Inquisidor Frei Jerônimo de Azambuja, tio de Damião, e a maioria dos seus biógrafos
atribui a esse fato o largo espaço de tempo decorrido entre a última denúncia e a sua
prisão em abril de 1571.

65
Em 1554, publica em Évora, Vrbis Olisiponis Descriptio, dedicando-a ao
Cardeal D. Henrique, que já convencido de suas qualidades de historiador demonstradas
nas suas produções latinas, encarrega-o, em 1558, após a morte de D. João III, de
escrever em vernáculo a Crônica de seu pai, o rei D. Manuel, que foi concluída em
1567. D. Henrique, então Regente, e alguns representantes da nobreza, protestaram
contra algumas declarações contidas (ou omitidas) na crônica. O Cardeal, porque nada
havia na obra que o engrandecesse, e os nobres, que eram, sobretudo, os da Casa de
Bragança, à qual também pertencia o Cardeal, porque, principalmente na Crônica do
Príncipe D. João, escrita por iniciativa do autor e publicada no mesmo ano, sentiram-se
ofendidos com o relato de alguns episódios.

Lembremos que no reinado de D. João II, alguns nobres da Casa de Bragança,


que se insurgiram contra a concentração de poder nas mãos do rei, foram executados, e
o clima de insegurança só foi definitivamente abrandado com a subida ao trono de D.
Manuel, irmão de D. Leonor.¹

Correspondendo-se em latim² e produzindo em latim as obras que passou a


escrever por instâncias das amizades que foi constituindo, descreveu para os europeus
as aventuras de além-mar. Por isso mesmo seu estatuto de humanista ultrapassa o
domínio de sua produção intelectual, porque ele praticou e viveu o humanismo,
materializando em sua atividade secular e em sua militância religiosa os legítimos ideais
do movimento. E nas palavras de Joaquim Veríssimo Serrão (2002) “torna-se na
verdade difícil encontrar no nosso século XVI quem melhor tenha simbolizado os
grandes ideais do Humanismo, na ampla dimensão européia em que forjou o seu
espírito.”³

Segundo sua autorizadíssima biógrafa, Mrs. Elizabeth Feist Hirsch, “logo a


seguir ao título de humanista, aquilo de que Damião de Góis mais gostava de ser
chamado era de ‘músico’”.

_____________________
1-Sabe-se que D. João II pretendia que seu filho bastardo D. Jorge herdasse a coroa. (N. A.)
2-É bastante representativa da época e da sua vida pessoal as muitas cartas escritas ou recebidas por Damião de Góis:
em português, são em geral dirigidas ao rei, e em latim, objeto da tese de Doutorado do Prof. Amadeu Torres
intitulada Noese e crise na epistolografia goesiana, foram trocadas com outros humanistas e figuras eminentes com
as quais se relacionou em suas viagens a serviço da Coroa portuguesa. (N. A.)
3-Op. cit. p. 170
66
...foi músico e deleitava-se com a arte do canto, e muitas vezes organizou serões
em sua casa de Lisboa, a que assistiam estrangeiros que o visitavam; durante esses
serões ele executava motetes por si compostos. (DORIA, 1944, p. 13)

Com efeito, dedicou-se à música com a mesma devoção que aos estudos
humanísticos, e não apenas como ouvinte, mas como instrumentista e compositor, visto
que dele perduram três motetes, que mereceram figurar em grandes antologias musicais
da Europa quinhentista.: Surge propera, amica mea, incluído no “Tenor Cantiones”
(Augsburgo, 1545-1546); Ne laeteris, inimica mea, no “Dodecachordon”, de Henrique
Glareanus (Basiléia, 1547) e In die tribulationis meae, inserido no Livro II dos “Moteti
a tre voce da diversi eccelentissimi Musici composti” (Veneza, 1549) e nas coletâneas
de Nuremberg (1559). A famosa biblioteca musical de D. João IV, restaurador da
independência portuguesa, no século XVII, possuía outra coleção de motetes e canções
do século XVI, a 3, 4, 5 e 6 vozes, de autoria de Damião de Góis, ao lado de
composições de Josquin, Champion, Ricafort, e outros.

D. Manuel, que também era músico, como um típico monarca da Renascença,


estimulava e patrocinava muitas atividades culturais, assim como sua irmã D. Leonor.
Foi da vivência na Corte, assistindo às peças de Gil Vicente que nasceu, não apenas o
gosto do humanista pela franca discussão de controvérsias religiosas – mesmo antes de
ouvir falar de Erasmo –, mas também o seu amor pela música, presente nos “autos” que
regularmente eram apresentados no ambiente palaciano. É o próprio Góis quem conta
que D. Manuel procurava atrair à Corte os melhores músicos da Europa e de além-mar,
e que o rei apreciava a música não apenas nas suas horas de lazer, mas pedia também
aos seus músicos que tocassem enquanto trabalhava ou fazia suas refeições.

Foi assim que desde cedo, Damião de Góis manteve contato com diversos
instrumentos musicais e distinguiu-se como executante de clavicórdio, de címbalo e de
cítara. Quando foi para Antuérpia já admirava os famosos músicos flamengos
Ockeghem (pai do contraponto) e Josquin de Près¹, e procurava seguir-lhes os passos
em suas composições. Muito cedo também manifestou a preferência pela polifonia, da
_____________________
1-“Nestes dois compositores Góis encontrou heróis musicais [....] admirava-os tanto que os homenageou em dois
encômios: um deplorando que a voz de ouro de Ockeghem se tivesse silenciado, e outro celebrando Josquin como
sendo a glória dos templos e das musas.” (HIRSCH, 2002, p. 53)
67
qual muitos representantes freqüentavam os saraus do Palácio, pois esse gênero de
música se havia popularizado na Espanha, especialmente em Salamanca e na corte de
Carlos V. Nesse particular não se identificava com Erasmo, que considerava a música
polifônica como anti-religiosa. A Igreja católica (o Concílio de Trento aprovava com
reservas essa forma musical) e, nos meios protestantes, Calvino faziam oposição à
polifonia, enquanto Lutero, grande admirador de Josquin, estimulava o canto, dentro e
fora da Igreja¹, por isso desde a Reforma ouvia-se bastante música polifônica nas Igrejas
protestantes. As canções populares do poeta francês Clement Marot (que Góis
conheceu em Pádua e recomendou ao jurista Bonifacius Amerbach) foram das mais
apreciadas entre os evangélicos.

Erasmo, equivocadamente, achava que não havia lugar para a música polifônica
no ambiente litúrgico, porque, além de tornar a palavra subalterna, ela não existia no
tempo dos gregos e dos romanos. Mas, como Mrs. Hirsch afirma em seguida, a
familiaridade de Góis com a literatura latina teve certo impacto nas suas idéias básicas
sobre a música. Esse comentário como se pode ver elucida duas questões de relevo
nesse estudo: primeiro que Damião de Góis, de fato, estudou os clássicos; segundo, que
a polifonia, mesmo não tendo sido praticada pelos gregos, era conhecida pelos
romanos², que como sabemos eram muito devotados a Euterpe e Erato³.

Johann Ottinger, professor e poeta alemão oferece-nos um comovido


depoimento sobre o talento musical do humanista: que “o marfim soava docemente sob
o melodioso polegar e que a jovem musa levaria a Deus o nome de Góis”4. Também
Nicolau Clenardo dava notícias em Portugal do admirável talento de Góis como músico.
Grapheus também tocava vários instrumentos e nisso, principalmente, consistiu a
perfeita identificação entre os dois.

Na Prússia conheceu Paulus Speratus em 1531, que era também um músico


exímio, e recebeu de Damião, anos mais tarde, um exemplar de uma composição

_____________________
1-“Lutero, com seu grande amor pela música, não só tinha inspirado as congregações a cantarem hinos dentro das
Igrejas, como tinha criado fora delas uma atmosfera em que se encorajava o cantar por gosto...” (HIRSCH, 2002, p.
55)
2-CANDÉ, 2004, p. 79.
3-Duas das nove Musas, ambas relacionadas à música. (N. A.)
4-HIRSCH, 2002, p. 56.
68
musical com as palavras “ao excelentíssimo bispo da Pomerânia.”

Em casa de Erasmo, em Friburgo, conheceu e compartilhou com Glareanus seus


interesses humanísticos e musicais, e mais tarde, em 1547, quando foi publicado o seu
Dodecachordon o humanista suíço havia incluído na coletânea um dos motetes de Góis,
conforme havia prometido, como prova de seu afeto eterno. André de Resende inclui-se
entre os muitos amigos que o consideravam um dos mais importantes músicos
portugueses.

Barbosa Machado atribui também a Góis a autoria dum Tratado da Teoria da


Música de que não há notícia.

Quando foi residir em Lisboa, Damião de Góis levou consigo alguns hábitos
adquiridos em sua vivência pelo norte da Europa, entre eles o de terminar as animadas
reuniões que promovia em casa com música, tanto missas, quanto motetes cantados a
várias vozes, que seu vizinho João Carvalho, ouvia incomodado, porque a polifonia já
não era familiar aos portugueses, e aquela “música estranha” acabou sendo alvo de
suspeita e denúncias ao Santo Ofício.

O luxo da Corte de D. Manuel estimulara no jovem pajem o gosto por outras


formas de arte. Tendo assistido ao ousado programa de construção¹ encetado pelo
monarca, aprendeu a reconhecer a qualidade e a autenticidade de um trabalho de criação
e acabou por se tornar também um grande colecionador de obras de arte. Por isso o
infante D. Fernando, famoso por seu apreço pela ciência e pelas belas artes, incumbiu-o
de encomendar ao iluminador Simão de Bruges uma genealogia dos reis de Portugal e
da Espanha, desde Noé até D. Manuel, seu pai. Pela grande admiração que tinha pelo
artista, Damião encomendou para si mesmo um livro de Horas de Nossa Senhora e mais
tarde ofereceu-o, entre muitos outros presentes à rainha D. Catarina.

Nas palavras de Antônio Álvaro Dória, Damião de Góis “foi na realidade o tipo
acabado do uomo universale tal como o concebiam os renascentistas.”

_____________________
1-“...que só foi igualado pela reedificação de Lisboa, pelo Marquês de Pombal, após o terremoto de 1755.” (HIRSCH,
2002, p. 15)
2-DÓRIA, 2002, p. 13)
69
Tornou-se um colecionador aficcionado de quadros e acabou por se distinguir
também pela sua coleção de obras de grandes artistas contemporâneos. É
principalmente na documentação relativa ao processo da Inquisição que aparece um
inventário das inúmeras obras de arte que possuía, especialmente porque representavam
temas sacros e podiam ser o testemunho de sua fé, pois foram generosamente doadas a
pessoas do clero, da nobreza e a igrejas.

Quando Damião de Góis chegou a Antuérpia, Albert Dürer já se retirara para


Nurenberg, mas havia em poder dos feitores João Brandão e Rui Fernandes de Almada
uma bela coleção de quadros adquiridos do artista, que muito devem tê-lo
impressionado, por isso supõe-se que o retrato que faz parte da coleção Albertina, em
Viena, se realmente representa o humanista, e se realmente é uma obra de Dürer, tenha
sido feito fora de Antuérpia. Mas o que é certo é que ele mesmo possuía um retrato de
Erasmo de autoria do artista alemão.

Quentin Metsys, já era famoso em Portugal, pois D. Manuel tinha designado,


certa vez, o agente Nunes Sylvestre para adquirir alguns quadros desse pintor flamengo.
Além disso, porque foi mestre de Eduardo de Portugal em seu atelier de Antuérpia,
onde residiu até sua morte, em 1530. Góis, portanto, já conhecia sua obra antes de
conhecê-lo na Flandres, e foi, outra vez, a música e a admiração por Erasmo que
permitiram ao português acrescentá-lo ao rol dos seus muitos amigos no estrangeiro.
Dele Damião de Góis possuía um Cristo crucificado e uma Virgem Maria orando aos
pés da cruz. Ambos inspiraram versos do poema que Grapheus dedicou ao discípulo.

Damião de Góis presenteou o núncio Monte Pulciano com duas de suas telas da
autoria de Jeronimo Bosch: A tentação de Job e as Tentações de Santo Antão, sendo que
a segunda encontra-se hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Do mesmo
artista possuía uma Coroação de Cristo, pela qual teria pago um altíssimo valor em
virtude de sua “perfeição, originalidade e caráter inventivo” e que, na volta a Portugal,
doou à Igreja da Várzea. O “São Jerônimo” de Bosch encontra-se hoje no Museu das
Janelas Verdes e outros da mesma coleção, na biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
para onde foram trazidos quando a família real se transferiu para o Brasil.

70
3.4-Um “europeu” em Portugal.

Em Lovaina pagou o alto preço de ser estrangeiro. De volta a Portugal era


chamado de “fidalgo flamengo” e considerado estrangeiro também em sua pátria.
Contudo era português de nascimento e de coração e muito lhe deve Portugal pela
habilidade e talento com que abriu mercados ou fortaleceu as relações comerciais do
império lusitano com a Europa, além de deixar registrada para a posteridade e para o
mundo a gesta dos portugueses.

Com exceção de D. João III, que não hesitou em desembolsar muitos ducados
para resgatá-lo das mãos dos franceses, e que sempre o cumulou de mercês, em
reconhecimento pelos muitos e valiosos serviços prestados ao reino, poucos foram os
que no seu regresso à pátria conservaram na memória ou fizeram saber quem fora
aquele homem no contexto europeu face aos Descobrimentos e a expansão de Portugal.

Diogo Pires escreve a Paulo Jóvio admoestando-o quanto a incompreensíveis


silêncios seus no que respeitava aos Descobrimentos lusos e lamentando, quase
profeticamente, o regresso de Damião à pátria, que nunca ou raramente soube honrar os
seus heróis. (TORRES, 2002, p. 202)

Além de não ter sido festejado na chegada, o próprio rei logo declinou da
decisão de nomeá-lo mestre e guarda-roupa do príncipe herdeiro, após a primeira
denúncia de Simão Rodrigues à Inquisição de Évora. O “herege”, que deveria ter ficado
pela Europa, estava de volta e ainda vinha-lhe roubar um cargo que ele decerto gostaria
de acumular com o de confessor do infante. Portugal havia mudado, e o rei, outrora
pragmático e de espírito arejado, também tinha mudado, pois, cedendo a pressões da
rainha, e de alguns setores do clero e da nobreza, instalara em vários pontos do seu
vasto império o sinistro tribunal.

Perdido o cargo, Damião de Góis retirou-se para sua cidade natal, onde
permaneceu algum tempo, dando continuidade à sua produção humanística e delas
prestando conta ao monarca. Algumas vezes – já que a confiança que sempre mereceu
em outras questões não fora abalada pela denúncia do jesuíta – intercedia junto ao rei
em favor de missões comerciais estrangeiras quando estas encontravam

71
dificuldades nas transações com a Coroa. Para isso contribuía sua larga experiência em
assuntos econômicos e financeiros, sua fama de hábil negociador e o prestígio de que
ainda desfrutava junto a D. João III.

Em 1550, quando Damião já estava exercendo suas atividades como Guarda-mor


da Torre do Tombo, D. Antônio Pinheiro, bispo de Miranda – que o substituiu como
mestre das letras do príncipe herdeiro, em 1545 – foi designado para a função de
cronista-mor do reino, que, entretanto, não conseguiu desempenhar satisfatoriamente.
Quando mais tarde o Cardeal D. Henrique o incumbiu de escrever a crônica de D.
Manuel, Damião de Góis mencionou o fato no capítulo XXVII, o que transformou o
clérigo, ferido no seu orgulho, em mais um dos muitos inimigos que haveria de
colecionar em sua pátria.

Outra razão para que o futuro cronista de D. Manuel escandalizasse seus


conterrâneos era a ostentação com que circulava pelas ruas de Lisboa, mesmo quando ia
à missa, atitude que só era admissível para o monarca, como tantas vezes se viu
acontecer no tempo de D. Manuel, que Góis emulava em suas andanças pela Europa,
apresentando-se à altura do rei rico e poderoso que deveria representar junto aos outros
reis.

A morte de Joana van Hargen pouco depois de 1567, deixou mais solitário o
humanista europeu em terras portuguesas. Era nos serões musicais que promovia em
sua casa, sempre que nela hospedava os estrangeiros que vinham a Portugal, que Góis
reencontrava o ideal de convívio e o aconchego a que se acostumara na Flandres e que
nunca haveria de experimentar em seu próprio país.

3.5-Cronista ou historiador?

Para Nestor Fatia Vital, Damião de Góis é “o último a ser integrado na notável
galeria dos cronistas medievais portugueses”¹, pois no século XVI se verificou a
transição do cronista para o historiador, na acepção moderna do termo e do ofício. O
_____________________
1-Conf. VITAL, 2002, p. 45.
72
desenvolvimento do conceito de historiografia atravessou as obras de Gomes Eanes de
Zurara, cronista de D. Afonso V, para quem “os feitos dos grandes homens eram dignos
de louvor e de serem lembrados”¹, e continuou no século XVI, com os escritos de Rui
de Pina, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e também do nosso humanista.

Damião de Góis foi grande admirador e um autêntico seguidor de Fernão


Lopes², considerado “o pai da historiografia” e o mais produtivo e consultado3 cronista
português, para cuja autoria reivindicou muitas crônicas assinadas por Rui de Pina,
afirmando que este
se limitara “a utilizar as crônicas do seu antecessor, dando-lhe apenas novo estilo, sem
alterar a substância.”4

Sua opinião sobre Rui de Pina é abonada “pela sua larga cultura, sua experiência
cosmopolita, sua simpatia humana por gentes de outras raças, que o tornaram capaz de
sair do âmbito de conceitos e hábitos mentais da corte em que vivia e de avaliar na justa
medida o interesse de Fernão Lopes, representante de um mundo inteiramente diferente
do seu.”6

Foi o renovador da arte da história do qual só encontramos um precursor: Fernão


Lopes, evidentemente, o velho cronista de D. João I, que também não poupava censuras
quando as achava oportunas, pois era cultor da verdade e não um mero incensador de
reis. Damião de Góis pode, pelas demais razões evidentes em seus escritos, ser
considerado um introdutor do espírito crítico na história, que muito mais tarde haveria
de reinar. E foi, com efeito, na corte de D. Manuel, estudando as antigas crônicas, que
começou a ter uma concepção da historiografia como ciência.

_____________________
1-“...o interesse de Portugal em conservar um registro geral dos seus reis só data do século XV.” (HIRSCH, 2002, p.
229)
2-Fernão Lopes parecia esquecido nos primeiros anos do século XVI, e a admiração manifesta de Damião resgatou a
dignidade do velho cronista. (conf. MAGALHÃES, 1993, p. 17)
3-“Damião de Góis foi o primeiro a identificar Fernão Lopes como sendo o autor duma História Geral dos Reis
Portugueses.até D. João I. [....] com base em fatores de evidência interna como organização e estilo.” (Idem, p. 23)
4-Conf. VITAL, 2002, p. 45.
5-Idem.

73
Mas acima de tudo foi um espírito sumamente tolerante e a quem todos os
excessos repugnavam por lhe parecerem indignos de seres pensantes. Com esse
perigoso estado de espírito – perigoso para a época em que viveu – se abalançou a
escrever a Crônica de D. Manuel, que levantou, quando publicada, enorme celeuma
entre certos setores palacianos. Góis devia sentir-se desgostoso e profundamente
abalado com o modo violento como lhe receberam em Portugal a crônica do pai do
Regente, quando toda a Europa culta lhe celebrava as obras latinas que eram, antes de
mais, obra eminentemente patriótica e levaram ao conhecimento de todos os europeus
cultos os feitos dos portugueses na Índia. (DORIA, 1944, p. 14)

Tanto a crônica de D. Manuel, quanto a de D. João II, em que aparece a


narrativa da tomada de Alcácer Ceguer, são abundantes de informações inéditas, mas a
de D. Manuel oferece um texto mais vivo e incisivo nas descrições de acontecimentos e
cenas, devido ao seu testemunho direto, desde a tenra idade até a morte do monarca.

“É no cargo de guarda-mor, que Damião de Góis aperfeiçoa, em contato com os


documentos, o seu ofício de historiógrafo” (Neves, 2002, p. 4), por isso, no ano seguinte
à morte de D. João III, o Cardeal D. Henrique, regente até a maioridade de D. Sebastião,
encarrega-o de escrever a crônica de D. Manuel. Ele que fora também testemunha
ocular de vários acontecimentos do reinado do rei “Venturoso”, além do pendor para a
historiografia, já demonstrado em sua obra latina, iria então escrever sua primeira obra
em português. Na tentativa de selecionar e analisar criteriosamente os fatos com
potencial histórico, em busca da verdade possível, de avaliar a procedência dos
testemunhos e as fontes documentais, seu texto de homem maduro, de historiador
escrupuloso, torna-se por vezes desprovido do frescor e do entusiasmo presentes nas
obras da juventude, por isso os leitores da época, habituados aos encômios e à
bajulação, não entenderam nem apreciaram a crônica, que sofreu muitas retificações
antes de ser trazida a lume.

Evidentemente Góis não poderia considerar nunca o seu mister de historiador


como simples anotar de anedotas à maneira de Garcia de Resende. A isso se opunha a
formação do seu espírito, as suas idéias e a sua cultura. Opunha-se-lhe sobretudo o
seu conceito acerca da tolerância que o fazia aceitar como aproveitáveis todos os dados
fosse qual fosse a sua origem, depois de passado pelo severo crivo da crítica. Como
historiador não seguiu na esteira de seu compadre (João de Barros), que se deixou tentar
74
pelo rendilhado da forma, detendo-se com deleite, a lavrar períodos grandiosos, à
maneira de Tito Lívio. Homem do seu tempo, o que acima de tudo o interessava era,
antes de mais, a verdade, ou, pelo menos, aquela parcela de verdade que é dado ao
homem alcançar. (DORIA, 1944, p. 14)

A isenção, objetividade e comprometimento com o mister do historiador ficam


patentes na atitude crítica que assume em relação a alguns episódios da vida dos dois
monarcas, cujos reinados veio mais tarde a historiar, como no caso da expulsão e da
conversão forçada dos judeus espanhóis. Também demonstrou seu apreço pela verdade
histórica no De Bello Cambaico Ultimo Comentarii Tres, em que assim se manifesta
contra a crueldade praticada pelos portugueses após a vitória:

Foi sem conta o número de mortos – homens, mulheres e crianças sem distinção
– porque os nossos, endurecidos pelos grandes sofrimentos e mais irritados agora com a
perda dos seus, não quiseram ouvir palavras de perdão. Manda a verdade que se diga
que nem só nas crianças ou nos ventres das mulheres grávidas se cevou o furor dos
soldados, mas até mesmo nos próprios animais. (LAVAJO, 2002, p. 26)

Um Livro de Linhagens que escreveu, dando continuação ao do Conde D. Pedro,


desapareceu em 1625¹; talvez pelas afirmações nele contidas, também causou-lhe
muitos dissabores.

Apesar de nunca ter procurado esconder o lado mais sombrio da personalidade


do próprio rei que o criou e educou, toda essa sua objetividade às vezes esbarrava na
atração por episódios míticos e na tendência da época para misturar fatos e lendas, à
maneira dos antigos. Assim, muitas vezes faz relatos de milagres sem o mínimo
espírito crítico, como ao narrar a aparição da imagem dolorida de Cristo, antes de D.
Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, iniciar o ataque aos mouros em 1147.

_____________________
9-RAMOS, 2002, p. 55.

75
Temos outro exemplo do fascínio de Góis por coisas sobrenaturais. Fala da
erva Bétel como sendo uma planta “miraculosa” e “sagrada” capaz de curar toda a
espécie de males, além do fato de ser usada como tabaco. (Deu uma amostra dela ao
embaixador francês em Lisboa, Nicot, que a levou para a França e se tornou responsável
pelo termo “nicotina”). (HIRSCH, 2002, p. 233)

Mas apesar de incorrer em “erros” cometidos por muitos espíritos iluminados no


que se refere a certas contradições, procurou com determinação estabelecer relações
entre os fatos e com a maior exatidão possível1. Além do mais, suas crônicas abundam
em citações ou inserções de cartas e documentos que atestam a seriedade de sua
pesquisa aos arquivos. Também consultava as obras de cronistas contemporâneos como
as Décadas de João de Barros e a História de Descobrimento e Conquista da Índia
pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda. Para as referências sobre a África,
cita também o árabe João Leão, a que nos referimos em nota no capítulo sobre a Etiópia,
e que é fonte de consulta obrigatória de todos os interessados na história africana.

Já no seu tempo, suas crônicas serviram de fonte para escritos de outros autores
portugueses. Jerônimo Osório, no seu De Rebus Emmanuelis, que dialoga com a
crônica goisiana², também relata o massacre de judeus havido durante o reinado de D.
Manuel. Este e D. João II são apresentados por Samuel Usque, autor de Consolaçam às
tribulações de Israel, como “inimigos do povo eleito”, embora tanto um quanto outro
rei, nem sempre, tenham agido segundo suas próprias convicções. Mesmo assim, D.
Manuel I não deixou de receber severas, porém cautelosas censuras dos dois humanistas
portugueses que melhor se ocuparam do assunto.

Mas as duas crônicas provocaram a indignação dos Braganças, cujas referências,


sobretudo na Crônica do Príncipe D. João não são das mais lisonjeiras. O Cardeal D.

_____________________
1-“No que respeita aos empreendimentos do Infante Dom Henrique, Góis já não aceitou que tais feitos fossem de
inspiração divina. Enumerou todos os autores que o Infante havia lido, entre os quais se contavam Heródoto,
Estrabão, Plínio e Pompônio Mela, que lhe despertaram a curiosidade para as navegações.” (TAVARES, 1999, p.
116)
2-Essa obra em latim de Jerônimo Osório sobre o reinado de D. Manuel, baseada na crônica de Damião de Góis,
tornou-o famoso no estrangeiro. (conf. HIRSCH, 2002, p. 218)

76
Henrique, também não aprovou a escrupulosa objetividade de Damião, não só por ser
mesmo ele um Bragança, mas também porque sua expectativa de ser agraciado com
palavras de louvor não foi devidamente satisfeita, sendo muito superficiais as
referências do historiógrafo ao Cardeal-Inquisidor¹.

Cronista, historiador ou simplesmente humanista, a avaliação da obra de Damião


de Góis não nos permite enquadrá-lo em nenhuma das categorias do humanismo que
predominaram no século XVI: o humanismo cristão e o humanismo literário. Mas sua
atitude diante do fato histórico é assinalada pelos teóricos modernos como atributo
desejável em todo aquele que se pretender historiador.

3.6-A denúncia, o processo, o fim.

Quando Damião de Góis foi recolhido ao cárcere da Inquisição de Lisboa, em 4


de abril de 1571, Portugal já tinha instalados tribunais do Santo Ofício em Lisboa,
Coimbra, Évora e Goa. Segundo o Regimento do Conselho Geral, do qual existe um
exemplar no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IAN/TT), datado de
março de 1570:

Os inquisidores não mandarão prender pessoas graves (como senhores de título


ou pessoas religiosas) principalmente sendo pessoas notáveis, nem pessoas que pela
qualidade delas ou por serem muitas haja a sua prisão de fazer alvoroço, ou movimento
grande em alguma cidade ou vila, sem fazer primeiro saber e mandarem as culpas ao
Inquisidor Geral e ao Conselho, onde se determinará o que se deva fazer nos tais casos
[....] (BAIÃO, 1906, p. 12)

Em 31 de março de 1571, considerando já serem suficientes as provas, o


inquisidor Manuel Quadros decretou a prisão do fidalgo, ainda em pleno exercício das
funções de arquivista-geral do reino, seguramente com o conhecimento do Cardeal D.
Henrique, que era na ocasião o Inquisidor Geral. Mas essas provas, até o momento
_____________________
1-Entre os feitos de que o Cardeal mais se orgulhava contavam-se as suas atividades como Inquisidor-Mor do reino, mas
dificilmente se poderia esperar que Góis, que já tinha sido denunciado ao Supremo Tribunal, louvasse a Inquisição “por ter
condenado muitos hereges [....] As referências às atividades de D. Henrique foram acrescentadas na edição revista, mas não pela
mão de Góis.” (HIRSCH, 2002, p. 246)

77
da prisão, consistiam apenas nas denúncias de Simão Rodrigues, feitas pela segunda vez
há vinte e um anos, sem que tivessem, na ocasião, surtido qualquer efeito.

O regimento de 1552 refere a esse propósito no seu capítulo vigésimo quarto:


“Por uma só testemunha não se procederá à prisão, ordinariamente, salvo quando
parecer aos inquisidores que é caso para isso e que a testemunha é pessoa de crédito e
que fala a verdade, tendo primeiro tomado informação dela conforme o direito.”
(BAIÃO, 1906, p. 36)

Um certo Manuel Travaços, cristão-velho, que em 11 de março de 1571 fora


condenado como luterano e saíra relaxado em “auto-de-fé”, contou aos inquisidores em
um dos interrogatórios que em conversa tida com um Álvaro Fernandes, ouvira-o dizer
que Damião de Góis lhe confidenciara que “se os luteranos alemães estivessem em
Portugal, fariam do Cardeal o que quisessem”, dando a entender que seriam capazes de
transformá-lo em luterano, o que foi confirmado em 9 de abril por um outro, de nome
João de Barros. O processo de Travaços foi considerado por Baião (1919)¹ como a
causa imediata do desarquivamento das antigas denúncias de Simão Rodrigues, ainda
que não haja nos autos do processo de Góis qualquer alusão ao assunto.

A primeira denúncia, feita ao inquisidor Pedro Álvares Paredes, ocorreu no ano


do seu retorno a Portugal, chamado por D. João III, e a segunda, cinco anos depois, ao
inquisidor Jerônimo de Azambuja, que era seu parente de sangue. Mas as principais
razões para que até então a máquina do Santo Ofício não tivesse alcançado Góis são,
sem dúvida porque ele era tido em alta conta pelo então monarca e porque, ao que se
sabe até 1554, existia uma grande amizade entre Damião de Góis e o Cardeal, tanto que
neste ano, a este último foi dedicada a Urbis Olisiponis Descriptio.

Mas em 1571, D. João III já havia morrido; dos seus maiores amigos, só André
de Resende ainda estava vivo, porém, ao que se supõe, muito doente. A amizade com o
Cardeal ficara abalada depois da publicação da crônica de D. Manuel, e D. Sebastião,
que subira ao trono em 1568, era muito jovem para que entre os dois pudesse haver
_____________________
1-Op. cit. p. 21.
78
qualquer afinidade, além do mais, o rei vivia mergulhado em sonhos de grandes
aventuras e desejava recuperar os territórios abandonados pelo avô. No ano em que
Góis foi inexplicavelmente libertado, já o inexperiente rei seguiu em sua primeira
expedição à África. Quatro anos depois morreu em combate na mais desastrosa
empresa bélica em que o país se envolveu. Estava aberto o caminho para as pretensões
de Filipe de Espanha que em 1580 se tornou rei de Portugal.

O processo de Damião de Góis teve início, portanto, quando a nação lusa se


encontrava em franca decadência cultural, política e social, que se anunciara desde a
década de 30, como bem observou, na época, Nicolau Clenardo¹. E a nova ortodoxia,
definida no Concílio de Trento e aplicada pelos jesuítas, mais difícil tornava a situação
do acusado, que não gozava da simpatia dos membros da Ordem, apesar do respeito e
admiração que sempre teve por Inácio de Loyola.

Durante o processo, Góis ficou em uma cela individual, porém, como os demais,
não tinha privilégios. Logo no dia seguinte ao encarceramento, foi chamado à presença
dos inquisidores Jorge Gonçalves Ribeiro e Simão de Sá Pereira e, de forma
desafiadora, inquiriu-os sobre as razões do seu encarceramento, se é que tais existiam,
ao que lhe responderam que ninguém era preso antes de ter suas culpas muito bem
examinadas e que o mesmo se havia feito no caso dele, restando-lhe assim “confessar
toda a verdade, com arrependimento, para poder ser credor da misericórdia do
Tribunal”.

Entre a data de sua prisão e a leitura da sentença logo após a abjuração numa
sala do Palácio dos Estaus, em 6 de dezembro de 1572, Damião de Góis foi ouvido
diversas vezes. Nos intervalos dos interrogatórios inúmeras testemunhas desfilaram
perante os inquisidores. A primeira a ser ouvida foi seu próprio genro, e tesoureiro do
Cardeal D. Henrique, Luís de Castro, que se apresentou à mesa para declarar que o
sogro certa vez havia declarado que a Igreja tinha tido muitos papas tiranos e hipócritas
que muito mal trouxeram à nossa santa fé. E que também criticava os jesuítas por não
_____________________
1-“Com seu jeito irônico, pintou um quadro divertido mas deprimente do desprezo generalizado pelo trabalho. As
pessoas abastadas possuíam tantos escravos que se dispensavam de fazer a mais simples tarefa manual.” (HIRSCH,
2002, p. 249)

79
guardarem a pobreza como fora instituída pelo seu fundador que ele considerava um
padre “muito virtuoso e santo”. O segundo a ser ouvido foi o poeta e fidalgo Pero
Andrade Caminha, que também compareceu voluntariamente, para fazer uma acusação.
Contou que em conversas no Paço da Ribeira, Góis teria comentado, referindo-se ao
infante D. Duarte, “que na morte não havia quem não dissesse quatro parvoíces”.¹

A estes seguiram-se Antônio Pinheiro (não o bispo), tesoureiro das tapeçarias do


rei, que fora convocado para responder se sabia de alguém que não fosse à missa, ao que
ele respondeu que o réu não freqüentava a Igreja de Santa Cruz, mas que o via “nos dias
de preceito acompanhado de um escravo, um pajem e um homem de esporas, dizendo
que ia ouvir missa em S. Bento, onde tinha dois filhos frades” (PAIVA, 2002, p. 24); D.
João de Lencastre, Duque de Aveiro, ouvido em casa por estar acamado, quando
declarou que Simão Rodrigues – que na ocasião se encontrava em Toledo – lhe dissera
que Góis era tido por suspeito na Itália e na França.

Também foram ouvidos: D. Maria de Távora, Manuel Correia de Meneses, Da.


Briolanja, sobrinha de Damião de Góis, o marido desta, Antônio Gomes de Carvalho,
D. Helena Jorge, mãe de Dona Briolanja e, finalmente, D. Catarina de Góis, filha do
réu. O primeiro porque ouviu dizer, por um certo Bastião de Macedo que temia que
prendessem Damião por luterano, porque ele era muito dado a comer e beber e também
às coisas da carne. Dona Briolanja, porque certa vez estando grávida teve desejos de
comer carne em dia defeso e que o tio além de lhe mandar servir, também serviu-se ele
mesmo, alegando que “o que entra pela boca não faz nojo”. Mas o marido dela disse
que Góis era muito bom cristão e que nunca o vira praticar qualquer ato contra a santa
fé católica. Dona Catarina, contrariamente às declarações do marido, defendeu o pai,
mas a maioria dos filhos do humanista lhe foi hostil naquele momento, e apenas
Ambrósio, que assumiu a direção da família, visitou o pai e lhe ofereceu apoio. Os
testemunhos prestados por pessoas de sua própria família encheram Damião de Góis de
desgosto. Conforme Baigent e Leigh, p. 86, os métodos usados pelo Tribunal
levavam muitas vezes os próprios familiares a se apresentar fazendo acusações como
_____________________
1-PAIVA, 2002, p. 24.
80
medida de autopreservação. Por outro lado o genro Luís de Castro estava em litígio
com o cunhado Ambrósio, por causa da partilha do espólio de Johanna, que incluía
também o valioso acervo de obras de arte do sogro, cuja prisão impedira de comparecer
à audiência e depor em favor do filho.

Durante dezenove meses, humilhado e esgotado pelos maus tratos, cansado de


apelar para que o Cardeal viesse em seu socorro, acometido de uma doença de pele,
“que mais parecia lepra”, Damião de Góis enfrentou o Tribunal, na qualidade de réu
“negativo”¹, e isso, por diversas razões, não interessava aos inquisidores. Até que,
tendo finalmente compreendido que os inquisidores não estavam interessados em nada
que tivesse a declarar ou a apresentar como prova de sua inocência, pois se tratava
claramente de uma trama urdida para destruí-lo, confessou “suas culpas”,
principalmente que era amicíssimo de Erasmo², de cuja ortodoxia nunca deixou de dar
testemunho. E pediu perdão.

Os inquisidores respiraram de alívio e de imediato anotaram à margem deste


passo: “confessa apartarse da nossa santa fee catholica”. É que se o réu se mantivesse
“negativo”, para cumprir o estipulado no Regimento, estavam obrigados a condená-lo
com a pena de relaxamento ao braço secular, o que não evitava, naturalmente, a má
imagem que isso daria do reino no exterior, dada a fama nacional e internacional de
Góis. Aliás, este receio foi mesmo declarado no acórdão de 16 de outubro [....] que a
sua sentença e abjuração não deviam ser feitas em auto-de-fé “visto os inconvenientes
que se consideraram, da qualidade da pessoa do réu ser muito conhecido nos reinos
estranhos pervertidos dos hereges, que disso se podem gloriar, é o que convém à
limpeza e reputação deste reino nas coisas da fé”. (PAIVA, 2002, p. 36)

Dez dias depois deu entrada no mosteiro da Batalha onde deveria cumprir pena
de prisão penitencial perpétua. E Simão Rodrigues, que movido pela inveja e pelo
fanatismo, desde Pádua, desejara ver derrotado aquele que se tornara o seu maior
inimigo, finalmente venceu.
_____________________
1-Aquele que não confessava suas culpas e que ao final, acabava queimado como herege. (N. A.)
2-Erasmo tivera muitos adeptos em Portugal até a Contra-Reforma; entre eles Sá de Miranda foi erasmista de
pensamento, e na comédia Estrangeiros está refletida essa sugestão ideológica. “Verdadeiramente fiel até o fim e
com a coragem suficiente para o declarar, só Damião de Góis, que no próprio cárcere proclamou a sua amizade e
tentou ilibar o amigo da fama de luterano. Os outros esconderam suas simpatias para não serem incomodados...”
(RAMALHO, 1998, p. 79)
81
Numa época da vida em que pela sua larga experiência e ampla cultura,
acumulada em muitos anos de estudo e aplicação, muito ainda tinha a contribuir para a
glória de Portugal (que como acertadamente afirmou um dia Diogo Pires, não honrava
seus heróis) e do humanismo, a intolerância pôs fim à carreira de um homem.

Não se conhecem as reais circunstâncias de sua libertação e de sua morte. Em


janeiro de 1574, dois anos depois da condenação, voltou para sua quinta de Alenquer,
onde no dia seguinte foi encontrado morto.

Segundo o desembargador do Paço, Bernardo Carneiro Vieira de Sousa, Góis


seguia para o mosteiro de Alcobaça (uma simples transferência de cárcere?) e,
pernoitando em uma estalagem no caminho, depois da ceia, mandou os criados irem
dormir e ficou diante de uma lareira, lendo um papel. Caiu em cima do fogo, não se
sabe de que maneira, e amanheceu calcinado, ainda com o papel na mão. Foi sepultado
em Alenquer na capela-mor da igreja de Santa Maria da Várzea, e em sua campa está
ainda hoje o epitáfio que ele mesmo compôs para ser inscrito em sua última morada.

Deo Optimo Maximo:


Damianus a Goes
Eques Lusitanus olim fui,
Europam uniuersam rebus
agendis peragraui.
Martis uarios casus
laboresque subiui
Musa principes doctique
uiri merito me amarunt
Modo alan qkercae ubi natus sum
Hoc Sepulchro condor,
donec puluerem hunc
Excitet dies illa.¹
_____________________
1-“A Deus, Todo Poderoso: Damião de Góis, cavaleiro Lusitano fui outrora. Peregrinei por toda a Europa, em negócios de estado.
Entreguei-me a vários acidentes e trabalhos de Marte. A musa, os príncipes e os homens doutos amaram-me pelos meus méritos.
Repouso neste túmulo, em Alenquer, onde nasci, até que aquele dia acorde as minhas cinzas.” (TAVARES, 1999, p. 201)

82
4. ASCENSÃO, APOGEU E QUEDA DO IMPÉRIO DO PRESTE JOÃO

A lenda do Preste João foi alimentada pela existência de


dois grandes grupos cristãos primitivos isolados da cristandade
ocidental e jamais submetidos à autoridade papal: os coptas, na
região da Abissínia (atual Etiópia, cristianizada desde o século
IV) e os nestorianos que se implantaram na Ásia, atingindo
algumas zonas da Índia (“cristãos de São Tomé”) e da Tartária,
onde foram convertidos os turcos Kereitas e algumas tribos
mongóis. Em todas estas regiões, o lendário rei foi procurado,
tendo sido, na verdade, encontrado um pouco por todas elas.*

*SILVA, 2000, p. 2.
Pode parecer num primeiro momento bastante inesperado que o estudo do latim
nos leve por caminhos tão inusitados como um conhecimento maior da história da
África Subsaariana. Mas logo se desfaz a surpresa, pois, quando descobrimos que, na
Antigüidade, a interação dos povos ia além do vulgarmente conhecido, percebemos que
esse desconhecimento se deve unicamente à existência de uma ideologia nitidamente
excludente no apagamento dos contatos havidos entre o mundo clássico e uma parte
bem maior e mais remota da África, para lá das regiões banhadas pelo Mediterâneo.

Isso nos leva à conclusão – e que merece ser referida antes de iniciarmos este
capítulo – de que a contribuição do latim como língua de cultura não se esgotou nos
textos das leis que o aboliram dos currículos escolares, pois todo o saber e todas as
realizações humanas estão registradas, também em grego, mas principalmente, em
latim, aí incluído o conhecimento das culturas africanas.

4.1-Cultura e civilização.

O conceito de civilização depende, principalmente, do valor semântico que lhe é


atribuído. Pode assemelhar-se ao de cultura e caracterizar o conjunto das realizações de
um grupo e seu modo peculiar de ser, segundo a tradição¹, ou refletir a maneira de um
povo reconhecer-se perante outros povos. Trata-se de duas palavras intraduzíveis – diz
Norbert Elias (1994), quando compara o valor de cada uma para franceses e alemães –,
uma vez que seu sentido pode ser amplo ou restrito, variando ambas conforme o
contexto de utilização. Mas entendemos também que civilização possui um
componente qualitativo, pela sua relação com cidade, desenvolvimento, interferência do
desejo humano consciente de crescimento e de conquistas, enquanto cultura independe
da consciência individual ou coletiva da sua existência, porque ela nasce e se expande
juntamente com o grupo que a manifesta e não pode nem deve ser avaliada
qualitativamente. Cultura seria, portanto, um elemento distintivo de cada civilização.
_____________________
1-“Segundo este uso, cultura é o termo geral que denota a ordem trazida à existência pela agência humana. Tem-se
como cultura tudo aquilo que não surge pronto, como parte integrante da natureza.” (BOAS, 2004, p.74)

84
Não quer isso dizer que civilização, pela sua natureza mais dinâmica e perceptível,
pressuponha transformação para melhor. O próprio conceito de evolução¹ – por isso
preferimos dizer transformação – tem sido aplicado com reservas e senões pelos
pensadores modernos.

Também o conceito de clássico, de origem imprecisa, é um valor não específico


atribuído em um momento particular à produção cultural de uma época ou de uma dada
sociedade.

Povos como gregos, romanos, egípcios e outros mais, ainda que tenham,
igualmente, conhecido a decadência foram tomados como exemplo e modelo de
civilização. Sempre freqüentaram as páginas dos manuais de História e continuam
despertando o interesse de pesquisadores de várias partes do mundo, independentemente
da relevância das constantes descobertas para o conhecimento específico de suas
origens, costumes ou técnicas de produção e dominação. Consideremos que a principal
expectativa diante de qualquer dado novo, seja qual for sua natureza, é que ele sempre
possa lançar luz sobre antigas questões ou dar ensejo ao nascimento de um novo ramo
do saber; apesar disso dificilmente as atenções dos pesquisadores se voltam para o que
se poderia colher da experiência de povos que foram marginalizados pela moderna
ideologia ocidental, ainda que essa experiência esteja registrada nos textos antigos,
evidenciando a interação entre estes povos e aqueles, efetivamente, considerados
históricos.

A proposta deste capítulo é fazer uma breve reflexão quanto ao papel


desempenhado pela lenda do Preste João, imperador da Etiópia, no imaginário da
cristandade européia do Renascimento e o que ela significou para o destino desse país
africano durante a expansão das emergentes potências européias a partir do século XV.
Este Império, identificado na Idade Média como a terra de um lendário rei cristão,
corresponde, antes de mais nada, à dinastia de maior duração na História, mas pouco se
dá a esse fato o devido destaque.² Com efeito, já aparecem referências aos etíopes
em textos gregos, desde Homero, e a própria denominação, etíope, para os povos
_____________________
1-Por exemplo, evolução de uma doença. (N. A.)
2-Precisamos indagar que fatores determinaram a longevidade do Império etíope? (N. A.)
85
oriundos das regiões localizadas ao sul do Saara e mais distantes do Mediterrâneo, é
criação grega, o que revela, portanto, a presença no mundo clássico do elemento
humano que habitava a região subsaariana, interagindo com os povos da Antigüidade.

Com base nos critérios estabelecidos sobre civilização e cultura, veremos de que
modo esse povo estaria inserido nos processos de transformação e desenvolvimento que
caracterizaram as sociedades mais antigas, que ainda hoje são objeto da investigação
científica e tentaremos identificar as possíveis causas (econômicas, religiosas,
lingüísticas) do pouco interesse pelo passado, presente e futuro do próspero reino do
Preste João após o Renascimento, sobretudo no Brasil, onde é tão significativa a
influência africana. Também aqui a cultura africana de um modo geral se destaca
principalmente pelos seus traços exóticos, pelo batuque de sua música e pelos mistérios
de seus orixás. Mas veremos que o conhecimento da lenda do Preste João nos leva a
repensar o significado da África como o autêntico elo perdido – ou simplesmente
desconhecido – entre nosso passado e presente, e faz-se mister abrir e ampliar esse canal
de conhecimento, pois já se encontra em vigor a lei 10.639 que tornou obrigatório no
país o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira.

Entre as indagações aqui levantadas, uma diz respeito à possibilidade de


identificar um período clássico na História das civilizações africanas – especialmente na
antiqüíssima Etiópia – já que ele é atestado em outras civilizações além da grega e da
romana. Comparando os etíopes, pela sua antigüidade, com outros povos igualmente
antigos, buscaremos assinalar que elementos comuns em suas trajetórias nos
permitiriam aproximar a cultura etíope, em um dado momento, de outras culturas
sempre muito valorizadas como modelo e referência da civilização (ocidental) moderna.
São três os critérios fundamentais (fator de historicidade, papel dos mitos e processo
civilizador) – que nem sempre vão ao encontro dos interesses dominantes ou das
exigências a serem atendidas para o estabelecimento de uma identidade para todos os
povos, em igualdade de condições e em todas as épocas – que definem o status de cada
cultura em relação às demais, ou seja, a perspectiva histórica que é sempre a do
dominador, os mitos que servem para legitimar o direito dos mais fortes e o relativismo
do que seja civilizar, que, em última análise, constroem juntos as noções de
superioridade de cultura, raça e religião.
86
A leitura do opúsculo de Damião de Góis, Fides, Religio Moresque Aethiopum,
corpus desta tese de doutorado, misto de relato histórico e discurso retórico, que
descreve a realidade do povo da Etiópia, suas práticas cristãs não ortodoxas e suas
tradições, no contexto de uma Europa em expansão, impõem nossa reflexão sobre a
crença inabalável do homem ocidental na superioridade de seus valores morais e
materiais, em face dos outros – que não são herdeiros da cultura greco-latina – baseada
apenas na intolerância e sempre a serviço de aspirações imperialistas. O livro foi
proibido em Portugal e o autor, no final da vida, foi condenado pela Inquisição acusado
de heresia, mas no século seguinte ainda eram enviados à Etiópia missões religiosas
incumbidas de instruir o povo na “verdadeira fé”, que era afinal, o catolicismo do
Ocidente. Como aliado militar o país tinha-se mostrado inviável e frágil; já sem portos
marítimos, pouco tinha a oferecer como parceiro comercial¹, mesmo assim os
portugueses não empreenderam sua colonização. Logo a Etiópia caiu no esquecimento
e se fechou sobre si mesma, entretanto muito da influência portuguesa devidamente
“etiopizada” perduraria até o século XIX.

4.2-A Antigüidade Clássica e a África Subsaariana.

Podemos dizer que é clássico tudo o que tem potencial para se perpetuar e ser
reconhecido como modelo em qualquer tempo. Assim é clássico o que retoma os
modelos do passado ou o que consegue alcançar, no plano da atividade humana, um
ideal de perfeição almejado, em qualquer época. Não é por outra razão que ao se
manifestar, por exemplo, sobre uma obra de arte, os críticos, quando a aprovam
incondicionalmente, costumam dizer “já é um clássico”, ou seja, já revela as
características ideais para se tornar referência em seu contexto e servir de modelo para
produções similares posteriores.

Essa mesma noção de valor é aplicada a períodos históricos em que se verificam


níveis de excelência e perfeição das instituições e da produção cultural de um povo,
segundo parâmetros estabelecidos pela ideologia ocidental, naturalmente. Na
construção de sua identidade o Ocidente expurgou as contribuições de outras culturas
_____________________
1-“Enfim, quando Vasco da Gama descobriu a rota das Índias, em 1498, os europeus desinteressaram-se da África em
favor das regiões asiáticas.” (MOUSNIER, 1995, p.153, v. IX)
87
contemporâneas que, por razões de ordens diversas, não interessa reconhecer como
presentes na formação do grupo que representa o mundo civilizado moderno – produto
apenas da herança greco-latina¹. Para se autodefinir como civilizada, é necessário que
uma sociedade se coloque em face de outra cujos valores morais, culturais, religiosos,
lhe façam oposição. Assim se constituíram as dicotomias em que se apóia a arrogante
(e hoje discutível) superioridade ocidental: civilizado x primitivo, cristão x pagão,
ocidentais x orientais, brancos x outros, etc.

Muito antes do período clássico grego, já na Ilíada e na Odisséia, Homero se


referia a um povo que tinha seu território situado muito além do Egito², e cuja
localização permanecerá imprecisa até a Idade Moderna. Os gregos chamavam esse
povo de etíopes, que quer dizer “homens do rosto queimado”, pois se distinguiam dos
demais povos que habitavam as proximidades do Mediterrâneo principalmente pela cor
da pele. Daí se poder deduzir que a África Subsaariana, pelo menos na sua parte norte-
oriental, já era conhecida na Antigüidade, apesar do isolamento em que por muito
tempo viveram as tribos desta parte do continente, em virtude dos obstáculos
representados pelo deserto do Saara³ e pelas cataratas do Nilo, que impossibilitavam as
idas e vindas das embarcações mercantes, portadoras também de notícias que tanto
ampliavam, quanto favoreciam o conhecimento sobre as regiões remotas.

Posteriormente vamos encontrar referências ao que era considerado o reino da


Etiópia em Heródoto, Hesíodo e Ésquilo4, provando que entre etíopes (que inicialmente
se confundiam com os habitantes da Líbia, Núbia e demais terras ao sul do Egito),
gregos e egípcios já se operavam trocas, de naturezas diversas, estando os primeiros
inseridos, indiscutivelmente, no mundo mediterrâneo da Antigüidade. O
estabelecimento dos limites territoriais da antiga Etiópia, assim como sua localização
precisa (África ou Ásia), durante
_____________________
1-“A Europa, em seu sistema de valores estritamente clássicos, não concebia cultura e civilização fora da herança
greco-latina e por isso, negava às outras realidades com que se defrontava a qualidade de nação.” (LAMBERT, 2001,
p.164)
2-“Zeus e os demais deuses participam de um banquete com os etíopes que teve a duração de 12 dias.” (Ilíada, I,
423-25); “Posêidon, porém, partira para longe, em visita aos etíopes, que vivem nos confins da terra...” (Odisséia, I,
23-24).
3-“O Saara sempre contribuiu para a existência de duas realidades distintas na África: uma África Setentrional
correspondente aos povos que se fixaram ao longo do Mediterrâneo e a África Subsaariana, ao sul do deserto.”
(LAMBERT, 2001, p.119)
4-Prometeu Acorrentado (1985, v. 1055-57).
88
séculos foi objeto de especulação. Nos dias atuais, recebe a denominação de Etiópia o
país situado próximo às margens do Mar Vermelho, na região é conhecida como Chifre
da África, entre a Eritréia, Djibuti e Somália, a leste, e Sudão e Quênia, a oeste, que foi
outrora uma parte do antigo império cuxita¹ e corresponde ao lendário reino do Preste
João.

A dinastia que pela tradição bíblica teve início com a rainha de Sabá foi a mais
longa da História, extinta em 1975 com a morte do Imperador Hailé Selassié, deposto
por um golpe militar em 1974. Quanto à região localizada ao sul do Egito atual, dava-
se a ela a denominação de Kush (Cuxe), e de kushitas (cuxitas) aos seus habitantes.
Parte desse reino alcançava o noroeste da atual Etiópia.

A concepção que gregos e romanos tinham desses homens dos confins da terra²
é bem diversa da visão moderna dos povos africanos. Em que momento então a África
Subsaariana perdeu seu prestígio e sua historicidade?

...houve a construção de um discurso no século XIX que concedeu,


basicamente, de forma única e exclusiva a formação dos helenos pelos indo-
europeus, não considerando pertinente as contribuições africanas para a
formação do grupo que sustenta as bases da sociedade contemporânea. (BISPO,
2006, p.14)

Como a maioria dos povos antigos, os etíopes disputaram territórios,


principalmente com os egípcios, alternando-se entre eles períodos de relações pacíficas
e beligerantes. MOKTAR (1983, p.243) refere-se à existência de registro histórico de
relações de parentesco entre etíopes e egípcios. Com efeito, apesar da suposta
superioridade egípcia, nunca lhes foi possível estabelecer uma dominação efetiva das
áreas situadas abaixo da segunda catarata, mas os etíopes consolidaram seu poder no
Egito em 712 a. C., formando a XXV dinastia ou dinastia etíope, à frente de um Império
que se estendia do Delta do Nilo até a sexta catarata³ que hoje corresponde ao
Egito, Sudão e noroeste da Etiópia, tendo Mênfis como sede do governo. Nesta época,
________________________
1-“A XXV dinastia, marca a dominação do Império do Egito pelos etíopes.” (LAMBERT, 2001, p.124-125)
2-Homero, Odisséia (1999, I, 23-24).
3-A demarcação pelos historiadores das terras banhadas pelo Nilo, é feita segundo a localização das cataratas acima
referidas. (N. A.)
89
os assírios representavam a maior potência do Oriente Médio, e o rei etíope Shabaka
(Sábacos) para assegurar o controle e a defesa das regiões da Síria e da Palestina,
corredor estratégico entre a Ásia e África, ofereceu auxílio aos hebreus e filisteus para
se rebelarem contra a dominação assíria¹.

É neste contexto, enquanto exercitavam seus dotes guerreiros e sua capacidade


de organização que os etíopes começam a merecer uma atenção maior da parte dos
autores gregos. Os atenienses logo reconheceram nos etíopes uma aristocracia
guerreira, e os textos da época mostram o guerreiro etíope sendo considerado como um
modelo, capaz de representar os ideais aristocráticos, num momento em que o processo
democrático triunfava em Atenas e fazia-se necessário resistir às conseqüentes
mudanças na estrutura social.

...a Etiópia é a mais remota das regiões habitadas; lá existe muito ouro e há
enormes elefantes, e todas as árvores silvestres; e ébano, e homens de elevada estatura e
muito belos e de uma longevidade excepcional. (HERÓDOTO, 1998, III, 114)

Este povo, cuja saúde, beleza e longevidade surpreenderam Heródoto e seus


contemporâneos, muito antes de dominarem o Egito, emprestavam sua força guerreira
em defesa do exército pluriétnico egípcio, quer como escravos, quer pela incorporação
voluntária, na qualidade de mercenários. Heródoto (IX, 32) refere-se também à ativa
participação dos guerreiros etíopes e seus comandantes nas Guerras Médicas,
combatendo pelo exército persa, e a valorização deste grupo pelo historiador grego
remonta precisamente à XXV dinastia egípcia. A guerra veio multiplicar o repertório de
informações sobre a Etiópia e sua população, fato que se vai repetir na Idade Moderna,
com a expansão dos domínios portugueses na África.

Inicialmente os portugueses se referiam à Etiópia com a denominação de


Abássia.
_____________________
1-“O Egito foi invadido por Sábaco, rei da Etiópia, à frente de um exército de etíopes que governaram por 50 anos”.
(Heródoto, 19998, II, 137)

90
O próprio nome deste Império da Etiópia a Alta, ou sobre o Egito (de que
havemos aqui de falar) é Abássia, e, conseguintemente, o nome de seus habitadores é
Abexins, ou Abexis. Eles dizem Abex, carregando no x, e porque nós não pomos tam
facilmente o acento no x, dizemos em lugar de Abex, Abexim, e a eles chamamos
Abexins. (TELES, 1936, p.16)

Mas utilizavam outras denominações como Etiópia Interior¹; e, do mesmo modo,


o nome Etiópia ainda dizia respeito às terras localizadas no Mar Roxo², do lado árabe
até a Palestina e, do lado africano, às regiões desde o sul do Egito ao longo do Mar
Vermelho até Angola, sendo chamada de Etiópia Oriental a região mais próxima da
Arábia e de Etiópia Ocidental ou Austral o restante. A Etiópia Interior foi ocupada, nos
primeiros séculos da Era Cristã, pelos iemenitas, um povo tecnicamente avançado e
altamente sofisticado do extremo sul da Península Arábica que sobreviveu como
cultura cristã graças à fortaleza natural representada pelas serras que cercam a região,
até ser encontrada no século XV pelas primeiras missões portuguesas, pois o objetivo
inicial dessas expedições era procurar reinos cristãos no continente africano.

O príncipe Henrique, o Navegador (1394-1460), desejou explorar as costas da


África ao sul do Marrocos, para descobrir um reino cristão fabuloso, o do Preste João, e
surpreender pela retaguarda os muçulmanos do Marrocos (sic.). (MOUSNIER, 1995, p.21)

É dessa Etiópia que fala a narrativa do bispo Zaga-Zabo a Damião de Góis, que
a verteu em latim para conhecimento de toda a Cristandade.

Além dos povos até agora identificados, originários da própria África, cujos
limites territoriais imprecisos não são descartados pelos historiadores como
determinante na formação do povo etíope, ajudam a compor a sua bela etnia algumas
tribos provenientes do atual Iemen (antes Sabá) que em tempos remotos fundaram

________________________
1-“Há uma abundante e surpreendente produção historiográfica sobre a Etiópia em Portugal, assim como já havia
referências interessantes não só pelos gregos, mas também pelos romanos. Entretanto foram os historiadores e
geógrafos árabes - como Leão, o Africano, convertido ao cristianismo - que mais se dedicaram ao estudo do povo e
do continente africano, em decorrência da expansão do Islã, que deu ensejo ao surgimento de prósperos Estados
africanos, como Gana, Mali e Songai.” (VIDROVITCH, 2003, p.14)
2-Mar Vermelho.
91
colônias de mercadores na região – onde ainda havia portos marítimos¹. Destes
herdaram o idioma, entre outras coisas, o que pode esclarecer as demais características
que os distanciam do grupo banto, pois os traços faciais, como o nariz fino, aproximam-
nos dos europeus, embora também tenham pele escura e cabelos crespos. É
principalmente a esta origem que daremos maior destaque nessa exposição.

A ligação com o passado histórico de civilizações exuberantes para engrandecer


a própria história já fora uma preocupação dos romanos². Mas não podemos afirmar,
pelo menos quanto aos etíopes conhecidos pelos gregos, que os mitos presentes na
tradição grega fizessem parte também do imaginário daquele povo. Muitas são as
figuras mitológicas que os gregos descreveram com as características étnicas dos povos
da África Subsaariana, entre eles o de Faetonte³, Andrômeda4 e Mêmnon5. Só não
sabemos se eles próprios tinham conhecimento da origem mítica da sua raça e como de
fato se viam e se autodenominavam, pois o termo etíopes, como já vimos, que quer
dizer “homens do rosto queimado”, é o modo como os gregos os definiam.

Ora, uma vez que os etíopes foram involuntária e espontaneamente incorporados


pela mitologia grega bem pode a Etiópia, assim como fez Roma em relação à Grécia,
reivindicar para sua História um lugar legítimo na tradição greco-latina. Por outro
lado, já vimos que a história antiga da Etiópia tem estreita relação com a do Egito, além
do intenso intercâmbio comercial entre os dois países que os textos egípcios
registram. O Império Cuxita, remanescente da XXVª dinastia egípcia, também chamada
“dinastia etíope” teve até mesmo a sua Idade do Ferro, desenvolvendo a metalurgia
como atestam as pesquisas arqueológicas na região. Sua capital a partir de 500 a. C.,
Méroe, tornara-se uma “cidade industrial”, por isso os arqueólogos ingleses, que ali
descobriram vestígios de fundição, fornos e escórias minerais chamaram àquele sítio
“Birmingham Africana”.
_____________________
1-Os portos de Dalec, Maçuá e Suaquen, antes da chegada dos portugueses já haviam caído em poder do Islã. (conf.
SANCEAU, 1940, p. 57-59)
2-Como a Eneida, de Virgílio. (N. A.)
3-Filho de Helius e Climene, que caiu na terra ao perder o controle do carro do Sol, origem mítica da raça negra.
Sanguine tum credunt in corpora summa uocato Aethiopum populos nigrum traxisse colorem; (OVÍDIO,
Metamorfoses, 1957, II, v. 234-236).
4-Salva por Perseu com quem se casou. (conf. HARVEY, 1998, p. 390).
5-Filho de Titonos e Eos (Aurora) lutou do lado troiano comandando de um exército de etíopes e foi morto por
Aquiles. (conf. HARVEY, 1998, p. 331).
92
Apesar do fim inglório, Cuxe parece ter deixado uma herança de primeira
importância na África Subsaariana: a arte da metalurgia. [....] A tradição oral dos povos
africanos é rica em detalhes e extremamente variada, mas, na essência, sempre se refere
a ancestrais heróicos vindos geralmente do leste e portadores de conhecimentos – entre
os quais a siderurgia – que teriam permitido a passagem de um estado de barbárie
primitiva à civilização. (LAMBERT, 2001 p.126-7)

Mas nada suplanta, como portadora da identidade do povo da Etiópia, a lenda do


Preste João, que portugueses, como o padre Francisco Álvares, no século XV e Miguel
de Castanhoso, no século XVI, conheceram nos livros teológicos do próprio Império,
escritos em geez – língua clássica etíope¹ – utilizada ainda hoje na liturgia da Igreja.
Este rei, que segundo o relato de Marco Polo teria sido morto na Ásia, ressurgiu na
África – “um mito errante”, nas palavras de Elaine Sanceau –, com sua aura de mistério
e grandeza, em um Estado que professava a fé cristã, porque a Europa pós-Cruzadas
também estava renascendo e precisava que ele ainda existisse.

Foi justamente por causa desse interesse incomum aos europeus que (re) nasceu
a lenda do Preste João, um Príncipe ou Soberano Cristão, cujo Estado estaria encravado
entre centenas de outros governados por Monarcas muçulmanos. O desejo de chegar a
esse aliado da Cristandade foi uma das motivações ideológicas conexas das Grandes
Descobertas. (CERQUEIRA, 1997, p.1)

As informações transmitidas por viajantes europeus que se encontravam com


monges peregrinos cristãos etíopes a caminho da Terra Santa ajudaram a construir o
mito:

Eis que havia na Etiópia um livro antiqüíssimo², que ao lado da Bíblia Hebréia
era muito venerado como um segundo Evangelho, conservado na Igreja de Axum, a
mais antiga Metrópole e sede do Império, onde a Rainha de Sabá teve sua
_____________________
1-Língua das antigas escrituras sagradas. (conf. SANCEAU, Elaine. Prefácio à História da Etiópia de Pero Pais, p.
18). “A língua vernácula encontrada na época dos descobrimentos é o amárico, língua semita próxima do árabe e do
hebraico.” (LAMBERT, 2001, p. 118)
2-“Obra central da literatura e da civilização etíope, a Glória dos Reis (Kebra Negast), escrito em geez, a língua
clássica da Etiópia, é um texto cuja forma atual foi fixada em finais do século XIII, na altura da ascensão da chamada
dinastia salomônica ao trono imperial nos planaltos do Tigré e Amhara.” (RAMOS, 1998, p.236)

93
corte.¹ Diz esse livro que quando reinava na Etiópia a rainha Maqueda, chegaram
notícias da sabedoria do rei Salomão, trazidas por um rico mercador que, retornando a
sua terra, contou maravilhas sobre a justiça, a modéstia, a doçura e a clemência, e
muitas outras virtudes daquele rei. Desejosa de ver e ouvir o sábio monarca, organizou
uma caravana com muitas riquezas, entre as quais ouro, aromas e incenso, e dirigiu-se a
Jerusalém. Com grande honra foi recebida por Salomão e hospedada perto de sua casa.
Quase diariamente o rei a visitava para verificar se o tratamento a ela dispensado estava
de acordo com suas ordens. Também ela ia visitá-lo para ouvir e aprender com sua
sabedoria e justiça, que eram dadas por Deus.

De volta a seu reino, Maqueda teve um filho que concebera de Salomão e


chamou-o Menelik, o qual ao se tornar adulto voltou a Jerusalém para conhecer o pai
levando mensagem da rainha que suplicava que sagrasse seu filho rei de toda a Etiópia.
Toda a corte se admirou com a grande semelhança entre Menelik e Salomão, que não
hesitou em ungi-lo e coroá-lo rei, nomeando-o Davi² Depois que prestou juramento,
recebeu do pai, junto com outros presentes, muitos primogênitos da corte de Israel para
compor seu séquito, além de oficiais de serviço da Casa Real de Judá, um Sumo
Sacerdote e ministros muito doutos, que deveriam acompanhá-lo. Tristes por estarem
sendo afastados de seus pais, os primogênitos entraram à noite no Templo e tiraram de
lá a Arca do Testamento, a que chamavam Sion Celestial e a levaram para um Templo
na terra de Maqueda³. De posse dessa relíquia todos na Etiópia reconheceram o
verdadeiro Deus.4

Também diz o livro que ao entregar o reino ao filho, Maqueda o fez jurar que
nunca mais seria admitida uma mulher como governante, e que só aos seus
descendentes varões e pelo lado masculino seria dado o comando do Império. Do
tempo da Rainha de Sabá5 até o nascimento de Cristo consta ter havido 24 imperadores,
_____________________
1-“...o livro onde põem o catálogo dos Imperadores diz que a Rainha Azeb (ou Maqueda) começou a reinar em
Axum, e as ruínas dos edifícios que ainda aparecem, mostram bem haver sido a mais suntuosa que houve em
Etiópia.” (PAIS, 1945, p. 25)
2-“....daqui vem que os Emperadores de Ethiopia mudão o nome do bautismo quando lhes entregão o Império.”
(PAIS, op. cit. p. 31)
3-“Muitos de nossos sagrados expositores dizem que esta rainha era da Arábia e não de Etiópia.” (TELES, 1936,
p..95)
4-Segundo uma outra tradição, a rainha se converteu ao cristianismo depois de batizada pelo seu eunuco. (Fides)
5- “O livro de Reis 1-10 localiza o reino de Sabá no Iêmen, noroeste da Arábia.” (ALMEIDA, 2002, p. 389). Com
efeito, na divisão que Heródoto faz dos etíopes aparecem os da Ásia, juntamente com os macróbios e os trogloditas.
(conf. BISPO, 2006, p. 28)
94
e que a fé católica foi adotada em 1437¹, no tempo do Imperador Zara Jacob, que para
isso enviou embaixadores abexins com carta ao Papa Eugênio IV.

Conforme relata o Padre Baltazar Teles “Junto a Axum, no reino do Tigré, em


Etiópia, está ainda hoje um lugar pequeno que se chama Sabá ou Sabain, no qual dizem
que nasceu a Rainha de Sabá; também há os lugares de Azebó, que diz com o nome
Azeb, e Beth David, que significa Casa de David.”

Durante séculos a Etiópia permaneceu como reduto cristão, cercado e assediado


pelos mouros que precisavam ser energicamente combatidos e para cujos domínios
perdeu boa parte de seu território, incluindo as terras às margens do Mar Vermelho, e
mais teria perdido se não fossem as freqüentes guerras travadas para defender ou
recuperar suas províncias. Na Idade Média, o Ocidente recebeu notícia da existência de
um reino cristão muito próspero na costa oriental da África, que era o flagelo dos
infiéis, e entre tantas outras lendas e utopias em que o período medieval foi pródigo
nasceu a lenda do Preste João² que foi identificado como o Império da Etiópia.3

Assim o desejo de encontrar esse “paraíso terreal” levaria os europeus cada vez
mais longe, em busca de uma aliança sólida contra os infiéis em regiões, que só os
mouros então conheciam, e que representasse, ao mesmo tempo, a posição estratégica
que lhes garantiria o acesso aos ricos mercados do Oriente. São os portugueses que
primeiro vão chegar à Etiópia, em circunstâncias dignas das histórias de aventuras,
conforme será narrado pelos seus mais célebres cronistas. Entretanto essas narrativas,
na sua maioria, reproduzem o testemunho do próprio povo, o conteúdo dos livros
etíopes, além de incluir os relatos de embaixadores nativos ou de missionários do
Ocidente.

De qualquer modo, as expedições portuguesas viram desmoronar diante dos


_____________________
1-B. Teles (p.117), sem levar em conta o quão novo era o catolicismo entre os etíopes, acusa-os de cismáticos. (N.
A.)
2-Mas o título Preste João era desconhecido na Etiópia, tanto pela corte quanto pelo povo, e sequer constava dos
livros. (conf. TELES, 1936, p. 14-15)
3-A origem da lenda está também relacionada às narrativas de Marco Polo, que fala de um Preste João, derrotado e
morto por Gengis-Khan, que, entretanto, em nada correspondia ao perfil que dele fizeram os reis cruzados. Seu reino,
na verdade, ficava na Ásia. (conf. MARCO POLO. Il Milione, 2000, p. 45)

95
próprios olhos o mito (em sua segunda morte)¹, que foi um dos grandes responsáveis
pela conquista da África Subsaariana, pois a procura de caminhos que levassem ao
Preste João impeliu os seguidores do Infante D. Henrique a penetrar o coração do
continente e descobrir seus tesouros. Mas a queda do mito não anulou suas
conseqüências: o canal entre a cristandade ocidental e a oriental estava aberto, e para a
Etiópia – de quem Portugal, na verdade, esperava receber auxílio – a aliança com os
portugueses, seus irmãos em Cristo², ao contrário do que ocorreu com as outras nações
do Oriente e da América, permitiu-lhes preservar seu Império, ora fragmentado, ora
aumentado, ainda por cinco séculos. A heróica – ou suicida – expedição de D.
Cristóvão da Gama, em 1541, arrancou o reino das mãos do chefe Mouro a quem eles
chamavam Granhe³, quando os exércitos do Imperador já tinham suas forças exauridas
depois de 14 anos de assédio4.

Em 1542, os portugueses haviam socorrido os abissínios, ajudando-os a repelir


os ataques do sultão de Harrar. Mas, em seguida, seus missionários esforçaram-se por
fazer com que estes cristãos coptas reingressassem no seio da Igreja romana. A
discórdia inflamou-se em todo o país. (MOUSNIER, 1995, p.157, v. IX)

Mais tarde missões jesuíticas viriam se unir às embaixadas portuguesas para


confirmá-los na fé, ministrar ensinamentos de técnicas novas e resgatar conhecimentos
há muito esquecidos, mas não houve iniciativa de conquista da parte de Portugal,
mesmo depois de outras experiências que demonstraram as vantagens de não fazer
alianças leais com os reis africanos. E, qualquer que tenha sido o motivo que evitou a
dominação portuguesa, o fato é que todas as tentativas tardias de ocupação da Etiópia
resultaram num vergonhoso fracasso político e econômico, como o que a Itália
experimentou nos séculos XIX e XX. E este foi, com efeito, o único país do continente
africano que jamais sofreu a colonização.
_____________________
1-A necessidade de encontrar aliados contra os muçulmanos favoreceu o renascimento do mito. (N. A.)
2-Os reis etíope e português, em sua correspondência diplomática chamavam-se reciprocamente “irmão”. (Fides)
3-Esta denominação - que lembra Gran-Kan - econtrada nas crônicas portuguesas, pode ter contribuído para aumentar
a confusão entre o reino do Preste João da Ásia e o Império da Etiópia, ou até mesmo ter sido criação dos cronistas
portugueses. (N. A.)
4-“...com cartas da Imperatriz Cabelo Oánguel, mãe do Imperador Cláudio, que já reinava, em que lhe pedia
encarecidamente quisesse socorrer a este Império Cristão, a quem o Mouro Granhe havia catorze anos que tinha
pela mór parte conquistado, matando e cativando grande multidão de gente, queimando e assolando muitos
Mosteiros e Igrejas nobilíssimas.” (TELES, op. cit. 143)

96
4.3-Breve História da Etiópia.

A historiografia das últimas décadas relativa à Àfrica, difere em muito do que os


textos apresentavam até o século XIX¹. Os achados arqueológicos, bem como a análise
cada vez mais crítica do fato histórico, apesar de não eliminar inteiramente o
subjetivismo decorrente de ideologias, paixões e – o que é inevitável – da visão
contemporânea dos acontecimentos² passados vem eliminando dos manuais de História,
na medida do possível, qualquer forma de abordagem que extrapole ou contamine o fato
em si. O pesquisador que se dedica ao resgate do passado, em especial, de países do
Oriente ou do Terceiro Mundo, vem dispensando o melhor da sua atenção no sentido de
não reproduzir os já ultrapassados discursos tendenciosos de seus colegas outrora
comprometidos com as ideologias colonialistas. E não é outra a atitude dos autores
modernos, cuja narrativa aqui reproduzimos, sobre a antiqüíssima Etiópia.

A Etiópia é um país da África Norte-oriental, localizado próximo ao Mar


Vermelho no centro do Chifre da África. A maior parte do país é constituída de
montanhas “que se elevam quase a pique”, ultrapassando em alguns lugares a altura
4.600m. Esta geografia acidentada permitiu que o país se preservasse de ataques
externos, mas por outro lado também o manteve isolado dos centros de progresso do
mundo. Na Antigüidade greco-latina algumas expedições foram organizadas com o
intuito de conquistar essa parte do mundo, ainda envolta em mistério, e da qual se
falavam horrores e maravilhas³. Além dos gregos anteriormente citados fazem
referência aos etíopes: Estrabão, geógrafo romano (séc. I a. C.), Plínio, historiador
romano (séc. I d. C.)4 Pompônio Mela, geógrafo romano (séc. I d. C.), Cornélio Nepos,
gaulês de Ticino (séc. I a. C.)5. Suetônio Paulino, governador da Britânia em 59 d. C.
________________________
1-“A Antigüidade apresenta um balanço negativo. Embora a África fosse o berço de uma das mais antigas
civilizações do mundo, nem o Egito, nem Cartago parecem ter conhecido senão a parte Norte do continente e os
romanos nunca se internaram profundamente no deserto.” (VIDROVITCH, op. cit., p. 14)
2-“A historiografia oficial não conta a história. Ajeita o passado para atender a objetivos políticos presentes.”
(LAMBERT, 2001, p. 55)
3-“Aliás, a herança da Antigüidade, que iria exercer no Ocidente medieval uma influência tão tenaz como detestável,
consistiu, sobretudo na crença em povos mudos e monstruosos que habitavam um país estranho e temível.”
(VIDROVITCH, op. cit., p. 27)
4-“Nos confins da África, na fronteira desta com a Etiópia, os dentes de elefante, dos maiores que existem, servem de
porta às casas e são utilizados como estacas de vedação e estábulos de gado.” (apud VIDROVITCH, op. cit., p. 27)
5-“...mas é um fato que os seus autores acreditavam na riqueza da Etiópia, donde lhes chegavam metais preciosos,
penas de avestruz, peles de tigre ou de pantera, escravos e marfim.” (VIDROVITCH, op. cit., p. 27)

97
chegou próximo ao deserto; Sétimo Flaco, em 70 d. C. perseguiu os garamantes até
Fezânia; Júlio Materno, pretendendo combater os etíopes atravessou o deserto até a
região onde vivem os rinocerontes. Além destes, o Imperador Nero preparou uma
grande expedição à Etiópia que não se realizou (HARVEY, 1998, p. 216). Uma questão
que merece ser colocada é quanto ao possível destino da África Subsaariana caso a
dominação por Roma tivesse se concretizado: como seriam os africanos resultantes do
processo civilizador greco-romano? De qualquer forma, sabemos hoje que no interior
da África muita coisa se passava à semelhança da Europa e das regiões do
Mediterrâneo. Impérios surgiam, expandiam-se ou eram submetidos por outros mais
poderosos, que aumentavam seus territórios, pilhavam os tesouros dos inimigos e
escravizavam os vencidos. A própria Etiópia encontrada pelos portugueses constituía
um império, ao qual inúmeras províncias pagavam tributo. Seus domínios se estendiam
além das nascentes do Nilo na parte ocidental e até o Mar Vermelho onde aportavam
seus navios de combate ou mercantes e embarcações de países estrangeiros,
principalmente da Ásia, com os quais tinha relações de comércio.

A arquitetura que se desenvolveu no período cristão ainda hoje intriga e fascina


os especialistas, pois há uma infinidade de mosteiros construídos em altíssimos
penhascos, além das Igrejas totalmente entalhadas em blocos de pedra. Na parte
noroeste ainda existem pirâmides – vestígio, provavelmente, do império cuxita – e
muitas ruínas de um passado de esplendor.

Mas, em virtude da dificuldade de deslocamento resultante da topografia


acidentada, e como era necessário que, muitas vezes, o próprio Imperador fosse ao
encontro dos vassalos para coletar os tributos, os monarcas etíopes e toda a corte
habitavam em tendas. Outra razão eram os freqüentes conflitos, pois esse tipo de
moradia permitia que migrassem mais rapidamente para as regiões fortificadas.
Também não existia a propriedade privada, pois todas as terras pertenciam ao
Imperador que as distribuía ao seu arbítrio¹.

_____________________
1-Muitos dos portugueses que não eram autorizados a partir, como ocorreu a Pero da Covilhã, instalavam-se em belas
quintas construídas no estilo português, beneficiados por essa liberalidade do rei. (conf. TELES, 1936, p. 73)

98
O Nilo Azul banha o país e nasce no Lago Tana, na região do contraforte
montanhoso setentrional, próximo de onde também ficava localizada a cidade de Axum,
antiga sede do governo. No período anterior à fundação de Axum, antes do século VI a.
C., tribos árabes do sul atravessaram o Mar Vermelho vindo se estabelecer no litoral da
Eritréia de onde em “vagas sucessivas” chegaram a Adulis. Uma dessas raças, a dos
Habashat deram origem ao nome do país, Abissínia, e a dos Gêes (ou Geez) trouxe a
língua que seria difundida pela maior parte da região. A presença dos árabes do sul é
atestada por inscrições dos reis de Axum (em gêes ou em grego) e monumentos
semelhantes aos encontrados na Arábia do tempo do reino de Sabá. É dessa época a
introdução de instrumentos agrícolas, como o arado e a construção das primeiras aldeias
em pedra, que ficaram como traço característico do país. Logo se desenvolveu uma
cultura local marcada por influências estrangeiras, pela africanização dos árabes e pelo
desenvolvimento da metalurgia a partir do século III a. C., confirmando a presença
meroíta na Etiópia e a presença de axumitas no vale do Nilo.

Há referências sobre os axumitas como sendo um povo etíope, na obra do


geógrafo grego Cláudio Ptolomeu (Périplo do Mar Eritreu), no século II e na
Aethiopica de Heliodoro, autor greco-fenício do século III.

“O reino de Axum desempenha em certa época um papel importante na História


da África Oriental: A fundação do reino serviu de base para a edificação de um império.
Do fim do século II ao início do século IV, Axum tomou parte nas lutas
diplomáticas e militares que opunham os Estados da Arábia Meridional. Os axumitas
submeteram as regiões situadas entre o planalto do Tigre e o vale do Nilo. No século
IV, conquistaram o reino de Méroe, então em decadência. Desse modo foi-se
constituindo um império que abarcava as ricas terras cultivadas do norte da Etiópia, o
Sudão e a Arábia Meridional, incluindo todos os povos que ocupavam as regiões
situadas ao sul dos limites do Império Romano – entre o Saara, a oeste, e o deserto de
Rub al-Khali, no centro da Arábia, a leste.” (GIORDANI, 1985, p.83)

Outras grandes façanhas militares são registradas por um negociante de


Alexandria, Cosmas Indicopleustes, autor da Cosmografia Cristã. Ele conta que o rei
de Axum ordenou que se copiassem duas antigas inscrições gregas em Adulis: em uma

99
delas, provavelmente do século III, o rei da Abissínia¹ narra suas conquistas
verdadeiramente grandiosas, e a presença dos seus soldados no exército da rainha
Zenóbia contra os romanos confirma-o. E

...segundo autores tão diversos como Diodoro Sículo, Lactâncio Plácido ou


Heliodoro, a Etiópia era também concebida como uma civilização antiga e poderosa, e
seu soberano um aliado desejado pelos imperadores bizantinos. ( RAMOS, 1998, p. 4)

O período hebreu foi caracterizado pelo apogeu econômico e cultural da Etiópia.


No século III o Império de Axum já era um dos maiores do mundo e a conquista de
Méroe, então decadente, vai aumentar seus territórios. No século IV foi adotada a fé
cristã trazida por Frumêncio, que desembarcou com seu irmão Edésio em um porto do
Mar Vermelho, onde foram aprisionados e levados à presença do rei. Frumêncio
permaneceu depois para ajudar na educação do jovem príncipe Ezana, a convite da
rainha, pois o rei Elle Ameda havia morrido. Mais tarde foi consagrado pelo patriarca
de Alexandria², Atanásio, como primeiro bispo de Axum e batizou toda a família real.
Coube aos sucessores de Ezana consolidar o cristianismo na Etiópia, dando início às
peregrinações ao Santo Sepulcro.

A partir de 572 e até 975, Axum começa a perder algumas províncias para os
persas. Durante o século VIII os abissínios perdem seus portos no Mar Vermelho³ Em
franca decadência, o Império conhece um período de devastação e trevas, até o
surgimento no século XII de uma nova dinastia. Lalibela, o “São Luís etíope”, famoso
por sua devoção, construiu as famosas igrejas rupestres da Etiópia e transferiu a capital
para outra cidade que recebeu seu nome. A nova dinastia, que remontaria a Moisés e
não a Salomão, reinou por cento e trinta e três anos. Em 1270, ocorre a chamada
“restauração salomônica”, com a subida ao poder da antiga aristocracia axumita. É um
período de grande renascimento literário, quando enfim a História da Abissínia começa
a ser produzida por um escriba real.
________________________
1-Talvez Sembrutes, talvez Aphilas, do qual existem muitas moedas. (Conf. RAMOS, 1998, p. 12)
2-O país ficou assim unido à Igreja Copta do Egito (culto cristão etíope e norte-africano), que professa um
cristianismo monofisista (defende a natureza única de Jesus). (Idem, p. 13)
3-A Abissínia possuía os portos de Maçuá e Dalec, e mais ao sul, Zeila, todos ocupados por muçulmanos que
pagavam tributo ao reino. (conf. SANCEAU, 1940, p. 57-59)

100
A esta dinastia pertenceu Zara Jacob que reinou de 1434 a 1468. Foi um grande
administrador, soldado, reformador. Lutou pela extinção do paganismo e enviou uma
delegação da Igreja etíope a Florença, para o concílio de 1439. A ele coube também o
início das tentativas de estabelecer relações com os portugueses. Sobre o período que se
seguiu até o intercâmbio com o reino de Portugal já falamos no subcapítulo anterior.

Entre o século XVII e século XIX, mais uma, vez a Etiópia muito pouco será
lembrada, apesar dos conflitos de natureza religiosa que iriam resultar em desavenças
com os jesuítas. Em 1632, os missionários católicos foram expulsos das terras do négus
(rei), e a capital foi transferida para Gondar.

No século XIX o Imperador Teodoro II, que havia estabelecido relações com os
ingleses, suicidou-se quando estes decidiram invadir o país em 1867. A crise só se
resolveu com a subida ao poder de Menelik II, que concluiu a unificação do território,
deu início à modernização do país e fundou uma nova cidade, Adis Abeba (que em
amárico significa “Nova Flor”), para onde transferiu a capital. A Itália que nessa época
havia começado a controlar a Eritréia, se dá conta da tranqüila independência da Etiópia
e resolve – ela à qual não coubera até então nenhuma fatia na divisão do Novo Mundo
– empreender a conquista da região, mas foi derrotada por Menelik na batalha de Adua,
em 1896.

Em 1930, depois de um longo período de turbulência (muito doente, Menelik II


abdicara em 1907 tendo herdado o reino sua filha Zauditu) e da morte da Imperatriz, o
Ras¹ Tafari, sobrinho neto de Menelik, foi coroado sob o nome de Hailé Selassié que
significa “a Força da Trindade”. Em 1935 a Itália novamente invadiu a Etiópia,
chegando a ocupar a maior parte do território até 1941. Outra tentativa mal sucedida e
fora de época, pois a Inglaterra, empenhada em expandir mercados, em decorrência da
Revolução Industrial e da ascensão do Capitalismo, desde o século anterior passara a
apoiar os movimentos de independência. Juntamente com a França torna-se aliada da
Etiópia contra os italianos e liberta o país. Transcorria a Segunda Guerra, e essa
tentativa, mais uma vez frustrada, é tema de um livro cheio de ressentimento, de G. C.
_____________________
1-Ras era o nome com que se designavam todos os membros da nobreza. (CERQUEIRA, 1997, p. 4)
101
Baravelli, da Universidade Real de Roma,¹ no qual o autor ataca com veemência a
política interna e externa do Imperador etíope, que procurava criar o maior número de
obstáculos possível ao “protecionismo assistencial” da Itália, violando acordos e
hostilizando abertamente os representantes de Mussolini para lá enviados.

Reconduzido ao trono, Hailé Selassié deu início a uma era de reformas políticas
e modernização econômica, até ser destituído em 1974 pelo exército, que aboliu a
monarquia e proclamou uma república socialista na Etiópia.

A dinastia do Preste João se encerra, portanto, (para sempre?) em 1975 com a


morte, provavelmente por envenenamento, do Negusa Nagast (Rei dos Reis) da Etiópia,
Leão da Tribo de Judá, Eleito de Deus, e último Ras Tafari².

4.4-Civilização Etíope e Civilização Ocidental.

A Etiópia tem uma herança histórica muito peculiar e, na qualidade de sociedade


civilizada, é capaz de suportar qualquer critério de avaliação, do mais progressista ao
mais conservador. É uma autêntica civilização africana, detentora de uma cultura rica
que se desenvolveu ao longo de milênios, sempre interagindo com os povos que se
destacaram nas épocas em que a História registra as mais importantes transformações da
humanidade. A “situação intermediária” da sua etnia demonstra a convergência de
elementos de variadas origens, formando um povo mestiço, vigoroso e belo,
inteiramente compatível com a superposição de culturas que forjou a identidade
nacional na Etiópia. A própria história de seus mitos revela a natureza cosmopolita e
híbrida do seu povo: a tradição judaico-cristã que marca sua origem, a narrativa
elaborada pelo paganismo para explicar a cor da pele dos seus habitantes e a lenda que o
Ocidente cristão reconstruiu e que ajudou a abrir as portas de toda a África para o
conquistador europeu.

_____________________
1-Le Dernier Rempart de l’Esclavage – L’Abyssinie, 1935.
2-A seita Rastafari mistura crenças animistas africanas com tradições judaico-cristãs e presta culto à personalidade do
Imperador Hailé Selassié. É uma espécie de messianismo à africana, a espera daquele que há de retornar para
governar todos os afro-descendentes do mundo. (CERQUEIRA, 1997, p. 9)

102
A originalidade da arquitetura, a existência de documentos escritos, a capacidade
de adaptar seu estilo de vida e estrutura social à topografia e a outras características
ambientais adversas sem prejuízo da unidade política tem relação direta com a
estabilidade e a continuidade que asseguraram a longa sobrevivência do Estado etíope,
portanto o atributo civilização, tantas vezes reconhecido para grupos humanos que
foram destruídos pelo tempo ou não resistiram a processos civilizadores impostos pela
força, aplica-se não só à velha Abissínia, mas a todo o continente africano, ainda que
para alguns eruditos equivocados a África não constitua uma parte histórica do mundo,
nem possua um povo capaz de se desenvolver ou ser educado. Na verdade, mesmo
negando os padrões ocidentais é possível considerar civilizado qualquer povo capaz de
se reconhecer como unidade cultural, e para a maioria das nações africanas isso é mero
detalhe, independentemente de terem ou não atingido o mesmo grau de
desenvolvimento alcançado pelos países do Primeiro Mundo. E é, inegavelmente, da
força dos seus mitos que veio esse poder de contínuo renascimento.

Como ocorreu no Ocidente, a necessidade de se tornar forte para se defender dos


invasores deu origem à formação de Impérios na África, dos quais o etíope é o exemplo
mais representativo, visto que foi o mais duradouro da História. Também não foram
melhores nem piores que os ocidentais no que diz respeito à escravidão. A inexistência
de máquinas e o desconhecimento de técnicas apropriadas para facilitar o trabalho
pesado resultaram na escravização de muitos vencidos por poucos vencedores. Já
existia um mercado de escravos em plena atividade quando os europeus chegaram ao
continente, e esta realidade – que os africanos inventaram sua própria escravidão – serve
ao menos para absolver o Ocidente da culpa que sempre lhe foi imputada pelo sinistro
comércio.

Mas e a questão do clássico? Nossa pesquisa demonstrou que a Etiópia teve


também seu período de apogeu econômico e cultural: o hebraico, portanto um período
clássico, que bem se ajusta ao modelo europeu. Nesse momento, à semelhança de
outros períodos históricos assim denominados relativamente a outras sociedades, seus
referenciais culturais foram construídos, bem como a linguagem que tomou parte dessa
construção e a expressou como tal. Não é por outra razão que a língua gêes dos etíopes,
encontrada em seus registros mais antigos e chamada clássica, foi mantida até hoje nos
103
rituais litúrgicos, a exemplo do que ocorreu com o latim para a cultura e a religião
ocidental.

Comparando a História mítica e a História científica da Etiópia com as das


outras civilizações, descobrimos também – como era previsível – que, além de ter
conhecido seu próprio Renascimento, e bem antes dos europeus, ela participou do
Renascimento português, pois entre os séculos XV e XVI, são portugueses os principais
escritos sobre a Etiópia.

A lenda do Preste João não se esgota em si mesma, pois a busca incessante do


ser humano pela “terra prometida” e por um “salvador” logo fez com que o imaginário
da Cristandade encontrasse espaço para nela incluir, também, a lenda dos Três Reis
Magos. Desse modo Baltazar, o rei que veio da África, tornou-se um outro ancestral do
rei presbítero, ligando irreversivelmente a sua origem à do próprio Cristo, portanto
nenhuma razão seria bastante para impedir que a Europa saísse em busca do
maravilhoso personagem.

A lenda do Preste João tem a ver com o Estado Utópico, a Sociedade Ideal, o
Mundo Justo. Sem conflitos, sem carências, sem violência, daí toda a riqueza simbólica
dos presentes levados ao Menino Jesus. (CAMPOS, 2002, p.6)

O mito vive no inconsciente coletivo e tem capacidade ilimitada de se renovar e


se expandir, mesmo depois de se transformar em fábula, porque a origem de toda grande
ou pequena civilização está associada a um ser primordial, in illo tempore, que veio ou
retornará de uma terra distante. Não importa se do ponto de vista dos franceses ou dos
alemães, o homem se torna civilizado quando, obedecendo às determinações dos seus
deuses, começa a construir a cidade onde ele viverá com os seus iguais e que abrigará
sua cultura até que se configure o processo de decadência. Os gregos se encantaram
com a força, a beleza e a longevidade dos etíopes no momento em que suspeitaram da
própria fragilidade e sonharam encontrar em outro povo o modelo da sua própria
restauração. E foi o temor do avanço do Islã que fez a Europa cristã projetar num reino
da distante África o lugar da salvação.

104
A queda de uma civilização sempre coincide com a ascensão de outra que está
em seu momento de apogeu. A Grécia se tornou província não porque Roma se tornou
Império, mas por ter esgotado sua força criadora e sua capacidade de regeneração. Há
muito sua grandeza habita o passado, mas sobrevive no mundo das idéias pela riqueza
da sua herança cultural, que também encantou o mundo moderno e foi reconhecida e
eleita como paradigma. É difícil imaginar qual teria sido o destino da Europa se
nenhuma informação do mundo grego tivesse chegado até ela, se a Grécia não tivesse
revivido num novo “organismo” que era Roma. E como fomos muito bem treinados
para só dar crédito à matriz européia nunca poderemos saber de que modo um
conhecimento maior da matriz africana teria contribuído na formação da nossa
identidade, se fosse devidamente reconhecida como a outra parte de nós, ao menos na
sua imensa capacidade de desafiar o tempo.

105
5. FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM.

Magistro chori.
Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum eius
annuntiat firmamentum. Dies diei eructat verbum, et nox
nocti indicat scientiam. Non sunt loquelae neque
sermones, quorum non intellegantur voces: in omnem terram
exivit sonus eorum, et in fines orbis terrae verba eorum.*

*David, Psalmus 19.1-5.


6. A FÉ, A RELIGIÃO E OS COSTUMES DOS ETÍOPES.

Daqui não havia que fugir. O Preste João, o suposto campeão


da Fé Cristã, o sustentáculo do facho do Evangelho no meio das trevas
do Islão, o aliado de quem Portugal tanto esperava – o Preste João era
herege! Doravante seria preciso encarar esta verdade dolorosa.*

*SANCEAU, 1940, p. 264.


§1. Nada existe em que mais ardentemente devamos nos empenhar do que fazer com
que o mundo inteiro – com trabalho, dedicação, e (se isso não puder ser feito de outro
modo) com martírio e sofrimento de todos nós – seja conduzido para a fé cristã e
orientado para viver submetido a uma única ordem e prática religiosa. O desempenho
desta missão, mais que ao resto de todos nós, cabe a ti, Sumo Pontífice Paulo, que como
primeiro Bispo e Vigário de Cristo, presides sua Igreja universal. Por isso é teu dever
(tu que até já começaste com grande esperança para nós) remediar os males pelos quais
o mundo diariamente é oprimido, e por meio de teu zelo e trabalho conseguir que todo
mundo aceite somente a Cristo e só nele creia; e confiem também, tanto em teus
preceitos como obedeçam a ti mesmo, na qualidade de sucessor de Pedro em tudo o que
esperam para a salvação de suas almas.
§2. Quando tal acontecer, diremos que por teu intermédio foi cumprida a profecia de
um só pastor e um só rebanho. Se obtiveres a palma deste feito qual dos Pontífices te há
de superar verdadeiramente em honra, ventura ou mérito? A quem daremos, por pleno
direito, a tríplice tiara, senão a ti?
§3. Por outro lado, para que a consigas, estes infelizes tempos te oferecem agora
grandes oportunidades, refiro-me a estas calamidades que na Europa tens para enfrentar.
§4. Por ninguém mais somos, pois, atacados tão violentamente quanto pelo inimigo
vizinho. Mesmo que agora estas incômodas preocupações (como sei) vivem em teu
coração, deixemo-las de lado, passemos a outras mais leves, que se juntaram à grande
esperança de que um outro e, de certa maneira, novo mundo, com a fé de Cristo
reconheça a grandeza e o poder de tua santidade.
§5. Se com tua orientação, a Igreja, tanto européia quanto etíope evitando perigos e
naufrágios, por causa dessas preocupações trazidas desde os primeiros anos, vier a um
porto de salvação, entoaremos por ti aquele cântico profético de sapiência, “Penetrarei
as regiões inferiores da terra, acharei os que estão adormecidos e iluminarei a todos os
que esperam no Senhor. Vede que não trabalho só por mim, mas por todos os que
procuram a verdade.”

202
§6. Agora, enfim, chega o tempo em que acreditamos que essa profecia há de
ser cumprida por teu intermédio. Aqui estão os etíopes, grande povo e avidíssimo de
Cristo, cujo santíssimo imperador, desejando a amizade dos europeus cristãos, mandou
legados a ti e aos reis de Portugal, por intermédio dos quais, como é evidente em suas
cartas, não só deseja compartilhar a amizade e a caridade cristã dos príncipes europeus,
mas também, muito devotadamente, exortá-los (os que ele sabe que vivem
permanentemente em acirradas discórdias) à concórdia cristã. É um fato do qual
certamente devemos todos nos envergonhar.
§7. Surgiu agora a rainha de Sabá e nos chama à razão, já repreendendo nossos
erros. As profecias de Cristo se cumprem e ele próprio escolheu os que pouco a pouco
se afastarão do Seu convívio, e Sua promessa e Seus mandamentos são levados àqueles
que eram considerados pagãos e contrários a Cristo.
§8. Vemos que este imperador dos etíopes com todos os seus súditos, como será
observado em nosso relato, deseja também viver sob tua lei e nada mais deseja. Não
ignora, além disso, por causa da doutrina dos Apóstolos, que possui, dividida em oito
livros, que a primazia dos bispos e de todo o mundo é devida ao bispo romano, a quem
inteira e santamente quer submeter-se e também ser instruído por ele nos princípios da
Igreja de Cristo. Pede que, para isso, lhe sejam enviados homens sábios, o que mostra
desejar avidamente. E não contente com isso pede ainda que sua solicitação, no futuro,
sobreviva na memória, para que a prova disso permaneça nos anais dos Pontífices e
assim a prova fiel de sua carta seja honrada pela história eclesiástica, e a posteridade
saiba em que tempo e sob que pontífice aconteceram esses fatos.
§9. Não duvido, certamente, de que Vossa Santidade já tenha enviado a ele homens
doutos e bem instruídos na disciplina das letras sagradas e das outras artes ou que logo
há de enviar. Pelo saber e ensinamento destes, juntamente com a palavra e o trabalho de
alguns outros que os sereníssimos reis de Portugal, D. Manuel e D. João, seu filho,
enviaram, farás com que todos os cristãos que vivem na Etiópia e, igualmente, na Índia,
obedeçam às leis dos bispos romanos (os quais não temem reconhecer como
representantes de Cristo).
§10. Enfim, reunidos conosco pela verdadeira religião, com teu empenho e
juntos, também no mesmo rebanho e sob um único pastor, Cristo, entenderemos estar
sobre todos nós confirmada a misericórdia do Senhor e ser seu reino de todos os
203
séculos e seu domínio ser de todas as gerações. Então toda carne há de bendizer Seu
querido santo nome eternamente.
§11. E para que minha exortação não seja mais prolixa do que o necessário,
principalmente para este de cuja vida e doutrina todos devemos ser seguidores,
transporto-me ao início desta narrativa que repetirei um pouquinho mais detalhadamente
para que assim mais claramente eu mostre em que princípios os laços e esta santíssima
amizade do Preste João e do Rei de Portugal foram contraídos, esperando, enquanto
narro estas coisas que são verdadeiras e legítimas, poder abalar os ânimos dos leitores e
atraí-los deste modo para a missão em que a fé de Cristo seja mais abundantemente
conhecida e cultivada em todos os cantos da terra.

§12.Damião de Góis: No ano do nascimento de Cristo, Salvador da raça humana, 1433,


tendo deixado a vida D. João, rei de Portugal, primeiro do nome, cognominado, o de
boa memória – que libertou a pátria das incursões dos Espanhóis, e dos ataques com que
a devastaram quase toda – entre os outros filhos que deixou, o mais sábio nas ciências
que todos os demais, principalmente nas Matemáticas, foi D. Henrique, o qual, para
aplicar-se inteira e exclusivamente ao estudo dos astros e de sua trajetória, permaneceu
solteiro, vivendo no Promontório de Sagres que é chamado Cabo de São Vicente.
Escolheu este lugar porque é onde o céu raramente torna-se turvo e para que, não
havendo nuvens interpostas aos instrumentos de que se utilizava em seu trabalho a
observação do curso celeste não fosse prejudicada. Além disso, para que confirmasse o
resultado de seus estudos, D. Henrique resolveu investigar com seus próprios navios e
recursos, o que já em muitas vigílias tinha descoberto: que o Oceano Atlântico de fato
corre para o Índico, voltando o Índico a refluir para o Atlântico. Com suas próprias
naus e a suas expensas ultrapassou boa parte do litoral do Atlântico onde foram
encontradas fortalezas, cidades e muitas ilhas. Em todos estes lugares a fé de Cristo
tornou-se conhecida por meio de seu trabalho e aí também foram erguidos templos,
sobretudo em ilhas, outrora desertas, das quais a primeira, ilha das Madeiras,
vulgarmente chamada Madeira, é hoje famosíssima e rica em frutos.
§13. Enfim, como instáveis são os destinos dos mortais, no ano 1460 da nossa
salvação, no dia 24 de outubro, D. Henrique morreu. Como não era casado, legou estas
navegações à Coroa do reino, como um bem hereditário, as quais, transferidas
204
diretamente para o reinado de D. João, segundo do nome, foram recebidas sem qualquer
rivalidade ou inveja dos reis e príncipes estrangeiros.
§14. Em vida deste rei o genovês Colombo, varão perito na arte da navegação,
recusado e não ouvido por este mesmo rei sucessor, a quem prometeu mostrar o
caminho das Índias Ocidentais, empreendeu com êxito aquela viagem, com a ajuda de
Fernando e Isabel, reis de Castela, e encontrou primeiro aquelas províncias vastíssimas
e de grande proveito que puderam ser alcançadas com seus navios. Então, como há
tempos desejasse com todas as forças os tesouros das Índias Orientais sobre cuja
abundância eram informadas muitas e variadas coisas pelos escritos dos antigos, este D.
João decidiu, entre outros esforços e incontáveis gastos dos quais não se poupou, enviar
alguns homens conhecedores da língua árabe àquelas províncias, sobretudo ao reino do
Preste João. Dois deles foram Afonso de Paiva, natural de Castelo Branco, e João Pero
da Covilhã, ambos portugueses. Sempre se disfarçando de mercadores, começaram a
viagem em 7 de maio do ano 1486 do nascimento de Cristo Salvador. Saindo de
Santarém, chegaram primeiro a Barcelona, em seguida a Nápoles, depois a Rodes. Por
fim, seguindo por Alexandria, chegaram ao Cairo onde conquistaram a amizade dos
mercadores que encontraram e seguiram em direção a Tor. Tendo embarcado neste
lugar aportaram em uma certa cidade de nome Suaquem, situada no litoral da Etiópia.
Depois navegaram para Adem, de onde, de comum acordo, Afonso dirige-se para a
Etiópia, ao encontro do Preste João, enquanto João Pero, por sua vez, segue para a
Índia. Assim, João Pero chegou a Calecute, Goa e, explorando todo o litoral dos
Malabares, navegou até Zofala. De lá voltou a Adem, onde embarcou diretamente para
o Cairo indo ao encontro do companheiro (quando se separaram em Adem, combinaram
então o tempo certo em que se encontrariam no mesmo lugar do Cairo) para voltarem a
Portugal e prestar contas ao Rei quando lá chegassem. Então recebeu uma carta do rei
D. João das mãos de dois judeus portugueses, Rabi Abrãao, de Beja e José de Lamego,
pelos quais soube que seu colega Afonso tinha morrido. Nesta mesma carta lhes era
ordenado que não voltassem à pátria sem ter visitado Ormuz e saudado o Preste João, de
cujo estado o rei muito desejava ser informado. Por causa disso, João Pero, ignorando o
que fizera seu colega Afonso enquanto viveu, a caminho de Adem tomou Rabi Abrãao
como companheiro e enviou José de Lamego com cartas ao rei nas quais informava
sobre suas viagens e feitos. Dali tomou um navio em direção a Ormuz. Deixando lá o
judeu Abrãao, a quem também entregou cartas para o rei, decidiu navegar em direção
205
a Meca e, depois de tê-la visto, sobreveio-lhe o desejo de ver o monte Sinai. De lá
partiu para Tor. Voltando a embarcar, atravessou o canal do mar da Eritréia e chegou a
Zeila, Percorreu a pé o resto do caminho até o palácio do Preste João – que naquele
tempo chamava-se Alexandre e o recebeu com todas as honras – ao qual entregou a
carta que trazia de D. João, oferecendo-lhe um mapa onde pôde ele saber sobre nossas
navegações. Alexandre foi surpreendido pela morte quando tinha consentido que João
Pero retornasse, mas este não o fez. Com sua morte, o irmão, chamado Nau, assumiu o
trono, mas dele João Pero nunca obteve igualmente permissão para retornar a Portugal.
Com a morte de Nau, também por seu filho David, herdeiro do reino, a permissão foi
negada.
§15. Gratificado, então com grandes recompensas que a ele foram concedidas para
compensar a saudade da pátria (visto que deixar a província não era permitido) recebeu
como esposa uma nobre de quem teve muitos filhos. Nossos embaixadores o
encontraram e conversaram com ele no próprio palácio do Preste João, de onde
retornaram em 1526 da nossa salvação. De boa vontade o trariam de volta à pátria e ele
próprio estava desejoso de para lá voltar, mas isso nunca conseguiram obter de David,
que aos pedidos deles respondeu que tinha recebido aquele homem de seu pai Nau
juntamente com o reino e que desejava conservá-lo com amor e cuidado, como ao
próprio reino, e que ele não deveria renunciar ao modo de vida etíope. Junto deles,
tanto de seu pai quanto de sua liberalidade grandes riquezas e posses tinha recebido.
Segundo contaram os nossos, ele foi retido tão avidamente pelos imperadores da Etiópia
por ser versado na língua de quase todos os homens e principalmente pela sua grande
prudência. Assim, conheceram com exatidão Portugal e suas navegações, pois, como
douto e eloqüente que era, por meio destes conhecimentos, muito mais ainda conciliou
conosco a nação etíope.
§16. Com a morte de D. João II e sucedendo-o D. Manuel, o Venturoso, com a
esquadra que Vasco da Gama comandava e que saiu de Lisboa em 1497, tendo primeiro
ultrapassado o Cabo da Boa Esperança, chegaram enfim os nossos às Índias Orientais,
onde empreenderam inúmeras guerras e subjugaram a nosso império muitas províncias
e cidades. Quando tais fatos foram conhecidos na Etiópia, tanto por vizinhos quanto
por alguns portugueses que naquele tempo vieram da Índia ao palácio do Preste João,
Helena, avó de Davi, que, em virtude da tenra idade desse mesmo Davi, tornara-se
regente do império, enviou um certo Mateus – armênio, homem de muitos saberes e
206
perito em línguas – ao rei D. Manuel de Portugal. E para que houvesse maior
autoridade e confiança na embaixada enviou também um jovem nobre abissínio. Eu
mesmo freqüentemente os encontrei em nosso palácio e com eles conversei com
familiaridade. Assim esse Mateus em diversas viagens chegou a Goa onde foi recebido
condignamente pelo governador Afonso de Albuquerque e depois, obsequiosamente
liberado, embarcou em nossos navios e dirigiu-se a Lisboa. Depois que prestou contas
de sua missão a D. Manuel, deu ao rei uma cruz feita da madeira em que Cristo morreu,
a qual freqüentemente vi e venerei enquanto meu irmão Frutuoso de Góis, criado de
quarto do rei a teve sob sua guarda. A carta que então trouxera consigo para D. Manuel,
da parte de sua governante, assim falava:

Carta II - Carta de Helena, avó de Davi, Preste João Imperador dos etíopes para D.
Manuel, rei dos portugueses (e colônias), escrita no ano de 1509.

§17. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, um só Deus em três Pessoas, que
a saúde, a graça e a bênção de Nosso Senhor e Redentor Jesus Cristo, filho de Maria
Virgem, nascido na casa de Belém, esteja sobre nosso dileto irmão, cristianíssimo rei D.
Manuel, dominador do mar, vencedor dos ferozes e infiéis mouros. Que o Senhor Deus
te conceda a boa sorte e te dê a vitória sobre os inimigos. Que Ele aumente e amplie
teus reinos e domínios longa e infinitamente pelas devotas preces dos mensageiros do
Cristo Redentor, os quatro evangelistas, João, Lucas, Marcos e Mateus, e que a
santidade e as orações deles te animem.
§18. Muito cordialmente te informamos, dileto irmão, que chegou até nós desse vosso
grande e majestoso palácio dois mensageiros, ambos com o nome de João um dos quais
se dizia presbítero, e o outro era João Gomes, que nos pediram provisões e soldados.
Por isso enviamos nosso irmão Mateus, embaixador a nosso serviço, com licença do
patriarca Marcos, que nos abençoa, é nosso pai e de todos os nossos reinos, coluna de fé
de Cristo e da Santíssima Trindade, levando presbíteros a Jerusalém. Este, por nossa
ordem, enviou mensagem ao maior comandante dentre os vossos, que, pela fé no Nosso
Salvador Jesus Cristo, lutam na Índia, informando-lhe que estaríamos prontos a enviar
tanto suprimentos quanto soldados se necessário fosse. Soubemos, entretanto, que o
príncipe do Cairo organiza uma grande armada contra vossas tropas certamente para se
vingar das injúrias e danos, que pelos comandantes das milícias que manténs na Índia,
freqüentemente são infligidos a eles (como é evidente para nós). Que Deus, em sua
207
santa bondade mais e mais te engrandeça, que sejas afortunado e dignificado em todos
os dias para que então todos os infiéis juntos sejam colocados inteiramente sob o teu
jugo.
§19. Nós, portanto, haveremos de enviar contra os insultos deles tropas de soldados,
que permaneçam no estreito de Meca, principalmente, Babel Mendel, ou, caso a ti
pareça mais conveniente, no porto de Judá ou Thor, para que deste modo então afastes e
elimines mouros e incrédulos da face da terra, e que também não mais sejam lançadas
aos cães os presentes e as oferendas levadas ao Santo Sepulcro.
§20. Eis que já é chegado o tempo prometido em que, como dizem, Cristo e Sua Mãe
Maria predisseram que nasceria, evidentemente num futuro distante, na região dos
francos, certo rei que eliminaria do universo a raça dos mouros e dos bárbaros, e é
exatamente este o próprio tempo de agora, o futuro que Cristo prometeu à sua Bendita
Mãe.
§21. Continuando, o que quer que nosso enviado Mateus vos disser, acolhei como
vindo de nossa parte e nele confiai. Ele figura com distinção entre os principais do
nosso palácio, por isso decidimos enviá-lo. Mandaríamos certamente estas notícias
junto com teus mensageiros para cá enviados, mas tomou-nos o medo de que nossas
informações não chegassem ao teu conhecimento, segundo nossa intenção.
§22. Pelo nosso orador Mateus, enviamos a ti uma cruz, feita indubitavelmente do
pedaço de madeira em que Nosso Salvador Jesus Cristo foi crucificado em Jerusalém.
Este sacrossanto pedaço de madeira de lá nos foi trazido. Fizemos dele duas cruzes:
uma delas permanece conosco, a outra demos a esse nosso embaixador para ser levada a
ti. A madeira é de cor negra e pende de uma pequena argola de prata.
§23. Além disso, se fosse vosso desejo unir em matrimônio vossas filhas a nossos
filhos, ou dar nossas filhas a vossos filhos, isso seria, acima de tudo, não só um grande
prazer para nós, mas também, para ambos; início de uma aliança útil e fraterna entre
nós, que decerto muito desejamos; que a realização dessas núpcias consolide a união
convosco tanto no presente como no futuro.
§24. Que a saúde e a graça de nosso redentor Jesus Cristo e de Nossa Senhora Maria
Virgem se estenda tanto sobre vós e todos os seus filhos e filhas quanto sobre vossa
casa. Amém.
§25. Além disso, mais certos vos deixamos de que, se quisermos unir nossas lutas e
nossos exércitos, há de ser bastante a nossa força para (juntamente com o auxílio
208
divino) destruirmos todos os inimigos da nossa santa fé. Contudo nossos reinos e
domínios ficam, de tal maneira, no interior do continente, que por nenhum lado nos é
possível chegar diretamente ao mar. Por isso nenhum poder temos no mar, onde (graças
a Deus) vós sois os mais poderosos de todos. Que Jesus Cristo vos auxilie, pois as
coisas que por vós foram realizadas na Índia são realmente mais milagrosas que
humanas. Quanto ao mais, se quiserdes armar mil navios, forneceremos, não só
provisões, mas também dispensaremos em abundância tudo o que for necessário para
essa armada.

§26.Damião de Góis: Esta carta, com outros artigos da fé, religião, costumes e situação
dos etíopes, que Mateus em pessoa explicou a D. Manuel e a seu Conselho, por
exortação de João Magno, Arcebispo de Upsala, no reino da Suécia, com o qual na
Prússia contraí grande amizade, passei-a do português em que a tinha escrito para a
língua latina; junto com os mesmos artigos foi ela depois, não sei como, publicada em
Antuérpia.¹
§27. D. Manuel, como era muito prudente, e também ávido de divulgar a fé cristã,
depois do relato dos embaixadores da Etiópia, mandou organizar uma embaixada com
homens muito sérios e ilustres cujos chefes foram Duarte Galvão, homem conceituado,
tanto pela idade quanto pela prudência e Francisco Álvares, sacerdote e incumbido das
coisas sagradas da corte, também este idoso e de costumes irrepreensíveis; a ambos
conheci de vista. Com Mateus seguem eles para a Índia, sob o comando de Lopo
Soares, e por fim de Diogo Lopes de Sequeira, comandante que o sucedeu, quando a
armada que tinha preparado contra os Turcos desviou-se do destino para o porto de
nome Arquico, no litoral da Eritréia e sob o domínio do Preste João. O navio aí aportou
no ano da salvação de 1520, no dia 2 de abril. Durante a viagem, em Camarões, ilha do
mar da Eritréia, morreu Duarte Galvão e substituiu-o no posto Rodrigo de Lima, que do
mesmo porto de Arquico, no dia 29 do mesmo mês, com os integrantes da mesma
embaixada, juntamente com o comandante e o companheiro Mateus (pois aquele jovem
abexim de quem acima falamos tinha morrido) começou a seguir em direção à corte do
Preste João; nesta viagem também morreu Mateus e foi sepultado pelos nossos num
célebre mosteiro chamado Bisayn. Depois dos ofícios fúnebres retomaram a viagem
_____________________
1-Trata-se da Legatio Magni Indorum imperatoris Presbyteri Joannis ad Emmanuelem Lusitaniae regem, que
Cornelius Grapheus entregou a seu irmão para imprimir, sem conhecimento de Damião de Góis. (conf.
BATAILLON, 1935, 30)
209
que haviam começado e após um longo percurso, infinitos trabalhos e enormes perigos
chegaram ao palácio do Preste João, pelo qual Rodrigo foi acolhido honrosamente junto
com seus companheiros e, finalmente,concluída a missão retornou com a resposta a D.
Manuel. Tendo seguido com sua embaixada em direção a Arquico, não encontrou a
armada comandada por Luís Meneses, que viera para reconduzi-los (a Portugal) e que
não pode esperá-los por causa do rigor dos ventos que naquelas plagas, por admirável
mistério da natureza sopram por seis longos meses e de uma direção do céu, depois, por
outros seis meses, da parte contrária¹. Em Arquico encontrou, em poder do governador
da fortaleza, uma carta deixada pelo comandante Luís do qual recebe a notícia da morte
de D. Manuel. Por isso decidiu retornar ao reino do Preste João, quando este então
escreveu para o Sumo Pontífice e entregou a carta a Francisco Álvares para, na volta,
ser levada a Roma. Todos eles, retidos já no espaço de seis anos naquelas províncias,
enfim embarcaram com o legado etíope² que o Preste João enviava ao nosso rei, em
outra armada real que viera por causa deles, e deu-se isto no ano de 1526, no mês de
abril. Daí, levantando âncora, dirigem-se à Índia e por fim, depois de uma longa
viagem, desembarcam em Lisboa, no mês de julho do ano de 1527, e em presença de D.
João, que por certas circunstâncias desta embaixada reteve o legado etíope na corte até
1539. Enviou ao Papa Clemente VII, com a carta do Preste João, o padre Francisco
Álvares, que viera como emissário da Etiópia. O próprio Pontífice recebeu a carta das
mãos do mesmo Francisco Álvares, em Bolonha, no mês de janeiro de 1533, na
presença do Imperador Carlos V. A leitura desta e de outras cartas para D. Manuel e D.
João, deve-se a Paulo Jóvio, varão erudito, que as verteu do idioma português em
que estavam escritas para o latim, como agora se pode ver.

Carta III - Carta do Sereníssimo Davi, Imperador da Etiópia a D. Manuel, Rei de


Portugal, escrita no ano de 1521, na versão de Paulo Jóvio.

§28. Em nome de Deus Pai, de Quem, como sempre foi, não se descobre a origem.
Em nome de Deus Filho, único, que é semelhante a Ele, antes que fosse vista a luz das
estrelas, antes que se lançassem os fundamentos do Oceano, que em outro tempo,
porém, foi concebido no ventre da Virgem Maria, sem pecado e sem núpcias. Deste
modo porque assim fora instruído. Em nome da santidade do Espírito Paracleto que
_____________________
1-Monções.
2-Zaga-Zabo. 210
conhece todos os segredos que existem, desde sempre até agora, de todas as alturas do
céu, que mesmo sem colunas e sem nenhum apoio se sustenta, que fez a terra, que antes
não estava criada nem era conhecida em todas as partes, de leste a oeste, e de norte a
sul. Nem é esse o primeiro, ou o segundo, mas é a Trindade Una, num só eterno criador
de todas as coisas, por uma só lei e por uma só palavra, pelos séculos dos séculos.
Amém.
§29. Esta carta enviou-a Atani Tinghil, isto é, Incenso da Virgem, que é seu nome de
batismo. Agora, ao assumir o reino de verdade, tomou o nome de David, querido de
Deus, coluna de fé, descendente da estirpe de Judá, filho de David, filho de Salomão,
filho da coluna de Sion, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria, filho de Nau
pela carne, Imperador da grande e alta Etiópia, dos grandes reinos, domínios e terras, rei
de Xoa, de Cafate, de Fatigar, de Angote, de Baru, de Baaliganze, de Adea, de Vangue,
de Goiame, onde o Nilo nasce, de Damara, de Vaguemedri, de Ambea, de Vagne, de
Tigri Mahon, de Sabaym, de onde foi a rainha de Sabá, de Bernagaes e senhor até a
Núbia, na fronteira do Egito. Esta carta é dirigida ao poderosíssimo e excelentíssimo,
sempre vitorioso rei D. Manuel, que vive no amor de Deus e permanece firme na fé
católica, filho dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, rei de Portugal e Algarves, amigo dos
cristãos, inimigo, juiz, imperador e dominador dos mouros e dos povos da África e da
Guiné, desde o promontório e da ilha da Lua do Mar Vermelho, da Arábia, da Pérsia e
de Ormuz, da grande Índia e de todos os seus territórios, de todas as ilhas, terras
adjacentes, vencedor dos Mouros e dos fortes pagãos, senhor de fortalezas, dos altos
castelos e muralhas, propagador da fé de Jesus Cristo. Que a paz esteja contigo, Senhor
D. Manuel, que apoiado no auxílio de Deus, elimines os mouros e, com tua armada, teu
exército e teus comandantes, de todas as partes expulses os infiéis como cães. Que a
paz esteja com a rainha, tua esposa, amiga de Jesus Cristo, serva de Maria Virgem, Mãe
do Salvador de todos os mundos; que a paz esteja com teus filhos, agora, como num
jardim viçoso e florido com lírios, a mesa farta preparada; que a paz esteja com vossas
filhas que são adornadas de vestes como se embelezam palácios com tapetes; que a paz
esteja com teus parentes, nascidos da coxa dos santos, pois como dizem as Sagradas
Escrituras, os filhos dos santos são benditos e grandes, fora e dentro da casa. Que a paz
esteja com teus conselheiros, servidores, autoridades e juízes; paz para teus
comandantes de fortalezas, fronteiras e de todas as regiões defendidas; paz para todas as
pessoas, cidadãos e cidades e todos os seus habitantes, exceto mouros e judeus; paz para
211
todas as paróquias e para todos os fiéis a Cristo e a ti. Amém.
§30. Eu soube, Senhor Rei e meu pai, que quando chegou a ti a fama do meu nome
levada por nosso embaixador Mateus, sem demora mandaste chamar um grande número
de bispos, arcebispos e prelados que deram graças ao Cristo Deus por esta embaixada, e
que o próprio Mateus foi recebido com grande honra e alegria, razão pela qual
maravilhosamente alegrei-me e dei igualmente graças a Deus; e isto fez também meu
povo com devotamento. Lamentei, porém, quando soube por eles que o mesmo Mateus
em seu retorno, ao entrar em meus domínios, morreu no mosteiro de Bisayn. Não fora
eu, entretanto, quem o enviara, pois era então uma criança de onze anos quando recebi o
cetro (do reino) após a morte de mau pai, mas a rainha Helena que eu venerava no lugar
de minha mãe e governava por mim. Esse Mateus era um mercador chamado Abraão,
mas adotara um novo nome para viajar mais seguro pelas terras dos mouros. Mesmo
assim em Dabul ele foi reconhecido como cristão e aprisionado pelos mouros. Quando
informou o fato ao comandante dos teus exércitos, este enviou homens fortes que
libertaram o cristão do terrível cárcere, principalmente quando soube que se tratava do
meu mensageiro. Desse modo, após resgatá-lo das mãos dos inimigos, cuidou que fosse
transportado em vossos navios à presença de Vossa Alteza. Mateus, em meu nome, te
apresentou, ó senhor rei, minhas recomendações e em resposta, informou-me que foi
recebido com honras e fartamente agraciado com toda sorte de presentes, o que
igualmente afirmaram vossos emissários, que o grande Capitão de vossa armada Diogo
Lopes de Sequeira nos enviou e que trouxeram a carta que Duarte Galvão deveria trazer,
mas este morrera na ilha de Camarões. Diante da referida carta muito me alegrei e dei
graças a Deus. Então senti grande prazer quando notei o peito de vossos emissários
repleto de cruzes e, perguntando, soube que observavam os preceitos da fé cristã, que
eram os mais verdadeiros. Aquilo me comoveu tão profunda e vivamente, pela rara
devoção inspirada que entendi que só por milagre fora descoberto o caminho para a
Etiópia. Supunham, com efeito, que o capitão da armada, andasse perdido, por muito
tempo, pelos mares da Arábia e por se desesperar com a impossibilidade de encontrar o
nosso porto quisesse voltar à Índia, principalmente por causa das cruéis tempestades do
mar. Mas ao amanhecer, providencialmente, apareceu no céu uma cruz vermelha que
foi saudada pelos marinheiros e quando Deus mostrou que as proas fossem dirigidas
naquela direção, nosso porto foi encontrado, coisa que por mim foi vista como um
milagre. E vimos que certamente o capitão deve ser muito amado pelo Pai, depois que a
212
ele fora concedida tanta felicidade que ninguém antes dele pudera obter de Deus.
§31. Sobre esta recíproca embaixada, já foi outrora predito pelo Profeta no livro da
vida de São Vítor e nos livros dos santos padres, que um grande rei cristão haveria de se
unir a um rei da Etiópia em mútua paz, mas de modo nenhum imaginava eu que tal se
daria em meus dias de vida. Deus, porém, certamente sabia que seria louvado o nome
daquele que confiou a mim a notícia para que eu igualmente a pudesse enviar a ti, meu
pai em Cristo e amigo, para que vivamos em uma só fé, pois de nenhum outro rei cristão
recebi mensageiro ou notícia precisa. Até agora à minha volta estavam os mouros,
filhos de Maomé e os pagãos; os demais são escravos que não conhecem a Deus, há
outros que veneram o fogo e a madeira, uns que adoram o sol e ainda outros que julgam
que as serpentes são deuses. Com esses nunca tive paz; recusam-se a alcançar a verdade
e eu, em vão, lhes pregava a fé. Agora estou realmente em paz com os meus e os teus
inimigos e Deus me deu de presente a tranqüilidade. Na verdade em meus domínios
quando armado contra eles avanço, viram a face e as costas e meus comandantes e
soldados alcançam vitórias sobre eles no campo de batalha. E Deus não volta sua ira
contra mim como diz o Livro dos Salmos e atende aos pedidos daqueles reis que pedem
coisas justas, e isto não se refere à nossa glória. Devemos, pois, dar graças a Deus, a
Ele que vos deu o mundo, e concedeu-vos para sempre a terra dos pagãos e as terras dos
outros, as quais estão desde os limites das vossas até o início da Etiópia. Por isso dou
infinitas graças a Deus e proclamo seu altíssimo poder, como espero que os filhos destes
povos que vierem para o teu domínio haverão de conhecer a verdade da fé sem
nenhuma dúvida. Eis por que dou graças a Deus e espero que vossos filhos, eu e vós
nos alegremos com os felizes êxitos destas ações. E tu deves rogar a Deus
continuamente, até que Ele te dê a graça de apoderar-se do templo santo em Jerusalém
que está em poder dos inimigos de Cristo: mouros, pagãos e hereges. E, se tal fizeres,
estará tua cabeça repleta de toda glória. Dos três emissários que vieram ao meu reino
com o já citado Mateus, um morreu¹, e o grande capitão de tua armada dirigiu-se a
Maçuá para conversar com o rei de Bernagais que é vassalo do meu império e logo me
enviou emissários e soberbos presentes que muito me agradaram, porém o vosso nome
parece-me mais precioso que toda gema ou tesouro. Mas passemos isto e ocupemo-nos
juntos de como poderemos invadir e conquistar as outras terras dos infiéis. Eu,
seguramente, participarei com centenas de milhares de dracmas de ouro e o mesmo
_____________________
1-Duarte Galvão.
213
tanto de milhares de soldados. E igualmente combinaremos em conjunto, amigo, o
material, seja ferro, ou cobre para construir e equipar a esquadra e também a grande
quantidade de provisões; e visto que não é do meu costume e dignidade enviar legados
para pedir a paz, tu primeiro a pediste por mim e com sinceridade para observar as
palavras de Cristo, pois foi escrito: Felizes os pés que trazem a paz. E eu estou
preparado para isso, conforme o costume dos Apóstolos que eram unânimes e de um só
coração.
§32. Ó rei e meu pai, D. Manuel, que Deus único que é o Deus do céu te queira e
conserve a salvo e sempre de uma única substância, sem rejuvenescer nem envelhecer.
Aquele que levou a ti minha mensagem, chamava-se Rodrigo Lima, o primeiro dos
melhores homens da embaixada e com ele Francisco Álvares, que pela probidade da
vida e singular religião e justiça tive em elevadíssima estima, sobretudo porque
respondia com palavras muito verdadeiras e sabiamente quando era interrogado sobre a
fé. Portanto deves não só exaltá-lo e considerá-lo um mestre, mas também incumbi-lo
da tarefa de converter os povos de Maçuá, Dálaca, Zeila e de todas as ilhas do Mar
Vermelho, pois estão nos limites do meu reino. Em sinal de poder, concedi-lhe a cruz e
o bastão; e também que tais coisas sejam a ele concedidas e que seja nomeado bispo
daquelas terras e ilhas, pois ele bem o merece e é digno do ofício de administrar.
Desejo que Deus muito te beneficie para que sempre sejas forte contra os teus inimigos,
obrigando-os a prostrar-se a teus pés. Que Deus prolongue a vida de Vossa Alteza e te
conceda um ótimo lugar no reino dos céus, como desejo para mim mesmo. Ouvi
também, com meus próprios ouvidos muito boas coisas sobre ti e vi com meus próprios
meus olhos o que de modo nenhum acreditava ver, e queira Deus que tudo de bom a
melhor te aconteça e que, onde é o lugar dos santos, lá seja o teu lugar sobre além da
linha da vida. Amém.
§33. Eu, assim como um simples filho, fiz o que ordenastes e mais farei se
sucessivamente vierem legados teus para que nos ajudemos mutuamente. A cada um
dos teus embaixadores que aqui vierem, como já fizeste ir a Maçuá, Dálaca e portos
dentro do estreito do Mar Vermelho, cuidarei para que sejam atendidos rigorosamente
como for o desejo de Vossa Alteza, para que quanto antes nos unamos nos propósitos e
nas ações. Efetivamente, quando tuas tropas aportarem nesta costa, no momento certo
estarei presente com meus exércitos. E, como nesta parte do meu reino, não se vê
nenhum cristão nem igrejas, darei permissão a teus homens para ocupar aquelas terras
214
que estão próximas dos domínios dos mouros; por isso é necessário que teus planos
sejam levados a efeito.
§34. Por agora, envia-me homens sábios e também cinzeladores de imagens de ouro e
de prata, bem como artífices em cobre, ferro, estanho e chumbo e impressores que
produzam livros da Igreja em letras da nossa língua; outros, também, que saibam fazer
do ouro finíssimas folhas e com estas dourar outros metais. Estes serão tratados em
minha corte com toda distinção e se quiserem desistir dos seus trabalhos a eles pagarei
uma grande remuneração. E juro por Deus e por Jesus Cristo, filho de Deus, que
haverei de deixá-los à vontade como bem quiserem. Isto te peço, também, totalmente
confiante, pois de ti só posso esperar virtude e bondade. E sei que sou muito amado por
ti e isto reconheci com mais certeza porque, em consideração a mim, recebeste Mateus
honrosamente e, livremente, o fizeste retornar. E para demonstrar meu empenho em
consegui-lo, tudo pagarei para que isto não te traga constrangimento. Aquilo que um
filho pede ao pai, este não deve negar, e tu sois meu pai e eu sou teu filho; sejamos
igualmente unidos como se juntam em uma parede um tijolinho com outro; assim
combinemos dois em um só coração e no amor de Jesus Cristo que é cabeça do mundo,
e portanto, os que se assemelham a ele são tijolinhos unidos em uma muralha.

Carta IV - Carta do mesmo David, Imperador da Etiópia, a D. João III, Rei de Portugal,
escrita no ano de 1524, traduzida por Paulo Jóvio.

§35. Em nome de Deus Pai onipotente, Criador do céu e da terra e de todas as coisas
feitas, visíveis e invisíveis. Em nome de Deus Filho, Cristo, que é Filho, desígnio e
profeta do Pai. Em nome de Deus do Espírito Santo Paracleto, Deus vivo, igual ao Pai e
ao Filho, que falou pela boca dos profetas, inspirando sobre os Apóstolos, para darem
graças e louvarem a Trindade Perfeita no céu, na terra, no mar e nas alturas sempre.
Amém.
§36. Envio esta carta e mensagem – eu, Incenso da Virgem, que é meu nome de
batismo, que, agora de fato, com o Cetro do Império assumi o nome de David, querido
de Deus, coluna de fé estirpe de Judá, filho de David, filho do rei Salomão de Israel,
filho da coluna de Sião, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria e filho de Nau
pela carne - ao maior e mais poderoso e altíssimo rei João de Portugal e Algarves, filho
do rei D. Manuel. Que a paz esteja contigo e que a graça de nosso senhor, Jesus Cristo,
esteja sempre contigo. Amém. 215
§37. No tempo em que me foi falado sobre o poder do rei, teu pai, que debelava os
desprezíveis mouros, filhos de Maomé, muitas graças dei ao Pai pela expansão,
grandeza e pelo círculo de preservação da cristandade em vossa pátria. De modo
semelhante, enchi-me de satisfação com a chegada dos embaixadores que me trouxeram
palavras do próprio rei e por intermédio dos quais concretizou-se entre nós um especial
amor, amizade e aliança para juntos erradicarmos e repelirmos os terríveis mouros e
incrédulos pagãos que habitam entre o teu e o meu reino. Estando eu ainda nesta
alegria, soube que teu pai – e meu também – morrera quando daqui partiram meus
emissários. Por isso meu júbilo subitamente converteu-se em tristeza e, nesta dor do
meu coração, também com grande pesar, enlutaram-se comigo os nobres da minha
corte, prelados eclesiásticos e os que vivem em mosteiros, em suma, todos os meus
súditos. Assim igualou-se a satisfação da primeira notícia com a tristeza desta mais
nova.
§38. Senhor, desde o começo do meu reinado até agora, nenhuma embaixada e
nenhum emissário do rei ou do reino de Portugal chegou até mim, senão enquanto viveu
o rei, teu pai, que me enviou seus comandantes e comitivas com clérigos e diáconos que
trouxeram todo o aparato das missas solenes. Por isso imensamente me alegrei e
recebi-os com todas as honras e, pouco depois, deixei-os retornar com honra e em paz.
E depois que chegaram ao porto de mar que existe em meus domínios no Mar
Vermelho, não encontraram o grande capitão da armada que teu pai enviara. Como era
de costume de três em três anos nomear o alto comando da armada, este, na verdade,
não esperou e depois disso me explicou por que não pôde esperar.
§39. Só muito depois, chegou outro recém-nomeado, razão pela qual, os
embaixadores demoraram mais do que requeria a missão.
§40. Agora, porém, envio mensagens minhas pelo irmão de Cistóvão Licanato, cujo
nome de batismo é Zaga-Zabo, certamente por graça do pai que pessoalmente exporá a
ti minhas necessidades e, ao Papa Romano, envio também Francisco Álvares que em
meu nome prestará obediência como é justo.
§41. Ó Senhor Rei, meu irmão, observa atentamente a amizade que teu pai iniciou
entre nós e envia ininterruptamente embaixadores e cartas pois muito as desejo receber
como de um verdadeiro irmão, pois assim é uma vez que ambos somos cristãos. Os
mouros, que são maus, mostram-se sempre unidos em sua seita e agora declaro que não
quero no futuro receber embaixadas do rei do Egito nem igualmente de outros reis que
216
freqüentemente me enviam emissários, mas somente de Vossa Alteza, os quais, o
quanto possível desejo que venham, visto que os reis mouros não me têm na conta de
amigo por causa da diferença de religião, mas fingem amizade para praticarem, em
nossos reinos, o comércio de tudo e mais livremente, donde obtêm grandes lucros.
Levam de nossas terras grande quantidade de ouro do qual são avidíssimos, e como nem
são meus amigos, nenhuma satisfação me dão dos seus proveitos. Mas foi preciso
tolerar isto porque foi há muito estabelecido, desde os mais antigos dos nossos reis. E
se de algum modo não lhes declaro guerra e os derroto completamente é para que eles –
e julgo que devo evitar isto – não invistam contra o sagrado templo em Jerusalém e
destruam o sepulcro de Jesus Cristo, que Deus permitiu que caísse em poder dos
repelentes mouros, assim como arrasaram outros templos no Egito e na Síria. É esta a
razão por que não os ataco e debelo, muito me desgostando disso. Além de que, mais
facilmente me convenço de que isto deve ser feito, quando não tenho nenhum rei cristão
que me ajude e torne alegre meu coração. De modo algum, senhor meu rei, eu posso
alegrar-me com os reis cristãos da Europa quando ouço que eles não constituem um só
coração e fazem guerra entre eles. Vivei todos juntos em total harmonia. Deveríeis
realmente estreitar os laços entre vós. Com certeza, se existisse um rei cristão próximo
de minhas terras, em nenhum momento eu me afastaria dele e sobre isso não sei
claramente o que dizer ou mesmo fazer, já que parece que assim foi determinado por
Deus. Peço, Senhor meu rei, que me envies constantemente teus emissários, pois
quando vejo tuas cartas contemplo também tua face, porque nasce uma amizade maior
entre os que vivem separados e distantes do que entre os que vivem próximos por causa
da falta a que estão sujeitos. Assim aquele que tem tesouros escondidos, quando não os
vê com os olhos, sempre vê com o coração e portanto ama intensamente. Segundo diz
Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho, onde está o teu tesouro, aí está teu coração;
assim meu coração está contigo, pois tu és o meu tesouro e deveis igualmente tornar-me
o teu tesouro e o teu coração juntar-se sinceramente com o meu. Ó Senhor, meu irmão,
guarda esta palavra, pois és prudentíssimo e, segundo ouço, semelhante ao teu pai em
sabedoria. E em reconhecimento disso, logo dei graças a Deus, libertando-me da dor; a
alegria apoderou-se de mim e eu disse Bendito seja o filho sábio, filho do rei D.
Manuel, o de boa memória, que ocupou o trono dos seus reinos. Ó Senhor meu, cuida
de não te esgotares, porque és forte como teu pai, nem demonstrar fraqueza contra os
mouros e pagãos, pois com o auxílio de Deus e ajudado pela virtude que é grande em ti,
217
facilmente os debelarás e destruirás. E não digas que da parte de teu pai os recursos são
exíguos para ti, pois eles são com certeza bastante grandes e Deus sempre te trará a
abundância. Tenho homens, ouro e provisões equivalentes, na quantidade, à areia do
mar e às estrelas do céu. Juntos nós igualmente destruiremos toda a barbárie dos
mouros, e não te peço outra coisa senão homens peritos que ensinem meus soldados a
manter a ordem nos combates. Subiste ao trono, já homem de idade vigorosa. O rei
Salomão recebeu o império aos doze anos, teve muitos recursos e foi mais sábio que o
pai. Eu também quando Nau, meu pai, deixou a vida humana, era uma criança de onze
anos e, subindo ao trono com a ajuda de Deus, consegui maiores recursos e forças que
ele, pois em minha mão encontram-se todos os vizinhos e povos do reino. Assim sendo,
ambos devemos dar graças a Deus por tantas dádivas recebidas. Ouvi-me, senhor e
irmão meu: nesta única palavra proponho-te que me sejam enviados homens doutos e
também artífices que saibam fabricar imagens, livros impressos, espadas e toda sorte de
armas militares. Também arquitetos, carpinteiros e médicos que ensinem a fazer
remédios e a curar feridas. Desejo também os que saibam afinar o ouro em folhas e,
particularmente, sejam hábeis em cinzelar o ouro e a prata. Também os que saibam
cavar dos veios da terra o ouro e a prata e explorar as minas de todos os metais.
§42. Por todos em minha corte serão bem-vindos os que fizerem telhas de chumbo e
ensinarem a fazer telhas de barro, todos os artífices, enfim, me serão úteis,
especialmente os das armas de guerra. Ajuda-me, peço, nestas tarefas como um irmão
a outro irmão e Deus também te ajudará e livrará de todo mal. Que Deus atenda tuas
súplicas e orações como recebeu os sagrados sacrifícios em todos os tempos e nos
primeiros sacrifícios de Abel e Noé quando saiu da arca, o de Abrão quando esteve na
Terra de Madian, o de Isaac quando saiu da cova do juramento, o de Jacó na casa de
Belém, de Moisés no Egito, de Aarão no monte, de Jeson, filho de Nau em Galgala, de
Gedeão na praia, de Sansão quando teve sede na terra seca; do profeta Samuel em
Rhama, de Davi em Nacira, de Salomão na cidade de Gabeão, de Elias no Monte
Carmelo, quando ressuscitou o filho da mulher viúva de Rica sobre o poço, de Josafá no
combate, de Manassés quando pecou e se converteu a Deus, de Daniel na cova dos
leões, dos três companheiros Sidrá, Misac e Abdenago no calor ardente do fogo, de Ana
diante do altar, de Neemiania, que fez muros com Zorobobel, de Matias com seus filhos
sobre a quarta parte do mundo, e o de Esaú sobre a bênção. Assim, senhor, Deus
receberá teu sacrifício e súplicas e te ajudará e será por ti contra todas as perversidades
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em todos os tempos e a cada dia.
§43. Que a paz esteja convosco, que eu abraço com os braços da santidade e, como
abraço a vós, também a cada um dos vossos conselheiros do santo reino de Portugal,
bem como os Arcebispos, Bispos, Sacerdotes, Diáconos e homens ou mulheres. A graça
de Deus e a bênção da Virgem Maria, Mãe de Deus esteja contigo e com todos. Amém.

Carta V - Carta do mesmo Sereníssimo Davi, Imperador da Etiópia ao Pontífice


Romano, escrita em 1524, com Paulo Jóvio intérprete.

§44. Em nome de Deus pai onipotente, criador do céu e da terra, visível e invisível.
Em nome de Deus Filho, Jesus Cristo, que é igual ao Pai desde o princípio do mundo e
é luz da luz de Deus Espírito Santo, do Deus vivo que provém de Deus Pai.
§45. Envio esta carta, eu, o rei cujo nome os leões veneram e com a graça de Deus
sou chamado Athani Tinguil, isto é, Incenso da Virgem, filho do rei Davi, filho do rei
Salomão, filho da mão de Maria, filho de Nau pela carne, filho de São Pedro e São
Paulo pela graça. A paz esteja convosco, justo Senhor, santo padre, poderoso, puro,
sagrado, que sois cabeça de todos os Pontífices e a ninguém temeis, porque ninguém
vos pode maldizer, que sois muito vigilante guardião sobre as almas e amigo dos
peregrinos, mestre consagrado e pregador da fé, inimigo de todas as coisas que ofendem
a consciência, amante dos bons costumes, homem santo que todos louvam e bendizem.
Ó feliz santo padre, eu vos obedeço com reverência, porque sois a paz de todos e
mereceis todas as boas coisas. É assim justo que todos prestem obediência a vós, como
os santos Apóstolos recomendam para com Deus. Na verdade isto é próprio de vós,
assim também recomendam que veneremos os Bispos, Arcebispos e Prelados, do
mesmo modo vos amemos como a um pai, temamos como a um rei e confiemos como
em Deus. Pois eu com o coração sincero vos digo humildemente e com os joelhos
postos no chão que vós santo padre sois meu pai e eu sou vosso filho. Ó santo e
poderosíssimo padre, por que jamais nos enviastes alguém para que melhor soubésseis
da minha vida e saúde? Porque vós sois pastor e eu vossa ovelha e o bom pastor nunca
esquece do seu rebanho, não devo ser considerado excessivamente afastado de vossas
terras ou de vós para que não possam vir a mim vossos mensageiros, como vêm de
remotíssimos reinos da terra. A propósito, o rei D. Manuel de Portugal, vosso filho,
enviou-nos seus emissários e se Deus lá no céu não quisesse chamá-lo a si, longe de
219
dúvida teriam bom êxito aquilo de que então tratávamos. Agora espero muitíssimo
ouvir de Vossa Santidade coisas propícias e salutares, por constantes embaixadores.
§46. Nunca, com efeito, recebi de Vossa Santidade uma única palavra, apenas tenho
ouvido alguma coisa dos nossos, que peregrinam por causa de seus votos. Mas estes
como não se afastam em meu nome nem trazem qualquer mensagem de vós, dizem sem
muita certeza, quando perguntamos, que uma vez cumpridos os votos, iam de Jerusalém
a Roma para visitar a morada dos Apóstolos, pois entendem que estes lugares podem
facilmente podem ser alcançados porque são ocupados por cristãos. E certamente tiro
das palavras deles imenso prazer visto que com tão doce inspiração contemplo a
imagem do vosso santo rosto que me parece semelhante à de um anjo e confesso amar e
venerar como tal. Mas realmente ser-me-ia mais grato e agradável apreciar com toda
devoção tuas próprias palavras em tuas cartas, por isso vos peço agora que me envieis
um emissário vosso com a bênção de Vossa Santidade para alegrar meu coração. E já
que comungamos na fé e na religião isto me parecerá antes de tudo muito desejável e
por isso peço também humildemente que guardeis a minha amizade no fundo do
coração, à semelhança do anel que trazeis no dedo e da corrente de ouro em vossos
ombros, para que minha lembrança nunca se apague do vosso espírito. Com efeito, a
amizade cresce infinitamente com cartas e palavras gentis quando cercada de santa paz
e da qual provém sem dúvida toda a alegria humana. Assim como aquele que
desesperadamente sedento deseja com ânsia a água fresca, como se tem nas sagradas
escrituras, assim meu espírito costuma acolher com incalculável júbilo as mensagens
que são trazidas por mensageiros e por cartas de terras mais distantes. E não só as
ouvirei se vierem da parte de Vossa Santidade, mas também me alegrarei
admiravelmente se forem notícias trazidas de cada um dos reis das terras cristãs. Como
acontece a estes, que combatendo escolhem e obtêm ricos espólios; isto facilmente pode
ser feito agora depois que o rei de Portugal, que a nós já em outros tempos enviou seus
embaixadores com intrépidos cavaleiros, descobriu todo o percurso. Durante o tempo
em que meu pai viveu e mesmo até agora não recebemos de algum outro rei cristão ou
do próprio Papa mensageiros ou pelo menos uma carta. Todavia em nossos arquivos,
do tempo do meu bisavô, conserva-se a memória de a carta que um Papa romano de
nome Eugênio enviou a estas terras quando reinava o filho de Jacó, rei dos reis de toda a
Etiópia, um rei temível. O prefácio desta carta era: “Eugenio, Pontífice Romano, ao
filho querido de nosso rei, da semente de Jacó, rei dos reis em toda a Etiópia, e muito
220
temido. Logo no início da carta ele indicava que seu filho João Paleólogo, que morrera
dois anos antes, tinha chamado o Imperador dos romanos para celebrar o Sagrado
Sínodo e com ele veio José, patriarca¹ de Constantinopla além de grande número de
arcebispos, bispos, e todo gênero de prelados, entre os quais estavam também
procuradores do patriarca de Antióquia, de Alexandria e de Jerusalém, todos que entre
si, com o amor da santa fé e religião firmemente se uniram e, constituída a unidade da
igreja, superaram, não sem o auxílio divino, as dificuldades de tempos antigos que
pareciam errôneas e contrárias à religião. Com a doutrina regularmente consagrada e
estabelecida, o próprio Papa proporcionou a todos especial alegria. Enviamos a Vossa
Santidade este livro do Papa Eugênio que conserváramos íntegro e enviaríamos também
toda ordem e poder da bênção pontifícia se não parecesse um volume muito grande o
conjunto destes dogmas e, pela magnitude, superasse inteiramente o livro de Paulo aos
povos. Os legados que isto nos trouxeram do Pontífice foram Teodoro, Pedro, Tiago e
Jorge, servos de Jesus Cristo. Vós, Santíssimo Padre, faríeis bem se mandásseis folhear
vossos livros, onde escrevemos sobre algumas destas coisas, para que, certamente, seja
encontrada alguma menção. Assim, Santo Padre, se escreverdes alguma coisa para nós,
considerai firmemente que há de ser registrada cuidadosamente em nossos livros para
que sempiterna memória destes fatos seja guardada para nossos descendentes. E
certamente me parece ser feliz aquele cuja memória registrada em cartas é conservada
na cidade santa de Roma, sede dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Estes, enfim, são os
senhores do reino dos céus e juízes de todo o universo. E porque assim creio, então
envio esta carta para que alcance a graça junto a Vossa Santidade e a Vosso Santíssimo
Senado e que daí provenha para mim a santa bênção e o aumento de todos os bens.
Com todas as forças peço então a Vossa Santidade que me envieis algumas imagens de
Santos e especialmente da Virgem Maria para que sempre esteja em minha boca e em
minha lembrança o nome de Vossa Santidade e colha de vossas dádivas júbilo
interminável.
§47. Por isso mesmo solicito com insistência que me envieis grandes conhecedores
das Sagradas Escrituras, e ainda artífices que fabriquem imagens e também espadas e
instrumentos bélicos de todo gênero, bem como cinzeladores de ouro e prata,
carpinteiros e principalmente arquitetos que construam casas de pedra e saibam fazer
_____________________
1-Os personagens do Antigo Testamento, habitualmente denominados “patriarcas”, eram chefes de grupos familiares
seminômades que iam de um lugar a outro em busca de comida e água para os seus rebanhos. (B.E.A, 1999, p. 9)
221
telhas de chumbo e cobre com que são protegidos os telhados das casas. Juntamente
com estes serão muito mais caros para nós os que souberem soprar o vidro, fazer música
com arte e habilmente tocar ao órgão, e também tocadores de gaita e flautistas. Gostaria
que estes artífices me fossem enviados especialmente de vossa casa, ou, se forem
poucos os de vossa terra, de outros reis vossos filhos, Vossa Santidade poderá consegui-
los, visto que facilmente obedecem às suas ordens e vontades. Quando eles chegarem
ao meu reino, pelos seus méritos serão tidos em altíssima conta e receberão grande
retribuição de minha liberalidade. E, se algum muito desejar voltar à pátria partirá
abundantemente carregado de presentes quando e conforme lhe agradar e não hei de
reter quem quer que seja obrigado, quando tiver obtido algum proveito da sua atividade.
§48. Agora devemos passar a outros assuntos, e já vos pergunto, Santíssimo Padre,
por que não exortais os reis cristãos, vossos filhos, para que deponham as armas e,
como convém a irmãos, queiram estar em harmonia, já que são vossas ovelhas e vós
mesmo seu pastor? Vossa Santidade, a propósito, conheceis o que recomenda e diz o
Evangelho: “Será totalmente destruído o reino dividido contra si mesmo”. Com efeito,
se os reis em espírito e comunhão de fato concordarem, facilmente derrotarão todos os
maometanos e, num ataque eficaz, destruirão e aniquilarão o falso profeta do sepulcro.
Diante disto fiqueis atento, Santo Padre, para que a boa paz se faça entre eles e que
sejam tocados por um sólido laço de amizade, e exortai-os a ficar a meu lado e trazerem
auxílio, pois nas fronteiras dos meus reinos estou de todos os lados cercado pelos
mouros maometanos, homens péssimos.
§49. Os próprios maometanos, com efeito, valem-se do mútuo auxílio entre eles, e os
reis com outros reis e seus vassalos com outros vassalos firme e constantemente
investem juntos contra nós. Como exemplo bastante, meu vizinho é um mouro a quem
outros mouros fronteiriços fornecem armas, cavalos e demais instrumentos de guerra.
São eles os reis da Índia, da Pérsia, da Arábia e do Egito. Por causa disso, sofro a
tristeza solitária em meu espírito quando percebo a cada dia que os inimigos da religião
cristã desfrutam de paz e fraterna caridade entre si. Por sua vez, os reis cristãos, irmãos
meus, nem um pouco incomodados com estas injúrias, não me trazem qualquer ajuda
como certamente conviria a cristãos enquanto que os horríveis filhos de Maomé
ajudam-se mutuamente. Não seria eu a pedir tropas militares para isso, pois em meu
reino sobram soldados. Peço apenas orações e preces e um lugar de graça junto a Vossa
Santidade e espero ansiosamente os reis meus irmãos. Devo buscar a amizade convosco,
222
ser atendido o quanto antes nestas coisas que acima propus para terror dos mouros, e
que os inimigos do nome cristão, meus vizinhos, percebam que, com especial gosto, os
reis, meus irmãos me ajudam e trazem auxílio, o que certa e comumente diz respeito à
honra, depois que concordamos em uma única religião e fé verdadeira. E havemos de
permanecer neste projeto porque firme e absolutamente será com ele mais útil o
resultado. Que Deus assim satisfaça os vossos desejos em louvor de Jesus Cristo e de
Deus nosso pai, que todos glorificam por todos os séculos. E vós, senhor Padre Santo,
guardai-me com todos os santos de Jesus Cristo que estão em Roma e igualmente sejam
recebidos neste abraço todos os habitantes do meu reino e os que vivem na Etiópia.
Que agradeçamos ao Senhor Jesus Cristo com vosso espírito. Esta carta, com efeito,
Vossa Santidade receberá da mão de meu irmão, D. João, rei de Portugal, filho do
poderosíssimo rei D. Manuel, por intermédio de nosso embaixador Francisco Álvares.

Carta VI - Outra carta do mesmo Davi, Imperador da Etiópia ao Pontífice Romano,


escrita em 1524, tendo Paulo Jóvio como intérprete.

§50. Feliz Santo Padre, que fostes criado por Deus, consagrador dos povos e que
governais a Sé de Pedro. A vós foram dadas as chaves do reino dos céus e tudo aquilo
que ligardes ou desatardes sobre a terra será ligado ou desatado nos céus, como disse
Cristo e assim como Mateus escreveu no Evangelho. Eu, rei, cujo nome os leões
veneram e pela graça de Deus sou chamado Atani Tinguil, isto é, Incenso da Virgem,
que é meu nome de batismo; agora de fato no início do reinado, assumi o nome de Davi,
querido de Deus, coluna de fé, descendente da estirpe de Judá, filho de Davi, filho de
Salomão, filho da coluna de Sion, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria, filho
de Nau pela carne, Imperador da grande e ilustre Etiópia, dos grandes reinos, domínios
e terras, rei de Xoa, de Cafate, de Fatigar, de Angote, de Baru, de Baaliganze, de Adea,
de Vangue, de Goiame, onde o Nilo nasce, de Damara, de Vagemedri, de Ambea, de
Vagne, de Tigri Mahon, de Sabaim, de onde foi a rainha de Sabá, de Bernagaes e senhor
até a Núbia, na fronteira do Egito. Essas províncias estão todas em meu poder e grande
número de outras grandes e também pequenas que agora de modo nenhum foram
contadas por mim, e não apresentei seus nomes levado como por orgulho e glória vã; na
verdade para que por isso mais e mais o altíssimo Deus seja louvado, o qual, com
especial bênção de tantos dos mais extensos reinos da religião cristã atribuiu o domínio
223
aos reis meus antepassados, mas sem dúvida me fez digno de graça mais evidente entre
os outros reis para que eu servisse continuadamente à religião, visto que me fez senhor
de Adel, inimigo dos mouros e pagãos que adoram ídolos. Envio para beijar os pés de
Vossa Santidade, segundo o costume dos demais reis da fé cristã, meus irmãos, aos
quais não sou inferior nem pela religião, nem pelo poder. Na verdade, em meus reinos
sou coluna de fé e não sou ajudado por auxílios externos, porque só em Deus, que me
sustenta e me guia, ponho minha esperança e minha força, desde o tempo em que o anjo
de Deus falou a Filipe, que ensinasse a fé ao eunuco da poderosa rainha Candace¹, da
Etiópia que peregrinava de Jerusalém para Gaza. Filipe então batizou o eunuco e este
por fim batizou a rainha, com grande parte da família e do seu povo, que nunca
deixaram de ser cristãos por todos os tempos e desde então persistiram fortes na fé.
Meus antepassados na verdade, ajudados apenas pela força divina, propagaram a fé em
seus vastíssimos reinos, o que eu diariamente procuro concluir. Permaneço, pois entre
as extensas fronteiras dos meus reinos como um leão na selva densa, rodeado e cercado
guerreando contra mouros sitiantes e outras nações inimicíssimas da fé cristã que não
querem ouvir a palavra de Deus, nem minhas exortações e eu os persigo, munido da
espada e apoiado apenas no auxílio divino, que nunca me falta, e aos poucos os expulso,
o que diferentemente acontece aos reis cristãos, pois, se estenderem os limites dos seus
reinos, podem facilmente conseguir isso visto que um pode levar auxílio ao outro,
prestar auxílio e serem ajudados com a bênção de Vossa Santidade, a que também tenho
direito, pois estão registradas em meus livros as cartas que, no tempo dos meus
antepassados, o Papa Eugênio enviou com sua bênção ao rei semente de Jacó. Desta
bênção recebida e transmitida das mãos deles às minhas mãos eu usufruo e muito me
alegro. Além do mais tenho em grande veneração o santo templo de Jerusalém ao qual,
incessantemente envio as devidas oferendas por nossos peregrinos, e muito mais
numerosas e abundantes enviaria se os caminhos não vivessem ameaçados por mouros e
infiéis. Além do mais, arrancam de nossos mensageiros os nossos presentes e tesouros
e também não lhes permitem atravessar livremente. Quanto a isso, se os caminhos se
abrissem ser-me-ia possível familiaridade e comércio junto à Igreja romana, como
ocorre com os demais reis cristãos aos quais não sou inferior na religião, e assim como
eles crêem numa única fé verdadeira e numa Igreja única, confesso e creio sinceramente
_____________________
1-Atos dos Apóstolos, João, 8.26-39.
224
na Santíssima Trindade, no Deus único e na virgindade de Maria Nossa Senhora,
preservo e observo os artigos da fé como foram reunidos pelos Apóstolos. Agora o
boníssimo Deus, pela mão do mui poderoso e devoto rei D. Manuel, abriu o caminho
para que nos uníssemos, por intermédio de nossos embaixadores, e juntos na mesma fé,
cristãos com cristãos servíssemos a Deus.
§51. Mas, enquanto seus embaixadores ainda estavam no meu palácio, a morte o
levou, e seu filho, meu irmão D. João sucedeu-o. Assim como pela morte do pai senti
insuportável dor, muito me alegrei desde que o filho feliz subiu ao trono pois, como
espero, reunindo
nossas tropas e forças abriremos caminho por terra e por mar pelos domínios dos
terríveis mouros e com o grande terror levado a eles hão de ser expulsos das suas sedes
e reinos para que, com o caminho calmo e tranqüilo, os cristãos possam viajar com
liberdade e buscar o templo de Jerusalém, e que eu, principalmente, como firmemente
desejo, possa partilhar do divino amor no templo de S. Pedro e S. Paulo. Anseio
muitíssimo também alcançar a sacrossanta bênção do vigário de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e sem dúvida Vossa Santidade sois este vigário. E quando, dos peregrinos, que
vão de nossos reinos a Jerusalém e de lá até Roma – e só por milagre retornam – ouço
muitas coisas sobre Vossa Santidade sinto incrível prazer e alegria. Muito maior,
porém, seria minha alegria se, por um caminho mais curto, meus embaixadores
pudessem mais rapidamente voltar com as notícias. Antes que eu morra, como espero,
hão de conseguir, com a graça de Deus onipotente que vos há de conservar na saúde e
na santidade. Beijo também os santos pés de Vossa Santidade e suplicante peço que me
envieis vossa bênção.
§52. Esta carta Vossa Santidade também receberá pelas mãos de meu irmão D. João,
rei de Portugal, por intermédio do mesmo Francisco Álvares, nosso embaixador.

§53.Damião de Góis: Estas cartas, traduzidas por Paulo Jóvio, juntamos ao nosso
opúsculo para maior conhecimento desta história e nada mudamos nelas (conquanto em
algumas partes necessitassem de mudanças) além de poucas coisas que do idioma árabe
ou abexim foram totalmente mal interpretadas na língua portuguesa mudando-lhes o
sentido. O mesmo Jóvio, no comentário destas cartas, prometeu também verter para o
latim a obra que Francisco Álvares compôs, sobre a situação, os costumes e a religião
dos etíopes, na qual descreve toda sua trajetória. Desse tratado tenho em meu poder um
225
exemplar, que se Jóvio se abstiver da tarefa não me apartarei de realizar a versão,
entretanto se não souber que esta missão me coube por ordem vossa, Santíssimo Padre,
dela não me encarregarei de boa vontade, para me resguardar inteiramente contra os
caluniadores aos quais possa parecer que não foi por zelo da república cristã, mas por
inveja da glória de Jóvio que me obriguei a este trabalho, o qual, com franqueza, não me
julgo pouco instruído para realizar, isto porque depois de concluída minha embaixada
na Alemanha e na Sarmácia no retorno da Bélgica a Lisboa e na presença de meu rei D.
João III, em cuja acolhida experimentei muito de humanidade e generosidade para
comigo, encontrei-me por acaso em entrevista com o legado etíope, venerável pelo
talento e dignidade episcopal e também pela fé, instrução e admirável domínio da língua
caldaica e árabe, suficientemente idôneo, enfim, para que fosse enviado pelo
poderosíssimo imperador da Etiópia à presença dos maiores príncipes em importantes
missões. Seu nome era Zaga-Zabo, com quem depois que entre nós teve início uma
firme e definitiva amizade, acompanhei em conversas e tive variados debates, sobretudo
sobre os costumes e a religião dos cristãos etíopes. Eu desejava, na verdade, conhecer
os detalhes não pelo relato dos peregrinos, mas somente pela boca de um nativo e
pessoalmente.
§54. Entre outras coisas, expus a ele também a carta enviada pelo embaixador
Mateus, a qual eu já há muito apresentara ao rei D. Manuel com artigos que eu (como
foi dito) vertera para a língua latina, e a conselho dele corrigi muitas partes onde o
sentido não era plenamente fiel ou a intenção não fora captada, o que tanto a mim
quanto a Jóvio não raro ele afirmava ter acontecido. Eu já tinha então comigo cartas do
próprio Jóvio que comparamos com muita atenção. Depois, já existindo entre nós a
verdadeira caridade e amizade de Cristo, ousei pedir a ele ampla e legítima narração da
fé e religião dos etíopes e que ela fosse escrita de próprio punho, o que ele atendeu com
grande entusiasmo e imediatamente começou a escrevê-la. Reproduzi seu relato com
toda fidelidade em língua latina como se pode ver do que segue. Com efeito, dei início
imediatamente à tarefa com a consciência de não ignorar que se essas linhas
desaparecessem de minhas mãos por nenhum dos mortais seriam um dia dadas à luz.
Por isso seriam assim organizados e adaptados ao estilo caldaico e etíope para que mal
pudessem ser entendidos por qualquer um senão por mim que, pela muita familiaridade,
já pudera entender todas essas coisas, tanto da boca quanto dos escritos do próprio
embaixador etíope.
226
§55.Zaga-Zabo: Estas são as coisas sobre a fé e a religião que entre nós etíopes são
observadas e executadas.
§56. Cremos em nome da Santíssima Trindade, no Pai, Filho e Espírito Santo, que é
um único Deus, porém com três nomes, única divindade, três faces, única semelhança,
porém união igual de três Pessoas, ou seja, igual em divindade, um só reino, um só
trono, um só juiz, uma só caridade, uma só palavra, um só espírito. Contudo a palavra
do Pai e do Filho é a palavra do Espírito Santo, e o Filho é o mesmo Verbo e o Verbo
está em Deus, no Espírito Santo e em si próprio, sem divisão ou defeito, Filho do Pai e
Filho do mesmo Pai, sem princípio, certamente em primeiro lugar Filho do Pai sem a
mãe. Pois ninguém conheceu o segredo e o mistério do seu nascimento, senão o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Este filho, no princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus
e Deus era o Verbo. O espírito do Pai é o Espírito Santo, o espírito do Filho é o Espírito
Santo. O Espírito Santo é, portanto, espírito de si mesmo sem aumentar ou diminuir.
Este é na verdade o Espírito Santo, Paracleto, Deus vivo que provém do Pai e do Filho,
que falou pela boca dos profetas e desceu como chama viva sobre os apóstolos no átrio
de Sion. Estes por toda a terra anunciaram e pregaram a palavra do Pai que era a
palavra do próprio Filho. E desde então nem o Pai é o primeiro, ainda que seja pai, nem
o Filho o último, ainda que seja filho e o Espírito Santo nem é o primeiro nem é o
último. Três Pessoas e um só Deus que vê e por ninguém é visto, que por seu único
desígnio criou todas as coisas. Depois o Filho também por sua vontade, pela nossa
salvação e com a permissão do Pai e do Espírito Santo desceu das alturas, encarnou
como Espírito Santo, e nasceu da Virgem Maria, que era ornada com dupla virgindade,
uma espiritual e outra carnal, sem qualquer pecado por parte da mãe que, com grande
milagre, permaneceu virgem depois do parto, bafejada que foi pelo fogo sagrado da
divindade, pariu sem sangue ou dor seu filho Jesus Cristo, que foi homem inocente e
sem pecado, Deus perfeito e Homem perfeito tendo um único aspecto. Cresceu
naturalmente como qualquer criança, ao seio de sua mãe, a Virgem Maria e, quando
completou trinta anos foi batizado no rio Jordão. E, como os demais homens, caminhou
e se cansou, suou, teve fome e sede. Tudo isso sofreu por sua própria vontade e fez
incontáveis milagres. Por sua divindade restituiu a visão aos cegos, curou os coxos,
purificou os leprosos, ressuscitou os mortos. Mais tarde também, por que assim
desejou, foi preso, flagelado e esbofeteado; crucificado, desfaleceu e por fim morreu
pelos nossos pecados e com sua morte venceu a morte e o demônio; com seu vivo
227
sofrimento apagou nossos pecados e levou nossas fraquezas. E com o batismo do seu
sangue, porque a morte dele foi um batismo, batizou os patriarcas e profetas, desceu aos
infernos, onde estava a alma de Adão e de seus filhos, alma do próprio Cristo que vem
de Adão, porque o próprio Cristo recebeu a alma de Adão da Santa Maria Virgem. No
esplendor e poder de sua divindade rompeu com a força da cruz as portas de bronze e o
fogo dos infernos, com cadeias de ferro prendeu Satanás e redimiu Adão e seus filhos.
Todas essas coisas, Cristo fez, por isso era pleno de divindade e a mesma divindade
estava com sua alma e estava também com seu santíssimo corpo, divindade que deu
virtude à cruz. Esta divindade sempre a teve e partilha com o pai na Trindade e
Unidade. Nem mesmo caminhado na terra Cristo careceu por um momento da sua
divindade ou da sua dignidade. Então finalmente foi sepultado e, no terceiro dia, o
mesmo Jesus Cristo, Príncipe da ressurreição, Jesus Cristo dulcíssimo, Rei de Israel,
com grande poder e força ressuscitou. E depois que foi consumado tudo o que os santos
profetas predisseram, subiu aos céus com glória, está sentado à direita do pai e há de vir
com gloria, levando diante da face sua cruz e na mão a espada da justiça, para julgar os
vivos e os mortos, e seu reino não cessará. Creio na santa Igreja católica e apostólica,
creio num só batismo que é a remissão dos pecados, espero a ressurreição dos mortos e
a vida eterna. Amém.¹
§57. Creio em Nossa Senhora, Santa Maria Virgem, tanto no espírito quanto na carne
que como mãe de Deus é a caridade de todos os povos, santa dos santos , Virgem das
virgens, que de todos os modos venero. Creio na santa madeira da cruz, leito de dor de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Cristo que é nossa salvação, por amor de
quem fomos salvos. Ruína, contudo, para os judeus, estupidez para outros povos. Nós
verdadeiramente pregamos e cremos no poder da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
assim como São Paulo, nosso mestre, ensinou. Creio que São Pedro é a pedra da lei,
que é a lei instruída acima dos santos profetas, fundamento e cabeça da igreja católica e
apostólica oriental e ocidental, onde está o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, de cuja
igreja o apóstolo Pedro tem o poder e as chaves do reino dos céus, com as quais pode
fechar e abrir, desligar e ligar. Ele também há de sentar com os outros apóstolos seus
companheiros em um dos doze tronos, com honra e louvor na casa de Nosso Senhor
Jesus Cristo que no dia do juízo há de nos ditar sua sentença, dia que será de júbilo para
_____________________
1-Todo esse parágrafo corresponde, como se pode observar, à oração do Credo. (N. A.)
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os santos, porém de dor e ranger de dentes para os pecadores, quando serão lançados
nas chamas ardentes do inferno com o diabo, pai de todos eles. Creio que os santos
profetas e apóstolos, mártires e confessores foram verdadeiros imitadores de Cristo que
com o santíssimo anjo de Deus venero e honro e do mesmo modo também abraço e
beijo todos os seus seguidores.
§58. Creio, além disso, que devo fazer a confissão, com minha voz, de todos os meus
pecados a um sacerdote, por cujas preces espero obter de Cristo Nosso Senhor a
salvação de minha alma. Reconheço ainda o Pontífice Romano, primeiramente, como
bispo e pastor das ovelhas de Cristo e todos os patriarcas, cardeais, arcebispos e bispos
dos quais ele é o superior, aos quais, sendo ministros do mesmo Cristo, submeto-me e
obedeço.
§59. Esta é a fé e a lei, minha e do povo da Etiópia, que está sob o domínio do Preste
João; a fé confirmada e o amor de Cristo, estão assim em nós, que mesmo pela morte,
pelo fogo ou pela espada, apoiado no auxílio de Nosso Salvador Jesus Cristo, nunca hei
de a ela renunciar; uma fé que todos levaremos no dia do juízo à presença de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
§60. Somando ao já citado será por nós explicada a disciplina, a doutrina e a lei que
os Apóstolos nos livros santos dos Sínodos e Cânones – que denominamos Manda e
Abethilis – deixaram para nos instruir. São estes, com efeito, os oito livros das leis da
Santa Igreja, que todos os Apóstolos reunidos em Jerusalém escreveram e sobre os
quais, em costumeiras conversas com alguns doutores desde que cheguei a Portugal,
nenhum encontrei que deles se lembrasse. São estas, portanto as observações que os
Santos Apóstolos nos prescreveram nestes livros:
§61. Primeiro é preciso jejuar a cada quarta-feira em memória do concílio dos Judeus,
dia em que foi por eles decretado e resolvido que Cristo devia morrer. Também
devemos jejuar toda sexta-feira, dia em que Jesus foi crucificado e morreu pelos nossos
pecados. Nestes dois dias foi recomendado jejuar até o pôr do sol. Nos quarenta dias
da quaresma reuniram-se para jejuar a pão e água. Às sete horas do dia e da noite
devem ocupar-se das coisas divinas. Por estes editos também é dever sagrado celebrar
a quarta-feira e as tardes de sexta-feira, pois foi quando Nosso Senhor Jesus Cristo
expirou na santa cruz. Nos dias de domingo, porém, todos, sem exceção, quiseram que
nos reuníssemos no templo sagrado, na terceira hora do dia desde o nascer do sol para
ler e ouvir os livros dos profetas. E depois fazermos também uma cerimônia para pregar
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o Santo Evangelho. Além disso, estabeleceram nove datas festivas para serem
celebradas em memória de Cristo, a saber: da Anunciação, da Natividade, da
Circuncisão, da Purificação ou dos Círios, do Batismo, da Transfiguração, do Domingo
de Ramos, até a oitava, da Sexta-feira Santa (como chamamos). Com os feriados da
Ascensão e também Pentecostes, são na verdade dez dias.
§62. E por causa dos preceitos destes livros, todos os dias desde a Páscoa até
Pentecostes, sem nenhuma exceção, não nos alimentamos de carne, e durante os dias até
a oitava Pentecostes, guardamos jejum, isto, evidentemente, para maior veneração e
honra da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Do mesmo modo quiseram que
celebrássemos com toda honra o dia da morte e assunção da Virgem Maria.
§63. Além disso, em cumprimento dos preceitos dos apóstolos, o Prestes João
constituiu, em nome da semente de Jacó, para honra da mesma Santa Virgem a cada
trinta anos, três dias para serem celebrados. Ainda por causa do nascimento de Cristo
Salvador, manda celebrar ao menos um dia em cada mês, sempre no dia vinte e cinco.
Determinou também um dia em cada mês para celebrar São Miguel e por último, por
determinação dos Sínodos dos Apóstolos celebramos o dia do martírio de Santo Estêvão
e de outros mártires.
§64. Também por determinação dos Apóstolos costumamos celebrar dois dias: o
sábado e o domingo, nos quais não nos é permitido fazer qualquer coisa por mínima que
seja. Guardamos o dia de sábado porque foi quando Deus descansou, após concluir a
criação do mundo; por isto quis que este dia fosse chamado santo dos santos. Assim, se
com grande honra este dia não for celebrado parecerá inteiramente contra sua vontade e
desígnio e quem fizer quer perder o céu e a terra além da Sua palavra, sobretudo quando
o próprio Cristo veio não para desfazer a lei, mas para completá-la.
§65. Por isso o guardamos, não para imitar os Judeus, mas por ordem de Nosso
Senhor Jesus Cristo e dos Santos Apóstolos dos quais foi transcrita para nós Cristãos a
graça dos Judeus.
§66. No dia de sábado sempre comemos carne, exceto na quaresma. Isto, contudo,
não é observado no reino de Bernagaes e de Tigre Mahon; por hábito antigo os nativos
destes dois reinos alimentam-se de carne nos dias de sábado e domingo na quaresma.
§67. Por outro lado, celebramos o dia de domingo, como os demais cristãos, em
memória da ressurreição de Cristo. É pelos livros da lei, contudo, e não pelo Evangelho
230
que aprendemos que o sábado deve ser celebrado, mesmo não ignorando que o
Evangelho é o escopo da lei e dos profetas. Cremos que nestes dias as almas dos
devotos nada sofrem no purgatório, repouso que Deus concedeu nestes dias santíssimos
até que daí (depois do cumprimento das penas merecidas pelos pecados cometidos em
vida) se elevem definitivamente. Para diminuir estas penas e abreviar-lhes o tempo de
suplício, cremos que as esmolas dadas em favor dos mortos são úteis a estas almas que
estão no purgatório para cuja remissão o patriarca não concede indulgência; cremos que
ele espera que o estabelecimento da duração das penas, isto só a Deus caiba. O
patriarca também não concede dias de indulgência.
§68. São apenas seis os preceitos que devemos observar pela leitura do Evangelho
que
Cristo assim explicou pela própria boca: “tive fome e me destes de comer, tive sede e
me destes de beber, estava desabrigado e me acolhestes, nu e me cobristes, enfermo e
me visitastes, estava encarcerado e viestes a mim”, únicas palavras que Cristo há de
repetir no dia do juízo, pois, pelo testemunho de Paulo, a lei, que ninguém senão Jesus
Cristo pôde guardar mostrou nossos pecados.
§69. Como também é dito pelo próprio Paulo, todos nascemos em pecado por causa
do erro de nossa mãe Eva e de sua própria maldição. Além disso, o mesmo Paulo disse
que morremos por culpa de Adão e vivemos graças a Cristo que em sua infinita
misericórdia nos deixou estes seis preceitos para que sejamos salvos quando ele vier em
toda a sua grandeza para julgar os vivos e os mortos.
§70. Com estas palavras e preceitos no mesmo dia do juízo enviará a glória eterna
para os bons, e para os maus o fogo e a perpétua condenação. E contamos apenas cinco
pecados mortais (como chamam), certamente isto vem do último capítulo do Apocalipse
onde está dito então “fora os cães, feiticeiros, impudicos, homicidas, servidores de
ídolos e todo aquele que ama e pratica a mentira”. Também ficou determinado pelos
santos Apóstolos nos livros dos Sínodos que aos clérigos é permitido casar-se,
certamente depois que tiverem pelo menos algum conhecimento das coisas divinas.
Depois de casados são recebidos na ordem dos presbíteros para a qual ninguém é
admitido senão depois de três anos: nem filhos bastardos ou ilegítimos são tolerados por
nenhuma razão na santíssima ordem; e somente pelo patriarca as ordens são concedidas.
Contudo nem os bispos nem os clérigos podem tomar outra esposa se a primeira morrer,
a não ser que o patriarca os dispense desta proibição (que algumas vezes é concedido
231
aos mais graduados em vista do bem público), nem ter concubina, salvo se quiserem
abdicar do sacramento porque se o fizerem não podem mais lidar com as coisas divinas.
E isto é tão estritamente observado para que os presbíteros que tomarem esposa em
segundas núpcias não ousem sequer receber nas mãos uma só vela consagrada à Igreja.
Se for descoberto que um bispo ou clérigo tem filho bastardo, fica ele excluído de todas
as ordens sacras, e todos os seus bens, se não tiver prole legítima, retornam ao Preste
João e não ao Patriarca. E que os presbíteros entre nós tenham esposas, recebemos de
Paulo, que prefere que o clérigo e o laico se casem do que vivam abrasados¹. Ele
mesmo também diz que convém que o bispo seja homem de uma única esposa,
irrepreensível, sábio e, do mesmo modo, os diáconos. E também os eclesiásticos, bem
como os seculares, tenham suas esposas de matrimônio legítimo. Os monges,
entretanto, não se casam. E tanto leigos quanto clérigos possuem somente uma esposa e
o casamento não se realiza diante da porta do templo, mas na residência particular dos
padrinhos.
§71. Segundo a constituição dos Santos Apóstolos, temos, por exemplo, que se um
sacerdote for surpreendido em adultério, homicídio, latrocínio ou levantamento de falso
testemunho, seja destituído das ordens sacras e punido como os demais criminosos.
Voltando à determinação dos mesmos Apóstolos, se alguém, eclesiástico ou leigo, tiver
relações com a esposa ou poluir-se durante o sono, por vinte e quatro horas ao deve
entrar na igreja, o que também não é lícito às mulheres menstruadas, senão no sétimo
dia do mênstruo, isto certamente, sem qualquer das roupas que tenha usado durante o
período, e que a mesma esteja bem asseada e purificada de manchas.
§72. Também à mulher que deu à luz menino, não é permitido entrar na Igreja senão
depois de 40 dias; se, ao contrário, teve menina, somente após oitenta dias. Mantemos
este costume por causa da antiga lei e da nova Apostólica, que observamos
cuidadosamente e é em toda parte instituída e prescrita, até onde possível for. Além
disso, foi proibido entre nós que pagãos, cães, ou outros animais quaisquer entrem em
nossas igrejas. Por outro lado, só nos é permitido entrar no templo com os pés
descalçados; não é lícito rir na Igreja, andar à toa ou falar de coisas profanas, nem cuspir
ou escarrar, pois as Igrejas da Etiópia não são semelhantes à daquela terra onde o povo
de Israel comeu o cordeiro pascoal, ao fugir do Egito, quando Deus os mandou comer
_____________________
1-Cor. 1 (7.1-9)
232
usando sandálias e cintos, por causa da impureza da terra. Mas são semelhantes ao
Monte Sinai, onde o Senhor falou a Moises, dizendo: Moisés, Moisés, tira tuas sandálias
pois a terra que teus pés pisam é santa. E este Monte Sinai é o pai das nossas igrejas, do
qual receberam sua origem assim como os Apóstolos receberam dos Profetas e o Novo
Testamento do Velho. A partir de então nem a sacerdote, nem a leigo, ou a outra pessoa
de qualquer condição é permitido cuspir desde a manhã até o pôr do sol, se tiver
recebido a venerável Eucaristia; e se tal fizer é punido com severo castigo.
§73. Também em memória do batismo de Cristo, a cada ano todos nos batizamos na
Epifania do Senhor, o que fazemos não para alcançar a salvação, mas por amor, louvor e
glória do Nosso Salvador. E nem festejamos nenhum outro dia mais alegremente e
repleto de jogos, brincadeiras e cerimônias, pois neste primeiro dia manifestamente
apareceu a Santíssima Trindade quando Nosso Senhor Jesus Cristo foi batizado no rio
Jordão e o Espírito Santo em forma de pomba desceu sobre sua cabeça e disse uma voz
vinda do céu: “Este é meu filho amado no qual depositei minha benevolência”. O
Espírito Santo que apareceu como uma pomba branca, com o rosto e a figura do pai e do
filho mostrou-se em uma só divindade. E de igual modo Cristo foi visto pelos santos
profetas em muitas formas e semelhanças: primeiro como um cordeiro branco, para a
salvação de Isaac, filho de Abraão, e assim o chamou Jacó, Israel e Jacó, e seu filho
Judá de leão, a quem atribuiu autoridade sobre os outros irmãos, dizendo: “ subiste, meu
filho, até a presa, deitaste repousando como um leão, e como uma leoa., quem o
levantará?”. Manifestou-se também a Moisés no monte Sinai em forma de chama
ardente, mostrou-se ao profeta São Daniel, semelhante a uma pedra, apareceu
igualmente ao filho de Ezequiel como homem e a Isaías em forma de criança.
Manifestou-se ainda ao rei Davi e a Gedeão no orvalho sobre o velo. Além destas
formas, foi visto de muitas outras pelos santos Profetas. Ainda que parecesse de tão
diferentes aspectos, sempre exibiu a semelhança do Pai e do Espírito Santo. E Deus
também quando criou o mundo disse: “Que o homem seja feito à minha imagem e
semelhança”; e fez Adão à sua imagem e semelhança. Por isso dizemos que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são três faces de uma única semelhança e divindade.
§74. Também praticamos, desde o tempo da rainha de Sabá a circuncisão, que
mantemos até hoje. Essa rainha chamava-se Makeda e cultuava ídolos como era
costume de seus antepassados. Como chegou a seus ouvidos a fama da sabedoria de
Salomão, enviou a Jerusalém um varão prudente para que bem informado de tudo, mais
233
seguro respondesse sobre a sapiência do rei. No retorno daquele e com os fatos
esclarecidos, ela se preparou imediatamente para ir a Jerusalém. Lá chegando, além de
muito ter aprendido com Salomão, conheceu a Lei e os profetas e retornando à pátria
(depois que lhe foi dada permissão), pariu um filho que concebera do rei e ao qual
chamou Meilech; a própria rainha educou-o na Etiópia e o manteve junto a si até os
vinte anos. Enviou-o depois a Salomão, seu pai, para que dele adquirisse conhecimento
e sabedoria e por carta suplicava ao rei que criasse e consagrasse seu filho Meilech rei
da Etiópia diante da Arca da Aliança do testamento do Senhor, e que mulheres não mais
tivessem direito de reinar na Etiópia como até então era costume, mas que os homens
herdassem o trono em linha direta de sucessão.
§75. Quando chegou a Jerusalém, Meilech facilmente obteve do pai o que a mãe
pedira e em lugar de Meilech passou a chamar-se Davi que depois de devidamente
instruído na lei e em outras ciências, Salomão decidiu reenviar à mãe, isto certamente
com as maiores honrarias e todo o aparato régio. E para completar com mais
generosidade, deu-lhe uma comitiva formada de nobres e filhos dos principais homens
que deveriam servi-lo, conforme a tradição. Além disso, resolveu enviar com ele
Azarias, príncipe dos sacerdotes, filho de Sadoch, também príncipe, o qual quando
soube convenceu Davi a pedir permissão a seu pai permissão para que realizasse um
sacrifício pelo sucesso da viagem diante da Arca da Aliança¹ do Senhor. Recebendo
autorização do rei Azarias imediatamente tratou de serrar secretamente algumas tábuas
para imitar as da arca, e depois de prontas preparou-se para o sacrifício no qual
furtivamente e com arte admirável arrebatou as verdadeiras tábuas e as substituiu pelas
falsas que levara consigo; somente Deus e ele souberam.
§76. Esta narrativa entre nós é considerada santíssima e muito estimada como aparece
na história do próprio rei Davi, que é agradabilíssima de ler. O livro da referida história
é da mesma espessura de todas as epístolas de Paulo.
§77. Ademais quando Davi já chegava às fronteiras da Etiópia, Azarias entrou em sua
tenda e a ele revelou o que sempre mantivera em segredo: que com ele certamente
estavam as tábuas da Aliança do Senhor. Assim que ouviu aquelas palavras, Davi
_____________________
1-A '''Arca''' é a primeira construção mencionada no livro do Êxodo. Sua construção é orientada por Moisés, que por
sua vez recebera instruções divinas quanto à forma e tamanho do objeto. Na Arca estavam guardadas as duas tábuas
da lei, a vara de Aarão, e um vaso do maná. Estas três coisas representavam a aliança do Deus Javé com o povo de
Israel. Para judeus e cristãos a Arca não era só uma representação, mas era a própria presença de Deus. Dentro da
Arca havia as tábuas com os Dez Mandamentos escritos por Deus, um pote com o maná e o cajado de Arão, que
floresceu. (Êx. 25.10-16 e Ex. 37.1-5).
234
correu até a tenda onde Azarias tinha as tábuas da Arca da Aliança e aí com enorme
alegria, a exemplo do avô Davi, diante da arca na qual estavam as tábuas, começou a
dançar. Pelo que viram e compreenderam, todos os seus com o igual júbilo celebraram
sua imensa alegria.
§78. Tendo percorrido grande parte da Etiópia, chegou finalmente ao reino de sua
mãe, que sem demora entregou-lhe o governo de todas as províncias e colocou em seus
ombros toda a responsabilidade da administração do reino. Desde este tempo até hoje,
decorridos já quase dois mil e seiscentos anos, o império da Etiópia é sempre
transmitido em linha direta de um varão a outro e desde então conservamos a lei do
Senhor e a circuncisão como já foi dito. E conservam-se também deste mesmo tempo
os ministérios que Salomão ordenou a seu filho Davi para governar sua corte, naquela
ordem e nas famílias em que então estavam. Nem o próprio imperador tem direito de
escolher de outra estirpe os ministérios reais.
§79. Ademais, por determinação e lei da mesma Rainha Maqueda, as mulheres
também são circuncidadas; a razão para isto vem de que assim como os homens têm
prepúcio, do mesmo modo as mulheres trazem nas genitais certa carne glandulosa que
chamam ninfa, apropriada para receber o sinal da circuncisão. Faz-se tanto no homem
como na mulher no oitavo dia, e depois da circuncisão, os meninos são batizados no
quadragésimo dia e as meninas no octogésimo, se nenhuma doença ocorrer que torne
necessária a antecipação. E se forem batizadas antes do tempo determinado as crianças
não poderão receber o leite da mãe, mas somente de uma ama-de-leite até que aquela
seja devidamente purificada. A água em que são batizados é consagrada e abençoada
para exorcismos, e no mesmo dia em que as crianças recebem o venerável corpo do
Senhor na forma de um pequeno pão.
§80. Praticamente antes de todos os outros cristãos nós recebemos o batismo, pelo
eunuco da rainha Candace da Etiópia, cujo nome era Indich assim figura nos Atos dos
Apóstoslos, e até hoje o mantemos juntamente com a circuncisão (que já então se
praticava como tínhamos dito antes) santa e cristãmente e, com a ajuda de Deus para
sempre conservaremos.
§81. Não praticamos ou admitimos seja o que for além do que está na lei, nos
Profetas, no Evangelho e nos livros dos Sínodos dos Apóstolos. E se outra coisa além
disso aceitamos, são observadas entretanto as que pareçam voltar-se para a ordem e a
paz da Igreja, sem qualquer relação com o pecado. Porque a nossa circuncisão não é
235
imunda, mas lei e graça que foi concedida por Deus a nosso pai Abrãao, que a recebeu
como um sinal, não para que fossem salvos ele ou seus filhos em virtude da circuncisão,
mas para que estes se distinguissem das demais nações.
§82. E preservamos singularmente o que intimamente se manifesta como símbolo da
circuncisão sem dúvida para que estejamos circuncidados (purificados) de coração. Não
nos vangloriamos por causa da circuncisão, nem também nos julgamos mais nobres que
os demais cristãos, ou mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela fé, pois
nada disso tem valor para Jesus Cristo a não ser uma criatura renovada¹. Paulo, com
efeito, não pregou a destruição da lei e sim o seu estabelecimento, pois ele também foi
circuncidado e circuncidou Timóteo – da semente de Benjamim, nascido de mãe hebréia
e de pai pagão – logo que este se tornou cristão, sabendo que Deus justifica tanto a
circuncisão quanto o prepúcio pela fé. E como ele mesmo diz tudo foi feito para todos,
para que todos fossem salvos². Judeu como os judeus, para ganhá-los, a estes que
estavam abaixo da lei, fez como se ele próprio abaixo dela estivesse, mesmo não
estando, para arrebanhar os que de fato estavam. Para os que não reconheciam a lei,
parecia igualmente fora dela, como se não estivesse na lei de Deus, mas na de Cristo e
assim atrair os que não tinham a lei. Fez-se enfermo, para converter os enfermos e para
provar que alcançaremos a salvação não pela circuncisão, mas pela fé.
§83. Assim, quando pregou aos hebreus, tal como hebreu proferiu vários sermões
dizendo: “Em muitos lugares e de muitos modos outrora Deus falou a nossos pais,
mostrando-lhes no livro dos Profetas e pelos próprios Profetas que Cristo viria da
descendência de Davi, pela carne, e depois predisse que Ele estaria com nossos pais em
suas tendas no deserto e os levaria à terra prometida pela mão de Josué”. Além disso,
Paulo também confirma que Cristo foi o Príncipe dos sacerdotes e que entrou na nova
tenda porque é o Santo dos Santos e pelo sacrifício do Seu corpo e de Seu sangue
abolira o sangue dos bodes e dos touros pelo qual nenhum dos imoladores pudera
justificar-se. E assim de muitos modos falou também aos judeus que Ele permite ser
adorado pelos seus, com muitas cerimônias na santa e incorrupta fé.
§84. Aquelas crianças que, por sua vez, ouvimos aqui serem chamadas pagãs pela
Igreja Romana, entre nós são consideradas semicristãs. Os que morrem sem batismo
_____________________
1-Rom. (3.21-30)
2-Rom. (1.16-17).
236
devem ser chamados semicristãos visto que nasceram filhos do sangue dos pais
consagrado pelo batismo, pelo espírito santo e pelo sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e por estes três testemunhos todos são considerados cristãos. Afinal, segundo
João, em sua primeira Canônica, são três os que dão testemunho na terra: o espírito, a
água e o sangue, e como diz também o Evangelho: “A boa árvore dá bons frutos e a
má os frutos maus”. E é por isso que os filhos dos cristãos não são como os filhos dos
pagãos, dos judeus e dos mouros, que são árvores estéreis, sem qualquer fruto. Os
cristãos, por outro, lado são eleitos no ventre de suas mães como o santo profeta
Jeremias e São João Batista. Sobretudo os filhos de mulheres cristãs são eleitos e
consagrados pela comunhão do corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois
quando as mulheres grávidas recebem o venerável corpo de Nosso Salvador, o filho
nutrindo-se dele torna-se igualmente consagrado. Assim como um feto no útero da
mãe abate-se ou alegra-se conforme os sentimentos da mãe, é também do que alimenta a
mãe que ele se alimenta. E como o próprio Senhor diz em Seu santo Evangelho “aquele
que comer do meu corpo e beber do meu sangue viverá na eternidade.” E continuando:
“se alguém provar do meu corpo e beber do meu sangue estará comigo”. Por isso
Paulo, o doutor dos povos ensina: “O homem infiel foi justificado pela mulher fiel e a
mulher infiel foi santificada pelo homem fiel”¹, de outro modo vossos filhos seriam
imundos, ora porém são santos, porque sendo assim, para que o filho da mãe infiel seja
santificado na fidelidade do pai, muito mais sagrados devem ser os que nasceram de pai
e mãe fiéis. Portanto muito mais pio será chamar as crianças antes que sejam batizadas
de semicristãos que de pagãos. Isto também os Apóstolos disseram em seus livros dos
Sínodos: “Todos os que têm fé e não receberam o batismo, com justiça podem dizer-se
semicristãos”. E dizem também nos citados livros: “Aquele que, sendo judeu, mouro,
ou pagão quisesse abraçar a fé, não deveria ser logo admitido, mas quiseram antes que
ele viesse às portas do templo e aí ouvisse as pregações e a palavra de Cristo Salvador,
para que conheça o jugo da lei antes de ser impelido para a fé, como quem foi
arrebatado. Assim, quando tal fizer, poderá ser chamado de semicristão, ainda que não
esteja batizado”; como bem ensina o Evangelho “aquele que crer e for batizado será
salvo, mas o que não crer será condenado”.
§85. É também nosso costume que as mulheres grávidas sempre se confessem antes
_____________________
1-Cor. 1 (7.14)
237
do parto e recebam a comunhão. As que não o fazem e os maridos se a isto não as
obrigam são considerados ambos ímpios e maus cristãos.
§86. Além disso, deve-se saber que a confirmação, a crisma e a extrema unção com
óleo não são considerados como sacramento entre nós, nem está em uso como vejo
ser feito aqui, por costume da Igreja romana. Também pela lei de Moisés e
determinação dos Apóstolos não nos é permitido comer alimentos imundos conforme
toda observação da lei e das Escrituras, das quais consideramos oitenta e um livros tanto
do Velho, quanto do Novo Testamento, sendo quarenta e seis do Velho e trinta e cinco
do Novo. Temos expresso o número de cada um dos livros por contagem dos próprios
Apóstolos, segundo os quais não é lícito acrescentar ou retirar coisa nenhuma, mesmo
que um anjo viesse do céu tentasse nos persuadir. E quem ousasse tal fazer seria
considerado excomungado. Por isso nem o patriarca, nem nossos bispos por si ou em
Conselhos julgam ou pensam que podem alterar quaisquer leis com as quais possa
alguém ser obrigado ao pecado mortal.
§87. Nos mesmos livros dos Sínodos ficou determinado pelos santos Apóstolos que
nos cabe reconhecer nossos pecados e que devemos receber do confessor a penitência
conforme a gravidade de cada um; e também como se deve orar, jejuar e praticar a
caridade. Além do mais costumamos fazê-lo regularmente, porque logo depois de ter
cometido um pecado corremos aos pés do confessor; e todos assim procedem, tanto
mulheres quanto homens, qualquer que seja sua condição. E todas as vezes que
confessamos, comungamos e isto certamente sob uma e outra espécie no pão
fermentado de trigo, porque se nos confessarmos diariamente, em cada dia recebemos o
venerável sacramento. E isto é habitual tanto entre os clérigos como entre os leigos.
§88. Já o sacramento da Eucaristia não é ministrado entre nós na igreja como se faz
aqui entre os europeus, e nem os doentes recebem a comunhão, senão durante a
convalescença. Também isto é igual para todos; tanto clérigos como leigos
acostumaram-se a recebê-la pelo menos duas vezes por semana, e todos os que assim o
quiserem devem dirigir-se ao templo, pois a ninguém é dada a comunhão fora da igreja;
nem mesmo ao patriarca tal é concedido, ou ao próprio Preste João. Recorremos
sempre ao mesmo confessor e não aceitamos outro, a menos que ele esteja ausente, e só
até o seu regresso.
§89. E pelo poder da Igreja, que não é reservado, em qualquer caso, nem aos bispos
nem ao patriarca, os confessores nos dão a absolvição de todos os pecados, por mais
238
graves que sejam. Além disso, os presbíteros não podem ouvir confissão daquele a
quem se confessam.
§90. Entre nós, presbíteros, monges e todos os ministros da Igreja vivem do seu
trabalho, pois a igreja não tem nem recebe qualquer dízimo; tem, contudo, rendimentos
e campos que os próprios clérigos e monges aram e cultivam com seu esforço ou ajuda
alheia. E também não recebem esmolas, a não ser as que espontaneamente são
oferecidas nos templos por exéquias ou outras obras pias, nem lhes é permitido
mendigar de porta em porta nem extorquir dos pobres qualquer quantia.
§91. Em nossas igrejas celebramos por dia apenas uma missa, que temos em lugar do
sacrifício, e por costume antigo não é permitido celebrar muitas. Nenhum pagamento
ou presente recebemos pela missa, ministério em que não se expõe o sacramento da
Eucaristia como vejo ser feito aqui. E na ocasião, sacerdotes, diáconos, subdiáconos e
todos os presentes recebem a comunhão.
§92. Nenhuma missa celebramos pela remissão das almas, mas os mortos são
sepultados em lugar certo com cruzes e orações e sobre eles dizemos, entre outros
sermões, principalmente o início do Evangelho de João. No dia seguinte distribuímos
esmolas em favor do sepultado, e o mesmo fazemos depois em certos dias nos quais
também oferecemos banquetes fúnebres por todas as almas.
§93. Falamos sobre nossa fé e religião. Depois enfim, que cheguei a Portugal, porque
tivemos intermináveis conversas e debates com tantos doutores, sobretudo com nossos
mestres Rodrigo Ortiz, bispo da ilha de São Tomé e deão da capela do rei, e Pedro
Margalho sobre a escolha dos alimentos, não será inconveniente dizer algo a respeito.
Deve-se saber primeiramente que observamos a escolha dos alimentos pelo Velho
Testamento, escolha que foi determinada pelo Verbo de Deus, porque o Verbo depois
nasceu da Virgem Maria e caminhou e viveu com seus Apóstolos. Este Verbo de Deus
sempre teve viva, integra e inviolada a palavra e a linguagem. Nem o que outrora por
ser imundo proibiu de comer, disse depois, em outro lugar do seu Evangelho para ser
comido. De fato o Evangelho diz: “O que entra pela boca do homem não mancha, mas
sim o que dela provém”. Mas não disse por isso que se eliminasse o que antes
determinara, mas que se refutassem as superstições dos Judeus que criticavam os
Apóstolos porque comiam o pão com as mãos sujas. Mas os Apóstolos por este tempo
nunca se serviram de coisas imundas, enquanto viveram com Nosso Senhor Jesus
Cristo, nem provaram daquilo que fora proibido na Lei, e nenhum deles a transgrediu.
239
Nem naqueles tempos que se seguiram à paixão do Senhor, quando começaram a pregar
o Evangelho, por nenhum dos escritos que conservamos conosco pode-se provar que
eles comeram ou abateram alimentos imundos.
§94. Entretanto é verdade que Paulo disse: “Tudo o que vem ao mercado, comei, nada
perguntando em vista da consciência”. Depois: “Se algum dos infiéis vos convidar para
a ceia e quiserdes ir, tudo o que vos for oferecido, comei, nada interrogando à
consciência”. Ao contrário: “Se alguém acaso disser ‘isto foi imolado aos ídolos’, não
comais, em vista de quem avisou e da consciência”.¹
§95. Certamente Paulo disse todas estas coisas para agradar àqueles que ainda não
estavam firmes na fé, porque entre eles e os judeus surgiam várias disputas e contendas
que para apaziguar, mais tolerante procurava ser com eles, que ainda não estavam
suficientemente confirmados como cristãos. Assim, consentia, ainda que o fizesse não
porque quisesse violar a lei, mas abrindo o caminha para atrair mais fiéis, com o
relaxamento das cerimônias.
§96. O mesmo Apóstolo também diz : “Aquele que come não ofenda o que não come
e quem não come não julgue o que come, pois o que come, come em honra do Senhor e
o que não come também honra o Senhor não comendo”.
§97. Por isso é indigno repreender com tanta hostilidade e rigor os peregrinos
cristãos, porque eu mesmo fui repreendido por esta e por outras coisas que representam
muito pouco diante da verdadeira fé. Muito mais sensato seria acolher no abraço e na
caridade de Cristo os homens cristãos, sejam gregos, armênios, etíopes ou de qualquer
das sete igrejas de cristãos e, sem ultrajes, permitir que eles vivam e convivam entre
outros irmãos cristãos, pois todos somos filhos do batismo e comungamos da verdadeira
fé.
§98. Não existe razão para discriminar tão severamente em função das cerimônias;
que cada um mantenha as suas sem ódio ou perseguição dos outros e nem deve por isso
ser excluído do comércio da Igreja se, estando em outras províncias no estrangeiro,
conservar suas práticas familiares.²
§99. Além disso temos nos Atos dos Apóstolos que Pedro viu o céu aberto e uma
certa arca descer, assim como um grande manto de linho, com os quatro elementos ser
lançada do céu à terra, e nesta arca estavam todos os quadrúpedes, serpentes da terra e
_____________________
1-Cor. 1 (8.4 e 8.10)
2-Cor. 1 (6.1-11)
240
pássaros do céu. Uma voz então lhe falou: “Levanta Pedro, mata e come”. Pedro a ela
respondeu: “Que vá para longe, Senhor, pois nunca comi do que é vulgar ou imundo”.
Mas a voz novamente: “O que Deus purificou tu não chamarás de vulgar”. E depois de
acontecer por três vezes, seguidas imediatamente a arca foi recolhida ao céu. Depois
desta manifestação o Espírito o enviou a Cesaréia, à presença de Cornélio, homem pio,
e temente a Deus. Enquanto Pedro falava junto a ele, o Espírito Santo desceu, sobre
todos aqueles que ouviam a palavra de Deus. Depois de recebido, Pedro mandou que
toda a família de Cornélio fosse batizada. E quando os demais Apóstolos e irmãos que
estavam na Judéia souberam que Cornélio fora batizado por Pedro, começaram a
reclamar porque a palavra de Deus e o batismo tinham sido dados aos pagãos, dizendo:
“Por que te juntaste aos homens que têm prepúcio e comeste com eles?”
§100. Mas depois que Pedro os tranqüilizou, expondo-lhes toda aquela visão, deram
graças a Deus, dizendo: “Portanto também aos pagãos deu a penitência para a vida”. E
lembraram-se da palavra de Deus que subindo ao céu disse: “Ide pelo mundo e pregai o
Evangelho a toda criatura; aquele que crer e for batizado será salvo, o que não crer, este
será condenado”. Então os Apóstolos começaram a pregar o Evangelho por toda a terra
e a toda criatura em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e por toda parte a voz
deles ecoou.
§101. Sobre a visão na qual apareciam animais limpos e animais imundos explicamos
na Etiópia que os animais limpos seriam o povo de Israel e os imundos os povos pagãos.
Assim os pagãos são chamados imundos porque são adoradores de ídolos e se prestam
às obras do demônio, que são imundas.
§102. Por que, porém aquela voz disse: “Pedro, mata”, entre nós é deste modo
interpretado: “Pedro, batiza”. E quando disse: “Pedro, come”, interpretamos como se
fosse dito: “Ensina e prega a fé e a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo ao povo de Israel e
aos pagãos”. Por isso é certíssimo que não encontremos em nenhuma parte das
Escrituras que Pedro ou os outros Apóstolos matassem animais imundos ou os
comessem depois desta visão. Desde então, deve-se saber que quando a escritura fala
sobre o pão, não se deve pensar em alimento para nutrir o corpo, mas em pregações e
explicações da doutrina de Cristo e das Escrituras.
§103. Seria conveniente que todos os doutores sem dúvida ensinassem, sobre aquele
manto que foi mostrado a Pedro, coisas elevadas e sublimes e não as insignificantes que
em nada pareçam interessar à nossa salvação, e também não procurar indícios de que
241
seria justo e lícito comermos animais imundos quando é a última coisa que se pode
deduzir das Escrituras. .
§104. Aquilo que os mesmos Apóstolos prescreveram em seus livros dos Sínodos, que
não comêssemos animais enforcados, estrangulados, ou retalhados, nem roídos por
outros bichos e nem o sangue deles, pois o Senhor ama a pureza e a frugalidade e odeia
a gula e a imundície. O Senhor também ama muito os que se abstêm de carne e muito
mais o que jejuam a pão, água e ervas, como fez João Batista, o eremita, do outro lado
do Jordão, que sempre se alimentou de ervas. E o eremita São Paulo que viveu no
deserto por oitenta anos, sempre jejuando. E Santo Antônio e São Macário e muitos
filhos espirituais seus que nunca provaram carne.
§105. É por isso, meus irmãos, que não nos convém desdenhar nem maltratar o nosso
próximo, pois Jacó diz: “Aquele que rouba do irmão ou o julga, viola e julga a própria
lei”.
§106. Paulo também ensina que é melhor que cada qual viva contente com suas
tradições que discutindo sobre a lei com seu irmão cristão. Ao contrário, não saber mais
do que convém, mas saber pela temperança, pois Deus nos concedeu a medida da fé de
cada um. Portanto, é feio discutir com seu irmão sobre a fé ou a escolha dos alimentos,
pois o alimento não nos aproxima de Deus, principalmente porque o próprio Apóstolo
Paulo diz: Nada ganharemos se comermos, nem perderemos se não comermos¹. Por
isso busquemos as coisas elevadas e o alimento celeste, deixando de lado estas inúteis e
vazias disputas.
§107. Todas essas coisas que escrevi sobre as tradições não foi para debater ou
contestar, mas para que, até onde for possível, protegesse e defendesse os meus contra
as severíssimas críticas de muitos que nenhuma reverência prestaram, nem ao
poderosíssimo Preste João, nem a nós, seus súditos, e difamaram com insultos e nos
chamaram de judeus e maometanos, porque praticamos a circuncisão e guardamos o
sábado como os judeus. Além disso, jejuamos até o pôr-do-sol, como os maometanos,
se acharmos que isso convém. Também criticam severamente o casamento dos
sacerdotes que é lícito entre nós como o dos leigos. Também não deixam de nos criticar
porque desde o primeiro batismo, todo ano somos rebatizados, e além dos homens
também as mulheres sofrem a circuncisão, costume que nem entre os judeus se
verificou. Enfim porque queremos observar santamente a escolha dos alimentos e
_____________________
1-Cor. 1 (8.8)
242
porque chamamos semicristãs as crianças que antes do batismo costumam ser chamadas
de pagãs.
§108. Por causa destas difamações fui constrangido a dizer tais coisas para limpar os
nossos de calúnias desta natureza e para que os doutores da sagrada Igreja Romana se
tornassem mais afáveis para conosco, pois desde que cheguei a Portugal há sete anos fui
proibido por eles (não sei até que ponto por lealdade à fé) de receber a comunhão e (o
que direi não sem dor e lágrimas) sou considerado entre meus irmãos cristãos como
pagão e anátema. Sobre tais fatos, que avalie aquele que dá vida a tudo e a cuja justiça
tudo confio.
§109. Eu com certeza não fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, imperador da
Etiópia, ao Pontífice Romano e ao Sereníssimo rei de Portugal, D. João para debater e
discutir rivalidades mas para estabelecer amizade e parceria; não só para aumentar ou
diminuir as tradições humanas, mas para cautelosamente indagar sobre os erros de
Arrio, príncipe dos hereges, e saber se os cristãos europeus se juntariam aos nossos para
derrotar as opiniões deste homem. Por causa dos erros dele, no Pontificado de Júlio
trezentos e dezoito bispos reuniram-se no Concílio de Nicéia. Vim também para saber
se entre os cristãos europeus se observa o que os Apóstolos determinam em seu livro
dos Sínodos, a saber, que em todos os anos se realizem dois concílios para estabelecer
regras sobre questões de fé. Para o primeiro destes propuseram o dia de Pentecostes e
para o segundo, o dia dez de outubro. Depois, também para saber como acordaríamos
entre nós sobre os erros de Macedônio, em razão dos quais o Papa Damaso reuniu em
Constantinopla um Concílio de cento e cinqüenta bispos. Também sobre os erros de
Nestorio que levou o Papa Celestino a reunir em Concílio duzentos Bispos. Por último
para que eu soubesse também sobre o quarto e grande Concílio de Calcedônia no qual,
por causa dos erros de Eutíquio, reuniram-se seiscentos e trinta e dois bispos no tempo
do Pontificado de São Leão. Deste Concílio resultaram várias discussões, mas nada foi
realizado para a concórdia da Igreja e todos se retiraram, cada um calando sua opinião
sobre este questão mal resolvida.
§110. Meu poderosíssimo Senhor imperador da Etiópia tem em seu poder os livros
destes Sínodos e de outros que mais tarde foram celebrados, e sobre esta inveja que o
adversário da verdade, o demônio disseminou entre os cristãos, meu senhor lamenta
profundamente, bem como todos os seus súditos fiéis a Cristo.
§111. Desde os primórdios da nossa Igreja, os nossos reconheceram o Pontífice
243
Romano como primeiro bispo, a quem ainda hoje obedecemos na qualidade de vigário
de Cristo, em cuja sede freqüentemente estaríamos se não nos atrapalhassem as grandes
distâncias e os reinos interpostos repletos de maometanos que nos impedem a passagem,
e assim nada, pois, se leva a efeito, em vista dos enormes perigos.
§112. Todavia o prudentíssimo e muito poderoso Rei D. Manuel de feliz memória, que
primeiro, não sem a bênção de Deus, descobriu com suas navegações o caminho para as
Índias Orientais, trouxe grande esperança, de que isto há de ser mais proveitoso no
futuro.
§113. Este rei depois de ter ultrapassado o Oceano dominou o Mar Vermelho com sua
armada, em nada se desviando da grandeza de sua missão na qual também iria difundir a
fé de Cristo. E, como foi aberto o caminho para proveito da nossa amizade, que já está
consolidada, cada povo com a ajuda do outro pode como esperamos em pouco tempo
unindo a armada de Portugal com nossos exércitos expulsar todos os maometanos, e
demais pagãos de todo o mar da Eritréia, e de toda a Arábia, Pérsia e Índia.
§114. Igualmente confiamos que isso há de acontecer, com a paz estabelecida entre
todos os cristãos da Europa, para que os inimigos da cruz também sejam afastados de
todas as regiões do Mediterrâneo, do Ponto e de outras províncias, e, conforme as
palavras de Cristo haja, sobre a face da terra: “Uma só lei, um só rebanho e um só
pastor”.
§115. Temos disto dois oráculos, que não diferem entre si: um da profecia de São
Ficator e outro do Santo Sínodo, eremita nascido nos recônditos confins do Egito. E
desde que meu poderosíssimo Senhor recebeu os embaixadores do sereníssimo e
prudentíssimo rei D. Manuel a fé dos oráculos parece acelerar os acontecimentos.
Certamente nosso príncipe há muito cogita nada mais do que preparar-se para que os
maometanos, com seus conselhos e exércitos sejam banidos da face da terra.
§116. Por estas razões e por outras que expus em presença do sereníssimo rei D. João,
filho de D. Manuel, fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, e não para debates
frívolos e inúteis. E oxalá nosso grande Deus conduza para bom termo os planos e o
esforço do nosso governante em razão dos quais fui enviado, para sua glória. Amém.
§117. Depois de todas estas explicações falarei de passagem e brevemente alguma
coisa sobre a condição de nosso patriarca e de nosso imperador.
§118. Em primeiro lugar, deve-se saber que o nosso patriarca é escolhido em rito
solene com a aprovação dos nossos monges de Jerusalém, que lá habitam junto ao
244
sepulcro de Nosso Senhor, e isso deste modo: Quando morre o Patriarca, imediatamente
o nosso Imperador Prestes João envia a Jerusalém um mensageiro destinado aos monges
que ali vivem, como já foi dito, os quais, depois de receberem a mensagem e os
presentes que nosso Imperador oferece ao Santo Sepulcro, escolhem sem demora o
novo Patriarca com os votos da maioria. Mas não é permitido eleger outro que não seja
de Alexandria e íntegro nos costumes. Depois de escolhido selam seus votos e
entregam, em mãos, ao legado, que para isso veio, o qual segue imediatamente para o
Cairo, onde, ao chegar, apresenta o resultado da eleição ao Patriarca de Alexandria que
sempre ali tem sua sede. Conhecido o homem destinado a tantas honras, que foi
escolhido entre os alexandrinos, envia-o à Etiópia em companhia do legado que por
antiga tradição deve ser um monge da ordem de Santo Antônio eremita. O emissário
parte imediatamente com o novo Patriarca, que na Etiópia é acolhido por todos com
grande alegria e muitas honras. Nesta empresa às vezes se passa um ano ou dois, e
enquanto isso o Preste João administra os proventos do próprio Patriarca ao seu agrado.
§119. Em princípio é função do Patriarca conceder as ordens sacras, que ninguém além
dele pode dar ou receber. Porém, a ninguém confere bispado, ou outro beneficio da
Igreja; isto só cabe ao Preste João, que tudo dispensa ao seu arbítrio. E com a morte do
Patriarca, faz-se herdeiro da totalidade de seus bens e proventos que são de grande
monta.
§120. Além disso, existe a responsabilidade do Patriarca pela excomunhão dos
contumazes, o que é tão rigorosamente observado que se aplica ao prevaricador a pena
perpétua de privação de alimento (até a morte). Indulgências, não as dá nem concede;
nem os sacramentos da Igreja são (por ele) vedados a alguém, em virtude de qualquer
delito, por maior que seja, a não ser em caso de homicídio. O nome Patriarca em nossa
língua diz-se abunna. Por sua vez, aquele que hoje ocupa esse lugar, ao batizar-se
recebeu o nome de Marcos, homem de cem anos ou mais.
§121. Para nós o ano começa nas calendas de setembro, que cai sempre no dia da
vigília de João Batista. Os demais dias de festa, como Natal, Domingo de Páscoa e
outros na seqüência são celebrados entre nós na mesma época que na Igreja romana.
Também não deve ser esquecido o dia em que o Apóstolo São Felipe secretamente
pregou entre nós o Evangelho e a fé de Cristo Salvador.
§122. Se for do agrado perguntar a respeito do sobrenome do nosso Imperador, saiba
que ele sempre será chamado Preste João e não Presbítero João como aqui se diz
245
equivocadamente por aí. Escreve-se também em nossa língua com estes caracteres: (ver
original em latim, cap. 5), cujo significado é João Belul, isto é Preste ou Alto João e na
língua caldaica assim se escreve: (ver no texto original, cap. 5), que é João Encoe, e
traduzindo também tem o significado de Preste João ou Alto. Ele não deve ser
chamado, como equivocadamente Mateus indicou, Imperador dos abexins, mas dos
etíopes. Mateus, como era Armênio, não poderia conhecer profundamente as nossas
coisas, sobretudo as que dizem respeito à fé. Por isso muitas das coisas que expôs
diante do prudentíssimo rei D. Manuel de feliz memória, muito pouco nos diz respeito.
Se assim fez não foi porque quisesse mentir, pois era um homem bom, mas porque nas
coisas da nossa religião não era muito esclarecido.
§123. A sucessão dos reinos e também do império não é transmitida ao filho mais
velho, mas àquele que o pai indicar. E este que agora ocupa o trono é o terceiro em
ordem de nascimento, porque o mereceu por uma pia reverência. Quando os filhos
foram convidados pelo pai moribundo a sentar-se no trono real, o que os demais
fizeram, só ele se recusou a fazê-lo. “De modo nenhum – disse – dou-me o direito de
sentar no trono do meu senhor”. Observando esta atitude respeitosa, o pai – também
chamado Davi – transmitiu a ele os reinos e o império.
§124. Os domínios do seu império, tanto de cristãos como de pagãos são de extensão
admirável, nos quais existem muitos reis e vice-reis, barões, condes, chefes militares e
muitos nobres, todos muito obedientes às suas ordens. Em seus domínios não circula
qualquer moeda, a não ser a estrangeira. Mas o ouro e a prata são dados e recebidos em
grande quantidade. São muitas as nossas fortalezas e cidades, mas não tais como as que
vemos aqui em Portugal. Isto vem em grande parte do fato de o Preste João sempre ter
vivido em acampamentos e tendas, costume este que foi resgatado para que a nobreza
contínua e permanentemente se exercitasse nas coisas militares. E isto não parece
superado: estamos cercados de todos os lados por inimigos da nossa fé, com os quais
freqüentemente lutamos, sempre conquistando vitórias, que atribuímos ao auxílio
divino.
§125. Já o direito escrito não é usado entre nós nem as querelas dos litigantes são
resolvidas por manuais, mas verbalmente. Isto impede que as questões se arrastem
longamente pela avareza dos juízes e advogados.
§126. Também parece digno de nota que Mateus não tenha sido enviado ao invencível
e poderosíssimo rei D. Manuel de feliz memória pelo nosso Imperador Davi, que foi
246
avô deste Davi de quem falamos, mas pela rainha Helena, sua esposa, conhecida como
Mão de Maria, que na ocasião, devido à tenra idade deste Davi, comandava os reinos,
mulher sem dúvida muito prudente e santa.
§127. Esta mesma Helena escreveu dois livros em língua caldaica, pois era muito
instruída, um dos quais Enzera Chebaa, isto é, Louvai a Deus em música, no qual fala
com competência sobre a Trindade e sobre a virgindade de Maria, Mãe de Cristo. O
outro chamado Chedale Chaay, ou seja, Raio de Sol, em que constam dissertações
impressionantes sobre a lei de Deus.
§128. Todas estas coisas sobre a fé, a religião e a situação de nossa pátria eu, Zaga-
Zabo, que significa Graça do Pai, bispo, sacerdote e Bugana Rás, soldado e vice-rei da
província chamada Bugana, não pude recusar o teu pedido, meu querido filhinho em
Cristo, Damião, nem seria permitido negar a qualquer homem que o solicitasse, por
duas razões, das quais a principal é que, conforme o mandato que tenho do meu
poderosíssimo senhor Preste João, Imperador da Etiópia, a todos que me interrogassem
sobre a fé, a religião e o nosso país eu nada mantivesse oculto, mas expusesse a verdade
das coisas por escrito ou verbalmente, com toda fidelidade. A segunda porque eu
julgasse que o valor da missão estava em tornar conhecidos nossos costumes,
cerimônias e princípios e a situação dos nossos territórios. A ninguém até hoje escrevi
ou expus em palavras estas coisas, não porque quisesse abster-me do trabalho, mas
porque nenhum cristão desde que cheguei a Portugal desejou conhecê-las por meu
intermédio. Disto não pude nem posso me admirar. Mas como julgo que tu, com
inúmeras razões, estás muito desejoso de saber sobre nós, rogo pelas chagas e pela cruz
de Cristo que esta confissão da nossa fé e religião convertas em língua latina para que
permitas a todos os pios cristãos europeus conhecer nossa religião e a integridade dos
nossos costumes. E se continuando em tuas peregrinações te pedirem que chegue a
Roma, então fala em meu nome ao Pontífice, aos veneráveis cardeais, patriarcas,
arcebispos, bispos e demais bons seguidores de Cristo, saúda-os com um beijo de paz
por Jesus Cristo e pede ao mesmo Pontífice que me mande de volta Francisco Álvarez,
instruído com carta sua e responda à do meu poderosíssimo Senhor, Imperador da
Etiópia com a qual eu enfim retorne à minha pátria e reveja meu lar. De fato aqui fui
retido por um tempo excessivo, para que antes da minha morte - que já me bate à porta,
tão velho estou - concluísse a missão desempenhada nesta embaixada, e depois
dedicasse a Deus e consagrasse às coisas divinas o restante da minha vida.
247
§129. Enfim peço-te que se alguma coisa em nossos escritos não estiver bem composto
ou ordenado, tu mesmo a ajuste à frase latina, mas de maneira que nada do sentido
modifiques. E por fim que durante a versão pesquises cuidadosamente o Velho e o
Novo Testamento para que saibas de que partes extraí meus conhecimentos e
transcrevas com mais segurança. Porque se tudo não estiver tão corretamente tratado,
quanto alguém curioso ou escrupuloso exija, isto deverá ser atribuído ao cansaço e à
falta dos livros caldaicos que não tenho em meu poder. Os que tive, certamente por
iniqüidade da sorte, perdi na viagem. Eis por que desprovido do auxílio de todos os
livros nada pude relatar senão o que a memória recente trazia, mas tudo com absoluta
fidelidade.
§130. Adeus, meu diletíssimo filhinho em Cristo.
Lisboa, 24 de abril de 1534.

§131. Depois de tudo escrito, veio à minha mente aquela passagem em que digo que
Cristo desceu aos Infernos pela alma de Adão e pela alma do próprio Cristo, que o
mesmo Cristo recebera da Santa Maria Virgem, sua mãe. Coisa da qual temos
testemunho muito verdadeiro nos livros que chamamos de doutrina, que Nosso Senhor
Jesus Cristo transmitiu aos Apóstolos, nos quais se encontram estas palavras que são
chamadas de mistérios das doutrinas. Pela autoridade e testemunho deles, todos sem
qualquer hesitação nos mantemos nesta lei. Eu, contudo, depois que cheguei a Portugal,
descobri que os teólogos traduziam de modo diferente, contra a opinião de todos nós,
que é tão certa, que não afirmamos somente isto, mas também que as almas de todos os
homens descendem de Adão e que nossa carne vem da semente da carne de Adão, assim
como também a nossa alma, tal como lâmpada acesa na alma de Adão, retirou dele sua
origem e natureza. Disto fica evidente que todos nós somos da semente da carne e da
alma de Adão.
§132.Damião de Góis: Com estes caracteres tudo o que acima estava escrito vai
assinado embaixo pela própria mão do orador.

(ver original em latim, cap. 5)

248
7. A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA NA FIDES.

Para a Análise do Discurso, todo texto é híbrido


ou heterogêneo quanto à sua enunciação, no sentido de
que ele é sempre um tecido de “vozes” ou citações, cuja
autoria fica marcada ou não, vindas de outros textos
preexistentes, contemporâneos ou do passado.*

*PINTO, 2002, p. 31.


A análise do texto Fides, Religio Moresque Aethiopum, que, conforme a
tradução apresentada no capítulo anterior, é constituída predominantemente de cartas,
não se deterá em considerações relativas ao gênero epistolar, pois não é esse o fulcro
desta tese. Essas cartas cumprem no livro uma finalidade específica, pois a primeira,
dirigida ao Papa e a ele dedicada, serve também como prólogo para a defesa que a
seguir será feita da inclusão da Etiópia na comunidade católica do Ocidente. As demais
são a prova indiscutível de que os etíopes vinham-se empenhando nesse sentido,
inclusive recorrendo à intermediação dos reis portugueses.

Outra razão que justifica a nossa renúncia ao estudo do conteúdo epistolar da


obra é que a maioria das cartas foram vertidas para o latim por Paulo Jóvio, e nossa
abordagem pretende levar em conta o texto histórico em si, cujo autor é Damião de
Góis, e, dele mesmo, só temos a carta introdutória, como vimos acima, e a versão da
carta da regente Helena, avó do Imperador Davi.

Contudo a análise polifônica permite situar o humanista Paulo Jóvio na


construção da narrativa, pois, na qualidade de tradutor das quatro cartas do Imperador
Davi, aparece como porta-voz da mensagem do governante africano, sendo um dos
locutores L identificados neste estudo, pois empresta sua voz e discurso para que a
mensagem seja acessível aos interlocutores, de várias outras línguas, que se
comunicavam em latim.

Para um outro trabalho, talvez, fica a sugestão (ou a promessa) do estudo dessas
cartas – embora apenas uma seja de fato da autoria de Damião de Góis – principalmente
se levarmos em conta a inconstância (ou inconsistência?) das avaliações acerca do seu
latim pelos estudiosos de sua obra. O estilo do humanista português confrontado com o
do humanista italiano, de certo muito nos poderia revelar.

250
7.1-Heterogeneidade enunciativa e polifonia discursiva.

A heterogeneidade de um discurso, segundo a conceitua Dominique


Mangueneau, consiste num “funcionamento que representa uma relação radical do seu
‘interior’ com o seu ‘exterior’, embora isso não signifique que as formações discursivas
apresentem necessariamente estas duas dimensões, mas sim que é preciso pensar, desde
o início, a identidade como uma maneira de organizar a relação de um discurso com o
que se imagina, indevidamente, exterior.” A heterogeneidade, por outro lado, é
considerada em dois planos diversos: a heterogeneidade constitutiva¹, que se define
através do interdiscurso² e a heterogeneidade mostrada, que “incide sobre as
manifestações explícitas e recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de
enunciação.” É com o apoio dos fenômenos dependentes desta última que realizaremos
o estudo do nosso corpus, procurando demonstrar por meio do levantamento e da
classificação das marcas de heterogeneidade, nele presentes, como se construiu o
discurso ecumenista de Damião de Góis em face do discurso da intolerância religiosa,
que, no dizer de Castelo Branco Chaves³, esmagou (e, segundo Benveniste, discurso é a
ação por meio da linguagem) o movimento humanístico, “fazendo-o abortar quando
apenas florescia”.

Nosso corpus, ou seja, a Fides, Religio Moresque Aethiopum foi elaborado com
dupla finalidade: primeiro, de obter junto à Sé romana o reconhecimento da comunidade
etíope como cristã católica, apesar dos sinais evidentes de heterodoxia do seu
catolicismo. Nesse aspecto o texto, como um todo, aproxima-se do discurso retórico
com finalidade persuasiva e como tal pode ser considerado, a partir de elementos que o
constituem. Entretanto é o seu estatuto de discurso polifônico que será aqui avaliado, e a
segunda finalidade confirma essa sua característica, pois o texto, por iniciativa de seus
locutores e enunciadores, expõe um diálogo em que são “ouvidas” diversas vozes que
polemizam entre si, completam-se ou respondem umas às outras sobre questões
relativas à fé.
_____________________
1-“Todo discurso define sua identidade em relação ao outro. Isso que dizer que o discurso apresenta uma
heterogeneidade constitutiva.” (MAINGUENEAU, 1987, p. 81)
2-Trata-se, grosso modo, da interseção entre campos discursivos distintos por meio de uma formação discursiva, que
pode, por vezes, associar-se “a certos trajetos interdiscursivos e não a outros”. (Idem, p. 82)
3-CHAVES, Castelo Branco. Prefácio a Marcel. Bataillon, 1935, p. 10.

251
Quanto ao aspecto formal – índice de sua heterogeneidade – o livro está
organizado em sete partes distintas: uma carta de Damião de Góis ao Papa Paulo III, a
quem a obra é dedicada, uma carta da regente Helena, avó do futuro Imperador da
Etiópia, seguida de outra do novo Imperador, ambas dirigidas a D. Manuel I, uma carta
do Imperador da Etiópia a D. João III, duas outras do mesmo Imperador dirigidas ao
Papa e, finalmente, o relato do bispo Zaga-Zabo, descrevendo, a pedido do amigo
Damião, a religião e os costumes do seu povo.

7.2-Universo, campo e espaço discursivo.

O universo discursivo corresponde à totalidade dos discursos possíveis nas


relações humanas e sociais. Esse universo, por sua vez, pode ser reconfigurado em
campos discursivos, definidos a partir do emaranhado de relações que caracterizam as
atividades e os modos de relacionamento, pessoais ou institucionais, a saber: a política,
a religião, a educação, a justiça, a economia, as relações internacionais, etc.¹ Assim,
dentro de cada campo gerador de discursos – o político, o religioso, o econômico – e
caracterizado, não só por uma temática, mas também por uma linguagem peculiar,
podemos encontrar os espaços discursivos, que definem as formas como os debates
inerentes a cada campo discursivo são representados – cartas, documentários, drama,
etc. – e como interagem² dentro do mesmo campo e com os demais campos do universo
discursivo.

Ainda que se possa falar em homogeneidade ideológica na constituição de um


discurso, as diferentes procedências dos enunciados constitutivos tornam-no
heterogêneo em sua materialidade, na medida em que se manifestam a polêmica ou o
acordo (relação contratual) na diversidade das vozes que dialogam no interior desse
mesmo discurso. Por outro lado, as oposições entre as formações discursivas também
não se dão de modo semelhante. O discurso humanístico, por exemplo, originalmente
opunha-se (opõe-se?) à Teologia, mas não na sua totalidade³.
_____________________
1-Entretanto, conforme Nota 2, da página anterior “nenhum campo discursivo existe isoladamente, havendo intensa
circulação de uma região a outra do universo discursivo.” (MANGUENEAU, 1993, p. 117)
2-O processo de intertexto. (conf. MANGUENEAU, 1993, p.81)
3-Oposição que não significa ser “contrário”, mas “diferente”, seja no enfoque, seja na linguagem, havendo,
entretanto, pontos de interseção entre eles. (N. A.)

252
7.3-O latim e outros signos.

Para a Análise do Discurso (AD), não são apenas os sistemas de valores do


enunciador e de seus destinatários, manifestos ou implícitos, que determinam a
construção dos sentidos de um discurso, por isso a análise textual deve também levar
em conta as condições de produção dos enunciados constituintes de um discurso, sem o
que, restringem-se as possibilidade de sua apreensão.

Do ponto de vista da semiótica, o texto ora estudado configura-se como um


entrelaçamento de signos plenamente capazes de pôr em evidência a realidade socio-
política e religiosa que lhe deu origem, por isso, qualquer análise a que seja submetido e
qualquer que seja a abordagem, revelará como produto final o perfil bem delineado do
Portugal do século XVI, em toda a sua instável complexidade e a crise religiosa em que
se encontrava mergulhada a cristandade ocidental.

Todo enunciado “apresenta-se como amostra de um certo gênero de discurso,


que presume um contrato específico pelo ritual que define e constitui-se em signo de
alguma coisa, para alguém, em um contexto de signos e de experiências”¹. Com efeito,
o fato de ter sido composto em latim é uma particularidade, que o ancora num tempo e
lugar histórico identificáveis e traduz sua especificidade, ou seja o emprego da língua de
cultura do período renascentista – segundo critérios estabelecidos por Lorenzo Valla, na
origem no movimento – é, por si só um indício, um signo que relaciona o texto ao
Humanismo. Mas não apenas isso: o latim era a língua do poder e do saber, naquele
contexto (histórico/religioso), portanto uma via de expressão capaz de conferir
autoridade aos discursos e converter em auditório toda a sociedade ocidental culta da
época.

A obra de Damião de Góis, “não é passível de inserção em qualquer movimento


literário”², conforme os parâmetros estabelecidos. Seus escritos introduziram métodos
inovadores na abordagem de temas patrióticos ou representativos de causas da época e
além
_____________________
1-Conf. MANGUENEAU, 1993, p. 34.
2-TAVARES, 1999, p. 52.
253
da contribuição na modernização dos conceitos em pesquisa científica, eram a expressão
de sua tolerância religiosa. Não foi ele um representante típico nem do humanismo
cristão (como Erasmo e Jacques Lefèvre d’Étaples)¹, nem do humanismo latino ou
literário (como Ângelo Policiano e Guilaume Budé)². Costuma-se inserir o discurso
histórico dentro do gênero narrativo do tipo não-ficcional, em oposição ao gênero
dramático, lírico, épico, e mesmo ao gênero narrativo ficcional. Mas a discussão em
torno do conceito de gênero ou modalidade discursiva/textual³, desde a Antigüidade,
não chegou ao seu termo, e talvez nunca se resolva, pois é um conceito movediço, assim
como os critérios adotados para estabelecê-lo. O que está fora de dúvida quanto à
Fides, é que se trata de um texto do Renascimento.

7.4-Fenômenos dependentes da heterogeneidade mostrada.

A noção de polifonia, observada por Bakhtin, a partir do texto de Dostoiévski e


desenvolvida por Ducrot, será aqui apreciada, conforme foi dito na introdução, segundo
as formulações de Fiorin e Diana Luz, bem como de Mangueneau, que recupera a
abordagem de Ducrot no que tange à existência de dois tipos de personagens distintos
em uma enunciação: os enunciadores e os locutores.

Do outro lado da enunciação posicionam-se os coenunciadores, ou


interlocutores, que, por meio de uma relação contratual tácita estabelecida na rede
dialógica, participam da construção de sentidos mediada pelo texto.

O locutor é o responsável pela enunciação, mas pode, ao mesmo tempo, ser


considerado enquanto ser no mundo, e por isso representar-se ora como L, ora como λ,
respectivamente, segundo Ducrot.

_____________________
1-“Lefèvre foi teólogo e professor de filosofia, tradutor da Bíblia e de Aristóteles, preceptor dos filhos de Francisco I
em 1526. Suspeito de luteranismo, precisou refugiar-se em Estrasburgo.” (RODRIGUES, 2002, p. 78)
2-“Ângelo Policiano foi poeta e mestre na Universidade de Florença; foi o primeiro a oferecer-se, no reinado de D.
João II para compor um poema épico sobre as Grandes Navegações. Budé foi um grande helenista e procurou
introduzir na França a cultura humanística surgida na Renascença italiana. Soube conciliar a sabedoria grega e a
revelação cristã, mas não foi um reformista.” (RODRIGUES, 2002, p. 79)
3-Uma solução moderna e adotada com base em certos critérios, é a classificação dos discursos segundo a “tipologia
textual”. Ver a esse respeito ORLANDI, 2006, p.224-237; PINTO, 2002, p.60, e MANGUENEAU, 1993, p. 16 e 35.

254
O locutor não é necessariamente o produtor físico do enunciado e, sob esse
aspecto, não se confunde com o autor efetivo de um discurso. Na Fides, seu autor
empírico, Damião de Góis, é também, predominantemente, o locutor L propriamente
dito. Mas como a teoria polifônica prevê o estabelecimento de uma hierarquia de
locutores, toda vez que Paulo Jóvio participa da enunciação na qualidade de tradutor –
apresentado pelo autor efetivo – das cartas provenientes da Etiópia, que identificamos
com a numeração III, IV, V e VI, assume também o estatuto de locutor L, ficando o
autor assimilado a λ.

O enunciador-E, por sua vez, corresponde a uma outra voz – ou personagem –


que o locutor põe em cena e que pode mesmo representar uma posição diversa da sua.
Os enunciadores não falam efetivamente, mas a enunciação lhes permite manifestar seu
ponto-de-vista, porque, observada pelo prisma bakhtiniano, “nenhuma palavra é nossa,
mas traz em si a perspectiva de outra voz”, ao mesmo tempo em que a unidade
discursiva (ou enunciado) “só encontra sua completude no processo dialógico”, o que
mostra que sempre existe uma consonância de vozes e diálogos que concorrem na
construção do sentido de uma formação discursiva.

Em resumo, Bakhtin concebe o dialogismo como o princípio constitutivo da


linguagem e a condição do sentido do discurso. Examina-se, em primeiro lugar, o
dialogismo discursivo, desdobrado em dois aspectos: o da interação verbal entre o
enunciador e o enunciatário do texto, e o da intertextualidade no interior do discurso.
(BARROS/FIORIN, 2003, p. 2)

Outros fenômenos podem ser examinados através da polifonia¹, e vão-nos


interessar aqueles que podem ser identificados na Fides, tais como a intertextualidade, o
discurso relatado (citação, discurso direto e indireto), a negação e o metadiscurso. Esses
conceitos serão apreciados conforme a especificidade de cada um dos exemplos abaixo,
recortados do texto.²

_____________________
1-“Polifonia é apenas um outro termo para dialogismo e para o conceito das diferentes vozes instauradas num
discurso, como a intertextualidade.” (BARROS & FIORIN, 2003, p.22).
2-Texto e discurso são palavras aqui utilizadas indistintamente para se referir à obra em estudo. (N. A.)

255
Primeiramente vamos proceder à identificação dos locutores L. Como a
heterogeneidade mostrada compreende as formas marcadas e as formas não-
marcadas, é com base nessa distinção que serão classificados locutores e enunciadores.
Nas formas marcadas fica explícita a presença de outra voz e pode-se dar por meio de
uma ruptura sintática (discurso direto), ou sem ela (discurso indireto). Nas formas não-
marcadas, a fronteira entre a fala do locutor e do outro (que chamaremos de enunciador-
E) não é nítida e a heterogeneidade não pode ser recuperada no nível enunciativo, pois
depende de índices vários – é a voz que se manifesta na forma de pontos-de-vista, que
podem ou não coincidir com a ideologia do locutor, qualquer que seja L.

Além de Damião de Góis e Paulo Jóvio, existe a exposição do bispo da Etiópia,


que o qualifica como um dos locutores, pois é apresentado como responsável pela sua
enunciação. Então temos, respectivamente, L1, L2 e L3. Em outro nível temos a rainha
Helena (L4) e o Imperador Davi (L5), que falam nas cartas reconstituídas na obra.

Já no primeiro parágrafo, o locutor L1, primeiro ser do discurso acionado pelo


sujeito empírico/autor, dirige-se ao Papa Paulo III usando o dêitico¹ NÓS, marcado pela
desinência verbal. Mas não se trata de um NÓS solidário, como normalmente é
empregado, mas de um chamamento, para conquistar a adesão à causa proposta e
defendida ao longo da obra.

“Nada existe em que mais ardentemente devamos nos empenhar...”

Assim, na carta-exórdio, L1 fala com a voz de todos os representantes da


categoria a que pertence, ou seja, a dos cristãos interessados na unidade da Igreja. Mas
ao se expressar assim, expõe o ponto de vista de λ que, na sua qualidade de ser no
mundo, faz parte dessa comunidade – na qual procura incluir o próprio Papa, como logo
a seguir vem explícito – “O desempenho desta missão cabe a vós...”. Mesmo antes do
explícito, o conhecimento do contexto de produção do discurso permite apreender a
intenção de L1 ao escolher NÓS em lugar de EU, que só passará a utilizar na segunda
(conforme a divisão feita) parte da carta.
_____________________
1-Conf. DUCROT, os dêiticos são também elementos-chave na identificação da polifonia. (op. cit. p. 41).

256
Nesse mesmo parágrafo, um enunciador-E1 manifesta-se em dois momentos
diferentes: na ressalva “se isso não puder ser feito de outro modo”, e na explicação “tu
que até já começaste com grande esperança para nós”; ambos são fenômenos da
heterogeneidade mostrada do tipo não-marcada e a eles voltaremos mais à frente.
Aqui
também podemos registrar a presença de outro dêitico, TU, que corresponde ao
coenunciador de L1, assimilado a Paulo III.

Sistematizando nossa análise da Fides, temos:

7.5-Intertextualidade.

1. Quod cum euenerit, dicemus te autore, prophetiam unius pastoris, et ouilis


adimpletam esse.

“Quando tal acontecer, diremos que, por teu intermédio, cumpriu-se a


profecia de um só pastor e um só rebanho.” (§2, carta I)

A intertextualidade, como se pode depreender do próprio nome, consiste numa


relação entre textos, em que determinado enunciado de um, nas palavras de Fiorin,
participa na construção, reprodução, ou mesmo na reformulação do sentido do outro,
considerado em sentido lato.

Pode ser implícita ou explícita, interna ou externa. Temos intertextualidade


implícita quando apenas se faz “alusão” a elementos de outro texto: paráfrases, título,
autor; e explícita quando se faz um recorte ipsis litteris de uma parte do texto, que, uma
vez integrado ao texto principal, receberá o nome particular de “citação”. Será interna,
segundo Mangueneau, se a relação estabelecida for com um corpus do seu próprio
campo; caso contrário será dita externa.¹ O trecho sublinhado acima remete ao texto
bíblico e corresponde a uma ocorrência de intertextualidade externa do tipo citação,
portanto explícita, mas uma citação de autoridade, que é uma das características do
discurso religioso. Nesses casos há o distanciamento do locutor, porém marcando sua
adesão diante
_____________________
1-Ver uma variação da concepção de intertextualidade em KOCH & TRAVAGLIA, 2000, p. 75.
257
de um “Locutor superlativo” – diferentemente da ironia em que este afastamento diz
respeito a falas pelas quais o Locutor não se responsabiliza e que, implicitamente,
rejeita. No presente enunciado L1 se apaga, e é essa “voz” suprema que passa a garantir
a validade do que está dito.

A intertextualidade é um dos fenômenos de heterogeneidade mostrada, referidos


por Mangueneau e como tal, é também um índice da polifonia discursiva, pois apesar da
diferença de nomenclatura, os conceitos de heterogeneidade e polifonia se equivalem,
convergindo para o reconhecimento da presença das vozes que participam do diálogo
constituído como finalidade primeira de toda enunciação. Mesmo o discurso
autoritário, que se pretende monofônico, traz na sua enunciação os “sussurros” das
vozes que ele, supostamente, apaga.

Produzindo uma frase do Evangelho, por exemplo, sem indicar sua


proveniência, um autor religioso (ou Locutor) faz expressar-se, por seu intermédio, uma
voz da qual seria apenas o suporte contingente. (MANGUENEAU, 1993, p. 101)

2. ...per deuotas preces nunciorum redemptoris Christi, nempe quatuor


Euangelistarum, Sancti Joannis, Lucae, Marci et Matthaei...

“...pelas devotas preces dos mensageiros de Cristo Redentor, os quatro


evangelistas São João, São Lucas, São Marcos e São Mateus...”. (§17, carta II)

3 ...et in primis sacrificia Abel, et Noe, quando fuit in arca: et illud Abraham,
quando fuit in terra Madian: et illud de Isaac, quando discessit a fossa iuramenti: et
illud Iacob, in domo Bethleem: et Moysis in Aegypto, et Aaron in monte, et Ieson filii
Nau in Galgala, et Gedeonis supra plagam, et Sampsonis, quando sitim habuit in terra
sicca: et Samuelis in Rhama prophetae, et Dauid Nacira, et Salomonis in ciuitate
Gebeon, et Heliae in monte Carmelo, quando suscitauit filium uiduae mulieris e Richa
supra puteum: et Iosaphat in praelio: et Manasse quando peccauit, et ad Deum est
conuersus: et Danielis in spelunca leonum, et trium sociorum Sydrach, Misach,
Abdenago in camino ignis: Annae ante altare et Neemieniae, qui fecit muros cum
258
Zorobobel, et Matathiae cum filiis supra quartam partem mundi, et Esau, supra
benedictionem.

“...e no princípio os sacrificios de Abel: o de Noé quando esteve na


Arca, o de Abraão na terra de Madian, o de Isac, quando saiu da cova do
juramento, o de Jacó na casa de Belém, o de Moisés no Egito, o de Aarão no
monte; o de Jason, filho de Nau em Galgala; o de Gedeão na praia, o de Sansão
quando teve sede na terra seca, o do profeta Samuel em Rama; o de Davi em
Nacira, o de Salomão na cidade de Gebeão, o de Elias no Monte Carmelo,
quando ressuscitou o filho da mulher viúva de Rica sobre o poço; o de Josafá no
combate, o de Manassés quando pecou e se converteu a Deus, o de Daniel na
cova dos leões, o dos três companheiros Sidrá, Misac e Abdenago no calor
ardente do fogo, o de Ana diante do altar, o de Neemiania, que fez muros com
Zorobobel, o de Matias com seus filhos sobre a quarta parte do mundo, e o de
Esaú sobre a bênção.” (§42, carta IV)

4. ...apud Dominum nostrum Iesum Christum, qui in die iudicii sententiam est de
nobis laturus. Quae dies gaudii quidem Sanctis: doloris autem, et stridoris dentium,
peccatoribus erit, cum deiicientur in ardentes flammas inferni...

“...na casa de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no dia do juízo há de nos ditar sua
sentença, dia que será de júbilo para os Santos, porém de dor e ranger de dentes para
os pecadores, quando serão lançados nas chamas do inferno...” (§57, enunciação de L3)

Nos três excertos acima, é patente a referência ao texto bíblico, mas o recorte
não é tão nítido para caracterizar a citação – embora muitas vezes também não seja
nítida a fronteira entre citação e alusão –, por essa razão dizemos que a intertextualidade
se apresenta sob a forma de alusão, fenômeno da heterogeneidade mostrada na qual,
independente de ruptura sintática, existe uma seqüência de palavras que nos permite
perceber a mesma voz de enunciador-E, que se manifesta no excerto 1 e o mesmo
discurso originário.

259
O texto da Fides é perpassado em sua quase totalidade por essa “voz” suprema,
porque o fim a que se destina e a qualidade dos seus locutores e interlocutores têm no
discurso religioso uma via de acesso eficaz.

5. ...cuius sanctissimus Imperator amicitiam Europaeorum Christianorum cupiens,


ad te et ad inuictissimus Reges Lusitaniae, legatos misit, per quos, ut ex eius epistolis
apparet, non tantum sibi Christianam amicitiam, et charitatem cupit a principibus
Europaeis impertiri, uerum etiam eosdem (quos assidue in acerbissimis discordiis nouit
uersari) ad Christianam concordiam pientissime adhortatur.

“...cujo santíssimo Imperador, desejando a amizade dos europeus cristãos


mandou legados a ti e aos reis de Portugal, por intermédio dos quais, como é
evidente em suas cartas, não só deseja compartilhar a amizade e a caridade cristã
dos príncipes europeus, mas também muito devotadamente exortá-los (os que ele
sabe que vivem permanentemente em acirradas discórdias) à concórdia cristã.”
(§6, carta I)

6. Surrexit iam Regina Saba, et uocat nos in iudicium, errata nostra reprehendens.

“Surgiu agora a rainha de Sabá e nos chama à razão, repreendendo


nossos erros.”¹ (§7, carta I)

7. ...ut ex nostra enarratione apparebit, sub tua disciplina uiuere cupit [...] et
posteritas intelligat, quo tempore, sub quoque pontifice haec gesta fuere.

“...como será visto em nosso relato, deseja viver sob tua doutrina [....] e a
posteridade saiba em que tempo e sob que pontífice aconteceram esses fatos”.
(§8, carta I)

8. Viros autem doctos, sacrarumque literarum disciplina, et aliarum artium bene


instructos, non dubito, quin tua sanctitas iam ad eum transmiserit, aut omnino sit
missura.
_____________________
1-“Por causa disso, sofro a tristeza solitária em meu espírito quando percebo a cada dia os inimigos da religião cristã
desfrutarem de paz e fraterna caridade entre si. Por sua vez, os reis cristãos, irmãos meus, nem um pouco
incomodados com estas injúrias, não me trazem qualquer ajuda como certamente conviria a cristãos, enquanto que os
horríveis filhos de Maomé ajudam-se mutuamente.” (Carta V, na nossa tradução da Fides)
260
“Não duvido, certamente, de que Vossa Santidade já tenha enviado a ele
homens doutos e bem instruídos na disciplina das letras sagradas e das outras
artes ou que logo há de enviar”. (§9, carta I)

Nesses excertos de 5 a 8, procuramos mostrar de que modo L1, na carta I, expõe


a voz de L5, fazendo alusão às declarações contidas nas cartas do Imperador Davi, L5,
que, sendo parte integrante do texto da Fides, constituem um mecanismo denominado
intertextualidade interna. Essa antecipação do discurso do outro, autenticando-o, no
mesmo espaço discursivo, assinala a adesão de L1 e tem clara intenção argumentativa.
Quando a obra foi produzida, o autor empírico ainda gozava de alto prestígio nos meios
cultos da Itália e sua religiosidade não havia sido posta em dúvida.

Em resposta aos que, contrariamente ao Professor Amadeu Torres, acusam


Damião de Góis de pobreza estilística, o excerto n° 6 nos oferece um belo exemplo de
alegoria, pois ao trazer do passado bíblico a figura da Rainha de Sabá (e a alegoria é
recorrente no texto bíblico) e fazê-la falar pela voz dos governantes modernos, o
historiador confere autoridade ao discurso da regente Helena e do imperador Davi.

7.6-Discurso direto e indireto (de LS).

A intermediação do argumento religioso nos enunciados vai-se repetir nos


excertos 9 a 37, porém na forma de discurso direto ou indireto, em que os
responsáveis pelos enunciados relatados se apresentam como novos locutores L,
conforme indicamos na introdução. Os trechos sublinhados abaixo correspondem a
essas formas de enunciação.

9. Penetrabo omnes inferiores partes terrae, et inspiciam omnes dormientes et


illuminabo omnes sperantes in domino. Videte quoniam non soli mihi laboraui, sed
omnibus exquirentibus ueritatem.

“Penetrarei as regiões inferiores da terra, acharei os que estão


adormecidos e iluminarei a todos os que esperam no Senhor. Vede que não
trabalhei só por mim, mas por todos os que procuram a verdade.” (§5, carta I)
261
10. Neque mihi Deus irascitur, ut dicit Psalterium...

“E Deus não volta contra mim a sua ira, como diz o Livro dos Salmos...”
(§31, carta III)

11. ...scriptum est: Beati pedes, qui portant pacem.

“...foi escrito: Felizes os pés que trazem a paz.” (§31, carta III)

12. ...sicut Dominus Iesus Christus in Euangelio dicit, ubi thesaurus tuus, ibi cor
tuum...

“Segundo diz Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho, onde está o teu
tesouro, aí está teu coração...” (§41, carta IV)

13. ...quid Euangelium praecipiat, quod dicit: Omne regnum in se diuisum


desolabitur.

“...o que recomenda e diz o Evangelho: ‘Será totalmente destruído o


reino dividido contra si mesmo’.” (§48, carta V)

14. ...Christus ore proprio ita explanauit: Esuriui, et dedistis mihi manducare:
Sitiui, et dedistis mihi bibere: Hospes eram, et collegistis me: Nudus, et operuistis me:
Infirmus, et uisitastis me: In carcere eram, et uenistis ad me...

“Cristo assim explicou pela própria boca: ‘tive fome e me destes de


comer, tive sede e me destes de beber, estava desabrigado e me acolhestes, nu e
me cobristes, enfermo e me visitastes, estava encarcerado e viestes a mim...‘.”
(§68, enunciação de L3)

15. Ipso Paulo quoque teste, omnes ex peccato nati sumus, propter Euae matris
nostrae transgressionem, et propter eius maledictionem.

“Como também é dito pelo próprio Paulo, todos nascemos em pecado por
causa do erro de nossa mãe Eva e de sua própria maldição.” (§69, enunciação de
L3)
262
16. ...ex ultimo Apocalypsis capite, ubi dicitur, Foris autem canes, et uenefici, et
impudici, et homicidae, et Idolis seruientes, et omnis qui amat et facit mendacium.

“...do último capítulo do Apocalipse onde está dito então ‘fora os cães,
feiticeiros, impudicos, homicidas, servidores de ídolos e todo aquele que ama e
pratica a mentira’.” (§70, enunciação de L3)

17. ...ex Paulo accepimus, qui mauult clericum et laicum nubere quam uri.

“...recebemos de Paulo, que prefere que o clérigo e o laico se casem do


que vivam abrasados.” (§70, enunciação de L3)

18. Is quoque inquit, oportere episcopum uirum unius uxoris esse, et


irreprehensibilem, sobrium:

“Ele mesmo também diz que convém que o bispo seja homem de uma
única esposa, irrepreensível e sóbrio.” (§70, enunciação de L3)

19. Rursus ex eorum Apostolorum instituto, si aliquis siue Ecclesiasticus siue laicus
cum uxore congressus fuerit, uel in somnis pollutus fuerit, spacio quatuor et uiginti
horarum templum non ingreditur. Nec id quoque menstruatis mulieribus licet, nisi
septimo quoque die a menstruo, id quidem omnibus uestibus ablatis, quibus tempore
menstrui utebatur, ipsaque bene lota, atque a fordibus repurgata.

“Voltando à determinação dos mesmos Apóstolos, se alguém,


eclesiástico ou leigo, tiver relações com a esposa ou poluir-se durante o sono,
por vinte e quatro horas não deve entrar na Igreja, o que também não é lícito às
mulheres menstruadas, senão no sétimo dia do mênstruo, isto certamente, sem
qualquer das roupas que tenha usado durante o período, e que a mesma esteja
bem asseada e purificada de manchas.” (§71, enunciação de L3)

20. ...ubi Dominus locutus est Mosi dicens, Moses Moses, exue calciamenta tua,
quoniam terra, quam pedes tui premunt, sancta est.
263
“...onde o Senhor falou a Moisés, dizendo: Moisés, Moisés, tira tuas
sandálias pois a terra que teus pés pisam é santa.” (§72, enunciação de L3)

21. ...et uox de coelo dixerit, Hic est filius meus dilectus, in quo mihi complacuit.

“...e disse uma voz vinda do céu: ‘Este é meu filho amado no qual
depositei minha graça’.” (§73, enunciação de L3)

22. ...cui super alios fratres potestatem tribuit dicens, Ad praedam fili mi ascendisti,
requiescens occubuisti ut leo, et quase leaena, quis suscitabit eum?

“...a quem atribuiu autoridade sobre os outros irmãos, dizendo: ‘subiste,


meu filho, até a presa, deitaste repousando como um leão, e como uma leoa,
quem o levantará?’” (§73, enunciação de L3)

23. Et cum Deus etiam creasset mundum, dixit, Faciamus hominem ad imaginem et
similitudinem nostra...

“E Deus quando criou o mundo disse: ‘Que o homem seja feito à Minha
imagem e semelhança...’.” (§73, enunciação de L3)

24. ...nec Deo acceptiores esse, apud quem nulla est acceptio personarum, teste
Paulo: qui etiam ostendit nos saluos fieri non propter circuncisionem, sed propter
fidem:

“nem mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela
fé...”. (§82, enunciação de L3)

25. Et ut ipsemet ait, factus est omnibus omnia, ut omnes faceret saluos.

“E, como ele mesmo (Paulo) diz, tudo foi feito para todos, para que todos fossem
salvos.” (§82, enunciação de L3)

264
26. ...uariis sermonibus locutus est, dicens, multifariae, multisque modis olim Deus
locutus est patribus nostris in Prophetis, ostendens eis ex opsis prophetis, Christum ex
semine Davuidis secundum carnem: deinde Christum eis predicauit cum patribus
nostris in tentoriis, in deserto fuisse, eosque in terram promissionis introduxisse per
manum Ipsuae.

“...proferiu vários sermões dizendo: ‘Em muitos lugares e de muitos


modos outrora Deus falou a nossos pais, mostrando-lhes no livro dos Profetas e
pelos próprios profetas que Cristo viria da descendência de Davi, pela carne, e
depois predisse que Ele estaria com nossos pais em suas tendas no deserto e os
levaria à terra prometida pela mão de Josué’.” (§83, enunciação de L3)

27. ...idem quoque Paulus testatur, Christum principem fuisse sacerdotum, ac in


nouum tentorium intrasse, quod est sanctum sanctorum, et sacrificio sui corporis et
sanguinis, sanguinem hircorum, ac taurorum, quo nemo accedentium poterat iustificari,
aboleuisse:

“...Paulo também confirma que Cristo foi o Príncipe dos sacerdotes e que
entrou na nova tenda porque é o Santo dos Santos e pelo sacrifício do Seu corpo
e de Seu sangue abolira o sangue dos bodes e dos touros pelo qual nenhum dos
imoladores pudera justificar-se.” (§83, enunciação de L3)

28. ...et sic multis modis locutus est Iudaeis, multis quoque ritibus, sancta, et
incorrupta fide se a suis coli patitur.

“E assim de muitos modos falou aos judeus que Ele também permite ser
adorado pelos seus, com muitas cerimônias na santa e incorrupta fé.” (§83,
enunciação de L3)

29. Quoniam tres sunt, qui testimonium dant in terra, Spiritus, Aqua, et Sanguis,
teste Ioanne in sua prima Canonica, etiam ut Euangelium dicit, Bona arbor fert bonos
fructus: mala uero arbor, malos.

265
“Afinal, segundo João em sua primeira Canônica, são três os que dão
testemunho na terra: o espírito, a água e o sangue, e como diz também o
Evangelho: ‘A boa árvore dá bons frutos e a má os frutos maus’.” (§84,
enunciação de L3)

30. Et ut ipse Dominus ait in suo sancto Euangelio, si quis comederit corpus meum,
et bibere sanguinem meum, non gustabit mortem in aeternum.

“E como o próprio senhor diz em Seu santo Evangelho, ‘aquele que


comer do meu corpo e beber do meu sangue viverá na eternidade’.” (§84,
enunciação de L3)

31. ...dixerunt Apostoli in suis Synodorum libris, Omnes qui habent fidem, et non
acceperunt baptismum, merito possunt dici semichristiani.

“...os apóstolos disseram em seus livros dos Sínodos: ‘Todos os que têm
fé e não receberam o batismo, com justiça podem dizer-se semicristãos’.” (§84,
enunciação de L3)

32. ...Euangelium docet, Qui crediderit, et baptizatus fuerit, saluus erit: qui uero
non crediderit, condemnabitur.

“...o Evangelho ensina: ‘Aquele que crer e for batizado será salvo, mas o
que não crer será condenado’.” (§84, enunciação de L3)

33. Id uero quod in Euangelio ait, Quod per os intrat, hominem non coinquinare,
sed ea quae ex ore procedunt:

“De fato o Evangelho diz: ‘O que entra pela boca não mancha o homem,
mas o que dela provém’.” (§93, enunciação de L3)

34. Verum tamen est Paulum dicere, Omne quod in macellum uenit, manducate,
nihil interrogantes propter conscientiam. Postea , Si quis uos uocat infidelium ad
coenam, et uultis ire, omne quod uobis apponetur, manducate, nihil
interrogantes propter conscientiam. Rursus, Si quis autem dixerit, hoc immolatum est
266
Idolis, nolite manducare, propter eum, qui indicauit et propter conscientiam.

“Entretanto é verdade que Paulo disse: ‘Tudo o que vem ao mercado


comei, nada interrogando em vista da consciência’. Depois: ‘se algum dos infiéis
vos convidar para a ceia e quiserdes ir, tudo o que vos for oferecido comei, nada
interrogando à consciência’. Ao contrário: ‘Se alguém acaso disser ‘isto foi
imolado aos ídolos’, não comais, em vista de quem avisou e da consciência’.”
(§94, enunciação de L3)

35. Idem Apostolus quoque; ait, Is qui manducat, non manducantem non spernat, et
qui non manducat, manducantem non iudicet: quoniam is qui manducat, domino
manducat; et qui non manducat, domino non manducat.

“O mesmo apóstolo também diz:: ‘Aquele que come não ofenda o que
não come e quem não come não julgue o que come, pois o que come, come em
honra do Senhor, e o que não come, também honra o Senhor não comendo’.”
(§96, enunciação de L3) L3

Embora nesta seqüência fosse nossa intenção destacar apenas e principalmente


as ocorrências de discurso relatado (direto ou indireto), a mensagem transmitida por São
Paulo em suas epístolas e um dos fundamentos da filosofia de Erasmo, revela-se, com
insistência, também na concepção religiosa dos etíopes, como mostram os enunciados,
tornando inevitável o comentário. As fontes dessas doutrinas estão indicadas em
algumas notas incluídas na nossa tradução, no capítulo 6, e a menção de algumas
práticas, que, embora sendo reconhecidas pelas Escrituras, não foram apropriadas pela
religião católica romana, vale lembrar, não contradizem nem Erasmo, nem o Apóstolo,
pois sendo manifestações exteriores, como defende o pensador holandês, não interferem
na pureza da fé.

36. Id praeterea quod in Actis Apostolorum habemus, nempe quo pacto Petrus uidit
coelum apertum, et uas descendere quoddam, ueluti linteum magnum, quotuor initiis
submitti de coelo in terram, in quo erant omnia quadrupedia, et serpentia terrae, et
uolotilia coeli.
267
“Além disso temos nos Atos dos Apóstolos que Pedro viu o céu aberto e
uma certa arca descer, assim como um grande manto de linho com os quatro
elementos ser lançada do céu à terra, e nesta arca estavam todos os quadrúpedes,
serpentes da terra e pássaros do céu.” (§99, enunciação de L3)

37. Cui uox dixit, Surge Petre, occide, et manduca: cui Petrus, absit Domine,
quoniam nunquam manducaui omne commune, aut immundum. Cui uox iterum quod
Deus purificauit, tu commune tu commune ne dixeris.

“Uma voz então lhe falou: ‘Levanta, Pedro, mata e come’. Pedro a ela

respondeu: ‘Que vá para longe, Senhor, pois nunca comi do que é vulgar ou

imundo’. Mas a voz novamente: ‘O que Deus purificou tu não chamarás de

vulgar’.” (§99, enunciação de L3)

Em Discurso direto, temos o diálogo entre Pedro e Deus, que nos excertos acima
manifestam-se na qualidade de LS.

Nesta seqüência de citações na forma de discursos relatados (direto/indireto),


que são “as manifestações mais clássicas da heterogeneidade enunciativa”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 85), as vozes de locutores L vários, explicitados ou não, e
reproduzidas predominantemente por L3 (discurso de Zaga-Zabo), reportam-se aos
livros do Evangelho, e a recorrência, por si só, demonstra o grau de adesão de L3
(algumas vezes de L5 ou de L1) aos discursos desses “não-eu” que protegem as
asserções e permitem a L1, L3 e L5 dizer “o que enuncio é verdade porque não sou eu
que o digo”, mas sim um “Ausente Supremo “ assimilado a L, que pode ser a voz de
Deus, de algum dos Apóstolos ou do próprio Cristo. Há que se destacar a
predominância do discurso direto (22 ocorrências em 28 excertos), em que essa Voz
Suprema se manifesta com total autonomia, sem interferência da sintaxe. Os locutores
LS contribuem com seus enunciados para dar legitimidade à doutrina observada na
Etiópia – que os representantes mais radicais do clero ocidental consideravam heresia –
e para demonstrar que se trata na verdade da fiel obediência aos textos sagrados. Nos
excertos 17 e 18, 24 e 25 defendem-se posições que se alinhavam justamente com os
268
pontos em que a ideologia protestante ia de encontro à ortodoxia católica: a pureza do
casamento dos sacerdotes e a certeza da salvação pela fé. Trata-se de um diálogo
evidente com o luteranismo. Em 20, a obrigatoriedade de entrar descalço no templo,
considerada como influência muçulmana e herança da origem árabe dos etíopes é
demonstrada e abonada pela reprodução da fala de Deus a Moisés.

Outras questões que são polemizadas pelos discursos de LS aparecem em 31 e


32: a defesa do entendimento que, na Etiópia, havia sobre o batismo e, em 33 a 37,
quando Zaga-Zabo recorre ainda à Palavra para falar sobre a escolha dos alimentos. A
frase bíblica “O que entra pela boca não mancha o homem, mas o que dela provém.”,
foi amplamente debatida no processo que Damião de Góis, aqui considerado como λ,
enfrentou perante o Santo Ofício.

Vale registrar que essas passagens polêmicas têm como coenunciadores


presumíveis, principalmente, os inquisidores Ortiz e Margalho, que levantaram dúvidas
quanto à reputação do bispo etíope junto ao Cardeal D. Henrique, o clero e a nobreza de
Portugal.

7.6.1-Discurso indireto de LE.

38. ...ut aiunt, christus et mater eius Maria praedixere, quod scilicet
postremis
temporibus oriturus esset e regionibus Francicis Rex quispiam, qui aboliturus esset
uniuersum Barbarorum et Maurorum genus...

“...como dizem, Cristo e Sua mãe predisseram que nasceria,


evidentemente, num futuro distante, na região dos francos, certo rei que
extirparia do universo a raça dos bárbaros e dos mouros...” (§20, carta II)

39. De hac autem mutua legatione antiquitus praedictum fuit a Propheta in libro de
uita et passione sancti Victoris, et in libris sanctorum Patrum, quod Rex magnus
Christianus, cum Rege aethiopiae esset cum mutua pace conunenturus.
269
“Sobre esta recíproca embaixada, já foi outrora predito pelo Profeta no
livro da vida e paixão de São Vítor e nos livros dos santos padres que um grande
rei cristão haveria de se unir a um rei da Etiópia em mútua paz...” (§31, carta III)

40. ...ab eo tempore quo Angelus Dei allocutus est Philippum, qui fidem doceret
Eunuchum potentis Reginae Candacis, Reginae Aethiopiae, quae ab Hierosolyma
Gazam pergebat.

“...desde o tempo em que o anjo de Deus falou a Filipe que ensinasse a fé


ao eunuco da poderosa rainha Candace, da Etiópia, que peregrinava de
Jerusalém para Gaza.” (§50, carta VI)

41. ...constitutum a Sanctis Apostolis est oportere nos confiteri, atque quam
poenitentiam, pro magnitudine singulorum peccatorum, a confessore accipere debemus.
Instruunt quoque nos, quomodo orandum, et ieiunandum sit, et charitas exercenda.

“...ficou determinado pelos Santos Apóstolos que nos cabe reconhecer


nossos pecados e que devemos receber do confessor a penitência conforme a
gravidade de cada um; e também como se deve orar, jejuar e praticar a
caridade.” (§87, enunciação de L3)

Os excertos 38 a 41 contêm exemplos do discurso indireto, supostamente


atribuído à voz de LS. Entretanto existe nesses enunciados uma particularidade que
pode ser compreendida a partir de aspectos do “discurso relatado” e da “autoridade”
abordados por Mangueneau. Embora o discurso indireto não seja “nem mais nem
menos fiel que o discurso direto”, no caso dessas três enunciações a estratégia
observada na carta da rainha Helena e do Imperador Davi, expressando-se em discurso
indireto, é reveladora da ambigüidade consciente dos locutores ao se ocultarem por trás
de um LE, pois esta é uma forma hábil de dizer o que se deseja “sem necessitar se
responsabilizar por isto.” Mais uma vez o papel da “autoridade” (ausente) participa da
construção do sentido, porque evitando expô-la por meio do discurso direto, sua
ausência anula a possibilidade da discussão. LE aparece quase como a voz de um
personagem de ficção, que certos narradores costumam utilizar na crítica, na bajulação
270
ou para convencer o outro de um fato duvidoso¹.

42. ...per literas obsecrauit, ut filium Meilech coram arca foederis testamenti
Domini Regem Aethiopiae consecraret, ac crearet neue ulterius foeminae ius regnandi
in Aethiopia haberent ut tum in more erat, sed ut recto tramite masculi in regnum
succederet.

“...por carta suplicava ao rei que criasse e consagrasse seu filho Meilech
rei da Etiópia diante da Arca da Aliança do testamento do Senhor, e que
mulheres não mais tivessem direito de reinar na Etiópia como até então era
costume, mas que os homens herdassem o trono em linha direta de sucessão.”
(§74, enunciação de L3)

43.... id quod semper apud se occultum tenuerat ei reuelat, nempe tabulas foederis
Domini pene se esse...

“...a ele revelou o que sempre mantivera em segredo: que com ele
certamente estavam as tábuas da Aliança do Senhor.” (§77, enunciação de L3)

Nem sempre a autoridade é convocada para mascarar o contestável. Há


enunciados, como 42 e 43, cuja função é garantir e preservar a tradição, e tanto a forma
de sucessão no reino, reivindicada pela rainha de Sabá ao rei Salomão, enunciada por
sua “própria voz” quanto a autenticidade da Arca da Aliança confiada ao povo etíope, e
atestada pela “voz” do mesmo súdito que a arrebatou, recobrem os acontecimentos
narrados de uma aura de verdade indispensável à qualidade do testemunho de L3.

_____________________

1-Muitas coisas que são afirmadas pelos reis etíopes ou por Zaga-Zabo, como se pode depreender da leitura dos seus
textos, encontram-se em livros antigos da Etiópia. (N. A.)

271
7.6.2-Discurso indireto de LI.

44. Iisdem litteris praeceptum erat, ne in patriam redirent, nisi Oromuzia


perlustrata, ac Precioso Ioanne salutato, de cuius statu Rex auidissime cupiebat certior
fieri.

“Nesta mesma carta lhes era ordenado que não voltassem à pátria sem ter
visitado Ormuz e sem ter saudado o Preste João, de cujo estado o rei muito
desejava ser informado”. (§14, carta I)

45. ...sed id a Dauide obtinere nunquam ualuerunt, respondente ad ipsorum preces,


se illum uirum, uma cum regnis suis, a patre Nau accepisse, eumque pari cura, et
amore cum ipsis regnis seruare uelle...

“...mas isso nunca conseguiram obter de Davi, que aos pedidos deles
respondeu que recebeu aquele homem de seu pai Nau, juntamente com o reino, e
que desejava conservá-lo com amor e cuidado como ao próprio reino...” (§15,
carta I)

Acima, em discurso indireto, respectivamente do rei de Portugal (44) e do Preste


João (45).

46. Is ut nostri asserunt, omnium hominum [....] et praecipue ob eius prudentiam,


quae eximia erat, tam auide ab Aethiopiae Imperatoribus retentus fuit.

“Segundo contaram os nossos ele foi retido tão avidamente [....] e


principalmente pela sua grande prudência.” (§ 15, carta I)

47. Idem Iouius quoque in harum epistolarum enarratione, uolumen quod


Franciscus Aluarez de situ, moribus, cultuque; Aethiopum composuit...

“O mesmo Jóvio, no comentário destas cartas, prometeu também que


verteria para ao latim a obra que Francisco Álvares compôs sobre a situação, os
costumes e a religião dos etíopes...” (§53, enunciação de L1)
272
De 44 a 47, a locução é passada por L1, respectivamente, a D. Manuel, ao Preste
João, aos enviados de D. Manuel à Etiópia, todos em discurso indireto, na qualidade de
LI, e a L2; não são vozes supremas e portanto não portadoras de verdades absolutas, mas
de mensagens de teor meramente informativo e mundano, que de qualquer modo não
pertencem a L1.

7.6.3-Discurso direto e indireto de LP.

L aparece muitas vezes como portador do seu próprio discurso. O efeito


polifônico dessa estratégia discursiva consiste em fazer falar um locutor LP, ao qual L se
assimila, criando um distanciamento semelhante ao que se observa na narrativa de
ficção, quando o narrador, que é também personagem, relata o seu próprio discurso.

48. Has Literas mittit Atani Tinghil, id est, Thus Virginis, quod nomen est a
baptismate [....] et fortium paganorum, domino arcium et altorum castellorum, et
murorum, propagatori fidei Iesu Christi.

“Esta carta enviou-a Atani Tinghil, isto é, Incenso da Virgem, que é o seu
nome de batismo [....] e dos fortes pagãos, senhor de fortalezas, de altos castelos
e muralhas, propagador da fé de Jesus Cristo.” (§29, carta III)

Falando na terceira pessoa, como se se referisse a um personagem, L5, em


discurso direto até a metade do parágrafo, fala do lugar de Davi enquanto ser no mundo,
tornando-se portanto um λ5 em face de sua própria enunciação, mas ao mesmo tempo
distanciando-se dela.

49. ...et dixi, Benedictus sit filius sapiens, et magni capitis, filius Regis Emanuelis,
qui sedet in cathedra regnorum suum.

“...e eu disse Bendito seja o filho sábio, filho do rei D. Manuel, o de boa
memória, que ocupou o trono dos seus reinos.” (§41, carta IV)
273
50. ...et iam a te postulo Sanctissime Pater, cur non hortaris reges christianos filios
tuos, ut arma deponant, et uti fratres decet, condordes inter se esse uelint, postquam
ipsi oues tuae sunt, et tu ipse pastor earum?

“...e já vos pergunto, Santíssimo Padre, porque não exortais os reis


cristãos, vossos filhos, para que deponham as armas e, como convém a irmãos,
queiram estar em harmonia, já que são vossas ovelhas e vós mesmo seu pastor?”
(§48, carta V)

Em 49 e 50, L5 faz do dêitico EU a voz de um locutor que exalta seu interlocutor


ou a ele interroga. Assim EU torna-se um locutor LP do discurso produzido por L5.

51. Postquam haec omnia scripsi, uenit mihi in mentem locus ille, ubi dico Christum
descendisse ad inferos, pro anima Adae, atque pro anima ipsiusmet Christi, quam ipse
Christus acceperat ex Sancta Maria uirgine matre sua.

“Depois de tudo escrito, veio a minha mente aquela passagem em que


digo que Cristo desceu dos infernos pela alma de Adão e pela própria alma do
próprio Cristo, que o mesmo Cristo recebera da Santa Maria Virgem, sua mãe.”
(§131, enunciação de L3)

Zaga-Zabo evoca seu próprio discurso por intermédio de um LP – o dêitico EU,


vem indicado pela terminação do verbo – que L3 aciona por via do discurso indireto.

7.7-Justificação, explicação, ressalva.

Cada vez que se abre um espaço no texto, quebrando-lhe a seqüência, para


intercalar algum tipo de comentário, seja de natureza explicativa, retificadora,
esclarecedora, etc., o locutor é temporariamente “interrompido” por uma voz, um
enunciador-E, que assumirá a responsabilidade do enunciado, espécie de metadiscurso,
que às vezes se manifesta como “voz” de dicionário, para esclarecer ou elucidar uma
asserção.

274
52. Hi erunt in domo mea honestissime tractati, et si discedere uoluerint, laborum
suorum eis amplam mercedem soluam. Iuroque per Deum Iesum Christum Dei filium,
me eos libere cum uoluerint, esse dimissurum.

“Estes serão tratados em minha corte com toda distinção e se quiserem


desistir dos seus trabalhos a eles pagarei uma grande remuneração. E juro por
Deus e por Jesus Cristo, filho de Deus, que haverei de deixá-los à vontade
como bem quiserem.” (§34, carta III)

No enunciado em negrito, L5 se coloca como interlocutor, ao assegurar a um


enunciador-E que supostamente o estaria interpelando, que não aconteceria dessa vez o
que aconteceu a Pero da Covilhã, proibido pelo Imperador Nau e por seus sucessores de
deixar a Etíópia, lá tendo permanecido até a morte.

53. ...quo tutior esse possim aduersus caluniosos, quibus uideri possim non studio
Reipublicae Christianae, sed aemulatione gloriae Iouio...

“...para me resguardar inteiramente contra os caluniadores aos quais


possa parecer que não foi por zelo da república cristã, mas por inveja da glória
de Jóvio...”. (§53, enunciação de L1)

Nessa justificação, L1 deixa ouvir um diálogo entre os enunciadores-E,


responsáveis pela calúnia e o interlocutor, ao qual ele se assimila, antecipando sua
defesa. Trata-se também de uma figura de retórica, a prolepse, sempre presente nos
discursos de Cícero, que consiste na antecipação do argumento – real ou fictício – do
adversário para, voltando-o contra o próprio opositor (os caluniadores), desconstruí-lo.

54. Haec narratio apud nos Aethiopes sanctissima et probatissima habetur, ut ex


historia ipsius Regis Dauidis (quae iucundissima lectu est) apparet. Cuius historiae
liber tantae crassitudinis est, quantae omnes Pauli epistolae.

275
“Esta narrativa entre nós é considerada santíssima e muito estimada
como aparece na história do próprio rei Davi, que é agradabilíssima de ler. O
livro da referida história é da mesma espessura de todas as epístolas de Paulo.”
(§76, enunciação de L3)

Esse comentário intercalado na narrativa faz ouvir um enunciador-E que


interfere, e coloca L3, ao lado de outros interlocutores, na posição de interlocutor, para
que avalie seu próprio discurso.

7.8-A negação.

Nem sempre os locutores procuram apagar as vozes contraditórias que poderiam


fazer-se ouvir, para que, permitindo que elas se manifestem, possam defender seus
posicionamentos e neutralizar as oposições sobre as quais seu próprio discurso é
construído. A negação pode ser objeto de uma análise polifônica, na medida em que
nela convivem dois enunciados e, conseqüentemente, dois enunciadores, um que
“assume o ponto de vista rejeitado e outro que assume a rejeição desse mesmo ponto-
de-vista.

55. Quapropter non ad imitatione Iudaeorum sed iussu Domini nostri Iesu Christi,
et sanctorum Apostolorum eum (diem Sabbatum) seruamus, quorum gratia in nos
Christianos

“Por isso o guardamos (o dia de sábado), não para imitar os judeus, mas
por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Santos Apóstolos, dos quais foi
transcrita para nós cristãos...” (§65, enunciação de L3)

Neste enunciado dialógico, contesta-se um enunciador-E que afirmaria que os


etíopes utilizam práticas semelhantes às dos judeus. Tal enunciador pode ser
representado, nesse contexto, pelo próprio Papa ou por qualquer adepto da ortodoxia
doutrinal católica, e o pressuposto é a condenação do judaísmo pelo catolicismo
ocidental.

56. Ad quarum animarum remissionem Patriarcha nullas dat indulgentias, id ad


solum Deum, ac poenarum temporis constitutionem credimos spectare.
276
“Para a remissão destas almas o Patriarca não concede indulgências, isto
só compete a Deus, e cremos que ele espera o estabelecimento do tempo das
penas.”
(§67, enunciação de L3)

A negação pode ser polêmica ou descritiva. Enquanto a descritiva permite a


substituição parafrástica por uma enunciação positiva, a polêmica não admite a
contrapartida. No exemplo acima, o trecho sublinhado demonstra-o claramente.
Qualquer enunciado positivo confrontado a esse seria considerado falso e contraditório
a ele mesmo, ou seja, não se poderia dizer “...o Patriarca concede indulgências, isso só
compete a Deus”.

57. Quia Ecclesiae Aethiopiae non sunt similes terrae illi, ubi populus Israel
comedit agnum paschalem, decedens ab Aegypto, in quo loco Deus iussit eos comedere
indutos calciamentis, et zonis accintos propter terrae pollutionem.

“...pois as Igrejas da Etiópia não são semelhantes às daquela terra onde o


povo de Israel comeu o cordeiro pascoal, ao fugir do Egito, quando Deus os
mandou comer usando sandálias e cintos, por causa da impureza da terra.” (§72,
enunciação de L3)

Incluímos o enunciado acima apenas para exemplificar a negação meramente


descritiva e possibilitar a distinção, pois essa não constitui assunto de interesse para este
estudo.

58. Quare nec Patriarcha, nec Episcopi nostri per se, nec in conciliis putant, aut
opinantur ullas leges se condere posse, quibus ad mortale peccatum obligari quis
possit.

“Por isso nem o Patriarca, nem nossos bispos por si ou em Conselhos


julgam ou pensam que podem alterar quaisquer leis com as quais possa alguém
ser obrigado ao pecado mortal.” (§86, enunciação de L3)

Essa negação é uma crítica às distorções atribuídas a alguns segmentos do clero


ocidental na interpretação das Escrituras.
277
59. Praeterea presbyteri, et monachi, et omnes Ecclesiae ministri, apud nos suo
labore uiunt. Quippe ecclesia nullas habet decimas, nec accipit...

“Entre nós, presbíteros, monges e todos os ministros da Igreja, vivem do


seu trabalho, pois a Igreja não tem nem recebe qualquer dízimo...” (§90,
enunciação de L3)

60. ...pro qua quidem missa nullum precium aut mercedem accipimus, in quo
ministerio sacramentum Eucharistiae non ostenditur, ut hic uideo fieri.

“Nenhum pagamento ou presente recebemos pela missa, ministério em


que não se expõe o sacramento da eucaristia como vejo ser feito aqui.” (§91,
enunciação de L3)

Os três últimos excertos apresentam a negação apoiada no pressuposto de que a


asserção é positiva em outro discurso ou contexto, ou seja, uma outra voz assume esses
pontos-de-vista rejeitados em 58, 59 e 60. Não se trata precisamente da negação
polêmica, mas de um enunciado polêmico, indo de encontro ao ponto de vista
manifestado em qualquer enunciado positivo. O trecho sublinhado em 60 é a voz de um
enunciador-E implícita em 58 e 59.

7.9-O diálogo com o pensamento Erasmiano¹

Desidério Erasmo de Roterdã, considerado o “princípe dos humanistas”, nasceu


em 1467, na cidade da qual adotou o nome e morreu em 1536, em Basiléia, na Suíça.
Era filho ilegítimo e cedo tornou-se órfão. Ingressou na ordem religiosa dos cônegos
regulares de Santo Agostinho de Steyn e ordenou-se sacerdote, sendo mais tarde
dispensado dos votos

______________________
1-“O erasmismo é, sobretudo, um ‘cristianismo interior’, marcado pela tolerância, é a valorização do espiritualismo
face a exterioridade característica dos pesados rituais católicos e o retorno aos valores primitivos da fé cristã.”
(CARDOSO, 1997, p. 1)

278
pelo papa Júlio II. Estudou com afinco as disciplinas humanísticas e Teologia. Viajou
por quase toda a Europa, foi conselheiro de Carlos V e o idealizador do Colégio
Trilíngüe de Lovaina, onde também lecionou. Viveu a maior parte de sua vida nos
Países Baixos e produziu uma vasta obra que teve início com a publicação dos Adagia,
em 1500. A este seguiram-se o Enchiridion Militis Christiani (1504), as Annotationes
in Nouum Testamentum de Lorenzo Valla (1505) e o Moriae Encomium (1511), escrito
na Inglaterra, em casa de Thomas More. Em 1516 publicou o seu Nouum
Testamentum, dedicando-o a Leão X, e em 1518 os Colloquia. Muitas outras foram
compostas e mais tarde incluídas nas Opera Omnia, de cuja primeira edição Froben
encarregou Beatus Rhenanuse, e veio a lume em 1540, com uma dedicatória a Carlos V.
Recusou o chapéu cardinalício que lhe fora oferecido pelo papa Paulo III, bem como os
altos cargos com que vários reis, como Francisco I, Henrique VIII e o próprio D. João
III, tentaram seduzi-lo, preferindo conservar sua liberdade pessoal. Teve muitos amigos
e seguidores fiéis. Damião de Góis, cuja filosofia de vida sempre fora a tolerância e a
moderação não poderia ficar indiferente ao pensamento do humanista, a quem ele
chamava de mestre e que lhe dedicou um Compendium Rhetoricae.

Nos tempos de maior fervor ortodoxo, entre 1547 e 1561, principalmente após
1555, suas obras foram gradativamente incluídas no Index, embora circulassem alguns
textos, extirpados do “mal”, como os Colloquia, que integravam a biblioteca da rainha
D. Catarina e eram utilizados para ensinar os moços de sua capela.

A religião da Etiópia, conforme a descrição feita por Zaga-Zabo, revela muitas


afinidades com o pensamento de Erasmo, e possuía os mesmos fundamentos, além de
uma organização semelhante à da Igreja romana. Mas, em virtude das diferenças, muito
se discutia se os etíopes eram ou não verdadeiramente católicos. Durante séculos de
isolamento, mesmo tendo abraçado o cristianismo, este fora assimilado em sua forma
bruta e primitiva, à qual os fiéis tentavam adaptar a ordem romana, seguindo os ecos
longínquos que lhes chegavam por intermédio dos mercadores italianos que
atravessavam a região, ou instruindo-se nos Concílios dos quais participaram.

279
Na primeira metade do século XV visitantes etíopes estiveram em Veneza e
Florença e participaram do Concílio de Constança (1414-1418) e de Florença (1438-
1439), onde, ao lado de representantes oficiais portugueses, houve trocas de
experiências entre cristãos do Ocidente e do Oriente. (DIAS, 1988, p.68-69)

A intolerância que se acirrou com a contra-Reforma impunha um rigor cada vez


maior da ortodoxia católica, colocando sob suspeita tudo o que fugisse à doutrina,
minimamente que fosse. Próximo da morte, Erasmo, que até então conseguira manter
uma posição de neutralidade frente ao conflito e uma atitude conciliadora que
encontrava eco no pensamento e na atuação de Damião de Góis, também se tornou
suspeito de luteranismo, principalmente ao se mudar de Friburgo para Basiléia, porque,
segundo Mrs. Hirsch, “teria preferido ir morrer num clima religioso mais moderado”.
Mas Bonifacius Amerbach, que enfim tinha-se convertido ao protestantismo, foi o
confidente de seus últimos anos de vida, e esse fato também não deve ter escapado aos
censores quando condenaram a quase totalidade de suas obras.

Mesmo para Mrs. Hirsch que aponta tendências protestantes em Damião de


Góis, e com o apoio de Erasmo até certo ponto,

nem Góis, nem Erasmo duvidavam da coexistência, lado a lado, duma fé


subjetiva e da lealdade à religião católica. ( Op. cit., p. 112)

E conclui:

...também será possível afirmar que Erasmo permaneceu firmemente ligado ao


espírito e à prática do catolicismo tradicional. (Op. cit., p.113)

As menções feitas neste subcapítulo, relativas ao pensamento erasmiano


presentes na Fides, estão enunciadas principalmente nos estudos de Moser¹, Cardoso² e
Tavares³. Os excertos abaixo nos quais pode ser observada a negação do discurso
autoritário da ortodoxia – pois, tanto Erasmo como Damião, defendiam uma religião
_____________________
1-Ecumenismo e Erasmismo no Pensamento de Damião de Góis, 2006.
2-Pedro Sanches e a Musa de Roterdão, (http://ipv.pt/millenium/ect8_luis1.htm)
3-Damião de Góis, um Paradigma Erasmiano no Humanismo Português, 1999.
280
cristã menos dogmática – comprovam a identificação do discurso de Zaga-Zabo com o
pensamento religioso formulado por Erasmo, e que foi dado a conhecer por meio de
suas obras.

61. Omnia haec dicit Paulus ut placeret iis, qui in fide non erant admodum
confirmati, quoniam inter hos et Iudaeus uariae consurgebant disputationes ac
contentiones, quas ut sedaret, Chistianis nondum satis confirmatis indulgentius
morigerabatur, et acquiescebat. Id tamen faciebat, non quod legem fragere uellet, sed
ut plures itain ceremoniis relaxandis gratificando ad fidem alliceret.

“Certamente Paulo disse todas estas coisas para agradar àqueles que
ainda não estavam firmes na fé, porque entre eles e os judeus surgiam várias
disputas e contendas que, para as apaziguar, mais tolerante procurava ser com
eles, que ainda não estavam suficientemente confirmados como cristãos. Assim,
consentia, ainda que o fizesse não porque quisesse violar a lei, mas abrindo o
caminho para atrair mais fiéis com o relaxamento das cerimônias.” (§95,
enunciação de L3)

Além da adesão incondicional ao pensamento expresso nas epístolas de São


Paulo, fundamento principal do catolicismo etíope, como se pode ver pela narrativa de
Zaga-Zabo, Erasmo, falando sobre rituais e hagiolatria¹, condenava as manifestações
exteriores da fé e defendia que a caridade não estava em ir muito à igreja, ajoelhar-se
diante das imagens, acender velas para os Santos ou recitar orações, mas no amor ao
próximo e no exemplo de
uma vida cristã como único caminho para chegar a Deus.

Repetimos abaixo os excertos 24 e 25, utilizados no estudo do discurso indireto,


para ilustrar também com eles o diálogo com o pensamento erasmiano:

(24). ...nec Deo acceptiores esse, apud quem nulla est acceptio personarum, teste
Paulo: qui etiam ostendit nos saluos fieri non propter circuncisionem, sed propter
fidem:
_____________________
1-Erasmo condenava a adoração de Santos. (conf. HIRSCH, 2002, p. 64)
281
“nem mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela
fé...”. (§82, enunciação de L3)

(25). Et ut ipsemet ait, factus est omnibus omnia, ut omnes faceret saluos.

“E, como ele mesmo (Paulo) diz, tudo foi feito para todos, para que todos fossem
salvos.” (§82, enunciação de L3)

Assim se podem resumir alguns dos ideais de Erasmo, que acreditava na


salvação pela fé, defendia o retorno ao Cristianismo original e a fidelidade à
autenticidade evangélica:

As idéias e a linguagem do Antigo Testamento transparecem nos escritos do


Novo Testamento, em cujo pano de fundo está sempre presente o Deus do Antigo
Testamento, o Pai de Jesus Cristo, em quem é revelado, definitivamente, o seu amor e a
sua vontade salvadora para todo aquele que o recebe pela fé. (SBB, 2002, p. 9)

62. Et nullas alias habent eleemosynas, praeter eas, quae grátis in templis offeruntur,
pro exequiis mortuorum, et aliis piis rebus, nec eis licet uicatim mendicare, nec a plebe
aliquid eleemosynarum extorquere.

“E também não recebem esmolas, a não ser as que espontaneamente são


oferecidas nos templos por exéquias ou outras obras pias, nem lhes é permitido
mendigar de porta em porta, nem extorquir dos pobres qualquer quantia.” (§90,
enunciação de L3)

Além da escolástica, Erasmo combatia também a mendicância. (DIAS, 1969, p.318)

63. Quamobrem indignum est, peregrinos Christianos tam acriter ac


hostiliter reprehendi, ut ego de hac re, et de aliis, quae minime ad ueram fidem
spectabant,reprehansus fui. Sed Sed multo consultius erit, huiusmodi Christianos
homines, siue Graecos, siue Armenio, siue Aethiopes, siue ex quauis septem
Christianorum Ecclesiarum, in charitate et Christi amplexibus sustinere, et eos sine

282
contumeliis permittere inter alios fratres Christianos uiuere, ac uersari: quoniam
omnes filii baptismi sumus, et de uera fide unanimiter sentimus. Nec est causa, cur tam
acriter de cerimoniis disceptetur, nisi ut unusquisque suas obseruet, sineodio et
insectatione aliorum: nec commerciis Ecclesiae ob id excludendus est, si peregre in
alienis prouinciis domesticos ritus obseruet.

“Por isso é indigno repreender com tanta hostilidade e rigor os peregrinos


cristãos, porque eu mesmo fui repreendido por esta e por outras coisas que
representam muito pouco diante da verdadeira fé. Muito mais sensato seria
acolher no abraço e na caridade de Cristo os homens cristãos, sejam gregos,
armênios, etíopes ou de qualquer das sete igrejas de cristãos e sem ultrajes
permitir que eles vivam e convivam entre outros irmãos cristãos, pois todos
somos filhos do batismo e comungamos da verdadeira fé.
Não existe razão para discriminar tão severamente em função das
cerimônias; que cada um mantenha as suas sem ódio ou perseguição dos outros e
nem deve por isso ser excluído do comércio da Igreja se, estando em outras
províncias no estrangeiro, conservar suas práticas familiares.” (§97-98,
enunciação de L3)

A respeito dessa passagem, Marcel Bataillon interroga:

“É o bispo etíope quem diz estas palavras de tolerância ou é o erasmista Damião


de Góis, seu tradutor, que as escreve?” (BATAILLON, 1940, p. 40)

A atitude filosófica de Erasmo caracterizava-se também pela aversão a debates


fúteis sobre idéias e opiniões contrárias em matéria de fé. Muitos de seus principais
seguidores eram religiosos católicos das mais diversas ordens, mesmo assim a
Inquisição considerava suas teorias como uma via direta ao pensamento protestante.

64. ...et recordati sunt uerbi Domini, quod in coelum ascendens dixit, Ite per omnem
terram et praedicate Euangelium omni craturae...

283
“E lembraram-se da palavra de Deus, que subindo aos céus disse: ‘Ide
pelo mundo e pregai o Evangelho a toda criatura...’.” (§100, enunciação de L3)

65. Consultum profecto esset, omnes doctores, et praedicatores de hoc linteo, quod
ostensum fuit Petro, sublimia et alta docere, et non illa quae infima sunt, et quod nihil
ad salutem uidentur pertinere...

“Seria conveniente que todos os doutores sem dúvida ensinassem, sobre


aquele manto que foi mostrado a Pedro, coisas elevadas e sublimes e não as
insignificantes que em nada pareçam interessar à nossa salvação...”. (§103,
enunciação de L3)

66. ...ita in Aethiopia exponimus, munda animalia fuisse populum Israel, immunda
autem populum Gentilium.

“...explicamos na Etiópia que os animais limpos seriam o povo de Israel e


os imundos os povos pagãos.’ (§101, enunciação de L3)

Além de criticar as peregrinações, as visitas às supostas relíquias sem qualquer


garantia de autenticidade, Erasmo também condenava a imposição de jejuns e
abstinências.

67. Ideoque fratres mei, non oportet nos contemnere, neque insectari proximos
nostros, quoniam Iacobus ait, Qui detrahit fratri, aut indicat fratrem suum, detrahit
legi, et iudicat legem. Paulus quoque docet, melius esse ununquenque uiuere contentum
suis traditionibus, quam cum fratre Christiano de lege disputare. Rursus, non plus
sapere, quam oportet, sed sapere ad sobrietatem, et unicuique sicut Deus diusiit
mensuram fidei. Quapropter indecens est, cum fratribus de lege, aut de delectu ciborum
disputare: quod esca nos non commendet Deo: praesertim cum ipse Paulus Apostolus
dicat, Nec si manducauerimus abundabimus, nec si non manducauerimus, deficiemus.
Idcirco altiora, et coelestem cibum quaeramus, et has infimas et inanes disputationes
omittamus.

284
“É por isso, meus irmãos, que não nos convém desdenhar nem maltratar
o nosso próximo, pois Jacó diz: ‘Aquele que rouba do irmão ou o julga, viola e
julga a própria lei’.
Paulo também ensina que é melhor que cada qual viva contente com suas
tradições que discutindo sobre a lei com seu irmão cristão. Ao contrário, não
saber mais do que convém, mas saber pela temperança, pois Deus nos concedeu
a medida da fé de cada um. Portanto é feio discutir com seu irmão sobre a fé ou
a escolha dos alimentos, pois o alimento não nos aproxima de Deus,
principalmente porque o próprio apóstolo Paulo diz: ‘Não ganharemos se
comermos, nem perderemos se não comermos. Por isso busquemos as coisas
elevadas e o alimento celeste, deixando de lado estas inúteis e vazias
discussões’.” (§105-106 enunciação de L3)

68. ...ac Iudaeos, et Mahumetanos appellarent: eo quod circuncisionem seruamus,


et Sabbatum sanctificamus, ut Iudaei. Deinde quod ueluti Mahumetamus, ad occasum
solis usque ieiunamus, id hominem Christianum minime decere afferentes, Id quoque
acerbissime obiiciunt, sacerdotum coniugia, ut laicorum licita esse apud nos.
Praeterea nec id sine morsu omittitur, quod primo baptismoquasi diffisi, singulis annis
rebaptizamur, quod praeter uiros etiam mulieres circuncidantur, more nec apud
Iudaeos quidem recepto. Denique quod delectum ciborum sanctissime obseruatum
uolumus. Postremos, quod infantes, qui ante baaptismum Pagani uocari solente,
Semichristianos nuncupemus.

“...e chamassem de judeus ou maometanos, porque praticamos a


circuncisão e guardamos o sábado como os judeus. Além disso, jejuamos até o
pôr-do-sol, como os maometanos, se acharmos que isso convém. Também
criticam severamente o casamento dos sacerdotes que é lícito entre nós como o
dos leigos. Também não deixam de nos criticar porque desde o primeiro
batismo, todo ano somos rebatizados, e, além dos homens, também as mulheres
sofrem a circuncisão, costume que entre os judeus não se verificou. Enfim,
porque queremos observar santamente a escolha dos alimentos e porque
chamamos semicristãs as crianças que antes do batismo costumam ser chamadas
de pagãs.” (§107, enunciação de L3)
285
Erasmo, que censurava o exagero nas manifestações visíveis da religião,
semelhantes aos cultos pagãos do passado ou às escrupulosas práticas judaicas,
certamente também teria críticas ao zelo excessivo dos etíopes para com seus rituais,
mas sua disposição de espírito, aberto à compreensão para com todas as idéias e todas as
posturas, ainda permite considerar possível o diálogo do enunciado acima com o
pensamento tolerante do roterdamês.

69. Ac deinde ut scirem, na id apud Europaeos Christianos seruaretur, quod


Apostoli in suo Synodorum libro praecipiunt, scilicet ut singulis annis bis in Ecclesia
Christi concilium celebretur, in quo de rebus fidei rationem habendam statuerunt.

“Vim também para saber se entre os cristãos europeus se observa o que


os Apóstolos determinam em seu livro dos Sínodos, a saber, que em todos os
anos se realizassem dois Concílios para estabelecer regras sobre questões de fé.”
(§109, enunciação de L3)

70. ...ex quo concilio uariis disceptationibus habitis, et nihil ad concordiam


Ecclesiae constituto, atque re infecta, omnes discesserunt, unusquisque suam retinens
opinionem.

”...deste Concílio resultaram várias discussões, mas nada foi realizado para a
concórdia da Igreja, e todos se retiraram, cada um calando sua opinião sobre esta
questão mal resolvida.” (§109, enunciação de L3)

71. His de causis, aliisque, quas coram serenissimo Rege Ioanne Emanuelis filio
exposui, istuc missus sum a domino meo potentissimo, non ad friuolas et inanes
disputationes.
“Por estas razões e por outras que expus em presença do Sereníssimo rei
D. João, filho de D. Manuel, fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, e não
para debates frívolos e inúteis. (§116, enunciação de L3)

O pensamento de Erasmo pautava-se na conciliação, numa época em que não


manifestar claramente sua adesão – de preferência ao catolicismo ortodoxo – era
286
altamente suspeito e isso ia de encontro ao seu temperamento e à sua visão humanista
da vida. Afirmava que o amor mútuo é o único preceito do Evangelho¹, e partindo
desse princípio rejeitava qualquer tipo de guerra, justa ou injusta. Opunha-se a qualquer
tipo de fanatismo, religioso ou político e lutava por relações humanas baseadas na
caridade, no respeito e na educação.

O livro aqui estudado foi reprovado pelo clero português, e uma das alegações
dos censores é que Damião de Góis descreveu o catolicismo dos etíopes sem manifestar
qualquer juízo de valor quanto à doutrina equivocada adotada no país africano, nas
palavras dos mesmos, “sem se referir aos erros ali contidos”. Sobre essa questão, pode-
se dizer que o sujeito empírico Damião de Góis, por intermédio de L1, estaria
respondendo afirmativamente a um enunciador-E, assimilado a Erasmo, que, anos antes,
quando o aconselhou a seguir para Pádua, advertiu-o:

É altamente aconselhável que não fales nem bem nem mal das seitas², como
se por assim dizer, não te importasses ou não soubesses. São vários os fingimentos do
homem. Não se poderia dizer muito a teu favor se houvesse uma troca de
correspondência entre ti e Melanchton ou Grynaeus. (HIRSCH, 2002, p. 97)

7.10-O diálogo entre Zaga-Zabo e Damião de Góis.

Damião de Góis, materializando a teoria polifônica, deu voz a Zaga-Zabo para


que este expusesse com suas próprias palavras a religião e as tradições mais caras ao seu
povo, ao mesmo tempo em que acionou seus coenunciadores, levando a voz do bispo a
toda cristandade ocidental. Entretanto o texto pode ser lido como um manifesto
goisiano de tolerância e pacifismo. Assim como Erasmo deixou em suas obras as
marcas de sua atitude religiosa, a Fides, resume a própria conduta do humanista atestada
em sua biografia; a obra expõe suas inclinações desenvolvidas ao longo de uma
vivência rica de experiências, em relações amigáveis estabelecidas com gentes das mais
variadas culturas e credos.

72. Haec sunt, quae de fide, et religione apud nos Aethiopes habentur, et obseruantur
_____________________
1-TAVARES, 1999, p. 171.
2-Grifo nosso.
287
“Estas são as coisas sobre a fé e a religião que entre nós etíopes são
mantidas e observadas.” (§55, enunciação de L3)

Zaga-Zabo (L3) coloca L1 na posição, ao mesmo tempo, de interlocutor e porta-


voz, e, ao reassumir o papel de locutor L do discurso que foi vertido em latim, L1 aciona
outros interlocutores, que são os destinatários finais da mensagem.

73. Quod si libeat sciscitari de agnomine nostri Imperatoris, is sibi persuasum


habeat, illum perpetuo appellari Preciosum Ioannem, et non Presbyterum Ioannem, ut
hic falso passim iactatur.

“Se for do teu agrado perguntar a respeito do sobrenome do nosso


Imperador, saiba que ele sempre será chamado Prestes João e não Presbítero
João como aqui se diz equivocadamente por aí,” (§122, enunciação de L3)

Essas palavras de L3 a L1 contradizem as declarações contidas no capítulo 4,


sobre o título de Preste João. Nesse caso, como pode demonstrar nossa pesquisa, o
coenunciador é o padre Baltazar Teles.¹

74. Absit, inquit, id mihi tribui, ut in cathedra domini mei sedeam.

“De modo nenhum – disse – dou-me o direito de sentar no trono do meu


senhor.” (§123, enunciação de L3)

75. Ius autem scriptum apud nos in usu non habetur: nec litigantium querelae
libellis, sed ore peraguntur: id fit ne lites auaricia iudicum et patronorum in longum
protrahantur.

“Já o direito escrito não é usado entre nós, nem as querelas dos litigantes
são resolvidas por manuais, mas verbalmente. Isto impede que as questões
se arrastem longamente pela avareza dos juízes e advogados.” (§125, enunciação
de L3)

_____________________
1-TELES, 1936, p.14. 288
Nesses enunciados em que Zaga-Zabo (L3) dirige-se declaradamente a Damião
de Góis, as críticas implícitas ou explícitas ao modo de vida ocidental, quanto à forma
de sucessão e à prática jurídica, não são refutadas por L1, nem omitidas, apenas
traduzidas.

7.11-Diálogo com a tradição clássica (LC).

76. Sciendum etiam, apud nos Calendis Septembribus annum incipere, qui dies
semper incidit in uigiliam Ioannis baptistae. (ao traduzir)

“Para nós o ano começa do dia primeiro de setembro, que cai sempre no
dia da vigília de João Batista.” (§121, enunciação de L3)

Naturalmente, essa maneira de enunciar a data do início do ano nada tem a ver
com a língua etíope e é, tão somente, um diálogo de L1 com o Classicismo que o
movimento humanista pretendeu resgatar. Quanto à semelhança com o Ano Novo
judeu – data móvel, entre setembro e outubro – trata-se de mais um elemento da cultura
e da religião etíope em desacordo com a Igreja romana e que muito deve ter
incomodado os guardiães da fé católica.

Quer a segunda parte do livro – justamente a que foi censurada de imediato –


corresponda à reprodução fiel do relato do bispo etíope, quer inclua, em algumas
passagens, a exposição das idéias que Damião de Góis, a exemplo de Erasmo, desejou
deixar registradas em livro, a Fides, conforme TAVARES (1999)¹ é, em todos os
sentidos, um verdadeiro Tratado da Tolerância, e como tal nunca perdeu sua atualidade.

_____________________

1-Op. cit. p. 100.

289
8. CONCLUSÃO

Em plena fase do Humanismo e com sinais de reforma da


Igreja à vista, com o aparecimento de personalidades como os
cardeais Sadoleto e Bembo a tentarem um meio caminho que não
conduzisse à ruptura total, Damião de Góis apercebeu-se
certamente dos acontecimentos e compreendeu esse progresso
veloz da história. O concílio Vaticano II, retomando um trabalho
teológico que vinha de longe consagrou esse desejo de um melhor
conhecimento da doutrina dos “outros”, outrora esquecidos e até
condenados, quando afinal muito do que haviam defendido
merece outra ponderação.*

*RODRIGUES, 2002, P. 62.


O Humanismo, como ideal de uma época e que mobilizou pensadores das mais
diversas tendências, promoveu o intercâmbio dos saberes e possibilitou a comunicação
entre nações, diferentes pela vocação e pela língua, por meio do latim, que resgatou a
identidade da cultura ocidental revelando sua origem comum. Sendo multicultural, o
saber humanístico é, por natureza, polifônico, pois todo o seu alcance e importância teve
como elemento fulcral a comunicação, o diálogo, a polêmica. A própria questão
religiosa, devida ao poderoso impacto que o Renascimento humanístico produziu nos
círculos católico-romanos, criou um espaço de debates que perpassa as obras de muitos
outros humanistas, além de Damião de Góis, Erasmo ou Jerônimo Osório. A polifonia
discursiva, portanto está na essência, sobretudo do Humanismo pós-Reforma, mesmo
depois que o discurso monofônico da contra-Reforma esforçou-se por se impor.

O movimento perdeu seu vigor em Portugal não apenas em virtude da contra-


Reforma e da Inquisição, mas também pelo desaparecimento de seu principal expoente
e provedor, D. João III, apesar do gênio de alguns autores que se nutriram
posteriormente da rica herança deixada pelos maiores representantes da renovação
cultural e cuja semente, plantada por D. Manuel, foi, com toda competência, cultivada
por seu sucessor. A morte de D. Sebastião na desastrosa expedição a Alcácer-Quibir e
que restabeleceu o domínio dos espanhóis sobre Portugal, também, contribuiu para
modificar o recém-delineado perfil cultural português, além de ter desestimulado o
desenvolvimento científico.

Embora tenha disponibilizado também para os leigos e as futuras gerações o


conhecimento das culturas da Antigüidade – foi esse seu principal legado –, o
movimento acabou por perder seu caráter cosmopolita e multifacetado, tomando o
caminho que levava a uma única direção, onde o saber não se incompatibilizasse com a
Teologia.

Diogo Pires tinha mesmo razão. O humanista, cristão-novo, que se refugiou na


distante Dalmácia para não ser alcançado pelo Santo Ofício, reconheceu o momento do
retorno de Damião de Góis a Portugal como aquele que marcaria o início de sua queda,
291
tanto mais significativa se levarmos em conta que a maturidade intelectual e a
experiência de vida, que atingiram nele toda a plenitude, habilitavam-no a prestar
melhores serviços à pátria e a contribuir ainda mais para a glória de Portugal e para a
cultura humanística. Muitos séculos se passaram desde a morte de Damião de Góis, e
somente o seu perfil de humanista estrangeirado, reconhecido e celebrado em toda a
Europa, trouxe-lhe o reconhecimento devido, mas não em sua pátria, que só veio a
valorizá-lo depois que pesquisadores estrangeiros se dedicaram ao estudo de sua vida e
obra, principalmente por ter sido ele um dos mais autênticos participantes dos círculos
erasmistas.

Entretanto, o estudo atento, principalmente, da vida do humanista revela que ele


não foi, na verdade, um discípulo de Erasmo, mas foi, simplesmente, Damião de Góis,
cuja sintonia ideológica de fato aproximou do roterdamês. Mas sua biografia nos
mostra que ele teria sido o homem que foi mesmo se Erasmo não existisse, porque foi a
infância passada ao lado de D. Manuel I, convivendo com homens de origens e credos
diversos que forjou sua têmpera e talhou-o para a diplomacia e para o relacionamento
amigável e respeitoso com patrícios ou estrangeiros, diferentes ou semelhantes.

Erasmo foi, sem dúvida, um grande pensador e doutrinador, e organizou o


produto de suas reflexões em uma vasta obra, que ao chegar ao conhecimento do jovem
fidalgo, rendeu-lhe mais um admirador, talvez o mais sincero e fiel. Mas negar a
autenticidade e a originalidade do pensamento de Damião de Góis é um sintoma de
baixa auto-estima nos próprios meios intelectuais portugueses, que nem precisam
buscam paradigmas estrangeiros para reconhecer e legitimar sua própria capacidade e
talento. Esta mesma deficiência atestada nos brasileiros leva-nos, com freqüência, a
colocar nosso gênio à sombra dos similares estrangeiros.

Antes do primeiro contato com o sábio que tanto admirava e que depois se
tornou seu mestre sim, mas de humanidades e de retórica, Damião de Góis já havia
produzido a primeira obra em que deixou transparecer seu ecumenismo e irenismo, a
Deploratio Lapiannae Gentis. Mais tarde, a expressão da sua tolerância e pacifismo
veio materializar-se plena e inconfundivelmente na Fides, Religio Moresque Aethiopum,
que é uma obra de cunho erasmista, na medida que se identifica, na sua quase
292
totalidade, com a filosofia do mestre holandês, mas também e, principalmente com a
mensagem de São Paulo.

Pelas mesmas razões, os cardeais Bembo e Sadoleto, que ansiavam pelo


restabelecimento da unidade da Igreja e também defendiam a reconciliação com os
protestantes, não o faziam por causa de Erasmo, mas por suas próprias convicções.

O estudo deste texto pela Análise do Discurso, moderna auxiliar da Filologia,


ora revela coisas que não seriam percebidas, ora ratifica, com elementos do próprio
texto algumas questões já levantadas em estudos anteriores. Uma delas, como acima foi
dito, é que a Fides é o mais irenista dos livros de Damião de Góis, pois não só no seu
apelo ao Papa, mas também nas palavras do bispo africano percebe-se a comunhão dos
ideais de concórdia e tolerância, tão caros aos humanistas erasmistas, ainda que Zaga-
Zabo, muito provavelmente, sequer tenha conhecido Erasmo ou lido suas obras.

Pudemos constatar também que a obra de Damião de Góis, como um todo, não
resiste a qualquer tentativa de classificação, mesmo dentro do movimento humanista,
porque, carecendo de um modelo clássico não se alinhou ao humanismo literário, e, por
suas preocupações claramente mundanas, também não se aproximou do humanismo
cristão. Na verdade suas preocupações religiosas estavam mais voltadas para as
relações humanas – na busca de uma atitude espiritual, em que a fé, mesmo não sendo
única em seus princípios e práticas, servisse para unir os cristãos –, do que para a
investigação da bíblia. Para ele, somente a busca dos fundamentos da concórdia cristã
justificava a invocação dos textos sagrados, os quais, mesmo assim, demonstrou
conhecer profundamente, como verdadeiro cristão que foi.

Além de defender a unidade da Igreja cristã, procurou, com sua obra latina, ser
também um porta-voz entusiasta da gesta dos portugueses por toda a Europa, mas não
só pela voga do motivo patriótico dentro do movimento em que procurou se inserir, mas
também por ter testemunhado, ao lado do seu rei e tutor, todo o esforço dos portugueses
em sua missão que ele não duvidava ser civilizadora e, acima de tudo, evangelizadora.

O opúsculo que estudamos mostrou, ainda, que a religião professada pelos


etíopes nos dá provas de que é possível reunir, num mesmo culto, tendências diversas
sem que essas “manifestações exteriores” afetem a intensidade da fé de cada um, porque
293
a força do sentimento religioso não reside na simplicidade ou na complexidade do
cerimonial, embora exista a crença de que uma religião será considerada tanto mais
civilizada quanto forem complexos os seus rituais. Partindo desse ponto de vista, o
catolicismo da Etiópia, mesclado de tantas outras influências, como se depreende do
relato de Zaga-Zabo, nada tinha de primitivo, mesmo não tendo sido devidamente
romanizado.

Os portugueses tiveram o privilégio de ser, depois dos árabes, os historiadores


que melhor conheceram e mais escreveram sobre a África e a cultura – principalmente –
dos países localizados ao sul do Saara, tendo-se tornado fonte de consulta obrigatória
para estudos posteriores, como de imediato aconteceu com a própria Fides.

Este livro de Damião de Góis, expressão do respeito do humanista pelo distante


povo cristão, proporciona aos povos que, como os brasileiros, são produto do
cruzamento de diferentes etnias e das quais a africana é talvez a mais marcante, a
oportunidade de reafirmar o orgulho dessa mestiçagem, porque nos mostra que em
nossa matriz africana subjaz uma força cultural que nada fica a dever à ocidental ou à
indígena. Nisso consiste a atualidade do opúsculo de Damião de Góis, leitura oportuna
num momento em que a nação brasileira reavalia sua identidade.

O livro é atual também porque a proliferação de cultos evangélicos expõe a nova


e talvez definitiva crise do catolicismo no caminho do verdadeiro ecumenismo e
humanismo, pois além da flexibilidade do cerimonial, já totalmente adaptado aos novos
tempos, o êxodo de sacerdotes levantou a discussão do seu principal tabu: a relevância
do celibato como prova do verdadeiro amor a Cristo, que é tão debatida por Zaga-Zabo.

Avaliando as conseqüências dos conflitos religiosos do século XVI podemos


concluir que somente um estado de plena e sagrada liberdade permite ao ser humano
criar, descobrir, inventar, enfim, desenvolver todas as suas potencialidades. Mas o
exercício dessa liberdade não pode ser dissociado do amor por todos os seres e pelo
próprio universo, que são, afinal, criações de Deus.

Habitamos um planeta que agoniza, porque o “deus-homem”, na sua


determinação de controlar os elementos por meio da tecnologia e na busca do lucro
294
“incessante”, distanciou-se do justo meio-termo e negligenciou a fé. Hoje a própria
comunidade científica pede ajuda para salvar o mundo. E talvez seja, de fato, o
descompasso entre religião e ciência através da história do homem o responsável maior
por esse desastre iminente e talvez irreversível.

295
9. BIBLIOGRAFIA.

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