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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO PENSAMENTO

POLíTICO AUTORITÁRIO BRASILEIRO 1914/1945 *

I - FRANCISCO CAMPOS
JARBAS MEDEmOS

Cícero: - É certo; a época é aroarmal; mas os homens podem ver as


coisas a seu modo, muito diferentes do que elas são na realidade. (Shakes-
peare. Júlio César, Ato I, Cena IH.)
O problema perene de conservar a estabilidade e admitir as mudanças
apresentou-se numa forma aguda. (Roscoe Pound. Introdução à Filosofia
do Direito.)
A função da Universidade é a de ensinar aos estudantes como os fatos
se convertem em verdade. O processo desta conversão resume teda a história
do espírito humano e das suas aventuras ... A conversão dos fatos em verdade
consiste num processo de discriminação e de relação ou, mais largamente,
num processo de interpretação da experiência em termos ou em relações
de pensamento. (Francisco Campos. Educação e cultura.)
1. A eclosão da Segunda Revolução Industrial e a rear-
ticulação do sistema econômico mundial. 2. O impacto
causado por esta rearticulação nas estruturas políticas, e
ideológicas. 3. Como o Brasil inseriu-se naquela rearti-
culação e como reagiu. Temas do "pensamento brasileiro".
4. A obra de Francisco Campos como uma visão parcial
da "crise moderna" brasileira entre as duas Grandes Guer-
ras. Periodização do conjunto de sua obra. Características.
Francisco Campos - o professor, o político do Poder e o
ideólogo. Seu tríplice papel, na década de 30, de reforma-
dor institucional - a educação, o regime político, a orde-
nação jurídica. Estado moderno. Estado nacional, Estado
autoritário. Um novo conceito de democracia, "visão apo-
calíptica", romantismo político e pragmatismo positivista:
realismo e ceticismo. Seu neoliberalismo, após 1945.

1. O mundo, a partir dos três últimos decênios do século XIX


ingressava, indubitavelmente, em uma nova fase, de caracterís-
ticas e personalidade mais ou menos específicas. A Segunda Re-
volução Industrial, promovida, sustentada e impulsionada por
uma grande expansão capitalista que tinha como sede e centro

* O presente texto é um resumo parcial e fragmentário, coordenado aqui

R. Cio pol., Rio de Janeiro, 17 (1): 59-102, jan./mar. 1974


de propulsão as grandes potências de então (às quais se
incorporaram, antes mesmo do final do século, os Estados
Unidos e a Alemanha), dava um novo sentido e uma nova
dimensão ao desenvolvimento industrial. E, como acontece inva-
riavelmente no capitalismo, suas fases de expansão são, simulta-
neamente, fases de crise. Assim, a superprodução industrial das
grandes potências econômicas e militares, que não encontrava
capacidade de absorção em seus próprios mercados nacionais, que
não cresciam na mesma proporção, passou a provocar uma expan-
são sem precedentes do comércio internacional. Seria certamente
por este motivo que a partir de então a exportação de capital pas-
saria, nestes grandes centros industriais, a superar a exportação
de bens manufaturados, o que viria a dar uma nova qualidade ao
sistema capitalista mundial. O capital financeiro, em conseqüên-
cia, assume uma posição hegemônica dentro do sistema e é atra-
vés dos grandes conglomerados de bancos, fusionados com o ca-
pital industrial e comercial, que se opera o movimento de uni-
ficação e efetiva ocupação do globo terrestre pelo capitalismo,
pondo-se assim um fim ao relativo isolacionismo nacional, até
então prevalecente. Este movimento de unificação do planeta não
é feito de modo pacífico. Inicia-se, a partir mesmo de 1870 e,
consolidando-se daí para a frente, uma áspera e cruenta fase de
guerras de colonização, de recolonização e de conquista de áreas
de influência e de territórios econômicos. Generaliza-se um es-
tado de permanente e sucessiva belicosidade, tanto entre as gran-
des potências entre si, como destas com o conjunto dos demais

apenas em seu aspecto histórico, de algumas notas preparatórias de uma


tese que esperamos apresentar à Ecole Pratique des Hautes Etudes (Paris),
sob o título O Pensamento Político brasileiro - 1930/1945, dentro de um
esforço solitário de pesquisa que iniciamos há cerca de dois anos. Nosso
objetivo é uma abordagem crítica global do pensamento politico brasileiro
no período assinalado, abrangendo suas diversas linhas de formulação e
apresentado talvez como um debate entre estas correntes doutrinárias.
Neste texto procuramos apenas, em esforço de caracterização e de periodi-
zação, apresentar e situar, histórica e politicamente, de modo organizado, o
pensamento político global de Francisco Campos que pode ser, certamente,
considerado um dos expoentes de nosso pensamento político autoritário. É
dentro desta perspectiva que deve ser entendida a abundância de citações
de textos do próprio Campos - tratar-se-ia mais de deixá-lo falar do que
mesmo interpretá-lo. Salientamos, outrossim, que pouco, ou quase nada,
encontramos na literatura sociológica brasileira que se referisse especifica-
mente à obra de Campos, a não ser uma curta referência de Antonio Paim
em sua História das idéia& filosóficas no Brasil, o breve discurso de San-
tiago Dantas na Comissão Jurídica Interamericana, em 1955, e alguns outros
textos de valor apenas biográfico e, em geral, laudatórios. É nosso intuito,
logo a seguir, abordar o pensamento político de Oliveira Viana, cujo estudo
já temos esboçado nesta data, outubro de 1973.

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países do globo. É a luta sem fronteiras dos poderosos trustes e
monopólios pela garantia de mercados e de fontes de abasteci-
mento de matérias-primas, para uso efetivo e imediato ou poten-
cial. Coloniza-se a Mrica, a Oceania e parte da Asia. Sucedem-se,
febrilmente, as alianças econômicas e financeiras e os pactos di-
plomáticos e militares. Um historiador de tendências conservado-
ras como o norte-americano Louis Snyder diria: "EI sistema de
alianzas era el método aceptado para lograr la seguridad en un
mundo desequilibrado a causa deI choque de intereses imperia-
listas y de la lucha global por mercados, materias primas y co-
lonias. .. EI mundo entró en el siglo XX dividido y lleno de te-
mor. El problema más crítico que había entonces pendi ente era
el de la amenaza de la guerra." 1 Enquanto isto - e por causa
disto -, a tecnologia científica ganhava um lugar de destaque na
Universidade e um valioso status cultural. Afinal, a produção in-
dustrial diversificada, sofisticada, em massa e a baixo preço era
a arma de conquista de mercados e de aperfeiçoamento militar.
O poder militar nacional estaria, daí para a frente, umbilicalmen-
te condicionado pelo desenvolvimento econômico e industrial de
sua pátria, passando poder político e poder militar a se confundir
e a se equivaler. Surgem novas fontes de energia, tal como a ele-
tricidade e implantam-se as usinas hidrelétricas, e termoelétricas;
o motor de combustão interna; a utilização do aço, que suplanta,
com vantagem, a do ferro; surgem e implantam-se os sistemas de
telecomunicações - a telefonia, a telegrafia e a radiofonia; apa-
recem a mecânica de maior precisão e potência, a turbina a va-
por, o automóvel e o avião; a lâmpada incandescente; a química
orgânica, com os plásticos, as fibras artificiais e os vernizes; a
produção industrial em linha (a moving assembly de Ford), que
possibilitou a produção em massa em menor tempo unitário; a
técnica de fusão de empresas - vertical, das fontes de matérias-
primas ao produto já no balcão, e horizontal, associação de ramos
industriais e comerciais: surge a indústria petrolífera que se
interliga, numa mesma planta industrial, com as indústrias têxtil,
de calçados, de papel, alimentícia e de construções - as indús-
trias tradicionais: mecanizava-se a agricultura, com o desenvol-
vimento e a diversidade das máquinas, impulsionada pelas novas
fontes de energia; surgiam o fonógrafo, a placa fotográfica e o
filme. 2 Administrar, de modo geral, fosse o que fosse, deixava

1 Snyder, Louis L. El mu.ndo en eL siglo XX - 1900/1950. Barcelona, Ed.


Labor, p. 11 e 35.
2 Estes dados, referentes à Segunda Revolução Industrial, são colhidos, em
sua maior parte, em Pasdermadjian, H. La segu.nda revolu.ción. Madrid,
Editorial Tecnos S.A., 1960.

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de ser algo relegado ao emplrISmO, para. constituir-se em técnica.
Taylor, ainda em 1895, sustentava que aos critérios operativos
anteriores, que classificava de subjetivos, empíricos e intuitivos,
a administração como ciência opunha os critérios de racionaliza-
ção, uniformização, nivelação, generalização, institucionalização,
sistematização e teorização. Era a administração científica. Na me-
dicina, ao lado de uma melhoria geral nas técnicas médicas, o
que vinha possibilitando a redução da taxa de mortalidade, sur-
gia também a psicanálise, com profundas repercussões na psico-
logia. Na física, Einstein e Planck abriam toda uma nova visão
do macro e do micro cosmos , afetando, de modo notável, a pró-
pria ciência do conhecimento humano. Em conseqüência, a epis-
temologia ganha um status privilegiado no campo das ciências e
da filosofia. Na química, Loeb e na matemática, Hilbert, contri-
buíam para o movimento geral e global de renovação científica
do saber humano. Nas artes, a ebulição não era menor: a pintura
tomava o caminho do cubismo e do abstracionismo; a música, o
dodecafonismo; a poesia, o do futurismo e movimentos correlatos;
o romance com Proust, Martin du Gard, Gide, Thomas Mann,
Kafka e Gorki, era bem um símbolo das profundas e até certo
ponto desconcertantes transformações por que passava o mundo
ocidental. Na filosofia e na sociologia prevaleciam, de um lado,
não obstante suas relativas contradições internas, as diversas cor-
rentes positivistas e neopositivistas, neokantianas, empíricas, in-
tuicionistas, naturalistas, pragmatistas, utilitaristas e neo-hegelia-
nas (estas últimas de conteúdo metafísico e romântico, servindo
para embasar doutrinas políticas belicosas) e, de outro lado, co-
meçando a firmar-se como categoria do saber, o chamado mate-
rialismo histórico e dialético, o qual oferecia combate ao conjunto
daquelas correntes. O Direito, sob o influxo daquelas novas cor-
rentes filosóficas e sociológicas que se afirmavam de modo pro-
gressivo, passa a refleti-las em sua doutrina, sobretudo através
do positivismo jurídico, que levou à "publicização" do direito
privado. Na ciência política, abria-se a crise do Estado liberal. A
crítica às suas instituições escudava-se sobretudo nas correntes
positivistas e neo-hegelianas. Como se percebe, o mundo em que
vivemos, hoje, é um mundo que começou a ser moldado nos dois
ou três últimos decênios do século XIX.

2. Este período histórico que vai de 1870 a 1914 e que, no pe-


ríodo seguinte, intermédio entre a I e a II Guerra Mundial (1914/
1918 -- 1939/1945), vê aprofundadas e agravadas todas as suas
características -- as de expansão e as de crise -- poderia, se-
gundo pensamos, ser assim sintetizado:

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a) o sistema econonuco, já hegemônico à escala mundial, passa
a ser estruturado não mais ao nível de um capitalismo atomizado,
mas sim pelo capitalismo financeiro monopolista, que se mostrava
mais capacitado para operar em economia de escala, dentro da
concorrência internacional em busca de mercados, de matérias-
primas e de realização lucrativa de capital;
b) este predomínio de economias de escala no sistema econô-
mico global provoca e estimula, de modo dinâmico e progressivo,
as novas técnicas de administração e de organização do trabalho
social; ao empirismo sucede o planejamento; ao intuicionismo, a
racionalização; a Universidade começa a se transformar, a fim
de tornar-se apta a servir às novas condições de vida;
c) com a acentuação do desequilíbrio indústria-agricultura em
favor da indústria, as nações industriais assumem uma posição ni-
tidamente hegemônica sobre as nações agrícolas; culturalmente,
civilização passa a ser sinônimo de industrialização; intensifica-se,
de modo extraordinário, o processo de urbanização; a sociedade
urbano-industrial define-se como uma categoria histórica;
d) industrialização e urbanização provocam o aparecimento, no
cenário político e social, das grandes massas populares; define-se
o conceito de sociedade de massas. É ainda Louis Snyder que as-
sinala:
"La nueva industrialización estimuló el crecimiento demográfico,
la concentración de la población en las zonas urbanas, la agra-
Ilación de los problemas relativos e las grandes ciudades, la dis-
minución deI analfabetismo y la aparición de la prensa como gran
medio de informaéión"; 3 ao lado de ideologias otimistas, utilitá-
rias, pragmáticas e reformistas surgem, também, doutrinas apo-
calípticas da civilização ocidental: a revolução socialista torna-se
uma realidade histórica, com a Revolução bolchevique de 1917,
assim como a rebelião das massas, concretizada na Revolução me-
xicana dos anos 10; da I Guerra Mundial para a frente, guerras
e revoluções sociais se entrelaçam e se condicionam;
e) o nacionalismo econômico e político, o militarismo e o li-
vre-cambismo passam a ser, simultânea ou sucessivamente, pra-
ticados por todas as nações, dependendo de suas posições de força
dentro do sistema mundial; as grandes potências, que em geral
haviam atingido este status pelos caminhos do nacionalismo e do

li Snyder. op. cito p. 19.

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protecionismo, mais ou m.enos dentro dos postulados do Sistema
Nacional de Economia, passam a defender, nas relações mundiais
de mercado, o livre-cambismo; as demais nações oscilam entre o
protecionismo e o livre-cambismo, muitas vezes tentando conci-
liá-los com maior ou menor êxito relativo, dada a situação de
economias reflexas e dependentes em que haviam sido colocadas;
f) crise generalizada e progressiva, mas desigual ao nível das
nações, do Estado liberal; suas instituições, como sufrágio uni-
versal, o sistema de partidos políticos, a divisão dos poderes de
Estado, o Parlamento, as liberdades públicas e as garantias indi-
viduais, assim como o próprio conceito de democracia passam a
ser reavaliados criticamente, procurando dar-se-Ihes novos con-
teúdos; buscam-se formas de institucionalizar-se o amplo inter-
vencionismo estatal, o autoritarismo, o totalitarismo, a democracia
social, o corporativismo etc.

3. O Brasil, que devia a sua própria existência a um outro ciclo


anterior de colonização - o das grandes descobertas - inseria-se,
ainda, ao final do século XIX e primeiras décadas do século XX
(período que estudamos), numa relação de dependência para com
as grandes metrópoles mundiais. Economia e cultura reflexas que
éramos, as transformações ocorridas nos centros hegemônicos
mundiais condicionavam, necessariamente, os termos e os limites
dentro dos quais as nossas instituições políticas desfrutavam de
uma relativa autonomia conjuntural na tarefa de se organizarem
e se definirem. Aquela intensa e extensa expansão do capitalismo
financeiro, de uma nova qualidade, que irradiava dos grandes
centros mundiais, tornou-se, assim, responsável pelo início, a par-
tir dos últimos decênios do século XIX, de um ciclo histórico en-
tre nós. A economia cafeeira assume, então, uma posição de co-
mando dentro da economia brasileira, dada a demanda crescen-
temente estável do mercado internacional - fato resultante da
referida expansão do capitalismo mundial, da Segunda Revolução
Industrial e da unificação desse mercado. Daí para a frente es-
treitam-se os nossos vínculos com o mercado mundial, de tal
forma que todas as oscilações e crises deste último teriam reflexo
certo em nossa decisão e estratégia política internas. O modo pelo
qual nos articulávamos ao mercado mundial, isto é, como nação
exportadora de bens primários - os produtos exóticos - e de
matérias-primas e como nação importadora de bens manufatura-
dos (e, àquela época, importadora também de inúmeros bens não-

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duráveis, como g~neros alimentícios) e de capitais, tornava-nos
uma nação atrasada face às nações industriais - as grandes po-
tências - que eram adiantadas. Em termos econômicos o Brasil
era o café e, depois, por um curto período, também a borracha
e nada além disto. Entretanto, achávamo-nos inseridos em um
sistema econômico mundial extremamente dinâmico e inovador,
onde, como vimos, a industrialização e o avanço tecnológico eram
o símbolo da civilização, do prestígio, da força e da hegemonia
mundial. As Forças Armadas de todos os países, fossem adianta-
dos ou atrasados, haviam percebido que o aprimoramento e a
modernização delas mesmas e, conseqüentemente, a salvaguarda
da segurança nacional de seus países, da qual eram institucional-
mente as responsáveis, estavam na dependência do desenvolvi-
mento industrial deles. Havia, portanto, entre nós, um consenso
favorável mais ou menos generalizado por todas as nossas elites
dirigentes 4 no sentido do encaminhar o Brasil na rota da indus-
trialização (em geral através do investimento estrangeiro), se
bem que a natureza desta, assim como os meios, os métodos e o
prazo histórico para atingi-la não fossem questões pacíficas e mui-
tas resistências fossem efetivamente criadas, se bem que não in-
superáveis, como o próprio tempo se encarregou de demonstrar.
O Brasil iniciou então o seu processo de industrialização que, des-
de a segunda metade do século XIX, se instalou entre nós como
um subproduto de nossa estratégia financeira. Esta última, já no
século XX, define-se e cristaliza-se em torno da valorização do
café, nos anos 10, da defesa permanente do café, nos anos 20 e
sustentação do café, nos anos 30. Desta forma, mais ou menos no
período de 1870/1880 para a frente, o Brasil inicia um ininter-
rupto processo de industrialização, que se estruturava lentamente
em ciclo, simultâneos ou não com os booms e com as depressões
da nossa economia cafeeira. Até possivelmente o término da II
Guerra Mundial (1945), aquele processo de industrialização se-
ria de futuro mais ou menos incerto e duvidoso, para firmar-se,
depois desta data, em termos mais definitivos.

4. A articulação histórica de nossa economia, nos últimos de-


cênios do século XIX, em um mercado mundial que se estrutu-
rava pela expansão dinâmica e inovadora do capitalismo finan-

4 Preferimos o termo "elites dirigentes" a "classes dirigentes", dada a


sua conotação mais próxima de nossa sociedade escravista ou, pelo menos
até 1930, recentemente egressa do escravismo.

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ceiro, sob a hegemonia das grandes potências, já nos definia, atra-
vés do chamado modelo agrário-exportador, como uma nação
capitalista atrasada. Nossa estratégia financeira, ao que nos pa-
rece, elaborada com grande originalidade e autenticidade, além
de nos garantir, pela valorização do café, um nível de renda,
servia ainda, subsidiariamente, para alimentar uma débil e limi-
tada industrialização, mas de toda maneira contínua e progressiva.
Estabelecia-se, assim, um entrelaçamento absoluto e uma relativa
solidariedade entre os interesses de nossa economia cafeeira, nos-
so comércio, interno e externo, dominado por firmas e bancos es-
trangeiros, nossa indústria possível (setores têxtil, couro e ali-
mentício) e nossas Forças Armadas. De fato, parece que o nosso
processo substitutivo de importações, gerado por um regular pro-
tecionismo alfandegário e pela política cambial posta em prática,
bem assim como outros projetos industriais isolados, pelo fato
mesmo de não terem sido sistematizados como uma política mani-
festa de industrialização do país, acabaram por se acomodar den-
tro do modelo agrário-exportador, não chegando nunca, até pelo
menos o término da 11 Guerra Mundial, a provocar uma ruptura
com os interesses da nossa lavoura cafeeira, do nosso comércio e
do capital estrangeiro. Teria, antes, ocorrido uma como divisão
de áreas entre o conjunto destes interesses. Desta forma, o des-
tino agrário e o futuro industrial do Brasil se conciliavam, em
termos.

5. Esta nova fase histórica que então iniciávamos, por indução


exterior, dadas as suas peculiaridades e características, que ha-
viam configurado a sociedade urbano-industrial-tecnológica e de
massas, viria abalar, de modo contundente, as nossas instituições
sociais, políticas e culturais até então vigentes. Assim é que, pro-
gressivamente, pela conjugação simultânea ou alterada de fatores
internos e externos, estouram o nosso sistema de propriedade à
base do braço escravo, com a Abolição; o nosso sistema de rela-
cionamento entre a Igreja e o Estado, com a separação de ambos;
o nosso sistema político-institucional, com a República; o nosso
sistema cultural, com a Escola do Recife e movimentos de idéias
seus contemporâneos; nosso sistema de distribuição regional de
Poder, com a implantação da hegemonia paulista sobre a Fede-
ração; o nosso sistema de relacionamento internacional, com a
entrada em cena de novas potências mundiais - e, portanto, no-
vos centros de influência e de hegemonia - como os Estados Uni-
dos e a Alemanha.

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6. Face ao conjunto destas transformações que ocorriam inter-
na e externamente e sobretudo face a esta múltipla ruptura polí-
tico-institucional-cultural a que aludimos logo acima, a ideologia
brasileira, conforme deduzimos de grande parte da bibliografia
já lida, constituída dos próprios autores do período (1870-1945),
passou a problematizar, entre outros, os seguintes temas:
a) a conveniência ou inconveniência da industrialização do País;
indústrias naturais versus indústrias artificiais; livre-cambismo
versus protecionismo; destino agrário e futuro industrial do País;
o gigante adormecido em berço esplêndido;

b) o alinhamento ou realinhamento do País no contexto das gran-


des potências econômicas e militares; novo mundo e velho mundo;
a Doutrina Monroe; nacionalismo, ufanismo; pan-americanismo;
pan-germanismo; comunidade luso-brasileira;
c) a necessidade e os caminhos para orientar o País no sentido
de uma inevitável modernização institucional face ao impacto da
emergente sociedade urbano-industrial-tecnológica e de massas,
com o mínimo possível, ou mesmo sem nenhum risco para o tra-
dicional esquema de elites no Poder; a crise de "degenerescência
do caráter nacional", a Liga de Defesa Nacional, a campanha do
serviço militar obrigatório, o retorno ao campo; a organização
do Estado nacional; a unidade política e social do País; a superação
das autonomias regionalistas e dos particularismos e faccionismos
político-partidários; o nacionalismo paulista; o fortalecimento do
Poder Céntral; o Estado forte; revisionismo constitucional; tra-
dicionalismo, autoritarismo e liberalismo;
d) a necessidade e os meios de integrar nossas massas urbanas
proletárias, então emergentes, no processo político nacional; a
conversão do ex-escravo, do mestiço alforriado e do imigrante em
matuto e em operário urbano; o sertanejo, o Jeca Tatu e o estran-
geiro; o Brasil do sertão e o Brasil do litoral; o Brasil, país em
formação; Macunaíma; a investigação da personalidade do brasi-
leiro; superioridade e inferioridade racial;
e) o transplante de idéias e de doutrinas européias e norte-ame-
ricanas para o Brasil e a crítica ao mesmo; cosmopolitismo e cul-
tura nacional; a imitação como defeito, equívoco ou ingenuidade
de nossas elites intelectuais; o ceticismo; ensaios de confronto
crítico dos modelos estrangeiros com a realidade brasileira, esta
última geralmente interpretada dentro de perspectivas positivis-

Pensamento político brasileiro 67


tas, neopositivistas ou emplrlCas, o que, em essência, por um
détour, acabava por justificar os referidos modelos estrangeiros
através da postulação de "abrasileiramento" dos mesmos.
Acreditamos poder distribuir ao longo destes cinco itens que
formulamos toda a temática fundamental de conjunto de nosso
pensamento político, sociológico e literário, em um continuum que
viria da chamada Escola do Recife até os autores da década de 40.

7. A obra de Francisco Campos, toda ela produzida quando ele


mantinha o status de homem do Governo, no exercício efetivo
de funções políticas, ou bem na qualidade de professor ou jurista,
cobre cerca de 50 anos da vida brasileira, iniciando-se por volta
da I Guerra Mundial e terminando em 1968, ano de seu faleci-
mento. Pela leitura que dela fizemos e desprezados os textos que
não se relacionavam mais diretamente com o seu pensamento po-
lítico, ou seja, aqueles seus pareceres de fundo e forma eminente-
mente jurídicos, acreditamos poder periodizar sua obra, mesmo
dentro da grande uniformidade que apresenta, em três fases: a)
o período que vai de seu discurso junto à herma de Afonso Pena,
quando Campos era ainda acadêmico de direito, isto é, per volta
de 1914, 5 até o seu discurso de posse como Ministro da Educa-
ção e Saúde do Governo Revolucionário Provisório, ao final de
1930; 6 b) deste último discurso até a elaboração da Constituição
de 1937 e da reforma dos Códigos, e que vai de 1930 a 1942; c)
da entrevista que concedeu a O Jornal a 3 de março de 1945,
quando procede a uma avaliação crítica do Estado Novo que en-
tão chegava ao fim, até seu último parecer, de setembro de 1968. 7
Como o nosso estudo visa principalmente o período que medeia
as duas grandes guerras mundiais - 1914/18 a 1939/45 - con-
centramo-nos mais atentamente nas duas primeiras fases, fazendo
apenas uma referência à terceira, ao final.

8. Primeira fase - 1914/1930: neste período, Francisco Campos


inicia sua vida profissional como professor de Filosofia do Direito
(1917), logo a seguir deputado à Assembléia Legislativa de Minas
Gerais (1919-1921), deputado federal por este Estado (1922/1926),

:I Democracia e unidade nacional. In: Antecipações à reforma política.


José Olympio Editora, 1940.
6 Educação e cultura. José Olympio Editora, 1940.
7 O direito de propriedade e sua garantia em face da Constituição. Di-
gesto Econômico, n. 205, jan./fev. 1969.

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Secretário do Interior no Governo Antônio Carlos (1926/1930),
chegando, ao final da década de 20, a Ministro da Educação e
Saúde do Governo Ditatorial Provisório, sendo o primeiro ocu-
pante da Pasta. Ao longo de toda esta fase Campos revela-se um
político situacionista (aliás, é digno de nota que jamais em sua
vida militou nas hostes da oposição), defensor convicto da ordem
estabelecida e do regime então vigente, ou seja, das instituições
políticas da República Velha que perduraram até a Revolução de
1930 (que Campos ajudou a tramar e a deflagrar, na qualidade
de Secretário do Interior do Governo Antônio Carlos, um dos
próceres aliancistas mais destacados). Como deputado federal,
Campos é um agressivo crítico e opositor das sublevações tenen-
tistas e do programa da Aliança Libertadora, de Assis Brasil.
Defende, na Câmara dos Deputados, o regime da legalidade, o
senso da ordem, a civilização, o regime de Estado de Sítio, as
medidas de exceção e de repressão contra as manifestações mili-
tares de protesto as quais são vistas por ele como explosão de
"instintos primitivos", como "forças da desordem e da destruição,
espírito primário e jacobino", qualificando-as de "sombria aven-
tura" e "monstruoso atentado", de "agressão à ordem tradicional
do País", "morticínio fratricida", "flagelação da pátria", "legiões
de orgulho e concupiscência", referindo-se à "masorca de 5 de
julho". Quanto a Assis Brasil e à sua pregação liberal consubs-
tanciada no lema "Representação e Justiça", a qual, segundo
Campos, dava "cobertura ideológica" ao tenentismo ("... às ar-
mas sem programa emprestaria o seu programa"), qualificava-o
de "demagogo". A si próprio Campos dizia-se integrado na "for-
midável obra de defesa e de preservação moral e política do País."
Poucos anos depois, sob a Aliança Liberal, aliás compreensivel-
mente movido pelas injunções históricas e políticas e não obs-
tante as restrições que ele fazia aos tenentes, alia-se aos mesmos
e a Assis Brasil na preparação e na deflagração vitoriosa da Re-
volução de outubro de 1930 que viria justamente pôr fim ao re-
gime até então por ele defendido, o que ilustra, enfim, o relativa-
mente pequeno peso das convicções pessoais face a um processo
histórico determinado. Seria ainda de se assinalar aqui que Cam-
pos parecia perceber algo mais por detrás das sublevações tenen-
tistas e do programa da Aliança Libertadora, talvez uma "revo-
lução social anárquica." Leia-se este trecho de um discurso na
Câmara Federal: "Que abalos, se este movimento (a sediação mi-
litar) se propaga, sacudiriam o país, fazendo emergir ninguém
sabe que correntes de sentimentos, de idéias ou de paixões desses

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fundos submarinos da alma nacional, cujos agregados, subita-
mente dissolvidos, libertariam poderosas energias, menos capazes
de crear do que destruir?" A

9. Nesta primeira fase, Campos já deixa de certo modo estabe-


lecido o seu núcleo fundamental de idéias e princípios doutriná-
rios que, na posterior década de 30, cuidará apenas de desenvol-
ver e aprofundar, de acordo com as correntes do pensamento polí-
tico ocidental que então haveriam de se definir. Este núcleo de
idéias já pode mesmo, segundo pensamos, ser percebido em seu
discurso de acadêmico dos anos 10, já citado, o que foi proferido
junto à herma de Afonso Pena. Salientamos o seguinte trecho,
que nos pareceu bastante expressivo: "Para resolver, por conse-
guinte, o problema da democracia é necessário que os juristas,
largamente embebidos da inspiração nacional, estejam sempre
prontos a adaptar os órgãos legais da nação à satisfação das neces-
sidades democráticas, sem permitir que a orientação do desígnio
nacional seja quebrada pela interferência dos conflitos democrá-
ticos ... O futuro da democracia depende do futuro da autoridade.
Reprimir os excessos da democracia pelo desenvolvimento da au-
toridade será o papel político de numerosas gerações." 9 Real-
mente, parece-nos que a formação bacharelesca de Campos, que
já por si o qualificava como homem da "ordem legal" e defensor
dos "interesses constituídos e dos direitos adquiridos"; depois, o
exercício do magistério superior, que o integrava à burocracia es-
tatal de alto nível; ainda sua formação filosófica de juventude,
toda ela neokantiana, agnóstica, relativista (e daí, certamente, o
permanente ceticismo e ironia de Campos), intuicionista e neo-
positivista (e aqui, certamente, seu "realismo objetivo", seu prag-
matismo de homem do Poder); sua formação jurídica hobbesiana
e positivista, seu acentuado romantismo político 10 e, também por

8 Todas as citações deste item 8 são extraídas dos discursos de Campos


reunidos em Antecipações à reforma política. cito
9 Democracia e unidade nacional. Antecipações à reforma política. cito
lU Para a formação filosófica de Francisco Campos, ver sobretudo sua
Introdução crítica à Filosofia do Direito, de 1918, para o que diz respeito
às suas posições neokantianas, agnósticas e relativistas; seus textos sobre
Filosofia da Educação, nos discursos e conferências sobre a reforma do en-
sino em Minas e no Governo Federal, para seu pragnIatismo e neopositi-
vismo (Pela civilização mineira. 1930 e Educação e cultura. 1940. cit.);
para seu intuicionismo, neohegelianismo e romantismo político, ver seus
textos sobre o "primado do irracional", sua teoria dos gênios na História,

70 R.C.P. 1/74
toda a década de 20, o exerC1ClO de cargos políticos e adminis-
trativos, estaduais e federais, conduziram-no, todos estes fatores
somados, a uma posição teórica e doutrinária que envolvia, ao
lllesmo tempo, o conservadorismo e a aspiração de modernização
institucional, característica fundamental de seu pensamento polí-
tico. Uma leitura atenta de suas obras nos anos 10 e na década
de 20, iniciando-se com o já mencionado discurso junto à herma
de Monso Pena, percorrendo seus pronunciamentos na Assem-
bléia de Minas e na Câmara Federal e depois os da Secretaria
do Interior, quando promoveu a reforma do ensino primário e
normal em Minas, mostra-nos que sua posição era, de certa forma,
singular e atípica no contexto político então dominante em nosso
País. Campos não poderia àquela época ser classificado como um
conservador tout court, um defensor do status institucional vigen-
te. Ao contrário da grande maioria dos componentes das elites
políticas que então dirigiam o nosso País, Campos já trazia ao
debate e à ação administrativa pública, na década de 20, os con-
ceitos e os programas que objetivavam a montagem, entre nós,
de um Estado Nacional, antiliberal, autoritário e moderno. Co-
locado dentro da estrutura de poder então vigente, nela traba-
lhava não certamente para solapar suas bases sociais - e nisto
qualificava-se como um conservador -, mas sim para substituir
e reconstruir, do alto, as suas instituições políticas e burocráticas,
modernizando-as. A nosso ver, Campos enquadrava-se com per-
feição naquela definição de Taine dada por Carl Schmitt: "Taine
balance entre l'éspoir d'un ordre nouveau à naitre de la décom-
position de l'ancien, et la peur du chaos." 11 Dizia Campos, por
volta de 1925: "Pela lei... em regimen democrático, se podem
fazer todas as transformações, por mais radicaes que sejam ... " 12
É visando um Estado nacional moderno que Campos inicia o seu
combate em vários fronts: investe contra a autonomia dos muni-

seu apelo a César, seu conceito de política como teologia, tudo em O Es-
tado Nacional (conferência intitulada A política e o nosso tempo) e na
Atualidade de Dom Quixote. Imprensa Oficial de Minas, 1967. Suas idéias
jurídicas, por sua vez, inspiraram-se nas tendências do positivismo jurí-
dico, da "publicização" do direito privado, à Kelsen e à Thering, bem como
nas correntes constitucionalistas que prevaleceram na Constituição de
Weimar (1919).
11 Schmitt, Carl. Le romantisme politique. Edição francesa de 1928, sendo
a original, alemã, de 1919.
12 Os crimes políticos e o julgamento pelo júri. Antecipações à reforma
política. cito

Pensamento poLítico brasileiro 71


ClplOS, pedindo a implantação do sistema de prefeitos nomeados
argumentando que o município estava, afinal, envolvido de tal
forma dentro do Estado e da União que sua autonomia política
tornava-se inadmissível; investe contra a autonomia dos estados-
membros, a qual, no fundo, seria garantidora do sistema odioso da
prevalência de interesses regionalistas sobre os interesses maiores
da Nação; pede o fortalecimento do Poder Central: " ... a demo-
cracia moderna, que vive da prosperidade da unidade da nação;
essa democracia que precisa de uma espinha dorsal e não a de-
mocracia xadrez, constituída de retângulos inumeráveis, cada
qual com a sua bandeira e a sua cor; a democracia substancial e
substantiva, moldada na unidade nacional... Essa democracia ...
não pode constituir-se onde se multiplicam as autoridades polí-
ticas locais, estabelecendo separações, semeando ódios, nutrindo
a desconfiança, a descrença, o indiferentismo e o desprezo do
povo pelo seu regime"; 13 investe contra a visão rousseauniana
dos direitos do cidadão e do individualismo: "Já é passado o tem-
po .. , da concepção do direito como instrumento de desintegra-
ção social; da liberdade como um direito natural, superior e an-
terior à formação orgânica da sociedade: ambos, direito e liber-
dade não passam de formas e modalidades da existência social ou
órgãos destinados a uma função social específica. .. Compreender
de modo irrestrito e absoluto as garantias ao direito individual,
é erigir à ordem de uma categoria jurídica o solipsismo filosófico,
fazendo de cada indivíduo, tomado isoladamente, o único, e do
mundo, a sua propriedade ... No regimen moderno, as liberdades
individuais passaram a ser garantidas pelo Estado e a adminis-
tração do Estado a ser uma administração legal;" 14 e ainda:
"Nestes períodos críticos de dissolução de um estado social e de
liquidação de tradições é que é preciso conter os espíritos, refrear
os impulsos, apertando as malhas desta armadura elástica, que é
a ordem legal, de maneira a tornar mais rigorosa e estrita a dis-
ciplina quanto mais ativos os fermentos que trabalham pela de-
composição"; 15 investe contra o voto secreto: " ... o inocente e
imponderável voto secreto"; 16 investe contra o sistema de par-
tidos, onde vê a agitação de "antagonismos violentos" e "oposi-

la Opiniões e debates. Belo Horizonte, Editorial Ariel, 1921. p. 230.


14 Id. ido p. 83 e 245.
15 A competência do Supremo Tribunal Federal. In: Antecipações à re-
forma política. cito p. 228.
16 Id. ido p. 189.

72 R.C.P. 1/74
ções de interesses transitórios", pleiteando sua substituição pela
"política e partido das realizações práticas e eficazes", de onde
se descortinariam os "interesses comuns" e onde prevaleceria "o
espírito de conciliação e de concórdia, de imparcialidade e de
justiça"; 11 investe contra os Parlamentos, pleiteando a iniciativa
e o monopólio da legislação pelo Poder Executivo e assinalando
a imprensa e os sindicatos como substitutos dos parlamentos:
"Eu creio que nesse caso dos parlamentos continuamos a ser ví-
timas de uma daquelas ilusões, atribuindo às Câmaras o mesmo
papel que elas representaram em outros tempos... em que as
Câmaras exerciam, efetivamente, funções políticas de alta rele-
vância, como únicos órgãos autorizados da opinião pública. Era
esta, porém, a concepção dos primeiros tempos do Parlamento,
a concepção das revoluções populares do século passado e do es-
pírito político educado no ambiente dos princípios revolucionários
do século XVIII. Do último quartel do século XIX para cá, as
assembléias legislativas vêm perdendo, aos poucos, a sua impor-
tância política, despindo as suas aptidões representativas para re-
vestir o caráter funcionarista ou administrativo que faz hoje,
dos Congressos, departamentos descentralizados da administra-
ção. .. A administração tende, portanto, a monopolizar em suas
mãos o trabalho legislativo, com grandes vantagens para a sua
simplicidade e regularidade"; 18 investe contra o Estado liberal
e as instituições democrático-liberais, as quais qualifica de "su-
perstição ou obsessão política", de "fraseologia política", aludindo
ao "dragão da ideologia democrática" que estaria já relegada ao
"muzeu de antiguidades políticas". 19 Dizia: "O que não posso
conceber é que neste momento em que a face das cousas se trans-
muda, recebendo um outro molde, estejamos enleiados neste ci-
poal de palavras e de fórmulas sagradas. .. O que caracteriza o
momento presente. .. é o predomínio das preocupações técnicas,
de ordem econômica ou administrativa, sobre as preocupações de
toda e qualquer ordem ou natureza." 20 Por outro lado, a moder-
nização institucional era ainda a este tempo referida por Campos
de um modo um tanto difuso e vago, mas de qualquer maneira
já bastante indicativa, ao início dos anos 20, de conceitos mais
definidos que iriam se afirmando no correr da década. Assim é

11 Opiniões e debates. cito


18 Opiniões e debates. cito p. 300 e 3Ol.
19 Id. ibid. p. 95, 260 e 283.
20 Id. ibid. p. 294.

Pensamento político brasileiro 73


que ele alude ao "fecundo espírito de realizações práticas - en-
carnadas na administração eficaz e competente" ao qual ele opu-
nha o "infecundo espírito de ornamentação-encarnado na política
verbalista e estéril, formalista e pueril" de nossos Parlamentos. 21
Da mesma forma, às "ginásticas eleitorais" do sistema partidário
vigente, ele opunha a "competência técnica, para cuja apuração
falta aos comícios eleitorais a necessária idoneidade". 22 Vaticina,
então: "... imprimindo-se, assim, à administração um cunho téc-
nico mais pronunciado, sem o qual não pode nação alguma ter
confiança no sucesso das pugnas que se vão travar e renhir em
torno do desenvolvimento material do paiz, do seu aparelhamento
técnico e econômico que constitue hoje, acima de qualquer espí-
rito de bisantinismo constitucional ... o objetivo definido de todas
as ambições nacionais." 23 Em parecer na Câmara Federal, como
membro da Comissão que examinava a rescisão do contrato com
a Itabira Iron, Campos declarava-se pela rescisão, favorável a um
programa siderúrgico nacional e contrário à concessão para a
mera exportação de nosso minério de ferro, o que tinha por lesivo
aos interesses do País. 24 Mas parece-nos certo, por outro lado,
que faltava a Campos, nas décadas de 20 e de 30, uma consciência
manifesta da necessidade da industrialização do País como condi-
ção sine qua non de nosso desenvolvimento nacional. Mesmo mais
tarde, em abril de 1939 e, portanto, durante o Estado Novo, Cam-
pos, aludindo ao "terreno prático" e aos "problemas vitaes do
paiz", declara que haveríamos de conseguir "com ferro e combus-
tíveis nossos", "fabricar arados para lavrar a terra" e "fundir
canhões que nos defendam, temperar o aço que projeta nossos
navios e armar aviões para cobrir os céus do Brasil",25 revelan-
do, assim, que entendia a industrialização do País em termos sobre-
tudo de desenvolvimento agrário e de segurança militar. Na década
de 20, seria sobretudo em seus discursos e conferências relativos à
reforma do ensino em Minas 26 que ele melhor definiria o sen-
tido de modernização que pleiteava. Já em sua posse como Se-
cretário do Interior, em 1926, aludia à necessidade de criação
do ensino técnico regular "particularmente em um paiz que,

21 Id. ibid. p. 284.


22 Id. ibid. p. 287.
23 Id. ibid. p. 296.
24 Direito constitucional. Editora Forense, 1942. v. L
25 O Estado Nacional. Ed. José Olympio, 1940. p. 113.
26 Reunidos em Pela civilização mineira. Belo Horizonte 1930.

74 R.C.P. 1/74
como o nosso, aspira a um rápido e extenso desenvolvimento in-
dustrial".27 E ainda: "A nação não é, com efeito, apenas ordem
jurídica e moral, função de autoridade e de governo: é também,
e hoje, antes de tudo, uma usina e um mercado." 28 Enfatizava:
"Um paiz sem organização industrial e comercial, com toda a
sua majestade, as suas dragonas, os seus parlamentos, as suas de-
clarações de direitos não passará de um embrião nacional, com
uma vida de relação inteiramente artificial e inconsistente;" 29
"um paiz pobre é um paiz necessariamente votado às desordens in-
ternas e ao desprestígio externo." 30 Pleiteava, então, a transfor-
mação do Brasil de "paiz prodigiosamente rico em uma nação
igualmente rica": 31 revelaria, assim, a sua consciência de nosso
"atraso". Já ao encerrar-se esta primeira fase, vitoriosa a Revo-
lução de 1930, que Campos ajudara a tramar e a deflagrar enun-
cia, em seu discurso de posse no cargo de Ministro da Educação
e Saúde do Governo Ditatorial, no mesmo ano: "Havia no Brasil
dois paizes, o legal e o de fato: o paiz da mentira e o paiz da
realidade. A revolução é o protesto do último contra o primeiro;
são as necessidades e as exigências do Brasil, acordando do sono
e da abulia dos entorpecentes para reclamar os remédios verda-
deiros e eficazes. .. O trabalho de construção requer esse exame
severo e sem atração do presente, verificando quais as partes moles
e inaproveitáveis da estrutura e quais as sólidas e dignas de du-
rar, abrindo brechas onde for preciso, a fim de que se possa in-
suflar no interior confinado o sopro da renovação ... Na instrução
será indispensável considerar, a fim de que possamos atender às
exigências do estado atual de civilização e de cultura, que o Brasil
não é apenas um paiz de 'liberais', mas também, e sobretudo, um
paiz de produtores." ~2

10. Ao final da década de 20, assim, Francisco Campos já havia


fixado o cerne de seu pensamento político. As aspirações de um
Estado nacional e moderno, entre nós, refletiam certamente as
novas condições de articulação de nosso País, como um todo, den-
27 Pela civilização mineira. cito p. 73.
28 Id. ibid. p. 86.
Id. ibid. p. 87.
Id. ibid. p. 89.
31 Id. ibid. p. 91.
32 Educação e cultura. Ed. José Olympio, 1940. p. 117 e 118.

Pensamento político brasileiro 75


tro do sistema sociopolítico-econômico ocidental. E, para tanto, o
pensamento político brasileiro, já desde o final do século XIX, em-
penhava-se na formulação teórica dos possíveis caminhos e mo-
dalidades que melhor nos conduzissem a tal objetivo. Racionali-
zava e objetivava as estratégias políticas e sociais que julgava
necessárias. As idéias de Campos parecem enquadrar-se bem den-
tro desta perspectiva. As instituições políticas então vigentes em
nosso País - posteriormente qualificadas como sustentáculos da
República "Velha" -, eram identificadas com o Estado liberal,
fosse pelo sistema federativo adotado, garantidor da autonomia
regional, fosse através do sufrágio universal e do sistema de par-
tidos, embora, como os próprios críticos do regime de então es-
clareciam, tanto a autonomia regional quanto o sufrágio e a re-
presentatividade parlamentar não significavam, de fato, expres-
sões da soberania popular, mas sim a licenciosidade de clãs e de
oligarquias rurais que enfeudavam, na realidade, a "vontade po-
pular" e a "opinião pública".33 Estas instituições políticas que
eram, de qualquer maneira, consideradas liberais (ou pelo menos
como produtos "abortivos" do Estado liberal) eram encaradas
pelos críticos do regime, tanto pelos liberais que se diziam "au-
tênticos" (Assis Brasil, por exemplo e o próprio Programa da
Aliança Liberal) quanto pelos não-liberais, e entre estes Campos,
como fatores de entrave, de procrastinação ou mesmo de bloqueio
na implantação de um moderno Estado nacional. Assim, os regio-
nalismos estaduais e a prevalência dos interesses subalternos e
particularistas dos grupos políticos (a poUticalha) sobre os inte-
resses maiores da Nação e da coletividade social eram todos con-
siderados, por nosso pensamento político "modernizador", como
fatores de efetiva desagregação, desarticulação, desunião nacional
e social e de atomização do poder nacional: impediam, de fato,
a emergência de um Estado moderno e nacional entre nós. É
aqui, de nosso parecer pessoal que, na realidade, os objetivos de
modernização institucional estavam então encontrando alguma
espécie de resistência da parte das elites oligárquicas dominantes,
como conjunto. Mas, por outro lado, acreditamos que aquela resis-
tência era débil e superfiCial, o que ficou bem claro na campanha
da Aliança Liberal e logo a seguir na própria Revolução de 1930.
A resistência oferecida, eventual e dispersiva, foi logo superada
(é preciso ter sempre em mente que o Presidente Washington
Luiz foi, em última instância, deposto pela Junta Militar de seu

33 Isto aparece particularmente claro na obra de Oliveira Viana.

76 R.C.P. 1/74
próprio governo e com a intermediação da Igreja) e sucedeu um
compromisso geral dentro das elites dirigentes pois que, afinal,
a modernização institucional gratificaria todos os seus grupos e
setores. A década de 30, com toda a sua agitação, não significaria
certamente outra coisa senão o jogo de ajustamento destes grupos
e setores na nova estrutura compósita de poder. Ora, se as insti-
tuições políticas que a Revolução de 30 havia levado à derrocada
eram fruto do Estado liberal, ainda que imperfeito entre nós; se
aquelas instituições "liberais" eram tidas por sinônimo de Estado
"dividido" e "desarticulado" enquanto que o Estado nacional a
que se aspirava seria um Estado hegemônico, "integrado", "mo-
nolítico", tornava-se evidente ao nosso pensamento político "ino-
vador" que o "liberalismo" era o responsável último por nosso
"atraso' e por nossa "fraqueza" face aos "povos civilizados". Des-
ta forma, a modernização de nossas instituições, naquela etapa
histórica, parece ter sido equivalente, segundo a fração mais di-
nâmica de nossa ideologia dominante, ao antiliberalismo, por este
caminho chegando-se ao Estado autoritário. O Estado moderno
brasileiro seria, desta forma, um Estado nacional e um Estado
autoritário, nesta ordem. 34 Era como se para chegarmos ao Es-
tado moderno e nacional tivéssemos de, forçosamente, penetrar
no Estado autoritário, lugar ideal para comprimir-se quaisquer
tipos de interesses que se colocassem, por este ou aquele motivo,
fora dos limites do projeto comum, racionalizado para o conjunto

34 O conceito de modernização, implícito no de Estado moderno, merecia


certamente um tratamento mais extenso, o que, no entanto, no momento,
ultrapassa o objetivo mais limitado deste artigo conforme definimos em
nota inicial. Acreditamos, não obstante, que o conceito de modernização
não poderá, afinal, ser tomado em um sentido sociológico abstrato: a mo-
dernização capitalista, por envolver ao nível da estrutura econômica, uma
valorização dos setores "de ponta", "avançados" - que são, em geral, os
que absorvem capital e tecnologia e reduzem a mão-de-obra - implicaria
por isto mesmo na agudização do processo de concentração de rendas, le-
vando à acentuação do desnivelamento social e regional, provocador, este,
de tensões ao nível político, sobretudo em paises agrários, de explosão de-
mográfica e rarefeito desenvolvimento industrial, em situação, pois, de de-
semprego ou subemprego estruturais. Por outro lado, a modernização, ao
nível institucional, causaria o "alargamento" e a complexificação da buro-
cracia estatal (terciário) provocando uma maior oferta de emprego para os
setores e estamentos sociais médios. Haveria, assim, movimentos assincrô-
nicos de "marginalização" e de "integração". O dinamismo modernizante
capitalista, em sua fase monopolista, por extremamente "irregular" e "desi-
gual" nos países "atrasados", teria, desta forma, nos períodos críticos do
sistema como um todo, nestes últimos países, o autoritarismo político como
uma superestrutura institucional adequada aos interesses dominantes.

Pe1l8amento político brasileiro 77


do bloco no poder. Por outro lado, a depressão econômica favorecia,
também, o autoritarismo, tanto pela necessidade de medidas go-
vernamentais mais rápidas quanto como forma de prevenir dis-
túrbios sociais. Fixavam-se, assim, de modo embrionário, no nível
ideológico, a modernização institucional, o nacionalismo e o auto-
ritarismo - a matriz do pensamento político brasileiro no período
que vai de 1930 a 1945. 35 Daí, talvez, desta procura de caminhos
não-institucionalizados, mas que também não deveriam trazer a
ameaça de uma "revolução social", a constante alusão que já se
encontra na década de 20, em Oliveira Viana, por exemplo, ao
"bom tirano" e em Gilberto Freire, ambos no sugestivo elogio a
Pedro II 36 e que em Campos encontrou ressonância, na década de
30, em seu apelo a César. 37

11. Necessário ainda salientar que em todos os textos de Cam-


pos neste período e mesmo depois, na década de 30, as fontes
doutrinárias citadas por ele em abono de seu pensamento político
antiliberal e modernizador são, em sua grande maioria, os cons-
titucionalistas e os juristas norte-americanos e ingleses e, subsi-
diariamente, os italianos, franceses e alemães. Ao considerar a
nossa Constituição de 1891, assim se manifestava: "Não foi uma
invenção, mas uma transplantação. Se assim é. .. nada mais na-
tural do que procurarmos no funcionamento do autogoverno local
(Campos tratava de autonomia municipal) nos países de onde o
transladamos e em que ele atingiu o mais alto grau de atuação,
o critério pelo qual nos devemos conduzir na conceituação do que
seja autonomia." 38 E ainda: "Nos Estados Unidos, que sempre
temos à vista e à mão quando tratamos de questões constitucio-
nais." 39 Também as suas idéias inovadoras no campo educacional
eram todas inspiradas na Escola Nova, de Dewey, Decroly e Cla-
parede. A seguir, procuramos entender como a década de 30 as-
similou e realizou, na medida de sua possibilidade concreta, os
objetivos "nacionais" e "modernizantes" que o nosso pensamento

35 Esta matriz ideológica - modernização/nacionalismo/autoritarismo -


à qual se acrescentaria, na década de 30, também o populismo, com a inte-
gração, por cooptação, do proletariado urbano ao processo político nacional,
encontraria a sua expressão ótima na prática política, aparentemente des-
provida de ideologia de Getulio Vargas, um notável mediador de estratégias
no bloco das elites no Poder.
36 Oliveira Viana. Problemas de política objetiva. 1930. p. 80; Freire.
Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. Ensaio sobre Pedro lI.
37 A política e o nosso tempo. O Estado Nacional. cit. p. 16.
38 Opiniões e debates. cit. p. 106.
39 Id. ibid. p. 216.

78 R.C.P. 1/74
político, desde notadamente os anos 10, com Alberto Torres, (e
Francisco Campos foi um elo desta cadeia), vinha colocando pe-
rante as nossas elites dirigentes.

12. Segunda Fase - 1930/1942: Campos inicia este período como


Ministro da Educação e Saúde, permanecendo como tal até 1932,
ocupando interinamente, neste interregno, o Ministério da Jus-
tiça. De 1933 a 1935 foi Consultor-Geral da República. Em 1933,
candidatou-se a uma cadeira de deputado federal, não tendo lo-
grado eleger-se. De 1935 a 1937 ocupou o cargo de Secretário
da Educação e Cultura do antigo Distrito Federal. Em 1937 foi
nomeado Ministro da Justiça, onde permaneceu até 1942. De
1943 a 1955, já afastado das atividades políticas, exerceu as fun-
ções de Presidente da Comissão Jurídica Interamericana. Nesta
segunda fase, ao que nos parece, Campos poderia ser visto como:
a) reformador do sistema do ensino nacional, quando lançou, efe-
tivamente, as bases para a institucionalização da reforma do en-
sino médio e superior em nosso País; b) reformador das ins-
tituições jurídicas, quando promoveu a reforma dos Códigos do
Processo Penal e Civil, do Processo Penal, a Lei de Contraven-
ções, as leis de crimes contra a economia popular, a nova Lei do
Júri, a Lei Orgânica do Ministério Público Federal, a Lei de
Sociedade Anônima, a Lei de Fronteiras, a nova Lei dQ Segu-
rança e a Reorganização do Tribunal de Segurança, a de nacio-
nalidades, a de extradição e de expulsão de estrangeiros, a de
imigração, a de atividades políticas de estrangeiros, a Lei Orgâ-
nica dos Estados (que estabeleceu o sistema de interventorias) e
os anteprojetos do Código Civil e Comercial; c) reformador das
instituições políticas, o que realizou com a Constituição de 1937,
a qual, se não teve, de fato, legitimidade, uma vez que não foi
adotada em sua plenitude, teve certamente vigência, pois sofreu
logo emendas e muitos de seus dispositivos foram regulamentados.
Toda a legislação de exceção do Estado Novo, realizada através de
decretos-leis, fazia, aliás, menção ao inciso n. o 180, da Constituição
de 1937. Parece-nos inegável que o desempenho deste tríplice
papel por Campos só se tornou possível a partir da Revolução de
1930. Em Parecer emitido no correr da década,40 Campos assim
se refere a ela: "Ou as revoluções entendem de mudar todo o
sistema jurídico e, neste caso, como na Rússia, o novo Estado não
subsiste em continuação do antigo, havendo entre ambos antago-
nismo jurídico total ou quase total, ou se limitam a mudar o

40 Direito constitucional. cit. v. 1, Parecer sobre a Aprovação pela cons-


tituinte estadual, dos atos do Governo do Estado.

Pensamento político brasileiro 79


regime político, deixando mais ou menos intacta a estrutura so-
cial, econômica e jurídica, havendo, assim, nesta hipótese, sim-
ples mudanças de constituição ou apenas alterações ou reformas
na constituição vigente. A revolução brasileira de 1930 não se
pode dizer que haja mudado o regime político, nem mesmo a Cons-
tituição, pois a nova é (Campos referia-se à Constituição de 1934),
nas suas linhas mestras ou na sua substância, apenas uma refor-
ma ou modificação da antiga." E ainda: "Não podia ser mais
expressa, mais cabal e mais completa a vontade, manifestada pela
revolução vitoriosa, de manter a continuidade do sistema jurídico
que encontrou vigente, não apenas no que tocava ao direito co-
mum, ao direito civil, comercial e processual, mas, igualmente,
ao direito político ou à estrutura jurídica do Estado." Este texto
de Campos, no entretanto, foi produzido quando a Assembléia
Constituinte ainda se reunia nos trabalhos para a elaboração da
Carta de 1934. Campos acabara de ser derrotado em sua preten-
são a uma cadeira de deputado-constituinte e estávamos num
daqueles momentos de oscilação no processo de recomposição e
de reajuste dos grupos, estamentose setores sociais dentro da
estrutura de Poder. Campos avaliava, então, a Revolução de 30
a partir desta perspectiva: a reconstitucionalização representava
um recuo histórico. Deixando de lado a parte de verdade que
havia em seu texto acima transcrito, é de se ver que nem bem
decorridos dois ou três anos de vigência do regime constitucional
de 1934, já ele se tornara um seu agressivo crítico, conforme se
pode constatar de sua conferência de setembro de 1935, A polí-
tica e o nosso tempo. 41 E quando se cogitou justamente de dar
um fim ao regime de 34 foi Campos, e não outro, o convocado
para o Ministério da Justiça. É nomeado ministro em setembro
de 1937, elabora a nova Constituição, a que viria implantar o
Estado Novo e a 10 de novembro do mesmo ano o Congresso é
dissolvido. Poucos dias após, em sua primeira entrevista à impren-
sa, Campos afirmava: "Mas a Revolução de 30 só se operou, efe-
tivamente, em 10 de novembro de 1937." 42 E é, assim, exami-
nando agora retrospectivamente as décadas de 30 e 40, que rea-
firmamos nosso ponto de vista, sobre a Revolução de 1930, que
foi esta que afinal lhe permitiu o desempenho daquele tríplice
papel. Se a Revolução de 30 não chegou, segundo pensamos, a
explicitar uma ideologia específica, senão aquela comum e tra-
dicional das nossas elites dirigentes; se não representou, de fato,
mais do que um movimento no interior e dentro dos limites destas

41 In: O Estado Nacional. cito


42 O Estado Nacional. cito p. 36.

80 R.C.P. 1174
elites, referindo-se, assim, sobretudo, ao jogo e ao equilíbrio entre
seus diversos setores e estamentos, também nos parece certo que,
pelo fato de haver quebrado e rompido a mecânica político-insti-
tucional até então vigente, logo alcunhada de República "Velha",
a Revolução de Outubro abriu, efetivamente, como possibilidade,
logo coadjuvada pelos efeitos da depressão econômica mundial, as
portas e as janelas do nosso país para uma fase de modernização
institucional, já alimentada em bojo, como vimos, nas duas dé-
cadas imediatamente anteriores. A Revolução trazia, em potencial,
as bases efetivas para a modernização institucional do país. Ou-
tra coisa não prova, decerto, a perplexidade que logo em seguida
tomou conta de nossos grupos revolucionários, assim como o le-
que de possibilidades na adoção de modelos políticos (e foi a partir
de então que se definiram, entre nós, de forma mais precisa, uma
"esquerda" e uma "direita") e a intensidade do debate ideológico
generalizado ao nível de nossa intelectualidade de então. Tudo isto
comprova, ao mesmo tempo, a profunda inquietação que afligia,
como conjunto, nossas elites dirigentes e a indefinição manifesta
(mas não certamente latente) do movimento revolucionário. A
indefinição manifesta tornara possível a conciliação geral de gru-
pos de vários matizes na trama e na deflagração da Revolução: a
progressiva definição latente operou os ajustes e os reajustes,
assim como as expulsões do bloco revolucionário antes coeso. Fos-
se qual fosse, porém, ao nível teórico, o debate ideológico, desde
os primeiros dias após a Revolução de 30, o Estado autoritário
começara, de modo concreto, sua caminhada no sentido de uma
hegemonia política sobre a Nação. O curto interregno liberal do
regime de 34 nada mais fez, na realidade, do que fornecer argu-
mento e uma base factual para o advento do Estado Novo.

13. Examinemos, dentro deste contexto, as três linhas da atuação


renovadora e reformista de Campos na década de 30 - as bases
da renovação do sistema educacional, do sistema político e do
sistema do País. Na área da Escola, Campos iniciou, como Minis-
tro da Educação, em mensagens carregadas de novos padrões e
valores culturais, seguidas de programas educacionais e pedagó-
gicos, a suscitar a consciência nacional para a necessidade de im-
plantação de uma Escola Nova entre nós e promoveu, efetiva-
mente, a reforma do ensino médio e superior. Adepto de Dewey,
Decroly, Claparede, Kilpatrick, entre outros, coadjuvava aqui os
esforços de Fernando de Azevedo e de outros poucos pedagogos
brasileiros que já desde a década de 20 vinham procurando dis-
seminar os novos princípios educacionais. A filosofia educacional
da Escola Nova, ou Escola para a Vida, através dos textos de

Pensamento político brasileiro 81


Campos, pedia um sistema educacional com métodos de pesquisa
e com objetivos diferentes daqueles da Escola Tradicional, consi-
derada por ela como de natureza retórica e ornamental - uma
escola, segundo os adeptos da Escola Nova, dirigida para a for-
mação de "elites" - o que era duramente criticado pelos fun-
dadores dos novos métodos pedagógicos. Campos secundava-os e
reclamava uma escola que ensinasse a pensar, a inventar e a criar
soluções para a multiplicidade de novos problemas que a com-
plexidade da vida moderna estava a exigir. Recusava uma escola
de dogmas, de fórmulas e de receitas prontas. Dizia ele: "A edu-
cação do homem não se fará jamais mediante o sistema de recep-
tividade passiva... A verdadeira educação concentra o seu in-
teresse antes sobre os processos de aquisição do que sobre o
objeto que eles têm em vista, e a sua preferência tende não para
a transmissão de soluções já feitas, acabadas e formuladas, mas
para as direções do espírito, procurando crear, com os elementos
constitutivos do problema ou da situação de facto, a oportunidade
e o interesse pelo inquérito, a investigação e o trabalho pessoal
em vista da solução própria e adequada e, si possível, individual
e nova. .. A humanidade. .. verifica que começou para ela uma
época de transformações e de mudança. .. A função da escola ...
cresce ainda de vulto com as transformações por que vem pas-
sando a vida contemporânea. .. o mundo vive hoje sob o signal
do econômico, como já viveu em outros tempos sob o signal do
religioso e do político." 43 Assinalando "a crescente complexidade
da vida e, particularmente, dos processos industriaes, com a fa-
cilidade e a rapidez das comunicações", mostrava o "desequilíbrio
existente entre a nossa já intensa vida econômica e a ausência
de uma educação adequada às novas formas de atividades comer-
cial e industrial", concluindo que o nosso ensino era "destituído
de cunho técnico e profissional" sendo mais um "ensino literário
e livresco, sem conexão com as realidades". H Campos explicita-
va: "Economia dirigida é, sobretudo, economia organizada e ra-
cionalizada. .. Dirigir a economia nacional em uma intensa pre-
paração centífica e prática de um corpo de técnicos e de peritos
destinados a orientar as medidas legislativas e as intervenções
do governo é, evidentemente, passar dos mais competentes, que
são os produtores, para o empirismo e as aventuras oficiais o go-
verno da riqueza nacional." 45 Era, como se vê, o núcleo da tec-
nocracia brasileira em formação. Mais tarde, em 1935, quando

4~ Educação e cultura. cito p. 48-50, 125.


44 Educação e cultura. cito p. 50, 111, 128-9.
45 Id. ibid. p. 127.

82 R.C.P. 1/74
Secretário da Educação do Distrito Federal, Campos resumma
sua filosofia educacional no lema "Educação para o que der
e vier" e explicava: "O que se quer é que ela seja uma educação
para problemas, e não para soluções... uma educação para o
que der e vier, como se estivéssemos preparando uma equipe de
aventureiros para uma expedição em que tivessem de consumir
a sua vida, adaptando-se a circunstâncias que não poderíamos
, prever e realizando obras e trabalhos nunca antes realizados pela
raça humana. .. Perdemos as aquisições substanciais do passado
e não constituímos ainda um novo patrimônio." 46 Ao mesmo tem-
po que reclamava o advento da Escola Nova, Campos procurava
"a recuperação dos valores perdidos", os quais identificava com
a "religião", a "família" e a "pátria", assinalando que só "a edu-
cação poderá incumbir-se dessa tarefa".47 Fazendo o elogio do
decreto do ensino religioso do Governo Revolucionário Provisório,
o autor investe contra o liberalismo educacional: "Ao passo que,
sob a bandeira da doutrina liberal e em nome da liberdade de
cátedra, era permitido o ensino das mais extravagantes e destem-
peradas teorias e às escolas se franqueavam todas as superstições
científicas e todas as cosmogonias, teodicéias e teologias raciona-
listas, sob o rótulo fraudulento de ciência, fechavam-se à religião
as portas das escolas como si se tratasse de uma expressão espú-
ria da natureza humana." 48 Percebemos, assim, que no pensa-
mento de Campos o racionalismo, ao mesmo tempo que era in-
vocado favoravelmente para justificar a Escola Nova, era, tam-
bém, negativamente criticado quando se tratava da salvaguarda
dos valores culturais a serem preservados pela modernizaçãô.
Fixa sua posição anticomunista: "Há três laços que reúnem os
homens - a religião, a família e a pátria. Mais do que ninguém o
comunismo sabe disso. Ele combate os três ao mesmo tempo ...
As monstruosas ideologias internacionalistas visam apenas enfra-
quecer a humanidade no homem para transformá-lo mais facil-
mente em animal de um rebanho miserável, tangido pela fome e
pelo medo... Onde se rompem os vínculos, começa o reino da
morte e não o da liberdade e da justiça." 49 Mais tarde, em um
depoimento sobre Campos, Abgar Renault revelaria: "Lembra-me
que, em 1935. .. um estudo sobre a cidade universitária de Madri
arrancava-lhe (a Campos) este comentário: "No mundo de hoje,

46 Id. ibid. p. 6, 7.
47 Id. ibid. p. 153, 154.
48 Id. ibid. p. 150.
49 Educação e cultura. cit. p. 154, 161.

Pensamento político brasileiro 83


as grandes concentrações de estudantes constituem erro grave:
dificultarão a administração, lançarão em perigo a disciplina e
passarão rapidamente a focos da rebeldia e agitação." 50

14. Na área da Política, seus principais textos nesta década estão


reunidos no volume O Estado Nacional - sua estrutura, seu con-
teúdo ideológico, publicado em 1940 e também, naturalmente, a
Constituição de 1937. Aqueles textos foram produzidos por Cam-
dos quando ele ocupava a Secretaria da Educação do Distrito Fe-
deral (1935-1937) e o Ministério da Justiça, ao implantar o Estado
Novo, que veio por suas mãos (1937-1942), no que se refere à
sua montagem institucional. São, portanto, textos de um ideólogo
no exercício de funções do Poder. É o que diferencia, a nosso
ver, qualitativamente, a obra de Campos daquela de Alberto Tôr-
res, por exemplo, que formulou seus principais estudos na situa-
ção de Ministro aposentado, a partir, portanto, de uma perspec-
ti.va "de fora" do aparelho estatal e porisso mesmo colocados a
título de "sugestões à Nação". Mesmo a obra de Oliveira Viana,
ressalvada aquela produzida de 1932 a 1940, quando ele exerceu,
com destaque, as funções de consultor jurídico do Ministério do
Trabalho, poderia mesmo ser considerada a de um "estudioso"
de nossos problemas, e, portanto, um tanto ou quanto gratuita.
O que não significa, certamente, que não seja de importância para
a formulação de nossa ideologia política autoritária. De qualquer
forma, não se trata, evidentemente, de avaliar qualitativamente
a obra destes autores em vista da posição que ocupavam na es-
trutura de Poder, mas tão-somente de assinalar as diferenças,
para uma possível correlação. O fato é que, em Campos, o teórico
era ao mesmo tempo o político e vice-versa. Em 1931, logo após
a Revolução e exercendo já o Ministério da Educação e Saúde,
ele intentara fundar, em Minas, a Legião de Outubro, sem êxito.
Tratava-se de uma organização de tipo paramilitar - os "camisas
caquis" - nos moldes das milícias nacional-socialistas e fas-
cistas, 51 tendo mesmo sido realizado um desfile na capital mi-

50 Renault, Abgar. In: Campos, Francisco. Digesto Econômico, 215, p. 17,


set./out. 1970.
51 Não encontramos nenhum texto de Campos, ao longo de toda a sua
obra, em que ele se reconhecesse expressamente adepto do fascismo ou
do nacional-socialismo, mesmo na década de 30. Nem mesmo o salazarismo
é referido. Como se verá, ele sempre há de se referir à democracia como
modelo ideal de regime político, se bem que sempre se declarando decidi-
damente antiliberal. Suas críticas ao Estado liberal, até 1945, foram inva-
riavelmente virulentas e sarcásticas. O que expressamente ele fazia era
postular uma democracia "de novo tipo". Durante a II Guerra Mundial,
já em 1942, declara-se contrário à Alemanha nazista, defendendo nossa

84 R.C.P. 1/74
neira, com a presença do então Governador do Estado, Olegário
Maciel: o objetivo declarado da Legião de Outubro era o de de-
fender e consolidar os princípios da Revolução de 30 e dar com-
bate aos seus inimigos, os quais, segundo o Manifesto da Legião,
eram três: "inimigos oriundos do velho regime (os governadores
depostos, os aderentes hipócritas e os viciados e corruptos de toda
a espécie), inimigos existentes no seio da própria revolução (os
revolucionários sem convicção e os revolucionários preguiçosos e
céticos) e inimigos de origem externa (todos os propagandistas
pregoeiros e apóstolos de doutrinas políticas exóticas e inaplicá-
veis para a solução de problemas brasileiros." 52 Em 1933, como
vimos, com a reconstitucionalização do país, Campos candidata-
se à Câmara Federal, por Minas, mas não se elege. Durante o
curto interregno constitucional exerce as funções de Consultor-
geral da República e de Secretário da Educação e Cultura do
Distrito Federal, e, também, sua cátedra de Filosofia do Direito.
Em 1937 é nomeado Ministro da Justiça, quando elabora a Cons-
tituição que objetivaria institucionalizar politicamente o Estado
Novo, instaurado por um golpe a 10 de novembro daquele mesmo

aliança com os &tados Unidos. Mais tarde, em março de 1945, em entre-


vista onde rompia com o Estado Novo já em sua agonia histórica, afir-
mava: "Poderia haver ao lado ou à sombra da Constituição de 1937 ideo-
logias ou individualidades fascistas. Eram, porém, fascistas frustes, larvados
(no bom sentido latino) ou inacabados, sem o fundo das grandes culturas
históricas, cujo espírito os autênticos fascistas europeus haviam traído, assi-
milando o seu aspecto técnico e dinâmico e esquecendo os seus valores de
sentido e direção. Mas a Constituição de 1937 não é fascista, nem é fas-
cista a ditadura cujos fundamentos são falsamente imputados à Constituição.
O nosso regime, de 1937 até hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal,
sem o dinamismo característico das ditaduras fascistas ou uma ditadura nos
moldes clássicos das ditaduras sul-americanas" (Entrevista a O Jornal, 3 de
março de 1945). Na mesma entrevista ainda, criticando o Ato Adicional
que vinha de ser decretado, dizia: "A tese implícita no Ato Adicional é
que o Poder Constitucional, ao invés de residir no povo, reside no chefe
do Governo. Ora, essa tese é o fundamento do regime totalitário e o pri-
meiro postulado desse regime. Aqui está, por exemplo, o constitucionalista
oficial da Alemanha nazista, o Professor Karlreutter. Eis o que ele diz a
propósito de Constituição: 'No &tado de Chefe, ou no &tado totalitário,
a Constituição é a vontade do Fuehrer. Todo o ato do Fuehrer relativo à
estrutura do &tado é um Ato Constitucional.' &te é, precisamente, o
postulado no qual se funda o Ato Adicional" (entrevista citada). Recente-
mente, no entanto, Plínio Salgado, que também nunca admitiu que a Ação
Integralista Brasileira, na década de 30, fosse um movimento fascista, re-
ferindo-se à Legião de Outubro, de 1931, dizia: "Não tardou que, em Minas,
fizesse a sua entrada em cena o fascismo brasileiro, dos camisas cáqui,
chefiados diretamente pelo Governador Maciel" (Diário do Congresso Nacio-
nal, seção 1, p. 4.164, 11 out. 1972).
~2 Silva, Hélio. 1931 - Os tenentes no poder. 1966. p. 156.

Pensamento político brasileiro 85


ano. Campos é convocado, de fato, expressamente para realizar
a montagem política e jurídica do Estado Novo o que, na reali-
dade, efetiva. Assim sintetizamos suas idéias políticas na década
de 30: a) uma visão apocalíptica daquele período histórico: 53
"Esse mundo está mudando à nossa vista, e mudando sem nenhu-
ma atenção para com as nossas idéias e os nossos desejos. Nele
a nossa geração não encontra resposta satisfatória às questões
que aprendeu a formular, nem quadram com as soluções que
lhe foram ensinadas. .. Os valores consagrados foram postos em
dúvida, sem que se fizesse a sua substituição por outros valo-
res. .. (uma) situação que muda segundo uma razão que ainda
não conseguimos fixar. .. O que chamamos de época de transição
é exatamente esta época profundamente trágica ... Nunca falhou
em tão grande escala a confiança humana na coerência do uni-
verso do pensamento e do universo da ação"; 54 alude ao "de-
mônio do tempo". 55 " ••• desarrumamos o sistema de valores que
constituía a nossa herança espiritual"; 56 b) uma visão da socie-
dade moderna como "sociedade de massas": "O estado de massa
gera a mentalidade de massa ... O indivíduo não é uma perso-
nalidade espiritual, mas uma realidade gruPal' partidária ou na-
cional. .. A vida política, como a vida moral, é do domínio da
irracionalidade e da ininteligibilidade ... Somente o apelo às forças
irracionais ou às formas elementares de solidariedade humana tor-
nará possível a integração total das massas humanas em regime
de Estado ... O mito é o meio pelo qual se procura disciplinar e
utilizar essas forças desencadeadas... Quem quiser saber qual
o processo pelo qual se formam efetivamente, hoje em dia, as
decisões políticas, contemple a massa alemã, medusada sob a
ação carismática do Fuehrer"; 57 c) uma visão de Estado moder-
no como Estado autoritário e antiliberal: "Os Estados autori-
tários não são criação arbitrária de um reduzido número de indi-
víduos: resultam, ao contrário, da própria presença das massas ...
A entrada das massas no cenário político. .. traduz-se... pelo di-

53 Sugerimos aqui que um estudo do pensamento político de Campos, já


não mais em seu aspecto histórico, mas sim ideológico, deveria partir da
constante dualidade realismo-ceticismo de sua "visão de mundo". Cam-
pos, neste sentido, parece-nos filosoficamente cético porque politicamente
"realista", dentro de sua perspectiva de classe no poder. E sua "visão
apocalíptica" seria justamente um resultado, a unidade daquela dualidade
ideológica.
1)4 O Estado Nacional. cito p. 3, 4, 5, 6 e 7.
55 Ver nota 54.
56 Ver nota 54.
57 O Estado Nacional. cito p. 13, 14, 15, 29.

86 R.C.P. 1/74
vórcio, hoje confessado, entre a democracia e o liberalismo ... O
clima das massas não obedece às regras do jogo parlamentar e
desconhece as premissas racionalistas de liberalismo... As deci-
sões políticas fundamentais são declaradas tabu e integralmente
subtraídas ao princípio da livre discussão. O sistema constitucio-
nal é dotado de um novo dogma, que consiste em pressupor, acima
da constituição escrita, uma constituição não escrita, na qual se
contém a regra fundamental de que os direitos de liberdade são
concedidos sob a reserva de se não envolverem no seu exercício
os dogmas básicos ou as decisões constitucionais à substância do
regime ... A conseqüência do desdobramento desse processo dia-
lético será, por força, a transformação da democracia, de regime
relativista e liberal, em estado integral ou totalitário. .. A den-
sidade e a extensão da área de Governo torna cada vez mais
inacessíveis à opinião os problemas do Governo .. , As formas par-
lamentares da vida política são hoje resíduos destituídos de qual-
quer conteúdo ou significação espirituaL.. O que o Estado to-
talitário realiza é - mediante o emprego da violência, que não
obedece, como nos Estados democráticos, a métodos jurídicos nem
à atenuação feminina da chicana forense - a eliminação das
formas exteriores ou ostensivas de tensão política... O sufrágio
universal, a representação direta, o voto secreto e proporcional,
a duração rápida do mandato presidencial foram meios impró-
prios, senão funestos aos ideais democráticos .. , A linguagem po-
lítica do liberalismo só tem um conteúdo de significação didática,
ou onde reinam os professores, cuja função é conjugar o presente
e o futuro nos tempos do pretérito. Para as decisões políticas
uma sala de parlamento tem hoje a mesma importância que uma
sala de museu .. , Ora, a máquina democrática não tem nenhuma
relação com o ideal democrático. A máquina democrática pode
produzir e tem, efetivamente, produzido o contrário da democra-
cia ou do ideal democrático. .. O regime político das massas é o
da ditadura .. , Não há hoje um povo que não clame por um Cé-
sar"; 58 d) uma apologia das elites, vistas como agentes da His-
tória: "Uma nação vale o que valem as suas elites"; 59 "As elites
políticas, se querem sobreviver, devem participar das preocupa-
ções quotidianas do povo... Da sua inteligente solução depen-
derá o futuro das nossas instituições políticas, o regime de ordem
e de liberdade. .. Já começam a apontar no horizonte, carregadas
na crista das agitações populares, as novas elites, ainda rescen-

58 O Estado Nacional. cito p. 17, 21, 23, 27, 28, 30, 75, 77, 222.
59 Pela civilização mineira. cito p. 72.

Pensamento político brasileiro 87


dendo ao cheiro da terra e ao suor do povo;" 60 "As transforma-
ções não se operaram pela ação da mentalidade primitiva das
multidões e dos seus líderes, mas pela influência das ciências e
das artes, filósofos, pesquisadores, cientistas, engenheiros, artis-
tas .. , As forças silenciosas e profundas continuam a atuar en-
quanto os líderes e as multidões fanáticas figuram de criadores
de história." 61 A possível falência do Estado Novo é assim ante-
vista por Campos: "Si, apesar disto, o ideal democrático não se
realizar entre nós em medida maior do que no passado, o mal
não estará no regime, mas nos homens incumbidos de operá-lo." 62

15. Como Ministro da Justiça, Campos procura definir ideolo-


gicamente o Estado Novo, que situa eqüidistante dos "extremos":
"O Estado Novo não se filia, com efeito, a nenhuma ideologia exó-
tica. É uma criação nacional, eqüidistante da licença demogógica
e da compressão autocrática, procurando conciliar o clima liberal,
específico da América e as duras contingências da vida contem-
porânea, cheia de problemas e de riscos e varrida de ondas de
inquietação e de desordem ... Nem o indivíduo se opõe ao Estado,
no velho conflito, que degenera freqüentemente em agitaçõs de-
magógicas da concepção liberal clássica, nem o Estado o reduz
à posição de escravo segundo algumas fórmulas extremadas dos
tempos modernos ... Nem o exagero dos regimes totalitários nem
a criminosa negligência dos regimes puramente liberais." 63 Cam-
pos procura, também, apresentar o Estado Novo como uma decor-
rência histórica necessária da Revolução de 1930 e ressalta a "bra-
silidade" do novo regime: "O 10 de novembro foi o elo final de
uma longa cadeia de experiências e de acontecimentos, de ten-
tativas e de aproximações .. , a Revolução de 30 só se operou, efe-
tivamente, em 10 de novembro de 1937;" 6~ "O 10 de novembro ...
apenas consagrou o sentido das realidades brasileiras. Aceitou,
exprimiu e fortaleceu, defendendo-o (o País) contra desvios pe-
rigosos. .. A ideologia do novo regime é extraída das realidades
brasileiras. .. Sendo autoritário, por definição e por conteúdo, o
Estado Novo não contraria, entretanto, a índole brasileira ... Não
criamos, porém, do nada o novo regime. Conservamos e desenvol-
vemos o que havia de bom no velho Brasil, no Brasil imperial

60 Problemas cruciais da economia brasileira In: Digesto Econômico,


maio 1954.
61 Educação e cultura 1940. cit. p. 172,176.
62 O Estado Nacional. cit. p. 80.
63 O Estado Nacional. 1940. cit. p. 71, 81, 100, 147.
64 Id. ibid. p. 229, 36.

88 R.C.P. 1174
e no Brasil republicano. .. o clima de benignidade, contrário a
todos os extremos, o equilíbrio, a modéstia. .. o clima jurídico ...
A Constituição (de 1937) atende às realidades do Brasil. Atende
de tal maneira que se diria que, no Brasil, toda vez que se ten··
tava fundar um governo de verdade, as tentativas de governar
vinham sendo feitas nas linhas da atual Constituição"; 65 Campos
definia o Estado Novo em tennos de uma democracia não-liberal:
"É desnecessário insistir em que o Estado brasileiro, sendo de-
mocrático, é também autoritário"; 66 reivindicava um novo con-
ceito de democracia - que deveria ser "substantiva" por oposição
ao sentido liberal de democracia que seria "fonnal"; queria uma
democracia que "articulasse" o País - as regiões, as classes so-
ciais, os grupos e as facções - e não uma democracia "desarti-
culada" como entendia ser a democracia liberal; ambicionava uma
democracia "nacional" e não uma democracia de "separatismo"
e conflituosa, como seria aquela das autonomias regionalistas, dos
partidos políticos, dos debates parlamentares, das greves sindicais
e do egoísmo das associações profissionais deixados ao sabor de
seus próprios interesses particularistas, como entendia que o Es-
tado liberal fazia. Todos estes grupos e interesses seriam retirados
da órbita de uma composição contraditória e individualista onde
o liberalismo os colocara, para serem integrados, segundo sua
concepção autoritária, dentro do Estado e pelo Estado. Campos
pleiteava o Estado corporativo, que deveria, confonne mencio-
nava, ser progressivamente implantado entre nós: "A nova Cons-
tituição (a de 1937) é profundamente democrática. Aliás, a ex-
pressão democrática... não tem um conteúdo definido, ou não
conota valores eternos... A inauguração de uma nova era revo-
lucionária no mundo encontra a sua explicação precisamente no
fato de haverem as instituições democráticas adquirido um cará-
ter exclusivamente fonnal e mecânico, passando a servir, precisa-
mente, fins opostos ao ideal democrático. .. O liberalismo político
e econômico conduz ao comunismo .. , o Estado brasileiro organi-
zará a economia nacional em linhas corporativas." Enquanto a
democracia de partidos seria uma "guerra civil organizada e co-
dificada", o Estado Novo representaria a "estabilidade institucio-
nal", a "harmonia das classes sociais" e a "racionalidade adminis-
trativa".67 O Estado Novo seria um Estado forte, intervencio-
nista: "Para assegurar aos homens o gozo dos novos direitos, o
Estado precisa de exercer de modo efetivo o controle de todas as

65 O Estado nacional. cito p. 36, 68, 71, 73, 221, 228, 230.
66 Id. ibid. p. 8I.
67 Id. ibid. p. 39, 53, 61, 79, 86.

Pensamento político brasileiro 89


atividades sociaes - a economia, a política, a educação... Só o
Estado forte pode exercer a arbitragem justa .. , Não instituímos
um poder institucional forte, como expressão da soberania nacio-
nal. "68 Campos reclamava o controle da imprensa: "Nem o exa-
gero dos regimes totalitários, nem a criminosa negligência dos
regimes puramente liberais. O nosso dever, do Governo e da im-
prensa, é procurar a linha média... O instrumento mais pode-
roso de Governo não pode ficar à mercê do interesse privado ...
O controle da imprensa, estabelecido pela Constituição, não é,
portanto, um instrumento autocrático." 69 Em decorrência, criou-
se o Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP - para rea-
lizar a política estatal neste setor. Campos define o cesarismo do
novo regime: "O Presidente da República é o centro da nova
organização estatal... O Estado Novo é o Presidente... a pro-
jeção de sua vontade .. , O Estado tem um chefe .. , O povo e o
chefe, eis as duas entidades do regime ... Todos os artifícios, me-
canismos e processos do demoliberalismo tinham por fim impedir
que o povo identificasse, escolhesse ou aclamasse o chefe, isto é,
a autoridade humana e responsável... Somente um Estado de
Chefe pode ser um Estado Nacional: unificar o Estado é unificar
a Nação ... Um chefe, um povo, uma nação: um Estado Nacional
e popular ... Um só governo, um único chefe, um só Exército." 70
Getulio Vargas, para ele, seria o "estupendo condutor de homens",
o "espírito revolucionário", o "construtor, o pacificador, o homem
do destino". 71 E vaticinava: "No nosso tempo, as pátrias estão
em perigo ... A hora não é apenas a do trabalhador, mas também,
e principalmente, a do soldado, a hora da ordem, de atenção e
do silêncio, a hora da vigília, a hora em que a sentinela escuta, vi-
gia e espera." 72

16. A Constituição de 1937, elaborada por Campos, foi outor-


gada ao País antecedida pelos seguintes considerandos: "Aten-
dendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e
social profundamente perturbada por conhecidos fatores de de-
sordem, resultante da crescente agravação dos dissídios partidá-
rios, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar
em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos ...
colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; aten-

68 Id. ibid. p. 56, 148.


69 O Estado Nacional. cit. p. 67, 100.
70 Id. ibid. p. 97, 114, 211, 212, 213, 214.
7l Id. ibid. p. 233.
72 Id. ibid. p. 256, 257.

90 R.C.P. 1/74
dendo ao estado de apreensão criado no País pela infiltração co-
munista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda,
exigindo remédios de caráter radical e permanente; atendendo a
que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de
meios normais de presunção e de defesa da paz, da segurança e
do bem-estar do povo ... " As suas principais "linhas de força",
segundo entendemos, poderiam assim ser resumidas: a) preemi-
nência da União Federal sobre os estados e os municípios; b)
preeminência do Poder Executivo sobre os demais poderes do Es-
tado; c) preeminência dos interesses do Estado sobre os interesses
dos indivíduos e das associações intermédias. Esta hierarquia po-
lítica estruturou, juridicamente, a Constituição. O Poder Legis-
lativo nela é exercido simultaneamente por três órgãos: a) o Pre-
sidente da República; b) o Parlamento - Câmara dos Deputados
e Conselho Federal; c) o Conselho da Economia Nacional, en-
carregado de dar uma estrutura corporativa ao nosso sistema eco-
nômico. Todos estes órgãos - o Presidente, o Parlamento e o
Conselho da Economia Nacional - eram constituídos pelo voto
indireto. A prevalência da União sobre os estados-membros e os
municípios é completa. Os prefeitos seriam nomeados pelos Go-
vernadores de Estados e estes pelo Presidente da República. Era,
aliás, a tese sustentada por Campos, como vimos, desde o início
da década de 20, quando deputado na Assembléia mineira. Du-
rante os oito anos de Estado Novo, este foi o regime de fato ado-
tado. O Parlamento era bastante limitado em seus poderes: são
reduzidas sua competência e iniciativa legislativas, suas decisões
são submetidas a prazo, torna-se possível sua dissolução pelo Pre-
sidente da República e reduz-se o quantitativo de deputados. Es-
tes últimos nem mesmo faziam parte do Colégio Eleitoral que
elegia o Presidente da República. A organização da Justiça per-
manecia mais ou menos a mesma da Constituição de 1934, mas
já agora vedava-se ao Poder Judiciário conhecer de questões ex-
clusivamente políticas. Esta era outra tese sustentada por Campos
na década de 20, quando deputado federal. Os direitos e garantias
individuais são limitados na medida dos interesses da ordem po-
lítica e social e estabelecia-se a censura prévia da imprensa. Na
ordem econômica, tentava-se um compromisso entre a iniciativa
privada, que era respeitada em seu "poder de criação, de orga-
nização e de invenção", intervindo o Estado somente onde aquela
fosse deficiente e a organização corporativa da economia, de im-
plantação progressiva. A legislação social e trabalhista é consa-
grada no corpo da Constituição proibindo-se as greves. Previa-
se a nacionalização "progressiva das minas, jazidas minerais e
quedas d'água ou outras fontes de energia, assim como das in-

Pensamento político brasileiro 91


dústrias consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou
militar da Nação". Eram criados, no capítulo A defesa do Estado,
o Estado de Emergência e o Estado de Guerra. Durante a vigência
desses estados a Constituição deixaria de vigorar "nas partes in-
dicadas pelo Presidente da República" e os atos então praticados
não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Nas
Disposições Transitórias já se declarava vigente o Estado de Emer-
gência no País, permanecendo sob ele até 1945. Como o artigo
180 autorizava o Presidente da República a expedir decretos-leis
"enquanto não se reunir o Parlamento Nacional" e este, no Es-
todo de Emergência não foi convocado, todo o período do Estado
N ovo foi administrado pelo regime dos decretos-leis. A segurança
nacional é vista, na Constituição, apenas em seu aspecto externo,
de segurança do território nacional e de suas fronteiras. A segu-
rança interna é vista no título "Defesa do Estado" e garantida pelos
"Estados de Emergência e de Guerra", que independiam, aliás,
da autorização do Parlamento. A Constituição de 1937 sofreu al-
gumas emendas e, segundo acreditamos, apesar de não ter tido
legitimidade, teve vigência, conforme assinalamos anteriormente.
Assinale-se, ainda, que Campos considerava uma Constituição
"obra mais prática do que lógica, mais política do que sistemá-
tica" pelo que, segundo ele, não se justificava exigir-se-lhe muita
coerência em sua estrutura. 73

17. "O Estado Novo está construindo um novo Brasil", 74 afir-


mava Campos. E é dentro deste espírito de "construção", de "mon-
tagem" político-institucional do País, que ele empreende a re-
forma dos Códigos. Dizia: "A máquina administrativa deve ser
pronta, capaz e responsável. Organizada para a ação não pode
dispersar-se em movimentos descoordenados, perder-se em per-
plexidade ou desbaratar o tempo e dinheiro, repetindo cada setor
serviços que devem ser concentrados em um só ... Do mesmo modo
que o Governo se organiza em torno do Chefe do Estado, cada
departamento ou setor da administração deve organizar-se em
torno do chefe. Este, o princípio de autoridade e de responsabili-
dade, sem o qual não pode haver governo e administração da
cousa pública. .. O recrutamento do pessoal administrativo deve
obedecer a normas inflexíveis de capacidade e de interesse pú-
blico, não podendo o serviço público ser considerado como re-
serva destinada a alimentar uma incontentável clientela eleito-

73 Direito Constitucional. cit. 1942, v. 1. p. 284.


74 O Estado Nacional. cito p. 215.

92 R.C.P. 1174
tal. I,75 Já anteriormente, no entanto, por volta de 1936, o Go-
verno iniciara os estudos visando à modernização do serviço pú-
blico, confiando-os a uma Comissão, de onde surgiu, efetivamente,
dois anos mais tarde, o Departamento Administrativo do Ser-
viço Público - DASP - ao qual se refere, também, a Constituição
de 1937. Onde realmente a atuação direta de Campos fez-se sen-
tir sobretudo foi na reforma dos códigos e da legislação, se bem
que àquela época o início efetivo, ainda um tanto inexpressivo,
das atividades de planejamento, não contou com a sua participa-
ção. Nada encontramos que comprovasse a presença de Campos
na elaboração do "Plano de reerguimento econômico e de apare-
lhamento material" do País, visando as indústrias do ferro, do aço
e do petróleo, mas confessamos que a nossa pesquisa aí foi bas-
tante ligeira. Parece-nos que o planejamento durante o Estado
Novo ficou afeto ao Ministério da Fazenda e, talvez, às Forças
Armadas. Da mesma forma a legislação social e trabalhista, ini-
ciada entre nós ainda nos anos 10, de forma esporádica, e que
somente viera a merecer um tratamento político e jurídico siste-
matizado com a Revolução de 1930 e durante a década que então
se abria, não teria contado com a participação efetiva de Campos,
tendo aí se notabilizado um outro autor de renome no período,
Oliveira Viana. A Constituição de 1937, como dissemos, incorpora
aquela legislação. Também Campos assinala a sua importância:
"Só o monumento das leis sociaes, que deram composição orga-
nica e coesão nacional aos elementos de produção e de trabalho,
basta para atestar a densidade do seu animo construtivo." 76
(Referia-se ao Estado Novo.) A reforma dos Códigos e da legis-
lação fora, também reivindicação da primeira hora da Revolução
de 30. O decreto n. 19 459, de dezembro daquele ano, subscrito
então pelo próprio Campos, já instituía uma Comissão Legislativa
"para elaborar os projetos de revisão ou reforma da legislação
civil, comercial, penal, processual, da justiça federal" entre ou-
tras atribuições. 77 Citando, sobretudo, como fontes de inspiração
doutrinária, os juristas norte-americanos e italianos (os primeiros
estavam então envolvidos com a experiência intervencionista do
New Deal e os segundos, com o fascismo), Campos promove a
reforma de nossos Códigos, dentro das linhas que sugerimos:
a) ênfase na nova posição e funções do Estado na vida social
moderna como árbitro privilegiado de conflitos intra-sociais, como
regulador da vida econômica e como responsável único pela for-
75 Id. ibid. p. 59.
76 O Estado Nacional. cito p. 36.
77 1931 - Os tenentes no poder. cit. p. 370.

Pensamento político brasileiro 93


mulação de políticas nacionais, o que encontrou expressão no
Direito através da chamada concepção de "publicização do direito
privado". Esta posição foi formulada pelas correntes doutrinárias
do positivismo jurídico às quais nos parece indubitável a filiação
de Campos. Ele assinala, aliás, e defende a "concepção publicistica
do processo"78 e diz que "o poder do Estado há de ser imensa-
mente maior do que o poder atrofiado pelo conceito negativo de
democracia do século XIX". 79 E também: "Aos juízes não será,
em conseqüência, permitido, a pretexto de interpretação constitu-
cional, decretar como única legítima a sua filosofia social ou a
sua concepção do mundo, desde que essa filosofia ou concepção
obstrua os desígnios econômicos, políticos ou sociais do Governo,
em benefício da Nação"; RO "a justiça é o Estado, o Estado é a
justiça"; 81
b) ênfase no "clima das massas", que caracterizaria os "tempos
modernos", o que resultava, segundo Campos, na substituição da
concepção "duelística" do processo pela concepção "autoritária":
A concepção do processo como instrumento de luta entre parti-
culares, haveria de substituir-se a concepção do processo como ins-
trumento de investigação da verdade e de distribuição da justi-
ça .. , a concepção autoritária do processo... Essa reforma do
processo, destinada a pôr sob a guarda do Estado a administração
da justiça, subtraindo-a à discrição dos interessados, tem um sen-
tido altamente popular"; 82 "Somente a intervenção ativa do Es-
tado no processo pode remover as causas da injustiça"; 83 "O re-
gime instituído em 10 de novembro de 1937 consistiu na restau-
ração da autoridade e do caráter popular do Estado. O Estado
caminha para o povo e, no sentido de garantir-lhe o gozo dos bens
materiais e espirituais... teve que reforçar a sua autoridade, a
fim de intervir de maneira eficaz em todos os domínios que vies-
sem a revestir-se de caráter público." 84
c) ênfase no novo sentido "popular" e "estatal" do Direito, im-
plicando isto na racionalização e na simplificação de seus ins-
trumentos e de seus métodos, dentro do objetivo de "justiça

78 O Estado Nacional. cit. p. 181.


79 Id. ibid. p. 56.
80 Id. ibid. p. 57.
81 Id. ibid. p. 180.
82 O Estado Nacional. cit. p. 177.
ka Id. ibid. p. 178.
~4 Id. ibid. p. 180.

94 R.C.P. 1/74
rápida e barata"; "de uma lado, a nova ordem política reclamava
um instrumento mais popular e mais eficiente para distribuição
da justiça; de outro, a própria ciência do processo, modernizada
em inúmeros países pela legislação e pela doutrina, exigia que se
atualizasse o confuso e obsoleto corpo de normas que, variando
de Estado para Estado, regia a aplicação da lei entre nós". 85

Dentro destas linhas de orientação Campos realiza a reforma


do Código de Processo Civil, do Código do Processo Penal, do Có-
digo Penal, da Lei do Júri, a Lei dos serviços da Justiça Federal,
a Lei Orgânica do Ministério Público Federal, a Lei de Segurança
e a reorganização do Tribunal de Segurança, a Lei de Contraven-
ções, a Lei de Sociedade Anônima, a de loteamento de terrenos,
as leis de economia popular, a de nacionalidade, a de extradição
e de expulsão de estrangeiros, a de imigração, a das atividades po-
líticas de estrangeiros, assim como a Lei de Dissolução dos Par-
tidos Políticos 86 e a Lei Orgânica dos Estados. A reforma proces-
sual tinha como meta a "unidade política do país" 87 contra a ten-
dência descentralízadora da Constituição de 1891 e que, apesar
de um ensaio de corrigenda na Constituição de 1934, ali ficaria
"letra morta": "A Constituição de 10 de novembro veio tornar
possível, fortalecendo o poder central, a realização da unidade
processual, e, para dar-lhe maior expressão e coerência, unificou
também a Justiça." 88 Com a Lei Orgânica dos Estados (Decreto-
lei n. o 1202) efetuou-se a centralização política, administrativa
e financeira do País. Em parecer sobre o comércio interestadual
Campos defendia a competência da União e não dos Estados para
legislar sobre o comércio entre eles, citando a Constituição de
1937 que, em seu artigo 25, proibia tal prática. Segundo Campos
e o sentido da legislação "estadonovista" o território nacional era
considerado como uma unidade econômica, comercial e alfande-
gária e somente o Poder Central poderia regular matéria perti-
nente. 89 A extinção do regime de autonomia estadual, conforme
consagrado no federalismo da República Velha, que começara a
ser abalado com a Revolução de 30, encontra no Estado Novo sua
radicalização mais completa. Diz Campos: "A União, ao cabo de

8~ Id. ibid. p. 176.


86 "Os partidos políticos e as organizações para partidárias não tinham ou-
tro fim senão o de satisfazer os apetites das facções regionalistas indo até
ao sacrifício da segurança nacional". O Estado Nacional. cit. p. 125.
87 O Estado Nacional. cito p. 198.
88 O Estado Nacional. cito p. 198.

89 Direito Constitucional. cito V. 1.

Pensamento político brasileiro 95


meio século de usurpações, teve de recuperar-se, de volver a si
mesma, para que não mais ficasse à mercê das ambições e dos im-
perialismos regionalistas. .. A Lei Orgânica dos Estados teve por
fim organizar a administração dos estados e dos municípios den-
tro do Estado nacional. Para isto, o Poder Central criou, em cada
parcela da Nação, um sistema de governo a ele diretamente su-
bordinado. "90 Não seria, afinal, o ponto de vista que Alberto
Tôrres defendera e pleiteara, ainda nos anos lO? E que Oliveira
Viana vinha sustentando, desde o início da década de 20, junta-
mente com o próprio Campos? A reforma da legislação penal,
processual penal e das contravenções, obedeceu ao critério de
maior repressão e de maior restrição aos direitos e garantias in-
dividuais, assim como ao da ampliação dos fatos considerados co-
mo delituosos: "impunha-se o seu aperfeiçoamento ao objetivo de
maior facilidade e energia de ação repressiva do Estado... O
princípio cardeal. .. é o da defesa social .. , O futuro Código, ori-
entado pelo propósito de uma efetiva defesa social, criará, pela
disciplina das penas e das medidas de segurança, um aparelha-
mento muito rigoroso para a repressão dos crimes... Assim, os
chamados crimes político-sociais, cuja disciplina está sujeita a
uma adaptação mais freqüente às necessidades de uma repressão
que varia com a diversidade dos meios de agressão, não farão
parte do corpo do Código, continuando a ser regulados à parte
(isto é, pela Lei de Segurança Nacional) ... O Código teria for-
çosamente de sofrer - a influência dos novos rumos do Direito.
O indivíduo não é mais, em nossos dias, o objeto capital, e quase
único, da proteção da lei e do Estado, os corpos sociais havendo-
se tornado o principal sujeito de direitos." 91 No que se refere
às novas leis de segurança, afirmava: "Podemos dizer que o
problema da ordem deixou, graças a um modelar aparelho re-
pressivo - sem excessos, mas sem desfalecimentos - de ser o
fantasma que tolhia quaisquer iniciativas proveitosas para o País.
Os crimes contra o Estado são punidos com rapidez. .. Como es-
tamos longe do tempo em que processos desta natureza levavam
três, cinco, 10 anos para resolver-se!" 92 A reforma da legislação
civil e processual civil foi realizada apenas quanto ao último, fi-
cando a do Código Civil em anteprojeto. Toda ela foi orientada
no sentido de um reacondicionamento do feitio anterior, de cunho
individualista. "A feição acentuadamente individualista do Código
não se amolda aos interesses da família e da ordem econômica,

90 O Estado N aciona!. cito p. 114, 115.


91 O Estado N aciona!. cito p. 128, 132, 153, 154, 155.
92 Id. ido p. 126.

96 R.C.P. 1/74
protegidos pelo Estado ... Na ordem econômica, a liberdade con-
tratual precisa harmonizar-se com o princípio da solidariedade
social, com a proteção devida ao trabalhador, com os interesses da
economia popular, com a preocupação de reprimir a usura ...
Urge abolir semelhante critério de primado do interesse do in-
divíduo sobre o da tutela social." 93 Sobre a nova Lei do Júri,
assim se definia: "Privado de sua antiga soberania, que redun-
dava, na prática, numa sistemática e alarmante indulgência para
com os réus, o júri está, agora, integrado na consciência de suas
graves responsabilidades e reabilitado na confiança geral." 94 A
legislação econômica visava sobretudo o combate e a repressão à
usura, assim como aos chamados crimes contra a economia po-
pular (retenção e "atravessamento" de gêneros de primeira ne-
cessidade); 95 "A economia, de campo interdito à ação do Estado, e
entregue ao livre jogo da iniciativa privada e ao fluxo e refluxo da
oferta e da procura, passou a ser um terreno em que o Estado atua,
efetivamente, como propulsor, e, principalmente, regulador dos in-
teresses e das influências individuais." 96 O capitalismo era esti-
tnulado: "É necessário dar, aos capitais brasileiros, facilidades pa-
ra mobilizar-se com segurança, principalmente aplicar-se às in-
dústrias nacionais que a Constituição lhes reserva." 97 O naciona-
lismo econômico é enfatizado, ao tratar do Código de Aguas e Mi-
nas: "Nós conhecemos o número e a força dos interesses que se
movimentam em torno das riquezas nacionais e que nos cumpre re-
duzir aos seus limites legítimos se quisermos continuar como donos
desta terra." 98 E quanto ao petróleo: "O abastecimento do combus-
tível ... não podia continuar à mercê das competições e dos acordos
privados, que não tinham outro fim senão auferir o maior lucro
no menor tempo possível .. , Por outro lado, as pesquisas do com-
bustível nacional .. , estavam sendo inexplicavelmente prejudica~
das. "99 A Lei de Fronteiras merecia a seguinte justificativa:
" . .. no Brasil é preciso criar o que poderemos chamar de cons-
ciência da fronteira, isto é, fazer com que a fronteira deixe de
constituir somente um traço no mapa, para ser um sentimento,
alguma coisa de orgânico e inseparável da Nação. É preciso po-
voar a fronteira, impregná.la de brasilidade, vigiá.la ... " 100

93 Id. ido p.
128, 166.
94 Id. ido p.
130.
95 Id. ido p.
126, 127.
96 Id. ido p.
83.
97 Id. ido p.
156.
98 O Estado N acion.a.l. cito p. 140.
99 Id. ido p. 141.
100 Id. ido p. 121.

Pensamento político bTasileiTo 97


18. O Estado Novo, assim, colocara diante de si, como seu "ob-
jetivo histórico", as seguintes metas, conforme sugerimos: a) a
modernização e a uniformização do aparato judiciário e repressivo;
b) a modernização, a racionalização e a uniformização, à escala
nacional, do serviço público, assim como das atividades de plane-
jamento e de organização e métodos administrativos; c) o forta-
lecimento do Poder Central através da concentração da iniciativa,
formulação, execução e controle de políticas nacionais e regionais,
no Executivo Federal; uniformizaram-se e padronizaram-se a le-
gislação processual - civil e penal, assim como a financeira, à
escala nacional; d) a regulamentação de um amplo intervencio-
nismo estatal no conjunto da vida nacional, funcionando aí o Es-
tado como árbitro supremo, coordenador geral e propulsor da
economia capitalista do país; e) a regulamentação e a compo-
sição das forças sociais da produção econômica nacional através
da oficialização e burocratização dos sindicatos e da legislação so-
cial e trabalhista; f) lançamento das bases de uma política de
industrialização do país nos setores básicos do carvão, do ferro,
do aço, do petróleo e da energia elétrica; g) a regulamentação
da vida urbana dos grandes centros industriais e comerciais do
país; h) a criação de uma "consciência de fronteiras", visando
a ocupação de todo o território brasileiro; i) a nacionalização
do trabalho e das riquezas do subsolo, assim como das indústrias
essenciais; j) a eliminação das instituições políticas liberais, tais
como o sufrágio universal, o sistema de partidos, a redução do
Parlamento a um "departamento administrativo" do Estado, a res-
trição às liberdades e garantias individuais, a censura da imprensa.

19. Campos, por volta de 1936, dissera: "O Brasil está exigindo,
no clima aquecido pela passagem do bólide moral das revoluções,
uma redefinição em termos de cultura, de vontade, de governo
e de justiça."IOI Alguns anos depois, já durante o Estado Novo,
afirmava que este teria "construído um Estado", suscitado no
país "uma consciência nacional". Teria unificado "uma Nação
dividida", colocado um ponto final "às lutas econômicas" e "im-
posto silêncio à querela dos partidos, empenhados em quebrar a
unidade do Estado e, por conseguinte, a unidade do povo e da
Nação." 102

101 O Estado Nacional. cit. p. 246.


wz Id. ido p. 215.

98 R.C.P. 1174
20. Terceira Fase - 1945/1968: - afastando-se do Governo
ainda durante o Estado Novo, em 1942, é nomeado representante
do Brasil na Comissão Jurídica Internacional, onde permanece
até 1955. Em março de 1945, em entrevista concedida a O Jornal,
rompe com o Estado Novo, acusa Vargas de ter transformado o
regime em uma ditadura pessoal arbitrária, a exemplo das dita-
duras caudilhescas sul-americanas. Daí para a frente praticamente
se retira da vida política brasileira, retomando sua cátedra de
professor, suas atividades de advogado e jurista e também de fa-
zendeiro em Minas Gerais. Nesta terceira fase surge o volume
de Direito Constitucional, lI, inúmeros outros de Direito (coletâ-
neas de Pareceres), o discurso pronunciado em Ouro Preto nas
comemorações de Tiradentes, em 1953, sob o título de Problemas
cruciais da economia brasileira, a sua conferência Atualidade de
Dom Quixote, de 1949, e sua entrevista ao Correio da Manhã
de agosto de 1962, criticando as reformas de base do Governo João
Goulart, sua entrevista a O Globo, também em 1962, onde se ma-
nifesta sobre a expulsão de Cuba da Organização dos Estados
Americanos e finalmente seu último Parecer, de setembro de
1968, sobre O direito de propriedade e sua garantia em face da
Constituição. Foi também co-autor do Ato Institucional n. 1,
de abril de 1964, o que caracteriza toda a sua produção nesta ter-
ceira fase, na qual não nos deteremos, pelo fato de ultrapassar
o período histórico sob estudo, é a sua visível orientação neolibe-
ral ao lado de seu permanente e tradicional anticomunismo. Dizia,
em 1953: " ... não me refiro a entendimentos e conchavos polí-
ticos, ou à extinção das condições essenciais a uma vida pública
decente, que só poderá manter-se em uma atmosfera de choques
e de controvérsias políticas, por ser da natureza da opinião pú-
blica o de não ser monolítica ou maciça, mas de se compor da
variedade, da diversidade e da multiplicidade das correntes de
opiniões individuais, de grupos e de partidos ... Esta é uma con-
dição essencial ao funcionamento do regime democrático." 103 E
também: "Não se concebe regime democrático ou representativo
em que não haja liberdade de opinião. A liberdade de opinião é
da substância do regime democrático... A liberdade de opinião
não é apenas um conceito político. É um conceito de civilização e
de cultura. Todo o edifício do mundo moderno repousa sobre
este fundamento." 104 Tanto sua produção jurídica quanto seus
textos políticos desta fase enfatizam favoravelmente o liberalismo

l03 Problemas cruciais da economia brasileira. Digesto Econômico, p. 17,


maio 1954.
104 Entrevista a O Jornal, 3 mar. 1945.

Pensamento político brasileiro 99


econômico e político, o constitucionalismo democrático-liberal,
a liberdade de imprensa, a autolimitação, no tempo, dos pe-
ríodos de exceção institucional, etc. Manifesta-se contrário à
Reforma Agrária, a qualquer necessidade de uma política espe-
cificamente voltada para a redistribuição da renda, nega qualquer
processo espoliativo do capital estrangeiro entre nós, assinalando,
ao contrário, sua contribuição histórica positiva para o nosso País.
procura mostrar que o abuso do poder econômico era, de fato,
exercido pelo Estado, ataca o monopólio do petróleo, justamente
porque estatal e vê na inflação o verdadeiro processo espoliativo
e desarticulador de nossa economia e de nossas finanças, atri-
buindo-a "à ignorância, à preguiça, à leviandade, ao delírio de
grandeza, à irresponsabilidade dos nossos homens públicos". 101\
Em seu discurso de Ouro Preto, acima citado, Campos assinala
que a crise da economia brasileira fora causada por um acelerado
e dinâmico processo de urbanização e por um desenvolvimento
industrial vicioso. Daí, a espiral de salários e preços e a inflação,
com sérias conseqüências sociais e políticas. Critica a política
cambial seguida: "Evidencia-se desta maneira que no caso se dá
simplesmente uma transferência de riqueza da economia dos ex-
portadores (agricultores) para a economia dos importadores (co-
merciantes e industriais), sem que resulte para o público a van-
tagem que consistiria em poder adquirir pelos preços do mercado
mundial os artigos essenciais .. ' que ainda não está em condições
de produzir." 1('6 Mantém como critério de análise histórica o
comportamento das elites: "A direção tomada pelo nosso sistema
econômico foi a que lhe imprimiu a vontade dos homens, me-
diante intervenções quase sempre inoportunas ou inadequa-
das. "107 Propõe, como solução para os nossos problemas econô-
micos, a "decisão heróica de restaurar a agricultura" 108 e o "res-
tabelecimento do princípio da livre emprensa e da livre concor-
rência". 109 Parece mesmo advogar o "destino agrícola" do Brasil:
"Devemos levar mais longe a nossa ambição que, neste caso, coin-
cide com o nosso dever de contribuir, como detentores de um
dos maiores patrimônios territoriais do mundo, para aliviar o es-
tado de tensão, que se agrava dia a dia, entre uma população
mundial em crescimento vertiginoso e uma agricultura em que
se fazem sentir de modo cada vez mais acentuado e rendimento

105 Entrevista ao Correio da Manhã, 19 ago. 1962.


106 Problemas cruciais da economia brasileira. cit.
107 Id. ido p. 14.
108 Problemas cruciais da economia brasileira. op. cit. p. 9.
109 Id. ido p. 15.

100 R.C.P. 1/74


decrescente das áreas cultivadas e a diminuição das áreas ainda
em reserva." 110 Campos faz, então, uma apreciação retrospectiva
do Brasil: "Assisti, no curso da minha vida... à passagem do
Brasil de uma semi-idade média ao nível dos países mais pro-
gressistas do mundo ... até aqui 'subsistimos' com honestidade e
decência, embora em grande parte de maneira manifestante pouco
satisfatória para a maioria de nossa população, alimentada, ves-
tida e abrigada em níveis sabidamente marginais, senão quase
ou submarginais." 111 Campos mantém sua "visão apocalíptica"
do mundo e da história quase nos mesmos termos da década de
30: "Continuará a se desenvolver o círculo vicioso de uma espiral
de inflação e de greves. .. até que se anunciam para nós ou para
nossos descendentes 'aqueles tempos terríveis e sem Imperador',
a que aludia o profeta, talvez sentindo a aproximação do nosso
tempo de caos e de catástrofes, de subversão da lei e da justiça
e, sobretudo, da ausência de guias inspirados no amor dos ho-
mens e de Deus." 112 Esta "visão apocalíptica" é transmitida com
nitidez em Atualidade de Dom Quixote (1949), um de seus textos
políticos, ao que nos parece, mais significativos. Valendo-se da
saga quixotesca, Campos enquanto identifica em Sancho Pança
as "massas populares", vê em D. Quixote o Espírito e Ideal domi-
nadores, o guia e o redentor da Humanidade, ambos, herói e massa
jungidos em vínculo milenar. Mostra como este vínculo estava
prestes a romper-se, nos tempos atuais, face à "sinistra mascarada
das revoluções", quando os "seres noturnos", o "mundo subter-
râneo", movidos pela "raiva da destruição" teriam começado já
o "assalto", reinando "em todos os domínios a troca, a confusão,
a desfiguração ou a mistificação dos valores" e que por isso "o
mundo pede uma cruzada." 113 "A emoção é a raiz e a mãe da
razão; dela desabrochou a inteligência" 114 afirma, revelando o seu
romantismo. Sancho estava ameaçadoramente se transformando
no El Coloso, de Goya. Aí Campos lembra que "em D. Quixote,
Sancho encontrou um pólo para as suas emoções tanto mais sa-
tisfatório quanto mais alto e mais eletrizado. Aí se aquietou a
sua natureza, repousou em silêncio o seu destino e naquele pólo
ganhou a força necessária para renunciar de uma só vez às ilusões
e às cobiças que lhe haviam sido inspiradas pela sua pobreza". 115

110 Id. ido p. 13.


111 Id. ido p. 13.
112 Id. ido p. 17.
113 Atualidade de Dom Quixote. cit. p. 63, 64, 65, 66, 69.
114 Id. ido p. 60.
115 Id. ido p. 46.

Pensamento político brasileiro 101


E Campos conclui seu estudo sobre Dom Quixote com palavras
que poderiam talvez ser interpretadas como uma auto-avaliação de
sua própria ideologia, onde a perplexidade, o desalento, a nostal-
gia, a utopia, e o saudosismo ocupariam um lugar de destaque.
A realidade de seus dias, do presente, não teria certamente ou-
tro significado para ele senão o de um potencial perigoso de "fan-
tasias". Somente o passado, que por sua própria condição negava
este presente, é que surgia diante dele como núcleo de esperan-
ças: "Este nosso mundo de hoje, que é como Sancho abandonado
por seu amo, reclama a volta de Dom Quixote, por sentir que
sem ele a sua vida não teria sentido. De todos os lados, sob os
mais diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que
o homem dos nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente es-
pera - é o retorno de D. Quixote." 116

Bibliografia

A doutrina da população. Rio, Typ. do Jornal do Commércio, 1916.


A introdução crítica à Filosofia do Direito. Imprensa Oficial do Estado de
Minas Gerais. 1918.
Opiniões e debates. Belo Horizonte, Editora Ariel, 1921.
Pela civilização mineira. Belo Horizonte. 1930.
Educação e cultura. Liv. José Olympio Editora, 1940.
Antecipações à reforma política. Liv. José Olympio Editora. 1940.
O Estado Nacional. Liv. José Olympio Editora. 1940.
Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937.
Direito constitucional, I. Editora Forense. 1942.
Atualidade de D. Quixote. Publicações da Secretaria da Educação de Mi-
nas Gerais. 1967.
Entrevista a Vanguarda, 14 out. 1942.
Entrevista a O Jornal, 3 mar. 1945.
Entrevista ao Correio da Manhã, 19 ago. 1962.
Entrevista a O Globo, 20 jan. 1962.
Problemas cruciais da economia brasileira. In: Digesto Econômico, maio
1954.
O direito de propriedade e sua garantia em face da Constituição. In: Digesto
Econômico, 1969.

116 Atualidade de D. Quixote. cit. p. 70.

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