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O ESTADO DE NATUREZA EM ROUSSEAU1

THE STATE OF NATURE ON ROUSSEAU

Gislene Santos2

Resumo: Busca-se entender a categoria Natureza Abstract: This paper will discuss the state of nature
no pensamento rousseauniano. Os textos on Rousseau's thought. The texts interpreted and
interpretados e analisados são o Primeiro Discurso,o
analyzed are First Discourse, Second Discourse and
Segundo Discurso e o Contrato Social. Argumenta-
se que Rousseau criou uma própria ideia de The Social Contract. I will argue that Rousseau
natureza, entendida enquanto funções distintas created his own idea of nature. This idea has
entre si: i) a natureza tanto pode ser regra de different functions: i) nature can be both a rule of
comportamento, como conjunto de leis mecânicas;
conduct and a set of mechanical laws; .ii) a human
ii) essência humana, que significa o que o homem
tem de próprio e lhe foi dado antes da História e da essence, that is, what is proper of man and what he
cultura; iii) há a natureza intempestiva que rompeu or she has before History and culture;. iii) untimely
com o estado de letargia do homem primitivo; iv) há nature which broke up with the lethargic state of
ainda as paisagens naturais, belas para serem
the primitive man; iv) natural landscapes with its
contempladas em variadas formas e cores; v) a
natureza enquanto recurso natural no Contrato beautiful colors and shapes; v) nature as a natural
Social. resource in the Social Contract.

Palavras-chave: Natureza, Jean-Jacques Rousseau, Keywords: Nature, Jean-Jacques Rousseau, State of


estado de natureza. Nature.

Introdução Luzes, a lamentar o afastamento do homem em


relação à natureza. Crítico da ciência e da razão,
“Não procuremos perfeição fora da natureza”. tornou-se apologista da natureza. Desiludido com a
“Ó natureza, ó minha mãe! eis-me aqui sob tua degeneração do seu tempo, a construção da boa
guarda.” (Livro XII Confissões) história estaria no reencontro do homem com a
natureza. Opondo-se aos costumes urbanos
Desiludido com a sociedade, afastado dos parisienses, a saída do homem estaria não na
amigos, perseguido, sem moradia certa, somente a cidade, mas no campo. Desconfiado em relação à
natureza poderia trazer-lhe a paz, o refúgio e a arte e ao comércio, valoriza a agricultura como a
tranqüilidade de que tanto precisava. A sociedade única atividade que integralizaria o homem. A
era por demais imperfeita, o homem um natureza está em todas as suas proposições.
degenerado, os amigos, umas raposas. Não seria A palavra natureza entretanto, não é tão
entre os homens que sua boa alma encontraria o simples como se nos aparenta no primeiro
refúgio, mas sob a proteção e o aconchego da momento. Mesmo Rousseau tanto vezes a
natureza. invocando, isso não significa que a natureza tenha
Quando se evoca Jean-Jacques Rousseau, sempre o mesmo sentido em seu pensamento.
de certa maneira sua imagem se configura como o Natureza pode significar muitas coisas ao mesmo
pensador que foi “amigo da natureza” e que se tempo, e coisas opostas. Apenas para ilustrar a
tornou a voz mais vibrante, na França do Século das polivalência da palavra, vejamos algumas definições

1
O presente artigo é uma síntese da dissertação de mestrado A ideia de natureza em Rousseau: introdução a um debate. Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 1998. 162 p.
2
Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Espaço Plural . Ano XII . Nº 25 . 2º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196 11
O Estado de Natureza em Rousseau

de natureza: empregará para entender a ruptura do homem em


relação à natureza, sua entrada na sociedade civil e
A. Princípio que se considera produzir o o programa político presente em Do Contrato
desenvolvimento de um ser, e realizar neste Social.Na primeira seção, apresento o quadro
um determinado tipo. B. Essência de um substancial do Primeiro Discurso (PD), primeiro
gênero, conjunto das propriedades que o
escrito político de Jean-Jacques Rousseau. Na seção
definem. (...). C. (...) tudo o que é inato,
instintivo, espontâneo, (...); opõe-se àquilo
2, o Segundo Discurso (SD),emerge as condições
que é adquirido pela natureza individual históricas para a queda do estado de natureza. Na
ou social; D. Características particulares terceira seção, apresentamos categoricamente o
que distinguem um indivíduo; (...). E. O estado de natureza e finalizamos, quarta seção, com
conjunto de coisas que apresentam uma a natureza invocada em Do Contrato Social.
ordem, que realizam tipos ou se produzem Metodologicamente o Primeiro Discurso (PD), o
segundo leis.(...); F. O conjunto de tudo o Segundo Discurso (SD) e o Contrato Social serão as
que Deus criou. (...)3 fontes textuais documentais analisadas. No
decorrer, entretanto, o leitor perceberá que outras
O imbróglio é grande e nos evidencia o grau obras de Rousseau como Emílio,A Nova Heloísa e os
da dificuldade que é precisarmos uma definição de Devaneios do Caminhante solitário serão
natureza utilizada por Rousseau. Se adotarmos, por referenciados. Mas a força da análise reside sobre
exemplo, a definição c como o único sentido que osseus primeiros escritos.
Rousseau confere à natureza, nosso trabalho estará
fadado ao fracasso. Apesar de Rousseau aparentar
ser um crítico das convenções e dos artifícios e 1. Primeiro Discurso
sentir-se aconchegado e protegido pela natureza,
sua natureza não é nada instintiva. Em o Emílio Quando se lê Rousseau, principalmente os
(1762), livro que trata da educação pela natureza, seus escritos não diretamente políticos5, o que
Rousseau não segue em momento algum essa impressiona é sua necessidade, bem característica
4
terceira concepção . Opta pela quinta, a natureza de sua personalidade, de querer justificar para os
enquanto ordem, lei e regularidades, e para isso ele outros e para si mesmo que fez uma escolha de vida
recusa o sentido de natureza como instintivo e que o difere do seu tempo e do seu lugar. No
espontâneo, sobrepondo-lhe a virtude, mais momento em que se fundamenta a crença e o valor
próxima da definição e. A natureza em Rousseau da razão, Rousseau reverencia o sentimento e a
não é tão natural e plenamente adepta da filosofia contemplação da natureza; enquanto os viajantes
romântica comoà primeira vista nos parece. das Luzes fazem o seu tour pela Europa urbana,
Para o presente artigo temos o compromisso Rousseau peregrina pelos Alpes Suíços (ainda que
de entender mais detalhadamente o signficado que imaginariamente) e exalta os costumes simples
Rousseau atribui à natureza. Com pensador campesinos; no momento em que Paris é a grande
político, Jean-Jacques Rousseau incluiu em suas métropole cutural, Rousseau se isola no L´Ermitage.
reflexões muitas questões que merecem ser Rousseau é um homem de atitudes radicais.
estudadas: o trabalho, a alienação e a educação, Em pleno século em que a literatura romanesca é
entre outros. Mas, nosso recorte aqui será dado considerada marginal, escreve A nova Heloísa, que
aosentido atribuído ao estado de natureza, visto se tornou um dos seus livros mais vendido e lido de
que este estado se constituirá no mais valoroso sua época. Suas agudas críticas à filosofia das Luzes,
recurso histórico e hipotético que Rousseau colocam-nos na difícil posição de classificá-lo:

3
LALANDE, A. (1996). Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia: São Paulo:Ed. Martins Fontes, pp. 720-725.
4
Emílio ou da educação é um tratado que Rousseau elabora sobre como formar um homem para viver em sociedade. Considerando
que para educar um homem é preciso abrigá-lo desde criança, Rousseau inventa um aluno imaginário – Emílio – e um preceptor
(que é o próprio Rousseau). Cabe a esse preceptor acompanhar o menino do nascimento até a sua idade adulta, quando então se
torna homem. É para cumprir tal trajeto que Rousseau estrutura o livro em cinco partes, correspondendo, cada um,
respectivamente, a uma fase da educação do Emílio.
5
Em Rousseau, nada se isola do político; mas tomamos aqui como critério de escritos não políticos os que são essencialmente mais
subjetivistas, ou seja, consideramos as Confissões, o romance A nova Heloísa e os Devaneios do caminhante solitário.
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iluminista ou anti-iluminista? Porém, esta questão e cultural gerada pela ciência, mas contesta a
não pretende enfatizar que Rousseau seja um ciência em seu estatuto epistêmico. “Se nossas
indivíduo hostil e mutilado à modernidade das ciências são inúteis no objeto que se propõem, são
Luzes. Ao contrário, Rousseau não é nenhuma ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem.”
exceção na filosofia das Luzes. Suas reflexões estão (PD, p. 351). Para atingir a verdade, a ciência deve
contidas no ideário iluminista. Invocou em suas passar por fases de muitos erros, e mesmo assim
reflexões a razão e a natureza, mas mesmo nada nos garante que a ciência se aproxime da
aproximando-se desse ideário consolidou sua verve verdade. Sua crítica, apesar de apontar a fragilidade
própria. Concedeu à razão poderes limitados, epistemológica da ciência, é dada ao valor
acrescentando outras faculdades para o incondicional dado à ciência, quando ela, segundo
conhecimento, como o sentimento e a consciência. Rousseau, pode nos levar aos erros e ilusões. Sua
Sua produção efetiva-se na segunda metade do posição é que não se deve incentivar nem
século XVIII, quando, em 1749, a Academia de superestimar o papel da ciência na sociedade, pois
Dijon propõe a seguinte questão como tema de existem, a seu entender, outras possibilidades de
concurso: “O restabelecimento das Ciências e das captar o mundo que não passam somente pela
Artes terá contribuído para aprimorar os costumes?”. ciência e pelos livros. A confiabilidade excessiva no
Rousseau participa e é agraciado em primeiro lugar e, esclarecimento, tão defendida pelos
em 1750, publica o Primeiro Discurso intitulado enciclopedistas, pode levar-nos ao uso abusivo da
Discurso sobre as ciências e as artes. razão, e a razão possui limites: não é tudo que a
Rousseau inicia o seu discurso não razão pode conhecer. É preciso que nos voltemos
criticando de imediato a ciência, mas louvando as para outras faculdades humanas, como o
Luzes, o avanço da razão. Mas, em seguida, ele sentimento e a consciência.
acrescenta que o mais difícil é estudar a si mesmo. Porém, se a sociedade já está tão pervertida
No primeiro momento, temos a impressão de que, é ainda possível, pela imaginação vislumbrar um
de fato, Rousseau está reverenciando o avanço tempo bem distante, quando os homens viviam
destes dois conhecimentos: da ciência e da moral. felizes, pois viviam na simplicidade, dependendo
Mas, à medida que o discurso transcorre, sua tônica apenas da natureza. “Não se pode refletir sobre os
é clamar que o avanço da ciência e das artes não é costumes, sem se comprazer com a lembrança da
acompanhado pelo avanço da moral. Quanto mais imagem da simplicidade dos primeiros tempos.”
avança a ciência, mais a virtude e a moral entram (PD, p. 354). Aqui já se prefigura a noção hipotética
em decadência. Sua resposta à academia de Dijon do estado de natureza que Rousseau utilizaria para
é um peremptório “Não!”. Nem as ciências e opor-se à perversão da sociedade do seu tempo.
tampouco as artes têm contribuído para o Em síntese, neste Primeiro Discurso já se
engrandecimento do homem. A ciência desviou-se encontra a verve temática rousseuaniana: crítica ao
do seu propósito. Em lugar de ser uma busca de desenvolvimento da ciência que ocasionou a
autocompreensão para auxiliar os homens e corrupção dos costumes, a separação do homem da
engrandecer a pátria, tornou-se um exercício de natureza e sua conseqüente alienação.
vaidades, uma ostentação de luxo, tornando-se
uma atividade ociosa. Reconhece que, apesar de
termos elevado o grau de nosso conhecimento esta 2. Segundo Discurso
não nos proporcionou dignidade entre os homens.
“Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, O Segundo Discurso constitui-se em um dos
poetas, músicos, pintores: não temos mais cidadãos trabalhos mais instigantes e bem elaborados dos
ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos escritos por Rousseau. Primeiro, com 42 anos de
nossos campos abandonados, lá perecem idade já é um homem intelectualmente maduro,
indigentes e desprezados”. (PD, p. 357). não somente pelas leituras feitas durante anos,
Na primeira parte do Primeiro Discurso, como também pela sua conflituosa experiência de
Rousseau evidencia as conseqüências da ciência vida. Já é reconhecido, depois do Primeiro Discurso,
como a urbanidade, a corrupção dos costumes, o como escritor; segundo, o que é mais importante, o
luxo e a alienação; no segundo momento, não Segundo Discurso possui um método de reflexão:
somente lamenta a degenerada perversidade social Rosseau reconhece que a desigualdade entre os
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homens não pode ser entendida somente opondo-a as adversidades naturais? Em Rousseau, esse é mais
às ciências e às artes, mas compreendida pela um ponto interessante. O homem é natureza, mas
história (ainda que hipotética). Para tal projeto, também é diferente das outras espécies naturais,
Rousseau, como qualquer outro iluminista, faria uso pois ele possui a faculdade da perfectibilidade, e
da natureza, porém sua forma seria singular: a assim pôde construir instrumentos e vencer a
natureza ocupa papel fundamental, não como natureza, diferentemente dos animais.
cenário e tampouco como elemento de Esse processo é longo e possui suas
contemplação. A natureza seria compreendida revoluções. A passagem do estado de natureza para
como instância mediadora de conflitos: foi por sua o estado civil não é isento de conflitos e de perdas
adversidade que os homens tiveram de vencê-la e para o homem. Um longo processo de socialização
daí a entrada na história. A história vence, mas o vai se constituindo: pequenos bandos, grupos,
homem que aí surge nasce degenerado. A natureza famílias e, paralelos aos surgimento destas
perde para a história, porém a partir daí seria pequenas comunidades, os instintos naturais como
instalada a queda humana. o amor de si, a piedade e a compaixão vão se
Em sua perspectiva, o estado de natureza alterando em vícios: amor-próprio, orgulho,
possui uma história, e, diferentemente de seus vaidade. Entretanto, no primeiro momento em que
contemporâneos e dos interlocutores, a natureza é o homem vence a natureza pela perfectibilidade, ele
prenhe de conflitos. Parte do princípio de que o não cai na depravação e na decadência. A história,
homem se tornou civilizado porque ele se afastou nesse momento, ainda está aberta a possibilidades.
da natureza. É nesta separação que a desigualdade O fim do estado de natureza e a fundação da
se instala, pois quando viviam em plenitude no sociedade civil se deflagra com a demarcação do
estado de natureza, o homem era livre e feliz. Nada “meu”, com a instituição da propriedade privada6. A
lhe faltava, pois nada exigia. Vivia do que a natureza desigualdade se efetiva, pois nem todos serão
lhe oferecia, sem esforço e sem trabalho. O homem proprietários, e a submissão se instala. A liberdade
vivia isolado, associava-se o mínimo necessário e natural é perdida em troca da submissão civil; todos
não tinha nenhum artifício. A natureza era se alienam, pois se desenvolve uma teia de
acolhedora e satisfazia suas necessidades, pois não dependência na qual os ricos necessitam da
havia desejos e nem luxos. O homem possuía servidão dos pobres e estes, dos favores dos ricos.
somente a si mesmo. Meigos e piedosos, instintos Rousseau critica ainda o surgimento das
que a natureza lhes proveu, viviam na indolência do instituições políticas nesta passagem (estado de
estado primitivo. O homem nesse estado não tinha natureza para o estado civil) que já nascem
curiosidade, nem medo e nem paixões. Do mesmo corrompidas. Estando o rico inseguro diante do
modo que se acasalavam, eles se separavam. Eram roubo dos seus bens e temeroso da violência diante
livres, pois viviam apenas da satisfação de suas de sua vida, propõe aos mais fracos e pobres um
necessidades e a natureza os servia. acordo de união com o fim de instituir regulamentos
Quando descreve assim o estágio inicial do de justiça e paz, “aos quais todos sejam obrigados a
estado de natureza, Rousseau procura demonstrar conformar-se”. (SD, p. 269). Rousseau entende,
que a sociedade é contra a natureza. Como os porém, que esse pacto somente acarretou
jusnaturalistas, Rousseau concorda que a desvantagens para os mais desfavorecidos, pois a
sociabilidade é natural, mas essa socialização não instituição política que se estabeleceu prescreveu
foi pacífica. A natureza levou o homem a se regras apenas para a garantia e a segurança dos mais
socializar, mas essa mudança não foi linear, pois o ricos, dando “novos entraves ao fraco e novas forças
equilíbrio no qual viviam, no estado de natureza, ao rico” (Segundo Discurso, p. 269). Segundo
entre a necessidade e a oferta, foi rompido. Por Ehrard, esta é a via mais pessoal de Rousseau. Ao
circunstâncias fortuitas, do acaso, a natureza levou o estabelecer o surgimento da propriedade privada
homem a se modificar. Mas como o homem venceu ligada diretamente ao Estado, Rousseau considerou
6
A questão da crítica à propriedade privada não é apresentada apenas por Rousseau. Segundo Ehrard (1970), Meslier também no
século XVIII aponta que um dos maiores males da sociedade é a propriedade individual. Mas desemboca num liberalismo político
no qual o livre comércio para a burguesia poderia remediar todas as diferenças sociais. Já no século XVII, Locke considerava a
propriedade um direito natural legitimado pelo trabalho. Coletar frutos de uma árvore, já que dispendia esforços, implicava possuir
os bens da natureza.
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esta instituição não como “um árbitro imparcial considero as diversas posições sociais e os
entre as classes, mas o instrumento de opressão de homens que as ocupam, que acontece
uma classe a outra”. (Ehard, 1970, p.307). comigo? Que espetáculo! Onde está a
Rousseau apresenta assim seu pessimismo ordem que observei? O quadro da
natureza só me oferecia harmonia e
histórico: ao vencer a natureza, o homem se tornou
proporções, o do gênero humano só
um ser malvado e pervertido. Qual a solução? oferece confusão e desordem! O concerto
Quando Rousseau descreve o homem no estado de reina entre os elementos e os homens estão
natureza, ele o apresenta como naturalmente bom. no caos! Os animais são felizes, só seu rei é
A natureza dotou o homem de instintos benévolos, miserável! Ó sabedoria, assim regerá o
foi a sua entrada na sociedade que alterou toda sua mundo? Ser beneficente, que se
benevolência em vícios e maldades. Tem a crença transformou seu poder? Vejo o mal sobre a
de que por ser o homem naturalmente bom, talvez terra. (Emílio, Livro IV, p. 374).
seja possível ainda resgatar seus sentimentos
naturais. Se a história, no plano coletivo degenerou- Os homens se tornam frívolos, galantes,
se, ainda nos restam os indivíduos, daí os futuros vaidosos, medrosos e escravos. Perderam a sua
personagens fictícios como Emílio, Júlia, Saint- própria natureza, aquilo que lhes era de mais íntimo
Preux7, virtuosos homens que escutam a voz do e essencial. Perderam seu mais profundo e sagrado
coração, pois é no nosso interior que vamos princípio de existência e se tornaram estúpidos,
encontrar os benévolos instintos naturais, como a covardes, gananciosos, depravados, vaidosos,
compaixão e o amor de si. injustos e alienados. Entre a natureza e o homem,
um abismo os separa. Mas como separar seres que
em sua essência fazem parte de um mesmo plano
3. O estado de natureza de criação? Como pode o homem se tornar tão
antinatural se em tempos passados viveu tão
O Segundo Discurso, é o momento em que intimamente com a natureza? É nesse sentido que
Rousseau elabora a genealogia do estado de Rousseau se apóia no termo tão invocado no século
natureza. Entranhado na floresta Saint-Germain, dos pensadores iluministas: o estado de natureza.
Rousseau propõe-se a entender a desordem no Mas diferente de seus predecessores e
plano da história. Se o universo e a natureza eram contemporâneos, o estado de natureza passa a ser
entendidos por Rousseau como a representação de uma hipótese histórica. Como os naturalistas se
uma harmonia designada pela vontade da criação, o colocam na condição de inventariantes da vida
que levou o homem, “rei da criação”, a perverter a natural terrestre, Rousseau se investe de toda a
ordem ditada pelo criador? Em outras palavras, confiabilidade científica e se põe a hipotetizar, a
indigna Rousseau o fato do universo, natureza e conjeturar sobre um modo de vida no estado de
homem, provindos de uma mesma vontade, natureza. Mesmo reconhecendo que o estado de
poderem rivalizar entre si e desencadear um natureza talvez nunca tenha existido, Rousseau
desordem no plano da criação. Como pode o empenha-se em demonstrar que a descrição
movimento da natureza, tão perfeito, com cada ser hobbesiana de estado de natureza é falsa, pois
ocupando um papel definido, não ser Hobbes colocou no homem natural as
compartilhado pelo mesmo movimento de características do homem moderno. Hobbes
perfeição na escala humana? Quando volta os seus representa o estado de natureza como estado de
olhos, tão maravilhados com a relação da ordem guerra. Por medo da morte e para se protegerem um
natural para o movimento da história, ele se do outro, o homem do estado de natureza se
surpreende com tamanha desordem. O mal existe socializa. A socialização é entendida como processo
sobre a terra. natural, pois os homens querem ver-se livres da
violência e do receio da morte. O homem nesse
Mas, quando, para depois conhecer meu estado é violento e maldoso. Rousseau discorda.
lugar individual em minha espécie, Afirma que a natureza sempre foi boa, e os homens

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Júlia, Sr. Wolmar e Saint-Preux são os personagens do romance A Nova Heloísa. Emílio é o aluno imaginário de Rousseau em seu
tratado de educação.
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O Estado de Natureza em Rousseau

no estado de natureza viviam livres e em paz. Eram instrumentos de trabalho; (3), o estado da barbárie –
fortes, rudes e solitários. Não viviam em guerra, pois o momento final do estado da natureza – transição
isolados reuniam-se somente o necessário, não para o estado civil, que se assemelha ao estado de
haviam disputas, guerras, competições, pois o natureza de Hobbes.
homem não precisava colocar-se na concorrência Em relação ao primeiro momento, o de
com outros homens: a natureza não somente estado puro da natureza – do homem primitivo,
oferecia tudo, mas selecionava os mais aptos a viver Rousseau reconhece que seu relato não se
sobre o seu domínio. O mal não está na natureza, fundamenta em nenhum registro empírico: não tem
segundo Rousseau, mas está na sociedade. A provas e nenhuma evidência. Parte de um princípio
perversão ocorre quando saem do estado natural. hipotético – o homem primitivo é bom. Hipótese
Hobbes estava equivocado. Quando descreveu o totalmente frágil, mas que suas boas intenções o
estado de natureza como prenhe de conflitos entre levam a considerá-las como certas. É esta obsessão
os homens, ele voltava os olhos para o estado da hipotética que leva Starobinski (1991) a afirmar que
barbárie, estágio que segundo Rousseau representa a hipótese em Rousseau se transforma em ficção
o fim do estágio de natureza. Cabia agora a histórica. Ficção, vale dizer, que se tornou o
Rousseau demonstrar a Hobbes e seus adeptos que fundamento de toda a sua literatura política, pois
houve um tempo em que os homens eram em sua tentativa de distinguir o que é da natureza e
diferentes: “Os filósofos que examinaram os o que é da cultura, Rousseau percorre um tempo
fundamentos da sociedade sentiram todas as que nunca existiu para provar que o homem é
necessidades de voltar até ao estado de natureza, naturalmente bom. O que é muito instigante, pois
mas nenhum deles chegou até lá. (SD, p. 235). se o próprio Rousseau reconhece que esse tempo e
J. J. Rousseau se propõe a estudar este esse homem não pode ter existido, qual a garantia
estado e chegar até o primeiro princípio do que nós, leitores, herdeiros da idéia do
surgimento da cultura e da moralidade no homem. contratualismo de Rousseau, podemos ter de que o
É necessário entender e esclarecer o processo que homem é originalmente bom? Mas voltemos às
levou o homem a perverter-se. Daí o uso que fará do origens do estado de natureza. Nenhum vício,
estado de natureza. nenhuma comunicação. Confundia-se com a
própria natureza, pois tudo dela recebia. Como no
paraíso o homem somente desfrutava das idéias
3.1. Os estágios do estado de natureza naturais. “A terra abandonada à fertilidade natural e
coberta por florestas intensas, que o machado
O primeiro aviso de Rousseau logo na jamais mutilou, oferece a cada passo, provisões e
primeira parte do Segundo Discurso é que seu ponto abrigos aos animais de qualquer espécie.” (SD, p.
de partida para conceber fisicamente o homem da 238). Essa fase se caracteriza pela absoluta ausência
natureza será considera-lo em uma constituição de qualquer vestígio de cultura. A natureza conforta
física idêntica ao homem moderno: “eu o suporei o homem de todas as maneiras, e ao oferecer-lhe
conforme em todos tempos como o vejo hoje: tudo, o homem nem ao menos tem consciência de
andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como sua existência8. Nada indaga sobre sua origem e
fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a muito menos sobre seu fim. Os seus únicos temores
natureza e medindo com os olhos a vasta extensão são a dor e a fome. E mesmo assim esses sintomas
do céu.” (SD, p. 238) são raros, pois, corajosos, suportam a dor, e a
Assim, nenhuma contribuição à natureza abundantemente os alimenta. Os únicos
antropologia física, mas o que interessa a Rousseau bens de que dispõe é a alimentação, uma fêmea e o
é sobretudo o homem em sua constituição repouso. Os homens e as fêmeas acasalavam-se
intelectual e moral. Concebe a evolução desse quando necessário e separavam logo. As mães
homem em três estágios: no (1), o estado puro da aleitavam os filhos até o momento em que eles
natureza; no (2), o estado selvagem – já usando os tivessem condições de sobreviver sozinhos.

8
Da mesma maneira que Emílio até os dois anos de idade também não tinha consciência alguma de sua existência. Podemos
relacionar esse estágio da natureza como o da infantilidade, mais especificamente o da primeira idade, descrita por Rousseau em
seu livro o Emílio.
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Dispersos pela natureza, não mais se reconheciam os outros animais. A fase primitiva se altera para o
como mãe e como filho. segundo estágio do estado de natureza - o de
Seu conhecimento acerca das coisas que os selvageria. Mas o que ocorreu que o homem na
rodeava limitava-se às reações dos sentidos, pois maior das indolências se põe a fabricar armas, a
9
não distinguiam perceber de sentir . Não sabiam guerrear para não perecer diante das adversidades
observar e muito menos contemplar a natureza. “O naturais? Ainda na primeira parte do Segundo
espetáculo da natureza, por muito familiar, torna- Discurso, Rousseau esclarece que, mesmo
se-lhe indiferente; é sempre a mesma ordem, são confundindo-se com os demais animais na
sempre as mesmas revoluções; não possui espírito natureza, o homem é provido de outros dons que
para se espantar com as maiores maravilhas (...).” faltam ao animal. Apesar de viver institivamente, o
(SD, p. 245). Neste estado o homem nada homem primitivo difere dos animais por possuir o
acrescenta à natureza. Apenas recebendo o que na dom da liberdade e da perfectibilidade. Pela
natureza oferecia, não construiu nenhum artefato, liberdade os homens podem escolher suas ações e
nenhum instrumento que o diferenciasse da não permanecer passivos diante da natureza; pela
natureza. As transformações advieram quando o perfectibilidade podem construir instrumentos e se
homem teve de vencer a natureza – e então surge a diferenciar na natureza. Porém, o homem primitivo
cultura. Até o momento em que a natureza era pura desconhece a sua potencialidade, da mesma forma
oferta, o homem permaneceu em seu estado de que Emílio na infância vivia no “sono da razão”. Mas
indolência. Nada de trabalho e de instrumentos. A este desconhecimento não impede que haja virtual
passividade é absoluta. Não amava, não odiava. diferença entre o homem e a natureza. Para a
Não possuía nenhuma religião e não reverencia perfectibilidade aflorar é necessário que o homem
nenhum Deus. se veja em condições que ameacem a sua
Entretanto, essa indolente normalidade sobrevivência, pois a conservação de sua espécie é
alterou. A natureza, que sempre oferecia, passou a o seu primeiro sentimento e dos mais fortes.
restringir suas ofertas. Até então, se o homem vivia Rousseau assim paulatinamente vai construindo a
tranquilamente a aproveitar “os dons que a sua genealogia. Paralelo às primeiras mudanças
natureza oferecia”, sem “arrancar-lhes alguma ocorrem outras mais adversas e, em determinado
coisa” (SD, p.260), passa a ter de enfrentar alguns momento (Rousseau não precisa a data do evento),
obstáculos. Ocorrem alterações naturais: mudanças a natureza manifestou-se mais hostil ainda ao
climáticas e vegetacionais impõem agora nova homem primitivo. “Anos estéreis, invernos longos e
atitude do homem frente à natureza. Esta já não é rudes, verões escaldantes que tudo consomem,
mais tão pródiga. Torna-se hostil, e para sobreviver o exigiam deles uma nova indústria.” (SD, p.260). O
homem terá de vencer os obstáculos naturais. paradisíaco estado se alterou. As adversidades
Concorre com outros animais na busca de alimento, naturais, as intempéries ocasionaram profundas
e para vencer os seus concorrentes, constrói armas. transformações nesse estado de pura natureza. “ À
margem do mar e do rio, inventaram a linha e o
(...) a altura das árvores, que o impedia de anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas
alcançar os frutos, a concorrência dos florestas, construíram arcos e flechas, e se tornaram
animais que procuravam nutrir-se deles, a
caçadores e guerreiros.” (SD, p.160).
ferocidade daqueles que lhe ameaçaram a
própria vida, tudo o obrigou a entregar-se
Diferentemente dos animais se aperfeiçoa e
aos exercícios do corpo; foi preciso tornar- constrói instrumentos: o anzol, o arco. A partir daí se
se ágil, rápido na carreira, vigoroso no inicia o estado da cultura. Entre o homem e a
combate” (SD, p. 158). natureza agora se interpõe novos objetos,
construídos por suas próprias mãos e que não são
O homem se modifica. De passivo, põe-se a ofertados pela natureza. Até então isolados, os
construir armas, a disputar os bens da natureza com homens passam a reunir-se esporadicamente em

9
Em o Emílio Rousseau defende que perceber e sentir são ações cognitivas distintas entre si. Perceber é ser ativo, ir além das
sensações. Emílio passaria por três fases de conhecimento: primeiro, os sentidos; segundo, a percepção dos sentidos e, em terceiro,
a observação, que já é um grau de interpretação muito acima das percepções. O homem primitivo se limita a estar emum estado
passivo, pois não tem capacidade para ir além do que sente.
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O Estado de Natureza em Rousseau

bandos. Seus instrumentos de trabalho progridem: Se até então viviam como errantes e
dos simples galhos de árvores, usam agora concebiam a Terra como uma extensão contínua e
machados de pedra, e constroem suas rústicas sem diferenças, a natureza se altera: a Terra se
choupanas de ramos (cobertos de argila e de lama) e divide em diferentes partes. Rousseau se utiliza aqui
aprendem a preparar armadilhas. O conhecimento, da hipótese da dinâmica dos continentes. A ideia da
que até então se limitava às puras sensações, separação dos continentes não era uma ideia nova
amplia-se: passa a ter noção de comparação como para os pensadores do século XVIII10, mas as
entre o grande e o pequeno, o forte e o medroso, deduções de Rousseau a partir desse fenômeno são
paralelamente ao surgimento dos bandos, muito instigantes. O que lhe interessa é entender as
constituem-se pequenos grupos de famílias e consequências de tais alterações na natureza para o
ocorre a primeira divisão do trabalho entre a mulher homem. Não há como refletir sobre o homem sem
e o homem. As mulheres se tornam sedentárias, a pensar na dinâmica da natureza, mas, por outro
cuidar das cabanas, e os homens se dedicam a lado, Rousseau não se fixa nesse ponto. Seu objetivo
prover a subsistência da nascente família. Essa fase é é desvendar como o homem passa a relacionar-se
considerada por Rousseau como a primeira com tal dinâmica, e assim ele chega a algumas
revolução do estado de natureza. Os homens agora conclusões: da dinâmica dos continentes ocasiona
já reconhecem a necessidade do outro, mas não há o surgimento de uma nação. O paralelismo
ainda a idéia de coesão. Apesar de se constituírem etimológico que Lenoble (1994) apresenta entre as
em pequenos grupos familiares, são ainda errantes, palavras natureza e nação encontra em Rousseau
e a comunicação se restringe ás suas necessidades toda sua justificação. Natureza (natura – palavra
concretas, por isso um gesto, um grito basta para o latina que significa nascimento) com nação
entendimento. Mesmo vivendo na dependência de (derivada da palavra latina nati-onis que significa
uma natureza que agora já não é tão pródiga, vive nascer, povo, raça) se imbricam.
ainda num contato próximo com a natureza. A Terra agora se mostra naturalmente
Mas, outro evento natural ocorre e altera o diferenciada, e de cada um desses recortes se forma
modo de vida deste segundo estado da natureza. uma nação com seu modo de vida particular,
“Grandes inundações e tremores de terra cercaram influenciado por uma natureza cujo elemento
com água ou com precipício regiões habitadas; dominante é o clima. Com o surgimento das ilhas o
revoluções do globo separaram e cortaram em ilhas homem passa a localizar-se em um lugar preciso.
porções do continente.”(SD, p.263). Grupos de famílias ou bandos que então
A Terra se transforma. Não é mais um único perambulavam pela imensidão da Terra se fixam em
continente, mas se divide em ilhas. Se as primeiras cada região e “forçados a viver juntos, teve de
alterações naturais (climáticas e de vegetação) formar-se um idioma comum.”(SD, p.263). Uma
levaram o homem a se culturalizar, construindo comunicação mais articulada é constituída pelos
artefatos e se fixando em pequenos grupos, esta insulares, e é através deles que se propaga e se
segunda alteração ocorrerá pelas mudanças aperfeiçoa a linguagem. Paralelamente a tais
profundas no estado de natureza. alterações, as relações se tornam mais próximas.
Com a habitação fixa se estabelecem relações de
Tudo começa a mudar de aspecto. Até vizinhança, surgindo sentimentos de amor e de
errando nos bosques, os homens, ao ódio. O homem já necessita ser reconhecido pelo
adquirirem situação mais fixa, aproximam- outro e daí é preciso que ele tenha certa aparência
se lentamente e por fim formam em cada que agrade aos olhos do outro e que o envaideça. A
região, uma nação particular, uma de
falta de sentimentos no homem primitivo cede lugar
costumes e caracteres, não por
regulamentos e leis, mas, sim, pelo mesmo
ao orgulho e à vaidade. A cisão entre o homem e a
gênero de vida e de alimentos pela natureza já começa a delinear-se. Mas ainda não se
influência comum do clima. (SD, p.263). perderam totalmente. Rousseau relembra, com

10
A referência de Rousseau à dinâmica dos continentes faz parte de uma preocupação que antecede os pensadores do século XVIII.
Segundo Popp, as especulações sobre a dinâmica da Terra ou dos continentes é antiga. “As primeiras observações da grande
similaridade entre os contornos leste da América do Sul edo oeste da África foram feitas em 1620, por Bacon”. Cf. POPP, J. H.
Geologia Geral. Rio de Janeiro, Ed. Livros Técnicos e Científicos, 1984. p.163.
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bons olhos, esse tempo. Em seu entender, essa foi a homem tem a liberdade para escolher como
época em que os homens viveram mais felizes. arquitetar este mundo que lhe foi concedido por
Naquele momento o homem ainda não havia se Deus. A história é do homem e não de Deus.
pervertido, e é nesse estágio que se situa o ideal do Retirando assim qualquer invocação ao
bom selvagem. sobrenatural, Rousseau concebe que a entrada para
a história foi desencadeada por duas causas: (1) o
Enquanto os homens se contentaram com movimento da natureza (mudanças climáticas,
suas cabanas rústicas, enquanto se crescimento das árvores, tremores de terra,
limitaram a costurar com espinhos ou com separação dos continentes). Para sobreviver a tais
cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se intempéries, o homem instrumentalizou-se e assim
com plumas e conchas, a pintar o corpo
pode sobreviver às catástrofes naturais. Tais eventos
com várias cores, a aperfeiçoar ou a
embelezar seus arcos e flechas, a cortar
são vistos por Rousseau como circunstâncias
com pedras agudas algumas canoas de fortuitas, fruto do acaso, pois a natureza para
pescador ou alguns instrumentos grosseiros Rousseau é ordem. Esses fenômenos são acidentais,
de música – em uma palavra: enquanto só não regulares.
se dedicaram à obras que um único Mas até aqui o homem tem ainda uma
homem podia criar, e a artes que não relação estrita com a natureza. Todos os bens que
solicitavam o concurso de várias mãos, consome ou produz provêm diretamente da
viveram tão livres, sadios, bons e felizes natureza. Vive ainda em economia de subsistência.
quanto o puderam ser por sua natureza, e Desenvolve suas habilidades quando a natureza o
continuaram a gozar entre si das doçuras de
incita. Apesar de vencer a natureza, há ainda certa
um comércio independente (SD, p. 265).11
harmonia entre o homem e a natureza. Em síntese,
o homem não se altera não por prévia
Contentavam-se com o que podiam construir
determinação, mas porque a natureza o leva o isto.
com suas próprias mãos e divertiam-se entre si,
Entretanto, a partir de suas primeiras
adornados de plumas e de cores. A natureza estava
conquistas, o homem aprendeu a observar e até a
presente em suas vestes, nos seus instrumentos, em
imitar a natureza e pôde não somente exercer seus
suas músicas. Mesmo acrescentando novos objetos
conhecimentos para vencer os obstáculos naturais,
à natureza, viviam uma relação de imediatez com a
mas mesmo em situação de equilíbrio e ordem na
natureza, pois dela retiravam todo o necessário para
natureza. É dessa forma que Rousseau apresenta o
sua sobrevivência. Entretanto, esse estado também
fim do estado de natureza: não mais por
se alterou. O surgimento de novas técnicas como a
adversidade no plano da natureza, mas porque,
metalurgia e a agricultura representou para
mesmo em situação normal, o homem desenvolveu
Rousseau a segunda grande revolução no estado da
suas técnicas que marcam a segunda causa que
natureza.
deflagra definitivamente a socialização: a
Esta última e decisiva alteração no estado de
metalurgia e a agricultura. Não ocorre aqui
natureza não se dá como nos estágios precedentes,
nenhuma catástrofe natural, mas é o homem que, já
como consequência de uma adversidade natural.
conhecendo a natureza, pode agora rivalizar com
Como vimos, a perfectibilidade se põe em ação a
suas forças. A metalurgia – o uso do ferro não se deu
partir do momento em que a natureza é adversa ao
por vontade da natureza e nem por imposição
homem. Rousseau, entretanto, não se fixa em
12 natural. Em sua análise, a natureza até privou o
absoluto somente nas “conspirações naturais”
homem do conhecimento do ferro, localizando as
para compreender a entrada do homem na
minas em locais de difícil acesso, distantes e
sociedade. Como racionalista, nem Deus e nem a
escondidas dos olhares humanos.
natureza tem a supremacia absoluta do homem
para a história. Em relação a Deus, Rousseau o (...) menos ainda se poderá atribuir essa
compreende como a vontade primeira, mas o descoberta a algum incêndio acidental,
11
Este ideal de Rousseau é criticado por Boungainville. Em sua viagem à Patagônia, ao conhecer o modo de vida destes povos,
Boungainville fica um pouco horrorizado. “(...) Desnudados de tudo, eles são livres sem dúvida, mas eles pagam muito caro por esta
liberdade”. Cf. Broc, N. (1975). p. 300.
12
A expressão “conspiração natural” é de autoria de Haendel, citado por Derathé, R. (1979).
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O Estado de Natureza em Rousseau

posto que as minas se forma em lugares o trigo tem o mesmo valor que o ferro e se impõe
áridos e desprovidos de árvores e de plantas, uma diferença entre os valores dos produtos. E
podendo-se até imaginar que a natureza ainda: trabalhando menos, os mais fracos passam a
tomara precauções para esconder-nos esse depender dos mais fortes e daí a harmonia do
segredo fatal. (SD, p. 265).
segundo estágio da natureza se rompe. “(...) foram o
ferro e o trigo que civilizaram os homens e
A natureza, como no Primeiro discurso
perderam o gênero humano.” (SD, p.265).
procurou poupar o homem do sacrilégio da ciência,
Segundo Rousseau, foram os europeus que
evita agora no Segundo lançá-lo na utilização do
desencadearam o mau uso da técnica (metalurgia e
ferro. Como que sábia e previdente, a natureza
agricultura), e nesse momento é que o estado de
procura afastar dos homens os instrumentos que
natureza assume em Rousseau a característica de
deflagarão a sua trágica ruptura. Mas o homem já
conceito normativo. Há dois bons selvagens – os
portador do conhecimento, não se contenta em
caçadores e os pescadores -, os Caraíbas da América
ficar no estágio de caçador e pescador. Se até em
que não conheceram o trigo e puderam se
longínquo passado o homem era ocioso e apático,
salvaguardar-se desse estado generalizado de
já sabe, nesse momento, observar e repetir as
desequilíbrio; e por outro lado, os europeus, que
operações da natureza. Assim, ao observar o
aniquilaram o estado de natureza. Com as
movimento do vulcão, pôde pensar em como se
inovações técnicas aprimoram-se outra faculdades,
produzir ferro.
que para Rousseau se equivalem a vícios: a polidez,
“Não resta, pois, senão a circunstância
a vaidade, o amor próprio. O estado de liberdade se
extraordinária de algum vulcão que, vomitando
altera em uma teia de dependência desigual entre
matérias metálicas em fusão, deu aos observadores
os homens: um homem se torna escravo de outro
a idéia de imitar essa operação na natureza.” (SD,
homem. Dada a desigualdade nesse estado, os
p.170). O vulcão não é entendido, nesse momento,
homens não possuem mais o exercício suficiente da
como fenômeno que colocasse em risco a
liberdade para escolher e determinar a melhor
sobrevivência do homem. Rousseau salienta que o
forma de associação. Para se verem libertos da
homem se torna observador da natureza e aprende
violência deste estado fundam a sociedade, mas o
a reproduzir alguns de seus mecanismos. Quando
surgimento dessa sociedade já nasce legitimada
se coloca a produzir o ferro não é porque a
pela desigualdade e corrompida por todos os vícios.
condição de sobrevivência do homem estivesse em
Aqui, o real pessimismo de Rousseau, longe de ver
perigo, como nos estágios antecedentes. Nesse
nessa associação uma salvação para os homens,
momento, a natureza se torna um instrumento: a
leva-o a considerar que é nesse momento que se
partir dela o homem produz o ferro.
legitima a queda da história. Saem do estado de
As alterações não estacionam só na
natureza e instituem a ordem civil, mas essa ordem
utilização do ferro; do surgimento da metalurgia se
se expressa no surgimento de uma “má sociedade”.
desenvolve a agricultura. Os homens já haviam
O homem natural desaparece, aniquilado pelo uso
percebido como se produziam os frutos da
da sua perfectibilidade. A natureza perde para a
natureza, mas ainda se dedicavam a tal atividade
história, mas a história que triunfa é a de uma
limitadamente. O impulso para o desenvolvimento
sociedade degenerada.
da agricultura ocorre devido à utilização do ferro.
O pensamento rousseauniano sobre o
Assim que surgem homens que forjam o ferro é
estado de natureza é instigante. A relação entre o
preciso uma atividade: o cultivo do trigo para os
homem e a natureza, mesmo no estado mais puro,
alimentar. O trabalho se divide: os ferreiros de um
da maior indolência foi assinalada por um certo
lado, os agricultores de outro. Do cultivo da terra
conflito, ainda que reservado para ser
nasce a dificuldade de dividir o solo, e daí resulta o
desencadeado em tempo futuro: até quando a
direito à propriedade.
natureza tudo ofertava o homem nada criou.
Entretanto, essa situação não é equilibrada.
Passivo e pacífico, anulou-se diante da natureza.
As trocas entre os ferreiros e os agricultores são
Contudo, o homem era diferente da natureza, pois
desiguais. O lavrador necessita de ferro para
possuía uma razão, ainda que adormecida. Bastou
construir seus instrumentos de trabalho, o ferreiro
que a natureza colocasse em risco sua
precisa de trigo para alimentar-se. Mas nem sempre
sobrevivência, para que o homem a desenvolvesse.
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Este raciocínio sobre a origem do surgimento da pelas leis positivas. O homem se degenerou por
razão nos leva a algumas perguntas: porque o demais para que possa voltar à sua bondade natural.
homem somente utilizou de seu conhecimento em Sendo a liberdade do estado de natureza impossível
condições hostis? Se o homem já possuía o dom da de ser vivida, é necessário garantir ao homem outra
perfectibilidade por que somente o exercitou liberdade que o recompense da perda da liberdade
quando estava em perigo? Sendo com, e ainda natural, é e nesse sentido que ele desenvolve sua
portador de virtual razão, quais os motivos que o idéia de um contrato entre os homens. Rousseau,
impediram de colocar sua razão para funcionar em que nostalgicamente invoca tanto a necessidade do
situações desfavoráveis? estado de natureza, põe-se agora a invocar as
A questão, pensamos, é que para Rousseau vantagens da sociedade civil:
razão e sociabilidade se coadunam no sentido de
queda da história. À medida em que o homem vai Embora nesse estado se prive de muitas
entrando na história e afastando-se da natureza, a vantagens que frui da natureza, ganha
razão que se afirma é negativa. Aperfeiçoando-se outras de igual monta: suas faculdades se
exercem e se desenvolvem, suas idéias se
intelectualmente o homem instrumentaliza-se, mas
alargam, seus sentimentos se enobrecem,
estabelece desigualdade entre os homens. Para toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se
Rousseau o homem que pensa é um animal os abusos dessa nova condição não o
depravado por não ter conduzido sua razão para o desagradassem frequentemente a uma
uso do bem. Sendo bom em sua origem (ainda que condição inferior aquela donde saiu,
hipotética), desviou-se de sua essência natural e deveria sem cessar bendizer o instante feliz
edificou uma sociedade que caminha contra a que dela o arrancou para sempre e fez, de
natureza. Quanto mais se socializa constrói técnicas um animal estúpido e limitado, um ser
e se torna antinatural. inteligente e um homem. (CS. Livro I.
Apesar de constatar a péssima história Cap.VIII. p.36).
edificada pelos homens, Rousseau teve a lucidez
O olhar de Rousseau sobre o estado de
necessária para reconhecer que o retorno ao estado
natureza agora é outro. O autor do Segundo
de pura natureza seria impossível. Esse tempo ficou
Discurso que voltava os seus olhos para aquela bela
para trás, não pode mais ser vivido. O que passa a
praia ornada de felicidade e de liberdade, qualifica
interessar é sobre qual a melhor forma de substituir
os seus idílicos homens naturais como estúpidos e
a liberdade perdida no estado de natureza por outra
limitados, pois nesse estado o homem era privado
liberdade no estado civil. Daí a saída de Rousseau
da faculdade de pensar. Assim, o modo de vida
será pelo Contrato Social. Cabe-nos então
natural, que se pautava na satisfação dos instintos
perguntar: qual será o lugar e a função que a
naturais, deve ser sufocada para o aperfeiçoamento
natureza ocupará o Contrato Social?
do homem civil. No livro II, capítulo VII, do
Contrato Social, ao determinar as funções do
legislador, Rousseau radicaliza:
4. A natureza no estado civil: a bela e a boa
natureza Aquele que ousa a empreender a
instituição de um povo deve sentir-se com
No início do Contrato Social Rousseau capacidade para, por assim dizer, mudar a
descreve: “o homem nasce livre e por toda a parte natureza humana, transformar cada
encontra-se a ferros.” (Livro I, p. 22). O resgate de indivíduo, que por si mesmo é um todo
tal liberdade estaria no retorno ao estado de perfeito e solitário, em parte de um todo
natureza perdido? Para Rousseau, não. O estado de maior, do qual de certo modo esse
natureza deve ser aniquilado. O ideal do bom indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar
selvagem permanece uma ficção, um romance que a constituição do homem para fortificá-la;
substituir a existência física e
pode ser escrito, mas não vivido. O retorno à
independente, que todos nós recebemos
simplicidade dos primeiros tempos é apenas da natureza, por uma existência parcial e
lembrança, mas não verídica no plano da história. moral. Em uma palavra, é preciso que
As leis naturais que regiam um imaginário mundo de destitua o homem de suas próprias forças
felicidade e de liberdade devem ser substituídas para lhe dar outras que lhe sejam estranhas
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O Estado de Natureza em Rousseau

e das quais não possa fazer uso sem socorro nostálgico naturalista do Segundo Discurso nega a
alheio. Na medida em que tais forças natureza do homem primitivo? A resposta poderia
naturais estiverem mortas e aniquiladas, ser encontrada já no Primeiro Discurso. Apesar de
mais as adquiridas serão grandes e sua exaltada apologia da natureza, Rousseau
duradouras, e mais sólida e perfeita a
também já se sente enaltecido pelos frutos
instituição, de modo que, se cada cidadão
nada for, nada poderá senão graças a todos
vindouros da modernidade, haja vista sua
os outros, e se a força adquirida pelo todo referência a Descartes. Em o Emílio, apesar da
for igual ou superior à soma das forças reverência e da referência da natureza na primeira
naturais de todos os indivíduos, poderemos infância do seu aluno, à medida em que esse cresce
então dizer que a legislação está no mais e se torna homem a função da natureza vai
alto grau de perfeição que possa atingir. reduzindo-se. A natureza tem força total na
infância, mas quando Emílio já está quase para
Aquela natureza, tão pura, que era a tornar-se homem é a voz do vigário cartesiano que
essência do homem do estado de natureza, deve ser ensina o preceptor (Rousseau), que por sua vez
agora alterado em outra natureza. Na sociedade do ensinará a Emílio que a natureza é pura ordem
Contrato Social não há mais lugar para a natureza do mecânica: incessantemente um movimento de
estado de natureza. A posição de Rousseau é causa e efeito. Ao fim do livro V, a natureza se
incômoda, por seu radicalismo: o Contrato Social aumenta por completo. É a doutrina do Contrato
não tem como alvo somente equilibrar o uso dos Social que toma força.
recursos naturais13 ou defender uma forma de Vale frisar que, mesmo na educação infantil
14
governo em função do clima : as alterações na de Emílio, a natureza requisitada não foi a mesma
natureza do homem devem ser radicais. Para o no Segundo Discurso. Neste Discurso, a natureza
Contrato ser perfeito é necessário que toda aquela era desencadeada por catástrofes (terremotos,
natureza que existira antes de qualquer ação separação dos continentes) e em o Emílio e no
humana – naquele homem que Rousseau tão Contrato social a natureza já está pacificada.
nostalgicamente invocava, errando pelos bosques, Quando Rousseau escreveu o Emílio, a Europa
vivendo tão-somente na satisfação dos seus instintos havia sido aturdida em 1755 pelo terremoto de
– seja aniquilada em prol de uma moral. O estado Lisboa, mas o preceptor não o menciona. As
de natureza perde sua força crítica que perfilhava o grandes catástrofes servem como cenário no
Segundo Discurso e se torna um quadro ilustrativo e Segundo Discurso para ilustrar a vida do homem
exótico: em algum lugar dessa terra há povos que primitivo. Mas, quando o homem se culturaliza a
são diferentes, mas a natureza do homem do natureza se ordena. Emílio é um ser educado para a
Contrato Social não deve ser como a destes povos. sociedade, e nesse sentido a natureza deve ilustrar o
O homem do Contrato deve ser bem educado e ideal de sociedade: ordem e perfeição. Em outras
esclarecido, daí os personagens fictícios: a virtuosa palavras, se Rousseau concebesse que na natureza
Julia, o racional Sr. De Wolmar, o equilibrado e pudesse ocorrer também a desordem, equivaleria a
sensato Emílio, o heróico Saint-Preux. aceitar a desordem na história. Apesar de ter
Seguindo cronologicamente as reflexões de demonstrado a relação de conflito entre a natureza
Rousseau o Contrato Social foi escrito mais ou e o homem (que se concretizou a partir das
menos 16 anos após a publicação do Primeiro e do catástrofes hostis ao homem), em Rousseau
SegundoDiscurso. Nesse ínterim, que se inicia na natureza é sempre boa, e bondade equivale a
premiação do Primeiro Discurso até seu voluntário perfeição e regularidade. O que Rousseau deseja é
confinamento em Montmorency Mont-Louis, que entre o homem e a natureza possa ser
Rousseau pode, no contrato apaziguador de suas estabelecido um pacto de equilíbrio, pois é esse
caminhadas campesinas, concluir que a indolência equilíbrio que mantem a ordem da sociedade. Para
e a bondade do homem primitivo não mais haver tal equilíbrio, Rousseau concebe uma
poderiam ser vividas. Mas o que inquieta é natureza perfeita e daí naturaliza a sociedade do
justamente isso: ao escrever o Contrato Social, o Contrato Social. Da mesma maneira que defendeu a

13
Ver Contrato Social. Livro II. Cap. XI.
14
Ver Contrato Social. Livro III. Cap. VIII.
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bondade em Deus, Rousseau defende a bondade águas são turbulentas. Quanto Saint-Preux encontra
na natureza, pois somente assim pode manter o seu em sua antiga amante uma amiga exemplar e um
otimismo antropológico: o homem é bom. Caso modelo de família, é o jardim de Júlia – o Eliseu -,
Rousseau denegasse este valor de bondade à que serve como palco para um novo acordo entre
natureza, e também denegasse uma essência inata Saint-Preux, Sr. de Wolmar e Julia. Saint-Preux se
valorativa ao homem, o Contrato Social perderia o inebria ao adentrar o jardim “(...) julguei ver o lugar
seu fundamento, pois segundo Rousseau o Contrato mais selvagem, mais solitário da natureza e parecia-
somente tem garantia de ser aplicado em povos não me ser o primeiro mortal a ter alguma vez penetrado
15
muito corrompidos, em que a bondade natural nesse deserto.” A habilidosa Julia, contando com o
possa ainda ser resgatada. Talvez em seu romance: a trabalho de seus camponeses, pode construir um
comunidade de Clarens; no indivíduo: Emílio; e no jardim tão perfeito que trazia a ilusão de que tudo
plano da história: o povo de Córsega. ali era somente obra da natureza. Mas nada ali era
Convém frisar também que a perfeição da selvagem. Diz Julia a Saint-Preux: “É verdade, (...)
sociedade almejada no Contrato Social necessita da que a natureza fez tudo, mas sobe a minha direção e
16
uniformidade das opiniões e das crenças de todos os nada há aqui que eu não tenha organizado.” A arte
homens, e a natureza, em seu movimento de Julia é tão perfeita, que apaga os vestígios de
uniforme, ilustra e serve como referência a esse qualquer ação humana. Há uma organização do
ideal do Contrato. Num século como o XVIII natural que tem por finalidade a ilusão do retorno,
iluminista, em que a natureza tudo significa e do triunfo da natureza. O trabalho humano está
representa, seria normal Rousseau projetar sobre a como que ausente. Assim Rousseau conquista o seu
natureza o seu ideal de sociedade. Para a sociedade desejo: natureza e homem são tão perfeitos que não
atingir a perfeição é preciso conceber uma natureza se opõem. O trabalho de Julia imita a natureza, mas
que também seja uniforme e perfeita. Nem Emílio, essa natureza não é a natureza do estado de
nem Julia, Saint-Preux, Sr. de Wolmar e nem o natureza e não é nada hostil ao homem. É uma
próprio Rousseau em seus Devaneios, sequer natureza que traz refúgio, acolhimento, como que
mencionam sobre qualquer alteração na natureza. feita para agradar e sensibilizar a alma humana.
Concebendo a natureza do Contrato Assim, Saint-Preux pode isolar-se nesse pequeno
apenas como recurso ou como determinando deserto, pois nada ali o faz lembrar a presença do
formas de governo, é em A nova Heloisa que homem e, como que hipnotizado pela selvageria
Rousseau invoca a natureza, um tanto diferente da laboriosa da natureza, pode entrar em
maneira em que ele a referencia no Contrato. Ao comunicação direta com a natureza.
defender no Contrato o aniquilamento do estado de Por outro lado, não poderíamos
natureza, ele passa a recusar tudo aquilo que não é negligenciar que ao escolher a bela natureza como
mais considerado como cultura, mas por outro lado cenário para apologia da moral virtuosa, Rousseau
Rousseau não recusa a natureza; a natureza que se faz, na segunda metade do século XVIII,
passa a ser reverenciada é a natureza que sirva excelente observador e descritor de paisagens. No
como cenário para o triunfo de seu ideal moral e dizer de Broc: “era preciso esperar Rousseau para
político. A natureza está presente, mas não uma que o séc. XVIII redescobrisse as altas montanhas
natureza qualquer. Sua escolha recai naquela que dos alpes.” (BROC, N. 1975, p. 10). Ao
ilustre o seu estado de espírito e que lhe agrade os protagonizar o seu romance A nova Heloísa no sopé
sentidos, daí o jardim de Julia, as herborizações, o da montanha alpina, Rousseau não poupou a sua
refúgio na ilha deserta, a exaltação da vida verve de observador e enaltecido pela paisagem
campesina nas montanhas alpinas, a calma junto ao vista assim a descreveu:
de Bienne.
Em A nova Heloísa as palavras mais Não era somente o trabalho dos homens
abundantes são natureza e virtude. A natureza é o que tornara estas regiões estranhas tão
cenário, o quadro para a conquista da virtude. bizarramente contrastantes, a natureza
Quando Saint-Preux sofre, a paisagem é hostil, as parecia ter prazer também em alocar-se em

15
A Nova Heloisa, Parte IV. Carta XII. p.140.
16
Idem.
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O Estado de Natureza em Rousseau

oposição a si mesma, de tal forma a víamos da pura natureza. Concordamos parcialmente com
de maneira diferente no mesmo lugar sob Rosset. Rousseau criou a sua natureza. Mas isso não
diferentes aspectos. A leste, as flores da significa que não há em Rousseau uma idéia de
primavera, ao sul, os frutos do outono, ao natureza. O que podemos levantar é que Rousseau
norte, os gelos do inverno: ela reunia todas
não acreditou e nem se entregou
as estações no mesmo instante, todos os
climas no mesmo lugar, terrenos contrários
incondicionalmente a natureza e criou uma certa
no mesmo solo e formava a harmonia, idéia de natureza. Projetou a natureza que
desconhecida em qualquer outra parte, considerava necessária para ilustrar suas intenções,
das produções das planícies e dos Alpes. seus ideais políticos e também para dar sentido à sua
Acrescentai a tudo isso as ilusões de ótica, existência. Racional, reconheceu que entre ele a
os cumes dos montes diferentemente natureza, somente por nomes e conceitos a
iluminados, o claro-escuro do sol e das natureza seria apreendida. Afetivo, mas não
sombras e todas as variações luminosas que irracional, impregnou a natureza de suas intenções.
resultam pela manhã e à noite. (A Nova Há sim uma idéia de natureza em Rousseau, e esta
Heloísa. Parte I. Carta XXIII, p.82).
deve ser entendida enquanto função a
desempenhar, e essas funções configuram-se
Em um momento no qual faltava o conceito
distintas entre si em cada situação. A natureza tanto
de paisagem, a singularidade de Rousseau é que
pode ser regra de comportamento, como também
suas descrições expressam o idílio de uma paisagem
conjunto de leis mecânicas; pode ser também
bela de ser contemplada como também a
aquela natureza, essência humana, que significa o
simplicidade do modo de vida camponês. Sua
que o homem tem de próprio e lhe foi dado antes da
paisagem observada apaga e nega o difícil e acre
História e da cultura; há a natureza intempestiva
convívio com os homens. Selecionou uma certa
que rompeu com o estado de letargia do homem
natureza, a que lhe trouxesse gozo ao ser
primitivo; há ainda as paisagens naturais, belas para
contemplada, mas sempre reconheceu que entre o
serem contempladas em variadas formas e cores; há
homem e a natureza havia uma distância
a natureza enquanto recurso no Contrato Social.
intransponível. Assim como o homem primitivo se
Entretanto, mesmo a natureza estando presente em
perdeu, a natureza primitiva se ordenou para entrar
todos os seus escritos, e aqui concordamos com
para a história. Contudo, há um desejo recôndito no
Rosset, isso não significa que Rousseau seja um
homem por essa natureza perdida e daí a
apologista da natureza. Rousseau reconhece a
necessidade do reencontro. Mas esta natureza é
ruptura entre o homem e a natureza e ele a aceita,
uma representação de uma natureza selvagem, não
tanto que se esforça por substituir o natural pela
é a natureza do estado de natureza, pois essa não
virtude. Mas, o grande problema de Rousseau é que
mais existe, se é que tenha existido para Rousseau.
ao mesmo tempo que ele toma consciência dessa
O que lhe resta, e isso ele faz genialmente é trazer
cisão, ele lamenta essa ausência da natureza no
para o homem a paisagem para ser contemplada,
homem. É essa falta da primeira natureza que
mas ausente de toda a marca do conflito entre o
Rousseau procura compensar, mas sabe de
homem e a natureza. Uma paisagem sobretudo
antemão que tudo que sai das mãos do homem é
aprazível aos olhos.
imperfeito, efêmero e limitado. A constante
referência à natureza em seu pensamento deve ser
entendida mais como a de um homem que se sente
Considerações Finais:
arrancado e separado da natureza do que a de um
homem que se sente unido à natureza.
No livro a Antinatureza. o filósofo Rosset
(1989) em poucas palavras, aponta que em
Rousseau não há a ideia de natureza, pois
Rousseau, contrariamente aos que muitos
consideram, recusa o que é natural. Denega a
natureza e cria uma outra natureza, a que lhe
satisfaz. Para Rosset, Rousseau deve ser visto mais
como exímio artificialista, do que como apologista

24 Espaço Plural . Ano XII . Nº 25 . 2º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196


Gislene Santos Dossiê Meio Ambiente

Referências Bibliográficas

Obras de Rousseau:

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fondements de l`inégalité. Oeuvres Complèts III.
Paris: Galimard, Bibliothèque de la Plèiade, 1964.

___. Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991.

___. Discours sur les sciences et les arts. Oeuvres


Complèts III. Paris: Galimard, Bibliothèque de la
Plèiade, 1964.

___. Discurso sobre as ciências e as artes. Coleção


Os Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1978.
___. Do Contrato social. Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991.

___. Júlia ou A Nova Heloísa. São Paulo - Campinas:


Hucitec/Ed. Unicamp, 1994.

___. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins


Fontes, 1995.

Obras de outros autores:

BROC, Numa. La Géographie des Philosophes.


Géographes et voyageurs français au XVIII éme
siécle. Paris: Ophrys, 1975.

DERATHÉ, Robert. Le rationalisme de Jean-Jacques


Rousseau. Genève: Slatkine Reprints, 1979.

LENOBLE, Robert. História da idéia de Natureza.


Rio de Janeiro:Edições 70, 1990.

EHARD, Jean. L´idée de nature en France à l´aube


des Lumiéres. Paris: Flammarion, 1970.

ROSSET, Clement. A antinatureza: elementos para


uma filosofia trágica. RJ: Espaço e Tempo, 1989.

STARONBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau – a


transparência e o obstáculo. São Paulo: Cia das
Letras, 1991.

Artigo recebido em 15/12/2011


Artigo aprovado em 26/02/2012
Espaço Plural . Ano XII . Nº 25 . 2º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196 25

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